Usurpadora de Sangue - A Traido - Loud Chaos
February 20, 2023 | Author: Anonymous | Category: N/A
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esse livro é violento. é uma distopia passada diante do reflexo de uma sociedade arcaica. há diversas cenas contendo machismo e homofobia da parte da sociedade em que nossa protagonista vive, dos quais podem ser difíceis para certos leitores. o romance contido nesse livro é um bu bull lly y roma romanc nce e, o que quer dizer que os personagens fazem “bullying” um com o outro por alguma razão. são cruéis e violentos em vários momentos. é completamente ficcional e não deve ser tirado como exemplo em forma alguma. alerta de gatilhos: violência física e verbal (incluindo violência doméstica), abuso sexual, distúrbios alimentares, crimes de ódio como homofobia e feminicídio.
a todas as garotas que já foram ditas que não eram capazes
Esse não é um livro sobre a garota prometida ou sobre a garota com o sangue nobre nem mesmo sobre a garota com o coração de ouro Esse não é um livro sobre uma heroína é sobre uma traidora que consegue poder louvor respeito através de sangue Prazer meu nome é Morte e essa é a minha história com a Usurpadora de Sangue
A nossa história é longa Nos encontramos algumas vezes no decorrer dos anos Houve momentos em que cheguei muito perto mas a conheci de fato antes mesmo de ela ser a usurpadora Quando a conheci ela ainda era uma menina
Ela iria me matar. Estava irritada comigo de uma forma que eu nunca tinha visto. Tapas não foram o suficiente daquela vez. Lutei para subir, desesperada por ar. Mas ela manteve suas mãos contra a minha cabeça por um momento terrivelmente longo. Abri a boca, mas tudo o que entrou foi água. Não saberia dizer o quanto bebi até tudo ficar preto. Paz inundou. Silêncio também. Foi como um sono profundo. E, ao mesmo tempo que pareceu levar apenas um segundo, também pareceu uma eternidade. Mas, então, a escuridão se transformou em um brilho prateado, quase cegante, e eu voltei. Pisquei várias vezes. A minha visão era turva. Seu rosto tomou forma diante dos meus olhos. Ela batia na minha bochecha e repetia o meu nome. Demorou um instante até eu lembrar que estava na banheira. — Cera! — Ela chamou, sua voz aguda ecoando no banheiro banheiro.. Minha madrasta parecia assustada.
Eu tossi algumas vezes antes de abraçar meu próprio corpo nu, me encolhendo dentro da banheira. Silêncio pairou no cômodo abafado. Ela se manteve agachada ao lado da banheira, com as mãos encharcadas. Nos encarávamos, como se compartilhássemos um obscuro segredo. Seu toque nunca foi gentil comigo. Quando me auxiliava no banho, esfregando a minha cabeça, nunca era um movimento delicado e relaxante. Por isso que eu preferia Katya. A criada. Mas ela havia faltado naquele dia. E minha madrasta odiava ter de fazer comigo qualquer coisa que se assemelhava a algo que uma mãe faria. Mas, daquela vez, ela havia ido longe demais. Meus olhos se encheram d’água. Lágrimas quentes e salgadas s algadas se misturavam com a água doce da banheira. Eram em momentos como aquele que a saudade da minha mãe se tornava fisicamente dolorosa. Ela engoliu em seco pouco antes de eu desviar o olhar. olhar.
Queria que ela fosse embora. — Termine de se enxaguar. — Ela mandou, com a voz tensa, ao se levantar.
1
O céu amanheceu cinza no dia em que o vi pela primeira vez. Nas últimas semanas, fez um sol excruciante acompanhado de um céu limpo e azul, mas, naquela manhã, estava quase escuro de tantas nuvens negras. Particularmente, eu sempre amei dias com promessas de tempestade. — Bom dia, senhorita. A voz de Mira Mira era suave a ao o abrir a porta. porta. Virei o rosto para ela. Eu estava deitada, mas já havia acordado há, talvez, meia hora. Quase não tinha dormido durante a madrugada. — Bom dia — respondi.
Ela abriu a boca mais uma vez, porém, fui mais rápida em completar: — Eu sei, já vou começar a me arrumar. Tinha certeza de que Nusa, minha madrasta, havia a mandado para me acordar e fazer com que eu me preparasse. Todos teríamos de estar perfeitos naquele dia. Mais do que o usual. Mira assentiu, grata por não ter que pedir. — O seu vestido está sobre a poltrona. — Ela completou antes de sair. Eu voltei a olhar para o teto por alguns instantes. Estava ansiosa, não de uma forma excitante e animada, mas de uma forma nauseante e desconfortável. Teoricamente, era um dia feliz. Um dia de celebração entre dois reinos que viviam em guerra e que, finalmente, entraram em acordo e estabeleceram a paz. Mas, por alguma razão, eu não me sentia desse jeito. Sentia um retorcer estranho na base do estômago. Mas me convenci de que aquilo não era muito anormal. Nas últimas semanas, desde que o tratado fora anunciado, ouvi muita gente expressando sentimentos negativos diante da situação. Havia
desconfiança entre o nosso povo. Os otimistas estavam felizes em juntar as casas e viver em paz. Mas os pessimistas pessimistas não tinham certeza se não poderia ser algum tipo de golpe. Os selke não eram confiáveis. Eles eram do mal. Cruéis.
Depois do banho, coloquei o vestido que foi separado para a cerimônia. Era de um tom de azul muito claro. Um belo vestido, mas azul nunca fora a minha cor, ainda mais naquele tom aberto, quase branco. Quando desci as escadas para o salão de entrada, meu pai e meu irmão já estavam do lado de fora, no meio do caminho até a carruagem. Nusa estava falando com a sua criada particular, enquanto esta, ajoelhada, ajustava algo em seu sapato. No vestido cor de creme justo, sua barriga ficava predominante. Ela estava com quatro meses no momento. Dali a cerca de cinco meses, eu teria mais um irmão ou uma irmã. Eu esperava que fosse uma menina, só porque tinha certeza de que meu pai gostaria de um menino. O caminho foi feito na maior parte em silêncio, com Nicklaus, meu irmão, e meu pai trocando algumas palavras sobre negócios,
esporadicamente. Minha madrasta parecia entretida o suficiente em afagar seu vestido e observá-los. Eu fitava a janela enquanto fazíamos nosso caminho até a entrada do palácio. A energia do povo era palpável. Aquele dia não era um como qualquer outro; estava muito claro. Apesar do céu cinza, Umbra continuava muito verde e viva. A base da nossa economia se dava graças ao clima e ao solo favoráveis para colheita. Muitos acres de terras planas e férteis. E por mais que fizesse frio no inverno, nunca nevava. As ruas estavam muito muito cheias. Várias carruagens carruagens seguindo em filas, e os mais pobres lotando as calçadas. Ninguém queria perder. Por mais que muitos não pudessem, de fato, ver a cerimônia, tentariam chegar o mais próximo possível para, pelo menos, vê-los entrar. Eu seria uma das que teria o privilégio de vê-los cara a cara. De observar a interação dos dois reis e rainhas de perto. Avaliar e especular cada movimento. Há mais de mil anos, dois príncipes brigaram. O rei estava muito doente, e o reino escolhera seus respectivos lados. Apesar do irmão mais velho ser, tradicionalmente, o “correto” para o reino, o mais novo tinha muitos aliados e ideais que eram adoradas por uma
parte do povo. Quando o rei finalmente falecera, a nação se dividira. Foram anos de guerra. Até que os dois criaram seus próprios reinos, dividindo a terra e o povo em dois. O irmão mais velho ficara com a parte sul e fundara Umbra, meu reino. O irmão mais novo, o rebelde, tomara a parte norte e fundara Khrovil. Ao longo de todos aqueles anos, guerras por terras e desavenças políticas foram travadas diversas vezes, direta ou indiretamente. Nós aprendemos desde novos, na escola, como o povo de Khrovil era profano e impiedoso. Eles eram o inimigo. Eu sabia daquilo desde garota. Mas,
recentemente,
começaram
os
boatos
de
uma
reconciliação. Eu não achei que fosse possível; a maioria de nós estava desacreditada. Mas, pensando bem, fizera certo sentido: há muitos anos, não fora travada nenhuma guerra entre as nações. E nosso rei atual era mais compreensivo e tolerante do que os anteriores. Talvez, fosse a hora de, finalmente, parar de derramar tanto sangue. Assim que atravessamo atravessamos s a grande muralha do palácio, eu comecei a procurar por Rafe no mar de pessoas, mas parecia
impossível encontrá-lo ali. Todos estavam se apertando o mais próximo possível da frente do palácio. Os guardas reais estavam protegendo o caminho de entrada até as portas enormes do palácio para que não houvesse ninguém no caminho quando as carruagens reais passassem. Desisti de procurar e esperei um pouco. Rafe era um nobre, o que queria dizer que ele logo estaria por perto do lugar que fora separado para nós. A nossa carruagem parou em frente ao palácio, ao lado de uma fila de outras carruagens tão impressionantes e luxuosas quanto a que nos encontrávamos. Eu olhei para o meu pai, que ajeitava o colarinho em um ato de apreensão. Suas sobrancelhas estavam franzidas; ele quase sempre as tinha assim. Aquilo, infelizmente, fora herdado a mim, e eu me esforçava para relaxar o cenho sempre que notava que estava parecendo demais com ele. Depois que descemos, fomos posicionados abaixo das escadarias da entrada do palácio. Meu pai um pouco mais à frente, junto com todos os outros homens de influência do reino. Eu fiquei um pouco mais para trás, junto aos filhos daquelas pessoas. Entre nós, os guardas abriram espaço para a longa passagem que se
estendia até as muralhas — era por onde o Rei de Khrovil e sua família iriam atravessar. Era um desfile, aquilo era claro. Simbólico. Aquele acordo de paz era o começo de uma nova era. era. — Grande dia, huh? — A voz familiar soprou em meu ouvido. Eu me virei para encontrar Rafe, vestido todo de branco com exceção do colete verde claro. Seu cabelo vermelho alaranjado estava, como sempre, perfeitamente penteado. — Para quem? — Para a nação, é claro. — Ele respondeu com uma voz casual e um tanto sarcástica. Ele estava animado, no entanto. Era perceptível. E eu já tinha uma ideia do porquê. — Você está linda. — Ele disse como sempre e, também como sempre, eu tive dificuldade em aceitar o elogio. Nunca fui boa em recebê-los. Aparentemente, sorrir e agradecer era complicado demais para mim. Mas, como Rafe era meu amigo há muito tempo, tinha a liberdade de simplesmente torcer o rosto em uma careta.
Ele me deu um beijo rápido na testa e começou a se distanciar. — Ei! Você não vai assistir? — indaguei, levemente decepcionada. Queria fazer comentários maldosos sobre as roupas ou a aparência da realeza, há pouco inimiga, em seu ouvido. Ele balançou a cabeça e sorriu. — Vou aproveitar que estão todos muito concentrados nessa união de paz. Eu assenti, entendendo o recado. — Cuidado — sibilei em um sopro. Ele não respondeu, mas eu sabia que havia escutado. Observei suas costas se perderem entre a multidão e logo avistei Murry mais distante, com os olhos em nós. Ele sorriu em minha direção; aquele seu irresistível sorriso doce. Eu, definitivamente, entendia o apelo. Dei um pequeno aceno de volta antes de me virar. As trompas soaram e, logo depois, as enormes portas do castelo se abriram. O Rei e a Rainha de Umbra, assim como seus dois filhos, apareceram no topo das escadas. Como de costume,
trajavam vestimentas brancas e longas. O material era largo em seus corpos, esvoaçando assim que o vento bateu contra eles. Estava claro a importância daquele momento devido aos ornamentos prata e dourado que enfeitavam seus trajes. Pulseiras, gargantilhas e até coletes de metal brilhavam graças às várias pedras preciosas. Eles pareciam anjos enviados diretamente pelos Deuses. E sabiam disso. A Rainha Netania sorriu e acenou. Era conhecida pela simpatia, mas, principalmente, pela beleza. Longas tranças brancas como a neve fazendo contraste com a pele negra. Era esbelta, mas não muito alta. A princesa era era praticamen praticamente te seu clone, com exceção exceção do cabelo castanho claro, que havia herdado do pai. O rei Baron era alto, corpulento e tinha a pele em um tom bronzeado. O filho era mais parecido com ele; não era feio, mas, definitivamente, não belo. Era um garoto reservado, porém doce. Doce demais para um futuro rei, alguns diziam. Os aplausos terminaram quando outra trompa soou. Cabeças se voltaram na direção oposta assim que carruagens surgiram no outro horizonte do castelo. Pretas e com detalhes cinza adornando a
estrutura. Bandeiras balançavam nas hastes, exibindo o brasão do reino vizinho. As pessoas se calaram, calaram, e um considerável silêncio silêncio se instalou. A ansiedade e a curiosidade nos deixaram mudos. A maioria ali estava prestes a vê-los pela primeira vez. Daríamos um rosto aos nomes que tanto comentavam. De acordo com o meu povo, os deuses mais malignos os amavam. Eram protegidos pelo deus da mentira, pelo deus da luxuria, pelo deus da ganância. Assim que as carruagens pararam, os soldados começaram a sair. Todos usavam máscaras pretas e lisas, que cobriam seus rostos completamente, com exceção dos olhos. Dezenas daqueles homens se organizaram, formando uma barreira entre todos nós e as carruagens reais. Assim que a formação acabou, a porta de uma das carruagens foi aberta. O Rei Zagreus saiu primeiro. Ele era exatamente o que eu esperava. Exatamente como haviam me contado. Alto e grisalho, ele usava trajes escuros e uma impressionante máscara negra com chifres da mesma cor. Nada dava para ver além de sua boca, que estava em uma linha reta, e o
queixo. A Rainha Visha desceu em seguida; tinha o cabelo castanho preso em um coque apertado e o rosto escondido pela máscara. O item que cobria sua face também era negro, mas tinha detalhes em pedras preciosas e velava apenas a metade superior do seu rosto. Seu vestido vermelho-vinho arrastava no chão e marcava a cintura devido ao corset preto. Havia rumores sobre as máscaras também, era claro. Especulações do porquê exibiam máscaras ao invés de coroas. Pouquíssimos reinos tinham aquela tradição. Eles a tiravam apenas em ambientes muito particulares; em celebrações como aquela, eram sempre usadas. Logo depois da rainha, um dos príncipes desceu. Era alto como o pai e tinha o mesmo tom de cabelo da mãe. Seu rosto também estava coberto por uma máscara negra, um pouco maior do que a da mãe, porém, com a aparência bruta do pai, sem os brilhantes. Eu não sabia qual dos príncipes era, mas, felizmente, duas mulheres ao meu lado estavam conversando alto o suficiente para que eu fosse capaz de escutar. — Esse é o príncipe mais velho, não é?
— Acho que sim. Parece normal, bonito até, e dizem que o mais novo tem uma aparência — ela fez uma breve pausa — exótica. Então, aquele era Zalic, o futuro Rei de Khrovil. O futuro líder do povo selke. Observei os três, assim como todo mundo, conforme eles começaram a andar em direção à realeza de Umbra. No momento em que me perguntei onde estaria o segundo príncipe, meu olhar foi levado de volta para a porta da carruagem. Ele estava, finalmente, descendo. Sarkian.
Ouvi falar muito dele não só nos últimos dias, mas nos últimos anos. Ele era conhecido pela personalidade especialmente maléfica. Havia rumores terríveis sobre ele, mais do que sobre qualquer um daquela família. E eu nunca tive certeza se eram verdadeiros ou apenas invenção do meu povo, mas, olhando para ele, senti, por alguma razão, que provavelmente havia mais verdades do que mentiras nas histórias. A mais ridícula e fictícia era sobre o fato de o rei não ser realmente seu pai. Em Umbra, alguns — os mais crentes
— afirmavam que a rainha havia se deitado com o Deus da morte e o concebido. Primeiro, vi a bota de couro pisar no chão de pedra. Os próximos segundos pareceram durar uma eternidade. E foi apenas devido àquele fato que notei o quão curiosa eu realmente estava. E, então, em um piscar de olhos, lá estava ele. Usava preto dos pés a cabeça, das botas até a longa capa que cobria quase todo o corpo esbelto. Com os ombros largos como os do pai, Sarkian era um príncipe imponente. Seus cabelos eram mais escuros que qualquer um da família, tão negros que pareciam brilhar em um tom azulado contra a luz. E aquilo fazia um contraste violento com a sua pele muito pálida. A pele que tínhamos acesso apenas na parte inferior da face, porque a máscara negra tapava parte do seu rosto. Eu já tinha ouvido falar de sua aparência. De seus cabelos cor de carvão e pele cor de neve intocada. Alguns diziam que, por trás da máscara, ele era um monstro, um verdadeiro demônio. Outros diziam que era tão belo quanto um anjo caído. De qualquer forma, era, de fato, impressionante ao vivo.
Hipnotizante, mas não de um jeito bom. Ele também usava luvas e gola alta, deixando quase nenhuma pele à mostra. Cobria-se mais do que qualquer um da família. Seu rosto era impassível ao colocar os pés no solo de Umbra. Ele ajeitou, sem pressa — diria até que com uma lentidão beirando a arrogância —, a luva conforme o soldado fechava a porta da carruagem atrás dele. E, então, depois do que pareceu uma eternidade, ele levantou o rosto sutilmente e, por fim, reconheceu o povo em volta. Mas, assim que o fez, assim que ele levantou o olhar, alguém entrou na minha frente. Fiquei na ponta dos pés e me arrependi de não ter colocado um sapato de salto tão alto quanto os das garotas ao meu redor. O Rei Zagreus, a Rainha Visha e o príncipe mais velho já atravessaram a passarela a caminho da entrada do castelo. Fizemos a devida reverência, um leve torcer de joelhos e uma sutil inclinação de cabeça conforme passavam em nossa frente. Um pouco mais atrás, Sarkian começou a acompanhá-los. Ele não andava só com confiança, ele andava com um senso de superioridade. Tinha os olhos à frente, sem encarar o povo à
medida em que passava, diferente do irmão, que lançou breves olhares pela multidão. Novas reverências começaram, como uma onda que seguia o príncipe esbelto conforme andava. Ele passou por mim, ficando a não mais de um metro de distância. E era palpável a tensão que se formou nas pessoas ao meu lado. O som de uma trovoada, prometendo chuva, afastou alguns olhares para o céu, mas não o meu. Porque, no exato momento em que aquilo aconteceu, Sarkian virou o rosto. Ele olhou para a sua esquerda, um pouco mais para trás. Exatamente em minha direção. O prata cintilou por trás da máscara. E eu fui arrebatada por aquela cor ao mesmo tempo assombrosa e deslumbrante. Nunca tinha visto algo parecido. Seu olhar foi como um choque. Por um breve instante, Sarkian Varant desacelerou o passo, como se algo tivesse chamado a sua atenção. Eu.
E foi só depois do segundo mais longo da minha vida, que notei o porquê. Eu não tinha feito reverência. Todos se moveram conforme ele passou, menos eu. Simplesmente o encarei, estática. Era tarde demais agora, então apenas sustentei seu olhar penetrante, até que ele o desviasse. Só percebi que estava segurando a minha própria respiração quando alguém entrou na minha frente, impedindo-me de observá-lo se afastar. Eu não sabia o porquê não havia feito a reverência. Talvez, fosse pelo fato de que nem olhando para nós ele estava. Se ele mal nos reconhecia, então qual era o sentido de reverenciá-lo? Ou, talvez, pelo fato de estar concentrada demais. Hipnotizada demais.
Porque, agora, depois de ter seus olhos diretamente nos meus, eu tinha a mais plena certeza de que tudo o que haviam dito de ruim sobre ele, era a mais pura verdade.
Encarando o mau naqueles olhos alguma parte silenciosa porém pulsante da Usurpadora de Sangue entendeu que o Príncipe das Sombras teria algo a ver com o seu fim E ela estava certa
2
Fui acordada por gritos. Pisquei algumas vezes antes de me sentar na cama, confusa. Notei a movimentação no corredor e as vozes dos criados ao acender as luzes. Mais um grito agonizante soou antes que eu me levantasse e, daquela vez, reconheci que os sons vinham da minha madrasta. Era quase um uivo desesperado. Nunca ouvi algo parecido saindo dela; ou de ninguém, na verdade. Comecei a pensar que, talvez, alguém tivesse invadido a casa e estivesse tentando matá-la, mas, então, finalmente me recordei. Ela já havia passado dos nove meses de gestação. O momento havia chegado. Deitei-me novamente, apenas por um minuto, e inspirei fundo algumas vezes, perguntando-me o que deveria fazer. Como sabia que não iria conseguir voltar a dormir com aquela comoção toda,
levantei-me. A noite estava gelada, então, coloquei uma manta antes de sair do quarto. Os gritos continuaram, mas um pouco mais espaçados e com gemidos acompanhando-os. Uma criada esbarrou em mim assim que fechei a porta do meu quarto. A água do balde que ela carregava espirrou pelo chão e molhou parte da minha camisola. — Me desculpe, senhorita. — Allegra disse ao mesmo tempo que continuava andando apressada. Eu não cheguei a responder porque ela já estava virando o corredor em direção ao quarto dos gritos horrendos. A segui até parar parar em frente à por porta. ta. A cena era um tanto caótica. Exatamente o que se esperava de um parto. Minha madrasta estava deitada, contorcendo-se no centro da cama, enquanto duas criadas a cercavam. Seu cabelo loiro estava por todo lugar e suas pernas, escancaradas. O rosto estava muito vermelho, como se todo o sangue de seu corpo estivesse concentrado ali, e suas mãos agarravam os lençóis. Era fascinante vê-la daquele jeito; ela estava sempre tão contida e rígida. Acho que imaginei que ela daria à luz em silêncio e em completa compostura.
A criada particular dela estava ao seu lado, ajeitando os travesseiros para melhorar a sua posição. — Senhorita. Olhei para o lado ao ouvir a voz de Mira, minha criada, parada junto à porta. Depois de me cumprimentar cumprimentar,, ela cravou os olhos na cena à nossa frente, também impressionada. — O especialista já foi chamado? — perguntei. — Sim. — Ela assentiu, depois de piscar e desviar o olhar da minha madrasta. — Seu pai acabou de mandar o criado buscá-lo. — Onde está meu pai? — No quarto dele. Claro. Aillard Novak não perderia uma noite de sono para assistir à esposa dando à luz. Ele não fizera aquilo com nenhum dos outros filhos. Provavelmente, só sairia quando a criança estivesse nos braços da mãe. E, claro, se fosse um menino. A maioria dos homens esperava do lado de fora do quarto. Já ouvi dizer até que alguns ficavam próximos à cama das esposas. Eu quase senti pena de Nusa. Mas, então, me lembrei de que a odiava quase tanto quanto odiava o meu pai.
Ela gritou mais uma vez um palavrão engasgado em choro. Ergui sutilmente as sobrancelhas, recordando-me das vezes em que ela me estapeara quando eu dizia uma palavra como aquela. Seus olhos
se
voltaram para
a
porta,
encontrando
os
meus
instantaneamente. Seu rosto estava selvagem. Havia suor por toda parte e seu olhar era feroz. E acho que, quando ela olhou para mim, pôde ver o poder das lembranças que me faziam ser indiferente à sua dor, até porque, não tentava esconder. Ela engoliu em seco antes de cerrar os dentes e desviar o olhar. Distanciei-me da porta e voltei ao meu quarto. Senti os passos da minha criada me seguindo. — Você precisa de alguma coisa, senhorita? Neguei com a cabeça quando encostei na maçaneta. — Não, vou voltar para cama — respondi. — Você parece cansada. Faça o mesmo, já tem gente o suficiente auxiliando-a. Ela assentiu com os olhos pesados. Assim que estava sozinha em meu quarto, cruzei-o em direção ao armário. Tirei o pijama e coloquei a roupa mais escura que tinha lá dentro. Por cima, joguei uma capa preta que deixava escondida em um compartimento abaixo da madeira.
Depois de prender os cabelos em uma trança única e cumprida, olhei-me no espelho, pensando na reação do meu pai se me visse assim. Roupas pretas costumavam ser vistas de forma negativa. Nunca se via alguém da realeza ou da nobreza com aquela cor; e a maioria das prostitutas usavam preto e cores mais escuras em geral também. Era com isso que estava contando: estar semelhante à uma mulher que vendia o seu corpo. Não seria difícil, ainda mais naquela hora da noite. E, além disso, aquela não era a primeira vez em que fazia isso. Escrevi uma mensagem para Rafe na pedra lisa e esperei pela resposta assim que terminei de assinar com o brasão da família. Rezei para que estivesse acordado, caso contrário, não veria a mensagem se acender sobre sua própria pedra. Cerca de quinze segundos depois, minhas preces foram atendidas. O que escrevi desapareceu diante dos meus olhos e novas palavras acenderam em pequenas chamas pela pedra. Estarei lá.
Foi tudo o que surgiu. Satisfeita, passei a mão sobre a planície e a resposta de Rafe se apagou tão rapidamente quanto surgiu. Ele estava na esquina escura, próxima à minha casa. Estava de
costas,
os
braços
cruzados
enquanto
me
esperava.
Provavelmente tenso, o que não era incomum para ele. Eu o vi primeiro, então aproveitei a oportunidade. — Bu! Ele pulou. — Puta que pariu! — Rafe me encarou com os olhos arregalados e colocou a mão sobre o peito. — Puta. Que. Pariu. A risada escapou da minha gargant garganta. a. — Foi impossível de resistir resistir,, sinto muito. — Não sente. — Ele acusou, irritado. Eu ainda sorria. — É, não sinto — respondi, e começamos a caminhar noite adentro. — Tá com medo ou algo assim? — provoquei, na tentativa de esconder o meu próprio receio. Estava muito tarde e, naquela hora, só havia pessoas com más intenções acordadas.
Com exceção de nós, era claro. — Não tô com medo, sua megera. Ele ainda estava irritado com o susto, s usto, mas passaria dali alguns minutos. Diferente de mim, Rafe nunca guardava qualquer tipo de rancor. — Talvez, Talvez, esbarremos com um caído — sugeri com sarcasmo. — Espero que sim. Te jogaria na direção dele e ganharia tempo para correr. Os caídos eram seres que viveram entre nós centenas c entenas de anos atrás. Tinham aparência similar à humana, mas com poderes divinos. Por isso que, na época, muitos acreditavam que eles eram os escolhidos . Foram superiores um dia. Eram reis e rainhas. O mais alto e prestigioso da sociedade. Eles mantinham o poder na ponta dos dedos. Reinos como Umbra acreditavam que os Deuses os enviaram para fazer de sua força na Terra. Mas a coisa saiu do controle. Alguns foram tiranos demais. E depois de muitas mortes e caos causados pelos poderes grandiosos, viram que, na verdade, eles eram um castigo. Foi entendido que eles, na realidade, caíram do céu por serem pecadores. Os Deuses não os queriam entre eles,
então caíram como punição. Os humanos se rebelaram e o jogo virou. Houve uma guerra de muitos anos na Terra. Eles eram extremamente poderosos, mas em menor número, se comparados a nós. Eles foram caçados até sua completa extinção. Pelo menos, foi o que me contaram. Tudo o que ouvimos sobre eles eram histórias antigas. Algumas pessoas acreditavam, inclusive, que eles eram apenas aquilo: histórias. Lendas que muitos contavam para assustar crianças. Assim que chegamos no bar bar,, fui inundada pelo cheiro familiar de levana. A folha que tinha um odor cítrico e forte. Eram fumadas porque tinham efeitos alucinógenos. Eram proibidas em Umbra, é claro. Mas, em um lugar como aquele, as regras não eram seguidas. Era por aquela exata razão que era tão errado eu estar ali. A levana, as apostas, a promiscuidade. Eram todas proibidas por lei, algumas puníveis até por prisão. Rafe entrou primeiro, guiando-me em direção à uma das mesas e tomando cuidado para escolher uma em que não houvesse
nenhum conhecido do meu pai. No entanto, mantive o capuz da minha capa sobre a cabeça, só por precaução. Sentamo-nos e Rafe pediu para entrar, apesar de odiar qualquer tipo de jogo. E ser terrível também. Mas aquilo era só uma desculpa para me colocar na mesa como sua acompanhante. Hekim era um jogo tanto de sorte quanto de estratégia. Recebíamos cinco cartas no começo de cada jogada. No baralho, estavam estampados todos os Deuses nos quais acreditávamos. Cada um tinha certo valor, baseado em quão poderoso o Deus era. Podíamos analisar nossas opções, tentar a chance e trocar duas cartas no baralho central. O intuito era ter duplas, trios, ou até mesmo quatro cartas com o mesmo Deus. Na terceira rodada, apenas observando, peguei as cartas que foram colocadas na frente de Rafe. — Você quer jogar, gracinha? — indagou um homem velho, acompanhado do que, com certeza, era uma prostituta. Seu decote transbordava, e ela acariciava o homem ao seu lado de uma forma nada casta.
— Sim — respondi, tirando os olhos da carta apenas por um segundo. — Tem certeza? — Ele abriu um sorriso que me deu nojo. — Não é um jogo fácil. — Ela disse que quer tentar — reforçou Rafe, ao meu lado. Dois dos homens na mesa pareciam confusos, e o resto parecia entretido. Ah, deixe a garotinha garotinha boba tentar uma jogada. jogada.
— Tudo bem. — Ele colocou as mãos no alto e fez uma menção em meu sentido. — Dê as fichas a ela. O baralho total era dividido em dois, os Deuses da Escuridão e os Deuses da Luz. E o ideal, além de fazer as combinações dos seres divinos, era sempre ter uma mão com as cinco cartas com o mesmo elemento. Eu apostei errado nas duas primeiras jogadas. Tinha apenas duplas fracas e coloquei dinheiro mesmo assim. Eles riram quando fiz caretas confusas e decepcionadas. Levaram todas as minhas moedas. — Não fique triste; é realmente complexo. Não é um jogo para mulheres.
Na terceira, eu quase ganhei. Daquela vez, tinha duas duplas, mas de elementos diferentes. Mas o velho na mesa tinha um trio forte. — Ai, meus Deuses...! Fingi estar impressionada e surpresa com a minha jogada de sorte. Eles me aplaudiram, enquanto eu sorria com uma excitação ensaiada. Eles se divertiam com a imagem de uma garota pensando que sabia jogar. Começamos a quarta. Eu coloquei todas as minhas moedas, com um sorriso infantil nos lábios. Para eles, estava bêbada com a adrenalina da última vitória. Era imprudente. Estúpida. Eles me encaravam em meio à diversão e, alguns, certa pena. — Se eu fosse vo… — Um deles começou, o menos idiota, mas foi interrompido pelo amigo, que bateu em seu braço. Ele não queria que ninguém me aconselhasse. Era um dinheiro fácil demais para simplesmente deixar a oportunidade passar, e ele perdera muitas moedas nas últimas rodadas. Era um terrível jogador, jogador, talvez, até pior que Rafe. Quando ele murmurou alguma coisa no ouvido do outro — com um sorriso nos lábios —, ao passo que me lançava um olhar, o
amigo se calou. A excitação na mesa era grande. Não porque achavam que eu tinha alguma chance de ganhar, mas porque estavam curiosos em saber quem levaria o dinheiro todo da garota estúpida. O moreno, que tentou me impedir de apostar toda a mão, foi o primeiro a sair, frustrado. O imbecil ao seu lado entrou. Com um sorriso satisfeito, colocou duas duplas na mesa, uma da Deusa da água e outra do Deus da luxúria. Bom, mas longe de ser impressionante. O velho foi o seguinte. Estava confiante; eu podia ver pela forma com que seus olhos brilhavam sobre as próprias cartas. Certo de que não tinha como perder de mim, também colocou todo o seu dinheiro na mesa. Ele olhou diretamente em meus olhos. — Eis o seu primeiro erro como jogadora — ele começou a expor as suas cartas na mesa, uma por uma, fazendo grande espetáculo —, um erro que todos aqui já cometemos: o vício da primeira vitória. Por fim, deixou exposto um trio de luz, da Deusa da Natureza e uma dupla de escuridão do Deus da gula. Um gritinho de
comemoração deixou os lábios da sua acompanhante. A mão dele era muito boa. Ele tinha certeza de que estava prestes a ganhar. Dei um gole na taça de vinho antes de colocar as cartas na mesa. Não fiz tanto suspense quanto ele, mas não tive pressa ao colocar a minha jogada na superfície de madeira. Eu tinha 5 cartas, todas de escuridão. Uma dupla da Deusa da cobiça. E um trio de cartas do maior ser divino da escuridão, o Deus da morte e da dor. Por um segundo — um breve, mas precioso segundo —, todos ficaram em silêncio. E era por aquele exato — e precioso — momento que eu fazia aquilo. Eu gostava do dinheiro fácil, claro. Também gostava do jogo em si. Mas amava ver os rostos deles ao perderem para uma garota. Eu me deliciava em ferir, nem que fosse apenas um pouquinho, seus egos. — Um rank dark . Ela tem um… — um deles levantou o rosto para, finalmente, me encarar — rank dark .
O moreno imbecil socou a mesa, fazendo as fichas balançarem. — Ela só pode ter roubado! O velho continuava em silêncio, encarando minhas cartas como se tentasse entender. — Não, não. Estávamos todos aqui, vendo, e ela venceu de forma limpa. — Rafe se pronunciou, fazendo seu papel na batalha idiota de testosterona. — É. — O velho finalmente falou, saindo do transe. Todos olhamos para ele, e ele olhou para mim. — Ela venceu. Havia desgosto em sua voz, mas aceitação. A derrota não lhe caía bem; toda a luz deixou seu corpo. Claramente, não estava acostumado com a sensação. E eu estava feliz em poder lhe proporcionar aquilo. Eu me inclinei para recolher as moedas da mesa, basicamente limpando a superfície. Quando tive todas em mãos, sorri para meus parceiros de jogo, que me observavam com feições impagáveis. Aquilo valia mais mais do que qualq qualquer uer quantidad quantidade e de moedas. — Sorte de principiante.
Com isso, Rafe e eu deixamos a mesa. Uma boa jogadora precisava saber a hora de parar. E com aquela última jogada, eu havia feito mais do que a maioria dos bons jogadores faria a semana toda. Às vezes, ser subestimada podia podia ser extremament extremamente e lucrativo. — Deuses, você não se cansa disso, não é? — Ele murmurou para mim, conforme seguíamos para a saída. Eu sorri. — Claro que não. Você viu a cara deles? Rafe abriu o mesmo sorriso conspiratório ao admitir: — Foi realmente uma visão e tanto. Mas, o que você vai fazer com isso? — Ele perguntou como em todas as outras noites. E eu também respondi como em todas as outras noites: — Não sei ainda. A verdade era que eu não precisava daquele dinheiro. Pelo menos, não agora. Não precisava pagar pela minha comida, moradia e nem os vestidos caros que enchiam meu armário. Tudo era provido pelo meu pai, mas eu não tinha nenhum controle sobre ele. Minha madrasta precisava aprovar todos os vestidos que
comprava e, basicamente, todo o resto. E sabia que, no fundo, ela amava aquilo. Aquela dependência dependência me corroía a aos os poucos. Olhei para as moedas em minhas mãos. Mesmo que fossem insignificantes perto da riqueza da minha família, elas queriam dizer liberdade, mesmo que fosse uma centelha dela. O meu mundo
parecia apertar em volta de mim, e eu não tinha saída, porque tudo se resumia a dinheiro. Porque dinheiro era poder. E, por mais que fosse pouco, ainda significava um pedacinho de independência independência.. Dentro de mim, por alguma razão, eu sabia que um dia precisaria daquele dinheiro. De um plano b. De uma saída. Ainda não sabia o porquê ou quando, mas sentia dentro do meu peito. Era uma sensação estanha e inquietante. Coloquei as moedas no bolso. As juntaria com o resto no pequeno compartimento secreto do meu porta joias assim que chegasse em casa. — Você está cego? — Ouvi alguém reclamar em um tom hostil, tirando-me a atenção das moedas. Quando olhei para o lado, Rafe estava diante de um homem com um rosto conhecido e abominável.
Não que o rosto de Vesper Fairley fosse abominável, muito pelo contrário, mas sua personalidade era asquerosa. Era o único filho de um barão. Rico e mimado. Gostava de beber e jogar, e era por isso que, frequentemente, o víamos em noites como aquela. — Não o vi aí. — Rafe respondeu em tom baixo, porém, seco. Fiquei orgulhosa por ele, pelo menos, não ter se desculpado. Mas não foi o suficiente para o idiota. Vesper olhou para a bebida em sua mão e indicou para o chão com um movimento um tanto dramático. — E olha a bagunça que você fez! — Foram apenas algumas gotas, Vesper. Não vai morrer por causa disso. Aqui — abri a minha bolsinha e coloquei uma moeda no bolso de sua capa —, resolvido. Sorri de forma debochada. Ele me encarou. A expressão em seu rosto mostrava que o sentimento que eu supria em relação a ele era mútuo. Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, peguei a mão de Rafe e comecei a arrastá-lo para longe dali. Mas, como Vesper
adorava fazer das nossas vidas um inferno, ele não permitiu que fossemos de forma tão simples assim. Rafe estava do meu lado e, então, em questão de milésimos de segundos, estava no chão. Parei abruptamente ao ver meu amigo cair. E, ao olhar para Vesper e sua expressão satisfeita, não precisava de muito para chegar à conclusão de que ele havia colocado o pé no caminho para que Rafe tropeçasse. As pessoas olhavam a partir partir daquele mo momento. mento. Eu queria quebrar todos os dentes da boca de Vesper. Rafe se levantou. Estava vermelho de raiva e vergonha. Eles se encaram por um momento. Rafe avançou um passo, suas mãos fechadas e em m punhos. Já tinha o visto daquele jeito, talvez, duas vezes em toda a minha vida. — O que vai fazer? — Vesper provocou. — Qual é? Todos aqui sabemos que você não tem culhão. Um longo segundo passou. Coloquei a mão em seu pulso, por mais que soubesse que Rafe não avançaria.
Rafe não era um lutador. Nunca fora. Ele era gentil, calmo e tímido. Vesper acabaria com ele caso chegasse a tanto. Felizmente, meu amigo se virou e eu o puxei para fora dali. Tomei cuidado para não deixar o meu capuz cair diante de tantos olhares. Tinha medo de que alguém pudesse me reconhecer naquele lugar. Fazer uma cena ali, definitivamente, era a última coisa que eu desejava. Maldito Vesper. — Deuses, ele é um idiota. — Eu murmurei quando, por fim, saímos de lá. Rafe não respondeu. Observei seu rosto fechado e entendi que não queria conversar. Eu odiava homens como Vesper, que achavam que podiam pisar em quem bem entendessem. E eles escolhiam justamente pessoas dóceis e boas demais, como Rafe, porque sabiam que sairiam triunfantes de alguma forma. A casa estava silenciosa na chegada. Tomei cuidado para não fazer barulho. Não que eu achasse que alguém notaria qualquer coisa sobre mim naquela noite, mas, ainda assim, já havia se passado muito tempo do meu toque de recolher. Entrei pela porta de
evacuação de emergência e subi as escadas até o meu quarto. Estava prestes a entrar quando vi a sutil luz no meio da escuridão. Minha criada estava me observando do final do corredor. Ela não fez nenhum comentário sobre a minha escapada. Nem mesmo seu rosto demonstrou surpresa. Fiquei aliviada em ser ela; dificilmente iria se dirigir ao meu pai para me dedurar. — O que é? — Eu indaguei. Ela hesitou e fiz menção na direção do quarto da minha madrasta. — A criança. Ela trocou a vela de mãos. — Um menino. Eu desviei o olhar do dela e balancei a cabeça antes de entrar no meu quarto. — É claro.
Ela só o pegou no colo 22 dias depois de seu nascimento Ele já tinha aberto os olhos completamente e a encarava fixamente enquanto ela o balançava com suavidade pela sala Ela gostou do peso em seus braços e do cheiro do perfume infantil mas nada além disso sentiu A usurpadora aproximou aproximou o rosto do dele dele e sussurrou você ainda não sabe da sorte que tem por ter nascido nascido com o que tem entre as pernas Vai ter o pai que nunca tive e oportunidades que jamais terei porque eles podem podem não te amar mas vão te valorizar
3
Meu vestido prateado era tão ridiculamente brilhante que eu estava começando a ficar preocupada com a possibilidade de
cegar alguém. Eu o odiei no minuto em que o coloquei. Eu parecia um lustre, iluminando qualquer cômodo por onde atravessava. Sem contar que era completamente desconfortável; as pedras de cristal que adornavam o decote pareciam perfurar a minha pele. Não dava para dizer que era um vestido feio, mas ele, definitivamente, chamava atenção demais. E eu não me sentia bonita nele. O material não cobria nada dos ombros, que era uma parte do meu
corpo que me incomodava consideravelmente.
Minha madrasta me fez vesti-lo de propósito. Ela queria que eu chamasse atenção. Fiz 18 anos no mês passado, o que queria dizer que estava na idade ideal para me casar. Sabia que ela estava louca para que eu me tornasse o problema de outra pessoa. Antigamente, ela ela gostava de ter alguém que pudesse pudesse controlar controlar,, mas, depois que o bebê nascera, ela parecia satisfeita em tê-lo como único foco para passar o tempo. — Você está enorme nesse vestido. — Foi a primeira e única coisa que ela me disse quando entrou no quarto. Eu estava usando um vestido de mangas longas de um azul um pouco mais fechado, quase um marinho. Eu gostava de como aquela cor ficava em contraste com o meu tom de pele. — Obrigada — murmurei, com sarcasmo. Fui pega de surpresa tanto por sua presença, quanto por sua declaração, e foi o máximo que consegui fazer. Eu não costumava discutir com ela, e sim ignorá-la. Com o meu pai era outra história, já que, por sua vez, eu era a ignorada. E então, lá estava eu entrando no salão com o vestido que eu não havia escolhido. Meu pai andava na frente e nós o seguíamos. Ficamos diante da Família Real e fizemos a reverência, assim como
todos os convidados que chegavam. O rei só devolveu o olhar ao meu pai. — A festa está esplêndida, Majestade. — Meu pai comentou, olhando para a rainha. Ela ficou visivelmente lisonjeada e sorriu. Ao abrir a boca para responder, o bebê — que estava no colo da minha madrasta — soltou um gemido agudo. Sabendo que aquela era a promessa de um choro, minha madrasta pediu licença e se retirou. Aproveitei a deixa e fiz o mesmo. Eu odiava me dirigir à Família Real. Sentia-me tão pequena e insignificante. Sentia medo de dizer algo que meu pai considerasse estúpido e aquilo piorasse ainda mais a imagem que tinha de mim. Era devido àquela ansiedade que nunca havia dito mais de duas palavras para o rei, apesar de estar em certo convívio com ele desde bebê. Quando eu era pequena, eu e a princesa éramos amigas, se era que se podia usar a palavra quando se referia à uma relação entre duas crianças de cinco anos. Nós tínhamos a mesma idade e, junto com algumas crianças privilegiadas, tínhamos aquele tipo de interação social durante as festas. Eu não lembrava daquilo, apenas me fora contado.
O tempo passara e a princesa crescera. Por fim, ela não tinha mais alianças com qualquer garota, nem mesmo uma rica. A princesa era da realeza, então ela só se misturava com a nobreza. Meu pai e meu irmão ficaram lá, conversando com a Família Real, e tentando sugar qualquer pequena e insignificante atenção. Eu deixei o enorme e barulhento salão principal para ir até o banheiro. Eram vários e localizados em diversas alas do palácio. Sabia daquilo porque já fui em festas reais o suficiente para conhecer cada um deles. Escolhi ir ao mais distante para poder ter mais tempo sozinha, longe da festa. No fim de um dos corredores mais escuros e abandonados, vi duas pessoas. Avancei mais um pouco até notar que estavam muito próximas. Estranhamente próximas. Continuei andando para chegar até o banheiro no final do corredor, apesar de estar um pouco desconfortável em me intrometer na intimidade do casal. Eles não notaram a minha presença; tinham os olhos um no outro. E foi quando estava a cerca de dez passos deles que, finalmente, consegui ver com mais clareza. c lareza.
Eram dois homens. Desacelerei o passo, pega em um misto de surpresa e tensão. Talvez, eles só estivessem conversando. Talvez, fossem apenas amigos. Mas, então, um dos homens ergueu a mão e a colocou no rosto do outro. Era tão suave. Era tão íntimo. Dolorosamente belo. Aqueles homens, definitivamente, definitivamente, n não ão eram amigos. Quando dei mais um passo, desesperada para passar por eles e entrar logo no banheiro, ffinalmente inalmente reconh reconheci eci os rostos. Na minha frente, estava Rafe e, ao seu lado, ninguém mais, ninguém menos que Vesper. — Rafe. — Minha voz saiu em um tom estranho de surpresa e repreensão. A mão de Rafe deixou o rosto de Vesper como se sua pele tivesse sido queimada, e os dois se afastaram abruptamente. Vi o pânico em seus olhares até notarem que era eu. — Graças aos Deuses. É você. — Meu amigo deixou escapar com um longo suspiro. Eu olhei para os dois lados do corredor escuro.
Mas, se não fosse… — Olá, Cera. — Vesper sorriu de uma forma nada convincente. — É um prazer vê-la. — Vesper. — Reconheci com certa irritação ao me aproximar. — O que vocês estavam fazendo? — O que acha? — O idiota abriu um sorriso sugestivo. — Ei. — Meu amigo interveio, tentando amenizar. Ainda parecia nervoso com a sensação de quase ser pego. Aquilo poderia ser desastroso. Poderia ser fatal . E ele sabia. — A gente não estava fazendo nada demais. — Ah, não? — indaguei, erguendo as sobrancelhas. — Porque, definitivamente, não pareciam estar discutindo sobre política ou o clima. O sorriso de Vesper ficou maior. — Definitivamente, não. — Ei. — Rafe repetiu, daquela vez, mais alto. Desviei o olhar do imbecil para encarar meu amigo. Eu passei por eles, e quando saí do banheiro, Rafe estava me esperando do lado de fora, sozinho. Ele tinha os braços cruzados e
um olhar distante. — Você precisa ter mais cuidado — comentei assim que começamos a andar de volta para o salão. — E você precisa relaxar. — Desde quando você me diz para relaxar? — A gente não estava fazendo nada demais. — Ele repetiu, como se aquela tentativa fosse me m e convencer convencer.. — Aquilo é o suficiente e você sabe disso. Rafe jogou a cabeça para trás e suspirou. Quando voltou a olhar para mim, sorriu de um jeito cansado e… realizado. — Eu tô feliz, ok? Você não pode ficar contente por isso? Claro que eu queria a felicidade dele. Era a única pessoa com quem eu realmente me importava. Eu queria que ele tivesse tudo o que quisesse. Sempre. Mas não era assim que as coisas funcionavam por ali. Relações entre pessoas do mesmo sexo eram proibidas no nosso reino. Segundo o rei, era pecado e, por isso, punível.
— Eu só não quero que você esqueça do que aconteceu com Elvi. Elvi era um garoto que havia estudado com Rafe. Nós mal o conhecíamos, mas havíamos trocado algumas palavras em eventos ao longo dos anos. Era inteligente e gentil. E, na semana passada, o vimos ser decapitado no palco de Adalo por ter sido pego com outro garoto. Meu amigo me encarou por um instante e, então, desviou o olhar. Qualquer brilho que havia em seu rosto foi apagado pelo peso das lembranças. A cena fora horrível para mim, mas eu não podia imaginar como devia ter sido para ele. Lembrava de segurar a sua mão, enquanto Elvi gritava por misericórdia, e de como ela tremia violentamente. — Acredite em mim: eu não esqueci, Cera. Eu me senti uma sem coração por trazer aquilo à tona. Era óbvio que ele se lembrava. Era algo que ficaria em nossas mentes para o resto da vida. Mudei de assunto. — Tinha que ser ele? — Fiz o comentário descontraído e provocante. — Você lembra de como ele era um imbecil com você? Ou a paixão te causou perda de memória?
Seus ombros relaxam um pouco. — Pessoas mudam. — Raramente. E não tão rápido. — Mas você precisa admitir admitir,, ele é lindo. Ele, de fato, era. Lábios cheios em um rosto anguloso. Pele negra e impecável, como se ele se banhasse em sangue de bebês todas as manhãs para evitar qualquer mancha e imperfeição. Eu não queria dar aquela satisfação a Rafe. Jamais reconheceria a beleza de Vesper em voz alta. Eu não tinha tanta facilidade em esquecer — e perdoar — como meu amigo. — Eu realmente acredito que a beleza não compensa caráter. — Eu disse. — Mas, aparentemente, você não pensa o mesmo. Ele deu um gole no vinho e ficou um momento em silêncio. — Aquele... — ele apontou para o murmurinho de pessoas no centro do salão — é um ótimo exemplo de beleza que não compensa caráter. — Quem? — O cruel . — Ele olhou para mim. — Ele está aqui. Não sabia?
— Não. Acabei de chegar — respondi, confusa. — Bem ali. Ele apontou novamente e, daquela vez, eu o vi. Sarkian Varant estava no centro do salão. Cercado por alguns nobres e, um pouco mais afastados, vários guardas com os trajes típicos dos selke. Basicamente, toda a atenção da festa estava nele. As outras pessoas comiam e conversavam entre si, mas os olhares constantemente vagavam até o príncipe vestido de preto da cabeça aos pés. Nos últimos dois anos, desde o contrato de paz, seu pai, sua mãe e seu irmão mais velho vieram algumas vezes até o reino. Uma das ocasiões fora no aniversário de 40 anos da rainha, no qual eu estava. Nosso rei também fizera viagens até Khrovil em alguns momentos. Acreditava que aquele tipo de presença era necessário para mostrar para o povo a união entre os reinos. Mas o curioso era que Sarkian nunca os acompanhava. Ele só viera até Umbra no dia do contrato e depois, nunca mais ninguém o vira. As pessoas notaram aquilo. aquilo. E falaram so sobre bre aquilo.
Estava começando a parecer que as pessoas amavam falar sobre ele, e aquele era só mais um motivo. Os rumores sobre a sua reputação pareciam aumentar. Já era de conhecimento público que Sarkian era letal com uma espada. Também era muito comentado o fato de ele ser o encarregado de torturar pessoalmente os inimigos do rei. Seus apelidos aumentaram ao longo dos últimos anos: príncipe das trevas, seifador cruel, filho das sombras. Mas, o mais impressionante de tudo era o fato de que sua aparência era muito discutida pelo sexo feminino. Mesmo com tudo o que diziam sobre ele, algumas mulheres pareciam não se importar. Achavam-no deslumbrante. Outros diziam que era um monstro. Eu não saberia dizer, é claro. Nunca o tinha visto sem a máscara. — Eu sei. Mas, para algumas, parece que a beleza compensa. — Eu indiquei um grupo de garotas muito bem-vestidas, que o encaravam fixamente. Provavelmente, só estavam curiosas. Eu mesma estava, então não as culpava. Havia um mistério, algo que puxava nossos olhares na direção dele. Talvez, fosse toda a maldade que nos intrigava.
