Yoskihaz - Manuscrito Vol 1

May 17, 2019 | Author: AlineBarros | Category: Alchemy, Love, Time, Liberty, Fashion
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Yoskihaz - Manuscrito Vol 1...

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MANUSCRITOS Volume I

YOSKHAZ

1ª edição Rio de Janeiro Tinta Livre 2016 !

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Copyright © 2016 Yoskhaz Copyright © 2016 por Tinta Livre editora Todos os direitos reservados

Título original: Manuscritos, volume 1 Capa: Ana Cunhal Zivick Revisão: Rita Godoy e Carlos André Oighenstein Diagramação e arte: Cláudia Maiello Editoras adjuntas: Tatiana da Costa Velho e Carvalho, Júlia Reuter e Carvalho e Marcello Melo S. Editor responsável: Jorge Desgranges

Yoskhaz Manuscritos, vol. 1 / Yoskhaz – 1ª edição Rio de Janeiro: Tinta Livre editora, 2016.

ISBN: 978 – 85 – 92644 – 00 – 0 Ficção / Contos / Metafísica

www.yoskhaz.com www.tintalivre.org [email protected]

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INDICE:! ! 1+! A!MAGIA!DAS!PALAVRAS! 2+! A!CURA!PELA!VERDADE! 3+! ALQUIMISTAS!MODERNOS! 4+! O!LIVRE!PENSAR!NÃO!É!SÓ!PENSAR! 5+! O!DESEQUILÍBRIO!É!FUNDAMENTAL! 6+! O!PROBLEMA!NÃO!É!O!PROBLEMA! 7+! SER!GENTE!NUNCA!SAI!DE!MODA! 8+! O!CAOS!É!DO!BEM! 9+! SUAS!ASAS!TÊM!O!TAMANHO!DO!SEU!CORAÇÃO! 10+!!ESCRAVOS!CONTEMPORÂNEOS! 11+!!A!VIDA!EXIGE!LEVEZA! 12+!!SER!É!MUITO!ALÉM!DE!ESTAR! 13+!!JARDINEIROS!DA!ALMA! 14+!!SÓ!HÁ!CORAGEM!ONDE!ANTES!EXISTIA!O!MEDO! 15+!!O!EGO!DESEJA!BRILHO,!A!ALMA!ANSEIA!POR!LUZ! 16+!!A!MAGIA!DE!ENCONTRAR!CONSIGO! 17+!!AMOR!NÃO!É!TROCA! 18+!!A!MATURIDADE!TRAZ!EM!SI!A!VERDADEIRA!LIBERDADE! 19+!!MILAGRES!SÃO!TRANSFARMAÇÕES!OCULTAS!EM!NÓS! 20+!!ISTO!NÃO!TEM!IMPORTÂNCIA! 21+!!AS!MELHORES!HISTÓRIAS!SÃO!AS!DE!SUPERAÇÃO! 22+!!O!SAGRADO!MORA!NO!CORAÇÃO! 23+!!OS!LABIRINTOS!DA!VIDA! 24+!!O!CAÇADOR!DE!ESTRELAS! 25+!!O!ESPELHO!DE!MINHA!ALMA!É!VOCÊ! 26+!!A!ARTE!DA!RENÚNCIA! 27+!!A!BELEZA!DO!PERDÃO! 28+!!OS!PILARES!DA!PAZ! 29+!!A!LUZ!DA!VERDADE! 30+!!A!VOZ!DO!CORAÇÃO! 31+!!SABEMOS!MAIS!DO!QUE!SOMOS! 32+!!A!OUTRA!FACE! 33+!!O!MERCADOR!DE!SONHOS! 34+!!EU!PRECISO!DISSO?! 35+!!NINGUÉM!SOFRE!POR!AMOR! 36+!!MEU!PERSONAGEM!FAVORITO! 37+!!ALEGRIA,!ALEGRIA! 38+!!O!ENIGMA!DA!PACIÊNCIA! 39+!!DEVER!DE!CASA! 40+!!A!GRANDE!AVENTURA! 41+!!PELO!PRISMA!DA!LUZ! 42+!O!ESCUDO!CONTRA!O!MAL! 43+!!O!PODER!DAS!ESCOLHAS! 44+!!O!SENTIDO!DA!VITÓRIA! 45+!!A!FUGA!DO!MUNDO! 46+!!AS!SUTILEZAS!DA!VERDADE! 47+!!TRISTES!CREDORES! 48+!!O!ENCANTAMENTO!DOS!RITUAIS! 49+!!MARAVILHOSOS!VILÕES! 50+!!A!MELHOR!PARTE!

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A MAGIA DAS PALAVRAS

Todos somos feiticeiros, e a palavra é o principal ingrediente do caldeirão. Através do que é dito ou escrito podemos convidar os povos a dançar, semeando alegria e esperança, ou construir muros, espalhando ódio e medo. Este é o poder, e ele é seu. Assim, cada manifestação se torna um ato de magia e define qual tipo de feiticeiro escolhemos ser. Desde tempos remotos ensina-se que a palavra tem poder. Toda palavra traz em si uma ideia. Diversas culturas ensinam valiosas lições sobre o cuidado que devemos ter com a palavra. O cristianismo orienta que as palavras revelam o que cada um tem no coração. Elas são a exata medida do nível de consciência de quem as emite. Os cabalistas narram uma bela história em que um professor, para corrigir um aluno que difamou o colega, pede que escreva a ofensa em um pedaço de papel. Depois, que a rasgue em muitos pedaços e os solte em lugar assolado por forte ventania. Agora recolha tudo, determina o professor. Impossível, responde o aluno faltoso, que já não consegue ver para onde os pedaços restaram espalhados e perdidos. Assim acontece com as nossas palavras, explica o bondoso professor; depois de ditas já não nos pertencem mais e ignoramos qual será o seu destino. Preste atenção antes de falar. Escute todos os lados envolvidos; em toda discórdia há no mínimo duas versões, além da verdade! Pondere quais sentimentos te movem: ódio, ciúme, vingança, inveja ou amor e paz? Outro cuidado que devemos ter é não travestir o desejo de vingança com as vestes da justiça. Não raro, sob a falsa e pretensa alegação do ato nobre, ocultamos e damos vazão aos nossos sentimentos mais densos e sombrios. Seja claro e objetivo em suas palavras. Não é não; sim é sim. Exponha seu raciocínio serenamente e respeite o entendimento alheio contrário ao seu. Que seu coração nunca esqueça que a boa semente não se perde e, no momento oportuno, germinará. As mais sábias palavras despencam no abismo se não forem o espelho das atitudes de quem as disse. Seja sempre sincero e nunca finja afeição, porém lembre-se de que o amor é a força mais poderosa que existe. O amor é a matéria-prima de todos os milagres. A palavra traz luz aos cegos. O budismo ensina que o Universo é um ser vivo em eterna transformação e reage na exata razão das nossas ações. A melhor maneira de comungar com Ele é espalhando alegria por toda a gente. Para tanto, a palavra é uma sementeira poderosa e barata. A sabedoria empresta cores à filosofia das mais diversas tradições. Reconhecer a árvore através de seu fruto é outro belo quadro desenhado com as mesmas tintas. Sendo você a árvore, os frutos são suas palavras (e atitudes). Decida se vai envenenar ou alimentar a humanidade em suas ceias espirituais. Você se define a cada ato ou palavra.

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A CURA PELA VERDADE

Os povos nativos americanos, adeptos do xamanismo, têm um símbolo sagrado chamado Roda de Cura ou Roda da Vida. Não à toa, entendem que viver é um processo infinito de cura, caminhar em beleza pela infinita estrada da vida, nas palavras de um ancião navajo. O símbolo tem a sagrada missão de nos lembrar que através de nossas relações vamos encontrar o remédio ou o veneno para as nossas dores. À medida que aprendemos quem somos e pacificamos o nosso convívio com tudo e com todos saltamos um aro na Roda da Vida. Ficamos mais fortes para seguir adiante. Certa vez ouvi de um sábio monge tibetano que o budismo não era religião, tampouco filosofia. Budismo é convívio social, esclareceu, pois toda teoria só terá alguma serventia se aplicada aos meus relacionamentos do cotidiano. Conhecimento que não é vivido é como pão na vitrine, embora encha os olhos, não sacia a fome. A vida nada mais é do que um processo contínuo de cura. A razão de viver é puramente de cicatrizar as feridas emocionais, extirpar tumores psicológicos, sarar dores afetivas. Só assim seremos plenos, verdadeiramente felizes. Antigas e atuais relações costumam ferir e machucar de tal maneira que, se deixarmos, o sofrimento se instala como se ali fosse a sua casa eterna. Todos que passam por nossas vidas, em maior ou menor grau de intensidade, são nossos mestres, pois trazem situações, agradáveis ou não, que permitirão florescer o melhor em nós. Desde que tenhamos coragem, sabedoria e amor de buscar as respostas na fonte de toda a verdade. Esta luz está dentro de você. Não é fácil e nem sempre o primeiro encontro é agradável, pois costumamos usar o artificio da ilusão para personificar quem gostaríamos de ser, na vã esperança de que isso atenue nossas dores. É a mentira que contamos para nós que nos impede a cura. Indispensável despir-se do personagem social que criamos, que, por irreal, atrasa o nosso encontro com a verdade, retardando o desejado trem rumo às terras altas da plenitude. Para ser feliz é preciso ser todo. Ser todo somente é possível se viajarmos de carona no vagão da verdade. A verdade cura porque levanta o véu que embaça o perfeito olhar. O melhor entendimento te permite modificar a rota. Para tanto temos que nos lançar em voo fantástico através dos vales iluminados e sombrios do autoconhecimento. A antiga e boa filosofia socrática já nos avisava da necessidade de conhecer-te a ti mesmo. Entender quem somos de verdade é o único caminho para entender os outros. E ficar em paz com o universo. Todos reclamam das imperfeições do mundo e esquecem que fazem parte dele como as flores ou os espinhos; os leões ou os carneiros; o fogo ou a água. Às vezes como um, noutras, como outro. Por ignorância ou comodidade, esquecemos que, se fazemos parte das delícias da vida, somos, em alguns momentos, elementos de suas dores também. Um pouco mais ou um pouco menos, de acordo com o entendimento de cada um, porém, sem exceções. Reclamamos muito porque desejamos que tudo e todos se adequem ao nosso conforto e necessidade, como uma avenida em que os sinais vão ficando verdes na medida em que nosso carro se aproxima. Seria perfeito, não? E aqueles que trafegam pelas ruas transversais terão sempre que nos esperar? O problema é que todos se imaginam na via principal.

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Está instalado o conflito. No entanto, todos buscamos a felicidade, e mesmo quando verbalizamos nossa descrença, inconscientemente ansiamos por aquele estado de espírito. Para pacificar as suas relações e curar seu sofrimento é indispensável entender quais os sentimentos que te movem. Será que o amor não nos foi ingrato porque ansiamos por possui-lo ao invés de simplesmente vivê-lo? Será que a pessoa amada não partiu porque não suportou a pesada carga de ser obrigada a te fazer feliz nesse insensato ônus que você mesmo impôs a ela? Será que o outro não tem o direito de partir quando bem entender, fazer suas escolhas e, cabendo a nós, apenas respeitar em ato repleto de dignidade, por saber que nossas decisões merecem igual consideração? Quando pleiteamos uma sentença, estamos movidos por justiça ou vingança? Será que quando nos sentimos maltratados não foi porque concedemos ao outro tal poder? Não estará na hora de rever tal concessão? Apenas algumas indagações pequenas e comuns a todos nós. O sentimento é o combustível que move a vida; no entanto, é o seu nível de consciência que permite a melhor combustão. Entender seus sentimentos e emoções é se conhecer cada vez mais e melhor, ter a capacidade de escolher as melhores reações para você e consequências para o mundo. Maturidade é entender que não há liberdade sem responsabilidade. Ser pleno, um pouco mais adiante, é entender que suas escolhas desenham a sua história e são decisivas para o mundo ao seu redor. Como uma pedra atirada no lago, a liberdade de escolha se expande em ondas até os confins do universo. Este reage aos nossos impulsos em perfeita proporção. Em que direção seguir? Como um passageiro desorientado em uma grande estação, perguntamos em qual plataforma sairá o próximo trem. Todos desejamos o mapa secreto do paraíso e nem nos damos conta de que ele pode ser o nosso próprio quintal. Os cabalistas contam uma parábola em que um rico mercador ofereceu metade de sua fortuna se alguém fosse capaz de resumir toda a sabedoria do Talmude no curto espaço de tempo em que se equilibraria sobre uma perna. Não faça ao outro o que não quer que façam a ti, todo o resto são apenas comentários, sintetizou com perfeição um inteligente rabi. No belo e profundo Sermão da Montanha, Jesus ensina a mesmíssima lição ao explicar que todos os mandamentos se resumem tão e somente a fazer ao outro o que deseja que façam a ti. Eis o norte da bússola a indicar a estrada à plenitude. Perceber com clareza a amplitude de suas atitudes, assim como os verdadeiros sentimentos que a movem as suas reações, é entender tudo e todos. O mundo se expande, serena e ilumina na medida exata em que entendemos quem somos e o que fazemos. De verdade.

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ALQUIMISTAS MODERNOS

Um dos grandes sonhos da humanidade através dos tempos é transformar ferro em ouro. O outro é a imortalidade. Assim, a humanidade atravessou os séculos, alimentando a ambição de viver para sempre, de maneira nababesca e sem o esforço do trabalho cotidiano. Bastaria um pedaço de metal barato no caldeirão em ebulição para que transformasse a mais antiga e preciosa mercadoria de que o mercado tem notícia. Castelos luxuosos, mesa farta, prazeres todos para todo o sempre. Existe uma boa literatura medieval desses cientistas que sobreviveu às explosões e ao tempo. Todas com criptografias próprias, como em códigos para que apenas os iniciados em assuntos esotéricos fossem capazes de ler. Para alguns o motivo do segredo seria resguardar a fórmula que garantiria a transformação e a fortuna, pois se o valioso metal estivesse disponível a todos perderia o seu nobre valor. Outros têm certeza de que tudo isso é uma grande bobagem. O homem vive através dos séculos conforme seu nível de consciência, trazendo para si as exatas experiências essenciais ao seu aprendizado. Culturas distintas se misturam propositalmente para que uns aprendam com outros e ensinem a alguns. Numa corrente invisível a humanidade cria elos de liberdade e unidade. A vida nos mostra que a evolução é filha da transformação. O mundo se renova e avança com as mudanças operadas sobre o próprio eixo. Uma sociedade ou tribo apenas melhora seu entendimento sobre todas as coisas quando cada um dos seus membros modifica verdadeiramente o seu olhar e age sobre algo. Qualquer mudança imposta além das fronteiras da consciência é frágil e passageira. Em suma, desde sempre entendemos o valor das transformações ou a essência alquímica. Ou deveríamos. Falta decodificar a pedra filosofal e o elixir da longa vida. Alquimistas sempre tiveram fama de sujeitos estranhos e inteligentes. Ou loucos. Penso que continuam assim, ao menos os verdadeiros alquimistas. Por que intitulariam de pedra filosofal o segredo que transforma ferro em ouro? Por que usar o termo filosofia em uma questão puramente financeira ou científica? Desde o início dos tempos o ouro é símbolo maior de riqueza e poder. Traz em si dois conceitos importantes: seu valor é inabalável, independente das crises políticas ou mundanas; é imperecível, não enferruja ou estraga. Em tese, seria um porto seguro para atracar e proteger nossa frota de preocupações e inseguranças. No entanto, filosofia significa, grosso modo, a capacidade de pensar a realidade de forma crítica e independente, de observar e analisar todas as coisas por todos os ângulos e possibilidades. Ora, não estávamos falando de ouro? Exato. Falta-nos conceituar o ouro a que se referiam aqueles esquisitos bruxos de outrora. A referência era em sentido literal ou figurado? A resposta está em se podemos interpretar os textos e as parábolas sagradas em sentido literal.

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Não. O sagrado estará sempre oculto e à disposição no mundano até que cada qual o revele para si. Nossa riqueza mais valiosa é o nosso espírito, imaterial por absoluto. Estamos todos, sem exceção, em uma viagem infinita e maravilhosa da estação das trevas ao porto da luz. Com muitas escalas. O tempo de travessia é próprio e relativo, pois depende da capacidade individual de se transformar. De entender as próprias sombras e transmutar em luz. Sombra em luz, ferro em ouro, esta é a pedra filosofal. O espírito forte e livre enfrenta as tempestades deste mundo tridimensional com serenidade, pois tem a consciência de que a sua verdadeira riqueza ninguém poderá lhe subtrair. Incêndios destroem casas, guerras arruínam patrimônios e impérios poderosos, ladrões lhe batem a carteira, mas quem lhe roubará o amor e a sabedoria enraizadas em sua alma? Nenhum rei ou juiz poderá lhe condenar à perda destes bens. Tampouco o tempo o apodrecerá ou o mercado depreciará o seu valor. Você estará sempre além desses débeis poderes. Eis o ouro. No entanto, teremos a morte sempre à espreita, com sua afiada foice a nos ameaçar e assustar pelos signos de doenças, desastres, assassinatos, sentenças condenatórias ou do próprio relógio da existência. Para que serviria todo o ouro se a morte encerra a vida e com ela todo o ganho trazido pelo amor e pela sabedoria? Daí a necessidade do elixir da longa vida para permitir que o ouro pudesse ser usufruído em paz para todo o sempre. O mais curioso é que esse precioso líquido a permear a sua existência lhe pertence e você bebe em sua fonte desde sempre. Muitos ainda não entenderam ou se esquecem disso a cada problema que surge. Somos eternos, todos. Não através do nosso corpo frágil e transitório, templo provisório do espírito. Este, sim, é eterno. Você é seu espírito infinito e não o personagem físico de hoje a atravessar este trecho da grande travessia, cada qual com sua beleza, na oportunidade de aprender, compartilhar transformar e evoluir. A morte é uma das grandes e bonitas lições transformadoras. Você é e tem tão somente o que você vive: seus sentimentos, a alegria que semeou por onde passou, o abraço sentido, o sorriso sincero. Eis a sua bagagem. Morre-se muitas vezes e cada nascimento significa uma nova oportunidade de alcançar a próxima estação até o porto de destino ou a iluminação, para usar termo típico da milenar filosofia oriental. Entender este processo significa se libertar do sofrimento que questões e preocupações menores, trazidas pela transitoriedade do físico, lhe impedem de usufruir todo o ouro que é seu e atrapalham a transformação de ainda mais ferro no reluzente metal. Sombras em luz, mais e mais, cada vez mais. Assim, conscientes ou não, trazemos a alquimia viva pulsando a cada dia em nossas almas. Há a busca incessante e essencial operarando infinitas transmutações capazes de transformar ferro em ouro para seguir a viagem, pois, a cada porto, é necessário apresentar bagagem alquímica maior e, consequentemente, mais leve. Amor e sabedoria são os vistos indispensáveis para carimbar o passaporte. Simples assim? Perguntam os mais céticos e desconfiados. Por que esses sábios da antiguidade não apresentaram a fórmula de maneira didática e direta ao invés de codificála para poucos? Temos que entender que tudo, absolutamente tudo, está de acordo com o seu tempo. A História está repleta de bruxos amaldiçoados e assassinados por falar de assuntos com abordagens distintas daquelas oficialmente aceitas. As fogueiras da Inquisição e intolerância arderam e queimaram consciências cristalinas na ilusão de que

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o fogo poderia extinguir a verdade. Ainda hoje existe desconfiança e descrença da parte de muitos que se negam a entender, usufruir e se encantar com a alquimia da vida. Da própria vida. O homem sempre temeu o que não consegue entender ou imagina ser uma ameaça capaz de lhe furtar suas pobres posses e conquistas ilusórias. O tempo é inexorável e traz as transformações necessárias para que possamos continuar a viagem. A vida é a estrada, somos andarilhos, a luz é o destino.

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O LIVRE PENSAR NÃO É SÓ PENSAR

As piores prisões são as que não têm grades. A ilusão da liberdade é o mais cruel dos cárceres por não te permitir a consciência dos limites das suas escolhas, de não perceber que suas fronteiras estão cada vez mais estreitas e, ao contrário do que parece, apenas limita o tamanho e empalidece as cores do seu mundo. O livre pensar, a autonomia das ideias, o espaço para aceitar o diferente exige esforço, ousadia e coragem, mercadorias raras nas prateleiras dos corações e das mentes. O mundo sempre olhou esquisito para vozes e atitudes dissonantes que atrapalham a administração, o controle e os negócios daqueles que pensam que os outros não estão ali para dividir, mas para servir. Quem não se adequa fica à margem do mundo, são marginais. Não falo dos que confundem coragem com violência, dos que enveredam pelas raias da criminalidade por ignorância ou covardia. Refiro-me aos homens mais sábios e corajosos da História, aqueles que tiravam o sono de generais sem desferir um único tapa ou mesmo palavra agressiva. Jesus foi o melhor exemplo, porém temos outros mais contemporâneos como Martin Luther King. Mahatma Gandhi colocou o poderoso Império Britânico de joelhos, tendo como armas a sabedoria de pensar diferente, a ousadia de desobedecer, concomitante com o amor de caminhar pelos trilhos da não violência. Arrebatou multidões, pois tocou em seus corações e mentes. Emprestou cores às suas almas. O convívio social cria a falsa sensação de que para ser aceito é necessário pertencer a alguma tribo, pois, além de cômodo, facilita o controle da administração ao te encaixar em modelos já estabelecidos e com limites definidos. E existem várias já preestabelecidas. Você escolhe uma e faz uma espécie de contrato de adesão, tácito e inconsciente, igual a esses que já estão prontos para operadoras de telefonia ou TV a cabo, aceitando os conceitos e preconceitos, ideias formatadas e enlatadas, definindo certo e errado, o permitido e o proibido. Veste-se como eles, passa a usar um vocabulário próprio e frequentar os mesmos lugares. Você até mesmo pensa que é feliz e encontrou o seu lugar. Um processo de uniformização, homogeneização e, pior, pasteurização. Você abre mão do seu melhor para ser aceito sem problemas no grupo e supostamente feliz. Assim, abre mão de você mesmo. Lembrou de Fausto? Pois é, guardadas as devidas proporções, é exatamente isso. Você abdica do livre pensar em troca de aceitação e pseudofelicidade. A administração agradece. Homens livres pensam globalmente, são cidadãos planetários, são solidários, mas sabem que cada qual é único. Não há outro igual a você. E existe beleza em cada um de nós, cada qual do seu modo, do seu jeito, como peças distintas que compões um maravilhoso mosaico. O afã das muitas novidades de cada dia te faz esquecer o novo. O verdadeiro novo é o que de fato é diferente, capaz de provocar transformações estruturais e não apenas mudanças aparentes das novidades. Na verdade a História nos mostra que foram aqueles que acreditaram que tudo pode ser diferente e melhor, deram a cara a tapa - afinal a administração não gosta de ser incomodada - que transformaram o mundo, pois eram o exemplo vivo da mudança. Usaram suas próprias vidas como matéria-prima de uma obra de arte maior. E

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desmoronaram os alicerces do status quo, fazendo com que o mundo avançasse. Essas pessoas fazem a diferença porque ousam pensar diferente. Transformam-se em heróis pelo simples fato de não aceitarem o papel de figurantes, os limites que lhe foram impostos, as amarras que lhe impediam de voar. Por vezes somos como a lagarta que se maravilha com a beleza e voo da borboleta sem saber que também temos asas. Será que não está na hora de passar a limpo todos os seus conceitos e ideias? Transformarse no protagonista da sua vida? Você tem este poder. Uma insurreição no seu modo de pensar, uma análise cuidadosa do que de fato é seu e o que te foi imposto sem que você percebesse. Pondere principalmente sobre o que te faz agir por automatismo e pense se faz realmente sentido, se, do fundo do coração, você de fato concorda com essas ideias ou apenas as acompanha por simples comodidade ou medo de rejeição social. Um bom truque é perceber se o seu jeito de pensar e agir traz dor e sofrimento aos outros. Se trouxer, está na hora de mudar. Semear a alegria por onde passar é uma maneira inteligente de tê-la dentro de nós. Durante esse processo você vai se conhecer melhor e, apesar das flores e dos espinhos que fazem parte de todo caminho, é maravilhoso. Afinal você é a sua melhor companhia. Não estranhe se as pessoas começarem a comentar sobre um brilho diferente nos seus olhos. É pura luz! Seja o herói da sua própria revolução, da transformação da sua alma. A única maneira de mudar o mundo é mudando a si próprio.

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O DESEQUILÍBRIO É FUNDAMENTAL

A vida é uma infinita e fantástica viagem a caminho da luz. Esta vida é apenas um trecho da estrada. Viajar significa evoluir; evoluir exige transformação. Ninguém nasce pronto. Entender que o que trouxemos na mochila até aqui nos foi útil, mas pode não nos servir mais, é sinal de sabedoria. É necessário deixar algumas coisas para trás para dar lugar a outras. Reinventar-se todos os dias. Nada nos atrasa tanto quanto o trem perdido do preconceito, o voo cancelado das ideias obsoletas e o beco sem saída das atitudes ultrapassadas. Orgulho, vaidade e teimosia são pedras pesadas que, não raro, guardamos escondidas no fundo da mala, debaixo da blusa do ciúme e da calça do egoísmo. Precisamos de leveza para andar. É fundamental abrirmos espaço para o novo, trocarmos a bagagem. Analise a sua mochila com carinho. O amor é o melhor manual para te indicar o conteúdo essencial. Queiramos ou não, temos que caminhar. Quando nos negamos, seja por inércia, preguiça ou conforto, a vida nos desequilibra. Ela nos presenteia com novas e, a princípio, indesejáveis situações para nos obrigar a caminhar. Desequilibrado, para não cair, você dá um passo à frente em busca do equilíbrio e depois outro, por ansiar uma nova estabilidade, que, cedo ou tarde, dependendo da sua capacidade de perceber e entender o momento, virá. Então, olhará para trás e verá que já não está no mesmo lugar. Você andou e foi para buscar um novo equilíbrio que isto aconteceu. Houve transformações, você evoluiu. Olhe para trás e analise quem você era há cinco, dez ou vinte anos e quem é hoje. Percebe a evolução? Entende as transformações que operou em si próprio? Não falo das mudanças em relação à situação material ou financeira, mas da clareza do pensamento e da amplitude dos sentimentos. Estes são os instrumentos da plenitude que todos buscamos. A serenidade diante das tempestades é um desses sinais que indicam um bom progresso, afinal nem sempre foi assim, lembra? Se, passado todo esse tempo, você ainda está sentado na beira do caminho, prepare-se. Caminhamos por vontade ou por imposição. Esta escolha define as flores que irão colorir a paisagem. Preste muita atenção às suas escolhas. Fazemos dezenas ou centenas delas todos os dias. Das mais banais às mais complexas. De sorrir e cumprimentar um estranho na rua a mudar de emprego, cidade ou casamento. O somatório dessas escolhas define quem cada um de nós é. Define quantas transformações você se permitiu. O quanto evoluiu. O budismo ensina que devemos caminhar sempre, ficar atento à paisagem sem nos ater a ela. Diferenciar o eterno do que é transitório significa estar pronto para participar da grande sinfonia do universo. Ter uma boa casa e uma vida confortável são coisas maravilhosas, mas são bens passageiros. Ser um bom filho, um pai atencioso, trocar abraços e sorrisos sinceros, criar laços amorosos com quem quer que seja, construir uma ambiência harmônica onde estiver são bens imperecíveis.

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A viagem não tem fim e o que carimba o passaporte na próxima estação é o conteúdo da nossa bagagem. Ela define o guichê que nos dará a passagem para o próximo trecho da travessia. A vida, como um pai amoroso que ralha com o filho porque deseja que ele chegue ao destino, vai lhe desequilibrar se você apenas quer ficar sentado assistindo ao trem passar. Portanto, levante-se e reveja a bagagem. Mochila nas costas e boa viagem!!!

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O PROBLEMA NÃO É O PROBLEMA

O problema não é o problema, mas a incapacidade de prosseguir diante da adversidade. É a perda da possibilidade de transformação, uma decisão puramente interna, que depende apenas de si próprio. Você terá dois interlocutores durante esse processo: o ego, que o fará sentir injustiçado, pois tem a certeza de que não era merecedor dos difíceis acontecimentos e lhe aplicará a mais insalubre prisão, a vitimização. Do outro lado, temos a alma, o espírito eterno que somos, que anseia por evolução e sabe que a covardia não muda a realidade. A dificuldade é grave? Morte, doenças com sequelas irreversíveis, amores que se vão, falências dolorosas... E daí?... Impossível reverter externamente? Pode ser a Vida sinalizando que as mudanças devem ser dentro de nós. Não, não é fácil, e ninguém falou ao contrário. Você fala assim porque não foi contigo, gritarão muitos. Não foi, não desta vez. Todos, sem exceção, enfrentam suas batalhas. Cada um tem os problemas na exata razão da necessidade da sua evolução. O ego do sofredor tem uma dificuldade enorme de entender isto. Afinal somos todos do bem e quase perfeitos, não é assim? Sim e não. Todos caminhamos para a plenitude, porém a estrada é longa e se torna esburacada na medida em que o andarilho teima em pisar torto. A falta de entendimento da maneira correta de andar torna a viagem mais difícil e demorada. Quer mudar o Caminho? Basta mudar o seu jeito de caminhar. Entenda que você pode se arrastar ou voar durante a travessia e esta escolha é toda sua. Patas ou asas? Basta que entenda, evolua e transforme a si próprio. As tradições xamânicas, que buscam a sabedoria na natureza, ensinam que essa é a lição da borboleta. O poder é seu. Simples assim? Sim e não. Durante algum tempo vivenciei a rotina de um hospital especializado no combate ao câncer. Encontrei pessoas sinceramente felizes, como nunca tinham se sentido antes, por terem contraído a doença. Estranho? Não. A proximidade da morte trouxe um novo sentido à vida, lhes deu clareza no olhar e, então, o motivo para viver. Mudaram os valores, o olhar e a importância de todas as coisas. Uma amiga querida viu o grande amor de sua vida partir. Após momentos de muita tristeza e revolta, percebeu que a verdadeira felicidade está somente dentro de cada um e rigorosamente em nenhum outro lugar ou pessoa, pois ninguém tem a força e a obrigação de fazer o outro feliz. Só quando nos bastamos, entendemos e amamos a nossa própria companhia, sem qualquer traço de dependência emocional, estaremos prontos para compartilhar a pureza e, mais importante, a verdadeira liberdade do amor com alguém. Sim, só quando entendemos que, embora seja maravilhoso estar ao lado de quem amamos, isto não pode ser indispensável para a nossa felicidade. Indispensável para ser feliz é o encontro de você com você mesmo. Essa amiga decidiu aceitar o desafio de desenvolver um outro olhar sobre todas as coisas e sobre si própria e, só então, viveu a sua verdadeira e grande história de amor. Consigo e com o outro.

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Uma família conhecida muito rica foi levada à falência em pouco tempo por diversas decisões erradas e conjunturas macroeconômicas. Alguns membros afundaram em depressão, e houve até mesmo caso de suicídio. Outros integrantes descobriram a força de se reinventar e a alegria de descobrir que as melhores histórias são as de superação. Cada um fez a sua escolha. Diante da mesma matéria-prima cada artista escreveu a sua obra. O que para uns foi um drama de final triste, para outros foi a mais incrível aventura de suas vidas. Sim, tudo se resume as escolhas e, preste atenção, fazemos muitas delas no decorrer de um único dia. Por mais absurdo que possa parecer, diante de qualquer dificuldade, procure serenar a mente e o coração. Desespero, medo e raiva são os piores conselheiros. Com calma, coragem e ousadia você em pouco tempo perceberá que tem à disposição todas as ferramentas para enfrentar o problema. Procure manter o espírito forte, aguçando e elevando sempre o seu nível de consciência para enfrentar as dificuldades quando elas surgirem. É bom lembrar que várias situações que já lhe tiraram o sono em passado recente hoje são irrelevantes em sua memória. O verdadeiro guerreiro é forte no mental e no espírito. Pois ele é o seu próprio e maior aliado nos grandes embates, assim como é o seu adversário capital. As principais batalhas são travadas dentro de nós. O importante é entender que as dificuldades fazem parte da vida, as melhores soluções são as que operamos dentro de nós, pois sinalizam evidentes transformações. Viver é evoluir. Problemas ensinam valiosas lições. São mestres disfarçados.

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SER GENTE NUNCA SAI DE MODA

A necessidade de andar na moda, a aflição inconsciente de estar em sintonia com o que se imagina ser moderno, revela uma busca por identificação e aceitação, uma vontade, em geral não percebida, de encontrar um lugar para se viver em paz. A moda nasce da necessidade cultural de as pessoas entenderem quem são e aonde caminham. Roupas, acessórios, carros, ideias enlatadas, maneiras de agir e falar tentam desesperadamente rotular o ser na tentativa de fazê-lo acreditar que pela casca se reconhece o valor da fruta. Em vão. Perde-se a beleza de inventar a si próprio e a força de ser único. A moda traz consigo o perigo de projetar um suposto ideal que com certeza não somos. O limite da forma estabelece fronteiras. Qualquer modelo pronto a ser usado rouba a originalidade do indivíduo, a beleza dos voos solos em altitudes inimagináveis, onde, só então, se defrontará com mundos e possibilidades apenas acessíveis a quem ousa ir além da normalidade e das permissões mundanas. O exercício da criatividade desenvolve as asas da liberdade. Nada contra a indústria de consumo, como roupas, carros ou entretenimento que precisa produzir e vender para gerar riqueza e empregos que movimentam o planeta. Beleza e conforto, quando atingidos e usufruídos de maneira digna, são bem-vindos. Para ser feliz não é preciso ser um asceta no sentido original da palavra. Porém, há que se entender o limite de todas as coisas e o sentido da busca de cada um. A moda costuma servir de referência para o sujeito se situar em determinado grupo social seja atrás de aceitação, seja de destaque. Um jeito ingênuo de ele projetar quem gostaria de ser, um lugar na tribo que admira, na tentativa de se impor e encontrar o seu canto no mundo. Em suma, a moda procura acomodar nos porões da mente as mitológicas indagações de quem somos e para aonde vamos. Mas de que adianta um espelho se não se quer ver? De que serve mapa e bússola se não se sabe para aonde ir? Pode a forma ganhar mais importância do que a essência? Inconscientemente a moda ilude, vendendo o que não pode entregar. Ainda que não esteja, de forma clara, decodificado no entendimento de cada indivíduo, caminhamos, invariavelmente, em busca da plenitude do ser, onde, só então, conseguiremos encontrar toda a paz que precisamos e, em análise honesta, é o que importa. Entretanto, chegar até esse paraíso é a pergunta que não se cala. Por ainda não terem decodificado o processo, muitos ainda procuram desesperadamente na moda signos de identificação, na ilusão de não se sentirem perdidos, como se a felicidade estivesse disponível na vitrine ou na prateleira das lojas ao alcance do cartão de crédito. É bem mais simples e confortável trabalhar a forma do que a essência. Porém, o resultado nunca será o mesmo. Trocar de vestido não cicatriza as feridas do coração; o brilho de uma joia não ilumina os vãos escuros da tristeza; um belo e caro carro pode despertar admiração dos outros e te levar a um confortável passeio, mas as angústias mal resolvidas te acompanharão por toda a parte; o acesso às modernas tecnologias não te dão resposta às questões profundas da alma. Adiar o mergulho no autoconhecimento é ficar sentado na estação vendo passar o trem da plenitude. É necessário coragem de se ver e

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entender quem realmente é, encarar as próprias dores e frustrações, assumir as responsabilidades, lamber as feridas para curá-las. E, então, se transformar. A busca é árdua, mas o encontro é mágico. Extrair e vivenciar o que há de melhor em si, como diamante que precisa lapidar o cascalho até refletir a perfeita luz, define a sua roupa. À medida que vamos nos conhecendo e transmutando sombras em luz, trocamos o paletó da inteligência, o vestido do coração, o guarda-roupa da alma. Saber quem somos é fundamental para entender os outros e o mundo. Se a vida oferece andrajos ou prêt-àporter, lembre-se de que somos os nossos próprios alfaiates. Cabe a cada um escolher os tecidos do amor, costurar com as linhas da compaixão, abotoar com sabedoria, vestir com a paciência da eternidade. Depois basta distribuir os lenços da alegria por onde passar, a qualquer um, sem distinção. Encontrar brilho na trajetória de todas as pessoas revela a luz que há em ti. A beleza de suas novas vestes vai encantar inimagináveis passarelas, e todos desejarão estar por perto, desfilar ao seu lado, independente da cor da calça, do modelo do carro ou da marca do sapato. A elegância não está na grife, porém no estilo. Não é o que se usa, mas um jeito de ser. Ser gente nunca sai de moda.

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O CAOS É DO BEM

Usualmente empregamos a palavra caos para nos referir a uma situação de desordem e confusão no mundo ou em nossas vidas. Em diversas tradições mitológicas o caos significa um vazio sem forma e ilimitado que propiciou o surgimento do universo. Na tradição platônica é um estado de desarmonia que precede uma nova ordem. O I Ching ensina que o caos traz a tempestade que permite à vida florir de novo. Na Física o termo é utilizado para explicar um sistema dinâmico que evolui de acordo com lei determinista, sensível a pequenas alterações iniciais. De certa maneira todas as definições se encaixam. O caos é uma alavanca para a evolução. Pessoal e de toda a humanidade. A Lei da Evolução é inexorável. Avançamos por gosto ou imposição, o que vai estabelecer o grau de dificuldade e o tempo do processo. O entendimento e as escolhas determinam a cada um as dores e as delícias da travessia. A vida avança em ciclos. Ela é um grande ciclo composto de inúmeros outros ciclos menores, que se comportam como escalas de aprendizado na infinita travessia rumo à Luz. Se olharmos para trás e prestarmos um pouco de atenção, não teremos dificuldade em identificar diversos ciclos que já vivemos. A casa dos pais, acadêmicos, profissionais, afetivos, paternidade ou maternidade, lugares diferentes em que moramos, são exemplos fáceis de vislumbrar, sendo que cada um destes ciclos pode se subdividir em diversos outros. Cada ciclo encerra uma lição essencial para o novo trecho da jornada em que você precisa ser melhor e diferente para enfrentar novos desafios. Quando nos recusamos a aprender a lição o ciclo se repete infinitamente, como se o trem desse uma volta em círculo para retornar à mesma estação. Quem já teve a sensação de uma mesma situação se repetir muitas vezes, parecendo um livro já lido? E você se pega perguntando o porquê daquele conflito ser tão recorrente? São sinais de que você está aprisionado àquele ciclo. A vida é antagônica a qualquer espécie de prisão – sim, a vida é um artesão que te molda para a liberdade. Para que a página seja virada de maneira definitiva é necessário percebermos o que precisa ser aprendido e modificado. Então o ciclo será finalizado, e um outro se iniciará. O fim de um ciclo necessariamente é o início de um novo. Ocorre que muitas vezes permanecemos estacionados em um ciclo por conforto ou vício. Consciente ou inconscientemente sabemos o que precisa ser modificado, mas nos falta força, vontade ou dignidade. Então surge a figura maravilhosa do caos como que segurando um poderoso martelo a demolir as velhas formas e os conceitos. O antigo mundo resta destruído para que o novo possa ocupar o seu lugar nos empurrando para a evolução. No primeiro momento o desconhecido traz o medo, instalando a desarmonia às mentes ainda infantis, com a falsa e ingênua sensação de fim do mundo, quando na verdade é apenas a faxineira a arrumar a bagunça, jogar fora o lixo para reordenar a casa de maneira diferente e melhor. Um novo universo começa a se descortinar. Como os dedos do caos são longos, naquele momento não conseguimos entender exatamente o que ele nos traz, fazendo com que a insegurança domine as ações. Não raro as pessoas se desesperam. No entanto, sabemos que graças à destruição provocada pelo caos relacionamentos com bases viciadas são desfeitos para abrir oportunidade a novos laços, construídos dentro de sentimentos e ideias mais nobres; empregos desaparecem para forçar o resgate de dons e talentos adormecidos, que, despertados pelo barulho dos desmoronamentos, terminam

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por afastar a amargura ao apresentar novas e, até então, desconhecidas tintas que passarão a colorir a estrada do viajante; o convite feito pela morte traz o sentido da vida em mentes distraídas; o horror da guerra mostra o valor da paz. Basta que se preste atenção, as lições estão derramadas por toda a parte. Entender e aceitar que tudo, absolutamente tudo, que acontece em nossas vidas é para o nosso bem é um conceito extraído de quase todas as tradições e uma das lições embutidas no caos. Só o distanciamento propiciado pelo tempo e a clareza do olhar, fruto de uma consciência livre e ampliada, nos permite entender e agradecer o que a fogueira do caos incinerou em nossas vidas. O universo nunca vai compactuar com a estagnação.

