Um Diario Do Ano Da Peste

December 25, 2016 | Author: Antônio Wenzel Luzzatto | Category: N/A
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A FICÇÃO FACTUAL DE DANIEL DEFOE Publicado em 1722, como relato de testemunha ocular só identificada no final do texto pelas iniciais H. F., A Journal of the Plague Year é uma narrativa ficcional sobre Londres durante o surto de peste bubônica no verão de 1665. Escrita na primeira pessoa por um narrador anônimo e imaginário (Daniel Defoe tinha quatro anos no ano da peste), o texto se apresenta como história verídica, reconstruída a partir de dados e fatos concretos. Um diário do ano da peste se diferencia de todas as demais abordagens da epidemia por se tratar de uma obra ficcional que reúne, organiza e contextualiza farta informação de credibilidade inquestionável. Nesta, mais do que em qualquer outra das suas novelas, Daniel Defoe trama a narrativa fundindo fato e ficção, através de minuciosa coleção de detalhes. Ou seja, o autor emprega métodos jornalísticos na ficção, criando um primeiro modelo de narrativa objetiva, com muitas das técnicas utilizadas até hoje na “reportagem jornalística”, a dita “primeira versão da História”. O narrador da história se limita a registrar as suas observações e comentários. O desenrolar da ação é determinado e conduzido pelo conflito entre as duas personagens centrais: a peste atacando Londres de um lado, a cidade e seus habitantes resistindo ao ataque do outro. O realismo e a preocupação informativa do texto tornam a obra, mesmo sendo ficcional, um instrumento da maior eficiência para o estudo da propagação e controle de doenças infecciosas no meio urbano. Um diário do ano da peste também é fonte de consulta obrigatória para se entender o comportamento coletivo diante de uma calamidade social que cria um pandemônio na comunidade e ameaça a vida de cada um dos seus integrantes. Neste sentido, Defoe empenha-se na exemplificação da irracionalidade dos homens frente a um inimigo incontrolável e invisível. No processo, o texto deixa evidente que os sentimentos e reações coletivas pouco mudaram do século XVIII para cá. Da peste bubônica para a AIDS ou o dengue – as epidemias mudaram, mas os povos continuam os mesmos. O Diário mapeia a disseminação da peste em Londres passo a passo, bairro a bairro, paróquia a paróquia, com contabilização semanal dos mortos e uma exposição do alto custo humano da epidemia. Descreve as valas comuns, abertas para enterrar as pequenas montanhas de mortos recolhidos pelas ruas da cidade, detalha os mais descabidos e grosseiros procedimentos médicos, as superstições, simpatias, benzeduras, talismãs, poções milagrosas e o vasto instrumental terapêutico, vindos tanto da sabedoria popular quanto da Cabala ou bruxaria. Ainda registra os mais diversos níveis de sofrimento, da morte horrenda das mães grávidas contaminadas à execução de 40 mil cães e 20 mil gatos, a fim de conter a transmissão da doença. Apesar da abundância de ponto-e-vírgulas subordinando longas frases e do moralismo excessivo característicos da escrita no início do século XVIII, o livro mantém o “prazer do texto” e o interesse do leitor, pela apurada manipulação dos fatos para surpreender e chocar. A acumulação de grande volume de dados e acontecimentos parece caótica e mal selecionada. A justaposição quase desconexa de estatísticas e incidentes mundanos, porém, é intencional. Tem por função aumentar a concretude da história e sua verossimilhança ao depoimento espontâneo e sincero de um autêntico observador comum.

Estas sofisticadas artimanhas narrativas revestem o texto com o verniz da veracidade, despindo-o de qualquer pretensão literária. As anedotas e histórias de “interesse humano”, entremeadas com dados oficiais sobre o alastramento da epidemia nos quatro cantos de Londres, seriam apenas truques de imaginação para prender a atenção do leitor. Além de deixar a história mais convincente, o reaproveitamento de testemunhos verídicos dá um “valor acrescido de mercadoria” ao texto. Com este estilo simples e direto, aparentemente tosco e pouco elaborado, Defoe busca despertar o interesse de um novo tipo de leitor, o cidadão comum, que não freqüenta os círculos culturais, nem conhece os maneirismos intelectuais de seu tempo. Para isto, o texto instrui enquanto entretém, incluindo vulgaridades e exageros alarmistas, assim como informações de serventia prática ou educativa para “o homem da rua”. Desta forma, Defoe também antecipou os fundamentos da literatura popular moderna. Ficção factual ou narrativa semi-histórica, Um diário do ano da peste foi escrito em 1721-22. Dois anos antes, o sensacionalismo jornalístico que cercou um surto de peste em Marselha, na França, despertou o interesse de Defoe pelo apelo comercial do tema. Ainda em 1720, publicou um panfleto compilado de outros autores, com medidas preventivas contra a peste, chamado “Due Preparations for the Plague”. Em seguida, Defoe partiu para a criação do Diário, sendo “parcialmente inspirado” naquele folheto e outros livros da época, que lhe serviram de fonte: as estatísticas das mortes causadas pela epidemia saíram de London’s Dreadful Visitation, os procedimentos médicos e tratamentos da doença vieram de Necessary Directions for the Preventions and Cure of the Plague e Medela Pestilentiae.

A PESTE BUBÔNICA Infecção altamente transmissível, causada pela bactéria Yersinia Pestis, também conhecida como Pausteurella Pestis, que ataca o sistema linfático. A peste bubônica era a doença mais temida na Europa renascentista. Cerca de dez dias após o contágio, dá-se o doloroso inchaço de gânglios linfáticos do pescoço, axilas e virilhas, aparecendo a primeira íngua, o “bubo” ou bubão. Esta primeira íngua sempre é a maior e mais proeminente de todas. Em seguida, surgem outros bubões menores pelo corpo. Os sintomas mais comumente associados à doença são dores de cabeça, calafrios, febrões, dores lombares, taquicardia, delírio e vômitos. Na Renascença, só três em cada dez contaminados conseguiam viver mais de uma semana depois da formação do primeiro “bubo”. Em Londres, a peste bubônica adquiriu proporções pandêmicas em 1665, matando 17.440 dos seus 93 mil habitantes. De forma endêmica, entretanto, a doença existia há mais tempo nas docas da cidade, trazida por ratos de porões de navios estrangeiros. A contaminação de seres humanos deu-se através destes ratos, de gatos e cachorros que comeram ratos infectados e pelas pulgas destes animais. Apesar da crença popular, a água e o ar não desempenharam qualquer papel na erupção ou disseminação da peste. Em Um diário do ano da peste, a doença deixa Londres súbita e inesperadamente, feito um milagre, no final de 1665. Na verdade, a epidemia continuou em 1666, causando

mais duas mil mortes na capital da Inglaterra. O surto de peste só seria controlado por outra tragédia de semelhante dimensão social, o Great Fire – um incêndio iniciado na city de Londres que, em quatro dias, destruiu meia cidade.

UM DIÁRIO DO ANO DA PESTE Daniel Defoe Tradução de Eduardo S. San Martim Foi lá pelo começo de setembro de 1664 que eu e os meus vizinhos ouvimos em conversa corrente que a peste estava de volta na Holanda mais uma vez, pois já fora bem violenta no ano de 1663, principalmente em Amsterdam e Rotterdam, onde, pelo que dizem, chegou entre mercadorias transportadas por navios da Turquia; uns diziam vindas da Itália, outros do Levante; também disseram que veio da Cândia, ou então do Chipre. De onde veio não interessava, todos estavam de acordo que a peste estava na Holanda outra vez. Naqueles dias, não tínhamos coisas que eu ainda viveria para ver em prática, como os jornais impressos para espalhar rumores e informar sobre os acontecimentos e para melhorar as coisas pela imaginação dos homens. Notícias como aquela chegavam nas cartas dos mercadores e de outros que se correspondiam com o exterior e depois as divulgavam somente em conversas. Assim, estas coisas não se espalhavam instantaneamente por toda a nação como acontece agora. Parece, porém, que o governo tinha recebido um relatório comprovando o fato e já promovera várias reuniões para estudar maneiras de impedir a vinda da peste, mas tudo era feito muito discretamente. Por isso, os rumores não demoraram a desaparecer e o povo foi esquecendo a coisa como algo que nos dizia muito pouco a respeito, e que esperávamos não ser verdade. Até o final de novembro, ou o início de dezembro de 1664, quando dois homens, ditos franceses, morreram de peste em Long Acre, ou mais exatamente, lá pelo fim de Drury Lane. A família com quem estavam hospedados tentou esconder o caso de todas as maneiras possíveis, mas como aquilo foi comentado pela vizinhança, os secretários de Estado tomaram conhecimento e se preocuparam em mandar investigar. A fim de estabelecer a verdade com segurança, dois médicos e um cirurgião receberam ordens de ir àquela casa fazer uma inspeção. Fizeram isto e, encontrando sinais evidentes da doença nos corpos dos dois mortos, manifestaram publicamente sua opinião de que tinham morrido de peste. Depois, o caso foi informado ao padre da paróquia que o transmitiu ao Hall.l No boletim semanal de mortalidade, foi registrado como de costume, desta forma; Peste, 2. Paróquias contaminadas, 1. O povo mostrou grande preocupação com isto e o alarme começou a se espalhar por toda a cidade, ainda mais porque, na última semana de dezembro de 1664, outro homem morreu na mesma casa, com a mesma doença. Então, ficamos tranqüilos cerca de mais seis semanas, pois ninguém morreu com sinais da infecção e foi dito que a doença desaparecera. Depois, acho que no dia 14 de fevereiro, morreu mais um em outra casa, mas na mesma paróquia e da mesma maneira. Esta morte chamou muito a atenção do povo para aquele canto da cidade. Embora cuidassem para manter isto o mais longe possível do conhecimento público, com os boletins semanais mostrando um aumento de óbitos acima do normal na paróquia de St Giles, surgiu a suspeita de que a peste estava entre os moradores daquela zona da cidade e que muitos morriam com ela. Isto tomou conta da cabeça das pessoas e poucas se

arriscavam a atravessar Drury Lane ou outras ruas suspeitas, a não ser que negócios importantíssimos as obrigassem a ir até lá. O crescimento dos óbitos nos boletins foi assim: o número habitual de enterros em uma semana, nas paróquias de St Giles-in-the-fields e St Andrew Holborn, era entre doze e dezessete ou dezenove mais ou menos, em cada uma. No momento em que a peste surgiu na paróquia de St Giles, observou-se que o número de enterros comuns aumentou consideravelmente. Por exemplo: De 27 de dezembro a 3 de janeiro De 3 a 10 de janeiro De 10 a 17 de janeiro De 17 a 24 de janeiro De 24 a 31 de janeiro De 30 de janeiro a 7 de fevereiro De 6 a 14 de fevereiro

St Giles 16 St Andrew 17 St Giles 12 St Andrew 25 St Giles 18 St Andrew 18 St Giles 23 St Andrew 16 St Giles 24 St Andrew 15 St Giles 21 St Andrew 23 St Giles 24 sendo um de peste.

Aumentos semelhantes foram observados nos boletins de óbitos da paróquia de St Bride, que se une a um lado da paróquia de Holborn, e na paróquia de St James, Clarkenwell, que se une a Holborn pelo outro lado; em ambas, o número habitual de mortos por semana era entre quatro e seis ou oito, mas, naquele momento, aumentou como segue: De 20 de dezembro a 27 de dezembro De 27 de dezembro a 3 de janeiro De 3 a 10 de janeiro De 10 a 17 de janeiro De 17 a 24 de janeiro De 24 a 31 de janeiro De 31 de janeiro a 7 de fevereiro De 7 a 14 de fevereiro

St Bride 0 St James St Bride 6 St James St Bride 11 St James St Bride 12 St James St Bride 9 St James St Bride 8 St James St Bride 13 St James St Bride 12 St James

8 9 7 9 15 12 5 6

Além disso, o povo notou, com grande inquietação, que os boletins de óbitos em geral aumentaram muito durante aquelas semanas, embora fosse uma época do ano em que o número de mortos era normalmente moderado. O número habitual de enterros registrados nos boletins semanais era entre 240 e 300. O último era considerado muito alto, mas, depois disso, vimos os boletins aumentando constantemente, como segue: Enterros Aumento De 20 a 27 de dezembro 291 De 27 de dezembro a 3 de janeiro De 3 a 10 de janeiro 394 45 De 10 a 17 de janeiro 415 21 De 17 a 24 de janeiro 474 59

... 349

58

O último boletim foi realmente assustador, sendo o de mais alto número de enterros por semanas desde a última epidemia, em 1656. Tudo isso, porém, passou novamente e, com o clima ficando frio e a geada que começara em dezembro continuando muito severa até perto do final de fevereiro, acompanhada por ventos cortantes mas moderados, os registros de óbitos voltaram a diminuir e a cidade cresceu com saúde e todo mundo começou a encarar o perigo como tão bom porque passou. Só que, em St Giles, o número de enterros ainda continuava elevado. No começo de abril, principalmente, estavam em vinte e cinco por semana até a semana de 18 a 25, quando trinta foram enterrados na paróquia de St Giles, sendo dois com peste e oito com febre tifóide, que era considerada a mesma coisa. O número de mortos com febre tifóide também aumentou, sendo oito na semana anterior e doze na semana indicada acima. Isto assustou a todos outra vez e temores terríveis assaltaram o povo, principalmente porque o clima estava mudando, aumentando o calor com a proximidade do verão. Na semana seguinte, no entanto, surgiram algumas esperanças. Os boletins diminuíram e o número de mortos ficou em 388 no total, nenhum com peste e apenas quatro com febre tifóide. Uma semana depois, porém, voltou novamente e a doença tinha se espalhado para duas ou três paróquias, a saber: St Andrews, Holborn, St Clement Danes e, para grande aflição da city2, morreu um dentro das suas muralhas, na paróquia de St Mary Woolchurch. Isto significa que foi em Bearbinder Lane, perto da Bolsa de Mercadorias. No total, foram nove mortos com peste e seis com febre tifóide. Através de uma investigação, entretanto, foi revelado que o francês que morreu em Bearbinder Lane tinha morado em Long Acre, perto das casas contaminadas e se mudara com medo da doença, sem saber que a tinha contraído. Isto foi no começo de maio, o clima ainda temperado, instável e bastante frio, e o povo ainda tinha algumas esperanças. O que os encorajava era que a city estava saudável: todas as noventa e sete paróquias enterraram apenas cinqüenta e quatro mortos e começamos a acreditar que a peste ficaria só naquele canto da cidade, sem avançar mais, pois na semana seguinte, de 9 a 16 de maio, morreram três, mas nenhum dentro de toda city ou liberties3. St James enterrou apenas quinze, o que era muito pouco. É verdade que St Giles enterrou trinta e dois, mas, mesmo assim, apenas um morrera com a peste e o povo voltou a se tranqüilizar. O registro geral de óbitos também estava bastante baixo, pois, na semana anterior, registraram-se 347 mortos e, na semana mencionada acima, apenas 343.

Continuamos com esperanças por alguns dias, mas só alguns, pois o povo não podia mais ser enganado desta maneira. Inspecionaram as casas e descobriram que a peste realmente se espalhara por toda parte e que muitos morriam com ela todos os dias. Então, todo nosso entusiasmo diminuiu e não dava mais para esconder. Mais que isso, rapidamente transpareceu que a epidemia tinha se espalhado mais do que qualquer esperança de seu declínio. Na paróquia de St Giles, atingira várias ruas e várias famílias estavam de cama, com todos muito doentes e, conseqüentemente, no boletim de óbitos da semana seguinte, a coisa começou a se mostrar. É verdade que havia apenas quatorze registrados com peste, mas tudo não passava de fraude e enganação, porque na paróquia de St Giles enterraram quarenta no total e certamente a maioria morreu de peste, embora estivesse registrada com outras doenças. Mesmo o número de todos os enterros não aumentando para além de trinta e dois e sendo só 385 o total de mortos, havia quatorze com febre tifóide e quatorze com peste. Considerávamos óbvio que, no total, cinqüenta morreram de peste naquela semana. O boletim seguinte ia de 23 a 30 de maio, com dezessete casos de peste. Mas os enterros em St Giles chegaram a cinqüenta e três – um número assustador –, dos quais só nove registrados com peste. Numa inspeção mais rigorosa, porém, feita pelos juízes de paz a pedido do Lorde Prefeito, foi descoberto que mais vinte morreram realmente de peste naquela paróquia, mas foram registrados com febre tifóide ou outras doenças, além de outros escondidos. Estas coisas foram insignificantes perto do que aconteceria imediatamente depois. O clima esquentou e, a partir da primeira semana de junho, a epidemia se espalhou de uma maneira pavorosa e os boletins subiram às alturas. Os itens febre, febre tifóide e dentes começaram a inchar. Todos os que puderam esconder a doença o fizeram para evitar que os vizinhos se afastassem e se recusassem a conviver com eles. E também para evitar que as autoridades fechassem suas casas; mesmo que ainda não estivesse em prática, isto era ameaçado e o povo se aterrorizava só de pensar. Na segunda semana de julho, a paróquia de St Giles, onde mais se espalhava a epidemia, enterrou 120. Embora os registros indicassem só sessenta e oito com peste, todo mundo disse que foram pelo menos cem, calculando isso, como anteriormente, pelo número habitual de enterros naquela paróquia. Até esta semana, a city continuou livre, sem que ninguém morresse de peste, exceto aquele francês que mencionei antes, em todas as noventa e sete paróquias. Então, quatro morreram dentro da city, um em Wood Street, um em Fenchurch Street e dois em Crooked Lane. Southwark estava totalmente livre, ninguém tinha morrido naquela margem do rio. Eu vivia perto de Aldgate, a meio caminho entre Aldgate Church e Whitechappel Bars, no lado esquerdo ou norte da rua. Como a doença não tivesse chegado neste lado da city, nossa vizinhança continuava muito tranqüila. No outro extremo da cidade, as preocupações eram grandes: as pessoas mais ricas, principalmente a nobreza e o senhorio do oeste da city corriam para fora da cidade com suas famílias e criados de maneira incomum. Isto era melhor observado em Whitechapel, quer dizer, em Broad Street, onde eu vida. Na verdade, não dava para ver nada além de carretas e carroças com mercadorias, mulheres, criados, crianças etc. Carruagens cheias de gente melhor de vida, escoltada por homens a cavalo, todos com muita pressa. Depois, apareciam carretas e carroças vazias e cavalos de reserva com criados que, aparentemente, estavam voltando ou foram enviados do interior para buscar mais gente. Além de incontáveis homens a cavalo, alguns sozinhos, outros com criados, mas todos, em geral, carregados de bagagens e equipados para viajar, como qualquer um perceberia pela sua aparência.

Isto foi uma coisa muito triste e terrível de se ver, e, sendo uma cena que eu não tinha como evitar a contemplação da manhã à noite (realmente, naquele momento não havia mais nada para se ver), encheu-me de reflexões sobre o tormento que se aproximava da city e a situação infeliz daqueles que ficassem lá dentro. A correria do povo foi tanta que durante algumas semanas não havia como chegar até a porta do Lorde Prefeito sem extrema dificuldade. Uma multidão se aglomerava lá para conseguir passes e atestados de saúde a fim de viajar, pois sem eles ninguém obteria permissão para cruzar as cidades à beira da estrada, nem para se hospedar em qualquer pensão. Como ninguém tinha morrido na city durante todo esse tempo, o Lorde Prefeito dava atestados de saúde sem qualquer dificuldade para todos que morassem nas noventa e sete paróquias e também nas liberties. Esta correria continuou por algumas semanas, quero dizer, todo o mês de maio, aumentando ainda mais em junho, porque foi comentado que o governo estava por baixar uma ordem de construção de postos e barreiras para impedir as pessoas de viajar e que as cidades junto às estradas não permitiriam a passagem de pessoas vindas de Londres por medo de que trouxessem a epidemia junto com elas. Logo no começo, nenhum destes rumores tinha qualquer fundamento, a não ser na imaginação. Então, comecei a me preocupar seriamente com minha própria situação e como eu deveria agir. Com isso, quero dizer que tinha que decidir entre ficar em Londres ou trancar minha casa e fugir, como fizeram muitos dos meus vizinhos. Exponho meu caso particular mais detidamente porque sei que isto poderá ser útil àqueles que vierem depois de mim, caso tenham que enfrentar a mesma desgraça e tenham que, da mesma maneira, fazer sua escolha. Por isso, desejo que este relato lhes sirva mais como uma orientação para seus atos do que como a história do meu comportamento, visto que saber o que aconteceu comigo poderá não ter o menor valor para eles. Tinha duas coisas importantes diante de mim: uma era levar em frente meus negócios e loja, que eram consideráveis e nos quais tinha investido todos os meus recursos neste mundo. A outra era a preservação de minha vida em tão terrível calamidade que, pelo que eu via, certamente atingiria toda a cidade. Por maior que ela fosse, no entanto, meus medos, talvez como os de outras pessoas, a apresentavam muito maior do que poderia ser. A primeira preocupação tinha grande importância para mim. Meu comércio era o de selas e como a maioria das minhas transações não eram em loja ou negócios casuais, mas junto a mercadores comerciando com as colônias inglesas na América, muito dos meus estoques se encontrava nas suas mãos. Era solteiro, é verdade, mas tinha uma família de criados que mantinha a meu serviço, tinha uma casa, loja e depósitos cheios de mercadorias. Encurtando, largar tudo como coisas que têm que ser abandonadas numa situação como esta (quer dizer, sem qualquer supervisor ou pessoa apta para ser encarregada delas) seria arriscar a perda não somente do meu comércio, mas das minhas mercadorias, e realmente de tudo que eu tinha no mundo. Tinha um irmão mais velho em Londres na mesma época, vindo não muitos anos antes de Portugal. Aconselhando-me com ele, sua resposta veio em três palavras, as mesmas que foram ditas em situação bastante diferente, a saber: “Mestre, salvai-vos!” Em suma, era a favor de que eu me retirasse para o interior, como ele mesmo se decidira fazer junto com a família; e ele me disse o que parece que ouvira no exterior: a melhor precaução contra a peste é fugir dela. Sobre meus argumentos de que perderia meu negócio, minhas mercadorias e créditos, ele me confundiu bastante, dizendo a mesma coisa que eu argumentava para ficar, ou seja, que entregar a Deus minha segurança e saúde seria a maior

negação das minhas pretensões de não perder meus negócios e minhas mercadorias. “Mas – disse ele – não seria mais sensato entregar a Deus o risco de perder teus negócios em vez de ficar num momento de tanto perigo, encarregando tua vida a Ele?” Não podia argumentar que não tinha lugar algum para ir, com tantos amigos e parentes em Northamptonshire, de onde veio nossa família e, principalmente, porque tinha uma irmã única em Lincolnshire, querendo muito me receber e me cuidar. Meu irmão, que já tinha enviado sua esposa e as duas crianças para Bedfordshire e se decidira a imitá-los, me pressionou fervorosamente para que eu fosse embora. Terminei convencido a satisfazer sua vontade, mas naquele momento não tinha como conseguir um cavalo. Embora seja verdade que nem toda a população saiu da city de Londres, me arrisco a dizer que todos os cavalos o fizeram, porque, durante algumas semanas, dificilmente encontrou-se um cavalo à venda ou para alugar em toda city. Resolvi viajar a pé com um criado e, como muitos faziam, dormir ao relento. Levaríamos conosco uma barraca militar e, assim, ficaríamos pelos campos, o clima estava bastante quente e não havia perigo de sentirmos frio. Digo como muitos faziam porque, no fim, muita gente fez isso, principalmente aqueles que estiveram nos exércitos durante a guerra que terminara não fazia muito tempo. Preciso dizer que, falando de causas secundárias, se a maioria do povo tivesse viajado assim, a peste não seria levada para dentro de tantas casas e cidades do interior como foi, para grande prejuízo, a ruína, na verdade, de uma enormidade de gente. Foi então que meu criado, o que pretendia levar comigo, me abandonou. Assustado com o crescimento da peste e não sabendo quando eu partiria, tomou outras providências e me deixou. Assim, fiquei despreparado para aquela hora. E de uma maneira ou outra, sempre que estabelecia uma data para ir embora, era atrapalhado por um incidente ou outro, terminando em frustração e novo adiamento. Isto me leva a contar uma história que, de outra forma, poderia ser considerada uma digressão desnecessária sobre estes imprevistos virem do Céu. Menciono a história também como o melhor método que posso recomendar para qualquer um nesta situação, principalmente se for alguém com consciência de suas responsabilidades em busca de orientação sobre o que fazer. Objetivamente: manter os olhos atentos às predisposições peculiares do que ocorre a sua volta na época e examiná-las com profundidade, para saber como se relacionam entre si e como se relacionam todas juntas com a questão diante da pessoa. Então, acho que se pode tomá-las como intimações do Céu sobre o que é seu dever inquestionável fazer nesta situação. Refiro-me a ir embora ou ficar no lugar onde moramos quando visitados por uma doença contagiosa. Uma manhã, enquanto matutava sobre estas coisas particulares e sobre nada chegar até nós sem orientação e permissão do Poder Divino, veio bem claramente na minha mente que estes contratempos tinham alguma coisa extraordinária e fui obrigado a considerar se isto não indicava ou me intimava a crer que era a vontade do Céu que não fosse embora. Imediatamente, meu raciocínio prosseguiu: se realmente vinha de Deus que eu deveria ficar, Ele seria capaz de efetivamente me preservar no meio de toda a morte e perigo que me cercaria e, se eu tentasse me salvar fugindo de minha casa, agindo de modo contrário a estas intimações que acredito serem Divinas, seria como fugir de Deus, e assim Ele poderia aplicar Sua justiça em mim quando Ele achasse conveniente. Estas reflexões mais uma vez modificaram muito minhas decisões e, quando voltei a conversar com meu irmão, disse que me inclinava a ficar e assumir meu fardo no lugar que Deus me designou, o que, considerando tudo o que disse, parecia ser ainda mais especialmente o meu dever.

Meu irmão, embora ele mesmo um homem muito religioso, riu de tudo que falei sobre uma intimação do Céu e contou várias histórias de pessoas imprudentes, como ele as chamou, como eu era; certamente, eu deveria me submeter a isto como uma obra do Céu se, de alguma maneira, estivesse incapacitado por males ou doenças e por isso não pudesse ir embora. Então, deveria aceitar a Sua orientação, pois, sendo meu Criador, tinha um direito indiscutível de soberania para dispor de mim. Só assim não haveria dificuldade em determinar qual era ou não era o chamado de Sua Providência. Aceitar uma intimação do Céu para não sair da cidade somente porque não conseguiu alugar um cavalo para viajar ou porque fugiu o acompanhante que levaria como empregado era ridículo, pois eu ainda tinha a minha saúde, meus membros, outros criados e poderia com facilidade andar a pé um ou dois dias. Tendo um bom atestado de que estava com saúde perfeita, conseguiria tanto alugar um cavalo quanto um lugar numa diligência dos correios já na estrada, conforme preferisse. Ele passou, então, a me falar das maléficas conseqüências decorrentes da presunção dos turcos e maometanos na Ásia e em outros lugares por onde andara (sendo um mercador, meu irmão tinha retornado do exterior há poucos anos, vivendo por último em Lisboa, como já mencionei). Baseando-se nas noções de predestinação que professam, crendo que o fim de todo o homem está predeterminado e definitivamente decretado de antemão, eles iam despreocupados em lugares contaminados e conversavam com pessoas contaminadas. E assim morriam em média entre dez e quinze mil por semana, enquanto os mercadores europeus ou cristãos se mantinham recolhidos e reservados, geralmente evitando o contágio. Com estes argumentos, meu irmão mudou minha decisão mais uma vez e resolvi ir embora, deixando todas as coisas prontas para isso. Em suma, a epidemia cresceu muito a meu redor, os registros de óbitos subiram para quase setecentos por semana e meu irmão me disse que ele não se arriscaria a ficar por mais tempo. Pedi que me desse mais um dia para pensar e eu me decidiria. Já tinha organizado todas as coisas da melhor maneira possível, tanto no meu comércio quanto à pessoa a quem confiaria meus negócios, e pouco me restava fazer, a não ser decidir. Naquela noite, fiquei em casa completamente só, com minha mente sob grande pressão, indeciso e sem saber o que fazer. Tirei a noite para pensar seriamente. De comum acordo, as pessoas já tinham abandonado o costume de sair depois do pôr-do-sol. Sobre as razões disso, terei oportunidade de falar mais adiante. No recolhimento da noite, empenhei-me em decidir, primeiro, qual era o meu dever e citei os argumentos com que meu irmão me pressionara a ir para o interior. Contrapus a eles a forte tendência da minha mente para que ficasse, um visível chamado que sentia vir das minhas circunstâncias particulares e do devido cuidado para a preservação dos meus bens que, devo dizer, eram o meu patrimônio. Para mim, as intimações que pensava ter recebido do Céu também significavam um tipo de orientação para me arriscar. Ocorreu-me que, se recebia o que devo chamar de uma orientação para ficar, também deveria supor que ela continha uma promessa de ser protegido, caso a acatasse. Isto continuou junto comigo e me sentia cada vez mais encorajado para ficar, estimulado pela confiança secreta de que seria salvo. Some-se a isto que, abrindo a Bíblia que se encontrava diante de mim e, no momento em que minhas reflexões sobre a questão ficaram mais sérias do que o costume, entre outras expressões, gritei: “Bem, não sei o que fazer; Deus, orientai-me!” E, naquele instante, parei de folhear o livro no Salmo 91, fixando os olhos no segundo verso. Li até o sétimo verso, excluindo-o, depois acrescentei o décimo.

Assim: “Eu direi do Senhor, Ele é meu refúgio e minha fortaleza, Nele hei de crer; Ele seguramente te protegerá com Suas penas e sob as Suas asas tu hás de crer; Sua verdade há de ser teu escudo e proteção; não temerás o terror da noite, nem a flecha que vara o dia, nem a pestilência que caminha na escuridão, nem a destruição que devasta ao meio-dia; mil cairão a teu lado e dez mil à tua direita, mas não chegará perto de ti; verás somente com teus olhos e contemplarás a recompensa dos pervertidos; porque assim quis o Senhor, que é meu refúgio, o Altíssimo, a tua morada; e nenhum mal te atingirá nem peste alguma chegará perto de tua casa”, etc. Quase nem preciso dizer ao leitor que, a partir do momento em que resolvi ficar na cidade, entregando-me inteiramente à bondade e à proteção do Todo-Poderoso, deixei de procurar qualquer outra forma de defesa. Minha sorte estava nas Suas mãos e Ele seria capaz de me manter vivo tanto em tempo de epidemia quanto em tempo de saúde. Caso Ele não me considerasse digno de salvação, eu continuaria nas Suas mãos, aceitando que Ele fizesse de mim o que Lhe parecesse melhor. Com esta decisão, fui para a cama. Ela seria reconfirmada no dia seguinte, quando a mulher com quem eu pensava deixar minha casa e meus negócios ficou doente. Outro imperativo me conduziu na mesma direção. No dia seguinte, eu mesmo também fiquei passando muito mal, assim que não conseguiria ir embora ainda que tentasse. Fiquei doente três ou quatro dias, e isso me deixou completamente determinado a ficar. Então, dei adeus a meu irmão, que foi para Dorking, em Surrey, mais tarde se afastando ainda mais, em Buckinghamshire ou Bedfordshire, num refúgio que encontrou para sua família. Era um péssimo momento para ficar doente. Se alguém notasse, seria imediatamente comentado que estava com peste. Embora não tivesse sintoma algum daquela doença, me sentia muito mal na cabeça e no estômago e não fiquei sem medo de estar realmente contaminado. Em três dias, melhorei. Na terceira noite descansei bem, suei um pouco e acordei bastante refeito. O medo de que fosse a epidemia foi embora junto com a doença e retomei meus negócios como sempre. Essas coisas, no entanto, eliminaram todas minhas cogitações de ir para o interior. Como meu irmão já tinha partido, não tive mais com quem discutir o assunto, nem com ele nem comigo mesmo. Estávamos, então, em meados de junho e a peste, que atacava principalmente o outro extremo da cidade, como disse antes, nas paróquias de St Giles, St Andrew e Holborn, seguindo para Westminster, começou a se mover para o leste, na direção da zona onde eu morava. Observariam, porém, que ela não vinha diretamente para nós. Na city, digo dentro das muralhas, a vida continuava indiferente, ainda saudável. A peste também não avançava para além do rio, em Southwark. Embora, em todas as doenças, 1.268 tenham morrido naquela semana – de onde se pode imaginar que uns novecentos morreram com peste –, apenas vinte e oito morreram dentro dos muros da city e dezenove em Southwark, incluindo a paróquia de Lambeth, enquanto só nas paróquias de St Giles e St Martin-in-the-fields morreram 421. Percebemos que a epidemia continuava principalmente nas paróquias de fora que, por serem mais populosas e cheias de pobres, foi onde a doença encontrou melhores condições para se espalhar do que na cidade, conforme explicarei mais tarde. Eu dizia que percebemos a peste vir em nossa direção pelas paróquias de Clarkenwell, Cripplegate, Shoreditch e Bishopsgate. As duas últimas uniam-se a Aldgate, Whitechapel e Stepney; nestas zonas, a epidemia terminou por se espalhar com toda sua fúria e violência, mesmo quando diminuiu nas paróquias do oeste, onde começara.

Foi muito estranho notar que, nesta semana específica de 4 a 11 de julho, quase quatrocentos morreram de peste só nas paróquias de St Martin e St Giles-in-the-fields, enquanto verifiquei que, em Aldgate, morreram quatro, em Whitechapel três e, na paróquia de Stepney, um. Da mesma forma, na semana seguinte, de 11 a 18 de julho, registraram-se 1.761 óbitos, mesmo assim, em todo outro lado do rio, em Southwark, não mais que dezesseis morreram de peste. Este estado de coisas mudou logo, começando a se agravar principalmente na paróquia de Cripplegate e Clarkenwell. Na segunda semana de agosto, só Cripplegate enterrou 886, e Clarkenwell, 155. Na primeira, deve-se admitir que 850 morreram com peste. Na última, o próprio boletim registrou que 145 tinham a peste. Durante o mês de julho, enquanto nossa zona da cidade parecia ser poupada em comparação com a zona oeste, como observei, eu andava normalmente pelas ruas, conforme exigissem meus negócios e, geralmente, uma vez por dia, às vezes duas, entrava na city para ir à casa de meu irmão, que ele tinha me encarregado de cuidar para ver se continuava segura. Trazendo as chaves no meu bolso, eu as utilizava para entrar na casa, percorrendo a maioria das salas para ver se tudo estava bem. Embora pudesse ser uma coisa maravilhosa dizer que ninguém teria um coração tão endurecido por tal calamidade para assaltar e roubar, a verdade é que todas as formas de vilanias, canalhices e libertinagens foram praticadas tão abertamente como sempre na cidade – não direi com a mesma freqüência porque a população estava muito reduzida. A city também começou a ser atingida dentro de suas muralhas, mas havia muito menos gente, porque uma grande multidão fora para o interior, continuando a fugir ainda todo o mês de julho, mas não mais em massa como anteriormente. Em agosto, é verdade, o povo fugiu de uma maneira que comecei a pensar que não sobraria realmente ninguém, só ficando na city oficiais de justiça e criados. Enquanto a população fugia da city, descobri que a corte se mudara mais cedo, a saber, no mês de junho, indo para Oxford, onde foi do agrado de Deus preservá-la. Ouvi dizer que a doença não a atingiu muito, mas não posso afirmar que tenha visto demonstrar maiores preocupações com a gratidão e o arrependimento, embora não quisesse ser acusada de ir longe demais em seus vícios gritantes que, pode-se dizer sem abuso de confiança, trouxeram aquele terrível castigo para toda a nação. A aparência de Londres ficou assim estranhamente alterada: refiro-me a toda a massa de prédios, city, liberties, subúrbios, Westminster e Southwark em conjunto, embora a zona específica chamada de city, ou dentro das muralhas, ainda não estivesse muito contaminada. Como um todo, a aparência das coisas estava muito diferente: dor e tristeza em todas as faces. Mesmo algumas zonas ainda não estando tomadas, todos pareciam muito preocupados. Como víamos a peste, aparentemente, se aproximando, cada um cuidava de si e de sua família como se corressem o maior perigo. Se fosse possível representar exatamente aqueles tempos para aqueles que não os viram, dando ao leitor a devida idéia do horror que se apresentava em toda parte, seria preciso criar imagens em suas mentes e enchê-las de pavor. Bem pode-se dizer que Londres estava toda em lágrimas. As carpideiras, na verdade, não saíam pelas ruas e ninguém se vestia de preto ou mandava fazer um traje formal de luto nem pelos amigos mais íntimos, mas as vozes das carpideiras eram claramente escutadas nas ruas. A choradeira das mulheres e crianças nas janelas e portas das casas onde seus parentes mais queridos talvez estivessem morrendo, ou recémmortos, era tão freqüente quando se passava pelas ruas que bastava para cortar o mais

insensível coração do mundo que a escutasse. Viam-se lágrimas e lamúrias em praticamente todas as casas, principalmente no início da epidemia, pois, quando se aproximou do fim, os corações dos homens estavam tão endurecidos e a morte era tão constante diante de seus olhos que já não se preocupavam tanto com a perda de seus amigos, esperando que também eles fossem chamados na hora seguinte. Meus negócios às vezes me levaram até o outro extremo da cidade, mesmo onde a doença estava predominante. Como a coisa era nova para mim, assim como para todos os outros, o mais impressionante foi ver aquelas ruas que normalmente eram tão movimentadas ficarem desertas, com tão pouca gente à vista que se eu fosse um estrangeiro e estivesse perdido em meu caminho, algumas vezes percorreria uma rua inteira (refiro-me às transversais) sem encontrar pessoa alguma para me orientar, exceto os vigias sentados nas portas das casas que estavam fechadas, sobre as quais falarei daqui a pouco. Um dia, estando naquela zona da cidade para fazer um negócio importante qualquer, a curiosidade me levou a observar as coisas mais do que o costume e, assim, percorri um longo trajeto por onde não tinha compromissos. Subi até Holborn e lá as ruas estavam cheias de gente, mas todos só caminhavam no meio da rua, nunca em qualquer um dos lados, porque, eu suponho, não queriam se misturar com qualquer pessoa vinda das casas ou sentir cheiros e odores das casas que deveriam estar contaminadas. Os tribunais da corte estavam totalmente fechados. Também não havia muitos advogados à vista em Temple ou em Lincoln’s Inn ou Gray’s Inn. Todo mundo estava em paz e não havia necessidade de advogados. E também porque, sendo tempo de férias, eles em geral iam para o interior. Em alguns lugares, as casas de quarteirões inteiros estavam fechadas e todos os moradores fugiram para o interior, deixando apenas um ou dois vigias. Quando digo quarteirões de casas fechadas, não me refiro a casas lacradas pelos oficiais de justiça. É que muita gente acompanhou a corte, por exigência de seus empregos ou outras necessidades. Outros realmente se retiraram apavorados com a doença e isso deixou algumas ruas simplesmente abandonadas. Na city, o medo não estava nem perto de ser tão grande, abstratamente falando, principalmente porque, embora tivessem se preocupado muitíssimo no início, a peste, como já disse, aparecia esporadicamente, de modo que todos ficaram alerta e se despreocuparam muitas vezes seguidas, até que isso se tornou algo cotidiano para eles. Mesmo quando a peste surgiu com violência, embora não tivesse se espalhado visivelmente dentro da city, ou nas zonas leste e sul, as pessoas começaram a sentir coragem e ficaram, diria eu, um pouco insensíveis. É verdade que uma grande quantidade de gente fugiu, mas já disse que estes viviam principalmente na zona oeste da cidade e do que chamamos de coração da city: vale dizer, os mais ricos, pessoas desvinculadas do comércio ou dos negócios. O resto, a maioria, ficou e parecia se submeter ao pior. Assim, nos lugares que chamamos de liberties e nos subúrbios, em Southwark e na zona leste, como Wapping, Ratcliff, Stepney, Rotherhithe e outros, a população em geral permaneceu, com exceção aqui e ali das poucas famílias ricas que, como as anteriores, não dependiam de seus negócios. É preciso não esquecer que a city e os subúrbios eram incrivelmente cheios de gente na época desta epidemia; quero dizer, na época em que começou. Embora tenha vivido para ver um crescimento ainda maior, com multidões se estabelecendo em Londres mais do que nunca, mesmo assim sempre fizemos idéia de que, depois do fim das guerras, da dissolução dos exércitos e da restauração da família real e da monarquia, a quantidade de gente que veio para Londres estabelecer negócios ou acompanhar as resoluções da corte sobre nomeações, gratificações por serviços prestados e outras foi tão grande que se computou

haver na cidade mais de cem mil pessoas, além das que sempre houvera anteriormente. Não só isso, outros chegaram a dizer que foi o dobro porque todas as famílias arruinadas do partido do rei vieram para cá. Todos os velhos soldados se estabeleceram no comércio e muitíssimas famílias se fixaram aqui. A corte, mais uma vez, trouxe consigo uma grande onda de vaidade e novas modas. Todas as pessoas andavam faceiras e elegantes e o bemestar da Restauração atraiu grande quantidade de famílias para Londres. Muitas vezes pensei nisso como Jerusalém cercada pelos romanos quando os judeus estavam reunidos para celebrar a Páscoa – assim, uma quantidade inacreditável de gente foi surpreendida quando, não fosse isso, estaria em outros países. Da mesma forma, a peste entrou em Londres quando, casualmente, pelas circunstâncias específicas acima mencionadas, ocorrera um grande crescimento da população. Este afluxo de gente a uma corte jovem e alegre gerou muito trabalho na city, principalmente para tudo que estivesse na moda ou fosse um refinamento. Conseqüentemente, isso atraiu grande número de trabalhadores, artesãos e semelhantes, que eram, essencialmente, gente pobre que dependia de seu trabalho braçal. Lembro de modo particular que, numa representação sobre as condições dos pobres encaminhada ao Lorde Prefeito, estimou-se haver não menos de cem mil tecelões manuais dentro e nas cercanias da city, vivendo a maioria deles nas paróquias de Shoreditch, Stepney, Whitechapel e Bishopsgate, ou seja, em torno de Spitalfields, mas do que Spitalfields era então, pois não passava de uma quinta parte do que é agora. Por isso, no entanto, pode-se supor a população total. E, de fato, muitas vezes cheguei a considerar que, mesmo depois de uma quantidade alarmante de gente ter ido embora no início, ainda havia uma multidão tão grande quanto parecia haver anteriormente. Devo retornar mais uma vez ao começo desses tempos assustadores. Enquanto os temores da população foram novos, eles cresceram estranhamente com diversos acidentes esquisitos que, reunidos, tornavam realmente surpreendente o povo não se levantar feito um único homem e abandonar suas casas, deixando o lugar como um território destinado pelo Céu para uma Akeldama4, condenada à destruição na face da Terra e tudo que lá fosse encontrado desapareceria com ela. Vou descrever apenas algumas destas coisas, mas elas certamente foram tantas, e tantos feiticeiros e gente velhaca as propagavam que seguidamente me perguntei se alguém (principalmente mulheres) permaneceria. Em primeiro lugar, uma estrela incandescente ou cometa apareceu durante vários meses antes da peste, como faria no ano seguinte, pouco antes do incêndio. As velhas e a porção fleumática hipocondríaca do outro sexo, a quem quase também poderíamos chamar de velhas, observaram (principalmente depois e não antes de acontecerem os flagelos) que dois cometas passaram exatamente sobre a city e chegaram tão perto das casas que ficou evidente que eles significavam algo peculiar só da city. O cometa anterior à peste tinha uma coloração pálida, débil e opaca, seu movimento era pesado, solene e lento. Já o cometa que apareceu antes do incêndio era brilhante e faiscante ou, como também disseram, em chamas, movendo-se com rapidez e fúria. Um prenunciava uma pesada condenação, lenta porém severa, terrível e apavorante como a peste. O outro anunciava uma explosão, súbita, rápida e ardente como o incêndio. Algumas pessoas foram tão peculiares que não apenas viram o cometa antes do incêndio, mas acreditavam que, além de ter acompanhado seu movimento rápido e violento com os olhos, também teriam escutado o cometa, que fazia um vigoroso ruído de atrito, forte e terrível, perceptível apesar da distância. Também vi estas duas estrelas e devo confessar que, tendo apenas uma noção leiga sobre estas coisas, as encarei como presságios e avisos de um castigo de Deus. Depois que a peste surgiu, antecedida pela primeira estrela, ainda vi outra do mesmo tipo e, então, não

consegui pensar outra coisa, a não ser que Deus ainda não tinha castigado suficientemente a city. Não podia, porém, considerar estas coisas com a mesma importância dada por outros, pois sabia que os astrônomos indicam causas naturais para fenômenos como esses. Seu movimento e suas rotações são inclusive calculadas, ou pelo menos tentam calculá-las. De forma que não podiam ser tão simplesmente prenúncios ou anunciações e muito menos a causa de fenômenos como a peste, a guerra, um incêndio e outros do gênero. Se pensassem como eu ou como pensam os filósofos, essas coisas teriam pouca influência sobre a imaginação das pessoas comuns, que tinham uma melancolia quase absoluta, com medo de que alguma pavorosa calamidade ou castigo tomasse a city. Isso aconteceu principalmente com a visão deste cometa e com o pequeno alarme dado em dezembro pelas duas pessoas que morreram em St Giles, como já disse. As apreensões da população foram como que estranhamente aumentadas pelos erros da época, pois o povo – não consigo imaginar por que princípio – estava mais influenciável por profecias e conjurações astrológicas, sonhos e contos da carochinha do que jamais estivera ou seria. Se este estado de espírito foi criado pelas maluquices de alguns que ganhavam dinheiro com isso – quer dizer, publicando previsões e profecias – eu não sei. Mas é certo que alguns livros amedrontaram terrivelmente a população, livros como o Almanack Lilly, As previsões astrológicas de Gadbury, o Almanack de Poor Robin e semelhantes. Muitos outros se anunciaram como livros religiosos. Um destes tinha como título Fuja dela, meu povo, a não ser que queiras tomar parte em suas pestes. Outro se chamava Bom conselho; outro, Curador da Grã-Bretanha e muitos iguais. Todos, ou a maior parte deles, previam, direta ou veladamente, a ruína da cidade. Alguns eram tão inflamados e atrevidos que percorriam as ruas pregando suas profecias, fingindo serem enviados para rezar pela cidade. Um deles, em particular, como Jonas para Nínive, gritava pelas ruas: “Daqui a quarenta dias Londres será destruída”. Não tenho certeza se dizia daqui a quarenta ou daqui a poucos dias. Outro corria quase nu, só com ceroulas na cintura, chorando noite e dia, como o homem mencionado por Josephus5, que gritava “Desgraça para Jerusalém”, pouco antes da destruição da cidade. Assim, aquela pobre e nua criatura gritava “oh grande e terrível Deus” e nada mais dizia, repetindo estas palavras continuamente, com uma voz e expressão cheias de horror e passos rápidos. Ninguém conseguia fazê-lo parar ou descansar ou ingerir qualquer alimento, pelo menos é o que ouvi dizer. Encontrei esta pobre criatura várias vezes nas ruas e eu teria conversado com ele, mas ele não conseguia falar comigo ou com quem quer que fosse, tomado por seus gritos contínuos e melancólicos. Estas coisas aterrorizaram o povo ao extremo, principalmente quando, duas ou três vezes como já mencionei, descobriram um ou dois mortos de peste no registro de St Giles. Ao lado destes casos públicos, estavam os sonhos das velhas ou, devo dizer, a interpretação que as velhas davam aos sonhos de outras pessoas. Isso deixou muita gente fora de seu juízo. Alguns ouviram vozes dizendo que fugissem porque haveria uma peste em Londres tão violenta que os vivos não conseguiriam enterrar os mortos. Outros viam aparições no ar e devo ter permissão para afirmar, sem abusar da confiança, que ouviam vozes que nunca falavam e viam imagens que nunca apareciam. A imaginação do povo estava realmente alterada e possuída. Não era de se estranhar que aqueles que ficaram constantemente observando as nuvens vissem formas e figuras, representações e aparições que nada tinham por dentro, apenas ar e vapor. Aqui, falavam de uma espada de fogo numa mão que saía de uma nuvem com a ponta voltada diretamente para a cidade. Viam carros