— Tipo, o cara é claramente um sádico. — Ele franziu o cenho. — Não é meio brochante, não? Aquela era a segunda vez em que via o príncipe. Mas, fui tão arrebatada pela crueldade que encontrei em seus olhos na primeira ocasião, que ignorei todo o resto. Porém, agora, encarando-o do lado oposto do salão, era inevitável não notar como ele havia ficado ainda mais impressionante. Seus ombros se alargaram ainda mais, e ele cresceu alguns centímetros. c entímetros. — Eu ouvi dizer que ele mata as mulheres depois que dorme com elas. Encarei meu amigo com choque misturado a ceticismo. — Isso é rumor. Não é possível. — Sério. Eu não duvido. Falam que ele anda coberto assim para não expor as tatuagens que cobrem o corpo inteiro. As tatuagens eram marcas das vidas que havia tirado. Em Khrovil, a tradição era a realeza se marcar depois de derramar sangue inimigo em batalha. Quando mais marcado, mais fatal era. Nossa conversa foi interrompida quando a minha madrasta me chamou. Ela me apresentou a um casal mais velho com dois filhos, um deles já com a idade para casar-se. O mais novo parecia
extremamente entediado com a conversa e o mais velho me encarava da cabeça aos pés, como se estivesse avaliando um cavalo de corrida. Ele não pareceu muito impressionado, mas se demorou alguns segundos a mais — do que o que seria cordial — no meu decote modesto. Ele tinha espinhas no rosto e um corte de cabelo deplorável, sem contar que não devia ser nem cinco centímetros mais alto do que eu. Estava quase ofendida por minha madrasta considerá-lo bom o bastante para mim. Mas seu pai era um visconde, então, fazia sentido, pelo menos na cabeça dela. A noite continuou assim. Ela me apresentou para, pelo menos, outras três famílias diferentes. Eu sorri sem achar graça, fiz perguntas das quais não me importava com as respostas e participei de conversas com as quais não tinha o menor interesse. Fiz tudo aquilo enquanto tentava ignorar a presença do príncipe das sombras do outro lado do salão. Observei-o por alguns instantes brevemente, ao passo que me perguntava o motivo de ele estar ali. Por que aparecer do nada dois anos depois do tratado? Ele, definitivamente, era uma figura enigmática. Não ajudava o fato da maioria das pessoas, supostamente, ter a mesma
curiosidade. Inclusive, em algum momento da conversa, a mãe de algum dos meus possíveis pretendentes fez algum comentário sobre ele, e eu pude virar a minha cabeça e observá-lo um pouco mais longamente sem ser inapropriado. Talvez, eu estivesse esperando o momento em que conseguiria, finalmente, ver seus olhos prata outra vez. Ou, talvez, eu estivesse simplesmente muito entediada. Eu odiava aquelas conversas, odiava aquelas pessoas que a minha madrasta estava me apresentando. E, acima de tudo, odiava a promessa de um futuro meu escolhido por outra pessoa. Mas, quando Amory Lanch, uma garota da minha idade que conheci na escola, passou ao nosso lado de mãos dadas com o Conde de Bashirt, eu coloquei um sorriso maior no rosto ao encarar um dos pretendentes. O Conde de Bashirt tinha quase 60 anos, uma barriga considerável e o início de uma calvície. E, ainda assim, os pais de Amory acharam que ele ele era bom o ba bastante stante para ela. Simplesmente porque ele tinha dinheiro e um título. Lembrei-me de uma conversa que tive com ele quando era mais nova e fomos apresentados. E, acima de tudo, me lembrava de
seu hálito. Ele era conhecido pelas pessoas terem a necessidade de se manterem um pouco distantes dele durante uma conversa. Olhei bem nos olhos da pobre Amory no instante em que ela passou, uma jovem ruiva, pequena e delicada. Era de cortar o coração. Ela estava miserável; dava para ver claramente pela sua expressão vazia e o corpo curvado em derrota. Tinha a memória dela sorrindo timidamente depois que agradeci por me ajudar a terminar uma tarefa na escola. Éramos apenas meninas na época, mas não fazia tanto tempo assim. Meu estômago embrulhou e, de repente, senti o salão gigante ficar apertado. — Me deem licença. — Saí o mais m ais rápido que pude. Atravessei o salão e me distanciei do barulho de conversas, música e taças batendo. Só parei quando cheguei até a enorme sacada que dava para o jardim dos fundos do palácio. Estava escura e vazia. Dali, eu só escutava o som abafado e distante da música e das vozes. Inspirei a noite agradável e cruzei a sacada até ter as mãos no parapeito de mármore. Senti uma brisa gelada em meus braços expostos, mas percebi que, finalmente, poderia relaxar.
Em um mundo perfeito, garotas como Amory poderiam escolher seu destino. Não dependeriam de uma figura masculina para sobreviver. Eu queria, naquele momento, mais que qualquer coisa, pegar a mão de Amory e sair correndo daquele salão. Daquela cidade. Daquele reino inteiro. Mas, para onde iríamos? Não se corria do próprio destino. Eu sabia que, um dia, poderia ser eu no lugar de Amory. Meu futuro dependia unicamente do meu pai, e ele nunca me amara para desejar que eu fosse remotamente feliz. A ironia é que eu poderia acabar sendo uma daquelas garotas que eu desejava salvar salvar.. Se eu tivesse muita sorte, me casaria com alguém mais ou menos da minha idade e ligeiramente decente, que não controlasse cada aspecto da minha vida e me deixasse escolher o que vestiria e o que comeria. Que não fosse agressivo e que não usasse seu poder contra mim sempre que eu elevasse um pouco a voz. Aquela era a melhor melhor das hipóte hipóteses. ses. Sabia que feliz eu jamais seria. Eu entendi aquilo assim que compreendi como a nossa sociedade desprezava as mulheres. Entendi assim que a noção do casamento me fora explicada.
Eu torcia apenas para que eu não fosse miserável. Imagens de como a vida de Amory com o Conde de Bashirt provavelmente era atravessaram a minha cabeça e eu precisei fechar os olhos com força para afastar aquilo da mente. Eu queria ir embora, mas não havia para onde ir. Tudo parecia uma gaiola. Então, ao invés daquilo, fiquei no parapeito, olhando para as estrelas. A música derramou pela minha mente como um banho quente. Minha mãe costumava cantar para mim antes de dormir e, no momento, era uma das poucas coisas das quais me recordava com clareza sobre ela, além dos grandes olhos verdes e o cheiro de lavanda. Lembrava de sua voz rouca cantando baixinho em meu ouvido, enquanto eu pegava lentamente em um sono seguro e leve. Não era a única que ela cantava. Mas era a que eu mais gostava. Era sobre um caçador, que no final da grande guerra havia se apaixonado perdidamente por uma caída, da qual ele fora ordenado a matar. Depois que a doença a levou, eu cantava para mim mesmo antes de adormecer.
Havia um caçador de magia, força bruta nos braços e calos nas mãos. O peso de dezenas de vidas em suas s uas costas. Obedecia cegamente às ordens de um rei tirano Havia uma garota com cabelos brancos e magia na ponta dos dedos. Seus destinos se cruzaram quando o rei tirano ordenou que ele lhe arrancasse o coração. Havia um amor proibido repleto de angústia e dor. Suas almas estavam entrelaçadas em um combate de certo e errado.
Havia uma decisão a ser tomada, o dever chamava. Eram amantes fadados a ruína.
Havia um caçador quebrado, segurando o coração ensanguentado da sua garota mágica. Era linda e trágica. E real . Porque no final das contas, o dever vencia o amor. O caçador arrancava o coração da amada. Não a cantei, apenas murmurei a sua melodia familiar e calmante. Assim que terminei, decidi que era hora de voltar. Se eu sumisse por muito tempo, minha madrasta com certeza notaria. Virei-me, e um grito por pouco não escapou da minha garganta ao me deparar com algo nas sombras. A primeira coisa que vi foi a pequena chama alaranjada do cigarro. E, em seguida, os seus olhos; além da chama, eles eram a única coisa que brilhava, fazendo contraste com a escuridão.
Prendi a respiração e pisquei. E, depois do que pareceu uma década, ele, enfim, se moveu. Sarkian Varant, o temido Príncipe de Khrovil, deu um passo lento à frente, deixando as sombras das folhas que cercavam a extensa sacada. A fumaça o acompanhou acompanhou ao soprar na noite estrelada estrelada.. Ele não usava máscara — ela pendia em sua mão esquerda — e seu rosto estava completamente exposto. E assim que a luz, finalmente, bateu em seu rosto, fiquei completamente aturdida. Seus
olhos
foram
a
primeira
coisa
que
processei,
inevitavelmente. O prata brilhava mais do que a lua. E, sobre eles, os cílios mais escuros que já vi em toda minha vida faziam sombra na pele abaixo dos olhos devido ao comprimento inacreditavelmente longo. Eram tão volumosos e escuros que ele parecia usar um delineado de maquiagem negra sobre as pálpebras. Suas feições eram perfeitamente esculpidas, com as maçãs do rosto altas e as bochechas profundas. Os cabelos negros, beirando a azulados, caíam em mechas preguiçosas na sua testa.
Foi quando entendi: se havia uma única verdade sobre Sarkian Varant, era que ele era belo. Cruelmente belo. De uma forma quase obscena. Eu fiz uma reverência assim que me recompus. — Eu… você me assustou, Alteza. Há quanto tempo ele estava ali? Ele estava me observando aquele tempo todo?
O príncipe tirou o cigarro de lavena dos lábios com a mão esquerda — que estava coberta pela luva de couro — e torceu sutilmente a cabeça. Ele demorou alguns segundos até dizer: — Então, você sabe como se faz. Eu pisquei. Ainda estava tentando processar a sua aparência. Não apenas porque ele era tão belo, mas porque ele era… singular . Ele tinha uma aparência extravagante, quase vulgar, como se ele fosse o produto de uma pintura a óleo. Por um instante, eu tive que conter a vontade de tocar a sua pele para ver se era mesmo real. — Como? — Você sabe como fazer uma reverência. — Sua voz era grave e rouca, com um sutil, mas perceptivo sotaque.
Franzi o cenho. — Sim, claro. — Então, no dia do tratado, você simplesmente escolheu não fazer? Eu abri a boca, mas, então, a fechei. Do que ele estava falando? — No dia do tratado? — Finalmente indaguei. — Sim. — Ele deu mais um passo à frente. — Você se lembra. Eu passei por você e você não se curvou. Fiquei me perguntando que tipo de garota você era. — Ele fez uma pausa. — Incrivelmente insolente ou incrivelmente burra. Por um momento, quando tudo se fechou e o entendimento bateu contra mim, fiquei sem palavras. Ele estava se referindo àquele dia, dois anos atrás, em que eu não me curvei perante sua presença. O príncipe se lembrava. No primeiro instante, fiquei surpresa. Então, impressionada por ele se lembrar de algo tão banal. E, por fim, extremamente ofendida
com as suas palavras. Olhei fixamente para aqueles olhos prateados, que esperavam por uma resposta. Ele queria que eu me desculpasse? Mordi o interior da boca com força antes de finalmente indagar: — E em qual conclusão chegou, Vo Vossa ssa Alteza? Não sabia se minha pergunta havia o surpreendido, já que sua expressão não sofreu mudança alguma. Notei apenas o brilho em seus olhos ao piscar. Mas, por alguma razão, lá no fundo, entendi que aquele não era o tipo de brilho que eu gostaria de estar diante. Sarkian deu mais um passo lento à frente e levou o cigarro de volta aos lábios ao me observar. Eu resisti à vontade de me afastar. Ele inspirou sem pressa antes de me responder: — Ainda estou tentando me decidir. — Ele soprou e eu senti o cheiro inebriante de lavena. — Seja o que for, dá próxima vez em que me ver, quero seus joelhos prestes a tocar o chão. Caso contrário não os terá mais, farren. A última palavra foi dita no seu dialeto, o qual não compartilhávamos. Mas era um insulto, não precisava ser um gênio para saber disso.
Ele professara a ameaça de forma quase doce. Calmo e comedido. Como se estivesse comentando sobre o clima. A ameaça, junto à sua presença, me abalou, mas não me deixei recuar. Não sabia o que deu em mim. Não sabia o que me faz abrir a boca quando eu, claramente, deveria deixá-la fechada, mas foi mais forte do que eu. As palavras deslizaram com uma facilidade assustadora. Talvez, eu estivesse hipnotizada pelo cheiro da lavena ou pelos seus olhos. Eu me sentia quase tonta, e era uma mistura estranha de medo, adrenalina e deslumbre. — Se não sou nada, por que importa tanto para você se eu fizer reverência ou não? E, naquele momento, eu presenciei, talvez, a coisa mais assustadora da minha vida. O Príncipe das Trevas sorriu. Ou algo como aquilo. O lado direito de seus lábios puxou lentamente para cima. Eu me perguntei o porquê daquele gesto me fazer ficar tão aterrorizada, apesar de todo o rosto dele ser tão dolorosamente belo. E a resposta não demorou para chegar. Sorrisos deveriam
significar felicidade, mas nada naquele homem fazia sentido com a palavra feliz. Ele se aproximou um pouco mais, com a lentidão e a precisão de um felino, até que ficou pairando bem diante de mim. Eu engoli em seco e desviei o olhar, arrependendo-me de todas as minhas palavras. Arrependendo-me do dia, há dois anos, em que não fiz uma maldita reverência diante dele. Meu coração batia tão forte a ponto de eu conseguir ouvi-lo. Perguntei-me se ele era capaz de escutar também. O príncipe poderia me matar. Ele sabia daquilo. Eu sabia daquilo. E o mais importante: ele sabia do quão ciente daquele fato eu estava. Quando ele abriu a boca novamente, foi bem perto do meu ouvido. Insuportavelmente perto. — Porque, se fosse por mim, uma plebeia de Umbra como você nem estaria andando. — Ele soprou, a voz profunda e baixa. — Animais deveriam rastejar . A última frase foi pronunciada com nojo e “rastejar” dito com uma ênfase violenta.
Eu senti o seu ódio por mim na minha espi espinha. nha. Ele desceu por meio de suas palavras e cruzou todo o meu corpo até chegar na ponta dos meus pés. E foi instantâneo o reconhecimento de que aquele sentimento era completamente mútuo. Eu odiava Sarkian Varant.
Vidro quebrou e um som explodiu perto de nós, assustandome. Ambos viramos o rosto para a criada que havia acabado de deixar uma bandeja cair. Ela piscava em nossa direção sem parar. — Alteza. — Ela reconheceu, curvando-se para recolher a sujeira ao mesmo tempo que fazia uma reverência desajeitada. — Me desculpe. Ele, sequer, piscou ao encará-la. Ao invés disso, voltou a me fitar. Sarkian levou o cigarro mais uma vez aos lábios e inspirou. Dessa vez, profundamente. Todos estavam cientes de que lavena era proibido no reino, mas aquilo não impedia de que algumas pessoas fizessem uso. A substância os deixava um pouco inebriados e tontos, pelo que ouvi falar. Havia um boato de que o próprio rei a usava entre seus
aposentos particulares, assim como grande parte da nobreza. Mas as
pessoas
nunca
usavam
daquela
forma,
em
público,
principalmente em uma festa. Era um verdadeiro ultraje. A fumaça bateu contra a minha pele quando ele a soltou propositalmente no meu rosto, e eu tive que lutar contra a vontade de tossir diante do cheiro forte. Seu olhar não deixou o meu em momento algum enquanto me avaliava. Eu nunca senti tanto desprezo em um olhar antes. Nunca senti que alguém me odiava tanto sem, ao menos, me conhecer conhecer.. — E não estou blefando quanto ao nosso próximo encontro. Já fiz muito pior por muito menos. Eu não tinha a menor dúvida daquilo. Engoli em seco e observei seu rosto beirando ao divino. A pele era muito clara em contraste com os cabelos negros, que caíam sutilmente sob a testa. Mas não havia nada de divino sobre aquele homem. Muito pelo contrário. — Acho que, se eu tiver sorte, eu nunca mais estarei diante de você outra vez. — Eu finalmente murmurei as palavras mais sinceras que já disse em toda a minha vida.
Ele sorriu, e então, eu sabia que era algo que ele fazia antes de dizer algo terrível. — É. Se eu fosse você — ele descartou o cigarro sem tirar os olhos dos meus e se afastou —, seria para isso que eu rezaria a partir de agora. Depois de dizer aquilo, ele se virou. Eu observei a sua figura longa e negra se afastar até desaparecer como uma sombra. Sarkian Varant decidiu que me detestava no segundo em que colocou seus olhos em mim. Ou, até mesmo, antes daquilo. Eu achava que Sarkian Varant dera o seu primeiro suspiro na terra sabendo que odiava cada aspecto da minha existência.
A Usurpadora de Sangue Sangue estava certa Antes mesmo de ela se tornar uma idei ideia a antes mesmo de ela saber quem era ou o que gostaria de ser o Filho das Sombras a detestava e ela logo entenderia o que aquilo significaria para o seu destino e quais seriam as repercussões daquilo Porque nenhuma prece seria o bastante afinal aquela não seria a última vez em que ela estaria diante dele
4
Fui capaz de ouvir o som do punho batendo contra a carne do lugar onde estava. Meu assento era privilegiado, e eu quase conseguia sentir os golpes em minha própria pele. Os lutadores não usavam nada além de calças de couro gastas. O peito impressionante de ambos estava à mostra, e a pele já suando devido devido ao esforço físico e ao sol do começo da tarde. As pessoas observavam com atenção o espetáculo que havia começado há pouco tempo. Havia muito dinheiro em jogo. A maioria dos nobres já havia apostado em um dos lutadores. Meu pai colocara o seu dinheiro no loiro mais baixo e parrudo. Automaticamente — e secretamente —, eu estava torcendo para o homem de pele parda mais esbelto. Infelizmente, parecia que eu estava sem sorte, porque meu lutador estava levando mais golpes do que dando.
Quando o primeiro turno finalmente terminou, ambos os homens estavam sangrando. O mais baixo tinha o nariz quebrado e o mais alto mancava, além das várias outras lesões ao longo dos corpos de ambos. Mas a luta estava só na metade. As lutas aconteciam a cada dez dias e eram extremamente populares entre os nobres. Era mais um espetáculo do que um esporte. Às vezes, até a Família Real comparecia. Eu, meu pai, minha madrasta e meu irmão deixamos os assentos da arena assim que o anunciador declarou o tempo. Fomos, assim como todos os espectadores, comer e conversar, enquanto esperávamos o segundo turno. Parei em frente à longa mesa de madeira repleta de todo o tipo de petisco. — Eu não comeria isso, se fosse você. Virei-me com o pedaço de pão doce no meio do caminho até a minha boca. Um moreno, alguns centímetros mais alto do que eu, estava parado, me encarando. Seu rosto me era levemente familiar, mas eu não conseguia encaixar em minha mente exatamente quem ele era.
Eu pisquei e, então, olhei para o pedaço de comida na minha mão. — Hum… por quê? Ele fez um aceno sutil com a cabeça antes de falar em um sussurro conspiratório: — Sir Golen deixou cair há cerca de dois minutos, e colocou de volta. — Oh. Por que ele faria isso? — indaguei, olhando na direção que ele estava apontando. Sir Golen, um homem extremamente baixo e de proporções estranhas, conversava com uma senhora. As suas pernas eram roliças e seus ombros eram bizarramente estreitos. — É uma ótima pergunta. — Ele é meio estranho. — Foi a única coisa que eu consegui concluir enquanto encarava a figura um tanto curiosa que era o Sir Golen. — Ele é. Voltamos a nos encarar, e eu abaixei o pãozinho. — Obrigada, de qualquer forma.
— Claro, poderia ter alguma bactéria no chão. — Ele ergueu uma das sobrancelhas. — Quem sabe, algo mortal . — Está insinuando que salvou a minha vida? — Foi a minha vez de arquear as sobrancelhas. — Possivelmente. — Acho que sou eternamente grata, então — zombei. — Tão heroico da sua parte. — Foi um prazer. — Ele estendeu a mão direita. — Meu nome é Theon. Finalmente, me recordei de quem ele era. O único filho do Conde Bauer. Eu já tinha sido apresentada a ele há muito tempo, mas havia mudado bastante. Precisava admitir que ele havia ficado um tanto atraente. — Cera Novak. — Posso te fazer uma proposta? Hesitei por um momento. — Fazer, você pode. — Dei de ombros. Seu olhar tomou um brilho diferente.
— Apesar de que eu deva te lembrar que eu acabei de salvar a sua vida. Então tenha isso em mente — Ele sorriu. Ele tinha um sorriso muito bonito, notei. — Estou fugindo de uma conversa entediante entre meu pai e vários de seus amigos da mesma idade... avançada. Preciso parecer ocupado conversando com outra pessoa. — E suponho que eu seja essa outra pessoa? Ele assentiu. — Sim, essa é a proposta. — Então, é o seu dia d de e sorte — re respondi. spondi. — Estou evitando a minha madrasta que está me apresentando para todas as famílias de pretendentes em potencial. — Acho que somos o par perfeito, então. As suas palavras me surpreenderam e me deixaram um pouco sem graça. Assim como a forma que seus olhos verdes me encaravam. Ele estava flertando comigo?
Engoli em seco, nervosa. — É. Acho que sim.
— Aqui, experimente este. — Ele pegou outro petisco da mesa e me entregou. — É o mais gostoso e ninguém deixou cair no chão, posso garantir. Analisei o docinho. docinho. — Você é o encarregado por vigiar a mesa de petiscos ou algo assim? Ele sorriu de novo. — Só quando o Sir Golen está por perto. V Vamos, amos, experimente. Assim que o alimento tocou a minha língua, eu soube que não iria gostar. O gosto era estranho e forte demais. E a textura… meus Deuses. — E aí? — Ele indagou com expectativa. — Incrível, não é? Assenti, enquanto mastigava. — Claro. — Consegui dizer, ainda com aquela gororoba rolando pela minha boca. — Hum, uma… delícia. Finalmente engoli. E eu devo ter feito uma careta, porque ele logo disse: — Você odiou, não é?
Assenti, balançando a cabeça. Peguei uma taça de uma bebida rosada qualquer e tomei para ajudar a descer descer.. — Por um momento, achei que não fosse conseguir… — tossi algumas vezes antes de ser capaz de ccompletar ompletar — engolir engolir.. Ele riu. Uma risada suave que iluminou seu rosto bonito. Aproveitei o copo em minha mão e dei mais uma golada na taça, já que não sabia mais o que dizer. Sua presença me deixava nervosa. Era uma sensação nova e... excitante. — Você falou sobre sua madrasta estar te apresentando a pretendentes. Está na idade de se casar? c asar? — Sim, fiz 18 recentemente. — Como ele apenas assentiu, indaguei: — E você? — 20. Passamos os próximos minutos conversando e, em nenhum momento, eu torci para que aquilo acabasse, diferente da maioria dos diálogos que eu tinha naqueles eventos. Eventualmente, ele pediu licença, pois seu pai o chamou. — Não há mais escapatória. — Ele parecia genuinamente chateado em ter de ir. — Foi um prazer conhecê-la.
Ele fez uma sutil reverência com a cabeça, apesar de não ter necessidade alguma, já que eu não tinha título. Uma sensação boa preencheu meu peito quando me peguei analisando os últimos minutos. Aquele era o primeiro garoto que não havia sido apresentado pela minha madrasta em muito tempo. Achava que era aquilo que eu gostava mais sobre ele. Era claro que sua aparência um tanto agradável e sua conversa casual e interessante não eram nada mal. Mas, a sensação não persistiu por muito tempo, pois a minha madrasta finalmente me encontrou. Ela falou sobre o último casal que havia conhecido e que tinham um filho na idade para se casar. Eu ouvi em silêncio, ainda pensando em Theon. Até que Ophelia Peron atravessou o jardim diante de nós. — Ophelia está linda, como sempre. — Ela ponderou ao observar a garota passar, então, me encarou. — Você deveria fazer amizade com ela. Tê-la como influência seria benéfico para você. A garota tinha longos cabelos escuros e olhos azuis. Seu nariz se assemelhava ao de uma boneca; na verdade, toda ela, já que sua figura era pequena e delicada.
Ophelia Peron era tudo o que eu não era: linda, nobre e extremamente magra. E a minha madrasta a idolatrava. Comentara algumas vezes como, na minha idade, ela própria se assemelhava a Ophelia. Particularmente, eu não tinha nada contra a garota, mas era difícil ouvir aquele tipo de comparação constantemente. Comecei a ressenti-la um pouco. Não gostava de me deparar com Ophelia naqueles eventos, sempre tão deslumbrante. E tenho certeza de que a minha madrasta fazia de propósito. — Não tão linda quanto a Condessa Bethany. Que penteado impecável. A Condessa Bethany era a Ophelia Peron da minha madrasta. Mesma idade, mas ainda mais bonita, rica e o mais importante: nobre. Meu comentário teve o efeito que eu desejava e minha madrasta fechou a cara quando avistou a condessa. Diferente dela, eu gostava bastante de Bethany. Bethany. Era uma das poucas mulheres que não havia me perguntado sobre casamento ou pretendentes depois que fiz aniversário.
O sino bateu, anunciando o fim da pausa. A próxima luta estava prestes a começar começar.. Voltei para o meu lugar, mas, ao invés de me deparar com um homem com cerca de 40 anos, que antes ocupava a cadeira ao lado da minha, vi-me diante de Theon. Ele sorriu, notando a minha surpresa. — Pedi para trocar de lugar lugar.. Espero que não se importe. Era claro que eu não me importava. E eu tinha a leve impressão de que ele sabia muito bem daquilo. Sentei-me com um sorriso satisfeito no rosto. Theon narrou algumas partes da luta, dizendo-me qual golpe o lutador havia feito e o porquê havia o escolhido. Explicou certos movimentos e estratégias. Eu não disse nada, apesar de já saber exatamente do que ele estava falando. Eu cresci vendo aquelas lutas, porque era uma das poucas coisas realmente interessantes na nossa sociedade que era permitido para mulheres. Eu não gostava muito do teatro, principalmente das óperas, então não sobrava muito entretenimento entretenimento.. Toda aquela aula era um pouco prepotente e irritante, mas gostei de estar sentada ao lado dele. Gostei de seu cheiro e, acima
de tudo, da atenção. Também acreditava que ele estava tentando me impressionar, impressionar, então, de certa forma, me senti lisonjeada. Assim que a luta terminou, ele me encarou e disse que esperava me ver de novo em breve. Eu esperava também. Quando minha madrasta se aproximou de mim ao entrarmos na carruagem, ela indagou: — O que você estava conversando com o filho do Bauer? Seu semblante era curioso, surpreso e com um toque de indignação. — Nada que valha a pena compartilhar — respondi, secamente. A viagem para casa foi foi feita em complet completo o silêncio.
Passei as últimas horas da noite lendo e revivendo em minha cabeça a conversa que tive com Theon. Perguntava-me se ele estaria no próximo evento de luta. Também me perguntava se ele viria falar comigo. Talvez, eu estivesse dando importância demais para a nossa conversa ou, talvez, ele só estivesse, de fato, tentando matar o tempo enquanto evitava o pai. Mas, então, eu me recordava
da forma que ele sorrira para mim e fizera questão de mudar de lugar para ficarmos lado a lado durante a luta. Ele estava flertando. Talvez, fosse cedo demais para dizer que ele estava me cortejando, afinal, um garoto atraente e influente como ele devia ter opções impressionantes demais para me ver como uma pretendente. Mas ele estava, sim, interessado, convenci-me. Tentei voltar a me concentrar na minha leitura pela milésima vez. Eu gostava de ler. Era um privilégio, e eu tirava proveito daquilo. A escola era limitada para as garotas. Parávamos de estudar aos doze anos e não nos ensinavam ler ou escrever. Apenas garotas da nobreza ou com muito dinheiro tinham a oportunidade de aprender, contratando um professor particular depois que eram obrigadas a deixarem a escola. Mas, às vezes, nem os nobres queriam que suas filhas aprendessem. Eu tive sorte que a minha mãe fez questão de que eu aprendesse desde nova. Quando ela morrera, eu já sabia o suficiente para pegar os livros da estante e ler por conta própria. Meu pai não tivera nenhuma objeção quanto àquilo, mas a minha
madrasta sempre me lançava olhares estranhos quando me via na biblioteca ou com um livro nas mãos. Eu estava prestes a desistir da leitura e fechar o livro quando ouvi uma porta bater e passos um tanto frenéticos no corredor. Aquela movimentação era estranha, contando com o fato de que já era muito tarde e o resto da casa toda estava completamente silenciosa. Peguei meu robe depois de me levantar e abri a porta do meu quarto. Coloquei o rosto para fora bem a tempo de ver a sombra de alguém virando o corredor, mas não consegui identificar a quem pertencia. Franzi o cenho e comecei a fechar a porta novamente, deduzindo que, provavelmente, não era nada demais. Talvez, a minha madrasta tivesse feito algum pobre criado preparar um prato para ela comer no meio da noite. Mas, então, assim que comecei a fechar a porta novamente, ouvi um som distante. Parecia um miado. Não.
Um choro. Mas não era o bebê. Era um choro contido, como se a pessoa não quisesse ser ouvida. Saí do quarto e segui o som baixo, porém,
contínuo. Era um choro feminino, deduzi conforme me aproximava. Atravessei o corredor longo e escuro, com o som me levando para um dos aposentos das criadas. Comecei a me perguntar se havia, de fato, algum perigo. Meu pai tinha uma quantidade considerável de inimigos. Acreditava que muitos deles gostariam de nos machucar. Mas, ao mesmo tempo, a segurança da nossa casa era um tanto reforçada. E eu já estava muito longe do meu quarto e perto demais do que quer que estivesse acontecendo. Então, continuei andando até parar de frente à porta. Era a porta do banheiro da criadagem. Assim que empurrei, vi-me diante de uma garota encolhida contra a parede de ladrilhos. Ela levantou o rosto ao ser surpreendida pela minha presença. Era Allegra. Ela esfregou os olhos e a bochecha, sem me encarar diretamente. — O que aconteceu? — perguntei baixinho, e me aproximei. Ela fungou. — Nada. — Sua voz era quase inaudível.
— Alguém te machucou? Allegra, o que houve? Estava escuro no banheiro, e eu precisei chegar mais perto para notar que havia algo de errado com seu vestido. Estava rasgado. Engoli em seco. O silêncio era insuportável, mas as palavras tiveram dificuldade em deixar a minha boca. — Quem fez isso, Allegra? — Finalmente indaguei. A jovem criada se encolheu. encolheu. — Senhorita, por favor. — Ela ajeitou o seu vestido em um movimento frenético. As suas mãos tremiam. — Eu estou bem. Nada aconteceu. Se me der licença... Eu abri a boca, mas ela passou por mim antes que eu pudesse falar qualquer coisa. Ela saiu para o corredor, e eu fui atrás. — Allegra — chiei, tentando não acordar ninguém. Ela entrou no quarto antes que eu pudesse alcançá-la.
5
Ele havia me mandado uma mensagem pela pedra na noite seguinte da luta. Pisquei algumas vezes ao ver a assinatura de seu brasão queimar na pedra. Não esperava aquilo. Esperava, no máximo, encontrá-lo novamente no próximo evento importante do reino. Depois de algumas trocas de mensagens, marcamos de nos encontrar no parque. Disse a minha madrasta que iria encontrar Rafe, já que tinha medo de que ela não permitisse que eu fosse. Seria delicioso demais para me negar algo como aquilo pelo simples prazer de tirar algo de mim. Mesmo que ela quisesse se livrar de mim com algum casamento arranjado, sabia que ela queria que fosse com alguém de sua escolha e não da minha.
Estávamos sentados sobre o gramado, debaixo do sol escaldante, quando Theon perguntou sobre a minha mãe. — Não quero ser invasivo, mas o que aconteceu com a sua mãe? — Acho que eu demonstrei certa surpresa devido à pergunta inusitada, porque ele logo se adiantou: — É que você mencionou uma madrasta. Então supus que… — Ah, sim — assenti. — Eu tinha seis anos quando ela faleceu. — O que aconteceu? — Pneumonia. — Sinto muito. Desviei o olhar para pegar um dos morangos que ele tinha levado. — Faz muito tempo. — Às vezes, eu sinto como se não tivesse mãe também. Eu olhei para ele. Estava deitado de lado sobre a toalha azul. A cabeça apoiada apoiada por uma das mãos, enquanto me en encarava. carava. — Ela mora no campo com as minhas irmãs. Meu pai e minha mãe... — ele fez uma pausa, como se procurasse as palavras
certas, até que suspirou — eles não se dão muito bem. A última vez que os vi juntos foi no enterro do meu primo. Não era tão incomum marido e esposa morarem em casas separadas. Separação não era uma opção muito viável na nossa sociedade, e a maioria dos casamentos entre nobres era arranjado, então, raramente, havia amor envolvido, de qualquer maneira. Depois que os filhos nasciam, muitos homens mandavam as suas mulheres para suas casas no campo, geralmente com as filhas. Os filhos, era claro, ficavam com os pais. — Você a vê com frequência? — Não tanto quanto gostaria. — Ele fez uma careta. — Não suporto o campo. — Sente falta dela? — Às vezes. Mas me acostumei. Moro com meu pai tem quase dez anos. Meus pais moraram juntos até a morte da minha mãe, mas não lembrava muito bem deles na presença um do outro quando era mais nova. Duvidava que houvesse algum amor. Não conseguia imaginar a mulher que me colocara ao mundo amando alguém
como ele. Ela era linda, engraçada, inteligente; pelo menos, era como eu me recordava. Estávamos terminando os deliciosos morangos no momento em que Theon se inclinou um pouco em minha direção. — Você já foi beijada, Cera? Engoli o morango que estava em minha boca com bastante dificuldade antes de responder: — Não — menti. Não era uma grande mentira, afinal, só havia sido beijada um par de vezes. Garotas que circulavam pela alta sociedade como eu não podiam ser vistas com homens que não fossem seus maridos. Quando ouvíamos sobre certos casos de paixões entre jovens, geralmente, a história não acabava bem, e era sempre pior para a garota. Eu não era uma garota que gostava de tomar riscos desnecessários e, para ser bem honesta, nenhum garoto havia despertado um interesse verdadeiro para que eu violasse alguma regra. Meu primeiro beijo fora com ninguém mais, ninguém menos que Rafe. Acho que ele estava tentando entender quem era na
época. Já éramos bem próximos, e ele simplesmente segurara os meus ombros e enfiara a boca no meu rosto. Fora terrível. Talvez, só não houvesse sido tão ruim para mim quanto fora para ele. Rafe chegara a fazer uma careta quando recuara. Eu dei um tapa no rosto dele; não sabia se estava mais ofendida com o beijo em si ou a sua reação depois de colar os lábios nos meus. Hoje em dia, ríamos daquilo, mas, na época, fora uma catástrofe. O segundo fora cerca de um ano depois. Estávamos brincando de esconde e esconde em volta da mansão de algum de nossos antigos colegas de classe. Nos dividimos em grupo. Em algum momento, me vi escondida em um armário apertado no sótão na companhia de Marki Buvelar, um garoto ruivo, filho de um dos amigos do meu pai. Também não fora uma experiência muito agradável. Só não fora tão terrível quanto a primeira. Um sorriso cresceu lentamente nos lábios de Theon. — Fico feliz que serei seu primeiro, então. E com aquilo, ele aproximou os lábios dos meus e me beijou. Seus lábios tocaram os meus com delicadeza, e eu não recuei, apesar de imaginar que deveria. Mas estávamos praticamente a
sós. Afastados demais das outras pessoas para que prestassem atenção na gente. E eu queria. Pela primeira vez, quis ser beijada daquela forma. Fechei os olhos e senti sua língua acariciar o interior da minha boca. Meu coração galopava, e eu não movia um músculo do pescoço para baixo. Sua mão tomou a lateral do meu rosto um pouco antes de ele recuar. E assim que nossos olhos se encontraram novamente, eu decidi que amava aquele tom de verde. Theon sorriu, e eu também. Pelo menos, achava que o fiz; estava inebriada e surpresa demais. O meu terceiro beijo, definitivamente definitivamente,, havia sido melhor do que os anteriores. Ele estava interessado em mim, aquilo era óbvio. Mas por quê? Não me perguntava aquilo de maneira autodepreciativa. Eu sabia que não era feia, nem burra e não me considerava entediante. Era mais uma questão prática. Eu não era nobre, aquilo era um fato, e ele podia ter praticamente qualquer garota nobre nas redondezas. O que aquele beijo significara?
Ele estava me cortejando? As mensagens e se sentar ao meu lado em um evento público me soavam como cortejo. Mas ele também podia estar apenas se divertindo. Eu já havia sido alertada várias vezes sobre garotos nobres seduzindo garotas apenas por diversão. Eu precisava ter cuidado. Se alguém tivesse visto aquele beijo, minha reputação seria um tanto abalada. Aquilo não podia ocorrer de novo. Pelo menos, até eu entender suas verdadeiras intenções. — A senhorita deseja mais chá? — Allegra perguntou, tirando a minha mente de Theon. Tomava café da manhã na mesa principal. Éramos apenas eu, minha madrasta e o bebê. E ele resmungava à medida em que a criada de minha madrasta tentava convencê-lo a comer frutas. Seus finos cabelos louros estavam por toda parte agora. Ele nascera careca e ficara por muito tempo assim. Uma bola pelada e barulhenta. Agora, ele era apenas barulhento. Neguei o chá, mas mantive meus olhos em Allegra. Ainda pensava na outra noite em que a vi chorando. Não insisti no assunto, visto que era muito claro que ela não desejava falar sobre
aquilo, mas a situação ainda me incomodava. Ela estava chorando por causa de alguém. Vi a sombra de quem quer que tenha sido. Allegra parecia acanhada. Sempre fora uma garota tímida, pelo menos com base nos meses que vinha trabalhando com a gente. Mas parecia ainda mais fechada do que o normal. Ela me olhava de forma diferente também. Parecia vergonha, como se compartilhássemos um segredo obscuro. A porta da frente bateu e meu pai e meu irmão entraram, juntando-se a nós para a refeição. Eles usavam roupas formais. Meu pai deveria levá-lo consigo para o trabalho. Meu pai era dono de grandes plantações de trigo e de arroz, e frequentemente precisava checá-las. Esses acres foram passados de seu pai para ele e, consequentemente, meu pai estava preparando Nicklaus para, um dia, administrá-los sozinho. Eu não teria posse nem de um metro quadrado dessas terras depois da morte dele. O silêncio se instalou depois de breves palavras. Nossas refeições conjuntas eram sempre assim. O bebê balbuciando suas primeiras palavras e resmungando eram a maior parte do que se ouvia.
Terminei a minha refeição e estava pronta para me levantar. Meus olhos recaíram sobre Allegra novamente. Ela estava levemente inclinada, servindo chá para o meu irmão, que estava sentado bem à minha frente. O que me fez parar, no entanto, foi sua mão, que tremia. Era sutil, mas notável para quem estava prestando atenção. Meus olhos procuraram o seu rosto e o que encontrei ali foi a mesma garota acanhada e nervosa da noite anterior. Allegra estava tensa como eu nunca tinha visto. O ar deixou meus pulmões conforme meus olhos se arrastaram até o meu irmão. Seu rosto estava impassível, apenas observava o chá cair dentro da xícara. Tive dificuldade para puxar o ar de volta para dentro. Não. Não podia ser.
Mas, então, quando tentei me convencer de que Nicklaus não seria capaz de tal coisa, falhei, porque aquele era o problema: eu não conseguia me convencer de que ele nunca faria algo do tipo. Eu mal o conhecia, para ser honesta, e o pouco que, de fato, conhecia não era muito positivo. Além de que estava terrivelmente claro: a
fisionomia desesperada de Allegra, como se quisesse fugir dali o mais rápido possível, deixava óbvio. O meu choque foi quebrado pelo barulho de vidro se chocando. O bule tinha escapado da mão trêmula de Allegra, e chá havia sido derramado. Meu irmão se remexeu na cadeira ao se ver diante do líquido e levantou o olhar para Allegra, mas ela tinha a cabeça abaixada e os olhos focados nas mãos. — Me desculpe. — Foi a única coisa que ela disse antes de pegar o bule e sair s air apressadamente. Assisti ao meu irmão pegar um guardanapo e limpar algumas gotas de chá que caíram em seu colo por alguns segundos, e depois me levantei. Antes de deixar o cômodo, o meu olhar se cruzou com o dele por apenas um instante. Desviei, com medo de que o nojo e a fúria estivessem estampados no meu rosto. Só tinha Allegra na cozinha no instante em que entrei. Ela estava de costas para mim, colocando mais chá no bule. Suas mãos tremiam ainda mais. Aproximei-me.
— Foi Nicklaus, não foi? — Ela não se virou, mas seus movimentos congelaram ao passo em que permaneceu em silêncio. — O que ele fez, Allegra? Esperei mais um pouco, e ela lentamente se virou. Seus olhos estavam marejados. — Eu… eu não sei do que você está falando, senhorita. Dei um passo, quebrando a distância e olhando diretamente em seus olhos castanhos, c astanhos, que se encontravam molhados. Eu só precisava do mínimo de confirmação, porque eu queria acreditar que meu irmão não faria aquilo. Gostaria de acreditar que houvesse alguma outra explicação. — Não minta para mim. O que ele fez, Allegra? Ela desviou o olhar do meu e sua voz saiu em um sopro: — Ele… ele me… tocou. — A última palavra deixou seus lábios de forma tão baixa que quase não fui capaz de ouvir ouvir,, mas não era preciso. — Por favor, não conte a ele que eu te contei. Ele não pode saber. Ela estava com medo. Era terrivelmente visível. Aquilo me fazia imaginar o que ele havia feito e dito para deixá-la naquele estado.
O café da manhã deu uma volta no meu estômago. — Está tudo bem, Allegra. — Tentei acalmá-la, mas aquilo me soou estúpido. Nada estava bem. Então, tentei mais uma vez: — Vai ficar tudo bem. As palavras deixaram a minha boca como uma promessa. Eu não sabia se pretendia, conscientemente, fazê-la, mas foi natural. Ela me observou por um momento. Vi uma faísca de esperança em seus olhos, mas ela piscou e logo desapareceu. Sua expressão se transformou em uma melancolia vazia. Ela não acreditava que eu pudesse ajudá-la. Afinal, o que uma garota como eu poderia fazer? Allegra se virou e pegou o bule novamente. Limpou os olhos com a palma da mão vazia e pediu licença antes de deixar a cozinha. Dois dias se passaram, e eu ainda pensava no que poderia fazer. Dois dias se passaram, e eu odiava o meu irmão silenciosamente. Ele e meu pai haviam partido para uma viagem de negócios pouco tempo depois do café da manhã em que conversei com
Allegra. Eles voltariam voltariam naquela tarde, e eu havia decidido qu que e falaria com o meu pai. Somente a ideia de ter uma conversa como aquela com ele me assustava. Eu odiava como me sentia covarde diante dele, mas eu cresci assim. Não cresci amando-o; cresci temendo-o. Não havia diálogo entre nós, além do básico. Ele me tratava como se eu fosse um acessório: para ele, eu só precisava estar calada, bem arrumada e no lugar certo. E, ainda assim, sempre me senti um acessório substituível e quebrado para ele. Mas falar com o meu irmão não era uma opção. Ele iria negar e, muito possivelmente, descontar em Allegra mais tarde. Além do mais, ele não me respeitava ou me temia. De nada adiantaria. Bati na porta da sala do meu pai no final da tarde, algumas horas depois de sua chegada. Escutei a sua voz grave permitindo a minha entrada e girei a maçaneta. Ele estava sentado atrás de sua grande mesa de mármore. Escrevia em alguns papeis e não levantou a cabeça quando fechei a porta atrás de mim. Fiquei em pé diante de sua mesa, visto que não havia outras cadeiras. Ele abaixou a caneta de pena e, finalmente, levantou o olhar.
— Senhor, eu preciso falar com você. — Eu disse, com dificuldade de encará-lo nos olhos. — Fale, então. Ele soava impaciente. — É sobre o meu irmão e… Allegra. Como iria dizer que seu filho era um monstro? — Quem? — Ele indagou, voltando os olhos para os papéis em sua mesa. — A criada que trabalha na cozinha. — Meu pai não disse nada, o que me obrigou a continuar. — Eu a vi chorando certa noite e... meu irmão era a razão. Ele a — hesitei, e ele levantou o olhar para me encarar novamente — abordou de forma… inapropriada. Eu não conseguia falar explicitamente. Mal conseguia falar. As palavras travavam diante de meu pai, e um assunto como aquele era pior ainda. Eu esperei, e ele me observou por mais alguns segundos até voltar os olhos para os papéis. — Não vejo o que eu tenho a ver com isso.
— Seu filho… machucou a criada que trabalha nesta casa. Acredito que possa possa resolver isso. Ele suspirou fundo e juntou ambas as mãos sobre a mesa. — Há coisas sobre homens que você não entende. — Ele explicou. — E que não são da sua conta. Eu engoli devagar. A acusação nem ao menos o abalou. abalou. Era quase como se ele ele já esperasse. E não dava a mínima. — Não me parece justo com Allegra. — A vida não é justa. — Foi o que disse ao pegar a caneta mais uma vez e voltar a encarar os documentos. Eu abri a boca de novo, mas fui interrompida: — Feche a porta depois de sair. Apesar de desprezar desprezar,, sempre entendi qual era o meu lugar lugar.. Sempre entendi o quanto era insignificante diante da minha sociedade. Mas foi naquele dia, depois daquela conversa, que eu entendi a verdadeira proporção da minha insignificância. Eu não era capaz
de mudar, ao menos, o meu destino, quem diria o de outra pessoa. Ao passar por Allegra mais tarde, tive vergonha de olhar para ela.
6
Três semanas depois de nos conhecermos, Theon começou a falar em casamento. Ele ainda não havia me pedido oficialmente, mas eu sentia que aquilo estava por vir. Ele me perguntava sobre meu futuro, minha família, outros possíveis pretendes. Mas ele realmente mencionara a palavra “casamento” quando nos encontramos na praça comercial naquela tarde. Eu caminhava pelo lugar lotado, fazia sol e o céu estava completamente azul. — Então, isso é sério mesmo? — perguntou Rafe. — Nessas últimas três semanas, nos encontramos cinco vezes. Vesper se intrometeu:
— Está contando? — Ele indagou com um ar zombeteiro. Ignorei-o. Passávamos pelas lojas, mas não estávamos realmente prestando atenção em nenhum item em particular particular.. Ir às compras era um evento comum para pessoas como nós, então, era mais uma desculpa para nos encontrarmos e conversarmos do que, de fato, adquirir alguma coisa. E era um evento público, ideal para Rafe e Vesper serem vistos juntos e não levantarem suspeitas, ainda mais acompanhados de uma garota. Não tinha dúvidas de que Rafe gostava da minha companhia, mas também sabia que me chamava para aquele tipo de encontro com Vesper para não gerar nenhum tipo de rumor. Não havia outra explicação, já que ele estava muito ciente de que mal nos suportávamos. Eles vinham ficando muito na companhia um do outro e, por mais que a sociedade, muito provavelmente, os via apenas como dois bons amigos, era necessário somente uma pequena suspeita para gerar um rumor. — Ele me beijou — confessei.
Ambos olharam para mim. — Na boca? — Rafe indagou. — Na bochecha — respondi com sarcasmo. — Claro que foi na boca. Que pergunta. Meu amigo abriu um meio sorriso curioso. — Foi bom? Eu desviei o olhar, mas devolvi o meio-sorriso. — Melhor do que o nosso. Vesper, de repente, parou de andar. — Vocês se beijaram? — Ah, você não sabia? — devolvi, inocentemente. Deliciei-me com o choque em seu rosto. — Fale baixo — pediu Rafe, puxando-o pelo braço para voltar a andar. — E foi há muito tempo. — Quanto tempo? — Vesper insistiu insistiu.. — Anos. — Então, completou: — Muitos anos. Eu suspirei. — Muitos é um exagero…
Rafe me lançou um olhar que dizia claramente: você não está ajudando. E o meu respondia: é essa a intenção.
— Como foi? — Vesper quis saber. Meu amigo não demorou nem um segundo para responder: — Traumatizante. — Dá licença. — Eu ergui as sobrancelhas, levemente ofendida. — Estou bem aqui. — Você sabe que é verdade. — Ele se virou para Vesper — Ela me deu um tapa depois. O assunto se deu por encerrado assim que Vesper se viu convencido de que o momento que compartilhamos não havia sido nada romântico. Depois de passarmos por várias lojas, Vesper, de fato, avistou algo do qual gostou. Sem pestanejar, ele entrou, e ficamos apenas eu e Rafe na porta da loja. — Então, foi bom? — ele instigou. Estava curioso. E eu não podia culpá-lo, aquilo raramente acontecia comigo. — É, foi. Muito bom — assumi.