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SUAS ASAS TÊM O TAMANHO DO SEU CORAÇÃO

Não raro nos vemos na beira do abismo. Conflitos afetivos, problemas profissionais, rusgas familiares se assemelham em figura ao despenhadeiro que nos ameaça em queda e furta a paz. A vontade sincera de mudar o rumo de nossas vidas, iniciando novo trabalho, mais adequado aos nossos verdadeiros dons e talentos, um relacionamento amoroso despido de mentiras e preconceitos, uma nova linha a costurar o esgarçado tecido familiar, cujo desgaste, de tão antigo, se perdeu nos becos da memória são questões atuais que assolam a todos em gritos silenciosos no âmago de consciências e corações. Qual a maneira mais sábia de atravessar um escaldante deserto, com seus inerentes perigos, ausências de água e vida, serpentes e escorpiões que lhe habitam? Qual o jeito mais inteligente de alcançar o cume da montanha enfrentando a aspereza da rocha vertical e do vento forte a assobiar em seus ouvidos sobre o perigo de iminente queda? Através dos tempos, caravaneiros e alpinistas têm nos oferecido lições preciosas de determinação e desapego necessárias para enfrentar tamanhos desafios. “A águia também”, soprou em meu ouvido, como uma doce brisa de verão, um velho e querido xamã do povo navajo. “A águia tem o poder de atravessar as areias quentes e desfilar nos altos desfiladeiros sem qualquer sofrimento”. Canção Estrelada, como passou a ser conhecido depois que despertou seu dom de, através de suas palavras, cantadas ou não, sustentar um lampião aceso na noite escura de seus irmãos, estava se referindo à capacidade de olhar o mundo do alto como que com os olhos de uma águia. “Modificar o ângulo de visão permite observar tudo e todos sobre a outra face. Ou mil outras faces na infinidade que a vida permite. Um muro pode ser um instransponível obstáculo em seu caminho, mas se olhado do alto, com os olhos do pássaro, não passará de um risco de giz no chão. Na verdade quase todos os muros têm a altura de um simples traço na areia da estrada”, confidenciou o sábio sacerdote em uma noite fria enquanto a conversa fluía aquecida pelas chamas da fogueira de outono. “Quantas viagens se interromperam apenas porque não se soube pedir à águia os seus olhos emprestados”, lamentou. De pronto perguntei como me seria possível tal visão. Com o jeito peculiar em que os povos nativos dividem a sua sabedoria ancestral, Canção Estrelada me olhou profundamente nos olhos e depois de um breve silêncio, como se esperasse que o vento lhe soprasse a melhor palavra, disse para que eu mostrasse as minhas asas para a águia, pois altos voos exigem grandes asas. Assim ela entenderia qual altura eu poderia me aventurar. Indaguei de que tamanho seriam as minhas asas, ainda sem entender por completo a lição. “Suas asas têm o tamanho do seu coração”, respondeu com sua fala mansa, quase em sussurro com o olhar perdido no brilho de uma estrela distante. Ofereci um punhado de tabaco e Canção Estrelada me honrou ao dividir o mesmo cachimbo. Sua fumaça levou nossos agradecimentos aos espíritos ancestrais por nos permitirem chegar até aquele ponto. Fumamos em silêncio por horas que não sei contar e com o dia quase a estrear, encerrou a valiosa lição. “A infinita estrada da vida se resume na escalada para entender e a travessia de viver as mil faces do amor. Da sua forma mais primitiva e sombria manifestada através do ciúme

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e da pretensão de ser dono de alguém até a grandeza do amor incondicional de amar o outro como a si próprio. Lição presente em todas as tradições, do oriente ao ocidente. Iniciamos a jornada com asas tão pequenas que nem ao menos podemos arriscar alguns rasantes a nos tirar do chão e permitir um olhar um pouco além da névoa densa da manhã. Isto torna o mundo pequeno e conflituoso, pois as menores pedras são obstáculos enormes. A necessidade visceral de voar - a evolução é inerente a todos - te obriga a criar condições para que suas asas, aos poucos, ganhem tamanho e seus voos, altura. A sabedoria de entender que tudo que você é e tem se resume ao quanto de amor pode dividir, define até aonde pode acompanhar a águia e usar os seus olhos”. “Não foi você quem me ofereceu o tabaco que há pouco fumamos, mas a vida que lhe ofertou as condições e te tornou instrumento deste encontro. Você me presenteou com o seu tempo e a sua atenção. A humildade, o desapego e a alegria são formas de agradecer e respeitar, pois o que a vida deu, a vida toma. Só o que resta para a eternidade e desenha o seu espírito é o amor que você sentiu e dividiu. Isto é verdadeiramente seu e esta é a exata altura do seu voo. Que as suas asas tenham jornadas cada vez mais ousadas através da paz que habita as grandes altitudes do ser”.

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ESCRAVOS CONTEMPORÂNEOS

Um dia você cansa de si mesmo. Da paisagem desbotada do seu quarto escuro, de ser o seu próprio carcereiro. Sim, as prisões mais cruéis tecem suas grades na engenharia de ideias enlatadas, preconceitos ou covardias impostas por medos alheios e ancestrais. Ou por alguém. Chegada a hora de experimentar as asas que sempre foram suas e nunca usadas. Então, você se lança em um voo absurdo nas profundezas coloridas e alturas iluminadas de um universo desconhecido e fantástico que se descortina na medida da sua leveza, coragem e ousadia. É assim que acontece quando se assume o protagonismo da própria vida. O poder, a magia e o encantamento são seus, pegue-os de volta! Por vezes estamos aprisionados por conceitos que nos foram impostos e simplesmente aceitamos por medo ou comodidade, noutras ficamos subjugados por pessoas contra as quais, por algum motivo, não conseguimos nos insurgir diante da dominação permitida. As pessoas só têm sobre você o poder que você concede a elas. Entender este simples conceito é se olhar forte diante do espelho da vida. A decisão de ser emocionalmente independente, de se manifestar de acordo com a sua verdade, é essencial na maravilhosa estrada da liberdade. Abdicar da plena consciência é transferir ao outro o eixo central da vida. Quando abrimos mão de vivenciar o nosso melhor, negamos ao mundo algo ímpar, pois não há dois seres iguais. Você é único e nisto reside toda a sua beleza. Aceitar que algumas pessoas tenham poder sobre outras como sendo um comportamento normal é crer que algumas pessoas nasceram apenas para satisfazer e servir a outras. Conceitos medievais que a História tratou de deixar para trás por absoluto absurdo. No entanto, o desejo de dominação ainda se manifesta por atavismo, ignorância ou má-fé, fazendo com que muitos se curvem à existência tácita em uma espécie de escravidão contemporânea, seja na esfera afetiva, seja na social. O medo está na raiz desse comportamento castrador que leva uma pessoa a se anular diante de outra ou mesmo diante de todos. O medo silencioso de que se eu colocar a minha verdade vou encerrar o meu casamento ou namoro, ser demitido ou discriminado no trabalho, perder o amigo ou ser afastado de determinado grupo encerra com qualquer possibilidade de ser pleno. É como tentar ser feliz sendo apenas metade do que somos. Todos querem ser aceitos, amados e admirados. No entanto, esquecem que no fundo ninguém reverencia o fraco. Na melhor das hipóteses, ele desperta sentimentos de misericórdia e compaixão. Na pior, desprezo e ironia. Ninguém lembra o nome do figurante do filme. A História não fala dos covardes. Ameaças mudas de rejeição, demissão ou dívidas morais sorrateiramente criadas, para as quais jamais se consegue quitação, são alguns truques dos escravocratas modernos. Suas eficientes e surdas chibatas. Conhece alguém assim? Se em tempos idos a força da lei obrigava tal submissão, hoje temos os escravos que não conseguem arrebentar os grilhões emocionais que os prendem aos absurdos desejos alheios. E, claro, são infelizes. Todos, vítimas e feitores, sem exceção. Ditadores, em qualquer escala ou tamanho, são sujeitos atormentados.

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No entanto, liberdade não é concessão, é conquista. Não se pede, se impõe. Só você pode assinar a própria alforria. Se falar e agir dentro da sua verdade vai levar o outro a pedir o divórcio, te demitir, nunca mais andar contigo, gritar, espernear ou fazer cara feia, melhor. Sinal de que essa relação estava baseada na dominação, na mentira, no abuso e na dor. Com certeza o que você está deixando para trás não te fará falta, pois tempos e companhias melhores se apresentarão. Nada de bom pode se sustentar na servidão da vontade. Abra mão do que não te serve mais. Só assim o novo poderá surgir e brilhar. Se conseguir estabelecer um novo conceito de relacionamento baseado no respeito e na dignidade, será perfeito. Se acabar porque você se insurgiu contra o domínio, significa que aquela relação estava estragada e o fim chegou em boa hora. Ninguém pertence a ninguém. Sua vida é pessoal e intransferível. Não a entregue a ninguém, mas não se esqueça de compartilhar as suas alegrias e conquistas com o mundo. Pergunte a si se o outro tem o direito em se arvorar dono da sua vontade e verdade. Não tenha medo de fazer escolhas, elas são ferramentas poderosas para a sua navegação vida afora. É através das suas escolhas que você traça o seu caminho no mundo, desenha a sua história e exerce a sua espiritualidade. Logo, suas escolhas são sagradas. Honre-as como a uma divindade!

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A VIDA EXIGE LEVEZA

“De quanto menos eu preciso, mais livre sou. A liberdade traz consigo a leveza do espírito”, me disse um velho e sábio xamã do Povo Nativo do Caminho Vermelho sentado ao redor de uma fogueira em uma noite às vésperas do Pothlach. Canção Estrelada, como passou a ser conhecido depois que descobriu seu dom de iluminar o caminho das pessoas do seu clã através da palavra, cantada ou não, como uma lanterna de proa que mostra as ondas que estão por vir, explicava com paciência, para mim, a cerimônia do dia seguinte, em que cada um doaria objeto que lhe fosse precioso. O desapego de bens materiais é um bom um exercício para ajudar na renovação de ideias e conceitos que, por vezes, por estarem obsoletos, nos atrapalham na jornada. O simbolismo do ritual consiste em que cada um veja e entenda a necessidade de se renovar emocional, intelectual e espiritualmente. Ao abrir mão de algo de que somos apegados, aprendemos a transformar sentimentos e pensamentos que, por guardarmos inutilmente, se tornam pesados e atrapalham a caminhada. Entendemos que tudo pode ser diferente. A vida exige leveza. Para seguir adiante na infinita e fantástica estrada da vida temos que entender o seu fluxo para nunca o interromper. Ou nos tornaremos amargos ao perceber os demais seguindo viagem enquanto nos aprisionamos no emaranhado de importantes desnecessidades. “Oferecer um objeto que não seja de fato valioso é manchar a própria dignidade, fraudar o ritual e a vida. É como fingir um sentimento. Pode-se enganar a um irmão, mas jamais enganamos o Universo, que em resposta nos nega permissão para prosseguir adiante até que o erro seja desfeito. Viver é aprender, transformar, compartilhar e seguir. Dividir o que se tem de melhor é a única forma de se preparar para as novas riquezas que a vida tem a te ofertar”. “Provocar a si próprio para se desfazer de um objeto que lhe seja caro é preparar a transformação do olhar. Alinhar os desejos primários do ego com as necessidades sutis da alma exigem desapego e coragem; sabedoria e amor. É pura luz”. “Nosso verdadeiro tesouro é apenas aquilo que dividimos. Não se pode dar o que não se tem, e o anseio em acumular demonstra apenas o medo em relação à eterna generosidade e capacidade de amor incondicional do Grande Mistério. Fazemos o nosso melhor e entregamos o amanhã em Suas mãos, assim como não nos preocupamos se o sol vai raiar no dia seguinte”, explicou o sábio ancião enquanto tragava o bom cachimbo com fornilho de pedra. Talvez por perceber meu olhar perdido nas labaredas do fogo que crepitava e aquecia a noite, Canção Estrelada continuou com sua fala mansa a explicar que o Pothlatch também traz a lição de que a única coisa que nós verdadeiramente possuímos é o amor. “É fundamental para encerrar a lição da cerimônia que o objeto seja oferecido com generosidade. Você dá amor ou não estará oferecendo nada que de fato seja seu. Todos os bens materiais apenas estão emprestados pelo Grande Espírito para serem usados como ferramentas de evolução de todos os povos. Já estavam aqui e ficarão aqui, ao cuidado de

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outros irmãos, quando partirmos com o vento para cavalgar com nossos ancestrais. Apenas o amor que você compartilha poderá ser levado em sua sacola sagrada. Todo o resto é secundário”. Sacola sagrada? Nunca tinha ouvido a expressão. “A sacola sagrada que carrega no peito e rufa como um tambor”, explicou Canção Estrelada e, após uma pequena pausa, concluiu. “É o seu coração”. “Não que a ajuda material seja irrelevante, ao contrário, ela é importante”, continuou o ancião, “pois quem tem frio anseia por um cobertor. Mas qualquer irmão da Terra que esteja acossado pelo vento gelado do abandono carece, ainda mais, ser agasalhado pelo divino manto do abraço amoroso de outro irmão. A compaixão espiritual é infinitamente mais profunda e valiosa do que a material”. “Só assim conseguiremos Caminhar em Beleza”, encerrou o velho sábio enquanto observávamos a noite lentamente virar dia.

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SER É MUITO ALÉM DE ESTAR

Todo texto ou palavra é sagrada se tem a força de iluminar o caminho. Dos muitos livros que nos servem de lanterna em auxílio nessa infinita e fantástica viagem, a Bíblia se mantém como fonte inesgotável de sabedoria e amor, elementos indispensáveis para a nossa transmutação pessoal. Assim, aos poucos, transformamos o mundo. Narram os evangelistas, em várias passagens dos quatro livros, que Jesus, ao entrar em qualquer casa ou repartição, saudava a todos com seu jeito sereno, “que a paz seja convosco”! Por algum tempo acreditei se tratar de erro de tradução, vez que a Escritura foi escrita em aramaico para posteriormente ser traduzida para o grego e somente depois levada aos demais idiomas. Todos sabemos da dificuldade de trasladar uma língua em outra. Achava que o verbo correto seria esteja no lugar de seja. “Que a paz esteja convosco” me parecia a construção correta e, pelo visto, para muitos outros, pois já vi textos e sacerdotes assim se referindo à palavra do mestre. Eu estava errado. Acredito que não há letra equivocada, em falta ou excesso naquelas páginas, em face da iluminada inspiração de seus escritores, depois reunidos em um único livro, em sucesso editorial atemporal e sem precedentes para o bem de toda a humanidade. Jesus era o ourives da palavra e confeccionava seus discursos e parábolas com riqueza que permite até os dias de hoje novas e belas interpretações de acordo com o andar de toda a gente. Não tenho dúvida de que “a paz seja convosco” é a correta e mais sábia tradução. Todos almejamos o paraíso, lugar onde não se conheça o sofrimento e a felicidade seja bastante. Quando perguntado onde se localizava esse santuário, ele ensinou que não iríamos encontrar em nenhuma província ou país, até porque sempre levaremos nossa dor por onde andarmos, ao menos enquanto permitirmos que ela exista. Explicou que o amor e a sabedoria são mapa e bússola indicando a mais bela de todas as catedrais que pulsa viva dentro de você. A vida é tratamento e cura. É o encontro do divino que habita em ti. O Reino dos Céus está situado no centro do seu coração. Seus tijolos são feitos com a paz indispensável que buscamos para atravessar a longa estrada da vida. A serenidade e a alegria necessárias para colorir a beleza que há em tudo e em todos. Inclusive em nós. A paz é pessoal e compartilhada sem qualquer esforço por quem já a alcançou, construída internamente no âmago da alma pela engenharia do entendimento e da tolerância. Estar é diferente de ser. Muito diferente. O estar é uma estação, ser é a própria viagem. Estar é transitório, momento passageiro e condicional por permissão de uma ou outra situação ocasional, que por ter estas bases, é frágil. O ser é permanente, erguido através de experiências e percepções que ao se mostrarem iluminadas tornam-se inabaláveis, sendo incorporadas ao seu jeito de olhar e agir. Sabedoria entremeada com amor que se sedimenta por si e através de si, como catedral de pedra sob pedra, indestrutível às piores

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tempestades em razão da solidez de seus alicerces. Riqueza imaterial que nenhum rei ou juiz será capaz de confiscar, tampouco um ladrão de lhe roubar. É parte infinita de sua alma, verdadeiro e eterno tesouro. Estará contigo por onde andar. Ser é muito além de estar. “Que paz seja convosco” é uma bonita benção e um ensinamento de valor inestimável do mestre.

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JARDINEIROS DA ALMA

“Somos herdeiros de nós mesmos”, disse o Velho, como carinhosamente chamávamos o mais antigo monge da Ordem. Subíamos uma pequena montanha próxima ao mosteiro por uma estreita trilha em uma manhã ainda fria da primavera. Éramos recepcionados por pequenas e coloridas flores silvestres que já mostravam todo o esplendor da estação e, subliminarmente, nos ensinavam a lição das fases da vida: após o rigor do inverno, que é indispensável para fortalecer a determinação do espírito, chegará a doçura da primavera para acalentar o coração. Todos os ciclos pessoais – o Caminho é um grande ciclo formado por inúmeros ciclos menores – têm a sua razão de ser e encerram valiosos ensinamentos ocultos e indispensáveis à evolução. Situações conflitantes e recorrentes a ponto de nos perguntarmos a razão da aparente repetição, revelam nada mais do que a recusa em mudar a nossa maneira de olhar e agir, de entender e fazer diferente, enfim, de evoluir. Aprendida a lição, encerra-se aquele ciclo e, inexoravelmente, um novo se apresentará com outros momentos, livre dos velhos problemas. “Quem reclama do Caminho é porque não quer mudar o seu jeito de caminhar”, comentou com seu modo peculiar de falar. O sol nos lambia carinhosamente, como se soubesse que os mantos de lã não davam conta de nos aquecer por completo. À medida que subíamos a flora, ela se tornava mais rica e atraía para si uma enorme variedade de passarinhos e borboletas. Por perceber todo o meu encanto, o velho monge me olhou com seus olhos sempre serenos. “O cheiro das flores é como as energias que emanamos, cujas fontes são nossos sentimentos e pensamentos. Os bons perfumes atraem pássaros e borboletas, da mesma forma que o odor azedo do esgoto chama para si as baratas, os ratos e os mosquitos”. Deu uma pequena pausa e finalizou. “Assim, o que atraímos para nós é de nossa inteira responsabilidade”. Comentei sobre a sua estranha insistência em procurar lições escondidas por toda parte. “O sagrado reside disfarçado no profano e, assim, está em todo lugar. Deste jeito, a vida nos orienta por sinais e nos oferece a sua sabedoria através das suas coisas mais simples, accessíveis a qualquer um, basta buscar”. Olhou-me nos olhos e percebi uma bonita luz que emanava no fundo de uma fonte que quanto mais se dava, mais forte ficava, apesar de emoldurada em um rosto enrugado e desgastado pelo tempo. “Todo amor que você precisa para viver pode estar contido em um único abraço”, comentou. Argumentei que ele tinha me falado, em outra ocasião, de que todo amor necessário habita em mim na medida do exercício deste próprio amor. “Sim, é verdade. Esse é o ponto mais alto do entendimento; no entanto, há pessoas que cruzam a nossa vida e estão, naquele momento, sedentas por atravessar a aridez no deserto do amor e precisam de um singelo gesto para voltarem a acreditar na magia infinita do Universo e, então, tornar a germinar. Um zeloso jardineiro entende ser responsável por todas as flores do jardim”. O Velho sentou na relva ainda úmida do orvalho e permitiu que as costas descansassem no amparo de uma grande pedra. Seu corpo já dava sinais do peso da idade, no entanto, o espírito, cada vez mais, se mostrava alegre e jovial. “Delicie-se com todas as nuances da natureza, depois leve a beleza para dentro de si”, disse para minutos depois fechar os olhos em silêncio. Fiz o mesmo e ficamos assim por um tempo que não sei contar. Quando abri os olhos vi o mestre um pouco distante, observando uma abelha que polinizava um lírio enquanto furtava o doce que em breve devolveria em mel. “Esta simbiose é a síntese

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da existência. Aprender, transformar, compartilhar e seguir”, recitou em voz baixa como se falasse apenas consigo, em sua incansável busca de ver a beleza que existe em tudo e em todos. Esta era a sua luz. Ao perceber a minha aproximação, apontou para uma pequena orquídea selvagem que brotava no tronco de uma enorme árvore e pediu que eu afastasse uma erva daninha que logo a sufocaria. “Tenho muito respeito e admiração pelos jardineiros, são a perfeita metáfora da vida”, comentou. Ao ver em meus olhos um enorme ponto de interrogação em busca do sentido daquele verso, explicou com sua quase infinita paciência: “Um jardineiro cuida de uma planta com extremo cuidado, como devemos cuidar de nossa alma. Poda as folhas e os galhos que atrapalham o crescimento, assim como devemos abdicar de coisas e conceitos que, por obsoletos, não nos servem mais e apenas atrapalham a nossa evolução; sacia diariamente a flor com o frescor da água para que ela não seque à míngua, da mesma maneira que precisamos regar nossos gestos com amor em abundância, por ser esta a fonte e o mel da vida, sob pena de secarmos na inanição da amargura; afasta as pragas agressivas como devemos nos proteger das ervas daninhas nascidas em nossos próprios pensamentos e sentimentos nocivos; procura expor-lhe ao sol por ser essencial a luz no desenvolvimento de todas as formas de vida, assim como é indispensável iluminar as nossas próprias sombras para dissipar a névoa que impede o perfeito olhar; semeia incansavelmente o pequeno e ínfimo grão na certeza de que a magia da vida o transformará, no devido tempo, em uma vigorosa árvore, na qual muitos poderão descansar à sombra e se deliciar com seus frutos. Mesmo diante de um cenário acinzentado, a sabedoria do jardineiro aponta que as cores vibrantes de uma única flor têm o poder de, pouco a pouco, irradiar a beleza por todo o jardim. Pequenos gestos fazem grande diferença. Perceber que nossa fortuna é tão somente as flores que plantamos no caminho para encantar a vida de quem vem atrás é entender a milenar e sábia parábola de que conhecemos a árvore através de seus frutos. Somos o jardineiro de nossa própria alma, e a maneira como cuidamos dela alimentará, ou não, todo o universo em suas ceias espirituais”.

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SÓ HÁ CORAGEM ONDE ANTES EXISTIA O MEDO

As histórias de ficção encantam a humanidade desde o início dos tempos porque revelam segredos escondidos no inconsciente. Embora interfiram em nosso jeito de ser, não raro, demoram a ser decodificados. Justamente lá, no inconsciente, por ser território selvagem, as sombras atuam e terminam por alterar nossas vidas. Através das aventuras imaginárias narradas nos livros ou nas telas, o herói enfrenta vilões perigosos, encontra dificuldades inesperadas, precisa superar limites, aprende com perdas e frustrações para no final encontrar o maior tesouro: ele próprio. A ficção, no fundo, conta a história de cada um de nós disfarçada com outra roupa, cenário e maquiagem. A necessidade que temos do herói nasce ao identificarmos a coragem indispensável para enfrentar nossos dragões e permitir que o melhor em nós floresça. O guardião dessa ponte que todos precisam atravessar é o medo. O medo é o pai de todas as sombras. O ciúme nasce do medo de que a pessoa amada nos abandone; a inveja vem do medo de que a vida do outro seja mais bonita que a nossa; a raiva nada mais é do que medo de olhar no espelho e enfrentar quem realmente somos; a mágoa surge no momento em que nosso medo tenta nos defender das nossas próprias limitações; a vitimização nasce do medo de negar os desafios inerentes à evolução; a fuga da realidade é o medo de enfrentar a verdade. A lista é enorme, porém temos sempre o medo à espreita na tentativa de nos impedir de caminhar através da fantástica e infinita Estrada da Luz. “As maiores batalhas são travadas dentro de nós”, costumava repetir o velho monge do mosteiro da montanha. Ignorar o cárcere o torna ainda mais cruel. Os heróis apenas são assim denominados porque ousaram enfrentar as suas próprias sombras, justo aquelas que mais tememos ou fingimos não existir. “Só há coragem onde antes existia o medo”, alertava. O medo surge do instinto animal de sobrevivência e pode nos ser útil para alertar de perigo próximo. Somente, pois além disto o medo se torna sombra, domina e aprisiona nos porões dos sentimentos densos e pensamentos obscuros. Na prisão sem grades do medo, costumamos negar a cela por não enxergarmos o que nos limita, paralisa ou tira do caminho. Mais do que sexo, poder ou dinheiro é o medo que acaba por mover parte do mundo. Só que para o lado errado. Tudo que a vida quer da gente é coragem. Coragem para mergulhar dentro de si, se conhecer por inteiro e se transformar. Deixar para trás ideias e atitudes ultrapassadas, inventar um novo jeito de ser. Coragem para aceitar e abraçar o caminho, após vislumbrálo. Depois, coragem para percorrê-lo. Nisto consiste a valentia de enfrentar o medo escondido nos labirintos escuros da alma com as lamparinas do amor e da sabedoria. Sim, nossas sombras são os grandes adversários a serem enfrentados, entendidos e transformados.

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A cada sombra iluminada é como se o herói – não se esqueça, cada qual é o herói da própria história – adquirisse uma nova espada ou magia e ficasse mais forte para continuar rumo à missão de salvar a linda e amada princesa. Ou seja, lapidar a pedra da existência até que se revele o diamante da alma. Pura luz. É para isto que as histórias servem, é isto que as histórias querem nos revelar. Repare que em alguns terrenos da vida já caminhamos com tranquilidade e despidos de qualquer medo. Situações que antes apavoravam hoje estão superadas por completo, nos permitindo transitar sem maiores sustos ou tensão. Já não representam mais obstáculos. Significa que já tivemos coragem de enfrentar alguns de nossos medos. São dificuldades e traumas ancestrais, sociais ou culturais que impedem de dizer “sim” quando entendemos ser o correto, de falar “não” quando nos faz mal, de escolher livremente quem queremos ser e por onde seguir (mesmo que muitos, ainda assombrados por medos e preconceitos, gritem que estamos errados ou para recuarmos). Enfim, de viver o melhor da nossa essência. Desde o medo do quarto escuro da infância até a enfrentar um superior no ambiente de trabalho do qual discordamos do seu modo de agir, mas calamos por recear perder o emprego ou, temendo conflitos, por estabelecer limites necessários na convivência familiar para encontrar a verdadeira paz no lar. Assim, aos poucos, conseguiremos afinar a percepção, desalgemar as escolhas e revelar a beleza que existe dentro de cada um de nós na exata medida que enfrentamos os medos e nos transformamos. “Cada momento deste significa uma batalha vencida. Neste instante sorria consigo em silêncio como forma de prece, você adquiriu um novo dom. Os medos são ritos de passagem, ou portais, que ultrapassados aprimoram e fortalecem o andarilho na grande travessia da vida. A coragem do herói reside na alma de todos. Use-a”, ensinava o velho monge.

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O EGO DESEJA BRILHO, A ALMA ANSEIA POR LUZ

Somente a clareza de entender realmente quem se é poderá te transformar na pessoa que buscas em ti. O ego, a parcela da consciência mais ligada às sensações primárias e imediatas, repleto de condicionamentos sociais e ancestrais, pensa te proteger ao criar um personagem moldado em modelo de suposta aceitação e admiração que ilude sobre o sentido da existência. O ego impulsiona o indivíduo a ser o mais belo, rico e importante, alimentando o vício do aplauso fácil na esteira do brilho efêmero no show das ilusões terrestres de prazeres baratos, resultados vazios e soluções improdutivas. As consequências, imediatas ou não, mas que um dia virão, são o sofrimento e as dificuldades nas relações pessoais. Além do desgosto consigo próprio. O ego, repleto de boas intenções, inventa virtudes que ainda não exercemos, direitos que não possuímos e, comumente, nos vitimiza em relação aos movimentos do mundo, criando falsos motivos de revolta. Ou, ainda, nos força a fugir da realidade quando desagradável. Em qualquer dos casos leva à estagnação ao impedir de enfrentar a situação com a maturidade necessária para entender, se transformar, compartilhar e seguir adiante. Diante da insegurança comum, fruto da ignorância, o mecanismo mais frequente que o ego dispara são as sombras, nossos sentimentos mais densos, frutos do, como diz o nome, egoísmo. Ciúme, inveja, ganância e mágoa são os mais conhecidos e presentes nas entranhas de todos, sem exceção. São inerentes à natureza humana. No entanto, o que fazemos com eles define quem somos. As sombras impedem o melhor olhar ao projetar a nossa vida dentro da vida alheia, como se o outro fosse determinante e responsável pela nossa felicidade. Transferir a terceiros a causa de inevitáveis frustrações não ajuda em absolutamente nada. Entender que não encontrará paz em nenhum lugar, salvo dentro de ti ou aceitar que cada decisão modela o próprio destino significa maturidade, passos fundamentais para a plenitude. Buda ensina que se alguém quer saber como será o seu amanhã basta prestar atenção ao que faz hoje. O cristianismo nos indica a travessia pela estreita porta da virtude. O xamanismo lembra que somos herdeiros de nós mesmos. Negar nossas sombras não é a melhor solução, ao contrário, somente permite que ela continue a se movimentar sem qualquer controle até o momento em que nos domine por completo. E toda vez que a sombra assume o comando revelamos o pior de nós. Como um amigo que é mau conselheiro, ao tentar te proteger a sombra apenas atrapalha a tua evolução. A sabedoria consiste em fazer com que ela comece a trabalhar a nosso favor até se transmutar por completo em luz. Por exemplo, existe quem, por sentir ciúme mate ou maltrate a pessoa amada sem qualquer respeito pelo sagrado direito de escolha do outro. Os jornais cansam de nos contar casos assim. No entanto, há aquele que ao sentir ciúme busque seu violão para compor uma bela canção. Com a mesma matéria-prima uns enveredam pelas raias da criminalidade e da loucura, enquanto outros fazem da sombra uma aliada para produzir a mais fina obra de arte. Um jeito iluminado de transformar o denso em sutil, um belo exercício de espiritualidade e evolução.

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A inveja pode se transmutar em força de trabalho e criatividade; a mágoa transformada em entendimento de que o outro, assim como você, também está na estrada e, por vezes, ainda não consegue ver a paisagem que já lhe é clara no iluminado e perfumado jardim da compaixão. Importante entender o automatismo de algumas de nossas reações, principalmente daquelas que nos deixam um gosto amargo, e modificá-lo. Perceber que tudo pode ser diferente e melhor torna as possiblidades infinitas e expande o universo. As sombras lançam um véu que nos impede de ver a realidade com a devida clareza. Descortinar a névoa nos leva ao discernimento de que não competimos contra ninguém e na verdade somos os únicos responsáveis pela nossa felicidade. Entender quais sentimentos realmente movem as nossas atitudes é passo importante na estrada da evolução. Vingança não é justiça; ciúme não é amor. As maiores batalhas são travadas onde moram as sombras, ou seja, dentro de nós. Assim, pouco a pouco, vamos transmutando sombras em luz, identificando cada vez mais cedo quando a emoção se apresenta para direcioná-la na Estrada do Sol. Dominá-la com inteligência é imprescindível. E sem a vergonha ou o medo de admitir a sua existência, vamos aos poucos refinando nossas escolhas, estas ferramentas poderosas a instrumentalizar infinitas transformações do ser em busca da integralidade, na qual reside a paz. Pouco a pouco a luz leve da sabedoria e do amor dissipa a escuridão das emoções pesadas, cada vez mais próximo à sua raiz, amansando sua selvageria. Trata-se de harmonizar os desejos do ego às necessidades da alma. Enquanto o ego deseja brilho, a alma anseia por luz. Somente a percepção apurada de quais sentimentos te movimentam e as consequentes escolhas que faz permite adquirir o bilhete para a próxima estação. Na essência, a vida é uma infinita e fantástica viagem rumo à Luz.

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A MAGIA DE ENCONTRAR CONSIGO.

Canção Estrelada estava sentado à porta de sua tenda. Baforava seu indefectível cachimbo com fornilho de pedra. Era aquela hora em que o dia vira noite. O sol já tinha ido e a lua ainda não havia chegado. Eu me sentia cansado, tinha acabado de chegar da cidade e estava bastante aborrecido com uma série de problemas pessoais. Há dias andava malhumorado. “Tem horas que dá vontade de desparecer”, lamentei a sorte quando passei pelo xamã. “Fugir do mundo não te fará escapar da vida”, ele respondeu com um sorriso irônico. Calei-me e tentei seguir. Eu apenas queria me banhar e dormir, mas ele me mandou sentar. “Hoje vou te ensinar sobre o Porta do Sul”, falou e em seguida me passou o cachimbo para que eu fumasse junto com ele, sinal de confiança e respeito. Pegou seu tambor de duas faces para ritmar uma sentida canção nativa. Fechei os olhos e me deixei envolver naquela ambiência de paz. “Na Tradição do Caminho Vermelho, a Roda da Vida – ou Roda de Cura, uma vez que a vida nada mais é do que um infinito processo de cura do espírito na exata medida da sua evolução – possui quatro portais, representados pelas direções magnéticas do planeta. Em geral gosto de começar pelo Leste, onde moram os antepassados que aprenderam a cavalgar com o vento. Porém, contigo vou começar pelo Sul”, explicou. Antes que desse tempo de eu perguntar o motivo, ele disse: “Existe uma necessidade urgente de você se despir do personagem que criou na vã ilusão de se proteger de tudo e de todos. Onde tenta enganar que é forte, habita a sua fraqueza. Isto fez com que tenha abandonado a sua verdadeira força. Tudo que não faz parte de nós atrapalha por inadequação”. Aleguei, quase magoado, que eu era um sujeito autêntico e generoso. Canção Estrelada me ofereceu um sorriso misericordioso e boas palavras: “Se você não encontrar a essência que habita em ti, nunca exercerá todos os dons e talentos que a vida lhe concedeu. Se podemos ser inteiros, por que se contentar com a metade?”. Abaixei a cabeça e ele continuou: “Ser uma pessoa boa é muitíssimo importante, mas não basta. É necessário dar um passo adiante para fazer florescer o melhor de nós. Para tanto você precisa encontrar com alguém muito importante”. Meus olhos curiosos indagaram de imediato com quem seria tal encontro. “Consigo mesmo”, respondeu com seu jeito sereno de falar. Sem nenhuma pressa, pegou o cachimbo, soltou fumaça ao vento, fechou os olhos para prosseguir. “Destrua a ilusão da imagem que você criou para se proteger do mundo e ser admirado por todos. Em geral, o que mais enfeita, mais esconde. Na maioria das vezes o essencial não está no que as pessoas mostram, mas no que ocultam. Uma pena”. Ele deve ter percebido meu olhar de espanto e, com sua enorme paciência, se fez mais claro. “É necessário soltar as amarras dos modelos preestabelecidos de comportamento. Todo ser é único e nisto reside a sua beleza”. Disse-lhe entender as suas palavras, mas que se fosse o caso de eu ter que me libertar de posturas e conceitos, de que de tão antigos, estariam entranhados à alma e, não raro, me fariam pensar e agir por puro automatismo e sem perceber. Com certeza, não seria nada fácil. O xamã me respondeu com sua voz rouca: “Ninguém falou que é fácil, apenas que é necessário. Para isso você precisa percorrer a Jornada dos Pequenos, através das trilhas da alegria, humildade, confiança, criatividade e pureza”.

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Nos dias que se seguiram participei de vários rituais com diferentes pessoas da tribo que me ofereceram as experiências e o verdadeiro entendimento dessas quatro virtudes típicas das crianças. Ao final de cada etapa me encaminhavam para conversar com Canção Estrelada. A alegria me falou da leveza que um menino tem para rir de si mesmo; da descontração para não me levar tão a sério e deixar de me preocupar à toa com situações que, de fato, não têm nenhuma importância. A capacidade de caçoar dos próprios defeitos e dificuldades é um bom exercício para, além de desmistificá-los, ver como são ridículos o orgulho e a vaidade que, no fundo, todos usam como escudos de papel na falsa sensação de proteção. “Isto faz cair todas as máscaras que você criou há anos e, de tão velhas, passou até mesmo a aceitá-las como verdadeiras. Encontre consigo mesmo e encante-se. Só assim encontrará o melhor do mundo”. A humildade me lembrou a simplicidade de um menino que sabe não ser ainda capaz de fazer as mesmas coisas que um adulto, mas poderá chegar a qualquer lugar se estiver disposto a aprender sempre. A humildade é a virtude do eterno aprendiz que precisa habitar em ti. Aprender, Transformar, Compartilhar e Seguir. Sempre e sempre. A humildade está nos genes das suas melhores escolhas e cada qual escreve a sua história através delas. “Preste atenção às suas escolhas, elas podem ferir ou curar. A cada decisão você revela o que traz em sua sacola sagrada, o coração. Quando o brilho acenar, agradeça, mas recuse o convite. Escolha sempre por amor. Entenda, com humildade, que somente o amor te aperfeiçoa e fortalece, torna sagrada a escolha, abrindo o portal da sabedoria e para novos dons”. Uma criança confia na proteção que seus pais oferecem, na medida que acreditamos na Inteligência Cósmica vai oferecer a cada pessoa as condições indispensáveis para aquele momento da vida. “É impossível ser feliz sem confiar. Embora não abdique de educar o filho e lhe corrigir os passos, com maior ou menor rigor, dependendo da teimosia, um pai ou uma mãe amam incondicionalmente o seu filho e nunca entregarão uma pedra quando ele precisar de pão. Da mesma maneira o Grande Mistério, com sua sabedoria e amor infinitos, entrega a cada um o perfeito instrumento capaz de fazê-lo participar da bela sinfonia do Universo e, desta maneira, alavancar a sua evolução. Aceite que as dificuldades são mestres disfarçados a te oferecer valiosas lições. Isto é entender o Caminho, não desistir dele se chama fé”. Sabe a criança que destrói um brinquedo para com os pedaços construir outro diferente, com o qual vai se permitir novas possibilidades de diversão? Ela está apenas deixando que a sua criatividade venha à tona e abra o leque da sua alegria. Quebrar velhos padrões e reinventar a vida é uma atitude saudável que devemos exercitar todos os dias. Só assim abriremos espaço para que o novo se instale e nos encante com suas infinitas e fantásticas aventuras. “A criatividade nada mais é do que a magia ligada à criação e transformação de nossas vidas e, por consequência, do mundo. Todos somos filhos do Criador. Logo, você tem este poder na raiz da alma. Use e encante-se!”. Como naquela famosa história infantil, é justamente um menino que revela que o rei está nu. Somente com a pureza de um menino, sem malícia e sem maldade, conseguiremos alcançar o âmago do ser e ver através dos véus do mundo. “O dia mais importante da vida é quando você se encontra consigo mesmo. Apenas quando tivermos a mente e o coração puros poderemos encarar os contornos do nosso ser sem a fumaça da ilusão mundana.

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Assim, iremos nos deparar com a distância que separa as partes do todo. Então, terá chegado a hora de exercitar os dons que nos tornam absolutamente capaz de alinhar o ego à alma na plenitude do ser integral. O encontro com a sua essência é o que denominamos Cura através da Verdade”. No último dia houve um belo cerimonial mágico de encerramento com a participação de toda a tribo. Já tarde da noite encontrei Canção Estrelada sentado em frente à fogueira, com as labaredas estampadas nos olhos. Em seu tambor de duas faces ritmava uma bonita e lenta melodia em seu dialeto nativo, cantada como se buscasse a poesia no fundo do coração. “Canto em homenagem aos que já partiram para o lado de lá e aviso a eles que um dia nos encontraremos. Será uma bela festa”, disse ao me perceber sentando ao seu lado. Agradeci com sinceridade a todas as oportunidades e ensinamentos que ele e seu povo amorosamente me concediam. Brinquei dizendo que a Jornada dos Pequenos tinha me feito grande. O xamã riu com vontade e caçoou da minha falta de humildade, mas adorou a piada. “Bom sinal, acho que você começou a aprender; gosto dessa irreverência. Espíritos iluminados têm compromisso com o bom humor”, disse. “Talvez daqui a alguns séculos você chegue lá”, devolveu a troça. Rimos juntos. Comentei que sentia uma estranha leveza. “Você movimentou um aro da Roda da Vida, Yoskhaz. Ao encontrar consigo houve o entendimento de como funciona a Cura pela Verdade. Agora, o mais importante, é não esquecer de exercê-la eternamente em si”. Não falamos palavra por um tempo que não sei contar e o dia amanheceu.

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AMOR NÃO É TROCA

Não raro escuto as pessoas falando que “damos amor e queremos receber amor. Amor é troca”, como sentença definitiva. Não, amor não é troca. A troca é a base do comércio que, sim, ajuda a movimentar o planeta e a dirimir as diferenças entre os povos, porém, amor não é mercadoria para ser negociado. O amor tem que ser incondicional, sem exigir absolutamente nada de volta ou não é amor. Amor não é moeda de convivência, mas o verdadeiro sentido dos relacionamentos. Na verdade, quando reclamamos que o outro não nos devolveu o amor que lhe oferecemos, estamos transferindo para terceiros a responsabilidade pelo nosso vazio existencial. Um ser integral a caminho da harmonia interior sabe que toda a paz e felicidade de que necessita para se sentir pleno é construída dentro de si por si. A partir de então passa a compartilhar com todos o belo sentimento que lhe encanta o coração. Como um casaco tricotado com a agulha da sabedoria e pelas linhas do amor, que, pronto, se tem o desprendimento de entregar a quem está com frio, sem esperar absolutamente nada de volta, salvo a própria alegria de ter levado um pouco de conforto a alguém. É imprescindível entender que somente você é responsável por sua felicidade. Transferir ao outro a responsabilidade de lhe fazer feliz é inadequado, tolo e, cedo ou tarde, surgirão os conflitos naturais oriundos de quem carrega um fardo que não pode suportar. Não se pode exigir do outro o preenchimento do vácuo de sua alma, pois tal desafio é pessoal e inerente à evolução de cada um. Ninguém tem a obrigação de fazer ninguém feliz. O que é diferente de sempre oferecer o seu melhor para o sorriso e o conforto de alguém. Ser amado é maravilhoso e uma das dádivas divinas da vida, mas é necessário aceitar que o amor do outro não é nem será a base da sua felicidade. Esta tem que ser construída aos poucos dentro de você. Cada um de nós, sem exceção, possui as ferramentas necessárias para fortalecer a alma e alcançar a plenitude em completa liberdade, ao largo de qualquer dependência emocional. Dependências, afetivas ou sentimentais, nada mais são do que prisões sem grades – embora algumas estejam bem disfarçadas em gaiolas doces e douradas – onde não podemos nos permitir apodrecer. O amor é a força mais poderosa de todo o universo, raiz de todas as transformações, magias ou milagres. São as asas do ser e a razão da evolução. O poder do amor reside na fantástica realidade de que quanto mais se dá mais se tem, a transbordando infinitamente essa fonte mágica de alegria. É a única maneira de se conseguir um bilhete para a próxima estação na maravilhosa viagem da vida. Não há outra. A única bagagem que lhe será permitido levar é a essência de seus sentimentos mais nobres e as histórias que escreveu com eles. Somente isto cabe em sua “sacola sagrada”, o seu coração. Esta é a sua verdadeira herança. Não se pode cobrar nada em troca do amor, porque para existir de verdade o amor tem como premissa o desprendimento, a generosidade, a alegria, a liberdade, o perdão e a harmonia no convívio social. Ao dar amor, nos enriquecemos na perfeita proporção da doação. Estranho, não? Apenas enquanto ainda não estivermos despertos de uma série de condicionamentos culturais, sociais e ancestrais que limitam a expansão da consciência. O exercício do amor incondicional nos liberta e aperfeiçoa. Sim, insisto: o amor é incondicional ou não é amor. O amor tem ricos vieses. Aqui a abordagem será resumida, para mais adiante, em outros trabalhos, ser mais amplamente desenvolvida.