fúnebres e caixões levados no ar para serem enterrados, pilhas de corpos de mortos abandonados sem sepulturas e outras visões semelhantes, conforme a imaginação dos pobres aterrorizados os alimentava de material para trabalharem. Assim hipocondríacas fantasias representam Navios, exércitos, batalhas no firmamento; Até que olhos firmes dissolvam as imagens, E tudo volte a sua primeira matéria, nuvem. Eu poderia preencher este relato com as estranhas versões que, todos os dias, as pessoas davam sobre o que tinham visto. Cada um ficava tão certo de ter visto o que supunha ver, que não dava para contradizê-lo sem perder um amigo ou ser considerado rude e mal-educado por um lado, profano e insensível por outro. Uma vez, antes de começar a peste (para além de St Giles, como já disse), acho que foi em março, vi uma aglomeração na rua e me juntei à multidão para satisfazer minha curiosidade. Descobri que todos estavam olhando para cima, tentando ver o que uma mulher dizia ter aparecido claramente para ela, um anjo vestido de branco, com uma grande espada na mão, que sacudia e brandia sobre sua cabeça. Ela descreveu cada detalhe da figura, mostrou seus movimentos e sua forma, e os pobres logo a reconheceram com muita avidez e prontidão: “Sim, eu vejo tudo claramente”, disse alguém, “lá está a espada, tão verdadeira quanto pode ser”. Outro viu o anjo. Um viu seu rosto e gritou que gloriosa criatura ele era! Um via uma coisa, outro via outra. Olhei tão interessado quanto os demais, mas talvez sem tanta vontade de ser sugestionado. Falei que, na verdade, não via nada além de uma nuvem branca, brilhante de um lado devido à luz do sol. A mulher esforçou-se para me mostrar o anjo, mas não conseguiu me fazer admitir que o tinha visto e, caso eu o fizesse, estaria mentindo. Voltando-se para mim, a mulher me olhou no rosto e imaginou que eu ria, o que era imaginação sua, porque realmente não estava rindo, mas refletia seriamente como os pobres são aterrorizados pela força de sua própria imaginação. Ela, no entanto, se afastou me chamando de sujeito profano e gozador e me disse que estávamos num tempo de ira de Deus e terríveis castigos se aproximavam e que menosprezadores como eu andariam a esmo e pereceriam. O povo a seu redor parecia tão incomodado quanto ela e achei que não havia como persuadi-los de que eu não ri deles, pois seria massacrado antes de conseguir convencê-los. Assim, deixei-os e aquela aparição foi considerada tão real quanto a própria estrela incandescente. Também vivi outro encontro como este em pleno dia. Aconteceu numa passagem estreita entre Petty France e o cemitério de Bishopsgate, num quarteirão de asilos. Há dois cemitérios na igreja ou paróquia de Bishopsgate. Um, a gente atravessa para passar do lugar chamado Petty France para a Bishopsgate Street, saindo bem na porta da igreja. O outro fica ao lado de um beco estreito, que tem os asilos à esquerda, uma mureta com paliçada à direita e, do outro lado, mais à direita, a muralha da city. Neste beco estreito, um homem estava parado, olhando para dentro do cemitério através das grades da paliçada e cercado por tanta gente quanto permitia a estreiteza do beco, sem impedir a passagem. O homem falava com veemente fervor, indicando ora um lugar, ora outro e afirmando que via um fantasma caminhando sobre determinado túmulo. Descreveu a forma, a postura e o movimento do fantasma com tamanha exatidão que reagiu com o maior espanto do mundo porque ninguém o via tão bem quanto ele. Subitamente,

gritou: “Ali está ele, agora vem nesta direção”. Depois, “já foi embora”. Por insistência, persuadiu o povo com sua convicção e logo alguém imaginou ter visto o fantasma, em seguida outro também viu. O homem passou a vir todos os dias, provocando uma aglomeração de curiosos no beco estreito, até que o relógio de Bishopsgate batesse onze horas, quando, de repente, o fantasma desaparecia como se fosse chamado de longe. Olhei interessado para todos os lados e na direção exata que o homem indicava, mas não pude ver a menor aparição de coisa alguma. Este pobre homem estava tão convicto que incutia grandes pavores nas pessoas, que se afastavam tremendo de medo, até que poucas eram as que conheciam o caso e se arriscavam a cruzar aquele beco e dificilmente alguém, pelo motivo que fosse, o cruzaria à noite. Este fantasma, conforme dizia o pobre homem, fazia sinais para as casas, para o chão e para o povo, indicando claramente, ou pelo menos assim o entendia, que muita gente teria de ser enterrada naquele cemitério, o que realmente aconteceu. Devo reconhecer que nunca acreditei que o homem tenha visto isso, nem pude ver coisa alguma por mim mesmo, embora tenha olhado com interesse de, se possível, ver o fantasma. Essas coisas servem para mostrar até onde o povo estava realmente tomado por alucinações. Como se tivessem uma noção da proximidade da epidemia, todos os vaticínios se referiam à mais pavorosa peste que assolaria toda a cidade e até o reino, destruindo quase toda a nação, seus homens e animais. A isto, como disse antes, os astrólogos acrescentavam histórias de conjunções de planetas em angulações malignas e de perniciosas influências. Uma dessas conjunções estava por acontecer, e realmente aconteceu, em outubro, outra em novembro. Enchiam a cabeça do povo com previsões destes sinais dos céus, pois aquelas conjunções indicavam a vinda da seca, da fome e da peste. As duas profecias, porém, estavam totalmente erradas, porque não tivemos seca, mas uma forte geada no início do ano, indo de dezembro a março; depois, um clima moderado, mais morno do que quente, com ventos refrescantes e, em resumo, o clima bem típico da estação, e também grandes chuvaradas. Tentaram com algum empenho suprimir a publicação dos livros que apavoravam o povo e, para intimidá-los, alguns distribuidores foram presos. Não se fez mais nada, pelo que estou informado, porque o governo não queria exasperar o povo que já estava, como poderia dizer, totalmente fora do seu bom senso. Tampouco posso perdoar os sacerdotes que, com seus sermões, deprimiam mais do que aliviavam os corações de seus ouvintes. Muitos, sem dúvida, faziam isso para o fortalecimento da vontade do povo e, principalmente, para apressá-lo no caminho do arrependimento, mas não obtinham bons resultados, pelo menos na proporção do mal que, por outro lado, causavam. A verdade é que o próprio Deus, em todas as Escrituras, tenta atrair-nos para voltar a viver com ele através de convites e chamamentos, nunca nos guia pelo terror e pelo espanto. Assim, devo confessar que achei que os sacerdotes deveriam fazer do mesmo modo, imitando o nosso abençoado Senhor e Mestre, mostrando que Seu Evangelho está repleto de declarações sobre a santa misericórdia de Deus e que Ele está pronto para receber e perdoar os arrependidos. Chega a lamentar: “Não quereis vir a Mim que vos posso dar vida”, e é por isso que Seu Evangelho é chamado de Evangelho da Paz e de Evangelho da Graça. Mesmo assim, víamos alguns homens de bem, de todas as crenças e cultos, cujas pregações eram cheias de terror e não falavam de outra coisa que não fosse algo sombrio. Depois de irmanar as pessoas num tipo de horror, as dispersavam deixando todas em lágrimas, profetizando nada além de acontecimentos sinistros, apavorando o povo com o

medo de ser sumariamente destruído, sem conduzi-lo pelo menos o suficiente, a suplicar ao Céu por misericórdia. Foi, de fato, um tempo de muitas e infelizes divergências sobre questões religiosas entre nós. Incontáveis seitas, divisões e credos isolados prevaleciam junto ao povo. A Igreja da Inglaterra fora restaurada com a monarquia, cerca de quatro anos antes. Os missionários e pregadores presbiterianos, independentes e de todos os outros tipos de cultos começaram a formar sociedades à parte e erguer altares sobre altares. Todas se reunindo separadamente para praticar seus cultos, como agora, mas em menor número, sem que os não-conformistas formassem um grupo como desde então, e estas congregações que se uniram ainda eram poucas. Mesmo as poucas que havia foram proibidas pelo governo, que se empenhou em suprimi-las e acabar com suas assembléias. A epidemia voltou a conciliá-los mais uma vez, pelo menos por algum tempo, com muitos dos melhores e mais valiosos missionários e pregadores não-conformistas recebendo permissão para freqüentar as igrejas cujos encarregados tinham fugido, e muitos o tinham, incapazes de suportar a situação. O povo se reunia sem distinções para escutar suas pregações, sem se perguntar muito quem eram ou qual era seu culto. Só depois que a doença passou, diminuiu o espírito caritativo. Toda a igreja foi novamente provida com seu próprio sacerdote ou por substitutos daqueles vigários que morreram e as coisas voltaram mais uma vez para seus antigos canais. Um mal sempre chama outro. Os terrores e medos do povo o conduziam a mil fraquezas, loucuras e atos perversos. Realmente, não faltava gente para encorajá-lo: isto se dava correndo atrás de cartomantes, bruxos e astrólogos para saber seu futuro ou, como se dizia vulgarmente, ler a sorte, calcular o horóscopo e semelhantes. Em pouco tempo, esta loucura fez da cidade uma colméia de uma nova geração de pervertidos que fingiam ser mágicos, da magia negra como diziam, e não sei mais o que, mil pactos com o diabo, muito piores do que aqueles pelos quais realmente eram culpados. Este comércio cresceu tão abertamente e tornou-se uma prática tão generalizada que era comum encontrar sinais e inscrições nas portas: “Aqui mora uma cartomante”, “aqui vive um astrólogo”, “aqui se calculam horóscopos” e assim por diante. A cabeça de bronze do frei Bacon 6 diante da casa destas pessoas era tão comum que podia ser vista em quase todas as ruas; ou, então, o emblema da madre Shipton7 ou a cabeça de Merlin e semelhantes. Com que cegos, absurdos e ridículos truques estes oráculos do demônio agradavam e convenciam o povo, eu realmente não sei, mas é certo que inúmeros clientes se juntavam diariamente diante de suas portas. Se um sujeito soturno com uma jaqueta de veludo, um turbante e um casaco negro – como era costume daqueles charlatães andarem – fosse visto pelas ruas, o povo o seguiria numa multidão, fazendo perguntas enquanto caminhavam. Não preciso explicar o que era, ou tentava ser, esta horrenda enganação. Não haveria remédio para isto até que a própria peste pusesse um fim em tudo e, imagino, limpasse a cidade da maioria destes especuladores. Um de seus logros era quando gente humilde perguntava a estes falsos astrólogos se haveria ou não uma peste. Todos eles concordavam, em geral dizendo que “sim”, pois assim podiam continuar com seu comércio. Caso o povo não tivesse seu medo alimentado desta forma, os bruxos teriam se tornado inúteis e seus serviços chegariam ao fim. Então, eles sempre falavam sobre tais e tais influências dos astros, das conjunções de tais e tais planetas que, necessariamente, provocariam doença, mal-estar e, conseqüentemente, a peste. Chegavam a afirmar com segurança que a peste já chegara, o que era bem verdade, embora o dissessem sem nada saber a respeito.

Para fazer justiça aos sacerdotes e pregadores, os sérios e compenetrados da maioria dos cultos condenavam estas e outras práticas pervertidas e expunham a loucura, assim como a maldade delas. As pessoas mais sóbrias e responsáveis as desprezavam e execravam. Era impossível exercer qualquer influência sobre o povo em geral e os trabalhadores pobres. Seus medos predominavam sobre todas suas emoções e eles jogavam fora seu dinheiro da maneira mais inútil nestas extravagâncias. Os criados, principalmente as mulheres, mas os homens também, eram seus clientes mais comuns e geralmente perguntavam, primeiro, “haverá uma peste?” Depois, a pergunta seguinte era “Oh Senhor! Pelo amor de Deus, o que será de mim? Minha patroa ficará comigo ou me mandará embora? Ela vai ficar na cidade ou vai para o interior? Se ela for para o interior, vai me levar junto ou me abandonará aqui, para morrer de fome e desgraçada?” E o mesmo com os homens. A verdade é que a situação desta pobre criadagem era desesperadora, como terei oportunidade de comentar novamente mais adiante. Era evidente que um grande número de criados seria deixado para trás, o que de fato aconteceu. Muitos morreram, principalmente aqueles que os falsos profetas iludiram com esperanças de que, continuando a prestar seus serviços, seriam levados para o interior por seus patrões e patroas. Se a caridade pública não as amparasse, estas pobres criaturas, que eram em número excessivamente grande como não pode deixar de ser em todas as situações desta natureza, teriam ficado em condições ainda piores do que qualquer outro morador da city. Estas coisas agitaram a mente das pessoas comuns durante vários meses, enquanto surgiam nelas as primeiras apreensões e a peste ainda não tinha, posso dizer, aparecido. Também não devo esquecer que o segmento mais sério da população se comportou de outra maneira. O governo estimulou sua devoção, estabelecendo rezas públicas, dias de jejum e recolhimento moral para confissões públicas de pecados e súplicas à misericórdia de Deus para que afastasse a terrível punição que pairava sobre suas cabeças. Não dá para expressar o entusiasmo com que pessoas de todos os cultos aproveitaram a ocasião, como elas se congregaram nas igrejas e assembléias. Todas ficavam tão apinhadas de gente que muitas vezes não havia, de jeito nenhum, como chegar perto das portas das igrejas maiores. Também havia rezas diárias organizadas pela manhã e à noite em diversas igrejas e dias de orações particulares em outros lugares. Eu diria que o povo freqüentava todas com uma devoção incomum. Muitas famílias, tanto de um como de outro culto, também faziam jejuns privados, aos quais só admitiam seus parentes próximos. Assim que, em poucas palavras, aqueles que eram realmente sérios e religiosos dedicavam-se a atividades pertinentes ao arrependimento e à penitência de maneira verdadeiramente cristã, como um povo cristão deve fazer. Mais uma vez, a população mostrou que queria participar de todas essas coisas. A própria corte, que vivia contente e com luxo, assumiu uma justa preocupação com o perigo público. Todos os espetáculos e diversões que, assim como ocorriam na corte francesa, começavam a se multiplicar entre nós tiveram suas apresentações proibidas: as mesas de jogo, os salões de bailes públicos e as casas de música que, em número cada vez maior, alteravam os hábitos da população, foram fechados e proibidos. Todos os palhaços, bufões, equilibristas, espetáculos de marionetes e fazeres similares que enfeitiçavam o pobre povo simplório fecharam seus estabelecimentos, não encontrando qualquer trabalho. A mente do povo foi tomada por outras coisas e um tipo de tristeza e terror destas coisas estampou-se no semblante até mesmo de gente simples. A Morte estava diante de seus olhos e todo mundo começou a pensar em seu túmulo, não em festas e diversões.

Mesmo estas saudáveis reflexões – que corretamente empregadas teriam conduzido mais generosamente o povo a cair de joelhos, confessar seus pecados, implorando Sua compaixão naquele momento de dor, no qual poderíamos nos tornar uma segunda Nínive – tiveram um efeito completamente ao contrário sobre o povo simples, ignorante e estúpido em suas reflexões tão brutalmente pervertidas e insensíveis como sempre, que foi então conduzido por seu medo a extremos de loucura. Como disse antes, as pessoas correram aos curandeiros, feiticeiros e a toda sorte de impostores para saber o que aconteceria com elas (com seus medos alimentados e mantidos sempre despertos por aqueles que as iludiam a fim de esvaziar seus bolsos). Assim, o povo andava feito louco atrás de curandeiros, charlatões e de toda velha benzedeira em busca de remédios e tratamentos, estocando tamanha quantidade de pílulas, poções e preservativos, como chamavam, que não apenas gastavam seu dinheiro, mas até se envenenavam antecipadamente. Com medo do veneno da infecção, preparavam seus corpos para a peste, em vez de se protegerem contra ela. Por outro lado, é incrível e difícil de se imaginar como os postes das casas e das esquinas ficaram recobertos de receitas de médicos e reclames de sujeitos ignorantes, práticos e amadores em medicina, convidando as pessoas a vir a eles atrás de remédios geralmente anunciados em floreios como estes: “pílulas preventivas, infalíveis contra a peste”, “elixir soberano contra a corrupção do ar”, “instruções precisas para o tratamento do corpo em caso de infecção”, “pílulas antipestilenciais”, “incomparável poção contra a peste, nunca descoberta antes”, “a cura universal da peste”, “a única verdadeira água da peste”, “o antídoto real contra todos os tipos de infecções” – e tantas outras que não consigo lembrar, e se conseguisse, encheria um livro só com elas. Outros fixavam cartazes chamando o povo para seu endereço, onde todos seriam aconselhados e orientados em caso de contaminação. Estes também tinham títulos enganadores, tais como: “Eminente médico da Alta Germânia, recém-vindo da Holanda, onde morava no tempo da grande peste do ano passado em Amsterdam. Curou multidões de pessoas realmente contaminadas.” “Uma senhora italiana recém-chegada de Nápoles, conhecedora de uma fórmula secreta para a prevenção do contágio, descoberta através de sua grande experiência, fazendo curas maravilhosas na última peste, lá, quando morreram vinte mil num único dia.” “Uma velha senhora, que testou seus conhecimentos com grande sucesso na última peste nesta cidade, anno 1636, oferece-se para aconselhar somente o sexo feminino. Pode ser contatada diretamente......”, etc. “Um experiente médico, que muito estudou a doutrina de antídotos contra todos os tipos de venenos e infecções, atingindo tal competência depois de quarenta anos de prática que, com a ajuda de Deus, pode orientar pessoas sobre como evitar o contato com qualquer tipo de doença. Atende os pobres gratuitamente.” Chamo a atenção para estes a título de exemplos. Poderia citar duas ou três dúzias de anúncios semelhantes e muitos ainda ficariam de fora. Estes bastam para deixar claro a qualquer um o estado de espírito daqueles tempos e como um grupo de ladrões e batedores de carteiras não apenas ludibriavam e roubavam o dinheiro dos pobres, mas envenenavam seus corpos com preparados repugnantes e fatais, alguns com mercúrio, outros com coisas igualmente maléficas, completamente opostas ao que se pretendiam ser, mais nocivas do que benéficas ao corpo, caso ocorresse o contágio. Não posso omitir a sutileza de um destes preparadores de poções com as quais enganava os pobres que se aglomeravam a seu redor, mas nada conseguiam sem dinheiro.

Nos cartazes que distribuía pelas ruas, parece que acrescentara este anúncio com letras maiúsculas: “dá conselhos de graça aos pobres”. Conseqüentemente, uma multidão vinha atrás dele, para quem ele fazia longos e belos discursos, examinava o estado de saúde, a constituição de seus corpos e dizia muitas coisas que seria bom que fizessem, coisas impossíveis no momento. Mas toda questão levava à conclusão de que se tivessem uma poção e a tomassem numa quantidade determinada todas as manhãs, ele garantia com a própria vida que nunca contrairiam a peste, mesmo que vivessem numa casa onde houvesse gente contaminada. Isto levava o povo todo a querer a tal poção, mas o preço era muito alto, acho que custava meia coroa. “Senhor – disse uma pobre mulher –, sou uma pobre mendiga mantida pela paróquia e vosso anúncio diz que dá conselhos de graça aos pobres.” “Ai, bondosa senhora – disse o doutor –, é isto que eu faço, conforme anuncio. Dou conselhos de graça aos pobres, mas não meus medicamentos.” “Ai de mim, Senhor – disse a mulher –, então isto é uma arapuca armada para os pobres. Dar conselho de graça aos pobres. Isto quer dizer que o senhor os aconselhais de graça a comprar vossos medicamentos com dinheiro. É o mesmo que faz um balconista com suas mercadorias.” Aqui, a mulher começou a insultá-lo, ficando na porta da casa dele e contando sua história ao povo que aparecia. Até que o doutor descobriu que ela estava afastando seus clientes e foi obrigado a chamá-la no andar superior e dar-lhe uma caixa do seu remédio grátis, o que talvez também não valesse nada quando ela o tomasse. Voltando à população, cujas confusões a tornavam facilmente sugestionável por toda sorte de farsantes e qualquer tipo de curandeiro. Não há dúvidas de que estes charlatões fizeram grandes lucros com a miséria do povo, pois diariamente víamos que as multidões correndo atrás deles eram cada vez maiores. Às portas de suas casas, se aglomerava mais gente do que diante das casas do dr. Brooks, dr. Upton, dr. Hodges, dr. Berwick ou qualquer outro, entre os mais famosos da época. E disseram-me que alguns deles ganhavam cinco libras por dia com sua medicina. Além de tudo isso, ainda havia outra maluquice que pode servir para dar uma idéia da perturbação do espírito dos pobres da época, que seguiam impostores ainda piores do que qualquer um destes. Estes ladrões baratos somente iludiam o povo para abrir seus bolsos e pegar seu dinheiro. Assim, qualquer que fosse a perversidade, ela vinha da parte dos impostores, não dos ludibriados. O aspecto que vou mencionar estava predominantemente nas pessoas enganadas, ou igualmente em ambos os lados: carregavam talismãs, filtros, praticavam exorcismos, carregavam amuletos e não sei mais que poção para fortalecer o corpo contra a peste; como se a peste não estivesse nas mãos de Deus, não fosse a maldição de um espírito diabólico; como se pudesse ser afastada com cruzes, signos zodiacais, papéis amarrados com muitos nós e algumas palavras ou desenhos, conforme aconteceu principalmente com a palavra Abracadabra formando um triângulo ou pirâmide como esta: ABRACADABRA Outros tinham a inscrição ABRACADABR dos jesuítas numa cruz: ABRACADAB ABRACADA IH ABRACAD S. ABRACA ABRACOutros, nada além de uma ABRA marca assim: ABR

AB A Poderia consumir um bom tempo em minhas condenações às loucuras e verdadeira perversidade de coisas semelhantes numa época de tanto perigo, com um problema de conseqüências tão graves como este, uma epidemia nacional. Meus apontamentos dessas coisas são mais para chamar a atenção para o fato e somente registrar que foi assim. Como os pobres sofreram com a ineficácia daquelas coisas e como muitos terminaram carregados pelo carro dos mortos e atirados em valas comuns de todas as paróquias, com seus talismãs e escapulários diabólicos ao redor de seus pescoços, permanecerá um assunto para mais adiante. Tudo isso foi decorrência da precipitação das pessoas depois da primeira noção de que a peste já estava entre elas, o que se pode dizer que se deu a partir da aproximação de Michaelmas8, em 1664, mas principalmente depois que os dois homens morreram em St Giles, no começo de dezembro; acontecendo mais uma vez, depois de outro alarme, em fevereiro. Quando a peste se espalhou de modo evidente, logo começaram a ver a loucura que foi acreditar naquelas criaturas incompetentes que só lhes tiraram dinheiro. Então, seus medos reagiram de outra maneira, com espanto e estupidez, sem saber que direção seguir ou como agir para se socorrerem e se ajudarem. Corriam da casa de um vizinho para a de outro, ou percorriam a rua batendo de porta em porta, com repetidos gritos de “Senhor, tende misericórdia de nós! O que devemos fazer?” Realmente, era preciso sentir pena dos pobres numa coisa em particular, na qual contavam com pouca ou nenhuma ajuda. Desejo mencionar com grande respeito e consideração algo que, talvez, todo mundo que leia ache desagradável. Objetivamente, refiro-me à morte não mais se satisfazer em pairar, se podemos assim dizer, sobre a cabeça de cada um, entrando nas casas e nos quartos para contemplar a face das pessoas. Talvez houvesse alguma insensatez e inércia na mente delas (e havia em quantidade), mas também havia algo de muito justo no pânico soando nas profundezas da alma dos outros, se posso dizer isto. Muitas consciências despertaram, muitos corações endurecidos se derreteram em lágrimas, muitos penitentes confessaram crimes há muito tempo ocultos. Tocaria a alma de qualquer cristão ouvir os gemidos de agonia de tanta gente desenganada, de quem ninguém chegava perto para oferecer qualquer consolo. Muitos roubos, muitos assassinatos também, foram então confessados em voz alta, embora ninguém sobrevivesse para registrar suas confissões. Caminhando pelas ruas, podia-se ouvir gente implorando misericórdia a Deus, apelando para Jesus Cristo e dizendo “fui um ladrão”, “cometi o adultério”, “matei” e outras frases semelhantes. Ninguém ousava parar para fazer a menor investigação sobre essas coisas ou para oferecer consolo às pobres criaturas que gritavam dessa maneira, tomadas de corpo e alma pelo pânico. No princípio, e por pouco tempo, alguns sacerdotes visitavam os doentes, mas isso não deveria ser feito. Entrar em determinadas casas era morte certa. Mesmo os que sepultavam os mortos e eram as criaturas mais endurecidas da cidade, às vezes recuavam tão aterrorizados que não se arriscavam a entrar em casas onde famílias inteiras foram eliminadas juntas, em circunstâncias particularmente horripilantes, como algumas foram. Isso, é claro, no primeiro surto da doença. O tempo acostumou-os a tudo aquilo e pouco depois se arriscavam em toda parte sem hesitação, como terei oportunidade de descrever em detalhe mais adiante. Suponho que a peste começou nesse momento e, como já disse, as autoridades também começaram a refletir seriamente sobre as condições da população. Em seguida,

contarei o que fizeram para controlar os habitantes contaminados e suas famílias. Sobre a questão da saúde, cabe mencionar apenas que, constatando o ânimo enlouquecido do povo, numa correria atrás de charlatões e curandeiros, mágicos e cartomantes, como as pessoas faziam até perder a lucidez, o Lorde Prefeito, um homem muito sóbrio e religioso, nomeou médicos e cirurgiões para atendimento dos pobres – refiro-me aos doentes pobres – e determinou que o Colégio de Médicos publicasse orientações sobre remédios baratos para os pobres em todos os estágios da doença. Esta foi uma das medidas mais piedosas e judiciosas que poderiam ser tomadas naquele tempo, pois afastou a população das concentrações diante das portas de qualquer fornecedor de receitas, evitando que as pessoas ingerissem, cegamente e sem qualquer consideração, veneno por remédio, encontrando a morte em vez da vida. Estas recomendações dos médicos foram estabelecidas por uma consulta a todo o Colégio. Concebidas especialmente para o uso de medicamentos baratos pelos pobres, estas recomendações tornaram-se públicas para que todos pudessem conhecê-las e todos os interessados podiam obter uma cópia gratuita. Como são informações públicas, que podem ser verificadas a qualquer momento, pouparei o leitor do trabalho de lê-las aqui. Não pretendo diminuir a autoridade ou a capacidade dos médicos quando digo que a violência da doença, ao atingir seus extremos, foi como o incêndio do ano seguinte. O fogo consumiu aquilo que a peste não conseguiu tocar, desafiando a aplicação de todos os remédios. Os carros de bombeiro se quebraram, os baldes foram jogados fora e o poder dos homens, fracassando, chegou ao fim. Também a peste desafiou todos os medicamentos. Os próprios médicos se contaminavam com seus preventivos na boca; os homens saíam por aí prescrevendo e dizendo aos outros o que fazer até que apresentassem os sintomas e caíssem mortos, destruídos pelo mesmo inimigo que ensinavam os outros a enfrentar. Este foi o caso de muitos médicos, mesmo alguns dos mais eminentes e vários dos cirurgiões mais habilidosos. Muitíssimos charlatões também morreram, aqueles que cometeram a loucura de acreditar em seus próprios remédios que, sendo conscientes de si mesmos, sabiam não servir para nada. Antes fizessem como outros tipos de ladrões que reconheciam sua culpa fugindo da justiça, pois não podiam esperar mais do que o castigo que sabiam merecer. Não há qualquer depreciação ao trabalho e à dedicação dos médicos em dizer que morreram na calamidade geral. Nem é esta minha intenção, pois é antes para louvá-los por terem arriscado suas vidas ao ponto de perdê-las a serviço da humanidade. Eles se esforçavam para fazer o bem e salvar a vida do próximo, mas não podemos esperar que médicos consigam conter os castigos de Deus ou evitar uma peste claramente enviada do Céu para executar os pecadores. Sem dúvida, os médicos ajudaram muitos com seus conhecimentos, salvando suas vidas e restabelecendo sua saúde com sua prudência e curativos. Não é diminuir sua competência ou reputação dizer que não podiam curar aqueles que já apresentavam os sinais da doença ou aqueles que já estavam mortalmente contaminados quando mandavam chamar um médico, como freqüentemente foi o caso. Falta agora registrar as medidas tomadas pelas autoridades para a segurança geral e para evitar a disseminação da doença quando surgiu pela primeira vez. Terei várias ocasiões para falar sobre a prudência das autoridades, sua caridade, sua vigilância dos pobres e da manutenção da boa ordem, fornecendo alimentos e coisas do gênero quando a peste aumentou, o que aconteceu mais tarde. Agora, refiro-me às ordens e regulamentações que publicaram para o governo das famílias contaminadas.

Mencionei acima o fechamento de casas, mas é preciso dizer alguma coisa mais sobre isto, pois esta parte da história da peste é muito melancólica, mas a história mais cruel precisa ser contada. Perto de junho, o Lorde Prefeito de Londres e a Corte de Vereadores, como disse, começaram a se preocupar mais objetivamente com a regulamentação da cidade. Os juízes de paz de Middlesex, sob orientação do secretário de Estado, começaram a fechar casas nas paróquias de St Giles-in-the-fields, St Martin, St Clement Danes etc. Isto foi um grande sucesso. Em várias ruas onde surgira a peste, com rigorosa vigilância das casas contaminadas e cuidando para enterrar aqueles que morriam imediatamente depois da constatação de suas mortes, a peste desapareceu naquelas ruas. Também observou-se que, naquelas paróquias, depois da contaminação total, a peste diminuiu mais depressa do que nas paróquias de Bishopsgate, Shoreditch, Aldgate, Whitechapel, Stepney e outras, sendo os cuidados semelhantes tomados com antecedência, um valioso meio para o controle da epidemia. Este fechamento das casas, pelo que sei, foi adotado pela primeira vez como um método de contenção da peste em 1603, com a chegada do rei James I ao trono. O poder para trancar as pessoas em suas próprias casas foi outorgado pelo Ato do Parlamento intitulado “Uma Lei para a Assistência caritativa e Disposição das Pessoas contaminadas com a peste”. Neste Ato do Parlamento, o Lorde Prefeito e os vereadores da cidade de Londres fundamentaram as ordens que deram na época, entrando em vigor em primeiro de julho de 1665, quando ainda eram poucos os contaminados dentro da city e o último registro de óbitos de noventa e duas paróquias indicava apenas quatro com peste. Algumas casas da city já estavam fechadas e algumas pessoas removidas para o hospital de pestilentos, logo depois de Bunhill Fields, no caminho de Islington. Digo que, por esses meios, quando no total morriam perto de mil por semana, na city eram só vinte e oito e a city conservou-se proporcionalmente mais saudável do que qualquer outro lugar todo o tempo de epidemia. Estas determinações do Lorde Prefeito foram publicadas, como disse, no final de junho, entrando em vigor a partir de 1o de julho como segue, a saber: ORDENS CONCEBIDAS E PUBLICADAS PELO LORDE PREFEITO E VEREADORES DA CITY DE LONDRES REFERENTES À EPIDEMIA DE PESTE, 1665. “DURANTE o reinado do nosso falecido soberano rei James, de feliz memória, foi criada uma lei para a assistência caritativa e disposição de pessoas contaminadas com a peste, quando os juízes de paz, prefeitos, intendentes e outros altos funcionários foram autorizados a nomear, em suas jurisdições, inspetores, investigadoras, vigilantes, zeladores e coveiros para lugares e pessoas contaminadas, com poderes para forçá-los a desempenhar suas funções. Este mesmo estatuto também autorizou-os a decretar outras ordens que se fizessem necessárias nas circunstâncias presentes. Agora, depois de muita ponderação, pensou-se no mesmo expediente para prevenir e evitar uma epidemia da enfermidade (se esta for a vontade de Deus todo-poderoso), com a nomeação dos seguintes funcionários e a devida observância destas ordens: Inspetores nomeados para cada paróquia Primeiro, entende-se como necessário, e assim se ordena, que cada paróquia tenha uma, duas ou mais pessoas de boa índole e credibilidade, escolhidas e nomeadas pelo vereador, seu substituto e conselho de comuns de cada distrito com o título de inspetores, para permanecer na função durante pelo menos dois meses. Qualquer pessoa apta assim

nomeada que se recusar a assumir o cargo será mantida na prisão até que se conforme devidamente. Funções dos inspetores Que estes inspetores encarregados pelos vereadores de investigar e conferir de tempos em tempos que casas, em cada paróquia, estão contaminadas e quantas pessoas estão doentes e de que doenças, se informem o melhor possível. Em caso de dúvida, determinem o isolamento até que surjam provas da doença. Ao encontrar qualquer pessoa sofrendo da doença, dar ordens para que a polícia feche a casa. Se o policial for ineficiente ou negligente, informar em seguida o vereador do bairro. Vigilantes Que para cada casa contaminada sejam indicados dois vigilantes, um para todos os dias e outro para as noites. Estes vigilantes têm como tarefa específica impedir a entrada ou saída de qualquer pessoa das casas contaminadas que estiverem sob sua guarda, sob pena de dura punição. Se os ditos vigias forem enviados a qualquer parte, deverão trancar a casa e levar a chave. O vigilante diurno ficará a postos até às dez horas da noite, o vigilante noturno até as seis da manhã. Investigadoras Que haja um cuidado especial na nomeação de mulheres investigadoras em cada paróquia, selecionando-as entre as de melhor reputação e índole que se possa encontrar no gênero. Estas serão encarregadas de fazer a devida investigação e informar a verdade o mais fiel possível sobre o que observarem nos corpos que tenham que examinar para conferir se morreram de peste ou de outra doença. E que os médicos nomeados para cura e prevenção da epidemia convoquem estas investigadoras que foram ou venham a ser nomeadas para as várias paróquias sob sua responsabilidade a fim de verificar se estão preparadas e qualificadas para o serviço, denunciando-as sempre que acharem necessário, caso se mostrem ineficientes no cumprimento de seus deveres. Que nenhuma investigadora tenha permissão para fazer qualquer trabalho ou serviço público, manter uma loja ou tenda, ou seja contratada como lavadeira, ou qualquer outro tipo de emprego comum. Cirurgiões Para melhor assistência às investigadoras, já que há grande abuso na falsificação de informações sobre a doença com disseminação ainda maior da epidemia, fica determinada a nomeação de cirurgiões selecionados por sua capacidade e discrição, além daqueles que já pertencem ao hospital de pestilentos entre os quais a city e liberties serão subdivididas em áreas conforme o adequado e conveniente aos lugares. Cada um destes cirurgiões cobrirá os limites de uma área, unindo-se às investigadoras de sua área para examinar os corpos, a fim de que seja feito um relatório correto sobre a doença. E mais, os ditos cirurgiões devem visitar e examinar as pessoas que os mandem chamar ou lhes sejam indicadas ou enviadas pelos inspetores de cada paróquia, informando-se sobre as doenças das ditas partes. E já que os ditos cirurgiões serão afastados do tratamento de todas as outras doenças, dedicando-se apenas à epidemia, fica determinado que cada um dos referidos cirurgiões receba doze pence por corpo que examine, a serem pagos pelos recursos da pessoa examinada, se ela dispor de meios, ou então pela paróquia.

Enfermeiras Caso qualquer enfermeira se retire de qualquer casa contaminada antes de se passarem vinte e oito dias da morte de qualquer vítima da peste, a casa para onde a enfermeira se dirigir será fechada até que se complete o prazo de vinte e oito dias.” ORDENS REFERENTES ÀS CASAS CONTAMINADAS E PESSOAS SOFRENDO DE PESTE Notificação da doença “O chefe de cada família, assim que alguém em sua casa se queixe de manchas ou vermelhidões, inchaços em qualquer parte do corpo, ou caia de cama perigosamente doente sem causa aparente de outra doença, deve notificar o inspetor de saúde até duas horas depois do aparecimento dos ditos sintomas. Isolamento dos doentes Assim que qualquer homem for identificado como portador de peste pelo inspetor, cirurgião ou investigadora, ele deve ser isolado na mesma noite e na mesma casa. Caso fique assim isolado, mesmo que não venha a morrer, a casa onde adoeceu deve permanecer fechada durante um mês depois da aplicação das devidas medidas preventivas nos demais. Ventilação dos objetos Para proteção de mercadorias e objetos da epidemia, suas roupas de cama e vestuário e todos os móveis dos quartos devem ser bem ventilados e tratados com fogo e os aromatizantes necessários dentro das casas contaminadas, antes de serem retirados para entrar em uso. Isto deve ser feito na presença de um inspetor. Fechamento das casas Se qualquer pessoa visitar qualquer homem sabidamente contaminado pela peste, ou entrar por vontade própria e sem autorização numa casa sabidamente contaminada, a casa que ele habitar deve permanecer fechada durante alguns dias, conforme determinação do inspetor. Nada deve ser removido das casas contaminadas, exceções, etc. Que objeto nenhum seja removido da casa onde alguém contraiu a doença para qualquer outra casa na city (exceção feita ao hospital dos pestilentos, barraco ou qualquer outra casa de propriedade da pessoa contaminada, desde que faça a mudança com suas próprias mãos e ocupe a casa com seus próprios criados). Assim, preserva-se a segurança da paróquia onde ocorrer tal mudança, cujas condições e especificações devem ser observadas pela pessoa contaminada conforme estabelecidas com antecedência em todos os seus detalhes, sem qualquer custo para a paróquia onde ocorra, devendo ser feita à noite. É um direito de qualquer pessoa que possua duas casas transferir tanto os sadios quanto seus doentes, conforme preferir, para sua segunda casa; desde que, enviando primeiro os com saúde, mais tarde não envie seus doentes para o mesmo lugar, nem traga um são de volta para junto dos doentes. Os que assim se deslocarem devem permanecer pelo menos uma semana trancados e isolados de toda companhia, por receio de alguma infecção que não tenha aparecido logo no começo. Enterro dos mortos Que o enterro dos mortos com peste ocorra nas horas mais convenientes, sempre antes do sol nascer e depois do pôr-do-sol, com autorização do encarregado da paróquia ou da polícia e nunca de outro modo. Nenhum vizinho ou amigo pode acompanhar o corpo até a igreja ou entrar na casa contaminada, sob pena de ter sua casa fechada ou ser preso. Nenhum cadáver de morto com peste deve ser enterrado ou permanecer na igreja nas horas de rezas públicas, sermões ou missas. Nenhuma criança pode estar presente na hora

do enterro de qualquer corpo em qualquer igreja, cemitério e cercanias, nem chegar perto de cadáveres, caixões ou sepulturas. As covas devem ter pelo menos seis pés 9 de profundidade. E ainda mais, ficam proibidos os cortejos fúnebres dos demais enterros enquanto durar esta epidemia. Nenhum objeto contaminado pode circular Que roupa nenhuma, objetos, cobertas de cama ou trajes possam ser retirados ou transferidos de qualquer casa contaminada e que os anunciantes e carregadores ambulantes de cobertas e roupas velhas para venda ou aluguel sejam terminantemente proibidos e reprimidos e que nenhum comerciante de cobertores e roupas velhas tenha permissão para fazer qualquer exposição pública ou pendurar em sua barraca, balcão de loja ou vitrine diante de qualquer rua, beco ou passeio público qualquer cobertor ou roupa velha posta à venda, sob pena de prisão. Caso algum comerciante ou outra pessoa compre qualquer roupa, cobertor ou outra coisa vinda de qualquer casa contaminada menos de dois meses depois da epidemia ter estado lá, sua casa será fechada como contaminada, assim devendo permanecer por, pelo menos, vinte dias. Ninguém pode sair de qualquer casa contaminada Se qualquer pessoa, por sorte, vigilância negligente ou outro meio, sair ou for conduzida de um lugar contaminado para outro, a paróquia de onde saiu ou foi retirada, ao ser informada se encarregará de trazer de volta a pessoa contaminada que fugiu, à noite. As partes envolvidas nesta contravenção devem ser punidas conforme determinar o vereador do bairro e a casa que recebeu a pessoa contaminada deve ficar fechada durante vinte dias. Toda casa contaminada deve ser identificada Que toda casa contaminada seja identificada por uma cruz vermelha com um pé de comprimento no meio da porta, bem visível e com estas palavras inscritas em cima da mesma cruz, ou seja: “Senhor, tende piedade de nós”, lá devendo permanecer até a reabertura legal das casas. Toda casa contaminada deve ser vigiada Que policiais supervisionem cada casa fechada para que disponha de vigias, que manterão os moradores lá dentro, suprindo suas necessidades com os moradores arcando os custos se tiverem disponibilidade, ou às custas da comunidade caso não tenham recursos. O fechamento deve ser pelo espaço de quatro semanas após o restabelecimento total da saúde. Que sejam baixadas ordens específicas para que as investigadoras, os cirurgiões, zeladores e coveiros não andem pelas ruas sem levar na mão uma vara ou bastão vermelho de três pés de comprimento, reconhecível e evidentemente visível, não entrando em qualquer outra casa que não a sua própria, ou naquelas às quais forem designados ou convocados. Evitarão toda companhia, principalmente se foram empregados recentemente em tais tarefas ou serviços. Residentes Que, onde quer que vários residentes coabitem uma mesma casa e uma pessoa da casa esteja contaminada, mais ninguém, nem da família desta casa, seja autorizado a retirar o doente ou a si próprio sem um atestado dos inspetores de saúde daquela paróquia. Na ausência desse documento, a casa para onde os doentes ou os moradores se dirigirem deve ser fechada como se estivesse contaminada. Carros de aluguel Que se tomem providências para que os cocheiros não possam colocar seus carros à disposição do público (como muitos foram vistos fazendo, depois de transportar pessoas

contaminadas para o hospital dos pestilentos e outros lugares) antes de serem bem arejados, permanecendo fora de circulação por um período de cinco a seis dias depois de prestarem tais serviços.” ORDENS PARA A LIMPEZA E MANUTENÇÃO DAS RUAS As ruas devem ser conservadas limpas “Primeiro, considera-se necessário e assim se determina que todo proprietário providencie a limpeza diária da rua em frente à sua casa, assim mantendo a rua limpa e varrida durante toda a semana. Que o lixo seja recolhido das casas Que o lixo e detritos das casas sejam recolhidos diariamente pelos lixeiros e que eles avisem sua chegada tocando uma corneta como até hoje tem sido feito. Despejo de esterco longe da city Que o esterco humano seja removido em recipientes para tão longe quanto possível da city e passeios públicos. Os lixeiros noturnos ou outros ficam proibidos de esvaziar estes recipientes em qualquer jardim nas cercanias da city: Precauções com peixe ou carne passados e com trigo mofado Que sejam tomadas precauções especiais para que todo peixe malcheiroso, carne passada, trigo mofado ou outras frutas estragadas de qualquer tipo tenham sua venda proibida na city ou em qualquer parte da cidade. Que as fábricas de cerveja e casas de bebidas sejam inspecionadas à procura de barris apodrecidos ou bolorentos. Que nenhum porco, cachorro, gato, pombo doméstico ou coelho seja mantido em qualquer parte da city, ou qualquer suíno ande pelas ruas e becos. Caso qualquer bedel ou outro funcionário encontre porcos soltos, o proprietário deve ser punido de acordo com a Lei do Conselho dos Comuns, e que os cães sejam mortos pelos exterminadores nomeados para esta finalidade.” ORDENS REFERENTES A PESSOAS LIBERTINAS E REUNIÕES DE DESOCUPADOS Mendigos “Tendo em vista que nada gera mais reclamações do que a multidão de vagabundos e mendigos andarilhos que surgem por todos os lados da city, tornando-se importante fator de disseminação da epidemia e algo inevitável apesar de todas as determinações em contrário: Fica aqui estabelecido que a polícia e outros a quem compete lidar com o problema devem tomar providências para que nenhum andarilho vagabundo tenha permissão para ficar pelas ruas desta cidade qualquer que seja o motivo, sob as penas da lei, que serão devida e severamente aplicadas sobre eles. Espetáculos Que todos os espetáculos, rinhas de urso, jogos, cantorias de baladas, duelos e atividades semelhantes que promovam concentrações públicas sejam terminantemente proibidos e os infratores sejam severamente punidos pelo vereador do bairro. Proibição de festins Que todos os banquetes públicos, especialmente os promovidos pelas companhias da city, e jantares nas tavernas, cervejarias e outros lugares de diversões públicas sejam proibidos até segunda ordem e autorização. O dinheiro assim economizado deve ser utilizado na assistência e socorro dos pobres contaminados pela peste.