Rafe me observou por um momento longo demais. — Você gosta dele. — A frase soou como uma acusação. Dei de ombros. — Como eu poderia não gostar? Ele é bonito, gentil... — Nobre. — Ele me interrompeu ao adicionar. — Sim — concordei simplesmente, ignorando seu tom. — Ele é nobre. E é exatamente por isso que ele é o tipo de pessoa com a qual meu pai aprovaria a união. — Você quer se se casar com ele? Às vezes, Rafe parecia se esquecer da minha posição. Ele era um homem, então podia, de certa forma, escolher com quem se casar. Não poderia ser qualquer um, muito menos aquele quem ele realmente amava, mas ele tinha voz para vetar certas garotas. Eu temia acabar como Amory Lanch. — Sim — respondi honestamente. — Ele é o único homem, até agora, que eu gostei e que meu pai provaria. Eu teria muita sorte se ele fizesse o pedido, você sabe disso. Um futuro com Theon me parecia melhor do que aceitável. Parecia-me muito bom. Passei as últimas três semanas com ele na minha cabeça, repassando cada momento que compartilhamos e
cada conversa que tivemos. E eu não via a hora de vê-lo novamente. — A gente poderia se casar. — Ele comentou perto do meu ouvido, fazendo uma tentativa ridícula de romantismo. Rolei os olhos. — Não poderíamos. Já era algo que havíamos discutido, e ele sabia disso. Os pais de Rafe queriam uma garota nobre para o único filho homem. Por mais que seus pais aprovassem nossa amizade, já que eu fazia parte da alta sociedade, de certa forma, eles não me aprovariam como família. — Se eu pudesse me apaixonar dessa forma por uma mulher, seria você. Sabe disso. — Ele disse, baixinho e sem brincadeiras daquela vez. Encarei os olhos azuis do meu amigo e um sorriso pequeno, porém, sincero, cresceu em meus lábios. Me casar com Rafe seria a melhor união para ambos. Amávamo-nos, mesmo que não daquela forma. Ele não estaria preso a um casamento falso com alguma garota da qual não gostasse, e eu não estaria à mercê de um marido controlador e com o dobro da minha idade. Não seria um
casamento cheio de paixão, mas seria seguro, agradável e muito divertido, e aquilo era mais do que a maioria das garotas do reino conseguiam. Era a minha melhor opção. Pelo menos, fora aquilo o que eu pensei por muito tempo. Até Theon. — Pronto — anunciou Vesper, aproximando-se de nós. — Estou bonito? Ele já vestia o que havia comprado. Um lustroso sobretudo de um tom de púrpura que batia no seu joelho. Combinava perfeitamente com a calça preta que usava e a blusa de botões aberta até a metade. Ele se vestia muito bem. Às vezes, víamos nobres com as mais ridículas roupas, mesmo com todo o dinheiro e a assistência de costureiras. Não era o caso de Vesper, entretanto. Ele sempre sabia escolher as cores que melhor realçavam sua pele e o corte que mais favorecia a sua figura esguia. Ele era ousado com as suas escolhas e, de alguma forma, sempre parecia funcionar funcionar.. Rafe o analisou e respondeu com um sorriso. Seu olhar era terno e… apaixonado.
— Sabe que está. — Ele murmurou e Vesper devolveu o olhar. O afeto se estendeu por tanto tempo que me senti, de certa forma, desconfortável, como se estivesse interrompendo um momento íntimo. Aquilo me assustava. Olhei para os lados sutilmente. Não sabia como as pessoas não enxergavam o que estava estampado na cara de ambos, e eu esperava desesperadamente que continuasse assim. Ultimamente, Rafe parecia tão inerte no feitiço do amor que não se preocupava com o resto. Eu temia por ele. Antes que eu voltasse o meu olhar para os dois, deparei-me com Theon. Ele estava do outro lado da rua, conversando com dois homens. Nosso olhar se cruzou, e ele sorriu. Já estava me perguntando o que eu deveria fazer naquela situação, até que ele acenou e logo veio em minha direção. — Olhe aí, seu namorado pomposo — provocou Vesper, desnecessariamente alto. — Acho que essa é a nossa deixa. Rafe sorriu e se afastou junto a ele. Assim que parou diante de mim, Theon pegou a minha mão e me levou para longe da rua principal. Colocou as palmas no meu rosto e se aproximou.
— O que você está fazendo? — indaguei, afastando-me afastando-me.. Ele hesitou, sua mão ainda repousada em meu rosto. — Estava prestes a te beijar. beijar. — Não pode. Alguém pode nos ver. — Não tem ninguém aqui. Ele olhou em volta, e eu fiz o mesmo. Algumas pessoas passavam no final da rua, porém, longe e extremamente desinteressadas em nós. — Mas alguém pode aparecer. Ele tirou as mãos do meu rosto, mas sorriu. — O que de pior poderia acontecer? Eu teria fama de ser uma garota promíscua, pensei.
— Com você? Nada — disse, seriamente. Sua expressão descontraída se desfez lentamente, conforme ele entendeu as minhas palavras. Theon suspirou. — Eu sei, sinto muito. — Tudo bem. — Senti-me culpada ao ver a sua expressão. Não queria que pensasse que estava rejeitando-o. — Eu… quero te beijar. É só que…
— Eu sei. — Ele faz uma pausa e, então, me lançou um olhar quase conspiratório. — Se fossemos casados, poderíamos. Pisquei. — É — disse antes de morder o lábio inferior, em um ato ansioso —, poderíamos. — Eu estava pensando… — Ele pegou a minha mão e acariciou minha pele. — Tenho uma viagem para fora do reino a trabalho. Meu pai e alguns tios vão comigo. Sei que só falou com o meu pai uma vez brevemente, então achei que seria interessante para se conhecerem. O convite me deixou sem fala por um momento. Sabia que aquilo não era qualquer viagem. Se Theon queria que eu conhecesse melhor seu pai, era porque queria ver se ele me aprovava. — Eu adoraria, mas não sei se meu pai permitiria. — Meu pai vai conversar com ele. — Ele disse despreocupado, e sorriu. — Vai falar sobre como minhas intenções são boas e das mais puras. E ele pode ser muito persuasivo. Quando ele se distanciou para entrar em sua carruagem, notei o olhar de duas garotas observando-o também. Ele era bonito e
nobre. Theon chamava a atenção das mulheres e, ao mesmo tempo que aquilo me incomodava um pouco, lisonjeava-me. Só provava o quão bom partido ele era e, ainda assim, havia me escolhido. Entre todas as garotas, ele havia demonstrado interesse por mim. Tentei tirar o sorriso estúpido de meus lábios e falhei miseravelmente.
Theon estava certo. Seu pai devia ser muito persuasivo, porque, dois dias depois, eu estava arrumando as minhas coisas para a viagem. Allegra estava me auxiliando e arrumando a sua própria mala. Eu havia pedido ao meu pai se podia levar Allegra comigo. Sabia que não poderia realmente protegê-la, mas, pelo menos, ela teria alguns dias longe daquele lugar. Já que Allegra trabalhava na cozinha e não era a minha criada pessoal, aquilo deixaria a minha madrasta furiosa. Apenas um bônus. Antes de sair de casa, com minha mala na mão direit direita, a, trombei com o meu irmão. O impacto foi grande o suficiente para fazer meu
ombro doer. Encontrei o seu olhar e, ao mesmo tempo, soube que havia sido proposital. Nicklaus sabia que eu estava ciente do que estava acontecendo. Sabia que havia pedido ao meu pai para levar Allegra comigo. E estava irritado com a minha intromissão. Nunca tive tanta repulsa dele. Continuei seguindo para a porta sem dizer uma palavra. — Para onde vamos? — indaguei no momento em que me sentei ao lado de Theon na carruagem. No outro dia, ele se despedira muito brevemente e não tive tempo de lhe perguntar para onde iríamos. Não que importasse; aquela viagem era puramente um teste pelo qual eu estava decidida a passar, independentemente do local. Ele se virou para mim. — Khrovil.
7
Foram dois dias inteiros de viagem. Paramos em uma estalagem no caminho apenas para dormir. Era o meio da tarde quando nos aproximamos do castelo. O tempo nublado tornou complicado avistar a construção inicialmente. Conforme nos movimentávamos, o castelo começava a surgir por de trás da neblina. Uma imensa e sombria construção, aos poucos, se revelando. Ela se encontrava no alto de uma enorme colina. Era repleta de torres com pontas agudas e imponentes. Paramos em frente ao enorme e escuro portão, e descemos das carruagens. Senti o vento frio assim que pus os pés no chão. Ouvi um som agudo distante e olhei para cima. Corvos sobrevoavam as torres. Um deles pousou em uma das várias estátuas ligadas à construção gótica. A maioria delas eram de felinos, alguns sentados, outros mostrando os dentes em um
silencioso rugido feroz. As estátuas, apesar de belas, estavam gastas. Como se a chuva tivesse as corroído ao longo do tempo. Na verdade, o castelo todo tinha aquela aparência. Quase como se estivesse abandonado. Era muito diferente do castelo de Umbra, que tinha a pintura sempre em dia e tudo tão lustroso. Aquele era majestoso, majestoso, porém, um pou pouco co assustador assustador.. Nos levaram várias escadarias acima, onde ficavam nossos respectivos quartos. Observei cuidadosamente cada detalhe enquanto vagamos pelos corredores gelados. O interior do castelo, apesar de mostrar bem o peso de todos os seus anos, era muito bonito e repleto de quadros e lustres impressionantes. — O que deseja usar para essa noite, senhorita? — Allegra perguntou depois que ficamos a sós no quarto. Nos foi avisado que haveria um jantar de recepção mais tarde. Eu estava exausta da viagem, mas não tinha opção a não ser ir. Minha cabeça voltou ao Príncipe Sarkian. Ele provavelmente estaria lá. Nos encontraríamos novamente, disso eu tinha certeza. Não haveria escapatória. A não ser que ele estivesse em alguma
viagem para fora do reino. Mas seria muita coincidência e eu não tinha esse tipo de sorte. — Algo discreto — respondi. Cerca de duas horas depois, eu estava no salão, usando um vestido cinza com decote quadrado. Era bonito e simples. O colar de diamantes que era da minha mãe brilhava em minha pele exposta. Era a única coisa que chamava atenção em meus trajes. — Você está linda — disse Theon, assim que nos encontramos. O salão estava cheio de mesas repletas de comida. Na mesa ao centro do salão, estava sentada a Família Real, com exceção do Príncipe Sarkian. Olhei em volta. Ele não estava em lugar algum. Várias pessoas circulavam ao redor, algumas delas comiam sentadas. Aparentemente, havia povos de outros reinos. Notei pelo físico das pessoas e a diferença das vestimentas. O povo de cada reino tinha uma assinatura, olhos maiores ou menores, narizes achatados ou longos, trajes mais ousados ou discretos.
Ao olhar para o teto, me deparei com o mais impressionante lustre que já tinha visto. Era feito de ouro e diamantes. Seu brilho refletia todo o extenso cômodo. Era hipnotizante. As pedras preciosas, principalmente os diamantes, eram o que movimentava a economia em Khrovil. Bem no início de sua civilização, eles conquistaram — por meio de muito sangue derramado — um solo repleto de minas. Apesar de estar cansada, a noite não foi entediante. Eu estava fascinada demais com as diferentes culturas. Estranhei a comida, mas acabei gostando de algumas coisas. Também fiquei impressionada com o fato de que não havia nenhum tipo de oração antes da refeição. As pessoas simplesmente comiam. Em Umbra, todas as refeições em eventos do palácio eram introduzidas com uma longa oração apresentada pelo rei. O povo de Khrovil, os selke, era um povo sem deuses, diziam em meu Reino. Durante a sobremesa, a entrada de uma mulher ruiva chamou a minha atenção. Ela não era uma rainha, ou princesa, mas se portava como uma. Seus trajes também eram um tanto chamativos.
Um vestido preto repleto de brilhantes da mesma cor e fendas que deixavam pouco para a imaginação. Ela gritava sensualidade. s ensualidade. — Despinna, como sempre, tão exibida. — Ouvi a garota sentada ao meu lado comentar com outra. — Eu sei. — A amiga concordou com o mesmo tom hostil. — E ela ama a atenção. Se não fosse amante dele, ninguém olharia duas vezes para ela. Eu duvidava daquilo. A garota ruiva era bem impressionante. Seus cabelos cor de fogo batiam na metade das costas e seus lábios carnudos estavam tingidos de um tom de vermelho vibrante. — No final das contas, há benefícios em se deitar com o homem mais temido do reino. — A garota concluiu, ainda observando a ruiva. Despinna tinha a cabeça erguida conforme passava, como se soubesse muito bem qual era o seu lugar. E duvidava muito que se importasse com o que aquelas duas garotas pensavam dela.
A criada estava aprontando o meu banho quando um gato apareceu na janela. Sua pelagem escura quase se misturava à noite do lado de fora. Apenas em uma de suas patas havia uma mancha
branca. O felino observou o quarto por um momento, quase desinteressado. Seus olhos pararam em mim por apenas um instante antes de pular para o chão, com a graça que apenas um felino possui. — Olá — murmurei baixinho. Tirei o meu colar e o coloquei na mesa ao passo que fitava o animal. Levei as mãos até meu cabelo para soltá-lo. Não suportava ficar com ele preso. Em um piscar de olhos, o animal estava em cima da mesa, diante de mim. Recuei um passo, surpresa. — Que susto, colega. Ele olhou para mim. Seus olhos eram de um tom âmbar profundo. Estava debatendo se deveria arriscar acariciá-lo ou não. Ele parecia amigável, mas eu realmente não queria ser arranhada. Antes que eu pudesse pudesse tomar uma decisão decisão,, o gato abocan abocanhou hou o colar que estava na mesa e correu. — Não! — Eu exclamei ao vê-lo correr em direção à porta entreaberta.
Fui atrás dele pelo corredor com o coração na boca.
O colar da minha mãe.
Atravessamos todo o longo corredor e descemos um lance de escadas. Aquilo não podia podia estar acontecendo. acontecendo.
— Pare! — Eu pedi, como se ele pudesse me entender. Ou se importar. Perdi a conta de quantas vezes nós viramos. Passamos por um ou dois criados, que pareciam estar recolhendo o que havia sobrado da festa. Pensei em pedir ajuda para algum deles, mas não quis parar para explicar a situação, tinha medo de perder o gato de vista. Ele desceu mais uma escada e, por pouco, não tropecei nos degraus. A escada era escura e irregular, parecia ser a entrada do subsolo. Segui o animal pela escuridão e comecei a escutar sons vindo de lá de baixo. Quando a escada terminou, só havia uma direção a tomar, um estreito corredor à esquerda. As paredes eram de rochas e eu me senti entrando em uma caverna. Perdi o animal para a escuridão e precisei apoiar minhas mãos nas paredes rochosas para me guiar. O som ficou mais alto, mais
assustador. Música?
Eu queria voltar, mas não podia. Precisava pegar aquele gato. Precisava recuperar o colar da minha mãe. Mas, assim que adentrei o cômodo, tudo sumiu da minha mente. Congelei na entrada, com o coração batendo rápido e sem fôlego. Pisquei algumas vezes, tentando absorver tudo o que estava acontecendo. Parecia uma festa. Mas as pessoas estavam quase todas seminuas, algumas completamente nuas. O lugar era mal iluminado, só algumas poucas tochas espalhadas pelo salão, que mais parecia ser uma caverna luxuosa e sombria. Havia um pequeno palco no centro e era ali que se concentrava a maior parte da limitada iluminação do ambiente. E, naquele momento, uma garota de cabelos longos se despia lentamente em uma dança sensual. Pessoas assistiam deitadas ou sentadas sobre almofadas espalhadas pelo chão.
Fiquei em choque ao ver um grupo reunido em volta de um homem transando com uma mulher em quatro apoios. Outras pessoas bebiam e conversavam casualmente, como se aquele tipo de situação fosse normal. Estava quente e havia um sutil cheiro de suor misturado com algum tipo de aroma floral. Dei um passo para trás quando uma mulher usando unicamente saltos passou por mim com uma bandeja, me tirando do torpor. As conversas sussurradas e os gemidos eram um pouco mais altos do que a música sutil que soava. Voltei a olhar para o palco, onde a bela mulher tinha os seios expostos. O vestido repleto de pedras pendia em sua cintura agora. Ela olhava fixamente para os fundos do salão, para uma cabine mal iluminada. Durante toda a dança sensual, seus olhos permaneciam ali, como se ela estivesse se apresentando para alguém em especial. E só quando ela moveu seu rosto levemente que a reconheci. A ruiva da festa. Despinna.
Eu pisquei, tentando associar todos aqueles corpos diante de mim. Avistei o Príncipe do Reino de Trecia a menos de três metros de mim, pegando uma das taças de uma das garçonetes nuas. Não muito longe, o Conde de Bingham — o homem que, há menos de duas horas, estava discutindo assuntos sérios com várias outras pessoas igualmente poderosas — lambia o torço de outro homem. Despinna estava completamente nua naquela altura. Ela passava as mãos pelos fartos seios e as escorregava pela barriga. Quando ela estava prestes a chegar em seu centro, parou. E, então, se virou para mim. Diretamente para mim.
Mas levou apenas um breve instante para ela voltar a olhar para a cabine escura. Seus movimentos ficaram um pouco mais hesitantes e a sua feição quase aborrecida. Fitei a cabine novamente, tentando ver quem estava nas sombras. Em meio a uma das várias performances ao redor, um homem sem camisa soprou em uma tocha perto do local onde eu tentava enxergar. E, no meio das chamas, o rosto mascarado se iluminou.
Sarkian Varant era o espectador nas sombras. Mas o problema é que ele não estava olhando para ela. Ele olhava para mim. Meu primeiro instinto foi recuar e ir embora. Mas, então, ele se levantou. Ele estava vindo em minha direção. Naquele ponto, era tarde demais para recuar. Eu não queria fugir. Bem, eu queria. Mas me permitia correr como uma garota assustada. Ele atravessou as sombras e os corpos se curvaram conforme ele passava. A atenção das pessoas se dividiu entre o palco e o caminho que ele fazia. Como sempre, estava trajado de preto dos pés à cabeça. Ele era, sem dúvidas, a pessoa com mais roupas no recinto, apenas parte da pele do seu rosto estava exposta. — Aqui estamos n nós ós novamente. — Ele disse ao parar diante de mim. — Vejo que não rezou o suficiente. Então, ele esperou. E eu sabia exatamente pelo que. Aquele era o momento momento em que eu deveria me curvar curvar..
Reverenciá-lo.
Mas o meu corpo não parecia funcionar. Era como se meus joelhos fossem fisicamente incapazes de se dobrarem. Minhas pernas haviam congelado, como se o meu orgulho tivesse paralisado todos os meus membros. Os segundos se passavam com lentidão conforme ele tinha os olhos fixados em mim. Havia algo no cintilar do prata que me dizia que ele quase desejava que eu não o fizesse. Ele queria que eu o desafiasse. Queria que eu lhe desse um motivo para retaliação. Engoli em seco e, finalmente, fiz uma reverência. Dolorosa e hesitante. — Impressionante. — Ele avaliou. — Andou praticando? Mordi o interior da boca, mas não consegui evitar. — Todas os dias, Vossa Alteza. Ele sorriu. Demorou um instante, mas, eventualmente, o fez. — Não sei se estou satisfeito ou decepcionado. Parte de mim queria um motivo para cumprir a ameaça.
Um grito estrangulado soou e eu desviei o meu olhar para uma mulher que se encontrava de quatro, e que estava sendo chicoteada por outra. A mulher com o chicote nas mãos usava algo parecido com uma lingerie que deixava muito pouco para a imaginação e a outra estava completamente nua. E ambas pareciam estar gostando do momento que estavam compartilhando. Continha dor nos sons que a mulher, no chão, deferia, mas também havia desejo e excitação. — Gosta do que vê, farren? O príncipe me observava fitar a cena com uma das sobrancelhas levemente erguida. Aquele apelido, apelido, de novo.
Não respondi, apenas corei. Me perguntei se ele era capaz de notar naquela escuridão. Torci para que não. — O sexo por diversão ofende vocês, não é? É muito sujo para os seus Deuses aprovarem. — Havia claro desprezo em seu tom. — Você não sabe nada sobre os nossos Deuses — retruquei. — E nã não… o… n não ão me ofende. Eu achava, pelo menos. Nunca tinha presenciado algo
parecido. Aparentava errado, mas, ao mesmo tempo, todos ali
pareciam achar a coisa mais normal do mundo. — Então, gosta do que vê — concluiu. Troquei o peso dos pés. — Não disse isso. — É por isso que está aqui? Curiosidade? — Ele perguntou. — Porque não lembro de tê-la convidado. — Me perdi, foi um... Parei de falar quando uma garota nua, segurando uma bandeja, parou diante dele. Uma coleira de couro adornada por brilhantes e saltos eram as únicas coisas que ela usava. Só que, ao invés de apenas se curvar curvar,, ela se ajoelhou. E se inclinou lentamente até que seus lábios tocaram os pés dele. Uma das mãos segurava graciosamente a bandeja, enquanto a outra tocava uma de suas pernas. Como se estivesse reverenciando um Deus. Eu mal pude acreditar no que estava vendo. Era nojento. Enervante. Fascinante. Levantei o olhar para Sarkian e ele a observava com o rosto neutro. Com a mão direita envolvida pela luva de couro, ele passou
a mão no topo da cabeça dela. A cena me lembrou alguém acariciando um animal de estimação. Não consegui evitar a careta em meu rosto. Por fim, ele pegou uma das taças da bandeja e a dispensou. Sarkian Varant deu um longo gole enquanto me fitava. E, com certeza, foi capaz de notar o horror em meu olhar olhar.. — Entrei aqui por acidente — conclui, me recompondo. — Engraçado, porque me parece curiosa. Meu rosto esquentou de novo. Talvez, fosse verdade. Estava um tanto enjoada, mas, definitivamente,, estava curiosa. definitivamente — Não quero estar aqui. Houve um sutil movimento de sua cabeça. Eu não podia ver, mas deduzia que por trás da máscara ele arqueava o olhar olhar.. — Então, o que ainda está fazendo parada aí? Estava prestes a abrir a boca quando Despinna parou ao nosso lado. Ela não usava absolutamente nada, apenas saltos. Andava com uma confiança impressionante. Nunca vi alguém tão desinibido em toda a minha vida.
— Quem é, Alteza? — Ela virou o rosto para mim. — Ela está perdida? Ele não olhou para ela quando respondeu: — Uma keld. O nojo atravessou a face dela no mesmo segundo, e seus olhos percorreram meu corpo de cima abaixo. Me senti mais exposta do que ela, mesmo estando completamente vestida e ela, nua. — É verdade o que dizem sobre as mulheres keld? Que vocês têm muitos pelos? — Ela provocou com um sorriso do doce ce demais nos lábios vermelhos e se aproximou lentamente. — Talvez, devêssemos dar uma olhada. Ela levantou um braço como se fosse me tocar tocar.. — Não encoste em mim. — Eu disse, recuando um passo. Despinna sorriu ainda mais e, então, franziu o cenho. — Você está vestida demais. — Ela fez uma menção para o resto do cômodo. — Veja como todos estão. Olhei para Sarkian. Ele observava a interação, sem dúvidas, apreciando o meu desconforto.
Despinna deu a volta por mim e pude sentir o aroma de seu perfume. Ela me circulou, com a clara intenção de me intimidar. E odiava admitir que ela estava conseguindo. Quando sua mão se ergueu novamente, não fui eu quem falei. — Não toque. Ambas olhamos para o príncipe. O rosto de Despinna foi tomado pela surpresa e por um toque de mágoa devido à repreensão. — Por quê? — indagou, suave e sem toda aquela confiança de segundos atrás. Sarkian me fitou. Notei o desprezo brilhar em seus olhos. — Não quero suas mãos em sujeira keld. Satisfeita com a resposta, Despinna obedeceu, indo em sua direção. Ela colou o corpo na lateral dele, seus seios roçando o traje negro. O príncipe deu um grande gole no vinho, ainda me observando. Me distanciei, lançando um último olhar pelo chão do lugar antes de ir. Eu o havia perdido.
O gato.
O colar da minha mãe.
Senti algo roçar as minhas costas e quase pulei quando dei de cara com uma feição monstruosa. Levei um momento para entender que era um homem nu usando uma máscara tenebrosa de algum animal o qual não fui capaz de reconhecer reconhecer.. — Se eu fosse você, iria embora. — Ouvi o príncipe das sombras comentar. — Talvez, alguns deles não se importem em se sujar. A monstruosidade passou uma das mãos pelo meu braço, fazendo com que todo o meu corpo tensionasse, e foi quando eu, finalmente, saí dali.
Na mesma noite a usurpadora abriu um dicionário antigo da língua que pertencia ao povo selke s elke Ela procurou pela palavra seus dedos correndo pelas folhas até encontrar Farren insignificante inferior
8
—
Descreva para elas. E diga que, caso encontrem,
haverá recompensa — instrui a Allegra para que pedisse aos criados do castelo para procurarem pelo meu colar colar.. Havia grande possibilidade de que, caso algum deles achasse, simplesmente o manteria para si, já que era um colar um tanto caro. Mas eu não tinha muitas opções, jamais encontraria aquele colar naquele castelo enorme sozinha. Logo depois, deixei meu quarto para encontrar Theon. — Deuses, eu não suporto esse frio. Não vejo a hora de voltarmos. — Ele comentou conforme passeávamos pelos jardins do castelo. Eu usava um vestido azul de manga comprida devido ao frio da manhã. Dava para notar o gelo derretendo na ponta da grama
que foi congelada durante a madrugada. O jardim era extenso,
porém, não tão colorido e vibrante quanto os de Umbra. As únicas flores que cresciam naquele clima e solo eram as das árvores de ipês. Havia centenas delas, todas floridas. Parte das pétalas cobriam o chão, formando um cobertor branco. Era belo, de uma forma fria e quase melancólica. m elancólica. — É, eu também não vejo a hora de voltar. Mas não por causa do frio. Eu gostava do frio. Theon olhou para mim. — Também não gosta daqui? — Não. — Pensei por um momento, antes de falar. — Não me sinto... bem-vinda. — Porque não somos. — Ele balançou a cabeça e bufou. — Esse tratado é uma besteira. O ressentimento é claro de ambos os lados. O Príncipe Sarkian nem foi, ao menos, na recepção de ontem. É uma tremenda falta de respeito. Um absurdo. Ele nos despreza, pensei.
— Ele não gosta do nosso povo — murmurei. — Ele é um animal. — Ele abaixou o tom. — Eles todos são.
Olhei em volta para me certificar de que ninguém tinha ouvido. Aquele era o tipo de afirmação que levava alguém para a forca. E, aparentemente, os selke tinham bastante criatividade quando o assunto era punição. — Você acha que seu pai gosta de mim? — perguntei, mudando de assunto. Eu havia trocado poucas e superficiais palavras com senhor Bauer durante a viagem. Era um velho baixinho e de poucas palavras. Nunca o vi sorrir. Theon me encarou, levemente surpreso. — Claro. Por que não gostaria? — Não tenho um título. — Eu não me importo. — Mas ele se importa? — Não. — Ele respondeu depois de um momento e, então, desviou o olhar. olhar. — Ele sabe o que você significa para mim. Aproveitei que ele não me fitava e permiti que meus lábios se transformassem em um sorriso.
— A grande questão é: seu pai me aprova? — Theon perguntou. — Por que não aprovaria? — rebati da mesma forma. Ele suspirou e balançou os ombros, conforme passávamos por outras pessoas no jardim. — Você é sua única filha, ele deve ficar preocupado em te combinar com o melhor. Desviei o olhar. Ele estava certo, mas não pela razão que imaginava. Meu pai desejava o melhor casamento, mas não devido à minha felicidade e proteção, e sim pela sua reputação e o que isso adicionaria para nossa família. Mas não disse isso, claro. Não precisava que Theon soubesse que meu pai não poderia se importar menos comigo. — Você é o melhor — afirmei. Ele sorriu ao me observar. — Então, não há outros pretendentes? Posso ficar tranquilo? Pensei em todos os pretendentes em potencial que a minha madrasta vinha me apresentando.
Com certeza.
— Pode. Ele parou de repente. Então, passou uma das mãos ao meu redor,, me puxando para perto. Seu rosto desceu para o meu. redor Hesitei. — Theon… — O quê? — indagou, olhando para a minha boca. — Não podemos. Olhei em volta, mas ninguém nos observava. — Não estamos em Umbra. Aqui, eles não se importam. Ontem, vi um homem agarrando os seios de uma mulher contra a parede do salão. Durante a festa. E eu tenho quase certeza de que aquela não era a esposa dele. Eu abri a boca, mas nada saiu. Ele não tinha a menor ideia do que eu tinha visto ontem. E eu ainda não tinha certeza se iria contar contar.. Era difícil colocar em palavras. E, de qualquer modo, não queria falar sobre o meu encontro com o Príncipe Sarkian. Tinha Tinha vergonha e raiva de como fui tratada. Theon me beijou e eu permiti.
— Não podemos fazer isso lá — censurei assim que seus lábios deixaram os meus. Estavam corados e úmidos. Ele cheirava a canela. E eu amei o fato de que aquele aroma estava começando a me parecer familiar. Theon sorriu. — Vamos aproveitar, então.
Eu estava perdida. Isso era um fato. Estava a caminho do meu quarto. Já eram quase nove horas e eu estava me recolhendo para dormir. Já até conseguia imaginar o banho que pediria a Allegra para aprontar. Mas, então, virei em algum corredor que não deveria e, agora, não sabia onde estava e nem para onde deveria ir para chegar aos meus aposentos. Tentava encontrar algum criado para me auxiliar quando ouvi um som estranho. A princípio, ignorei o distante e irreconhecível barulho, mas, conforme me aproximei de uma escada, ouvi de novo. Desta vez, mais alto e mais claro. Era um grito abafado. Um grito desesperado.
Olhei para o final do corredor vazio e, então, para a escada ao
meu lado. Em dúvida do que deveria fazer.
Talvez, houvesse uma explicação. Talvez, fosse mais uma daquelas festas sombrias e promíscuas. Só que ouvi de novo. Desta vez, não pude ignorar o desespero na voz. Era alguém pedindo por ajuda. Desci as escadas lentamente, cada degrau era uma hesitação diferente. Duvidava que eu, em minha posição, poderia fazer muita coisa para ajudar alguém naquele castelo. E, por mais que eu gostasse de acreditar que estava descendo puramente à socorro de alguém, não era totalmente verdade. A curiosidade me movia mais do que o altruísmo. Desci e me deparei com mais um longo corredor. Todas as portas estavam fechadas, apenas uma estava entreaberta. E era de lá que o barulho vinha. Agora, alto. Era um homem. O som saía de sua garganta. Gritos agonizantes. Mas havia mais. Uma voz baixa e rouca que foi ficando mais alta conforme eu
me aproximava.
Pensei em subir novamente, mas meu corpo parecia ter vontade própria porque eu me aproximei lentamente, até parar ao lado do batente. O corredor era escuro e eu esperava me misturar às sombras para não ser pega. Aproximei o rosto apenas o suficiente para que pudesse enxergar parte do interior do cômodo. Fiquei instantaneamente instantaneamente chocada com o que vi. Um homem nu estava pendurado no teto pelos punhos. Suas costas sangravam devido aos machucados. Ele parecia ter os olhos e a boca vendados. A cabeça pendia para baixo, como se estivesse exausto. Derrotado. E, atrás dele, também de costas para mim, uma figura longa e escura carregava um chicote. Eu não precisava ver mais do que suas costas para reconhecer. Era Sarkian Varant. Ele tinha uma das mãos atrás das costas e a outra arrastava o chicote pelo chão. Dois soldados mascarados observavam a cena dos fundos do cômodo.
Sarkian falou alguma coisa, mas não entendi o quê. Escutei apenas o som rouco de sua voz ecoando no cômodo tenebroso. Havia uma parede repleta de utensílios estranhos e não demorou para que eu chegasse à conclusão de que eram ferramentas feitas unicamente para ferir. E eu sei que deveria me afastar e dar o fora dali, mas não conseguia. Estava hipnotizada. Havia tantas perguntas. Quem era aquele homem? O que ele tinha feito? Por que Sarkian estava fazendo aquilo?
Alguns segundos depois de dizer o que quer que tenha dito, Sarkian levantou a mão e o chicote estalou nas costas já brutalmente feridas do homem. Segurei a respiração ao ouvir o som do couro batendo contra a pele. Todo o corpo do homem tensionou e o som que deixou os seus lábios foi difícil de ouvir. Sangue pingava no chão, se juntando à uma pequena poça na madeira.
O chicote estalou novamente. E, então, mais uma vez. O homem gritava. Até que ficou em silêncio. Sarkian circulou o homem lentamente com o chicote arrastando pelo piso. Me afastei um pouco mais da porta, com medo que me visse. Ele, por fim, entregou o chicote para um dos homens que observava em silencio, e foi até à uma mesa. Demorou para que eu conseguisse entender qual objeto que havia em suas mãos agora. Uma faca. Sarkian se aproximou com a lâmina em mãos e arrancou a venda dos olhos do homem. O desconhecido, que eu achava que já estava morto, começou a se chacoalhar desesperadamente assim que notou o objeto. Ele balançava a cabeça e os braços, e os barulhos que deixavam a sua garganta não paravam. Foram interrompidos apenas quando o príncipe enfiou a faca em sua barriga. O ar deixou os meus pulmões e tudo ficou muito silencioso. Fechei os olhos com força por alguns segundos e, quando
voltei a abri-los, Sarkian deslisava, muito lentamente, a lâmina para
fora do corpo do homem. Ele fitava fixamente os olhos do homem. Bebia sua dor. Se alimentava de seu desespero. Conseguia imaginar o brilho em seus olhos pratas observando a vida deixar o corpo do homem. Ele era um monstro. Um sádico. Gostava daquilo. — Não quer assistir mais de perto, farren? O meu coração parou. E, então, começou a galopar violentamente contra o meu peito. Sarkian levantou os olhos da faca para me encontrar. Nosso olhar se cruzou, e uma onda gelada e nauseante atravessou meu corpo inteiro. Dei um passo para longe da porta, instintivamente tomando distância. Mas, com um sutil movimento de sua cabeça, seus guardas vieram em minha direção. Não.
Me virei e comecei a correr, mas não cheguei nem até as
escadas quando me agarraram.
— Me soltem! — exigi, me debatendo. Eles pegaram os meus braços e me ergueram como se eu não pesasse mais do que uma boneca de pano. Fui arrastada pelas mãos brutas até o meio do cômodo. Até estar de frente a ele e ao lado do homem ferido. Ao me soltarem, me recompus. Não havia saída, de qualquer forma. Tentar fugir era inútil, então tentei, pelo menos, manter alguma dignidade. Sarkian cortou as cordas que prendiam o homem e ele caiu no chão, a cerca de centímetros dos meus pés. O barulho de seu corpo batendo contra o piso me fez estremecer. Dei um passo para trás. O sangue do homem se espalhava lentamente pelo piso. — Gostou do show? — Ele indagou, devolvendo a faca para a mesa. Ele olhava para suas mãos enquanto tirava as luvas sujas de sangue. Sarkian puxou o couro de cada um dos seus dedos meticulosamente. A luva escorregou pela sua pele. E aquela foi a primeira vez em que vi as tatuagens. As marcas negras subiam
pelos seus dedos, fazendo contraste com a pele pálida.
Continuei parada, observando-o com o coração batendo rápido. Sarkian não parecia ter nenhuma pressa para o que quer que fosse. Sabia que o suspense me torturava. — É a segunda segunda vez que está onde não deve. — Ele derra derramou mou uma bebida no copo e, quando terminou, finalmente levantou o olhar para me encarar. — Me diga, está se esforçando para me irritar? Não há necessidade disso, sabe? Sarkian cruzou o cômodo, passando pelo homem, e se sentou no sofá de couro. Ele não usava máscara. Aquela era a segunda vez em que estava diante de seu rosto exposto, e era quase tão arrebatador quanto da primeira vez. Não de uma forma positiva. Longe disso. Eu associava aquele belo rosto à pura maldade. — Não. Me… — Se perdeu? — Ele interrompeu. — Imaginei. Alguém precisa te dar um mapa deste castelo. Tem certas coisas que não deveria ver. — Não me perdi. Escutei um barulho e o segui. Achei que alguém estivesse precisando de ajuda.
Sarkian fez uma careta sarcástica.
— Uh. — Ele lançou um olhar ao homem no chão e fez uma expressão falsa de pesar. — Acho que você chegou meio tarde. O homem tremeu em um espasmo no chão. Ele ainda respirava, lutando pela vida. Agora que eu o via mais de perto, conseguia ver os ferimentos em sua lateral e em sua barriga. Queimaduras. O sangue se espalhou ainda mais pelo chão e precisei dar mais um passo para trás para que o líquido não tocasse meus pés. Eu não conseguia tirar os olhos do corpo. Já tinha visto a morte de perto. Mas não como daquela forma. Execuções públicas eram rápidas em Umbra. Forca. Decapitação. A espada descia e a cabeça rolava. E, então, acabava. Não havia tortura. O homem tossiu, me fazendo piscar piscar.. — Assim é mais devagar devagar.. — Sarki Sarkian an explicou. — Ele vai se afogar no próprio sangue. A sua voz me fez tirar os olhos do homem ferido e o encarar encarar.. Não havia nada em seu olhar olhar.. O prata era simplesmente vazio. Ele deu um gole na bebida.
— Você quer saber o que ele fez para acabar assim?
Cerrei os dentes dentro da boca. Ele estava provocando. — Tenho certeza de que você teve uma boa razão para fazer isso. — Mas é claro. Jamais faria algo tão cruel se não houvesse um excelente motivo. Algum palpite? — Ele sorriu. — Vamos lá, já que está aqui, me entretenha. Minha garganta estava seca e lutei contra a vontade de engolir. — Ele não se curvou? A provocação fez com que o sorriso mordaz continuasse em seus lábios. — Ele disse algo do qual não gostei. Tinha uma língua afiada, não soube a hora de parar. — Ele apoiou o copo na cômoda ao lado do sofá. — Ele me lembra um pouco você. — Você sente prazer nisso? — Em torturar? — Em me ameaçar. A diversão lentamente deixou sua feição e, de repente, ele me pareceu muito sincero. Sarkian se levantou e andou até estar diante
de mim.
Prendi a respiração. Não recue.
— Tenho prazer em vê-la desta forma. — Como? — Minha voz soou como um sopro distante. — Com medo. — Ele inclinou a cabeça até estar com o rosto próximo do meu ouvido, mas sem que sua pele tocasse um fio do meu cabelo. — Você fede a pavor, farren. É patético. Agora que eu sabia o sentido do apelido, as palavras ecoavam em minha mente sem parar toda vez que ele o repetia. Inferior. Insignificante.
Quando ele se afastou, pude puxar ar o suficiente para perguntar: — O que eu fiz para te ofender? — Você é uma keld. — Ele respondeu, se referindo ao povo de Umbra, como se fosse óbvio. — A sua mera existência me ofende. — Você deveria se acostumar, Vossa Alteza — derramei sarcasmo nas últimas palavras. — O seu pai fechou um tratado, então creio que ele não pense o mesmo.
Sarkian não respondeu, apenas se afastou e suspirou, quase como se estivesse entediado. Colocou as mãos nos bolsos quando voltou a me encarar. encarar. — Ouvi dizer que perdeu algo. Franzi o cenho. — Como sabe disso? — Esse é o meu castelo, farren. Sei de tudo o que acontece por aqui. — Ele fez uma pausa e deu de ombros sutilmente. — É um belo colar. — Você o encontrou. — A frase deixou a minha boca como uma acusação. Ele não respondeu, nem mesmo se moveu. — Me devolva — ordenei. — Uhm… — Ele fingiu pensar, até que, por fim, respondeu: — Não posso. — Por quê? Ele só podia estar blefando, pensei. Talvez, soubesse que eu
havia perdido o colar, mas não o tinha. Talvez, ele só estivesse
jogando comigo. comigo.
Mas algo me dizia que ele não estava. — Gostei dele — respondeu simplesmente. — O diamante é um pouco pequeno para o meu gosto, mas não deixa de ser belo. Dei um passo à frente. — É meu. — Era seu. — Ele corrigiu, inabalável. Estava se divertindo. Fechei as mãos em punhos. Queria acertá-lo. — Você não pode pegar o meu colar. — Por que não? — Não te pertence. Isso te faz um ladrão. Afinal de contas, ele era um maldito príncipe. E não um qualquer. Era o príncipe do reino em que mais havia pedras preciosas. Ele podia ter o diamante do tamanho do seu polegar, se desejasse. O comentário o divertiu. — Já fui chamado de muito pior do que isso. Vai ter que se esforçar para me ofender.
Qual era o problema dele?
Aquele colar não significava nada para ele. E, em contrapartida, significava tudo para mim. — Você não tem nenhum escrúpulo? — Estou surpreso que levou tanto tempo para notar. Meu coração batia forte em pura frustração e raiva. Havia desespero também. — Eu não vou embora sem o colar — declarei. Foi uma declaração estúpida, soube assim que ela deixou a minha boca. Mas estava desesperada. — Então, talvez, não vá embora daqui de forma alguma. — Sua ameaça chegou aos meus ouvidos como uma brisa de inverno. A raiva era tão grande que senti meus olhos começarem a lacrimejar. Mas eu não podia chorar. Não na frente dele. — Era da minha mãe. Tem grande importância. O homem sem alma sorriu e, com a voz mais baixa, em desafio, indagou: — O que vai fazer, então? Eu sabia o que Sarkian queria.
Ele queria a minha humilhação.
Ele queria que eu implorasse. Vamos lá, Cera. Pense nela.
— Por favor — pedi, com cada célula do meu corpo queimando em orgulho ferido e ódio. Sarkian balançou a cabeça e desviou o olhar. Fingiu ponderar e os segundos decisivos seguintes duraram uma eternidade. Até que, por fim, ele se voltou para mim. — Ajoelhe. Pisquei. — O quê? — Ajoelhe — ele repetiu —, e, talvez, eu considere abrir mão da minha nova aquisição. Foi quando entendi que não recuperaria aquele colar nunca. Ele apenas me empurraria, mais e mais. E, no final do seu jogo de humilhação, me deixaria sem nada. Raiva eclodiu. Eu não podia acreditar nele. Não podia acreditar que alguém
tão miserável existia.
— Você acha que isso te faz assustador? Isso só te torna um covarde. — Eu sabia que devia parar, mas fiz exatamente o oposto disso. O ódio queimava quando dei um passo à frente. — Por que é assim? É por que é o segundo filho? A segunda opção? Jamais será um rei, então passa o seu tempo se distraindo da própria miséria tornando a vida dos outros infeliz. Eu reconheci meu erro assim que fechei a boca. Mas era tarde demais. Seu rosto vazio e impenetrável se tornou perverso. O prata de seus olhos brilhou, aquele brilho que me causava c ausava arrepios. Ele deu um passo à frente. Desta vez, não consegui, recuei. Com apenas um movimento da cabeça de Sarkian, os homens voltaram a me segurar, mas, daquela vez, um deles ergueu meus braços até as cordas que antes seguravam o homem ferido. Eu me debati, mas, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, me vi com os pés chutando o ar e as mãos amarradas. Consegui acertar um dos soldados, mas o golpe não pareceu fazer efeito algum. Meu vestido balançava conforme eu me debatia desesperadamente.
— As pernas também. — Sarkian ordenou, com a voz calma.
Chutei de novo, mas o homem habilmente lançou a corda em volta dos meus tornozelos. — Me solte! — Eu exigi, olhando diretamente para ele. Meu peito subia e descia de forma violenta. Em um movimento fluido, Sarkian puxou a espada de sua cintura. Parei de me mover. Meu coração foi para a boca. Ele deu dois passos à frente e ergueu a lâmina em direção ao meu rosto. A ponta fria tocou o meu queixo e ele a deixou ali. Meu peito subia e descia com força enquanto encarava o prata assombroso. — Eu acho que preciso te lembrar de quem sou. — Sarkian desceu a lâmina pelo meu pescoço em um movimento lento. — E o mais importante: quem você é. Eu movi meu rosto, tentando me afastar da lâmina. — Quietinha. — Ele alertou. — Não quer que eu te corte por acidente, não é? Parei de me mover.
Sarkian, por fim, tirou a espada do meu pescoço e eu soltei o ar devagar. A pele sensível por onde ele havia arrastado a lâmina formigava. Ele recuou, me contornando até que eu não o tivesse em minha linha de visão. — Consigo sentir o seu cheiro. — Ouvi a sua voz. — Você fede a medo, farren. Eu abri a boca, mas nada saiu. Ouvi o som dos passos quando ele se aproximou. Prendi a respiração. E o que aconteceu em seguida foi tão rápido quanto um piscar de olhos. Senti a brisa na pele exposta das minhas costas assim que a minha roupa rasgou em um movimento ágil e rápido da lâmina. Eu não conseguia falar. Não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Sarkian recolheu a lâmina na cintura e pegou o chicote. Ainda havia sangue no couro.
Não!
— Você não pode fazer isso! — Eu gritei. Os olhos pratas encontraram os meus assim que se virou. Diversão perversa brilhou em suas írises. Ele não podia, repeti a mim mesma.
Mas, conforme ele se aproximava, eu comecei a entender que ele iria. O chicote arrastou pelo chão conforme ele me contornou devagar. Meu coração batia tão forte que eu o sentia martelar contra meu peito. O desespero era tão grande que a pressão na minha cabeça me deixava tonta. A minha garganta doía com a angústia, como se eu tivesse gritado sem parar por um dia inteiro. — Você está me subestimando com relação ao que eu posso ou não fazer. — Ele parou atrás de mim. — Acho que você vai se surpreender com a quantidade de coisas que eu posso fazer com você. Fechei os olhos e uma lágrima involuntária escorreu pela minha bochecha. Eu nem havia notado que estava chorando. Aquilo estava mesmo acontecendo. acontecendo.
Eu seria chicoteada.
Torturada.
Não iria implorar, nem gritar. Não iria me humilhar ainda mais. Notei o movimento atrás de mim, a sombra de seu braço se erguendo. Engoli em seco, pronta para o golpe. Mas não veio. Os segundos se arrastaram por uma eternidade e nada aconteceu. Ouvi os passos até que sua voz grave ecoou pelo cômodo. — Não a soltem até o amanhecer. E, se ela gritar demais, matem-na. Era mais um jogo. A antecipação era quase pior do que o golpe golpe em si, e ele sabia disso. Mas também era um aviso do que ele poderia fazer comigo, caso desejasse. Eu fiquei presa com o cadáver de um homem a menos de um metro dos meus pés até o primeiro raio de sol surgir pela pequena janela. Meus braços estavam dormentes e todo o resto do meu corpo doía.
Durante a noite, a única coisa que eu via quando fechava os olhos era o rosto dele. Não foi a dor que me manteve acordada. Foi o ódio.
Na madrugada fria e angustiante uma faísca se acendeu no peito da usurpadora de sangue Com as mãos atadas e o corpo suspenso as chamas de revolta antes brandas se tornaram mais fortes O príncipe das sombras não fazia ideia do incêndio que acabara de causar
9
Eu escolhi um vestido de mangas longas para a última festa da estadia, a fim de esconder as marcas em meus punhos. E, quando Allegra disse que ficou preocupada comigo e me perguntou onde eu havia passado a noite, disse que não era de sua conta. Sua expressão ferida fez com que eu me sentisse um lixo, mas era a única forma de não estender o assunto. O que eu poderia fazer? Para quem eu poderia contar o que o príncipe havia feito comigo? Nada poderia ser feito, de qualquer forma. Eu não era importante o suficiente para causar um dano a ele. Acabaria sendo mais prejudicial para a minha reputação do que para a dele. E, claro, ele foi a primeira coisa que vi ao entrar no salão
naquela noite.
Ele estava ao lado do seu irmão mais velho. Do outro lado, estava sentado seu pai, no trono do centro. A mãe, na ponta oposta. Sarkian tinha um copo de vinho na mão direita e as pernas cruzadas de forma quase desleixada. Se ele não fosse tão esbelto e gracioso, aquela forma de se sentar seria inapropriado para a realeza. Seu irmão estava sentado de forma idêntica ao pai. Mãos vazias e apoiadas nas laterais dos assentos. O olhar de Sarkian estava escondido por trás da máscara negra, mas, se prestasse muita atenção, era possível reconhecer a sua familiar expressão sutil de repúdio misturado com tédio. Bastardo arrogante.
Naturalmente, andamos até a Família Real para fazer as reverências. Cada passo que eu dava na direção dele parecia uma sentença de morte. Meu corpo todo queria fazer justamente o contrário. Tentei fixar meu olhar apenas nos outros membros da família, mas foi impossível. Minhas írises se voltaram para ele como se sua presença pulsasse ao redor. Não houve reação ou nenhum tipo de reconhecimento. Por
trás da máscara, seu olhar apenas se fixou no meu por um segundo
a mais, conforme eu me curvava em reverência. Seus dedos enluvados e repletos de anéis, que antes tamborilavam no braço do trono, pararam por um milésimo de segundo. Até que desviou com desdém e desinteresse. Nos sentamos para jantar. Os pratos foram postos pelos servos ao soar sino. Mais uma vez, estranhei a falta da oração antes da refeição. Era essencial em Umbra, principalmente nos eventos dentro do palácio. Mas o Rei Zagreus apenas fez um brinde sem muitas cerimonias e nos mandou comer. Lancei um olhar para o trono, mas Sarkian tinha o olhar vazio e distante de mim. Consegui comer, apesar de não ter muito apetite. De vez em quando, levantava o meu olhar para encará-lo. Ele estava agindo como se fosse um dia qualquer. Mal reconhecia a minha existência. Como se ele não tivesse me deixado amarrada a madrugada toda. Esfreguei os meus pulsos em um movimento m ovimento nervoso e desviei o olhar. Eu já havia chorado o suficiente naquelas horas em que estava presa. Em silencio, as lágrimas escorreram até que não sobrasse nenhuma em meu corpo.
O pior de tudo era saber que eu nunca conseguiria me vingar.
Ele era um príncipe. Sarkian era intocável. Destrui-lo era um desejo pulsante, porém, distante. Me virei para comentar com Theon sobre a aparência um tanto inusitada do segundo prato que foi posto, mas ele tinha os olhos fechados e a cabeça levemente inclinada. — Está tudo bem? — Eu indaguei, observando-o. Theon ergueu o olhar, mas demorou um momento para responder. — Não… não estou me sentindo muito bem. — O que está sentindo? Ele colocou a mão contra a testa e inspirou. — Uma dor aguda na cabeça. — Talvez, tenha sido algo que comeu. Está muito ruim? — Mais ou menos. — Ele piscou com força e deu um gole no vinho. — Mas vai passar. Assim que a sobremesa foi posta, o sino soou novamente. E, desta vez, a majestosa porta do salão foi aberta e uma dúzia de garotas com roupas vermelhas entraram dançando. Elas se
posicionaram no meio do salão e começaram a fazer uma apresentação bem ensaiada. Não demorou muito para que eu reconhecesse a garota que dançava no centro, a que guiava o movimento das outras. Era Despinna. Não se movimentava em uma dança erótica como na outra noite, mas era bem sensual e sugestiva. Ela se contorcia de forma graciosa e a sua roupa era justa ao corpo, despertando a curiosidade de todos os homens no recinto, tenho certeza. A música ficou mais alta alta conforme a dança ficava mais intensa. Ela movia seus quadris e jogava a sua cabeça para trás. Seus olhos se dirigiam ao trono e eu já sabia em direção a quem. Ela não deixava tão óbvio como naquela dança erótica que estava dançando para ele. Naquela noite, ela queria que todos soubessem. Agora, não. Ela lançava sutis olhares, mas poderosos. Ela queria apenas que ele soubesse. Como a maioria, Sarkian também tinha a sua atenção na dança. Em Despinna. Mas, às vezes, o seu olhar vagava. E ele vagou até o meu em dado momento, me pegando
encarando-o.
