VANOYE Francis GOLIOT-LETE Anne Ensaio Sobre a Analise Filmica
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VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 5 ed. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papyrus, 2008:1994.
A análise fílmica não é um fim em si. É uma prática que procede de um pedido, o qual se situa num contexto (instituaonal). Esse contexto, porém, é variável, e disso resultam evidentemente demandas também eminentemente variáveis. Hoje em dia, a análise fílmica é, por vezes, requisitada por instituições escolares e universitárias (exames de final de curso, por exemplo), concursos (CAPES, licenciatura etc.) ou pesquisas (teses de mestrado, teses relativas a filmes, diretores, questões cinematográficas). Pode igualmente proceder de solicitações procedentes de outras instituições: imprensa escrita ou audiovisual (crítica, estudo de filmes de diietores), ediqáo (livros sobre o cinema), cinema (constituição de documentaqão de apresentação de filmes ou de conjuntos de filmes, trailms etc.). A análise de filme geralmente dá lugar a uma produção escrita, mas pode também conduzir a uma produção audiovisual ou mista (fita que apresenta análises de sequências, fragmentos acompanhados de comentários, montagens de cenas ou de planos característicos etc.).
A definição do contexto e do produto final é portanto indispensável ao enquadramento da análise. Permite esboçar, pelo menos em parte, seus limites, suas formas e seus suportes, seu ou seus eixos (ou, pelo menos, a possibilidade maior ou menor de escolha de eixos). A presente obra não conseguiria evidentemente explicar todos os contextos em sua especificidade. No entanto, tenta proporcionar alguns princípios, alguns instrumentos, algumas condutasválidas em todos os contextos, a partir do momento em que se parte de um objeto-filme para analisá-lo, isto é, para desmontá-lo e reconstruí-10 de acordo com uma ou várias opções a serem precisadas.
O s obstáculos à análise A análise de filme depara-se com muitos obstádos, o que é importante reconhecer se quisermos nos proporcionar os meios de superá-los ou contorná-los. Obstáculos de ordem material Raymond Bellour' afirmava que o texto fíimico é "impossível de se encontrar",no sentido de que não é citável. Enquanto a análise literária explica o escrito pelo escrito, a homogeneidade de signihcantespermitindo a citação, em suas formas escritas, a análise fílmica só consegue transpor, transcodificar o que pertence ao visual (descrição dos objetos filmados, cores, movimentos, luz etc.) do fíimico (montagem das imagens), do sonoro (músicas,ruídos, grãos, tons, tonalidades das vozes) e do audiovisual (relações entre imagens e sons). Foi possível ver algumas análises perseguindo em vão o mito de uma descrição exaustiva do filme. Empreendimento evidentemente fadado ao fracasso. Se a complexidade do objeto-filme de fato conduz à colocação com rigor do problema de sua descrição pela linguagem e do que a ela se integra, sua natureza de pluralidade de códigos proíbe pensar em qualquer "repro1. "Le texte introuvable", in L'analyse dufilm, Paris, Albatros, 1979.
dução verbal". É possível que os limites da descrição, da "anotação" devam-se aos eixos de análise, às hipóteses de pesquisa colocadas no início (ou no decorrer) da análise. Impossível de ser encontrado, o texto fíimico, também naquilo em que é fugidio, movente, sempre preso ao desenrolar da película e/ou ao circuito da distribui$ío. Ver, examinar um filme tecnicamente nem sempre é fácil, tanto no tempo como no espaço. Analisar um filme implica evidentemente que se veja e reveja o filme: numa sala de cinema, na moviola, no vídeo, com a ajuda ou não de uma transcrição escrita já existente? As condições materiais de exame técnico do filme (auxílio, frequência, tempo, possibilidade de parar o desfile, de parar na imagem, voltas e avanços rápidos etc.) condicionam a análise. Muitos críticos e teóricos cometeram erros baseando-se numa visão única de um filme (a memória cinéfila muitas vezes engana, pois lembramo-nos de ter visto o que agrada ou fortalece uma hipótese de análise ou uma impressão de conjunto). Daí a necessidade de averiguações sistemáticas. Inversamente, o recurso ao videocassete, as possibilidade de manipulação infinita do filme podem conduzir a análises "microscópicas" não necessariamente pertinentes (ainda aí, tudo é questão de eixo e hipótese de trabalho). De qualquer modo, o analista deverá estabelecer um dispositivo de observação do filme se não quiser se expor a erros ou averiguações incessantes. Daí a necessidade de aprender a anotar, de se proporcionar, a partir do momento em que se inicia o processo de análise e em que não se é mais uma espectador "comum",redes de observação a serem fixadas e organizadas em função dos eixos escolhidos (privilegiados). Obstáculos de ordem psicológica
O fato de a análise de um filme ser o produto de uma demanda, como observamos, nem por isso afasta a pergunta do tipo "então, para que serve?".