Casas de bebidas Que a embriaguez desordeira em tavernas, cervejarias, cafeterias e adegas seja vigiada como um pecado público destes tempos e grande fonte de difusão da peste. Nenhuma pessoa ou grupo deve permanecer ou entrar para beber numa taverna, cervejaria ou cafeteria depois das nove da noite, conforme uma antiga lei e costume desta cidade, sob as penalidades por ela estipuladas. Para melhor execução destas ordens, assim como de outras normas e determinações que se façam necessárias depois de maiores considerações; Fica estabelecido e juramentado que os vereadores, seus substitutos e conselheiros comuns devem se reunir semanalmente, uma, duas, três ou mais vezes (conforme exigir a situação), no lugar público de costume em seu bairro (desde que livre de contaminação pela peste) para deliberarem como estas ordens deverão ser rigorosamente executadas. Nenhum residente em ou nas proximidades dos lugares contaminados deve comparecer a essas reuniões enquanto houver qualquer suspeita. Os referidos vereadores, seus substitutos e conselheiros comuns, em seus diferentes bairros, podem pôr em prática qualquer outra medida benéfica concebida e elaborada nessas reuniões para a proteção dos súditos de Sua Majestade contra a peste. Sir JOHN LAWRENCE, Lorde Prefeito. Sir GEORGE WATERMAN Sir CHARLES DOE, xerifes.” Não preciso dizer que estas ordens só vigoravam nos lugares sob jurisdição do Lorde Prefeito. Assim, é conveniente observar que os juízes de paz daquelas paróquias e lugares então chamados vilarejos e arrabaldes adotaram os mesmos métodos. Conforme recordo, as ordens não foram executadas em seguida na nossa área, porque, como já disse, pelo menos no início, a peste não atingiu a zona leste da cidade, não se tornando muito violenta até o começo de agosto. Por exemplo, o registro total de óbitos entre 11 e 18 de julho foi de 1.761, mas apenas setenta e um morreram de peste em todas aquelas paróquias que chamamos de Tower Hamlets, assim distribuídos: 11 a 18 de julho agosto, assim: Aldgate Stepney Whitechappel St Katherine,Tower Trinity, Minories

Na semana seguinte foi assim:

E

14 33 21 2 1 71

34 58 48 4 1 145

até

primeiro

de

65 76 79 4 4 228

A peste realmente vinha com toda força, pois nesta mesma semana, nas paróquias vizinhas, os enterros foram assim: 11 a 18 Na semana seguinte, aumentaram prodigiosamenteE até primeiro de agosto, assim: St Leonard, Shoreditch 64 84 110 St Botolph, Bishopsgate 65 105 116 St Giles, Cripplegate 213 421 554 342 610 780

No princípio, o fechamento das casas foi considerado um método cruel e anticristão. Os pobres assim confinados lamentavam-se amargamente. Reclamações contra a severidade desta medida eram levadas diariamente ao Lorde Prefeito, referindo-se a casas fechadas sem motivo (e até por maldade). Não posso opinar, mas uma investigação revelou que muitos dos que se queixavam tão veementemente encontravam-se num estado que justificava sua condição. Outros, após exame dos doentes e da doença sem aparência de contagiosa, aceitaram transferir os casos duvidosos para o hospital dos pestilentos e foram desimpedidos. É verdade que trancar as portas das casas das pessoas e colocar um vigia noite e dia para impedir que saíssem ou que alguém viesse visitá-las, quando muitas pessoas saudáveis talvez tivessem escapado se fossem afastadas das pessoas doentes, parecia muito duro e cruel. Muitos morreram nesse miserável confinamento quando faz sentido crer que não teriam se contaminado se tivessem liberdade, embora a peste estivesse em suas casas. No começo, a população ficou muito revoltada e inquieta e muitos atos de violência se cometeram em agressão aos homens designados para vigiar as casas fechadas. Muita gente também saiu à força em diversos lugares, conforme comentarei mais adiante. Mas isso era para o bem comum, justificando-se o sacrifício individual, e não havia como obter benevolência para os apelos dirigidos às autoridades ou ao governo da época, pelo menos que eu tenha ouvido falar. Isto levou o povo a criar todo tipo de estratagema para, se possível, sair de casa. Encheria um pequeno volume a relação das artimanhas empregadas pelos moradores destas casas para desviar os olhos dos vigias contratados, a fim de enganálos, escapando ou fugindo, quando ocorriam freqüentes brigas e alguns estragos, que aconteciam espontaneamente. Certa manhã, lá pelas oito horas, eu seguia por Houndsditch quando ouvi uma grande barulheira. É fato que não havia muita gente, pois o povo não se sentia muito livre para se reunir ou para ficar muito tempo junto enquanto andava por ali. Eu também não me demorei muito, mas a gritaria foi suficiente para chamar minha atenção e perguntei a um homem parado numa janela o que estava acontecendo. Parece que um vigia fora contratado para permanecer em seu posto diante da porta de uma casa contaminada, ou dita contaminada, que fora fechada. Ele ficou lá duas noites inteiras consecutivas, conforme ele mesmo contou e, assim como no dia anterior, esperava o vigia que vinha substituí-lo. O tempo todo, não escutou qualquer ruído dentro da casa, e nenhuma luz foi acesa. Os moradores não o chamaram para nada, nem lhe encomendaram nada, o que deveria ser a principal função do guarda. Ele explicou que tampouco o incomodaram até segunda-feira à tarde, quando escutou muito choro e gritaria vindo de dentro da casa. Imaginou que alguém da família acabara de morrer. Parece que, na noite anterior, o carro dos mortos foi chamado, retirando o corpo de uma criada. Os coveiros ou carregadores, como eram chamados, puseram o corpo no carro envolto apenas num cobertor verde e foram embora. Ao ouvir a choradeira e a gritaria, o vigia, ao que parece, bateu na porta, mas ninguém respondeu durante certo tempo. Finalmente, alguém disse, irritado e rapidamente, como se estivesse prestes a chorar ou com a voz de quem já estava chorando: “O que queres batendo na porta desta maneira?” Ele respondeu: “Sou o vigia! como estais? O que está acontecendo?” A pessoa disse: “Não é da tua conta! Chama o carro dos mortos”. Parece que isso foi à uma hora. Pouco depois, conforme o sujeito contou, ele parou o carro dos mortos, voltando então a bater na porta, mas ninguém respondeu. Ele continuou batendo e o homem do carro gritou várias vezes: “Trazei vossos mortos”, mas ninguém

respondeu, até que o homem que dirigia o carro, ao ser chamado em outras casas, não pôde esperar mais e foi embora. O vigia não sabia o que fazer depois de tudo e resolveu não incomodar mais os moradores da casa até que o guarda da manhã, ou vigilante diurno, como era chamado, viesse substituí-lo. Contando-lhe o que acontecera, os dois voltaram a bater na porta durante muito tempo, mas ninguém respondeu. Então, notaram que a janela ou postigo onde anteriormente aparecera uma pessoa continuava aberta, no segundo andar. Para satisfazer sua curiosidade, os dois trouxeram uma escada e um deles subiu até a janela e examinou o quarto, vendo uma mulher morta no chão com um aspecto horripilante, sem roupas e coberta apenas com um lençol. Embora chamasse em voz alta e batesse forte no chão com seu longo bastão, que enfiara pela janela, ninguém se moveu ou respondeu e ele tampouco ouviu qualquer ruído dentro da casa. Descendo a escada, descreveu a cena para seu colega, que também subiu para ver, sem notar nada diferente. Os dois, então, resolveram procurar o Lorde Prefeito ou qualquer outra autoridade, em vez de se arriscarem a entrar na casa pela janela. Reagindo às informações dos dois, parece que um oficial de justiça determinou que a casa fosse invadida na presença de um policial e outras testemunhas por ele indicadas para que nada fosse roubado. Tudo foi feito conforme o determinado e não encontraram mais ninguém na casa, além daquela jovem mulher que, contaminada e irrecuperável, fora abandonada pelos outros, morrendo sozinha. Todos os outros moradores da casa encontraram uma maneira de enganar o vigia e fugiram, chamando-o para abrir a porta da frente enquanto escapavam pela porta dos fundos ou pelo telhado de forma que ele não percebesse nada. Concluiu-se que a choradeira e a gritaria que o guarda escutou foram os gritos emocionados da família no duro momento da despedida que, certamente, foi dolorosa para todos. A morta era irmã da dona da casa. O chefe da família, sua esposa, várias crianças e criadas foram todos embora ou fugiram. Se estavam doentes ou com saúde, não fiquei sabendo, pois não fiz mais perguntas. Muitas fugas semelhantes ocorreram em casas contaminadas, principalmente quando o vigia era encarregado de alguma tarefa, sendo função sua entregar os recados enviados pela família, quer dizer, suprir suas necessidades de alimentos e remédios ou buscar o médico se este aceitasse vir, ou cirurgiões, enfermeiras, ou chamar o carro dos mortos e outras tarefas como estas. Mas também era obrigação dele trancar a porta de saída, levando a chave consigo sempre que se afastasse. Para evitar isso, enganando o vigia, as pessoas mandavam fazer duas ou três cópias da chave da casa ou davam um jeito de desaparafusar a fechadura, caso ela fosse aparafusada e, assim, retirá-la pelo lado de dentro, abrindo a porta e saindo quantas vezes quisessem enquanto o vigia ia ao mercado, à padaria ou qualquer outra trivialidade. Isto sendo descoberto, os funcionários públicos receberam ordens para colocar um cadeado nas portas externas e instalar trancas conforme achassem necessário. Em outra casa, na rua ao lado, em Aldgate, fiquei sabendo de uma família inteira que foi encerrada e trancada porque uma criada ficou doente. O patrão, através de seus amigos, informou o vereador mais próximo e o Lorde Prefeito, concordando que sua criada fosse transferida para o hospital dos pestilentos, mas isto não foi aceito. Assim, sua porta foi marcada com uma cruz vermelha, puseram um cadeado do lado de fora e um guarda foi indicado conforme a lei para vigiar a porta. Depois que o dono da casa descobriu que não tinha outra saída e que ele, sua esposa e suas cinco crianças ficariam trancados junto daquela pobre empregada doente, ele chamou o vigia e disse que precisava que saísse e encontrasse uma enfermeira para cuidar da pobre

moça, ou seria morte certa para todos se tivessem que cuidá-la. E deixou claro que, caso o guarda se negasse a fazer isso, a criada morreria de peste ou de fome, pois ele decidira que ninguém da sua família se aproximaria dela para levar comida. A criada já estava no sótão, no quarto andar da casa, onde não se ouviam seus gritos e pedidos para que alguém a socorresse. O guarda concordou, saiu e encontrou uma enfermeira, conforme lhe fora determinado, trazendo-a na mesma noite. Nesse intervalo, o dono da casa aproveitou para abrir um enorme buraco na parede da sua loja, que dava para uma banca ou tenda onde antes trabalhava um sapateiro remendão, diante ou abaixo de sua vitrine. O inquilino, como se pode imaginar numa época tão terrível como esta, morrera ou fora despejado, deixando a chave em seu poder. Uma vez aberto seu acesso a esta banca, o que não poderia ter feito se o vigia estivesse na sua porta, pois foi obrigado a fazer um barulho tão grande que assustaria o homem; digo, tendo aberto seu acesso a esta banca, ele sentou-se quieto até o vigia retornar com a enfermaria e também durante todo o dia seguinte. Na noite seguinte, arranjou outro serviço banal qualquer para o vigia que, pelo que entendo, foi atrás de farmacêutico buscar um emplastro para a criada, tendo que esperar pela preparação do remédio ou qualquer outra tarefa parecida que o mantivesse longe por algum tempo. Neste meio tempo, ele e toda sua família foram embora, deixando para o vigia e a enfermeira a guarda da casa e o enterro da pobre moça – isto é, jogá-la no carro dos mortos. Eu poderia contar muitas outras histórias bastante ilustrativas como estas com as quais entrei em contato – ou seja, me contaram durante o lento desenrolar daquele ano terrível – e que são garantidamente verdadeiras ou muito próximas da verdade. Quero dizer, verdadeiras no geral, pois homem nenhum, num tempo como aquele, poderia descobrir todos os pormenores. Em diversos lugares, segundo se informou, também ocorreram incidentes violentos envolvendo vigias. Do início ao fim da epidemia, acredito que não menos de dezoito ou vinte deles foram mortos, ou feridos ao ponto de serem dados como mortos, supostamente por pessoas trancadas em casas contaminadas que tentaram sair, encontrando resistência. Nem se poderia, é verdade, esperar por menos, pois havia tantas prisões na cidade quantas casas estivessem contaminadas. Como as pessoas assim trancafiadas ou aprisionadas em suas próprias casas não fossem culpadas de crime algum, sendo confinadas somente por falta de sorte, isso realmente era ainda mais intolerável para elas. Também havia outra diferença nestas prisões, como podemos chamá-las. Cada uma tinha um só carcereiro para vigiar toda a casa e muitas casas foram construídas de modo que possuíam muitas saídas; umas mais, outras menos e também aquelas com saídas para diversas ruas. Era impossível um único homem cuidar de todas as saídas e impedir a fuga de pessoas desesperadas pelas circunstâncias, ressentidas pelo tratamento que recebiam ou com medo do avanço da própria doença. Assim, conversavam com o vigia num lado da casa, enquanto a família fugia por outro. Em Coleman Street, por exemplo, há muitas ruelas ainda hoje com a mesma forma. Uma casa fora fechada naquela que chamam White’s Alley. Esta casa tinha uma janela e não uma porta nos fundos, dando para um quintal com passagem para Bell Alley. Um vigia foi colocado pela polícia na porta desta casa e ali ele ficou, ou seu colega, noite e dia, enquanto a família saiu à noitinha pela janela dos fundos, atravessou o pátio e deixou os pobres sujeitos guardando e vigiando a casa por quase duas semanas. Não longe desse mesmo lugar, fizeram um vigia ir pelos ares com pólvora, queimando horrivelmente o sujeito. Enquanto ele soltava os gritos mais hediondos, sem que

ninguém se arriscasse a chegar perto para socorrê-lo, todos os membros da família que conseguiam se locomover fugiram pela janela do primeiro andar, deixando para trás dois doentes que gritavam por socorro. Tiveram o cuidado de deixar enfermeiras para atendêlos, mas os que escaparam nunca mais foram encontrados até a peste ir embora, quando voltaram. Como nada podia ser provado, nada podia ser feito contra eles. Também deve-se levar em consideração que estas prisões não tinham grades nem ferrolhos como os existentes nas nossas prisões comuns. Portanto, as pessoas podiam fugir pelas janelas, mesmo diante do vigia, com pistolas e espadas nas mãos, ameaçando o pobre miserável com um tiro caso se movesse ou gritasse por socorro. Em outros casos, as casas tinham jardins com muros e cercas divisórias entre os vizinhos, pátios ou casas de fundos. Através de amizades ou de súplicas, os moradores dessas casas conseguiam pular os muros ou cercas e sair pelas portas de seus vizinhos; ou, oferecendo dinheiro aos criados, conseguiam passar por elas durante a noite. Assim que, em resumo, não se podia confiar no método de fechamento de casas. O resultado obtido estava longe do almejado, servindo mais para levar as pessoas ao desespero, conduzindo-as a extremos de tentarem sair a qualquer custo. E o que era ainda pior: os que conseguiam sair espalhavam mais a epidemia perambulando por aí com a doença, algo que não fariam se não estivessem nessa condição desesperadora. Quem considerar todos os pormenores desses casos reconhecerá, sem a menor dúvida, que o rigor do confinamento das pessoas fez com que se desesperassem, levando-as a arriscar tudo para fugirem de suas casas, visivelmente contaminadas pela peste, sem saber para onde ir ou o que fazer; sem saber o que faziam. Muitos que assim fizeram encontraram-se em situações terríveis e extremas, preferindo se acabarem pelas ruas ou pelos campos, ou foram abatidos pela fúria e violência da febre que os contagiou. Outros vagavam pelo interior, seguindo qualquer caminho, guiados pelo desespero, sem saber de onde vinham ou para onde iam, até que, enfraquecidos e exaustos, sem receber qualquer ajuda, com as casas e vilarejos se recusando a recebê-los ou hospedá-los, estivessem ou não contaminados, pereciam pelas beiras de estradas ou invadiam estábulos e morriam, sem que ninguém ousasse chegar perto ou oferecer qualquer consolo, embora talvez nem estivessem contaminados, o que ninguém acreditaria. Por outro lado, quando a peste começava a atingir uma família, isto é, quando alguém da família saía de casa e, por imprudência ou qualquer outra razão, contraía a doença e a trazia para casa. A família sempre ficava sabendo antes do fato chegar ao reconhecimento dos funcionários públicos que, conforme podia-se ler nas ordens oficiais, foram nomeados para examinar o estado de todos os doentes assim que soubessem que alguém adoecera. Nesse intervalo entre o aparecimento da doença e a visita dos inspetores, o dono da casa tinha tempo e liberdade para se retirar com a família, se tivesse para onde ir. Muitos fizeram isso. A grande tragédia foi que muitos fizeram isso depois de se contaminarem, levando consigo a doença para dentro das casas dos que os acolhiam tão hospitaleiros; o que, é preciso admitir, era muito cruel e ingrato. Esta foi, em parte, a razão para a noção geral, ou antes escândalo, que circulava sobre o estado de espírito das pessoas contaminadas: objetivamente, elas não tomavam o mínimo cuidado nem tinham qualquer escrúpulo em contaminar os outros. Embora não possa afirmar, também havia um pouco de verdade nisso, mas não era prática tão comum como se dizia. Não sei que razão natural se poderia dar para algo tão perverso numa época em que só poderiam se imaginar a caminho do julgamento pela Justiça Divina. Estou bastante

convencido de que isto é irreconciliável com a religião e os bons princípios, tampouco com a generosidade e o humanismo. Devo voltar a falar sobre isso mais uma vez. Agora, passo a falar das pessoas que desapareceram com medo de serem confinadas, servindo-se de estratagemas ou mesmo da força para fugir, antes ou depois de serem confinadas. Pessoas cuja miséria não seria menor quando estivessem soltas, mas tristemente aumentada. Por outro lado, muitos dos que fugiram tinham outras casas ou refúgios para ir, onde se trancaram e se esconderam até a peste passar. Muitas famílias, prevendo a proximidade da epidemia, armazenaram mantimentos suficientes para todos e fecharam-se em suas próprias casas, isolando-se tão completamente que ninguém nunca as viu, ou ouviu falar delas até a doença desaparecer completamente, quando, então, saíram para a rua, bem saudáveis. Poderia recordar muitos destes casos e dar detalhes sobre seu procedimento. Esta era, sem dúvida, a medida mais segura e eficiente que podiam tomar aqueles sem condições de se mudarem ou sem um lugar para recebê-los. Permanecendo trancados, ficaram como se a epidemia estivesse a cem milhas de distância. Também não recordo de caso nenhum de doença nessas famílias, entre as quais muitos comerciantes holandeses se destacaram por manter suas casas feito pequenas fortalezas cercadas, não permitindo que ninguém saísse ou se aproximasse delas. Lembro particularmente de um que vivia num quarteirão de Throgmorton Street, cuja casa dava para Draper’s Garden. Volto às famílias contaminadas e confinadas pelas autoridades. A desgraça dessas famílias não tem descrição. Era nessas casas que geralmente ouvíamos os gritos e gemidos mais estridentes e horripilantes desses coitados, aterrorizados e mortos de medo, com a visão das condições em que se encontravam seus parentes mais queridos e pelo terror de permanecerem aprisionados como estavam. Lembro – e quando escrevo esta história sinto-me ouvindo seu próprio som – uma determinada senhora que tinha uma filha única, uma jovem donzela com cerca de dezenove anos de idade, possuindo também uma fortuna respeitável. Eram as únicas moradoras da casa onde se encontravam. A mulher mais jovem, sua mãe e uma criada, uma vez que a casa não fora fechada, saíram certa vez para a rua. Duas horas depois, voltaram com a jovem queixando-se que não se sentia bem. Um quarto de hora mais tarde, ela vomitou e sentiu uma violenta dor de cabeça. “Deus queira”, disse a mãe com um pavor terrível, “que minha criança não esteja com a doença.” A dor de cabeça aumentou, sua mãe ordenou que aquecessem a cama e resolveu deitá-la, preparando-se para a aplicação de alguma coisa que a fizesse suar, um tratamento comumente indicado quando surgiam os primeiros sintomas da peste. Enquanto aqueciam a cama, a mãe despiu a moça e assim que ela se deitou, a mãe examinou seu corpo com uma vela, descobrindo imediatamente a mancha fatal entre as coxas. A mãe, incapaz de se controlar, jogou a vela no chão e gritou alto, de modo tão assustador que bastaria para encher de pavor o mais corajoso coração do mundo. Não foi um grito ou um choro, foi o pânico que tomou conta de seu espírito. Primeiro, empalideceu, depois, recuperou-se. Então correu pela casa subindo e descendo as escadas feito uma louca. Estava de fato enlouquecida e ficou berrando e chorando durante várias horas, fora de si ou pelo menos sem controle sobre seus sentidos. Segundo me contaram, nunca mais voltou a recuperar completamente a razão. Naquele momento, a jovem donzela já era um cadáver, pois a gangrena que causara as manchas se espalhou por todo o corpo e ela morreu em menos de duas horas. Sem entender mais nada, a mãe continuou gritando várias horas após a morte da sua filha. Isto foi há tanto tempo que não tenho certeza, mas acho que a mãe nunca mais se recuperou, morrendo duas ou três semanas depois.

Este caso foi extraordinário. Dou mais detalhes por isso e porque encontrei muita informação sobre ele, mas ocorreram incontáveis casos como este. Foram raros os boletins semanais de óbitos que não tinham duas ou três indicações de “medo”; ou seja, pode-se dizer que morreram de medo. Além daqueles que sentiam tanto medo a ponto de morrerem instantaneamente, havia muitos outros com outras formas extremas de medo. Por medo, alguns perderam a razão, alguns perderam a memória, outros perderam a percepção. Mas eu volto ao fechamento das casas. Eu disse que, assim como muita gente saiu de suas casas através de estratagemas depois que elas foram fechadas, outros também fugiram subornando os vigias, dando-lhes dinheiro para que os deixassem sair secretamente durante a noite. Devo confessar que, naquela época, achei esta a mais inocente forma de corrupção ou suborno pela qual qualquer homem podia ser condenado. Por isso, não pude deixar de sentir pena daqueles pobres homens e foi duro ver três vigias serem publicamente açoitados pelas ruas porque permitiram a saída de moradores de casas fechadas. Apesar desta severidade, o dinheiro prevalecia junto aos pobres e muitas famílias encontravam meios de, assim, dar umas fugidinhas até a rua ou escapar depois de serem confinadas em suas casas. Em geral, estas eram as que tinham onde se refugiar. Mesmo não sendo fácil atravessar as estradas depois de 1o de agosto, ainda havia muitas maneiras de viajar, principalmente, como já mencionei, armando barracas pelos campos, levando colchões ou palha para deitar e suprimentos para comer. Muitos viveram nessas barracas feito eremitas numa cela, já que ninguém se arriscaria a chegar perto deles. Contaram-se muitas histórias deste tipo, algumas cômicas, algumas trágicas, outras sobre os que viveram como peregrinos nos desertos e fugiram fazendo de si mesmos exilados desta maneira, dizendo ainda que gozavam de mais liberdade do que poderiam esperar em tais circunstâncias, o que é difícil de acreditar. Conheço a história de dois irmãos e um parente. Eram solteiros e se demoraram demais na cidade para fugir. Sem saber para onde ir, não tendo como viajar para muito longe em busca de um refúgio, encontraram uma maneira de se preservarem que, embora inicialmente pareça desesperada, é tão natural que se pode perguntar por que mais gente não fez o mesmo naquela época. Os três tinham poucos recursos, mas não eram tão pobres que não pudessem se abastecer com alguns pequenos confortos que ajudassem a manter o corpo e a alma unidos. Vendo a peste crescer de modo terrível, resolveram se arranjar com o que tinham e partiram. Um deles fora soldado nas últimas guerras nos Países Baixos. Sem ser criado para outro trabalho que não o braçal e ainda estando ferido, não podia pegar no pesado e há algum tempo se empregara numa fábrica de broa de marinheiro em Wapping. O irmão dele fora marinheiro, mas também ferira a perna de uma maneira que não podia mais ir ao mar e vinha ganhando a vida trabalhando para um fabricante de velas em Wapping ou nas redondezas. Sendo muito econômico, juntara algum dinheiro e era o mais rico dos três. O terceiro era um marceneiro ou carpinteiro por profissão. Um sujeito habilidoso, sem outros bens além de sua caixa ou cesto de ferramentas, com a ajuda do qual poderia ganhar a vida a qualquer momento, onde quer que fosse num tempo como aquele que se anunciava. Vivia perto de Shadwell. Todos eles moravam na paróquia de Stepney, que foi a última a se contaminar, pelo menos violentamente. Eles ficaram lá até verem claramente que a peste chegara na zona oeste da cidade, vindo em direção leste, onde viviam.

A história desses três homens, se o leitor me autorizar a contá-la em nome deles sem me responsabilizar pelo esquecimento de detalhes ou qualquer erro que cometa, vou narrála tão corretamente quanto for capaz, acreditando que a história é um bom exemplo a ser seguido por qualquer cidadão pobre, caso uma calamidade pública como esta venha a se repetir aqui. Caso nunca aconteça, com a ajuda da infinita misericórdia de Deus, a história ainda pode servir de tantas outras maneiras e espero que nunca se diga que foi inútil o seu relato. Digo tudo isso antes de começar a história e ainda tenho muito mais a dizer sobre minha própria experiência neste momento. Logo no começo, eu andava despreocupadamente pelas ruas, mas não tão despreocupado a ponto de me expor ao perigo evidente, exceto quando abriram a grande vala comum no cemitério da nossa paróquia de Aldgate. Era um buraco horripilante, mas não resisti à curiosidade de vê-lo. Pelo que melhor pude calcular, tinha cerca de quarenta pés de comprimento, quinze ou dezesseis de largura e, no momento que olhei, cerca de nove pés de profundidade. Disseram que cavaram quase vinte pés numa parte da vala, até não poder ir mais fundo devido à água. Parece que, antes desta, já tinham cavado outras valas grandes na nossa paróquia. Embora a peste há muito estivesse se aproximando da nossa paróquia, quando realmente chegou, não houve paróquia dentro ou nas cercanias de Londres onde atacasse com mais fúria do que em Aldgate e Whitechapel. Cavaram diversas valas em outro terreno, quando a peste começou a se espalhar na paróquia e, principalmente, quando os carros dos mortos começaram a circular, o que, na nossa paróquia, não aconteceu até o início de agosto. Nestas valas, jogavam cinqüenta, talvez sessenta cadáveres em cada uma. Depois, cavaram buracos ainda maiores, onde enterravam todos os que o carro trouxesse em uma semana, o que, da metade para o fim de agosto, aumentou de duzentos para quatrocentos cadáveres. Não podiam fazer valas maiores porque surgia água depois de dezessete ou dezoito pés de profundidade e também não podiam enterrar mais gente na mesma vala porque as autoridades estabeleceram que nenhum cadáver podia ficar a menos de seis pés da superfície. No começo de setembro, a peste expandiu-se de uma maneira pavorosa e o número de mortos na nossa paróquia foi superior ao de qualquer paróquia do mesmo tamanho em Londres. Então, mandaram cavar este horroroso abismo – pois era mesmo mais um precipício do que uma vala. Enquanto cavavam, previam que a vala seria suficiente para as necessidades de um mês ou mais. Alguns condenaram os funcionários da igreja por permitirem uma coisa tão horrível e diziam que se preparavam para enterrar toda a paróquia e outras. Com o tempo, ficou claro que os funcionários da igreja conheciam melhor as condições da paróquia do que seus habitantes. Eu acho que a cova foi concluída no dia 4 de setembro, sendo utilizada a partir do dia 6. Lá pelo dia 20, completando exatamente duas semanas, tinham enterrado 1.114 corpos e foram obrigados a enchê-la de terra, pois os últimos cadáveres estavam a seis pés da superfície. Não duvido que ainda vivam na paróquia pessoas de muita idade que puderam testemunhar o fato, capazes inclusive de indicar melhor do que eu o lugar do cemitério onde cavaram a vala. Durante muitos anos, ainda foi possível ver suas marcas no chão do cemitério, estendendo-se paralela ao longo da passagem que vai para a parede oeste do cemitério, com saída para Houndsditch e depois seguia novamente ao leste, na direção de Whitechapel, saindo perto da hospedaria Three Nuns. Lá por 10 de setembro, minha curiosidade me levou, ou melhor, me conduziu a ver esta cova mais uma vez, quando havia apenas quatrocentas pessoas enterradas. Não me contentei em vê-la de dia como fizera antes e não pude ver mais do que terra fofa, pois

todos os corpos eram jogados lá dentro e imediatamente cobertos de terra por aqueles que chamavam de coveiros e que certa época foram chamados de carregadores. Resolvi ir à noite, ver os cadáveres sendo jogados lá dentro. Havia uma ordem proibindo terminantemente que as pessoas se aproximassem das covas para evitar o contágio. Com o tempo, esta proibição se fez ainda mais necessária porque as pessoas contaminadas e próximas do fim, já delirando, corriam para essas valas, envoltas em cobertores ou mantas e se jogavam lá dentro para, como diziam, enterrar a si mesmas. Não posso dizer que a polícia permitiu a qualquer um se jogar lá dentro, mas ouvi dizer que numa cova enorme aberta em Finsbury, na paróquia de Cripplegate, ainda em campo aberto porque o cemitério ainda não tinha muros, (muitos) vieram se jogar lá dentro e morreram antes que jogassem terra por cima, sendo encontrados já mortos, mas ainda quentes pelos que vinham enterrar outros. Isto pode servir para mostrar as terríveis condições daquela época, mesmo sendo impossível dizer qualquer coisa que dê uma idéia realista aos que não viram; a não ser que foi muito, verdadeiramente muito, mas muito horripilante, a ponto de não haver língua capaz de expressá-lo. Consegui entrar no cemitério porque conhecia o sacristão que me recebeu. Ele não me impediu de forma alguma, mas tentou determinadamente me convencer a não ir lá. Com muita seriedade (sendo um homem sensato, bom e religioso), ele disse que aquilo era tarefa deles, que tinham o dever de cumpri-la correndo todo o risco com a esperança de serem poupados. Eu não tinha motivo algum para ir lá, a não ser minha curiosidade e ele não acreditava que isso fosse suficiente para justificar minha exposição a tanto perigo. Respondi que minha mente me pressionava para ir ver o que poderia ser algo instrutivo, algo que não seria sem utilidade. “Então”, disse o bom sujeito, “se queres te arriscar, vai em nome de Deus, pois contemplar a cena será um sermão para ti, talvez o melhor que te façam em vida. É uma cena eloqüente”, continuou, “tem uma voz, uma voz alta chamando todos nós ao arrependimento.” Com isso, abriu a porta e disse: “Vai, se é isso que queres”. Seu discurso abalou um pouco minha determinação. Hesitei um bom tempo, até o exato momento em que vi dois archotes se aproximando lá no fim das Minories. Ouvi o sino e então apareceu o carro dos mortos, como era chamado, vindo pela rua. Não consegui mais conter minha vontade de ver a cena. Fui lá. Não havia ninguém, como percebi logo, nem dentro nem saindo do cemitério, só os coveiros e o sujeito que conduzia a carroça, ou melhor, conduzia os cavalos que puxavam a carroça. Quando chegaram na vala, viram um homem andando de um lado para outro, enfiado dentro de um casacão marrom e agitando as mãos dentro do capote como se estivesse muito angustiado. Os coveiros imediatamente o cercaram, supondo ser uma daquelas criaturas delirantes ou desesperadas que tentavam, como já disse, enterrar a si mesmas. Ele não dizia nada, apenas caminhava, soltando dois ou três gemidos altos e profundos, como um suspiro que fosse rasgar seu coração. Quando os coveiros se aproximaram do homem, descobriram que não se tratava de um desesperado, nem de alguém contaminado como mencionei acima, também não era uma pessoa mortalmente desequilibrada. Era alguém oprimido por uma terrível e pesada dor, pois sua mulher e várias de suas crianças estavam todas no carro que chegara junto com ele, que continuava na sua agonia e dor excessivas. Ele carpia do fundo do seu coração e era fácil ver que se tratava de uma dor masculina, que não se exteriorizava em lágrimas. Calmamente, mandava os coveiros o deixarem sozinho, dizendo que só ficaria para ver os corpos sendo jogados na vala e iria embora. Assim, os coveiros não o incomodaram mais e logo em seguida o carro se aproximou da vala e os corpos começaram a ser jogados para

dentro de qualquer jeito. Isso surpreendeu o sujeito, pois ele esperava que, pelo menos, fossem decentemente deitados, embora ele mesmo reconhecesse mais tarde que isso seria impraticável. Mas, ao ver aquela cena, gritou bem alto, incapaz de se controlar. Não pude entender o que disse, ele recuou dois ou três passos e caiu sem sentidos no chão. Os coveiros correram e o levantaram. Pouco depois voltou a si e levaram-no para a Pie Tavern, na saída de Houndsditch, onde parece que o homem era conhecido e tomariam conta dele. Conforme se afastava, ele voltou a olhar para dentro da vala, mas os coveiros cobriam os corpos de terra tão depressa que não se conseguia ver nada, embora houvesse bastante luz dos archotes e velas acesos a noite toda em cima de sete, oito ou mais montes de terra ao redor da vala. Esta cena foi realmente muito triste e me tocou tanto quanto o resto, ou quase, pois tudo era medonho e cheio de terror. O carro trouxe dezesseis ou dezessete cadáveres, alguns envoltos em lençóis de linho, outros em trapos, quase nus ou tão mal cobertos que os panos se soltavam enquanto o carro jogava os corpos, que caíam seminus entre os outros. Isso não tinha muita importância e ninguém se incomodava com a indecência, pois estavam todos mortos e tinham que ser enterrados juntos na vala comum da humanidade, como poderíamos chamá-la. Ali não havia diferenças, pobres e ricos iam juntos. Não havia outra maneira de enterrá-los, nem poderia haver, pois não se conseguiriam caixões suficientes para a prodigiosa quantidade de gente que sucumbiu naquela calamidade. Surgiram boatos escandalosos sobre os coveiros, dizendo que eram tão perversos que qualquer cadáver entregue decentemente embrulhado, como dizíamos então, num lençol amarrado nos pés e na cabeça, como faziam muitos geralmente com linho de boa qualidade, os coveiros os despiam ainda no carro, jogando os corpos nus pelo chão. Como não consigo acreditar facilmente em algo tão vil entre cristãos numa época tão repleta de horrores como aquela, só posso registrar estes boatos, deixando-os sem confirmação. Também circularam inumeráveis histórias sobre o comportamento cruel e as práticas das enfermeiras que apressavam o destino dos doentes que atendiam. No momento oportuno, direi mais sobre isto. Fiquei muito chocado com aquele espetáculo, que quase me derrubou e fui embora com o coração aflito, cheio de pensamentos tão angustiantes que não saberia descrevê-los. Justamente quando saía da igreja, entrando na rua em direção à minha casa, vi um homem com um sino na frente de outro carro com archotes saindo de Harrow Alley, em Butcher Row, no outro lado da rua. Percebi que estava abarrotado de cadáveres e vinha em direção à igreja. Esperei um pouco, mas não tinha mais estômago para voltar e ver outra vez a mesma cena dolorosa. Fui diretamente para casa, onde não pude deixar de sentir gratidão diante do risco que acabara de correr, acreditando não estar contaminado, o que realmente não aconteceu. Em casa, o sofrimento do pobre e infeliz senhor voltou à minha cabeça e não pude esconder as lágrimas pensando na cena, talvez chorando mais do que ele mesmo. Este caso tornou-se tão pesado na minha mente que não consegui me controlar e precisei sair para a rua outra vez, indo até a Pie Tavern para saber o que acontecera com o homem. Devia ser uma hora da madrugada e o pobre homem ainda estava lá. O fato é que, sendo conhecido do pessoal da casa, apesar do perigo de contágio, embora o homem parecesse perfeitamente saudável, eles o consolaram e o mantiveram lá a noite toda. É com pesar que chamo a atenção para esta taverna. As pessoas eram cordiais, bemeducadas, um tipo de gente bastante atenciosa, que mantinha a taverna aberta e fazia seu comércio até aquela hora, ainda que não tão publicamente como antes. Havia, porém, um

grupo de sujeitos asquerosos que freqüentavam a casa e que se reuniam ali todas as noites durante todo este terror, comportando-se como se estivessem num extravagante e barulhento festim típico daquelas pessoas em outras épocas, com modos ofensivos a ponto dos próprios dono e dona da casa ficarem, primeiro envergonhados, depois apavorados com eles. Em geral, sentavam-se na sala que dava para a rua e ficavam sempre até altas horas. Assim, quando o carro dos mortos surgia no fim da rua, indo na direção de Houndsditch, que se via pelas janelas da taverna, eles freqüentemente abriam as janelas logo que ouvissem a lamúria triste das pessoas pelas ruas ou nas janelas acompanhando a passagem do carro e faziam brincadeiras insolentes, zombando das pessoas, principalmente se os pobres que viessem pela rua pedissem misericórdia a Deus, como muitos faziam na época. Estes senhores, um tanto perturbados pelo rebuliço causado pela chegada do pobre homem na taverna, primeiro ficaram irritados, como antes, e gritaram com o dono da casa por permitir que um sujeito como aquele, assim o disseram, fosse retirado da tumba e conduzido para dentro daquela taverna. Ao ouvirem que o homem era um vizinho e que era saudável, só que derrotado pela tragédia de sua família e coisas semelhantes, eles dirigiram seu rancor contra o homem que sofria por sua mulher e suas crianças, ridicularizando-o e escarnecendo de sua falta de coragem para se atirar dentro da cova grande junto com os seus, como disseram sarcasticamente, acrescentando algumas expressões muito profanas e blasfemas. Estavam nesta atividade vil quando cheguei na taverna. Conforme pude ver, mesmo ficando sentado quieto, mudo e desolado, com as afrontas não conseguindo tirar o homem de sua dor, mesmo assim, ele era ferido e ofendido pela conversa dos outros. Diante disso, condenei-os educadamente, bem consciente da sua fama e não sendo completamente desconhecido de dois deles. Imediatamente, voltaram-se contra mim, rogando pragas com sua linguagem grosseira e perguntando o que eu fazia fora da minha cova numa época em que homens muito mais honestos eram levados para o cemitério; e por que não estava em casa fazendo minhas orações para o carro dos mortos não vir me buscar e coisas assim. Fiquei assustado com a insolência desses homens, mas não perdi a compostura diante da maneira que me tratavam. Mantive a calma e lhes disse que, embora desafiasse todos eles ou qualquer outro homem no mundo a me acusar de qualquer desonestidade, reconhecia que homens muito melhores do que eu eram varridos e carregados para suas covas durante aquele flagelo de Deus. Para responder objetivamente a pergunta deles, o fato é que fui misericordiosamente protegido por aquele grande Deus cujo nome ofendiam e invocavam em vão, praguejando e maldizendo de maneira tão indecente. Disse que acreditava ser poupado especialmente para que, entre outros desígnios da Sua bondade, eu pudesse condená-los pela audaciosa petulância de se comportarem daquela maneira numa época tão terrível, principalmente devido ao sarcasmo e zombaria com um senhor honesto que era um vizinho (pois alguns o conheciam) e que, como viam, estava derrubado pelo sofrimento que a vontade de Deus fez cair sobre sua família. Não consigo lembrar exatamente os gracejos infernais e abomináveis com que reagiram ao que lhes disse; parece que se sentiram provocados pelo fato de eu não ter medo algum de falar livremente com eles. Caso eu conseguisse lembrar exatamente, jamais encheria este relato com qualquer uma das palavras, horrendas imprecações, maldições e expressões vis que, àquela hora da madrugada, até mesmo o pior e mais vulgar homem da rua não empregaria. Naquela época, com exceção de pessoas embrutecidas como estas, os

piores canalhas que pudessem ser encontrados tinham suas mentes aterrorizadas pelas mãos daquele Poder que poderia destruí-los num instante. O pior em toda sua linguagem demoníaca era que não tinham medo de blasfemar contra Deus e conversar feito ateus, achando graça de eu chamar a peste de mão de Deus. Caçoando e ainda rindo da palavra castigo, como se a Providência Divina nada tivesse a ver com a imposição do golpe devastador que nos atingia, diziam que o povo suplicava a Deus quando via o carro transportando os corpos dos mortos só por um fanatismo absurdo e descabido. Dei as respostas que me pareceram apropriadas, mas me pareceram longe de pôr em xeque a maneira horrorosa com que falavam, pois isso os fez injuriar ainda mais. Confesso que me enchi de horror e de um tipo de raiva, indo embora enquanto lhes dizia temer que a mão executora daquele Castigo que contaminara toda a city viesse glorificar Sua vingança sobre eles e sobre todos que estivessem por perto. Receberam todas minhas recriminações com o maior desdém e fizeram a maior gozação possível com todas as brincadeiras infames e insolentes que conseguiram pensar sobre minha pregação, como disseram. Isso realmente me doeu mais do que me enfureceu. Fui embora agradecendo a Deus por não me sentir ofendido, embora tivessem me insultado tanto. Eles continuaram agindo daquela maneira miserável por três ou quatro dias, sempre rindo e galhofando de todos os que se mostrassem religiosos e sérios ou que, de alguma forma, se sentissem tocados pela noção do terrível castigo de Deus sobre nós. Fui informado que zombaram da mesma maneira do bom povo que, apesar do risco de contágio, se reunia na igreja, jejuava e rezava para Deus retirar suas mãos de cima deles. Digo que continuaram desta maneira medonha por três ou quatro dias – acho que não mais que isto – quando um deles, exatamente aquele que perguntou ao pobre homem o que fazia fora de sua tumba, foi atingido pelo Céu com a peste, morrendo da maneira mais deplorável. Resumindo, cada um deles foi carregado para a grande vala que mencionei, antes que ficasse bem cheia, o que não demorou mais do que cerca de duas semanas. Estes homens eram culpados de muitas extravagâncias, algumas das quais chega-se a pensar que a natureza humana tremeria só de imaginá-las. Num tempo de terror geral como o que se abatia sobre nós, insultavam e debochavam de todo sentimento religioso que conseguissem ver no povo, principalmente da fervorosa multidão que se dirigia a um lugar de orações públicas, a fim de implorar misericórdia ao Céu num tempo de tanto sofrimento. Nesta taverna, onde se reuniam podendo ver a porta da igreja, tinham condições privilegiadas para seu divertimento profano e ateu. Isso começou a diminuir um pouco entre eles antes de acontecer o incidente que relatei, porque a epidemia aumentou com tanta violência nesta parte da cidade que as pessoas começaram a sentir medo de vir à igreja, pelo menos com a freqüência habitual. Muitos sacerdotes também estavam mortos, outros foram para o interior. Realmente, era preciso muita coragem e muita fé para um homem não apenas se aventurar a sair pela cidade num momento como aquele, mas ainda se arriscar a ir até a igreja e desempenhar o ofício do sacerdócio para uma congregação onde tinha razões para crer que muitos estavam verdadeiramente contaminados pela peste; e ainda fazer isso todos os dias, ou duas vezes por dia, como em alguns lugares. É verdade que o povo demonstrou uma dedicação extraordinária às práticas religiosas e as portas das igrejas ficavam sempre abertas. As pessoas entravam sempre sozinhas e sentavam-se em bancos separados, rezando para Deus com grande fervor e devoção.

Outros se reuniam em assembléias de cultos, cada um conforme suas crenças particulares lhes guiassem nessas coisas. Todos, indiscriminadamente, eram tema de deboche daqueles homens da taverna, principalmente no começo da epidemia. Parece que muita gente boa de todas as crenças os condenou por ofenderem a religião daquela maneira descarada e imagino que, pouco antes da violenta escalada da epidemia, contiveram muito sua crueldade, só retomada pelo espírito de irreverência no momento em que trouxeram aquele homem. Talvez estivessem possuídos pelo mesmo demônio quando resolvi recriminá-los, embora tenha, inicialmente, feito isso com toda a calma, sensatez e boa educação que pude. Por isso, insultaram-me ainda mais um bom tempo, pensando que eu estava com medo de seu escárnio, mas depois eles descobriram o contrário. Fui para casa bastante magoado e com a mente aflita diante da abominável perversidade daqueles homens, sem duvidar, no entanto, que seriam transformados em horripilantes exemplos da justiça de Deus. Eu encarava aquele tempo terrível como uma temporada especial da vingança divina e Deus, nestas circunstâncias, identificava o legítimo objeto de Seu desagrado de modo mais especial e marcante do que eram outras épocas. Embora acreditasse que muita gente boa sucumbiria – e sucumbiu – na calamidade pública, e que não havia uma regra garantida para saber se o estado eterno de qualquer um seria de uma maneira ou outra diferenciado num tempo de tanta destruição geral, mesmo assim digo que não deixava de ser plausível acreditar que Deus não consideraria dignos de receber Sua misericórdia inimigos tão abertamente declarados, que insultavam Seu nome e Ser, desafiavam Seu flagelo e zombavam de Seu templo e devotos daquele tempo. Não, nem mesmo se Sua misericórdia os considerasse dignos de serem poupados em outros tempos. Aquele era o dia da peste, dia da ira de Deus, e estas palavras surgiram nos meus pensamentos, Jer. V.9: “Não devo castigar por estas coisas? Disse o Senhor: Não deve Minha alma ser vingada de uma nação como esta?” Essas coisas ficaram na minha mente e fui para casa sofrendo e deprimido pelo horror à perversidade daqueles homens, só de pensar que pudesse acontecer algo assim tão cruel, tão brutal e evidentemente imoral e ofensivo a Deus, Seus servidores e Seu templo, daquela maneira e naquela época, quando Ele estava com Sua espada em Sua mão disposto a se vingar não apenas deles, mas de toda a nação. No princípio, de fato, fiquei com um certo ódio deles – embora isto realmente surgisse pela indignação que suas línguas blasfemadoras me geravam, não por qualquer afronta pessoal que me fizessem. Fiquei em dúvida, porém, se meu ressentimento não era todo em função de mim mesmo, pois eles também me ofenderam bastante – quero dizer, pessoalmente – com uma linguagem grosseira. Depois de uma pausa, sentindo o peso da dor no meu espírito, recolhi-me assim que cheguei em casa, mas não dormi aquela noite. Oferecendo a Deus meus mais humildes agradecimentos por minha preservação diante do grande perigo em que estivera, preparei meu espírito com seriedade e toda concentração para rezar por aqueles miseráveis desesperados, pedindo a Deus que os perdoasse, abrisse seus olhos e os castigasse devidamente. Assim, rezando por aqueles que abusaram de mim sem piedade, não apenas cumpri meu dever como também pude examinar detidamente meu coração e concluir com toda satisfação que não tinha qualquer resquício de ressentimento, mesmo que tenham me ofendido de modo particular. Modestamente, recomendo esse método a todos que queiram saber ou ter certeza que distinguem entre o zelo pela honra de Deus e os efeitos de seus ódios e ressentimentos.

Aqui, preciso voltar aos incidentes específicos que vieram a minha memória sobre os tempos da peste, principalmente na época que fechavam casas, no começo da epidemia. Antes da doença se alastrar, as pessoas tinham mais espaço para fazer suas observações do que teriam mais tarde, pois, quando a peste chegou a seus extremos, não houve mais coisas como a comunicação entre as pessoas. Durante o fechamento das casas, como já disse, os vigias sofreram violências. Quanto aos soldados, não havia como encontrá-los: os poucos guardas que o rei tinha, que eram nada perto dos que ainda teria, foram distribuídos entre Oxford junto à corte e quartéis de zonas remotas do país, com exceção de pequenos destacamentos que serviam na torre e em Whitehall, mesmo assim eram muito poucos. Nem tenho certeza se havia algum guarda na torre além dos sentinelas, como os chamavam, que ficavam no portão com capotes e capacetes e eram vinte e quatro, mais os funcionários que cuidavam do paiol, chamados de armeiros. Não havia qualquer possibilidade de se encontrar gente para formar milícias. Mesmo que a Intendência, fosse em Londres ou Middlesex, mandasse tocar os tambores pela cidade convocando voluntários, não acredito que conseguisse formar uma só companhia, quaisquer que fossem suas tarefas e riscos. Isto deixou os vigias ainda menos protegidos e talvez tenha provocado o emprego de maior violência contra eles. Esta menção neste relato é para destacar que a colocação de vigias a fim de impedir que as pessoas saíssem foi, antes de tudo, ineficiente, pois o povo fugia à força ou com artimanhas, quase que com a freqüência que quisesse. Em segundo lugar, porque estes que fugiram eram, em geral, pessoas contaminadas que, no seu desespero, corriam de um lugar para outro sem pensar naqueles que contaminavam. Como eu disse, isso talvez tenha originado o boato de que era natural pessoas infectadas quererem contaminar outras, mas esta afirmação é falsa. Conheci muito bem muitos casos diferentes e poderia fazer uma relação de muita gente boa, devota e piedosa que, uma vez contaminada, se mostrou longe de querer contaminar os outros, a ponto de proibir sua própria família de chegar perto, na esperança de protegê-la, inclusive morrendo sem ver seus parentes mais próximos para não ser o instrumento da doença, expondo-os ao perigo ou contaminando-os. Portanto, se houve casos de gente contaminada que não se preocupava com o mal que fazia aos outros, certamente esses casos surgiram entre aqueles que fugiram com peste de casas que estavam fechadas, movidos por motivos extremos em busca de mantimentos ou de diversão, esforçando-se para esconder seu estado e, assim, faziam-se instrumentos involuntários e se tornavam a principal causa de contágio de outras pessoas ignorantes ou desavisadas. Esta foi uma das razões para que eu acreditasse então, e ainda acredito, que o fechamento à força das casas, restringindo a movimentação, ou melhor, aprisionando pessoas em suas próprias casas, como disse antes, tinha pouca ou nenhuma utilidade. Ao contrário, sou de opinião que isto foi prejudicial, levando aquelas pessoas ao desespero de vagar pelas ruas contaminadas com a peste, quando teriam, noutras condições, morrido em suas camas. Lembro-me de um cidadão que veio pela estrada de Islington, fugindo de sua casa em Aldersgate Street ou nas redondezas. Tentou se hospedar em Angel Inn, depois em White Horse, mas não foi aceito nessas duas pensões ainda hoje conhecidas pelos mesmos nomes. Então, foi até o Pied Bull, um hotel que também continua com o mesmo nome. Pediu alojamento para uma única noite, fingindo que viajava para Lincolnshire e garantindo que estava com muita saúde e sem a doença, que na época ainda não tinha avançado muito naquela direção.

