Um Velório Alegre - Mário Zambujal

January 22, 2017 | Author: Jose Barros | Category: N/A
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Inspetor e Declarante. Crime suposto. E de como um triste velório se pode tornar uma farra recambolesca....

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—•— Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

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Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Mário Zambujal Título: Um Velório Alegre

in “Primeiro as Mulheres”, © Oficina do Livro, 2006 / © Leya, SA, 2010 Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-32-7 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor —•—

Mário Zambujal Nasceu em Moura (1936). Foi redator de A Bola e O Jornal; chefe de redação de O Século e Diário de Notícias; diretor-adjunto do Record, diretor de Mundo Desportivo e Tal & Qual; e diretor-fundador do Se7e. Na RTP, criou, apresentou e dirigiu vários programas. Escreveu para rádio e teatro. Em 1980 lançou o primeiro livro, Crónica dos Bons Malandros, que deu origem à longa-metragem homónima de Fernando Lopes, e a que se seguiram Histórias do Fim da Rua (1983), À Noite Logo se Vê (1986), Fora de Mão (2003), Primeiro as Senhoras (2006), Já Não se Escrevem Cartas de Amor (2008), Uma Noite Não São Dias (2009), Dama de Espadas (2010), Longe é Um Bom Lugar (2011) e Cafuné (2012).

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Um Velório Alegre —•—

Mário Zambujal

Quinta-feira, 5 – Manhã – O DECLARANTE E O INSPECTOR Aqui me tem, senhor Inspector. Vivo, inteiro e ansioso por colaborar. Dê-me tempo. Por agora é como se um tufão me tivesse varrido a cabeça. Indícios, pormenores, eventuais pistas, não sei onde param. Depreendo tratar-se de uma reacção do cérebro às recordações penosas, já aconteceu com a minha irmã Rute: foi casada doze anos com o Dálio ceramista e não se lembra nem da cara dele. Comigo, a nuvem esvai-se em dias, talvez horas. Tudo quanto a memória captou retomará os seus lugares. Conte com depoimento decisivo para filar os energúmenos. Para já, e objectivamente, o que posso descrever é o seguinte. Pouco passava da meia-noite. Cinco, sete, vá lá, dez minutos. Saí de um velório animadíssimo e caminhei para o carro estacionado numa rua próxima. Noite modorrenta, ar quente e parado. Despi o casaco e afrouxei o nó da gravata. Vi um parzinho namorando a quatro mãos. Ainda me ocorreu ligar para a Renata Emília a sugerir-lhe que aparecesse no Bar Afunda. Desisti. Ela andava na fase do deitar cedo. E nessa altura, sou franco, quem ocupava os meus pensamentos era a Marilinha Misse. Estala a primeira contrariedade: quis acender um cigarro e nem fósforos nem isqueiro. Num primeiro impulso avancei para o rapaz de manga à cava enganchado na morena que tinha uma sandália calçada e outra descalça. Recuei. Nunca me permitiria o papel de empata. O chavalo ainda virou a cabeça, sobressaltado: «Queria alguma coisa?» Disse-lhe o que ouvia do meu pai quando era garoto e nos juntávamos à mesa: «Come e cala-te.» Aproximou-se um transeunte, alto, esgalgado. Obliquei para lhe sair ao caminho. Ele 6