De fato, de que serve descrever, analisar um filme? De que serve essa operação que parece simétrica e inversa das que presidiram à elaboração do filme (escrita dos diversos estados do roteiro, constituição da decupagem técnica tendo em vista a filmagem)? Não é absurdo "desmontar"o que foi pacientemente (ou impacientemente)montado? Com efeito, as finalidades dessas operaçõesdiferem. A escrita do roteiro, a decupagem técnica, a filmagem, a montagem e a mixagem constituem as etapas de um processo de criação de fabricação de um produto. A descrição e a análise procedem de um processo de compreensão, de (re)constituição de um outro objeto, o filme acabado passado pelo crivo da análise, da interpretação. Mas, dirão, de que serve compreender?De que serve interpretar um filme? Não basta vê-lo, eventualmente revê-lo, senti-lo? A meta do cinema não é provocar emoções? Não é, antes de mais nada, um prazer, um espetáculo? Não pertenceria, bem mais do que a literatura, e segundo uma tradição bem estabelecida pela indústria e pelo comércio, ao universo do lazer (mesmo que dependa de fato, hoje em dia, na França, do Ministério da Cultura)? Analisar um filme não é mais vê-lo, é revê-lo e, mais ainda, examiná-lo tecnicamente. Trata-se de uma outra atitude com relação ao objeto-filme, que, aliás, pode trazer prazeres específicos: desmontar um filme é, de fato, estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme for realmente rico, usufruí-10 melhor. A análise de um filme como Playtime, de Jacques Tati, faz com que se descubram detalhes do tratamento da imagem e do som (ver o livro de Michel Chion sobre Tati2) que aumentam o prazer a cada vez que se revê a obra. Contudo, também existe um trabaího da análise, por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque a análise trabalha o filme, no sentido em que ela o faz "mover-se", ou faz se mexerem suas significações, seu impacto.
2. Michel Chion, lacques Tati, Cahiers du cinéma, 1987.
Em segundo lugar, porque a análise trabalha o analista, recolocando em questão suas primeiras percepções e impressões, conduzindo-o a reconsiderar suas hipóteses ou suas opções para consolidá-las ou invalidá-las. Ademais, podemos observar que muitas vezes a análise acompanha, precede ou sucede o trabalho de criação dos filmes: para nos convencermos disso, basta ler os textos ou entrevistas dos grandes cineastas, de Epstein ou Gance a Eisenstein, de Hitchcock a Fritz Lang ou Ingmar Bergman e Truffaut. Ela se integra igualmente ao processo de recepção dos filmes. Aqui seríamos tentados a convocar o nome de grandes críticos e teóricos, de Louis Delluc a André Bazin, de JeanMitry a Christhian Metz. A análise vem relativizar as imagens "espontaneistas"demais da criação e da recepção cinematográficas. Estamos cercados por um dilúvio de imagens.Çeu número é tão grande, estão presentes tão "naturalmente", são tão fáceis de consumir que nos esquecemos que são o produto de múltiplas manipulações, complexas, às vezes muito elaboradas.O desafio da análise talvez seja reforçar o deslumbramento do espectador, quando merece ficar maravilhado, mas tomando-o um deslumbramento participante.
O primeiro contato com um filme, a primeira visão, traz toda uma profusão de impressões, de emoções e até de intuições, se já nos colocamos em uma atitude "analisante".Ora, não se quer dizer que a análise deve suprimir esses primeiros aportes, que correm o risco de, a seguir, tomarem-se preciosos. De fato, impressões, emoções e intuições nascem da relação do espectador com o filme. A origem de algumas delas pode evidentementedizer mais do espectador que do filme (porque o espectador tende a projetar no filme suas próprias preocupações).O filme, porém, permanece a base na qual suas projeções se apóiam. Não é possível conduzir, elaborar, uma análise de filme apenas com base nas primeiras impressões. Mas seria errado separar radicalmente o produto da atividade de espectador "comum" da análise. A bem dizer, esse material bruto, resultante de um contato espontâneo, ou, pelo menos, menos controlado, :om o filme, pode constituir um
fundo de hipóteses sobre a obra. Essas hipóteses deverão, é claro, ser averiguadas concretamente por um verdadeiro processo de análise. Contudo, questões do tipo "como o filme conseguiu produzir em mim este ou aquele efeito?", "como o filme me conduziu a simpatizar com determinado personagem e a achar outro odioso?", "como o filme gerou determinada idéia, determinada emoção, determinada associação em mim?", questões centradas no como e não no por que, conduzem a considerar o filme com maiores detalhes e a integrar, em um ou outro momento, os "primeiros movimentos" do espectador.