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O perdão talvez seja o mais importante deles. A mágoa é uma terrível masmorra a nos aprisionar àquele que supostamente nos fez mal. As algemas são travadas pela energia do sentir e do pensar. Para nos libertar e seguir adiante no Caminho a única maneira é perdoar. Não há outra. Na exata medida em que o ressentimento encarcera, o perdão liberta. Ao perdoar, liberamos o outro de nossos desejos mais sombrios e, nesse compasso, nos libertamos. Assim, o perdão se mostra, além de um ato de profundo amor, ser também de extrema sabedoria. Entender o perdão é fazer uso de um poderoso instrumento de evolução. O perdão nos concede o sagrado manto da perfeita humildade, por reconhecer as próprias falhas ou as que um dia já nos pertenceram. É o perfeito entendimento de que ninguém nasce pronto. Sim, o mal tem que ser estancado, e o erro, corrigido. No entanto, ninguém tem o poder de impedir ao ofensor novas possibilidades de acerto no futuro. Assim como você e eu. Vivenciar toda a extensão da energia do amor significa entender a inutilidade de aprisionar alguém a si, pois desejo, orgulho e vaidade não constroem o legítimo direito. Ciúme não é amor. Ciúme é a sombra do amor, o medo de aceitar as asas que o amor concede. A liberdade de alguém partir, ou ficar, de alguém é absoluta e deve ser respeitada. Dessa maneira, a recíproca será sempre bem aplicada. Ninguém é dono de ninguém. O outro desejará caminhar ao seu lado pelo tempo que as afinidades espirituais estiverem alinhadas. Isto pode durar um dia ou séculos. A Lei da Evolução é inexorável e fará com que todos cheguem ao destino. No entanto, cada qual viajará na exata velocidade da expansão do seu nível de consciência, que se modificará, seja por gosto, seja por imposição. Ninguém ficará para trás, mas nem todos estarão no mesmo passo. Então, algumas separações serão inevitáveis. É preciso entender que o processo evolutivo, embora desenvolvido através do convívio social, com suas dores e delícias, onde aprendemos com uns e ensinamos a outros, é individual e intransferível. Isto explica o erro de desejar manter alguém ao nosso lado a qualquer custo ou mesmo o sofrimento ao ver o outro partir. Entender que “foi bom enquanto durou” ou “deixe partir o que não mais pertence ao seu momento” é aceitar sábias observações cósmicas. O que muitos chamam de perdas nada mais são do que imprescindíveis transformações ocultas reveladas pela sabedoria do tempo. O amor traz consigo variantes nobres. A palavra misericórdia vem do latim e na minha opinião é uma das mais bonitas da língua portuguesa, pois expressa o sentimento de “colocar o nosso coração para aliviar a dor alheia” como um valioso bálsamo a levar conforto a quem nos procure. Os orientais ensinam que compaixão é a beleza de “salvar uma alma” e quando assim o fazemos uma nova estrela passa a brilhar no firmamento. Já se perguntou quantas estrelas já ajudou a pendurar no céu? O mais interessante é perceber como o simples ato de oferecer um pouco do seu tempo e algumas palavras amorosas, proferidas com sinceridade, tem o poder de resgatar vidas e modificar rumos. É sementeira barata à disposição de qualquer jardineiro atento. O amor é o que de mais sagrado existe no ser, pois, em essência, revela a esperança que deposita na humanidade e, por consequência, em si próprio. Enfim, dentro de cada um de nós adormece essa força capaz de transformar e libertar a si mesmo, expandindo-se em ondas até os confins do universo, embelezando os jardins da existência. No amor reside todo o seu poder e magia. Use-o sem moderação!

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A MATURIDADE TRAZ EM SI A VERDADEIRA LIBERDADE

“A maturidade nada mais é do que o entendimento de si e a disposição de se transformar. Isto é libertador”, disse o Velho enquanto procurávamos cogumelos em uma floresta próxima ao mosteiro depois de uma noite de chuva. O sol brilhava por entre as folhas, lambia nossos rostos e aquecia na manhã ainda fria. “Entender quem somos, nossas dificuldades e belezas, permite que deixemos para trás o que em nós não serve mais e abre a perspectiva de inventar o que queremos ser. Este é o poder do Caminho”, complementou. Um belo rouxinol pousou em um galho de uma árvore próxima e nos presenteou com uma pequena sinfonia, só encontrada nas matas. Depois alçou voo. Comentei que todos gostariam de ter asas como os pássaros para alcançar as alturas. Ele retrucou de plano: “Pássaros voam por determinismo biológico. As asas da liberdade são metafóricas, fruto da sabedoria e do amor, flor das escolhas que se faz a cada passo do Caminho”. Falei que Mahatma Gandhi certa vez, quando preso, comentou que há homens mais livres nas celas do que vagando pelas ruas. O velho retrucou: “Gandhi era um iniciado, uma alma antiga e iluminada. Claro que não falava das mentes sombrias que enveredaram pelas raias da criminalidade e da ignorância. Ele se referia à liberdade do pensar desperto dos preconceitos e condicionamentos culturais e sociais. A liberdade de pensar além; de perceber que as mais cruéis prisões são aquelas que não têm grades”. Parou um pouco e concluiu: “Liberdade é muito mais do que o direito de vagar a esmo pelas ruas ou levar uma vida completamente descompromissada. Isto, em geral, caracteriza os foragidos da vida. Estes costumam estar aprisionados no pior dos cárceres, a própria consciência. A verdadeira liberdade traz em si a responsabilidade. A responsabilidade por suas escolhas e compromissos. Temos compromisso com tudo que amamos e à medida que ampliamos a nossa esfera amorosa crescem as nossas asas, nos permitindo voos cada vez mais altos. Nossas asas têm o tamanho de nossos corações. As nossas escolhas, por sua vez, geram consequências e temos que nos responsabilizar por elas. A serenidade deste entendimento, ainda que isto signifique mais esforço e trabalho, pois cada qual terá os desafios próprios ao seu aprendizado, chama-se maturidade”. O Velho se calou, estava encantado com alguns cogumelos que havia encontrado ao pé de um enorme carvalho. Eu ainda metabolizava as suas palavras, quando ele tornou à carga: “A liberdade é uma poderosa ferramenta evolutiva, pois está diretamente ligada às suas escolhas, que, por sua vez, definem e aprimoram a alma do viajante. Não se esqueça, entretanto, de que a evolução exige esforço, determinação e coragem para enfrentar os desafios e semear o bem nos territórios áridos da existência. A responsabilidade com todos que nos cercam é o próprio compromisso com o Caminho, sem o qual não haverá liberdade nem evolução. Viver este conceito com alegria se chama maturidade”. À noite jantamos no mosteiro uma saborosa sopa feita com os cogumelos colhidos pela manhã. Depois, me afastei, absorto em minhas reflexões, quando o Velho se aproximou e quis saber o que me ocupava os pensamentos. Disse-lhe que pensava nas consequências de cada escolha que fazemos pela vida e dos compromissos que acabamos por assumir. Quis saber qual o limite da responsabilidade. Ele me convidou para caminhar e comentou: “Disse o poeta que temos o sentimento do mundo e duas mãos. Façamos o nosso melhor a cada dia nos limites da nossa capacidade de amar e do nível de consciência que temos.

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E que no dia seguinte nos seja permitido amar, entender e fazer um pouquinho mais. Assim é o Caminho. Você perceberá que ele muda na medida em que transforma a sua maneira de andar”. Questionei sobre aquelas pessoas que se negam aos compromissos. “Coitado daquele que não tem com quem se preocupar. Isto apenas revela o indivíduo que vive a ilusão de pensar que liberdade é descompromisso, que vaga desorientado pelo deserto do desamor, perdido no vale da solidão.”. Fez uma pequena pausa e prosseguiu: “Esse indivíduo espiritualmente ainda está na infância, se nega a crescer e deseja viver apenas pelo prazer. Ainda não entende a amplitude e o poder do amor. O sofrimento será inevitável, pois em algum momento perceberá que se tornou refém do seu egoísmo e encarcerado na própria solidão. Só o amor cria vínculos eternos e atribui sentido à vida. Portanto, como se vê, amar em toda a sua amplitude não é um exercício destinado aos fracos”. Com calma, explicou que no universo há Leis Não Escritas, inexoráveis na regência da conduta de tudo e todos. Uma delas é a que a vida reage na exata medida das atitudes de cada um. Não por punição, mas por lição. A dor não é a única maneira de se aprender, mas o último recurso do Caminho para corrigir uma rota que leva ao abismo. Com certeza todas as sinalizações anteriores foram ignoradas por esse viajante. Como um pai zeloso que não abdica da melhor educação para o filho, a Vida encontrará um jeito de fazer o sujeito refletir e, então, Entender (a sabedoria da lição), Transformar (a si próprio), Compartilhar (amar incondicionalmente) e Seguir (a infinita viagem). É indispensável dulcificar o ser. Desta maneira, cedo ou tarde, dependendo das escolhas pessoais, todos conseguem fechar seus ciclos de aprendizado e evolução. Perguntei-lhe qual o limite da liberdade. O velho monge sorriu como se esperasse a pergunta e falou com seu jeito doce: “A verdadeira fronteira é a dignidade. Sem honestidade no trato com os outros, e conosco, todas as demais virtudes apodrecem por envenenar a árvore. O florescimento da dignidade aperfeiçoa as escolhas, ferramenta no qual cada um exercerá a sua liberdade. Você se define a cada escolha que faz”. Insisti em como saber a melhor escolha. O Velho fechou os olhos e disse: “Você escolhe por amor ou fará a escolha errada. Entender isto é ter maturidade para prosseguir no Caminho”. Pensou um pouco e finalizou: “O amor é a fita que entrelaça os corações livres e despertos. O amor é o verdadeiro compromisso e a única ponte para a felicidade. Não há outra”.

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MILAGRES SÃO TRANSFORMAÇÕES OCULTAS EM NÓS

“O que chamamos de magia em outras tradições recebe o nome de milagre. Muda-se o nome, mas é a mesma força e poder”, falou Canção Estrelada, ancião nativo do Povo do Caminho Vermelho, enquanto preparava o cachimbo de fornilho de pedra. Estávamos sentados em volta de uma pequena fogueira sob o manto fantástico da Via Láctea, nos provocando indagações sobre os mistérios do universo. Esperei que ele desse uma pequena baforada e, assim, convidasse seus ancestrais que já cavalgam com o vento para participar da nossa conversa. Depois me fitou com as labaredas refletidas em seus olhos e explicou: “Magias ou milagres são como chamamos transformações que ainda não conseguimos explicar. O importante é entender que você é parte do milagre, assim como a semente só germina se encontrar solo fértil. Cada qual é o seu próprio jardineiro, que sem o devido trabalho não fará nenhuma rosa florescer. O sol e a chuva são para todos, porém a semeadura é pessoal e intransferível. O essencial é entender que cada qual tem que fazer a sua parte para se encantar com a magia da vida”. Explicou, ainda, que existe um intercâmbio incessante entre esferas, porém os aliados do plano invisível somente podem intensificar o trabalho conosco se estivermos preparados: “Somos os pilares da ponte em que atravessam; portanto, quanto mais firmes forem os alicerces, maior o trânsito deles. Sem o aperfeiçoamento de um código moral próprio, no qual não se pratique nenhum mal a qualquer coisa ou pessoa, não se chega a lugar nenhum. Tais conceitos são os sólidos fundamentos da alma”, acrescentou. Não se disse mais palavra. O vagar da noite trouxe a sua sinfonia a nos ajudar no exercício de ver além. O pensamento voou e me trouxe recordações do Velho, o monge mais antigo do mosteiro da Ordem, que me orientou quanto à importância das energias que emanamos. “Tudo no universo é energia. Até o que chamamos de matéria nada mais é do que energia condensada, conceito hoje admitido pela Física Quântica, mas aceito pelos esotéricos há séculos. As energias se alinham por afinidade ou semelhança. Sendo nossos pensamentos, sentimentos e atitudes as fontes geradoras. Assim, se queres a aproximação dos anjos, benfeitores espirituais ou amigos invisíveis – não importa qual o nome que lhes aplique –, sutilize a sua energia para, na medida do possível, se aproximar da frequência vibratória deles. Preste atenção em ti. Aperfeiçoe o que pensa, sente e faz. ”. “Os mais importantes milagres são as pequenas transformações que se dão em nosso íntimo, permitindo uma permeabilidade cada vez maior entre os planos. A espinha dorsal de toda a sabedoria universal se resume a amar a todos como gostamos de ser amados. Fazer o bem ao invés de esperar por ele. Todos os outros conhecimentos são apenas os muitos comentários a respeito desse ensinamento maior. Amar incondicionalmente é ato de profunda sabedoria, pois traz consigo a ampliação de consciência, a libertação da alma e a permissão de ver no escuro. Torne-se uma pessoa melhor a cada dia e desperte o poder adormecido nos porões do ser. O segredo milenar dos alquimistas de transformar chumbo em ouro nada mais era do que iluminar as próprias sombras, alinhando-a à alma. Não há riqueza ou milagre maior”. Como se adivinhasse os meus pensamentos, o sábio xamã rompeu o silêncio: “Magia é transformação. As mais importantes são as que ocorrem na essência mais íntima do ser. Você é o mago e também a própria magia. Pois, ao nos transformar, modificamos o

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mundo, operando pequenos milagres do cotidiano, quase imperceptíveis, só vistos pelos olhares atentos. Passamos a transbordar as mudanças de maneira natural através do brilho no olhar; da sensibilidade amorosa no sentir; do pensar claro e luminoso, liberto dos automatismos; da melhor palavra; da compaixão pelo não entendimento do outro; do agir sereno e digno. Um ser moral despido de qualquer moralismo. Suas emoções primárias e densas, que até então lhe dominavam como reações imediatas diante dos entraves do cotidiano, passam a se transformar em sentimentos nobres e sutis cada vez com mais facilidade, até que um dia seu coração vibrará apenas a pura luz. Sinal de um passo importante, em que traços da evolução individual passam a integrar o espírito como uma estrela a brilhar no firmamento, que, aos poucos, se expande, iluminando a tudo e a todos que encontrar, em sintonia com a expansão do próprio Universo, até por tê-lo em si”. Naquela noite, duas tradições convergiam para me mostrar que a verdadeira sabedoria é una. A manhã começava a dar sinais de que não tardaria. Canção Estrelada pegou o seu tambor e tocou em ritmo suave “para entrar em sintonia com a pulsação do planeta que despertava”. A música me fez estampar um sorriso de satisfação. O xamã me olhou, devolveu o sorriso e disse: “Compartilhar com alegria para toda a gente o que há de mais precioso em seu coração é a melhor maneira de agradecer ao Grande Mistério por todas as magias permitidas. Só assim é possível seguir caminhando em beleza. Esta é a lição e o poder do sol que ilumina e aquece gerando vida a todos, sem distinção”.

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ISTO NÃO TEM IMPORTÂNCIA

“A magia da vida acontece enquanto vivemos as coisas banais do dia a dia”, dizia o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro. Lembro disto ao perceber como desperdiçamos tempo e energia em situações que não têm nenhuma importância para as nossas vidas e, desta maneira, terminamos por atrasar a fantástica viagem ao permitir que naveguemos em círculos. “Isto não tem importância” é um mantra de uma única frase que ele repetia e ensinava o tempo todo. Todos os dias há pelo menos um momento mágico que pode transformar a vida. O segredo para ver e atravessar esse portal reside em suas escolhas e, para exercê-las com plenitude, não se pode estar distraído ou enfraquecido com o que não tem importância. As urgentes desnecessidades são armadilhas do Caminho. Certa vez chegávamos de uma longa viagem e havia uma enorme fila para atravessar o controle alfandegário do aeroporto. Enquanto eu acompanhava irritado o lento desenvolvimento da fila, o Velho estava sereno e parecia encantado com qualquer coisa que estivesse a sua volta. Quando estava para chegar a nossa vez, um casal, entre abraços e beijos, atravessou a nossa frente, nos fazendo esperar mais um pouco. Olhei indignado para o Velho, e antes de iniciar o meu discurso sobre falta de educação, ele falou baixo, quase em tom de sussurro, “isto não tem importância”. E antes que eu pudesse me alongar nas palavras para rebater o seu mantra, um funcionário nos chamou para passar pelo controle. Ele apenas me olhou com o seu sorriso maroto como se dissesse “viu?”. “Gosto de ver casais apaixonados”, justificou, aumentando ainda mais o volume da minha impaciência. Percebi que eu, embora bem mais jovem, caminhava pesado por carregar as pedras da irritação; o Velho, apesar da inexorabilidade do tempo, circulava lépido e fagueiro pelo saguão do aeroporto. E pela vida. Entendi que sabedoria e amor dão asas. Noutra ocasião, enfrentávamos o engarrafamento no trânsito de uma grande cidade, comigo ao volante, quando fui fechado por outro motorista que, não satisfeito, ainda me ofendeu. Contrariado, olhei para o Velho sentado no banco do carona em busca de sua cumplicidade contra aquela falta de civilidade. Ele apenas me sorriu e mantrou: “Isto não tem importância”. E continuou a se encantar com o burburinho daqueles que andam apressados pela vida. Tentei discordar, porém fui interrompido por um leve toque em meu braço e pela sua fala mansa. “De um jeito ou de outro continuamos a viagem”. Não satisfeito, rebati que a pressa daquele motorista quase provocou uma colisão. O Velho tornou a se virar para mim. “Por que se chatear e perder tempo com o que não aconteceu?” Silenciei-me. Ali entendi que a falta de tolerância apenas atrapalha a viagem. Um pouco mais à frente paramos em um sinal vermelho. Um rapaz veio até a minha janela e pediu uma esmola. Alegou que tinha fome. Afeito aos perigos típicos das metrópoles, mantive o vidro fechado e a expressão facial dura, como automatismo de defesa. O Velho fez sinal para que o jovem fosse até a sua janela, entregou-lhe uma nota e ofereceu o seu melhor sorriso. Recebeu outro belo sorriso de volta. Imediatamente disparei a surrada retórica de que aquele rapaz talvez usasse o dinheiro para comprar drogas e não comida. O Velho me olhou com serenidade e recitou o mantra: “Isto não tem importância”. Retruquei sob a alegação de que a sua atitude talvez estivesse afastando o jovem da rotina saudável do trabalho. “Isto não tem importância”, tornou a recitar o mantra. Porém, ampliou o ponto de vista. “A fome tem pressa. Fiz a minha parte da melhor maneira que

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me foi possível. Cada um faça a sua e entenda a responsabilidade por suas escolhas. Nunca saberei se aquele jovem usou o dinheiro para comprar drogas ou saciar a fome. A escolha será dele, eu apenas ofereci ao rapaz o meu melhor e a oportunidade que neste momento a vida apresentou a mim e a ele”. Calei-me e entendi que sem compaixão a viagem se torna impossível. Em outro momento estávamos a caminho de um cerimonial familiar. Eu estava ansioso para rever parentes que não encontrava há anos e sentir como reagiriam com a passagem da minha avó para o outro plano, uma vez que ela era uma típica matriarca, ao mesmo tempo amorosa e participativa, quase intrusa, nos projetos individuais de cada filho ou neto. O tempo estava muito ruim, e o medo de não chegar no horário foi, aos poucos, alterando meu estado de ânimo. “Do jeito que está a tempestade só falta ter uma árvore derrubada a nos fechar a estrada”, revelei todo o meu temor. “Isto não tem importância”, disse com seu jeito manso habitual. “Como assim?”, repliquei. “Viemos de longe e quando estamos quase chegando somos surpreendidos com essa chuva?”, revelei todo o meu nervosismo. “Por que se preocupar com o que não podemos interferir? Algumas coisas têm que acontecer, outras simplesmente não. Vamos fazer a nossa parte e esperar que o melhor aconteça”, deu uma pequena pausa e concluiu, “mesmo que a gente, no momento, não entenda a extensão da inteligência cósmica. Os dedos dos mestres são longos e mexem onde ainda não podemos ver. Acredite, tudo que acontece em nossas vidas é para o bem... até as catástrofes. E você sabe disto”. Eu sabia que ele estava certo e apenas tinha que praticar os ensinamentos que já possuía. Por que sempre sabemos mais do que conseguimos vivenciar? Conhecimento sem prática não se transforma em sabedoria, é como pão adormecido na vitrine que não sacia a fome. Não disse mais palavra. Diminuí a marcha em respeito ao tempo. Chegamos depois da hora marcada, porém a cerimônia atrasou em razão de que muitas outras pessoas terem enfrentado a mesma chuva. Cumprimentamos a todos e depois, discretamente, nos dirigimos aonde repousava o corpo de minha avó para encaminhar, em silêncio, sua alma em paz para a outra estação da vida. Ao final de tudo nos despedimos das pessoas, algumas bastante emocionadas, outras presentes por obrigação social ou familiar. E seguimos para o aeroporto, tendo em vista que pegaríamos o voo de volta naquele mesmo dia, próximo à meia-noite. Na estrada lamentei com o Velho que tinha ficado triste com a maneira quase impessoal como alguns parentes tinham me tratado. “Isto não tem importância”, tornou a repetir o mantra. “Não se pode dar o que não se tem. São corações ainda desertos de amor”. E mais uma vez o Velho mostrava que nas bifurcações do Caminho a compaixão era a placa que indicava o destino do sol. No entanto, comentei que tive vontade de abraçar mais longamente um primo que havia sido criado comigo, com quem tive uma briga, há tempos, bem antes do meu iniciado na Ordem, nunca resolvida. Talvez tivesse sido a hora de nos perdoarmos. Na época éramos, os dois, ainda tão imaturos que, olhando para trás, agora, parecíamos até mesmo outras pessoas. Somente o perdão teria força para me libertar da amargura que ainda sentia. Encontrei os olhos do Velho pelo espelho retrovisor a me fitar seriamente. Ri e disse que já sabia o que ele falaria: aquilo não tinha importância. O Velho me tocou no braço e me repreendeu. “Não, Yoskhaz. Isto tem importância, sim. Vamos voltar agora”. Diante do meu espanto, insistiu para que retornássemos imediatamente. “Costurar laços entre corações é o sentido da vida”, explicou. Lembrei-lhe que, se fizéssemos isto, perderíamos

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o voo, teríamos várias despesas que não estavam previstas e outros compromissos restariam prejudicados. Enfim, seria uma enorme confusão. “Isto não têm importância”, o Velho tornou a sentenciar o mantra com um sorriso maroto. E voltamos.

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AS MELHORES HISTÓRIAS SÃO AS DE SUPERAÇÃO

Não raro escuto pessoas dizendo que fariam tudo “exatamente igual” se iniciassem de novo a sua trajetória de vida. Se é apenas uma alusão a como aprenderam com os próprios erros e como eles ajudaram a chegar onde estão, entendo. Sim, por vezes, os erros são preciosos mestres que nos oferecem valiosas lições, embora a vida disponibilize outros, como a percepção e o amor, que permitem encurtar o tempo e pavimentar a estrada. São as mesmas lições oferecidas pelo erro, porém ministradas de maneira suave, afinal aprende-se por imposição ou gosto. A escolha é sempre nossa. No entanto, na maioria dos casos vejo alguns amigos sustentando verbalmente a repetição da trajetória de vida por vergonha, negação ou orgulho. Pena, pois a não aceitação do próprio caminho trilhado impede de entendermos quem realmente somos, por consequência, não permite ver as transformações que devemos operar em nós, atrasando a viagem evolutiva e, assim, a paz da plenitude que tanto ansiamos. Revejo a minha história e, grato às duras lições que o erro me ofereceu, percebo que poderia fazer diferente. Pessoas que magoei, voltas em círculos que dei por teimosia, tempo e energia desperdiçados com situações que não tinham nenhuma importância e por aí vai. A lista é enorme. É verdade que aquele era o meu nível de consciência naquele momento e ali eu não conseguia perceber que poderia fazer de outra maneira. Sim, sempre é possível fazer diferente e melhor. Embora ainda muito longe de onde tenho que chegar, já não sou o mesmo da partida. Mudou o olhar e o viver. Não é assim com todos nós? E o que eu fiz com o meu passado? Principalmente aqueles capítulos que no íntimo tenho, hoje, a plena consciência de que poderia ter feito de outra maneira? Decidi abraçá-lo e ser agradecido por minha história. Ao invés de ficar paralisado pelo erro, aceitei a responsabilidade, reparei o que foi possível e segui adiante com uma nova postura em relação a tudo e todos. Ninguém precisa se envergonhar, tudo no universo está em eterna evolução e todos somos parte dele. Reinventar-se todos os dias é uma exigência do Caminho. Encante-se com a transformação que chega na esteira da sabedoria e com a beleza do amor que te contaminará sempre que tentar o melhor. As mais fantásticas histórias são as de superação. Imagine um filme em que uma criança nasce em um lar repleto de amor e com todas as condições para uma vida saudável. Desde cedo seus pais, almas evoluídas, lhe ministram sábias lições de amor, tolerância, compaixão, dentro de um bonito código de ética existencial e valores morais nobres. Esta criança, afeita ao bem e à luz, aprende com rapidez e, desde sempre, espalha sementes de alegria por onde passa. Ao entrar na vida adulta abraça a medicina como instrumento para levar a cura e o conforto a toda gente, no esforço de difundir a felicidade e o contentamento que existe dentro dela. Sem dúvida, uma belíssima história de vida e, com certeza, eu gostaria de assistir a este filme.

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Imaginemos um outro filme no qual uma criança nasceu em um ambiente governado pela desarmonia, impaciência, ausência de indicativos morais e condições razoáveis de subsistência. Cresce nas ruas selvagens das grandes cidades na proximidade de um invertido código de ética, valores morais deturpados ou inexistentes, em que o instinto de sobrevivência costuma se sobrepor aos sentimentos mais nobres e sutis. Pequenos furtos, atos de violência que pratica e sofre, sexo irresponsável são páginas comuns da sua adolescência, ao lado da fome e, principalmente, da ausência de amor. Aos poucos, a princípio em mínimos atos, percebe que quando age diferente, deixando florescer o melhor de si, um sentimento amoroso por todas as pessoas e coisas cria uma esfera agradavelmente leve a sua volta e parece levantar-lhe do chão. Tem a sensação de que a vida parece reagir na exata medida de suas ações. Sente-se diferente, tudo muda. Aos poucos começa a praticar mais e mais tais atitudes que descobriu adormecidas na gaveta mais alta do seu coração, até a decisão de reinventar-se de vez. A pessoa que era já não cabe mais em si. Embora seja ela mesma, necessita ser outra. Então, ocorre a transmutação de que falavam os alquimistas medievais e transforma metaforicamente chumbo em ouro. Quando muda o seu jeito de ser, o mundo também se transforma. Aos poucos, pessoas e situações comuns em sua vida deixam de se fazer presente, dando lugar a outras. Decide retornar aos bancos escolares, dedica-se com afinco aos estudos, começa a entender que o conhecimento expande o olhar e, após infrutíferas tentativas e inúmeras dificuldades, acaba por conseguir uma vaga em uma faculdade de Direito. Após alguns anos de luta incansável torna-se um juiz misericordioso e exerce a cura em todos aqueles que cruzam o seu caminho, utilizando ferramentas como a verdade e a justiça, na alegria de espalhar a semente da esperança em si e em todos. Outro belo filme a que eu adoraria assistir. Na absurda hipótese de ser possível assistir a apenas um, qual deles você escolheria? Embora sejam duas belíssimas histórias de amor, tanto esta quanto aquela, minha escolha recairia por esta última. As histórias de superação encantam a humanidade desde sempre, pois são a prova de sua evolução. Na verdade, a história do mundo se conta através das pequenas histórias de pessoas comuns, como a minha e a sua. Os grandes personagens que conhecemos nos livros são apenas reflexos mais visíveis da mudança de um novo nível de consciência já sedimentado no íntimo de todos. Assim, não existe caminho feio. São as curvas e dificuldades da estrada que desenham a beleza da trajetória de cada um de nós, colorindo a paisagem na medida em que mudamos o nosso jeito de ser, reflexo de cada escolha que fazemos. Basta estar disposto a ver com outros olhos e ter coragem, sabedoria e amor para fazer diferente. Como dizia um anjo que esteve encarnado recentemente entre nós, “é impossível reescrever o passado, mas podemos construir um futuro diferente”. Abrace a sua história, sem vergonha ou vitimização, aproveite para se conhecer melhor, aceite os erros como lições, abra-se para a mestria do amor adormecido em teu coração, permita que a coragem que reside em sua alma guerreira faça em ti as transmutações essenciais a cada dia e todos os dias. Entender que tudo, absolutamente tudo, pode ser diferente e melhor é o bilhete para a próxima estação.

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O SAGRADO MORA NO CORAÇÃO

Certa vez assisti a um filme, desses hollywoodianos, com muita ação, em que o protagonista era um frio assassino profissional que passa a ser perseguido tanto pela polícia quanto pela máfia. Sua aparente indiferença em relação a qualquer tipo de sentimento era a tônica da sua personalidade e a principal razão de sua nefasta eficiência. No entanto, durante a sua fuga carregou por todo o tempo um vaso de plantas, salvo engano, pois faz muito tempo, com uma orquídea. Aquela singela flor era o depositário de todo e único amor que esse homem conhecia. Ele se preocupava com ela, pois era preciso que a colocasse no sol, regasse, vigiasse de eventuais pragas para que não morresse. A planta era motivo de preocupação, pois dependia completamente dele para continuar viva; a orquídea tinha a capacidade de fazer florescer o melhor de um homem embrutecido em sua consciência. Aquela flor era sagrada. Sagrado é tudo aquilo que nos religa à divindade, que nos permite exercitar nossos sentimentos mais nobres, nos ensina a ser pessoas melhores e alavanca a nossa evolução. Em um pequeno altar que tenho em casa há vários objetos aparentemente mundanos, mas que trazem tamanha significação pessoal que os tornam sagrados para mim. Algumas pessoas mais distraídas nem percebem que ali reside importante parte do meu templo. Por exemplo, tenho três malabares de circo. Quando me recolho para as minhas reflexões, meditações e orações, eles me lembram que distribuir alegria por onde passar é a melhor forma de agradecer à vida pelas bênçãos e lições disponibilizadas a mim durante a jornada. Eles são sagrados para mim. O sagrado está oculto no profano. Em todas as tradições religiosas os avatares que lhes inspiraram foram contrários ao culto de imagens. No entanto, igrejas e templos mundo afora estão repletos deles. Estariam errados? Não. E é necessário entender a diferença. O objeto em si não traz nenhum poder; no entanto, o sagrado em uma estátua de Buda ou de Francisco de Assis existe e é importante para nos lembrar de suas lições de sabedoria e amor, mapa e bússola a nortear a caminhada rumo à Luz. A partir do momento em que algo descortina o véu de sombras para que sentimentos mais sutis nos sirvam de régua e compasso, torna-se sagrado. O sagrado estará onde estiver seu coração. Assim como nos objetos comuns, é nas nossas relações cotidianas, sejam familiares, profissionais, sejam sociais, simples ou complexas, que podemos descobrir e revelar o melhor de nós. As pessoas que amamos, por razões óbvias, serão sempre sagradas, pois nelas depositamos nossos melhores e incondicionais sentimentos. Uma pessoa estranha que nos traga complicações também pode se tornar sagrada se deste convívio passarmos a entender e a viver formas mais sublimes de sabedoria e amor. A razão de ser das dificuldades é tão somente para alavancar nossa evolução. O mesmo vale para os lugares sagrados. Jerusalém, Meca, Budigaia, Fátima ou Sedona são locais onde há séculos peregrinos ancoram suas melhores energias e, sem dúvida, têm muita força e fazem você se sentir diferente caso esteja aberto para isso. No entanto, não podemos esquecer que o mar é um santuário; as florestas e montanhas são catedrais; sua casa, um templo. Qualquer espaço que te permita a conexão com a outra esfera é divino.

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Todo local que nos possibilite colocar o ego para dialogar com a alma fará brilhar a mais pura luz. Tudo que toca o seu coração é sagrado. Um olhar, um abraço ou um beijo podem ser mundanos ou sagrados, dependem dos sentimentos depositados. Um sincero e humilde ato de compaixão sempre, sempre, será sagrado. Idem para qualquer ato de boa vontade ou quando a sua escolha privilegiar o amor em detrimento de qualquer outro interesse. O sagrado reside mansamente no seu coração. Convide-o para dançar contigo em todas as canções do Grande Baile da Vida!

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OS LABIRINTOS DA VIDA

Todo sábado, pela manhã, tem uma deliciosa feira na praça principal da pequenina cidade próxima à montanha que acolhe o mosteiro. As ruas são sinuosas e estreitas, ainda estão calçadas por pedras para não lhe negar a origem medieval. Guloseimas, artesanatos, embutidos, queijos, frutas e hortaliças frescas são vendidos pelos moradores e agricultores das proximidades. A música alegre tocada por jovens e anciões no centro da praça colore o estado de espírito que predomina no rosto de todos. Naquele dia, o sol agradável da primavera aquecia o frio das primeiras horas da manhã e oferecia as cores típicas da estação. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha me convidado para acompanhá-lo à feira com a desculpa de que precisava comprar mel para a receita de um bolo apreciado por todos os monges. Na verdade, ele admirava muito a troca espiritual entre toda a gente, dentro ou fora do mosteiro. Com seu sorriso franco, olhos brilhantes e fala mansa, conversava com todos que lhe cruzavam os passos lentos, porém firmes. Impressionante perceber como ele era querido, apesar de não possuir um níquel para oferecer. Em determinado momento, encontrou uma jovem mulher, muito bonita e bem-vestida, cuja família, proprietária de vasta extensão de terras nos arredores, remontava a uma aristocracia que tende a desaparecer. Suas feições eram tristes, seus olhos pareciam sem vida. Ela pareceu contente por encontrar o Velho e nos convidou para sentar em uma cafeteria próxima. Com xícaras fumegantes à frente, a mulher começou a desfilar sua enorme tristeza em relação aos infortúnios do destino. Apesar da enorme herança que lhe tinha sido destinada e de ter acesso ao que no mundo havia de mais caro, não conseguia ser feliz nem ver encanto nas coisas. Nada lhe dava contentamento. O velho monge lhe ouviu com sincero interesse por longos minutos, sem dizer palavra. Ao final, com os olhos mareados, uma lágrima escorreu no belo rosto da jovem. Ele lhe ofereceu um sorriso confortador e perguntou: “Você sabe o que é um labirinto?” A moça fez que sim com a cabeça e respondeu que era um emaranhado de corredores que parece não levar a lugar nenhum, cuja saída é difícil de encontrar. “A vida, por vezes, apresenta-se como um labirinto”, o Velho falou ainda enigmático, construindo o seu raciocínio. A mulher quis saber mais. Ele a mirou nos olhos com doçura antes de completar: “Quem não sabe aonde precisa ir estará sempre perdido”. “O viajante procura a saída pelas paredes externas dos corredores, quando, na verdade, a porta está em seu interior. Este é o segredo do mais sofisticado labirinto que já existiu, a vida”. A bela mulher lamentava o insucesso na carreira cinematográfica que tanto almejava. Tinha estudado canto e dança; recebia elogios de professores das artes dramáticas por seu desempenho; no entanto, na hora dos testes, era reprovada, e com críticas duras, por parte de diretores e produtores. Acrescentou que estava tão triste que nem tinha mais coragem de assistir a qualquer filme. O Velho sorveu um gole de café, mirou-a com os olhos mansos emoldurados em sua pele vincada, medalhas de toda uma existência, e disse: “Nem todo elogio é sincero nem toda crítica é justa”. A jovem quis entender que ele lhe aconselhava a insistir na carreira frustrada. O monge foi veemente: “Não digo para persistir, tampouco para desistir. Qualquer palavra neste

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sentido seria leviandade e arrogância de minha parte. É necessário que cada qual saiba ler as letras do próprio livro, que perceba para onde o fluxo do destino quer te levar. Algumas vezes o Universo quer que você insista, enfrente os desafios que são inerentes ao seu aperfeiçoamento e fortalecimento; noutras é preciso desistir dos desejos, pois eles não fazem parte da necessidade de evolução do seu ser, que precisa seguir em outra direção, atrás do seu verdadeiro sentido. Entender isto é decodificar a vida”. “Todos nós desejamos ser lindos, ricos, famosos e amados. O ego, motivado por convenções sociais ainda primitivas, nos impulsiona neste sentido. Mas quais são as reais necessidades da sua alma? Apenas evoluir”. O monge tornou a beber um gole de café antes de prosseguir: “Ainda nos preocupamos mais com a aparência do que com a essência, como se o melhor da fruta fosse a cor da casca ao invés da doçura do sumo. Temos que entender a nossa imortalidade através do espírito que somos, e cada qual recebe a lição que lhe cabe nesse momento do Caminho para realinhar os desejos do ego aos interesses da alma, em viagem com infinitas escalas. A dificuldade financeira de alguns pode explicar a necessidade do valor pelo trabalho; a abastança financeira de outros pode ser um duro teste de compaixão na realização de obras preciosas no exercício da apurada sabedoria do amor; a doença do corpo pode ser um remédio milagroso para o espírito. Assim como a ausência de beleza estética pode significar a experiência na construção do encantamento geral através de gestos nobres, mostrando que a luz que melhor seduz é a que brilha de dentro para fora. Diferenciar o eterno daquilo que inexoravelmente será devorado pelo tempo”. Deu uma pequena pausa e brincou: “Este velhinho enrugado na sua frente já foi um lindo rapaz que despertou paixão em muitas moças. No entanto, era um atormentado e nem de longe, tinha a paz que possui hoje. No fundo o que importa é a bagagem que podemos levar no colete da alma, o coração”. A jovem mulher perguntou se ele tentava lhe aconselhar a fazer algo. O Velho respondeu de pronto: “Em absoluto. Não falo de maneira a estabelecer regras, apenas tento exemplificar a inteligência cósmica para ajustar o aprendizado individual. Por vezes, ela cria dificuldades para aperfeiçoar o viajante; noutras, oferece pontes para permitir a evolução sobre abismos na infinita viagem rumo à Luz. São inúmeras possibilidades, e cada qual tem que entender o seu próprio processo com sabedoria, amor, alegria e humildade”. A bela mulher tentava metabolizar tudo que o Velho falava, receosa de que ele se retirasse sem lhe falar o que considerava mais importante: como saber se era hora de insistir ou desistir? O monge tomou o último gole da xícara antes de comentar: “Há três maneiras. A primeira é aprender a ouvir a sua intuição. A intuição se faz presente quando a sua alma aconselha o seu ego ou, ainda, quando a voz dos anjos se faz ouvida. O risco, bem comum nesses casos, é confundirmos nossos medos e desejos com a verdadeira intuição”. Ele continuou com seu jeito calmo: “A segunda é prestar atenção aos sinais e saber interpretá-los. A vida nos fala através deles, tornando-os um poderoso aliado para a melhor percepção do seu fluxo. No entanto, é importante lembrar que, mesmo quando trilhamos o lado ensolarado da estrada, haverá momentos de dificuldades e desafios que lhe exigirão esforço e paciência; coragem e mansidão. O risco, neste caso, é enxergar sinais inexistentes. É preciso aprender a ver. Saiba que não é fácil, porém é indispensável” e silenciou como se os pensamentos navegassem pelo infinito.

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Ansiosa, a moça o trouxe de volta ao lembrar que ele ainda não havia indicado a terceira maneira. O monge sorriu e disse: “Toda vez que o Caminho lhe apresentar uma bifurcação, onde de um lado apontar a avenida da fama e do outro indicar a rua do amor, dobre nesta última. Andamos por amor ou estaremos adiando a viagem”. A mulher quis saber qual o risco neste caso. “Ser feliz”, respondeu o Velho. A bela mulher tinha os olhos mareados. Estava sinceramente tocada. Sorriu e agradeceu com um beijo estalado na bochecha do monge. Ele lhe segurou as mãos de forma fraternal e finalizou: “Todos imaginam que a fuga está através das paredes externas, pois querem conquistar o mundo, quando, na verdade, o segredo é seguir para o centro do labirinto, onde encontrará a verdadeira porta. A chave para abri-la é o seu coração, e o destino final é o encontro consigo mesma. Então, o mundo será seu!”