Disseram para ele que não tinham quartos vagos, pois alguns criadores de gado estavam para chegar no dia seguinte com o rebanho, mas havia uma cama no sótão que poderiam ceder por uma noite. Assim, caso aceitasse aquelas acomodações, poderia ficar lá, o que ele fez. Uma criada, então, levou-o com uma vela para ver o quarto. Ele estava muito bem vestido e tinha aparência de uma pessoa não habituada a dormir num sótão. Quando chegou no quarto, deu um suspiro profundo e disse para a criada: “Poucas vezes fiquei num lugar como este”. A criada, no entanto, garantiu que não havia coisa melhor. “Bem – disse o homem –, tenho que me conformar. Estamos num tempo terrível e é só por uma noite.” Depois, sentou-se na beirada da cama e acho que pediu à criada para trazer uma caneca de cerveja quente. A criada foi buscar a cerveja, mas ocupou-se com outra tarefa urgente na casa e não voltou a ver o hóspede, esquecendo-se da sua cerveja. Na manhã seguinte, notando a ausência do senhor, alguém da casa perguntou à criada que o levara lá em cima o que acontecera com o homem. Ela disse: “Ai de mim! Esqueci completamente. Ele me pediu que levasse um pouco de cerveja quente e eu esqueci”. Diante disto, outra pessoa, e não a criada, foi enviada para vê-lo. Ao entrar no quarto, encontrou-o rígido e morto, quase frio, atravessado na cama. Estava sem roupas, a mandíbula caída, olhos abertos de modo assustador, a colcha da cama presa em uma de suas mãos, sendo evidente que morrera logo depois que a criada o deixara. Era possível que, caso trouxesse a cerveja, já o encontrasse morto, poucos minutos depois de sentar-se na cama. Como qualquer um pode imaginar, o alarme foi grande na casa, pois ela estivera livre da peste até aquela tragédia que, trazendo a doença para dentro de casa, imediatamente espalhou-a para as outras casas da redondeza. Não me lembro quantos morreram naquela casa, mas acho que a criada em seguida ficou doente de medo, assim como muitos outros. Enquanto na semana anterior só dois tinham morrido de peste em Islington, morreram dezessete na semana seguinte, sendo quatorze de peste. Isto foi entre 11 e 18 de julho. Houve um expediente a que recorreram algumas e não poucas famílias quando suas casas estavam contaminadas, que foi este: as famílias que fugiram para o interior e conseguiram se refugiar entre amigos logo no surgimento da doença muitas vezes deixaram alguém ou algum vizinho ou parente com o compromisso de cuidar de suas casas e da segurança de seus bens. Algumas casas foram totalmente trancadas com cadeados nas portas e tampos pregados nas janelas e entradas, sendo que somente os funcionários da paróquia ou os vigias comuns podiam inspecioná-las. Mas estas eram poucas. Pensava-se não haver menos de dez mil casas abandonadas pelos moradores na city e nos subúrbios, incluindo as paróquias da periferia, Surrey e a margem do rio que chamam de Southwark. Além dessas, havia os inquilinos e outras pessoas que abandonavam suas famílias. Portanto, calculava-se que cerca de duzentas mil pessoas, no total, tinham fugido. Mais adiante voltarei a falar nisso. Agora, refiro-me a outro aspecto, ou seja, o que era regra entre aqueles que tinham duas casas sob sua responsabilidade. Se alguém ficasse doente numa casa, antes dos inspetores ou qualquer outro funcionário ficar sabendo, o chefe da família enviava todos os demais, fossem criados ou crianças, para a tal outra casa sob seus cuidados. Então informava o inspetor sobre a pessoa doente e contratava uma ou mais enfermeiras, arranjando outra pessoa para ficar ali (o que muitas faziam por dinheiro), cuidando da casa no caso do doente morrer. Esta foi, em muitos casos, a salvação de famílias inteiras que teriam inevitavelmente perecido, caso permanecessem encerradas junto com o doente. Por outro lado, este foi outro inconveniente do fechamento das casas. O temor e o terror de serem confinados em suas casas fizeram com que muitos fugissem com o resto de suas famílias que, embora não fosse

publicamente conhecido e não parecessem doentes, já traziam a peste consigo. Estes, desfrutando de total liberdade de locomoção, sendo obrigados a esconder seu estado, ou quem sabe sem ter consciência dele, passavam a peste para outros, espalhando a epidemia de uma maneira pavorosa, como explicarei melhor em seguida. Aqui, sinto-me habilitado a fazer uma ou duas observações pessoais que, posteriormente, poderão ser de serventia àqueles em cujas mãos este relato chegar, caso venham a enfrentar uma epidemia semelhante. 1) Geralmente, a epidemia entrou nas casas dos cidadãos através de seus criados, a quem eram obrigados a enviar para cima e para baixo pelas ruas, devido às suas necessidades. Quer dizer, para trazer alimentos e remédios, ir às padarias, às cervejarias, lojas etc. Andando pelas ruas e lojas, mercados e lugares semelhantes, era impossível que não se encontrassem, de uma maneira ou outra, com gente contaminada que transmitia a doença com seu hálito contaminado para os que depois a traziam para a casa das famílias a que pertenciam. 2) Foi um grande erro uma cidade tão grande manter apenas um hospital de pestilentos. Se em vez de um – depois de Bunhill Fields, onde podiam receber, no máximo, duzentas ou trezentas pessoas –, digo que, se em vez de apenas aquele existissem vários hospitais para pestilentos, cada um com capacidade para internar mil pessoas sem que ficassem dois na mesma cama ou duas camas no mesmo quarto; e se cada chefe de família, assim que qualquer criado ficasse doente em sua casa, fosse obrigado a enviá-lo para o hospital de pestilentos mais próximo, caso estivessem de acordo e muitos estavam; e se os inspetores fizessem o mesmo com os pobres que contraíssem a doença, digo que, se isso fosse feito só quando as pessoas concordassem (e não de outro modo) e se as casas não fossem fechadas, estou convencido e sempre fui desta opinião, que muitos, mas muitos milhares não teriam morrido. Podia-se observar e poderia dar vários exemplos só no meu círculo de conhecidos, onde um criado contraindo a doença e a família tendo tempo para mandá-lo embora ou para se retirar da casa deixando o doente, conforme descrevi antes, todos se salvaram. Onde quer que uma ou mais pessoas da família adoeceram e a casa foi fechada, toda a família morreu e os carregadores foram obrigados a entrar para recolher os mortos, já que não havia ninguém capaz de fazê-lo, pelo menos não havia quem quisesse fazê-lo. 3) Para mim, isso encerra a questão e a calamidade se espalhou por contágio, ou seja, por certos vapores e fumos que os médicos chamam de eflúvios, pela respiração e pelo suor ou pelo mau cheiro das feridas dos doentes. Ou, quem sabe, também por outros meios, até mesmo acima do alcance dos próprios médicos, com os eflúvios atingindo os sãos que chegassem a determinada distância de um doente e penetrando imediatamente nas partes vitais das pessoas ditas sadias, pondo seu sangue em imediata fermentação e agitando seus espíritos ao nível de se perceber que estavam perturbados. Assim, aquelas pessoas recémcontaminadas transmitiam a doença para outras da mesma maneira. Disto, darei alguns exemplos que bastarão para convencer todos que refletirem seriamente. Não é sem espanto que, agora que a peste passou, encontro pessoas falando dela como se fosse um raio enviado diretamente do Céu sem a atuação de meios, orientada para atingir esta ou aquela pessoa específica e não outras – com pesar, considero isto decorrência de manifesta ignorância e preconceito; assim como a opinião de outros que falavam na peste ser transmitida somente pelo ar, através de um grande número de insetos e seres invisíveis que entravam no corpo pela respiração ou pelos poros com o ar e que lá dentro geravam ou liberavam os mais ativos venenos ou ovos e ovae venenosos, que se misturavam com o sangue e assim contaminavam o corpo: uma explicação cheia de erudita simplicidade, divulgada como fato pela experiência universal. Direi mais sobre o caso no seu momento.

Aqui, devo destacar melhor que nada foi mais fatal para os habitantes desta cidade que a suprema negligência das próprias pessoas que, durante o longo período de notícias e advertências sobre a epidemia, não tomaram precauções contra ela, armazenando mantimentos ou outras necessidades, com as quais pudessem viver recolhidas dentro de suas próprias casas, como indiquei que outros fizeram e foram, em grande parte, preservados por essa precaução. As pessoas não o fizeram e, depois de ficarem um pouco insensíveis, também não se acanhavam mais como no princípio para conversar com outras que estavam realmente contaminadas; não, embora já soubessem disso. Reconheço que fui um daqueles insensatos que armazenaram tão poucas provisões que meus criados eram forçados a sair de casa para comprar qualquer ninharia de um e de meio pêni, exatamente como antes de começar a peste, até a experiência revelar minha loucura. Comecei a ser mais inteligente tão tarde que mal tive tempo para armazenar o suficiente para nossas necessidades básicas de um mês. Como família, tinha somente uma velha que arrumava a casa, uma criada e dois aprendizes. A peste começou a se alastrar entre nós e eu tive minhas reflexões sombrias sobre a conduta a seguir e como deveria agir. As várias situações horripilantes que apareciam por toda parte enquanto andava pelas ruas enchiam minha mente de pavor, de medo da doença, o que era bastante terrível em si e em alguns mais do que em outros. Os inchaços que geralmente surgiam no pescoço ou na virilha, quando endureciam e não arrebentavam mais, tornavam-se tão doloridos que eram iguais à mais sofisticada tortura. Alguns, incapazes de suportar o tormento, atiravam-se pelas janelas, davam-se tiros ou se eliminavam de qualquer outra maneira. Vi muitas cenas medonhas desse tipo. Outros, incapazes de se controlar, davam vazão a sua dor com gemidos incessantes. Conforme caminhávamos pelas ruas, ouvíamos gritos tão altos e sofridos de cortar o coração só de pensar neles, principalmente levando em consideração que o mesmo flagelo terrível poderia atingir a nós mesmos a qualquer instante. Não posso negar que, naquele momento, comecei a duvidar de minhas resoluções. Meu coração falhava muito e me arrependi, irritado com minha imprudência. Quando estava fora de casa e via coisas tão terríveis como as que mencionei, digo que me arrependia de minha imprudência, arriscando-me a permanecer na cidade. Seguidamente, desejava não ter me decidido a ficar e queria ter ido embora com meu irmão e sua família. Aterrorizado por essas cenas medonhas, às vezes me recolhia em casa e decidia nunca mais sair. Mantinha essa decisão por três ou quatro dias, que passava no mais profundo agradecimento pela minha preservação e pela preservação dos que tinha em família. Constantemente, confessei meus pecados, invocando a Deus todos os dias e oferecendo-me a Ele em jejuns, penitências e reflexões. Nesses intervalos, dediquei-me a ler livros e à anotação de minhas memórias do que me acontecia todos os dias, a partir das quais, posteriormente, elaborei a maior parte deste trabalho, no que se refere a minhas observações fora de casa. Guardo as reflexões pessoais que escrevi para uso privado e desejo que nunca venham a público, seja em que relato for. Também escrevi reflexões sobre temas divinos, conforme me ocorreram naquele tempo, sendo úteis para mim, mas não indicadas para qualquer outro e por isso nada mais direi sobre elas. Tinha um excelente amigo, um médico chamado Heath, a quem visitava freqüentemente naqueles tempos terríveis e a quem devo conselhos e sou muito agradecido pelas várias coisas que me receitou para tomar e manter dentro da boca enquanto andasse pelas ruas, a fim de evitar o contágio quando saísse, como ele descobriu que eu fazia

freqüentemente. Ele também vinha me ver com freqüência e era tão bom cristão quanto bom médico. Sua conversa agradável foi um grande consolo para mim nos piores momentos daquele tempo terrível. No princípio de agosto, a peste se alastrou terrível e violentamente no lugar onde eu vivia e o dr. Heath, vindo me visitar e vendo que eu me arriscava com freqüência pelas ruas, insistiu vigorosamente para que me encerrasse em casa com os meus, não permitisse que ninguém saísse, fechando rapidamente todas as janelas com venezianas e cortinas e nunca abri-las. Antes disso, soltar muita fumaça bem densa na sala com portas e janelas que tivessem que ser abertas, queimando resina de pinho, enxofre, pólvora e coisas parecidas. Fizemos isso por algum tempo, mas como não tínhamos armazenado mantimentos para uma reclusão assim, tornou-se impossível ficarmos somente dentro de casa. Mesmo sendo tão tarde, tentei fazer alguma coisa nesse sentido. Primeiro, como tinha condições de fazer cerveja e pão, saí e comprei dois sacos de farinha e, como tinha um forno, durante várias semanas cozinhamos nosso próprio pão. Também comprei malte e levedei toda a cerveja que cabia nos barris de que dispunha, parecendo ser suficientes para manter minha casa por cinco ou seis semanas. Também estaquei certa quantidade de manteiga salgada e queijo de Cheshire. Não tinha carne fresca e a peste atingia tão violentamente os açougues e matadouros no outro lado da nossa rua, onde é sabido que muitos se cortam, que não era muito aconselhável atravessar a rua ou chegar perto deles. Aqui, devo destacar mais uma vez que esta necessidade de sair de nossas casas para comprar mantimentos foi, em grande parte, a ruína de toda a cidade, pois foi nessas ocasiões que as pessoas contraíram a doença uma das outras e muitas vezes até os próprios alimentos estavam contaminados. Tenho, pelo menos, boas razões para acreditar nisto e, portanto, não posso repetir convencido o que sei que foi dito e redito com grande segurança sobre o pessoal do mercado e aqueles que traziam mantimentos para a cidade não estarem contaminados. Tenho certeza que os açougues de Whitechapel, onde a maior parte da carne fresca era cortada, estavam terrivelmente contaminados e com tal intensidade que poucas mercearias se mantiveram abertas, sendo que o resto da carne fresca era abatido em Mile End ou naquela direção, sendo transportada a cavalo para o mercado. Os pobres, entretanto, não tinham como armazenar alimentos e precisavam ir ao mercado fazer compras, enquanto outros enviavam seus criados ou suas crianças. Por ser uma necessidade diária, isto fazia muita gente doente vir até o mercado e muitos dos que chegaram lá com saúde, trouxeram consigo a morte para dentro de suas casas. É verdade que o povo tomava todas as precauções possíveis. Quando alguém comprava um pedaço de carne no mercado, não o recolhia das mãos do açougueiro, mas tirava pessoalmente a carne do gancho. Por outro lado, o açougueiro não tocava no dinheiro, que era colocado num pote cheio de vinagre mantido só para isso. Os compradores sempre traziam dinheiro trocado para fazer o preço exato e, assim, não receber troco. Em suas mãos, traziam frascos de cheiro e perfumes e serviam-se de todos os recursos disponíveis. Os pobres, porém, não podiam sequer fazer estas coisas e iam às compras correndo todos os riscos. Todos os dias ouvíamos inumeráveis histórias trágicas sobre isso. Às vezes, um homem ou uma mulher caía morto no próprio mercado, já que muitas pessoas tinham a peste e não o sabiam até que a gangrena interior atingisse os órgãos vitais, quando morriam em poucos minutos. Isso fez com que muitos, seguidamente, morressem de repente pelas ruas, sem qualquer aviso. Outros tinham tempo para ir até a banca ou tenda mais próxima ou até qualquer pórtico, apenas sentar-se e morrer, como já disse antes.

Estas cenas eram tão freqüentes nas ruas que, quando a peste se tornava muito violenta de um lado, dificilmente havia como passar pelas ruas, já que os corpos de diversos mortos ficavam caídos no chão em qualquer lugar. Por outro lado, foi notório que, embora no princípio as pessoas que viessem passando parassem e chamassem os vizinhos para sair em tais ocasiões, mesmo assim, mais tarde ninguém prestava a menor atenção nelas. Se a qualquer momento encontrássemos um cadáver no chão, atravessaríamos a rua e não chegaríamos perto dele. Se fosse num beco ou passagem estreita, voltaríamos e procuraríamos outro caminho qualquer para chegar no negócio que estivéssemos atrás. Naqueles casos, o cadáver sempre ficava abandonado até os funcionários serem avisados e virem buscá-lo ou até a noite, quando os carregadores dos carros dos mortos o recolheriam e o levariam embora. Aquelas criaturas sem medo que desempenhavam esta função não deixavam de revistar seus bolsos e algumas vezes retirar suas roupas, se os cadáveres estivessem bem-vestidos, como às vezes estavam, pegando para si o que encontrassem. Retornando aos mercados. Os açougueiros sempre tomavam o cuidado de ter por perto funcionários para, caso alguém morresse no mercado, buscar o corpo numa padiola, levando-o para o cemitério mais próximo. Isso era tão freqüente que esses casos nem entravam no registro semanal de óbitos como “encontrado morto nas ruas ou nos campos”, mas ficavam dentro da indicação geral da grande epidemia. Nessa época, o furor da peste cresceu a tal ponto que até os mercados ficaram magramente fornidos de mantimentos e pouco freqüentados por compradores, em comparação com o que eram antes. O Lorde Prefeito obrigou os camponeses que traziam alimentos a pararem nas ruas de entrada da cidade, onde vendiam o que traziam e imediatamente iam embora. Isso estimulou muito os camponeses a agirem assim, vendendo seus produtos logo na entrada da cidade e mesmo nos campos, principalmente nos campos adiante de Whitechappel, em Spittlefields; também em St George’s Fields em Southwark, em Bunhill Fields e num grande descampado chamado Wood’s Close, perto de Islington. O Lorde Prefeito, os vereadores e autoridades enviavam seus funcionários e criados até lá para fazer as compras de suas famílias, enquanto eles mesmos permaneciam o máximo possível dentro de casa, como também faziam muitas outras pessoas. Depois da introdução desse método, os camponeses passaram a vir com grande entusiasmo, trazendo todos os tipos de mercadorias e muito raramente sofrendo qualquer mal, o que, suponho, também ajudou aquela história de serem miraculosamente poupados. Como disse, para minha pequena família, eu tinha armazenado pão, manteiga, queijo e cerveja, e segui o conselho do meu amigo e médico, trancando-me com os meus e decidido a suportar a privação de viver alguns meses sem carne fresca, em vez de comprála arriscando nossas vidas. Embora tenha confinado os da casa, não consegui controlar minha curiosidade, insatisfeita por ficar totalmente encerrado. Não consegui me segurar e mesmo voltando geralmente aterrorizado e com medo continuei saindo, mas é verdade que não tão freqüentemente como no começo. Eu tinha pequenas obrigações, como ir à casa de meu irmão, que ficava na paróquia de Coleman Street e que ele deixara aos meus cuidados. No início, ia lá diariamente, mas depois, só uma ou duas vezes por semana. Nessas caminhadas, surgiram diante dos meus olhos algumas cenas horripilantes, principalmente de pessoas caindo mortas pelas ruas; gemidos e lamentos de mulheres que, no seu desespero, deixavam abertas as janelas de seus quartos e choravam de uma maneira

surpreendentemente pavorosa. É impossível descrever a variedade de formas com que a angústia dos pobres se expressava. Passando por Tokenhouse Yard, em Lothbury, o batente de uma janela logo acima da minha cabeça abriu-se de repente e uma mulher deu três ganidos assustadores e gritou “oh morte, morte, morte” do jeito mais inimitável, paralisando-me de horror com meu sangue gelado. Não vi ninguém na rua toda, nem havia outra janela aberta, pois as pessoas não tinham mais qualquer curiosidade sobre casos como este, nem podiam ajudar umas às outras. Então, segui em frente para entrar na Bell Alley. Em Bell Alley, no lado direito do beco, logo ouvi um grito ainda mais terrível do que aqueles, embora não viesse diretamente de uma janela aberta. Toda uma família sentira um pavor terrível e eu pude escutar crianças e mulheres correrem tresloucadas gritando pelos quartos, quando abriram a janela de uma água-furtada e alguém gritou do outro lado do beco, perguntando: “O que está acontecendo?” Diante disso, alguém respondeu da primeira janela: “Oh Deus! Meu patrão se enforcou!” O outro voltou a perguntar: “Ele já morreu?” Da primeira janela, responderam: “Ai, ai, está bem morto, bem morto e frio!” O homem era um mercador, vereador adjunto e muito rico. Não me preocupo em dizer seu nome, embora o conhecesse, mas isso seria desagradável para a família, que agora está prosperando novamente. Este foi somente um e é difícil acreditar nos casos tenebrosos que aconteciam diariamente em certas famílias. Pessoas que, no auge da peste ou no tormento verdadeiramente intolerável dos seus inchaços, perdiam o autocontrole e, delirantes e enlouquecidas, agiam muitas vezes com violência contra si mesmas, atirando-se pelas janelas, baleando-se etc. Mãos dementes matando seus próprios filhos, alguns morrendo de pura dor da angústia, de puro medo e susto, sem qualquer tipo de infecção, outros apavorados até o idiotismo em loucos devaneios; muitos de puro desespero e alienação, outros em melancólica loucura. A dor dos inchaços era particularmente forte e intolerável para alguns. Os médicos e cirurgiões foram considerados torturadores até a morte de muitas pobres criaturas. Em alguns, os inchaços endureciam e eles aplicavam violentos emplastros repuxantes e cataplasmas para rompê-los. Se isso não acontecia, cortavam e sacrificavam seus pacientes de uma maneira terrível. Em certas pessoas, os inchaços ficavam duros, em parte por força da doença, em parte por serem tão violentamente repuxados. Ficavam tão duros que nenhum instrumento conseguia cortá-los, então os queimavam com corrosivos e assim morreram muitos, enlouquecidos pelo tormento, às vezes durante a própria operação. Nessa agonia, por falta de ajuda ou de alguém que cuidasse para que permanecessem em suas camas, alguns usavam suas violentas mãos contra si mesmos, como acima. Alguns fugiam pelas ruas, às vezes nus, correndo diretamente para o rio e, se não fossem impedidos pelo vigia ou outros policiais, jogavam-se na água onde quer que a encontrassem. Seguidamente, os gritos e gemidos daqueles assim atormentados penetravam no fundo da minha alma; mas, entre as duas, esta era considerada a forma mais promissora da epidemia toda, pois se esses inchaços supurassem, sendo perfurados e esvaziados ou, como diziam os médicos, digeridos, geralmente o paciente se recuperava. Já os que eram fulminados pela morte no início da doença, no momento em que apareciam os sintomas, como a filha da tal senhora, estes muitas vezes continuavam indiferentes e sem problemas até pouco antes de morrer e alguns até o instante em que caíam no chão, como freqüentemente é o caso nas apoplexias e epilepsias. Estes ficavam muito mal de repente, correndo até um banco ou um balcão ou qualquer outro lugar conveniente que aparecesse.

Sentavam-se, ficavam pálidos e morriam. Este tipo de morte era muito parecida com a morte natural dos que morrem desacordados, indo embora num sonho. Até a gangrena espalhar-se por todo o corpo, os que morriam dessa maneira pouco notavam que estavam totalmente contaminados. Nem os próprios médicos tinham certeza sobre seu estado até abrirem seus peitos ou outras partes do corpo e verem os sinais. Nessa época, contavam-nos muitas histórias pavorosas de enfermeiras e vigias que cuidavam de gente moribunda. Ou seja, enfermeiras contratadas para cuidar de pessoas contaminadas que as tratavam barbaramente, deixando-as com fome, sufocando-as ou apressando suas mortes de outras maneiras cruéis, isto quer dizer, assassinando-as. Os vigias postos na guarda de casas fechadas onde permanecera apenas uma pessoa, provavelmente doente numa cama, invadiam estas casas e matavam os doentes para jogálos em seguida no carro dos mortos! Assim, eles iam ainda quentes para a cova. Não posso negar que foram cometidos assassinatos como estes. Acho que dois ou três homens chegaram a ser mandados para a cadeia por isso, mas morreram antes de ser julgados. Ouvi dizer que outros três, em diferentes ocasiões, foram executados por assassinatos desse tipo. Desde então, alguns sentem prazer em afirmar que isso era um crime corriqueiro, mas devo dizer que não acredito em nada disso, nem isso me parece muito racional, quando as pessoas estavam tão fracas que não eram capazes de se defender, já que raramente se recuperavam e não havia razão para cometer um assassinato, pelo menos nada igual a isso, quando estavam convencidos de que as pessoas morreriam em pouco tempo, nem poderiam viver. Não nego que se cometeram muitos roubos e atos perversos naquele tempo terrível. A ganância era tão poderosa sobre alguns, que se expunham a qualquer risco para roubar e saquear. Nas casas onde toda a família e moradores estavam completamente mortos, eles entravam de qualquer jeito, sem se preocupar com o perigo do contágio, retirando inclusive as roupas dos cadáveres e as roupas das camas onde os mortos estavam deitados. Suponho que este tenha sido o caso de uma família em Houndsditch. Depois que o resto da família foi recolhido pelo carro dos mortos, um homem e sua filha foram encontrados no chão, totalmente nus e mortos. Não havia roupas de cama, donde se conclui que foram atacados por ladrões que roubaram e foram embora. É preciso observar que as mulheres, durante toda a calamidade, foram as mais impetuosas, destemidas e insensatas criaturas. Como muitas trabalhavam como enfermeiras, atendendo os doentes, elas cometeram grande quantidade de pequenos roubos nas casas que as contrataram. Algumas foram chicoteadas em público por isso, mas talvez devessem ser enforcadas como exemplo, já que muitas casas foram roubadas nessas circunstâncias, até os funcionários da paróquia serem encarregados de recomendar enfermeiras para os doentes. Eles sempre levavam em consideração quem estavam indicando, de modo que pudessem chamá-las para prestar contas, caso ocorresse algum abuso na casa onde estivessem colocadas. Estes roubos incluíam principalmente vestuário, linho, jóias ou dinheiro que encontravam quando a pessoa a seus cuidados morria. Não era uma pilhagem geral das casas. Posso contar o caso de uma destas enfermeiras que, muitos anos depois, já no leito da morte, confessou com o maior horror os roubos que cometeu enquanto trabalhava, através dos quais ficou muito rica. Assim como nos assassinatos, não encontro qualquer prova dos fatos divulgados, com exceção dos acima citados. É verdade que me falaram de uma enfermeira que, num lugar qualquer, jogou um pano molhado na face de um paciente moribundo que atendia, acabando com sua vida, que

já estava no fim. Outra sufocou uma jovem a quem cuidava, que já estava perdendo os sentidos e terminaria morrendo por si. Algumas matavam dando alguma coisa aos pacientes, outras faziam algo diferente e havia as que simplesmente os matavam de fome, não lhes dando absolutamente nada. Estas histórias sempre tinham dois elementos suspeitos que me levavam a fazer pouco caso delas, encarando-as como meras histórias com que as pessoas continuamente assustavam umas às outras. Primeiro, o fato de, quem quer que as contasse, situar a cena lá no fim da cidade, um lugar oposto ou muito distante daquele onde se ouvia contar o caso. Se contassem a história em Whitechapel, tinha acontecido em St Giles, ou Westminster ou Holborn ou naquela parte da cidade. Se a contassem naquele lado da cidade, então tinha acontecido em Whitechapel ou nas Minories ou perto da paróquia de Cripplegate. Contada na city, tinha acontecido em Southwark, e contada em Southwark, acontecera na city e assim por diante. Em segundo lugar, em qualquer zona que se ouvisse a história, os detalhes eram sempre os mesmos, principalmente cobrir a face do moribundo com um trapo molhado e dobrado e sufocar uma jovem. Assim, fica evidente, pelo menos na minha opinião, que havia mais fantasia do que verdade nessas coisas. Não posso negar, entretanto, que isso influenciou um pouco a população, principalmente porque, como disse antes, as pessoas passaram a ser mais cautelosas com quem levavam para dentro de casa e com aquelas a quem confiavam suas vidas. Sempre que possível, exigiam recomendações e, caso não fossem suficientes, consultavam os funcionários da paróquia. Aqui, mais uma vez, destaca-se a miséria que aqueles tempos impunham aos pobres contaminados que não tinham alimentos nem remédios, nem médicos ou farmacêuticos para tratá-los, muito menos enfermeiras para cuidá-los. Muitos morreram nas janelas, gritando por socorro e mesmo por comida da maneira mais infeliz e deplorável. É preciso acrescentar que todos os casos de pessoas ou famílias como estas encaminhados ao Lorde Prefeito foram socorridos. É verdade que em algumas casas as pessoas não eram assim tão pobres e puderam mandar embora suas esposas e crianças, demitindo qualquer empregado que tivessem – digo que é verdade que, para reduzir os gastos, muitos destes se encerraram lá dentro, e, sem ajuda de ninguém, morreram sozinhos. Um vizinho meu conhecido, tendo por receber um dinheiro que emprestara ao dono de uma loja em Whitecross Street ou ali perto, mandou seu aprendiz, um jovem com cerca de dezoito anos de idade, tentar conseguir o dinheiro. Ele chegou diante da porta que estava trancada e bateu com bastante força. Achou que alguém tinha respondido lá de dentro, mas não tinha certeza e esperou. Bateu mais uma vez e depois uma terceira vez, quando ouviu alguém descendo as escadas. Finalmente, o dono da casa apareceu na porta. Vestia calções ou ceroulas, um colete de flanela amarelo, sem meias e de chinelos, um gorro branco na cabeça e, como disse o jovem, “a morte na face”. Quando abriu a porta, disse: “Para que vens me perturbar desta maneira?” O rapaz respondeu um pouco assustado: “Venho da parte de fulano de tal. Meu patrão me mandou buscar um dinheiro que tu sabes qual é”. “Muito bem, menino”, continuou o fantasma vivo: “No caminho, passa na Igreja de Cripplegate e pede para tocarem os sinos.” Com estas palavras, voltou a fechar a porta, subiu as escadas outra vez e morreu no mesmo dia, quem sabe na mesma hora. Isto, o próprio rapaz me contou e tenho boas razões para acreditar nele. Aconteceu quando a peste ainda não tinha chegado com toda força. Acho que foi em

junho, mais perto do fim do mês. Certamente foi antes de surgirem os carros dos mortos, quando ainda havia a cerimônia de tocar os sinos pelo morto que, mais do que certamente, era daquela paróquia. Pelo menos até o mês de julho, pois no dia 25 de julho, mais de 550 morreram lá em uma semana. Então não puderam mais enterrar formalmente os mortos, ricos ou pobres. Mencionei antes que, não obstante esta terrível calamidade, a quantidade de ladrões era enorme em todas as ocasiões, onde quer que encontrassem uma vítima. Geralmente eram mulheres. Isto aconteceu certa manhã, perto das onze horas, quando eu chegava na casa de meu irmão na paróquia de Coleman Street, onde ia seguido ver se tudo estava seguro. A casa de meu irmão tinha um pequeno pátio na frente, com um muro de tijolos e um portão. No lado de dentro, vários galpões onde estavam guardadas suas mercadorias dos mais diversos gêneros. Num desses depósitos, havia muitas caixas com chapéus de copa alta para mulheres, que vieram de fora do país e, imagino, eram para exportação. Para onde, não sei. Fiquei surpreso quando cheguei perto do portão da casa de meu irmão, que dava para um lugar chamado Swan Alley, e encontrei três ou quatro mulheres com chapéus de copa alta na cabeça. Depois me dei conta que uma delas, senão outras, tinha em suas mãos alguns chapéus daquele tipo. Como não as vi saírem da casa de meu irmão e sem saber que ele tinha aquela mercadoria em depósito, não me dispus a dizer coisa alguma para as mulheres. Atravessei a rua para evitá-las, como era costume na época, por medo da peste. Mas ainda estava perto do portão quando encontrei outra mulher com mais chapéus, saindo pelo portão. “Que negócio é esse, minha senhora?”, eu disse, “estavas lá dentro?” “Tem mais gente lá”, ela disse, “não fiz nada que as outras não fizeram.” Tinha pressa para chegar no portão e não disse nada para a mulher, que foi embora. Quando cheguei no portão, vi outras duas atravessando o pátio, também trazendo chapéus em suas cabeças e embaixo dos braços. Atirei o portão para trás e, como tinha fechadura de mola, fechou-se sozinho. Voltei-me para as mulheres e disse: “Francamente! O que estais fazendo aqui?”, e me joguei sobre os chapéus, tirando-os de suas mãos. Uma que, confesso, não parecia uma ladra, disse: “É verdade, estamos erradas, mas nos falaram que eram mercadorias sem dono. Pegue-as de volta, por favor e vá em frente porque tem mais clientes como nós”. Ela chorou e olhou pedindo perdão. Assim, tirei os chapéus que tinham e abri o portão, empurrando-as para fora. Realmente senti pena das mulheres. Quando olhei dentro do depósito, como ela indicou, havia mais seis ou sete, todas mulheres, experimentando chapéus tão tranqüilas e despreocupadas como se estivessem comprando com seu dinheiro numa chapelaria. Assustei-me não apenas com a visão de tantas ladras, mas com as circunstâncias da cena. Seria obrigado a me aproximar de tanta gente, depois de várias semanas sendo tão cuidadoso comigo mesmo que atravessava para me afastar de qualquer pessoa que encontrasse pela rua. Elas também se assustaram, só que de outro modo. Todas me disseram que eram vizinhas e ouviram dizer que qualquer um podia pegar os chapéus, pois eram mercadorias de ninguém e coisas assim. No princípio, falei grosso, voltei até o portão e retirei a chave, de forma que ficaram presas. Ameacei deixar todas elas trancadas no depósito e ir entregálas para a polícia do Lorde Prefeito. Imploraram ardorosamente, protestaram dizendo que o portão estava aberto e que a porta do depósito também estava aberta e que foram arrombados por alguém que esperava

encontrar mercadorias de grande valor. De fato, era plausível acreditar nisso, porque a fechadura estava quebrada e o cadeado que trancava a porta pelo lado de fora também estava aberto, mas não tinham desaparecido muitos chapéus. No fim, achei que não era uma época para ser cruel e rigoroso. Além disso, necessariamente seria obrigado a ir a muitos lugares, e muitas pessoas viriam a mim e eu teria que procurar outras cujo estado de saúde eu desconhecia. Também porque, naquele momento, a peste estava tão forte que morriam quatro mil por semana. De modo que, para mostrar minha indignação ou procurar fazer justiça com as mercadorias de meu irmão, poderia perder minha própria vida. Contentei-me em recolher o nome e o lugar onde algumas delas viviam. De fato, todas moravam pela vizinhança e ameacei-as com meu irmão, que deveria chamá-las para prestar contas disso assim que ele retornasse para sua casa. Então, conversei com elas noutro tom e perguntei como podiam fazer coisas como aquela num tempo de tamanha calamidade geral e, como estávamos, diante do mais terrível flagelo de Deus, com a peste nas suas portas e, quem sabe, nas suas próprias casas; elas não sabiam se dali a poucas horas o carro dos mortos não iria parar diante de suas portas e levar todos juntos para suas tumbas. Não pude perceber se minha pregação teve grande efeito sobre elas naquele momento, até surgirem dois homens da vizinhança que ouviram falar da desordem e, como conheciam meu irmão porque os dois já tinham dependido da família dele, vieram em meu auxílio. Como disse, eram vizinhos e na hora reconheceram três das mulheres e me disseram quem eram e onde viviam. Pareceu-me que tinham dito a verdade anteriormente. Isto me traz mais lembranças desses dois homens. O nome de um deles era John Hayward, que naquela época era auxiliar de sacristão na paróquia de St Stephen, Coleman Street. O auxiliar de sacristão, na época, era aquele que cavava sepulturas e carregava os mortos. Este homem transportava ou ajudava a transportar até as sepulturas todos os mortos enterrados naquela grande paróquia, enquanto ainda eram enterrados formalmente. Quando os enterros desse tipo foram suspensos, ele passou a sair com o carro dos mortos, tocando o sino à procura de cadáveres nas casas que os tivessem, carregando muitos corpos para fora de quartos e casas. Aquela paróquia era e ainda é muito diferente de todas as paróquias de Londres pelo grande número de alamedas e ruelas muito compridas, nas quais nenhum carro consegue passar. Isto o obrigava a ir buscar e carregar os cadáveres por um longo caminho. Destas alamedas, ainda hoje restam exemplos, como White’s Alley, Cross Key Court, Swan Alley, Bell Alley, White Horse Alley e muitas outras. Os carregadores as percorriam com um tipo de carrinho de mão onde jogavam os corpos, trazendo-os para a carroça. John Hayward fez este serviço sem nunca contrair a doença e viveu mais cerca de vinte anos depois, ainda sendo sacristão da paróquia na época de sua morte. Sua esposa também foi enfermeira de gente contaminada e cuidou de muitos dos que morreram na paróquia, sendo recomendada pelos funcionários por sua honestidade. Ela também nunca se contaminou. Ele nunca usou qualquer preventivo contra a doença, a não ser um pouco de alho, arruda e fumo de tabaco na boca. Ouvi isso da sua própria boca. A receita de sua mulher era lavar a cabeça com vinagre. Também esborrifava vinagre no seu xale e mantinha um lenço molhado na boca. É preciso reconhecer que, embora a peste atingisse mais os pobres, também foram os pobres que mais destemidamente se expuseram a ela, dirigindo-se a seus empregos com um tipo de coragem brutal. Devo qualificar assim porque não se apoiavam nem na prudência

nem na religião. Raramente tinham qualquer preocupação e se metiam em qualquer negócio onde pudessem arranjar trabalho, mesmo sendo o mais arriscado. Tarefas como cuidar de doentes, vigiar casas fechadas, transportar gente contaminada para o hospital dos pestilentos e, o que era ainda pior, carregar os mortos até suas covas. Foi com este mesmo John Hayward e na sua própria paróquia que aconteceu a história do gaiteiro com a qual muita gente se divertiu. Ele me garantiu que é verdade. Diziam que era um gaiteiro cego, mas segundo me contou John, o sujeito não era cego, mas ignorante, fraco, um pobre homem que costumava sair caminhando pelas redondezas às dez da noite e tocava gaita de fole de porta em porta. As pessoas costumavam fazê-lo entrar nas tavernas onde o conheciam, oferecendo-lhe bebida e comida, às vezes alguns trocados. Para retribuir, ele tocava e cantava ou simplesmente conversava, divertindo o povo. Assim ia levando a vida, mas enquanto as coisas estiveram como descrevi foi um tempo muito ruim para esse tipo de diversão. O pobre sujeito continuou saindo por aí como sempre, só que agora estava morrendo de fome. Quando alguém lhe perguntava como andava, respondia que o carro dos mortos ainda não o tinha levado, mas prometera vir buscá-lo na próxima semana. Certa noite aconteceu que este pobre homem, seja porque alguém lhe deu bebida demais ou não – John Hayward disse que não tinha bebida em sua casa, mas que lhe deram de comer um pouco mais do que o usual numa taverna em Coleman Street –, este pobre sujeito, sem ter normalmente, ou pelo menos por um bom tempo, a barriga cheia, deitou-se em cima de um balcão ou de uma tenda diante de uma porta numa rua perto de London Wall, em Cripplegate, caindo num sono profundo. Ao ouvirem o sino que sempre soava antes do carro passar, as pessoas de uma das casas da alameda que ficava na esquina daquela casa largaram um corpo realmente morto de peste bem a seu lado, sobre o mesmo balcão ou tenda, pensando que o pobre sujeito também fosse um cadáver igual ao que traziam, deixado ali por algum vizinho. De acordo com John Hayward, quando ele surgiu com seu sino e o carro se aproximou, os coveiros encontraram os corpos de dois mortos deitados sobre o balcão e os recolheram com seus instrumentos para jogá-los dentro do carro, enquanto o gaiteiro dormiu profundamente o tempo inteiro. Dali, eles continuaram recolhendo corpos de outros mortos até, como me contou o honesto John Hayward, quase o enterrarem vivo no carro. O gaiteiro continuou dormindo profundamente. No final, o carro veio para o local onde os corpos deveriam ser enterrados e que, como bem me lembro, ficava em Mount Mill. O carro costumava parar pouco antes de se prepararem para despejar o melancólico carregamento que traziam. Assim que o carro parou, o sujeito se despertou e lutou um pouco para tirar sua cabeça debaixo dos cadáveres. Levantando-se dentro do carro, gritou: “Ei! Onde estou?” Isso assustou os que faziam o serviço e, depois de uma pausa, John Hayward recuperou-se e disse: “Deus nos abençoe! Alguém aí no carro não está morto!” Um outro, então, aproximou-se e perguntou: “Quem és tu?” O sujeito respondeu: “Eu sou o gaiteiro. Onde estou?” “Onde estás”, disse Hayward, “estás no carro dos mortos e nós vamos te enterrar.” “Mas ainda não estou morto, estou?”, disse o gaiteiro, fazendo os outros rirem um pouco, embora – como disse John – tivessem se assustado muito no começo. Assim, ajudaram o pobre sujeito a sair e ele foi cuidar de si. Sei que a história corre com ele armando sua gaita de fole ainda dentro do carro e apavorando os coveiros e outros que fugiram correndo. John Hayward não me contou dessa

maneira, nem disse qualquer coisa sobre tocar gaita. Contou que ele era um pobre gaiteiro e que foi levado como disse acima e eu estou plenamente convencido de que é verdade. Aqui é preciso notar que, na city, os carros dos mortos não ficavam confinados a paróquias específicas e um mesmo carro percorria várias paróquias, conforme fosse o número de mortos. Também não eram obrigados a trazer os mortos para suas respectivas paróquias e muitos mortos recolhidos na city foram levados para campos de sepultamento na periferia por falta de espaço. Já mencionei a surpresa que este castigo de Deus causou na população num primeiro momento. Devo ter permissão para dar algumas das minhas opiniões sobre o aspecto mais grave e religioso. Certamente, nenhuma cidade, pelo menos deste tamanho e magnitude, encontrava-se tão completamente despreparada para uma situação como aquela epidemia tão terrível; despreparada seja em termos de administração civil ou religiosa. O povo estava, de fato, desavisado, sem esperar nada, sem qualquer preocupação e, conseqüentemente, só as providências públicas mínimas imagináveis foram tomadas. O Lorde Prefeito e os xerifes, por exemplo, não tomaram providências, enquanto autoridades, para que se obedecessem as regulamentações; nem tiveram qualquer iniciativa para ajudar os pobres. Os cidadãos não dispuseram de lojas ou armazéns públicos com trigo ou farinha para a subsistência dos pobres. Se tomassem esta providência, como é feito no exterior em tais casos, muitas famílias miseráveis, que depois foram condenadas ao maior sofrimento, estariam melhor socorridas do que se pôde fazer então. Pouco sei informar sobre as reservas de dinheiro da city. Diziam que a Corte de Vereadores era rica demais e pode-se concluir que realmente era pelas grandes quantias que vieram de lá para a reconstrução dos prédios públicos depois do incêndio de Londres e para a construção de novas instalações como, no primeiro caso, o Guildhall, Blackwell Hall, parte de Leadenhall, meia Bolsa, a Session House, o Compter, as prisões de Ludgate, Newgate e outras e muito do cais, escadas e ancoradouros do rio. Tudo isto foi destruído ou danificado pelo grande incêndio de Londres, um ano depois da peste. No segundo caso, o Monument, Fleet Ditch com suas pontes e o hospital de Bethlem ou Bedlam, etc. Naquele tempo, provavelmente os administradores das finanças da city estavam mais preocupados em gastar dinheiro ajudando os órfãos para mostrar suas obras de caridade aos sofridos cidadãos do que os administradores dos anos seguintes fariam para embelezar a city e reedificar seus prédios. No primeiro caso, porém, os perdedores deveriam pensar que suas fortunas estavam melhor empregadas assim e a credibilidade pública da city foi motivo de menos escândalos e reprovações. É preciso reconhecer que os cidadãos ausentes que fugiram para o interior por razões de segurança continuaram muito preocupados com o bem-estar daqueles que deixaram para trás, sem se esquecerem de contribuir com liberalidade para ajudar os pobres. Grandes somas também foram coletadas nas cidades comerciais das regiões mais remotas da Inglaterra. Também ouvi dizer que a nobreza e os fidalgos de todas as partes da Inglaterra levaram em consideração as condições da city, enviando grandes quantidades de dinheiro como caridade para o Lorde Prefeito e as autoridades socorrerem os pobres. O rei também, me disseram, determinou que mil libras fossem distribuídas por semana, em quatro partes: um quarto para a city e liberty de Westminster; um quarto ou fração entre os moradores da margem do rio em Southwark; um quarto para a liberty e bairros da cidade, excluindo a city dentro das muralhas; uma quarta parte nos subúrbios do condado de Middlesex e nas zonas leste e oeste da cidade. Só me refiro a esta última por informações.