O que é analisar um filme? A análise fílmica significa duas coisas: a atividade de analisar (quando Roger Odin, por exemplo, fala da "análise fílrnica como exercício pedagógicoM3);e também pode significar o resultado dessa atividade, isto é, com algumas exceçóes, um texto (se eu evocar, por exemplo, a análise do Mépris pesprezo] por Michel Marie4).A reflexão que se segue questiona, sobretudo, a atividade. Sua origem são as análises-texto que mais fazem aparecer os vestígios dessa atividade exibida, não, portanto, as elaboradas pelos especialistas, as "profissionais", que, se explicitam os instrumentos que solicitam, se mostram à leitura o simulacro de sua produção, apagam e fazem esquecer os obstáculos eventuais encontrados quando das diferentes fases do trabalho, mas, sobretudo, as de jovens estudantes, por vezes ricas, cativantes, convincentes, por vezes pobres e superficiais, em todo caso geralmente mais ingênuas, pois confessam os segredos íntimos e autênticos de sua elaboração em todos os níveis. São a testemunha de certas atitudes reflexas, o sintoma de um certo número de dificuldades experimentadas.
3. "L'analysefilmique comme exercice pédagogique",in CiiiémActioiz, no47, Cerf-Corlet, 1988. 4. Michel Marie, "Lernéplis ",Étude critique, Nathan, 1991, col. "Synopsis".
A atividade analítica, em que consiste? Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido científico do termo, assim como se analisa,por exemplo, a composição química da água, decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente "a olho nu", uma vez que o filme é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto, do texto fílmico para "desconstruí-10" e obter um conjunto de elementos distintos do próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire um certo distanciamento do filme. Essa desconstrução pode naturalmente ser mais ou menos aprofundada, mais ou menos seletiva segundo os desígnios da análise. Uma segunda fase consiste, em seguida,em estabelecer elos entre esses elementos isolados, em compreender como eles se associam e se tomam cúmplices para fazer surgir um todo significante: reconstruir o filme ou o fragmento. É evidente que essa reconstrução não apresenta qualquer ponto em comum com a realização concreta do filme. É uma "criação" totalmente assumida pelo analista, é uma espécie de ficção, enquanto a realização continua sendo uma realidade. O analista traz algo ao filme; por sua atividade, à sua maneira, faz com que o filme exista. Os limites dessa invenção, dessa "criação" são, contudo, muito estritos. O analista deve de fato respeitar um princípio fundamental de legitimação: partindo dos elementos da descrição lançados para fora do filme, devemos voltar ao filme quando da reconstrução, a fim de evitar reconstruir um outro filme. Em outras palavras, não se deveria sucumbir à tentação de superar o filme. Os limites da "criatividade analítica" são os do próprio objeto da análise. O filme é, portanto, o ponto de partida e o ponto de chegada da análise. Duas observações: 1. Como se deve ter compreendido, a desconstruqãoequivale à descrisão. Já a reconstrução corresponde ao que se chama com frequência a "interpretação". Muitas vezes, tem-se o
hábito de considerar a interpretação como extrapolação com relação ao filme. Ora, caso seja concebida, ao contrário, como um movimento centrípeto em direção ao filme, qualquer perigo de cair na interpretaçáo selvagem é afastado. Com frequência, lemos análises que não distinguem explicitamente as fases de desconstruçáo e de reconstruçáo, que as imbricam uma na outra, ou então, náo param de alterná-las. Nem é preciso dizer que o texto, resultado final da atividade analítica, não tem de explicar linearmente, cronologicamente, os processos de sua produção. Mais ainda, inclusa no trabalho de preparação que precede a redação, não existe uma sucessão escolar de uma fase de descriçáo e de uma.fase de reconstrução, mas antes uma alternância anárquica de ambas: apela-se a uma quando a outra se esgotou e inversamente, num movimento de balanço incessante. As fraquezas encontradas em certas análises de estudantes (ou de outros...) podem ser variadas: a pessoa acredita estar interpretando, reconstruindo, quando se contenta em descrever; a pessoa tenta, ao contrário, interpretar antes mesmo de ter descrito: faz uma paráfrase. Esses dois tipos de problema são o resultado de um desequilíírio entre as duas tarefas obrigatórias da análise. Observamos outra fraqueza: sair definitivamente do filme para se entregar a uma fabulação pessoal. Ou se tem um talento demasiado grande de criador e, nesse caso, talvez fosse melhor fazer cinema do que análise de filmes, ou, também, o analista se compromete com uma hipótese falsa e tenta de qualquer modo defendê-la até o fim. O tratamento aconselhado: em primeiro lugar, desenvolver seu sentido de autoaítica e, por outro lado, permanecer flexível intelectualmente o suficiente para conseguir a todo instante enfrentar u m imprevisto e aceitar a mudança de rumo.