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O CAÇADOR DE ESTRELAS

Eu passei vários períodos de minha vida ao lado de Canção Estrelada, xamã do povo nativo da Estrada Vermelha, com quem aprendi muito. Certa vez, quem me mandou para lá foi o próprio Velho, como chamávamos o mais antigo monge da Ordem. O motivo foi que eu estava me indispondo frequentemente com outros monges do mosteiro, com os comerciantes da pequena cidade próxima e, até mesmo, com amigos e familiares. “Quando pensamos que o mundo atrapalha os nossos sonhos é porque existe algo de muito errado dentro de nós”, assim ele justificou a minha mudança temporária de ares. Fui recebido com a alegria de sempre pelo xamã, mas não tardou e, após os primeiros dias de férias compulsórias, comecei a me indispor com alguns membros da tribo. Claro que eu estava insatisfeito comigo, tinha um olhar enevoado em relação a algumas situações e, principalmente, sempre atribuía a alguém a responsabilidade pela minha infelicidade. De um lado, não percebia; de outro, faltava coragem de admitir para mim mesmo as minhas próprias dificuldades que tanto me incomodavam, causadoras daqueles pequenos conflitos pontuais. Canção Estrelada me observou por um tempo sem dizer palavra, até que certa noite me convidou para sentar ao seu lado em frente a uma fogueira. Estávamos só os dois. Eu observava seus movimentos, enquanto ele, sem pressa, completava com tabaco o fornilho de pedra do seu cachimbo e tínhamos a Via Láctea como obra de arte na parede do infinito. A noite mal começava. Eu quis saber qual o motivo de ele sempre me chamar para conversar diante das labaredas. “O Grande Mistério utiliza o poder dos quatro elementais – água, ar, terra e fogo – para purificar e alimentar o planeta. Sinto-me à vontade diante do poder do fogo que ilumina, aquece e queima as velhas formas”, falou enquanto dava a primeira baforada. Interrompi para perguntar ao que se referia com o termo “velhas formas”. “São sentimentos e ideias que já não nos servem mais e, por ultrapassados, devem ser transmutados. A vida precisa que sempre haja lugar para o novo, seja no planeta, seja dentro de nós”, explicou. Em seguida me passou o cachimbo, seus olhos miravam os meus, como reza o costume, em sinal de amizade e respeito. Vi o fogo refletindo em suas pupilas enquanto ele falava: “Está na hora de falarmos sobre o Caçador de Estrelas”. Antes que eu perguntasse do que se tratava, o ancião explicou: “É todo aquele que trilha a Estrada Dourada da Iluminação”. Movido pela minha enorme curiosidade e impaciência, eu o interrompi, de novo, para saber qual o significado ou alcance da palavra “iluminação”, visto que é utilizada por todas as tradições, do Oriente ao Ocidente. Ele arqueou os lábios em breve sorriso e me disse: “A iluminação é a capacidade de ver além do mundano, de encontrar sentido no caos, beleza em tudo e em todos, apesar dos desencontros da vida. É construir, por si próprio, a verdadeira morada da paz com os tijolos da sabedoria e a argamassa do amor”. Deu uma baforada antes de prosseguir: “A paz habita dentro do seu coração. Não a encontrará em nenhum outro lugar”. Demos mais algumas baforadas em absoluto silêncio, quando ele brincou comigo ao perguntar se podia continuar ou se eu teria ainda muitas perguntas. Rimos e eu sinalizei com a cabeça para que prosseguisse. Canção Estrelada fechou os olhos, como para buscar a melhor ideia dentro de sua alma, e falou: “O Caçador de Estrelas é todo aquele que

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atravessa as trilhas da existência em busca de luz. Ele não transfere para ninguém a responsabilidade por seus erros nem as dificuldades que tem que enfrentar. É ciente tanto dos seus propósitos quanto do seu valor. Sabe que os erros são os desafios a serem vencidos para que possa aprimorar os seus dons e talentos e, cada vez mais, se tornar um mestre na batalha de iluminar as sombras que lhe habitam. As dificuldades, por sua vez, são lições ocultas que se apresentam para aperfeiçoar o ser e alavancar a sua evolução. Assim, o Caçador de Estrelas é grato por todas as pessoas e situações que surgem, mesmo as inconvenientes”. “Ele tem a consciência de que transferir aos outros os seus próprios problemas é fugir da grande batalha a que foi destinado; é desperdiçar a oportunidade de aprender, se transformar, compartilhar e seguir; é se aprisionar a um ciclo da vida, como em uma cela sem grades; é negar a liberdade”. Canção Estrelada deu mais uma baforada, me observou por instantes e prosseguiu: “Ao contrário do que se ilude, quando transferimos a responsabilidade não nos livramos dela. O indivíduo restará preso a um ciclo de vida que se repetirá indefinidamente até que ele tenha a consciência e a coragem de enfrentar e superar a questão. É necessário aprender a lição para encerrar o ciclo. Dois ciclos não coabitam, é necessário encerrar o velho para iniciar o novo. O Grande Mistério exige que cada qual entenda o Caminho na medida do caminhar, só assim avançará um aro na Roda da Vida. Quando atribuímos ao outro a razão do nosso descontentamento, apenas demonstramos o estágio primário de nossa consciência em recusar a transformação interna que a vida exige e oferece, ao mesmo tempo, naquele momento”. Canção Estrelada ritmou com seu tambor de duas faces uma bela canção nativa segundo a qual temos que fazer o nosso coração bater no compasso da pulsação do planeta, para que sejamos apenas um. Fechei os olhos e arqueei os lábios como maneira de agradecer por aquela oportunidade. Nos deixamos embalar por um tempo que não sei contar. Mais tarde lhe perguntei a razão da expressão “Caçador de Estrelas”. Ele respondeu com sua voz mansa e rouca: “As estrelas são as fontes de luz do universo físico; morada do amor e da sabedoria na esfera espiritual. Assim como nossos ancestrais buscavam a caça como sobrevivência, mover-se em sentido à luz dignifica a vida e alimenta a alma”. Tornamos a ficar em silêncio por um longo tempo. Até que ele me trouxe de volta: “Quero lhe falar um pouco mais sobre o Caçador de Estrelas. Para cumprir a sua missão, ele tem que ultrapassar três portais. O primeiro se refere aos dons e talentos. Todos, sem exceção, os possuem. São as ferramentas que o Universo disponibiliza para entender e percorrer o Caminho. Cada qual tem os seus. São as habilidades que o tornam único e concedem a magia da leveza através das inerentes dificuldades da jornada. É preciso desenvolver o domínio e o atributo desses instrumentos. No entanto, é indispensável que façamos uso com criatividade e ousadia, pois tudo pode ser diferente e melhor. Os dons e talentos de cada um têm o poder de polinizar os jardins da humanidade”. “O segundo portal é o da cura. A vida nada mais é do que um infinito processo de cura. Falo das feridas da alma. As mágoas, as lembranças dolorosas que tanto nos entristecem e geram sombras perigosas como a raiva, o ciúme, a inveja, entre outros sentimentos de baixa vibração. Para tanto, o Caçador de Estrelas precisa de sabedoria para admiti-las e entender o quanto isto lhe faz mal e que somente o amor, em suas muitas manifestações, como o perdão, a paciência e a compaixão, tem a força da cicatrização definitiva. Neste

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portal ele descobrira que as mais importantes batalhas são travadas onde se esconde a paz: no seu coração”. “O terceiro é o da troca. Não somos o nosso discurso; somos as nossas escolhas. Elas nos revelam e aperfeiçoam. O único palco disponível para o exercício da nossa espiritualidade é o convívio social. Não há outro. Só no trato com toda a gente podemos ensinar e aprender, descobrir quem somos, recomeçar e nos transformar. Assim, florescer o melhor de nós na luz de cada estrela alcançada. Esta é a magia do Caminho”. A manhã já dava sinais da sua chegada e no horizonte já podíamos ver os primeiros traços de claridade. Tínhamos fumado todo o cachimbo e a fogueira se extinguia em sua finalidade. Canção Estrelada me olhou com sua infinita doçura e finalizou: “Agradeça a tudo e todos que cruzem os seus passos, mesmo as que aparentemente lhe trouxerem infortúnio, pois são portadores da indispensável transformação no nosso jeito de ver e viver. Não são os outros que têm que mudar para se adequar aos nossos desejos, mas nós é que precisamos transmutar as velhas formas que ainda nos vestem para não permitir que algo ou alguém nos furte a paz do coração. Não conceda a ninguém tal poder. O verdadeiro Caçador de Estrelas é inabalável no espírito”.

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O ESPELHO DE MINHA ALMA É VOCÊ

“O perfeito olhar é aquele capaz de encontrar beleza onde todos apenas enxergam desastre”, disse o Velho, como carinhosamente chamávamos o mais antigo monge da Ordem, quando, de tão irritado que eu estava, passei por ele e não o notei. Seu olhar maduro percebeu que o meu coração estava em tempestade. Virei-me e desabafei toda a insatisfação com acontecimentos recentes. Em discurso longo, narrei ao Velho toda a minha indignação em relação à ignorância que ainda campeia solta no mundo. Ele me ouviu pacientemente até que eu desanuviasse o último resquício de intolerância, depois comentou com seu jeito manso: “O que mais nos incomoda nos outros é reflexo dos nossos mais graves defeitos”. Discordei veementemente, pois certos comportamentos eram, por absolutos, incompatíveis com os meus. “A maioria, com certeza, sim. Alguns, não. E são justamente nos quais sua alma, manifestada através do inconsciente, reconhece as próprias dificuldades, e o seu ego, na ilusão de lhe proteger, repudia a sombra alheia, pois teme que o mundo veja outra igual em você”. Deu uma pequena pausa, me observou por alguns instantes e concluiu: “Percebe que o que tira o prumo e rasga a serenidade é ter que conviver com o erro que existe no outro, justo aquele que lhe faz lembrar a existência de dificuldade bem parecida e familiar? Exatamente aquela que você quer esquecer ou se enganar que não é parte da sua personalidade. Esta afinidade funciona como um espelho e o narciso não quer se ver feio. Mas o que o ego esconde, a alma sinaliza para que possa ser transformado”. Abaixei os olhos e não disse palavra. O monge me convidou para um passeio por uma das trilhas da montanha que acolhe o mosteiro. Caminhamos por um longo tempo em silêncio e aos poucos a calma ocupava o lugar da irritação. O Velho tornou ao assunto: “Já prestou atenção por qual motivo temos a imensa facilidade de criticar os outros?” A pergunta do Velho era apenas retórica, ele não esperou a minha resposta: “Ao ressaltar os erros alheios, vivemos a ilusão de que as nossas falhas desaparecerão, no exercício absurdo de negá-las a nós mesmos. Porém, em análise mais profunda, apenas mostra a nossa covardia em não enfrentar questões de vital importância que falam à estrutura do próprio ser. Falhas de ordem moral ou emocional nos desafiam e fingimos não perceber a existência delas em nós. No entanto, elas alimentam as nossas sombras e se escondem. Como um animal sorrateiro, que nem percebemos a presença, arma uma tocaia e espreita para o bote nos momentos mais delicados do convívio social. Em geral, ocorre nas situações em que nos sentimos fragilizados por motivos que, muitas vezes, ainda nem conseguimos decodificar, provocando em nós as piores e mais primitivas reações de defesa em forma de irritação e intolerância. Resquício de um ancestral instinto de defesa que ainda não conseguimos transmutar. Na infância da alma, idade em que todos nós estamos, nos enganamos ao pensar que podemos driblar as próprias dificuldades e os erros. Mas não. Ninguém se esquivará do enfrentamento, e a nossa evolução está à espera de iluminarmos as sombras que nos habitam”. Eu e o Velho já tínhamos conversado bastante sobre as sombras e que o primeiro passo era, em viagem de autoconhecimento, reconhecer a sua existência. Depois, aceitar a grande tarefa de iluminá-las nos porões do ser. Esta é a grande batalha, aquela que travamos dentro de nós. Porém, desta vez a abordagem era um pouco distinta, por mais específica. “As críticas que fazemos ao comportamento do outro são um truque do nosso ego para nos enganar de que somos melhores e que está tudo bem conosco. Não,

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não somos. É exatamente nesse ponto que revelamos o quanto a casa está desarrumada, ao trazer à tona os sentimentos que ainda assombram o nosso coração”, o monge falava de maneira tão suave quanto a brisa que me acariciava o rosto. Argumentei que, em parte, ele tinha razão, mas existia inconveniente das pessoas maldosas por todo o lado, sempre animadas a depreciar virtudes e dispostas às farpas verbais. “Mas o contrário também é verdadeiro, sendo possível encontrar pessoas bacanas e generosas em qualquer lugar, capazes de iluminar os passos e serenar os corações por onde andam”, ponderou o Velho. De maneira sarcástica e amarga perguntei onde estavam os bons, pois os maus eu sabia onde encontrar. O velho monge me mirou por alguns segundos com seus olhos repletos de compaixão, como faróis a irradiar luz nas trevas e falou quase em tom de segredo: “São as mesmas pessoas, Yoskhaz”. Deu uma pequena pausa para concluir: “Somos todos bons e ruins, alguns mais, outros menos, na eterna busca pela lapidação do ser, entre erros e acertos a sinalizar o Caminho”. Um tanto desconcertado, quis confirmar se o que ele tentava me dizer é que as pessoas ruins eram também as boas. “Assim como o sagrado está oculto no profano, a semente do bem aguarda em solo desértico a chegada das chuvas de luz para germinar”, o velho monge respondeu de pronto e em seguida prosseguiu: “Há que ajudar a emergir o melhor do outro ao tirar o foco dos defeitos e desviar para as virtudes e talentos que ele possui”. Deixou-se encantar, por alguns instantes, com algumas flores silvestres que brotavam, de maneira improvável, na fenda de uma pedra e continuou: “Só existe beleza em nós quando sabemos ver a beleza do outro. Todos somos seres em busca de transformações que nos permitam evoluir. Nos entendemos melhor à medida que entendemos os outros. Esse é o inevitável processo de aprimoramento, que irá exigir firmeza para suplantar as etapas específicas da evolução individual, a se refletir no desenvolvimento do todo e de todos. Ninguém se furtará das dificuldades inerentes à vida, pois há que se entender as maneiras pelas quais mestres disfarçados ministram as lições concernentes a cada curva do Caminho. Quanto mais difícil a situação, mais valioso o aprendizado”. Andamos mais algum tempo sem dizer palavra. Eu ainda tentava metabolizar toda a conversa, quando ele concluiu: “Preste atenção e perceba se o que mais lhe irrita no outro não é a sua própria falha lhe desafiando à superação. Damos muita importância aos erros alheios na tentativa de ocultar os nossos. Devemos ser tolerantes com os outros na exata medida em que somos conosco”. Paramos para descansar em um mirante natural que nos permite uma vista espetacular de todo o vale daquela majestosa montanha. Agradeci sinceramente ao Velho por suas palavras e comentei que gostaria de um novo momento para arriscar uma reação menos instintiva. Ele se acomodou em uma enorme pedra, arqueou os lábios em sorriso e finalizou com sua voz mansa: “O Universo, em sua infinita generosidade, não permite que as oportunidades deixem de existir, como um personagem de uma velha novela, sempre retornando em outra cena com inimagináveis figurinos, nos permitindo reescrever uma nova aventura, diferente e melhor a cada capítulo, até que a história de cada um se transmute em pura Luz. Este é o grande milagre da vida e, o mais incrível, está à disposição de todos”.

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A ARTE DA RENÚNCIA.

Eu tinha descido a montanha onde se localiza o mosteiro da Ordem e caminhava através das ruas estreitas e antigas da secular cidadezinha mais próxima. Chovia muito e estava mais escuro do que a hora determinava. Era muito cedo, e o comércio começava a abrir as suas portas. De longe vi a bicicleta do Loureiro estacionada em frente à sua pequena loja. Por décadas tinha sido o único meio de transporte que aquele ancião se permitiu usar. Sorri comigo pela alegria de passar alguns instantes com pessoa tão ilustre. Assim que entrei, Loureiro me olhou por cima dos óculos, largou o alicate, arqueou os lábios e se levantou de braços abertos para me receber. Como sempre, o homem alto e magro estava impecavelmente vestido. A calça preta de pregas bem cintada, sustentada por suspensórios, fazia uma boa combinação com sua elegante camisa branca abotoada até o pescoço, com as mangas arregaçadas na altura do cotovelo para não atrapalhar o ofício. Seus cabelos, da mesma cor da blusa, embora ainda fartos e bem penteados, sinalizavam a idade avançada. Loureiro era sapateiro desde sempre. Nas horas vagas gostava de um bom vinho e amava os livros. Os seus prediletos eram os tintos e os de filosofia. Tinha ido por causa das minhas sandálias, cujas tiras de couro, cansadas do uso, tinham arrebentado. Apesar de velhas, eu gostava do conforto que me proporcionavam, como se elas e meus pés já tivessem selado a paz há tempos. Depois dos cumprimentos e uma caneca de café bem quente para afastar o frio, perguntei se as sandálias teriam reparo ou me restaria procurar por novas. “Penso que as pessoas estão perdendo o bom hábito de consertar as coisas, o que pode acabar por refletir em suas relações. É necessária a sensibilidade para perceber o que não serve mais e o que merece remendo. Se a vida, e tudo nela se tornarem descartáveis, em breve minha profissão, assim como a razão do meu existir, perderá o sentido”, disse, entre graça e razão, enquanto levava as sandálias para a sua bancada de trabalho. “Sente-se. Trocaremos uma prosa enquanto faço o reparo”. Aproveitei a deixa para provocá-lo e perguntei o momento de consertar e a hora de abrir mão de algo. “É indispensável entender a diferença entre cada uma das escolhas. Esta é a arte”. Acomodei-me em um pequeno banco, pois senti que aquela manhã ainda seria de sol. “Preferir o silêncio como resposta quando a injúria nos atinge, é renúncia. Recusar em atender uma mão aflita que roga auxílio é abandono. Abdicar de um bem material para evitar briga familiar de consequências impensáveis é renúncia. Usar as imperfeições do mundo para encher uma tarde com lamentações ao invés de trabalhar, é desistência. Somente o que transforma a alma tem importância, isto é sabedoria”, disse o sapateiro enquanto cortava novas tiras de couro. Argumentei que tinha entendido os exemplos, mas a essência da diferença havia me escapado. “A escolha pelo abandono significa a incompreensão diante das leis da vida; a desistência evidencia fraqueza diante das dificuldades que se apresentam para alavancar a nossa evolução. No entanto, a renúncia ocorre quando trocamos conscientemente a aparência do mundo pela essência da vida”. Falei que, por vezes, a diferença poderia ser por demais tênue. Loureiro prosseguiu a explicação. “O âmago da questão está quando abrimos mão da paixão para abraçar o amor. O ego gerou a palavra egoísmo, sentimento movido pelas paixões mundanas de muito brilho e pouca sustentação. Assim, cria conflitos movidos por interesses menores

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e efêmeros, até que, cedo ou tarde, se percebe um grande vazio existencial. Valores que até então dirigiam a sua vida não podem preencher a escuridão que, agora, a envolve e angustia. Sedento por um facho de luz, você começa a entender o poder do amor. O amor é a alegria de compartilhar a vida com o outro, de aprender e ensinar, de entender as limitações e buscar as superações. É a matéria-prima de todas as transformações do ser. Você caminha por amor ou não terá ocorrido nenhuma evolução”. Deu uma pausa enquanto martelava pequenos cravos para fixar as correias na sandália e, em seguida, revelou: “A renúncia é a fronteira entre a paixão e o amor. É preciso tirar o olhar do seu umbigo para repousar no coração do outro”, disse o elegante sapateiro quando eu pedi que fosse mais claro. “A vida é regida por um Código de Leis Não Escritas e o fio que as conecta é o amor”. O nobre sapateiro falava sem desviar os olhos do ofício. “A ânsia da paixão encobre a verdade com um véu que somente a serenidade do amor consegue descortinar”. Eu sabia que ele se referia sobre às Leis do Caminho, mas queria um exemplo mais palpável sobre as diferenças de que falava. Protestei e disse para o meu bondoso amigo que todo aquele discurso era por demais bonito, mas carecia de melhor definição. Ele me mirou nos olhos e sorriu, sabia que eu o provocava. Repousou as ferramentas sobre a bancada e ajeitou a cadeira em minha direção. Colocou um pouco de café em nossas canecas e em seguida disse: “Certa vez perguntaram a um sábio qual a diferença entre a paixão e o amor. O sábio pediu para imaginar uma pessoa andando há dias no deserto, sob calor escaldante, que encontra um pote de água fresca. Ela bebe toda a água para saciar a sua sede. Isto é paixão. No entanto, se essa mesma pessoa, nas mesmas condições, com o mesmo calor e sede, beber metade do pote e, no entanto, se preocupar em deixar o restante da água para quem vem atrás”, fez uma pausa propositalmente dramática e finalizou: “Isto é amor”. O meu amigo sapateiro era um nobre. Não que possuísse títulos aristocráticos. Sua realeza vinha da gentileza no trato com toda a gente e a elegância de traduzir os sentimentos em palavras para serem usados da melhor maneira por qualquer um. Consertar sapatos era o seu ofício. Remendar olhares, sua arte. Calcei minhas sandálias e lhe dei um forte abraço. “Assim como não se pode transformar sem amor, é impossível amar sem renunciar”, confessei. Ele apenas sorriu em resposta como dizendo que eu tinha aprendido a lição. Quando tornei a andar pelas ruas de pedras da antiga cidade, ainda chovia forte sob um manto espesso de nuvens cinzas, mas não estava escuro. Acima, a luz do sol me indicava o Caminho.

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A BELEZA DO PERDÃO

“É impossível ser feliz sem perdoar”, disse o Velho para uma jovem senhora que foi ao mosteiro em busca de consolo. Estávamos sentados no refeitório e eu lhes servia uma xícara quente de café. Ela acabara de narrar o seu drama pessoal e estava inconsolável, pois não se julgava merecedora daquele destino. Aflita, a mulher confessou que o que a mantinha em pé era assistir ao sofrimento de quem tinha lhe atingido e por isto não o perdoaria jamais. O Velho fechou o cenho diante de tamanha intolerância; no entanto, os olhos brilhantes em seu rosto enrugado transbordavam misericórdia. “Penas eternas são uma adequação às sombras e não faz nenhum sentido com as ideias trabalhadas pela Luz, sempre disposta a conceder novas chances. O erro faz parte do aprendizado e, para tanto, requer inúmeras oportunidades. Só um anjo poderá enumerar todos os erros da própria vida”. A mulher rebateu dizendo que já tinha cometido alguns erros, porém nunca por maldade. O monge manteve o tom sereno em sua voz. “O desencontro entre as pessoas reside em julgarmos os outros através do rigor dos fatos, das feridas que nos deixaram e desejar que sejamos julgados por nossas intenções. Sempre temos motivos que justificam nossos atos, né?”, deu uma pequena pausa para que a mulher refletisse sobre as suas palavras e seguiu: “Esta é a questão. Tamanho descompasso é a raiz do conflito nas relações. Por isto a necessidade do mergulho nas profundezas de si mesmo. Esqueça as máscaras e os personagens sociais que criamos com o ego, no afã de nos proteger, no desejo de ser aplaudido em público. Falo das sombras que escondemos, que anseiam por luz nos porões ainda escuros da alma, que apenas quer ressaltar os defeitos alheios na vã esperança de esconder os nossos. Perdemos tempo demais na ilusão de corrigir os erros dos outros ao invés de aperfeiçoar o nosso próprio coração para que possa refletir a beleza das atitudes que ainda não temos. Pode apostar, ao nos conhecer de verdade, passamos a ser mais tolerantes com os demais”. Ela argumentou que perdoar seria um desrespeito a sua dor e uma maneira de abrir as portas para o mal. Disse ainda que todo erro tinha que ser punido e lamentou que as leis não fossem mais rigorosas. O Velho mantinha um tom sereno e doce no falar. “Não me refiro ao julgamento nos tribunais dos homens. Sem dúvida que o mal deve ser enfrentado com firmeza para que estanque, porém, com sabedoria, para não ultrapassar o limite necessário a cada caso, impedindo que usemos a escuridão no combate às trevas. Que o errante tenha um processo correto, com acesso a todos os meios de defesa, um juiz imparcial e uma sentença justa, isenta das paixões que envolvem o fato. A legislação e as suas penas, que variam conforme lugar e tempo, como um espelho, estão de acordo com o grau de evolução desta ou daquela sociedade, se modificando de acordo com a expansão do nível de consciência de todo um povo. Não se esqueça de que eu e você somos parte desse povo. Na barbárie exigíamos vingança, e tamanha dor exigiu transformação; na civilização pedimos justiça e seguimos em busca do seu perfeito entendimento. A diferença entre vingança e justiça é a carga de amor e sabedoria que reveste cada decisão. Tenho visto gritos por justiça que na verdade escondem o torpe desejo por vingança. A justiça só atinge o seu fim quando sustenta o aperfeiçoamento e a evolução de todos os envolvidos”.

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Silenciou por alguns segundos, olhou mansamente nos olhos da senhorinha e concluiu: “Eu queria falar de perdão. Perdoar está além da justiça e muito distante das ações judiciais. Trata-se de um processo de cura necessária ao coração”. No rosto bonito e sofrido da jovem senhora estava estampada a sua dúvida quanto à total extensão do significado do perdão. O monge teve a sensibilidade de ouvir o que não foi verbalizado por ela e explicou com seu jeito doce: “Perdoar não significa dar razão ao outro, mas ter compaixão pela escuridão que o envolve, a ignorância que o limita e maltrata. Entenda que cada um age, bem ou mal, de acordo com seu grau de evolução, escrevendo o próprio destino nos campos da alegria ou nas curvas do sofrimento. A prática do perdão demonstra a sabedoria, o amor e a coragem de quem o exercita. Sabedoria por entender o Caminho; amor por oferecer o seu melhor mesmo diante da adversidade; e coragem por não desistir em se aliar aos sublimes princípios do Universo no momento mais difícil da batalha. Só um verdadeiro guerreiro que traz em seu escudo o signo da luz tem a grandeza de perdoar”. A mulher quis saber a qual escudo ele se referia. O monge fechou os olhos, e sua fala era genuinamente sentida: “O coração”. A triste jovem confessou que desde o dia em que, tudo aconteceu, era como se tivesse perdido a sua própria vida e nunca mais tinha conseguido voltar para os afazeres e as convivências que sempre lhe transbordaram de alegria. O Velho esperou que ela terminasse suas queixas e tentou explicar. “Percebe como o mal se expande através de você? O quanto você está aprisionada? A grade dessa cela é o ódio, o seu próprio ódio. Tal sentimento cria uma verdadeira algema energética na qual em outra ponta você está acorrentada àquele que considera seu malfeitor. Sua mágoa te condena a permanecer na masmorra com o infeliz que te feriu ao manter o mal ainda presente em sua vida. Recuse o convite de uma alma atormentada para dançar no baile das trevas. Permita que a nobreza da compaixão ocupe o lugar da raiva primitiva. Só assim você deixará de alimentar o mal, colocará fim a sua dor e tornará a ser livre para caminhar pelo lado ensolarado da estrada”. Deu uma pequena pausa e continuou o raciocínio. “Querer o mal, ainda que não o pratique, te remete à vingança nefasta de lançar mais sombras na escuridão. Desejar o mal é muito parecido com praticar o mal, pois as frequências vibratórias são parecidas e acabam permeando a todos que se alinharam a este sentimento pesado, ainda que só em pensamento. A Física Quântica já provou que tudo no universo é energia, logo seus sentimentos não estão excluídos. Cuidado com eles”. Ela começou a chorar e disse que estava cansada. Era como se carregasse uma mochila cheia de pedras. Indagou como seria possível se libertar de tamanho sofrimento. “Perdoando sempre e cada vez mais. O perdão é a chave da liberdade e da paz. O perdão é a única cura possível. O perdão é sábio porque liberta; é um ato de amor porque permite que a vida prossiga. Trocar as pedras da intolerância pelas asas do perdão te devolverá a leveza necessária”, sussurrou o Velho. A jovem disse que aquela conversa lhe fazia bem, mas achava muito difícil colocá-la em prática. O velho monge coçou a barba e tornou a pontuar depois de arquear os lábios em um leve sorriso. “O perdão é um exercício espiritual, assim como a maratona é uma atividade física. Ninguém nasce apto a enfrentar tamanha distância. No entanto, se aceitar o desafio e começar a correr todos os dias e, aos poucos, alargar os seus limites com determinação e coragem, com certeza atingirá o seu objetivo. Assim é com o perdão. A

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primeira meta é não desejar o mal do outro por entender que aquela atitude te faz prisioneira no mesmo cárcere escuro em que ele se encontra. Isto é libertador! Conquistada essa etapa, passamos ao degrau acima, que consiste em desejar o bem de quem te fez mal, com toda a força que houver em seu coração, despojando-se das emoções ancestrais desejosas por vingança e oferecendo novas oportunidades de aprendizado e aperfeiçoamento. Só assim paramos de irrigar o mal que também nos habita. Isto é transformador!” Ela quis saber se, além da justiça dos homens, todos são punidos por seus erros. “O castigo é um conceito pequeno, distante da melhor sabedoria e do amor incondicional que modela, cedo ou tarde, a tudo e a todos. O aprendizado é a meta. Cada qual receberá os instrumentos e as situações adequadas para a indispensável lapidação do ser. A evolução é inexorável. Aprender, Transmutar, Compartilhar e Seguir, este é o sentido da viagem” e repousou sobre a mesa a sua caneca quase vazia de café. “O Universo respeitará a liberdade por cada escolha e será justo ao medir as consequências. Faça o seu melhor e serene o coração”, concluiu. Deu um beijo fraterno na testa da jovem, pediu licença, pois estava na hora da sua meditação e, por fim, lhe a desejou: “Que a paz seja convosco”. Em silêncio observei o velho monge se afastar com seu passo lento, porém determinado.

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OS PILARES DA PAZ

A pequena cidade, no sopé da montanha que abriga o mosteiro, despertava. Suas ruas seculares, estreitas e tortas, ainda estavam molhadas do orvalho da noite. Como eu tinha chegado cedo para os meus afazeres, segui até a pequena loja de Loureiro a fim de convidá-lo para um café. De longe pude avistar sua antiga bicicleta encostada junto ao poste, em frente à porta já descerrada. Fui recebido com a alegria costumeira pelo amigo, sempre elegante nas vestes e nas atitudes. Alto e magro, sua vasta cabeleira branca não escondia a idade avançada. Calça bem cintada de cor preta, contrastando com a camisa de branco imaculado, ambas de fina alfaiataria. O sapateiro repousou as ferramentas sobre a bancada de trabalho e saímos os dois, como bons meninos, a rir pelas ruas em direção à padaria. Sentados, com as canecas quentes à frente, à espera do pão fresco, não pude deixar de notar algo que sempre me chamava a atenção: a paz permanente que irradiava do olhar e das palavras daquele sapateiro. Sempre me indagava sobre tal poder. Porém, nossa conversa versou, como sempre, para a filosofia, a paixão de Loureiro, a devorar todos os livros que lhe chegavam às mãos. “Apesar de todos os avanços, e estes são incontestáveis, os meus preferidos ainda são os gregos. Tudo que precisamos aprender já sabíamos há três mil anos”, comentou. Perguntei se essa era a fonte de que ele bebia para exalar a serenidade tão admirada por mim. “Toda a paz de que você precisa nasce do entendimento de que nenhum acontecimento no mundo, por mais trágico que possa parecer, poderá abalar os alicerces da sua alma sem a sua permissão”. Eu quis saber se havia algum filósofo ou personagem histórico que lhe inspirava. De pronto me disse: “Cada qual com a sua magnitude, muitos fizeram da própria vida a perfeita obra de arte a iluminar o mundo. Foram faróis vivos para clarear as noites tempestuosas da humanidade, mostrando que nossas escolhas, quando revestidas de sabedoria, coragem, humildade e, acima de tudo, amor, insculpem na alma a paz invencível, fruto da plenitude alcançada pelo ser. O mais incrível é que está à disposição de todos e qualquer um”, silenciou por alguns momentos para me surpreender em seguida: “Tenho profunda admiração por todos, mas meu favorito é Sócrates, claro”, concluiu com um sorriso maroto. Loureiro contou uma passagem pouco conhecida, mas muito rica do famoso julgamento do filósofo grego: “Todos sabem que Sócrates foi condenado à morte pelas autoridades da época sob acusação de corromper a juventude, quando, na verdade, aqueles que detinham o poder temiam o pensamento libertador que contagiava a todos, embora suas ideias fossem absolutamente pacíficas”, deu uma pequena pausa e continuou a narrar: “Ainda preso e antes do julgamento, alguns amigos, sabendo que o processo era uma farsa e a sentença já estava decidida antes mesmo da defesa, conseguiram engendrar uma fuga do cárcere para o filósofo. No entanto, ele se negou a fugir. Aos companheiros atônitos esclareceu que a fuga é incompatível com a verdadeira liberdade”. Encantado, eu ouvia a história sem dizer palavra. “Sócrates foi condenado, como era esperado, à pena capital por envenenamento. Na véspera da execução, permitiram que sua esposa o visitasse e, para total surpresa, ela o encontrou sereno na cela. Aflita e nervosa, lhe perguntou como ele poderia aparentar tamanha tranquilidade diante de uma condenação absolutamente injusta. O filósofo grego a olhou com os olhos repletos de

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compaixão, arqueou levemente os lábios no esboço de um sorriso doce e respondeu: ‘Ainda bem que a sentença é injusta e nisto reside a minha paz’ ”. Impactado com o que eu acabara de ouvir, fiquei longo tempo em silêncio. Ali tinha elementos para se refletir por toda uma existência. Notei que o elegante sapateiro me observava, tentando decifrar as reações da minha mente, até que me trouxe ao âmago do que queria: “Percebe que toda a paz de que necessitamos independe dos acontecimentos externos? ” Apesar da bela história, discordei ao lembrar de fatos desagradáveis e tristes que nos acontecem, sendo muito difícil manter a paz diante deles. Loureiro rebateu: “Sim, a vida está repleta de situações indesejáveis que refletem as imperfeições de todos nós, como as confusões movidas por nossas sombras a se manifestar pelo ciúme, pela inveja e pelo medo; ou pelo transcurso natural da vida transitória no planeta, como a morte e as doenças. No entanto, não duvide, cada uma qual delas tem a sua razão de existir. Se, de um lado, a finitude física é apenas passagem para a imortalidade do espírito que seguirá inexoravelmente sua jornada de aprendizado rumo à Luz, de outro, os conflitos são resultantes das dificuldades a serem aprimoradas e transformadas, sendo importante não esquecer que todos os problemas são mestres disfarçados a nos aperfeiçoar e exercitar o nosso melhor. É nessas horas que você adquire um novo olhar, se transforma e permite que uma nova pessoa saia da casca”. Comentei que a ambiência em torno de algumas pessoas ou lugares me eram desagradáveis, seja por transbordarem agressividade, seja por vício ou dor. Quis saber se ele também sentia assim. “Sem dúvida. Entretanto, se você traz a paz dentro de si, não haverá chance melhor para que seja exercitada. A flama de uma simples vela é capaz de iluminar o fundo do porão escuro. Muita gente não tem ideia do poder de uma palavra carinhosa ou de um abraço sincero em momentos de absolutas trevas. Ser bom onde todos são bons não exige esforço. A virtude reside em florescer no deserto”. Tínhamos esvaziado as canecas e era hora de voltar aos afazeres. Quando pensei que fôssemos levantar, ele surpreendeu e começou a falar. Seus olhos pareciam viajar ao infinito: “São quatro os pilares que sustentam a paz”. Deu uma pequena pausa e disse: “O primeiro é a lealdade ao seu próprio código de dignidade. A dignidade é o fino equilíbrio de atuar na esfera do bem e do justo, sem esquecer, no entanto, a compaixão por aqueles ainda aprisionados nas próprias sombras, para não descambar na viela limitada do moralismo, reduto da intolerância e do medo”. “O segundo pilar é a imortalidade do espírito. Entender que você é mais do que o seu corpo, porém a alma que o habita transitoriamente. Não só pela verdade que traz, mas por tornar a vida muita mais rica sob o aspecto filosófico. O prisma do olhar se modifica ao transferir a finitude da existência, que nos leva à dor e ao nada, pela evolução infinita do ser em processo contínuo de aprendizado e luz. A morte deixa de ser o abismo para se transformar em ponte”. Eu ainda tentava arrumar todos os pensamentos em minha mente, agora em ebulição, mas ele não deu pausa: “A terceira pilastra que sustenta a paz é aprender a abrir mão de ganhar sempre ou convencer o outro sobre a sua razão. Entender que cada um reage de acordo com o seu nível de consciência é agir com misericórdia diante dos distintos graus

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evolutivos que coabitam o planeta. Falamos as nossas verdades de maneira clara e tranquila e ouvimos as dos outros com serenidade e respeito. Cada qual tem a sua verdade, mas o tempo se encarregará de germinar a de melhor fruto. E, pode apostar, nem sempre será a sua. Assim, por vezes, perder pode ser melhor que ganhar”. “Preste muita atenção ao quarto alicerce da paz. A verdadeira paz nunca é concedida, pois o que é dado pode ser tomado. A infinita paz que ilumina a nossa alma – aquela que permite o mar sereno apesar da tempestade intensa – é construída com as ferramentas disponibilizadas pela sabedoria e pelo amor. As conquistas imateriais são eternas e inabaláveis. A paz é uma conquista, e você não a encontrará em nenhum lugar, salvo dentro de si”. “Sendo assim, fique em paz sempre, pois tudo, absolutamente tudo, que acontece em nossas vidas é para o nosso bem. Ainda que no primeiro momento possamos não compreender a mestria do Caminho, em razão de suas trilhas mágicas e subliminares. Só algum tempo depois, após muitos passos, costumamos entender a beleza das situações que lá trás pensávamos injustas, desnecessárias ou incoerentes. Se ainda não a entendemos é porque ainda não caminhamos o suficiente. Portanto, tenha paciência, esteja sempre disposto a aceitar as lições com humildade e a fazer o seu melhor com a mais pura alegria”. Deu uma pausa, se levantou, pegou o casaco e finalizou: “Ao sustentar os quatro pilares, ninguém ou coisa nenhuma será capaz de abalar a sua preciosa paz, pelo simples fato de ela ter se tornado inerente ao seu ser”.

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A LUZ DA VERDADE

Eu andava amuado pelos cantos do mosteiro. Evitava tarefas que precisasse conversar com os outros discípulos ou monges. Tudo me irritava. Ao perceber o meu estranhamento, o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, me convidou para um passeio no jardim. Enquanto ele puxava conversa, eu insistia em respostas monossilábicas, demostrando todo o meu mau humor. Em certo momento, o Velho falou: “Quanto mais iluminado é um espírito, mais bem-humorado é o seu comportamento. As esferas superiores, independente da forma como você as conceba, são revestidas em ambiente alegre. Ao contrário do que muitos intelectuais imaginam, não existe sabedoria na irritação e na impaciência. A verdade é libertadora; assim, se torna fonte de infinita alegria e paz”. Neste instante eu parei de andar, olhei para o monge e lhe disse que essa era a questão do meu desânimo em relação à humanidade, pois a verdade de uma pessoa não era necessariamente a verdade da outra. Logo, eu não previa um final feliz para o mundo. O Velho sentou em um banco de madeira, como quem não tem pressa, antes de falar com sua voz suave: “A verdade é aparentemente instável, pois a consciência das pessoas está em constante evolução e diferentes níveis”. Interrompi sob a alegação de que ali estava o motivo de eternos conflitos. “Não”, rebateu o monge. “Exatamente neste ponto reside a inteligência cósmica. Ao impor a convivência entre aqueles que se encontram em distintos momentos evolutivos, permite que uns ensinem a outros. Ela nos torna alunos e professores em incessantes lições. Temos a oportunidade de vivenciar a beleza de compartilharmos amor e sabedoria através da convivência. À medida que o entendimento se amplia, as pessoas, cada uma em seu momento, começam a perceber a importância de bens imateriais em detrimento das riquezas aparentes; a valorização de sentimentos mais sublimes ao invés das emoções mais sensoriais. Aos poucos o amor mostra a sua grandeza diante do ódio; o perdão liberta da mágoa. Somente na beleza da transformação individual será possível modificar e alinhar o planeta”. Disse-lhe da minha agonia ao ver o mundo envolvido em tanta iniquidade e lutas insensatas por orgulho e vaidade. Em seguida enumerei diversas passagens aflitivas da atualidade. O monge ouviu as minhas queixas com enorme paciência até que eu me cansasse de falar. Depois falou: “O mundo está exatamente do jeito que deve estar, pois sempre vai refletir o exato grau de evolução intelectual, emocional e espiritual dos seus habitantes. Elefantes não voam”. Lembrei do Dumbo, o personagem da fábula cinematográfica do genial Walt Disney e não perdi a piada. O Velho não se fez de rogado, riu bastante e disse: “É verdade. Mas se você prestar atenção, aquele jovem elefantinho era repleto de bons sentimentos, bem acima da encontrada em sua espécie. Em um exercício absurdo de imaginação, poderíamos crer que seu grau elevado de evolução fez a diferença entre os seus, causa da transformação de orelhas em asas. Penso que conosco é igual, a percepção da verdade aperfeiçoa nossos sentimentos permitindo voos cada vez mais altos”. Insisti que a minha dúvida persistia sobre qual era a definitiva e libertadora verdade. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Já prestou atenção que as suas verdades de alguns anos antes já não são necessariamente as mesmas? Sabe por quê? Pelo simples fato de você não ser mais o mesmo. As verdades se ampliam na exata medida da nossa evolução. À proporção em que as verdades são decodificadas pelo consciente, enviadas e encaixadas definitivamente nas prateleiras dos sentimentos para uso interno, externo e

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eterno, ocorrem transformações no seu ser, pois o saber se incorpora ao sentir. Coração e mente no mesmo diapasão, como músicos de uma afinada orquestra.” “A verdade final reside em viver o amor sem limites. Isto é libertador, mas ainda difícil de entender e aceitar em nosso momento evolutivo. Já percebemos, mas ainda temos dificuldade em vivenciar a mais valiosa energia que existe no universo em sua forma incondicional. A sabedoria de entender que a grande batalha é travada dentro de nós, torna o incessante exercício de iluminar as próprias sombras um decisivo passo na busca da verdade. Todos conhecemos o amor e sabemos da sua importância como fonte de Luz; entretanto, ainda não conseguimos experimentá-lo em sua completa magnitude. Infelizmente ainda desperdiçamos a sua força. Uma pena, pois o amor é a matéria-prima essencial aos milagres, que nada mais são do que as transformações ocultas em nós”. Deu uma pequena pausa, sorriu com os olhos e finalizou: “Quanto mais amor, maior o poder. Esta é a verdade em toda a sua amplitude e simplicidade”.

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A VOZ DO CORAÇÃO

Encontrei Canção Estrelada – o xamã recebera este nome por causa do seu dom de preservar e semear a tradição do seu povo através da palavra, cantada ou não – trocando o couro do seu tambor de duas faces em frente à sua tenda. Eu tinha resolvido sair da cidade por um tempo, andava chateado com as duras críticas que os originais do meu último romance tinham recebido, a ponto de me levar a duvidar do meu próprio talento como escritor. Até tinha recebido alguns elogios; no entanto, as críticas foram ferozes e a tristeza me corroía as entranhas. Assim que o vi, derramei todas as minhas queixas. Do jeito que ele estava trabalhando, continuou e, sem levantar os olhos, falou: “Você não está sabendo dar a exata medida às opiniões alheias. Nem todo elogio é sincero nem toda crítica é justa”. Ele parou de encordoar o tambor por alguns instantes, me mirou nos olhos e falou com sua voz mansa e rouca: “Já lhe ensinei sobre o Portal Sul, penso que chegou a hora de falar sobre o Portal Oeste, onde mora o urso na Roda de Cura”. Mandou-me descansar e que fosse ao seu encontro quando “o Grande Mistério agasalhasse a Terra com seu manto de estrelas”. À noite encontrei o xamã sentado, sozinho, em frente a uma pequena fogueira. Convidoume para fumarmos juntos o seu inseparável cachimbo de fornilho de pedra. Após algumas baforadas em silêncio, falou: “A Roda de Cura é o símbolo sagrado que representa a vida de cada um nesta existência. A vida é o tratamento de cura do espírito. A cada lição aprendida ou ferida cicatrizada avançamos um aro na Roda”. Deu uma pausa e prosseguiu: “No lado Oeste da Roda, onde o sol se põe, fica o espaço sagrado do urso, a sua caverna, onde ele se retira para o sono invernal depois de experimentar todos os alimentos das demais estações”. Aguardei sem dizer palavra, pois não estava entendendo onde Canção Estrelada queria chegar. “O urso procura o silêncio da caverna para se aquietar e ficar um longo período digerindo tudo que comeu. Com a chegada da primavera, ele acorda mais forte para enfrentar e viver a vida. Esta é a lição e o poder do urso. Conosco não é diferente”. Insisti que continuava sem entender. Ele me olhou com sua enorme paciência e disse: “Cada vez mais as pessoas ouvem todas as vozes em detrimento das palavras do próprio coração. Escutam muito, mas entendem pouco. Percebo uma enorme busca por distração e divertimento, não que isto seja ruim, mas estão desaprendendo a ouvir a sua própria verdade, pois têm cada vez mais dificuldades em ficar apenas consigo, como se não entendessem que a solidão é um exercício necessário para escutar a voz do coração. Ou será que estão fugindo de encontrar consigo próprias? Por que temem tanto esse encontro?” Argumentei que ouvir é importante, pois aprendemos muito com os outros. “Sem dúvida, porém só você poderá escolher em qual direção seguir”, ele respondeu e continuou: “Para tanto, é necessário filtrar, depurar e contextualizar as vozes do mundo, sem esquecer que apenas você sabe e pode decidir sobre a própria vida. Não pode temer as suas escolhas, pois são os únicos apetrechos de que dispõe para o seu aperfeiçoamento, o que lhe diferencia e o torna único a exercer os dons que lhe pertencem. Seguir a manada não te fará escapar das responsabilidades que lhe cabem, apenas impedirá que floresça o que existe de melhor em você. Aqueles que caminham em beleza não podem abdicar da valiosa lição do urso, a busca por si próprio e o encontro com a sua verdade”.