É certo que a maioria dos pobres e das famílias que antes viviam de seus ofícios ou do comércio varejista agora viviam da caridade pública. Se cristãos caridosos e bemintencionados não tivessem oferecido prodigiosas quantias em dinheiro, a cidade não teria sobrevivido. Não há dúvidas de que fizeram a contabilidade dessa caridade e da sua justa distribuição pelas autoridades. Como, porém, grandes multidões daqueles mesmos funcionários morreram justamente através das mãos a que distribuíam dinheiro, e também porque, conforme me contaram, a maioria dos cálculos destas coisas se perdeu no grande incêndio que aconteceria no ano seguinte, queimando até o gabinete do tesoureiro municipal e muitos outros papéis, nunca consegui encontrar estes cálculos, os quais muito me esforcei para ver. Pode, no entanto, servir de orientação caso uma epidemia como esta se aproxime – que Deus proteja nossa cidade disso –, digo, pode ser útil notar que através da providência do Lorde Prefeito e dos vereadores da época, distribuindo semanalmente grandes quantias em auxílio dos pobres, uma multidão que de outro modo teria morrido foi socorrida e suas vidas foram salvas. Aqui, deixem-me entrar numa breve descrição da situação dos pobres na época e do que se pode aprender com eles, a partir do que depois se poderá prever o que se deve esperar caso um tormento como este venha a cair sobre a cidade. No início da peste, quando não havia mais esperança e a cidade toda seria contaminada; quando, como disse, todos os que tinham amigos ou propriedades no interior se refugiaram com suas famílias; quando se chega a pensar que a própria city sairá correndo pelos portões e ninguém ficará para trás; nesse momento, pode-se ter certeza que todo o comércio, exceto o relativo à subsistência imediata, fica, como ficou completamente parado. Essa situação é tão vital e contém tanto das condições reais do povo que não posso ser específico demais e, por isso, passo logo para os vários agrupamentos ou classes de pessoas que ficaram imediatamente na miséria nestas circunstâncias. Por exemplo: 1. Todos os mestres de ofício e operários de manufaturas, principalmente os que produziam ornamentos e peças menos necessárias do vestuário, tecidos e móveis para casas, os fabricantes de cintos e outros tecelões, fabricantes de colares de ouro e prata, desenhistas de pulseiras de ouro e prata, costureiras, vendedores ambulantes, sapateiros, fabricantes de chapéus e fabricantes de luvas; também os estofadores, os marceneiros, os entalhadores, os fabricantes de espelhos e uma quantidade incontável de negócios que dependiam destes – digo, os mestres do ofício e os operários pararam de trabalhar, demitindo seus empregados e diaristas, assim como todos seus dependentes. 2. Como o comércio estava completamente parado, porque pouquíssimos navios se arriscavam a subir o rio e nenhum atracava de maneira alguma, todos os funcionários auxiliares da alfândega, assim como os rebocadores, carreteiros, estivadores e todos os pobres cujo trabalho dependia dos mercadores foram demitidos, ficando desempregados de repente. 3. Todos os artesãos normalmente empregados na construção ou na manutenção das casas ficaram parados, pois a população estava longe de querer construir casas quando tantos milhares de casas eram subitamente despidas de seus habitantes. Este único motivo bastou para deixar todos os trabalhadores comuns deste tipo sem ter o que fazer, tais como pedreiros, serventes de obra, carpinteiros, marceneiros, estucadores, pintores, vidraceiros, ferreiros, encanadores e todos os trabalhadores braçais dependentes disto. 4. Como a navegação estava paralisada, nossos navios não iam e vinham como antes e os marinheiros ficaram desempregados, muitos deles no último e mais baixo degrau da

miséria. Junto com os marinheiros, estavam diversos comerciantes e trabalhadores que pertenciam ao ramo e dependiam da construção e abastecimento de navios, como carpinteiros navais, calafetadores, cordeiros, tanoeiros, fabricantes de velas, ferreiros de âncoras e outros ferreiros, fabricantes de cabos e poleames, entalhadores, armeiros, fornecedores de navios, entalhadores navais e outros do gênero. Os mestres talvez conseguissem o suficiente para a subsistência, mas os negociantes ficaram totalmente imobilizados. Conseqüentemente, todos seus empregados foram demitidos. Acrescente-se a isto que o rio estava tão sem barcos, que todos ou a maior parte dos barqueiros e donos de chatas, construtores de barcos e de chatas, ficaram todos do mesmo jeito, ociosos e abandonados. 5. Todas as famílias, tanto as que ficaram quanto as que fugiram, limitaram seu modo de vida o máximo possível. Assim, uma incontável multidão de entregadores, criados, balconistas, guarda-livros de mercadorias e outras pessoas assim, principalmente as pobres criadas, eram mandadas embora, ficando sem amigos e sem ajuda, sem emprego e sem moradia. Este aspecto, realmente, era muito depressivo. Eu deveria entrar em detalhes, mas deve ser suficiente mencionar que todos os ofícios, de modo geral, ficaram paralisados. Terminaram-se os empregos: sem trabalho, suprimia-se também o pão dos pobres. No princípio, os gritos destes pobres eram algo muito triste de se ouvir, embora suas misérias fossem gradualmente reduzidas pela distribuição de esmolas. Na realidade, muitos fugiram para os condados, mas milhares permaneceram em Londres até que nada além do desespero os fizesse ir embora, com a morte os encontrando na estrada, quando não serviam para nada melhor do que mensageiros da morte. É verdade que outros portadores da doença a espalharam muito desgraçadamente para as partes mais remotas do reino. Muitos destes tornaram-se as míseras vítimas do desespero que mencionei antes, sendo eliminados pela devastação que se seguiu. Poder-se-ia dizer que estes não morreram pela doença em si, mas por suas conseqüências; objetivamente, fome, sofrimento e carência de todas as coisas: sem abrigo, sem dinheiro, sem amigos, sem meios de ganhar seu próprio pão, ou sem ninguém que lhes oferecesse algum. Muitos não tinham o que chamamos de domicílio legal e por isso não podiam pedir ajuda nas paróquias. Todo auxílio que ganhavam era por solicitação às autoridades. Para dizer das autoridades o que merecem, essa ajuda era distribuída cuidadosa e prestativamente conforme achassem necessário. Os que continuaram na cidade nunca passaram as privações e o sofrimento daqueles que foram embora do modo descrito há pouco. Peço a todo aquele que conheça a multidão de gente que ganha o pão de cada dia nesta cidade com seu trabalho – sejam artesãos ou meros trabalhadores – que cada um pense quais seriam as condições miseráveis desta cidade se, subitamente, todos ficassem sem emprego, porque não há mais trabalho e sem trabalho não há salários. Esta foi a nossa situação na época. Não fossem prodigiosamente grandes as quantias de dinheiro oferecidas por caridade pelas pessoas de boa vontade de todo tipo, fosse daqui ou do exterior, e o Lorde Prefeito e os xerifes não teriam condições de manter a ordem pública. Nem por isso deixaram de temer que o desespero forçasse o povo a tumultos, levando-o a depredar as casas dos ricos e saquear os mercados de alimentos. Nesse caso, as pessoas do interior que livre e corajosamente traziam mantimentos para a cidade se apavorariam na hora de voltar aqui e a cidade mergulharia numa fome inevitável.

Mas a prudência do Lorde Prefeito e do Conselho de Vereadores dentro da city e dos juízes de paz nos arrabaldes foi tal que, ajudados pelo dinheiro que vinha de todos os lados, mantiveram os pobres quietos, suprindo suas necessidades da melhor maneira possível. Além desta, duas coisas contribuíram para impedir que a ralé provocasse arruaças. Uma foi que os próprios ricos não tinham providenciado grandes estoques de mantimentos para suas casas, como deveriam ter feito de verdade, e se fossem inteligentes o bastante teriam feito, isolando-se completamente como muitos fizeram e assim talvez sobrevivessem mais à doença. Como parece que não fizeram isso, a multidão não imaginava encontrar estoques de mantimentos se invadisse as casas. É evidente que algumas vezes chegou muito perto disso, o que, se acontecesse, terminaria por arruinar toda a cidade, pois não havia tropas regulares para conter a multidão, nem se poderia chamar milícias civis para defender a cidade, pois nenhum homem se dispunha a pegar em armas. A vigilância do Lorde Prefeito e das autoridades com que contava (já que muitos, inclusive vereadores, estavam mortos e outros ausentes) evitou isso. Eles o conseguiram através dos métodos mais suaves e gentis que puderam conceber, principalmente socorrendo os mais desesperados com dinheiro, colocando outros para trabalhar, sobretudo no serviço de vigilância das casas contaminadas que foram fechadas. Como havia uma enorme quantidade delas (foi dito que, numa mesma época dez mil casas estavam fechadas e cada casa tinha dois guardas para vigiá-la, um de dia outro à noite), isso deu oportunidade para o emprego de um grande número de homens pobres ao mesmo tempo. As mulheres e as criadas mandadas embora de onde moravam foram igualmente empregadas como enfermeiras no atendimento de doentes em qualquer lugar e isso ocupou grande número delas. Embora fosse algo melancólico em si, à sua maneira isso oferecia um consolo: objetivamente, a peste atacou de maneira horripilante entre meados de agosto e meados de outubro, levando consigo, na época, trinta ou quarenta mil destes pobres que, se fossem poupados, certamente seriam um fardo insuportável devido à sua miséria. Isto quer dizer: toda a city não poderia financiar suas despesas ou arranjar comida para eles. Com o tempo, os pobres seriam forçados pelas suas necessidades a saquear a própria cidade e o interior adjacente para sobreviverem, o que mais cedo ou mais tarde teria conduzido toda a nação, junto com a cidade, ao pior terror e confusão. Observou-se, no entanto, que a calamidade deixou o povo muito humilde. Durante nove semanas seguidas, morreram cerca de mil por dia, um dia depois do outro, mesmo nos cálculos dos boletins semanais de óbitos que tenho razões para ter certeza de que nunca davam o número total, diferindo em muitos milhares. Era tanta confusão, com as carroças trazendo os mortos no escuro, que em muitos lugares não fizeram qualquer contagem, mas os coveiros continuaram trabalhando, apesar dos clérigos e sacristãos não aparecerem semanas seguidas, ignorando o número de cadáveres que enterraram. Esta contagem é confirmada pelos seguintes registros de mortalidade: De 8 a 15 de agosto de 15 a 22 de agosto de 22 a 29 de agosto de 29 de agosto a 5 de setembro de 5 a 12 de setembro de 12 a 19 de setembro

De todas doenças 5.319 5.568 7.496 8.252 7.690 8.297

Só de peste 3.880 4.237 6.102 6.988 6.544 7.165

de 19 a 26 de setembro de 26 de setembro a 3 de outubro de 3 a 10 de outubro

6.460 5.720 5.068 59.870

5.533 4.929 4.327 49.705

Este foi o grosso do povo eliminado naqueles dois meses. O número total dos que morreram de peste foi 68.590 e aqui estão cinqüenta mil deles, como se fosse uma bagatela em apenas dois meses. Digo cinqüenta mil porque, assim como faltam 295 no número acima, também faltam dois dias para completar o período de dois meses. Agora, quando digo que os funcionários das paróquias não apresentavam cálculos completos e que não se deve confiar na contagem deles, quero que todos vós leveis em consideração que não tinham como ser precisos numa época de tanto sofrimento e horror, quando muitos deles ficavam doentes ou, quem sabe, morriam no exato momento em que faziam suas contas. Falo dos clérigos de paróquia e dos funcionários subalternos. Apesar destes homens se arriscarem a todo perigo, eles também estiveram longe de serem excluídos da calamidade pública, principalmente se for verdade que a paróquia de Stepney teve, em um ano, 116 sacristãos, coveiros e auxiliares, ou seja, carregadores, sineiros e condutores de carroças que buscavam cadáveres. A verdade é que esse serviço não era de uma natureza que permitisse lazer para uma contagem exata dos corpos confusamente amontoados no escuro dentro de um buraco. Um buraco ou vala que homem nenhum podia chegar perto sem correr o maior perigo. Seguidamente observei que nas paróquias de Aldgate e Cripplegate, Whitechapel e Stepney havia cinco, seis, sete e oito centenas de mortos nos registros de uma semana. Se acreditarmos na opinião daqueles que também ficaram o tempo todo na cidade como eu, às vezes morriam dois mil por semana naquelas paróquias. Vi nas mãos de alguém que fez uma investigação tão rigorosa quanto pôde na área a soma de cem mil mortos de peste naquele ano – nos boletins de óbitos, no entanto, havia apenas 68.590 com indicação de peste. Se me for permitido dar uma opinião, pelo que vi com meus olhos e ouvi de outras pessoas que foram testemunhas oculares, acredito piamente nisto, ou seja, que pelo menos cem mil morreram só de peste, além das outras doenças e também aqueles que morreram pelos campos, nas estradas e lugares escondidos, sem meios de comunicação, como diziam, e mais aqueles que não foram incluídos nos registros, embora pertencessem realmente ao corpo de residentes. Todos nós sabíamos da grande quantidade dessas pobres criaturas desesperadas que estavam com peste e se tornavam idiotas ou apáticas pela miséria, como muitas ficaram, vagando pelos campos e florestas ou lugares ermos, quase que em qualquer lugar, onde se arrastavam até uma moita ou cerca e morriam. Por piedade, os habitantes das aldeias vizinhas traziam comida, deixando-a a uma distância que ainda pudessem alcançar, se conseguissem se mover. Muitas vezes não conseguiam e quando voltavam encontravam os pobres desgraçados mortos no chão e a comida intacta. A quantidade destes miseráveis foi enorme e conheço tantos que morreram dessa maneira e sei tão precisamente onde, que acredito ser capaz de ir no lugar exato e cavar retirando os ossos, porque os camponeses chegavam até uma certa distância, cavavam valas e, então, com varas compridas e ganchos nas pontas, arrastavam os corpos para dentro das valas. Depois jogavam terra o mais afastado que conseguissem, para cobri-los, observando de que lado soprava o vento e assim se aproximando pelo lado que os marinheiros chamam de barlavento, com o fedor dos cadáveres indo noutra direção. E,

dessa maneira, muita gente deixou este mundo sem que se ficasse sabendo, sem qualquer contagem, tanto nos boletins quanto fora deles. É verdade que fiquei sabendo isso principalmente pelo relato de outros, pois raramente caminhava pelos campos, com exceção dos lados de Benthnal Green e Hackney ou dali em diante. Quando caminhava, sempre observava a distância muitos andarilhos pobres. Pouco posso saber desses casos, pois fosse na rua ou no campo, se víssemos alguém se aproximando, era uma prática generalizada se afastar. Mesmo assim, acredito que esses relatos sejam exatos e verdadeiros. Isso me leva a mencionar minhas caminhadas pelas ruas e pelos campos e não posso omitir uma referência ao lugar desolador em que a city se transformou naquele tempo. A grande rua onde eu vivia (que é conhecida como uma das mais largas de Londres, incluindo subúrbios e liberties) tinha todo um lado onde viviam os açougueiros. Depois das cercas, principalmente, era mais um campo verde do que uma rua pavimentada e o povo geralmente vinha pelo meio da rua, com cavalos e carroças. É verdade que a extremidade em direção a Whitechapel Church não era totalmente pavimentada, mas mesmo a parte com calçamento também estava coberta de grama. Não é preciso achar isso estranho, uma vez que as grandes ruas dentro da city, tais como Leadenhall Street, Bishopsgate Street, Cornhill e até mesmo a própria rua da Bolsa tinham grama crescendo em diversos lugares. Da manhã à noite, não se viam carroças ou carruagens nas ruas, exceto algumas carroças que traziam do interior raízes e grãos, ervilha, feno e palha para o mercado, mas mesmo estas eram muito poucas comparadas com o habitual. Quanto às carruagens, raramente eram utilizadas, a não ser para transportar doentes ao hospital dos pestilentos e outros hospitais, com algumas poucas levando médicos a estes lugares, quando considerados em condições para se arriscar uma visita. As carruagens de aluguel eram realmente perigosas e o povo não se arriscava a entrar nelas, porque não se sabia quem teria feito a última corrida e, como já disse, comumente transportavam pessoas doentes e contaminadas para os hospitais de pestilentos e algumas pessoas morriam dentro delas durante o trajeto. É verdade que, quando a epidemia adquiriu a intensidade que acabo de mencionar, poucos médicos se preocupavam em circular pelas ruas para visitar casas contaminadas; e muitos dos mais eminentes da faculdade estavam mortos, assim como muitos cirurgiões. Realmente, foi um tempo de sofrimento e durante cerca de um mês, sem fazer qualquer exame dos registros de mortalidade, acredito que não morreram menos de 1.500 ou 1.700 por dia, um dia depois do outro. Um dos piores dias que tivemos em todo o período acho que foi no começo de setembro, quando, de fato, muita gente boa começou a pensar que Deus resolvera exterminar completamente o povo desta cidade miserável. Isto foi na época em que a peste se espalhou totalmente pelas paróquias do leste. A paróquia de Aldgate, se posso dar minha opinião, enterrou mais de mil por semana durante duas semanas, embora os boletins de óbitos não registrem tantos mortos. A peste me cercou de uma maneira tão medonha que não havia uma casa em vinte que não estivesse contaminada em Minories, Houndsditch e na zona perto de Butcher Row na paróquia de Aldgate, além dos becos no lado oposto a minha zona. Digo que nesses lugares a morte reinou em todos os cantos. A paróquia de Whitechapel estava nas mesmas condições, mas muito menos contaminada do que a paróquia onde eu vivia, enterrando cerca de seiscentos por semana, segundo os registros oficiais, cerca de duas vezes mais na minha opinião. Famílias inteiras, ruas residenciais inteiras, sem dúvida, foram varridas ao mesmo tempo, a ponto de ser freqüente os vizinhos

chamarem o homem do sino para ir nestas e naquelas casas retirar os residentes, pois estavam todos mortos. Realmente, o trabalho de recolher os corpos dos mortos na carroça tornou-se tão odiado e perigoso que surgiram reclamações de que os carregadores não se preocupavam com limpar aquelas casas onde todos os moradores tinham morrido e várias vezes seus cadáveres ficavam muitos dias insepultos, até que o mau cheiro atingisse os vizinhos e, conseqüentemente, os contaminasse. Esta negligência dos funcionários era tal que policiais e supervisores da igreja foram intimados a cuidar disso. Até mesmo os juízes das Hamlets foram obrigados a arriscar suas vidas, juntando-se aos carregadores para encorajá-los e apressá-los, pois muitos morreram com a doença adquirida dos cadáveres a que eram forçados a chegar tão perto. Não fosse tão grande o número de pobres à procura de trabalho e pão (como já disse), com a necessidade os levando a aceitar qualquer coisa, a arriscar-se a tudo, e nunca teriam encontrado gente para empregar. Então, os corpos dos mortos ficariam abandonados pelo chão, decompostos e podres de uma maneira horripilante. Nisto, não há como louvar devidamente as autoridades, pois elas mantiveram o enterro dos mortos com tamanha eficiência que imediatamente preenchiam os postos dos empregados no carregamento e enterro dos mortos que adoecessem ou morressem. Em função do grande número de pobres sem trabalho, isto não era difícil de fazer e, assim, foi possível que, não obstante o número infinito de pessoas que morriam ou ficavam doentes, todas sempre foram recolhidas e transportadas todas as noites, de modo que nunca se poderá dizer que, em Londres, os vivos não conseguiam enterrar os mortos. Naquele tempo, conforme aumentava a devastação, também crescia o pavor das pessoas, que faziam mil coisas indescritíveis, movidas pela fúria de seu medo, enquanto outras faziam o mesmo na agonia da doença. Isso foi muito impressionante. Alguns saíam pelas ruas gemendo, chorando e contorcendo as mãos. Outros rezavam erguendo as mãos ao Céu, pedindo misericórdia a Deus. Na verdade, não sei dizer se faziam isso por loucura, mas quando agiam com consciência era indicação de uma mente mais séria, e rezar, fosse como fosse, era muito melhor do que os berros e gemidos que, todos os dias, principalmente ao anoitecer, escutavam-se pelas ruas. Suponho que o mundo já ouviu falar no famoso Solomon Eagle, um entusiasta 10. Embora não estivesse de forma alguma contaminado, a não ser na sua cabeça, ele saía por aí, denunciando o castigo imposto à cidade de uma maneira aterradora, às vezes completamente nu, com uma panela de carvão em brasa na cabeça. O que dizia ou fingia dizer nunca consegui realmente entender. Não sei se aquele pregador era um alienado ou se fazia isso por pura preocupação com os pobres. Saía todas as noites pelas ruas de Whitechapel, repetindo continuamente, com as mãos para o alto, esta passagem da liturgia da Igreja: “Salvai-nos, bom Deus! Salvai Vosso povo, a quem redimistes com Vosso mais precioso sangue”. Não posso falar com certeza sobre essas coisas, pois estes foram apenas exemplos pungentes que se apresentaram quando olhava pelas janelas do meu quarto (já que raramente abri as venezianas) enquanto me confinei dentro de casa, durante o ataque mais violento da pestilência. Quando muitos, como eu disse, começaram a pensar e mesmo a afirmar que ninguém se salvaria, eu também comecei a pensar assim, por isso fiquei duas semanas dentro de casa, sem pisar do lado de fora. Não consegui suportar mais. Além disso, havia os religiosos que, apesar do perigo, não se omitiam publicamente, comparecendo ao culto de Deus, mesmo durante o período mais arriscado. Embora seja verdade que para proteger suas vidas muitos clérigos fecharam suas igrejas e fugiram, assim como outras pessoas, nem todos fizeram isso. Alguns se arriscaram a exercer suas funções, reunindo pessoas em

assembléias para orações constantes e às vezes sermões ou breves exortações ao arrependimento e à penitência, falando enquanto houvesse alguém para escutá-los. Os nãoconformistas também fizeram o mesmo, nas próprias igrejas onde os sacerdotes da paróquia estavam mortos, ou fugiram; não havia condições para os diferenciar num tempo como aquele. Era uma coisa muito triste ouvir as lamentações angustiadas das pobres criaturas moribundas pedindo um sacerdote para consolá-las e rezar junto, para aconselhá-las e orientá-las; clamavam perdão e misericórdia a Deus, confessando seus pecados antigos em voz alta. O mais valente dos corações sangraria ao ouvir todas as advertências dos penitentes moribundos, dizendo aos outros para não protelarem e adiarem seu arrependimento até o dia da desgraça. Um tempo de calamidade como aquele não era mais hora para arrependimento, para suplicar a Deus. Gostaria de ser capaz de reproduzir o som exato daqueles gemidos e das lamentações que ouvi de algumas pobres criaturas moribundas no auge da sua agonia e sofrimento. Gostaria de fazer aquele que me lê ouvilos como os ouço na memória, pois o som parece ainda zumbir nos meus ouvidos. Se ao menos conseguir contar essa passagem com um tom comovente a ponto de assustar a própria alma do leitor, ficarei satisfeito por ter registrado estas coisas, mesmo que breve e imperfeitamente. Deus quis que eu fosse poupado com vigor e boa saúde, mas muito impaciente por ficar como fiquei, quatorze dias ou quase enclausurado dentro de casa, sem ar. Não consegui me conter e saí para levar até o correio uma carta para meu irmão. Foi quando notei o profundo silêncio das ruas. Quando cheguei no correio, no momento em que ia entregar minha carta, vi um homem de pé num canto do pátio conversando com outro numa janela, mais um terceiro que abriu a porta do correio. No centro do pátio, havia uma pequena bolsa de couro com duas chaves dependuradas e dinheiro dentro, mas ninguém prestava atenção nela. Perguntei há quanto tempo estava jogada ali e o homem na janela disse que fazia quase uma hora, mas eles não tinham se interessado por ela porque não sabiam se a pessoa que a deixara cair voltaria para buscá-la. Eu não tinha necessidade de dinheiro, nem a quantia era grande o suficiente para me gerar qualquer tentação de ir até ela e pegar o dinheiro apesar do risco que isso poderia significar. Assim, eu já ia embora quando o homem que abriu a porta disse que recolheria a bolsa e caso o legítimo dono viesse buscá-la poderia reavê-la com segurança. Então, pegou um balde de água e jogou-o com força sobre a bolsa. Depois, saiu e voltou trazendo pólvora. Cobriu a bolsa com boa quantidade de pólvora, fazendo um rastro até longe da bolsa com o que sobrou. O rastro atingiu cerca de duas jardas. Em seguida, entrou uma terceira vez e voltou com uma pinça vermelha de tão quente, que ele tinha preparado especialmente para isso, eu suponho. Primeiro, botou fogo no rastro de pólvora, chamuscando a bolsa e fazendo bastante fumaça. Não satisfeito com isso, só tocou na bolsa com a pinça, prendendo-a por tanto tempo que a pinça a queimou. Ele, então, sacudiu a bolsa para que o dinheiro caísse dentro do balde com água, que ele levou consigo. O dinheiro, que eu me lembre, consistia em treze xelins, algumas moedas de quatro pence e trocados de cobre. Como mencionei acima, possivelmente houve muita gente pobre ousada o bastante para se arriscar por dinheiro, mas, pelo que escrevi, é fácil notar que as poucas pessoas que se salvaram foram muito cuidadosas consigo mesmas, naquele tempo em que o sofrimento foi assim tão excessivo.

Mais ou menos na mesma época, saí pelos campos em direção a Bow, pois tinha muita vontade de ver como se arranjavam as coisas no rio e entre os navios. Como tinha alguns conhecimentos sobre navegação, fazia idéia que uma das melhores maneiras para alguém se proteger contra a epidemia seria recolhendo-se num navio. Pensando como satisfazer minha curiosidade a esse respeito, cruzei pelos campos de Bow para Bromley, descendo até Blackwall pelas escadas que servem tanto para desembarcar quanto para buscar água. Ali, vi um pobre homem caminhando sozinho pela margem ou quebra-mar, como chamavam. Também fiquei algum tempo caminhando e vendo as casas todas fechadas. No fim, consegui conversar a distância com o pobre homem. Primeiro, perguntei como estavam os moradores da vizinhança e ele disse: “Ai de mim, senhor! Quase destruídos, todos mortos ou doentes. Poucas são as famílias deste lado ou daquela vila (apontando para Poplar) onde metade de seus membros já não estejam mortos. Os outros estão doentes”. Então, indicou uma casa e disse: “Ali morreram todos e a casa continua aberta, ninguém se atreve a entrar. Um pobre ladrão se arriscou para roubar alguma coisa, mas pagou caro por seu roubo, sendo levado para o cemitério na noite passada”. Depois apontou para várias outras casas e disse: “Lá estão todos mortos, o homem, a mulher e cinco crianças. Ali – continuou – estão trancados, podes ver um vigia na porta”, falando o mesmo sobre outras casas. “Por que – perguntei –, o que fazes aí sozinho?” “Porque sou um pobre desgraçado. Deus ainda não quis que fosse contaminado, mas a minha família foi e uma das minhas crianças morreu.” Eu falei: “Então como é que sabes que não estás contaminado?” Ele disse: “Porque esta é a minha casa (apontando para uma casa muito pequena, de madeira), ali vivem minha esposa e minhas duas crianças, se é que se pode dizer que vivem, porque ela e uma das crianças estão doentes, mas eu não vou até eles”. Com estas palavras, vi as lágrimas correrem em abundância pela face. O mesmo aconteceu comigo, eu juro. Eu disse: “Mas por que não vais até lá? Como podes abandonar tua própria carne e sangue?” Ele disse: “Senhor, Deus proíbe! Não os abandonei. Trabalho para eles o quanto consigo e louvado seja o Senhor, pois os protejo da miséria”. Com isso, notei que ergueu os olhos para o céu com uma expressão que imediatamente convenceu-me que encontrara um homem que não era um hipócrita, mas um homem bom, sério e religioso. Suas lamentações eram expressão de agradecimento por ser capaz de dizer que, na situação em que se encontrava, sua família não passava necessidades. Eu disse: “Bem, honesto homem, isto já é um consolo para os pobres quando as coisas estão como atualmente, mas como é que vives? Como te proteges desta calamidade terrível que atinge todos nós?” Ele disse: “Porque, senhor, sou um barqueiro e ali está o meu barco. O barco me serve de casa. Trabalho durante o dia e durmo à noite dentro dele. Tudo que ganho deixo em cima daquela pedra”, disse-me, apontando para uma grande pedra que ficava no outro lado da rua, a boa distância de sua casa, e falou: “Depois, grito chamando até que me ouçam e venham pegar o que trouxe”. Eu disse: “Bem, amigo, e como consegues ganhar dinheiro sendo um barqueiro? Alguém viaja pelo rio num tempo destes?” Ele disse: “Sim, senhor, ganho alguma coisa com o trabalho que faço. Consegues ver ali (apontando rio abaixo, a uma boa distância antes da cidade) cinco navios ancorados e também enxergas oito ou dez navios presos por correntes lá naquele ancoradouro afastado (apontando para depois da cidade)? Todos aqueles navios têm a bordo famílias de mercadores, proprietários e outros do ramo que se confinaram com medo da epidemia, vivendo completamente isolados a bordo. Eu trabalho para eles, entregando cartas e fazendo o que for absolutamente indispensável, de modo que

não precisem vir até a margem. Todas as noites, amarro meu barco junto aos botes de um dos navios e durmo ali, sozinho. Graças a Deus, até agora fui poupado”. Eu disse: “Bem, amigo, mas te deixam subir a bordo depois de andares em terra, neste lugar tão terrível e contaminado como está?” Ele disse: “É por isso que raramente subo as laterais do navio. Coloco o que trago num bote deles ou me posiciono junto à lateral e eles içam a carga a bordo. Se eu subisse, acho que não correriam perigo algum comigo, porque nunca entro em casa ou loja alguma, nem toco em pessoa alguma. Não, nem na minha família, apenas deixo mantimentos para eles”. “De maneira nenhuma! – eu disse – porque isso pode ser ainda pior, deves receber aqueles mantimentos de um e de outro e como todos os cantos da cidade estão contaminados é muito perigoso apenas conversar com quem quer que seja nesta vila. Aqui é o começo de Londres, mesmo que a uma certa distância dela.” “É verdade – ele acrescentou – mas não me compreendeste bem. Não compro mantimentos para eles aqui. Remo até Greenvich e compro carne fresca lá em cima. Às vezes, remo rio abaixo até Woolwich só para fazer compras. Vou a casas de fazendas isoladas na margem de Kentish, onde sou conhecido e compro galinha, ovos e manteiga. Trago tudo para os navios conforme me encomendam, às vezes para um, às vezes para outros. Raramente venho até a margem e vim agora somente para chamar minha esposa e saber como vai a família. E também para dar um pouco de dinheiro que recebi na noite passada.” “Pobre homem – eu disse – e quanto conseguiste para eles?” “Ganhei quatro xelins – ele disse – que do jeito que as coisas vão para os pobres é uma grande soma, mas também me deram um saco de pão, um pouco de peixe salgado e um pouco de peixe fresco. Assim, tudo ajuda.” “Bem – eu disse –, já entregaste tudo para eles?” “Não – ele disse –, já chamei e minha esposa respondeu que ainda não pode sair, mas que deve vir daqui a meia hora. Estou esperando. Pobre mulher! Está tão acabada. Tem um inchaço que arrebentou e tenho esperança que se recupere. Tenho medo que a criança morra, Deus é quem sabe.” Aqui, parou e chorou muito. “Bem, meu honesto amigo – eu disse – se te resignares com os desígnios da vontade de Deus terás um Consolador de confiança. Ele é quem sabe de todos nós neste flagelo.” “Ó senhor – ele disse –, será infinita misericórdia se um de nós foi poupado. Quem sou eu para me queixar!” “Assim o dizes – eu falei –, o quanto minha fé é menor que a tua?” Nesse instante, meu coração disparou dentro de mim, sugerindo quão melhores do que os meus eram os fundamentos em que aquele homem se apoiava, correndo perigo. Ele não tinha onde se refugiar. Tinha uma família a quem precisava manter, o que eu não tinha. Eu tinha apenas presunção, ele tinha uma verdadeira dependência da coragem que recebia de Deus. Mesmo assim, servia-se de todas as precauções possíveis para sua segurança. Afastei-me um pouco do homem, ocupando-me com estes pensamentos, mas a verdade é que não consegui conter minhas lágrimas mais do que ele. Finalmente, depois de esperar mais um pouco, a pobre mulher abriu a porta e chamou: “Robert, Robert”. Ele respondeu pedindo que esperasse um instante e apareceria. Então, desceu as escadas até seu barco e retirou um saco contendo os mantimentos que trouxera dos navios. Quando voltou, chamou novamente, foi até a grande pedra que me

mostrara, esvaziou o saco separando todas as coisas que trouxera e retirou-se. Sua esposa saiu para recolhê-las com um garotinho. Chamou o barqueiro e disse que tal capitão mandara tal coisa e outro capitão uma outra coisa. No final, acrescentou: “Foi Deus quem mandou tudo isto. Agradece a Ele”. Quando conseguiu segurar tudo, a mulher estava tão fraca que não conseguia carregar tudo de uma só vez, embora não fosse assim tanto peso. Largou as bolachas que estavam num saco pequeno e deixou o menino tomando conta até que voltasse. “Bem – eu lhe disse – também deixaste os quatro xelins que me contaste ser teu ganho da semana?” “Sim, sim – ele disse –, ela mesma deve comentar isto.” Então, chamou outra vez: “Rachel, Rachel”, que pareceu ser seu nome, “pegaste o dinheiro?” “Sim”, disse ela. “Quanto tem?”, ele perguntou. “Quatro xelins e uma moeda de quatro pence”, ela disse. “Bem, bem – ele disse –, que Deus proteja a todos” e então virou-se para ir embora. Como não consegui deixar de contribuir com lágrimas para a história do homem, também não consegui refrear minha caridade em seu auxílio. Chamei-o: “Escuta aqui, amigo – eu disse –, chega mais perto. Acreditei no que disseste sobre tua saúde e acho que posso me arriscar contigo”. Assim, estendi a mão que antes estava no meu bolso. “Toma aqui – eu disse –, vai chamar tua Rachel mais uma vez e oferece a ela um pouco mais de ajuda em meu nome. Deus nunca abandona uma família que acredita Nele como a tua.” Então, entreguei-lhe outros quatro xelins, pedi que os deixasse na pedra e chamasse sua esposa. Não tenho palavras para expressar a gratidão daquele homem. Ele também não conseguia expressá-la, a não ser com lágrimas correndo pela sua face. Chamou sua esposa, contou que Deus comovera o coração de um estranho que, ao saber da sua situação, deulhes todo aquele dinheiro. Disse ainda muitas outras coisas do gênero. A mulher também fez gestos semelhantes de agradecimento, tanto para o Céu quanto para mim, recolhendo contente o dinheiro. Senti que dinheiro nenhum gasto naquele ano foi melhor empregado. Então perguntei ao pobre homem se a doença não tinha chegado a Greenwich. Ele disse que não tinha até duas semanas atrás. Depois, ele temia que sim, mas somente no extremo sul da cidade, na direção da Ponte de Deptford. Ele só ia até as casas de um açougueiro e de um padeiro, onde habitualmente comprava as coisas que lhe encomendavam, mas tomava todo cuidado. Perguntei-lhe, em seguida, o que aconteceu para que as pessoas encerradas nos navios não tivessem armazenado todas as coisas que necessitassem. Ele disse que algumas tinham, mas outras, ao contrário, não subiram a bordo até que o medo as trouxe, quando já estava perigoso demais procurar as pessoas certas para comprar coisas em quantidade. Ele me mostrou dois navios que atendia, onde tinham pouco ou nada além de bolacha de farinha e cerveja de marinheiro, sendo ele quem trazia quase todas as outras coisas. Perguntei-lhe se havia outros navios isolados como aqueles. Ele me disse que sim, onde quer que houvesse espaço da ponta de Greenwich até dentro das margens de Limehouse e Redriff, os navios estavam dois a dois no meio da correnteza, alguns com várias famílias a bordo. Perguntei se a doença não os atingira. Ele disse acreditar que não, com exceção de dois ou três navios onde as pessoas não foram tão precavidas como outras, que impediram os marinheiros de ir a terra. Ele também falou que era muito bonito ver os navios alinhados Pool acima. Quando ele me disse que iria até Greenwich logo que a maré começasse a subir, perguntei se poderia me levar junto e me trazer de volta, porque, depois do que ele me contou, ficara com muita vontade de ver como os navios estavam distribuídos. Ele me disse

que, se eu jurasse com palavra de homem cristão e honesto que não tinha peste, ele me levaria. Jurei-lhe que não tinha peste, que Deus quis me poupar e que vivia em Whitechapel, mas era inquieto demais para ficar tanto tempo dentro de casa e tinha me arriscado a sair até tão longe para sentir um pouco de ar fresco e ninguém na minha casa fora sequer tocado pela doença. “Bem, senhor – ele disse –, como tua bondade o levou a ter pena de mim e da minha família, certamente não terias tão pouca piedade a ponto de entrar no meu barco não estando com saúde – o que não seria menos do que me matar e arruinar toda minha família.” O pobre homem comoveu-me tanto quando falou de maneira tão afetuosa e com tão sensata preocupação sobre sua família que não pude me dar por satisfeito e ir com ele. Disse-lhe que abriria mão da minha curiosidade para não deixá-lo preocupado, embora eu estivesse seguro, e muito grato por isso, de que não tinha comigo mais peste do que o homem mais sadio deste mundo. Bem, ele é que não quis que eu desistisse do passeio e, para me convencer de que acreditara que eu fora sincero com ele, começou a insistir para que o acompanhasse. Assim, quando a água chegou até seu barco, subi a bordo e ele me levou para Greenwich. Enquanto ele buscava as coisas que fora encarregado de comprar, caminhei até o topo do morro ao pé do qual fica a cidade, no lado leste da cidade, para ter um panorama do rio. Foi algo surpreendente ver o número de navios ancorados em fila, dois a dois e, em alguns lugares, formando duas ou três filas duplas ao longo do rio. Não estava assim só na direção da cidade, mas entre as casas que nós chamamos de Ratcliff e Redriff, e que os moradores chamam de Pool, até mesmo rio abaixo, chegando na ponta de Long Reach, que era o lugar mais distante que os morros nos deixavam ver. Não consigo imaginar o número de navios, mas acho que havia várias centenas de velas. Não pude deixar de aplaudir a iniciativa: daquela maneira, dez mil pessoas ou mais que se ocupavam de afazeres navais certamente foram protegidas do furor da epidemia, vivendo com muita segurança e muito à vontade. Voltei para minha casa muito satisfeito com o passeio desse dia, principalmente pelo pobre homem. Também me regozijei com a visão de refúgios tão pequenos protegerem tantas famílias de tamanha devastação. Também observei que, conforme aumentou a violência da peste, os navios com famílias a bordo se deslocaram, afastando-se para mais longe, até que, segundo me contaram, alguns seguiram mar adentro, em rotas seguras da costa norte ou ancorando no cais que estivesse mais a seu alcance. Também é verdade que nem toda a população que deixou a terra desta forma, vivendo a bordo dos navios, ficou inteiramente a salvo da epidemia. Muitos morreram e foram jogados no rio; alguns em caixões, outros, ouvi dizer, sem caixões. Às vezes, estes cadáveres eram vistos para cima e para baixo, conforme a correnteza do rio. Acredito que posso me arriscar a afirmar que, naqueles navios que ficaram contaminados, isto aconteceu porque as pessoas recorreram a eles tarde demais, trazendo a doença consigo (embora talvez não o percebessem). Assim, a doença não abordou os navios e as atingiu, pois a verdade é que elas a trouxeram. Ou então foram aqueles navios que o pobre barqueiro citou, aqueles que não tiveram tempo para se abastecer de mantimentos e foram obrigados a mandar constantemente alguém a terra para comprar o que estava faltando ou permitiram que outros barcos vindos da margem os abordassem. Dessa maneira, a doença foi insensivelmente trazida até eles. Aqui, não posso deixar de reconhecer que o estranho estado de espírito do povo de Londres naquele tempo contribuiu muitíssimo para sua própria destruição. Como mencionei, a peste começou no outro extremo da cidade, precisamente em Long Acre,

Drury Lane etc., vindo gradual e lentamente em direção à city. Sentiu-se sua primeira presença em dezembro, depois novamente em fevereiro, outra vez em abril, sempre com poucos casos na época. Então, parou até maio, sendo que mesmo na última semana de maio ocorreram apenas dezenove casos, todos naquele extremo da cidade. Durante esse tempo todo, até morrerem lá mais de três mil por semana, os moradores de Redriff, Wapping e Ratcliff, nos dois lados do rio e quase todo o lado de Southwark, tiveram a grande ilusão de que não seriam contaminados ou que, pelo menos, a epidemia não seria tão violenta entre eles. Algumas pessoas imaginavam que o cheiro de piche e alcatrão e outras coisas muito utilizadas em todos os ofícios relacionados com a navegação, como óleo, resina e enxofre, as protegeriam. Outros defendiam isso dizendo que a peste começou a diminuir antes de chegar até eles, depois de atingir com extrema violência Westminster, as paróquias de St Giles, St Andrew e outras – o que, em parte, era realmente verdade. Por exemplo: De 8 a 15 de agosto St Giles-in-the-fields Cripplegate Stepney St Margaret, Bermondsey Rotherhith De 15 a 22 de agosto St Giles-in-the-fields Cripplegate Stepney St Margaret, Bermondsey Rotherhith

242 886 197 24 3 Total desta semana 4.030 175 847 273 36 2 Total desta semana 5.319

N. B.: Observou-se que todos os casos registrados na paróquia de Stepney na mesma época ocorreram no lado onde a paróquia de Stepney se une a Shoreditch, que agora chamamos de Spittlefields, quando a paróquia de Stepney chega no muro do cemitério de Shoreditch. Naquele tempo, a peste declinava em St Giles-in-the-fields e atacava mais violentamente as paróquias de Cripplegate, Bishopsgate e Shoreditch. Até chegar o final de agosto, não houve sequer dez mortos de peste por semana em toda a área da paróquia de Stepney, que inclui Limehouse, Ratcliff Highway e onde agora ficam as paróquias de Shadwell e Wapping e mesmo em St Katherine, perto da Torre. Mais tarde, pagariam caro por isto, como registrarei no momento oportuno. Digo que a população de Redriff e Wapping, Ratcliff e Limehouse estava tão segura e tão cheia de si porque a peste iria embora sem atingi-la, que ninguém tomou qualquer providência, fosse fugindo para o interior ou se confinando. Todos estavam tão longe de sair dali, que inclusive recebiam amigos e parentes da city em suas casas, sendo que muitos vinham de outros lugares para se refugiar naquela parte da cidade por ser um lugar seguro, um lugar onde pensavam que Deus deixaria passar sem visitá-lo como visitou o resto. Foi por essa razão que, quando a peste chegou, todos ficaram assustados, mais despreparados e sem saber o que fazer do que em outros lugares. Quando os atingiu realmente com violência, em setembro e outubro, não havia mais como fugir para o interior, e ninguém mais permitia a aproximação de um estranho, nem mesmo da vila onde

morava. Contaram-me que muitos dos que fugiram pelos campos do lado de Surrey foram encontrados mortos de fome nos bosques e macegas. Aqueles campos eram mais abertos e arborizados do que qualquer outra região perto de Londres, sobretudo nas cercanias de Norwood e nas paróquias de Camberwell Dullege e Lusum, onde, ao que parece, ninguém ousava ajudar os pobres desgraçados com medo do contágio. Como eu disse antes, o fato desta noção ter prevalecido junto à população daquela zona da cidade foi em parte a razão pela qual as pessoas recorreram a navios para se refugiarem. Onde quer que tenham feito isso em tempo e com prudência, abastecendo-se com mantimentos de modo que não precisassem vir a terra atrás de provisões e proibindo os barcos de trazê-las a bordo – digo, onde fizeram isso, certamente ficaram no refúgio mais seguro para quem quer que fosse. A confusão foi tanta que o povo correu para os navios de medo, sem pão para comer. Alguns entraram em navios sem tripulação para navegar até mais longe, sem ninguém que pegasse um bote e descesse o rio para comprar mantimentos onde isso pudesse ser feito com segurança. Estes muitas vezes sofreram tanto e foram tão contaminados a bordo como se estivessem em terra. Os ricos ocuparam os navios e os mais remediados tomaram batelões, sumacas, barcaças e barcos de pesca. Muitos, principalmente os barqueiros, dormiam em seus botes. Mesmo estes últimos fizeram mau uso desse recurso, pois, indo buscar mantimentos e quem sabe ganhar sua subsistência, trouxeram a doença, promovendo uma destruição pavorosa. Muitos barqueiros morreram sozinhos tanto na coberta como dentro de seus barcos, encalhados assim que saíssem de sua rota. Às vezes, ficavam abandonados até que não houvesse mais condições para ninguém tocá-los ou chegar perto. O sofrimento da população neste extremo naval da cidade merecia muita compaixão, mas ai de mim! Estávamos num tempo em que a segurança pessoal de cada um era sempre tão presente que não havia espaço para se sentir piedade pelo sofrimento dos outros. Todo mundo tinha a morte à sua porta, muitos na sua própria família, sem saber o que fazer ou para onde fugir. Isso acabou com toda compaixão. Autopreservação, na verdade, parecia ser a primeira lei. As crianças fugiam de seus pais abatidos pelo pior sofrimento. Em alguns lugares, embora não tão freqüentemente como em outros, pais fizeram o mesmo com seus filhos. Surgiram aí alguns exemplos horripilantes, particularmente dois de uma mesma semana, com mães desgraçadas, delirantes e enlouquecidas matando seus próprios filhos. Um destes casos aconteceu não muito longe de onde morava. A pobre criatura tresloucada não viveu sequer o suficiente para reconhecer o crime que cometera, muito menos para ser punida por ele. Não dá para ficar muito surpreso: o perigo da morte imediata nos tirou o sentido do amor e de toda consideração para com o próximo. Falo em geral, porque surgiram muitos exemplos de sólida afeição, piedade e responsabilidade conforme fiquei sabendo, quero dizer, ouvi contarem. Não sou eu quem vai confirmar sua veracidade e pormenores. Para introduzir um, deixai-me antes mencionar que os casos mais deploráveis, durante toda a presença da calamidade, foram os de mulheres esperando crianças que, na hora do parto, quando surgiam as dores, não tinham como conseguir qualquer tipo de ajuda, nem parteiras nem mulheres da vizinhança que chegassem perto delas. A maioria das parteiras estava morta, principalmente as que atendiam os pobres. Muitas, se não todas as parteiras de renome, fugiram para o interior. Assim, era quase impossível uma mulher pobre, que não pudesse pagar um preço exorbitante, arranjar qualquer parteira para assistila – e, se arranjasse uma, geralmente as que aceitavam eram criaturas ignorantes e

despreparadas. Em conseqüência, surgiu o mais incomum e inacreditável número de mulheres reduzidas ao pior desespero. Algumas feriram-se dando à luz devido à imprudência e ignorância daquelas que fingiam assisti-las. Devo dizer que crianças sem conta foram assassinadas devido à mesma, porém mais compreensível, ignorância: tentavam salvar a mãe sem se importar com o que acontecesse à criança. Muitas vezes, mãe e filho se perdiam da mesma maneira. Quando a mãe estava com a doença, principalmente, ninguém chegava perto e às vezes os dois morriam. Algumas vezes a mãe morria de peste com o bebê talvez semiparido ou nascido, mas ainda não separado da mãe. Algumas morriam durante as dores do trabalho de parto, antes de parir. Ocorreram tantos casos como esses que fica difícil avaliá-los. Alguma coisa aparecia através do número incomum de casos registrados no boletim semanal de óbitos (embora eu esteja longe de considerá-los capazes de fornecer a contagem completa) sob indicações como: Mesa de parto Aborto e natimorto Bebês e recém-batizados Tomando-se as semanas em que a peste foi mais violenta e comparando-as com as semanas anteriores ao início da epidemia, ainda no mesmo ano, tem-se estes exemplos: De 3 a 10 de janeiro De 10 a 17 de janeiro De 17 a 24 de janeiro De 24 a 31 de janeiro De 31 de janeiro a 7 de fevereiro De 7 a 14 de fevereiro De 14 a 21 de fevereiro De 21 a 28 de fevereiro De 28 de fevereiro a 7 de março De 1o a 8 de agosto De 8 a 15 de agosto De 15 a 22 de agosto De 22 a 29 de agosto De 29 de agosto a 5 de setembro De 5 a 12 de setembro De 12 a 19 de setembro De 19 a 26 de setembro De 26 de setembro a 3 de outubro

Partos 7 8 9 3 3 6 5 2 5 48 25 23 28 40 38 39 42 42 14 291

Abortos 1 6 5 2 3 2 2 2 1 24 5 6 4 6 2 23 5 6 4 61

Natimortos 13 11 15 9 8 11 13 10 10 100 11 8 4 10 11 ... 17 10 9 80

Sobre a disparidade desses números, deve-se dar um desconto levando em consideração que, de acordo com a opinião corrente entre nós, os que estavam lá na ocasião, havia somente um terço da população na cidade durante os meses de agosto e setembro, em comparação com os meses de janeiro e fevereiro. Em poucas palavras, o

número habitual dos que, como ouvi dizer, realmente morreram nestas três situações no ano anterior foi este: Partos Abortos e natimortos 647