Ao contrário, finalmente, e esse caso talvez seja o mais comum: quando o analista acredita nada ter a dizer sobre o filme, ou fica aterrorizadocom a idéia de emitir uma hipótese um tanto pessoal sobre ele, refugia-se na citação e na síntese de todos os escritos existentes sobre esse filme. Esse esforço enciclopédico não é de forma alguma condenável, contanto que não se o confunda com a atividade analítica, com a qual não tem estritamente qualquer ponto em comum. Nessa busca documentária, recolhe-se duas espécies de textos: textos de informação "geral" (textos relativos à filmagem, informações sobre o diretor e sua carreira, história do cinema...) e eventualmente análises (o roteiro deve ser considerado à parte, pois também pode constihir um objeto de análise). Veremos adiante em que medida é possível explorar os primeiros (tampouco deve-se confundir análise de filme e conjunto de histórias que cercam o filme).Quanto às análises do filme já existentes, não é que se deva ignorá-las. Ao contrário, deve-se utilizá-las,mas, antes de mais nada, é preciso sobretudosaber utilizá-las, não considerando-as de imediato como um saber obrigatório, preliminar, à análise, o que seria abandonar seu próprio trabalho de análise. De fato, é imensamente mais difícil elaborar por conta própria, enquanto estudante, a análise de um filme quando já se conhece uma do que se envolver com a mente limpa. No limite, por que não abordar, numa primeira fase, o filme sem preconceito, sem idéias preconcebidas, efetuar sua pesquisa pessoal com toda a liberdade? Só depois documentar-se, ler as análises dos outros, já tendo em mente pelo menos uma (ou algumas) hipótese(s) pessoal(is). Só desse modo é possível existir confronto, discussão, eventualmente um ajuste e até, por que não, uma modificação radical do próprio ponto de vista. E, é claro, se alguém se permitiu encontrar antes de mim uma idéia genial sobre o filme que estou analisando, tem prioridade, devo citá-lo e inclinar-me e não repetir e apropriar-me da idéia em questão (que, contudo, também me pertence...). Aparentemente, a natureza da relação do analista com "seu" filme determina em parte a riqueza da própria análise, e a pobreza de algumas análises provém, às vezes, das dificuldades que o analista tem de entrar numa relação correta com seu objeto.
Conhecemos o poder hipnótico da imagem, quer esteja impressa na tela da sala escura, quer seja televisual. Sabemoscom que facilidadesomos capazes de abolir a distância entre nós e a tela para entrar e até engolfarmo-nos no mundo ficcional do filme. A analogia, muito relativa, mas nem por isso menos poderosa, entre a imagem fílmica e o mundo reforça essa proximidade que não facilita a reflexão "científica" e a produção de um discurso sobre o filme. A obra de Jacques Aurnont, A imagem, e, em particular, os capítulos I e II são uma síntese notável sobre a percepção, seus componentes fisiológicos e psicológicos. Precisemos, contudo, a posição do "espectador-analista",que se tem o costume, com razão, de opor ao espectador "normal". De fato, se é, também ele, um "espectador desejanteu5,seu desejo (consciente) é, antes de mais nada, "compreender" o filme ou o fragmento escolhido a fim de estar em condições de elaborar um discurso a esse respeito. Analista e espectador ''normal" não receberiam portanto o filme da mesma maneira, pois o primeiro busca precisamente distinguir-se de forma radical do segundo, não se deixar dominar como o último pelo filme. ANALISTA
ESPECTADOR NORMAL
Passivo, ou melhor, menos ativo do que o analista, ou mais exatamente ainda, ativo de maneira instintiva, irracional.
Ativo, conscientemente ativo, afivo de maneira racional, estruturada.