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Perguntei-lhe como poderia vivenciar os ensinamentos do Portal Oeste. O xamã deu uma longa baforada, seus olhos pareciam perdidos nas estrelas. Ele falou: “São três passos. O primeiro é a introspecção. Na quietude e no silêncio, penetre no seu espaço sagrado em um mergulho profundo nas águas tranquilas da essência do seu ser. Estar apenas consigo é maravilhoso”. Observou-me por alguns instantes e perguntou: “Gosto de confraternizar com o meu povo, mas você consegue perceber a importância da solidão?”. A pergunta era apenas retórica, pois ele não esperou resposta e continuou a falar: “O segundo passo é ter a sabedoria de ouvir a própria voz para saber discernir entre a voz do ego e a voz da alma. Somente esta última te falará a verdade sobre o Caminho. Pois enquanto o ego te diz sobre as paixões, a alma te revelará todo o amor necessário. Acalme o ego, permita que a alma brilhe em toda a sua luz e encante-se!” Eu quis saber sobre o terceiro passo. Canção Estrelada falou: “Depois é estruturar toda a sua vida em função da verdade revelada. Não pense que será fácil, pois precisará de coragem e desapego para abandonar as velhas formas contidas em conceitos e comportamentos que não mais lhe servem, pois foram impostos por padrões culturais e sociais ou pelas expectativas que os outros têm sobre você. Ou, pior ainda, são limites impostos por quem não acredita em sua capacidade de criar e transformar o próprio ser e, por consequência, a vida. No entanto, ao final da introspecção invernal o urso está pronto para sair da caverna, ele se aperfeiçoou e afinou as suas escolhas no diapasão da própria verdade. Ele está consciente de sua capacidade e de seu talento. Nenhuma tempestade o impedirá de seguir em frente, pois ele traz consigo a força do Caminho. É o momento de revelar todo o seu poder e magia!” Ficamos olhando para o infinito sem dizer palavra por um tempo que não sei contar, até que Canção Estrelada rompeu o silêncio: “Entender os ciclos em que cada um de nós está sujeito é fundamental para viver com serenidade. Cada ciclo só se encerrará na medida em que estivermos aperfeiçoados e fortalecidos para o novo momento, assim como a borboleta só rompe o casulo quando suas asas estão maduras para alçar voo”. Quis saber como poderia aplicar todas aquelas palavras em meu atual momento profissional. “Você pode aprender com os outros, mas nunca permitir quem quer que seja de lhe abalar e furtar a paz. Se isto ainda acontecer, é porque você ainda não encontrou consigo nem amadureceu as asas para voar”. Comentei que desconfiava de que este era o meu caso. Canção Estrelada sorriu com os olhos e finalizou: “É hora de vestir a pele do urso, entrar na caverna para ter um importante encontro consigo próprio e buscar o precioso diamante que lhe aguarda”. Antes que eu perguntasse do que se tratava, ele concluiu: “As vozes do mundo comparam uns aos outros. Aprender a ouvir a voz do coração é descobrir a beleza de ser único”.

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SABEMOS MAIS DO QUE SOMOS

Mais um dia de trabalho se encerrava na pequena e secular cidade próxima à montanha que acolhe o mosteiro da Ordem. Apressei o passo na esperança de conseguir encontrar a oficina de Loureiro ainda aberta. Não que eu tivesse qualquer conserto a fazer, mas queria conversar um pouco com aquele amigo querido. Ao longe pude perceber a sua bicicleta ainda encostada ao poste de iluminação, sinal de que eu estava com sorte. O sapateiro, elegante como sempre no vestir e no agir, me recebeu com alegria e, para minha surpresa, estava com Sara, a Moreneta, como carinhosamente chamava a filha, uma belíssima e jovem mulher com longos cabelos negros, razão do apelido. Ela, que agora morava na capital, onde trabalhava e cursava o doutorado em prestigiosa universidade, tinha vindo passar uns dias com o pai. Muito meiga e educada disse que nos deixaria a sós para conversarmos e que o aguardaria mais tarde em casa. Loureiro me mostrou os novos livros de filosofia que a filha lhe trouxera de presente. A filosofia era a outra paixão do bom sapateiro. Ele me convidou para uma taça de vinho em uma silenciosa taverna próxima dali. Fomos a pé e, antes mesmo de chegarmos, lhe indaguei sobre a experiência de educar sozinho uma filha. “Sabemos mais do que somos. Todos temos conhecimentos que não conseguimos exercer. Então, a vida, em sua infinita inteligência, nos impõe conflitos e dificuldades para que entendamos a sua beleza e nos obrigue a vivenciá-los. Cabe a nós aproveitar as preciosas lições com alegre resignação”, falou de maneira a mostrar os alicerces do raciocínio que construiria. Sentados à mesa com duas taças de tinto, voltamos ao assunto. “Não somos o que pensamos ou o que falamos, mas o que fazemos. Nossas escolhas nos definem”. Deu uma pequena pausa antes de prosseguir: “Quando a mãe da Sara partiu em busca do seu sonho de ser atriz e me deixou com a responsabilidade de cuidar e educar uma menina ainda na infância, em um primeiro momento fiquei muito revoltado por me sentir traído e abandonado com a minha filha. O mais engraçado é que na época eu já tinha consolidado em minha mente todos os conceitos de respeito à liberdade alheia”. Interrompi sob o argumento de que toda liberdade traz a reboque uma dose exata de responsabilidade, e a mãe tinha o dever de também cuidar da Sara. “Sem dúvida”, respondeu o elegante sapateiro. “No entanto, não podemos ficar lamentosos, chatos, atados e dependentes das escolhas de ninguém. Eu já não tinha mesmo a responsabilidade sobre a criação da minha filha antes de ela partir? Era apenas uma questão de mudar o olhar, de adaptabilidade, de aprender a me adequar a uma situação diferente, de me obrigar a fechar um ciclo já ultrapassado e permitir que um novo se iniciasse”. Contestei dizendo que dividir a tarefa torna-a mais leve. “Mas não tão forte e sábio”, ele retrucou e logo explicou: “Sempre há ganhos, pode apostar. Aprendi tanto ou mais que nos livros de filosofia, ou melhor, fui levado a colocar em prática todo aquele conhecimento adquirido em milhares de páginas. Só assim fizeram sentido e permiti que o conhecimento se transformasse em sabedoria. Este talvez tenha sido o maior deles”. Eu quis que ele fosse mais específico. Loureiro bebeu um gole de vinho e disse: “Orientar um filho sobre o valor das boas virtudes é importantíssimo; dar o exemplo é indispensável. Assim é no convívio social quando o discurso se divorcia da prática, a boa palavra termina por perder o seu poder, como água pura a se derramar no chão para juntar lama”. Ficou alguns momentos em silêncio, me mirou nos olhos e prosseguiu: “De que adianta toda uma teoria de respeito à liberdade de opinião e escolhas dos outros, se a

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minha filha podia perceber a minha mágoa pela decisão da mãe em partir?”. O sapateiro estava visivelmente emocionado, talvez por lembranças de toda uma existência. Pensei em mudar de assunto, porém a sua voz estava serena como de costume. Ele continuou com seu jeito doce: “Entendi que evoluir nada mais é do que iluminar as próprias sombras. A mágoa pelo abandono precisava ser transmutada em respeito pelo sonho da mãe da Sara em decidir o que lhe cabia sobre a própria vida, ainda que eu discordasse totalmente. Minha filha poderia crescer em uma casa em que ouviria que sua mãe era louca e irresponsável ou em um lar harmonioso onde entendesse a mãe por abdicar de coisas importantes em busca do seu sonho e a respeitasse por isto. Havia pelo menos dois olhares sobre a questão: o que alimentaria as sombras ou o que iluminaria o amanhã de nós três. Percebe que a gente sempre tem uma escolha? Apenas assim foi possível para a minha filha entender o verdadeiro valor e respeito pela liberdade que está contido na escolha do outro, crescendo sem ressentimentos ou distribuição de culpas a esmo. E por isto, e graças a isto, eu aprendi o quanto a vida é sagrada, ao nos impulsionar ao exercício do amor mais puro e da sabedoria mais límpida através de trilhas que muitas vezes só vamos entender bastante tempo depois. Foram lições valiosas sobre bom senso, tolerância e paciência, a esperar pelo doce fruto da árdua semeadura, pois a vida tem o seu próprio tempo de amadurecimento de todas as coisas. Os nossos relacionamentos e o convívio social são os adubos do jardim a fomentar a prática da teoria que sabemos e ainda não praticamos, como a semente que precisa da pressão da terra para estourar e germinar. Assim, Sara se tornou uma bela e preciosa flor”. Concordei com ele sobre o valor de termos as melhores atitudes para corroborar as boas palavras, pois do contrário teremos uma sociedade de descrentes nas virtudes humanas, justo aquelas que elevam e dão sentido à existência. Ele me observava em total silêncio e, quando me calei, falou: “Sim, mas vamos com calma. Toda tribo tem a fama na justa medida do comportamento dos seus habitantes, o que apenas nos mostra o atual estágio e ensina que apenas haverá evolução no compasso das transformações íntimas de cada cidadão. Não existe outra maneira de mudar a realidade de um povo”, bebeu o último gole de vinho, concordamos em pedir mais uma taça para cada um e ele continuou: “Como lhe disse, sabemos mais do que somos”, e passou à conclusão da premissa do início da conversa: “Penso que esse processo é natural, mas precisa ser consciente. Na teoria, todos somos bons e do bem; na prática, nem tanto. Seja eu, seja você. A mente vai sedimentando os valores que precisamos aprender e, aos poucos, insiste para que o coração os vivencie. Começamos aos poucos, abdicando de certos vícios comportamentais por concordar que eles estão distantes do bem; assim praticamos as boas ações em obediência à consciência, por imposição do raciocínio. Devagar começamos a modificar as nossas atitudes por mergulhar em novo padrão vibracional modificados pela luz do novo jeito de agir. As virtudes, então, passam aos poucos a se tornar inerentes e indissociáveis do nosso novo ser, a integrar definitivamente a alma. O bem não precisa mais do ‘pensar’ por, agora, fazer parte do ‘sentir’. A sabedoria se transformou em amor e migrou da mente para o coração”. O garçom trouxe novas taças cheias de vinho. Ele propôs um brinde: “A todas as transformações oferecidas pelas generosas lições do Caminho! ”. Com os olhos mareados, finalizou em tom muito baixo, quase como segredasse consigo mesmo: “As dificuldades são as ferramentas que nos obrigam e ensinam a construir as pontes sobre os abismos da existência. Só então nos habilitamos a prosseguir a viagem”.

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Continuamos a conversar sobre a magia da vida e suas fantásticas revelações, por um tempo que não sei precisar, até que fomos gentilmente convidados a ir embora. A taberna precisava fechar.

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A OUTRA FACE

Profundamente irritado, fui me sentar no final da enorme mesa em que todos juntos, discípulos e monges, fazem as suas refeições no mosteiro. No pátio, há pouco, eu tinha tido uma séria discussão com outro jovem discípulo. O Velho, como chamávamos carinhosamente o decano da Ordem, me observou por alguns momentos, mas me deixou quieto durante o almoço. Após todos se retirarem em silêncio, o velho monge se aproximou e me convidou para um passeio no jardim. Antes que ele perguntasse qualquer coisa, desfiei toda a minha indignação em relação ao colega que tinha sido bastante severo em suas críticas para comigo. Uma mãe tinha nos procurado em busca de apoio emocional e espiritual pela razão da imensurável dor de ter perdido um filho. Orientei-a para que se dirigisse ao orfanato mantido por nossa irmandade na pequena cidade, ao sopé da montanha que abriga o mosteiro, a fim de que lá servisse voluntariamente por duas semanas e, somente então, nos procurasse para conversar. A minha intenção, expliquei de pronto ao monge, era que essa mãe entendesse que sempre existem dificuldades maiores que as nossas, mas que também, ali poderia ser um bom depositário para o amor que ela tinha no coração. Transferir o eixo do sentimento que nutria pelo filho que partiu para as crianças que não tinham pai e mãe, iria arrefecer a sua dor, dar sentido à vida e iluminar seus passos. Quando retornasse para conversar conosco, estaria mais receptiva para ouvir as palavras que lhe acalentariam e explicariam as Leis Não Escritas do Caminho. No entanto, o outro discípulo me recriminou. Na sua opinião eu tinha sido insensível em não disponibilizar mais tempo para consolar a mãe no momento em que ela mais precisava, pois uma boa palavra tem o poder de estancar a dor que sangra. Este era o conflito e o motivo da discussão. Indaguei se eu estava errado. “Não”, respondeu o Velho. De imediato perguntei se ele chamaria o outro discípulo para uma conversa séria, seguida da devida repreensão e pedidos de desculpas. “Não”, tornou a falar o monge. Como assim? Um erro não tinha que ser reparado? Não somos responsáveis por nossos atos? Saraivei o Velho com perguntas repletas de indignação. O monge me mirou com seus belos olhos, brilhantes de compaixão, emoldurados em pele vincada pelo tempo e pela luta, antes de dizer: “Quando duas pessoas discutem, ambas podem ter razão. Nesse caso, não havia solução errada e qualquer das duas medidas seria acertada”. Aleguei que a verdade era única. Ele discordou: “A verdade se aproxima de acordo com o nível de consciência das pessoas, alterando, por causa e consequência, a sua sensibilidade em relação ao sentimento do mundo. Muito do que foi absoluto para você há anos hoje não é mais revestido de convicção. A verdade é una, entretanto, o seu real entendimento ocorre de mansinho, aos poucos, na medida de cada passo no Caminho”. “No mais”, prosseguiu, “não devemos tomar partido ou escolher um lado nas desavenças. Ao invés de alimentar a separatividade, há que se fomentar a união. Afinal, não foi assim que Francisco nos ensinou em sua bela oração? Não basta saber, é indispensável viver o conhecimento. Só assim ele se torna sabedoria”. Argumentei que todos devem se posicionar diante do certo ou do errado, para que o mundo encontre definitivamente o seu trilho. O monge me respondeu com sua enorme

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paciência: “Eu me posiciono toda vez que a escolha cabe a mim, ou seja, na minha hora de atuar no palco da vida, nas decisões que me são inerentes e não funcionando como juiz planetário, onde apenas insuflarei, em ato repleto de leviandade ou arrogância, os ânimos já exaltados. Acredite, assim nascem as guerras”. “Aproveite a oportunidade de oferecer a outra face. Aliás, a expressão ‘se alguém lhe bater na face direita, ofereça também a outra’ tem diversas e bonitas interpretações. A minha, e humildemente aceito que existam outras mais completas, é que antes de mais nada é um hino à não violência; uma orientação clara para não reagirmos no mesmo tom, não devolvermos na mesma moeda, nos negarmos a vibrar na mesma sintonia, enfim, recusarmos o convite para dançar no baile das trevas. É uma lição de compaixão e misericórdia, é a clara e simples opção de que a paz é construída dentro de mim, e apenas a sustentando em meu coração, ela se tornará planetária”. “Oferecer a outra face significa, também, olhar com os olhos do outro, ou seja, se colocar no lugar do outro, observar de acordo com o ponto de vista dele e respectiva capacidade de compreensão, uma vez que ele tem as suas próprias vivências e histórias, repletas de condicionamentos sociais e culturais. Isto pode gerar um grande aprendizado ao percebermos que o outro já é capaz de ver além do que fomos capazes de enxergar até agora ou, por outro lado, um belo exercício de paciência e tolerância ao entender limites e dificuldades alheias, tal e qual nós em passado recente ou com as nossas próprias sombras. Uma sábia e bonita maneira de amar”. A minha indignação não cedia. Reclamei com o Velho que a sensação de incompreensão e, até mesmo, de injustiça me corroía as entranhas como um veneno amargo, pois minhas atitudes com aquela mãe foram revestidas dos meus melhores sentimentos. Argumentei, mais uma vez, que eu apenas a estava preparando emocionalmente para ter condições de entender as palavras que lhe acalentariam o coração. A resposta do monge veio revestida por sua voz suave: “Temos que respeitar o direito de opinião alheia, principalmente quando contrária à nossa. Da mesma forma devemos expor as nossas ideias de maneira clara e serena, sem a preocupação por aplausos e aprovação. Nos concentremos, apenas, em fazer a parte o que nos cabe da melhor maneira. As contradições fazem parte deste mundo, pois são as alavancas que impulsionam o aprendizado; nos impõem a reflexão; é o espelho que mostra o que não mais nos serve por se mostrar inadequado e, assim, transformado em nosso íntimo”. Silenciou-se por segundos e falou: “No entanto, o que mais me chama a atenção é outra coisa”. Esta última observação me deixou apreensivo. “A opinião dos outros não pode ter o poder de lhe roubar a paz. Lembre-se de que as pessoas só têm sobre nós o poder que concedemos a elas. Portanto, não permita que nada nem ninguém tenha sobre você a capacidade de lhe impedir o próprio voo. Se mais adiante entender que está errado, corrija e repare na medida das possibilidades, visto que somos responsáveis por nossos atos, transmutando o orgulho e a vaidade, para que estas sombras não atrapalhem mais. Caso esteja certo, se lance às alturas, impulsionado pelas asas da compaixão, na certeza de que todos, cedo ou tarde, alcançarão a próxima estação do Caminho. A paz é um instrumento poderoso que se aprende a afinar no âmago do ser e indispensável para que você possa dançar a alegre melodia da grande sinfonia do universo”. O monge se levantou e pediu para que eu meditasse sobre o assunto. Antes de sair, o Velho, que tinha dado apenas uns três ou quatro passos, virou-se e disse: “Quase esqueço

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o mais importante”. Silenciou-se por alguns instantes para finalizar com sua voz doce. “Assim que possível, se reconcilie com aquele que te magoou. É uma bela chance de vivenciar duas das oito bem-aventuranças, os oito portais do Caminho: a de ser pacífico e pacificador. Pense nisto”. Naquela mesma noite, fui ao encontro do outro aprendiz. Conversamos até tarde e nos entendemos. Passados muitos anos, sedimentamos uma sincera amizade e nos tornamos grandes amigos, realizando bons trabalhos juntos. Hoje, assim como eu, ele se tornou monge da Ordem e nos divertimos muitos ao lembrar episódios como este. Desta pequena história, duas coisas nos chamam a atenção: como, dependendo do nível de consciência dos envolvidos, ainda existe a necessidade do conflito para se alcançar a harmonia, sendo esta sempre possível quando existe o amor em forma de tolerância e compaixão, além de sabedoria para evoluir e transformar. Chegará a hora em que essa via, o conflito, não será mais necessária para o entendimento. A outra foi a atuação do saudoso Velho como pacificador, degrau mais alto entre os portais do Caminho, uma bela lição oferecida pelo mais fino exemplo. Passados tantos anos, fecho os olhos e o vejo cantarolando a poesia de Francisco: “... fazei-me instrumento de vossa paz ...”

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O MERCADOR DE SONHOS

Era noite alta e eu não conseguia dormir. Resolvi sair da tenda e encontrei Canção Estrelada – o xamã que recebera esse nome pelo seu dom de compartilhar a sabedoria nativa através de suas histórias, cantadas ou não – fumando seu inconfundível cachimbo de fornilho de pedra. Pedi permissão para sentar ao seu lado e lamentei que vinha com dificuldades para pegar no sono. Ele me olhou com seu jeito sereno, deu uma longa baforada e disse: “Você precisa ter uma conversa séria com o Mercador de Sonhos”. Claro que não entendi o que ele falava e pedi para que fosse mais claro. “Você sabe por que os índios pintam o rosto quando vão a um cerimonial ou quando antigamente iam à guerra?”, a sua pergunta tornava tudo ainda mais confuso em minha mente. Diante da minha negativa, ele falou: “As pinturas não são aleatórias ou estéticas, mas revelam, de acordo com as cores e os traços, a magia de cada um”. Magia? Quis saber a que se referia com este termo. “Todos, sem exceção, temos nossos dons e talentos que devemos usar com criatividade. A sua magia é o que lhe torna especial. Ela pode se expressar de diversas maneiras seja pelo dom da sabedoria através do talento de ensinar, da compaixão para acolher os necessitados, da verdade para semear a justiça, da coragem para oferecer segurança, da sensibilidade para ajudar a aflorar os sentimentos. Enfim, são inúmeros dons e talentos que se manifestam na essência de cada pessoa, que refletem na maneira como ela caminhará em beleza, semeando os bons frutos por onde passar. É a espada do guerreiro, como os ancestrais metaforicamente falavam. Isso tem que ser aplicado em seu trabalho ou profissão, pois quando o guerreiro não usa a sua espada, ela enferruja e ele se torna amargo”. Disse-lhe que suas palavras eram belas e sábias, mas não entendia onde se aplicavam às minhas noites insones. “Não raro vendemos nossos sonhos ao Mercador”. Falei que entendia menos ainda agora. Ele me mirou no fundo dos olhos e disse: “Muitas vezes desistimos dos nossos sonhos, local onde habitam nossos dons e talentos, em prol do que denominamos, por equívoco, de objetividade ou pragmatismo. Pela necessidade de sustento, ambição ou medo, ao invés de viver o nosso sonho através de uma profissão na qual poderíamos exercê-lo, o oferecemos ao Mercador em troca de um trabalho mais rentável, que nos trará conforto rapidamente. A princípio o dinheiro trará boas sensações e lhe fará esquecer o sonho; ou mesmo lhe dirá que sonhar é coisa de criança. Assim, você passa a usar máscaras ou a viver personagens na ilusão de que conseguirá ser feliz. Sabe por que as crianças são tão alegres? É porque elas são autênticas e acreditam em seus sonhos. Quer entristecer uma criança? Roube-lhe os melhores sonhos”. Canção Estrelada se calou por alguns momentos e ficou observando as estrelas como se pedisse as melhores palavras. Deu mais uma baforada e prosseguiu: “Só que os sonhos nunca morrem. À noite, quando você fechar os olhos para encontrar consigo mesmo, seus dons e talentos virão te chamar para dançar ou te lembrarão que você abandonou o que tinha de melhor dentro de si. Então, fica difícil dormir”. “Seu dom é o barco que te ajudará a navegar os mares desta existência; seu talento é o leme a direcioná-lo para o cais dourado da plenitude. Portanto, abdicar deles é ficar à deriva nas tempestades e perder de vista a estrela que te guia”, explicou. “Para voltar a dormir é necessário negociar com o Mercador para que você tenha seus sonhos de volta”, concluiu.

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Eu refleti por alguns momentos e lhe disse que talvez reconhecesse algumas pessoas que já tivessem negociado com o Mercador de Sonhos. Sabia de um operador do mercado financeiro que largou a fortuna e a correria da Bolsa de Valores para ser cozinheiro em um restaurante numa pequena cidade do interior; um médico que virou artista plástico; um guitarrista que abandonou os palcos e a fama para estudar Direito e se tornar um bom juiz. “Não existe certo ou errado. Existem apenas os sonhos”, ele me interrompeu. Perguntei como entender esse processo. “Tudo começa com uma grande insatisfação em relação ao mundo, onde tudo parece errado. Nesse momento costumamos ficar deprimidos, chatos e lamentosos. Na verdade, o mundo é apenas o espelho das pessoas que o habitam e nós fazemos parte da tribo dessa grande aldeia planetária; ele se ilumina ou escurece na medida da luz que temos no olhar. Como a única maneira de mudar a vida é mudarmos a nós mesmos, surge o embrião da transformação. Assim como a cobra troca de pele para seguir maior e mais forte, nasce a necessidade de abandonarmos em nós o que não nos serve mais e dar lugar ao novo que precisar nascer. Isto vai se refletir tanto na sua aparência quanto no seu comportamento. O fato de expressar livremente todos os seus anseios, sentimentos e ideias com criatividade, tem um grande poder de cura. Lembre-se de que viver nada mais é do que um exercício de aperfeiçoamento do ser. Logo, viver é curar a si próprio”. “Transformar-se é fundamental. Exercitar seus dons e talentos é usufruir de todas as magias que o Grande Mistério lhe ofereceu. Abandonar isso é abdicar do seu poder e renunciar à plenitude do ser”. Questionei ao bom ancião como faria para reiniciar o meu processo. “ É indispensável viajar em busca da sua essência para entender as suas reais necessidades e identificar os seus verdadeiros dons e talentos. É comum confundir a nossa magia com os nossos desejos por brilho e reconhecimento, frutos da insegurança e vaidade, sementes do medo. Se isto acontecer, o Mercador não negociará contigo, até porque ele não terá nada para te entregar”. Perguntei como eu reconheceria a minha verdadeira magia. “Ela está à flor da pele. Ela faz teus olhos brilharem, faz com que esqueça o cansaço e trabalhe por puro prazer. Embora precise aprender técnicas para se desenvolver melhor, você terá sempre a sensação de que já nasceu sabendo fazer aquilo. Verá toda a sua criatividade florescer e embelezar a vida de quem lhe cruzar o Caminho, pois os seus melhores sentimentos e pensamentos serão inerentes a sua nova arte ou ofício. Você não terá dúvida quando estiver face a face com a sua magia”. Indaguei se poderia acontecer de o Mercador se recusar a me devolver o meu sonho. “Ninguém pode tudo. Todos estamos sujeitos as Leis Não Escritas. Ainda que por absurdo o Mercador se negar a lhe devolver o que é seu, será porque ele duvida das suas boas intenções. Nesse caso, ofereça o seu compromisso de usar a sua magia com dignidade para espalhar a alegria a toda a gente e por onde você andar. Assim, o poder retornará a você com a força que tinha quando era criança. Use-o para iluminar o mundo!”

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EU PRECISO DISSO?

Era um jovem e promissor advogado. Tinha aproveitado uns poucos dias de folga para se aconselhar com o Velho, de quem ouvira falar. Enquanto eu o encaminhava para a sala onde haveria o encontro, tentei lhe mostrar a beleza de nosso mosteiro, suas colunas trabalhadas e paredes seculares, nas quais há muito se ancorava a paz do silêncio, das orações, dos estudos e do serviço de benemerência. Porém, ele tinha pressa. Interrompeu a história que eu narrava sobre a abadia, para comentar sobre a importância dos processos em que atuava e sobre seus feitos nos tribunais, em que dobrava o convencimento dos juízes pelo peso de sua inteligência. Tinha urgência em encontrar logo o Velho, uma vez que trabalhos de sumo valor o aguardavam. No entanto, antes que chegássemos ao local onde o velho monge gostava de receber as pessoas para conversar, o encontramos no jardim interno do mosteiro se distraindo com algumas plantas. O rapaz foi recebido com sincera alegria pelo ancião, como de costume, embora não o conhecesse. Imediatamente o advogado começou a falar sobre uma ação que movia contra uma poderosa multinacional que lhe renderia milhões em honorários. Explicou que teria de peticionar neste processo até o dia seguinte e pediu que fossem direto ao motivo de sua visita. “Dinheiro é uma ferramenta importante, pode-se fazer muita coisa boa com ele. Assim como a sua profissão, na luta por um equilíbrio e entendimento entre as pessoas. Use-as com sabedoria”, limitou-se a comentar o monge. Em seguida perguntou ao rapaz: “Posso lhe ajudar em algo?” A resposta foi a ansiedade e o estresse. Contou que em razão disso já havia sido internado por problemas cardíacos, tinha dificuldade em seus relacionamentos afetivos e não conseguia dormir sem a ajuda de ansiolíticos. No entanto, acreditava ser o preço do sucesso. “Quem lhe recomendou a visita ao mosteiro?”, perguntou o monge. O advogado respondeu que foi um tio chamado Jonas, um humilde marceneiro que lhe visitou quando esteve convalescendo no hospital. Deixou escapar, com uma ponta de vergonha, que foi a única visita movida apenas por carinho, despida de qualquer outro interesse. “Você é sobrinho do Jonas?”, alegrou-se o Velho. “Tenho muito respeito e admiração pelo seu tio. Toda vez que uma criança entra no orfanato da cidade, ele constrói e doa um berço para o pequenino. Usa seus dons e talentos com o coração. Gosto muito de estar e conversar com ele”. O jovem retrucou, pois entendia que o tio deveria concentrar seus esforços para sair da vida simples que levava. Comprar uma casa maior, montar uma oficina mais moderna. Não tinha que se preocupar com problemas que não eram seus. O Velho arqueou os lábios em breve sorriso e disse: “Deve ser triste não ter com quem se preocupar. Jonas é um homem feliz”. O advogado riu e disse que o tio era um irresponsável. O Velho o mirou com seus olhos repletos de compaixão e perguntou: “Ele precisa disso?” A pergunta era apenas retórica e se referia ao estilo de vida e aos bens que o sobrinho acreditava que Jonas deveria perseguir. Antes que o rapaz pensasse em responder, o convidou para sentar ao seu lado em um banco de pedra, à sombra de uma enorme roseira. Em seguida comentou: “Ganhar o pão de cada dia com dignidade é sagrado, assim como é legítimo e louvável o esforço para uma vida confortável. Todos temos necessidades básicas de alimentação, moradia, educação e saúde”. A brisa leve da tarde tornava o jardim ainda mais agradável. O Velho continuou: “O problema é que desde sempre a

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humanidade parece não estar satisfeita e saciada com o que tem e, então, continua sua busca desesperada para ter mais. Não sabe impor limites a si mesma. Isto traz, de imediato dois problemas. O primeiro é que as pessoas se tornam eternamente insatisfeitas, alimentando um ego já gordo e cada vez mais voraz que se agiganta nas sombras da vaidade e da ganância. A outra, é que acaba sobrando pouco tempo para pensar e exercitar as questões primordiais do ser, onde se adquirem as verdadeiras riquezas”. O jovem, brilhante por ofício nas técnicas da argumentação e contestação, rebateu que conhecia aquele velho discurso, mas que na verdade o mundo só respeitava e reverenciava as pessoas poderosas e, para tanto, quanto maior a fortuna, mais consideração lhe renderiam e, no uso deste poder, poderia melhor contribuir para a caridade no futuro. O monge sorriu com os olhos e disse: “Penso que talvez você esteja equivocado na escolha das pessoas a que dá valor e considera importantes. Sem dúvida que o dinheiro pode ser um instrumento poderoso para a realização do bem, mas se torna desastroso quando tem por finalidade alimentar o orgulho. Assim, como um martelo, a sua escolha é que definirá se será usado para a construção ou demolição” e prosseguiu: “Ao contrário do que muitos pensam, a melhor compaixão não carece de dinheiro, mas de sabermos priorizar nosso tempo, sentimento e interesse. Você pode cuidar da sua arte ou ofício com mestria enquanto interage com o mundo oferecendo o seu coração. Assim como o Jonas”. O jovem argumentou com argúcia que as pessoas são diferentes. Assim, distintos são os conceitos, os objetivos e as necessidades de conforto. Questionou até onde era legítimo se concentrar somente em seus objetivos antes de pensar em ajudar aos outros. O monge disse com sua voz mansa: “Sim, cada qual é único e nisto reside a fortuna da vida. Existe um mantra valioso que qualquer um pode recitar nessas horas: ‘Eu preciso disso?’ Temos que nos questionar sobre os verdadeiros limites da própria necessidade. Quanto mais estreito for o limite do ego, mais amplas serão as fronteiras da alma. Acredite, as prioridades mudam na medida em que o nível de consciência se transforma. Questiono a luta insana por carros mais potentes em centros urbanos engarrafados e, que, ao final, levarão apenas o corpo, pois a alma, muitas vezes, não foi a lugar nenhum. Ou casas cada vez mais luxuosas em bairros exclusivos, ao custo de montanhas de dinheiro, ou mesmo dívidas, como símbolos de ostentação, status e, ironicamente, isolamento. Não raro encontro com pessoas na busca frenética por mais roupas, sapatos e relógios. Será que nunca se perguntam ‘Eu preciso disso?’” O advogado balançava a cabeça em negação e seus olhos transbordavam ironia. O monge nem de longe pareceu ofendido e continuou com sua fala mansa: “Quantas vezes você adiou uma reunião de negócios pela atenção a um filho que precisa de tempo ao seu lado e de seus conselhos para lhe indicar os bons trilhos da vida, serenando seu coraçãozinho ao sentir uma mão forte a lhe apoiar? Qual foi a última vez que foi levar um pouco de carinho aos seus pais ou desmarcou um compromisso profissional para ouvir um amigo em dificuldade?”. Com a expressão simples que lhe era peculiar, o Velho tornou a perguntar: “Do que você realmente precisa, filho? Esta resposta vai revelar seu atual nível de consciência e definir as alegrias e os sofrimentos que lhe acompanharão no Caminho”. O jovem tornou a explicar, como se falasse para um ancião ingênuo, que trabalhava muito e, em troca, precisava presentear a si próprio atendendo a alguns desejos. O Velho respondeu de imediato: “As sociedades se movimentam inconscientemente, distraindo a nossa atenção para as questões primordiais do ser. Vejo pessoas que até para relaxar criam um monte de lugares a que supostamente não podem deixar de ir, como rota de fuga, lhes

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furtando o precioso encontro consigo mesmo. Já parou para pensar o que nos leva a fugir de nós mesmos?”, deu uma pequena pausa e concluiu: “Entendo a vontade de nos acarinhar após uma dura batalha. No entanto, podemos presentear o ego ou a alma. E as consequências são um brilho forte de curta duração, logo acompanhado de um grande vazio, ou uma estranha e infinita luz a lhe dar a sensação do todo”. O jovem advogado sorriu, balançou levemente a cabeça como se ouvisse um louco e se levantou. Educadamente agradeceu ao monge pelo seu tempo, mas lamentou que a visita não o ajudaria. Confessou, com uma ponta de sarcasmo, que esperava ouvir uma revelação secreta sobre os mistérios da vida. O monge se levantou e abraçou o rapaz. Depois lhe falou com mansidão: “O que muitos chamam de mistério, nada mais é do que as lições que negamos. Então, nos aprisionamos em um ciclo até que cada um o decodifique para si. Isto pode trazer sofrimento. Porém, a vida floresce pela alegria das almas e disponibiliza a mais fina sabedoria para todos, sem privilégio ou distinção. Está no ar, no silêncio, nos sorrisos e abraços. Basta que se preste atenção e tenha a ousadia de pensar diferente. Nada será mais revolucionário do que colocar o mais puro amor na ponta de cada escolha ao se perguntar ‘Eu preciso disso?’” Eu quis acompanhar o rapaz até os portões do mosteiro, mas ele me dispensou e partiu. A sós, o Velho comentou com doçura: “Um dia ele volta”. Eu quis saber se o advogado retornaria ao mosteiro. “Volta para o seu próprio coração. Não poderá fugir dele por toda a eternidade. Em algum momento terá que refazer as suas prioridades. Suas necessidades mudarão quando se cansar do vazio, do deserto e do abandono”. Olhou para as primeiras estrelas que começavam a enfeitar a noite e finalizou: “Quem você pensa ter encontrado a paz, o jovem, rico e talentoso advogado ou o tio carpinteiro, humilde e misericordioso?” Apenas abaixei os olhos como resposta. Em seguida lhe ofereci um chá. Ele me olhou sério e mantrou: “Eu preciso disso?”, para em seguida piscar o olho e falar com seu jeito gaiato: “Muito!” Rimos e seguimos para o refeitório.

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NINGUÉM SOFRE POR AMOR

Era aquela hora indefinida em que não sabemos se é dia ou noite. Algumas lojas já começavam a se preparar para fechar. Apressei o passo pelas estreitas e sinuosas ruas da secular cidade próxima à montanha que acolhe o mosteiro da Ordem. Queria encontrar a oficina de Loureiro ainda aberta para convidá-lo a beber uma taça e conversar. O elegante sapateiro era amante dos livros e dos vinhos. Filosofia e os tintos eram a sua preferência. A sua antiga bicicleta encostada no poste em frente era sinal de que eu estava com sorte. Quando entrei na loja quase esbarrei com uma bela jovem que saía. Percebi suas feições tristes e os olhos avermelhados de chorar. Fui recebido com a alegria de sempre. Loureiro era um príncipe, seu reino era a nobreza no trato pessoal com toda a gente, a elegância dos gestos e do pensamento. Ele costumava dizer que “É preciso iluminar os passos e não empurrar para o abismo. A hora e a maneira de usar as palavras é uma mestria”. Sem que eu precisasse perguntar, me disse que a moça era sua sobrinha e tinha vindo conversar sobre a recente separação. A moça estava inconsolável. Seguimos para a taberna, e depois do primeiro gole, comentei o fato de as pessoas se abrirem tanto com ele. “Talvez por eu nada perguntar. Acho que isto as deixa à vontade para falar”. Conversamos um pouco sobre o motivo de os relacionamentos afetivos causarem tanto sofrimento. Aproveitei para falar sobre algo que me intrigava: se o amor é algo tão bom, por que este precioso sentimento causa tanta tristeza? O sapateiro se mostrou logo disposto a enfrentar a questão: “Antes de tudo, se faz necessário entender o amor. Sem nenhuma dúvida o amor é a força mais poderosa do universo, a energia que move e transforma o viajante para as próximas estações do Caminho. O amor é a matéria prima dos milagres desde o início dos tempos, a argamassa que une as pessoas, envolve os mais puros encontros, alimenta a humanidade em suas ceias espirituais. É o sentido da vida. Logo, que fique bem claro: ninguém sofre ou mata por amor”. Brinquei com o bom sapateiro para que tivesse cuidado, pois seria apedrejado pelos amantes e defenestrado pelos poetas. “Sei que se sofre muito em razão de separações afetivas, mas não é por amor. O verdadeiro amor é aliado inseparável da liberdade; diria até que o amor são as asas da liberdade. Ele, o amor, respeita a escolha do outro em partir ou não querer mais manter o relacionamento. ‘Ah, eu gostava tanto dela’... Continue gostando, admirando, mas entenda que ninguém é dono de ninguém. Uma alma não pode ser proprietária de outra. Não existe qualquer tipo de dominação no amor verdadeiro. Não se pode celebrar um casamento como quem outorga uma escritura de compra. Tem tudo para dar errado. Dessa maneira, o sofrimento, em verdade, nasce do apego ilegítimo de desejar ter o que não pode ser possuído. Não se justifica o cerceamento da liberdade de alguém em função dos medos e desejos de outra pessoa. O descuido e a ignorância em permitir a manifestação em seu coração de emoções de baixa vibração como o ciúme, a inveja, o orgulho e a vaidade são as reais e únicas razões do sofrimento. No entanto, essas sombras, sempre sorrateiras e disfarçadas, se eximem da responsabilidade e a atribuem injustamente ao amor. Há milênios se condena o amor por crimes que ele nunca cometeu. E nós continuamos a acreditar na mentira, desperdiçando a beleza e a grandeza do amor”.