Foi rápido demais e não tive tempo para desviar. Havia sido pega no flagra. Ele ergueu uma sobrancelha em minha direção, soube pelo movimento sutil da máscara. Resisti a vontade avassaladora de ceder e desviar, mas sustentei seu olhar por vários v ários segundos. Como se não me sentisse desconfortável com aquilo. Como se ele não me abalasse nem um pouco. Não sei quanto tempo nos encaramos, mas me pareceu séculos. Ele também não parecia disposto a desviar. Aquilo, de alguma forma, se transformou em uma competição. Meu rosto esquentou diante do prateado intenso. Olhar para ele era doloroso. Em suas írises, eu via tudo o que odiava em mim mesma. Era um lembrete da minha fraqueza e do meu status inferior. Era a lembrança de ontem à noite. Acabei desviando com o rosto vermelho de humilhação e, principalmente, raiva. Theon se movimentou ao meu lado. Estava afastando a cadeira. Fiz menção de levantar, mas ele me impediu, colocando a mão
sobre a minha.
— Não, está tudo bem. — Ele assegurou ao ficar de pé. — Acho que só preciso fugir do barul barulho ho um pouco. V Vou ou ficar bem. — Tem Tem ce certeza? rteza? Ele assentiu. A dança terminou pouco depois que ele se retirou. Durante todo o resto do tempo, me neguei a olhar na direção de Sarkian. E podia estar louca, mas tinha quase certeza de que senti, uma ou duas vezes, seu olhar queimar sobre mim. Depois do jantar, o sino bateu de novo. Uma orquestra se posicionou
próxima
ao
trono.
Senti
o
salão
se
agitar.
Aparentemente, era a hora de nós, os convidados, tomarem tomarem a pista. — O que é isso? — perguntei quando uma mulher se agachou na minha frente com um pote prata. — As garotas solteiras tiram um papel que pode ou não conter o nome de um dos príncipes — explicou. — Se você pegar o nome de algum deles, vocês dançam juntos. Dançar com algum dos príncipes? Meu estômago embrulhou quando olhei para o pote.
— Não, obrigada.
Ela piscou e, então, olhou para mim como se eu fosse um animal de sete cabeças. — É um privilégio. Você precisa pegar um papel. Eu hesitei e, quando a minha mão se estendeu, ela tremia. O rosto da mulher se transformou sutilmente. Ela se aproximou e, quase gentil, disse: — Não precisa ter medo. E pode ser que você tenha a sorte de pegar o Príncipe Zalic. Ele tem fama de ser mais… agradável. Eu passei os olhos pela extensa mesa em que me encontra. Havia, pelo menos, cinco garotas da minha idade com papéis nas mãos. Fora as dezenas de outras nas mesas ao redor. redor. As chances estavam a meu favor favor.. Enfiei a mão no pote e peguei o maldito papel. Ela instruiu para que eu abrisse apenas no momento em que nos fosse avisado. Olhei para Sarkian; ele tinha a taça de vinho nos lábios e o olhar distante. Não iria acontecer. acontecer. Os Deuses não me odiavam tanto assim.
Nos deram o sinal para que abríssemos todas em conjunto. A minha mão tremia quando desdobrei o papel. E aconteceu que os Deuses deveriam me desprezar. Porque o nome dele estava escrito em uma bela caligrafia negra. Meu corpo congelou. Levantei o olhar e o encontrei já me observando fixamente. Ele parecia quase tenso ao passo que a pergunta pairava em sua expressão. Ele teve a sua resposta porque o pavor estava estampado em meu rosto quando nossos olhares se cruzaram. Sua mandíbula tensionou e essa foi a última coisa em que eu vi antes do papel em minha mão, de repente, pegar fogo. A pequena chama queimou os meus dedos e eu levei um susto, soltando-o. s oltando-o. Ele virou cinzas antes de cair sobre meu colo. A mesma coisa aconteceu com uma garota na mesa ao lodo. Notei os olhares divididos entre mim e ela. Mas, diferente de mim, ela parecia feliz. E as pessoas que a fitavam, pareciam ter inveja. Enquanto as pessoas que me fitavam, pareciam ter… pena, ou, talvez, até mesmo simpatia.
Não havia escapatória. Não havia como mentir ou negar. Os papéis premiados eram os únicos que pegavam fogo.
Os príncipes se levantaram, e nos foi indicado fazer o mesmo. Sarkian e eu nos encarávamos conforme ele se encaminhava para o centro do salão. Quando a outra garota se afastou do seu assento, me obriguei a fazer o mesmo. Não havia escapatória. Meu corpo funcionava em piloto automático. Ele me esperava parado no extenso e, praticamente vazio, salão. E, assim que me vi diante dele, apenas a alguns metros de distância, notei que nunca tinha visto um homem tão descontente em toda a minha vida. Seus lábios estavam em uma linha reta e seus olhos... Bem, eles deixavam muito claro o seu nojo por mim. Sarkian não queria dançar comigo. Uma keld. Vi o desgosto em seus olhos porque ele não tentou esconder. Mas a sua repulsa em relação àquela dança só não era maior do que a minha. Queria correr dali. E acho que ele sentiu isso. Porque, assim que parei em sua frente e ele notou a tensão em meus ombros e o desespero em meu olhar, suas írises mudaram. Foi sutil, e o resto de seu rosto permaneceu neutro. Mas eu vi certa satisfação sádica atravessar seus olhos.
O prazer de me ver com medo era maior do que sua repulsa de me tocar. A música começou. Do outro lado do salão, a garota e o Príncipe Zalic começaram a se movimentar, fechando a distância entre si. Eu não me movi, pelo menos não instantaneamente. Por causa da máscara, eu não podia ver seu rosto todo, mas tinha certeza de que ele me encarava com desafio. Podia imaginá-lo falando perfeitamente palavras cruéis. Vamos lá, farren. Está com medo?
Foram apenas alguns segundos, mas aquele impasse me pareceu uma eternidade. As pessoas observavam com expectativa. Quando ele, finalmente, deu o primeiro passo, me vi forçada a fazê-lo também. Nos encontramos no centro do salão. E, antes que eu pudesse fazer qualquer movimento para aproximar as minhas mãos, ele as tomou. O choque do material de sua luva contra a minha pele me pegou de surpresa. Eu quis recuar, mas seu aperto, apesar de não
violento, era firme. Ele trouxe os meus braços para perto de si,
posicionando-os como queria. A minha mão direita ficou no seu ombro, a esquerda, ele segurou erguida. Senti o frio do material de seus anéis na minha pele. Sua mão livre foi até as minhas costas. Me detestei por usar aquele vestido. Eu sentia o seu toque diretamente na pele nua das minhas costas. Sarkian podia me tocar. Mas eu não podia tocá-lo devido as grossas camadas de roupa e luvas. Me sentia em desvantagem e exposta. Mais um ponto para ele. Ele não me puxou para si. E foi estabelecido a maior distância possível nas devidas condições. Aquela foi a primeira vez em que fiquei feliz por ele ter tanto desdém a mim. — Não mova a suas mãos. — Ele ordenou com a voz firme, porém baixa. — E não chegue mais perto. Fiquei tentada a dizer “ou o quê?”, mas preferi não arriscar. Ao invés disso, ironizei: — Vou tentar me conter. Estava começando a entender que ele até suportava ironia, mas não desafios ou ameaças. Conversar com ele era como me equilibrar em uma corda bamba. Precisava ter muito cuidado e
escolher bem meus movimentos. Caso contrário, o tombo seria feio.
Começamos a nos mover. — Eu espero que isso esteja sendo tão doloroso para você quanto está sendo para mim. — Pode ficar tranquilo, então. — Como foi a sua noite? — Ele quis saber, com doçura nas palavras venenosas. Ele me deixou amarrada por mais de 5 horas. Cerrei os dentes dentro da boca. Seja indiferente. Não lhe dê essa satisfação.
— Excelente, senhor. — Que bom. — Ele disse. — Não vai me perguntar como foi a minha? — Se eu me importasse, talvez. A corda tremeu sob meus meus pés. Cuidado, Cera.
— Também dormi como um bebê. — Ele respondeu, me ignorando.
Me imaginei estrangulando-o. Colocando as mãos em seu pescoço e apertando com força. A imagem preencheu a minha cabeça e isso ajudou um pouco. — Eu nunca dancei com alguém tão inferior antes. E eu nunca havia dançado com um príncipe. Se alguém me dissesse, há cinco anos, que eu estaria dançando com alguém da realeza, eu nem acreditaria. Me sentiria estupidamente honrada. A ironia chegava a ser engraçada. — Como está sendo? — Entrei no seu jogo. Ele moveu tão sutilmente os ombros que quase me perguntei se era fruto da minha imaginação. — Tão ruim quanto imaginei. — Passaria mais rápido se ficássemos em silêncio. — Eu comentei, com a voz neutra. Ele torceu levemente a cabeça, de forma cínica. — Mas, aí, qual seria a graça para mim? Sarkian queria tornar aquela dança pior para mim do que era para ele. Ele queria me castigar simplesmente por ter de me tocar.
Mesmo que aquilo não fosse escolha minha, e sim culpa do destino.
— Torturar é a sua única forma de prazer? — questionei, com curiosidade genuína. — Eu diria que sim. Minha única e verdadeira paixão. Não falei mais nada. Deuses, aquela música parecia eterna. — O que aconteceu com o seu namorado? — Não é da sua conta. — As palavras escaparam da minha boca. Merda.
— Talvez — ele desviou o olhar para os nossos braços conectados. Então, arrastou o polegar pelo meu pulso, em um movimento lento e quase gentil. Bem onde se encontravam os machucados causados pelas cordas. Eu engoli em seco e frio atravessou a minha espinha. Sarkian voltou a me encarar por entre os longos cílios —, eu deva te lembrar do que acontece quando não toma cuidado com o que fala. A ameaça foi o suficiente para me fazer abrir a boca. Ele já havia me ferido uma vez. Eu sei que ele o faria novamente se
tivesse a oportunidade oportunidade..
— Ele não estava se sentindo bem — respondi com dificuldade, evitando o seu olhar. — Ele já te fodeu? Congelei, fazendo com que quase tropeçasse no seu pé. Sarkian precisou forçar o aperto para que não perdêssemos o ritmo. Seus dedos fincaram nas minhas costas e tive certeza de que deixariam uma futura marca. — Suponho que não. — Ele concluiu, já que não obteve uma resposta. — O fazendo esperar é a única forma de ter uma chance que se case com você. Ele tem um título, certo? — Ele me encarou fixamente. — O que você tem? Desviei o olhar para os músicos tocando a melodia que estava, aos poucos, se tornando insuportável. Meu rosto estava vermelho com as conturbadas emoções. Preferi me manter em silêncio porque eu sabia que, se abrisse a boca, me arrependeria. — Nada. Exato. Você é o lixo de Umbra. Meu sangue ferveu. Senti meus olhos marejarem. E isso me causou ainda mais revolta porque eu odiava o fato de ele, tão facilmente, conseguir me fazer querer chorar chorar..
— As pessoas não costumam te contradizer por aqui, não é? Acho que esse é um dos privilégios de ser príncipe. Mas acho que isso também pode ser uma maldição. Você fica muito envolto na sua própria bolha de privilégios e ignorância. — Eu sabia que devia parar, mas continuei mesmo assim. As palavras simplesmente flutuaram da minha boca. — Não consegue suportar a ideia de uma ninguém de um outro reino não se curvar perante a você. Deve ser difícil ter um ego tão frágil assim. Só tive coragem de dizer isso porque estávamos em público. Ele não podia fazer nada. Pelo menos, não ali, não naquele momento. A sua resposta levou cerca de cinco batidas do meu coração. Sei disso porque era capaz de contar, já que o som era tão alto em meus ouvidos. — Torça para não estarmos a sós novamente, farren. As suas palavras tiveram um efeito poderoso em meu corpo todo. Eu senti o frio subir pela minha espinha, especialmente na parte em que seus anéis encontravam as minhas costas. — Você não pode se livrar de mim. Não sou sua súdita. Não
pode me matar.
Seus movimentos se tornaram mais lentos, quase paramos de nos mover quando ele abaixou a cabeça. Nossas cabeças ficaram extremamente próximas quando ele indagou com a voz baixa: — Tem certeza disso? Eu realmente acreditava que sim, mas não tinha tanta certeza quanto gostaria. — Tenho — menti. — Posso não ter título, mas meu pai tem alguma influência na corte de Umbra. Me matar seria um insulto ao rei e, automaticamente, isso colocaria o tratado em posição delicada — respondi, tentando soar ao máximo de confiante com o que falava. — É por isso que te ofendo tanto, não é? Não pode se livrar de mim. — Você está certa. — Sarkian suspirou com o olhar distante. — Talvez, não possa te matar. — Inclinou seu rosto levemente e falou mais baixo: — Mas posso fazer coisas muito mais interessantes e agonizantes. A música finalmente terminou. E Sarkian me soltou antes mesmo da última nota soar. Com o corpo próximo de dormente, voltei para a mesa. Bebi o
resto do meu vinho em dois grandes goles e estava prestes a pedir
uma nova taça quando Despinna entrou no salão novamente. Ela tinha trocado a roupa da apresentação e, agora, usava um vestido verde escuro com um vantajoso decote. Mas não foi isso que me chamou atenção. Foi o colar que cintilava em seu colo. O colar da minha mãe.
Por pouco não quebrei a taça vazia em minha mão com a pressão em que a apertei. Meus olhos desviaram diretamente para o trono. Para ele. Seus dedos tamborilavam no braço da cadeira e seus olhos já estavam fixos em mim. Sarkian sorriu.
10
Eu o afastei quando senti sua língua em meu pescoço. Theon me observou com os lábios inchados ao passo que me remexi sobre o colchão. Ele tinha cruzado o corredor e entrado no meu quarto na madrugada. Começou com apenas um breve beijo de boa-noite, mas progrediu e, agora, estávamos espalhados na cama. c ama. Seu polegar acariciou a minha bochecha e ele fitou a minha boca. — Cera. — Ele murmurou antes de avançar de novo. Ele tomou a minha boca e seu peso me empurrou para baixo. Minhas costas encontraram o colchão de novo. Aquilo estava avançando avançando rápido de demais. mais.
— Pare. — Eu pedi, apesar de meu corpo não concordar completamente. Só que eu não podia ceder. Não ainda. Precisava pensar a longo prazo. As palavras de Sarkian Sarkian pendiam na min minha ha mente. Ele já te fodeu? Esperando é a única forma que vai fazer com que ele se case com você. Por mais grotesco e cruel ele fosse, eu sabia que havia certa
verdade em suas palavras. Se eu não jogasse as cartas certas, Theon poderia perder o interesse. E eu acabaria me casando com alguém como o Conde de Bashirt. Mas ele não parou. Sua mão escorregou para o interior da minha coxa. — Theon, pare! Empurrei seu peito e ele se afastou. Me sentei no colchão e desviei o olhar por um momento.
Theon esperou, em silêncio.
— Eu queria — disse. — Realmente q queria. ueria. Mas não posso antes de estar… — Casada. — Ele completou com um suspiro pesado. — Você Você está me matando, sabia? Eu gostava daquele olhar. Gostava de saber que causava aquilo nele. O senso de poder era ainda melhor do que o beijo em si. Suspirei de uma forma um pouco mais dramática do que pretendia e me aproximei. Coloquei a mão na lateral de seu rosto ao observá-lo. — É difícil para mim também. O silêncio pairou por alguns segundos ao passo que nos fitávamos. Aquele pequeno espaço de tempo pareceu uma década inteira, até ele falar: — Case comigo, Cera? Eu pisquei e afastei a minha mão. Sorri, mas apenas por dentro. — Isso… é um pedido de verdade?
— Sim. Meu pai já está de acordo. Ele vai conversar com o seu quando chegarmos em Umbra. — Ele fez uma pausa e sorriu. — Se você aceitar, é claro. Ele se remexeu na cama e levou a mão direita até o bolso de sua calça. — Ele já até me deu o anel da família. Theon estendeu a joia em minha direção. Era dourada e repleta de pequenas pedras, formando o brasão da família. Não era o anel mais bonito do mundo. Eu mesma tinha alguns anéis mais bonitos e delicados do que aquele, mas nunca quis tanto colocar uma joia em meus dedos. Ela não representava a minha liberdade. Mas ela representava uma gaiola um pouco maior. — Você não respondeu. Levantei o olhar e hesitei apenas por um momento. Apenas alguns segundos, para não demonstrar a premeditação. — Sim. — Então, sorri. — Eu caso. c aso.
Pouco antes do sol levantar-se, as carruagens já estavam prontas do lado de fora para a nossa partida. Eu estava tão ansiosa que mal havia dormido; não via a hora de sair daquele castelo. Mas também precisava colocar a culpa da minha insônia na conversa que tive com Theon na madrugada. Eu mal podia esperar para chegar em casa e resolver o que faltava para a oficialização do noivado. Olhei para a janela por um momento antes de, finalmente, deixar o quarto com as malas. Apesar de tudo, sentiria falta daquela vista extensa e da sensação da brisa gelada contra a minha pele. — Está tudo pronto, senhorita. — Allegra disse, tirando a minha atenção do lado de fora. Ela pegou a sua pequena mala e deixou o quarto depois que eu assenti. Segui ela e os dois homens que carregavam as minhas malas. Já estávamos próximos ao salão principal quando uma porta larga se abriu no corredor. Nosso olhar se encontrou assim que Sarkian passou pela porta. Eu realmente achei que não teria que ver seu rosto novamente
antes de ir embora. Estava contando com isso.
Todos nós — eu, Allegra e os dois homens que carregavam as minhas malas — paramos instantemente para fazer a reverência. Eu, é claro, hesitei por um momento a mais. Era inevitável. Toda vez que eu o reverenciava, algo dentro de mim morria um pouquinho. No fundo, antes que a porta se fechasse atrás dele, consegui ver uma longa mesa repleta de homens, na qual parecia acontecer uma reunião. O Rei Zagreus estava na ponta, observando as costas do filho, e ele não parecia feliz. Eu mantive meus olhos longe de Sarkian quando fiz a reverência, torcendo para que aquilo fosse breve. Mas era claro que ele não deixaria que fosse tão simples assim. Ele lançou um olhar para as malas. — Parece que nosso tempo juntos terminou, farren. Seu rosto estava neutro, mas havia o familiar tom de crueldade em sua voz. Ele dispensou Allegra com um olhar. Achei que a pobre garota fosse chorar diante da ordem silenciosa. s ilenciosa. — Imagino que esteja tão devastado quanto eu — disse, assim
que ficamos a sós.
Sarkian não respondeu, ao invés disso, deu dois passos em minha direção. — Caso haja uma próxima visita, fique sabendo que sua estadia não será tão agradável quanto esta. — A ameaça soou quase doce deixando seus lábios cruéis. Aquela era a sua maneira nada sutil de dizer que eu não deveria voltar. Forcei um sorriso. — Obrigada, mas não pretendo voltar. Ele entortou a cabeça sutilmente, fazendo-a pender um pouco para a direita ao passo que me fitava. — Talvez, você não seja tão estúpida, afinal de contas. Torci para que aquela fosse a minha deixa, mas, ao invés de se afastar, afastar, seus olhos caíram para minha mão. Para o anel . O experimentei na noite anterior e o tamanho havia ficado perfeito. Havíamos combinado de que eu tiraria e o devolveria na carruagem, antes de chegar em Umbra. Afinal, não era oficial ainda,
pelo menos não até nossos pais conversarem.
Sarkian fez uma pausa, encarando a joia em meu dedo. Seu rosto permaneceu o mesmo, até que ele ergueu o olhar. Havia uma faísca de divertimento em seus olhos, como se ele tivesse ciente de uma piada da qual eu não fazia parte. — Parabéns. — Sarkian inclinou o rosto e colocou a boca na lateral da minha cabeça, próximo ao meu ouvido. As palavras murmuradas deixaram a sua boca como uma sentença. — Desejo ao novo casal uma longa e miserável união. Com isso, ele, finalmente, se distanciou. Entrei na carruagem depois de sair daquele maldito castelo. Assim que ela começou a se movimentar movimentar,, nos distanciando dali, consegui respirar direito pela primeira vez em três dias.
Na manhã seguinte em que cheguei da viagem, acordei com a notícia de que meu pai havia aprovado o casamento. O que não foi uma surpresa, mas ainda assim, tomei a notícia com um delicioso alívio. Ele me chamou até a sua sala e anunciou o casamento. Seu rosto era contido e sério ao dar a notícia, como sempre. Ele não me
perguntou como eu me sentia ou se era aquilo que era o que eu
desejava, o que também não foi uma surpresa. Apenas me comunicou que ocorreria a cerimônia e deixou claro em como aquela união era extremamente benéfica para mim. As suas exatas palavras foram: foram: “É uma ótima notícia. Não poderíamos conseguir uma união melhor. Espero que saiba dar valor para este fato. Você será uma condessa, eventualmente.”
A minha madrasta, no entanto, tinha muito mais a dizer em relação ao noivado. — Como fez? — Ela perguntou ao entrar no meu quarto pouco depois que saí do escritório do meu pai. Ergui meu olhar da mensagem que escrevia para Rafe. — Como fiz o quê? — Para que se casasse com você. Ela não estava contente, aquilo era muito claro. Nusa sempre quis que eu me casasse e desse o fora de sua casa, mas me casar com Theon me faria uma condessa um dia. Eu seria melhor que ela. E isso estava matando-a.
Eu sorri.
— Talvez, ele simplesmente goste de mim. Ela sorriu também, mas o sorriso não atingiu os olhos. Seu semblante era amargo. — Talvez, eu tenha a subestimado. Deve ter algum talento para tê-lo convencido. — Ela me encarou de forma venenosa. — Foi assim que convenceu meu pai a se casar com você? Foi como se eu tivesse lhe dado um tapa. — Seu pai se interessou por mim no minuto em que me viu. — Ela cuspiu com raiva. — A promiscuidade deve ter sido herdada de sua mãe, eu presumo. Larguei a pena e girei na cadeira. Quando queria me atingir, ela mencionava a minha mãe. E funcionava toda maldita vez. Raiva rompeu. Eu me levantei e dei alguns passos até estar diante dela. — Eu tomaria mais cuidado com como fala comigo daqui para frente. Está falando com uma futura condessa. Ela rangeu os dentes dentro da boca e, então, engoliu em seco.
Era delicioso ver a raiva e a angústia em seu olhar. Ela queria me bater. Sabia que sua mão estava coçando para me estapear, como ela já havia feito algumas vezes. Mas ela não era estúpida. As coisas haviam mudado. — Garota insolente. Nusa se virou e, quando estava prestes a atravessar a porta, eu falei: — E se meu pai já se interessou por uma mulher na vida, foi pela minha mãe. Eu não sabia se aquilo era verdade. Acho que eu gostaria que fosse. Mas, acima de tudo, eu queria atingir Nusa. Ela não me fitou ao deixar o quarto, mas senti a sua postura tensionar.
— Você está viva… e bem. — Rafe declarou, em um misto de surpresa e estranha frustração assim que colocou os pés dentro do meu quarto. Me levantei da cama.
— Por que não estaria?
Rafe fechou a janela atrás dele com a respiração acelerada por causa do esforço. — Imaginei que só poderia estar morta, ou quase, para me fazer vir até aqui a essa hora e escalar até a sua janela. Você sabe que mora no segundo andar, não é? E que não sou muito atléti… — Tenho uma notícia — interrompi. Estava extremamente ansiosa para compartilhar com ele. — Que precisava ser dada pessoalmente? E a essa hora da… — Estou noiva! Rafe foi a primeira pessoa em quem pensei quando Theon me pediu. Meu amigo piscou. Ainda parecia um pouco afoito pela escalada. — Quê? De quem? — De quem você acha, imbecil? Rafe assentiu quando finalmente se tocou. — Ah, Theon.
Analisei sua expressão expressão por um momento. — Você parece surpreso.
— Estou surpreso. — Por quê? — indaguei. — Não achou que ele iria pedir alguém como eu para se casar? Minha voz saiu mais ressentida do que pretendia. — Não, não é isso… — Meu amigo se aproximou. Porque
era
isso
o
que
todos
estavam
pensando,
aparentemente. — Cera, você é… — ele balançou a cabeça e colocou as mãos na cintura — você é a garota mais incrível que eu conheço. — Você não conhece muitas garotas — rebati. — Pare de menosprezar meu elogio. Sabe que estou falando sério. Você é bonita, inteligente, engraçada — de um jeito meio estranho — e tem um ótimo gosto para amigos. — Eu só tenho você de amigo. Ele assentiu antes de se jogar de costas na minha cama. — Exatamente. Eu não consegui evitar de sorrir.
Rafe olhou para mim fixamente. — É sério. Ele é o sortudo. Não você.
Gostaria de acreditar nisso, mas eu não era ingênua. Um título era tudo o que importava, e Theon o tinha. Eu, não. Mas amava que Rafe realmente acreditava no que dizia. Me juntei a ele, me deitando ao seu lado. — Você está feliz? — Ele perguntou. — Não achei que quisesse tanto se casar. — Não quero. Bem, não queria. Mas — suspirei —, sabemos que teria que acontecer, não há como fugir disso. E Theon é uma opção melhor do que eu poderia pedir. — Se ele te machucar, eu o mato. Eu sorri. Rafe era a pessoa mais pacífica e tolerante que eu conhecia. Era uma das várias coisas que eu amava sobre ele. — Não vai. Você não machucaria nem uma mosca. Ele se virou para mim. — Se essa mosca encostasse um dedo em você, sim. Eu a mataria lenta e dolorosamente. — Claro.
Ele suspirou e ficou de lado, apoiando o cotovelo no colchão ao me fitar. — Como foi a viagem? — Foi — pausei porque Sarkian Varant foi a primeira coisa que apareceu em minha mente — terrível. Rafe franziu o cenho. — Você ficou noiva. Como pode ter sido ruim? Suspirei de novo, encarando o teto. — O príncipe. — Foi tudo o que eu disse. — Sarkian? Assenti. — Ele é mesmo tudo o que dizem? — Pior. — Lhe lancei um olhar sincero. — Ele é a pior pessoa que já conheci na vida. — Isso vindo de alguém que tem Nusa como sua madrasta. — Exatamente. — O que ele fez? — A voz de Rafe, de repente, parecia tensa.
Sentia vergonha demais em dizer. Talvez, um dia, eu contasse a ele. Mas não naquele momento. Não queria deixá-lo preocupado
de qualquer forma. Sarkian não havia me machucado, pelo menos, nada além das marcas ao redor dos meus punhos. — Ele roubou o colar da minha mãe — respondi, o que não deixava de ser uma verdade. — Como assim? Por quê? — Basicamente, eu perdi o maldito colar e ele o encontrou. Mas não quis me devolver. Meu amigo piscou. — Você pediu de volta? — Claro. Cheguei a implorar — respondi, com certa vergonha. — Por que ele faria isso? Ele não é a porra de um príncipe? Ele não tem joias o suficiente? — É exatamente por isso que ele o fez. Porque ele é um maldito príncipe. Ele pode. Simples assim. — Sinto muito. Sei como aquele colar é importante para você. Era.
Fechei os olhos por um momento e a imagem de Despinna com o colar brilhando em seu pescoço pálido me atingiu com força.
— Queria estar lá.
Olhei para meu amigo. — Iria matá-lo também? Ele sorriu. — Lenta e dolorosamente.
11
Eu estava nervosa no dia do meu casamento, era claro. O conhecia há menos de quatro meses. Mas, a maioria das garotas na minha posição nem ao mesmo suportava seus maridos, quem diria gostar deles. Então, apesar de tudo, sabia que estava em um lugar de privilégio. Me casei em uma tarde ensolarada usando um longo e brilhante vestido dourado. Havia cerca de 500 pessoas no extenso salão matrimonial. Todas muito bem relacionadas, claro. Até a princesa compareceu, representado a família, o que foi uma grande honra. Mas, afinal, o próximo Conde Bauer estava se casando com a filha rica de um comerciante rico. Já era esperado certo prestígio. — Não acredito que você realmente está se casando. — Rafe disse pouco antes da minha entrada.
As criadas estavam ajeitando os últimos detalhes do meu cabelo e vestido enquanto escutávamos a sinfonia romântica
tocando no salão. — Sabíamos que isso aconteceria eventualmente — murmurei, me encarando no espelho. O vestido estava meio apertado, mesmo depois de eu ter perdido cerca de três quilos no último mês. Os comentários de minha madrasta sobre a minha aparência ficaram mais sutis, porém, mais constantes ao longo das últimas semanas. Não queria estar fora dos padrões no dia do meu casamento. Mas, ossos que antes não apareciam, agora saltavam sutilmente da minha pele. Eu não lembrava da última vez que tive uma refeição completa e satisfatória. Eu estava cansada e faminta. — É, acho que estava em negação. O fitei. — Eu também. — Estou feliz por você. — Não parece. Rafe suspirou. — Estou mesmo — ele fez uma pequena pausa —, mas estou
um pouco triste por mim.
— Por quê? Ele deu de ombros e desviou o olhar. — As coisas vão mudar. Você vai estar muito ocupada com seu novo marido. — Assim como você está sempre ocupado com Vesper — alfinetei. — Pelo menos, Theon não é um babaca. Seu rosto se contorceu em uma expressão de dúvida. — Não tenho certeza se gosto dele. — Meu amigo admitiu, e então completou quando lhe lancei um olhar: — Ainda. — Foi tudo muito rápido. Vocês vão se conhecer melhor. E vai ser melhor assim. Serei uma mulher casada, você vai poder me visitar a hora que quiser. — Eu sei. — Nada vai mudar. Pelo menos, não para pior. — Olhei para ele. — Eu te amo. Rafe foi a única pessoa, desde a minha mãe, para quem pronunciei aquelas três pequenas e poderosas palavras. Ele me observou por um momento, seu rosto era sério e um
tanto melancólico.
— Eu também. E, talvez, eu esteja com um pouco de ciúmes por não ser o único homem que você ama mais. — Eu não o amo. — Fui rápida em dizer. — Ainda. Fiquei de frente para ele. As garotas tinham terminado de ajeitar meu cabelo e logo eu precisaria entrar entrar.. Minhas mãos tremiam de ansiedade e a única coisa que me passava qualquer tipo de calmaria e familiaridade era Rafe. — E jamais vou amá-lo dessa forma — confessei, fitando-o, e completei: — Ou qualquer outra pessoa. A cerimônia levou cerca de quatro horas. Repetimos as palavras do cerimonialista. Eu lhe jurei obediência. Ele me jurou proteção. Quando saímos, oficialmente casados, o sol estava se pondo. Ao entrar na carruagem, a onda de adrenalina ainda se apossava do meu corpo, mas não como antes. Eu havia bebido algumas taças de vinho e me sentia mais relaxada. Afinal, já tinha acabado. Agora era apenas eu e Theon.
Ele estava muito bonito em seu terno detalhado de dourado.
Ao contrário de mim, mim, Theon não p pareceu areceu nervoso em mome momento nto algum. Inclusive, parecia muito seguro e satisfeito durante toda a cerimônia. Agora ele tinha os olhos sonolentos. Acredito que era devido ao vinho; ele havia bebido bem mais que eu. E eu mesma me sentia um pouco pesada. — Veja o que eu achei no buffet. O mostrei, assim que finalmente ficamos a sós. Durante toda a cerimônia ficamos cercados de pessoas e olhares. Não houve muito romantismo ou um momento íntimo. Mas guardei o doce em um guardanapo assim que o vi. Theon olhou para a minha mão. Ele hesitou, parecia mais confuso do que qualquer outra coisa. Não era a reação que eu esperava. — O doce de menta. O melhor doce de todos os tempos, de acordo com você. — Abri um pequeno sorriso. — E que eu quase cuspi no dia em que nos conhecemos. Trouxe para você. Theon piscou.
— Ah. Sim, claro. — Ele assentiu e se remexeu no banco. — Estou com muito sono, vou tirar um cochilo até lá.
Não respondi e acredito que ele não esperava que eu dissesse nada porque virou o rosto, desviando sua atenção de mim. A adrenalina, de repente, pareceu menor, dando lugar a outro sentimento. Algo distante, mas incômodo, que eu não sabia dizer exatamente o que era. Só sabia que não era nada bom.
A casa era grande assim como a da minha família, porém, mais envelhecida e um pouco mais tradicional. Provavelmente, foi a casa de muitos condes antes de ser do pai de Theon. Mas não consegui reparar demais na minha nova moradia porque meu coração batia rápido de nervosismo. Estávamos no quarto. A sós. Theon parou em frente à cama e começou a desabotoar a camisa. Eu cruzei os braços porque não fazia ideia do que fazer com eles. Ele fixou o olhar em mim, e o desceu pelo meu corpo. — Venha aqui — pediu, com a voz baixa.
Eu me aproximei lentamente. Já tinha ouvido falar que aquela era uma experiência ruim para muitas mulheres, algumas até a
temiam. Mas eu não tinha medo. Gostava de Theon e de como o meu corpo reagia a ele. Só não sabia o que fazer. E eu odiava não saber o que fazer. — Você sabe como funciona? Sua madrasta conversou com você? — Ele questionou. — Sim — menti, tecnicamente. Minha madrasta não tinha conversado comigo, mas eu já tinha o conhecimento básico. — Que bom. Theon ficou sem a camisa e eu notei, pela primeira vez, a pele bronzeada e os músculos sutis de seu torso. Quis tocá-lo, mas, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele pediu para que eu me virasse. Ele desabotoou o meu vestido com certa agilidade, mas menos delicadeza comparada a como a minha criada fazia. Meu coração batia tão rápido que eu o ouvia no silêncio do quarto. Theon abaixou o meu vestido e eu senti o frio na pele exposta.
Levei as minhas mãos até o meu corpo, instintivamente tentando me cobrir.
Nunca nenhum homem havia me visto nua. Sua mão foi até a lateral do meu braço e ele girou o meu corpo até que estivéssemos de frente um para o outro. Seus olhos descerem, me observando atentamente e eu me remexi desconfortavelmente. Ele não disse nada, mas, pelo seu rosto, pareceu satisfeito. Ou, pelo menos, não parecia desapontado ou frustrado. — Sua vez. — Eu disse, lançando um olhar para o resto da sua roupa. Assim que tirou as calças, ele me empurrou para a grande cama. Ele me beijou e seu hálito tinha um forte gosto de álcool, mas não me importei. Gostei da sensação de pele contra pele, do seu s eu corpo nu conta o meu. Mas não consegui aproveitar muito aquela sensação. Tudo aconteceu muito rápido. Depois de um par de beijos no meu pescoço e seios, ele afastou as minhas pernas com o joelho. Theon estava dentro de mim com apenas um movimento. Ele deve ter notado a dor em meu olhar, porque disse entre
suspiros: — É normal. Depois fica melhor.
Eu inspirei fundo, segurando suas costas com força. — Tudo bem. A dor não durou muito tempo. Depois de algumas estocadas, ele deixou seu peso cair sobre mim. Eu suspirei, aliviada, enquanto observava o teto e esperava. Theon finalmente se retirou de dentro de mim e rolou para o outro lado da cama. Observei o seu perfil, parecia cansado. — Isso foi ótimo. — Ele murmurou, com os olhos quase fechados. Eu não sabia o que dizer, então levei a minha mão até onde sentia a umidade. Eu estava suja. s uja. Havia sangue. Meu sangue. Me levantei para me limpar. E, quando voltei do banheiro, Theon parecia já estar dormindo. Seus olhos estavam fechados e sua respiração pesada. Não pude evitar a decepção que se instalou. Pensei que iríamos conversar um pouco, falar sobre o dia que tivemos. Nada daquela noite estava sendo como eu esperava. Mas,
talvez, isso fosse um problema meu, havia criado muitas expectativas. Expectativas irreais.
No final das contas, deveria estar agradecida por não ter sido tão ruim quanto algumas mulheres diziam ser. Me deitei, abraçando meu próprio corpo debaixo das cobertas. Assim que fechei meus olhos, a compreensão do que poderia acontecer em seguida me bateu. Eu poderia estar grávida agora. Fiquei tanto tempo tão focada em me casar e sair da casa do meu pai, que não pensei muito sobre o que viria em seguida. Era claro que eu sabia que eventualmente teria filhos, mas o eventualmente ainda me parecia muito distante. Aconteceu que ele havia chegado. E eu não estava preparada. Passei a mão na minha barriga lisa e torci para que ficasse assim por um longo tempo.
12
Despertei com o movimento suave do colchão. Me deparei com as costas nuas de Theon se levantando da cama. Meus olhos estavam pesados, demorei muito para dormir. Acho que só consegui entrar em sono profundo quando o sol já estava nascendo. Estava prestes a dizer algo como “bom-dia” quando notei que não estávamos sozinhos. Levei um susto ao me deparar com a mulher diante da nossa cama. Uma senhora de, talvez, cinquenta anos, miúda. Seus olhos estavam fixos em mim. Olhei para Theon, que esfregava o rosto e, então, voltei a olhar para ela. — Bom… dia — murmurei com a voz rouca, porque não sabia mais o que dizer.
Ela me cedeu um pequeno aceno.
— Esta é a Alba. — Theon se virou para mim. — Ela vai te mostrar a casa e como as coisas funcionam. Eu assenti e ele se virou para ir em direção ao banheiro. Voltei a olhar para a senhora, que continuava lá, me encarando. Como se estivesse me esperando. Pensei que ficaria mais um tempo na cama, mas, aparentemente, não era o que haviam planejado para mim. — Eu só vou me vestir — disse, tirando as cobertas de cima de mim. — Um momento. Ela assentiu e, por fim, deixou nossos aposentos. Quando terminei de colocar um simples, porém, bonito vestido de verão, Theon apareceu novamente no quarto. Ele já estava completamente vestido e andava em direção à porta do quarto. — Já está saindo? — indaguei. — Sim, vou trabalhar. — Ele ajeitou o casaco e me lançou um olhar.. — Alba vai servir o seu café da manhã. olhar Cheguei a abrir a boca para responder, mas ele já estava muito próximo da porta.
Engoli o indício de um caroço na minha garganta e calcei os meus sapatos antes de sair.
Alba me esperava do lado lado de fora, as mãos cruzadas atrás atrás das costas e a coluna perfeitamente ereta. — Pronto. Por onde iremos começar? — Pelos quartos. Ela me mostrou tudo em completo silêncio. Em momento nenhum deu algum sorriso, ou, até mesmo, a sugestão de um. Não levei para o lado pessoal, afinal, governantas costumavam ser severas. E eu era a sua nova senhora. Uma completa intrusa. Teria que conquistá-los. A casa em si era bonita, bonita, mas antiga. Gra Grande, nde, mas não eno enorme. rme. Para mim e Theon, juntamente dos criados, era do tamanho perfeito. Notei apenas algumas mudanças que poderiam ser feitas. Pequenas reformas que deixariam o lugar mais bonito e agradável. Pintar algumas paredes e trocar alguns móveis antigos que não combinavam com certos cômodos.
Era final da tarde quando fui para a cidade pela primeira vez desde que me casei. Passei o dia todo relendo um dos únicos livros
que encontrei na casa. Já havia explorado todos os cômodos também.
Theon havia saído cedo e eu não fazia ideia de que horas voltaria. Pensei que, talvez, pudesse morrer de tédio. Escrevi para Rafe, marcando de encontra-lo na cidade. Ele me levaria alguns livros e conversaríamos pessoalmente pela primeira vez desde o casamento. Eu estava animada. Desci da carruagem e esperei perto de uma loja de vestidos, observando os panos de cores vibrantes pela vitrine. Naquela temporada, a moda em Umbra era um tom de azul terrível. Escutei meu nome e me virei para encontrar Rafe acenando do outro lado da rua. Mas, assim que dei um passo em sua direção, algo bateu contra mim. Ou melhor, alguém. A pressão me jogou para o lado e, por pouco, não perdi o equilíbrio e caí no chão. Pisquei para a garota ofegante que colidiu contra mim. Foi tudo muito rápido. Talvez, um segundo em que ela parou, recuperando também seu equilíbrio, olhamos uma para outra. Nossos rostos estavam a poucos centímetros de distância. Seu cabelo loiro, quase branco e curto, estava colado contra a testa suada. Sua boca entreaberta e
os olhos um tanto arregalados. Mas não foi isso que me chamou atenção.
Foi o líquido que escorria de um corte em sua bochecha. Dava para ver a linha perfeita do machucado. E, em qualquer ocasião, aquilo não seria impactante de forma alguma. Afinal, as pessoas se machucavam e sangravam. Mas aquilo não poderia ser sangue. Não poderia ser porque não era vermelho. Era negro. Eu paralisei, e aquele segundo pareceu durar uma eternizada, até que ela recuperou o equilíbrio e correu. Observei a sua figura pequena, porém ágil, sumir entre a multidão. Pisquei na direção em que ela havia desaparecido, ainda sem conseguir me mover. Negro. Negro como a noite.
Não poderia ser. Eles não existiam. E se existiram, haviam sido extintos centenas de anos atrás. — Ei, tudo bem? — Rafe perguntou. — Aquela garota quase te
derrubou. Por que raios ela estava correndo tanto assim?
Ele tocou no meu braço. — Tudo bem, Cera? Você tá meio branca. Ela te machucou? Balancei a cabeça, fixando o meu olhar no seu. — Não. Só… — passei a mão no meu ccabelo, abelo, me recuperando dos últimos segundos — fui pega de surpresa. Eu poderia ter visto errado. Afinal de contas, foi rápido demais. — Como está a vida de casa… — Você acredita nos caídos? — Você quer dizer, que um dia eles existiram? Assenti. — Hum… não. Acho que são só lendas. Histórias que contam para assustar crianças pequenas. — Por que estão em tantos livros, então? E por que tanta gente acredita? — Porque as pessoas gostam de lendas. De fantasiar. — Rafe se virou para mim. — Você acredita que eles existiram? — Não sei. Talvez.
Ele pareceu surpreso com a minha declaração.
— Se algo como Deuses existem, seres tão superiores e cheio de poderes, por que não os caídos? Seriam como Deuses, só que da Terra. Acho que é justamente por isso que o reino não quer que acreditemos. Porque não gostam da ideia de ter alguém praticamente tão poderoso quanto um Deus entre nós. Rafe ficou em silêncio por um momento. — Por que está perguntando isso? Por que está tão interessada nos caídos, de repente? Pensei em dizer que era apenas curiosidade. Mas eu não gostava de mentir para Rafe. Lhe contei sobre a garota. Ele me encarou com certa diversão. — Você não deve ter visto o que pensa que viu. Foi rápido demais, como você mesma disse. Paramos em uma livraria naquela tarde. Esperei na porta enquanto Rafe entrou para comprar o livro que havia pedido, já que mulheres eram proibidas de entrar. Ele me entregou o pequeno encadernado de couro que continha o nome “Lendas e Misticismos” grafado na capa. Assim que cheguei em casa, com o sol já se
pondo, abri o livro. E depois de poucas dezenas de páginas, confirmei o que temia.
Eles não sangravam como nós. A cor vermelha vibrante. A grande e principal característica deles era o fato de que sangravam negro.
Allegra colocou uma toalha ao lado da banheira e se levantou para sair. — Pode ficar? Ela parou, se virando para mim. Parecia surpresa, mas se sentou ao lado da banheira. Eu costumava gostar de tomar os meus banhos sozinha. Havia trazido Allegra comigo. Foi o único pedido que fiz ao meu pai antes de sair de casa, quase como um presente de casamento. Ele nem hesitou. Estava tão satisfeito com sua futura filha condessa que duvidava que hesitaria em me dar qualquer coisa que fosse. Minha madrasta devia estar furiosa. Só não tanto quanto meu irmão. Allegra sorria agora. Nunca tinha visto ela sorrir na casa do
meu pai. Nos últimos meses, uma vez ou outra, havia a pegado cantarolando enquanto trabalhava.
Movi as mãos pela água quente, ouvindo o barulho sutil e calmo ecoar pelo banheiro. — Eles não gostam de mim — murmurei depois de vários segundos em silêncio. — Quem, senhora? Allegra me chamava de senhora agora, não senhorita. Era engraçado, mas meio estranho ainda. Não me sentia uma senhora, muito menos uma futura condessa. — Os criados. Ela não respondeu de imediato. — Tenho certeza de que está equivocada — disse, finalmente. Ela estava tentando ser gentil, me agradar. Basicamente, fazer o trabalho dela. Mas haviam se passado meses que estávamos ali e a verdade era um tanto óbvia. Levantei meu olhar para encará-la. — Não estou, e você sabe disso. Allegra desviou o olhar e ficou em silêncio por um momento.
Encarou as saias de seu vestido cor de creme e suspirou suavemente.
— Se serve de consolo, também não gostam muito de mim. Franzi o cenho. — Eles fizeram alguma coisa com você? T Te e trataram mal? De certa forma, eu entendia a hostilidade em relação a mim. Eu era sua nova “senhora”, tradicionalmente alguém de fora que chegou para mudar e comandar as coisas. Mas Allegra era só mais uma criada fazendo seu trabalho, como eles. — Nada demais. — Ela deu de ombros. — Só recebo as menores porções nas refeições e falam comigo de forma um pouco mais hostil. Aquilo me incomodou. Talvez, até mais do que com a forma que me tratavam ali. Observei seu pequeno e delicado rosto, mas não encontrei nenhum indício de chateação. — Você não parece se importar. — Não me importo. importo. — Al Allegra legra confessou. — A maior par parte te do meu trabalho é cuidar de você, o que, honestamente, é bem melhor do que trabalhar na cozinha ou na limpeza da casa. Além do mais, eu… — ela fez uma pausa e desviou o olhar de novo — gosto muito
daqui, senhora.
É claro que ela gostava mais daqui. Qualquer coisa seria melhor do que a sua situação na casa do meu pai. — Obrigada por me trazer. Engoli em seco ao observá-la. Ela não me encarava e seu rosto estava de um leve tom de vermelho. — Não precisa me agradecer. — Eu me ajeitei na banheira, desconfortável. — Além do mais, você está fazendo um excelente trabalho. O comentário a fez voltar o olhar para mim e abrir um tímido sorriso. Estava me erguendo para deixar a banheira quando Allegra, de repente, falou: — Alba cuspiu no seu suco naquele dia em que você falou sobre o modo com o qual estavam limpando os copos. Eu parei no meio do movimento, com as mãos segurando as laterais da banheira. Pisquei e abri a boca, mas não sabia o que dizer.. Eu não devia estar surpresa, mas estava. dizer — Não se preocupe, joguei no vaso de plantas do corredor
antes de entregar a você. — Ela adiantou, e parecia envergonhada. — Depois, peguei outro.
Inspirei fundo, finalmente me levantando. Pensei no rosto enrugado de Alba e a raiva atravessou o meu corpo. Eu não havia feito nada para a maldita mulher. O que mais ela teria feito? Quantos sucos Allegra não pôde salvar? Ou pior… — Desculpe por não ter contado antes. — Allegra interrompeu meus pensamentos. Ela ergueu uma toalha para mim. — Eu fiquei… — Não se preocupe. E obrigada pelo... o que fez. Me enrolei na toalha e saí da banheira. Quando atravessei a porta para meu quarto, já sabia que as coisas teriam de mudar. Bancar a boazinha, claramente, não estava funcionando.
13
Havia quase duas semanas em que não via Theon. Eu não fazia ideia do que estava fazendo, ou, sequer, de onde estava. Ele só havia me comunicado que ficaria alguns dias fora da cidade a trabalho. Ele já tinha ficado alguns dias fora desde o nosso casamento, há quatro meses, mas nunca tanto tempo assim. Eu estava irritada, entediada e frustrada. Meus dias se resumiam a acordar quase durante a tarde, reler os poucos livros os quais eu tinha acesso na casa e evitar cruzar caminho com Alba, para não me estressar. Havia parado de tentar ser legal com ela, e dizia apenas o estritamente necessário. Sem Theon aqui, a mesa de jantar mal era colocada pelos
criados. A comida era sopa praticamente todos os dias e eu me alimentava sozinha na longa mesa da sala. Meu único momento
genuíno de alegria era quando Rafe me visitava. O que, felizmente, ele fazia com frequência. Mas não com a frequência que eu gostaria. Se não fosse completamente fora das normas, eu o convidaria para morar comigo. — Você parece distante. — E você parece bêbado — disparei de volta. Ele olhou para a sua taça de vinho. Era a sua segunda desde que havia chegado na minha casa, mas ele já tinha tomado algumas antes de vir. Eu suspeitava mais de três. — Estou sofrendo — declarou de forma um tanto dramática. Ergui as sobrancelhas s obrancelhas sutilmente. — Por quê? — Mas antes que ele pudesse responder, emendei: — O que ele fez? Rafe suspirou em um misto de frustação e cansaço. — É complicado. — Então, me explique. Geralmente, consigo pegar as coisas rapidamente.
Ele deu mais um gole no vinho. Longo e lento. Quando, finalmente, olhou para mim, disse:
— Eu o amo. — Eu sei. E é uma tragédia, mas achei que isso já tivesse sido bem estabelecido. — Sim, é só que… — Ele não te ama de volta? — questionei, confusa. Porque aquilo não fazia sentido. Não pela forma com que Vesper olhava para ele. Rafe balançou a cabeça. — Não, ele ama. Mas… ele não gosta de como as coisas estão. — E como as coisas estão? Eu estava começando a me estressar com a forma com a qual ele estava falando. Como se estivesse hesitando em me contar. Escondendo algo de mim.
— Furtivas. Deixei o meu próprio copo de vinho na mesinha de centro. Eu não gostava muito de beber, o meu problema maior sempre foi com
o gosto do vinho. Mas, recentemente, notei que eu estava bebendo com uma frequência surpreendente.
— Mas como as coisas seriam? Ele sabe que não poderia ser de outra forma. Rafe suspirou longamente. — Ele quer fugir. — Fugir? — indaguei, mais alto do que planejava. — Como assim “fugir”? E para onde? — Fugir para algum lugar onde poderíamos ficar juntos. — Para outro reino, você quer dizer? Ele assentiu. — Isso é loucura. — Eu sei. — Você seria deserdado. Seu dinheiro, seu título. — Eu sei. — Você poderia ser… morto. — Você acha que eu não sei disso tudo, Cera? — Não. Acho que não. Porque, se realmente soubesse, não estaria considerando essa ideia estúpida.