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olha-me de soslaio e começa a dar passinhos para o lado. Insisto em acercar-me e o homem esganiça-se aos gritos: «Polícia! Polícia!» Era noite de azar: apareceram dois polícias. Optei pelas gargalhadas, o riso seria convincente prova de inocência. Quem se ri assim não pode ser larápio apanhado em flagrante. Agitei o maço de cigarros em frente do cagarola: «Lume! Só queria lume!» E para provar de vez a boa-fé decidi-me pelo espectáculo: virei os forros dos bolsos todos, casaco e calças. Mas era mesmo noite de enguiço: entre os meus pertences espalhados na calçada, saltavam à vista um isqueiro amarelo e carteira de fósforos com anúncio do bar. Valeu-me a feliz coincidência. De tempos a tempos sou protegido por felizes coincidências. Quando tinha dezassete anos e o meu pai me cortou as saídas nocturnas, a feliz coincidência foi que da janela do meu quarto à sacada da Almira do Dancing era um pulinho. Naquela noite, deu-se o caso de surgir um grupo de pândegos que vinham igualmente do velório. Entre eles uma alta patente militar. Afiançaram que sou fumador mas pessoa de bem e o caguinchas acabou a cravar-me um cigarro. Isto foi, digamos, o prólogo. Despedi-me do pessoal e segui tranquilo. Quando estou quase, quase a entrar no carro, acontece o que o senhor Inspector sabe: saltam-me em cima três sacanas encapuzados e atiram-me à bruta para dentro de uma carrinha cor de tijolo. A cor da carrinha foi a última imagem que captei antes de me vendarem os olhos. Aliás, penúltima. Notei ainda que a venda era uma meia preta de senhora. Deprimente. Acho bem senhoras com meias pretas mas abo mino meias pretas de senhora sem senhora. Não entendia o que se estava a passar. Só me recordo de ter pensado: gaita, deixei a porta do carro aberta e tenho lá as chaves do bar. Noite malvada.

Agora o senhor Inspector manda. Se vê interesse, eu aplico-me quantas horas achar necessárias a observar retratinhos de malfeitores conceituados. Não é maçada nenhuma, sempre me seduziu a problemática criminal. Um dia, com vagar, hei-de contar-lhe passagens da minha experiência como investigador particular e sigiloso. Considero até instrutivo analisar as carinhas dos fichados que, no seu superior entendimento, são artistas para se abalançarem a golpes desta envergadura. Mas repito, senhor Inspector: os gabirus usavam capuzes como máscaras. Máscaras, luvas, botifarras e, apesar da calorina, uns casacões invernosos que nem permitiam distinguir se eram magros ou gordos. Trabalho de profissionais, não? Depende. Vivemos uma época de informação a jorros. Qualquer cidadão insuspeitável, estilo funcionário exemplar, dado à família, frequentador de igreja, pontual pagador de impostos, tem à mão a cartilha toda. Quem não domina, hoje em dia, o á-bê-cê do marginal? Prudência. Como diz o Falinhas, o sonho de todo o freguês é sair sem pagar a conta. O Falinhas é um filósofo que distribui copos pelas mesas do Bar Afunda, respeitável estabe7

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lecimento de que este declarante é co-proprietário. Ser-me-ia grato ter o senhor Inspector como convidado para umas flutes de champanhe, do bom, quando desembrulhar este novelo todo. Conhecerá então a minha sócia, Bruna, cento e catorze quilos e uns bíceps que põem os vivaços em sentido. E o Falinhas. O sinal particular do Falinhas é o tom de voz. Ele não fala, segreda. Como resultado, temos os clientes de mão em concha sobre o ouvido e a perguntar: «O quê?» Imperturbável, o Luciano, dito o Falinhas, repete quantas vezes o solicitarem. Sem subir o volume. Profissional de mão-cheia a aviar bebidas, o Falinhas é, mais que tudo, um mimo de gente. E ainda há semanas me espantou com um talento novo: toca piano. Admiravelmente. Tenho a Bruna e o Falinhas de olho nos frequenta dores do bar. É dos livros: sujeito que lhe dê para exibir enriquecimento repentino e sem explicação, pespega-se com ele na lista de suspeitos. O senhor Inspector é homem para conhecer os lugares da noite. Entra de tudo. Nem o Bar Afunda, com clientela seleccionada, pode benzer-se de só lá porem o cu cavalheiros como nós. Estou a pensar, concretamente, em três melros que arrastam as noites a conspirar em surdina. Nem o Falinhas comunica tão discretamente. Curioso é que ninguém os viu por lá enquanto penei sequestrado e voltaram ontem mais expansivos. Bichanou-me o Falinhas, esta manhã, que um deles perguntou com arzinho de troça: «E o patrão Edgar? Tem aparecido?» «Foi de férias», sacudiu o Falinhas. «O quê?», perguntaram em coro, arrebitando as orelhas. «Férias.» O primeiro descaiu-se com graçola suspeita: «Férias pagas pelo velho Sertório, se calhar.» E dobraram-se a rir. Perante isto, o que pensar? Tudo. Que é mesmo a trupe do rapto ou apenas uma trindade de palermas. A segunda hipótese não anula a primeira. Descanse. Estarei atento ao que se passa à volta, uma ideia insiste em martelar-me as meninges: o golpe tem dedo de quem me conhece de perto. Falo de amadores ainda sem lugar no seu álbum de especialistas. Lá irão parar, o crime perfeito só existe quando a investigação é imperfeita. Ora, na circunstância, não há porta por onde se escapem. Nem por um instante, meio instante, duvido de que o senhor Inspector, olha quem, vai deslindar o enigma.