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Argumentei que os jornais, todos dias, narram crimes passionais cometidos por amantes inconsoláveis. Loureiro balançou a cabeça como quem diz que está tudo errado e falou: “Ciúme não é amor. Mata-se por ciúme, nunca por amor. São sentimentos antagônicos. Já ouvi, muitas vezes, a seguinte frase: ‘quem ama tem ciúme’. Uma mentira. E uma mentira repetida mil vezes ganha força de verdade, o que é lamentável, por induzir as pessoas ao erro”. Retruquei que o ciúme era inerente à natureza humana. “Sim, isso é verdade. Ciúmes, inveja, orgulho, vaidade, medo estão entre as outras emoções que compõem as sombras escondidas no âmago de todos nós. Transmutá-las é a grande batalha. Há quem sinta ciúme e mate; há quem sinta ciúme, pegue o violão e faça uma canção. Enquanto uns permitem que as sombras se tornem senhoras de si, a dominar e iludir as suas vontades; outros as iluminam, modificando para sempre a sua antiga condição. Percebe que, enquanto um enveredou pelas raias da insanidade e do crime, o outro confeccionou uma bela obra de arte? Ambos tinham o mesmo sentimento como matéria-prima. Mas fizeram escolhas diferentes. Por quê? Nível de consciência é a resposta. E somente a compreensão das infinitas possibilidades do amor sustenta e expande as fronteiras da sabedoria, a nos levar às Terras Altas da Plenitude”. “É necessário entender que a Lei da Afinidade é que rege a aproximação entre as pessoas. Uma frequência energética de sentimentos e pensamentos vibrando em faixas similares as atrai. Isto pode durar um dia ou séculos. Então, deixar ir ou você próprio partir quando sentir que ligações não se sustentam na intensidade necessária, significa que já estão em pontos diferentes do Caminho. Respeitar as escolhas é entender a viagem. É sábio, é um ato de amor. Isto nos liberta para novas histórias e para um novo ciclo. Separações não são perdas; são oportunidades”. Eu quis saber onde costumamos errar, onde nos perdemos. De pronto o artesão me respondeu: “Para começar costumamos focar na exigência em sermos amados ao invés de amarmos sem qualquer exigência, invertendo a lógica natural do amor, que precisa da renúncia para se espraiar e brilhar em toda a sua amplitude. Só temos aquilo que doamos com o coração, com pureza e sinceridade, sem apegos, condições ou tributos. Mas reparo as pessoas fazerem uma espécie de ‘livro-caixa do afeto’, onde anotam créditos e débitos na ilusão de auferir lucros ou, na pior das hipóteses, zerar a conta. Ora, isto nunca foi amor”. Loureiro bebeu mais um gole do tinto e se aprofundou: “Outro motivo, bem comum, é transferir ao outro a responsabilidade por fazê-lo feliz nas relações afetivas. É como mandar o outro fazer um trabalho que lhe cabe. Você apenas encontrará a felicidade dentro de si, em processo de autoconhecimento, de cura pela verdade, de transmutação das velhas formas do pensar e agir. Esta construção é pessoal e intransferível. Depositar no outro a obrigação de te fazer feliz? Tudo errado de novo. Puro medo de enfrentar as batalhas de aprimoramento e evolução que devem ser travadas consigo mesmo, entre o ego e a alma: sombra e luz. O amor exige doação, jamais cobrança. Em geral, por infeliz ironia, cobra-se muito quando se tem pouco para dar. Temos que compartilhar o amor que floresce em nós e não desejar ardentemente sugá-lo do outro como um viciado em busca de droga”. Questionei ao sapateiro, sobre o sofrimento causado pela perda de um ente querido. Ele me olhou incrédulo e rebateu de pronto: “Perda? Que perda, Yoskhaz? Até quando vamos insistir em não desmistificar a morte? A morte é uma certeza, ponto. Lembrar todos os dias que iremos morrer a qualquer momento é altamente saudável, amplia o sentido da

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vida, refina o tempo, aperfeiçoa as escolhas. Se entendermos que a morte não é o final de uma história, mas a mudança de capítulo no livro da vida, não haverá sofrimento. A saudade da partida será a fonte da alegria no reencontro. Inúmeras partidas e chegadas. Os laços costurados pelo amor são eternos e unirá a todos mais à frente. Lei da Afinidade de novo. Caso contrário, nada faria sentido. Enquanto isso vamos aprendendo, transmutando, compartilhando para seguir adiante, habilitados para novas aventuras de uma história sem fim. A saudade tem que ser motivo de alegria, pois só há saudade onde existe amor. Celebremos a saudade, pois quem não a sente reside no vazio. Assim, a exata percepção das Leis do Universo transforma o sofrimento em pó de estrelas”. Falei da sua sobrinha, que mais cedo saíra em lágrimas da oficina. Ele me disse com a voz mansa, repleta de compaixão: “Ela ainda está aprisionada a condicionamentos sociais e culturais que enevoam a pura dimensão do amor. Usa o seu sagrado nome e o interpreta de forma equivocada. Evoluímos por vontade ou pelo desequilíbrio que a vida impõe. A recusa dela em se permitir outra ótica traz sofrimento, que em algum momento, por se cansar da dor, ou melhor, por entendê-la desnecessária, fará com que reveja conceitos, ideias, comportamentos. Então, conhecerá toda a liberdade contida no amor. Só assim entenderá e viverá o amor. De verdade”. !

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MEU PERSONAGEM FAVORITO

Estava com Loureiro em uma taberna na pequena e secular cidade próxima da montanha que acolhe o mosteiro. Tínhamos acabado de trocar ideias sobre sofrimentos e decepções. O bom sapateiro fundamentara, com mestria, que o amor não é causa de nenhuma dor e vem sendo injustiçado, desde sempre, por darmos ouvidos às sombras, emoções sem nobreza, ao invés de compreendermos toda a grandeza de um sentimento capaz de mudar o mundo pela capacidade de fazer florescer o melhor que existe em nós. Já tínhamos solicitado a conta, quando, de repente, ele diz: “Mas penso que não é só. Sempre que falamos das sombras nos referimos àquelas mais conhecidas como inveja, medo, ciúme, vaidade e ignorância. Muitas vezes esquecemos a mentira, talvez por nos ser tão íntima”. Confesso que fiquei atônito. Ele percebeu, riu e explicou: “De todas as sombras, talvez a mentira seja o cárcere de libertação mais difícil, por ser a mais sorrateira. Falo da mentira que contamos para nós mesmos. Ela nos leva à fuga da realidade na ilusão do conforto de quem teme as atribulações do bom combate. Essa sombra nos faz criar e a interpretar papéis distantes da verdade”. Deu uma pequena pausa e foi adiante: “Existe mais da nossa essência na parte que escondemos do que no pedaço que mostramos; há mais oculto no fundo da gaveta do que aquilo exposto na vitrine. Isto é o que vendemos de nós, aquilo é o que somos. Esta é a razão de muitas frustrações”. Pedi que fosse mais claro no seu raciocínio. O bom sapateiro teve boa vontade: “Criamos personagens, repletos de virtudes que ainda não temos, a nos representar nos círculos sociais. Todos desejam ser amados, admirados e idolatrados. Na superfície todos conseguem se mostrar bons e circulam na ilusão de ser o que ainda não são. No entanto, os relacionamentos impõem a hora do mergulho profundo”. Deu uma pausa e concluiu: “Então, a intimidade irá revelar o melhor e, também, o pior que há em nós. É inevitável”. O elegante artesão tinha o olhar perdido em alguma página da sua história e falava como quem explica um fato distante: “Em geral, não preparamos o outro para nos ver atuando sem nossas fantasias sociais. O ego que criou o personagem na tolice de nos proteger, cedo ou tarde, subirá à tona para mostrar a verdadeira face, aquela que ocultamos. O ‘eu’ vai ficar nu. Nenhum truque se sustenta para sempre. Daí surgem as decepções, os conflitos e os sofrimentos, nesta ordem”. “Algumas pessoas abusam mais, outras menos, dos personagens na medida da falta de coragem para encarar quem realmente são. É necessário enfrentar a verdade, sem adereços, com humildade, como primeiro passo para se transformar e vivenciar as suas infinitas possibilidades. Não se chega à próxima estação sem enfrentar a estrada. Ainda que haja curvas, pedras e tempestades, as dificuldades fortalecem e aperfeiçoam o viajante”. “Nem todos estão dispostos a se deparar com as verdades da alma, com suas frustrações e insucessos. Então, nos escondemos sob o manto das ilusões oferecidas pelo ego, a nos enganar, na vã esperança de que ele nos conforte e proteja para sempre. Usamos as máscaras que ele nos empresta no baile em homenagem à mentira. Até que o Caminho, na exigência do movimento da cura pela verdade, despe o personagem que criamos para interpretar as histórias que gostamos de contar sobre nós mesmos. Cedo ou tarde, nos

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obriga a olhar para o espelho. Estar frente a frente consigo é mirar nos olhos da verdade e entender toda a sua força revolucionária. É doloroso em um primeiro momento, por estar sem maquiagem, não encontrar a perfeição que se iludiu. Mas só assim descobrimos o que precisa ser modificado, o que temos que deixar para trás. Entendemos, principalmente, que não somos o nosso discurso, mas as nossas escolhas”. Comentei que deveriam existir alguns modelos mais comuns de fantasias, arquétipos do inconsciente coletivo. Loureiro concordou: “Existem muitos, e posso exemplificar alguns. Um personagem muito usado hoje em dia é o da ‘pessoa séria, muito ocupada, que não tem tempo para os outros’, em uma clara demonstração de fuga do convívio, da intimidade, por medo de revelar que tem pouco para mostrar ou de mostrar o que anseia esconder. É a débil máscara do forte, a fantasia curta do poderoso. Na verdade, ocultamos aquilo que não temos coragem de enfrentar. Levantam-se muros para que ninguém descubra as nossas fraquezas, quando na verdade precisamos de pontes para atravessar esses abismos. Somente quando admitimos as dificuldades nos tornamos aptos a superálas. Para ser grande é necessário trilhar o caminho do pequeno. Isto se chama humildade. Esta virtude lhe fará aceitar a condição de aprendiz, de que ninguém nasce pronto, e assim permitirá, não sem muito trabalho, que aos poucos revele toda a grandeza que habita em seu coração”. “Existe também o personagem do ‘falso alegre’, aquele que precisa estar sempre rodeado de gente e, de preferência, barulho. Que fique bem claro que diversão, amizade, alegria e movimento são coisas maravilhosas. Mas há que se ter hora para todas as coisas, a fazer bom uso do tempo, este tesouro finito. Por que o medo de ficar a sós consigo? De ouvir a música do silêncio? De conversar com o próprio coração? A solidão tem sido amaldiçoada por ser mal compreendida. Solidão não significa abandono, mas a viagem que o ego faz aos jardins da alma. O retiro necessário para percebermos as máscaras que atrapalham, por ineficazes, a conquista da plenitude; as fantasias que ficaram velhas sem conseguir sustentar a felicidade; a maquiagem que borrou por tantas lágrimas ao perceber que a paz não se encontra nas prateleiras da ilusão, mas precisa ser construída pela verdade de se conhecer por inteiro e, então, se transformar. Ser feliz é uma escolha consciente que exige determinação e coragem para estar consigo próprio e ouvir a voz que brota no coração”. “De todas as fantasias, a mais triste é a da ‘vítima’. São aqueles que se dizem bons e generosos, porém alegam ser enganados ou sabotados por todos o tempo todo. Usam a máscara do drama para transferir aos outros a responsabilidade pelo seu sofrimento, escondendo de si mesmo a atribuição de trabalhar a própria evolução. É como se desejassem uma carona até a próxima estação para não ter que enfrentar as dificuldades do Caminho. Esquecem que os problemas que nos perseguem nada mais são do que as lições que precisamos aprender, as transformações que devemos forjar no próprio ser. Ignoram que a batalha final é travada dentro de cada um de nós”. Loureiro tomou um último gole de vinho e alertou: “É importante se reinventar todos os dias, pois faz parte do processo primoroso de transformação. No entanto, é preciso que se fundem os alicerces da verdade nas rochas da humildade, alegria e coragem, afastandose, a cada dia, dos pântanos da ilusão, da mentira e do medo que atolam a evolução”. “É imperioso desvendar o véu da fantasia que enevoa as mudanças necessárias exigidas pela alma despida. Embora seja um processo difícil, pois muito do aparente conforto do

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personagem será substituído pelo esforço no desenvolvimento do verdadeiro eu. O autoconhecimento é indispensável à cura. Cura das imperfeições, dos traumas e do sofrimento através do remédio da verdade, na lapidação das cascas de si mesmo até que se reflita a mais pura luz. Semear e cultivar a essência que nos habita, na beleza de ser único e parte do todo, ao mesmo tempo”. Deu uma pequena pausa e concluiu antes de se levantar: “Cada qual é a nau a atravessar que as tempestades das próprias ilusões, aprendendo a manobrar com os ventos da verdade, a navegar pela luz da fina sabedoria. A vida é o mar, os encontros são os portos e o amor é o destino”. Já de pé, me ofereceu um sorriso maroto e provocou: “Yoskhaz, qual a sua máscara?”. Rimos.

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ALEGRIA, ALEGRIA

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, tinha sido convidado pelo vigário da igreja localizada na pequena e charmosa cidade próxima à montanha que abriga o mosteiro, um amigo de longa data, para proferir algumas palavras durante a missa de domingo. Ele me chamou para acompanhá-lo e nos fez chegar cedo para aguardar no banco da praça em frente à igreja. O Velho gostava de sentir o sol que aquecia o corpo diante da manhã fria de outono. O sol, o frio, os esquilos, pais que passeavam com seus filhos pequenos, filhos que passeavam com seus pais anciões, a algazarra das crianças, os jardins e os pássaros, enfim, a vida pulsando em todas as suas manifestações encantava o monge. “Tudo isso alimenta o meu silêncio”, comentou. A missa transcorreu tranquilamente em seu cerimonial até que o Velho, foi chamado a subir no púlpito. O vigário alertou aos presentes que não estranhassem a linha de discurso do monge, embora profundamente cristão, pertencia a uma ordem esotérica secular, dedicada ao estudo da filosofia e da metafísica. O Velho agradeceu e iniciou: “Eu vou tecer algumas palavras sobre a grandeza da gratidão, essa virtude tão mal interpretada”. “Alguns estão aqui aflitos para solicitar auxílio por problemas que se sentem incapazes de resolver; outros para agradecer pelas dádivas concedidas; muitos, apenas para se banharem nas energias de amor e luz que inundam esta casa. Cada qual com os seus motivos, razões, sentimentos e fé. Todos merecem acolhida, respeito e carinho. Mas desde sempre me fiz duas perguntas: qual o critério da esfera espiritual para atender as súplicas, vez que algumas são atendidas, outra não? A outra, qual a melhor maneira de agradecer por tudo de bom que foi ofertado? Foram questões que tomaram bastante tempo em minhas meditações”, fez uma pequena pausa para que todos refletissem por instantes e prosseguiu: “Conheço os que realizam doações preventivamente, como forma de ‘ficar bem’ com os amigos divinos a garantir proteção e privilégios. Há os que preenchem generosos cheques em prol de instituições religiosas e filantrópicas para ‘quitar a dívida’ do pedido atendido. Para estes e aqueles posso afiançar o total equívoco de suas intenções. O Céu ou o plano espiritual, independente do nome que lhe atribua, não é um balcão de negócios”. A voz do Velho tinha a habitual serenidade e, embora baixa, se podia ouvir claramente até a última fileira; o silêncio era absoluto. “Além do mundo visível não se compra favores, tampouco o dinheiro é a moeda de troca. Os interesses e valores são outros. Você se acha ‘especial’ porque tem mais dinheiro, mais estudo ou aparece na TV? Esquece. Ter as melhores ferramentas e possibilidades apenas aumentam a sua responsabilidade em transformar e se transformar. Sabe as orações em que você promete adotar uma criança caso fique milionário ao ganhar o prêmio da loteria? Esquece. Não se barganha com amor, muito menos com Deus”. “A lógica no plano invisível é diferente. Não existe nenhum interesse pelos desejos do seu ego. As preocupações dos benfeitores espirituais estão ligadas tão somente as necessidades da sua alma, a tudo que você precisa para evoluir. O emprego, a casa, os filhos e até mesmo a saúde, ou a falta disso, compõe a perfeita realidade para você Aprender, Transmutar, Compartilhar e Seguir”. “Não, não se lamente por não ter o que deseja, ao contrário, agradeça a oportunidade e faça o melhor uso possível do que lhe foi oferecido. Isto é sábio. Isto é pura gratidão. Ainda que neste instante haja dificuldade em entender, tenha certeza não lhe falta absolutamente nada para o encontro com a paz, salvo o que você tem que buscar no âmago

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do próprio ser: A coragem de agregar os seus dons e talentos ao seu viver; parar de negociar com as sombras; aperfeiçoar as escolhas na busca pela Luz e aprender a amar demais. “Por mais absurdo que possa parecer, tudo que acontece em nossas vidas é para o nosso bem. O bom guerreiro agradece a dureza das batalhas pelo seu aperfeiçoamento na habilidade de combater. A sua evolução é a prioridade para o Universo, todo é resto é efêmero, perfumaria sem poder de cura. Portanto, seja grato sempre. As frustrações são adubos do amadurecimento; as dificuldades são lições a iluminar e fortalecer o espírito; os problemas e adversários são mestres ocultos a nos brindar com sabedoria e ampliar a capacidade de amar. Assim nos metamorfoseamos, rompemos a crosta que aprisiona para florescer as asas de um novo ser”. “E as preces, elas são importantes? Sim, como a meditação, elevam o padrão vibracional e aproximam os mestres e guardiões invisíveis para ajuda e proteção, desde que haja vontade sincera por transformação e nos limites permitidos pelas Leis Não Escritas que balizam a evolução universal, em binômio formado por necessidade e merecimento. Acontecimentos inesperados; o surgimento repentino de pessoas, como se fossem anjos; os inúmeros sinais; a intuição, que é a perfeita conexão cósmica, são algumas das muitas maneiras de colaboração que recebemos. Perceba e seja grato. No entanto, preste atenção: Eles sempre ajudarão, mas jamais farão a parte que cabe a você realizar. São coisas bem diferentes”. “Assistir a missa, mas se aliar as sombras que lhe habitam não resultará no efeito esperado. Por outro lado, quem anda pelo lado ensolarado da Estrada não precisa temer a escuridão. O perfume das flores atrai passarinhos e borboletas; o odor do esgoto o infesta de baratas e ratos. Assim escolhemos quem nos acompanha”. Deu uma pausa e concluiu: “Portanto, nunca há motivos para reclamações”. Muitas das pessoas que assistiam a missa estavam visivelmente desconfortáveis com aquele discurso. O Velho olhou para o vigário e este arqueou os lábios em sorriso de aprovação. “Toda caridade é bem-vinda e uma bela forma de gratidão. Sem dúvida que a ajuda material é indispensável para quem tem frio e fome. No entanto, as de maior significado e importância são aquelas em que depositamos o coração junto com as nossas ações. Por isto a caridade emocional será sempre infinitamente mais valiosa do que a financeira, afinal o que você tem de mais precioso do que o próprio coração? Um abraço costuma valer mais do que um cheque”. “Não conheço palavra mais bonita do que misericórdia. De origem latina, ela nasce da junção de duas outras e significa o ato de oferecer amor como remédio ao sofrimento alheio. Historicamente os que mais se deram nada tinham para dar, além de si próprios, além de seus corações. Assim, conseguiram tudo. Acham incoerente? Perguntem a Francisco de Assis ou a Tereza de Calcutá. Para ser grande é necessário se sentir pequeno diante do menor de todos. Não basta simplesmente ter o coração do mundo, é preciso sentir o seu pulsar e não lavar as mãos”. “Me refiro ao dia a dia, no convívio com toda a gente e em todas as nossas relações. Não aguarde ser convidado para alguma grande cerimônia de transformação, pois é durante os afazeres e obrigações do cotidiano que a vida acontece. É nas pequenas coisas que você se revela, aprende e caminha; é nos detalhes quase imperceptíveis que os milagres se manifestam, invisíveis a olhares desatentos. E tudo se modifica de uma hora para outra sem qualquer aviso. Esta é a magia da vida”. Tornou a dar breve pausa para que as palavras encontrassem o seu lugar: “Ouso ir um pouco mais longe. A gratidão é sincera e simples em sua manifestação. Os mais puros sentimentos, por serem frutos da pura humildade, são discretos e anônimos.

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Não se revelam para o aplauso público, mas estão ligados à intimidade e a beleza de compartilhar, como qualquer ato de amor verdadeiro. Nasce da responsabilidade pelo aperfeiçoamento da obra que nos foi confiada na condição de coautores. Sim, o mundo foi criado, mas não está terminado. Isto nos torna criadores e também as criaturas desse fascinante espetáculo, com as suas maravilhas e mazelas, na medida em que ajudamos a escrever o roteiro, ao mesmo tempo em que protagonizamos as cenas. Nem todos ainda se deram conta da oportunidade concedida. Desta forma, agradeça e vá além da retórica ao tornar impecável cada gesto ou palavra. Não esqueça, ainda que distante, o mundo perfeito começa em você”. O Velho sabia que não tinha mais do que alguns segundos para não atrapalhar o bom andamento da missa: “Para finalizar, peço desculpas se falei demais e deixo-os com duas questões. Como costumamos reclamar bastante das imperfeições do mundo, perguntolhes qual foi a sua melhor ação em prol de um mundo melhor?”, esperou alguns instantes para fazer a outra pergunta. “Qual a melhor maneira de agradecer por todas as bênçãos que a vida nos presenteia?” Ao término da missa, o pároco agradeceu ao Velho por suas palavras e trocaram um forte abraço. Na saída da igreja muitas pessoas olharam para o monge com cara-feia, outros vieram lhe cumprimentar e ele atendeu a todas com atenção e carinho. Já de volta à praça, a sós, questionei sobre as perguntas que ele deixou para todos. Achei que não tratavam de uma mesma matéria, assim como o seu discurso, abordava dois assuntos distintos. O monge me mirou nos olhos, deu um leve sorriso e balançou a cabeça como dizendo que eu não tinha entendido nada. Sentamos em uma cafeteria próxima. O Velho me falou com serenidade: “As Leis Não Escritas ajustam a vida e alavancam a evolução de todos. Caminhamos por gosto ou por imposição. A dificuldade nasce da recusa em aprender a devida lição para se libertar de um ciclo. Não lamente, agradeça, aprenda, se transforme, compartilhe e siga. O andarilho do Caminho se reconhece distante, não critica e busca o aperfeiçoamento. Ele sempre oferece o melhor de si. A cada escolha definimos o nosso destino e herança. Nesta ou em outra estação recolheremos os frutos da própria semeadura. Receberemos as exatas lições para entender a grandeza do Jardim. Somos o jardineiro, a semente, a flor e também o fruto. A semente é depositada e, em algum momento, há de germinar. Nem que para isso o solo pressione a casca de forma enérgica para que se rompa, germine e floresça em todo o seu encantamento”. Ficamos em silêncio por um tempo e tornei a tocar nas perguntas que ele tinha feito a todos na igreja e qual seriam as respostas. Ele me observou com os olhos repletos de misericórdia e brincou. “Você é o pior discípulo que já tivemos na Ordem, Yoskhaz! Só existe uma resposta e serve para ambas as perguntas”, deu uma pequena pausa, rimos juntos, ele comeu a pequena fração de chocolate que acompanhava o café e respondeu: “A melhor maneira de agradecer pelas bênçãos recebidas é também o jeito mais eficaz de harmonizar o planeta: espalhe alegria por onde passar. Alegria, alegria! O amor tem as cores da alegria. Nada é mais poderoso do que ser o motivo para o sorriso de alguém”. “Alegria é a melhor maneira de demonstrar gratidão por todas as bênçãos do Caminho”. Mirou no fundo de meus olhos e finalizou: “A alegria é o pão da alma; é um presente do amor. A alegria revela a paciência que temos com o que ainda não somos, de ver a beleza oculta em tudo e em todos. A alegria tem o dom de convidar os corações para dançar, aliviar dores, dar asas aos sonhos da humanidade e a manter viva a esperança indispensável em si próprio e em toda a gente. Permite que as suas atitudes reflitam o

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perfeito mundo que seu coração deseja. A alegria revela a boa vontade, a coragem e o respeito para com a vida. Aprenda com alegria, se transforme com alegria, compartilhe com alegria e siga com alegria. O melhor de tudo é que você não precisa pagar absolutamente nada por ela, é sementeira barata e está á disposição de qualquer um. Basta buscá-la no fundo do coração. A alegria é uma criatura do amor e traz consigo todo o poder do criador”.

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O ENIGMA DA PACIÊNCIA

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, parecia encantado com as roseiras do pátio e as podava como bom jardineiro. Pedi para lhe fazer companhia. Ele anuiu com a cabeça, e os seus olhos me indicaram um banco próximo para sentar. Ficamos em silêncio por um bom tempo, alimentando a alma com a quietude das horas. Até que perguntei se podíamos conversar. O monge arqueou os lábios em breve sorriso que interpretei como uma permissão. Discorri as minhas reflexões e dúvidas sobre a virtude da paciência e a sua importância para a felicidade. Ele ouviu sem dizer palavra, depois recolheu o alicate no bolso, acomodou-se à sombra em outro banco na minha frente e falou enquanto se distraía com uma pequena lagarta na palma da mão que acabara de arrancar da roseira: “A paciência é alimento indispensável da alma na estrada para a plenitude do ser, onde reside a paz”, pausou por alguns instantes como se buscasse as melhores palavras e seguiu: “No entanto, a paciência é uma virtude valiosa que possui um precioso enigma. A chave para decifrá-lo é a sensibilidade”. De pronto, eu quis saber mais. O Velho me olhou e disse: “Antes de qualquer coisa, há que se ter boa vontade com tudo e com todos. Entender que as pessoas se comportam de acordo com o seu nível de consciência e carga emocional momentânea e pretérita, ajuda a paciência a encontrar o seu lugar em nós. Não adianta ensinar uma criança a calcular uma raiz quadrada se ela ainda não domina as quatro operações básicas da matemática ou explicar algo enquanto está adormecida. Em nossas relações pessoais não é diferente. Ter esse compasso é perceber o passo do mundo, entender que as relações se desenvolvem de acordo com a evolução e possibilidades dos interlocutores. A natureza não dá saltos. Aos poucos, tudo e todos se aperfeiçoam”. Pensando ter entendido, falei que restava esperar que cada qual alargasse seu horizonte para as transformações indispensáveis no âmago do ser. De plano o Velho retrucou: “Apenas esperar? Esse não é o enigma da paciência”. “Não podemos esquecer de oferecer o nosso melhor diante de qualquer acontecimento que se apresente, das mais banais às mais complexas situações, e a paciência é parte essencial desse pacote. Isto é uma premissa para o andarilho do Caminho. Entretanto, a paciência nem sempre exclui uma atitude enérgica diante de determinados momentos do cotidiano. Ao contrário, ela tem que se fazer presente principalmente nos momentos que exigem firmeza nas ações”. Acomodou a pequena lagarta dentro de uma caixa de fósforos, mais tarde a soltaria na floresta, e disse: “Ser paciente não significa ser permissivo com o mal, cegos à injustiça, tolerantes com a violência ou omissos ao erro, quando se apresenta a responsabilidade de agir. Em outra variante, existe a hora de esclarecer e ajudar, como um farol a iluminar a embarcação na noite escura, evitando que naufrague nos rochedos da existência. Você nem sempre evitará o desastre, mas sinalizará a possibilidade de outra rota”. Deu uma pequena pausa, me observou por instantes e continuou: “No entanto, essa indispensável interferência é bastante delicada e revela muito de si mesmo. Por isto, deve ser feita com cuidado para que não seja um exercício de orgulho e vaidade do ego, que se satisfaz em imaginar, por instantes, superior ao outro. Tampouco que se crie estardalhaço para não envergonhar aquele que está no erro, porém que tenha tão somente a pura finalidade de mostrar um olhar diferente sobre determinada situação. Não esqueça se que a paciência nunca tenta convencer, apenas iluminar, pois é

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um ato de amor. Bondade, generosidade e, acima de tudo, humildade são pressupostos indispensáveis da paciência”, explicou o monge. Comentei que nunca tinha me dado conta de como a paciência era complexa. “Sim, ao contrário do que muitos pensam, ser paciente não significa ser conformista, porém um transformador. Sem alarde, longe do moralismo castrador, sem o sincero desejo de humilhar, de vingança ou de buscar aplausos nos palcos sociais. Por outro lado, a paciência não pode servir para maquiar a covardia ou a preguiça. A paciência é para os fortes, pois fizeram a escolha de abdicar da violência para o enfrentamento das dificuldades. O ser que domina a virtude da paciência é um pacífico e um pacificador, utiliza a paz como força de transformação. Ele é suave, porém firme; nunca agressivo. Suas palavras e atitudes servem como bálsamo para acalmar os corações dos que ainda viajam aflitos, lanterna dos navegantes perdidos nas rotas sombrias da existência”. Questionei como saber a hora de esperar ou agir diante de cada situação. O monge me olhou como se já esperasse a pergunta e respondeu: “Este é o enigma da paciência, Yoskhaz. Voltamos ao início da conversa quando lhe falei sobre a sensibilidade ser a chave do segredo. A sensibilidade nada mais é do que a percepção apurada do Caminho. Isto faz com que o andarilho ofereça sempre o seu melhor, em infinito aperfeiçoamento para as metamorfoses indispensáveis à evolução. É a parte que lhe cabe e que ninguém fará por ele. Por outro lado, traz consigo a calma em saber que as Leis Não Escritas são inexoráveis, mesmo quando o resultado esperado não for imediato, até porque, não raro, envolve questões que o andarilho desconhece. Nada no universo escapará da abrangência e do poder do Código. Então, é continuar semeando com afinco e aguardar a magia da vida na primavera que sempre chega”. Falei que entendia, mas pedi que fosse mais didático. O Velho riu e caprichou: “Falo das Leis do Amor, Retorno, Afinidade, Ciclos, entre várias outras. São as guardiães do Caminho e direcionam o processo evolutivo. A mente as decodifica pouco a pouco e nos mostra que, quando mudamos o nosso jeito de andar, mudam também a estrada e a paisagem. O coração se encanta com a nova leveza do ser. Os desejos do ego lentamente se alinham aos princípios dignos da alma. A sabedoria passa a iluminar as feridas da alma e o amor as envolve com o seu incomensurável poder de curar. Assim passamos do embrutecimento à sensibilidade, da agonia para a paz”. Após uma pequena pausa, concluiu: “Aprendemos o momento de agir ou a hora de esperar através da sabedoria e do amor, mas sem a paciência essas virtudes desaparecem”. Fechei os olhos por um tempo que não sei precisar. Quando voltei o Velho ainda estava sentado à minha frente. Ele me observou com sua enorme doçura e finalizou: “Não trago nenhuma novidade. A sabedoria e o amor são muito antigos, estão no mundo desde o início dos tempos. A transmutação do chumbo em ouro era a incessante busca dos alquimistas, pois é a grande batalha da vida. Trata-se de uma metáfora a iluminação das sombras que habitam cada um de nós. Esta é a pedra filosofal. E, pode acreditar, a paciência é um poderoso ingrediente na magia desse caldeirão”.

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DEVER DE CASA

Eu tinha terminado um longo e proveitoso período de estudos. Leituras, meditações, reflexões, conversas profundas, foram partes importantes da busca por conhecimento no ciclo encerrado. O Velho, como carinhosamente chamávamos o decano do mosteiro, me lembrou que teoria sem prática é remédio esquecido na gaveta, que perde a razão de existir por não curar. “Conhecimento só vira sabedoria quando vivenciado em todas as nossas relações”, alertava o monge para os discípulos. Eu me olhava de maneira diferente, como se possuidor de uma importante ferramenta em busca da melhor maneira de usá-la. Questionei ao velho monge qual seria, para mim, a melhor aplicação dos meus dons e talentos. Ele estava entretido na poda de uma roseira, mas, sempre paciente com todos, me olhou por cima dos óculos e disse: “Não tenho tal correio. Toda escolha é importante, não sendo aconselhável transferi-la a ninguém, por mais querido e bem-intencionado que seja o interlocutor. O poder de decidir sobre o destino é, ou deveria ser, personalíssimo. Não abdique da liberdade que a vida lhe concede em suas escolhas, pois de qualquer forma, seja seguindo o seu coração, seja a lógica alheia, você não escapará das responsabilidades e consequências. Portanto, erre ou acerte pelas suas verdades. A vida lhe impõe o caminhar como única maneira de entender o Caminho”. Não satisfeito com a resposta, sustentei que não via mal nenhum em pedir um conselho com o intuito de clarear a minha decisão. Dessa vez o velho nem levantou a cabeça e me respondeu de pronto: “Apenas um conselho?”, deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Tire para si um período sabático. Viaje para renovar o guarda-roupa da alma, respirar outros ares, conviver com pessoas que têm um jeito de viver diferente do seu, um outro olhar sobre todas as coisas. Nada mais rico. Acredito que assim você encontrará a resposta que precisa. Não se espante se a encontrar adormecida dentro de você, apenas aguardando que tenha a coragem de trazê-la à vida”. Assim, atravessei o oceano e retornei para mais uma temporada na aldeia de Canção Estrelada, xamã nativo do Povo da Estrada Vermelha. Fui recebido por todos com a alegria de sempre, tinha cultivado bons sentimentos em minhas estadas anteriores. O xamã viajara para participar de um Conselho de Anciões e retornaria em dois dias, tempo que foi preenchido pelas novidades narradas por todos os lados. Eu tinha mudado bastante e aproveitava cada conversa para encaixar uma palavra iluminada ou um pensamento de profundidade. Quando Canção Estrelada chegou, logo soube da admiração que eu conseguira arrancar em toda a tribo. Ouviu muitos elogios sobre a minha metamorfose, mas não disse palavra. À noite me convidou para fumarmos o seu inseparável cachimbo de fornilho de pedra em frente a uma pequena fogueira sobre o manto de estrelas. Ficamos um bom tempo em silêncio, até que o xamã, depois de uma baforada, disse: “Nem tudo que reluz é luz”. Quis saber ao que se referia e ele foi sincero como de costume: “Ouvi muitos elogios em relação a você. Todos na aldeia estão sinceramente impressionados com as mudanças ocorridas, seja pelas palavras, sempre bem colocadas, seja pelas atitudes gentis. No entanto, o discurso costuma ir aonde ainda não conseguimos chegar”. Aproveitei para falar, não sem uma evidente ponta de orgulho, que tinha chegado a hora de colocar todo o meu aprendizado em prática, de maneira a auxiliar a humanidade por um mundo melhor. Elenquei algumas possibilidades urgentes, tais como me engajar em lutas como a mortalidade infantil na África, o desmatamento da Floresta Amazônica

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ou a extinção das baleias em todos os oceanos do planeta. Canção Estrelada me mirou fundo nos olhos e disse: “Todos esses serviços têm urgência, valor inestimável e carecem de valorosos guerreiros. No entanto, é necessário entender duas coisas: uma, há infinitas maneiras de colaborar por um mundo melhor e todas são válidas; duas, saber a hora e estarmos prontos para enfrentar cada uma das diferentes batalhas”. Aleguei que me considerava pronto e interpretava as palavras de todos da tribo como uma prova inequívoca das minhas habilidades. No mais, argumentei que tudo que a vida quer da gente é coragem. Ele sorriu com compaixão e disse: “Ahoo! Sim, que a coragem nunca nos falte”, deu uma baforada antes de continuar: “Nem a sabedoria. Um degrau de cada vez, Yoskhaz”, aconselhou. “Há quanto tempo você não visita a sua família?”, perguntou o xamã me surpreendendo. Respondi que havia alguns anos, pois sempre tive um relacionamento difícil com meus pais e irmãos. Canção Estrelada arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Toda família é uma oficina de reajustes e aprimoramento. Não só em razão de dívidas ancestrais que nos obrigam a exercitar o amor mais profundo em suas muitas vertentes como o perdão, a renúncia, a sabedoria, a paciência e a compaixão, mas porque os olhos da família são mais rigorosos em relação às nossas arestas. Não raro eles nos conhecem muito mais do que os de fora. Um discurso com belas palavras e frases de efeito tem o poder de encantar mais facilmente aqueles que não nos conhecem a fundo. Na intimidade revelamos o pior de nós. Ajustar os laços familiares que se desfizeram na esteira do tempo forja o caráter do guerreiro, lapida a mente do sábio e enobrece o coração dos filhos do Grande Espírito”. “De que adianta sair para cuidar do mundo enquanto sua casa arde em fogo?”, ele perguntou. Retruquei que estaria sendo egoísta em colocar o individual na frente do coletivo. “Há prioridades e hierarquia de urgências. Primeiro faça o dever de casa, depois salve o planeta”, explicou. “Assim como ao nos conhecer melhor passamos a ser mais compreensivos com os outros, é o aprimoramento das relações familiares que irá te dar o compasso e o esquadro do mundo. Cedo ou tarde temos que avançar além das boas impressões que todos alcançam com facilidade nas relações sem profundidade”, concluiu. Acabei por confessar que não me sentia animado em buscar a minha família, pois havia um longo histórico de incompreensões e eu acreditava, sinceramente, que nada mudaria. Acrescentei que tinha encontrado a fórmula perfeita para o problema: visitas pontuais e rápidas em datas festivas, nos limites do que eu denominava como política da boa vizinhança. Canção Estrelada tornou a sorrir por perceber que tinha aberto o meu coração e revelado sentimentos que não combinavam com o meu discurso fácil e bonito usado ao regressar à aldeia, na ilusão de ferramentas que imaginava dominar. “Percebe agora de que maneira você deve aperfeiçoar e fortalecer o espírito antes de guerrear outras lutas? O guerreiro despreparado é presa fácil nas sombras da desilusão e do desânimo. A batalha de reconciliação com os seus é parte da maior batalha da sua vida, aquela que você trava todos os dias dentro de si, iluminando as próprias sombras, na árdua tarefa de afiar a espada da sabedoria, forjar o escudo do caráter e estender o tapete de flores do melhor amor”. Insatisfeito por não ouvir o que desejava, argumentei que a intolerância em minha família era enorme e eu me sentia mais à vontade com os amigos que a vida tinha me presenteado. “É a oportunidade e a grandeza de oferecer o melhor de si a quem não nos compreende ou aceita. Ser bom apenas para com os bons? Isto os fracos também conseguem”. Falei que meus familiares pensavam de uma maneira muito diferente da minha e eu jamais conseguiria convencê-los. O xamã me olhou como se eu fosse uma criança e disse:

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“Convencer de quê? Não existe estupidez maior do que tentar convencer os outros da nossa razão. Oferecemos o nosso coração com pureza e serenidade, como se fosse semente a aguardar pela chuva que um dia fertilizará o solo, na certeza de que cedo ou tarde, germinarão as flores da paz no grande jardim do amor. Esta é a lei, Yoskhaz”. Ainda longe de me sentir vencido, pois meu ego secretamente alimentava o desejo de trabalhar em questões que causariam maior sensação nos salões sociais, narrei algumas tentativas frustradas e, até mesmo, como fui tratado de maneira rude em certas ocasiões. Canção Estrelada me ouviu com sua paciência que parecia infinita e quando terminei as minhas lamúrias, ele falou: “Você evita o trabalho de remover a lama que lhe aprisiona e, para tanto, concede a si qualquer desculpa. Claro que você enfrentará a desconfiança e a mágoa dos seus parentes. Eles te conhecem desde sempre e há rusgas ainda sem luz. Suas mais nobres intenções serão postas em xeque e seus valores testados até o limite para a mais fina lapidação da sua alma. Agradeça por isto, o aço só consegue forjar a melhor têmpera no calor do fogo”. Falei que algumas pessoas da minha família eram muito duras e, com certeza, fariam questão de me humilhar. Eu não queria mais este tipo de situação em minha vida. Canção Estrelada arqueou os lábios em breve sorriso, me passou o cachimbo e olhou para as estrelas. Ele sabia que naquele instante estávamos dançando no âmago do meu ser. O xamã disse com mansidão: “A fronteira entre a humildade e a humilhação reside no fato de permitirmos nos sentir ofendidos com as palavras alheias. Se você entender que as ofensas apenas revelam o que o narrador possui no coração, perceberá que ele está falando da essência dele e não a verdade sobre a sua. Ignorar isto te fará sentir humilhado por ofendido e eternizará o conflito. No entanto, a verdade está muito além das aparências. O agressor, esperneia não por ser vítima, mas pela alma que está em desajuste na escuridão que o maltrata. Ainda que negue, por não conseguir ver por trás do véu do orgulho e da ignorância, ele está clamando por ajuda. Só quem já andou um pouco pelas trilhas do amor e da sabedoria consegue perceber a bela dimensão da humildade. O humilde tem o poder de flutuar sobre a esteira das agressões. Não à toa, pela magia de transformar em pó de estrelas toda e qualquer ofensa, a humildade é a primeira ponte do Caminho”. Ficamos algum tempo sem dizer palavra, ele pegou o cachimbo para uma baforada longa e fechou os olhos para finalizar: “Para ser grande você tem que ser sinceramente pequeno diante dos outros para servi-los, usando o seu coração como bandeja. Este é o poder da humildade e uma das lições da borboleta que não teme rastejar até amadurecer o valor das próprias asas”. Nada mais foi dito naquela noite. Entendi que eu tinha de voltar para casa e cumprir o meu destino, que começava no berço desta existência. Uma família não se forma em vão, e há que se entender o porquê. Era a hora e o lugar para oferecer o meu melhor; exercitar e aprimorar o meu aprendizado; fortalecer o espírito diante das dificuldades íntimas, que nos são as mais duras, até porque revelarão verdades que desconheço sobre a minha essência; expandir os limites do meu coração e deixá-lo com a porta aberta para quem quiser entrar; transmutar continuamente meus sentimentos e ideias que sempre podem ser diferentes e melhores. Enfim, reconstruir a casa que estava demolida – a minha família. Era lição das mais difíceis. Só então eu estaria pronto para conquistar o mundo. O dia amanheceu em paz.