— Quem disse que estou considerando?
— Não está? É claro que estava. Se não estivesse, ele não teria me dito. Seu silêncio o entregou e ele desviou o olhar. Acho que nunca vi seu rosto em uma expressão tão triste. — Você não pode fazer isso. — Eu disse. — Eu sabia que te contar c ontar seria um erro. Ele me pediu para que eu não o fizesse. — Ah, claro que pediu. Aquele imbecil. imbecil.
— Qualquer pessoa sã diria a você o que estou dizendo agora. Sabe disso. — Inspirei fundo. — Só me preocupo com você. — Isso é só sobre mim, então? Com a minha segurança? O encarei, confusa. — Com o que mais seria? — Com o fato de que eu iria embora. E você ficaria sozinha, sem seu único entretenimento semanal. Aquilo foi como um tapa. Sua voz nunca havia soado tão
venenosa.
— Meu único entretenimento semanal? É isso que está resumindo a nossa amizade? Quem te disse isso? O imbecil do Vesper? Ele passou as mãos pelo cabelo, frustrado. — Não, não foi. E não quis dizer isso. É só que… eu só precisava de um pouco de apoio. Parece que o mundo todo está contra nós. E você não tem ideia de como isso é difícil. É verdade, eu não tinha. Mas aquilo não deixava de ser uma loucura. Extremamente perigoso. E eu não podia, ao menos, imaginar perdê-lo. — Eu não vou apoiar um plano que pode acabar com a sua vida. — Não, está certa. — Ele colocou seu copo vazio na mesinha e se levantou. — Eu deveria fazer como você. Me casar com alguém que me desse segurança e que me fizesse completamente infeliz. Eu recuei, surpresa e muito ofendida. Suas palavras perversas me pegaram completamente desprevenida. Rafe era gentil e quase
nunca se irritava daquela forma. Ele nunca tinha me insultado daquele jeito. Com intenção de magoar.
Precisei de alguns segundos para conseguir encontrar as palavras. — Não estou infeliz. Rafe me encarou por mais um momento, o rosto em um misto de mágoa e irritação, mas não disse nada. Era óbvio que não acreditava em mim. Ele se virou para sair, mas, assim que deu seu primeiro passo em direção à porta, Theon apareceu diante de nós. Meu marido parou ao vê-lo na sala de estar. Encarou Rafe por um momento antes de dizer, com o rosto sério: — Boa tarde, Rafe. Meu amigo devolveu o cumprimento seco e, então, se retirou apressadamente, sem ao menos me lançar um último olhar. — Ele de novo? — Theon questionou, assim que ficamos a sós. Ele não gostava de Rafe por alguma razão. Me mantive sentada ao encará-lo. Eu deveria me levantar para
cumprimentá-lo, já que esse era o tipo de decoro esperado quando o marido chegava em casa, mas não o fiz. Primeiramente, porque
não queria, e segundo, porque estava um pouco tonta por conta do vinho. — Ele veio tomar uma taça de vinho comigo antes do jantar. — Ele está vindo aqui todos os dias agora? — Havia clara repressão em seu tom, à medida em que desabotoava o casaco. — Não. Ele vem às terças e sextas, geralmente — hesitei por um momento e peguei a minha taça que estava repousada na mesinha. — Você saberia disso se estivesse aqui. Odiei a forma frustrada com que a minha acusação saiu, mas eu estava irritada. Comigo, com Rafe e com Theon. Eu não queria ser o tipo de esposa que reclamava com o marido sobre seu tempo fora. Estava ciente de que ele trabalhava e que não podia ficar em casa todos os dias. Mas a questão era que ele quase nunca estava. Suas viagens eram cada vez mais longas e, o pior, ele parecia não se importar com isso. Nem meu pai ficava ausente por tanto tempo e seu trabalho exigia muito mais dele. — Adoraria. Mas, então, como manteríamos a vida que temos se eu não trabalhasse? — Ele deu um passo em minha direção e
me encarou de cima. — Seus vestidos, seus luxos. Você acha que esse tipo de coisa cai do céu, querida?
Ele fazia isso com frequência agora, falava comigo como se eu fosse uma criança. Me explicava as coisas como se eu não entendesse. — Luxos? Que tipo de luxos estou exigindo? Era quase engraçado ele mencionar “luxos” quando, na verdade, não havia comprado nenhum vestido ou joia desde que tínhamos nos casado. Depois dos presentes de casamento, a única coisa que ganhei dele foi um par de brincos de rubi que era de sua mãe. Não que eu estivesse reclamando, já que tinha mais do que o suficiente, mas, definitivamente, eu não poderia ser taxada como uma esposa cara. Se fossemos analisar bem, minha vida quando morava com meu pai era mais ostensiva do que atualmente. — Não vou ficar escutando isso. — Ele se virou, ofendido. — Peça a criada para arrumar as suas malas, vamos viajar amanhã cedo. Me levantei do sofá. Um misto de curiosidade e felicidade se apossou do meu corpo. Uma viagem seria perfeito. Não aguentava mais rondar pelos mesmos cômodos.
— Para onde? — indaguei. Ele já estava perto da escada quando respondeu:
— Khrovil. Eu parei. Meus pés fincando no chão de madeira da sala. Sarkian.
O rosto dele inundou a minha mente da mesma forma que fez em meus pesadelos diversas vezes nos últimos meses. — Por quê? Ele parou com a mão no corrimão da escada, parecendo cansado. — É o aniversário de sessenta anos do Rei Zagreus. — E por que precisamos ir? — Me aproximei dele, agitada. — O rei teve outros aniversários antes. Eu sabia que aquilo era algo idiota para se dizer dizer.. O aniversário de 60 anos era um marco importante, e agora que estávamos em paz, não seria incomum sermos convidados para esse tipo de evento. Mas não consegui evitar uma única e última súplica. Era ingênuo da minha parte pensar que eu teria o poder de impedir aquele desastre de acontecer.
Theon parecia irritado em ter de explicar.
— A Família Real não vai poder comparecer, então fomos convocados com alguns outros para representar Umbra. — Ele fez uma pausa, me encarando com mais atenção desta vez. — É uma honra, Cera. Você deveria ficar feliz de estar casada com o tipo de homem que comparece à tais eventos. Meu marido, por fim, se virou e foi em direção às escadas, me deixando na sala terrivelmente silenciosa. E eu não sei o que doeu mais naquele momento: a infeliz e tardia compreensão de que eu havia casado com um homem que não conhecia ou de que, muito em breve, estaria diante de Sarkian Varant mais uma vez. E, em ambas as questões, não havia absolutamente nada que eu pudesse fazer.
Naquela noite depois que seu marido se terminou dentro dela e se virou para dormir a usurpadora encarou o teto e se perguntou como faria para evitar reencontrá-lo Sarkian
Seu nome pulsava de forma incômoda Ela pensou em simplesmente dizer que não queria ir Imaginou que Theon não daria falta dela de qualquer maneira já estavam acostumados a ficarem muito tempo separados devido às suas viagens Mas ele insistiria afinal era seu trabalho como esposa acompanhá-lo naquele tipo de evento
Então ela pensou em fingir doença
Acordar no dia seguinte e falar falar que estava passando muito mal Talvez até fosse para o banheiro e forçaria sons de vômito Ela acreditou que aquilo poderia dar certo apesar de ser suspeito já que ela estava muito bem de saúde quando Theon chegou em casa naquela tarde Mas as doenças podiam chegar de forma surpreendente e arrebatadora às vezes ela se convenceu Assim que ela fechou os olhos teve um pesadelo A máscara negra era tudo o que ela ela podia ver enquanto uma dor afiada a fazia gritar e gritar
mas ninguém a escutava Ninguém poderia salvá-la dele
muito menos ela mesma Mas no dia seguinte assim que abriu os olhos e o marido a perguntou sobre suas malas ela apenas disse está tudo certo.
E de forma quase automática e com as palmas das mãos suando ela entrou na carruagem a caminho c aminho de Khrovil Porque mesmo com o horror e aversão que sentia em relação a ele lá no fundo na pequena parte mais obscura de si algo a atraía até àquela sensação horripilante que sempre a tomava quando estava diante do filho das sombras
14
Não seria tão difícil assim. Eu apenas me manteria longe dele. Apenas o observaria do outro lado do salão lotado, com várias testemunhas por perto. Sarkian não poderia fazer nada. Foi isso o que repeti em minha cabeça diversas vezes durante o percurso de dois dias até Khrovil. Mas era claro que não foi isso o que ocorreu. Faltando alguns minutos para a festa começar, eu estava à procura de Theon — que havia deixado o quarto em que estávamos pouco antes de mim. — Bem que eu estava sentindo um cheiro desagradável. A voz grave me fez congelar no meio do corredor. corredor. E eu não precisava nem me virar para saber a quem ela pertencia.
Girei devagar, meu corpo resistindo, como se ainda não fosse tarde demais para evitar aquele encontro.
O avistei parado a cerca de três metros de mim. Eu fiz uma reverência dolorosa. Ele girou o cigarro nos lábios ao passo que me fitava. — Você está ficando muito boa nisso. — Fico muito contente por impressionar. Ele fez um breve movimento com a cabeça e tirou o cigarro da boca logo depois de sugar. — Impressionante mesmo é você estar aqui. — A fumaça saiu junto com as suas palavras. — Você se esqueceu do que eu te disse caso voltasse ao meu castelo? — Não. Infelizmente, minha memória é espetacular — respondi. — Não estou aqui porque gostaria, pode acreditar. Mas não se preocupe, não planejo ficar muito tempo. Seu olhar desceu até a mão que carregava o meu anel. — Fazendo o trabalho de boa esposa? — Ele se aproximou mais um passo e, com a voz dois tons mais baixo, indagou: — Me diga, o quão miserável já está?
— Não é da sua conta. Ele pareceu satisfeito.
— Foi o que eu imaginei. — A sombra de um sorriso atravessou seu rosto. — Extremamente miserável. — Você deve estar projetando. Não é porque você se sente assim que todos ao seu redor também se sentem da mesma forma. Seus lábios se movimentaram de forma perigosa. Ele sugou no cigarro novamente e, quando voltou a falar, a fumaça acompanhou as suas palavras. — Tome cuidado. Você não quer estar no meu lado ruim hoje. — Algo me diz que já estou. — Cera, estava te procu… Me virei ao ouvir meu nome e encontrei meu marido a alguns metros de nós. Ele tinha acabado de entrar no corredor. Theon parou assim que viu quem estava presente. Seus lábios se abriram em surpresa e ele se aproximou com uma expressão diferente. — Vossa Alteza. — Ele parou ao meu lado e fez uma perfeita — e um tanto demorada — reverência.
Levantei meu olhar para Sarkian, que o encarava com o rosto completamente completam ente neutro.
Meu
marido,
que
sempre
considerei
de
uma
altura
considerável, parado diante de Sarkian era pequeno. Não só pelos dez centímetros ou mais de diferença, mas pela forma que a presença intimidadora de Sarkian se erguia sobre nós. Ele mal se moveu e, ao invés de fazer algum tipo de reconhecimento, até mesmo um aceno, ele se manteve em silêncio. Fitou o meu marido por um momento e, com completa indiferença, voltou o olhar para o meu. Sarkian inspirou o cigarro casualmente uma última vez e se virou, a fumaça o seguindo. — Que escroto. Quem ele acha que é? — Meu marido murmurou assim que Sarkian desapareceu no corredor. — Eu sou o filho de um conde. Ele fez essa afirmação quase para si mesmo. Seu rosto estava vermelho e notei, pela primeira vez, que ele não ficava muito bonito irritado. — Ele é um príncipe. Theon virou o rosto para mim, com seu cenho franzido. — O quê?
— Você perguntou quem ele achava que era — expliquei. — Ele é um príncipe.
Theon ficou em silêncio por um momento. Raiva atravessou seu olhar e, daquela vez, estava direcionada a mim também. — O segundo. — Ele sibilou. — E ele anda por aí como se, um dia, fosse virar rei. Até o irmão dele me cumprimentou como deveria. Ele sim é um príncipe de verdade. Assenti. Não suportava a arrogância de Sarkian. Ou melhor melhor,, não o suportava por completo. Pelo menos, nós podíamos concordar naquilo. Ambos odiávamos Sarkian Varant. Era bom, finalmente, concordar em algo com o meu marido.
O salão estava lotado. Notei pessoas de vários reinos aliados. Reconheci a Rainha de Idrah pelas roupas cheias de estampados feitos à mão muito característicos. Também notei algumas pessoas importantes do Reino Central, o qual comandava indiretamente todos os outros reinados. O reino que mantinha o verdadeiro poder entre as terras e mares. A Família Real de Khrovil, como sempre, estava alguns degraus acima. Sarkian agora usava a sua máscara negra, tornando
impossível tentar ler o que se passava em sua cabeça doentia. Também não conseguia ver o rosto do rei por causa da máscara,
mas, pela forma como levantava sua taça a cada dez minutos, parecia genuinamente feliz naquela ocasião. Havia muita bebida e a noite começou com uma apresentação. A primeira envolvia belas mulheres dançando de forma sensual. Agora, eu sabia que era algo normal para o povo selke, apesar de ainda não estar acostumada com tanta nudez pública. Cresci com um povo que entendia que, quanto mais roupa o indivíduo usava, mais rico e nobre ele era. Despinna era uma das garotas, notei rapidamente. Como sempre, ela surfava pelo piso de forma graciosa. Tentei ignorar a sensação ruim que me causou ao vê-la. Levei a mão direita ao meu colo e a lembrança da perda do colar da minha mãe me atingiu com força. Ela, como sempre, dançava para Sarkian. Não de forma tão óbvia como naquela noite em que roubaram meu colar, mas o suficiente para que eu — e, com certeza, algumas outras pessoas ali — notasse. Sarkian tinha os olhos na apresentação e os dedos cobertos com a luva de couro e anéis tamborilando nos braços do
trono. Estava sentado mais ereto daquela vez, talvez, impaciente. Provavelmente, não via a hora de toda aquela festa acabar para ir
embora. Poderia apostar que havia uma de suas festas no subsolo esperando por ele. A segunda apresentação envolvia fogo. Os dançarinos faziam movimentos ágeis com tochas balançando nas mãos. Seus torsos suavam devido ao calor e o salão todo esquentou assim que a apresentação se iniciou. Fiquei fascinada com o fogo e a forma fácil com que o manuseavam. Era lindo. Quase me esqueci de onde estava, ou da presença ao meu redor. Assim que a apresentaçã apresentação o terminou, os criados começaram a colocar os pratos nas longas mesas. Cheguei a pegar meu garfo para dar a primeira mordida quando, de repente, o salão ficou mais escuro. Olhei para cima, para as tochas próximas ao teto alto que se apagavam, uma atrás da outra e muito rapidamente. Não demorou nem dez segundos para que todo o salão estivesse em um completo breu. A luz da lua que entrava pelas janelas não era suficiente para que pudéssemos enxergar. Primeiro, por talvez um segundo, silêncio instalou-se diante da
surpresa, onde todos pairavam confusos.
— Que porra tá acontecendo? — Ouvi Theon ao meu lado, em um murmúrio. Pensei que podia fazer parte de uma apresentação e estava prestes a dizer isso. Cheguei a abrir a boca para responder, mas, então, ouvi o som das espadas. E, rápido assim, a escuridão e o silêncio tornaram-se puro pânico. No momento em que todos entenderam o que estava acontecendo, os gritos começaram. O som de espadas batendo e objetos quebrando era a trilha sonora daquele caos. Me levantei e alguém esbarrou em mim, quase me derrubando. Pisquei várias vezes, tentando enxergar, pelo menos, o suficiente para correr em direção à saída. Chamei o nome de Theon, mas não ouvi resposta. Os gritos e o som das espadas colidindo eram altos demais. Decidi que a melhor coisa a se fazer era me abrigar debaixo da mesa, assim, evitaria espadas e todas aquelas pessoas correndo às cegas. Mas, antes que eu pudesse me agachar, fui empurrada, aos tropeços,
pela multidão que corria.
Era difícil de respirar. Fui golpeada no ombro e o impacto foi tão grande que quase caí. Imagens
horrorosas
do
meu
corpo
sendo
pisoteado
atravessaram a minha mente. Não caia, Cera. Faça qualquer coisa, mas se mantenha de pé.
Mas então, como uma intervenção divina, a luz voltou, tão rápido quanto tinha ido. Os gritos diminuíram consideravelmente ao passo que todos recebiam a sua visão novamente. Só que o salão no qual eu estava há menos de cinco minutos, não era nada parecido com aquele. Corpos estavam espalhados pelo salão, sangue jorrando deles e manchando o chão de vermelho. Os homens mascarados que sobraram erguiam suas espadas ainda em posição de luta, uns contra os outros. Pisquei, em choque e sem entender.
Os guardas de Khrovil estavam lutando entre si?
Mas não demorou muito para que eu assimilasse. Notei que as pessoas ao redor voltaram o olhar para um mesmo ponto específico. Todos pareceram congelar diante de algo. O som das espadas, aos poucos, se silenciou. Me virei, meus olhos seguindo em direção ao núcleo de petrificação de todos ali: o trono. Perdi o fôlego assim que vi. Sarkian pairava no centro da plataforma. Apenas ele estava de pé. Seu irmão e mãe estavam caídos ao lado de seus respectivos tronos. Sangue escorria de seus corpos. Seu pai, o Rei de Khrovil, estava sentado no trono, com os olhos arregalados e a garganta cortada. Uma espada ensanguentada pendia na mão direita do príncipe. E a outra estava apoiada, quase gentilmente, no ombro do seu pai morto. Sarkian largou a espada, fazendo um barulho que ecoou por todo o salão. E, então, ele tirou a máscara preta do próprio rosto. Seus dedos mancharam a sua bochecha de sangue no processo, a mancha fazendo contraste com a pele muito branca. Observei seu
rosto, com a respiração presa. Acho que ninguém naquele salão era capaz de respirar. A expressão em sua face era neutra, mas havia
um brilho no prata. Um brilho sádico de um homem que havia acabado de matar a família inteira. Uma satisfação violenta de um príncipe que acabara de se tornar rei. Ele largou a máscara com a mesma facilidade que fez com a espada. E, então, olhou para o pai e lhe tirou a máscara do rosto desfalecido. Sarkian olhou para ela apenas por um momento antes de trazê-la até o próprio o rosto. E ela encaixou perfeitamente. A grande máscara preta, adornada em prata e finalizada com chifres assombrosos modelaram seu rosto, deixando apenas o brilho de seus olhos exposto. Sarkian olhou para baixo, para os soldados que ainda pendiam as suas espadas. Aquele era o momento em que decidiriam se o aceitariam como rei, ou morreriam. Aos poucos, os soldados de seu pai que ainda estavam vivos, recolheram as suas espadas e se curvaram diante do novo rei. Eles foram pegos de surpresa, não estavam prontos para um ataque. E, no final das contas, o Rei Zagreus já estava morto. Não havia mais
o porquê de lutar.
Os soldados de Sarkian, ao notar a rendição, finalmente abaixaram as suas armas e fizeram o mesmo. Rápido assim, violento assim, o Príncipe das Trevas se tornou o Rei das Trevas. Ele passou os olhos pelo resto do salão, para os serviçais e nobres ainda petrificados. E, assim que seu olhar parou inevitavelmente em minha direção, roubou todo o ar que tinha em meu corpo. Devido a majestosa máscara, não tinha como saber, de fato, se era a mim que ele observava. Mas eu não tinha dúvidas. Sentia o prata queimando diretamente em mim. E foi aí que entendi. Ele me mataria. Ele mataria todos nós.
Quão decisivo foi aquele momento para a humanidade quando o príncipe das trevas se tornou rei Quantas mortes foram destinadas no segundo em que ele colocou a nova máscara Eu teria muito trabalho pela frente
15
E stou stou me sentindo um merda. Não quis dizer as coisas que disse sobre você. Sabe como é importante para mim e eu, honestamente, não sei o que faria se não a tivesse em minha vida. Te amo e sinto muito.
O bilhete de Rafe me foi entregue assim que cheguei em casa da viagem. Um pequeno papel dobrado duas vezes e fechado com a tinta marcada pelo brasão da sua família. A cozinheira disse que foi deixado horas depois que saí para Khrovil. Mas o dia em que voltamos foi tão intenso e assustador que acabei esquecendo de lhe responder. Então, me sentei na
escrivaninha naquela manhã para fazê-lo. Escrevi na pedra que também sentia muito e lhe pedi para que viesse até a minha casa assim que pudesse. Estava com saudades e precisava contar o que
havia acontecido em Khrovil. Obviamente, Rafe já sabia. Aquele tipo de notícia corria rápido. Todo mundo sabia e todo mundo temia. Mas nem todos viram com seus próprios olhos. Os gritos soando do lado de fora me assustaram. Me levantei da escrivaninha e parei em frente à vidraça da janela. No jardim, próximo ao estábulo, havia um homem grande e parrudo ao lado de um garoto. Ele tinha um chicote nas mãos e o usava contra o garoto magro, que se encontrava de joelhos. O homem gritava coisas ininteligíveis ao passo que o garoto se encolhia, parecendo estar chorando. Meu primeiro impulso foi tentar abrir a janela, mas não consegui abrir a maldita coisa, então, saí do quarto e desci as escadas. — O que está fazendo? — indaguei assim que coloquei os pés para fora da casa e comecei andar rapidamente até eles. O chicote parou erguido no ar e o homem virou o rosto na minha direção. Seu rosto estava molhado de suor e vermelho de uma raiva brutal. Ele fixou os olhos em mim por um longo momento,
me avaliando. A expressão raivosa não deixou seu rosto.
— O que está fazendo? — perguntei novamente, já que ele não havia respondido. Agora, parado em sua frente, o reconheci. Era o criado encarregado de cuidar dos cavalos e do estábulo. — Estou castigando-o por ter deixado um dos cavalos se soltar hoje de manhã. É o cavalo do senhor. — Não me importo. Não justifica chicoteá-lo. Ele piscou e, como se fosse possível, seu rosto ficou ainda mais vermelho. — E como vou castigá-lo, então, senhora? — Ele pronunciou a última palavra com sarcasmo e desprezo. Olhei para baixo, para o garoto que permanecia encolhido. Sua roupa estava suja e molhada de suor. — Não deveria. — Voltei a encará-lo. — É só um menino. — Ele trabalha para mim. É o bastardo do meu sobrinho. Posso fazer o que quiser com ele. A raiva começou a crescer dentro de mim a ponto de eu
acreditar que estava da mesma cor que ele. — Não na minha casa.
Não esperei por uma resposta. — Levante-se — disse ao garoto. Ele me encarou — o rosto sujo — e hesitou por um momento. Olhou para o tio, que o encarava de forma repressiva, muito claramente com o intuito de intimidá-lo ainda mais. — Venha comigo — pedi novamente, mas, daquela vez, mais alto e de forma autoritária. O menino, finalmente, ficou de pé. Era pequeno, não devia ter mais de onze anos. Coloquei a mão no ombro ossudo dele e o guiei para longe. — Ei, não pode fazer isso! Me virei para encarar o homem. Ele torceu os dentes dentro da boca e apertou o chicote com força. Estava louco para usá-lo contra mim, eu sabia disso. Mas não iria. Ele não ousaria machucar a mulher de seu patrão. Uma futura condessa. Possivelmente, perderia a mão por isso. E aquele fato me
enervou.
— E o que você vai fazer? — Olhei para o chicote em sua mão. — Usar isso contra mim? Ele engoliu em seco e, por um momento, achei até que não iria responder, mas então, abriu a boca. — Não deveria se meter em assuntos que não tem conhecimento, senhora. Não sabe como as coisas funcionam por aqui. Sua voz era mais controlada daquela vez, quase como uma ameaça serena. Me virei, sem lhe dar uma resposta, e segui com o garoto para dentro da casa. — Está tudo bem? — indaguei assim que entramos. O menino me encarou com grandes e molhados olhos castanhos, e assentiu. — Me deixe ver as suas costas. Ele hesitou um momento antes de se virar e levantar a camisa surrada. Suas costas não sangravam, mas havia marcas vermelhas
por todo lugar e algumas cicatrizes também. Notei, com pesar, que aquele tipo de castigo acontecia com frequência.
— Pode abaixar — disse baixinho, e ele se virou novamente para me encarar. — Qual é o seu nome? — Milo. — Milo, vou pedir a criada para passar algo nas suas costas, para doer menos. Tudo bem? Ele assentiu. — E o que acha de um suco com torradas? Seus olhos brilharam e eu sorri, por mais que, por dentro, me doesse um pouco notar a tamanha felicidade do menino diante da menção de uma simples refeição. Olhei para a janela, para o homem lá fora. Eu sabia muito bem que o comportamento dele não iria mudar com uma reclamação minha, mas vindo de Theon, seria muito provável que sim. Então, esperei meu marido chegar em casa c asa para ter aquela conversa.
— Ele estava batendo no garoto. Estávamos na sala e havíamos acabado de jantar. Esperei um
tempo para abordar o assunto porque ele me pareceu muito irritado quando chegou, então, sabia que uma reclamação pioraria o seu humor consideravelmente.
— E daí? Franzi o cenho. — O menino não tem nem doze anos. Meu marido pareceu confuso e incomodado. — Ele estava repreendendo-o por ter feito algo errado. — Chicoteando-o? — sibilei. Theon desviou o olhar, indo até a o armário de bebidas. — Não quero que ele trabalhe aqui mais — disse, finalmente. Acho que aquela foi a primeira coisa que pedi desde o casamento. Foi a primeira vez que tive coragem de exigir alguma coisa. Ele olhou para mim de forma surpresa e, então, seu rosto se transformou em uma careta quase entretida. — Não vou demitir Doyel. — Ele declarou ao abrir a garrafa de vinho. — Por quê? — indaguei, me remexendo no sofá. — Podemos
arranjar outro criado para cuidar dos cavalos. Um que não chicoteie crianças.
— Porque ele trabalha para o meu pai desde que eu era pequeno. — Ele falou bem sério daquela vez e, então, fez uma breve pausa ao colocar a bebida no copo. — E essa não é uma decisão sua para tomar. — Mas por que… O barulho da garrafa batendo contra a mesa fez com que eu me calasse. Theon se virou para mim, irritado. — Dentre todos os dias, você tinha que escolher hoje para vir com essas reclamações? Eu só queria chegar em casa, jantar e descansar um pouco depois de um dia de trabalho exaustivo. Seria muito para pedir, Cera? Inspirei fundo. Eu não ganharia aquela discussão naquele momento, aquilo já estava muito claro. Me levantei, me aproximando dele. — Não sabia que estava tendo um dia difícil — disse, com a voz suave, encarando-o fixamente. — Não precisamos demiti-lo.
Mas pode, pelo menos, conversar com ele? Mandar que não o faça novamente?
Theon não respondeu, então aproveitei para suplicar. Como uma idiota. Mas não via outra opção. Pensei no menino, pensei no chicote. E naquele homem nojento. Gostaria de ter o chicote em mãos e ele ajoelhado. — Por favor — pedi suavemente, ficando ainda mais próxima. Theon hesitou por um momento e, então, respirou fundo. — Tudo bem. — Ele passou a mão pelos cabelos com um suspiro dramático. — Vou conversar com ele. — Obrigada. — Suspirei e, então, mudei a direção da conversa. — E o que aconteceu? Por que está tão estressado? — indaguei, tentando soar doce e paciente. Tentando parecer me importar. Ele não respondeu, apenas deu um gole na bebida com o olhar longe do meu. — É algo com o seu s eu pai? Meu marido balançou a cabeça.
— O que é, então? Ele abaixou o copo.
— Estão dizendo que a guerra vai realmente acontecer. — Ele desviou o olhar para a janela. — Sarkian vai atacar. Aquele bastardo sádico. Nos últimos dias, era, basicamente, apenas sobre isso que se falava em Umbra. Todos sabiam da reputação de Sarkian e, agora como rei, todos tinham medo do que ele poderia fazer com todo o poder. E já era sabido que ele não era particularmente afeiçoado com o nosso povo. Eu, mais do que ninguém, sabia disso. Ele nos odiava. Pequena e insignificante insignificante keld.
Era por isso que não fiquei surpresa diante da notícia. No minuto em que o vi parado no centro do trono, com o sangue da família sujando a sua espada, sabia que isso aconteceria. Eu passei todos os dias, desde o ocorrido, pensando no porquê ele havia nos deixado ir. Me deixado ir.
Ele não matou ninguém além dos próprios guardas que foram
contra ele. E foi apenas recentemente que entendi.
Sarkian queria testemunhas. Ele queria que houvesse pessoas para espalhar pelos reinos a fora que, agora, ele era o novo Rei de Khrovil. Essa era a única razão pela qual eu respirava naquele momento. — Tentaram reafirmar o acordo? — indaguei. — O acordo, aparentemente, morreu junto com o antigo rei. Sarkian mandou a cabeça decapitada dos dois negociadores que foram enviados desde a tomada do trono. Uma sensação ruim atravessou meu corpo direto para o meu estômago. — E o grande rei não vai interferir? Todos os reinos respondiam ao grande rei. Caso ele interferisse, a guerra poderia ser impedida. Éramos pequenos reinos em volta do Reino Central, que comandava tudo. Todos nos curvávamos perante a ele. Apesar de sermos independentes de certa forma, o grande rei tinha a maior parte das terras e um
exército inigualável. Sua palavra era sempre a última no final das contas.
— Ele está pouco se importando. Não muda em nada, para ele, essa guerra. — Você acha que temos boas chances de ganhar? Theon colocou mais vinho na taça. — Temos um exército maior. Mas eles têm um exército melhor. Eles começam a ser treinados com oito anos. Alguns chegam a morrer no treinamento, de tão intenso. Observei o rosto do meu marido, que estava conturbado. Eu podia entender, ele tinha muito a perder. Theon era o filho de um conde e, caso perdêssemos, ele não seria apenas rendido, ele seria morto. E eu também. Apesar de que, muitas vezes, no final de guerras, os selke eram conhecidos por fazerem das mulheres nobres, criadas das rainhas vencedores, ou pior, escravas sexuais. Porque era tudo sobre a humilhação. Sobre acabar com qualquer tipo de dignidade humana, até não sobrar mais nada.
Engoli em seco. — Pelo menos, estamos cientes da vontade dele. Não teremos o elemento surpresa em vantagem. Acredito que temos grandes
chances de ganhar — afirmei, mais para mim do que para qualquer outra pessoa. Eu realmente queria acreditar naquilo. Meu marido olhou para a taça de vinho por um tempo e, com um olhar distante — e quase para si mesmo — murmurou: — Aquele demônio quer sangue. O rosto de Sarkian me veio em mente. O prateado me encontrando no meio da multidão desesperada e dos corpos caídos no chão. Um arrepio percorreu o meu corpo. Eu não cheguei a responder, mas, naquilo, concordávamos completamente. Sarkian Varant queria sangue.
E, no fundo, algo me dizia que, dentre a maioria dos keld, ele apreciaria especialmente o meu.
16
—
Com fome?
Coloquei o copo de suco na mesa suja do estábulo e o prato de torradas logo ao lado. Milo se assustou com a minha presença, virando o rosto rapidamente. Ele desceu do banquinho que usava para poder escovar o cavalo, já que o animal era grande demais comparado a ele. — Sim, senhora. — O menino disse finalmente, encarando a comida. Eu sorri. — Então, coma. Me encostei em uma mesa de madeira ao passo que o
observava. Ele bebeu dois terços do copo sem, ao menos, para parar r para respirar.
— Você gosta de cuidar dos cavalos? — perguntei, quando ele abaixou o copo. — Gosto. — Milo deu uma mordida furiosa e, depois de engolir, completou: — Só não gosto da parte da limpeza. — E você faz isso com muita frequência? Ele assentiu com veemência. — Todos os dias, senhora. — E seu tio costuma… te castigar demais? O menino parou de mastigar por um momento e, então, desviou o olhar do meu. Quando engoliu, senti que a comida desceu com dificuldade. — Só quando faço besteira, senhora. Milo encostou as costas na parede e uma careta surgiu em seu rosto delicado e sujo. — Suas costas não melhoraram? Ele não respondeu.
Era para estarem melhores, pelo menos, boas o suficiente para que ele não fizesse aquela careta. — Ele te castigou novamente, não foi?
Me aproximei dele. — Me deixe ver as suas costas. Ele não se moveu. — Milo, você… Ouvi passos se aproximarem e, então, a voz de Allegra: — Senhora. — Agora, não. — Eu disse, ainda encarando o menino fixamente. Ele havia apanhado mais. Aconteceu depois da minha intervenção. Aquele monstro descontou no pobre garoto. Eu deveria ter previsto isso. Eu só tinha piorado as coisas. — Senhora. — Allegra chamou de novo, agora mais alto. Quando levantei o olhar, ela me encarava com os olhos frenéticos e sem fôlego, como se tivesse corrido até ali. No mesmo instante, eu soube que aquilo significava algo ruim.
Muito ruim. — O que houve? Ele inspirou fundo uma vez.
— É o seu amigo, o senhor Rafe. — Ela engoliu em seco em uma pausa que me deixou à beira da loucura. — Ele foi preso.
Depois de um momento longo e entorpecente de choque, eu fui capaz de abrir a boca. — Onde ele está? — Me disseram que foi levado para a contenção. — Qual foi o crime? Algo me dizia que que eu já sabia a resposta daquela pergunta. Mas eu torcia para que estivesse errada. Por favor, Deuses.
— Não sei, senhora. — Onde Theon está? Comecei a andar em direção à casa. — No escritório. — Ela respondeu, me seguindo. Subi as escadas correndo para o segundo andar da casa.
Abri a porta sem me importar em bater bater.. Theon estava sentado na mesa com um papel e caneta de pena nas mãos.
— Cera. — Ele me encarou irritado e surpreso com a interrupção. — Rafe foi preso — declarei em completo pânico. Esperei uma reação, mas ela não veio. — Eu sei. — Sabe? Ele assentiu. — Por que não me contou? — Soube hoje de manhã. Em qualquer outro momento, aquele fato me irritaria. Mas eu estava muito preocupada com Rafe para me importar com o fato de meu marido ter omitido uma informação tão crucial de mim. — Por quê? — indaguei. — O que aconteceu? Meu marido desviou o olhar e, antes de falar, seu maxilar torceu em uma linha dura. — Pecado lascivo.
Senti as minhas pernas fraquejarem. Não.
Minha boca estava seca e a minha cabeça girava. Estava difícil até para falar. — Co… como? Conforme o choque foi passando, a profunda e dolorosa tristeza começou a tomar meu corpo. Meus olhos se encheram de lágrimas. — Não sei dos detalhes. — O que vai acontecer? — perguntei, apesar de já ter uma boa ideia do que ocorria em casos como aquele. — Ele vai ser punido de acordo com a gravidade da ofensa. — Ele vai ser… Executado.
Não consegui proferir a palavra. Theon ficou em silêncio, mas seus olhos confirmavam aquilo que eu não queria ouvir. Não.
Aquilo não podia podia acontecer acontecer.. — O que pode ser feito? Tem que haver um jeito.
— A única chance dele é se seu próprio pai intervir. Ele pode pegar a segunda pena, caso tenha o apelo do pai. Mas duvido que isso aconteça. — Você não pode fazer nada? As lágrimas escorreram. E notei que aquela era a primeira vez em que chorei na frente do meu marido. Ele ficou desconcertado por um momento, mas muito breve. — Ele pecou, Cera. Um pecado… — Theon desviou o olhar com desgosto — imperdoável. Mesmo que pudesse, não o faria. Sei que ele é o seu amigo, mas ele precisa pagar pelo o que fez.
Eles não me receberam. Fui até a casa de Rafe, na esperança de que pudesse conversar com seu pai. O pai de Rafe sempre foi um homem sério, mas bondoso. Um pai descente. Bem melhor do que o meu, pelo menos. Mas nem passei da porta de entrada. A criada me dispensou,
mesmo depois das minhas súplicas s úplicas inúteis. O pânico cresceu ao entender que Rafe não tinha o apoio do pai.
O filho dele estava em perigo de vida. E ele não iria fazer absolutamente nada.
17
Rafe estava algemado. Foi a primeira coisa que eu vi. As algemas. Preso como se fosse um animal. Como se a pessoa mais gentil do mundo fosse capaz de ferir alguém. Seu cabelo sempre bem arrumado e lustroso estava ensebado e bagunçado. Fitava o chão, com as costas curvadas. Havia certas penas que não permitiam visitas, como era o caso de Rafe. Mas eu havia subornado o guarda. Coloquei um saco repleto de moedas que havia juntando nos jogos em sua mão. — Você tem quinze minutos — avisou o guarda. Corri na direção de Rafe.
E foi só quando me viu que sua expressão mudou. O abracei e notei que estava consideravelmente mais magro. Ele havia perdido peso demais para apenas alguns dias preso. Ele
cheirava mal também, como se não tomasse banho há bastante tempo. Havia apenas um toque suave de seu cheiro que pude reconhecer. — Eu não acredito que isso está acontecendo — murmurei com a cabeça colada em seu peito e os olhos fechados com força. — Cera. — Foi a única coisa que deixou seus lábios. Meu nome soou como um suspiro de alívio. Não queria soltá-lo nunca mais. Porém, o guarda me repreendeu, exigindo que eu me afastasse. Nos sentamos na mesa de pedra, um na frente do outro. Segurei as suas mãos porque precisava segurá-lo de alguma forma. — Eu vou te tirar daqui. Eu escrevi para o seu pai… — Ele vai não fazer nada. Sua mandíbula estava tensa, mas a dor em seus olhos era maior do que a raiva. Não o retruquei porque, no fundo, sabia que era verdade. — Como eles têm te tratado? — indaguei, mudando de
assunto. — Têm te dado comida? — Às vezes. — Ele desviou o olhar olhar.. — Mas não tenho fome.
Segurei suas mãos com mais força e fitei seu rosto tão familiar familiar.. Rafe sempre foi sinônimo de casa para mim. Era o que diziam: “lar não é um lugar e sim, uma pessoa”. Depois da minha mãe, me vi completamente perdida. Até Rafe. — O que é essa vermelhidão na sua têmpora? — indaguei, notando a mancha na pele clara. Ele hesitou um momento. — Eu bati. — Não minta. — Não importa, Cera. — Rafe… — Como Vesper está? A simples menção do nome nome me fez retrair retrair.. — Como ele está? — indaguei com a voz tensa. — Bem, livre. Rafe desviou o olhar do meu, parecendo perdido em
pensamentos por um instante. Poderia apostar que estava pensando nele. — Ele devia estar aqui. Não você.
Seu olhar voltou para o meu. Magoado e derrotado. — Não diga isso. — É culpa de… — Pare, Cera — interrompeu, afastando as mãos das minhas. Ele balançou a cabeça. — Só pare, por favor… Você não entende. — O quê? — perguntei, frustrada e tentando controlar a minha indignação. — O que eu não entendo, Rafe? — Eu o amo. E a única coisa que me traz alguma paz é o fato de ele não estar passando pela mesma coisa. Se houvesse qualquer possibilidade de trocar de lugar com ele, eu não o faria. Jamais. Fiquei muda. Já sabia que Rafe estava apaixonado. Mas pensei que era apenas isso. Uma paixão. Eu não conseguia compreender aquele tipo de altruísmo. Como ele podia estar em uma situação como aquela e se importar mais com outra pessoa do que consigo mesmo? Para mim, era uma estupidez, um delírio. Rafe não parecia
estar vendo as coisas com clareza. — Você só vai entender isso quando sentir. — Ele pegou as minhas mãos de novo. — Espero que, um dia, você sinta. E que, no
seu caso, não seja visto como um pecado. Eu desejo isso a você mais do que qualquer outra coisa. E quando isso acontecer, sei que você vai me perdoar. Meus olhos se encheram de lágrimas. — Não fale assim. — Como? — Como se estivesse se despedindo. Vamos encontrar uma solução. — Eu passei os últimos dias e noites pensando em todas as possibilidades, Cera. Não há solução. Daquela vez, eu recuei, soltando as suas mãos. — Você não pode simplesmente desistir. — Não é desistir, Cera. É aceitar. — O tempo acabou. — O guarda anunciou, nos encarando. Pânico cresceu em meu peito. Rafe se levantou.
Não.
— Não torne isso mais difícil para mim. — Ele pediu, parado na minha frente. — Não vou suportar ir embora com você assim.
As minhas pernas estavam fracas, mas me levantei. Lágrimas escorriam sem parar agora. Coloquei meus braços ao seu redor e o apertei com força. — Eu te amo. Minha voz soou rouca e sufocada de emoções. — Te amo. — Ele devolveu. — Sempre vou te amar, do lugar onde eu estiver. Um soluço deixou a minha garganta. Não conseguia soltá-lo, apesar de saber que deveria. O guarda começou a puxá-lo. Rafe aproximou os lábios do meu ouvido antes de ser levado. — Tome conta dele. Essa foi a última coisa que disse para mim.
Rafe já estava no palco quando a usurpadora chegou amordaçado e com os pulsos amarrados A multidão estava reunida reunida para o espetáculo Centenas de pessoas sedentas para me assistir em ação A usurpadora se juntou juntou a eles O seu era um dos poucos corações que não batia em excitação mas sim em completo desespero Ela ainda tinha dificuldade de acreditar que aquilo não era um completo pesadelo O velho de branco começou a rezar e a multidão o acompanhou em uníssono Quando o soldado começou a levá-lo para o centro do palco a usurpadora tentou chegar até lá Ela sabia que não podia salvá-lo
mas isso não importava ela precisava tentar
Quando o colocaram de joelhos ela gritou o seu nome pela primeira vez mas o apelo foi abafado pelas vozes ao redor No momento em que ela viu a lágrima escorrendo no rosto dele ela gritou o seu nome pela segunda vez Seu braço direito se ergueu como se ela pudesse de alguma forma alcançá-lo Assim que o soldado ergueu a espada acima do pescoço da única pessoa que amava ela gritou seu nome pela terceira vez A garganta queimava conforme ela empurrava os corpos para longe de seu caminho mas ela sabia que era tarde demais
Ela sabia que jamais o alcançaria Quando a espada do soldado desceu em direção ao pescoço dele
ela gritou seu nome pela quarta e última vez E então eu o levei
18
Eu estava sendo carregada. Pisquei várias vezes, tentando entender o que estava acontecendo. O rosto de Vesper apareceu diante de mim. E, então, a lembrança dos acontecimentos voltaram com tudo. Eu empurrei seu peito e ele me soltou. — Não! Voltei a chorar. Voltei a gritar. Olhei em volta, à procura de Rafe. As lágrimas embaçavam a minha visão. Aquilo só podia ser um pesadelo. O palco estava a dezenas de metros de distância. Já não
conseguia ver Rafe. Comecei a correr de volta para lá.
Foi um pesadelo ruim. Quando eu voltasse, Rafe não estaria naquele palco. Eu precisava daquela confirmação. Senti os braços em volta de mim novamente. Lutei contra seu aperto. Comecei a gritar gritar.. — Me solte! Preciso ir até ele! Eu estava sufocando. O ar que entrava não era o suficiente. — Preciso de Rafe! — Ele está morto, Cera! Congelei por um segundo, meus membros dormentes. O desespero se transformou em raiva em um piscar de olhos. Me virei para Vesper. Bati nele. Soquei seu peito. O empurrei. — É tudo culpa sua! Você o deixou vulnerável! O deixou descuidado! — gritei, com as palavras arranhando a minha garganta dolorida. — Você o matou!
Usei toda a força que tinha. Queria que ele sentisse a mesma dor que eu estava sentindo. Ao invés de revidar, revidar, Vesper Vesper segurou meus braços. braços.
Me contorci contra seu aperto. Sentia vontade de vomitar. — Você matou a única pessoa que eu já amei! Ele não disse nada. Ao invés disso, me puxou para perto. Seu aperto ficou muito forte e eu já estava muito cansada. Muito fraca. Vesper me envolveu em seus braços enquanto eu lutava desesperadamente para sair dali. Mas, aos poucos, meus membros foram cedendo. Minha cabeça descansou em seu peito e minhas pernas fraquejaram. Ele me aparou quando escorreguei pelo chão. E ficamos lá, abraçados até que os meus soluços se tornaram mais silenciosos. Somente quando parei de tremer é que consegui levantar a cabeça para encará-lo. E foi só vendo seu rosto de perto que, finalmente, consegui enxergar como estava inchado. Lágrimas, parecidas com as minhas, desciam pelas suas bochechas. Nunca vi alguém tão desolado na minha vida.
Talvez, apenas se me encarasse no espelho. — Eu sinto muito — disse, baixinho.
Vesper fixou os olhos nos meus, com a sua tristeza refletindo a minha. — Também sinto. — Ele devolveu, sem me soltar.
19
Você precisa comer alguma coisa, senhora.
—
Eu não respondi, o que fez com que ela entrasse no quarto. Ela iria insistir. Agora, fazia isso com frequência. Conforme os dias se passaram, ela foi se tornando cada vez mais persistente em me fazer comer alguma coisa. Se eu tivesse forças, gritaria para que me deixasse em paz. — Fiz suco e bolo de laranja, seu favorito. Ouvi ela colocar a bandeja ao meu lado, na cama. Continuei de costas para ela, torcendo para que fosse embora. — Vou deixar aqui, senhora. Quando ela finalmente deixou o quarto, voltei a chorar. Um
choro comedido agora, silencioso. As lágrimas caíam gordas, mas lentas. Não era mais como o choro histérico e desesperado do começo. Naquela altura, era um choro irritante e cansativo, que
parecia
não
querer
me
abandonar.
Meu
rosto
estava
permanentemente inchado. Não que eu estivesse me olhando muito no espelho. Tudo o que eu andava fazendo era dormir, ir ao banheiro e chorar.. Quando meu estômago machucava, eu comia um pedaço de chorar pão e bebia um copo de água que Allegra deixava sempre ao meu alcance, caso contrário, não comeria. Não via Theon há quase uma semana. Pelo menos, eu acho. A noção de tempo escapou de mim e os dias começaram a ser difundir. Mas acredito que eu não via meu marido há uma quantidade considerável de tempo. Não que eu me importasse. Acho que era até melhor melhor,, já que eu desejava, acima de tudo, ficar sozinha. Também porque eu me ressentia. As suas palavras continuavam continuavam voltando par para a a minha cabeça. Ele pecou, Cera. Um pecado… imperdoável. Mesmo que pudesse, não o faria. Sei que ele é o seu amigo, mas ele precisa pagar pelo o que fez.
É. Era melhor mesmo que ele ficasse longe.
Me levantei pela primeira vez naquele dia para ir ao banheiro. Quando me olhei no espelho, quase não me reconheci. Meu cabelo estava embolado de todas as formas possíveis. Meu rosto inchado e grandes olheiras marcavam minha pele. Mas, o pior de tudo, era que eu fedia. Meu último banho havia sido há, talvez, 3 dias, então me obriguei a pedir para que Allegra aprontasse a banheira para mim. Saí do quarto apenas de camisola. Era o começo da noite e ela devia estar ajudando com o jantar na cozinha. Parei no meio do corredor ao ouvir a voz do meu marido. Não sabia que ele tinha chegado em casa. Me aproximei da porta do escritório, que estava apenas encostada. — Você não entende, Theon! — exclamou seu pai tão alto que fui capaz de escutar perfeitamente. — As reservas acabaram, não há de onde tirar dinheiro para pagar. — Mas e o dote de Cera? — Meu marido indagou e me
aproximei mais um pouco ao escutar o meu nome. — Foram mais de mil salins.
— Não sobrou quase n nada. ada. Como acha que pa pagamos gamos as últimas carruagens de trabalho? E as terras perto do rio? Houve uma pausa e, quando Theon falou, foi com um tom de frustração. — Aquele velho podia ter dato um dote melhor. É podre de rico. Demorou um instante para que eu entendesse que estavam falando do meu pai. — Não conseguiríamos um dote melhor que esse, sabe disso. — O velho rebateu, irritado. — Não havia melhor opção do que ela. Foi mais do que farto, mas não o suficiente para cobrir tudo. Vamos precisar vender a sede de Panenton para aquele barão miserável. Me afastei da porta quando escutei o barulho da cadeira arrastando dentro do escritório. Deixei o corredor às pressas e voltei para o meu quarto. Eu não podia acreditar no que tinha ouvido.
Eu me sentia uma idiota. Pensei que estivesse enganando o para que se casasse comigo. Que eu precisava fisgá-lo porque era uma oportunidade única. Mas, na verdade, foi o contrário. Eu fui a manipulada da história.
Chorei de raiva. Raiva de Theon por me manipular e, acima de tudo, de mim mesma por ter sido tão estúpida. Era quase apaziguante chorar por outra razão que não fosse Rafe. Mesmo que, por um breve instante, era bom sentir raiva ao invés de tristeza e saudade cortante.
20
Eu tinha pesadelos. Pesadelos em que eu via Rafe novamente naquele palco. O soldado levantava a espada sobre a sua cabeça. E eu corria para tentar alcançá-lo. Mas eu sempre chegava tarde demais. Eu acordava suando. Então, chorava até dormir novamente. — O que está acontecendo? — Theon perguntou na primeira noite em que dormimos juntos desde a morte de Rafe. Era madrugada e eu chorava silenciosamente. — Nada — murmurei no escuro. Preferia dormir sozinha, sem me preocupar com que alguém
me ouvisse chorando. Alguns segundos segundos depois, o ouvi volta voltarr a ressonar. ressonar.
Conforme os dias se passaram, eu o evitei. Se já era difícil olhar para ele depois da morte de Rafe, era impossível agora que eu sabia da verdade. Eu ficava me perguntando se cada momento antes do casamento foi calculado. E, então, me castigava por não ter notado. Certa noite, depois de se deitar, ele começou a me procurar embaixo das cobertas. Fazia bastante tempo que não fazíamos sexo. Não que eu sentisse falta, estava deprimida demais para pensar naquele tipo de coisa. E, mesmo antes, sexo era algo que parecia dar muito mais satisfação a ele do que a mim. Minha satisfação costumava vir do fato de vê-lo contente e me desejando. Mas, agora, era uma tarefa irritante e tediosa. Eu apenas me deitei lá e esperei que terminasse logo. Quando acabou, virei de costas para ele com o maior vazio que senti em toda a minha vida. E foi quando o entendimento, por fim, me acertou. Eu estava sozinha.
Sem
minha
mãe
e,
agora,
sem
Rafe.
Eu
estava
completamente sozinha.