1664 189 458 617

1665 Partos Abortos

625 e

natimortos

1.242

Essa disparidade fica excessivamente maior quando se considera o tamanho da população. Não pretendo fazer qualquer cálculo exato sobre o número de pessoas que estavam na cidade naquele tempo, mas ainda farei uma conjetura provável mais adiante. Agora, o que disse serve para demonstrar a miséria daquelas pobres criaturas. Por isso, é preciso acrescentar, assim como nas Escrituras, pobres daquelas que ficarem grávidas e das que amamentarem neste dia. E, de fato, para elas foi uma desgraça particular. Não me relacionava com muitas destas famílias onde essas coisas aconteciam, mas os gritos destas desgraçadas podiam ser reconhecidos de longe. Sobre mulheres que esperavam criança, chegamos a ver alguns cálculos: 291 morreram na mesa de parto em nove semanas, uma terça parte além do número habitual de mulheres que morriam assim naquela época, sendo oitenta e quatro da mesma tragédia. Deixo para o leitor calcular a proporção. Não há como duvidar que o sofrimento daquelas que amamentavam foi, em proporção, igualmente enorme. Nossos registros de mortalidade pouco poderiam esclarecer sobre isto, mas alguns o fizeram, os mortos de fome no aleitamento foram muito mais do que o habitual, mas isto não era nada. A desgraça, em primeiro lugar, dava-se quando morriam de fome por falta de uma ama, com a mãe moribunda e toda sua família a seu lado, inclusive as crianças, mortas só de inanição. Se posso dar minha opinião, acredito que várias centenas de bebês pobres e abandonados morreram desta maneira. Em segundo lugar, os que não morreram de fome, mas envenenados pela ama, mesmo quando a própria mãe os amamentava depois de contrair a infecção, envenenando, ou seja, contaminando o bebê com seu leite, às vezes antes de saber que estava contaminada. Neste caso, o bebê morria antes da mãe. Não posso esquecer de deixar esta advertência registrada, caso aconteça outra epidemia terrível nessa cidade: todas as mulheres que esperem criança ou que estejam amamentando e que disponham de qualquer meio possível devem partir para longe deste lugar, porque, caso se contaminem, sua desgraça será muito maior do que a das outras pessoas. Poderia contar muitas histórias tristes de bebês encontrados mamando nos seios de suas mães ou amas depois que elas já estavam mortas pela peste. Na paróquia onde eu vivia, uma mãe com um filho que não se sentia bem mandou chamar o boticário para ver a criança. Quando ele chegou, segundo consta, a mãe estava com uma aparência muito boa e dava de mamar à criança. Ao se aproximar dela, o boticário viu as manchas no peito que amamentava. Ele se assustou muito e, para ter certeza, sem querer assustar demais a pobre mulher, pediu para segurar o bebê nas suas mãos. Assim, pegou a criança deitando-a num berço que havia na sala, retirou suas roupas e também encontrou as manchas na criança. Os dois morreram antes que ele conseguisse chegar em casa para mandar um remédio preventivo para o pai da criança, a quem inteirara das suas condições. Não ficou esclarecido se a criança contaminou a mãe lactante ou se a mãe contaminou o filho, sendo o último

mais provável. O mesmo aconteceu com uma criança que voltou para a casa dos pais depois que a ama morreu de peste. A carinhosa mãe não se recusou a receber o filho, pegando-o no colo e, assim, contaminando-se e morrendo, com a criança também morta em seus braços. O mais duro dos corações se comoveria com os exemplos freqüentemente encontrados de mães afetuosas morrendo diante das amadas crianças que cuidavam e assistiam. Às vezes contraíam a doença com elas e morriam, enquanto as crianças por quem aqueles corações afetuosos se sacrificaram se recuperavam, salvando-se. Feito um comerciante de East Smithfield cuja esposa estava enorme esperando seu primeiro filho e que, ao sentir as dores do parto, já trazia a peste consigo. Ele não tinha como conseguir uma parteira para ajudá-la, ou uma enfermeira para cuidá-la e os dois criados que mantinha fugiram. Correu de casa em casa feito um alucinado, sem conseguir qualquer ajuda. O máximo que conseguiu foi a promessa de um vigia que controlava uma casa contaminada que fora fechada para enviar uma enfermeira de madrugada. Com o coração despedaçado, o pobre homem voltou e auxiliou a esposa como pôde, atuando um pouco como parteiro e trazendo a criança morta para o mundo. Em cerca de uma hora, sua esposa morreu em seus braços, onde ele manteve o corpo apertado até o amanhecer, quando o vigia chegou trazendo a enfermeira conforme prometera. Ao subir a escada (a porta estava aberta ou só com o trinco), encontraram o homem sentado com sua esposa morta nos braços. Ele ficou tão derrocado pelo sofrimento que morreu poucas horas depois sem qualquer sinal da infecção, simplesmente sufocado pelo peso de sua dor. Também ouvi dizer que alguns ficaram idiotas devido à dor insuportável da morte de seus parentes. Um destes, em particular, ficou tão absolutamente tomado pela pressão sobre seu espírito que sua cabeça caiu, entrando aos poucos para dentro do corpo, de modo que, no meio das costas, mal se via o topo de sua cabeça acima do osso dos ombros. Aos poucos foi perdendo a voz e a razão, seu rosto olhando em frente, encostado no osso da clavícula. Ele não conseguia mais ficar em pé, a não ser segurado pelas mãos de outras pessoas. O pobre homem nunca mais voltou a si, definhando durante quase um ano nessas condições e morrendo sem nunca ser visto levantando os olhos ou fixando-os num objeto específico. Não posso fazer mais do que apenas resumir passagens como estas, porque foi impossível conhecer os detalhes de casos onde às vezes famílias inteiras eram levadas pela doença, quando estas coisas aconteciam. Inumeráveis casos desse tipo se apresentavam aos olhos e aos ouvidos, mesmo só passando pelas ruas, como destaquei acima. Também não é fácil contar a história desta ou daquela família sem confundi-la com diversas histórias paralelas que terminavam do mesmo jeito. Como agora estou falando da época em que a peste atacou a zona leste da cidade – por quanto tempo a população daquelas bandas não se vangloriou de que seria poupada, e como se assustou quando ela chegou; de fato, quando chegou, a peste atacou feito um homem armado – digo, isto me traz de volta aos três pobres homens que vagavam por Wapping sem saber para onde ir ou o que fazer, a quem já mencionei antes: um padeiro, um veleiro e o outro, carpinteiro, todos de Wapping ou das redondezas. A sonolência e tranqüilidade daquela zona, como observei, era tal que os moradores, além de não se mudarem como faziam outros, ainda alardeavam estarem seguros, afirmando que a segurança estava com eles. Muita gente fugiu da city deixando os subúrbios infectos e vindo para Wapping, Ratcliff, Limehouse, Poplar e lugares como estes, por serem lugares seguros. Não é de se estranhar que, ao fazerem isto, ajudaram a trazer a peste naquela direção mais depressa do que teria vindo de outro modo. Eu era bastante favorável a que o povo fugisse e esvaziasse uma cidade como esta diante do primeiro sinal

de tamanho flagelo. Qualquer pessoa que tivesse qualquer refúgio possível deveria utilizálo em tempo e ir embora. Mesmo assim, devo dizer que, depois que todos os que fugiriam tivessem partido, aqueles que ficassem, obrigados a suportar o flagelo, deveriam se manter imóveis onde estavam, feito troncos, sem se deslocar de um extremo a outro da cidade, ou de uma zona da cidade para outra, pois isso foi a ruína e perdição de todos, levando a peste de casa em casa nas suas roupas. Mandaram matar todos os gatos e cachorros porque eles eram animais domésticos que corriam de casa em casa e de rua em rua, sendo assim capazes de carregar a eflúvia ou os fluidos infecciosos de corpos contaminados até na sua pele e pêlos. Tanto foi assim que, no início da epidemia, o Lorde Prefeito e as autoridades publicaram por conselho dos médicos a ordem de que todos os gatos e cachorros fossem imediatamente mortos, e um funcionário foi nomeado para sua execução. Se é para dar crédito ao que contavam, o número prodigioso desses seres que foram destruídos é inacreditável. Acho que falaram em quarenta mil cachorros e cinco vezes mais gatos. Poucas casas não tinham um gato, algumas tinham vários, às vezes seis numa mesma casa. Também foram feitos todos os esforços possíveis para acabar com ratos e camundongos, principalmente os ratos, espalhando-se mata-rato e outros venenos e uma quantidade também prodigiosa deles foi eliminada. Muitas vezes pensei em todo o corpo da população e as condições precárias em que se encontrava quando a calamidade a atingiu pela primeira vez e como foi por falta de medidas e providências em tempo hábil, tanto públicas quanto privadas, que aconteceu toda aquela confusão entre nós, com uma quantidade tão grande de gente sucumbindo nessa tragédia que, com medidas apropriadas e ajuda da Providência, poderia ser evitada. A posteridade, se assim quiser, poderá acatar isso como aviso e advertência, mas voltarei a este assunto novamente. Retorno aos três homens. A história deles tem uma moral em cada uma de suas partes e toda a conduta deles e de alguns daqueles a quem se uniram é um padrão a ser seguido por todo homem pobre, mulheres também, caso um tempo como aquele volte outra vez. Se não houvesse outro objetivo, acho esta uma razão muito justa para registrar a história, seja meu relato exatamente de acordo com os fatos ou não. Diziam que dois deles eram irmãos, um era um velho soldado, então padeiro, o outro um marinheiro aleijado, então fabricante de velas e o terceiro era carpinteiro. John, o padeiro, um dia disse para seu irmão Thomas, o veleiro: “Mano Tom, o que será de nós? A peste cresce firme na cidade e vem nesta direção. O que devemos fazer?” “É verdade – disse Tom –, estou bem perdido sobre o que fazer e se ela vier para Wapping, acho que serei expulso de onde moro.” Assim, começaram a conversar sobre a peste com antecedência: John – Expulso de onde moras, Tom! Se o fores, não sei quem te alojará, as pessoas estão com tanto medo uma das outras que agora ninguém consegue um quarto onde quer que seja. Thomas – É que moro com gente boa, pessoas civilizadas e também são muito gentis comigo, mas dizem que saio para trabalhar todos os dias e que isso é muito perigoso. Estão falando em se trancar dentro de casa, sem deixar que ninguém chegue perto deles. John – Eles é que estão certos, tenha certeza, se resolverem se arriscar ficando na cidade. Thomas – Nada disso, eu também poderia ficar dentro de casa. Com exceção de um jogo de velas que encomendaram a meu patrão e que já estou terminando, é provável que

não consiga trabalho nenhum por muito tempo. Agora, não há movimento no comércio. Trabalhadores e empregados são demitidos em todos os lugares. Por isso, também ficaria feliz me encerrando dentro de casa, mas não os vejo com vontade de permiti-lo, nem a mim nem a qualquer outro. John – Por quê? Então, mano, o que vais fazer? E o que eu devo fazer? Estou quase tão mal quanto tu. As pessoas que me hospedam fugiram todas para o interior, menos uma criada e ela também vai embora na próxima semana, deixando a casa bem trancada, assim que ficarei à deriva no grande mundo antes de ti. Eu também estou decidido a ir embora, se ao menos soubesse para onde ir. Thomas – Fomos dois loucos não fugindo logo no começo, quando podíamos viajar para qualquer lugar. Agora, não há movimento, morreremos de fome se tentarmos sair da cidade. Não nos deixarão comprar comida, não aceitarão nosso dinheiro, não nos deixarão entrar nas suas cidades, muito menos nas suas casas. John – E o que chega a ser pior, é que tenho pouco dinheiro para me socorrer seja como for. Thomas – Quanto a isso, podemos dar um jeito. Tenho um pouco, mas não é muito. Mas te garanto que não há circulação pelas estradas. Conheço dois homens pobres e honestos, lá da nossa rua, que tentaram viajar e em Barnet, em Whestone ou por ali, os moradores disseram que atirariam se tentassem ir em frente. Os dois voltaram muito desencorajados. John – Se estivesse lá, teria me arriscado aos tiros. Se me negarem comida por dinheiro, verão que a pego diante de seus olhos. Por lei, não terão direito de vir contra mim, porque ofereci meu dinheiro pela comida. Thomas – Falas a língua do velho soldado, como se ainda estivesses nos Países Baixos, mas aqui a coisa é mais séria. Num tempo como esse, as pessoas têm boas razões para manter distância de qualquer um que não estejam convencidas de ser sadio. E não devemos roubar. John – Não, mano, não entendeste a situação, nem me entendeste. Eu não roubarei de ninguém, só numa cidade de beira de estrada que se negue a me deixar passar pelo meio de uma estrada aberta ou se negue a me dar alimento por dinheiro, porque isto significa que a cidade tem o direito de me matar de fome, o que não é verdade. Thomas – Eles não te tiram a liberdade de voltar para o lugar de onde saiste. Portanto, não te obrigam a passar fome. John – Mas a próxima cidade atrás de mim, pela mesma lei, vai me proibir de voltar e assim eles vão mesmo me matar de fome entre duas cidades. Além disso, não há lei que me proíba de viajar pela estrada para onde quer que eu queira. Thomas – Mas vai ser muito difícil discutir isso em todas as cidades à beira da estrada. Isto não é para gente pobre fazer ou se meter a fazer, principalmente numa época como esta. John – Então, mano, nesse momento nossa situação é pior do que a de qualquer outro, porque não podemos nem ir embora nem ficar aqui. Sou da mesma opinião dos leprosos de Samaria: “Se ficarmos aqui, é certo que morreremos”. Penso principalmente nas condições em que tu e eu nos encontramos, sem a nossa casa própria e sem alojamento na casa de mais ninguém. Num tempo como este, não dá para dormir pelas ruas, é o mesmo que ir direto para o carro dos mortos. Por isso, digo que ficar aqui é morte certa, mas se formos embora poderemos até morrer. Estou decidido a ir logo.

Thomas – Tu vais embora, mas para onde? O que podes fazer? Eu também quero ir embora contigo, se souber para onde ir. Não temos conhecido nenhum, amigo nenhum. Nascemos aqui e aqui vamos morrer. John – Veja bem, Tom! O reino inteiro é meu país, tanto quanto esta cidade. Podes muito bem dizer que não devo abandonar minha casa quando está em chamas e que não devo abandonar a cidade onde nasci quando está tomada pela peste. Nasci na Inglaterra e tenho o direito de viver aqui se puder. Thomas – Sabes que pelas leis da Inglaterra qualquer pessoa errante pode ser detida e enviada de volta à sua última residência legal. John – E como me transformarão num vagabundo? Quero apenas viajar, conforme me permite a lei. Thomas – Como vamos fingir que queremos viajar conforme a lei, não vamos vagar por aí? Eles não cederão com palavras. John – Fugir para salvar nossas vidas não está dentro da lei? Será que todos não sabem que isto é verdade? Não podem dizer que fingimos. Thomas – Digamos que nos deixem passar, para onde vamos? John – Para qualquer lugar, vamos salvar nossas vidas. Está na hora de sair fora desta cidade e quando eu estiver longe desse lugar maldito não me importa para onde vá. Thomas – Nós nos defrontaremos com grandes privações. Não sei o que pensar sobre isto. John – Bem, Tom, pense um pouco nisso. Era o começo de julho e, embora a peste se dirigisse para as zonas norte e oeste da cidade conforme disse antes, toda Wapping, Redriff, Ratcliff, Limehouse e Poplar, em suma, Deptford e Greenwich, todos os dois lados do rio até o Hermitage e também do outro lado, bem para baixo até Blackwall, ainda estavam completamente livres da doença. Não havia uma única pessoa morta de peste na paróquia de Stepney e também nenhuma no lado sul de Whitechapel Road. Não, ninguém com peste em qualquer paróquia. Mesmo assim, o registro de óbitos daquela semana subiu para 1.006. Duas semanas depois, os dois irmãos voltaram a se encontrar e, então, a situação se alterara um pouco, com a peste avançando muito e o número de mortos aumentando uma enormidade. O registro de óbitos subiu para 2.785 e continuou crescendo prodigiosamente, embora ambos os lados do rio, acima como abaixo, continuassem bastante bem. Quando morreram alguns em Redriff e outros cinco ou seis em Ratcliff Highway, o fabricante de velas veio até seu irmão para expressar e reconhecer um certo medo: fora definitivamente prevenido para deixar seu alojamento e tinha apenas uma semana para se arranjar. John estava numa situação igualmente ruim, também fora mandado embora e pedira permissão a seu patrão, o fabricante de biscoitos, para se instalar numa casa afastada que fazia parte dos galpões de trabalho, onde dormia somente sobre a palha com alguns sacos de biscoito ou sacos de pão, como eram chamados, deitando-se sobre alguns e cobrindo-se com outros. Aqui (vendo o fim de todos os empregos, ficaram sem trabalho ou salário para receber), decidiram-se a fazer todo o possível para ficar fora do alcance da terrível epidemia e, sendo tão econômicos quanto pudessem, tentariam viver com o que dispunham enquanto conseguissem. Depois, trabalhariam se encontrassem trabalho em qualquer parte, fariam qualquer serviço, fosse o que fosse. Enquanto pensavam na melhor maneira possível de pôr em prática esta decisão, o terceiro homem, que era um velho conhecido do veleiro, ficou sabendo do plano e pediu para ir junto. E, assim, os três se prepararam para partir.

Acontecia que não tinham quantias iguais em dinheiro, mas o fabricante de velas, que tinha melhores reservas, também era aleijado e o menos capacitado para conseguir qualquer coisa trabalhando no interior e, por isso, ele concordou que todo o dinheiro de que dispunham formasse um fundo comum, sob condição de que qualquer quantia que um ganhasse a mais que os outros fosse somada, sem qualquer relutância, ao fundo comum. Resolveram carregar o mínimo possível na bagagem, pois, em princípio, viajariam a pé, percorrendo um longo caminho até que, se possível, se sentissem efetivamente seguros. Tiveram muitas discussões antes de chegar a um acordo sobre o caminho que deveriam seguir e na madrugada em que iam partir ainda estavam longe da concórdia, sem se decidir sobre o caminho. Finalmente, o marinheiro colocou algo que resolveu a questão. “Primeiro – ele disse –, o tempo está muito quente e, por isso, acho que deveríamos ir para o norte, pois nesta direção não teremos o sol no rosto, nem batendo em nossos peitos, o que nos aqueceria e sufocaria. Alguém me disse – acrescentou – que não é bom esquentar demais o corpo num tempo em que, pelo que sabemos, a doença pode estar no ar. Em segundo lugar – disse –, sou a favor de irmos no sentido contrário ao do vento, conforme ele sopre quando partirmos, para que o vento não traga o ar da cidade nas nossas costas enquanto nos afastamos.” Estas duas precauções foram aprovadas e eles concluíram que o vento não deveria vir do sul quando partissem para o norte. John, o padeiro que foi soldado, deu então sua opinião, dizendo: “Primeiro, nenhum de nós espera conseguir hospedagem pela estrada e vai ser um pouco duro dormir só ao relento. O tempo pode estar quente, mas pode ficar chuvoso e úmido e temos uma dupla razão para cuidarmos de nossa saúde numa época como esta. Portanto – acrescentou –, tu, mano Tom, és fabricante de velas e facilmente podes nos fazer uma barraca, eu me encarrego de armá-la todas as noites e depois desarmá-la. Se tivermos uma boa barraca sobre nossas cabeças, nos sairemos muito bem e uma figa para todas as hospedarias da Inglaterra”. O carpinteiro se opôs, dizendo que deixassem isso para ele. Com seu machado e martelo, embora tivesse outras ferramentas, ele se comprometia a construir todas as noites uma casa de madeira tão a gosto e tão boa quanto uma barraca. O soldado e o carpinteiro discutiram essa questão por algum tempo e, no final, o soldado convenceu-os a favor da barraca. A única objeção era que teriam que carregá-la e, o clima estando tão quente, isto aumentaria demais sua bagagem. Mas o fabricante de velas teve um lance de sorte que tornou isso fácil. O patrão para quem trabalhava, além da fábrica de velas, tinha uma cordoaria e um cavalo pequeno e pobre que não lhe servia para nada. Querendo ajudar aqueles três homens honestos, deu-lhes o cavalo para transportar sua bagagem. E, em troca de três dias de trabalho de seu empregado antes de partir, deu-lhe uma velha vela mestra de galeão que estava estragada, mas era bastante e mais do que suficiente para fazer uma barraca muito boa. O soldado mostrou como dar forma à vela e, sob sua orientação, logo fizeram a barraca com varas e pinos apropriados. Assim, ficaram prontos para viajar, ou seja: três homens, uma barraca, um cavalo e uma arma – o soldado não iria desarmado e, agora dizia não ser mais padeiro, mas um cavalariano. O carpinteiro tinha pequena bolsa de ferramentas que poderiam ser úteis se conseguisse qualquer serviço lá fora, tanto para a sua quanto para a subsistência de todos. Colocaram todo o dinheiro que tinham num fundo comum e começaram sua jornada. Na manhã em que saíram, parece que o vento soprava, conforme disse o marinheiro com sua

bússola de bolso, de noroeste a oeste. Assim, dirigiram-se ou antes decidiram dirigir sua rota para o noroeste. Então, surgiu uma dificuldade no caminho. Saíram na extremidade de cá de Wapping, perto do Hermitage, e a peste estava muito violenta, principalmente na zona norte da cidade, como na paróquia de Cripplegate e Shoreditch. Não se sentiram seguros se aproximando daquelas zonas. Assim, foram para o leste, cruzando Ratcliff Highway e se afastando até Ratcliff Cross, mas sempre mantendo Stepney Church no seu lado esquerdo, por medo de ir de Ratcliff Cross até Mile End, onde teriam que passar perto do cemitério e o vento parecia soprar mais do oeste, vindo diretamente do lado da cidade onde a peste estava mais forte. Quero dizer que, saindo de Stepney, eles deram uma longa volta, indo para Poplar e Bromley e chegaram na estrada principal só em Bow. Ali, o guarda postado na ponte de Bow os teria interrogado, mas eles, cruzando a estrada e entrando num caminho estreito que sai do lado de cá, no fim da cidade de Bow, em direção a Old Ford, evitaram qualquer interrogatório e viajaram para Old Ford. Ao que parece, a polícia montava guarda em todos os lugares, não para impedir as pessoas de circularem, mas para impedi-las de se demorarem em suas cidades, ainda mais que surgiam novas informações que, naquele tempo, realmente não eram tão improváveis: o povo pobre de Londres, estando desesperado e faminto por falta de trabalho e, assim, falta de pão, teria pego em armas e promovido uma arruaça e logo invadiria todas as outras cidades próximas para saquear alimentos. Isto, eu repito, era apenas um rumor e foi bom que não passasse disso, mas não estava tão longe de ser uma realidade como muitos acreditavam, pois mais algumas semanas e o povo ficaria tão desesperado diante da calamidade que sofria que só com grande dificuldade se impediria que fugisse pelos campos e cidades, reduzindo tudo a pedaços por onde passasse. Como mencionei antes, nada o impedia, só a peste, que atacava tão violentamente, atingindo a todos tão furiosamente, que as pessoas iam antes para a cova aos milhares do que para os campos em turbas de milhares. Nas áreas próximas às paróquias de St Sepulcher, Clarkenwell, Cripplegate, Bishopsgate e Shoreditch, os lugares onde a multidão começou a fazer ameaças, a doença atacou tão furiosamente que só naquelas poucas paróquias morreram não menos do que 5.361 pessoas nas primeiras três semanas de agosto, antes ainda da peste chegar com toda força. Enquanto isso, na mesma época, zonas próximas a Wapping, Radcliffe e Rotherhith foram, conforme descrito anteriormente, esparsamente atingidas, mas muito suavemente, de modo que, em poucas palavras, como já disse, a boa administração do Lorde Prefeito e dos juízes muito contribuiu para impedir que a fúria e o desespero do povo explodissem em arruaças e tumultos; em suma: que os pobres roubassem os ricos. Acrescento que, embora tenham feito muito, o carro dos mortos fez mais: somente naquelas cinco paróquias, como já disse, morreram mais de cinco mil em vinte dias e, por isso, o número de pessoas doentes provavelmente fosse três vezes maior o tempo inteiro, pois alguns se recuperavam, mas um grande número caía doente e morria em seguida. Além disso, ainda devo ter permissão para dizer que, se os registros de óbitos indicavam cinco mil, sempre acreditei que, na verdade, fosse o dobro, pois não havia condições para se acreditar que a contagem que faziam estivesse correta, ou mesmo porque, como pude vê-los, estavam no meio de muita confusão, sem condições para fazer uma contagem exata. Retorno a meus viajantes. Ali, eles foram somente inspecionados e, como mais pareciam vir do interior do que da cidade, sentiram as pessoas mais à vontade com eles. Elas conversaram, deixaram eles entrar nas tavernas públicas onde se encontraram com guardas e policiais; ofereceram bebida e alguma comida, o que muito os reconfortou e

encorajou. Ali, surgiu nas suas cabeças a idéia de dizerem, quando lhes fosse posteriormente perguntado, que não vinham de Londres, mas de Essex. Para levar adiante esta pequena falsificação, conseguiram que um policial de Old Ford lhes desse de favor um certificado de que chegaram naquela cidade vindos de Essex e que não estiveram em Londres, o que, embora falso na concepção comum de Londres no condado, era literalmente verdade, pois Wapping e Ratcliff não faziam parte nem da city nem da liberty. Este certificado, endereçado ao próximo policial, que ficava em Homerton, um dos povoados da paróquia de Hackney, revelou-se tão útil, que rendeu não apenas a livre circulação por lá, mas outro certificado completo de saúde da parte de um juiz de paz que, por solicitação do policial, o forneceu sem maiores dificuldades. Assim, atravessaram a longa e dividida cidade de Hackney (que então se espalhava em vilas separadas). Foram adiante, até chegarem na grande estrada do norte, no alto de Stamford Hill. Nesse momento, começaram a se cansar. Pouco antes de chegarem na dita grande estrada, ainda na estrada que vinha de Hackney, resolveram armar sua barraca e acampar pela primeira noite. Fizeram isso confortavelmente, com uma vantagem, pois encontraram um estábulo ou uma construção semelhante a um estábulo e, depois de inspecionarem bem e ter certeza que não havia pessoa alguma nele, armaram sua barraca com a entrada de frente para o estábulo. Fizeram isso porque o vento soprava muito forte aquela noite e eles eram inexperientes naquela forma de alojamento e no manejo de uma barraca. Então, foram dormir. O carpinteiro, um homem sério e sóbrio, insatisfeito por se acomodarem de maneira tão precária já na primeira noite, não conseguiu dormir e resolveu, depois de tentar pegar no sono sem sucesso, levantar-se e, com a arma na mão, fazer sentinela protegendo seus companheiros. Assim, com a arma na mão, ele ficou caminhando para lá e para cá na frente do galpão, que se encontrava num campo próximo da estrada, mas dentro de um cercado. Não estava há muito na sua vigília quando escutou barulho de gente se aproximando. Teve a impressão de ser muita gente e eles vinham, como pensou, diretamente para o galpão. Não despertou imediatamente seus companheiros, mas, poucos minutos depois, o barulho ficou cada vez mais alto e o padeiro o chamou, perguntando o que estava acontecendo e saindo rapidamente para fora. O outro, sendo um marinheiro aleijado e o mais cansado, continuou deitado na barraca. Conforme previram, escutavam as pessoas dirigindo-se para o galpão, quando um dos nossos viajantes os interpelou feito um soldado montando guarda: “Quem vem lá”? O grupo não reagiu em seguida, até um deles falar para os que vinham atrás. Ele disse: “Ai de mim! Ai de mim! Estamos todos perdidos. Alguém chegou antes de nós, o galpão já está ocupado”. Diante disso, todos pararam um pouco assustados, pois parecia que era um grupo de treze pessoas no total, sendo algumas mulheres e crianças. Discutiram entre si o que deveriam fazer e pela sua conversa nossos viajantes logo descobriram que também eram pobres desesperados como eles, procurando abrigo e segurança. Além disso, nossos viajantes não precisavam temer que lhes viessem a perturbar, pois assim que o grupo ouviu as palavras “quem vem lá”, escutaram as mulheres dizerem com medo: “Não vos aproximeis deles. Como sabeis se não estão com peste?” Foi quando um dos homens falou: “Vamos só conversar com eles”. A mulher disse: “Não, de jeito nenhum. Conseguimos nos salvar até agora pela graça de Deus. Não vamos nos arriscar agora. Nós te imploramos”. Assim, nossos viajantes descobriram que eles eram um tipo de gente boa e sensata fugindo para salvar suas vidas, como eles mesmos faziam. Foram encorajados pelo que

ouviram e John disse para o carpinteiro, seu parceiro: “Vamos incentivá-los como pudermos”. Então, o carpinteiro chamou-os dizendo: “Escuta aqui, gente boa. Pela vossa conversa, nós achamos que vós estais fugindo do mesmo inimigo terrível que nós. Não tende medo de nós. Somos apenas três homens pobres. Se estais livres da peste, não sereis feridos por nós. Não estamos no galpão, mas numa pequena barraca do lado de fora e vamos nos mudar por vós. Podemos armar nossa barraca imediatamente em qualquer outro lugar”. Depois, aconteceu esta conversa entre o carpinteiro, cujo nome era Richard, e um dos homens do grupo, que disse se chamar Ford: Ford – Garantis que sois todos homens sãos? Richard – Nada disso. Estamos tentando dizer que não precisais vos inquietar ou pensar em correr perigo. Não vedes que não desejamos que vós representeis qualquer perigo para nós. Por isso, estou dizendo que não utilizaremos o galpão e vamos nos afastar dele para que fiqueis seguros. E nós também. Ford – Isto é muito gentil e caridoso. Estamos convencidos de que sois saudáveis e livres do flagelo. Por que faríamos vos deslocardes agora que estais instalados em vosso alojamento e, pode ser, deitados para descansar? Se estiverdes de acordo, iremos para dentro do galpão descansar um pouco e não precisaremos perturbar-vos. Richard – Bem, sois mais do que nós. Espero que também assegureis que estais todos sãos, pois o perigo de nós contaminar-vos é tão grande quanto o de que vós nos contamineis. Ford – Deus seja louvado por alguns se salvarem, mesmo sendo tão poucos. Ainda não sabemos qual será nossa sorte, mas até agora fomos poupados. Richard – De que parte da cidade saístes? A peste já estava nos lugares onde vivíeis? Ford – Ai, ai, da maneira mais pavorosa e terrível ou não teríamos fugido assim como fizemos. Achamos que muito poucos continuarão vivos atrás de nós. Richard – De onde vieste? Ford – Em maioria, somos da paróquia de Cripplegate, só dois ou três são da paróquia de Clarkenwell, mas do lado de lá. Richard – Então por que não fugísteis antes? Ford – Estamos fora de lá há algum tempo e continuamos juntos tão bem quanto conseguimos, na extremidade de cá de Islington, onde nos deixaram ficar numa velha casa abandonada, com algumas camas e os utensílios que trouxemos conosco. Mas a peste já está chegando a Islington e a casa ao lado da nossa pobre moradia foi contaminada e fechada. Fomos embora de medo. Richard – Que caminho estais fazendo? Ford – Por onde nos deixam passar. Não sabemos para onde, mas Deus guiará aqueles que erguerem os olhos para Ele. Nesse momento, a conversa não foi mais adiante. Com alguma dificuldade, o grupo todo entrou no galpão. Não havia nada além de feno, o galpão estava quase cheio de feno. Acomodaram-se o melhor que puderam para descansar. Nossos viajantes observaram que, antes de dormir, um velho que parecia ser o pai de uma das mulheres foi rezar com todo o grupo, pedindo a benção e a orientação da Providência, antes de irem dormir. Naquela época do ano, logo era dia. Richard, o carpinteiro, montou guarda a primeira parte da noite e John, o soldado, o rendeu, ficando a postos de madrugada. Assim, puderam conhecê-los melhor. Parece que deixaram Islington pensando em ir para o norte, afastandose de Highgate, mas foram barrados em Holloway, onde não os deixaram passar. Então, atravessaram os campos e montanhas rumo ao leste, saindo em Boarded River e assim

evitaram as cidades, mantendo Hornsey no lado esquerdo e Newington no direito. Entraram na grande estrada perto de Stamford Hill, enquanto os três viajantes vieram pelo outro lado. Pensavam em seguir pelos banhados do rio até chegar a Epping Forest, onde tinham esperança de conseguir permissão para descansar. Parece que não eram pobres, pelo menos tão pobres a ponto de passarem necessidades. Tinham o suficiente para subsistir moderadamente por dois ou três meses, quando, como disseram, esperavam que o frio contivesse a epidemia, ou que, pelo menos, passasse sua fúria e a peste diminuísse, mesmo que fosse pela falta de gente viva para ser contaminada. Este era o mesmo destino dos nossos três viajantes, que apenas pareciam melhor equipados para viajar. Levaram isso em consideração antes de ir adiante, porque, no começo, não se dispunham a ir além de um dia de jornada, de modo que, a cada dois ou três dias, recebessem notícias de como andavam as coisas em Londres. Aqui, nossos viajantes se depararam com um inesperado inconveniente: isto é, o cavalo. Para que carregasse sua bagagem, eram forçados a continuar pela estrada, enquanto as pessoas do outro grupo seguiam por campos e estradas com ou sem trilha, com ou sem caminho, conforme lhes conviesse. Tampouco havia qualquer possibilidade de passar por dentro de qualquer cidade, nem mesmo de se aproximar de qualquer cidade, a não ser para comprar as coisas que achassem necessárias para sua subsistência. Por isso, é verdade, encontravam-se diante de muitas dificuldades, cada uma num lugar. Nossos três viajantes seriam obrigados a continuar pela estrada, ou causariam danos e grandes estragos nos campos, derrubando cercas para cruzar campos cercados e isto os repugnava fazer, se pudessem evitá-lo. Nossos três viajantes, no entanto, estavam com sérias intenções de juntar-se àquele grupo e levar as suas coisas. Depois de alguma discussão, abandonaram seu primeiro projeto de ir para o norte e resolveram ir com os outros para Essex. De manhã, pegaram sua barraca e a puseram junto com a carga no cavalo, indo todos juntos. Tiveram algumas dificuldades para cruzar o rio, pois o barqueiro ficou com medo deles. Depois de algumas palavras a distância, o barqueiro concordou em levar seu barco para um lugar bem distante de onde embarcava habitualmente, deixando-o ali para que o apanhassem. Quando embarcaram, ele os orientou para que abandonassem o barco, pois, tendo outro barco, ele o encontraria mais tarde, o que, no entanto, parece que ele não fez por mais de oito dias. Aqui, dando o dinheiro de antemão ao barqueiro, conseguiram um suprimento de comida e bebida, que ele trouxe e deixou para eles no barco; mas, como eu disse, só depois de receber o dinheiro de antemão. Nossos viajantes, então, viram-se perdidos e com dificuldades para embarcar o cavalo, pois o barco era pequeno e sem condições para isso. No fim, não puderam embarcá-lo, mas tiraram a sua carga e ele veio nadando. No rio, viajaram em direção à floresta, mas quando chegaram em Walthamstow, o povo daquela cidade se recusou a recebê-los, como acontecia em todos os lugares. Os policiais e os vigias conversaram com eles a distância. Eles contaram a mesma história anterior, mas não mereceram o menor crédito para o que disseram, justificando-se isto pelo fato de dois grupos já terem vindo por aquele caminho contando histórias parecidas e espalhando a doença para muita gente nas cidades por onde passaram, sendo, posteriormente, muito maltratados pelo interior (embora também com justiça, conforme mereciam). Perto de Brentwood, ou naquela direção, vários morreram pelos campos – não sabiam dizer se de peste ou de simples carência.

De fato, isto era uma boa razão para os moradores de Walthamstow serem muito cautelosos. Eles resolveram não receber qualquer pessoa de que não estivessem plenamente convencidos de sua saúde. Richard, o carpinteiro, e um dos outros homens falaram que isso não era motivo para bloquearem as estradas e proibirem passar pela cidade pessoas que não pediam nada além de caminhar pelas ruas. Se os moradores estavam com medo deles, que fossem para dentro de suas casas e trancassem suas portas. Não estariam demonstrando nem hospitalidade nem inospitalidade, mas apenas cuidando dos seus interesses. Os policiais e os auxiliares, sem se deixarem persuadir pela razão, continuaram obstinados sem dar ouvidos a ninguém. Assim, os dois homens com quem conversavam voltaram para seus companheiros a fim de consultá-los sobre o que deveriam fazer. A situação toda era muito desanimadora e não souberam o que fazer por um bom tempo. Finalmente John, o soldado e padeiro, pensando um pouco, disse: “Gente, deixai o resto da conversa comigo”. Ele ainda não fora visto. Botou o carpinteiro para trabalhar, cortando alguns galhos de árvores e deixando-os o mais parecido que pôde com armas. Em pouco tempo, tinham cinco ou seis galhos parecidos com mosquetes, que não seriam reconhecidos a distância. No lugar onde ficaria o gatilho, amarraram trapos e panos que encontraram, assim como fazem os soldados em tempo de chuva para proteger os gatilhos de suas armas contra a ferrugem. O resto foi descolorido com lodo e barro, conforme o que conseguiram. Este tempo todo, os outros sentaram-se embaixo das árvores formando grupos de dois ou três na sua frente. Fizeram uma fogueira e ficaram a uma boa distância uns dos outros. Quando se aprontaram, o próprio soldado avançou junto com dois ou três, armando a barraca na beira da estrada, dentro do campo de visão da barricada erguida pelos homens da cidade. Ele posicionou-se ao lado, como uma sentinela com a arma verdadeira, a única que tinham caminhando de um lado para outro com a arma nas costas, de modo que fosse visto pelo povo da cidade. Também amarrou o cavalo à porteira de um cercado, juntou alguns gavetos secos e fez uma fogueira do outro lado da barraca, de modo que o povo da cidade pudesse ver o fogo e a fumaça, mas não conseguisse ver o que estavam fazendo. Depois de ficarem observando-os preocupados durante algum tempo, por tudo que conseguiam ver, os camponeses não podiam pensar em outra coisa a não ser que havia soldados suficientes para formar uma companhia. Começaram a ficar inquietos, não por estarem de passagem mas por acamparem ali onde estavam; acima de tudo, percebendo que tinham cavalos e armas, pois viram um cavalo e uma arma junto à barraca e viam outros caminhando pelos campos no lado de dentro da cerca, à beira da estrada, com seus mosquetes nas costas. Diante de uma visão como esta, afirmo e vós podeis ter certeza que eles ficaram terrivelmente assustados e amedrontados. Parece que procuraram o juiz de paz para saber o que deveriam fazer. Não sei o que o juiz lhes aconselhou, mas, no começo da noite, gritaram da barreira para a sentinela da barraca, como acima. “O que quereis?”, disse John.11 “O que pretendeis fazer”?, disse o policial. “Fazer – disse John –, o que quereis que façamos?” Policial – Por que não seguis em frente? Por que estais aí acampados? John – Por que nos deteis numa estrada do rei e vos negais a permitir que sigamos em nosso caminho? Policial – Não somos obrigados a explicar nossos motivos. Deixamos bem claro que é por causa da peste. John – Já dissemos que somos todos saudáveis, sem peste, mas isso não conseguiu convencer-vos e ainda pretendeis interditar a estrada.

Policial – Temos este direito de vos barrar. É nossa própria segurança que nos obriga. Além disso, esta estrada não é do rei, é um caminho sob controle privado. Vês este portão aqui. Para deixar algum passar, fazemos pagar pedágio. John – Temos tanto direito de buscar nossa própria segurança quanto vós. Podeis ver que estamos fugindo por nossas vidas e é muito injusto e anticristão impedir-nos de passar. Policial – Podeis voltar para o lugar de onde viestes, não vos proibimos disto. John – Não, é um inimigo mais forte do que vós aquele que nos impede de fazer isso. Caso contrário, não teríamos vindo até aqui. Policial – Então, podeis seguir por qualquer outro caminho. John – Não e não. Suponho que podeis ver que, quando quisermos, somos capazes de expulsar a vós e a toda a população da vossa paróquia para atravessar a cidade. Uma vez que nos param aqui, nos conformamos. Como podeis ver, acampamos e vamos ficar aqui. Espero que nos forneçam alimentos. Policial – Fornecer alimentos! O que quereis dizer com isto? John – Não nos deixareis passando fome, deixareis? Se vós nos deteis, deveis nos manter. Policial – Passareis mal com nossa manutenção. John – Se nos tratardes mal, teremos que fazer o que for melhor para nós. Policial – O quê? Não pretendeis vos aquartelar à força junto a nós, pretendeis? John – Ainda não fizemos violência nenhuma convosco. Por que pareceis nos obrigar a isto? Sou um velho soldado, não posso passar fome e se pensais que seremos obrigados a voltar por falta de mantimentos, estais muito enganados. Policial – Já que nos ameaçais, teremos que cuidar para nos mantermos fortes o suficiente para enfrentar-vos. Tenho ordens de levantar o condado contra vós. John – Sois vós que ameaçais, não nós. Uma vez que sois pela discórdia, não podeis nos condenar se não dermos tempo nem para isto. Começaremos nossa marcha em poucos minutos.12 Policial – O que quereis de nós? John – Primeiro, não queremos nada, a não ser cruzar a cidade. Não oferecemos perigo algum e qualquer um de vós não precisa ter medo de qualquer perda ou dano conosco. Não somos ladrões, mas gente pobre e desesperada, fugindo de uma peste terrível em Londres, que devora milhares toda semana. Ficamos pensando como podeis ser tão sem misericórdia! Policial – A autopreservação nos obriga. John – O quê? Não ter compaixão numa situação de tanto sofrimento como esta? Policial – Bem, se passardes pelos campos do lado esquerdo, seguindo depois por aquele lado da cidade, eu pedirei que vos abram os portões. John – Nossos cavalarianos13 não podem passar por aquele caminho com nossa bagagem e ele não nos leva para a estrada que queremos. Por que nos mandais para longe da estrada? Além disso, nos fizestes ficar aqui o dia inteiro sem mantimentos, a não ser o que trouxemos conosco. Acho que deveríeis mandar alimentos para nos ajudar. Policial – Se seguirdes por outro caminho, mandaremos alguns mantimentos. John – Desta maneira, teremos todas as cidades do interior se preparando contra nós. Policial – O que será pior para vós, se todas elas oferecerem comida? Vejo que tendes barracas, não necessitais alojamento. John – Bem, que quantidade de alimentos nos enviareis? Policial – Quantos sois?

John – Nada disso. Não pedimos o suficiente para toda nossa companhia. Estamos em três companhias e se nos mandardes pão para manter vinte homens e seis ou sete mulheres por três dias e nos indicardes o caminho pelos campos que mencionastes, não desejamos expor vosso povo a qualquer ameaça vinda de nós. Para vos respeitar, sairemos do nosso caminho, embora estejamos tão livres da epidemia quanto vós estais.14 Policial – E tu garantes que o resto do teu pessoal não causará novos distúrbios? John – Não, não. Podeis acreditar nisso. Policial – Também tens que prometer que nenhum de vós dará um passo adiante do lugar onde forem deixados os mantimentos e vós esperareis sentados. John – Eu respondo por isso, nós não o faremos. Conforme o combinado, enviaram para este lugar vinte porções de pão e três ou quatro pedaços grandes de carne boa. Abriram alguns portões e por aí se foram. Nenhum deles teve coragem de vê-los partindo. Se tivessem olhado, não conseguiriam ficar sabendo que eram tão poucos, porque estava anoitecendo. Este foi o resultado da atuação de John, o soldado. O caso se espalhou com grande alarme pelo condado. Se realmente fossem as duas ou três centenas, o condado todo teria se levantado contra eles, que terminariam enviados para a prisão ou surrados na cabeça. Logo se deram conta disso. Dois dias depois, encontraram-se com várias partidas de homens a pé e a cavalo perseguindo pelas redondezas as três companhias de homens armados com mosquetes, como disseram, vindos de Londres com a peste e que estavam não apenas espalhando a doença no povoado, mas também saqueando os campos. Então, vendo a conseqüência do que fizeram, logo reconheceram o perigo em que se encontravam. Também por conselho do velho soldado, resolveram se dividir mais uma vez. John e seus dois camaradas, com o cavalo, seguiram como se fossem a caminho de Waltham. Os outros, em dois grupos, mantendo uma certa distância entre si, foram para Epping. Na primeira noite, todos acamparam na floresta não muito longe uns dos outros e não armaram a barraca, pois ela certamente os denunciaria. Richard, por outro lado, pôs-se a trabalhar com seu machado e martelo, cortando galhos de árvores e construindo três cabanas ou choças, nas quais se instalaram com todo o conforto que poderiam esperar. Os mantimentos que conseguiram em Walthamstow os saciaram plenamente aquela noite. A próxima, eles entregaram à Providência. Tinham se saído tão bem com o plano do velho soldado que quiseram fazer dele o seu líder, já que a primeira de suas determinações parecia muito boa. Ele disse que estavam a uma boa distância de Londres e, como não precisavam sair em seguida procurando ajuda pelos campos, tinham que ser muito cuidadosos para não se contaminarem nem contaminarem o interior. Com o pouco dinheiro que tinham, deveriam ser o mais comedidos que pudessem. Não lhes passava pela cabeça fazer uso da violência no interior e deveriam se empenhar para manter o interior nestas condições o máximo que conseguissem. Todos concordaram com esta orientação e, no dia seguinte, deixaram suas casas armadas e seguiram em direção a Epping. O capitão (como passou a ser chamado) e seus dois companheiros de viagem deixaram de lado o plano de ir para Waltham e todos continuaram juntos. Quando chegaram perto de Epping, escolheram um lugar adequado na mata aberta e pararam numa clareira de árvores cortadas rente ao chão, não muito perto, nem longe demais do lado norte da estrada. Ali instalaram seu pequeno acampamento, que consistia em três tendas ou cabanas feitas de galhos que o carpinteiro e seus auxiliares cortaram e firmaram em círculo no chão, amarrando as pontas pequenas em cima e estufando os lados

com galhos e arbustos, de modo que ficassem completamente abrigados e aquecidos lá dentro. Tinham, além disso, uma pequena cabana onde dormiam as mulheres e uma choça para o cavalo. No dia seguinte, ou dois dias depois era dia de feira em Epping. O capitão John e um de seus homens foram ao mercado e compraram alguns mantimentos; quer dizer, pão e um pouco de carne de vaca e de carneiro. Duas mulheres, separadamente, foram lá como se não pertencessem ao grupo e compraram mais. John trouxe o cavalo para levar tudo para casa, dentro do saco onde o carpinteiro carregava suas ferramentas. O carpinteiro se pôs a trabalhar e fez bancos e banquetas para se sentarem, conforme a madeira que encontrasse, e ainda fez um tipo de mesa para jantarem. Não chamaram a atenção durante dois ou três dias. Depois, uma multidão saiu da cidade para vê-los. Todo o interior ficou alarmado. No princípio, o povo parecia com medo de se aproximar, mas eles, por outro lado, queriam que o povo se mantivesse longe, pois havia rumores de que a peste estava em Waltham e que estivera em Epping dois ou três dias. John, então, gritou para que não se aproximassem “porque – ele disse – somos todos totalmente saudáveis e não queremos que tragais a peste até nós, assim como não a traremos para perto de vós”. Depois disso, os funcionários da paróquia vieram até eles e conversaram a uma certa distância, querendo saber quem eram e com que autoridade pretendiam armar suas tendas naquele lugar. John respondeu bem francamente que eram pessoas desesperadas de Londres, que previram a miséria a que seriam reduzidas se a peste se espalhasse pela cidade e fugiram em tempo de salvar suas vidas. Não tendo conhecidos ou parentes para onde ir, seguiram primeiro para Islington, mas a peste já chegara naquela cidade e fugiram para mais longe. Imaginavam que o povo de Epping os proibiria de entrar na cidade e armaram suas cabanas numa clareira da floresta, preferindo agüentar toda a privação de acomodações tão desconfortáveis do que fazer qualquer um pensar ou sentir medo de contrair a doença através deles. No início, o povo de Epping conversou rudemente com eles, dizendo que tinham que se retirar, que ali não era lugar para eles e que fingiam ser saudáveis e estar bem, quando deveriam estar contaminados com a peste e, pelo que sabiam, poderiam contaminar todo o país e não poderiam permitir que continuassem ali. John conversou com eles muito calmamente durante um longo tempo. Disse que Londres era o lugar onde eles – isto é, os moradores de Epping e de todo o interior a seu redor – extraíam sua subsistência. Lá vendiam os produtos de suas terras e lá ganhavam para o aluguel de suas fazendas. Ser tão cruel com os moradores de Londres ou com quaisquer daqueles com quem lucrassem tanto era muito duro e eles não gostariam de relembrar isso mais tarde, quando contarem quão bárbaros, quão inospitaleiros e quão ingratos foram para com o povo de Londres que fugia diante do mais terrível inimigo do mundo. Isto seria suficiente para fazer o nome de um homem de Epping odiado em toda cidade, com a multidão apedrejando-o em plena rua, sempre que viesse só até o mercado. Eles não estavam livres da epidemia que, pelo que ouvira, já chegara em Waltham, e achariam muito duro, quando qualquer um fugisse de medo antes de se contaminar, e lhe negassem até mesmo a liberdade de se deitar em campo aberto. Os homens de Epping voltaram a afirmar que, de fato, eles se diziam saudáveis e livres da epidemia, mas não dispunham de qualquer prova disso. Havia informações sobre um grande grupo de moradores de Walthamstow que fingia ser saudável assim como eles estavam fazendo e depois ameaçavam saquear a cidade e forçar seu caminho, os

funcionários da paróquia permitissem ou não. Diziam ser mais de duzentos, tinham armas e barracas como as dos soldados dos Países Baixos. Extorquiam mantimentos das cidades mostrando suas armas e conversando a linguagem dos soldados. Ameaçavam ficar assim em acampamento aberto, vivendo às custas dos povoados. Vários deles tinham seguido em direção a Rumford e Brentwood, contaminando os campos e espalhando a peste naquelas duas grandes cidades de uma maneira que o povo não se arriscava mais a ir no mercado. Muito provavelmente, eles pertenciam àquele grupo. Sendo assim, tinham que ir para a cadeia do condado, permanecendo detidos até pagarem pelos danos que causaram, pelo terror e pelo medo que trouxeram para o interior. John respondeu que o que outras pessoas tinham feito não era nada com eles, garantindo serem todos um só grupo e que nunca foram em número maior do que viam naquele momento (o que, de passagem, era bem verdade); que eles saíram em dois grupos separados, juntando-se pelo caminho porque se encontravam na mesma situação; e que estavam à disposição para dar qualquer esclarecimento que alguém desejasse sobre eles, fornecendo seus nomes e lugares de domicílio e que assim poderiam ser chamados para responder por qualquer desordem pela qual fossem responsáveis. Os moradores da cidade precisavam entender que eles estavam satisfeitos vivendo rusticamente e só desejavam um pequeno espaço na floresta para respirarem onde fosse saudável; onde não o fosse, eles não poderiam ficar e teriam levantado acampamento se achassem que ali não o era. “Mas – disseram os homens da cidade – já temos muitos pobres sob nossa responsabilidade, temos que cuidar para que não aumentem. Vós não nos ofereceis garantia alguma de que não dependereis da paróquia e seus moradores, nem podeis nos provar que não sois perigosos, que não trazeis a epidemia.” “Por quê? Vede vós – disse John –, esperamos não precisar sobrecarregar-vos. Se nos fornecerdes mantimentos para nossas necessidades, seremos muito gratos. Assim como todos nós vivíamos sem a caridade pública quando estávamos em nossas casas, também nos comprometemos a pagar por tudo, se Deus quiser nos levar de volta para nossas famílias e casas em segurança, restaurando a saúde do povo de Londres. “Quanto a morrermos aqui: garantimos que, se algum de nós morrer, os sobreviventes o enterrarão, sem qualquer custo para vós, a não ser que aconteça de todos nós morrermos. Ainda assim, o último homem, incapaz de enterrar a si mesmo, custaria um simples enterro, e tenho certeza – disse John – que ele deixaria o suficiente para pagar-vos pelas despesas. “Por outro lado – disse John –, se tiverdes estômago para nos negar toda vossa piedade e não nos auxiliar, não extorquiremos coisa alguma pela violência ou roubando qualquer um. Se morrermos de fome quando o pouco que temos for consumido, será feita a vontade de Deus.” John impressionou muito os homens da cidade, falando com eles tão racional e suavemente. Embora não tenham dado qualquer consentimento para que ficassem ali, foram embora sem os incomodar. Este pobre grupo continuou mais três ou quatro dias sem qualquer perturbação. Neste período, relacionaram-se a distância com um armazém da periferia da cidade, chamando de longe para trazer algumas coisas que precisassem, as quais eram deixadas bem afastadas e pelas quais sempre pagavam honestamente. Durante esse período, a população mais jovem da cidade freqüentemente chegava bem perto deles, parando para observá-los e às vezes conversando, mas sempre mantendo uma certa distância. Notaram que, no primeiro domingo de guarda, aquela pobre gente se recolheu, reunindo-se para louvar a Deus; escutaram-os cantando salmos.