Percebe, vê e ouve o filme, sem desígnio particular.
Olha, ouve, observa, examina tecnicamente o filme, espreita, procura indícios.
Está submetido ao filme, deixa-se guiar por ele.
Submete o filme a seus instrumentos de análise, a suas hipóteses.
Processo de identificação.
Processo de distanciamento.
Para ele, o filme pertence ao universo do lazer.
Para ele, o filme pertence ao campo da reflexão, da produção intelectual.
5. JacquesAumont, A imagem,Papirus, 1993.
A idéia normalmente admitida e moralmente tranqüilizadora pretende que a qualidade do trabalho seja mais ou menos proporcional à amplidão e à intensidade do esforço fornecido pelo analista contra o filme, tendo em vista "persegui-lo, brutalizá-10 e até rompê-lo um p o ~ c o "Tudo ~ . acontece, portanto, como se a relação entre o analista e o filme devesse ser necessariamente uma relação de força, de luta. Se o filme me hipnotiza e me domina, eu, analista, vou, como reação, criticar o filme, ou melhor, atacar o filme; em suma, vingar-me do filme para finalmente dominar. Esse ponto de vista requer, contudo, maiores nuanças, pois, se um distanciamento total e uma relação de luta com o filme são para alguns um remédio para os "bloqueios e decepções ~lteriores"~, decerto para muitos são a própria causa de um bloqueio e de uma decepção de outra ordem. Sim, a análise de uma sequência de um filme exige tempo, perseverança, implica passar por uma série de tarefas obrigatórias e resistir em parte à sedução operada pelo filme (situamo-nos aqui de imediato no contexto de uma análise realizada pelo tempo que for necessário em companhia do filme sob a forma de videocassete, por exemplo). No entanto, é bem conhecida a sensação dolorosa do esforço obstinado e contudo vão, infrutífero, estéril, que às vezes conduz ao desencorajamento e à terrível angústia do vazio. Ousamos pensar que talvez seja aí que comeqa precisamente o verdadeiro trabalho: aceitar esse vazio, esse hiato, não tentar lutar desesperadamente contra a angústia com instrumentos de análise ou soluções alternativas, não, deixá-la seguir seu curso e sobretudo deixar o filme executar seu trabalho, pois parte do trabalho é incumbência dele. Assim, propomos que o analista se instale às vezes, até regularmente, diante do filme ou do fragmento, sem tentar fazer um esforço intelectualparticular; sugerimos a ele que solte as rédeas, que se permita nada buscar, que deixe o filme estabelecer sua lei. Assim, então, ele volta a encontrar uma espécie de disponibilidade e outorga-se a possibilidade de deixar-se surpreender agradavelmente e de conseguir
6 . Roger Odin, in CinérnAction, no47, op. cit. 7. Ibid.
acolher elementos novos que se situam fora de suas projeções e de suas preocupações particulares. Às vezes, esses elementos podem constituir um aporte considerável e principalmente uma renovação. É claro que o conselho, aqui, evidentemente não pontifica parar por completo qualquer atividade intelectual. Propõe modificar e flexibilizar uma metodologia que a angústia tende às vezes a tornar rígida. Sugere simplesmente proceder de vez em quando a um afrouxamento intelectual que permita uma recepção mais sutil, mais refinada do filme, de um certo modo, mais "terna" e que pode se revelar muito produtiva. Voltar a ser o espectador "normal"por alguns momentos, deixar o filme falar, procurar sem buscar: contemplar sem olhar freneticamente, prestar atenção sem aguçar os ouvidos, estar alerta sem violência. O trabalho opera-se através de uma série de vaivéns. O analista diz coisas sobre o filme, o filme também diz coisas. Podem ser estabelecidos um diálogo, uma respiração, que evitam a saturação, a estagnaçáo.
Apresentaçáo da obra A presente obra esforça-se por corresponder exatamente ao que acaba de ser exposto. Propõe, numa primeira parte, alguns elementos de reflexão geral relativos à história das formas cinematográficas, as ferramentas da narratologia e os problemas da interpretação. Essa parte não tem o intuito de estabelecer um contexto rígido, e sim de proporcionar referências e precisar um estado de espírito propício à conduta da análise. A segunda parte propõe análises, do plano isolado ao filme inteiro. Não pudemos abordar, nos limites desse livro, a questão da análise de um conjunto de filmes (obra de um cineasta, corpus de filmes reunidos por um critério comum: período e local de produção, tema, gênero etc.); esse tipo de trabalho prolonga o nosso, mas requer o estabelecimento de operações complementares específicas.