Na primeira vez em que saí de casa em quase duas semanas, choveu. Choveu tanto que eu resolvi voltar com Allegra apenas dez minutos depois de ter chegado na cidade. Já estava indisposta, de qualquer maneira, então era uma bela desculpa para voltar para minha cama. Pingos de chuva caíram sobre o chão de madeira conforme eu atravessava o corredor do primeiro andar. Subi as escadas para ir direto ao meu quarto, mas parei quando ouvi sons estranhos vindos de uma das portas. Abri a porta do escritório de Theon, sem me importar em bater. bater. Meu marido estava sentado no sofá e, em cima dele, repousava uma mulher seminua. Seu vestido estava aberto e seus seios no rosto dele. Os assustei com a minha chegada, fazendo com que ambos encarassem a porta. Os cabelos de Theon estavam uma bagunça e seus lábios, inchados.
Eu congelei, com a mão na maçaneta. Depois de um segundo, talvez, Theon começou a movê-la de seu colo.
— Cera. — Ele murmurou em um reconhecimento tenso. A garota loira olhava para m mim, im, confusa. confusa. — Quem é essa? Como ele não falou nada, eu mesma respondi: — A esposa dele. — A minha voz soou estranhamente controlada. Ela olhou para ele e, então, olhou para mim novamente. Como se estivesse indecisa sobre o que deveria fazer em seguida. Mas, provavelmente devido ao que encontrou em meus olhos, tomou uma decisão e começou a ajeitar as roupas para sair. Era uma cena tão feia, tão imunda e errada, que me senti momentaneamente enjoada. Eu tive vontade de me sentar, mas meu corpo parecia ser incapaz de se mover. Se fosse, eu me viraria e sairia dali. Em situações como aquela, em que eu sabia que estava muito perto de perder o controle, eu preferia me afastar do que quer que fosse para me recuperar.
Theon abotoou as calças ao passo que ela se retirava. Não sei exatamente o que eu estava esperando. Provavelmente, um pedido de desculpas. Algo patético e clichê, e que não faria diferença nenhuma. Mas não foi o que eu recebi.
— Você não vai fazer um escândalo, né? Eu pisquei. Uma vez. Duas vezes. — O quê? — Não vai surtar de ciúmes ou algo assim, certo? — Ele questionou, ajeitando casualmente o cabelo. — Eu só estava liberando o estresse dos últimos dias. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Minha pulsação começou a acelerar. De repente, tudo o que eu ouvia eram as batidas do meu coração. Porque não era o fato de tê-lo pegado transando com outra mulher. Chegava a ser desconcertante o quanto eu realmente não me importava com aquilo como, provavelmente, deveria. Era o fato de que ele tinha tão pouco respeito por mim que nem se deu ao trabalho de se desculpar. Foi isso o que me fez explodir.
— Eu não consigo acreditar que fui estúpida o suficiente para me casar com você. — Meus lábios formaram um sorriso amargo. — Eu só não me odeio mais do que te odeio.
Ele hesitou um momento antes de responder. Acho que aquela era a primeira conversa sincera que tínhamos desde que nos conhecemos. Nenhum de nós estava fingindo agora, mostrando uma versão melhor do que a original. Não havia mais o porquê de jogar aquele jogo. — Bem, tarde demais para arrependimentos arrependimentos,, querida esposa. Eu dei um passo à frente. — Não é tarde demais. Vamos nos separar. A exigência o pegou despreveni desprevenido. do. Sabia disso porque ficou mudo por um momento. Separações eram raras. E só aconteciam caso o marido a quisesse. E aquilo quase nunca ocorria, era extremamente malvisto. Mas, naquele momento, enquanto meu coração batia forte com ódio, eu preferia esta opção a passar o resto da minha vida com ele. Theon finalmente reagiu. Uma risada zombeteira ecoou pelo cômodo tenso.
— Realmente engraçado. — Não foi uma piada. Seu rosto fechou. Ele avançou um passo.
— Perdeu a cabeça? Isto não é uma opção. — Claro que é. Você não quer estar casado comigo e eu não suporto olhar para você. Quem dirá, dividir uma casa. Ele avançou mais um passo. Seu rosto estava vermelho agora. — Você vai calar a boca — ele sibilou entredentes — e ser uma esposa obediente. Theon nunca havia falado daquele jeito comigo, e estaria mentindo se dissesse que aquele tom não havia me assustado. Mas não recuei. Fechei as mãos em punhos, focando na raiva. — Tudo bem. Eu não me importo com o que você faz ou deixa de fazer. Mas eu nunca mais quero ver você com outra mulher em minha casa de novo. Eu não vou ser motivo de piada. Seu rosto atingiu um tom de vermelho ainda mais assustador. — Quem é você para me dizer o que fazer? — Parece que sou a esposa de um homem patético de merda.
Houve apenas um segundo de completo silêncio antes que acontecesse.
O tapa em meu rosto veio tão rápido e tão forte que me fez cambalear. Levei as mãos no rosto, conforme processava o choque. E, enquanto encava o chão de madeira, tentava me lembrar de respirar. O golpe formigava e eu não sentia nenhuma parte do corpo além da lateral da minha face. Quando eu, finalmente, ergui a cabeça, Theon já não estava no cômodo. Aquela foi a primeira primeira vez em que um ho homem mem me bateu. bateu. E aquela também foi a primeira vez em que decidi matar alguém.
21
Ganhei um propósito depois que decidi matar meu marido. Aquilo era enervante, saudável até, eu diria. Ao invés de estar consumida pela depressão pesada causada pela morte de Rafe, estava consumida pela raiva e sede de retaliação. Mas também pelo nervosismo, não poderia mentir. Nunca havia matado alguém, e nunca achei que o faria. Mas lá estava eu, pensando na melhor forma de assassinar alguém sem ser pega. Porque, em hipótese alguma, eu poderia ser descoberta. Caso acontecesse, eu seria morta no mesmo palco que meu melhor amigo, com várias pessoas assistindo e me xingando de todos os nomes terríveis e inimagináveis. Eu odiava pensar nisso, então, simplesmente evitava.
Eu não vou ser pega, repetia diversas vezes. Com um plano bem executado, tudo daria certo.
A ideia de como eu faria me veio duas tardes depois da decisão. Eu não estava com pressa. Sabia que a pressa era a inimiga da perfeição, e eu precisava que fosse perfeito. A minha vida dependia daquilo. Allegra havia colocado o café da manhã para mim, como sempre fazia. Mas, daquela vez, pôs um pequeno vazinho com plantas de enfeite na bandeja. A ideia me veio no momento em que vi as pequenas e delicadas folhagens. Foi como um estalo. Ervas. Envenenamento.
Era perfeito. Limpo, silencioso e rápido. Eu já havia pensado em várias outras formas mais manuais e que exigiam certa força física e habilidade, mas havia descartado todas. A ideia de enfiar uma faca em seu coração ou sufocá-lo com um travesseiro me assustava. Era violento demais. Eu sabia que havia fortes chances de me acovardar na hora. O veneno era mais passivo e bem menos incriminador. Imaginava que seria bem mais
fácil acobertar um assassinato por envenenamento do que uma facada no coração. A escolha do veneno não foi difícil.
Não poderia escolher algo óbvio, já que arriscar ser vista comprando plantas venenosas dias antes da morte do meu marido não era uma opção. Eu já tinha lido um livro de biologia sobre plantas. Havia uma em particular e que, aparentemente, era inofensiva. Podia ser encontrada em praticamente qualquer lugar. Mas, misturada com outra substância, era fatal. Eu lembrava de já tê-la visto em um dos meus passeios pelas terras assim que cheguei na nossa nova casa. Separei uma manhã em que fingi observar os cavalos para colhê-las. As coloquei no bolso do meu vestido e voltei para casa para preparar a substância. O outro produto do qual precisava, eu encontrei na cozinha, já que era algo relativamente comum de ser usado. Me certifiquei de que não havia ninguém por perto quando abri o armário acima do fogão. Levei um susto ao entrar no meu quarto e encontrar Allegra. A pequena garrafa caiu das minhas mãos e, por pouco, não quebrou. — Achei que fosse a sua hora de almoço. — Eu disse ao
passo que me agachava rapidamente para pegar a garrafa. Ela avançou, como se quisesse me ajudar a recolher. Mas fui mais rápida.
— Senhora Alba postergou meu almoço. — Ela justificou, não olhando para mim, mas sim para a minha mão. Era tarde demais para tentar esconder. Nossos olhos se encontraram e havia uma clara dúvida em seu rosto. Por que eu estaria levando aquele condimento para o meu quarto? — Você precisa de alguma coisa, senhora? Balancei a cabeça. — Não — respondi e levantei a pequena garrafa. — Eu só ouvi que isso aqui faz maravilhas para a pele, aí, resolvi testar. Seu rosto continuava confuso. Mas ela não fez mais perguntas. Se ela acreditava ou não, eu não saberia dizer. Allegra foi em direção à porta, porta, para se re retirar tirar.. A sensação ruim ruim inundou meu peito. Estava tudo acabado. Eu não podia arriscar que alguém
soubesse que eu havia levado aquele produto para o meu quarto dias antes do meu marido ser envenenado por uma mistura que o continha.
Pessoas seriam interrogadas depois do que acontecesse, e isso incluiria Allegra. — Senhora. Me virei para encará-la. Ela estava próxima à porta, mas havia se virado. — Funciona melhor se deixar as ervas no sal antes de misturar. Pisquei. — O quê? — perguntei, com a boca repentinamente seca. — Do que está falando? Seu rosto corou e ela desviou o olhar por apenas um instante. — Eu a vi passeando perto dos pomares. Perto dos pomares era o local onde as ervas cresciam. E, pelo seu olhar, era claro que Allegra sabia muito bem disso. — Eu gosto de maçãs. — Foi tudo o que consegui dizer. Demorou um instante, mas ela assentiu.
— Claro. Ela se virou. — Allegra — chamei. — Acha que alguém mais notou?
Meu coração batia rápido. Eu ainda não havia feito nada, mas o medo de ser pega, de repente, se tonou muito real. Ela franziu o rosto delicado. — O quê? — Ela indagou. — Que a senhora gosta de maçãs? Eu a encarei fixamente até que um pequeno sorriso quebrou em meus lábios. Allegra não contaria contaria para ni ninguém. nguém. O plano ainda estava de pé.
Eu esperei pelo momento em que faríamos uma refeição juntos. Dois dias depois, estávamos sentados, jantando. Apenas nós dois. — Como foi no trabalho? — indaguei, com a voz suave. Eu estava sendo gentil com ele nos últimos dias. Não queria que as pessoas notassem que havia algo de errado entre nós.
Tinham que achar que nos amávamos, ou, pelo menos, nos gostávamos.
Theon estava satisfeito com a minha nova atitude. Eu estava sendo a esposa obediente que ele tanto desejava. Eu me perguntava o quão estúpido ele deveria ser para acreditar que eu seria genuinamente doce depois do que ele fez comigo. Ele, realmente, não me conhecia. — Bom. — Ele respondeu depois de dar um longo gole no vinho. — Cansativo, mas produtivo. Era tão prepotente. Soava como se tivesse acordado às seis da manhã e feito contas sem parar, quando, na verdade, muito provavelmente, apenas seguiu o pai como um cachorrinho o dia todo. Os pratos foram postos pela senhora Alba, como o usual. Minha boca estava seca, então dei um grande gole de vinho. Só notei o quão nervosa estava quando a taça tremeu em minha mão. A devolvi rapidamente à mesa. Encarei meu prato fixamente, mais especificamente o purê,
que jazia ao lado do peixe branco. O veneno estava no purê. Pelo menos, era esse o combinado que havia feito com Allegra.
Como estava sempre na cozinha, ela mesma sugeriu que colocasse no prato dele antes que a senhora Alba os servisse. Afinal, faria mais sentido do que eu própria fazê-lo, já que eu raramente ia à cozinha. Decidimos que, caso algo desse errado, como se ela não conseguisse colocar o veneno, ela me avisaria, entrando na sala de jantar e tocando na orelha. Era frustrante colocar tanta confiança assim em alguém. E perigoso. Mas não havia motivos para que Allegra quisesse me prejudicar. Muito pelo contrário. Theon pegou o garfo. Por um instante, tive o estranho impulso de impedi-lo. Gritar alguma coisa ou tirar o talher de suas mãos. Não porque, lá no fundo, tinha certo apresso a ele ou algo assim, mas porque achei que não pudesse viver com o fato de que matei alguém. Com a culpa.
E também com as consequências. Eu podia ser pega. Allegra também. Eu já conseguia me imaginar sendo levada para prisão, as pessoas falando sobre mim. Minha família. O horror no rosto da minha madrasta quando, na verdade, estava mais do que contente
em poder dizer: “eu sempre soube que havia algo de errado com ela.” No entanto, permaneci em completo silêncio conforme ele colocava a comida na boca. O observei mastigar, segurando o meu talher com tanta força que, se não fosse metal, tinha certeza de que teria partido. Já era tarde demais. Eu havia selado o meu destino. E o dele também. Eu não tinha apetite algum, mas me obriguei a comer. Era difícil engolir quando, na verdade, a minha vontade era de regurgitar qualquer coisa em meu estômago. Quando tempo isso vai levar?
Eu não sabia exatamente quanto tempo demorava para que o veneno fizesse efeito. Ouvi dizer que era rápido, mas não o quão rápido. Segundos? Minutos? Horas? — O purê tá com um gosto diferente.
Encarei Theon. Raspei a garganta numa tentativa de encontrar a minha voz.
— Tá? — indaguei, com a voz es estranhamente tranhamente fina. — Não notei. Ele continuou comendo. Entornei a taça de vinho em duas grandes goladas, tentando fazer a comida descer. O tempo passou. E nada aconteceu. Olhei para o prato dele, já quase limpo. Ele tinha comido praticamente todo o purê. Então, olhei para o meu, que estava pela metade. A assustadora ideia de que Allegra pudesse ter trocado os pratos surgiu em minha cabeça. Senhora Alba sempre preparava uma porção maior para Theon, então era visível qual era o meu prato e o dele. Mas Allegra podia ter se confundido pelo nervosismo. Gelo percorreu pelo meu corpo, começando pela base do meu estômago. Por um momento, achei que fosse vomitar em cima da
mesa. Mas, então, Theon tossiu.
No começo, foi uma tosse de leve. Ele deu um gole no vinho com o cenho franzido. E, então, tossiu de novo, mais forte dessa vez. Theon largou o garfo e me lançou um olhar com o cenho franzido, parecia confuso com o que estava ocorrendo em seu corpo. — Tudo bem? — indaguei. — Eu… Theon não terminou a frase porque tossiu de novo. Levou a mão no peito e bateu algumas vezes. Seu rosto estava vermelho agora, os olhos lacrimejando. lacrimejando. Ele olhou para mim com a expressão ainda mais confusa e começando a aparentar desesperada. Chamou meu nome em meio à tossidas. — O que foi? — indaguei de novo. Meu marido pegou a taça de vinho novamente, mas não com
conseguiu engolir. Líquido voou da sua boca conforme ele tossia. Gotas escorriam de seus olhos, descendo pelas bochechas escarlates.
Sua mão esquerda foi em direção à sua garganta e a direita pegou a minha mão, que estava sobre a mesa. Ele me encava fixamente, com agonia no olhar. Theon abriu a boca, mas nada saiu. — Você quer que eu chame alguém? — perguntei, com voz baixa e suave. — Me peça, então. Ele apertou sua mão em meu braço, mas continuei parada, observando o pânico crescer em seus olhos. Theon não tossia mais, ao invés disso, sons estranhos como rugidos deixavam a sua garganta. Eu me inclinei suavemente sobre a mesa, me aproximando de seu rosto. Porque algo dentro de mim precisava que ele soubesse. — Eu não vou chamar, a não ser que você peça, — eu disse docemente — pois sou uma esposa obediente, querido. Observei, fascinada, num espaço de, talvez, um segundo, sua
expressão de pânico se misturar com completo choque. E foi quando meu marido finalmente entendeu.
Acho que aquela foi a primeira vez em que Theon me enxergou de verdade. E era uma ironia que também seria a última. Sua mão afrouxou no meu braço conforme seu rosto se tornava roxo. Até que seu corpo parou. Ficou completame completamente nte congelado. E, no momento seguinte, caiu sobre a mesa. Seu rosto pousou direto no prato quase vazio. Foi aí que eu comecei a gritar. Me levantei abruptamente, derrubando a minha cadeira no processo. Eu o chacoalhava desesperadamente quando eles começaram a entrar. — Alguém chame um médico! — gritei para os rostos chocados de Alba e Allegra. O médico local era praticamente nosso vizinho. Chegou em menos de cinco minutos. E a polícia, em menos de quinze. Mas era
inútil, ele já estava morto. Não
demorou
muito
para
que
descobrissem
que
foi
envenenamento.
— Eu pensei que ele estivesse se engasgando! — expliquei, em meio às lágrimas desesperadas. As lágrimas eram reais. Não pelo motivo que acreditavam — que eu chorava de tristeza pela morte do meu marido — mas sim pelo nervosismo e adrenalina. Allegra me consolava no canto da sala de jantar, jantar, já que tinham me tirado de perto do corpo do meu querido marido à força. Precisavam examinar o corpo. Segurávamos as mãos. Ambas tremiam. Naquele ponto, vizinhos cercavam a nossa casa, curiosos pela movimentação de carruagens. — Senhora, a razão da morte foi envenenamento — anunciou o detetive. — Sabe quem poderia ter feito isso com o seu marido? Eu coloquei a mão no rosto, em completo choque. — Não. — Respirei com dificuldade. — Quero que revistem todos! — anunciei alto, conforme passava os olhos pelos criados da
casa. Eu me sentei com um copo de água que me foi entregue assim que as buscas começaram. Minha mão tremia, balançando o copo.
Estava ansiosa, apesar de já saber o que iriam encontrar. O detetive iria achar um pequeno frasco com resquícios de veneno no bolso do casaco do Doyel, o cuidador de cavalos. Aquele de couro surrado que ele sempre deixava pendurado no celeiro enquanto trabalhava. Sabia disso porque eu mesma havia colocado ali no final daquela tarde, antes do jantar. Eu não podia arriscar ser suspeita. E a única forma de fazer isso era lhes entregando um culpado. E foi exatamente isso o que aconteceu. Cerca de meia hora depois, Doyel foi levado aos berros pelos policiais. Ele gritava que não havia sido ele, que aquilo era um erro. Estava desesperado porque sabia exatamente o que um crime daquele significava. Forca.
O corpo de Theon já estava duro quando, finalmente, o levaram.
Eu pedi para que me dessem um momento antes que o tirassem de mim. Encarei seus olhos arregalados. E a emoção com a qual me observou em seu último suspiro ainda estava em suas pupilas, eterna agora.
Medo.
Foi a primeira vez em que causei aquele tipo de emoção em alguém. Foi a primeira vez em que alguém me temeu. E eu comecei a entender o porquê de grandes conquistadores roubarem reinos e destruírem exércitos. Por causa daquele exato olhar.
A usurpadora me entregou entregou uma vida Eu o levei de forma angustiante exatamente como ela pretendia E aquele poderia muito bem ser o fim de toda a dor e o início de um futuro de paz mas havia um pequeno problema ela havia gostado
22
— Está grávida? A pergunta direta me pegou totalmente de surpresa. Estávamos no enterro e aquela foi a primeira coisa que o pai de Theon havia falado para mim. O velho não parecia muito emotivo diante da situação. Não havia derramado, sequer, uma lágrima durante o processo todo. Ele parecia mais irritado e preocupado do que qualquer outra coisa. Ele só tinha filhas agora. — Não, senhor. Obviamente, eu não tinha contado a Theon, — ou a ninguém, na verdade — mas estava tomando precauções para não ficar
grávida. No começo, simplesmente porque não queria um filho com uma idade que considerava precoce, apesar de que maioria das garotas na minha faixa etária já tinham filhos com os maridos. Mas depois, conforme conhecia Theon mais e mais, a precaução se
tornou uma necessidade simplesmente porque não queria ter um filho com ele. O velho assentiu e desviou o olhar e, por um momento, achei que o assunto havia sido encerrado. Era um homem de poucas palavras e, durante todo o meu casamento e noivado, lembro de termos tido cerca de quatro breves conversas. Não que eu estivesse reclamando, não tinha nenhum interesse em discutir qualquer assunto com aquele homem. — Não ache que vai ficar vivendo à minha custa pelo resto de sua vida. — Ele declarou, de repente. — Você só tem direito ao que já era do meu filho filho no papel. papel. E só passei a sede em que moram e as terras em volta para o nome dele. É tudo o que tem direito. Não foi a grosseria que me surpreendeu, nem mesmo o conteúdo de suas palavras. Mas sim o local em que ele escolheu dizer aquilo. Seu filho mal havia sido s ido enterrado. Minha família também estavam lá, como era socialmente
esperado. Meu pai tinha a expressão neutra de sempre. Meu irmão parecia entediado. E minha madrasta parecia... satisfeita. Eu nunca me tornaria condessa. Nunca estaria acima dela na escala da nobreza. Era um dia bom para ela.
Foi uma tarde longa e cansativa. Tive de me esforçar para parecer uma esposa desolada durante todo o processo. Fingir tristeza e desespero podia ser bem exaustivo. A pior parte foi na hora em que me vi diante do corpo dele, me despedindo. Tive que forçar as lágrimas a descerem. Pensei em Rafe, e elas escorreram com tanta violência que pessoas vieram v ieram me consolar.
As pessoas estavam agitadas com o anúncio da chegada do novo Rei de Khrovil. Ao que parecia, ele viria a Umbra para a realização de um possível novo acordo. Parecia só haver duas opções para os dois reinos: paz ou completa retaliação. Sua vinda foi uma surpresa para mim. Não entendia as intenções de Sarkian. Acreditava que ele iria declarar guerra no momento de sua posse. Ele odiava nosso reino e povo com violência, por isso, não fazia sentido para mim que estivesse vindo para cá em paz. E muitas pessoas pensavam como eu. O povo
estava tenso, com medo. Muito mais do que comparado com quando seu pai veio selar o acordo. Seu pai podia ser conhecido como cruel, mas Sarkian era conhecido como a personificação do mal. O príncipe que matou toda a sua família a sangue-frio.
Mas eu estava mesmo curiosa. Foi por isso que eu não pensei duas vezes antes de decidir comparecer ao evento de recepção. Queria ver v er de perto a interação. O possível caos. — Não há necessidade de fazer o jantar — avisei a Groselin, a nova governanta, antes de sair. Mandei Alba embora pouco depois da morte de Theon. Também havia contratado outro cuidador de cavalos. Milo continuava auxiliando com o trabalho, mas, agora, era pago por isso. Eu lhe dava algumas moedas pelo serviço e seu rosto brilhava em choque e puro êxtase em todas as vezes. Era o melhor momento da minha semana. A dinâmica havia mudado bastante em casa. Para melhor melhor,, é claro. Com a colheita do trigo e das maças, eu fazia dinheiro o suficiente para manter a casa e os empregados. Não era muito, mas
o suficiente. Pelo menos, eu tinha liberdade e era dona do meu próprio nariz. O salão do palácio nunca esteve tão vazio de nobres e tão cheio de soldados.
Era muito claro o receio diante daquela vinda. A maioria dos nobres preferiu não comparecer, com medo de um possível golpe, como na noite em que Sarkian tomou o trono no meio de uma cerimônia. Mas eu não acreditava que ele faria aquilo de novo. Sarkian podia ser muita coisa, mas não era previsível. Ele não repetiria aquele ato. Mesmo assim, prendi uma adaga na costura por baixo do meu vestido. Apenas por precaução. Eu usava um vestido preto, já que ainda estava de luto. Só poderia usar outras cores um mês depois da morte de Theon. Não que eu estivesse reclamando. Eu gostava de como ficava na cor. Mas ela, definitivamente, chamava atenção. Em Umbra, era uma cor que refletia tudo que existia de negativo, e eu me vi como um ponto negro no meio de uma confusão de cores pastéis. Ele entrou quando eu estava prestes a pegar uma taça de
vinho. Parei no meio do caminho porque foi como se toda a atenção do local tivesse sido sugada. Era inevitável não olhar olhar..
Suas vestimentas eram as mesmas. A longa capa preta, as botas e luvas de couro. A única diferença era a majestosa — e um tanto sinistra — máscara que modelava seu rosto. A trompa soou, anunciando a sua chegada. Não que fosse necessário, já que todos os olhos estavam nele assim que surgiu na entrada do salão. Ele
estava
acompanhado
de
apenas
dois
soldados
mascarados. O que era irônico, tendo em vista que havia dezenas de soldados de Umbra próximos ao nosso rei. Sarkian andou — sem pressa alguma — até o rei, que havia se levantado do trono com a chegada do possível inimigo. Foi a caminhada mais longa que presenciei. Acho que todo o salão prendeu a respiração no processo. Como se os passos de Sarkian fossem uma contagem regressiva para o completo terror. terror. Eles pararam um de frente ao outro. O Rei de Umbra fez o tradicional cumprimento de baixar suavemente a cabeça. O que se
seguiu foram dois segundos que pareceram duas décadas. Até que Sarkian, finalmente, devolveu devolveu o cumprimento. Foi como se todo o salão tivesse dado um suspiro de alívio coletivo.
Eu precisava desesperadamente de uma bebida. Me virei, voltando a fazer o meu caminho até a mesa de vinhos. — Senhora Hellish. Demorei um segundo para entender que era a mim que estavam chamando. Hellish era o sobrenome de Theon e eu ainda não havia me acostumado com ele. Na minha cabeça, nunca deixei de ser Cera Novak. Com uma taça na mão, me virei para a mulher de cabelos ruivos. A bela Condessa Bethany havia se aproximado com o marido e a filha adolescente. Os cumprimentei de volta. — Queríamos lhe conceder nossos pêsames pelo ocorrido com o seu falecido marido. — Ah, obrigada. — Também queríamos nos desculpar por não termos comparecido ao... No meio da frase, a condessa parou de falar e os olhares dos
três pararam fixados em algo atrás de mim. Ou melhor, melhor, em alguém. Confusa com a repentina mudança de atenção, me virei para ver o que estavam fitando. É claro. Já deveria ter imaginado.
Ninguém roubava a atenção de um cômodo como ele. Sarkian Varant estava cruzando o salão. E vinha em nossa direção. As pessoas se afastavam e se curvavam conforme passava, mas ele só olhava para frente. Olhava para mim. E já estava perto demais quando pensei em sair dali. Assim que parou diante de nós, os três fizeram uma reverência reverência longa. Estavam nervosos. Mas não havia com o que se preocupar. O problema de Sarkian era unicamente comigo. Ele me encarou de cima a baixo, desde os meus saltos negros, ao longo do meu vestido da mesma cor, até meu rosto. E, de repente, eu fiquei muito ciente de que éramos os únicos no salão com vestimentas negras. Estávamos combinando. — Sinto tanto por sua perda.
Pisquei ao ouvir o som grave de sua voz. Não havia me esquecido dela — jamais poderia —, porém, era tão impactante quanto como se eu a tivesse ouvido pela primeira vez. — O quê?
— Ouvi di dizer zer qu que e está viúva. — Ouvi dizer que você matou a própria família — retruquei. A condessa se engasgou engasgou na própria sa saliva. liva. Sarkian lançou um breve olhar para ela antes de se voltar para mim e comentar: — Notícia velha. E não desvie do assunto. — Não estou. Não há o que falar. Ele faleceu. — Não consigo imaginar tamanha dor — disse. — Ele era tão jovem, não é? O conde e a condessa, claramente desconfortáveis com a tensão, aproveitaram para se retirar com a filha. Depois de uma apressada reverência, os três se foram, nos deixando a sós. — Sim — respondi. Eu não era capaz de enxergar, mas, pelo sutil movimento, podia apostar que ele havia franzido o cenho.
— Estranhamente jovem — comentou. — Quantos anos ele tinha? Dei um gole longo no meu vinho.
— Eu suspeito que você já saiba a resposta. — Ele sustentou o olhar no meu, então, eu finalmente cedi: — Vinte e um. — Qual foi a causa da morte? A apresentação da orquestra se iniciou no meio do salão, mas os olhares ainda se fixavam, na maior parte, em nós. — Envenenamento — respondi, com a boca seca. Dei mais um gole no vinho. Aproveitei a apresentação para desviar de seu olhar e encarar os músicos. Ao meu lado, Sarkian fez o mesmo. — Trágico — comentou, depois de um momento. — É, estou devastada. — Posso ver. Pegaram o culpado? — Sim. — Que bom. Não posso imaginar perder alguém que amo dessa forma.
Voltei a encará-lo. — Não posso imaginar você amando alguém. Ao observar seu perfil, conseguia ver a única e pequena parte da pele de seu pescoço exposta. Tatuagens negras destoavam na
pele branca. Aquilo o divertiu, divertiu, ao invés de of ofender ender.. — Parece que é uma dor da qual serei poupado, então. — Está orgulhoso disso? — Do quê? — Do seu coração de pedra? Da sua crueldade impiedosa? — Não estou envergonhado. Agora eu havia desistido de fingir me interessar pela apresentação. Meu corpo estava virado para os músicos, mas meus olhos estavam nele. — Por que está prolongando isso? — Especifique. — A guerra. Todos sabem que vai acontecer. Ele finalmente me lançou um olhar. — Sabem?
— Sim. Só se for idiota para achar que você, de fato, está interessado em um tratado. E nosso povo não é ignorante — alertei. — Então, não deveria se preocupar.
— Não estou — menti. — E não vejo a hora de te ver perdendo o posto de rei que mal conquistou. Seria até algum tipo de recorde, — um pequeno sorriso tomou o meu rosto — o rei que foi rei por, apenas, dois meses e meio. Talvez, tenha sido o vinho. Ou, talvez, o fato de que havia ganhado uma confiança tremenda depois da matar meu marido e conquistar a minha liberdade. O que quer que fosse, não fez com que eu me arrependesse de minhas palavras. O Rei das Trevas sorriu, os olhos ainda à frente. Ele tirou do bolso um cigarro de lavena, bem no meio do salão lotado. Bem na presença do Rei de Umbra. Mas não importava. Ninguém faria nada. Ele podia fazer o que bem entendesse e estava muito ciente disso. — Oh, farren. — Ele acendeu o cigarro casualmente e puxou a fumaça. — Você está tornando isso tudo muito mais interessante.
E, então, se afastou. Mesmo
pelo
tom
descontraído,
ou
suas
palavras
aparentemente inofensivas, eu sabia que aquilo não poderia ser
algo positivo. Não vindo dele. Porque, o que quer que fosse interessante para Sarkian Varant, definitivamente, não era para mim. Ele desapareceu entre as pessoas e, por fim, deixando a festa que foi dada para ele. Eu dei mais um gole no vinho, me voltando para o trono. Para o rei que permitiu o assassinato do meu melhor amigo. Para o rei que negava que garotas aprendessem a ler. Para o rei que condenava mulheres a um futuro de angustia ao lado de maridos cruéis. Ele tinha a taça erguida e fazia algum discurso prepotente que, obviamente, envolvia Deuses e o caminho da luz. Ele e a família se exibiam com arrogância. Olhando para nós de cima. Como se fossem os próprios Deuses na Terra. Eu o odiava. Odiava todos eles. Às vezes, eu sonhava que atiçava fogo no palácio. Eu observava as chamas lamberem todos eles. O reino, finalmente,
livre da realeza tirana. A ideia me veio assim. assim. De repente.
Na verdade, não foi bem uma ideia. Foi mais uma vontade. Algo que, provavelmente, sempre esteve ali, no fundo, escondida, mas presente. Porém, agora, era pulsante. A cada batida um pouco mais alto. Um pouco mais violento.
23
Andar pelo centro da cidade não era algo tão divertido de se fazer sem Rafe. Eu procurava por novos vestidos, já que nos últimos tempos havia ganhado ganhado o peso que perdi antes do meu casamento. Apesar de estar em uma rua lotada, nunca me senti tão solitária. A saudade de Rafe beirava a insuportável. Eu sabia que jamais conseguiria encontrar alguém como ele. Jamais teria um melhor amigo novamente. Minha atenção abandonou as vitrines ao avistar uma garota que estava sentada no beco de uma rua sem saída. Estatura
pequena e fios quase brancos escapando do gorro surrado. Era ela. Estava sentada em um banquinho e, à sua frente, havia uma pequena mesa de madeira. Suas mãos estavam repletas de cartas
enquanto conversava com um homem mais velho. Esperei o homem se distanciar para me aproximar aproximar.. — Olá. A garota levantou o olhar olhar.. Reparei que sua bochecha estava curada. — Quer jogar? — perguntou, sem mostrar qualquer tipo de reconhecimento. Aparentemente, ela não se recordava do nosso encontro. O que era interessante, porque pensei nela por muitos dias depois daquilo. — Sim. A garota começou a embaralhar as carta cartas. s. — São dois chins c hins para começar. Peguei as moedas na bolsa e as soltei em sua palma. — Eu vou embaralhar as cartas, e você vai escolher uma —
explicou. — Se eu errar, devolvo o seu dinheiro. Se eu acertar, fico com as moedas. Assenti.
Ela me mostrou o baralho de cartas e, então, estendeu para que eu pegasse uma. Seus olhos estavam fechados quando eu o fiz. A Deusa da Natureza. Natureza. — Agora, quero que pense na carta que está na sua mão. Ela me encarou. Fixamente.
Seus olhos eram tão intensos que, por um segundo, jurei que haviam cintilado. — Deusa da... Natureza — disse, finalmente. Podia ser um truque, claro. Mas, lá dentro, eu sabia que não era. Não depois de ter visto o seu sangue. Eu havia lido sobre os poderes dos caídos. Havia lido sobre alguns que tinham o poder da telepatia.
A garota lia mentes. mentes. No segundo em que cheguei c heguei àquela conclusão, ela se levantou abruptamente, derrubando derrubando a mesinha. A garota começou a correr. correr. E
eu não sei exatamente o que deu em mim, mas me m e vi correndo atrás dela. — Ei! Espere! — exclamei. Ela era extremamente ágil e, em poucos segundos, já havíamos passado por duas ruas distintas. Felizmente, não estavam muito movimentadas, então nós duas não atraímos tantos olhares. Ela cruzou em um beco e, assim que fiz o mesmo, trombei com alguém. Era Vesper. — Que porr porra a está fa… — Ele começo começou, u, confuso. Mas não parei de correr. — Ela! — soltei, ofegante. — Pegue ela! Não estava pronta para desistir da perseguição, não enquanto ainda a tinha em minha linha de visão. Não sabia ao certo o que esperava que Vesper fizesse, mas me surpreendi quando ele começou a correr também.
Ele tinha pernas compridas e não demorou muito para que a alcançasse. Vesper segurou o seu punho, obrigando-a desacelerar. Mas ela se debateu, lutando contra seu aperto. Estava prestes a escapar
— já que Vesper não usava muita força — quando me juntei a ele e a segurei também. A garota parecia um animal raivoso. Quando acertou meu olho com um dos dedos, perdi completamente a paciência. A empurrei e ambas caímos no chão, eu por cima dela. Sentei-me em seu estômago e lutei contra seus braços finos, porém, rápidos. — Me solte! — Ela berrou. Os fios brancos estavam espalhados pelo seu rosto de forma selvagem, assim como os meus. — Eu só quero conversar! — expliquei, gritando de volta. Consegui segurar seus braços e os prendi sobre o chão. — Hum… posso saber por que está atacando uma garota? — Ouvi Vesper atrás de mim. — Segure os pés dela! — Eu não vou…
— Segure os pés dela! — gritei novamente ao virar meu rosto em sua direção. Estava ofegante e suando.
Devia ter soado assustadora, porque ele fez o que pedi. Ou melhor, ordenei. Me voltei para ela, que ainda se debatia. Começou a gritar loucamente e fiquei com medo de que chamasse atenção. — Se não parar, parar, vou te dar um ssoco! oco! — avisei. — Eu acho melhor a gente se acalmar… — Vespe Vesperr começou a dizer, atrás de mim. Ela continuou exclamando a plenos pulmões. Meus ouvidos doíam. Levantei meu punho direito e a acertei. Não usei toda a minha força porque não queria machucá-la de verdade, apenas chocá-la o suficiente para que se calasse. Mas, provavelmente, devido a adrenalina correndo dentro de mim, o impacto foi mais forte que eu planejei porque, além se calar, ela parou por completo. A garota desmaiou. desmaiou.
— Caralho! — Vesper exclamou. — Você é completamente louca? Soltei seus braços e recuei ao passo que observava seu rosto. Saí de cima dela, para que Vesper enxergasse também.
— Veja. Assim que viu o sangue negro escorrendo de seu nariz machucado, o rosto de Vesper passou de confuso para totalmente chocado. — Puta merda... — Ele murmurou em um suspiro. Ele piscou e, finamente, olhou para mim. — É o que estou pensando? — Não sei, não leio pensamentos. Ela, por outro lado… — Um… caído — A palavra deixou a sua boca em um sopro
sombrio. — Não é possível. Apontei para o seu rosto. — Não tá enxergando? — indaguei, frustrada. — Sim, mas… Olhei para ela, que ainda não havia acordado. Comecei a ficar
preocupada. — Acho que eu bati muito forte. — Você acha? Ela tá respirando? Aproximei o meu rosto do dela.
— Acho que sim. — Como assim “acho que sim” ? — Ele perguntou, alto e estressado. — Ela tá ou não tá? — Tá! Ela tá respirando! O som de conversa vindo do final do beco me deixou ainda mais nervosa e em alerta. — Vamos, pegue os pés dela — pedi, ao me levantar. — Eu fico com os braços. Vesper não se moveu. — O quê? — Piscou. — Você não pode estar falando sério. Eu limpei o suor da minha testa, irritada. — Eu pareço estar brincando? — indaguei, entredentes. — Sabe o que é isso? Sequestro. — Ele se levantou e deu um passo para trás. — Eu não vou sequestrar uma garota. — Ela não é uma garota — rebati. — Além do mais, não está
curioso? Vesper a encarou por um longo momento. Ele estava, era claro que estava. Um caído. Em carne e osso.
E sangue negro. — Não vamos machucá-la, só… — Até porque, você já fez isso. — Ele interrompeu. — Só vamos fazer umas perguntas — completei, tentando manter o fio de calma que ainda me restava. Precisava de ajuda. Não conseguiria movê-la sozinha. — Sabe, já pensei muitas coisas sobre você. Mas nunca achei que fosse um covarde. O desafio estava claro em meus olhos. Sua feição mudou e demorou menos de dois segundos para que ele tomasse uma decisão. — Cale a boca e pegue os braços dela antes que alguém nos veja. Sou bonito demais para ir para a cadeia. Não podíamos carregá-la por tanto tempo sem que ficasse suspeito, ela era pequena e muito leve, porém, com o corpo mole,
era um peso morto e difícil de transportar. Felizmente, sua carruagem estava por perto. Vesper se afastou um pouco e, então, assoviou para o criado. A carruagem parou ao nosso lado e a colocamos para dentro. O criado nos lançou um olhar estranho ao ver a garota
desacordada. — Nossa amiga está passando mal — expliquei, numa tentativa um tanto patética não parecer uma criminosa. — Não se preocupe com Albert. — Vesper comentou, se acomodando no estofado. — Já viu coisas bem piores trabalhando para a minha família. A carruagem começou a se movimentar movimentar.. — Eu nunca achei que estaria, um dia, cometendo um crime, especialmente com você. Ela se mexeu um pouco ao meu lado. Eu não tinha certeza se era devido ao balanço da carruagem ou se estava despertando. — Droga. O que eu faço se ela acordar? — Acho que você vai ter de socá-la de novo. Eu lhe lancei um olhar. — O que foi? A gente já tá ferrado mesmo.
Felizmente, ela ficou desacordada pelo resto do caminho. Fomos para minha casa, já que Vesper morava com os pais. Mas, ao invés de entrar na sede, a carregamos direto para dentro do
celeiro. Não podia arriscar que algum criado me visse arrastando uma garota desmaiada por aí. Amarramos suas mãos e pés, e a colocamos sentada em uma cadeira nos fundos do celeiro. — Vamos colocar algo em sua boca, para o caso de ela voltar a gritar. Vesper me encarou em um misto de desconfiança e admiração. — Você é estranhamente boa nisso. Colocamos uma mordaça em sua boca e a observamos por um momento, em silêncio. O sangue em seu rosto havia secado. — Talvez, haja uma explicação. — Vesper soltou, pensativo. — Para o sangue dela ser negro? — Pode ser uma doença. — Sobre qual doença você já ouviu falar que deixa o sangue
negro? E fora que ela não parece nada doente. Muito pelo contrário, pensei, se debateu como como um se fosse um homem de cem quilos.
— Ela acordou. — Vesper avisou.
Olhei para ela. A garota movimentava a cabeça conforme piscava. Até que, por fim, fim, processou sua situação situação.. Ela arregalou os olhos em nossa direção e começou a gritar. Mas o barulho não passava de um som abafado e estrangulado. — Não queremos te machucar! Não adiantou, ela continuou tentando pedir por ajuda. — A gente só vai tirar esse troço da sua boca se você calar a boca. — Vesper se adiantou. Aos poucos, ela parou. parou. Me aproximei com certa cautela e abaixei a mordaça. No mesmo segundo, ela voltou a gritar. — Socorro! — Eu vou socar ela de novo — sibilei para Vesper. — Não vou te impedir, já tô com dor de cabeça.
Coloquei o pano em sua boca de novo e esperei até que se acalmasse. — Eu vou tirar isso de novo, ok? — anunciei, tentando me controlar. — E você tem duas escolhas escolhas:: ficar quieta e nos ajudar, ou
gritar a ponto que alguém descubra você aqui. A questão é: imagino que não queira que saibam quem você é, certo? A ameaça foi necessária. necessária. Tirei o pano e, ao invés de gritar, a garota falou: — Não sei do que está falando. — Não vamos perder tempo com mentiras. — Indiquei para seu rosto. — O sangue. Ela engoliu em seco. — Quem são vocês? O que vocês querem? — A gente faz as pergun… — Somos espiões. — Vesper deu um passo à frente, com um certo tom dramático na voz. Me virei para ele, que apenas me lançou um olhar que parecia dizer: Ah, vamos lá. lá. Entre no jogo. jogo.
— Não devem ser muito bons, então. Espiões não costumam admitir que são espiões. — Já conheceu algum espião antes, por acaso? — Ele rebateu.
— Não. — Então, pronto. Um sorriso zombeteiro quebrou em seus s eus lábios. — Tudo bem, são espiões, então. — O que é engraçado? — Vesper indagou, frustrado frustrado.. Eu suspirei. Com os olhos fixos nela, falei: — Ela lê mentes, Vesper. O sorriso da garota deixou seus lábios ao ouvir as palavras que saíram a minha boca. E aquilo apenas confirmou minha suspeita. — O que vocês querem? — Ela repetiu, mas com a voz baixa e um tanto sombria. — Só queremos saber algumas coisas. Ela ficou em silêncio, como se esperasse que continuássemos. — Há mais de você? — perguntei.
— Acha mesmo que encontrou o último caído da Terra? Tive vontade de socá-la de novo, mas me contive. — Você conhece muitos iguais a você?
Ela se remexeu na cadeira. — Muitos, não. — Ler mentes é a única coisa que você v ocê faz? — Se eu cuspisse fogo ou algo assim, já teria te queimado viva. Respire, Cera. Você a socou e, então, a amarrou. Ela tem motivos para ser babaca.
— Sorte minha, então. — Cruzei os braços. — Por que trabalha nas ruas? Com um poder desse, poderia estar rica. A garota pareceu ofendida. — Não posso usá-lo de forma que fique óbvio demais. É fácil simplesmente dizer que é um bom e velho truque de mágica amador. Fora que é um dinheiro rápido. — Os outros que conhece, o que fazem?
Ela hesitou, claramente desconfiada. Ela não queria entregar os outros, e respeitei sua lealdade. — Não quero prejudicar você ou qualquer outro caído. Não tenho nenhum problema com a existência de vocês. — Fiz uma
pausa e notei que ela não parecia convencida. — Você lê mentes, certo? Sabe que não estou mentindo. Ela me encarou por um momento, em silêncio, até que respondeu: — Basicamente, o mesmo que eu. Se escondem e tentam usar seus poderes de forma discreta para ganhar a vida. Mas alguns não usam nunca, acham arriscado demais. — Você não acha? — Não nasci em um berço de ouro como você. Preciso comer. — Ela retrucou. — O que estou pensando neste exato momento? — Vesper perguntou, de repente. Estava quieto até agora. Observava a garota ainda em completa fixação. Ela permaneceu com o olhar nele por um momento. E, então, franziu o cenho.
— Molho de páprica. — Ela parecia tão incerta quanto confusa. Vesper olhou para mim com os olhos arregalados e a boca entreaberta. — Caralho!
Eu o lancei um olhar tão confuso quanto o dela. — Molho de páprica? Ele deu de ombros. — Eu precisava de algo bem específico — ele justificou —, para realmente testá-la. Me virei para a garota. — Pode ler a mente de qualquer um? um? Ela assentiu. — Desde que me concentre na pessoa. Ponderei sobre aquilo. O poder que aquela garota tinha era de uma magnitude imensurável. Havia tantas possibilidades. — Como é isso? — indaguei, um tanto perplexa. Ela desviou o olhar do meu e, quando voltou a me encarar, vi seu rosto vulnerável pela primeira vez. — Uma maldição.
— O rei sabe sobre a existência de vocês? — Vesper perguntou. — Sabe. Mas ele abafa os casos. Creio que o imbecil não queira criar caos ou medo no povo. — Raiva atravessou seu olhar.
— Nos caçam em silêncio. O ponto positivo é que acham que somos menos do que realmente somos. — Vocês são muitos? — Não muitos. Mas já ouvi falar que há reinos onde existem comunidades. Me aproximei dela. E, obviamente, a garota já sabia o que eu estava prestes a fazer porque se adiantou: — Não. Eu já respon… Tapei a sua boca antes que ela pudesse continuar falando. Lancei um olhar para Vesper e indiquei para que deixássemos o cômodo. — Espiões, sério? — comentei. Ele deu de ombros. — Não podia perder a oportunidad oportunidade. e. Me encostei na parede e cruzei os braços. Encarei o chão
conforme pensava em todos os acontecimentos recentes. — Já pensou em como seria se as coisas fossem diferentes? — quebrei o silêncio. — Como assim?
— Se não precisasse temer pela sua vida e pela vida de quem ama. Seu rosto se tornou frio. Ele desviou o olhar. — Isso é impossível aqui. — Mas, e se não fosse? Ele me observou por um momento. — Do que está falando? Demorou um tempo para que eu reunisse coragem. Para que pudesse verbalizar algo que, de certa forma, eu mesma achava loucura. — Estou falando de tomar o poder. O trono. Vesper riu, mas parou assim que notou que não o acompanhei. — Ah, você está falando sério. — Ele franziu o cenho. — Perdeu a cabeça? — Eu sei que parece loucura, mas já foi feito antes. Não é
impossível. Me recordei de Sarkian ao lado do trono, a máscara do pai nas mãos. — E como nós faríamos isso?
— Bem, não seria de imediato... Precisaríamos de tempo para criar um plano. Um bom plano. — Tem mais gente nessa? Desviei o olhar e troquei o peso dos pés. — Não. Ainda não. — Ah, então seriamos só eu e você contra um reinado inteiro? Um time e tanto. — E ela. Vesper olhou para onde a garota estava amarrada e, então, voltou a me encarar. — Ela? — A garota lê pensamentos, Vesper. Tem noção disso? Não há nada mais poderoso do que o conhecimento. E ela sabe de tudo que se passa na cabeça de todo mundo. Com ela e um bom plano, temos uma chance real nisso.
Vesper pensou por um momento, encarando o chão da mesma forma que eu tinha feito há alguns minutos. — Você está falando sério mesmo, não é? — perguntou ao voltar a olhar para mim.
Engoli em seco. Não havia mais volta agora. Tinha tomado a minha decisão. — Estou. — Nem sabe se ela vai concordar. — Não se preocupe. Deixe que eu cuide disso. Ele sorriu em meio a uma careta conturbada e passou ambas as mãos pelos cabelos escuros. Quando voltou a me encarar, indagou: — Você tem noção de como você soa insana falando isso tudo? Eu sabia. Talvez, eu estivesse mesmo louca. Talvez, todas as últimas tragédias da minha vida haviam me enlouquecido. Mas, dentro do meu peito, por alguma razão, eu sentia como se estivesse enxergando com clareza pela primeira vez na vida. Descruzei os braços e tirei as costas da parede.
— Você não sente raiva, Vesper? — Me aproximei dele. — A cena não fica repassando centenas de vezes em sua mente? Não precisava dizer sobre o que me referia. Ele sabia muito bem.
Vesper desviou o olhar, e notei seus olhos ficarem marejados. Sua mandíbula tensionou. — Nunca deixa a minha cabeça. — Ele admitiu. Fiquei de frente para ele. — Eu quero vingança, Vesper. Quero olhá-los de cima enquanto os faço se arrependerem — assumi. — Está comigo nessa? Ele pensou por apenas um momento. A dor refletiu em seus olhos com torturante clareza. — Não tenho muito mais a perder.
24
Depois que o punho acertou seu rosto com uma força impressionante, o homem caiu no chão, desacordado. Allegra estremeceu estremeceu ao meu meu lado. — Senhora, tem certeza de que essa é uma boa ideia? Ele não me parece muito... equilibrado. Nos aproximávamos dos fundos do bar, onde a luta tinha acabado de terminar. O homem no chão não se movia e comecei a me perguntar se ainda respirava. O brutamontes que havia o derrubado se chamava Bax Huffus. Um dos melhores lutadores que já tinha visto em arena. Ele havia se
aposentado recentemente, mas parecia sentir falta das lutas porque estava sempre arrumando alguma briga nos fundos de bares. — Ele é o melhor que temos, Allegra. — Lancei um olhar para o homem de um metro e noventa. — Equilibrado ou não.
As pessoas, que antes observavam a confusão, começaram a se afastar. Assim que Bax ficou sozinho, me aproximei. — Impressionante — comentei. Ele se virou e encarou a mim e a Allegra de cima a baixo. Era completamente careca e tinha uma cicatriz enorme na lateral direita do rosto. — As lojas de roupas são para aquele lado. — Indicou com a cabeça para a rua oposta. — Não estou aqui para fazer compras — respondi, em tom seco. — Quero contratá-lo. Ele já tinha se virado novamente, mas, então, voltou a me encarar. Passou a mão na testa suada e franziu o cenho. — Para o quê? — Me ensinar a lutar. Ele riu. Uma risada grossa e alta. Notei que lhe faltavam dois
dentes da frente. — Lutar? — indagou. — Sim. Alguns golpes para me defender. — Por que alguém como você precisaria saber disso?