Estas coisas e um comportamento quieto, inofensivo, passou a lhes dar boa reputação no lugar e o povo começou a sentir pena, falando muito bem deles. Em conseqüência, numa noite muito úmida e chuvosa, um certo senhor que vivia na vizinhança enviou-lhes uma carroça com doze fardos ou feixes de palha, tanto para se acomodarem em cima quanto para se cobrirem, forrando o teto de suas cabanas e mantendo-se secos. O sacerdote de uma paróquia não muito distante, sem saber do outro, também enviou cerca de dois alqueires de trigo e meio alqueire de ervilhas brancas. Eles ficaram profundamente agradecidos, é claro, por esta ajuda e, principalmente, a palha foi um grande conforto, pois o engenhoso carpinteiro fez armações para que se deitassem como em cocheiras, enchendo-as com folhas e coisas parecidas que encontraram. Ele cortou o pano da barraca para fazer colchas, mas continuaram molhados, desconfortáveis, até chegar aquela palha que, para eles, foi um leito de penas e, como disse John, muito mais bem-vinda do que um leito de penas em qualquer outra circunstância. Este senhor e o sacerdote começaram, assim, a dar um exemplo de caridade para com aqueles andarilhos. Rapidamente, seguiram-se outros e todos os dias eles recebiam um presente ou outro do povo, mas principalmente dos senhores que viviam nos campos que os cercavam. Alguns enviavam cadeiras, banquetas, mesas e outras coisas de casa que notassem lhes faltar. Alguns mandavam cobertores, tapetes, colchas, louça de cerâmica e utensílios de cozinha para que preparassem sua comida. Encorajado por este bom costume, o carpinteiro em poucos dias construiu um telheiro ou casa de troncos, com teto e piso elevado, no qual se acomodaram aquecidos. No início de setembro, o tempo começaria a ficar frio e úmido, mas esta casa, com um telhado, com paredes e teto bem grossos, mantinha muito bem o frio do lado de fora. Num canto, o carpinteiro também fez uma parede de barro com uma chaminé. Um outro do grupo, com muito trabalho e sacrifício, fez um exaustor para que a chaminé retirasse a fumaça. Ali viveram confortavelmente, embora sem refinamentos, até o começo de setembro, quando receberam a má notícia, verdadeira ou não, de que a peste já estava forte em Waltham Abbey num lado e em Rumford e Brentwood no outro lado, e que ela também vinha em direção de Epping, de Woodford e da maioria das cidades junto à Floresta. Disseram que a peste foi levada até elas pelos caixeiros-viajantes e por pessoas que entravam e saíam de Londres com mantimentos. Se isto era verdade, não posso confirmar com os meus conhecimentos, mas estava em evidente contradição com o que se espalhou por toda Inglaterra: objetivamente, que o povo do mercado, carregando mantimentos para a city, nunca contraiu ou trouxe a peste para o interior. Como eu disse, garantiram-me que todas as duas informações eram falsas. Embora não fosse um milagre, podia ser que se preservassem para além das expectativas, pois a multidão ia e vinha sem ser atingida e isto foi um grande incentivo para o povo pobre de Londres, que ficaria completamente na miséria se as pessoas que traziam mantimentos para o mercado não fossem maravilhosamente poupadas, ou pelo menos mais preservadas do que se poderia racionalmente esperar. Aqueles novos moradores, então, começaram a ser perturbados mais freqüentemente, porque as cidades a sua volta realmente estavam contaminadas e eles começaram a ficar com medo, tanto de confiar nos outros quanto de sair para buscar as coisas que necessitavam. Isso os angustiou duramente, porque tinham muito pouco ou nada, a não ser o que o senhor caridoso lhes enviara. Para incentivá-los, aconteceu que outros senhores do campo que até então nada enviaram ficaram sabendo deles e um mandou um grande porco – quer dizer, um porco cevado; outro, duas ovelhas, outro mandou-lhes um bezerro. Em

suma, tinham carne suficiente e às vezes vinha um queijo, leite e todas estas coisas. Eles pediam principalmente pão. Quando o senhor enviou-lhes trigo, não tinham onde assá-lo ou torrá-lo. Isto os levou a comerem os dois primeiros alqueires de trigo que receberam como grãos secos, assim como faziam os antigos israelitas, sem torrá-lo ou transformá-lo em pão. Por fim, encontraram uma maneira de levar seu trigo para um moinho de vento perto de Woodford, onde o moeram. Depois, o padeiro fez um forno tão côncavo e seco que puderam preparar bolos bastante toleráveis. Desse modo, ficaram em condições de viver sem ajuda ou fornecimento das cidades. Ainda bem que o fizeram, pois pouco depois o interior foi totalmente contaminado, sendo dito que cerca de 120 morreram da doença nos povoados próximos a eles, o que era algo terrível. Diante disso, convocaram um novo conselho. Agora, as cidades não precisavam mais ter medo que eles se instalassem por perto. Pelo contrário várias famílias dos moradores mais pobres abandonaram suas casas e depois construíram cabanas na floresta da mesma maneira que eles tinham feito. Foi observado que vários destes pobres acomodados desse jeito estavam com a doença, mesmo em suas cabanas ou tendas. A razão disto era evidente, não porque tivessem se mudado para o ar livre, mas (1) porque não se mudaram em tempo, quer dizer, não antes de, até por conversarem desprotegidamente com outras pessoas da sua vizinhança, contraírem a doença ou (como se pode dizer) trazerem-na para junto deles, levando-a consigo por onde quer que fossem. Ou (2) porque não foram suficientemente cuidadosos depois de se retirarem com segurança da cidade, voltando outra vez para se misturar com gente doente. Fosse pelo que fosse, quando nossos viajantes começaram a perceber que a peste não estava somente nas cidades, mas também nas tendas e cabanas que ficavam na floresta próxima a eles, começaram não apenas a sentir medo, mas a pensar em desacampar e se mudar, porque, permanecendo, colocariam suas vidas em evidente perigo. Não é preciso imaginar que estivessem muito aflitos por se verem obrigados a deixar o lugar onde foram tão gentilmente acolhidos e onde eram tratados com tanto humanismo e piedade. A necessidade e o risco de vida que percebiam naquele momento prevaleceu entre eles e não viram outro remédio. John, no entanto, pensou numa solução para a adversidade presente: especificamente, primeiro ele colocaria aquele senhor que fora seu principal benfeitor ao par do desespero em que se encontravam e pediria conselhos e ajuda. O bom e caridoso senhor os encorajou a que deixassem o lugar, com medo que se isolassem, sem qualquer saída devido à violência da doença, mas ele achava muito difícil orientá-los para onde ir. Finalmente, John perguntou se, sendo um juiz de paz, ele não lhes daria certificados de saúde endereçados a outros juízes com quem pudessem vir a se encontrar, de modo que, qualquer que fosse a sorte deles, não fossem repelidos agora que se encontravam tão longe de Londres. Isto, Sua Excelência emitiu imediatamente, dando-lhes legítimas cartas de saúde. Desde então, passaram a ter liberdade de viajar para onde quisessem. Conseqüentemente, obtiveram um certificado de saúde completo, atestando que residiram num povoado do condado de Essex por tanto tempo, sendo suficientemente examinados e interrogados, mantendo-se excluídos de todo convívio por mais de quarenta dias sem qualquer manifestação da doença e que se concluiu serem homens com certeza sadios, que poderiam ser recebidos com segurança em qualquer parte, tendo se deslocado mais por medo da peste que se aproximava daquele povoado, mais por não terem qualquer sinal da epidemia entre eles e seus pertences.

Com este certificado e grande relutância, foram embora. John, inclinado a que não se afastassem muito de casa, sugeriu os banhados ao lado de Waltham. Lá, encontraram-se com um homem que, ao que parece, cuidava de uma represa ou passagem do rio, construída para aumentar a água para as barcaças que iam para cima e para baixo do rio. Ele os apavorou com histórias horripilantes da doença se espalhando por todas as cidades da beira ou perto do rio, no lado de Middlesex e Hertfordshire. Isto quer dizer, em Waltham, Waltham Cross, Enfield e Ware, mais todas as cidades de beira de estrada. Ficaram com medo de seguir naquela direção, embora o homem parecesse estar abusando deles, porque a coisa realmente não era verdade. Isso, no entanto, apavorou-os e resolveram seguir cruzando a floresta na direção de Rumford e Brentwood, mas ouviram dizer que havia muita gente fugindo de Londres naquela direção, gente que se espalhava para cima e para baixo na floresta chamada Henalt Forest, chegando perto de Rumford e que, não tendo moradia ou alimentos, não somente vivia grotescamente, sofrendo grande penúria pelos matos e campos por falta de ajuda, mas foi dito que estas pessoas estavam tão desesperadas com sua penúria que praticavam muitas violências no condado – roubavam, saqueavam, matavam o gado e coisas assim. Outras, construindo cabanas e choças à beira da estrada, mendigavam, importunando de porta em porta em busca de ajuda. Assim que o condado ficou muito apreensivo, sendo obrigado a deter algumas delas. Isso, em primeiro lugar, intimidou-os. Eles estavam convencidos de que a caridade e a bondade do condado que eles conheceram lá onde estiveram antes lhes seriam negadas e se fechariam diante deles. Por outro lado, seriam interrogados onde quer que fossem e correriam o perigo de sofrer agressões de outros em situação semelhante à sua. Diante destas considerações, John, o capitão, voltou até seu bom amigo e benfeitor que os socorrera antes e, expondo o caso francamente em nome de todos, pediu humildemente seu conselho. Ele gentilmente aconselhou-os a voltarem para seu antigo acampamento ou, então, mudarem-se para um pouco mais longe da estrada, indicando o lugar adequado. Eles queriam, realmente, uma casa em vez de cabanas para se abrigarem naquela época do ano, com Michaelmas se aproximando. Encontraram uma velha casa depredada que já fora um chalé ou pequena moradia, mas estava tão sem reparos que pouco tinha de habitável. Com o consentimento do fazendeiro em cujas terras se encontravam, foram autorizados a utilizá-la como pudessem. O engenhoso carpinteiro e todos os outros sob sua orientação puseram-se a trabalhar na casa e, em poucos dias, deixaram-na em condições de abrigar a todos em caso de mau tempo. A casa tinha uma velha lareira e um velho forno que estavam caindo aos pedaços. Eles os deixaram prontos para o uso e, erguendo paredes, calhas e alpendres em ambos os lados, logo deixaram a casa em condições de abrigar a todos. Precisavam, principalmente, de tábuas para fazer tampos para as janelas, assoalho, portas e várias outras coisas; mas assim como aquele senhor os favorecia, o interior, da mesma forma, não se incomodava mais com eles, sobretudo porque eram considerados sãos, com boa saúde e todo mundo os ajudava com o que pudesse dispor. Instalaram-se ali por fim e para sempre, decididos a nunca mais se mudarem. Viam com clareza, em qualquer parte daquele condado, como ficavam terrivelmente assustados com qualquer um que viesse de Londres e não o admitiam em lugar nenhum, a não ser depois de criar as maiores dificuldades; pelo menos sem a acolhida amigável e a assistência que eles recebiam ali.

Mesmo recebendo grande assistência e incentivo dos senhores do interior e do povo que os cercava, mesmo assim, tiveram que enfrentar grandes apertos: o tempo ficou frio e úmido em outubro e novembro. Eles não estavam acostumados com tantas privações e contraíram gripes e doenças no corpo, mas nunca tiveram a peste; e, por isso, em dezembro voltaram para casa, novamente na city. Apresento esta história assim com detalhes, principalmente para fazer um relato do que aconteceu com grande número de pessoas que voltaram para a city tão logo a epidemia diminuiu. Como disse, muitas das que dispunham de recursos e tinham refúgios no interior fugiram para aqueles retiros. Assim, quando a peste atingiu extremos tão pavorosos como os que descrevi, as pessoas remediadas sem amigos fugiram para todas as regiões do país onde pudessem conseguir abrigo; tanto as que tinham dinheiro para se socorrerem quanto as que não tinham. Quem tinha dinheiro sempre fugia para mais longe, pois tinha condições de se sustentar. Já as que estavam de bolsos vazios sofreram, como disse, grandes privações e muitas vezes foram forçadas, por necessidade, a obter o que lhes faltava as custas do interior. Isto quer dizer que o interior ficou muito apreensivo e algumas vezes as deteve. Mesmo que pouco soubessem o que fazer com elas e fossem sempre relutantes em puni-las, muitas vezes também as forçavam a ir de um lugar para outro até que fossem obrigadas a novamente retornar para Londres. Desde que fiquei sabendo desta história de John e seu irmão, investiguei e descobri que grande quantidade de gente pobre e desolada, como acima, fugiu para o interior de todas as maneiras. Alguns conseguiram pequenos abrigos em estábulos ou casinhas anexas para morar, onde obtiveram muita cortesia do interior, principalmente quando não apresentavam a menos convincente das histórias pessoais e quando não tinham saído tarde demais de Londres. Outros, em grande número, construíram pequenas cabanas para si e se refugiaram nos campos e matos, vivendo como ermitãos em buracos e cavernas ou qualquer outro lugar que encontrassem. Estes, podemos ter certeza, sofreram grandes privações, de modo que muitos deles foram obrigados a retornar qualquer que fosse o perigo. Assim, seguidamente aquelas cabanas foram encontradas vazias e os moradores do lugar supunham que os ocupantes estivessem mortos de peste dentro delas, não se aproximando de medo – não, não por muito tempo. Também não era improvável que alguns dos infelizes andarilhos morressem sozinhos por falta de socorro, como especificamente numa tenda ou cabana onde um homem foi encontrado morto. Na porteira de um campo ali perto, ele tinha gravado com sua faca em letras desparelhas as seguintes palavras, pelas quais pode-se supor que o outro homem escapou ou que, um morrendo primeiro, o outro o enterrou como pôde: O mIsÉrIa! Nós doIS MoRrErEmOs, DoR, DoR. Já fiz um relato do que descobri sobre a situação entre marítimos rio abaixo. Os navios ficavam ao largo, como se diz, em linha ou filas, um à popa do outro Pool adentro, até onde consegui ver. Contaram-me que rio abaixo ficou do mesmo jeito, com navios tão distantes quanto Gravesend; alguns ainda mais adiante, em toda parte ou em todo lugar onde pudessem chegar com segurança, considerando o vento e o tempo. Jamais ouvi dizer, entretanto, que a peste tenha atingido qualquer pessoa a bordo daqueles navios, com exceção dos que ficaram lá em cima, no Pool ou na altura de Depford Reach, embora as

pessoas viessem freqüentemente em terra, indo até cidades do interior ou povoados e casas de fazendeiros para comprar mantimentos, aves, porcos, terneiros e coisas semelhantes para se abastecerem. Do mesmo modo, descobri que, acima da ponte, os barqueiros encontraram maneiras de subir o rio o máximo possível e muitos deles trouxeram suas famílias nos barcos, cobertas com toldos arqueados, como diziam, forrando por dentro com palha para que se acomodassem. Permaneciam assim ao longo da margem dos banhados e alguns deles armavam pequenas tendas com suas velas, ficando de dia dentro delas e entrando no barco à noite. Desse jeito, como me disseram, as margens do rio ficaram cobertas de barcos e de gente onde quer que encontrassem alguma forma de sobreviver ou conseguissem alguma coisa pelos campos. Na verdade, os camponeses, assim como os senhores e outros nestas e em outras circunstâncias, logo se prontificaram a auxiliá-los – mas não queriam de modo algum recebê-los em suas casas e cidades e não podemos condená-los por isso. Um infeliz cidadão conhecido meu foi flagelado de uma maneira horrível, com sua esposa e filhos mortos, só restando ele, dois criados e uma velha, parente próxima que assistira o melhor que pôde aos que morreram. Este homem inconsolável foi para um povoado perto da cidade enquanto não entrava para os registros de mortalidade. Encontrou uma casa vazia, conversou com o proprietário e ficou com a casa. Alguns dias depois, conseguiu uma carroça, encheu-a de mercadorias e trouxe-as para a casa. Os moradores do povoado se opuseram a que circulasse com a carroça. Com alguma discussão e alguma força, os homens que conduziam a carroça cruzaram as ruas até chegar na porta da casa. Ali, o policial voltou a resistir e não queria deixá-los entrar. O homem pediu que as mercadorias fossem descarregadas diante da porta e mandou a carroça embora. Então, levaram o homem para um juiz de paz, quer dizer, mandaram ele ir e ele foi. O juiz ordenou que chamasse a carroça para vir buscar as mercadorias, mas ele se recusou a fazer isso. Diante do que o juiz ordenou ao policial que procurasse os carroceiros e os trouxesse de volta para recarregar as mercadorias, levando-as embora ou deixando-as armazenadas até que alguém lhes desse novas instruções. Se não conseguisse encontrá-los, nem o homem autorizasse sua retirada, as mercadorias seriam arrastadas da porta da casa por ganchos e queimadas na rua. Desesperado, o pobre homem voltou a olhar para as mercadorias, soltando gemidos doloridos e lamentações, diante da agrura da sua situação. Não havia remédio, a autopreservação obrigava a população a estas severidades, caso contrário, não se preocupariam com isso. Não sei dizer se este pobre homem continuou vivo ou morreu, mas fui informado que já naquela época estava com a peste e talvez as pessoas tenham dito isso para justificar o que fizeram com ele. Não era improvável, porém, que ele ou suas mercadorias, ou ambos, fossem perigosos, pois fazia tão pouco tempo que toda sua família morrera. Sei que os moradores das cidades adjacentes a Londres foram muito condenados por crueldade para com as pessoas que, desesperadas, fugiram do contágio e com as quais foram muito severas, como se pode ver a partir do que foi dito. Não posso deixar de ainda dizer que, onde havia condições para caridade e ajuda sem risco aparente, aqueles moradores tinham muita boa vontade para ajudar e socorrer as pessoas. Mas como todas as cidades eram, de fato, os juízes de sua própria situação, os pobres que fugiram com suas misérias seguidamente foram maltratados e conduzidos de volta para a city. Isto provocou infinitas manifestações e protestos contra as cidades do interior, num clamor que se fez muito popular.

Mesmo assim, malgrado toda preocupação, não havia uma cidade de qualquer tamanho, dentro de dez (ou, eu acredito, vinte) milhas da city, que não estivesse mais ou menos contaminada, tendo alguns mortos entre elas. Ouvi falar nas contagens de várias, que seguem tal como foram calculadas: Em Enfield Em Hornsey Em Newington Em Tottenham Em Edmonton Em Barney e Hadly Em St Albans Em Watford Em Eltham e Lusum Em Croydon Em Brentwood Em Rumford Em Barking Abbot Em Brentford Cum aliis.

32 58 17 42 19 19 121 45 85 61 70 109 200 432

Em Uxbridge Em Hertford Em Ware Em Hodsdon Em Waltham Abbey Em Epping Em Deptford Em Greenwich Em Kingston Em Stanes Em Cherstey Em Windsor

117 90 160 30 23 26 623 231 122 82 18 103

Outra coisa teria deixado o interior mais rigoroso em relação aos cidadãos, principalmente no que se refere aos pobres. Foi o que destaquei antes: especificamente, a impressão de que, entre aqueles que estavam contaminados, havia uma propensão ou inclinação perversa para contaminar os outros. Ocorreram grandes discussões entre nossos médicos sobre as razões disto. Alguns consideravam parte da natureza da doença, que incutia um tipo de raiva ou rancor contra seus semelhantes em todos que se contaminavam – como se a doença não contasse apenas com sua própria malignidade para se espalhar, mas agisse na própria natureza do homem, dotando-o de um ímpeto perverso ou mau olhado, como dizem em caso de um cachorro louco que, mesmo diante da mais suave criatura, joga-se e morde qualquer um que se aproxime, inclusive aqueles que mais gostavam dele anteriormente. Outros creditavam isso no cômputo da corrupção da natureza humana, que não suporta ver-se em miséria maior do que outros de sua própria espécie, tendo um tipo de desejo involuntário de que todos os homens sofram a mesma infelicidade ou fiquem em condições tão ruins como as em que se encontra. Outros dizem que isto era somente uma forma de desespero, não sabiam nem se preocupavam com o que faziam e, conseqüentemente, ficavam indiferentes ao perigo ou à segurança não somente de qualquer um, mas até de si mesmos. De fato, quando os homens chegam no estado de abandonarem a si próprios, não é preciso pensar muito para entender que não se preocupam com a segurança das outras pessoas. Eu prefiro dar um rumo muito diferente a este solene debate e explicar ou resolver tudo dizendo apenas que não aceito o fato. Ao contrário, digo que a coisa realmente não era assim, pois esta reclamação geral contra os cidadãos foi levantada pelos moradores dos vilarejos da periferia para justificar, ou pelo menos desculpar, as privações e misérias de que tanto se falava, mas, pelas queixas de ambos os lados, pode-se dizer que se feriam uns aos outros; quer dizer, os cidadãos, pressionando para serem recebidos e protegidos em

tempo de destruição, mesmo tendo a peste consigo, queixavam-se da crueldade e da injustiça dos camponeses que lhes negavam acolhida, forçando-os a voltar com suas mercadorias e famílias. Os moradores dos vilarejos, encontrando-se encurralados pelos cidadãos que chegavam como chegavam, quisessem eles ou não, queixavam-se dizendo que, uma vez contaminados, os cidadãos não só não se preocupavam com os outros, mas queriam mesmo contaminá-los. Nenhuma das quais era realmente verdadeira – quer dizer, nas cores com que eram descritas. É verdade que há algo a ser dito pelos freqüentes alarmes espalhados no interior sobre a determinação do povo de Londres vir à força, não somente por socorro, mas para saquear e roubar; e que as pessoas corriam pelas ruas com a doença sem qualquer controle e não tomavam o cuidado de fechar as casas e confinar os doentes para que não contaminassem outros. Enquanto que, fazendo justiça aos londrinos, eles nunca praticaram tais atos, exceto em casos específicos que mencionei acima e outros semelhantes. Por outro lado, foi tão eficiente a ordem mantida em toda a city e subúrbios, graças às medidas do Lorde Prefeito, vereadores, juízes de paz, sacristãos e outros na periferia, que Londres pode servir de exemplo para todos os lugares, mesmo em tempo de epidemia mais violenta, quando o povo vive o maior pavor e desespero. Sobre isso, ainda falarei detidamente. Uma coisa, é de se notar, foi devida particularmente à prudência das autoridades e precisa ser registrada em seu louvor: ou seja, a moderação com que agiram na grandiosa e difícil tarefa de fechar as casas. É verdade, como já disse, que o fechamento das casas foi fonte de grande descontentamento e eu posso realmente afirmar que foi a única fonte de descontentamento do povo naquela época, porque confinar os sadios junto com os doentes era considerado algo terrível e as queixas das pessoas assim confinadas eram muito pungentes. Podia-se ouvi-las pelas ruas, às vezes eram clamores de ressentimento, embora os de compaixão fossem mais freqüentes. Aquelas pessoas não tinham outra maneira de conversar com seus amigos a não ser pelas janelas, onde faziam lamentações tão desalentadoras que muitas vezes moviam os corações daqueles com quem conversavam e de outros que, passando por ali, ouviam suas histórias. Seguidamente, aquelas lamúrias condenavam a severidade e até a insolência dos vigias colocados em suas portas. Os vigias reagiam com muita arrogância, mostrando-se dispostos a afrontar as pessoas que encontrassem pela rua, conversando com as ditas famílias. Por isso, por maus-tratos às famílias, acho que sete ou oito deles foram mortos em vários lugares. Não sei se devo dizer assassinados, pois não posso entrar em seus casos particulares. É verdade que os vigias cumpriam seu dever, atuando no posto a que foram designados por uma autoridade legal. Matar um funcionário público legalmente executando ordens é sempre, na letra da lei, chamado de assassinato. Pelas instruções das autoridades, ou pelo poder em nome de quem agiam, eles não estavam autorizados a ser grosseiros ou abusar fosse das pessoas que estavam sob sua custódia ou de qualquer uma que estivesse ocupada consigo mesma. Assim, quando agiam dessa maneira, pode-se dizer que agiam por conta própria, não em nome de seu cargo. Conseqüentemente, ao agirem como indivíduos, não como funcionários, revelaram-se desajustados, comportando-se de maneira tão imprópria, que responderam pelo desajuste com suas próprias cabeças. Merecidas ou não, o fato é que recebiam muitas das sentidas blasfêmias do povo, e ninguém tinha pena deles, acontecesse o que lhes acontecesse. Não lembro de nenhum sendo punido, pelo menos com alguma severidade, pelo que fez com os vigias que guardavam suas casas. Sobre a diversidade de subterfúgios empregados para escapar e sair das casas fechadas, através dos quais os vigias eram enganados ou desobedecidos, e sobre como o

povo conseguia sair, eu já falei e não vou dizer mais nada. Sei que as autoridades moderaram e facilitaram a situação de famílias nestas circunstâncias, principalmente no que se referia a sair ou à remoção dos doentes que quisessem sair das casas e ir para um hospital de pestilentos ou outros lugares. Às vezes, davam permissão para as pessoas que estavam bem numa família assim confinada se mudarem, desde que fornecessem informações de que estavam bem e se limitassem a permanecer dentro da casa para onde fossem durante todo o tempo que lhes fosse requerido. A preocupação das autoridades com a manutenção destas famílias pobres e contaminadas – digo, o suprimento de suas necessidades, tanto médicas quanto alimentares – foi enorme. Não se contentando com apenas dar instruções para os funcionários encarregados, fizeram os próprios vereadores ir pessoalmente, no lombo de um cavalo, até estas casas, chamando as pessoas nas janelas para perguntar se estavam bem atendidas ou não; também, se queriam qualquer coisa que estivesse faltando e se os funcionários públicos estavam entregando regularmente seus recados e buscando as coisas que pedissem. Caso respondessem afirmativamente, tudo estava bem; caso se queixassem de mau abastecimento e que o funcionário não cumpria seu dever ou não os tratava civilizadamente, eles (os funcionários) em geral eram transferidos, colocando-se outros em seus lugares. É verdade que estas reclamações podiam ser injustas. Se os funcionários reunissem argumentos suficientes para convencer as autoridades de que estavam certos e que os moradores os caluniavam, ficavam em seus postos e os moradores eram repreendidos. Estas situações não provocavam inquéritos especiais, pois era muito difícil ouvir bem as partes e responder da rua para as janelas, como era o caso. As autoridades, então, decidiam-se em favor dos moradores, transferindo o vigia, o que parecia ser o menos errado e de menores conseqüências. Vendo que o vigia estava sendo caluniado, facilmente podiam corrigir a situação, indicando-o para outro posto de natureza semelhante. Mas se a família era caluniada, não havia explicações que dessem, os danos talvez fossem irreparáveis, pois isso dizia respeito a suas vidas. Uma grande diversidade destes casos ocorreram com freqüência entre vigias e pessoas pobres confinadas, além daqueles que mencionei antes, os que fugiam. Às vezes, os vigias estavam ausentes, às vezes estavam bêbados, outras estavam dormindo quando os moradores precisavam deles, mas isso nunca deixou de ser severamente punido, como de fato mereciam. Acima de tudo o que foi feito ou se poderia fazer nestes casos, o fechamento das casas, confinando os que estavam bem com os que estavam doentes, teve grandes inconvenientes, alguns trágicos, que deveriam ser investigados se houvesse condições para isto. O fechamento das casas foi instituído por uma lei que tinha em vista o bem público como seu último fim e todas as privações individuais que provocou entrando em vigor devem ser creditadas ao benefício da população. Até hoje é questionável se, no geral, isso contribuiu de alguma forma para conter a epidemia. Na verdade, não posso dizer que contribuiu, porque nada conseguiria ocorrer com maior furor e devastação do que a peste ao atingir sua pior violência, mesmo com as casas contaminadas sendo fechadas tão precisa e freqüentemente quanto possível. É certo que, realmente, isolando todas as pessoas contaminadas, ninguém seria contaminado por elas, porque não se aproximariam de ninguém. O caso, porém, foi este (aqui vou apenas tocar no assunto): objetivamente, a epidemia se propagou insensivelmente através de pessoas não visivelmente contaminadas, que não sabiam que contaminavam nem que foram contaminadas.

Em Whitechapel, fecharam uma casa devido a uma criada contaminada que tinha somente manchas, mas os sinais não apareceram e ela se recuperou. Mesmo assim, aquelas pessoas não obtiveram qualquer liberdade de movimentação nem para exercícios ao ar livre durante quarenta dias. A falta de ar, o medo, o rancor, a vergonha e todos os complementos inerentes a um tratamento tão injuriante provocaram uma febre na dona da casa. Uma visita esteve na casa e disse ser a peste, embora o médico dissesse que não era. A família, no entanto, foi obrigada a começar de novo sua quarentena, devido a uma denúncia do visitante ou de um inspetor, embora faltassem poucos dias para acabar a quarentena anterior. Isto oprimiu-os com muito rancor e sofrimento e, como acima, confinou-os como que num quarto. Por falta de ar livre para respirar, a maioria da família ficou doente; um com uma doença, outro com outra, principalmente com os sintomas do escorbuto. Apenas um teve uma violenta cólica. Depois de várias prolongações de seu confinamento, uns e outros dos que vinham com os inspetores examinar os doentes na esperança de libertá-los, trouxeram a peste até eles, contaminando a casa toda. Todos ou quase todos morreram, não da peste que realmente não estava entre eles, mas da peste trazida justamente por aquelas pessoas que deveriam cuidar da sua proteção contra a doença. E isto foi uma coisa que aconteceu freqüentemente, sendo uma das piores conseqüências do fechamento das casas. Tive, nessa ocasião, um pequeno contratempo, que no início me deixou muito angustiado e muito preocupado, mas, na prática, não me expôs a qualquer tragédia. Foi a nomeação pelo vereador de Portsoken Ward como um dos inspetores de casas no distrito onde morava. Estávamos numa grande paróquia e tínhamos não menos de dezoito inspetores, como a nomeação nos designava – o povo nos chamava de visitadores. Empenhei-me com todo poder que dispunha para ser dispensado de tal tarefa e apresentei meus argumentos ao subvereador para ser dispensado. Aleguei, principalmente, que era totalmente contra o fechamento das casas e que seria muito difícil me subordinar a ser um instrumento daquilo que era contra meu pensamento e que eu muito acreditava não corresponder à finalidade a que se propunha. Tudo que consegui foi um desconto. Uma vez nomeado pelo meu Lorde Prefeito, serviria apenas dois meses, sendo obrigado a permanecer pelo menos três semanas no cargo e sob condição inarredável de conseguir outro morador competente para trabalhar por mim o resto do tempo – o que, afinal, era uma vantagem muito pequena, sendo muito difícil alguém aceitar um emprego daqueles, alguém preparado para assumir tamanha responsabilidade. É verdade que o fechamento das casas teve uma conseqüência que eu reconheço ter sido oportuna. Ou seja, confinou as pessoas enlouquecidas que, de outro modo, tornar-seiam tão problemáticas quanto muito perigosas, correndo pelas ruas com a doença. Quando ficavam delirantes, faziam isso de maneira medonha, como fizeram muito no começo, até serem, por isso mesmo, recolhidas. Mais que isso, as casas continuariam abertas e os pobres andariam soltos, mendigando pelas portas, dizendo que tinham a peste e pedindo compressas para as suas feridas; pedindo de tudo, ou qualquer coisa que a natureza do delírio conseguisse conceber. Uma pobre e infeliz senhora, esposa de um cidadão de prestígio, foi (se a história for verdadeira) assassinada por uma destas criaturas em Aldersgate Street ou naquele caminho. Ele vinha esbravejando e cantando completamente louco pela rua. O povo disse que ele estava só bêbado, mas ele mesmo disse que estava com a peste, o que parecia ser verdade. Ao encontrar-se com a senhora, quis beijá-la. Ela ficou aterrorizada de medo, pois ele era um sujeito rude, e fugiu dele, mas a rua tinha poucos moradores e não surgiu ninguém por perto para ajudá-la. Quando viu que ele a alcançaria, ela virou-se e empurrou-o com tanta

força que ele, estando fraco, caiu de costas no chão. Muito infelizmente, porém, ela estava tão perto que, depois de se levantar, ele dominou-a e beijou-a. O pior de tudo foi depois de dar o beijo, quando disse a ela que estava com a peste, e por que ela não deveria sofrer tanto quanto ele? Ela, sendo jovem e com um filho, já se apavorara antes, mas ao ouvi-lo dizer que tinha a peste, gritou e caiu no chão num desmaio ou mal-estar. Depois, recuperouse um pouco, mesmo que aquilo a tenha matado em poucos dias. Nunca soube se ela já estava com a peste ou não. Outra pessoa contaminada veio bater na porta da casa de um cidadão onde todos a conheciam muito bem. O criado deixou-a entrar e, ao ser informado de que o dono da casa estava lá em cima, subiu e entrou na sala enquanto toda a família jantava. Começaram a se levantar, um pouco surpresos, não sabendo do que se tratava. Pediu que todos se sentassem tranqüilos, pois vinha só se despedir. Perguntaram: “Por que, senhor..., para onde vais?” “Vou”, disse ele: “Contraí a doença e devo morrer amanhã à noite”. É fácil de acreditar, mas não de descrever o pavor que todos sentiram. As mulheres e as filhas do homem, que ainda eram garotinhas, quase morreram de medo e se levantaram correndo, uma por uma porta, outra pela outra. Algumas mulheres foram para cima, outras para baixo, trancando-se em seus quartos do jeito que conseguissem e gritando por socorro nas janelas, como se estivessem assustadas até perder a razão. Mais composto do que elas, o chefe da família, embora tão amedrontado quanto exasperado, estava transtornado e ia agarrá-lo jogando-o escada abaixo. Considerando, porém, as condições do homem e o perigo de tocá-lo, o horror tomou conta de sua mente e ficou parado, como alguém atônito. O pobre homem maluco, doente tanto no corpo quanto no cérebro, ficou o tempo inteiro parado e surpreso. No fim, ele se dirigiu a todos: “Ai! – disse com toda a calma imaginável –, o que está acontecendo convosco? Estais todos perturbados comigo? Por quê? Prefiro ir para casa e morrer lá”. Assim, ele desceu imediatamente as escadas. O criado que o deixou entrar não foi atrás dele com uma vela, estava com medo de passar por ele para abrir a porta. O homem a abriu e saiu batendo a porta atrás de si. Passou algum tempo antes da família se recuperar do pânico. Como nenhuma conseqüência maléfica se manifestou, tiveram inclusive condições de falar sobre isso (pode-se ter certeza) com grande satisfação. Embora o homem tivesse partido, levou algum tempo – mais que isso, ouvi dizer até alguns dias – até que se recuperassem da aflição que viveram. Não se sentiram seguros de andar para cima e para baixo pela casa, até queimarem grande variedade de fumos e incensos em todas as salas. Fizeram uma grande fumaça de piche, pólvora e enxofre, um de cada vez, lavando suas coisas e outras medidas do gênero. Quanto ao pobre homem, não me lembro se ele morreu ou não. O mais certo é que, se não confinassem os doentes com o fechamento das casas, multidões no auge da sua febre, delirantes e tresloucadas, andariam correndo continuamente pelas ruas; mesmo que já tenha sido muito grande o número dos que fizeram assim, ameaçando com todas as formas de violência aqueles que encontravam, exatamente como um cachorro louco corre e morde a todos que encontra. Também não posso duvidar que algumas daquelas criaturas doentes e pesteadas tenham mordido qualquer homem ou mulher quando o frenesi da loucura as atacou. Elas – digo, as pessoas assim feridas – certamente ficaram incuravelmente contaminadas, feito alguém que estivesse doente antes, já com os sinais pelo corpo. Ouvi falar de uma criatura contaminada que saiu correndo da cama só de camisão, devido à angústia e agonia de seus inchaços, pois já tinha três. Calçou os sapatos e saiu com seu casaco. A enfermeira resistiu segurando o casaco, mas ele jogou-a no chão e passou por

cima dela, descendo as escadas e correndo em direção ao Tâmisa só de camisão. A enfermeira correu atrás, chamando o vigia para pegá-lo, mas o vigia, assustado com o homem e com medo de tocá-lo, deixou-o passar. Assim, ele correu até a escadaria de Stillyard, jogou longe seu camisão e se atirou no Tâmisa; sendo bom nadador, foi-se rio acima. Como a correnteza estava, como dizem, subindo (ou seja, correndo para oeste), não chegou na outra margem antes da altura da escadaria Falcon, onde aportou. Era noite e não encontrou ninguém lá. Saiu correndo pelas ruas durante um bom tempo, nu como estava, até que, chegando o momento em que a água subira, ele voltou para o rio e nadou de volta para Stillyard. Em terra, mais uma vez saiu correndo pelas ruas até chegar na sua própria casa. Bateu na porta, subiu as escadas e voltou para a cama. Esta terrível experiência curouo da peste; quer dizer, a violenta movimentação de seus braços e pernas esticou as partes do corpo que estavam inchadas, ou seja, embaixo dos braços e na virilha. Os inchaços amadureceram e arrebentaram na água fria que baixou a febre de seu sangue. Só tenho a acrescentar que não conto isto, assim como algumas outras histórias, como um fato de meu próprio conhecimento, que eu possa garantir sua veracidade principalmente quanto ao homem se curar com esta aventura extravagante, o que confesso não achar muito possível; mas isso pode servir para confirmar as muitas coisas desesperadas feitas pelas pessoas atormentadas entrando em delírios, como faziam freqüentemente na época as que chamávamos de fracas da cabeça; haveria um número infinitamente maior delas, se tais pessoas não fossem confinadas com o fechamento das casas. Isto eu considero a melhor, se não a única coisa boa obtida com este severo método. Por outro lado, as queixas e reclamações contra a coisa em si eram muito amargas. Cortavam o coração de todos que chegassem a escutar os gritos pungidos daquelas pessoas contaminadas que, fora de seu ju94zo pela violência da dor ou o calor de seu sangue, estavam trancadas ou talvez amarradas em suas camas e cadeiras, para que não se ferissem – fazendo uma tenebrosa gritaria por estarem confinadas e por não lhes ser permitido morrer à solta, como diziam e como faziam anteriormente. Esta correria de gente enlouquecida pelas ruas foi muito assustadora e as autoridades fizeram de tudo para evitá-la. Isso geralmente acontecia à noite, com estas fugas sempre ocorrendo de surpresa, e os funcionários não tinham como estar de prontidão para impedilas. Mesmo quando alguém fugia durante o dia, os funcionários indicados não se arriscavam a se misturar com ele porque todos tinham certeza que estava doente e quando chegava neste ponto, já estava mais do que simplesmente contaminado e tocá-lo era a coisa mais perigosa que poderia acontecer. Por outro lado, eles geralmente corriam sem saber o que faziam até caírem rígidos e mortos no chão, ou até exaurirem seus espíritos de forma que caíam para morrer em uma, talvez meia hora. O mais lamentável era escutá-los nesta meia ou uma hora, quando caíam inteiramente em si e soltavam os mais sofridos e penetrantes gritos e lamentações, com um profundo e aflitivo sentido do momento em que se encontravam. Isto acontecia principalmente antes da ordem para o fechamento das casas ser posta em rigorosa execução, pois no começo os vigias não eram tão enérgicos e severos como se tornaram mais tarde para manter as pessoas dentro de suas casas. Isso quer dizer antes deles (digo, alguns deles) serem severamente punidos por sua negligência e nãocumprimento de seu dever, deixando que pessoas sob sua responsabilidade escapassem ou sendo coniventes com suas saídas, estivessem doentes ou não. Depois que surgiram os funcionários nomeados para examinar a conduta dos vigias e ver se estavam cumprindo seu dever ou se precisavam ser punidos por omissão, os vigias foram muito mais eficientes e as pessoas foram rigorosamente controladas. Isso deixou o povo tão mal e ele obedeceu tão

impacientemente, que seu descontentamento dificilmente poderia ser descrito. Havia nisso uma necessidade absoluta e é preciso reconhecer que, a não ser que outras medidas fossem tomadas a tempo, já era tarde demais para o fechamento das casas. Não tivesse acontecido isso (dos doentes serem controlados como acima) e Londres teria se tornado, na época, o lugar mais horripilante jamais existente no mundo. A cidade teria, pelo que sei, tanta gente morrendo pelas ruas quanto morrendo em suas casas. Quando a doença ficava aguda, geralmente deixava as pessoas raivosas e delirantes e nada as persuadia a permanecer em suas camas, a não ser a força. Muitas que não estavam amarradas jogaram-se para fora de suas janelas ao descobrirem que não lhes seria permitido sair pelas suas portas. A ausência de comunicação entre as pessoas neste tempo de calamidade tornou impossível alguém ter conhecimento de todos os casos extraordinários que aconteceram em diferentes famílias. Eu, particularmente, acredito que até hoje nunca se ficou sabendo quantas pessoas se afogaram delirantes no Tâmisa e no rio que sai dos banhados de Hackney, geralmente chamado de Ware River, ou Hackney River; assim como muito poucos deles foram incluídos nos registros semanais de óbitos. Tampouco se poderia saber se eles se afogaram por acidente ou não, mas acredito ser necessário admitir que, realmente, dentro dos limites de meus conhecimentos e observações, mais gente se afogou naquele ano do que todos os casos registrados nas listas de mortos: muitos dos corpos nunca foram encontrados e foram dados por perdidos; sendo o mesmo com outros métodos de autodestruição. Teve até um homem em ou perto de Whitecross Street que se imolou, morrendo em sua cama. Alguns diziam que ele mesmo fez isso, outros que foi uma armadilha armada pela enfermeira que o atendia, mas todos concordavam que ele estava com peste. Foi uma misericordiosa determinação da Providência, sobre a qual muitas vezes também pensei naquele tempo, que nenhum incêndio, pelo menos nenhum incêndio considerável, tenha ocorrido na city durante aquele ano; o que, caso contrário, teria sido terrível. A população teria ficado desamparada e sozinha ou teria se agrupado em grandes multidões e turbas, sem ligar para o risco de contágio, sem ligar para as casas onde entravam, as mercadorias que manuseavam ou as pessoas com quem se reuniam. Com exceção de um na paróquia de Cripplegate e outros dois ou três princípios de incêndio extintos no ato, não aconteceram tragédias desse tipo o ano todo. Contaram-nos a história de certa casa num lugar chamado Swan Alley, passando por Goswell Street, perto do fim de Old Street, entrando em St John Street. Lá dentro, uma família foi contaminada de maneira tão terrível que todos os da casa morreram. A última pessoa caiu morta no chão, conforme se supõe, bem em frente à lareira. Parece que o fogo, sendo de lenha, saiu do lugar e passou para as tábuas e vigas do assoalho, alastrando-se até junto ao corpo, mas sem atingir o cadáver (embora a pessoa vestisse pouco mais do que uma camisola) e extinguiu-se por si, sem queimar o resto da casa, mesmo sendo uma casa de madeira fina. Não consegui determinar quanto há de verdade nessa história, mas, estando a city por sofrer severamente com um incêndio no ano seguinte, neste ano pouco se sentiu desta calamidade. De fato, foi muito estranho não ocorrerem mais desastres deste tipo, considerando os delírios a que a agonia impelia as pessoas que, como já mencionei, faziam muitas coisas desesperadas quando estavam sozinhas com sua loucura. Freqüentemente me perguntaram, e não posso afirmar que soube responder com objetividade, o que aconteceu para que tanta gente contaminada andasse pelas ruas na

mesma época que as casas contaminadas eram examinadas com tanto rigor e todas elas estavam fechadas e guardadas. Confesso não ter explicação para isso, a não ser que, numa cidade tão grande e populosa como esta, fosse impossível identificar todas as casas contaminadas logo que ficassem assim ou então fechar todas as casas que estivessem contaminadas. Assim, as pessoas tinham liberdade para sair pelas ruas e ir até onde quisessem, a menos que fosse conhecido que pertenciam a esta ou àquela casa infectada. É verdade que, conforme vários médicos disseram ao Lorde Prefeito, em determinados momentos o furor do contágio era tal que as pessoas ficavam doentes muito rapidamente, morrendo em seguida; seria impossível e, de fato, sem propósito sair investigando quem estava doente e quem estava bem, ou confiná-los com o rigor que as coisas exigiam, estando contaminadas quase todas as casas de ruas inteiras e, em muitos lugares, todas as pessoas de algumas casas. O pior é que, no momento em que identificavam uma casa contaminada, a maioria das pessoas já estava morta de pedra e as outras tinham fugido com medo de serem confinadas. Por isso, fazia pouco sentido fechálas chamando-as de casas contaminadas, tendo a peste atacado e abandonado a casa antes que estivesse concretamente confirmado que a família fora de alguma forma atingida. Isto deve ser suficiente para convencer qualquer pessoa sensata que não estava no poder das autoridades ou de qualquer outro método humano de policiamento impedir a disseminação da epidemia, de modo que trancar as casas era completamente insuficiente para aquela finalidade. Na verdade, parecia não haver nisso qualquer forma de bem público equivalente ou proporcional ao penoso fardo que significava para estas famílias assim confinadas. Enquanto fui oficialmente empregado para aplicação desta penalidade, com freqüência estive em condições de ver que isso era incapaz de corresponder a seu fim. Por exemplo, enquanto visitador ou inspetor, eu gostava de conhecer os detalhes particulares das diferentes famílias contaminadas. Raramente entrávamos numa casa onde a peste fosse visível nos moradores e alguns membros da família já não tivessem fugido. As autoridades podiam não gostar disso e acusar os inspetores de relapsos em seus exames e inspeções. Desse modo, as casas ficavam contaminadas muito antes deles tomarem conhecimento. Já estava no meio do período a que fora nomeado para esta função, que era de dois meses – prolongado o bastante para me inteirar de que não havia como chegar ao conhecimento do verdadeiro estado de saúde de cada família, a não ser fazendo perguntas na porta da casa dos vizinhos. Dar uma busca de casa em casa era algo que nenhuma autoridade imporia aos moradores, nem qualquer cidadão aceitaria: isso seria contágio garantido e morte, a ruína de nossas próprias famílias, assim como de nós mesmos. Nenhum cidadão com integridade e digno de confiança teria permanecido na cidade se fosse passível de tamanha severidade. Vendo, então, que não havia método que nos desse certeza das coisas, a não ser perguntando aos vizinhos ou à família, justamente algo do qual não podíamos depender, isto não era possível, permanecendo a incerteza na questão, como acima. É verdade que os chefes de família eram obrigados por lei a notificar o inspetor do lugar onde moravam, dentro de duas horas após descobrirem qualquer pessoa doente em suas casas (isto quer dizer, com sintomas da infecção): eles encontravam tantas maneiras de evitar isso e justificar sua negligência, que raramente notificavam antes de tomar medidas para que fugissem todos os da casa que estivessem em condições, pois o fechamento das casas não era uma solução que merecesse confiança como um método eficaz para conter a epidemia. Como já disse em algum lugar, muitos dos que saíram de casas contaminadas realmente estavam com peste, embora, é verdade, se considerassem sãos. Alguns eram os

que andavam pelas ruas até caírem mortos; não que fossem subitamente atingidos pela doença, feito uma bala que mata como choque, mas realmente traziam a peste há muito tempo no seu sangue, só que a doença atacava secretamente suas vísceras e não surgia até dominar o coração com seu poder mortal e o paciente morrendo num instante, como de um mal súbito ou de um ataque apoplético. Sei que mesmo alguns dos nossos médicos pensaram, por um tempo, que as pessoas que morriam pelas ruas eram atingidas no momento que caíam, como se fossem tocadas por um golpe dos céus, feito os homens que morrem com o luzir de um raio. Mais tarde, descobriram motivos para mudar de opinião porque, examinando os corpos logo depois de mortos, eles sempre tinham os sinais ou provas evidentes de que estavam com a doença há muito mais tempo do que poderiam prever. Seguidamente, esta foi a razão para, como já disse, nós que éramos os inspetores, não sermos capazes de vir a saber que a epidemia estava entrando numa casa antes que fosse tarde demais para fechá-la; e algumas vezes não antes das pessoas que fugiram também morrerem. Em Petticoat Lane, duas casas ficaram contaminadas juntas, com várias pessoas doentes, mas a doença foi tão bem disfarçada que o inspetor, que era meu vizinho, não ficou sabendo dela até virem lhe comunicar que todos os moradores estavam mortos e que os carros deveriam ir lá recolhê-los. Os dois chefes de família tinham combinado suas iniciativas e organizado as coisas para que, sempre que o inspetor estivesse pela vizinhança eles aparecessem em tempo e respondessem, isto é, mentissem um pelo outro, trazendo alguns vizinhos para dizer que estavam todos com saúde – e talvez não soubessem mais que isto – até a morte tornar impossível manter este segredo. O carro dos mortos foi chamado à noite para ambas as casas e, então, o fato se fez público. Quando o inspetor mandou um policial fechar as casas, não havia mais ninguém nelas, a não ser três pessoas, duas numa casa e uma na outra, todas morrendo; e uma enfermeira em cada casa que confirmaram ter enterrado cinco e que as casas estavam contaminadas há nove ou dez dias, com todo o resto das duas famílias, que eram muitos, indo embora; alguns doentes, outros bem ou sem saber se estavam bem ou doentes. De maneira semelhante, em outra casa na mesma calçada, um homem com a família contaminada, mas sem a menor vontade de ser confinado, confinou a si mesmo quando não podia mais esconder a doença. Isto quer dizer, fixou uma grande cruz vermelha na sua porta com as palavras “Deus tende piedade de nós” e assim enganou o inspetor que supunha ser aquilo obra do policial sob as ordens de outro inspetor, já que havia dois inspetores para cada distrito e redondezas. Com este recurso, manteve livre acesso e regresso a sua casa, podendo entrar e sair quando quisesse, embora estivesse contaminado; até que, finalmente, seu estratagema foi descoberto. O homem, então, junto com seus criados e familiares saudáveis, fugiu e desapareceu; assim, eles nunca foram confinados. Estas coisas tornavam muito difícil, se não impossível, como disse, impedir a disseminação de uma epidemia fechando as casas – a não ser que a população aceitasse o fechamento das casas sem qualquer ressentimento e quisesse tanto fazer isso que informasse as autoridades devidamente e com boa-fé tão logo reconhecesse estar contaminada. Não se podia esperar por isto, não se podia esperar que os inspetores fossem visitar e examinar suas casas; e todo o benefício do fechamento das casas foi desperdiçado, poucas casas foram fechadas em tempo, com exceção das casas dos pobres, que não tinham como esconder a doença e as de algumas pessoas que se denunciaram pelo terror e aflição que a coisa lhes causava.