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A GRANDE AVENTURA

Eu caminhava pelas ruas medievais da pequenina cidade situada no sopé da montanha que acolhe o mosteiro. Era acossado pelos ventos frios de outono que obrigavam a me proteger entre os vãos e as muradas das antigas construções. Alegrei-me ao ver a clássica e bem conservada bicicleta de Loureiro encostada no poste em frente a sua oficina. Encontrei o bom sapateiro elegantemente vestido, como de costume, trabalhando em uma cara bolsa de uma belíssima mulher, que aguardava o conserto. Fomos apresentados, e o hábil artesão explicou que a jovem tinha sido amiga de escola da sua filha; portanto, a conhecia desde criança. Contente em me ver, ele pediu para que eu esperasse um pouco, pois queria me falar sobre um novo livro de filosofia enquanto tomávamos um café. Trabalhar sobre o couro era o ofício de Loureiro; prosear sobre filosofia, a sua arte. Nem tinha me aquietado em um canto, a bela mulher continuou a falar das viagens por lugares exóticos que já tinha feito. Passeios de balão sobre vulcões, saltos de paraquedas em queda livre, perigosas corredeiras em frágil caiaque, entre outras façanhas. Arrematou afirmando seu enorme gosto pela aventura. O sábio artesão, imerso no trabalho, não disse palavra. Logo em seguida, como se sentisse dificuldade na quietude e no silêncio, a jovem falou que não via a hora de iniciar a escalada ao Everest que programara para o próximo verão e começou a discorrer sobre os preparativos e riscos da nova empreitada. Até que, em determinado momento da narrativa, disse que esse gosto pela aventura adquiriu do ex-marido. Nesse momento, o sapateiro, sem levantar a cabeça, apenas me olhou por sobre os óculos que lhe corrigiam a vista cansada, permaneceu calado e voltou ao trabalho. Como em uma ópera previsível, a seguir, ela contou de como tinha sido feliz naqueles anos, mas fez questão de ressaltar, sem parecer muito sincera, que não gostaria de encontrá-lo em uma dessas viagens. Logo em seguida, deixou transparecer certa mágoa pelo fim do casamento, que evidentemente ocorrera contra a sua vontade. Loureiro levantou a cabeça, mirou a bela moça nos olhos e disse com bondade: “O mais interessante nas pessoas não é o que elas mostram, mas o que escondem”. “Já parou para pensar que todo esse seu interesse por viagens pode estar apenas adiando a grande aventura da sua vida?”, perguntou à moça, que de início pareceu curiosa, querendo saber ao que se referia o sapateiro. Ele explicou: “O que você tem que questionar é se viaja em busca de simples divertimento ou por fuga, na ilusão de retornar a um momento de sua vida que não existe mais. Pense bem”, pediu o sábio sapateiro. Levemente irritada e com uma voz em um tom acima, disse acreditar que a história do seu casamento ainda estava longe de acabar, pois a família do seu antigo marido a adorava, e todos lhe afirmavam que ele jamais encontraria uma esposa melhor. O velho artesão, mantendo a voz baixa e doce, falou: “Você entende que todos esses passeios perigosos apenas ocultam a mais fantástica de todas as viagens que algum dia ousou a realizar?”. A moça quis saber de qual viagem ele falava. “A da libertação”, concluiu o sapateiro. A bela mulher retrucou dizendo que ele estava enganado, pois era uma pessoa absolutamente livre. Ia e voltava a qualquer canto do planeta na hora que quisesse. “Flanar solto pelas ruas não significa liberdade. Os perdidos e desorientados também assim o fazem”, ele tentou diferenciar. A moça argumentou que era dona de si mesma e das suas escolhas, portanto, uma pessoa livre. O artesão tentou esclarecer: “A questão é saber qual

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a real amplitude das suas escolhas. Entender o quanto elas podem estar amarradas a desejos inconfessáveis, a pesadelos que insistem em maltratá-la por se fantasiarem de sonhos e, por consequência, a dificuldade em se livrar deles. As frustrações escondidas no inconsciente, prontas a nos enganar, são difíceis de identificar e se tornam o passo inicial para um sofrimento que pode atravessar tempos imemoriais. Padrões de pensamentos endurecidos e automatizados, comportamentos obsessivos, ou ideias e conceitos que nos recusamos a transformar terminam por aprisionar e limitar as escolhas, como se, por absurdo, a vida não permitisse um novo olhar”. Deu uma pequena pausa e diante das feições da moça, um misto entre a surpresa e a raiva, ele prosseguiu sereno: “A consequência mais comum é insistirmos em manter o passado atrelado ao presente, sem entender que após o amadurecimento a fruta é aproveitada ou apodrece. Depois vira adubo ou semente. Devemos permitir o fechamento do ciclo que findou para que o novo se inicie”. A jovem retrucou com convicção de que ela e o ex-marido nasceram para formar uma família. Reiterou que todos que os conheciam na intimidade corroboravam essa certeza. Loureiro, com a calma que lhe era peculiar, tentou oferecer outra ótica: “As almas são afins, ou seja, mantêm-se juntas enquanto existir afinidade energética ou de propósitos, pelo tempo em que estiverem no mesmo degrau evolutivo. Isto pode durar um dia ou muitos séculos. Todos somos espíritos livres e, por princípio, devemos partir ou deixar ir, quando o ciclo se fechar”. Deitou as ferramentas sobre o balcão de trabalho, se acomodou na cadeira e prosseguiu: “Por experiência própria, sei o quanto é difícil aceitar que as fases da vida mudam, quando, muitas vezes, queremos que elas se eternizem. O Universo exige movimento. Para tanto, transformação”. A jovem lhe disse que não via sentido em abdicar do passado se este lhe parecia melhor que o presente. Com olhos que revelavam compaixão, Loureiro tentou explicar: “A vida não está preocupada com os seus desejos, mas com a sua necessidade de evolução. A cada ciclo, uma lição. Celebre, pois é chegada a hora de abrir as asas para iniciar um voo além das fronteiras do conhecido e já vivido”. Impaciente, por contrariada, a bela mulher se esforçava para não perder o controle. Então, perguntou ao artesão se ele estava lhe aconselhando a abandonar um sonho. De pronto, ele respondeu: “De jeito nenhum, sonhos são sagrados e parte primordial dos encantos da vida. No entanto, é preciso entender que os sonhos estão estritamente ligados aos nossos dons, aos talentos que devemos exercer para que o melhor em nós floresça. São as metamorfoses da evolução; as transmutações que operamos no âmago do ser a se refletir através de um novo jeito de pensar e agir. Assim vivemos o sonho; todo o resto é apenas desejo”. A jovem reclamou que ele parecia um louco em afirmar que todo desejo era ruim. “Eu não falei isso”, protestou Loureiro: “Apenas tento lhe dizer que os desejos, quando mal interpretados ou assimilados em fontes escusas, alimentam as nossas sombras. Estas, as sombras, comumente se tornam um cruel carcereiro por não nos permitirem entender que estamos presos ao nos iludir livres”. A mulher pediu que ele fosse mais específico e perguntou o que eram as tais sombras a que se referia. “As sombras se manifestam através dos sentimentos de baixa vibração como ciúme, inveja, mágoa, entre outros, e também por alguns comportamentos, como, por exemplo, a fuga da realidade”, o sapateiro elencou apenas algumas atuações do largo espectro das sombras, comuns a todos nós. Em seguida abordou o aspecto tênue de outro tipo de sombra e tocou na delicada esfera pessoal da

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jovem: “Ter como pedra fundamental da vida a vã esperança de que o outro algum dia pense e aja de acordo com a nossa vontade é abandonar-se na masmorra da ilusão e da dor”. Deu uma pequena pausa, mirou a bela jovem nos olhos e tentou concluir: “Não raro criamos um ideal de vida sem perceber o quanto isto nos maltrata, pelo absurdo de criarmos um elo de dependência entre nossas escolhas e as escolhas alheias, imaginando que ali reside a felicidade. Este é o elo que aprisiona. Como não há, nem pode haver, imposição sobre a livre vontade do outro, o erro de conceito nos empurra para o abismo do sofrimento”. A jovem, agora bastante irritada, disse que aquela oficina não era um divã, Loureiro não era terapeuta, tampouco sabia do que falava e, com certeza, era melhor ele parar de ler livros que não fosse capaz de entender. “Sim, sou apenas um velho sapateiro, amante dos livros, pensando na vida e, provavelmente, falando, de vez em quando, coisas que não devesse. Peço-lhe desculpas por ter me intrometido onde não devia”. Neste instante tinha finalizado o reparo na bolsa e a entregou à jovem. Ela perguntou o preço do serviço. Ele respondeu com seu jeito elegante e de maneira sincera: “Você não me deve nada. Acho que já lhe causei inconvenientes demais por hoje. Peço desculpas por ter me comportado como um pai aconselhando uma filha. Sei que não fui convidado para esse papel. Este talvez seja o meu erro, mas apenas este”. A moça se despediu com as feições fechadas e saiu, não sem tempo de ouvir o bom artesão desejar: “Que a paz seja convosco”. Ela parou, mirou o sapateiro nos olhos, girou nos calcanhares e partiu. Loureiro passou um bule de café fresco sem dizer palavra. Com uma xícara fumegante nas mãos, puxei conversa enquanto ele se acomodava à minha frente. Falei que concordava sobre a necessidade de romper com os velhos padrões, ideias que não têm mais lugar nas prateleiras do coração nem nas gavetas da mente, de atitudes que não levam a lugar nenhum por nada acrescentarem ou transformarem. Enfim, desamarrar as asas. Ele tomou um gole de café, me observou por algum tempo e disse: “A viagem de libertação da alma sobre os condicionamentos impostos pelo ego e pelos conceitos do mundo é a grande aventura da vida de todos nós. Ela nos leva às Terras Altas do Ser”. Deu uma pequena pausa e finalizou com um muxoxo, como se falasse consigo: “Ocorre que muitos ainda temem as alturas”.

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PELO PRISMA DA LUZ

“O que nos faz bom ou mau não é o que nos acontece, mas como reagimos ao fato”, disse o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, provocando uma grande discussão na universidade de uma grande metrópole, onde fora convidado para uma mesa de debates com filósofos, professores, cientistas e artistas. Um dos participantes, homem culto e gentil, discordou frontalmente, argumentando que as pessoas são frutos do meio em que vivem. Articulado com as palavras e ótima retórica, sustentou que as experiências do convívio social obrigam e aprisionam as escolhas, através de seus sucessos e traumas. O Velho tornou a discordar: “Atribuir ao mundo a responsabilidade por nossos erros é vestir a fantasia da pobre vítima. Isto não ajuda ninguém em nada. É fundamental que se dispa do personagem para entender que se pode fazer diferente. Seguir sem a culpa que limita, mas com a responsabilidade de que de agora em diante fará melhor, pois terá compromisso com a Luz”. O debate ficou acalorado e todos se manifestaram. A maioria pensava como o professor, e alguns outros, como o monge, que manteve a postura serena, mesmo diante de uma historiadora que atacou duramente o seu posicionamento. Ela pediu que ele definisse o que era “compromisso com a Luz”. O olhar do Velho me encontrou sentado na plateia e pude perceber o quanto ele achava tudo aquilo interessante. Tomou um gole de água e respondeu: “Compromisso com a Luz é um código de dignidade que cada um de nós tem que escrever na alma para nortear a conduta, com leis próprias baseadas no melhor que existe em si. Princípios do mais puro amor e da mais clara sabedoria devem iluminar as suas linhas e ações. Porém, como passamos por infinitas transformações, esse código de conduta não é definitivo. Ele sofrerá mudanças na medida em que aquela alma evoluir. Aos poucos, seus conceitos se modificarão por outros mais iluminados. O instrumento que permitirá tal evolução serão as escolhas que o aperfeiçoarão através das dificuldades, inerentes à vida, a lhe ensinar valiosas lições indispensáveis à evolução. Para tanto, se faz indispensável estarmos em movimento constante, na eterna busca pela Luz. Este é o compromisso, este é o Caminho”. Deu uma pequena pausa antes de concluir: “Cada qual é o herói do próprio filme e todo herói, por princípio, acaba, cedo ou tarde, por buscar o lado ensolarado da estrada”. Os ânimos se exaltaram ainda mais e nem de longe houve qualquer consenso. Mais tarde, naquele mesmo dia, comentei que me espantava vê-lo tão tranquilo diante de tanta discórdia e ataques: “Tentar convencer os outros é inútil; durante uma discussão é tolice. Devemos ouvir com respeito e falar as nossas verdades com serenidade e clareza. No silêncio da alma a boa semente um dia há de germinar. Aqui ou ali. As ideias precisam do adubo da quietude para florescer”. Falei, também, que concordava com a maioria dos debatedores. Achava que o ambiente social é determinante para a formação das pessoas, atenua e justifica as suas fraquezas. O Velho coçou a barba e disse: “Claro que tudo que nos acontece nos influencia, pois é fonte de aprendizado e, não raro, demoramos a entender. O que não quer dizer que se te acontece algo ruim, isto vá justificar uma má atitude. São essas escolhas que nos definem”. Tornei a discordar e o acusei de estar sendo muito ingênuo diante da vida. Ele apenas me observou e não disse palavra.

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No dia seguinte, quando regressaríamos ao mosteiro, o Velho me entregou um pequeno pacote e me pediu o favor de deixá-lo com uma amiga que morava no subúrbio daquela grande cidade. Ele cuidaria de outros compromissos e nos encontraríamos à noite para viajar. De posse da encomenda e do endereço, peguei o metrô e desci na última estação. Depois enveredei por uma malha de becos e vielas que seguia através de informações que conseguia com um e outro. À medida que avançava, as casas ficavam cada vez mais humildes, e tive a sensação de que jamais conseguiria sair daquela teia. Comecei a sentir medo. Em determinado momento, sem saber em qual direção seguir, ouvi uma bela voz, ao longe, cantando uma canção que de tão bonita parecia encantada e reverteu o sentimento que começava a tomar o meu coração. De imediato lembrei da Odisseia de Ulisses e do perigo que o protagonista enfrentou diante do canto das sereias. De início interpretei como um mau presságio. Entretanto, lembrei que o Velho sempre me ensinou a respeitar e interpretar os sinais. Enchi o coração de esperança, uma vez que perdido eu já estava, e deixei que a melodia me guiasse até uma casa simples e muito velha, porém bem cuidada. No quintal, algumas crianças brincavam com evidente alegria. Aproximeime da janela, e uma mulher, que não consegui precisar a idade, cantava enquanto costurava. Quando me viu, sorriu e disse: “ Eu estava lhe esperando”. Largou a agulha e se levantou para abrir a porta. Fui recebido com alegria e tomado por uma indescritível sensação de bem-estar. Ela vestia um vestido simples, porém com um belo estampado em cores fortes. Uma rosa vermelha lhe prendia os cabelos negros. Fez uma mesura e, sem que eu precisasse perguntar, falou: “Meu nome é Mercedes. Sim, eu sou uma cigana”. Levou-me até a cozinha e tirou um bolo cheiroso do forno. Chamou as crianças, eram seis, que comeram em alegre algazarra e rapidamente voltaram para brincar no quintal. Perguntei se eram seus filhos, pois achei-os muito diferentes entre si. “Sim, são todos meus filhos. Todas as crianças que passam pela porta desta casa e desejam ficar, se tornam meus filhos”, explicou. “O primeiro surgiu não sei de onde, simplesmente apareceu. Não devia ter mais de quatro anos. Disse que vivia na rua desde sempre, não tinha família e estava com fome. Convidei-o para ficar, coloquei-o na escola, cuidei dele. Ninguém veio reclamar. Depois ele trouxe outro que encontrou abandonado na rua, em condições parecidas. Também ficou. De igual modo chegaram os demais. São todos filhos; são todos irmãos. O coração tem o poder de alargar as próprias fronteiras até o infinito, na exata medida do amor que temos”, seus olhos tinham um brilho que eu nunca vira igual. Não resisti à curiosidade e indaguei se era casada ou se possuía uma família. “Perdi meus pais ainda na infância, fui criada pelos cantos, ora aqui noutra ali. Sofri o preconceito da pobreza e da minha etnia, mas desde logo resolvi fazer disto a minha força. Tornei-me uma moça vistosa, não tanto pela beleza física, mas por uma alegria que sempre fez parte de mim. Penso que esta é a causa do brilho e da atenção que sempre chamei. Casei cedo, mas meu marido logo me trocou por outra mulher que poderia lhe proporcionar uma vida mais confortável. A casa era dele. Peguei tudo que tinha, que mal enchia uma sacola, desejei-lhe boa sorte e segui em frente”, falou com a tranquilidade de quem tem a vida bem equacionada dentro de si. Eu quis saber se tudo isso tinha lhe causado revolta. “Não há espaço para mágoa, apenas para o entendimento de que cada um age de acordo com a amplitude da sua alma. Sentir-se vítima é chamar para si o papel do fraco. Lamentações nos tornam chatos e em nada ajudam. Percebi que as trombadas tinham o poder de me fortalecer, como a mão de um estivador que fica calejada e melhor afeita ao trabalho depois de tanto peso”. Perguntei como conseguia alimentar, vestir e educar aquelas crianças, que pareciam bem cuidadas e felizes. “Vivo do meu ofício de costureira. Por vezes, exerço a arte do meu

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povo de jogar cartas para falar do destino; da parte que não cabe o arbítrio; das permissões e dos compromissos que assumimos antes desta existência. Embora não cobre a consulta, as pessoas, quando satisfeitas, fazem alguma doação, que aceito com grado e acaba por ajudar nas despesas. Nunca nos faltou nada”. Ela me serviu uma xícara de chá com um generoso pedaço de bolo e em seguida falou: “Aprendi que o importante é sempre oferecer o seu melhor, colocar a maior dose de amor possível em tudo que fizermos. Depois é deixar que a magia da vida cuide do que é necessário”. A cigana me mirou nos olhos e disse em tom baixo, como quem revela um segredo: “E cantar. Cantar sempre. A música espanta os maus espíritos” e sorriu. Depois, Mercedes abriu o pequeno pacote enviado pelo Velho. Dentro além de um belo pregador de cabelos em forma de flor, que ela adorou, tinha um outro embrulho menor destinado a mim. Surpreso, abri e encontrei um par de óculos sem lentes. À parte, vários jogos de lentes de muitas cores. Atônito, olhei para a cigana sem entender o que aquilo significava. Ela jogou os cabelos para trás e deu uma risada gostosa e disse: “É uma antiga mensagem codificada entre os esotéricos. Consegue entender?” Falei que não e pedi que fosse mais clara. “Diz que podemos escolher as lentes pelas quais vemos o mundo. As do drama ou as da alegria; as da tragédia ou as das lições. O seu olhar será determinante para que o fato defina a sua reação. Olhos de drama costumam enterrar os sonhos; olhos de aprendiz alavancam a evolução”. Rimos juntos dos truques do Velho, como um mágico a nos encantar com o imprevisível. Por fim, a bela cigana me disse: “ Tem uma frase dita pelo mestre há milênios que define a maneira como atravessaremos o Caminho: ‘Se o seu olho é bom, todo o seu corpo é Luz’”.

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O ESCUDO CONTRA O MAL

“Solicitar ajuda das forças luminosas do Universo em prol de uma dificuldade da qual não se tem nenhum controle é louvável, pois demonstra humildade”, disse o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, a um homem que veio ao mosteiro suscitar auxílio em uma situação que lhe afligia. Em seguida alertou: “No entanto, pedir auxílio para que façam o trabalho que lhe cabe apenas revela a falta de entendimento das Leis, pois não acontecerá. A vida não endurece para maltratar, mas para ensinar. Não há privilégios, apenas lições”. Como uma tempestade que chega sem anunciar, a vida desse homem parecia, de uma hora para outra, virada ao avesso. Brigas familiares insensatas e complicações profissionais que levaram à dificuldade financeira inesperada, eram as consequências imediatas e visíveis do inferno que ele vivia em solo terreno. Com os olhos mareados, se confessou desorientado para continuar na luta. Estávamos no refeitório, os três, e eu lhes servia café com bolo de milho. O homem, de ótima aparência e muito culto, narrou que até há poucas semanas navegava em águas tranquilas pelos mares da vida. Uma família aparentemente bem estruturada; sócio de uma empresa que gerava lucros suficientes para sustentar condição material bem acima da média. Até que, em algum momento, tudo desandou. “A vida exige movimento. Assim, te fará caminhar por gosto ou imposição. A inércia e o comodismo são ferramentas das sombras a atolar o viajante. Aos que buscam incessantemente o aperfeiçoamento do próprio ser, a vida há de ser generosa, fornecerá todas as condições necessárias para o prosseguimento de uma viagem serena”, explicou o Velho. Deu uma pequena pausa, sorveu um gole de café e prosseguiu: “Aos que se iludem eleitos dos deuses, alheios a tudo e a todos, aos que se imaginam ‘escolhidos’, não tardará o desequilíbrio sobre as situações que o sustentam. A Lei da Evolução é parte do Código Não Escrito, obriga ao trabalho e ao progresso espiritual. Crises emocionais, brigas afetivas, desavenças familiares, dificuldades econômicas ou doenças, são alguns dos instrumentos de instabilidade utilizados pelo Universo para impor novo momento de adaptabilidade diante da realidade alterada. Agora a criatura caminhará por necessidade”. “O Caminho é muito generoso em te permitir escolher as rotas da viagem; entretanto, muito justo em elaborar as dificuldades inerentes ao trajeto. O mestre ensinou há milênios que devemos atravessar a porta estreita das virtudes. No entanto, muitos ainda escolhem seguir pela estrada larga das vantagens indevidas. Afagam o ego em prejuízo a alma. O resultado? Após os prazeres imediatos e transitórios, anda-se em círculos por trilhas cada vez mais escuras e esburacadas. Agonia e tristeza se apresentam como companheiras de viagem”. O homem, muito sensibilizado, confessou que, de fato, não vinha oferecendo o melhor de si. Aflito, perguntou ao Velho como poderia mudar a própria vida, pois não sabia para onde seguir. O monge arqueou os lábios em um sorriso repleto de compaixão e disse: “Quer um novo Caminho? Basta mudar o seu jeito de caminhar”. “Problemas sinalizam a necessidade de mudanças. Entenda o que você precisa transformar em si e se dedique a isto com sinceridade. Só então chegará a ajuda da esfera invisível”.

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O homem argumentou que sofria muito, não imaginava como fazer e, mais, a atual situação se mostrava tão nebulosa que não acreditava ser capaz de solucionar todos os problemas sem a ajuda de forças superiores. O Velho respondeu com a voz bondosa: “O Universo não quer que você sofra, porém exige que você evolua para chegar à próxima estação. Aprender, se transformar, compartilhar e seguir são momentos distintos de cada etapa nas inúmeras existências permitidas, como escolas de sabedoria e amor”. O homem disse que precisava também de muita proteção, pois tudo de ruim parecia acontecer a ele naquele momento. O monge mordiscou um pedaço do bolo e falou: “Estamos sujeitos à inexorável Lei da Ação e Reação, outra das que compõe o Código Não Escrito. Ela atrai para a sua vida pessoas e situações que lhe são adequadas, não por punição, mas de acordo com o rigor necessário para o aprendizado do aluno, no mesmo diapasão de suas atitudes. O perfume da flor atrai pássaros e borboletas; o odor do esgoto chama para si os ratos e as baratas. Assim, escolhemos os que nos acompanham e definimos o destino próximo”. “Ninguém está fora do alcance das Leis. Os guardiões ou anjos do Universo ficam impedidos de interferir em razão da situação conflitante ser parte da lição que cabe a você. Assim, você precisa se ajudar para ser ajudado. É uma grande ilusão achar que a casa do mal é o mundo. A sua raiz está em cada um de nós, em maior ou menor intensidade, a depender da expansão de consciência individual. Acredite, ninguém lhe prejudica mais do que você mesmo. Equalizar emoções e pensamentos nas ondas de Luz, envolvendoos com amor, para que possam se materializar em boas atitudes é a defesa mais eficaz contra o mal. Pois, cria uma abóbada de proteção energética a sua volta, a permitir a aproximação de seus exércitos com maior rapidez, permissão e poder. Como pode ver, o melhor escudo contra o mal é um coração puro”. “Nunca lhe faltará o auxílio. Entretanto, cada qual terá a ajuda na exata medida das suas necessidades de desenvolvimento, da vontade sincera de se transformar, de semear flores para quem vem atrás. Não podemos esquecer que as dificuldades nos trazem as lições indispensáveis para o aprimoramento da alma, muitas vezes ainda bem embrutecida, necessitando de métodos rigorosos de aprendizado”. “Reflexões e meditações no encontro consigo próprio são ferramentas poderosas para a ampliação de consciência. Leituras auxiliam na criação de ideias e sustentação filosófica. As preces germinadas no coração são de extremo valor, pois auxiliam no equilíbrio emocional, e o auxílio rogado, de algum jeito, nunca faltará. No entanto, não esqueça que santo nenhum dará os passos que cabem a você. A ajuda jamais chegará em forma de carroças repletas de ouro ou que a pessoa amada se dobre aos seus desejos. O auxílio vem através de sinais que indicam um novo sentido e aos ‘acasos’ que criam situações inimagináveis a fim de nos proteger. Ou, ainda, por intermédio de intuições que indicam as indispensáveis metamorfoses da alma, as mudanças em seu sentir, pensar e agir”. “Esta é a alquimia da vida: a transformação de sombras em luz, de dor em amor. Este é o mais precioso dos milagres e muitos nem se dão conta de que os têm na mão”. Como um vício moderno, o homem reclamou da situação do planeta, que está tudo errado em todo lugar e do mal que parece campear sem rédeas. O monge mirou em seus olhos com doçura e falou: “Quando lamentamos o mundo, criticamos a nossa própria situação interna. O mal é fruto das sombras que habitam cada um de nós, nossas imperfeições e dificuldades, a formar um coletivo de iniquidades. Do contrário é também verdadeiro afirmar que somos a Luz na construção do bem e na manutenção da Obra. Através dos

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séculos o mundo sempre foi a exata fotografia de nossos corações. Do meu e do seu. Quer mudar o mundo? Transforme a si próprio. Como? Aperfeiçoe as suas escolhas”. O homem acenou com a cabeça em concordância, mais por desconcerto do que por satisfação. Em seguida, tornou a lamentar a própria situação e insistiu que lhe fosse dito como, de forma objetiva, poderia reverter as atuais dificuldades. “Não faço a menor ideia”, disse o Velho. Diante do olhar atônito do homem, pediu para que eu lhe servisse mais um pouco de café e explicou: “Administrar a vida alheia é muito fácil; entretanto, também demonstra leviandade e arrogância. O exercício da vida, com suas dores e delícias, é a ferramenta pessoal e intransferível de que dispomos para desenvolver as asas da alma, alavancar a nossa evolução. Entenda, aceite e use adequadamente a liberdade de buscar e decidir”. “Apesar de nunca lhe faltar ajuda – e que sejamos claros, não para um desfecho mágico dos seus problemas, pois o auxílio não será na medida dos desejos do seu ego, mas das necessidades de sua alma, ou seja, por intermédio de condições para alterar, por si e através de si, a realidade –, a parte mais importante do processo terá que ser feita por você, na ampliação de sua consciência, no burilar do coração, no desapego dos velhos conceitos. Medidas que refletirão no aprimoramento das suas escolhas”. Observou o homem por alguns instantes e aconselhou: “Procure o silêncio e a quietude para ficar a sós consigo. Mergulhe fundo, conhecer a si próprio é a estrada para a plenitude. Estabeleça para si mesmo cláusulas invioláveis de amor e dignidade. Perceba o que precisa ser modificado em sua vida. Absolutamente tudo pode ser diferente e melhor. Todos os sábios já fizeram isso para romper a dureza do casulo e sentir as asas da liberdade”. O Velho pediu para unirmos as mãos e fez uma prece sentida por amor e Luz. O homem agradeceu educadamente a conversa, a oração e partiu. A sós com o Velho, falei que tinha a impressão de que o visitante tinha ficado um tanto decepcionado. “Poucos aceitam os encargos e o trabalho que lhes cabem. Todavia, se as minhas palavras forem uma boa semente, cedo ou tarde germinará”, disse o monge. Deu uma pequena pausa e finalizou: “Na verdade, as transformações exigem grandes esforços que nem todos parecem dispostos a operar. Pensam ser mais fácil rogar por um milagre, que nunca virá. O bom educador não faz o dever do aluno. Roga-se por socorro para que se materialize um castelo de muros altos a fim de garantir privilégios e mordomia, quando, na realidade, a ajuda sempre chegará em forma de ponte, toda vez que existir a vontade sincera do andarilho em caminhar e atravessar o abismo”.

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O PODER DAS ESCOLHAS

“Ser forte é uma escolha. Ninguém nasce corajoso ou covarde, no entanto, todos os dias, a toda hora, fazemos a escolha por fugir ou enfrentar a batalha que se apresenta dentro e fora de nós”, falou Canção Estrelada, o xamã que através da palavra, cantada ou não, narrava a sabedoria ancestral do seu povo. Estávamos apenas os dois, sentados em torno de uma pequena fogueira sob o manto de estrelas que inspiravam a conversa. Naquele dia tinha ocorrido um cerimonial destinado aos jovens da tribo que selava a passagem da adolescência para a vida adulta. Lembrei das palavras ditas pelo xamã ao encerrar o ritual: “O entendimento de que você é capaz de resolver os problemas que surgem, a aceitação da responsabilidade que lhe cabe e a coragem para a luta, desenham a maturidade formada no guerreiro, que, somente após ser lapidado em muitas batalhas estará pronto para se sentar entre os sábios”. Comentei que admirava a valentia de determinadas pessoas que se mostravam obstinadas em seus objetivos e verdades. Por fim, confessei, não sem uma ponta de vergonha, que eu gostaria de ser um desses. O xamã deu uma longa baforada em seu cachimbo de fornilho de pedra, me observou por instantes e disse: “Todos os heróis que conheci navegaram os mares da dúvida e trilharam as florestas do medo. São tempos sombrios, de incertezas internas, mas necessários. Buscaram na quietude e no silêncio as respostas que precisavam. As dificuldades aperfeiçoam o caráter e fortalecem o espírito. Só assim alicerçamos a força em nós e aprimoramos as nossas escolhas”. De pronto falei que não tinha compreendido todo o alcance de suas palavras. Canção Estrelada me mirou nos olhos e falou: “As escolhas são as únicas ferramentas que temos para exercitar a espiritualidade. Não há outra, daí o seu valor. Através delas você aprende absolutamente tudo que precisa: a diferenciar o bem do mal; a essência da aparência; a justiça das leis; que para ser grande é necessário ser verdadeiramente humilde; que os verdadeiros revolucionários são mansos, pois sabem que as transformações que mudam o mundo são interiores; que sem pureza no coração não existe vitória; que é impossível ser feliz sem perdoar; que sem compaixão não existe vida em comum; que sem renúncia não se pode amar e, por fim, que sempre é possível escolher diferente e melhor”. Deu uma longa pausa, com os olhos perdidos nas labaredas, e voltou ao assunto: “Gostamos de pensar que somos o discurso que narramos sobre nós mesmos ao nos apresentar aos outros. Mas não, na verdade, somos o somatório das escolhas que fazemos no decorrer da existência. Elas nos fizeram chegar até aqui, entre erros e acertos, dores ou delícias. As escolhas nos revelam e indicam o futuro próximo, pois estão inexoravelmente atreladas a Lei da Ação e Reação. As escolhas definem o Caminho”. Comentei que só naquele instante tinha me dado conta das centenas de escolhas que fazemos durante um único dia. Das mais simples, mas não menos importantes, como sorrir ao nos dirigirmos a alguém, até as mais complexas como terminar um relacionamento ou mudar de emprego. “Tudo são escolhas. E por mais opressora que seja a situação, sempre temos possibilidades de escolher. Ficar ou partir, aceitar ou lutar, falar ou calar. As escolhas são as sementes imortais da liberdade que nos habita e diferencia”, concluiu o xamã. Aproveitei e falei que passava por um momento muito difícil, pois tinha que decidir sobre questões pessoais e profissionais para que pudesse dar um rumo à minha vida. As muitas chances que se apresentavam, diante dos meus medos, acabavam por se perder.

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“Nossas escolhas são a espada do guerreiro ou a lanterna do sábio a desbravar e iluminar a estrada da vida”, explicou. Ele deu uma pequena pausa e eu aproveitei para perguntar ao Canção Estrelada por qual direção eu deveria seguir. O xamã sorriu com bondade e falou: “Ninguém poderá lhe dar essa resposta, salvo você mesmo. A sua escolha é fruto de todos os elementos que germinam dentro de você. É o instrumento que afinará a melodia da sua alma. É a expressão do seu nível de consciência e da pureza que traz no coração. Permita-se ficar a sós consigo e entender que cada escolha definirá as condições próximas do Caminho, pontes ou abismos, jardins ou desertos”. Falei que muitas vezes hesitei em seguir por algumas trilhas por pensá-las por demais arriscadas, noutras por não saber onde terminavam. Canção Estrelada explicou com paciência: “Há caminhos mais seguros, que te levam a curta distância, em paisagens previsíveis; trilhas mais perigosas, que podem te apresentar um universo inimaginável. Para fazer a escolha preste atenção em qual sentimento lhe move: a busca pelo aplauso fácil imposto pelas convenções sociais ou o mergulho profundo na viagem ao aperfeiçoamento no exercício do ser? Quando o seu movimento é impulsionado por nobres sentimentos o poder do mundo passa para as suas mãos. Esta é a magia da vida”. Canção Estrelada me olhou com severidade e disse: “Cada uma das escolhas tem que vir revestida de dignidade, coragem, humildade, alegria e amor para que o palco se descortine diante do fantástico espetáculo das possibilidades ainda desconhecidas, a permitir que desperte o sagrado que adormece em ti”. O sagrado em mim, como assim? Estranhei o termo. O xamã explicou: “Suas escolhas movimentam as suas asas ou te impedem de voar. Elas são o sal da vida, o sorriso no rosto, o encantamento por si e pelo outro, além da conexão com a pulsante esfera invisível. Assim, as escolhas têm o poder de transformar o mundano em sagrado pelo conteúdo e valor da transformação que irá gerar. Cada escolha pode ser um ato vulgar ou ter a força transformadora do milagre”. Insisti dizendo que não tinha entendido. Canção Estrelada me olhou diferente, como um pai observa um filho e finalizou com a velha e boa lição: “A todo momento o Caminho nos apresenta bifurcações. Por um lado, a atraente estrada dos desejos, repletas de holofotes, privilégios e homenagens; do outro a discreta trilha das necessidades de metamorfoses da alma, cujas as únicas luzes apenas se acendem nos corações”. O xamã ficou algum tempo sem dizer palavra, como se buscasse lembranças ancestrais, até que finalizou: “Nem tudo que reluz é luz. Apenas a chama que brota nos corações puros pode iluminar os passos. O amor tem o poder de sacralizar todos os atos e de transformar o mundo quando é a força motriz das escolhas. O maior segredo da vida é muito simples, Yoskhaz: escolhemos por puro amor ou escolheremos errado”.

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O SENTIDO DA VITÓRIA

Era fim de tarde, estávamos sentados na estação à espera do trem que nos levaria até a pequena cidade no sopé da montanha que acolhe o mosteiro. Tínhamos ido visitar uma jovem que passava por tratamento oncológico em um moderno hospital de uma metrópole não muito distante. Como de costume, o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, parecia encantado com tudo a sua volta. O movimento, as lojas, as pessoas; a alegria e a tristeza nas chegadas ou partidas; os abraços emocionados, sorrisos e choros de encontros e despedidas; os solitários. “Esta gare é a síntese do mundo”, comentou sem me olhar, sabendo que eu o observava. Comentei que achava estranho a mania de ele encontrar beleza em tudo e em todos. “É preciso exercitar o veralém das aparências, das formas e, principalmente, da ilusão. É necessário nos encantar com a essência. O mestre nos ensinou que ‘quando seu olho é bom, todo o seu corpo é luz’”, citou um pequeno trecho do Sermão da Montanha. Aleguei que a prática era bem diversa da teoria. Usei como exemplo a moça adoentada que tínhamos visitado naquele dia. O médico não dera nenhuma garantia de sucesso no tratamento e o futuro dela era uma incógnita. Como agravante, ela vivia como quem tem uma faca afiada no pescoço, na iminência do corte. “Todos temos. Apenas desconhecemos a hora e o jeito do golpe. As lâminas se apresentam com inúmeras faces. Acidentes, catástrofes, assassinatos; doenças inesperadas, lentas ou fulminantes; os vícios e as tristezas, graves variantes de suicídio inconsciente; a contagem variável, inconstante, e implacável da ilusão do tempo”, deu uma pequena pausa e comentou: “A propósito, você reparou como ela estava feliz”? Falei que era tudo jogo de cena para tentar alegrar os parentes que a amavam, pois ninguém poderia ficar bem diante daquela situação. O monge deu de ombros como se eu não tivesse entendido nada e falou: “Eu conversei muito com ela. A doença trouxe a reflexão sobre a morte. Isto a fez alterar o sentido da vida, pura expansão de consciência. Houve uma mudança de valores. Situações relegadas a segundo plano, sentimentos adormecidos e compromissos esquecidos ou adiados ganharam importância e emergiram para obter força e poder. Coisas que sempre foram urgentes acabaram por evidenciar a sua irrelevância. Tudo mudou. Por vezes, a doença do corpo é o remédio da alma. Para alguns é o método mais eficaz de cura. Não tenha dúvida, a felicidade e a paz que ela sente são sinceras e, provavelmente, nunca as teve antes, ao menos com tamanha magnitude”. “Dificuldades e decepções podem abater e consumir as nossas forças ou podem nos ensinar preciosas lições de aperfeiçoamento e força para o próximo bom combate, que sempre virá. Seja de uma maneira ou outra, o Universo sempre conspira a nosso favor, cabendo a nós entender e aproveitar, ao invés de atrapalhar ou lamentar. Em todas as situações, sejam vitórias ou derrotas, dores ou delícias, a vida sempre oferece um cálice repleto de veneno e outro de mel. Nós escolhemos qual beber”. Falei que talvez de nada adiantasse todos os ganhos espirituais adquiridos pela moça se lhe restasse pouco tempo de vida. O Velho balançou a cabeça contrariado antes de falar: “Isto não tem importância”! E antes que eu articulasse qualquer palavra, prosseguiu: “Não percebe que esse novo olhar é herança eterna, tesouro imaterial que ela poderá levar na

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bagagem para o próximo trecho do Caminho? Este ganho é real! Esquece que a viagem não tem fim? A doença foi apenas o caldeirão, mas poderia ter sido uma separação conjugal ou uma demissão trabalhista. O importante é que ela se permitiu acrescentar o ingrediente essencial: amor sobre todas as coisas. Depois mexeu com a colher da sabedoria concedida pela própria expansão de consciência. Pronto, eis a magia da transformação do chumbo em ouro. Esta é a alquimia da vida”. Somente naquele momento me dei conta de alguns casos conhecidos de pessoas que ficaram melhores e mais interessantes após dolorosas situações de divórcio ou falência. Viram o céu fechar, enfrentaram terrível tempestade e sobreviveram para se reinventar e voar mais alto do que eram capazes de imaginar antes das dificuldades surgirem. Como se soubesse os meus pensamentos, o Velho comentou: “A derrota ou a vitória, independente do aparente júbilo ou tragédia, se define na amplitude do seu olhar. É uma escolha da alma. Algumas vezes a vitória só é permitida na derrota”. Como assim? Confessei que não tinha entendido. O monge manteve a sua enorme paciência para que eu compreendesse o óbvio: “Ganhar nem sempre é vencer, pois existem dois aspectos verdadeiros e ocultos nesta sentença. O primeiro é que não se atinge a vitória ganhando a qualquer custo. Há que se trilhar o inevitável caminho da dignidade ou nada terá valor. O outro, nasce da lógica inversa: perder nem sempre significa derrota. Enquanto o desesperado chora pela tragédia, o sábio agradece pelas asas”. Diante do meu espanto, exemplificou para me ajudar: “Para o enfermo a proximidade da morte pode lhe oferecer a infinita dimensão da vida. Quando isto acontece a felicidade e a paz são indescritíveis. Perde-se o corpo, ganha-se a alma”. “Quantas vezes o afastamento da pessoa amada não foi a oportunidade para se aproximar e conhecer a si próprio? Perde-se o outro, ganha-se a si mesmo”. “A demissão do emprego que significava a ilusão de estabilidade pode proporcionar o desenvolvimento dos seus dons e talentos, resgatar o sonho escondido e permitir o despertar de todo o potencial pessoal e profissional adormecidos. Perde-se uma vaga, ganha-se o mundo”. “Esses são os milagres da vida. As transformações indispensáveis que permitirão florescer o melhor que nos habita. Para tanto, algumas vezes, é necessário a forte pressão da terra para que a semente exploda e germine”. Deu uma pequena pausa, me mirou fundo nos olhos e disse: “A felicidade e a paz não serão nunca uma condição material, mas sempre uma decisão filosófica em aprender, transmutar, compartilhar e seguir”. Neste instante o trem apontou na estação, e diante do meu desconcerto, eu ainda tentava alinhar todas aquelas palavras, o Velho deu um sorriso maroto, apontou o vagão com o queixo e disse: “É hora de partir, Yoskhaz. Ou você prefere ficar?”