Comecei a me irritar. — Isso não vem ao caso. Está interessado ou não? — De quanto estamos falando? Lhe estendi a minha bolsa repleta de moedas. Ele olhou para o dinheiro e, então, para os meus olhos. — Quando começamos?
— Isso vai dar merda. — Vesper cantarolou ao meu lado conforme nos misturávamos entre os nobres. Ele estava se referindo a Willow que, à minha direita, ficava puxando o próprio vestido de cinco em cinco minutos. Eu precisava introduzi-la à nobreza. Ela só me traria informações importantes se estivesse na presença de pessoas importantes. Então, eu precisava dela no palácio. E não vou mentir que eu estava especialmente ansiosa para
usar suas habilidades em Sarkian. — Pare de mexer no seu vestido — murmurei, entredentes. Ela nunca havia colocado os pés em um palácio, aquilo era muito claro. Só não podia arriscar que alguém notasse este fato.
Havia pedido a Allegra para arrumar seu cabelo e maquiagem. Emprestei um dos meus vestidos e fizemos alguns ajustes, já que ela era consideravelmente mais baixa. — Esse troço pinica. Seria possível ter me dado um vestido mais desconfortável? — Como a convenceu disso mesmo? — Vesper questionou. Ele pareceria estar se divertindo com toda a situação. — Eu vou pagar a ela por seus serviços. — E ela aceitou? Deve estar dando uma bela grana a ela. — Bem — aproximei meu rosto ao abaixar o tom —, também ameacei revelar sua identidade, caso não ajudasse. Vesper assentiu, sorrindo. — Agora sim, faz sentido. Mas não era apenas aquilo. Ameaçar alguém como Willow era perigoso. Ela poderia muito bem mentir para mim e dar informações
erradas sobre o que as pessoas estavam pensando, e eu jamais iria descobrir. Além do dinheiro e da — sutil — ameaça, a relembrei de como o Rei Boran odiava os caídos. Ele caçaria pessoas como ela pelo resto de seu reinado. Ela queria tirá-lo do trono também. E nada formava alianças melhores do que ter inimigos em comum.
— Cale a boca. Sarkian trouxe Despinna com ele. Soube daquilo naquela manhã porque, enquanto estava no centro da cidade com Allegra, a vi fazendo compras em uma das lojas de vestidos mais caras. E ela usava o colar da minha mãe. E, então, lá estava ela no centro do salão, cercada por homens. Alguns a olhavam de forma preconceituosa; não estavam acostumados com aquele tipo de vestimentas entre os nobres. Já outros, pareciam querer engolir seu decote. Mas não foi isso que me chamou atenção, foi o fato de não estar usando nenhuma joia além de brincos de rubi agora. Sarkian estava na mesa principal, junto ao rei. O colar teria que estar guardado em seus aposentos então, deduzi. Se eu pudesse conseguir o colar da minha mãe de volta,
aquela era a única chance. — Fique de olho nela — pedi, ao me virar para Vesper. — E comece a introduzi-la para as pessoas. Vesper franziu o cenho.
— O que vai fazer? — Volto logo — prometi, já me distanciando. Subornei um dos criados com algumas moedas para saber onde o Rei de Khrovil estava hospedado hospedado.. Obviamente, a porta estava fechada, mas não trancada, o que me surpreendeu. Olhei para o corredor vazio, a fim me certificar de que ninguém me veria entrando, antes de girar a maçaneta. O cômodo estava escuro, a única fonte de luz vinha de uma janela aberta nos fundos do quarto. Meu coração batia forte ao entrar. Deixei a porta encostada para poder ouvir o corredor. O cômodo era enorme, com uma cama dossel no centro. Fui direto até a mesa de madeira repleta de gavetas. Um movimento na cama me fez congelar. O grito agarrou em minha garganta ao encarar o colchão. No começo, era apenas um movimento nas sombras.
O que era aquilo? Foi então que, no meio da escuridão, vi um par de olhos brilharem. A sombra preta se movimentav movimentava a lentamente, como se estivesse se levantando. De repente, estava de quatro na cama.
O que quer que fosse, não era humano. Foi só quando ela colocou uma pata no chão que eu entendi o que era. Um felino. Não podia ser.
Meu primeiro instinto foi correr, mas, por alguma razão, eu sabia que aquilo não seria uma boa ideia. O animal desceu da cama com a lentidão e a cautela de um caçador diante da presa. Seus olhos — da cor mais fascinante de âmbar — em mim o tempo todo, sem, ao menos, piscar. Eu iria morrer. Não havia dúvidas.
O
animal
começou
a
se
aproximar.
Minhas
pernas
fraquejaram. O silêncio era ensurdecedor. Pensei em gritar, mas tinha a
sensação de que, no momento em que o fizesse, o animal atacaria. Quando a aproximação se tornou insuportável, dei um passo muito lento para trás.
Daquela maneira, eu conseguia vê-lo com mais clareza. O animal era negro como o céu à noite, com uma longa e lisa calda. E era assustadoramente grande. Eu dei mais um passo para trás e, dessa vez, as minhas costas bateram na mesa. O animal continuou avançando. Nunca achei que morreria tão jovem. E jamais imaginei que seria de forma tão trágica e violenta. Imagens de suas garras rasgando a minha pele atravessaram pela minha mente. — Deixe-me adivinhar: perdida de novo? A voz ecoou suavemente, mas o susto foi tão grande que quase me fez pular. O que me impediu foi a total consciência de que, se fizesse qualquer movimento brusco, eu seria devorada. Virei meu rosto na direção da porta. Ele estava parado com a lateral do corpo apoiada no batente.
Mãos nos bolsos da capa escura. Acho que aquela foi a primeira vez em que não senti algo negativo ao ver Sarkian Varant. Senti algo que nunca achei que sentiria diante de sua presença.
Alívio.
A besta ainda me encarava encarava fixamente, fixamente, mas havia parado de se movimentar. Estava a cerca de dois passos de mim. Foi difícil de encontrar a minha voz. — Que… porra é essa? — Não estudam biologia em Umbra? — questionou, sem se mover. — Se chama pantera, é da família dos felinos. — Ela não devia... — engoli em seco, minha garganta parecia uma lixa — estar em uma jaula? A pantera emitiu um som rouco vindo da garganta e deu mais um passo à frente. Fechei os olhos com força. Ela iria me devorar. E ele iria assistir.
Chega.
Apesar de baixa, sua voz soou grave dessa vez,
ecoando por todo o cômodo. Quando abri os olhos, a pantera havia parado. Ela me encarou fixamente por um longo momento antes de, finalmente, recuar. Deu
as costas para mim e voltou para a cama, como um doce animal de estimação. Soltei a respiração devagar. — O que veio fazer aqui? Voltei a olhar para ele. E, por um momento — muito estúpido —, pensei em lhe agradecer. — Entrei sem querer. Sarkian jogou a cabeça para trás e um grunhido em meio a um suspiro deixou a sua garganta. Notei seu pescoço marcado pelas tatuagens negras — que subiam pela sua pele — antes que voltasse a me encarar. Ele tirou as costas da madeira. — Não estou com paciência para mentiras hoje, farren — disse ao adentrar no cômodo. — Acabaram de invadir o meu quarto. Não estou no melhor dos humores.
Como se o meu corpo lentamente tivesse descongelado, voltei a mover meus músculos há pouco tempo petrificados. Desencostei a base das costas da mesa e lancei um olhar para a pantera antes de falar fala r. — Vim pegar o que roubou de mim.
— Sua confiança? — provocou. — Sua dignidade? — Para quem afirmou estar de mau humor, está fazendo comentários bem engraçados. Sarkian torceu sutilmente a cabeça. — Isso foi um elogio? — Eu sei que o colar é insignificante para você. — Isso é presunção sua. — Podemos fazer uma troca. Isso chamou a sua atenção, vi pela forma como o brilho sádico refletiu em seus olhos. Ainda com as mãos nos bolsos, ele parou de frente para mim. Tive a sensação parecida de poucos minutos atrás, com a pantera. Como se estivesse sendo encurralada. — O que você poderia ter a oferecer, que me interessaria?
Havia um tom claro de escárnio em sua voz. Arranhei a garganta garganta e, infeli infelizmente, zmente, o qu que e deixou a minha minha boca foi algo bem estúpido. Culpei o fato por ter quase — literalmente — morrido de susto segundos atrás. — Eu tenho dinheiro.
Isso o divertiu. A sombra de um sorriso tomou seus lábios. — Já sou um homem rico. — Não gostaria de ficar mais? — Na verdade, não. Tentei imaginar o que ele mais desejava no mundo. Mas, provavelmente, era algo que eu jamais poderia oferecer. Ele era um rei e eu… bem, eu não era nada. — Eu saio do seu caminho — declarei. — Nunca mais terá que me ver, se me devolver. Ele franziu o cenho. — E, então, quem eu iria torturar? — Aposto que tem um leque de opções — retruquei. — Não sou especial. — Não, não é.
Por alguma razão, aquilo doeu mais do que deveria. Talvez, tenha sido a forma como ele falou. Tão sincero e cru. Como se fosse um fato. Sarkian já havia me dito tanta coisa pior, mas aquelas palavras me incomodaram no mesmo nível. O que era ridículo.
— Você o matou, não foi? — O quê? Ele me fitou por entre os cílios obscenamente longos. — Seu marido, farren. Pisquei ao franzir o cenho. — Eu não sei do que… — Não se faça de estúpida, não combina com você. — Isso foi um elogio? — atirei. Sarkian me observou por um momento e, então, sorriu — um movimento extremamente sutil e quase imperceptível dos lábios. O silêncio se tornou desconfortável. Para mim, claro. Nada parecia o deixá-lo desconfortável. Isso me dava nos nervos. Ele se virou. — Diga e, talvez, eu te devolva o colar.
Troquei o peso dos pés e lancei um olhar para a pantera, que nos observava. Seu rabo balançava preguiçosamente. Chegava a ser irônico que Sarkian tivesse uma pantera. Porque, se ele fosse um animal, definitivamente, seria um felino. A semelhança do olhar e dos movimentos era assustadora.
— Dizer o quê? — A verdade — exigiu, sem olhar para mim. Parou em frente à uma mesa e pegou uma garrafa de vinho. — O matou, não foi? — Por que faz tanta questão de saber? Sarkian derramou o vinho na taça, sem pressa. Então, me fitou. — Porque gosto de estar certo sobre as pessoas. Analisei as minhas opções e decidi que valia o risco de assumir o crime. Para Sarkian, a vida de Theon não tinha diferença, de qualquer forma. Sem contar que, se ele quisesse me incriminar por alguma razão, ele podia simplesmente fazê-lo, não precisava da minha confissão para isso. — Sim — admiti, encarando-o. encarando-o. — Eu o matei. Sarkian sorriu. Aquele sorriso perverso e cheio de satisfação pessoal que eu não suportava.
— Está satisfeito? Ou quer saber o que senti também? — indaguei, entredentes. entredentes. — Se gostei? Sarkian levantou a taça até os lábios e deu um longo gole antes de falar:
— Não é preciso. Já sei a resposta desta pergunta. Eu abri a boca, mas não cheguei a emitir nenhum som. — Sempre soube que havia algo de perverso em você. Ele começou a fechar a distância entre nós novamente. Sorri. — Veja quem fala. Sarkian parou em frente a mim, sua voz saiu um pouco mais baixa e rouca ao dizer: — Pelo menos, eu não finjo. Tive vontade de mandá-lo ir à merda, mas estava bem ciente de que, com apenas uma palavra, ele poderia mandar sua besta de estimação me devorar. — Meu colar — lembrei. Eu só queria pegar o que era meu e dar o fora daquele quarto.
— Ah — Sarkian colocou a mão no bolso direito —, este aqui? Ele ergueu o colar entre nós e os diamantes brilharam diante dos meus olhos. — O que tem ele? — indagou, quase inocentemente, antes de dar um último gole na taca de vinho.
Cerrei os dentes e voltei a encará-lo. — Disse que me devolveria, se dissesse a verdade. — Eu não sou conhecido pela minha integridade, farren. — Ele comentou, com o colar balançando suavemente em suas garras. — Já deveria saber disso. A joia estava tão perto, ain ainda da assim, ttão ão longe. Em um impulso, dei um passo à frente e fiquei na ponta dos pés, esticando a mão para alcançar o colar. Mas Sarkian foi mais rápido e ergueu ainda mais o braço, deixando o objeto inalcançável. Meu peito roçou em sua capa, mas só quando meus olhos deixaram o colar que notei em qual posição eu havia nos colocado. O quão próximos estávamos agora. Terrivelmente próximos. Nossos rostos estavam a cerca de centímetros de distância. Ele cheirava a vinho, lavena, e um sutil toque de couro. Sarkian não se moveu. E, por um momento que durou uma
eternidade, eu também congelei. Meus olhos caíram para sua boca. Engoli em seco ao notar seus olhos fazerem o mesmo trajeto. Minha visão se tornou turva e o mundo pareceu congelar.
— Se eu fosse você, iria embora. — Sarkian quebrou o silêncio ao soprar, sem mover um músculo sequer. A pantera emitiu um som da cama. — Ela ainda não jantou.
25
A notícia do ataque contra Roquilon veio por meio de um comunicado real. Era sobre o que todos estavam falando naquela tarde. O Rei de Umbra e o Rei Sarkian juntariam exercícios para derrotar Roquilon, um reino relativamente pequeno, mas rico em terras excelentes para colheita. Eu já devia saber que havia segundas intenções vindo de Sarkian. Ele não estava disposto a ficar em paz com Umbra pelo simples bem das nações. Ele precisava de Umbra. A única questão é o que aconteceria após a guerra contra Roquilon. Caso eles
ganhassem, e Sarkian já tomasse o que ele precisava de nós, temia o que aconteceria em seguida. Enquanto isso, eu estava aprendendo a bloquear golpes.
— Mãos erguidas em frente ao rosto! — exclamou Bax, ensaiando ataques contra mim. — Você precisa proteger seu nariz. O suor escorria pela minha testa. Estávamos naquela dança há horas e ele não me deixava parar. Dizia que alvos parados eram mais fáceis de serem acertados. Então, eu precisava estar em movimento conforme bloqueava seus ataques. Eu usava calças, já que o vestido atrapalhava muito a agilidade. Eu adoraria poder usar aquele tipo de roupa em ocasiões sociais, mas os nobres não tirariam seus olhares pasmos de cima de mim. E a última coisa que eu queria agora era chamar atenção. Bax mal ofegava. Por mais que eu tentasse desviar, ele conseguiu avançar em direção ao meu rosto. Bax deu um peteleco na ponta do meu nariz, me fazendo recuar. Eu o fitei meio ofendida, meio frustrada. Não havia nada de mais desmoralizador do que um peteleco no nariz.
— Uma pancada forte no nariz pode te deixar desacordada por horas. — Ele comentou. — Escute de alguém que já o quebrou mais de cinco vezes. O nariz de Bax era predominante e torto em várias direções, não duvidava nem um pouco daquele fato.
Depois de quase duas horas de aula, encerramos. Era meu terceiro dia aprendendo com Bax, e, apesar de ser extremamente cansativo, era enervante. — Você está progredindo bem para uma garota. Ele não disse aquilo como um insulto, foi um elogio. Bax era um brutamontes grosseiro, mas de bom coração. Mesmo assim, fiz questão de retrucar: — E você não está tão mal para um aposentado. Allegra me preparou um banho logo depois. Meus músculos tensos relaxaram um pouco na água quente. — Senhora, por que está fazendo isso tudo? — Como assim? — Os treinos com esse homem. Trazer aquela garota desconhecida para ficar aqui.
Allegra sabia que eu estava tramando tramando alguma coisa, aqui aquilo lo era óbvio. Mas não sabia exatamente o que. Não é que eu não confiasse nela; depois do ocorrido com Theon, criamos certa parceria. A questão é que, mesmo para mim, o plano ainda parecia muito absurdo e assustador. Não imaginava qual seria a reação dela.
Eu a encarei por um longo tempo, analisando todas as minhas opções e decidindo se valia o risco. Tomei a minha decisão. — Quer mesmo saber? Allegra nem hesitou, assentiu firmemente. Depois que se aproximou da banheira e me ouviu falar por cerca de cinco minutos, ela indagou: — Como posso ajudar?
Os exércitos estavam em posição de partida. Os soldados de Khrovil chegaram em nossa cidade aos montes, manchando nosso reino de sombras pretas e mascaradas. Muitos civis estavam descontentes com aquilo, mas Umbra foi o ponto de encontro porque era mais perto do mar que precisavam cruzar para chegar à Roquilon.
Como tradição antes de uma guerra, o povo aplaudia e desejava sorte aos reis e soldados. O Rei de Umbra lançava acenos ao povo, se embebedando da glória e da promessa de uma vitória. Sarkian permanecia em silêncio, encarando meu povo como se fôssemos os próximos.
Aproveitei
a
minha
posição
privilegiada
próxima
das
escadarias do castelo para me aproximar. No instante em que Sarkian desceu o último degrau para seguir em direção à carruagem real, parei em sua frente. Estávamos praticamente no mesmo lugar em que nos vimos pela primeira vez. — Veio me desejar boa sorte? — perguntou, com claro sarcasmo em sua voz. Parecia calmo demais para alguém que estava prestes a entrar em uma batalha. O fitei por um longo momento antes de me aproximar. Meu rosto se aproximou de seu ouvido. Pensei que, talvez, ele fosse recuar, mas permaneceu parado, sem movimentar um músculo sequer. Se o peguei de surpresa pela aproximação, não fui capaz de ver devido à máscara. Com a mais completa e crua sinceridade que havia em mim,
murmurei: — Espero que morra. Demorou um instante, conforme ele processava as minhas palavras. Até que eu recuei e Sarkian alinhou o olhar no meu. Um sorriso perverso, porém, genuíno, atravessou seu rosto.
— Ah, farren... — Fui capaz de ouvir o prazer em sua voz. — Acha mesmo mesmo que eu te da daria ria tamanha s satisfação? atisfação?
O Rei das Trevas avançou pelo campo de batalha derrubando corpos a cada passo que dava de forma letal e graciosa Ele tomava vidas com a mesma facilidade em que homens se levantavam pela manhã Em sua cabeça só havia uma coisa voltar para Umbra para vê-la
Porque ele definitivamente não lhe daria aquela satisfação
26
A guerra durou cerca de três semanas. Roquilon foi massacrada. Sarkian não foi morto, infelizmente. Muito pelo contrário. Disseram que ele passou pelo campo de batalha derrubando homens a cada passo que dava. Por mais que eu estivesse decepcionada, não estava muito surpresa. Durante o tempo em que os soldados tiravam a vida uns dos outros em campo, eu arquitetava para ter o meu próprio exército. Não seria capaz de recrutar um batalhão sozinha e tão de pressa. Então, a ideia era tomar um. Mandei Allegra se informar
com os criados do castelo sobre os generais. Precisava de qualquer segredo, ou rumor, que me desse alguma vantagem. Os soldados de Umbra eram divididos em sessões e comandados por generais. Desde o recrutamento, eles cresciam
sob as ordens do mesmo homem. Eram fiéis a ele, alguns mais até do que ao próprio rei. O general DeLarosa estaria no palácio para a recepção dos reis e do exército vitorioso. De acordo com o que Allegra havia ouvido dos criados, ele vinha tendo alguns desentendimentos com o nosso rei ultimamente. Suas ideias estavam divergindo, o que quer dizer que, talvez, ele não fosse tão contra outra pessoa no poder poder.. Agora, só precisávamos de de alguma informa informação ção crucial. — Geralmente, só a menção da palavra segredo faz a pessoa, instantaneamente, pensar em seu segredo mais valioso — Willow me instruiu logo antes de encurralarmos o general em um dos salões. — Então, tente inserir isso na conversa. O general DeLarosa estava ao lado da mesa de petiscos, com um copo nas mãos. Era fácil identificá-lo, já que era a única pessoa naquele salão que usava um tapa olho. Uma das várias lembranças
deixadas pela guerra. — Boa noite, general. — Boa noite. — Ele não nos olhou ao responder, tinha o olhar fixo nos pães salgados.
— Esta é a minha grande amiga, Moura — apresentei Willow, cordialmente, não usando seu verdadeiro nome. — Queríamos te parabenizar pelo seu feito na batalha. — Obrigado. — Foi tudo o que disse. Era difícil manter uma conversar com alguém monossilábico. Ele não estava me dando muito material para trabalhar, mas continuei: — Imagino que deva ser desafiador entrar na batalha com alguém que não conhece, como o Rei Sarkian. Ele finalmente escolheu um salgado e o enfiou na boca. Olhou para nós pela primeira vez. — Desafiador seria um eufemismo — disse, ainda com resquícios de pão na boca. — É difícil confiar em alguém que parece tão… misterioso — lancei um olhar para Willow, em busca de apoio —, não é?
— Ah, sim. — Ela assentiu, firmemente. — Com certeza. Ele olhou para mim e assentiu apenas por um segundo antes de voltar a se inclinar sutilmente sobre a mesa, completamente desinteressado.
— Bem — eu lhe lancei meu melhor sorriso descontraído —, mas acho que todos nós temos nossos segredos, certo? Seu olhar deixou a comida e se estreitou em minha direção. Ou, melhor dizendo, um olho se estreitou em minha direção. Soube no mesmo instante que havia sido abrupta demais. — Se me dão licença. — O general avisou e começou a se afastar para o final da longa mesa. Ele parou na parte dos doces, claramente tentando se afastar de nós. Eu me virei no mesmo instante para Willow Willow.. — E aí? — indaguei, em expectativa. — Ele está dormindo com a mulher de outro general. Prendi a respiração. — Quem? — Uma tal de Belinda.
O nome foi como um instalo em minha mente. O reconheci pelo fato de ser a esposa do general preferido do rei. Basicamente, seu braço direito. Sorri. — Perfeito.
— E ela está grávida. — Puta merda! Dele? — Quase falei alto demais. Uma senhora que pegava um salgado ao meu lado me lançou um olhar feio. — Não se sei.i. Nem ele sa sabe. be. Segui até o final da mesa, mal conseguindo conter o sorriso do meu rosto. — General DeLarosa, será que podemos ter um minuto a sós? Ele levantou o olhar da mesa de novo ao som da minha voz. Suspirou fundo, sem se preocupar em disfarçar a irritação. — Estou ocupado, senhorita. — Acho que vai querer ouvir sobre o que tenho a dizer. — Duvido muito — rebateu, ao pegar um doce da mesa. Ele começou a se virar, para me dar as costas.
— Mesmo se for sobre Belinda? O general parou. Depois de alguns segundos, ele largou o doce de volta na mesa e se virou lentamente até fixar seus olhos nos meus. Eu, finalmente, tinha a sua completa atenção.
— O que você quer? Eu sorri. — Algo que pode resolver o meu problema e o seu.
— Comemore. Temos um exército. — Vesper constatou, ao terminar o seu champanhe. — Fale baixo — alertei. Ele já estava meio bêbado. — E temos um pelotão. Basicamente, um décimo de um exército. Depois de uma longa conversa com o general, o convenci de que ficar do meu lado seria menos prejudicial do que o contrário. Ameacei contar para o general Corkiman — marido de Belinda — sobre o caso e salientei como seria destrutivo se eu fizesse isso. O rei tinha um apresso muito grande pelo marido de Belinda e não iria permitir que a traição passasse impune, sem contar com o fato de que a relação entre o rei e DeLarosa já não estava muito boa
ultimamente. O general era um dos maiores opositores em relação à aliança com Sarkian. Prometi a ele o posto de braço direito quando ganhássemos e permissão de fazer o que bem entendesse com o general Corkiman. — Ainda assim! — Vesper pegou mais um ccopo, opo, animado.
Resisti um pouco. Já tinha feito o que precisava fazer e queria sair do palácio antes que encontrasse Sarkian. Tive sucesso em fugir dele a noite toda; grande parte devido ao fato de que ele estava no salão principal e eu ainda não havia entrado lá. E não pretendia. Não queria ver seu olhar satisfeito e presunçoso de vitória. Possivelmente, estragaria a minha ótima noite. Mas Vesper me empurrou uma taça. E, enquanto as pessoas comemoravam a vitória da guerra contra Roquilon, nós começamos a comemorar a promessa de outra. Depois de três taças de champanhe, meia de vinho e de ter perdido Vesper, tentei não cambalear até a saída. Já estava tarde e eu havia exagerado na bebida. Estava louca para tirar aqueles saltos e me jogar na cama. Mas, ao virar no último corredor até a saída, dei de cara com
ninguém mais, ninguém menos, que o maldito Rei de Khrovil. Ele usava sua máscara, mas soube que me viu no mesmo momento em que o vi. Eu quase deixei escapar um gargalhada. Os Deuses me odiavam mesmo.
— Oh, veja só quem é! — exclamei logo antes de parar de frente a ele. — Vossa Alteza. — A minha voz escorria sarcasmo ao fazer uma reverência belíssima e um tanto longa. — Aprovou a minha reverência? Ou vou perder as minhas pernas? Sarkian não respondeu instantaneamente. Demorou alguns segundos até que murmurou: — Ainda não. — Que bom. As aprecio demais. — Ele não disse nada, apenas piscou uma vez em minha direção. O que me fez dar um passo à frente. frente. — Seus cílios são obscenamen obscenamente te longos, sabia? É realmente um desperdício. Sarkian me observou. Será que eu havia o deixado sem palavras? Quase dei um soco vitorioso no ar. Mas me contive. Seus olhos deixaram os meus apenas por um momento para
encarar a taça quase vazia na minha mão direita. — Está comemorando a minha volta a salvo com vinho? v inho? — Estou lamentando-a com vinho — corrigi. A sombra de um sorriso atravessou seus lábio lábios. s.
— Talvez, não tenha rezado o suficiente — zombou. — Para você morrer? — Fiz um movimento com a mão direita e só não derramei vinho no chão porque havia muito pouco líquido no copo. — Não gastei meu tempo. Tenho a impressão de que o Deus da Morte tem um apreço especial por você. Sarkian torceu a cabeça. — E por que diz isso? — Por causa de todas as vidas que já tirou. Presenciei mais um rastro de um sorriso. — E qual Deus te protegeria — ele deu um passo à frente —, caso eu erguesse a minha espada agora e a empurrasse contra você? Sua voz soou mais rouca. Mais perversa. — Nenhum — respondi honestamente. — Mas não vai fazê-lo.
— Ah, é? E por que não? Descansei as mãos na cintura, sustentando o seu olhar. — Se quisesse me matar matar,, já o teria feito. De repente, me toquei de que o que eu havia dito soava muito como um desafio. E, pelo o que conhecia o Rei das Trevas,
suspeitava de que ele não gostava muito de ser desafiado. Pela primeira vez, fiquei muito consciente de que estávamos em um corredor vazio. Com mais um último movimento, ele fechou a distância entre nós. Debati recuar, mas, por alguma razão, não o fiz. Talvez, estivesse fascinada pelo olhar dele. Era a primeira vez em que via aquela expressão nele. Havia perversidade e desprezo no prata, mas também havia uma faísca inusitada de tormenta. O silêncio estava começando a se tornar insuportável quando Sarkian finalmente abriu a boca. — O quão repugnante eu teria que ser — ele levantou a mão direita e com um movimento muito suave, tocou meu queixo com o dedo indicador enluvado. Ele ergueu meu rosto, alinhando-o ao seu, e precisei de tudo o que tinha para não engolir em seco. Seus olhos percorreram todo o meu rosto até parar na minha boca e se
manterem ali — para querer alguém como você? Não achava que ele esperava por uma resposta. Era quase como se estivesse falando consigo mesmo. Assim que seu olhar deixou a minha boca, seu dedo abandonou meu rosto.
Eu só notei que estava segurando a minha respiração quando ele, finalmente, se afastou.
O Rei das Trevas teve um pesadelo naquela noite O pesadelo tinha cabelos escuros traços finos e sobrancelhas grossas Tinha voz também Um som feminino e rouco quase aveludado que escapava de lábios pequenos porém cheios Ele deveria acabar logo com aquilo
pensou o Rei das Trevas ao rolar pelos lençóis na madrugada Ela estava se tornando uma distração
27
— Mande a esquisitona parar antes que eu rasgue a
garganta dela. Ignorei Vesper e continuei encarando o papel que o general DeLarosa havia me dado com detalhes importantes sobre o exército. Nele, tinha a quantidade exata de cada pelotão e seus turnos. Ouvi a voz fina de Willow, antes de Vesper chamar meu nome, irritado. — O quê? — indaguei, sem encará-lo.
Teoricamente, estávamos ali para ajustar o nosso plano, mas Vesper e Willow não pareciam conseguir trabalhar em sintonia. — Mande-a parar de ler meus pensamentos! — Vesper exigiu, da poltrona.
— Willow, pare de ler os pensamentos dele — murmurei, arrastando a ponta da caneta de pena no meu queixo conforme analisava o papel. — Claro. — Willow respondeu com a voz doce demais. — Ela não vai parar — Vesper retrucou. — Já ouviu falar de privacidade? Inspirei fundo, tentando bloquear a discussão deles e me concentrar. — Ah, sinto tanto. — Consegue ler isso? De repente, Willow se levantou. — Seu merda! — Ela exclamou. Levantei o olhar. — Ei…! — comecei.
Ela apontou para Vesper, que jazia na poltrona um tanto satisfeito. — Ele acabou de me chamar de vadia! — Não, não. — Ele corrigiu, bem enfático. — Eu pensei nisso. nisso. Foi você que leu.
— Dá para vocês pararem? — interrompi, irritada. — Vocês têm noção do que estamos prestes a fazer? Da magnitude disso? Me levantei, encarando o meu time de confiança para tomar o trono. Dois jovens adultos que estavam agindo como crianças. — Vocês têm noção das consequências, se não tivermos sucesso? Ambos me encararam em silêncio. Bufei, me jogando no sofá ao lado de Willow. Estávamos perdidos. — Você está com medo de que não conseguirmos. — Ela falou, me fitando. A encarei. Ela tinha tinha aquele br brilho ilho estranho no olhar. olhar. — Pare de ler meus pensamentos. — Irritante, né? — atirou Vesper.
Não era só irritante. Era terrível ficar na presença de Willow. Não havia como esconder nada. Você estava completamente exposta perto dela. E, como sempre fui uma pessoa muito reservada, aquilo era uma tortura. Não poder mentir, nem em relação à pequenas coisas, era extremamente frustrante.
— Então, seja honesta. — Ela devolveu. Olhei para Vesper, que também me encarava, como se esperasse que eu dissesse algo. Eu suspirei, me sentindo encurralada. — Acho que, se continuarmos assim, temos grandes chances de falhar — desabafei, sinceramente. — Estava vendo o relatório do general e terão soldados demais de tocaia. O silêncio se instalou. — Precisamos tirar os soldados de perto do rei — concluiu Willow,, como se estivesse pensando em voz alta. Willow Vesper tomou um gole de vinho e eu lancei um olhar feio em sua direção. — O que foi? — ele indagou, na defensiva. — Me ajuda na concentração.
Revirei os olhos e joguei a cabeça no encosto do sofá, encarando o teto. — Precisamos de uma distração — disse. O silêncio permeou por cerca de dez segundos antes de Vesper anunciar:
— Puta merda, tenho uma ideia!
Era a última lua cheia do mês. O que queria dizer que aconteceria o evento tradicional a céu aberto para louvar aos Deuses. A cerimônia era basicamente uma festa cheia de comidas e apresentações. Só que, ao invés de ser em algum dos salões do palácio, era a céu aberto. Segundo o rei, era para que os Deuses pudessem nos ver melhor. Além de não ser no palácio, como todas as outras cerimônias, outro diferencial era que a entrada era permitida para todos os cidadãos, até mesmo os mais pobres. Obviamente, com uma certa separação de lugares, principalmente da Família Real. Era uma das poucas cerimônias que eu realmente gostava. Já que a festa não exigia apenas conversa e dança. Ao longo da noite, aconteciam
várias
apresentações,
algumas
delas
bem
interessantes. Mas eu fui, acima de tudo, porque queria Willow e Sarkian no mesmo recinto. Precisava saber exatamente o que se passava na cabeça dele. Era só naquilo em que eu conseguia pensar.
— Como é isso, exatamente? Você precisa estar a cerca de qual distância da pessoa? — Eu questionei, conforme andávamos pelo gramado. Apesar de ser a céu aberto, havia toda uma estrutura preparada para a festa, que costumava se prolongar até o amanhecer. Tendas eram erguidas ao longo da terra — a maioria delas era particular, de nobres que vinham de mais longe e desejavam ter um local para descansar ao final da festa. Outras eram comerciais, principalmente de bebida e alimentos. — Eu preciso ter a pessoa na minha visão periférica e me concentrar nela, e é isso. — Ótimo — respondi, ao pegar a sua mão e arrastá-la pela multidão de pessoas. Sarkian estaria perto do rei. Em frente ao círculo, com vista privilegiada para onde as apresentações aconteciam.
— Dá para irmos mais devagar? — Ela reclamou. — Estou com fome. Não respondi e também não diminui o passo. — Veja! Aquele cara está vendendo v endendo sanduíche de bacon!
Parei e me virei tão abruptamente que ela quase se chocou contra mim. — Depois que você ler a mente dele, você pode ter quantos sanduíches quiser. Ela franziu o cenho. — Por que quer tanto saber o que se passa na mente dele? Recuei, soltando seu braço. — É uma questão estratégica — argumentei, com a voz mais tensa do que pretendia. — Ele é um rei. Ela me encarou fixamente e torceu a cabeça. — Não — disse. — Não é só isso. — Pare — alertei, porque já sabia o que ela estava fazendo. Sabia o que aquele olhar significava. — Você o odeia — ela concluiu. — Mas é pessoal.
— Pare! — repeti, dessa vez entredentes. Não suportava aquela invasão. E, quanto mais eu pensava em Willow vasculhando a minha mente, mais eu pensava no que mais gostaria de esconder.
— Ok. — Ela suspirou. — Vamos acabar logo com isso para eu comer meus sanduíches. Voltamos a andar e não demorou muito para que estivéssemos perto do círculo. Foi fácil de achar, já que várias pessoas o cercavam e, logo em frente, havia uma plataforma com cinco poltronas. Ali, se encontravam o Rei de Umbra, a rainha, o príncipe, a princesa e… Sarkian. No momento, encarava o homem que se equilibrava e dançava em um pedaço de madeira fino e longo, com uma expressão de tédio. Pelo menos, era isso que eu supunha, já que, devido a máscara, só conseguia ler a sua expressão corporal. Me virei para Willow. — Consegue vê-lo?
Ela ficou na ponta dos pés e franziu o cenho. Willow era consideravelmente mais baixa que eu. — Não. Precisamos chegar mais perto. Nos aproximamos, abrindo caminho entre o mar de gente. Depois de nos espremermos e esbarrarmos em várias pessoas, conseguimos, por fim, chegar na borda do círculo.
— E agora? — perguntei, me virando para trás. Mas a pergunta ficou no ar ar,, porque Willow não estava ali. Olhei ao meu redor e só vi rostos desconhecidos. Chamei o nome dela mais uma vez. Não estava acreditando naquilo. Estávamos tão perto. No momento em que entendi que jamais a acharia novamente naquela confusão, me virei de volta para Sarkian. E, ao fazer aquilo, o encontrei já com os olhos em mim. m im. Merda.
Estava na expectativa de que ele não me visse naquela multidão de corpos. Sustentei o seu olhar por vários segundos torturantes, até que, por fim, desviei. Observei o artista no centro do círculo, tentando ignorar o olhar que queimava em minha pele.
O que eu daria para ter Willow aqui e saber exatamente o que se passava na cabeça sinistra dele. Quando pensei que a apresentação havia acabado, fogo acendeu no centro do círculo, esquentando os arredores. O homem
fez um cobertor de chamas logo abaixo da travessia de madeira suspensa. Notei a mudança de interesse dos espectadores com os aplausos animados. Naquele momento, as coisas estavam bem mais intrigantes, já que, caso ele se desequilibrasse da madeira, cairia direto nas chamas. O artista subiu na plataforma e fez uma impressionante dança, muito bem equilibrada. Era muito claro seu talento e anos de treinamento. Aplausos explodiram explodiram no segundo em q que ue ele desceu. — Alguém se atreveria? — O homem perguntou em desafio. O público se agitou quando ele olhou ao redor, procurando um voluntário. Não era incomum certos artistas incluírem algum
espectador no seu número. — Vamos lá! — Ele gritou, com um sorriso nos lábios. — Deve haver, pelo menos, uma pessoa corajosa por aqui. E não se preocupem, irei auxiliar quem se atrever. Vi uma mão se levantar no lado oposto do círculo. Logo depois, mais duas.
O artista sorriu, analisando suas opções. Quando ele deu um passo em direção a um dos possíveis participantes, a voz reverberou pelo círculo: — Pare. Todos os olhares deixaram o centro do círculo para irem direto até a plataforma real. Até Sarkian. O apresentador e o público esperaram, confusos e surpresos com a interrupção. Meu
coração
começou
a
bater
mais
rápido.
Um
pressentimento ruim atravessou meu corpo assim que sua voz chegou aos meus ouvidos. Sem pressa, o olhar de Sarkian se arrastou até encontrar o meu.
Não.
Ele levantou o braço direito e, com a mão enluvada e banhada em brilhantes, a pontou em minha direção. — Ela. Não. Não. Não.
Todos os olhares, de repente, estavam em minha direção. As pessoas ao meu redor se viraram para mim. A mulher, que antes tinha o braço imprensado na minha costela, c ostela, se afastou. Engoli em seco. Aquilo não podia podia estar realmen realmente te acontecendo. O apresentador deu alguns passos hesitantes em minha direção. A multidão a minha volta se distanciou, abrindo caminho. Me senti terrivelmente exposta. — Eu não quero participar — disse, com a voz arranhando a minha garganta. Ele parou e, então, se virou para os reis. — Alteza, ela disse que… — Eu ouvi. — Sarkian interrompeu, sem tirar os olhos de mim. — Infelizmente, não foi um pedido.
O Rei de Umbra parecia tão confuso quanto todos ali. Ele virou o rosto para Sarkian e murmurou alguma coisa. Sarkian desviou o olhar do meu para dizer algo de volta. O Rei de Umbra assentiu sutilmente e eu entendi que Sarkian havia conseguido o que queria, como sempre.
Dei um passo para trás. — Não vou participar — me pronunciei, dessa vez olhando diretamente para Sarkian. Ouvi arfadas e suspiros de choque. Eu tinha acabado de dizer não ao Rei de Khrovil. Ele tamborilou os dedos no braço da cadeira enquanto tinha os olhos fixos nos meus. — Você prefere que o meus guardas te arrastem? — questionou, com a voz calma e congelante. Com um sutil e quase imperceptível movimento da cabeça, os soldados mascarados que o cercavam deram um passo à frente. Não havia outra opção. Tomei a minha decisão e comecei a andar para dentro do círculo. Não queria de jeito nenhum ser arrastada, então, pelo
menos, faria aquilo com certa dignidade. Fechei as mãos em punhos para que ninguém visse como elas estavam tremendo. — Não se preocupe — o artista disse ao caminhar para o centro do círculo ao meu lado —, vou segurar sua mão para ter
apoio. Eu olhei para ele de forma extremamente agradecida ao assentir. Senti o calor das chamas conforme me aproximava da travessia. — É melhor tirar os sapatos. — Ele avisou. Tirei meus saltos, ficando descalça. Tirei O silêncio me deixava ainda mais nervosa. A consciência de que todos estava olhando para mim — principalmente ele —, era desconcertante. Sarkian conseguiu o que queria; me fez a atração principal. Suor já escorria da minha testa ao subir na travessia de madeira. O artista tinha a mão firme na minha, me estabilizando, mas mantendo o corpo o mais afastado possível das chamas no
chão. A madeira era fina, tão fina que cabia exatamente a largura de um pé. Estava quente, mas não era insuportável. Eu tremia, o que piorava a situação. Mas eu acreditava que podia fazer aquilo. Afinal de contas, há menos de cinco minutos, o homem estava dançando e fazendo rodopios na madeira. Obviamente, ele era um profissional talentoso;
pelo menos, eu não precisaria dançar. Eu só precisava atravessar. E, com o suporte de sua mão, era bem mais fácil para manter o equilíbrio. Assim que dei o primeiro passo, a voz reverberou mais uma vez: — Solte a mão dela. Eu congelei, parando no meio do segundo s egundo passo. Ergui meu olhar, encarando-o pela primeira vez desde que adentrei o círculo. Sarkian me observava com atenção e, sem dúvidas, extrema satisfação. — Mas Vossa Alteza… — O artista disse ao meu lado. — Solte. — Sarkian interrompeu antes que ele pudesse terminar o apelo.
Meus olhos começaram a lacrimejar de medo, mas, principalmente, de raiva. Meu corpo fervia mais por causa do ódio do que pelas chamas logo abaixo de mim. Sabia que Sarkian foi capaz de sentir sentir,, porque a sombra de um sorriso atravessou seu rosto.
Eu o mataria. Um dia, eu o mataria, prometi a mim mesma naquele instante.
— Você o ouviu. Obedeça. — O Rei de Umbra, finalmente, se pronunciou. Senti a mão do apresentador lentamente deixar a minha e o encarei ao passo que me esforçava para me estabilizar. — Sinto muito, senhorita. — Ele disse, de forma realmente lamentável. — Tudo bem — murmurei com a voz tão baixa que não sei se ele foi capaz de ouvir. Suor escorria pela minha testa. O meu vestido, de repente, parecia pesar toneladas. E era bem mais complicado de me equilibrar com aquela saia longa. Ergui os braços lentamente, tentando me equilibrar sem ajuda.
Esqueça as chamas. Esqueça Sarkian, repeti a mim mesma.
Dei mais um passo, lento e hesitante. Então, o segundo. E mais um. Meus braços continuavam no ar, estabilizando o peso do meu corpo.
As chamas pareciam crescer abaixo de mim, mas, provavelmente, era imaginação minha causada por medo e pânico. Sentia meu vestido fino de verão ficando molhado de suor. Eu conseguia me imaginar caindo. O choque contra o fogo, as chamas lambendo a minha pele e as queimaduras instantâneas e permanentes. A dor seria insuportável. Poderia até ser fatal. No sexto passo, me desequilibrei. Meus braços fizeram movimentos bruscos para cima e para baixo na tentativa desesperada de me reequilibrar. Ouvi uma arfada coletiva do público. As minhas pernas tremiam tremiam terrivelmente. Eu vou cair. Puta merda, eu estou prestes a cair.
Mas, por algum tipo de milagre, consegui me reequilibrar reequilibrar..
Inspirei fundo e, depois de um longo momento, voltei a me movimentar. Dei mais dois passos, finalmente encontrando o meu ritmo. Depois disso, ficou um pouco mais fácil. Foquei na madeira e apenas na madeira. Ignorando os sons ao redor redor,, o calor das chamas e a presença de todas aquelas pessoas. Cerca de cinco passos depois, eu havia atravessado toda a madeira.
Com o auxílio do homem, pulei da plataforma, para longe do cobertor de chamas. Os aplausos começaram assim que meus pés quentes encontraram a grama. Minhas pernas tremiam e eu estava completamente molhada. A adrenalina ainda pulsava. Levantei o olhar, fitando Sarkian fixamente. Não havia um sorriso ou nenhum resquício de diversão em seus olhos. Provavelmente, estava decepcionado por eu não ter caído. Meu vestido estava colado contra meu corpo. Eu era capaz de sentir o material molhado em minha pele. E, como o tecido era branco, se tornou um tanto transparente, expondo muito mais do que gostaria. Vento soprou, amenizando o ccalor alor e movimentando alguns fios
dos meus cabelos. Mas, com a brisa, senti meus mamilos endurecerem contra o tecido e fiquei muito ciente de tudo o que estavam vendo. Me senti verdadeiramente nua. Completamente exposta. Engoli em seco, mas não fiz nenhuma tentativa de me cobrir. Sustentei o olhar de Sarkian com a cabeça erguida.
E, apesar dos aplausos do público, não me sentia nem um pouco encorajada. Me sentia humilhada. Um brinquedo que se contorcia de acordo com a vontade daquele monstro. Meus olhos começaram a lacrimejar lacrimejar.. Não chore. Não na frente dele.
Seu olhar desceu lentamente pelo meu corpo, os lábios em uma linha dura. Não conseguia ver seu rosto direito, muito menos ler sua expressão corporal, já que ele não movimentou, sequer, um dedo. Apenas suas pupilas pupilas me percorreram até voltar ao meu rosto rosto.. Mas eu podia apostar que era nojo. Me ver daquele jeito, provavelmente o ofendia mais do que me deixava desconfortável. — Satisfeito, Alteza? — indaguei, sentindo o caroço se formar
em minha garganta. Sarkian tensionou a mandíbula e levantou a mão direita. Com um sinal mudo e sutil, ele fez com que seus soldados se aproximassem, com a intenção de me escoltar para fora. O comando era tão claro que eu podia escutar, mesmo sem palavras ditas.
“Tirem-na da minha frente”.
Não dei oportunidade para que me tocassem. Me virei e deixei o círculo.
28
Era o final da manhã quando chegamos ao palácio. Estávamos lá com apenas uma coisa em mente: mapeá-lo. Precisávamos achar o lugar perfeito para a grande noite. Essa que aconteceria em menos de 40 horas. — Ele realmente te odeia, né? Encarei Vesper, que andava ao meu lado pelos corredores do palácio. Pessoas como eu e Vesper podíamos entrar no palácio na parte da manhã ou tarde quando bem entendêssemos. É claro que
havia diversas áreas restritas, mas, num geral, os nobres e as pessoas influentes podiam circular por vários salões sem problema algum. Inclusive, muitas mulheres de título iam tomar café da tarde com amigas no belo e extenso jardim real.
Não me virei para Vesper e nem o perguntei a quem estava se referindo pois sabia muito bem. Haviam contado a ele o que tinha acontecido na noite anterior. —Sim. — Foi tudo o que respondi. — Imagino que seja recíproco. — Sim — repeti e demorou alguns segundos até que confessei: — Vou matá-lo. Na primeira oportunidade em que tiver, eu o matarei. Vesper me encarou impressionado e, talvez, um pouco assustado. — Sabe que ele é um rei, não é? E não é qualquer rei. rei. — Ele é um rei, não um Deus. Não é intocável — rebati e abaixei um pouco o tom de voz ao passarmos por um criado real. — Fora que, se fizermos tudo direito, quando tudo isso acabar acabar,, eu serei
uma rainha. Ainda era estranho dizer aquilo. aquilo. Pensar naquilo naquilo já era um tanto surreal. Era como se eu estivesse sonhando com algo tão distante e intocável. Mas, em menos de 40 horas, descobriríamos se o sonho se concretizaria ou se aquilo se tornaria um completo pesadelo.
Os exércitos de Sarkian haviam deixado Umbra na noite anterior. Ele só tinha a sua escolta pessoal para acompanhá-lo de volta à Khrovil no dia seguinte. Era por isso que o momento perfeito seria na última noite, no jantar em que todas as pessoas importantes estariam reunidas e, basicamente, apenas os soldados de Umbra estariam presentes. Eu não teria, sequer, uma chance se os soldados de Sarkian ainda estivessem aqui. Ambos os exércitos se juntariam contra meu pequeno pelotão e nem o melhor plano do mundo seria capaz de me conceder a vitória. — O que você fez? — Como assim? — Você deve ter feito alguma coisa para ele te odiar tanto assim. — Ele é um sádico, Vesper — retruquei, levemente ofendida. — Não precisa de um motivo.
— Mas, se fosse assim, ele poderia infernizar a vida de qualquer um. Não precisava ser você v ocê a atração principal ontem. Suspirei fundo e desviei o olhar. — Nós tivemos... — pensei em todas as nossas interações e discussões — desentendiment desentendimentos. os.
Ele riu, o que me pegou de surpresa. — O que foi? — Você é completamente diferente do que achei que fosse. — Como assim? — Matar o Rei das Trevas é um plano um tanto… ousado. Trairr a coroa também. Não sei se você é ambiciosa ou suicida. Trai — Bem, não pretendo morrer fazendo nenhuma dessas coisas. — Sempre achei que você era só uma megera irritante. Ergui o cenho ao encará-lo. — Mudou de ideia, então? Ele me fitou e, então, sorriu. — Você ainda é uma megera. Mas é uma megera ambiciosa. Sorri de volta.
Depois de uma ronda pelos principais corredores do palácio, nos separamos. Vesper Vesper acharia um jeito de ir para o subsolo, a área essencial para o nosso plano. E eu descobriria em qual salão seria o jantar da noite noite seguinte e, e então, ntão, memorizaria ca cada da saída. Cerca de meia hora analisando cada aspecto necessário, comecei a andar de volta para onde eu havia combinado de
reencontrar Vesper. Mas a voz vinda de trás de uma porta fechada me fez parar. Era a voz do rei. Olhei para os dois lados do corredor para confirmar que estava vazio antes de me aproximar. A voz do Rei de Umbra ficou mais clara, mas ainda não compreensível. Colei a lateral do rosto na porta, já que aquela era uma oportunidade muito única para ignorar. Ele só podia estar falando de negócios ou estratégias, visto que aquela era uma sala de reuniões. E, por mais que Willow tenha sido extremamente útil nos últimos dias, ela ainda não tinha conseguido extrair nada de importante do Rei de Umbra. Aparentemente, quando ele estava naquelas cerimônias e festas, a única coisa em sua mente era o buffet e as jovens garotas.
Não foi exatamente uma surpresa saber que o rei tinha amantes — homens poderosos faziam aquilo com uma frequência avassaladora. Mas ele sempre pregava com tanto afinco sobre a importância sagrada do casamento, que tornava aquilo tudo bastante irônico. — O que pensa que está fazendo?
Eu pulei ao ouvir uma voz. Antes que pudesse me virar, senti o aperto no meu braço. Quando ergui o olhar, dei de cara com um dos generais. O homem careca, de cerca de quarenta anos, me fitava com o rosto sombrio e duro. Merda.
— Eu só estava… — Espionando. — Ele me interrompeu, entreden entredentes. tes. — Não! — exclamei, com o oss olhos arregalados. arregalados. — Claro que não! Antes que eu pudesse inventar qualquer coisa, ele colocou a mão na maçaneta e abriu a porta com violência. Com um aperto forte em meu braço, ele me empurrou para dentro do cômodo. Meu coração parecia prestes a sair pela boca.