Vague francesa), mas em contextos diferentes, as formas e as significações sendo, com isso, automaticamente renovadas. Em outras palavras, as formas cinematográficas constituem-se num fundo cultural no qual os cineastas se inspiram, e cabe ao analista explicar os movimentos que dele decorrem. Quadro 1 OS COMPONENTES DO PLANO Definição Porção do filme impressionada pela câmera entre o início e o final de uma tomada; num filme acabado, o plano é limitado pelas colagens que o ligam ao plano anterior e ao seguinte. Componentes do plano 1. A duração (do "instantâneo fotográfico" ao plano que esgota a capacidade total de carga do filme na câmera). 2. Ângulo de filmagem (tomada frontal/tomada lateral, plongtelcontre-
plongée etc.). 3. Fixo ou em movimento (câmera fixa/câmera em movimento: tl.auelling, panorâmica, movimento com a grua, câmera na mão etc; objetiva fixalzoom: movimento ótico).
O plano-sequência, fixo ou em movimento, realiza a conjunção de um único plano e de uma unidade narrativa (de lugar ou de ação). 4. Escala (lugar da câmera com relação ao objeto filmado): plano geral ou de grande conjunto; plano de conjunto, plano de meio conjunto; plano médio (homem em pé); plano americano (acima do joelho); plano próximo (cintura, busto); primeiríssimo plano (rosto); plano de detalhe (insert, pormenor).
5. Enquadramento: inclui o lugar da câmera, a objetiva escolhida, o ângulo de tomadas, a organização do espaço e dos objetos filmados no campo. 6. Profundidade de campo: de acordo com a objetiva escolhida, a iluminação, a disposição dos objetos no campo, o lugar da câmera, a parte de campo nítida, visível, será mais ou menos importante.
7. Situação do plano na montagem, no conjunto do filme: Onde? Em que momento? Entre o quê e o quê? etc. 8. Definição da imagem: cor/preto e branco, "grão" da fotografia, iluminacão, composiçáo plástica etc. Sobre o plano, "Voici", de Pascal Bonitzer, in Cahiers du cinéma,
2 273-275,1977.
Quadro 2
SEQUÊNCIASE PERFIS SEQUENCIAIS 1. Sequência
Definição: conjunto de planos que constituem uma unidade narrativa definida d e acordo com a unidade d e lugar ou d e ação. O plano-sequência corresponde à realização de uma sequência num único plano. Alguns grandes tipos de sequências: -
Parâmetros fílmicos (segundo Christian ~ e t z ~ ) a cena ou sequência em tempo real: a duração da projegão iguala a duração ficcional; a sequência "comum":comporta elipses temporais mais ou menos importantes; sucessão cronológica; a sequência alternada: mostra alternadamente duas (ou mais do que duas) açóes simultâneas; a sequência "em paralelo": mostra alternadamente duas (ou mais do que duas) ordens de coisas (açóes, objetos, paisagens, atividades etc.), sem elo cronológico marcado, para estabelecer, por exemplo, uma comparação; a sequência "por episódios": uma evolução que cobre um período de tempo importante é mostrada em alguns planos característicos separados por elipses; a sequência "em colchetes": montagem de muitos planos que mostram uma mesma ordem de acontecimento (a guerra, por exemplo).
6.
Christian Metz, Essais sul. la sigtzification ai1 cinéma, tomo 1, Klicksieck, 1968.
-
Parârnetros de roteiro: permitem distinguir as sequências: em externalem interna; de dia/ de noite; visuais/ dialogadas; de ação, de movimento, de tensão/inação, imobilidade, distensão;
íntimas/ coletivas, públicas; com um personagem/com dois personagens/de grupo; etc. 2. Perfis seqgenciais
Dependem das seguintes variáveis: número e duração das sequências = permitem opor filmes (ou partes de filme) muito "decupadas" a outras pouco decupadas (comparar Hitchcock e Angelopoulos, por exemplo); encadeamento das sequências: rápidallenta; corte seco/corte demarcado (escurecimentos, encadeamento musical o u sonoro etc.); cronologicamente marcada/acronológica; logicamente motivada/não claramente motivada; contínua / descontínua; ritmo inter e intra-sequencial: rápido/lento; seco/suave, contínuo/descontínuo etc.