Se prefere perguntar, pergunte. Mas, numa primeira fase, o que julgo útil é reconstituir os acontecimentos que antecederam o crime. Passei o serão no átrio da Igreja dos Prazeres, levado por mais um dos acasos que me conduzem aos ziguezagues. Hoje é fácil comentar que foi disparate pôr os pés no velório. Certo. Mas o que me faz matutar é isto, senhor Inspector: quem 8

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tinha conhecimento de que eu me encontrava ali? Mais: quem conhecia o meu carro, paradinho a cem metros da igreja, para me fazer a espera nesse preciso ponto? Convenhamos que as aparências apontam para alguém que me viu no piedoso acto. Não sou do género de lançar suspeitas à doida mas sabe como, em certas circunstâncias, um homem desconfia até dos amigos. Amigos, prudência, o abraço pode ocultar a punhalada. A bem dizer, a minha ida ao velório explica-se com dois nomes só: Marilinha Misse e Gaspar Olívio Ripas. A Marilinha Misse é tentação antiga e silenciosa. O perfeito enlace do físico e do espiritual. Mas o superior encanto dela reside num simples gesto, acompanhado de uma palavra. Mais ninguém, neste universo de cativantes mulheres, tem o mesmo jeitinho de subir a mão pela nossa face e perguntar com a rouquidão no ponto de rebuçado: «Então?» Como outras interrogam «estás bem?», «como vais?», ela deixa deslizar os dedos até se envolverem nos cabelos e sai-lhe: «Então?» Andei alucinado e faminto. Mas distraí-me. Quando me dispus a participar-lhe a inclinação e algumas ideias acerca do que devíamos fazer com urgência, já o Ripas se desabo toava com ela. Custou-me, mas perdi com ferplei. Nunca saberá que comprei a cama de três metros por dois e meio para a estrearmos em colaboração. Da dorzita de corno só me lamentei ao velho Grafula, campeão de valsas e doutor em provérbios. Que esperava eu ouvir? Lógico: guardado está o bocado para quem o há-de comer. Foi o que ele disse.

Nesse famoso dia do rapto, logo pela manhã, correu o boato: sem que ninguém esperasse, o Gaspar Olívio Ripas tinha morrido, encontrando-se o corpo em câmara-ardente na Igreja dos Prazeres. Mais que boato, notícia de jornal. Por motivos passionais, escreveram, um alucinado enfiou duas balas no peito do nosso amigo. Foi um choque e uma estranheza. Motivos passionais? O Gaspar Ripas era um campeão de farras e femeeiro, mas parecia retirado de alvoroços de saias. A Marilinha Misse meteu-o na ordem. Começou a chegar gente, gente, às tantas o velório era um êxito. Poucos se terão visto com tanta animação, sobretudo depois de jantar, quando se formaram grupos recordando as aventuras e facécias do morto. Alguém levou um frasco de uísqui que circulava de goela em goela e explicou: «Noite com o Ripas nunca foi a seco.» Cerca das onze, a reunião fúnebre tomou ares de arraial. Misturou-se gente e uma ruiva de calções de caqui quis saber: «Qué dos noivos?» «Que noivos?» «Não é casamento?» «Velório, senhora.» «Mentira. E o morto?» 9