Me vi diante de uma mesa comprida. Nela, estava o Rei de Umbra, alguns de seus generais e um par de nobres. E, claro, Sarkian. Não demorou nem um segundo para encontrar seu olhar entre todos aqueles homens. Ele estava sentado no lado oposto do Rei de
Umbra, em uma das pontas da mesa. Não usava máscara e, ao me fitar, não mostrou nenhuma expressão. Se estava surpreso em me ver ali, não demonstrou. — General Kreis, o que é isso? — indagou o rei, claramente surpreso com a intromissão. — A encontrei no corredor corredor,, com o ouvido na porta. Meu coração batia descontrolado em meu peito. Eu seria enforcada ou, até mesmo, decapitada. As cenas atravessaram em minha cabeça. O Rei de Umbra me encarou por um momento, pensativo. — Uma espiã, então. — Não, senhor! — retruquei, com desespero. — Então, por qual outro motivo estava ouvindo nossa conversa?
— Eu não sabia que era o senhor aqui dentro. Pensei que era uma conversa qualquer… — É mesmo? O rei não parecia convencido.
Ele passou os olhos pela mesa, por todos os homens que me encaravam em silêncio. — O que acham que devo fazer? — Enforcá-la — disse o homem mais próximo do rei. — É a punição para espionagem. Alguns dos homens concordaram, assentindo. Parte deles parecia quase entretida. Me senti tonta. Um caroço se formou em minha m inha garganta. — Acho que seria um desperdício — disse o general ao meu lado, me apertando com mais força. Ele estava tão próximo que eu sentia seu hálito em meu rosto. — Não é uma espiã ruim de olhar. Talvez, devêssemos dar um trato nela antes de matá-la. Eu não teria problema algum em cuidar disso, Alteza. Meu corpo ficou gelado. Dormente.
— Você gosta da sua mão, general Kreis? — A voz serena, porém grave, fez com que todos se virassem para o lado oposto da mesa, inclusive eu. Sarkian tinha as mãos descansando nos braços da cadeira e o rosto completamente neutro. — Você gosta? — Ele repetiu.
Confuso, o general assentiu. — Então — ele disse len lentamente, tamente, com os olhos ffixos ixos em Kreis, — eu sugiro que a mantenha longe dela. O homem ao meu lado não fez nenhum movimento. Nem mesmo piscou. Quando, finalmente, processou aquelas palavras, olhou para mim. Seu olhar era nebuloso e surpreso. Silêncio se instalou no cômodo. Se uma pena caísse no chão, seríamos capazes de ouvir. ouvir. O aperto no meu braço, finalmente, suavizou e o general me soltou. Eu fitei Sarkian fixamente, como todos ali. Mas ele não olhou para mim em momento algum. — Tem alguma ideia melhor, Varant? — O Rei Umbra indagou depois de um momento.
Parecia
interessado
e
curioso
com
a
mudança
de
acontecimentos. — Acho forca um tanto extremo. Afinal, não acho que seja uma espiã. — Sarkian ponderou e, então, finalmente me encarou. — Olhe para ela, não passa de uma vagabunda insignificante.
Os sentimentos dentro de mim eram tão conflituosos que eu não tinha certeza se queria pular naquela mesa para enforcá-lo ou abraçá-lo. — O pai dela tem muitas terras de plantação importantes. — O rei ponderou. — Realmente, forca, talvez, não seja a melhor opção. O general ao meu lado se agitou. — Mas Alteza, eu a vi espiando. — Ele se voltou para mim, com os dentes cerrados. — Admita, sua cadela mentirosa. Engoli em seco. — Não sei do que está falando. Não sou uma espiã. Ele avançou e, por um momento, pensei que fosse me acertar acertar.. — Toque nela. A voz de Sarkian ecoou de novo — dessa vez, mais alta e grave — fazendo o general congelar no meio do movimento.
— Eu o desavio. — Sarkian disse, com o olhar fixo nele. Havia algo no prata. Um brilho que eu já tinha visto algumas vezes. Acreditava ser o equivalente a ver a morte de frente. A sombra de um sorriso maléfico tomou seus lábios. — V Vamos amos lá.
A ameaça era clara e eu senti o corpo inteiro do general tensionar. Lentamente, ele recuou. Eu finalmente voltei a respirar, apesar do meu coração ainda bater desesperado contra meu peito. Os olhares se movimentavam entre o Rei de Umbra, Sarkian e eu. Estavam todos confusos. Ninguém mais ousou opinar opinar.. Alguns me encaravam com com certo fascínio agora agora.. — Tudo bem, então. Ela é problema seu, Varant. — O Rei de Umbra fez um movimento com as mãos. — Faça o que quiser. Sarkian me lançou um olhar. Um que eu daria tudo para conseguir ler, mas, como sempre, ele era um enigma. Então, se levantou da cadeira e fez um movimento com a cabeça em direção à porta. O segui até a saída com passos lentos e hesitantes, apesar
de estar desesperada para deixar daquele cômodo. Minha cabeça estava um caos com o turbilhão de pensamentos conflitantes. Tinha algo errado. Sarkian não havia feito aquilo por bondade ou piedade. Ele desconhecia aquelas duas palavras. Assim que passei pela porta e entramo entramoss no corredor corredor,, indaguei:
— Que tipo de jogo é esse? — De nada. — Ele disse, me ignorando. — Por que fez aquilo? Sarkian desviou o olhar e colocou as mãos nos bolsos da longa capa negra. Suspirou ao voltar a me encarar encarar.. — Se você morrer, a minha diversão acaba — respondeu, simplesmente. Ah, claro. Eu sorri. Um sorriso amargo. — Então, só você pode me torturar? Ele era mesmo doente. — Essa é a ideia. — Não sou seu brinquedo.
— Não. — Foi a sua vez de sorrir. Aquele sorriso terrível que frequentemente me visitava em pesadelos. Ele se aproximou a ponto de eu sentir as suas palavras na pele da minha bochecha. — Você é o que o que eu quiser que seja. Não se esqueça de quão frágil a sua vida é, farren. Ou serei obrigado a te lembrar.
29
Nunca estive tão tensa em toda a minha vida. Aquela noite só poderia termina terminarr de duas formas: Eu sendo rainha. Ou eu sendo morta. Ambas as possibilidades possibilidades eram um tanto a assustadoras. ssustadoras. O jantar foi mais elaborado do que imaginei. A orquestra tocava e o centro do salão estava liberado para dança. Dizer que nosso rei adorava cerimônias era eufemismo. Qualquer motivo era razão para uma festa cheia de ostentação e glamour.
— O general está firme? — perguntei a Willow. Precisava saber se ele não estava se acovardando ou pensando em me trair na última hora. Ele era uma parte essencial para aquilo dar certo.
Willow olhou fixamente para o general, que conversava casualmente com um barão, e torceu a cabeça. — Sim. Ele está tenso, mas está firme. Naquele exato momento, Sarkian finalmente adentrou o salão, sugando a atenção de praticamente todo o cômodo. Ele estava acompanhado de Despinna que, muito claramente, apreciava os olhares. Ambos se juntaram à mesa do Rei de Umbra. Sarkian não reconheceu a presença de ninguém, com exceção do nosso rei. Ambos trocaram palavras palavras breves. — O que ele está pensando? — questionei. Willow tinha uma visão de Sarkian muito clara no momento. E eu precisava saber o que se passava na cabeça dele. Aquela poderia ser a última noite em que eu teria a chance de descobrir. Ela o fitava fixamente. Semicerrou seus olhos por segundos
que pareceram décadas. Eu a encarava, em expectativa. Até que Willow Willow franziu o cenho. — Não sei. — Como assim não sabe? — Tem pessoas que são mais difíceis de ler do que outras. Ele é… — balançou a cabeça — um tanto desafiador .
Suspirei. Claro.
— Bem, tente com mais afinco — pressionei. Voltei a encará-lo, mas Sarkian não parecia notar a minha presença. Se havia notado, não parecia se importar importar.. Mas, então, Despinna me pegou encarando, e nosso olhar se encontrou por uma fração de segundo até que desviei. Tentei disfarçar, mas conseguia sentir seu olhar queimando em mim. — E aí? — indaguei, de novo. — Pare de me pressionar. — Willow chiou. — Deixe-me concentrar. Eu tentei, realmente tentei não olhar para ele novamente. Mas meu olhar percorreu o salão até estar nele novamente.
E, dessa vez, Sarkian tinha os olhos em mim. — Uau... — A garota suspirou ao meu lado, me fazendo — com certo esforço — desviar o olhar do dele para encará-la. — O que foi? — indaguei, em expectativa. Ela me encarou e, então, anunciou:
— Ele a odeia. Suspirei, frustrada. — Não é preciso ler mentes para saber disso. — Não. — Ela disse, estranhamente séria. — Eu… nunca vi esse tipo de ódio antes. Resisti a vontade de engolir em seco e me remexi na cadeira. — Por quê? O que mais pode ver? Willow voltou a olhar para ele. — Não sei. — Ela piscou várias vezes. — Mas é conflitante. A mente dele é muito… nebulosa. Acho que só teria clareza se ele estivesse interagindo diretamente com você. Droga.
Tomando uma decisão um tanto precipitada e insana, me
levantei. Não havia muito o que perder, de qualquer forma. Em cerca de algumas horas, eu poderia muito bem estar morta. Ele notou assim que comecei a cruzar o salão. Eu usava branco naquela noite. Um vestido de alças finas que modelava meu corpo. Uma fenda começava no meio da minha coxa direita, deixando exposta bastante pele na minha perna toda vez
que eu dava um passo. Apesar de ser um vestido simples, era um tanto ousado para Umbra devido a exposição de pele. Mas aquele vestido não seria, nem de longe, a coisa mais impactante que aconteceria naquela noite. Meu cabelo estava solto, apenas alguns fios, que costumavam cair no meu rosto, presos atrás da minha cabeça. Finalmente parei diante da mesa dos reis. Fiz uma reverência antes de indagar: — Me concede uma dança, Alteza? Sarkian permaneceu parado por vários segundos, apenas me observando. Uma faísca de surpresa e confusão atravessou seus olhos por um momento, mas, então, seu olhar voltou para o gelado hostil e enigmático de sempre. Na verdade, foi tão breve que me perguntei se havia sido apenas fruto da minha imaginação.
Despinna me encarava fixamente e, se olhares pudessem ferir, eu tinha certeza de que cairia morta bem ali. Troquei o peso dos pés, imaginando como seria humilhante se Sarkian negasse o meu pedido. O que não duvidava nada que o fizesse, já que só a ideia de estar tão próximo a mim já o enojava. Mas ele, por fim, se levantou.
O segui até o centro do salão e, assim como da primeira vez em que dançamos, ele posicionou minhas mãos em si, tomando completo controle e estabelecendo os limites. — Agora estou intrigado — disse próximo do meu ouvido, ao começar a guiar os passos. — E poucas pessoas me despertam esse sentimento. — Por quê? — indaguei, fingindo inocência. inocência. — Vai Vai me dizer por que resolveu nos torturar com esta dança? — É sua última noite aqui. — Ah — apesar de não estar encarando-o, fui capaz de sentir o começo de um sorriso sarcástico —, está devastada? Ignorei a declaração irônica. Precisava de uma razão plausível para tê-lo chamado para dançar, então indaguei:
— Não tem nada planejado para hoje? — Então, está preocupada — concluiu. — Poderia, pelo menos, ter a decência de me dizer. — Olhei para ele, e tentei não soar desafiadora ao indagar: — Vai, finalmente, me matar hoje à noite?
— A expectativa faz parte da diversão, farren. Busquei Willow pelo salão, mas havia muitos casais dançando ao nosso redor. Me perguntava se ela já havia conseguido o suficiente. Eu não aguentava mais estar tão perto dele. Era sufocante. — O que está aprontando, uhm? — Ele indagou, interrompendo a minha busca. Voltei a encará-lo. Tomar o trono. Te matar. — Está com medo? — provoquei.
— Só preocupado com a possibilidade de alguém te matar antes que eu possa fazê-lo.
— Talvez, eu te mate antes. — Eu sorri.
Sarkian sorriu de volta. Aquele sorriso que não alcançava o prata sombrio de seus olhos. A música, por fim, terminou. Ele me soltou como se eu o queimasse e eu me afastei com semelhante repulsa.
Atravessei o salão em direção ao banheiro, precisava me refrescar para me recompor. Faltava pouco e não poderia haver distrações. Apoiei as mãos na pia, fechei os ol olhos hos e respirei fun fundo. do. Vai dar tudo certo.
— Está tudo bem? A voz doce ecoou pelo pelo banheiro. Me assustei e abri os olhos para encontrar Despinna no reflexo do espelho. Nos encaramos por um longo momento. O vestido de tom púrpura com um decote avantajado lisonjeava as suas curvas. — Tudo — murmurei. Ela começou a andar em minha direção. Estava claro que tinha
vindo até o banheiro atrás de mim. Não me movi, apenas esperei. — Ele é fascinante de se olhar, eu sei. — Ela disse com a voz casual, porém, eu sabia que não havia nada de casual naquela conversa. Ela parou ao meu lado na pia. Virei o rosto em sua direção.
— Do que está falando? Ela sorriu, os lábios tingidos de vermelho subindo lentamente. — Não se faça de estúpida. Sabe muito bem do que estou falando. Tirei as mãos da pia e me virei para ela. — O que você quer? Ela ficou repentinamente séria. — Ele é meu. Pisquei diante da declaração. Ela estava com ciúmes. Aquilo era realmente hilário. Foi a minha vez de sorrir. — Sou uma ameaça para você? — provoquei. Sua mandíbula tensionou.
— Ele jamais se interessaria por alguém como você. Sabe disso, não é? — Ela deu um passo à frente. — Não é só a sua aparência medíocre ou sua personalidade entediante. Seu sangue é inferior. Ele não a foderia nem se fosse a última mulher do mundo. Fechei as mãos em punhos e tentei ignorar as suas palavras. Eu sabia que seu único intuito era me afetar, mas isso não queria
dizer que não ofendia. — Então, por que está aqui? — Porque você não parece ser capaz de tirar os olhos, e nem as mãos, dele. — Um brilho perverso atravessou seus olhos. — E eu já cortei a garganta de outras por muito menos que isso. Eu não desejava ter problemas com Despinna. Não tinha absolutamente nada contra a sua pessoa, muito pelo contrário, na verdade. Me impressionava com sua confiança e indiferença a opinião alheia. Mas ela era extremamente possessiva com aquilo que amava. E se havia algo um tanto claro, era que ela amava Sarkian Vara Varant. nt. Aquilo quase me fazia sentir pena dela. Amar um monstro devia ser algum tipo de maldição. Despinna estava disposta a se livrar de qualquer um que
estivesse em seu caminho. Tive vontade de deixar bem claro que não estava nem perto de ser um problema para ela como imaginava — já que Sarkian me odiava e o sentimento era completamente mútuo. Mas também não iria me explicar para uma mulher que estava me ameaçando. Havia decidido que não iria mais abaixar a minha cabeça.
Despinna se virou e seguiu a caminho da porta. — Eu tomaria cuidado com as ameaças, Despinna — avisei. — Pode se surpreender com as consequências delas. Ela se virou para me lançar um último olhar olhar.. — Eu não tenho medo de você, garota — disse antes de ir. Ainda não.
Deixei o banheiro e voltei para a mesa, me sentando do lado de Willow. Vesper havia chegado e tinha um copo na mão direita. — Tem certeza de que quer beber nesta noite? — indaguei. — É essencial que que eu beba nesta noite. — Ele rebateu, quase ofendido. — Tenho que acalmar meus nervos de alguma forma. Olhei para Willow, que estava quieta demais. Na verdade, mal se movia.
— O que foi? — Consegui — anunciou com a voz estranhamente baixa e, então, olhou para mim. — Consegui ler a mente dele. Meu coração pulou uma batida. — E aí?
Willow hesitou antes de falar, parecia… perplexa. Aquilo estava me matando. Me remexi na cadeira. — Consegui ver duas coisas muito claras. — Ela disse. — Ele a odeia. Cerrei os dentes dentro da boca, contendo a vontade de estrangulá-la. — Já estou bem ciente disso, Willow. — Mas o ódio só não é maior do que… Ela parou por um momento e voltou a olhar para ele, quase como se estivesse tentando confirmar o que havia lido. — Do quê...? — insisti, tensa. Ela abriu a boca e, quando voltou a me encarar, a pele de suas bochechas corou.
E nada poderia ter sido tão chocante quanto o que Willow falou em seguida: — Do que a vontade de rasgar o seu vestido.
Ele tentou resistir a ela Tanto que a frustração se tornou ódio Ele queria destruir já que não podia podia ter
30
Não podia ser. Eu olhei para Sarkian, que conversava com o Rei de Umbra agora. Havia um zumbido em meu ouvido e eu me senti repentinamente tonta. Se estivesse de pé, achava que poderia desmaiar. — Puta que pariu! — Vesper exclamou, alto demais. — Que reviravolta. Ele gosta dela?! — Não, ele não gosta dela. — Willow respondeu. — E fale
baixo, animal. Eu pisquei, saindo da minha hipnose, e encarei Willow. — Tem certeza disso? Tem certeza de que leu isso? — Sim, tenho. — Seu rosto ficou repentinamente muito sério ao voltar a analisá-lo com atenção meticulosa. Ela parecia quase
desconfortável quando retornou a falar. — Fica muito claro toda vez que ele olha para você. É… pulsante. Pulsante.
Minha cabeça girava. — O quê? — A minha voz saiu rouca. — O desprezo ou o desejo? Ela engoliu em seco. Então, olhou para mim. — Ambos. Eu o observei do outro lado do salão. Meu pesadelo. O homem que fazia da minha vida um inferno. O encarei por tanto tempo que ele me pegou fitando-o. Mas não desviei daquela vez. Apenas o observei. Será que havia uma parte de mim que já sabia?
Porque, ao mesmo tempo em que estava em completo choque…, não estava. Não sabia como aquilo era possível. Talvez, houvesse um pressentimento que tentei negar, porque a ideia era absurda demais. Porque o seu ódio era violento demais.
— Cera. Você está bem? — Vesper perguntou. — Sua cor está um pouco… preocupante. — Estou bem. Mas eu não estava. Não depois daquela informação. — Isso não muda nada nos planos, não é? Eu me virei abruptamente na direção de Willow. — Claro que não. Bebi o meu copo inteiro de vinho em dois goles. O líquido queimou a minha garganta e a ardência foi mais do que bem-vinda. — Talvez, isso deixe até mais fácil — murmurei, sem saber exatamente para quem estava fazendo aquela afirmação. Sarkian finalmente se levantou.
— É agora, Cera — Vesper avisou, ao fazer o mesmo. Assenti. Ou, pelo menos, achei que o fiz. Era como se o meu corpo e meu cérebro estivessem com dificuldade de trabalhar juntos. — Tomem cuidado — pedi, ao ficar de pé.
Esperei um pouco até começar a me movimentar em sua direção. Não sentia as minhas pernas conforme o seguia até a sacada. De repente, sua capa preta se misturou com as sombras do corredor vazio. Só o avistei novamente sob a luz da lua ao chegar na sacada. Minha nuca e costas suavam. Adrenalina pulsava em meu sangue. Ele parou no meio da sacada, contemplando o jardim extenso, e tirou o cigarro do bolso. Observei ele acender a lavena. Em dado momento, Sarkian sempre deixava as festas para fumar. Não sabia exatamente se era para fugir da cerimônia e de todas aquelas pessoas que ele, claramente, detestava ou se era pela necessidade da substância.
Provavelmente, ambos. Parei um passo antes de adentrar à sacada, a cerca de três metros de distância dele. Aproveitei o fato de ele estar de costas para fitá-lo por mais uns instantes.
Sarkian tirou a máscara e tragou. Jogou a cabeça para trás antes de soprar a fumaça em direção ao céu. Ficou daquela forma por alguns segundos, e eu o observei paralisada e um tanto hipnotizada enquanto criava coragem. — Procurando por problema, farren? — Sua voz quebrou o silêncio quando virou o rosto para direita, me dando a visão de seu perfil. De alguma forma, eu já sabia que ele tinha consciência da minha presença. Ele sempre tinha. Mas, ainda assim, retraí ao som de sua voz. — Por que as luvas? — indaguei. As palavras surpreendendo, até mesmo, a mim. Eu sempre tive aquela curiosidade, mas nunca pensei em verbalizá-la, principalmente a ele.
Talvez, fosse o nervosismo. Ou, talvez, a necessidade desesperadora de tirar o máximo dele antes de lhe tirar a vida. Porque eu odiava Sarkian Varant com todas as minhas forças, mas isso não eliminava o fato de que eu era completamente fascinada por ele.
Ele se virou, ficando de lado para mim, e me encarou amplamente. Sarkian levantou a lavena até bem próximo de seus lábios, mas, antes, perguntou: — Me seguiu até aqui só para perguntar isso? Me aproximei com cautela, me juntando a ele na extensa e vazia sacada. Dei de ombros, tentando soar casual. — Sabe — ele disse, ao me observar com atenção —, para alguém que diz me odiar, você não parece querer ficar longe de mim nesta noite. — Talvez, no final das contas, eu seja mesmo incrivelmente estúpida — justifiquei, me referindo à nossa primeira conversa, que tivemos há meses naquela mesma sacada. — Vai me responder ou não? Ele ficou um silêncio por alguns segundos antes de, por fim,
responder: — É útil para evitar que eu toque em coisas desagradáveis. Por exemplo, foi extremamente útil na nossa dança agora a pouco. Ele sugou mais uma vez, sem tirar os olhos de mim. Seu rosto era completamente neutro e enigmático conforme soprava a fumaça no ar.
Agora que eu sabia da verdade, encará-lo era toda uma nova experiência. Cada movimento e expressão tinha um novo significado. O quão forte ele me desejava? E será que o desejo chegava perto do tamanho do seu ódio por mim? “A vontade de arrancar o seu vestido”.
As palavras de Willow ecoavam em minha cabeça como uma melodia sombria. Dei dois passos em sua direção. Vento bateu contra nós, fazendo meus fios escuros se movimentarem em volta do meu rosto e calafrios assolarem a minha pele exposta. — A ideia de me tocar é tão repugnante assim?
Sarkian se manteve parado, com os olhos fixos em mim. Pensei que, talvez, a pergunta o levasse a soltar uma risada maldosa ou um comentário igualmente perverso, mas não foi o que aconteceu. Seu rosto não se moveu, apenas seu olhar se tornou sombrio. O que aconteceria se eu me aproximasse mais um pouco? Se eu o tocasse?
Meu corpo fervia com a ideia de descobrir. Então, foi o que eu fiz. Fiquei a cerca de um passo de distância dele. Daquela maneira, eu conseguia ver a guerra em seus olhos com clareza. O seu desprezo por mim lutando contra o desejo. Era violento. Que azar o meu, concluí. Era um perigoso campo de batalha
para se estar bem no centro. Mas estaria me enganando terrivelmente se afirmasse que não estava absolutamente me deliciando com aquilo. Era quase viciante. Nunca senti tamanho poder em toda a minha vida. A lavena caiu de seus dedos. A pequena chama se apagando ao encontrar o chão. Ele inclinou o rosto, aproximando a boca da
minha orelha, mas sem me tocar. Senti o calafrio novamente, mas, dessa vez, não era devido à brisa. Seu hálito bateu contra a pele da minha bochecha. — Ah, farren — ele murmurou com a voz grave —, você não faz ideia.
Minha respiração ficou presa. E foi quando eu soube s oube que aquele era o momento. Aproveitei a aproximação e o fato dele não ter visão do meu corpo por completo para retirar a navalha presa a minha coxa, que eu tinha acesso pela fenda do vestido. Assim que ele começou a afastar o rosto, puxei o objeto e o ergui em sua direção. A lâmina ficou a cerca de um centímetro de sua garganta garganta.. Os olhos de Sarkian brilharam em minha direção ao reconhecer o objeto e o que eu estava prestes a fazer com ele. Apesar de estar extremamente nervosa, saboreei o momento. Nunca teria outro tão satisfatório quanto aquele. Mas, então, ele fez a última coisa que eu imaginei que faria.
Sarkian riu. Uma risada rouca, que ecoou pela noite e gerou calafrios por todo o meu corpo. O braço erguido que segurava a lâmina tremia. Meu coração batia descontrolado ao observá-lo. Agora. Empurre, Empurre, Cera.
Empurre.
Seus olhos pratas zombavam de mim. Havia uma mistura perversa de desafio e diversão. Vamos, farren. Faça.
E, então, eu fiz. Movimentei a lâmina para frente. Mas, no instante antes que ela tocasse a sua pele, Sarkian se movimentou também. Foi tudo tão rápido que não compreendi o que estava acontecendo. Antes que pudesse piscar piscar,, ele tinha uma de suas mãos no meu punho, afastando a lâmina. Sua outra mão agarrou meu pescoço, fechando seus dedos contra a minha pele. O ar deixou meus pulmões. Naquele momento, eu entendi que Sarkian Varant me tinha
sob completo controle. Ele girou e me empurrou contra a parede da varanda. Minhas costas se chocaram contra o cimento com violência. A lâmina soltou da minha mão e caiu, fazendo um barulho agudo ao bater contra o chão. Fechei os olhos ao sentir a dor atravessar a minha espinha.
Quando voltei a abri-los, encontrei o prata me fitando. Suas írises nunca estiveram tão escuras. Tentei engolir em seco, mas seu aperto não permitia. Ele iria me matar. Sarkian Varant, finalmente, faria aquilo que havia prometido. Ele apertou mais, inibindo a minha respiração. Levei a minha mão livre em direção ao seu punho, desesperada para aliviar seu aperto, mas seu braço era sólido como o cimento no qual ele me imprensava. O rastro de um sorriso sádico ainda pendia em seus lábios, mas a diversão não alcançava seus olhos. O prata nunca me pareceu tão aterrorizante quanto naquele instante. Eles queimavam.
Meus olhos lacrimejaram. Foi quando entendi que seu rosto iluminado pela luz suave da lua seria a última coisa que eu veria. Tão belo. Tão cruel.
Pisquei lentamente e uma lágrima grossa escorreu pela minha bochecha.
Sarkian a observou descer pela minha pele, o sorriso, aos poucos, deixando seus lábios. Sua mandíbula tensionou, conforme me analisava com uma atenção desconcertante. Era eu que estava sendo sufocada, mas era Sarkian que parecia estar sentindo dor. Quando achei que estava prestes a desmaiar, muito vagarosamente, seu aperto suavizou. Mas ele não me soltou. Com as mãos ainda em meu pescoço, Sarkian inclinou seu rosto. Senti a sua respiração na minha pele e, então, com suavidade extrema, seus lábios tocaram a pele do meu rosto. Foi como um choque, que causou arrepios por todo o meu corpo. Mesmo com pouquíssimo ar, ar, prendi a respiração.
Sem qualquer pressão, ele arrastou os lábios pela minha bochecha, seguindo o caminho que a lágrima, há pouco, havia feito. Fechei os olhos. Foi um toque tão angelical e quase sem nenhum contato, que me perguntei se realmente havia acontecido. Mas foi tão elétrico que decidi que não podia ter sido apenas imaginação. Abri meus olhos.
Por um instante que durou uma eternidade, achei que ele fosse recuar. Mas ele não o fez. Sarkian arrastou a ponta do nariz, com a mesma suavidade dolorosa, até ficar emaranhada contra meus fios. Ele inalou. E, naquele momento, foi como se ele tivesse sugado toda a minha alma. Me senti violada. Como se ele tivesse a roubado de mim. Quando soltou a respiração contra o pescoço, senti mais um calafrio percorreu meu corpo. Meu coração c oração batia com tanta violência contra meu peito, que eu podia ouvi-lo. Me perguntava se ele podia sentir minha pulsação, já que sua mão repousava logo acima do meu peito. — Você é a criatura — Sarkian arrastou os lábios próximos à
minha têmpora, até parar a cerca de um centímetro da minha boca. E, quando soprou, foi como se eu bebesse as suas palavras — mais desprezível que já conheci. E aquela foi a última coisa que ele disse antes que eu me aproximasse e colasse meus lábios nos seus.
Porque para o Rei das Trevas a ideia de tocá-la era aterrorizante mas não o fazer era ainda pior
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Foi suave, mas, ao mesmo tempo, como uma colisão desastrosa. Porque, no momento em que senti nossos lábios juntos, uma explosão eclodiu dentro de mim. Um encontro tão violento e tão suave, na mesma proporção, que pensei que, talvez, morrer fosse algo parecido com aquilo. Um toque conflitante de paz absoluta contra um arredor de caos.
Houve um fio de dor. Quase como um choque. Começou nos meus lábios e cruzou até cobrir todo o meu corpo. Durou um segundo em que nenhum de nós se moveu. O mundo ao redor de nós também congelou. O silêncio da noite era absoluto. Naquele um segundo breve e, ao mesmo tempo, eterno, toda a minha vida cruzou em minha mente, como se todo o meu passado
se resumisse àquele momento. Até que os lábios lábios de Sarki Sarkian an Varant Varant se mo moveram. veram. Sua mão ainda jazia no meu pescoço, mas, agora, não era um aperto violento. Sua boca entreabriu, pegando o meu lábio inferior. Senti a sucção antes de sua língua se arrastar. Minhas pernas fraquejaram. E, agora, seu aperto era mais do que bem-vindo. Era necessário. Eu queria mais dele. Porque, da mesma maneira que minha mente queria empurrálo, meu corpo o puxava. Eu estava prestes a erguer a minha mão livre para tocá-lo,
quando senti seus dentes contra o meu lábio inferior. Ele mordeu a carne com força. A dor atravessou a minha espinha, se fundindo com a onda de desejo que ainda emanava. Um som rouco e quase inadiável deixou a minha garganta.
Do mesmo jeito que a dor foi um choque, não fiquei surpresa. Porque Sarkian não sabia não me machucar. Ele estava me punindo por me querer. Estava me punindo por me querer ainda que, há menos de um minuto, eu havia tentado matá-lo. Senti meus olhos lacrimejarem assim que ele soltou. Coisas belas demais tendiam a machucar. Você precisaria tomar muito cuidado com os espinhos ao pôr as mãos em uma rosa. Quando a sua língua invadiu a minha boca com uma fome devastadora, permiti a sua entrada. Nossas línguas travaram uma batalha sincronizada. sincronizada. Mas não esqueci do ferimento. Retribui a mordida, pegando seu lábio entre os dentes na primeira oportunidade que tive. Apertei até ouvir o som rouco deixando a sua garganta, mas ele não se
afastou. Porque, no final das contas, eu também não sabia não o machucar de volta. Sarkian apertou um pouco mais a mão contra meu pescoço, mas seus lábios não deixaram os meus. Minha mão esquerda agarrou a base de seu pescoço.
Até que senti o gosto metálico metálico inundar a minha boca. boca. Sarkian estava sangrando. Naquele exato momento, como se tivesse tomado consciência do fato ao mesmo tempo que eu, Sarkian recuou. Ele me soltou e seu corpo me abandonou de forma tão repentina que o vazio foi quase insuportável. E foi quando vi. Ao fitá-lo, meus olhos foram diretamente até sua boca, que sangrava. O choque foi tão grande que, por um momento, achei que realmente minhas pernas fossem me deixar na mão. A respiração ficou presa q quando uando o entendimento entendimento bateu. bateu. Sarkian Varant sangrava escuridão.
O líquido metálico que escorria pelo seu lábio, e que eu ainda podia sentir em minha própria boca, era negro como a noite. Sarkian notou o choque em meu rosto e o analisou com uma atenção desconcertante. Eu abri a boca, mas foi difícil fazer as palavras saírem. — Você é…
Mas não cheguei a terminar a frase. A minha voz foi silenciada pela explosão.
Os grilos cantavam e as estrelas reluziam Mas no momento em que os lábios da Usurpadora de Sangue tocaram os do Rei das Trevas até a lua parou para observar
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três horas antes
—
Você tem certeza de que isso vai dar certo? —
perguntei, agachada ao lado de Vesper. Estávamos no subsolo do palácio, uma passagem apertada e um tanto precária que foi construída para casos de emergência, como se a Família Real e pessoas importantes num geral precisassem evacuar o local às escondidas em algum momento. Mal dava para ouvir a movimentação lá em cima; dos criados
preparando o salão para o grande jantar. Vesper estava concentrado nos explosivos espalhados pelo chão e não me encarou ao responder: — Tenho 85% de certeza. — Ah, ótimo. E o que acontece na margem dos 15%?
Aquela seria a nossa distração. Cerca de cinquenta litros de uma substância amarelada altamente inflamável e corrosiva que, de encontro com os explosivos, destruiria parte do castelo. A ideia havia sido de Vesper. esper. A maior parte da fortuna de sua família vinha de minas. Desde garoto, ele via os homens do seu pai adentrarem solos daquela forma para explorar. Havíamos roubado todo aquele material do armazém dele. Ele olhou para mim e para Willow, que estava encostada na parede. Mantendo distância, como se aqueles passos de distância fossem fazer alguma diferença caso Vesper ferrasse com as coisas. — Todo mundo aqui explode. Willow soltou um palavrão e eu apenas murmurei: — Excelente.
Ele trabalhava com cuidado, os dedos longos e ágeis mexendo nos fios com uma delicadeza cirúrgica. — O que eu daria para ter um copo de uísque agora... — Ele comentou, logo antes de limpar uma gota de suor que escorria pela testa. Quando terminou, eu e Willow soltamos em conjunto um longo suspiro de alívio.
Nós três nos afastamos dos explosivos, até pararmos na pequena porta que separava o subsolo do primeiro andar do castelo. Me virei para eles antes de tocar na maçaneta. — Ok — Encarei os dois e respirei fundo. — Recapitulando: assim que Sarkian sair para a sacada sozinho, vou segui-lo. Enquanto isso, Vesper vai descer para acionar o primeiro explosivo abaixo do salão de joias. Imaginando que é uma tentativa de roubo, grande parte dos soldados virá até aqui verificar. Mas grande parte também irá cercar o rei, para protegê-lo de qualquer perigo. Como planejado, parte desses soldados serão os de DeLarosa. E, com o segundo explosivo que Vesper acionar, será a deixa para que eles ataquem os outros soldados que ainda estiverem por lá. Assim que o fizerem, Willow e eu iremos fechar as portas do salão, para evitar a entrada dos outros guardas que souberem do ataque ao rei.
Porque, até lá, eles provavelmente já vão entender que não era um roubo e sim, uma distração. Dentro do salão, eu vou me aproximar da Família Real e, quando tiver algum tipo de abertura, irei matar e roubar a coroa do rei. Saindo da minha boca, aquilo parecia uma completa loucura. Mesmo que tivéssemos ensaiado e planejado aquilo por semanas.
Nos
encaramos
por
um
longo
momento,
como
se
estivéssemos digerindo as palavras ao mesmo tempo em que tomávamos coragem. — Moleza — comentou Vesper, quebrando o silêncio tenso. Willow suspirou fundo. — E se algo der errado? — indagou Willow. — Nós continuamos, como o planejado. Tínhamos elaborado “planos B” para cada passo. Porque era isso que tornava um golpe bem-sucedido: estar preparado para qualquer falha no caminho. — E se, mesmo assim, der errado... Bem... — Fiz uma pausa, com dificuldade de falar o que todos nós já sabíamos. — Nós morremos. — Vesper fez questão de concluir.
Willow riu. Mas foi uma risada nervosa e estranha, que tornou seu rosto delicado em uma careta. — Puta que pariu, que loucura. Vesper e eu nos entreolhamos, de alguma forma, uma risada também escapou de nossas bocas. Foi um momento triste, porém
engraçado, em que decidimos rir do nosso terrível — e possivelmente fatal — destino. Até que, por fim, os sorrisos deixaram nossos rostos, nos obrigando a encarar o que viria em seguida. Me virei, mas Vesper segurou o meu pulso antes que eu empurrasse a porta. Girei a cabeça para encontrar seu olhar. — Sabe que sua família provavelmente vai estar lá, não é? Ele se referia ao momento de ataque. O salão viraria um campo de batalha do qual muitas pessoas sairiam feridas e mortas. Eu pisquei apenas uma vez, antes de responder: — Sim, eu sei. Mas a verdade é que eu não tinha família. Não mais. Ao adentrar no salão, eu estava morrendo de medo. Eu não
disse a eles, mas a parte que mais me aterrorizava não era trair a coroa. Não era prender os nobres no salão, nem mesmo enfiar uma lâmina no Rei de Umbra. O que mais me aterrorizava era a ideia de matar Sarkian Varant.
E, ironicamente, era também a parte que eu mais ansiava.
33
O barulho, assim como o sutil tremor do piso, me fez sair do estado de choque. Eu pisquei em direção a Sarkian, parado em minha frente, ainda me fitando. A explosão o pegou de surpresa, mas seus olhos não deixaram os meus por muito tempo. Passei a mão nos meus próprios lábios, ainda sentindo o seu gosto em minha boca. Encarei a ponta dos meus dedos, como se estivesse me certificando de que eu não estava completamente
louca. Eu não estava. Minha pele estava manchada com sangue escuro como a noite. Sarkian Varant era um caído.
Ao mesmo tempo em que aquilo era chocante, de alguma forma, explicava muita coisa. Sua aparência, seu magnetismo, até mesmo sua forma de se mover. Ele nunca foi comum, soube disso no instante em que botei meus olhos nele pela primeira vez. Sempre houve algo a mais sobre ele, algo beirando ao divino. Sarkian fez menção de dar um passo à frente. Não sei ao certo com qual intenção. Mas M as não fiquei para descobrir descobrir.. Eu corri. Me distanciei dele e atravessei o corredor às pressas. Um caído. Ele era um caído.
Não parei. Olhei para trás, para ver se Sarkian estava me seguindo. Porém, estava sozinha no longo corredor.
Foco, Cera. Você tem um trono para tomar.
Conforme me aproximava, o barulho do caos ficava mais alto. Eu precisava chegar lá antes da segunda explosão, para poder fechar as portas antes que os reforços chegassem até o rei. Você tinha que tê-lo matado, Cera.
Você falhou.
Assim que virei no corredor corredor,, avistei os soldados correndo na direção da explosão. Ótimo, a distração havia dado certo. Pelo menos, uma parte do plano tinha sido um sucesso. — Cera! Willow surgiu no meu campo de visão, parada ao lado de uma das portas altas. Ela começou a puxar antes que eu chegasse até lá. Assim que os homens começassem a lutar no salão, as pessoas iriam fugir, tentando atravessar a grande porta principal e nos impossibilitando de fechá-la. Parei ao lado de Willow no momento em que a segunda
explosão ocorreu. O impacto foi mais forte do que imaginei que seria, chegando a fazer o chão tremer. Pensei em Vesper e torci para que ele tivesse feito tudo certo e estivesse longe o suficiente da explosão. As espadas se ergueram no salão. Escutei o barulho metálico, mas não parei para observar. Agarrei a outra porta e comecei a
puxar. A madeira era pesada e longa, e tive que jogar o meu peso contra ela. Pela visão periférica, notei que Willow fazia o mesmo. Conseguimos fechar. Agora, precisávamos tornar impossível de abrir novamente. — Rápido, Willow! — gritei, ao me virar e notar dezenas de nobres desesperados correndo em nossa direção, tentando fugir. — Abram as portas! — Um deles ordenou. Willow tirou o frasco do bolso e jogou o líquido corrosivo nas maçanetas. Quando eles chegaram até nós, o ácido já queimava a única forma de abrir as portas. — O que estão fazendo?! — Ouvi, ao me virar. Já estava correndo em direção ao caos do salão quando eles começaram a empurrar as portas.
— Socorro! Nos tirem daqui! Mas eles demorariam, pelo menos, cerca de dez minutos até conseguir derrubá-las. O que teria de ser o suficiente para que eu chegasse até o rei. Os gritos tomaram conta do lugar.
Eu não conseguia ver a Família Real. Soldados os rodeavam, formando um círculo de proteção contra os ataques dos homens de DeLarosa. Alguns corpos já jaziam no chão. Uma mulher me empurrou conforme corria em completo desespero. Me desequilibrei e caí no chão. Decidi que o mais seguro a se fazer naquele momento era me esconder debaixo na mesa até conseguir avistar o rei. Me arrastei até estar abaixo da longa mesa de madeira e notei outras pessoas escondidas ali também. Senti uma pontada aguda no joelho ao me cortar em um pedaço de vidro conforme engatinhava. Os soldados lutavam bravamente para defender o rei, mas os homens de DeLarosa estavam em maior quantidade, e o mais importante: tiveram o elemento surpresa a seu favor. Ninguém esperava aquela traição. Poderia apostar que muitas vidas foram
tiradas antes mesmo de entenderem o que estava acontecendo. Os observei cair um após o outro; o círculo se tornando mais estreito. Um dos soldados desabou a cerca de centímetros de mim. Engatinhei até seu corpo. Ele ainda lutava para respirar, mas sangue espirrava de sua garganta.
Subi a base de sua calça até encontrar a adaga presa ao interior da bota. Todos os soldados, além da espada, tinham a segunda arma presa na base da perna. Era menor e bem mais leve, porém, igualmente afiada. Puxei para fora da bota de couro e estava prestes a me virar quando senti o aperto em meu braço. Olhei para a sua mão e, então, para o rosto do homem. — Me ajude — Ele apelou com dificuldade. Sangue jorrou de sua boca ao dizer as palavras. Tentei me afastar, mas seu aperto não cedeu. Ele usou suas últimas forças para me puxar contra seu corpo. Caí em seu peito encharcado de sangue e fiquei tão perto de seu rosto que o líquido que espirrava de sua artéria tocou meu rosto. Senti o gosto metálico pela segunda
vez naquela noite. Com o braço livre, afundei a adaga que havia roubado em sua costela. — Sinto muito — murmurei, com verdade na voz. Seus olhos azuis arregalaram e ele arfou uma última vez. Disse a mim mesma de que estava fazendo um favor a ele ao voltar engatinhando para debaixo da mesa, com a adaga
ensanguentada em mãos. Ele iria morrer de qualquer jeito. Apenas acelerei acelerei o processo, processo, poupandopoupando-o o da dor dor..
De alguma forma, eu não temia. Achava que era devido à adrenalina. Não sentia nenhum membro do meu corpo conforme ela pulsava em minhas veias. Era como se nada pudesse me ferir ou derrubar. Eu estava tão perto agora. Observei o centro do salão. Eu já era capaz de avistar a Família Real. Era visível o pavor em seus rostos, conforme se apertavam no centro do círculo. Eu tinha que me atentar ao tempo. O instante tinha de ser perfeito.
Porque precisava ser eu a matar o rei. Com as minhas próprias mãos. Precisava do seu sangue em meus dedos ao tocar a coroa. Só assim, eu seria uma rainha legítima. Se eu esperasse demais, alguém poderia fazer antes. Duvidava muito que qualquer um daqueles soldados não tinha algum nível de desejo de se tornar um rei. Um impacto forte quase derrubou a porta do salão.
Mais soldados.
O reforço havia chegado para proteger o rei. E eles estavam muito próximos de conseguir entrar. O suor colava o vestido fino ao meu corpo. Me posicionei e, no momento em que o príncipe Wilmot caiu no chão com uma espada enfiada no coração, soube que era o momento de agir. Porque o próximo seria o rei. Naquele instante, não senti tanto pavor quanto acreditava que deveria. Aquela sensação me surpreendeu. Eu nunca me considerei alguém especialmente corajosa. Pelo contrário, na verdade. Muitas vezes, sentia que o medo me travava. Mas tudo bem, afinal, era o medo que nos mantinha vivos. Era por isso que heróis corajosos demais tendiam a morrer muito cedo.
A questão é: eu não era uma her heroína. oína. Eu era uma traidora.
Engatinhei para fora da mesa e me ergui. Tropecei em corpos no caminho conforme avançava em direção ao rei. A adaga estava em minha mão, mas ainda não se encontrava erguida. Eu não queria ser considerada uma ameaça ao me aproximar aproximar..
A intenção era que me vissem como uma cidadã qualquer qualquer,, desesperada. Porque me subestimar seria o último erro que iriam cometer. A rainha caiu, o cabelo longo e branco se espalhando pelo piso. Uma fresta se abriu no círculo. Havia poucos homens de pé agora. Um deles avançou em direção ao rei. Apertei o passo. O homem o golpeou, mas o rei se protegeu com os braços. O impacto o fez tropeçar. tropeçar. Ele caiu no chão, levando o soldado consigo. Eles rolaram no chão e eu parei, sem fôlego, e com o coração quase saindo da boca quando o soldado o dominou e ergueu a espada. Agachado e com os olhos sedentos no rei, o soldado não me
viu chegar por trás. Finquei a faca próximo à sua nuca. Assim que a tirei, o corpo despencou ao lado do rei. Os olhos do rei encontraram os meus. Surpresa e alívio tomaram sua expressão ao me ver. Era claro seu o agradecimento. A genuinidade quase me fez hesitar. Quase.
O momento levou cerca de dois segundos, mas pareceu uma eternidade. O rei começou a se movimentar. Eu lhe ergui a mão, como se fosse para ajudá-lo, e ele a pegou sem hesitar hesitar.. Com a mão direita, o puxei até que estivesse de pé. E, com a esquerda, enfiei a lâmina em sua barriga. Assisti seus olhos se arregalarem em puro cchoque. hoque. Depois de um espasmo, ele caiu sobre mim, como em um abraço de morte. Sustentei seu peso por apenas o tempo em que levei para sussurrar em seu ouvido: — Que os Deuses que tanto ama te façam pagar por tudo o que fez. Os sons de gritos e das espadas se chocando, de repente, cessaram.
Eu arranquei a lâmina de seu estômago no instante em que, finalmente, derrubaram a porta do salão. Dezenas de soldados adentraram. Mas já era tarde demais. Com a mão direita, tirei a coroa de sua cabeça antes de deixar o peso de seu corpo escorregar até meus pés. E, quando me virei, me deparei com um salão paralisado.
O chão estava repleto de corpos. Mesas viradas e sangue escorrendo até das paredes. Mas não foi isso que me fez engolir em seco. Foi o fato de que os olhos de absolutamente todos os homens que ainda estavam de pé, estavam fixados em mim. Eu segurava a coroa na mão direita com tanta força que sentia as pontas metálicas machucando a pele sensível da minha palma. Soltei a lâmina e, com ambas as mãos, a ergui até a minha cabeça. Encontrei os olhos dele assim que senti o peso do objeto no topo da minha cabeça. Sarkian se encontrava nos fundos do salão, as costas apoiadas na parede e as mãos nos bolsos da capa preta. Ele usava
a máscara e, apesar de não conseguir ver a sua expressão, sentia seu olhar queimando conforme me fitava. Os soldados mascarados de sua guarda pessoal estavam lá, ao seu lado, prontos para qualquer coisa. Ele podia muito bem mandá-los atacar os poucos homens que sobraram de DeLarosa. Eu podia fazer o mesmo com ele. Mas nenhum de nós se moveu.
Foi apenas quando uma gota escorreu pela minha testa e manchou a minha visão de vermelho que tive consciência de como eu estava. Olhei para baixo. Meu corpo todo estava banhado em sangue: meus braços, roupa, cabelo. Meu vestido, antes branco, agora vibrava em escarlate. Quando ergui o olhar, os nobres e os soldados restantes começaram, um a um, como em um efeito dominó, a se ajoelhar diante de mim. Ao encarar o fundo do salão, onde há pouco Sarkian estava encostado, me deparei com vazio. Ele não estava mais lá.
34
Assim que souberam da tomada do trono, o restante dos soldados e vários cidadãos se posicionaram na frente do palácio. Havia um barulho alto vindo da multidão do lado de fora. — Você precisa se apresentar a eles — explicou DeLarosa. Um corte feio sangrava em sua mandíbula, mas ele parecia muito satisfeito. Eu ainda nem havia me sentado no trono. Sentia frio e calor ao
mesmo tempo. O sangue em meu corpo havia começado a secar e eu estava descalça. Vesper e Willow tinham acabado de se juntar a nós. Ambos intactos. Willow havia se escondido embaixo da mesa e esperado tudo acabar. Vesper, felizmente, não havia se detonado junto aos explosivos. Estava apenas imundo e um tanto amarrotado.
Eu segui até a sacada central. Atravessei a divisória entre o palácio e o exterior. O sol estava começando a nascer. Assim que coloquei as mãos na base da sacada, e encarei o povo, o barulhou quase cessou completamente. Os olhos me encaravam, em expectativa. Havia um misto de confusão, euforia e choque. Arranhei a minha minha garganta, ten tentando tando não eng engolir olir em seco. — Meu nome é Cera Novak. — A minha voz saiu rouca, mas alta o suficiente. — Não sou uma herdeira, não sou uma nobre. Sou a mulher que roubou a coroa do seu antigo rei. Sou uma usurpadora. — Eu pausei por um momento, segurando o parapeito com força. — Não espero que todos me amem, nem mesmo q que ue
gostem de mim. Mas uma coisa eu prometo: irei respeitar cada um de vocês contanto que façam o mesmo comigo. Serei benevolente, mas não fraca. Serei implacável, mas não cruel. Serei confiante, mas não arrogante. Não sou uma herdeira, não sou uma nobre. — Engoli em seco e minha voz saiu um pouco mais alta ao exclamar as últimas palavras: — Sou a sua rainha.
Vento soprou, fazendo voar alguns dos meus fios de cabelo ainda secos. Esperei por, talvez, dez segundos, avaliando os rostos que me encaravam da mesma forma atenta que eu fazia. Estava prestes a me virar quando comecei a escutar. Se iniciou como um cochicho. Eles deferiam as palavras me encarando. Não consegui entender de primeira. Talvez, fosse o nervosismo, ou o sangue que havia escorrido para dentro do meu ouvido. — O que estão dizendo? — perguntei a DeLarosa, que estava logo atrás de mim. — Seu título como conquistadora. Não é você quem o escolhe. É o povo. Mesmo não entendendo completamente, compreendi que era
algo positivo. Porque, ao mesmo tempo em que estavam gritando em uníssono, estavam fazendo reverências. Estavam me aceitando. Me batizando.
No instante em que finalmente entendi, ele confirmou. — Usurpadora — Ele disse, por fim. — Usurpadora de Sangue.
E agora, rainha? perguntou Vesper Ela se virou O povo ainda exclamava seu nome A Usurpadora de Sangue Sangue sorriu ao fitá-lo Um sorriso que dizia que ela mal havia começado
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