Algumas fel-l-amentas nal-l-atológicas As abordagens narratológicas do filme hoje presentes no mercado são extremamente numerosas e variadas: algumas, teóricas, têm como intuito edificar uma narratologia da expressão; colocam em jogo o conjunto de narrativas fílmicas diante do conjunto das narrativas não fílrnicas (teatrais e romanescas, por exemplo).Outras, dentro do conjunto das narrativas fílmicas através da história do cinema visam estabelecer ou participam do estabelecimento de uma tipologia de narrativas definindo grandes formas narrativas.Finalmente, a adotada pelo analista-narratólo-
determinado personagem, adquire outro se varre determinada paisagem ... O conteúdo e a expressão formam um todo. Apenas sua combinação, sua associação íntima é capaz de gerar a significação. Não é possível pretender trabalhar sobre o sentido de um filme sem convocar de imediato e em sincronia a história e a maneira. Queneau não nos convenceu em definitivo que contar de maneira diferente é mudar o sentido?" Finalmente, a narração corresponde, ainda segundo Marc Vernet, ao "ato narrativo produtor e, por extensão, ao conjunto da situação real ou fictícia na qual ocorre.Diz respeito às relações que existem entre o enunciado e a enunciação tal como se mostram à leitura na narrativa: portanto, só são analisáveis em função de vestígios deixados no texto narrativo", ou melhor, segundo Christian Metz, em função de "configurações enunciativas" (pois a enunciação nem "sempre é mrcada, mas é sempre agente")12. Metz e Vernet o dizem com razão: é dentro do texto que se encontram os indícios da enunciação desse texto. Evitemos procurar fora os indícios da enunciação desse texto. Evitemos procurar fora do texto algum enunciador ou narrador, responsável pela produção do texto. Deixemos principalmente de lado a noção de autor que não se refere diretamente a narratologia. Posso dizer: Alfred Hitchcock dirigiu Rebecca (para ser preciso, seria necessário citar ao mesmo tempo o conjunto de seus colaboradores), mas certamente não é Hitchcock que "enuncia"a narrativa quando o vejo no cinema, é o próprio filme que "se enuncia".
A enunciação Não seria apenas no título de seu livro -Lénunciation impersonelle ou le site dufilm -que Christian Metz afirma explicitamente a natureza não antropomórfica da enunciação fílmica. Nas primeiras páginas 11. Ver Raymond Queneau, Exercices de sfyle, Folio-Gallimard, 1947. 12. Christian Metz, L'étzotlciafion impersonelle ou le sife dufilm, Méridiens-Kiiicksieck, 1991.
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da obra, ele mostra como, conscientemente ou não, tem-se uma tendência quase natural a colocar no que precede o filme e no que lhe sucede instâncias às quais se atribui mais ou menos explicitamente uma natureza humana; essas instâncias remetem, de uma maneira mais ou menos confessa, ao autor e ao espectador. Isso poderia explicar que se tenha tentado transpor para o domínio fílmico o dispositivo enunciativo do intercâmbio verbal, fundado no aparelho dêitico (chama-se dêitico qualquer marca, qualquer indicador que remete tanto ao locutor quanto à situação de enunciação. Os mais comuns são os pronomes pessoais, os pronomes e adjetivos possessivos e demonstrativos, os advérbios de tempo e de lugar e os tempos dos verbos). Numa frase do tipo: "Eu estou lhe devolvendo o dinheiro que tomei emprestado ontem", o presente de "estou devolvendo" remete ao presente da enunciação, o passado de "tomei emprestado" e o advérbio de tempo "ontem" remetem a iim passado uelativo ao presente da enunciação, o pronome "eu" remete ao locutor e o pronome "lhe", ao interlocutor. A partir desse modelo, tentou-se denominar "eu" a fonte da enunciação fílmica (ou literária) e "você", seu alvo, considerando desse modo o filme como o lugar de uma conversa indireta (ou como uma metáfora de conversa) entre a fonte e o alvo da enunciação. Ora, diz-nos Christian Metz, não é porque os diálogos filmicos (ou as partes dialogadas de um romance) empregam a bateria dêitica que devemos nos autorizar a assimilar a enunciação fílmica (ou literária)à enunciação da conversa. Num intercâmbio verbal oral, "os dêiticos fornecem informações sobre a enunciação através da própria enunciação", enquanto os dêiticos dos diálogos de um filme fornecem informações não sobre a enunciação do filme, mas sobre uma enunciação interna, ela própria enunciada pelo filme (quando um personagem de filme diz "Eu sempre odiei essa mulher", o "eu" não remete à fonte de enunciação do filme, é claro). Por outro lado, ao contrário da conversa, o filme e o romance são "discursos preparados de antemão e imutáveis". Imaginemos que à frase "Estou devolvendo a você o dinheiro...", emitida pelo locutor X, o interlocutor Y responda de uma maneira muito original "Eu lhe agradeço". Nessa resposta curta, o "eu" não remete mais a X como na primeira frase, mas a Y, e o