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A FUGA DO MUNDO

Era um típico dia de inverno. O céu azul, completamente sem nuvens, permitia que o sol nos acariciasse a pele sobre o casaco de lã, em gostosa sensação de aconchego. O dia ainda amanhecia quando fui chamado ao portão para encaminhar um senhorzinho que desejava conversar com o Velho, como carinhosamente chamávamos o decano da Ordem. Como era cedo, o monge sugeriu que a conversa fosse no refeitório ao imaginar que o visitante partira ainda no escuro para alcançar o mosteiro, na montanha, àquela hora. Como a meditação era a primeira atividade do dia, ainda em jejum, e já havia sido realizada, todos nos sentamos à enorme mesa. Quando os demais monges se retiraram para os seus afazeres, o Velho perguntou ao visitante como poderia ajudá-lo. O homem manifestou a vontade de fugir do mundo, uma vez que a solidão o corroía por se sentir abandonado por filhos e netos, cujas visitas eram cada vez mais raras. Tinha a forte resolução de abraçar a vida monástica, aderindo às fileiras da Ordem. Com o olhar suave e voz repleta de bondade, o monge começou a explicar: “Solidão não significa desistência, tampouco fugir do mundo lhe trará a desejada paz. É necessário entender a busca para direcionar o leme do destino”. O homem declarou que estava cansado das ingratidões da vida em sociedade, que tinha se dedicado ao trabalho e à família por toda sua existência para receber apenas esquecimento como moeda de troca. Amargurado, confessou que, se não tinha mais importância para os seus, era melhor se afastar. “Tudo errado”, disse o Velho depois de ouvir com paciência todo o rosário de lamentações. “Para começar é bom lembrar que cada qual tem seus afazeres, compromissos e interesses que tomam tempo. Todos têm uma vida pessoal para cuidar. Aceitar que não somos o centro da vida alheia é um bom início para afastar as lamentações indevidas”. “Em seguida, é necessário entender que entre membros de um mesmo grupo familiar ou social sempre haverá alguns acenando com dívidas emocionais ancestrais. Justo com estes estão guardadas as nossas lições evolutivas; através desta via nos será oferecida as preciosas lições de amor através do exercício da paciência, tolerância, compaixão e, principalmente, do perdão. Fechar a porta é se negar à lição”. “Depois, é importante perceber que a solidão não significa abandono. Porém, encontro. É a oportunidade de iniciar o relacionamento mais importante da sua vida: consigo mesmo. É a sinuosa estrada para o autoconhecimento, primeiro estágio para a indispensável e posterior plenitude. É fundamental que façamos um mapa detalhado de quem realmente somos para, somente então, aparar as arestas que rasgam os relacionamentos e ferem a paz. Somente assim iluminaremos as ideias e emoções que tanto nos atrapalham, por obsoletas e nocivas. Ao contrário de como é tratada pejorativamente, a solidão é maravilhosa, se bem aproveitada. Para tanto, precisamos da quietude e do silêncio que a solidão oferece. Uma boa maneira de ficarmos frente a frente com a própria essência, identificando o sagrado que há em nós. Assim, o que é sombra se torna luz”. O homem observava com interesse, e o Velho continuou a falar: “A grande lição desse momento é o rompimento da dependência emocional em relação aos outros. É medonha, equivocada e triste a ideia de mendigar ou cobrar afeto e atenção para sustentarmos a felicidade. Um total absurdo nascido da incompreensão das próprias capacidades. Por outro lado, seria enorme crueldade a obrigação de carregar o pesado fardo da felicidade

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alheia. Apesar de todas as dificuldades e conflitos, o Universo oferece a cada qual as perfeitas condições para conquista da felicidade. Por si e em si”. Mirou o visitante nos olhos e confessou: “Este momento é mágico”! “Então, é chegada a hora do passo seguinte: compartilhar com o mundo o que floresceu em seu coração. Do que adianta um belo pomar se ninguém tem acesso para se deliciar com o mel de suas frutas? É o momento de retornar e intensificar o convívio social. Somente os encontros permitem que possamos oferecer o que temos de melhor, além de mostrar as dificuldades ainda não vencidas na busca pelo aperfeiçoamento. É como semeamos e colhemos nos campos da humanidade”. O senhorzinho baixou a cabeça, lamentou que ninguém estava interessado nele e que acreditava que, por sua idade avançada, já não tinha qualquer serventia para aqueles que o cercavam. O Velho arqueou os lábios em doce sorriso e disse: “É preciso tirar a fantasia da vítima, trocar os óculos do drama. Seria bom uma reflexão sincera para que você entenda exatamente o que está entregando a sua família. Você está disposto a oferecer o seu melhor ou apenas se acomodar no desejo de que tudo e todos girem ao seu redor? Exigir ser a pessoa mais importante na vida do outro é uma das maiores causas de conflitos existentes. Flor do egoísmo, raiz do ego. Um equívoco desnecessário”. O homem retrucou dizendo que tinha lutado por toda uma vida para construir uma família e, agora, as pessoas pareciam ter esquecido dele. O monge pediu para que eu colocasse mais um pouco de café em sua xícara e falou: “Tenha a generosidade de aceitar que cada qual se move de acordo com os seus interesses, doa apenas na medida da sua capacidade, e enfrenta as exatas lições cabíveis para o aprendizado necessário”. “O amor, para existir de verdade, tem de ser incondicional. Ele exige renúncia ou não é amor. Um dos alicerces da plenitude sustenta que devemos nos aprimorar para sempre entregar ao outro o que de mais valioso nos habita; em troca, aceitamos de bom grado o que nos é oferecido, ainda que muito pouco ou mesmo nada. Entender isto é unir o mais puro amor com a mais fina sabedoria. Na viagem evolutiva aprendemos que cada qual apenas pode oferecer o que tem em sua carteira sagrada, o coração. Como exigir cem de quem só tem dez para dar? Como esperar flores de quem está soterrado em pedras? Impossível. Cada qual pensa e reage de acordo com seu estágio de consciência naquele momento”. O senhorzinho retrucou que estava cansado e não tinha mais forças para seguir no difícil propósito da lapidação do ser. Melhor seria se juntar aos monges na Ordem, insistiu. O Velho mirou o homem nos olhos e disse: “Sair do mundo para encontrar consigo, tudo bem; fugir do mundo para desistir da vida; tudo errado. O mosteiro não é um esconderijo ou lugar para quem se abandonou. Aqui é um local de estudo e trabalho, onde todos entendem a alegria do burilamento. Buscamos a solidão para meditar e refletir, como trilha para o autoconhecimento; o trabalho comunitário como instrumento para promovermos a festa da vida, que é a troca com o outro, cada qual, parte a parte, oferecendo os seus melhores e mais sinceros sentimentos”. Com os olhos mareados disse com emoção: “Descobrimos que na caridade ganha mais quem dá do que quem recebe. Creia nisto”. Deu uma pequena pausa antes de prosseguir: “No entanto e para tanto, não é necessária uma vida monástica. Cada qual é um centro individual de poder, um precioso templo e

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qualquer canto silencioso tem a quietude necessária para acalmar os tambores do mundo e lhe permitir ouvir a voz do silêncio que a alma sopra. Transformar em jardim o deserto do ser é a alquimia da vida. Começamos conosco, depois espalhamos a magia e as flores para o mundo”. O homem confessou que tinha medo de não ser amado e que estava ali para chamar a atenção da família. Tinha o desejo secreto de que fossem resgatá-lo no mosteiro. O Velho riu com vontade, depois acrescentou: “Imagine se, em profundo respeito às suas escolhas, o que seria correto, eles apoiassem o seu ingresso na Ordem? O seu sofrimento seria incomensurável. Não raro, somos vítimas de nós mesmos”. Deu uma breve pausa e falou: “Procuramos a escuridão da caverna na ilusão de nos proteger da dor. Quando, na verdade, precisamos da luz da vida para ver as feridas que precisamos curar”. Contrariado, o visitante lamentou não conseguir ajuda ali. Girou nos calcanhares e partiu. O Velho franziu as sobrancelhas como dizendo que tinha feito o possível e se as sementes das suas palavras fossem boas, haveria, algum dia, de germinar. Em seguida, piscou um olho como quem conta um segredo e falou com seu jeito manso: “Ofereça sempre o seu melhor e não espere nada em troca; no dia seguinte ofereça um pouco mais e espere menos ainda”.

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AS SUTILEZAS DA VERDADE

O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, cuidava do jardim no pátio interno do mosteiro quando chegou um homem que nos procurou em busca de amparo às suas aflições. Sentia-se atormentado com uma série de atitudes do passado que, agora, vinham lhe corroer a consciência. O Velho fez sinal para que eu mesmo o atendesse sentado à sombra da roseira. O homem me contou uma triste história em que impusera dor e sofrimento a outras pessoas. Indignado, fui duro em minhas palavras, sem poupar a minha revolta pelo que acabara de ouvir. Visivelmente constrangido, o homem agradeceu, por educação, não por sentimento, se levantou e foi embora. O monge, que a tudo assistira, disse: “A sabedoria milenar nos ensina que ‘não é não; sim é sim’, mas temos a escolha de dizer a verdade com mel ou com fel”. Retruquei dizendo que não podemos vacilar com a verdade. Dura ou amarga ela tem que ser dita. “Nesse caso, ele tinha a exata medida dos equívocos do passado, precisando mais de compaixão do que de reprimenda”, o monge expôs seu ponto de vista. O Velho repousou o alicate no bolso, me ofereceu um sorriso bondoso e falou: “A verdade será sempre um valioso remédio. Como todo medicamento, a dose inadequada se torna veneno”. “A verdade é terapia essencial de cura. Impossível atravessar o Caminho sem nos aliarmos a ela. Somente a verdade ilumina as feridas que tanto incomodam, mas ainda não diagnosticamos”. “Todavia, a escolha das palavras, a maneira e o momento de falar são posologias desse valioso remédio. Não podemos nos reportar a todos de um único jeito ou na mesma hora. Alguns já são capazes de suportar doses maiores, em outros, temos que começar ministrando pequenas gotas, para que não haja rejeição, casos em que almas embrutecidas e despreparadas entram em colapso e se negam a prosseguir em tratamento de cura”. Deu uma pequena pausa e disse: “Lembre-se de que a verdade absoluta nos aguarda em estação distante. Ela vai se apresentando passo a passo, para todos, sem distinção, na medida do andar e do ritmo de cada um no Caminho. Não é diferente para mim ou para você”, disse o Velho. Contrariado, provoquei dizendo que, em alguns casos, talvez fosse melhor mentir. Ele arqueou os lábios em leve sorriso ao perceber a minha intenção e falou sem perder a calma: “Penso que jamais devemos mentir. A mentira sempre será um elemento da escuridão por enevoar a realidade, iludir o andarilho e atrasar a viagem. A mentira é uma profunda falta de respeito tanto para o autor quanto para o destinatário”. “No entanto, você deve ter a exata dimensão de qual sentimento te move antes de proferir qualquer palavra. A sua intenção é usar a verdade para curar ou para ferir? Não raro vejo a verdade sendo usada apenas para impor sofrimento, sem qualquer função educativa. Casos, estes, em que é melhor calar. Não se esqueça que sempre poderemos utilizar uma boa ferramenta para o bem ou para mal. Usa-se o martelo tanto na construção quanto na demolição”.

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Naquele momento me senti desorientado e confessei que não sabia como agir em situações, por vezes, bastante delicadas. O monge tinha a pele bastante vincada pelo tempo, marcas de muitas lutas, que serviam de interessante moldura para os seus olhos, ainda brilhantes e repletos de bondade. Ele disse com seu tom de voz sempre sereno: “Assim como não podemos revelar todo o conhecimento para uma criança que acaba de entrar no colégio, por ela precisar de maturidade e aprendizado sobre certas disciplinas para entender outras de maior complexidade, muitos de nós ainda estamos na infância da alma. É inútil ensinar o cálculo de uma raiz quadrada para alguém que ainda não domina as quatro operações básicas. A pedagogia de ensino para um universitário é diversa para aquele que ainda está nas classes primárias. Para cada qual a lição exata, a medida e a maneira de revelar a verdade, de acordo com a capacidade de percepção do aprendiz”. O Velho segurou em meu braço e me fez caminhar com ele pelo jardim enquanto continuava a falar: “Como poderosa lanterna, a verdade traz o poder de mostrar as sombras que nos habitam e dominam. Estas são as feridas que precisam de medicamento e cura. Nem sempre é agradável ver. Há que se ter coragem e, acima de tudo, temos que estar prontos para enfrentar um inimigo sagaz: cada qual na tentativa de iludir a si próprio sobre a justificativa de seus erros. Nossas sombras iludem a consciência, pois para sobreviver se fingem protetoras a manipular o ego, que por defesa repudiará a verdade”. “A verdade é um instrumento que deve ser bem aproveitado tamanho é o seu valor. Por sua sutileza, deve ser afinado pelo diapasão do coração, dedilhado com a sensibilidade da sabedoria. Sem esquecer que não se compõe uma sinfonia em um único dia. Yoskhaz, a paciência é uma bela e indispensável virtude, companheira inseparável da verdade”. Ainda tentando alocar as ideias em minha mente, citei uma expressão popular que diz que ‘a ignorância protege’. O Velho riu com vontade e depois me disse: “A ignorância nunca protege, apenas ilude e aprisiona em falsa sensação de segurança. É como manter um pássaro em uma gaiola sob a alegação de resguardá-lo dos perigos do mundo. É como se o desconhecimento da existência de um problema o fizesse desparecer. É como se o fato de esconder a doença de um paciente fosse capaz de levá-lo à cura. Enfim, pura bobagem”! Deu uma pequena pausa e finalizou: “A verdade é a ponte necessária para alcançarmos a imensidão da liberdade e a grandeza da justiça. Sem aquela não teremos estas. Essa ponte está à disposição de todos, mas não fácil percorrê-la. Alta e extensa, é preciso coragem para atravessar sobre o enorme abismo das atraentes sombras; delicada e sutil, necessita de sabedoria para abdicar de muitas coisas tangíveis, que tanto pesam, em prol das belezas invisíveis que conferem leveza; e, por fim, por estar tão sujeita às intempéries da vida, torna indispensável o amor na sutileza de entender que essa travessia, muitas vezes, é solitária, pois nem todos, neste instante, possuem o equilíbrio necessário para manter os passos até o outro lado”.

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TRISTES CREDORES

O vento frio do outono circulava junto comigo pelas estreitas e sinuosas ruas de pedra da secular cidadezinha situada no sopé da montanha que abriga o mosteiro. A tarde ainda estava pela metade, eu já tinha encerrado os meus afazeres e aguardava uma carona que só aconteceria no início da noite. Meu corpo encolhido se protegia das rajadas por entre muros e reentrâncias das charmosas construções, até que vi a antiga bicicleta de Loureiro, o elegante sapateiro, amante dos livros e vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina. Consertar sapatos era o seu ofício; remendar almas, um dom. Satisfeito com a sorte, pensei que nada podia ser melhor do que um café quente acompanhado de boa conversa em um final de tarde vadia. Assim que entrei na loja quase fui derrubado por uma bela mulher, já de meia-idade, que saiu como um trator desgovernado pela própria irritação. O bom artesão me recebeu com o seu melhor sorriso e, logo após sentarmos diante de duas canecas fumegantes colocadas sobre o balcão da oficina, disse se referindo à mulher que por pouco não me levou ao chão: “É uma credora emocional. Uma triste e eterna credora”, deu uma pausa antes de completar: “Pelo menos é assim que se arvora diante de todos que cruzam os seus passos”. Eu quis saber sobre a razão do termo. Ele explicou: “Os tristes credores são aqueles que não conseguem reagir diante das dificuldades que se impõem. Como sabemos, sempre viveremos situações desconfortáveis e, por pior que seja, o problema nunca é o problema em si, mas a dificuldade de reação diante da situação. A inércia é prejudicial e surge por não percebermos as lições escondidas por trás de todos os problemas. É fundamental entender que todos os conflitos trazem consigo mestres ocultos a despertar o melhor de nossas capacidades. Todos os problemas são ferramentas de transformação pessoal, desde que o enfrentemos com dignidade e sabedoria”. Deu um gole e continuou: “No entanto, o triste credor prefere vestir a máscara da vítima e indicar um culpado pelo próprio sofrimento. Assim, de maneira inconsciente, paralisado pelo medo de enfrentar a situação, na verdade, deseja que o outro resolva um problema que cabe a ele solucionar. É uma atitude cômoda e bastante infantil, mas comum em muitos adultos, que leva ao desespero, ao ódio e até mesmo à depressão. Eles são completamente refratários a qualquer responsabilidade, sempre tendo um eleito para derramar a culpa pela sua decepção, o que acaba por levar a grandes sofrimentos. Repare, estão sempre brigando com todos, apontando os defeitos alheios e reclamando das imperfeições do mundo”. “Assim, de maneira absurda, se creditam de infundados direitos sobre os outros”. O sábio artesão fez uma breve sinopse daquela história. A mulher era sua ex-namorada e tinha uma filha adolescente oriunda de outro relacionamento afetivo, que morava com ela desde a separação com o pai da moça. A relação entre mãe e filha era péssima, pois, por vício, a mãe sempre culpava a adolescente por todas as suas eventuais frustrações. Cobrava-lhe o tempo, o trabalho e o amor dedicado em sua educação, como se isso não lhe coubesse por pura responsabilidade amorosa e materna. Claro que o peso dessa carga emocional e psicológica atingiu o nível do insuportável para a jovem. Na volta de uma viagem de passeio que a mulher fez com o sapateiro, coincidindo com o período de férias escolares que a menina passava todo o ano com o pai, recebeu a notícia de que a jovem moraria definitivamente na casa paterna. Pesou nessa escolha a paz necessária encontrada no novo lar, indispensável para desenvolver o seu potencial e viver a vida sem conflitos

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desnecessários. Como se não bastasse, na mesma época, também chegou ao fim o namoro entre a mãe e o Loureiro. Ela alegava que o convite para a viagem, feito pelo sapateiro, tinha sido angular para a escolha da filha, o que tornou o romance insustentável, vez que atribuía a ele a razão do que chamava de desastre. “Pronto, a partir de então me tornei o perfeito algoz das suas insatisfações. Na cabeça dela virei seu devedor. Em vão. Como me recuso a aceitar a conta, ela reage com revolta”. “Embora, por diversas vezes, antes da ruptura, eu tivesse conversado com ela sobre o seu comportamento equivocado diante da filha, no qual, ao meu ver, havia cobranças descabidas. Mas os eternos credores têm, entre suas características, o hábito de não ouvir nada que esteja fora de sintonia com a ansiedade insensata de que a vida atenda a todos os seus desejos, sempre dentro do menor esforço possível. Nesta evidente impossibilidade, elegem seus devedores, atribuindo aos mesmos o encargo de resolver os problemas cujas soluções, na verdade, cabem aos próprios credores”, explicou o sapateiro. “Claro que ninguém consegue ou suporta tal obrigação”, Loureiro fechou os olhos e passou a mão para alisar seus fartos cabelos brancos. E continuou: “Os tristes credores costumam ter uma espécie de livro-caixa virtual em que contabilizam todo e qualquer ato que entendam ter feito em prol do devedor. Qualquer coisa serve, o importante é que os absurdos créditos não tenham fim. Depois acrescentam juros emocionais. Assim, criam uma suposta dívida para justificar a cobrança que passam a executar. Declaram-se lesados na relação, como se o afeto, ou mesmo o favor, pudesse ser medido, calculado ou cobrado. A vitimização criada pode ser confortável ao credor em um primeiro momento, por estabelecer a desculpa que lhe afaga o ego e supostamente transfere a própria responsabilidade. Porém, na verdade, é um pântano lodoso que o deixa atolado, sem condições de prosseguir na inevitável viagem da vida”. Tudo me parecia óbvio demais e, espantado, perguntei se o bom artesão já tinha conversado sobre isso com ela. “Muitas vezes”, ele disse resignado: “Ainda quando namorávamos, tentei ajuda-la e até mesmo anunciei a possibilidade de a filha acabar indo morar na casa do pai por não suportar uma dívida que simplesmente não existia. Por sua vez, a menina se esforçou bastante para que o ambiente no lar materno se harmonizasse e até mesmo que o hipotético débito fosse ‘pago’ ”. O sapateiro me mirou nos olhos, balançou a cabeça em negação e disse: “Ocorre que os tristes credores nunca dão quitação. Eles precisam que a dívida seja eterna, pois necessitam alimentar o próprio vício, até que aquele que é eleito devedor entende que precisa impor um limite. Então ocorre o corte, e todo corte sangra”. Comentei que era um absurdo a mãe atribuir qualquer culpa ao Loureiro pelo ocorrido. Ele riu com vontade e disse: “Eu sei. Ocorre que o triste credor não se importa com qualquer coerência ou lógica. A mente humana possui trilhas tortuosas e desconexas que iludem na tentativa de justificar uma conclusão que seja sempre agradável e conveniente ao ego. Nestes casos os argumentos usados sempre são incoerentes ou absurdos. Pouco importa”. Eu quis saber por qual motivo ela tinha ido lhe visitar. Ele balançou a cabeça como quem diz ‘não tem jeito’ e explicou: “A solução mais fácil e cômoda para ela foi atribuir a mim a responsabilidade pela decisão da filha. Alega que se não tivesse aceitado o convite para viajar comigo a jovem ainda estaria morando com ela. A mãe se nega a buscar a origem

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das fraturas sentimentais acontecidas durante o tempo em que dividiu a vida sob o mesmo teto com a filha. Como se não bastasse, ainda acusa a filha de ingratidão, na contramão da sensatez de resgatar o que se perdeu”. “O erro tem duas vertentes: pode se tornar uma ferida difícil de cicatrizar ou o ponto de partida para uma vida diferente e melhor. A escolha é sempre sua. Admitir erros é doloroso, mas indispensável para a cura. É preciso coragem para enfrentar o espelho e a dignidade de não permitir as distorções exigidas pelo o orgulho e pela a vaidade. Negar os benefícios do conflito é perder a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre si mesmo, estágio fundamental no processo evolutivo, sem o qual nunca encontrará a tão sonhada paz”. “Conheça a si próprio, peça desculpas com sinceridade, tenha a responsabilidade de reparar o que for possível, assuma o compromisso de uma nova postura e siga adiante. Assim caminhamos”. Bebericou mais um gole de café e definiu: “Só não fique parado se lamentando de tudo e todos. Recusar o esforço para crescer é negar nova oportunidade à plenitude do ser”. “A arma predileta dos tristes credores é a chantagem emocional. Ele dirá que você é a causa da dor dele. Isto é um convite para um baile trevoso. Recuse veementemente. O mais importante, mesmo que exista erros, é entender a desnecessidade de algemas ou grades afetivas. Dívidas eternas são criações das sombras. A Luz exige evolução, para tanto, trabalha com o perdão, a responsabilidade e a liberdade”, explicou o bom artesão. Fiquei curioso para saber como ele se protegia dos tristes credores ou, no caso específico, não se sentia atingido diante da enorme cobrança, vez que se mostrava tão sereno. O sábio sapateiro respondeu com sua voz mansa, que refletia o verdadeiro espírito do seu coração: “As pessoas só têm sobre nós o poder que concedemos a elas. Nunca permita que lhe furtem a preciosa paz”. Deu uma pequena pausa para que eu refletisse sobre a frase que acabara de proferir e continuou: “A dependência emocional é um triste vício. Não podemos permitir que ninguém nos faça prisioneiro de suas insatisfações e frustrações. Ninguém tem a obrigação de fazer o outro feliz. É um ônus insuportável. Na verdade, cada qual é responsável pela construção da própria felicidade, com a argamassa dos sentimentos puros e os tijolos das nobres virtudes. Então, encantado com a vida, abre as portas para que o mundo também se encante com a beleza que traz no coração”. !

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O ENCANTAMENTO DOS RITUAIS

A manhã parecia modorrenta. Era o último dia do ano e eu acompanhava pela web os preparativos para as festas em vários lugares do mundo. Todos os jornais traziam as mesmas notícias. A preguiça e o mau humor estavam instalados nas minhas entranhas. Após o desjejum, o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, percebendo o desânimo, me convidou para uma caminhada por uma das trilhas na floresta da montanha que abriga o mosteiro. Por algum motivo que não sei explicar, andar ativa a mente e comecei a desfiar minhas lamentações sobre a desnecessidade das comemorações de Ano-Novo, afinal seria uma noite como as outras, com nuvens ou estrelas, e o sol inexoravelmente raiaria pela manhã. O monge nada comentou. Animado ao imaginar que ele concordava comigo, quis saber o que ele pensava. O Velho me olhou rapidamente, me ofereceu um sorriso gaiato e disse: “Acho que você está muito chato, Yoskhaz”, e continuou andando. A irritação apenas aumentou. Provocado, eu indaguei sobre uma justificativa sensata a respeito de várias festas que se faziam mundo afora durante o ano, na s quais me parecia que as pessoas somente queriam comer, beber e dançar. Ele continuou os seus passos no ritmo lento, porém firme, que lhe caracterizava, até chegarmos a uma bela clareira que também era um mirante com uma vista indescritível. Sentou-se em uma pedra e falou: “Todas as comemorações são rituais que acompanham a humanidade desde tempos imemoriais. Surgiram algumas nos últimos séculos, como o Natal; desapareceram outras, como o solstício de verão. Os rituais têm a grande importância de unir os homens atrelados a interesses em comum”. Retruquei dizendo que não era verdade, pois utilizando o próprio Natal como exemplo, apenas percebia as pessoas interessadas em presentes e comilança, esquecendo do principal motivo do evento. Ele me olhou repleto de compaixão e falou com a voz suave, marcas registradas de uma personalidade que ao mesmo tempo era mansa e forte, para explicar: “Ainda que o Natal seja a data designada para lembrar o nascimento de um mestre entre nós, tão importante que tem a força de dividir a História e a própria cronologia em AC e DC, apesar de muitos esquecerem a preciosa essência, as festas natalinas mantêm o poder de ser um cerimonial familiar. É quando, tão somente, muitas famílias em boa parte do planeta conseguem se reunir. Parentes que não se viam há longo tempo, ou moram distantes, voltam a conviver. Claro que muitas rusgas vêm à tona, mas também é uma excelente oportunidade de aparar as arestas para quem já possui amor e sabedoria suficientes a fazer bom uso do momento, a costurar laços que desamarraram ao longo da vida. A família, independente se à moda antiga ou moderna, é o poderoso embrião da sociedade e a trincheira segura em que todos se abrigam durante as inevitáveis batalhas da existência. Assim, de alguma forma, inconsciente ou não, pode se tornar um cerimonial mágico capaz de atingir os ideais de amor e sabedoria a modificar o amanhã de muitos, na paciência e compaixão ensinadas pelo mestre”. Não satisfeito, falei que talvez ele tivesse razão quanto ao Natal, mas o que me dizer do réveillon? Uma festa ridícula na qual as pessoas se iludem que suas vidas irão mudar pelo mero fato de estabelecer uma data para isto. O Velho me olhou com espanto devido a minha irritação e deu uma gostosa gargalhada, como quem se diverte à vera. Depois falou sério: “O mundo tem as cores do seu olhar. Quando o seu olho é bom, todo o universo é luz”, deu uma pausa para que eu lembrasse de que ele já tinha me explicado sobre a beleza

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em ver a beleza em tudo e em todos. Teoria sem prática é o desperdício da semeadura sem colheita. Em seguida continuou: “A vida é um imenso ciclo composto de vários outros pequenos ciclos”, tornou a lembrar outra lição que ensinava que a existência é uma viagem sem fim, com inúmeras estações. Prosseguiu: “Um ciclo só se inicia com o término do anterior. Eles não podem coexistir, pois são aprendizados que te preparam para o que vem a seguir. Assim, o ritual do Ano-Novo tem a força de nos permitir avaliar, em retrospectiva, o quanto avançamos nos últimos doze meses e o que nos falta para fechar a fase. É o cerimonial em que assumimos compromissos de transformação e crescimento com a pessoa mais importante de nossas vidas: cada qual a si mesmo. Isto o torna importante”. Lamentei que muitos não viam dessa maneira e desperdiçavam o momento. Para provocálo, disse, ainda, que muitos apenas conseguiriam contabilizar as perdas de um ano. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e não permitiu que a minha irritação o abalasse. Respondeu com doçura: “Embora um ano possa ser perdido, apenas existem ganhos. Os fracassos são importantes ferramentas a instrumentalizar as futuras vitórias. Muitos ainda precisam das dificuldades para amadurecer, em jornada dolorosa como reflexo de decisões tomadas no passado. Assim, o sofrimento pode vir a ser o remédio que irá cicatrizar as feridas da alma. O aproveitamento das oportunidades está na justa medida do nível de consciência de cada um, que há de se expandir, cedo ou tarde, acompanhando a evolução de todo o Universo. A cada escolha vamos determinando o próprio destino ao definir as dificuldades que surgirão no Caminho, em rota de aperfeiçoamento. Tudo que traz transformação é mágico, por definição filosófica. Assim, o réveillon cumpre a magia do cerimonial de transformação a que se propõe no inconsciente coletivo”. Quando me preparava para replicar, mais por teimosia do que por lógica, o monge fez um gesto sereno com as mãos e disse: “Escute a voz do silêncio. Permita que seu coração lhe conte as verdades que seus condicionamentos cultural e social bloqueiam. Não permita que o pessimismo o contamine. Deixe que as cores da vida encantem o seu olhar”. Fiquei um tempo que não sei contar sem dizer palavra. O silêncio e a quietude, aos poucos, me envolveram em ambiência de serenidade que trouxe a claridade da razão e a tranquilidade nas emoções, afastando as névoas do preconceito e o véu das formas obsoletas, permitindo um olhar diferente. Um sorriso me veio aos lábios. Então, o Velho finalizou: “Os rituais trazem o encantamento de sinalizar as fases da existência. Os ciclos têm o poder de movimentar os avanços pessoais no Caminho. Os avanços significam o entendimento que vamos adquirindo sobre as Leis Não Escritas a pacificar mente e coração. Porém, estamos assolados pela pressa e preocupados com as muitas desnecessidades, desperdiçando a beleza da paisagem. Não basta saber sobre o amor e a sabedoria universais, é imprescindível que os viva com calma e alegria, a cada dia, como reconhecimento a todas as flores que nos enfeitam e perfumam a vida”.

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MARAVILHOSOS VILÕES

Na pequena e secular cidade, situada no sopé da montanha que abriga o mosteiro, tem um antigo e charmoso cinema em frente à praça da igreja, que eu frequentava sempre que os afazeres da Ordem permitiam. Nessa noite, ao final da sessão, encontrei com Loureiro, meu amigo artesão, amante dos livros e dos vinhos. Filosofia e tinto eram as suas preferências. Consertar sapatos era o seu ofício; remendar almas, sua arte. Ele logo me convidou para uma taça em uma silenciosa taberna próxima. A conversa versou sobre o filme que acabáramos de assistir. Eu disse que o que mais me chamava a atenção era o fato de o vilão ter “roubado” a cena, diante do excelente trabalho do ator na composição do personagem. O elegante artesão bebeu um gole antes de falar: “Quanto melhor o vilão, mais interessante é o herói. O vilão é essencial na vida do herói, por ajudar no seu aprimoramento. Assim na arte como na vida”. Discordei de maneira veemente. Eu conhecia pessoas insuportáveis e o meu desejo era simplesmente fazê-las desaparecer como que em um passe de mágica. Loureiro riu e disse: “Se todos nós tivéssemos esse poder, perderíamos as melhores oportunidades de aprendizado e, consequentemente, de evolução. Os vilões têm um importante papel em nossas vidas, assim como nas telas. São os conflitos que movimentam as histórias tanto na realidade quanto na ficção e, para tanto, é indispensável que o antagonista provoque o protagonista a descobrir o melhor de si”. Com o maniqueísmo que me era comum à época, falei que mocinhos eram bons; bandidos eram maus. Simples assim. O sapateiro discordou: “Você já pensou que em vários momentos da vida interpretamos o papel dos vilões? Isso acontecerá todas as vezes que contrariamos o desejo de alguém. Para tanto, não é necessário que sejamos maus. Basta um simples ‘não’. Ao negar o desejo alheio, o prejudicado, por vezes, nos elege o vilão da vez”. Calei-me por nunca ter pensado sob esse prisma. Ele disse que tentaria explicar melhor: “Partindo do princípio de que cada um é o protagonista da própria história, o vilão será sempre aquele que se opuser aos seus objetivos, nobres ou não”. Deu uma pequena pausa para um gole e continuou: “O importante é que o vilão surge para forçar o herói a exercitar o melhor de si; a se superar para vencer a dificuldade que lhe foi imposta. Seja para ultrapassar a dificuldade ou entender que não pode se arvorar em direito inexistente. Assim, os vilões nos fortalecem, aperfeiçoam e alavancam a nossa evolução. O oponente é de vital importância nas telas e na vida de todos”. Tornei a retrucar, eu apenas queria viver em paz com o mundo, sem a necessidade de qualquer conflito. “Sim, esse é o sonho comum, para o qual ainda não estamos prontos. Em nosso atual nível de consciência os vilões têm a função de nos arrancar da inércia e nos obrigar a caminhar; a entender a necessidade das transformações pessoais indispensáveis para o prosseguimento da jornada. Nos filmes, os heróis vão aperfeiçoar o manejo da espada; na vida real, deixamos florescer a clara sabedoria e o puro amor. O vilão acaba por fazer o papel de um mestre oculto, por impor inevitável avanço”, explicou. Loureiro seguiu com o seu raciocínio: “Vale ressaltar que os vilões se apresentam com diversas roupagens e não apenas como uma pessoa destinada a nos azucrinar. Dificuldades financeiras e afetivas, problemas de saúde, desastres naturais, são alguns exemplos de valiosos antagonistas a nos dar uma rasteira e impor a busca por um novo

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ponto de equilíbrio. O golpe nos obriga ao movimento”. Antes que eu me manifestasse, acrescentou: “E tem o mais importante”, deu uma pausa quase teatral para aguçar a minha mente e seguiu: “O mais terrível dos vilões é aquele que mora nas entranhas do herói”. Confessei que não tinha entendido. Loureiro me observou por alguns instantes, satisfeito com o efeito que tinha causado, e falou: “Assim como um desafeto nos aprimora ao impor a lapidação em nossas virtudes para que possamos ultrapassar as adversidades, nossas sombras nos forçam, cedo ou tarde, a acender e alimentar a Luz que nos habita. Ou seremos devorados pelo outro de nós mesmos. Não raro, preferimos não acreditar onde mora o dragão que precisa ser domado. Atrasamos a viagem na tentativa de justificar os nossos sentimentos obscuros ao invés de transmutá-los. Historicamente fomos condicionados a nos proteger do inimigo ‘lá de fora’. Subimos os muros de nossas casas e vidas; vestimos máscaras do que não somos no desejo de aparentar força; nos impomos escudos contra tudo e todos, na ilusão de estarmos protegidos contra mal. Ficamos tão preocupados com os outros que esquecemos de vigiar e entender a nós mesmos. Se prestarmos atenção e formos sinceros, admitiremos que ninguém atrapalha tanto a marcha da vida como cada qual a si mesmo, toda a vez que escolhe em alimentar ou ignorar a própria face sombria, sem perceber que nesse momento o vilão se apropria da nossa vontade e nos aprisiona em uma cela sem grades. Até o dia em que decidimos reagir. Esta é a história de toda a gente, esta é a verdadeira jornada do herói”. “Na medida em que o vilão aperfeiçoa o herói na ficção, na realidade as sombras quando bem percebidas, buriladas e iluminadas, tornam-se importante fator de crescimento pessoal, a nos obrigar às indispensáveis metamorfoses evolutivas. Lembre-se, as maiores batalhas são travadas dentro de nós. Nada mais são do que a real necessidade de superação na busca por iluminação nos porões escuros do ser. Assim nos tornamos heróis da própria história, o vilão cumpre o seu destino de mestre e deixa de ser o bode expiatório para justificarmos eventuais insucessos”. Voltei a contestar, agora mais por teimosia do que por convicção. Para mim a ficção era bem diferente da realidade. “Sim e não. O importante é que há preciosos pontos em comum”, ele falou. “Na verdade, a ficção trabalha com arquétipos que estão adormecidos no inconsciente à espera de serem decodificados. Por isto gostamos tanto de determinados filmes e personagens, pois eles têm o poder de acordar algo que existe em nós, mas ainda não tínhamos entendido, embora de alguma estranha maneira já tenhamos sentido a sua falta, como uma nova virtude, até então desconhecida, mas pronta para se manifestar. Ao nos identificarmos com os propósitos do personagem, percebemos alguma coisa nele que também existe em nós, mesmo que ainda em estado embrionário. Conheço um prestigiado psicanalista que inicia a análise do paciente perguntando pelo filme que ele mais gostou de assistir na vida”. A teoria do sábio artesão tinha desconcertado as minhas antigas e arraigadas certezas. Eu não sabia o que pensar. As ideias, quando novas, causam estranheza e precisam de tempo para amadurecer. Ele percebeu e deu o golpe final: “Os vilões maltratam, desafiam, enganam, porém, despertam o herói que há em nós toda vez que impulsionam a decisão de derrubar o muro invisível do cárcere imposto pelas limitações pessoais. Dessa maneira, acabam por nos ajudar a desenvolver habilidades adormecidas e até mesmo desconhecidas. Eles conduzem além das fronteiras a que até então nos permitíamos. Nos obrigam a iluminar as próprias sombras. Terminam por ensinar a usar as asas. Despertar isto, em essência, é a força da arte em nossas vidas”.

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Deu uma breve pausa, levantou a taça, me mirou nos olhos e brincou com a devida seriedade ao fundo: “Um brinde aos vilões. Eles são tão importantes que merecem uma bonita e justa homenagem pelo crescimento que proporcionaram. Sem eles não teríamos chegado até aqui”.

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A MELHOR PARTE

Quando o homem chegou em frente ao mosteiro, o céu ainda era um manto de estrelas. Desceu do carro para apreciar a beleza da construção apenas em seus contornos, possível pelas poucas lâmpadas acesas. Alguém tinha lhe falado da Ordem, da sua raiz secular, dos estudos de filosofia e metafísica aos quais seus monges se dedicavam, além dos trabalhos comunitários. Os únicos sons que ouvia eram dos animais noturnos da floresta próxima. Ele ainda era jovem e tinha abandonado a medicina dois anos após se diplomar, quando terminara a especialização em psiquiatria, para apostar em uma sociedade empresarial com um bom amigo. Os negócios deram certo, e tinha ganho muito dinheiro. Comprou um apartamento confortável em badalado bairro de uma metrópole muito apreciada em cartões-postais; teve carros caros, mulheres lindas e cobiçadas, viajou pelo mundo, mas nada arrancava ou preenchia o vazio em seu peito, como uma espécie de buraco negro que aos poucos parecia engolir toda a sua luz. Foi surpreendido por um ruído de passos vindo da mata, mas não sentiu medo. Virou-se e viu um facho de luz se aproximando aos poucos. Um monge, com a cabeça coberta pelo capuz, a se proteger do frio, caminhava em passos lentos, porém firmes, com um pequeno cesto em uma das mãos e uma lanterna na outra. “As amoras ficam mais saborosas quando colhidas sob o orvalho”, disse o monge quando bem próximo, mostrando as pequenas frutas acomodadas no cesto. “Adoro geleia”, complementou com absurda naturalidade de quem parecia esperar uma visita desconhecida naquela hora da madrugada. Convidou-o para entrar e tomar um café. O jovem se apresentou enquanto se dirigiam ao refeitório e perguntou o nome do monge. “Todos me chamam de Velho”. Diante da feição de espanto do outro, acrescentou o ancião: “Penso que é um bom nome. A velhice me trouxe evidentes limitações físicas, um aviso para que eu perceba que a próxima estação está próxima. Por outro lado, me libertou de medos e iluminou sombras. Me fez entender o Caminho, ser leve, aprender o valor da dignidade, o sentido da liberdade e a importância do amor sobre todas as coisas e pessoas. Deu-me uma plenitude no sentir que o vigor da minha juventude não ofereceu e teve o mérito de me trazer até aqui”. Abaixou o capuz para que o homem pudesse apreciar o seu rosto vincado e complementou: “Quando me olho no espelho, vejo cada ruga como um capítulo da minha vida, contando as guerras que precisei atravessar para entender o valor da paz, como um caravaneiro que precisa enfrentar o deserto inóspito para entender toda a beleza e o valor do oásis que, por ironia, sempre esteve escondido dentro dele, à sua espera”, finalizou com sua voz mansa e sorriso sincero. Sentados diante das canecas de café fresco, o homem narrou a sua vida ao Velho, que ouviu com atenção. Falou sobre a enorme melancolia que lhe assaltava a qualquer hora do dia. Bebidas, além lugares cheios e barulhentos, o ajudavam a afastar esse sentimento. Porém, por poucas horas, pois depois aquela emoção densa voltava ainda mais cruel, como um algoz a lhe maltratar sem piedade, como a cobrar pelos parcos momentos de divertimento. Lamentou que tivesse abandonado a medicina; embora tivesse ganhado dinheiro em sua outra atividade, não havia um único dia em que não pensasse em como seria a sua vida se tivesse feito outra escolha. Sentiu-se muito mal ao ver uma reportagem em prestigiosa revista sobre um colega de faculdade que se tornara um médico conceituado, com larga experiência de cura em sua especialidade. Culpou seus pais e o seu amigo, agora sócio, por influenciarem as suas decisões alguns anos antes. A sua empresa, embora bastante lucrativa, não lhe dava alegria ou estímulo intelectual. Ao final, quando o homem se calou, o monge tomou um gole de café e disse: “Condicionamentos cultural, social e ancestral nos levam a associar o sucesso pessoal ao ganho financeiro,

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como se sucesso e dinheiro estivessem atrelados. A riqueza não apaga o rastro do que se perdeu na estrada”. O homem alegou que uma coisa não anula a outra. “Concordo contigo”, assentiu o Velho. “ No entanto, o vento que leva para o sul é o mesmo que impulsiona para o norte. É necessário entender para que lado você posiciona as velas do seu barco: a riqueza como consequência natural da busca pela integralidade do ser adiciona ferramentas úteis; o dinheiro como objetivo primordial de vida subtrai elementos essenciais para alcançar a plenitude indispensável para a paz. Você encontrará tão somente o que estiver procurando, nada mais. Percebe que seus pais e amigos apenas alimentaram um desejo que já estava latente em você? Ou seja, falaram o que você queria ouvir. Culpar os outros pelas suas escolhas é transferir a responsabilidade que lhe cabe nas decisões inerentes à própria vida e, pior, desperdiçar preciosa lição. Você abdicou de um sonho em busca de um desejo e agora percebe que suas decisões, embora alimentem o ego, são insuficientes para a alma. O vazio que você sente é a sua fome por Luz”. O homem confessou que se pudesse voltar no tempo, faria outras escolhas. O monge arqueou os lábios repletos de compaixão e disse: “Fique calmo, tudo isso é comum no processo de aprendizado e já começa a se mostrar valioso pela vontade de sua alma em trazer à tona a sua essência. Um anjo que esteve recentemente encarnado entre nós ensinou que ‘é impossível reescrever o passado, porém podemos construir um futuro diferente’. O passado é lição; o presente é transformação; o futuro é inspiração. Penso que é isto que lhe cabe. Para tanto terá que aprender a alinhar o ego à alma, resgatar os seus sonhos, exercer os seus dons e deixar para trás conceitos e atitudes que não mais lhe servem”. O jovem se mostrou interessado e perguntou ao Velho como fazer. O ancião respondeu de pronto: “Não faço a menor ideia”. Atônito, o homem confessou que a razão da sua visita era a procura pela exata resposta, a receita de ‘como’ realizar. O Velho falou com sua voz mansa: “Administrar a vida alheia pode parecer fácil e ser uma tentação; no entanto, é um tolo exercício de arrogância e leviandade. Muitos têm soluções para a vida dos outros, poucos para as suas. Você terá que encontrar o próprio caminho, em busca profunda por se conhecer melhor e por inteiro. Iluminar as suas sombras e abraçar os seus sonhos. Entender e ter a coragem de ser você. Na beleza de ser único, aceitar que cada qual tem uma estrada própria, que se entrelaça com a estrada de todos para convergirem no infinito. Isto é o que torna a vida de qualquer pessoa uma aventura maior do que qualquer filme de cinema. Você é o herói e o vilão da sua própria história, vez que apenas você pode salvar a si próprio; por outro lado, ninguém lhe prejudica mais do você a si mesmo. Viver conscientemente esta narrativa o torna grande”. O jovem quis saber se o ancião poderia ajuda-lo de alguma maneira, pois não sabia nem por onde começar. O monge respondeu: “Posso lhe falar da importância do amor, da beleza da paz, o valor da dignidade, a magia da transformação, mas nunca dizer ‘o quê’ e ‘como’ fazer. Encontrar a sua verdade, entender como ela evolui, é vislumbrar o Caminho. Isto é personalíssimo. As escolhas são as únicas ferramentas disponíveis para exercer a sua espiritualidade, se tornar um andarilho e permitir que floresça o melhor que lhe habita. Elas definem o seu coração e a sua mente; são o fogo e a forja do seu aperfeiçoamento. Suas decisões revelam o quanto do divino você já descobriu em si e o

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quanto ainda falta. Esta é a infinita viagem e o Caminho é o único mestre, o mestre de todos”. O homem sorriu pela primeira vez desde que chegara. Disse que estava disposto a fazer sérias mudanças em sua vida e que não permitiria mais interferências alheias em suas decisões pessoais. O Velho balançou levemente a cabeça sinalizando que o jovem ainda não tinha entendido: “Aqui no mosteiro temos uma pequena criação de ovelhas que pastoreiam na montanha. Raramente perdemos uma em razão do ataque de algum predador, mas, em geral, quando uma delas resolve pastar nas trilhas das vacas, quando acabam por se perder. O poder é seu. É a si próprio que deve vigiar para passar a fazer bom uso dele”. Com os olhos mareados, o jovem disse que a atmosfera do mosteiro lhe trazia uma estranha e agradável sensação de calma. Pediu para ficar alguns dias e participar da rotina dos monges. “Fique o tempo que quiser. Se envolva em nossos trabalhos e estudos. Quando achar que chegou a hora, parta. O mundo, apesar do que dizem alguns, é um lugar maravilhoso para ser feliz. Encante-se, Yoskhaz!”, finalizou o Velho, há muitos anos atrás.

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