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«No lugar dele. Pode entrar, é grátis.» Nesse momento eu já tinha concluído, comigo mesmo, que o desgosto pelo falecimento do Ripas era bem superior à vontade de rever Marilinha Misse. Chegou a colocarse-me esse problema de consciência. Entrei na capela e acerquei-me para um sentido adeus. Da Marilinha nem sombra. Uma senhora de véu sobre a cabeleira branca ocupava-se em ajeitar a gravata do falecido, cuja face se ocultava sob um piedoso lenço de seda com monograma: G. R. Fui apresentar-lhe condolências. «Desculpe. É da família?» «Filha.» «Filha? Mas como filha?» «Filha, como? Bem, o meu pai e a minha mãe...» Nada fazia sentido. Mas evito perguntas acerca da idade a qualquer senhora acima dos dezasseis. Torneei o problema. «Diga-me, então, por favor: com quantos anos faleceu o meu querido e inesquecível amigo?» «Noventa e quatro.» «Não percebo.» «Noventa e quatro.» «Mil desculpas, enganei-me na capela. O nome do paizinho era...» «Gaspar Olívio Ripas.» «Disparate. O Gaspar Olívio Ripas era rapaz da minha geração, vou a caminho dos quarenta e três.» «Noventa e quatro tinha ele.» «O máximo, quarenta e seis.» «Olha, olha, quarenta e seis gostava eu de ter e sou a filha mais nova. Noventa e quatro.» Se não fossem o momento e o lugar, diria que a veterana brincava comigo. «Não fala a sério. Noventa e quatro, o Ripas?» «E cinco meses. Noventa e quatro anos e cinco meses.» Veio-me a suspeita de que era meio maluca mas a situação não me permitia virar as costas. «Não estará a ler de trás para a frente? Vou até aos quarenta e nove.» «Noventa e quatro. Quer que lhe mostre o BI dele?» «Quero.» «Não o trouxe. Mas está lá que o meu pai, avô das minhas três filhas, bisavô dos meus netos, Gaspar Olívio Castrogildo Ripas, contava noventa e quatro.» «Castrogildo? O Ripas não era Castrogildo.» «O meu pai era.» Inesperadamente, ela levantou o lenço que cobria o rosto do defunto. Vi um ancião, de 10

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aparência fina como peça de porcelana, com uma expressão tranquila. Não resisti a apontar o dedo ao saudoso: «Ripas? Gaspar Ripas?» «Castrogildo Ripas. O meu pai era Castrogildo. Castrogildo pelo lado da mãe, que era aristocrata e destinada a casamento com um barão mas fugiu com o carvoeiro. O carvoeiro Ripas fornicava com numerosas clientes, mas quem ele levou ao altar foi a minha avó. Você conhece história de amor mais bonita?» «Impossível. Então aquela notícia no jornal referia-se ao seu paizinho?» «Exactamente. Não puseram lá que ele era comendador.» «Mas puseram, os tontos, que ele foi baleado por motivos passionais.» «Exactamente. Mulheres.» «Brinca? Ele tinha namoros, e tal, aos noventa e quatro?» «Mas a culpa nunca foi dele. Elas não o largavam.» Corri para o átrio e berrei a grande notícia: «Não é o nosso! O morto não é o nosso Gaspar Olívio Ripas.» Tarde. Nesse momento, já o Gaspar Olívio Ripas, o nosso, era passeado aos ombros do pelotão de amigos. Tinha-lhe chegado a notícia do seu próprio falecimento e apresentou-se, acompanhado pela Marilinha Misse, para esclarecer que não era bem assim. Ali andava ele, transportado como um andor, quando a Marilinha Misse deu com os olhos em mim, sorriu, veio, veio, afagou-me a bochecha de baixo para cima até os dedos se enfiarem no cabelo e perguntou: «Então?» Não é de admirar que pensasse nela quando me dirigia para o carro e acabei estendido no desconforto de uma carrinha cor de tijolo. Agora, se o senhor Inspector concordar, fazemos intervalo. Preciso de espairecer. Daqui a uma hora, hora e meia, avançamos com o depoimento, quem sabe se enriquecido com novas recordações. Quando menos se espera, aí estão elas a saltar o muro.

in “Primeiro as Mulheres”, © Oficina do Livro, 2006 / © Leya, SA, 2010

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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