"lhe"não mais a Y, mas a X. Na conversa, o "eu"e o "você"são intercambiáveis a qualquer momento. O discurso não está congelado, Y pode intervir no discurso de X e X no de Y. Essa "reversibilidade"do "eu"e do "você faz parte dos fundamentos da enunciação dêitica no intercâmbio oral. Nada disso ocorre na enunciaçãofílmica ou literária,nenhum diálogo verdadeiro possível entre a fonte e o alvo, nenhuma intervenção possível do "você, nenhuma intercambialidade dos papéis. Finalmente, Christian Metz aponta a diferença entre romance e filme: o romance é verbal por inteiro, a matéria do filme é amplamente extra-linguística. Alguns pesquisadores chegam a recusar a noção de en~mciaqãoreferindo-se ao filme, sob o pretexto de que esta só pode ser aplicada à palavra e à escrita e não à produção de imagens. Sem chegar a privar o filme de enunciação, será necessário em todo caso "conceber um aparelho enunciativoque não seja essencialmente dêitico (eportanto antropomorfo), pessoal (como os pronomes denominados dessa maneira) e que não imite tão de perto este ou aquele dispositivolingiístico". Para isso, nosso autor propõe em primeiro lugar substituir os termos "enunciador"e "enunciatário",cujo sufixo duvidoso soa demais à maneira antropomórfica,por "fonte ou foco da enunciaqão"e "alvo ou desígnio da enunciação", mais neutros. Em seguida, mostra que, se a enunciaqão não é principalmente detectável pelos dêiticos, ela o é "por construções rc.flexivas".É quando "ofilme~zosfaladele mesmo, ou do cinema, ou da posiçiio do espectador",que desvenda os segredos de seu dispositivo enunciativo. O enunciado se "desdobra", "curva-se sobre si mesmo" e fala da situação de sua produção. Metz dá o exemplo dos personagens de um filme que, olhando por urna janela, lembram a mim, espectador, que estou no cinema, numa posição próxima, a tela sendo minha "janela"". Isso constitui uma configuraqãoenunciativa.O filme no filme (o filme mostra uma projeqão de filme) é igualmente uma figura de reflexividade muito explícita...Desse modo, Metz analisa em seu livro as grandes configurações enunciativas.
13. Op. cit., p. 21.
A questão da produção da narrativa deu lugar a uma profusão terminológica que merece ser um pouco reinserida em seu contexto. O que é possível afirmar de imediato é a presença mais ou menos marcada em cada filme narrativo de um foco, de uma fonte, uma instância de enunciação (Christian Metz), parente próximo da instância narradora, ou narrador fundamental, narrador de primeira ordem, meganarrador (André Gaudreault14). 0 s dois autores atribuem a mesma origem a seus "monstros": o "Grande Imaginador", o "Mestre de cerimônias" de Albert ~ a f f a y ' ~O. parentesco entre enunciação e narração é, portanto, evidente. Tomando o caminho oposto de u m certo número de pesquisadores, Christian Metz chega a assimilar as duas noções no caso do filme narrativo, " n ã o m a i s d i s p o n d o e n t ã o d e critério teórico para distingui-los": "Quando um filme é narrativo, tudo nele se torna narrativo, mesmo o grão da película ou o timbre das v ~ z e s . "Só '~ nos filmes não narrativos é que se sente a diferença: neles, a narração está ausente, mas não a enunciação. "Enunciação" é u m termo mais geral d o que "narração", pois se aplica a qualquer tipo de enunciado. Ao contrário, a narração só interessa aos textos narrativos nos quais se confunde com a enunciação. O narratólogo adotará, de preferência, os termos de narração, instância de narração, narrador, mais cúmplices e familiares aos olhos dele, mas permanecerá aberto e "convivente" com relação a qualquer propósito considerado em termos de enunciação e derivados. Narrador(es) e instância narradora Essa instância narradora fundamental pode delegar seus poderes a um ou a vários narradores que se encarregam da totalidade ou de uma parte da narrativa. Esse narrador delegado pode assumir várias formas:
14. André Gaudreault, op. cit. 15. Albert Laffay, Logique du ciizéma, Paris, Masson, 1964. 16. Christian Metz, op. cit., p. 187.
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