Consegui ser dispensado do perigoso cargo que ocupava assim que encontrei um que foi admitido, o que consegui fazendo com que aceitasse um pouco de dinheiro. Então, em vez de cumprir os dois meses estipulados, não fiquei mais de três semanas no cargo; o que já foi muito tempo, considerando-se que era o mês de agosto, quando a epidemia começou a atacar com grande violência a nossa extremidade da cidade. Na execução dessa tarefa, não pude deixar de esclarecer para meus vizinhos minha opinião sobre este confinamento de pessoas dentro de suas casas. Nisto, vimos com mais evidência a severidade empregada, penosa em si, mas também tínhamos esta objeção específica contra a medida: objetivamente, não correspondia a sua finalidade, como já disse, pois as pessoas doentes saíam todos os dias pelas ruas e, na nossa opinião leiga, o método de separar os sadios dos doentes quando uma casa particular ficasse contaminada seria muito mais racional em muitos sentidos. Ninguém mais ficaria junto das pessoas doentes, a não ser aqueles que, na hora, solicitassem ficar e se declarassem satisfeitos com serem confinados junto delas. Nosso esquema para separar aqueles que estavam sãos dos doentes era somente para casas contaminadas. Confinar doentes não chegava a ser um confinamento, pois eles não podiam circular e não reclamariam enquanto estivessem conscientes, enquanto tivessem condições de refletir. De fato, quando se tornavam delirantes e fracos da cabeça, queixavam-se da crueldade de seu confinamento. Ao retirar os que estavam sãos consideramos altamente racional e justo que, para seu próprio bem, fossem separados dos doentes, mas, para segurança das outras pessoas, ficassem isolados por algum tempo, para ver se estavam sadios e não contaminariam ninguém. Achávamos que vinte ou trinta dias seriam suficientes para isto. Agora, se fornecessem casas para abrigar os sadios durante esta semiquarentena, eles certamente teriam muito menos razões para se considerarem lesados neste retiro do que confinados junto com os doentes nas casas onde moravam. É aqui, entretanto, que se deve observar que, depois, os enterros se tornaram tantos que não havia mais tempo para tocar o sino, velar e chorar ou se vestir de preto pelos outros como antigamente. Não, nem podiam fazer caixões para os mortos. Assim foi até a doença aumentar tanto seu furor que, resumindo, não fechavam mais casa alguma. Parecia claro que todas as medidas deste tipo foram adotadas até se revelarem infrutíferas, com a peste se espalhando com uma fúria incontrolável. Da mesma forma, no ano seguinte, o incêndio se alastraria queimando com tanta violência que os cidadãos, desesperados, abandonariam seus esforços para extingui-lo; assim também a peste veio com tanta violência que o povo terminou se sentando, quieto, olhando-se entre si, com aparência de abandonado demais para se desesperar. Ruas inteiras pareciam desoladas, não apenas pelo fechamento das casas, mas por estarem vazias de moradores. Portas deixadas abertas, janelas se despedaçando ao vento nas casas vazias, por falta de gente para fechá-las. Em poucas palavras, as pessoas começaram a se entregar a seus medos, achando que todas as leis e métodos seriam em vão, pois não havia o que esperar, além de uma destruição universal. Foi no auge desse desespero geral que Deus quis introduzir Sua mão e conter a fúria do contágio de modo tão surpreendente quanto no começo da peste, demonstrando ser ela a Sua própria mão, que ficava acima e não sem a agência dos meios, como chamarei a atenção no devido lugar. Ainda preciso falar sobre a peste no seu clímax, atacando para destruir mesmo, com o povo na mais horripilante aflição e até, como disse, desespero. É difícil acreditar a que este excesso de emoções levou os homens no extertor da doença. Considero este aspecto tão

comovente quanto os demais. O que poderia afetar mais um homem em pleno poder de raciocínio, o que poderia causar impressões mais fundas na sua alma do que ver outro homem nu, fora de casa, talvez fugido da cama, saindo em Harrow Alley pelas ruas deste populoso entroncamento ou conjunto de alamedas, jardins e passagens de Butcher Row, em Whitechappel – digo, o que poderia ser mais impressionante do que ver aquele pobre homem vindo pelo meio da rua, correndo, dançando e cantando, fazendo mil gestos grotescos com cinco ou seis mulheres e crianças correndo atrás, gritando e pedindo que, pelo amor de Deus, ele voltasse; pedindo ajuda aos outros para fazê-lo voltar, mas tudo em vão, ninguém se arriscando a botar suas mãos ou mesmo chegar perto dele? Para mim, isto foi uma coisa altamente penosa e angustiante, pois vi tudo da minha própria janela. Durante o tempo todo, o pobre homem atormentado estava, como notei na maior agonia da dor, tendo (como diziam) dois inchaços arrebentados ou supurantes. Ao jogarem fortes corrosivos sobre eles, parece que os cirurgiões tinham esperanças de rompêlos – estes corrosivos se espalhavam pelo corpo, queimando a carne feito um ferro quente. Não sei dizer o que aconteceu com este pobre homem, acho que continuou vagando daquela maneira até cair e morrer. Não é de se estranhar que a aparência da city fosse por si só horripilante. O costumeiro ajuntamento do povo pelas ruas, que habitualmente se dava no nosso extremo da cidade, desapareceu. A Bolsa não permaneceu fechada, é verdade, mas ninguém mais a freqüentava. As fogueiras apagaram-se. Elas foram quase inexistentes durante alguns dias devido a uma chuva forte e rápida, mas isto não foi tudo: alguns médicos insistiram que as fogueiras não apenas não traziam benefícios, mas eram maléficas para a saúde da população. Fizeram um grande escarcéu sobre isso e foram se queixar ao Lorde Prefeito. Por outro lado, outros da mesma faculdade, e também eminentes, se opunham aos primeiros, expondo as razões pelas quais as fogueiras tinham que ser e eram úteis para amenizar a violência da peste. Não posso fazer um relato completo dos argumentos de ambos os lados. Recordo somente que discutiam muito entre si. Alguns eram a favor das fogueiras, mas achavam que precisavam ser de madeira e não carvão e, ainda, com tipos especiais de madeira, tais como, principalmente, o abeto e o cedro, devido à grossa fumaça de terebintina. Outros eram a favor do carvão e não da madeira, devido ao enxofre e ao betume. Outros, não eram a favor nem de um nem de outro. Por cima de todas, o Lorde Prefeito determinou a suspensão das fogueiras, principalmente porque a peste estava tão forte que desafiava todas as medidas e mais parecia aumentar do que diminuir com qualquer providência para controlá-la e reduzi-la. Mesmo assim, este assombro das autoridades procedia mais da falta de capacidade para aplicar qualquer medida com sucesso do que de qualquer má vontade, tanto de se exporem quanto de assumirem o controle e o peso da sua responsabilidade. Para ser justo com elas, não pouparam sacrifícios, nem seus nem de suas pessoas, mas nada funcionou: a epidemia intensificou-se, deixando o povo amedrontado e apavorado até o último grau. De modo que posso afirmar que ele se abandonou, como mencionei acima, entregando-se ao seu desespero. Deixai-me observar aqui que, ao dizer que o povo se entregou ao desespero, não me refiro ao que os homens chamam de desespero religioso ou desespero de seu estado eternal. Refiro-me ao desespero de não ser capaz de escapar da epidemia e sobreviver à peste, que era considerada mais forte e invencível, pois, de fato, poucas pessoas atingidas no seu clímax, entre agosto e setembro, se salvaram. Isto foi muito peculiar, ao contrário do comportamento de junho, julho e começo de agosto, quando muitos, como observei, contaminaram-se e assim permaneceram por vários dias, fugindo depois de trazer o veneno

em seu sangue há muito tempo. Mas então, nas duas últimas semanas de agosto e as três primeiras semanas de setembro, deu-se o oposto, com a maioria das pessoas atingidas geralmente morrendo em dois ou três dias no máximo; muitos até no mesmo dia em que se contaminaram. Se foram os dias de cão ou, como nossos astrólogos pretendiam se expressar, as influências da estrela do cão que causaram este efeito maligno ou se todos aqueles que já carregavam a semente da doença anteriormente a trouxeram para um amadurecimento, todos juntos e naquele momento, eu não sei. Foi um tempo em que se registraram mais de três mil mortes por noite e aqueles que queriam nos levar a crer terem observado isto mais criticamente tentavam nos convencer que todos morreram no espaço de duas horas, isto é, entre uma e três da madrugada. Sobre a morte repentina das pessoas, nesta época mais do que anteriormente, surgiram muitos exemplos e eu poderia contar vários da minha vizinhança. Numa família depois de Bars, não muito longe de mim, estavam todos bem na segunda-feira. Eram dez na família e, naquela noite, uma criada e um aprendiz ficaram doentes, morrendo na manhã seguinte, quando outro aprendiz e duas crianças foram atingidos, sendo que um morreu na mesma noite e as duas crianças na quarta-feira. Em poucas palavras, sábado ao meio-dia, o patrão, a patroa, quatro crianças e quatro criados já tinham partido, deixando a casa completamente vazia, com exceção de uma velha que veio tomar conta das mercadorias para o irmão daquele chefe de família, que não vivia longe dali e que não estava doente. Muitas casas, então, foram abandonadas vazias, com todos os moradores arrastados pela morte. Num beco do mesmo lado, adiante de Bars, na direção do sinal de Moisés e Aarão, havia várias casas juntas, nas quais diziam não haver uma única pessoa viva lá dentro. Alguns dos que morreram por último, em várias daquelas casas, ficaram abandonados durante muito tempo até que viessem buscá-los para serem enterrados. A razão disto não foi, como alguns escreveram muito falsamente, que os vivos não eram suficientes para enterrar os mortos, mas naquele quintal ou alameda a mortalidade foi tão alta que não sobrou nenhum para informar os coveiros ou sacristãos que havia qualquer cadáver para ser enterrado. Não sei até onde é verdade, mas foi dito que alguns daqueles cadáveres ficaram tão podres e deteriorados que só foram transportados com dificuldades. Como as carroças não podiam se aproximar mais do que Alley Gate na High Street, trazêlos até lá era muito mais difícil. Não sei ao certo quantos cadáveres foram abandonados então. Tenho certeza, porém, que normalmente isso não foi assim. Mencionei as pessoas dominadas por um estado de desespero de vida e autoabandono. Esta estranha coisa teve um efeito sobre nós durante três ou quatro semanas; isto é, as pessoas tornaram-se intrépidas e aventureiras: não se intimidavam mais umas com as outras, nem permaneciam dentro de casa. Iam a qualquer lugar, iam a toda parte e voltaram a conversar. Um dizia para o outro: “Não perguntei como estás nem disse como estou, é certo que nós dois partiremos logo. Então, não me interessa quem está completamente são e quem está doente”. Assim, iam desesperadamente a qualquer lugar e com qualquer companhia. Isso fez o povo voltar a se reunir em público e foi surpreendente como se formaram multidões dentro das igrejas. As pessoas não averiguavam mais quem se sentaria a seu lado e de quem deveriam se afastar; nem os cheiros desagradáveis que sentissem ou em que condições as pessoas pareciam estar. Encarando a si próprias como muitos cadáveres, vinham para as igrejas sem a menor preocupação, aglomerando-se como se suas vidas não valessem nada, comparadas com a obra que faziam lá. De fato, o zelo com que vinham, o fervor e a paixão que demonstravam prestando atenção no que lhes diziam tornou patente

toda a importância que as pessoas davam à louvação de Deus, considerando-se que cada dia que viessem à igreja, aquele poderia ser o último. Isso não deixou de ter outras estranhas conseqüências, levando embora todas as formas de preconceitos ou de escrúpulos para com a pessoa que encontrassem no púlpito das igrejas. Não se deve duvidar que muitos sacerdotes das igrejas de paróquias, entre outros, tenham sido eliminados em tão terrível calamidade. Outros não tiveram coragem suficiente para permanecer, recolhendo-se ao interior conforme encontrassem meios para fugir. De modo que algumas paróquias ficaram bastante vazias e abandonadas, mas o povo não teve escrúpulos, desejando que os tais não-conformistas pregassem em suas igrejas, embora proibidos de se manifestar alguns anos antes em virtude da lei do Parlamento chamada Lei da Uniformidade. Nem os sacerdotes da Igreja, naquelas circunstâncias, criaram qualquer dificuldade para aceitar a ajuda deles. Assim, muitos dos chamados sacerdotes silenciosos tiveram oportunidade de abrir a boca, pregando publicamente para o povo. Aqui podemos notar e espero não seja despropositado observar que a contemplação da morte próxima logo reconciliou entre si os homens de bons princípios. É principalmente devido às comodidades das nossas condições de vida e ao distanciamento destas coisas que nossas divergências se acentuam, os preconceitos e os maus sentimentos se perpetuam, com o abandono da caridade e da união cristã tão cultivada e tão difundida entre nós. Outro ano de peste teria reconciliado todas estas diferenças; uma conversa íntima com a morte ou com doenças que ameaçam com a morte teria arrancado o fel das nossas têmperas, removendo nossas animosidades e fazendo-nos ver as coisas com olhos diferentes daqueles com que olhávamos anteriormente. Nessa época, as pessoas que costumavam se reunir nas igrejas estavam reconciliadas e aceitavam as pregações de não-conformistas. Assim, os nãoconformistas que, numa segregação incomum, afastaram-se da comunhão da Igreja da Inglaterra, sentiram-se então satisfeitos, vindo às igrejas de suas paróquias pregar conforme as práticas religiosas que antes desaprovavam. Mas como o terror da epidemia diminuiu, todas estas coisas retornaram a um nível menos desejável, na direção do que eram antes. Menciono isso apenas historicamente. Não tenho intenção de entrar em discussões para mover um ou ambos os lados até uma condescendência mais generosa entre si. Não vejo probabilidade deste discurso ser pertinente ou bem-sucedido. As divergências parecem se ampliar e tendem a se afastar ainda mais, em vez de se aproximarem; quem sou eu para me considerar capaz de influenciar tanto um quanto o outro lado? Posso, porém, afirmar mais uma vez: a morte iminente reconcilia a todos nós e, do outro lado da sepultura, seremos todos irmãos novamente. No céu, onde espero que cheguemos vindos de todos os partidos e crenças, não teremos preconceitos ou escrúpulos, teremos um princípio e uma fé. Por que não nos contentamos em ir lado a lado para o lugar onde uniremos mãos e corações sem a menor hesitação, na mais completa harmonia e afeição – digo, por que não conseguimos fazer assim aqui, eu não sei nem devo dizer mais coisa alguma sobre isso, que continua sendo lamentável. Poderia passar muito tempo discorrendo sobre as tragédias deste tempo terrível e continuar descrevendo as cenas que aconteciam todos os dias entre nós, as horripilantes extravagâncias a que a loucura conduzia as pessoas doentes. As ruas estavam, então, cheias de figuras assustadoras, famílias que se tornavam um terror para si mesmas. Depois do que contei acima, do homem que, amarrado em sua cama, não encontrou outra maneira de se libertar e botou fogo na cama com uma vela que infelizmente ficara a seu alcance, imolando-se na própria cama; e como outro, devido ao sofrimento insuportável que sentia,

dançava e cantava nu pelas ruas, sem diferenciar um êxtase do outro; digo, depois de mencionar todas estas coisas, o que mais poderia acrescentar? O que pode ser dito para representar a miséria daqueles tempos de maneira mais viva ao leitor, ou como dar uma idéia mais perfeita de um complicado sofrimento? Devo reconhecer que aquela época foi terrível e às vezes cheguei ao esgotamento de toda minha determinação, não tendo mais a coragem que tive no começo. O furor da peste trouxe mais gente para as ruas e isso me levou para dentro de casa, com exceção da viagem rio abaixo para Blackwall e Greenwich que relatei e que foi um passeio. Daí por diante, me mantive muito dentro de casa, como tinha feito nas duas semanas anteriores. Já disse que me arrependi várias vezes de ter me arriscado, ficando na cidade em vez de ir embora com meu irmão e sua família, mas então era tarde para isso. Depois que me recolhi e fiquei dentro de casa um bom tempo antes de minha impaciência me fazer sair, fui, como disse, convocado para um cargo feio e perigoso e isto me fez sair novamente. Aquilo acabou quando a epidemia ainda estava no seu clímax e me recolhi outra vez, permanecendo trancado por mais de dez ou doze dias, durante os quais muitos espetáculos pavorosos se apresentaram diante de minhas janelas, na minha própria rua, principalmente em Harrow Alley, cenas como a da pobre criatura que dançava e cantava agonizante e muitas outras. Raro era o dia ou noite que passava sem que uma ou outra coisa medonha acontecesse no final de Harrow Alley, um lugar cheio de pobres, muitos dos quais açougueiros ou com empregos que dependiam dos matadouros. Às vezes, surgiam multidões e turbas no beco, mulheres em sua maioria, fazendo lamentações terríveis, um misto de gritos e gemidos, implorando umas pelas outras, de modo que não se conseguia entender do que se tratava; quase todas as horas mortas da noite, o carro dos mortos parava no final daquele beco, onde entrava só um pouco, pois, uma vez lá dentro, mal podia retornar. Parava ali para receber cadáveres e, como o cemitério ficava a pouca distância, saía cheio e voltava logo. É impossível descrever os gritos mais horripilantes que os pobres soltavam ao retirarem da carroça os corpos das suas crianças e amigos mortos, numa quantidade que qualquer um pensaria que ninguém ficara para trás ou que havia gente suficiente para uma pequena cidade dos que viviam naquelas casas. Várias vezes gritaram “assassinos”, algumas vezes “fogo”, mas era fácil perceber que tudo era loucura, queixas de pessoas doentes e desvairadas. Acredito que, naquela época, também foi assim em qualquer outro lugar, porque durante seis ou sete semanas a peste atacou mais do que tudo que já disse, atingindo uma tal intensidade que, no seu e102tertor, o povo começou a desrespeitar aquela excelente ordem sobre a qual tanto falei em louvor das autoridades: objetivamente, nenhum cadáver foi visto nas ruas e não ocorreram sepultamentos durante o dia, mas, nos seus estertores, é preciso aceitar que isto foi de outro modo por um curto período. Uma coisa não posso omitir aqui porque achei realmente extraordinária, pelo menos parecia ser uma notável intervenção da Justiça Divina: a saber, fugiram e desapareceram todos os videntes, astrólogos, leitores de sorte e os chamados curandeiros, feiticeiros e outros como os calculadores de horóscopos, intérpretes de sonhos e gente do gênero. Nenhum deles podia ser encontrado e estou suficientemente convencido de que um grande número deles caiu no auge da calamidade, arriscando-se a ficar com a perspectiva de fazer fortuna. Realmente, os lucros com a loucura e demência das pessoas foram enormes durante algum tempo. Depois, ficaram silenciosos e muitos foram para a morada eterna, incapazes de prever seu próprio destino ou de calcular seu próprio horóscopo. Alguns foram críticos a ponto de dizerem que todos eles morreram. Não ouso afirmar isso, mas

devo admitir que nunca ouvi falar de qualquer um deles que tenha aparecido depois que a calamidade passou. Voltando às minhas observações particulares nesse momento pavoroso do flagelo, chego agora, como disse, ao mês de setembro, que foi o mais terrível de todos os que, acredito, Londres já viu. Por todos os cálculos que vi de epidemias anteriores que atingiram Londres, nenhuma foi como esta, com o número de mortos registrados semanalmente chegando a quase quarenta mil, entre 22 de agosto e 26 de setembro, ou seja, cinco semanas. Os detalhes dos boletins de óbitos são os seguintes, a saber: De 22 a 29 de agosto De 29 de agosto a 5 de setembro De 5 a 12 de setembro De 12 a 19 de setembro De 19 a 26 de setembro

7.496 8.252 7.690 8.297 6.460 38.195

Este número é em si impressionante, mas se eu acrescentar as razões que tenho para acreditar que esta contagem está incompleta e mostrar quão incompleta está, vós não tereis, junto comigo, escrúpulos para crer que mais de dez mil morreram em cada uma de todas aquelas semanas; uma depois da outra e na mesma proporção durante várias semanas, tanto antes quanto depois. A confusão do povo, na época, principalmente dentro da city, era indescritível. No final, o terror foi tamanho, que até a coragem das pessoas nomeadas para recolher os mortos começou a abandoná-las. Mais que isso, muitas delas morreram, muito embora já tivessem se contaminado e se recuperado da doença; algumas caíram carregando os cadáveres na beira da cova, prontas para jogá-los lá dentro. Esta confusão foi maior na city, porque os moradores se iludiram com esperanças de escapar, achando que o amargor da morte tinha passado. Contaram-nos que um carro indo por Shoreditch foi abandonado pelos carregadores ou tinha só um condutor que morreu na rua. Os cavalos continuaram, virando a carroça e deixando os cadáveres jogados aqui e ali de maneira horripilante. Parece que outro carro foi encontrado numa grande vala em Finsbury Fields. O condutor estava morto ou fugira abandonando a carroça. Os cavalos chegaram perto demais da vala e o carro caiu para dentro, levando junto os cavalos. Foi inusitado o fato do cocheiro parecer jogado dentro da vala, com os cavalos por cima, pois via-se seu relho entre os cadáveres da cova. Suponho que isto não podia estar correto. Na nossa paróquia de Aldgate, o carro dos mortos foi encontrado várias vezes, conforme ouvi dizer, parado no portão do cemitério cheio de cadáveres, mas sem o tocador de sino, o condutor ou qualquer outro. Nem neste nem em outros casos, sabiam quantos corpos tinham na carroça, pois às vezes os cadáveres eram jogados de janelas e varandas presos por cordas. Outras vezes os carregadores os buscavam ou eram trazidos por outras pessoas, mas como os próprios homens disseram, eles nem se davam ao trabalho de manter qualquer contagem dos mortos. A vigilância das autoridades foi assim posta à sua mais alta prova e é preciso reconhecer que, também nessa ocasião, nunca serão suficientes os louvores que recebam. Qualquer que fosse o custo ou a dificuldade em que se encontrassem, duas coisas nunca foram negligenciadas na city ou nos subúrbios: 1) Sempre encontrou-se mantimentos com toda abundância e sem preços muito elevados, mal valendo a pena comentar.

2) Nenhum cadáver ficou insepulto ou ao relento. Se alguém caminhasse de um extremo a outro da cidade, não veria enterro algum, ou indícios deles durante o dia, com a curta exceção, como disse antes, das três primeiras semanas de setembro. Este último aspecto dificilmente merecerá crédito, vendo os relatos que outros vêm publicando desde então, onde dizem que os mortos ficavam sem sepultura, o que tenho certeza ser absolutamente falso. Se isso aconteceu em algum lugar, pelo menos deve ter sido nas casas onde os vivos abandonaram os mortos (encontrando, como observei, meios de fugir) sem que os inspetores fossem notificados. No caso em apreço, tudo isso não significa nada, o que afirmo com segurança, por eu mesmo ter trabalhado um pouco na condução desse serviço na paróquia onde moro e onde, em proporção ao número de habitantes, ocorreu uma devastação tão grande como em qualquer outro lugar; digo, estou convencido que nenhum cadáver ficou sem sepultura; isso quer dizer, nenhum dos que chegaram ao conhecimento dos inspetores, nenhum por falta de gente para recolhê-los ou de carregadores para jogá-los no chão e cobri-los de terra. Isso basta para esta discussão. Os que ficaram em casas e buracos, como em Moses e Aaron Alley, não são nada, porque há garantias de que foram enterrados assim que descobertos. Sobre o primeiro aspecto (objetivamente, a escassez ou disponibilidade de alimentos), embora tenha mencionado antes e ainda deva voltar ao assunto, também devo acrescentar aqui: 1) O preço do pão, em particular, não subiu muito. No começo do ano, isto é, na primeira semana de março, o pão de trigo de um pêni pesava dez onças e meia; no auge da epidemia, pesava nove onças e meia, mas nunca custou mais caro durante toda aquela temporada. Mais ou menos no começo de novembro, o pão voltou a ser vendido novamente com dez onças e meia. Acredito que nunca se ouviu falar de fato semelhante em qualquer outra cidade já atingida por flagelo tão terrível. 2) Tampouco houve (o que muito me admirou) qualquer escassez de padeiros ou fornos em funcionamento para abastecer o povo de pão. É verdade que algumas famílias se queixavam, isto é, alegavam que, indo à padaria com a massa para ser cozida como então era costume, suas criadas às vezes voltavam para casa com a doença (isso quer dizer, com a peste) no corpo. Durante todo esse terrível flagelo, como disse antes, havia apenas dois hospitais de pestilentos em atividade, ou seja, um nos campos depois de Old Street e outro em Westminster. Tampouco impuseram medidas compulsórias para transportar as pessoas para lá. Na verdade, não haveria necessidade de obrigá-las, pois, nesse caso, milhares de doentes pobres, sem dispor de qualquer auxílio, recursos ou mantimentos, a não ser os da caridade, ficariam muito contentes sendo carregados para lá, onde receberiam assistência. De fato, acho que isso foi a única coisa que ficou faltando em toda a administração pública da cidade, visto que ninguém tinha permissão de ir para um hospital de pestilentos a não ser dando dinheiro, ou se comprometendo a dar dinheiro, fosse na entrada, fosse na saída, caso se curassem e fossem mandados embora – e muitos voltaram a sair curados. Médicos muito bons foram indicados para estes lugares e muita gente se sentiu muito bem lá, mas ainda voltarei a falar nisso. O principal tipo de gente enviado para lá foi, como disse, de criados que se contaminaram saindo em busca do que faltava às famílias com quem viviam. Caso retornassem doentes, eram recolhidos para proteger o resto da casa, recebendo lá um tratamento tão bom durante todo o período de epidemia, que não mais do que 156 foram enterrados em todo hospital de pestilentos de Londres e 159 no de Westminster. Com a existência de mais hospitais de pestilentos, estou longe de afirmar que todos os doentes fossem forçados a se internarem nesses lugares. Suspender o fechamento das casas

e, às pressas, transferir os doentes de suas casas para os hospitais de pestilentos, como alguns propuseram, tanto na época quanto depois, parece que seria muito pior. A própria remoção dos doentes espalharia a epidemia, ainda mais porque a remoção poderia não limpar efetivamente a casa onde estava o doente, e o resto da família, ficando com liberdade de movimentos, certamente passaria a peste para outros. Os métodos das famílias particulares, amplamente empregados para esconder a doença e as pessoas doentes, também seriam tais que muitas vezes a doença atingiria uma família inteira antes que qualquer visitador ou inspetor pudesse ter conhecimento do caso. Por outro lado, a enorme quantidade de doentes de determinado período teria excedido a capacidade dos hospitais de pestilentos para interná-los, ou dos funcionários públicos para identificá-los e removê-los. Muito se pensou sobre isso naqueles dias e seguidamente ouvi comentarem o assunto. As autoridades já tinham bastante trabalho para submeter os moradores ao fechamento de suas casas e, de diversas maneiras, como já observei, o povo enganou os vigilantes e fugiu. Esta dificuldade tornou evidente que as autoridades reconheciam ser impraticável a execução do outro procedimento, pois nunca conseguiriam forçar os doentes a sair de suas casas e seus alojamentos. Não seriam os funcionários do meu Lorde Prefeito, mas um exército de funcionários quem poderia tentar isso. O povo, por outro lado, furioso e desesperado, mataria aqueles que se metessem com ele, com seus filhos e parentes, fosse lá o que lhe acontecesse por isso. Assim, teriam deixado o povo que, do jeito que estava, já vivia o mais terrível desvario imaginável – digo, teriam deixado o povo completamente louco. De onde as autoridades concluíram ser mais apropriado, em muitos casos, tratar a população com indulgência e compaixão e não com violência e terror, como teria sido arrastar os doentes para fora das casas ou obrigá-los a se retirarem sozinhos. Isso me leva a mencionar mais uma vez o momento em que a peste começou; quer dizer, quando ficou claro que ela se espalharia por toda a cidade, quando, como disse, as pessoas melhor de vida se assustaram e começaram a fugir, correndo para fora da cidade. Como mencionei no devido lugar, a verdade é que a multidão era tão grande, com tantos carros, cavalos, carruagens e carroças levando a população embora, que toda a cidade parecia estar fugindo. Caso fossem publicadas instruções que parecessem aterrorizadoras naquela época, principalmente se tentassem dispor da população de forma distinta da que ela mesma queria, isso teria conduzido tanto a city quanto os subúrbios à maior confusão. As autoridades, sabiamente, estimulavam a coragem da população, criando leis suplementares muito boas para controle dos cidadãos, mantendo boa ordem nas ruas e tornando todas as coisas tão disponíveis quanto possível para todo tipo de gente. Em primeiro lugar, o Lorde Prefeito e seus xerifes, a Corte de Vereadores e um certo número de homens do Conselho dos Comuns ou seus substitutos tomaram a decisão e publicaram que eles mesmos não abandonariam a cidade, permanecendo sempre disponíveis para a manutenção da boa ordem em todo lugar e para fazerem justiça em todas as ocasiões; assim como também para a distribuição da caridade pública aos pobres e, em poucas palavras, cumprirem seu dever e responderem até o limite de suas forças à confiança depositada neles pelos cidadãos. Para a execução destas ordens, o Lorde Prefeito, os xerifes e outros se reuniam mais ou menos todos os dias, a fim de tomar as medidas que achassem necessárias para a manutenção da paz civil. Embora tratassem a população com toda cordialidade e demência possíveis, mesmo assim foram punidos todos os tipos de delinqüentes audaciosos, como os

ladrões invasores de casas e saqueadores de mortos e doentes; continuamente, o Lorde Prefeito e a Corte de Vereadores publicavam diversas petições contra eles. Todos os policiais e funcionários da Igreja também foram intimados a permanecer na cidade sob pena de severa punição ou então que encontrassem substitutos idôneos e capazes, aprovados por subvereadores ou por homens do Conselho dos Comuns do distrito; e de quem continuariam fiadores, garantindo ainda que, em caso de morte, encontrariam outros guardas para substituí-los. Estas coisas tranqüilizaram muito os ânimos do povo, principalmente no começo do pânico, quando se falava em uma debandada tão completa que a cidade corria perigo de ficar totalmente deserta, com exceção dos pobres; e o interior sendo saqueado e devastado pela multidão. As autoridades também não foram ineficientes, cumprindo sua função tão determinadamente quanto haviam prometido. O Lorde Prefeito e os xerifes estavam continuamente pelas ruas e nos lugares mais perigosos, mesmo não querendo uma quantidade tão grande de gente se aglomerando a seu redor; mas, em casos de emergência, nunca se negaram a receber o povo, ouvindo com paciência todas suas reclamações e ressentimentos. Meu Lorde Prefeito mandou construir uma galeria baixa na prefeitura especialmente para isso; de modo que ele ficava um pouco afastado da multidão quando tinha que ouvir suas reclamações, podendo aparecer com toda segurança possível. Da mesma forma, os funcionários competentes, chamados de funcionários do Lorde Prefeito, constantemente atendiam, por turnos, os que ficavam esperando. Se algum deles ficasse doente ou contaminado, como alguns ficaram, imediatamente outro seria designado para integrar o funcionalismo, substituindo-o em seu cargo até que se soubesse se ele viveria ou morreria. De modo semelhante, os xerifes e vereadores nos diversos postos e bairros onde estavam oficialmente alocados, mais os auxiliares dos xerifes e os sargentos foram instruídos para acatar as ordens dos respectivos vereadores de plantão, de forma que, em todos os casos, a justiça fosse feita sem interrupções. Em seguida, uma de suas obrigações específicas era verificar o respeito às ordens relativas à liberdade dos mercados. Nessa tarefa, o Lorde Prefeito ou um ou dois xerifes apareciam a cavalo no mercado todos os dias para verificar o cumprimento da lei e ver se as pessoas vindas do interior recebiam todo apoio possível, tendo liberdade para entrar e sair dos mercados sem que acontecesse qualquer cena desagradável ou assustadora pelas ruas, apavorando-as e deixando-as sem vontade de voltar. Também os padeiros ficaram sob controles especiais e o chefe da Companhia dos Padeiros, junto com seu colegiado de assistentes, foi instruído para verificar se estava sendo cumprida a lei do Lorde Prefeito para regulamentá-los, se era mantido o devido peso do pão (determinado semanalmente pelo Lorde Prefeito). Todos os padeiros foram obrigados a manter seus fornos em constante funcionamento, sob pena de perderem seus privilégios de homens livres da cidade de Londres. Com estas medidas, sempre houve pão em abundância e tão barato como de costume, conforme disse acima. Nunca faltaram mantimentos nos mercados, a tal ponto que seguidamente me assustei com isso, recriminando-me por ser tão acanhado e cauteloso nos meus movimentos, enquanto o povo do interior entrava tão livre e destemidamente nos mercados, como se não houvesse na cidade qualquer tipo de epidemia ou perigo de contraíla. Foi de fato uma admirável realização das ditas autoridades manter as ruas constantemente limpas e livres de todos os tipos de cenas assustadoras, cadáveres e coisas como estas, indecentes ou desagradáveis – a não ser quando alguém caía subitamente ou

morria pelas ruas, como me referi anteriormente. Estes geralmente eram cobertos por algum pano ou lençol, ou recolhidos para o cemitério mais próximo até a noite. Todas as tarefas necessárias que apresentassem algum horror, que fossem lúgubres ou perigosas, eram realizadas à noite. Fosse remover corpos contaminados, enterrar cadáveres ou queimar roupas contaminadas, isto era feito à noite. Todos os cadáveres jogados dentro das grandes valas nos diversos cemitérios ou campos de sepultamento, conforme foi observado, eram removidos à noite, estando tudo coberto e fechado antes de amanhecer. Assim, durante o dia, não havia o menor sinal de tragédia que se visse ou ouvisse, exceto o que se notava pelo abandono das ruas e, às vezes, gritos e lamentações pungentes saindo das janelas de algumas casas e lojas fechadas. Nem o silêncio e o vazio das ruas eram tão grandes dentro da city quanto fora, com exceção de um período específico que já mencionei quando a peste veio para o leste e se espalhou por toda a city. Isso, na verdade, foi uma misericordiosa disposição de Deus, pois a peste começou, primeiro, num extremo da cidade (como já foi amplamente descrito), avançando assim progressivamente para outros lados, e não veio nesta direção, a leste, antes de aplacar seu furor na zona oeste da cidade; assim, conforme aumentava numa direção, diminuía em outra. Por exemplo, a peste começou em St Giles e no fim de Westminster, atingindo seu clímax em toda aquela zona da cidade lá por meados de julho, ou seja, em St Giles-in-the-fields, St Andrew’s, Holborn, St Clement Danes, St Martin-inthe-fields e Westminster. No final de julho a peste diminuiu naquelas paróquias e, vindo para o leste, aumentou enormemente em Cripplegate, St Sepulcher’s, St James’s, Clarkenwell, St Bride’s e Aldersgate. Enquanto esteve em todas estas paróquias, a city e as paróquias da margem de Southwark, toda Stepney, Whitechappel, Aldgate, Wapping e Ratcliff pouco foram atingidas. De modo que o povo continuou sua vida despreocupadamente, fazendo seus negócios, mantendo as lojas abertas e conversando livremente entre si em toda a city, nos subúrbios do leste, do nordeste e em Southwark, quase como se a peste não estivesse entre nós. Mesmo quando os subúrbios do norte e do noroeste ficaram completamente contaminados, ou seja, Cripplegate, Clarkenwell, Bishopsgate e Shoreditch, ainda assim todo o resto estava toleravelmente bem. Por exemplo, de 25 de julho a primeiro de agosto, foram estes os registros de óbitos de todas as doenças: St Giles, Cripplegate St Sepulchers Clarkenwell Bishopsgate Shoreditch Paróquia de Stepney Aldgate Whitechappel Todas as noventa e sete paróquias dentro das muralhas Todas as paróquias de Southwark

554 250 103 116 110 127 92 104 228 205 Total

1.889

Assim que, em resumo, naquela semana, nas duas paróquias de Cripplegate e St Sepulcher morreram mais quarenta e oito pessoas do que em toda a city, todos os subúrbios da zona leste e do que em todas as paróquias de Southwark juntas. Isso fez com que a

reputação da saúde da city percorresse toda Inglaterra – principalmente nos condados e mercados adjacentes, de onde vinha a maior parte dos nossos suprimentos de provisões –, mantendo-se por muito mais tempo do que a própria saúde, pois quando o povo chegava vindo do interior por Shoreditch e Bishopsgate ou por Old Street e Smithfield, ele via as ruas transversais vazias, as casas e lojas fechadas e as poucas pessoas que circulassem por lá, caminhavam pelo meio das ruas. As coisas pareciam melhores entrando na city, com mercados e lojas abertos e o povo caminhando pelas ruas como de costume, mas não em número tão grande; isso continuou assim até o final de agosto e começo de setembro. Então, a situação se alterou muito. A moléstia diminuiu nas paróquias do oeste e do noroeste, com o peso da epidemia desabando de maneira assustadora sobre a city, subúrbios do leste e na margem de Southwark. A city começou a realmente parecer doentia, com lojas fechadas e ruas desertas. Em High Street, é verdade, a carência fazia o povo sair para a rua em diferentes ocasiões e, ao meio-dia, havia muita gente naquela rua, mas, à noite e pela manhã, raramente se via alguém, nem lá nem muito menos em Cornhill e Cheapside. Estas minhas observações foram amplamente confirmadas pelos registros semanais de mortalidade daquelas semanas, um extrato dos quais, já que se referem a paróquias que mencionei e tornam minhas avaliações bastante evidentes, vem a seguir. O registro semanal que estabelece o decréscimo de enterros nas zonas norte e oeste da city é o seguinte: De 12 a 19 de setembro: St Giles, Cripplegate St Giles-in-the-fields Clarkenwell St Sepulcher St Leonard, Shoreditch Paróquia de Stepney Aldgate Whitechappel Nas noventa e sete paróquias dentro das muralhas Nas oito paróquias do lado de Southwark

456 140 77 214 183 716 623 532 1.493 1.636 Total

6.060

Aqui há uma realmente estranha alteração nas coisas e foi uma triste mudança. Tivesse isso se mantido por mais dois meses do que o fez e muito pouca gente teria escapado com vida. Digo, porém, que tal foi a misericordiosa disposição de Deus que, ao ficarem assim, as zonas norte e oeste, que foram terrivelmente atingidas no começo, tornaram-se, como se pode ver, muito melhores. Conforme o povo desaparecia aqui, ele começava a reaparecer ali. Uma ou duas semanas depois, o quadro alterou-se ainda mais; ou seja, mais para o otimismo da outra região da cidade. Por exemplo: De 19 a 26 de setembro: St Giles, Cripplegate St Giles-in-the-fields Clarkenwell St Sepulchers

277 119 76 193

St Leonard, Shoreditch Paróquia de Stepney Aldgate Whitechappel Nas noventa e sete paróquias dentro das muralhas Nas oito paróquias do lado de Southwark De 26 de setembro a 3 de outubro: St Giles, Cripplegate St Giles-in-the-fields Clarkenwell St Sepulchers St Leonard, Shoreditch Paróquia de Stepney Aldgate Whitechappel Nas noventa e sete paróquias dentro das muralhas Nas oito paróquias no lado de Southwark

146 616 496 346 1.268 1.390 Total 4.927 196 95 48 137 128 674 372 328 1.149 1.201 Total 4.382

Então, a desgraça da city e das ditas zonas leste e sul foi realmente completa. Como vós podeis ver, o peso da epidemia desabou sobre aquela região, quer dizer, a city, as oito paróquias do outro lado do rio, mais as paróquias de Aldgate, Whitechappel e Stepney. Nessa época, os registros de óbitos atingiram cifras monstruosas como as que mencionei antes, com oito, nove ou, como acredito, dez ou doze mil mortos por semana. Por isso, sou de opinião formada que nunca conseguiram fazer uma contagem correta, por razões que já apresentei. Ainda mais que um dos mais eminentes médicos publicou em latim um relato com suas observações daquela época dizendo que, numa semana, chegaram a morrer doze mil pessoas e, numa noite específica, morreram quatro mil, embora não me recorde que esta noite específica tenha acontecido, tão extraordinariamente fatal, com tamanha quantidade de mortos. Tudo isso, no entanto, confirma o que falei anteriormente sobre a incorreção dos registros de mortalidade e outros, sobre os quais voltarei a falar mais adiante. E, aqui, que me seja permitido voltar mais uma vez, embora possa parecer uma repetição de pormenores, à descrição das condições miseráveis da própria city e da região onde eu morava na época. A city e aquelas outras zonas, apesar do grande número de gente que tinha fugido para o interior, estavam amplamente cheias de gente, talvez ainda mais cheias porque o povo teve, por muito tempo, uma forte crença de que a peste não atingiria a city, nem Southwark, muito menos Wapping e Ratcliff. Mais ainda, tal era a certeza dos moradores daquela ponta, que muitos se mudaram dos subúrbios das zonas norte e oeste para as zonas sul e leste, só em função de segurança. Acredito piamente que estes levaram a peste para lá junto consigo, talvez muito antes do que, caso contrário, teria acontecido. Aqui, também devo me permitir maiores comentários para uso da posteridade no que se refere à forma das pessoas se contaminarem umas às outras. Objetivamente, não foi somente através das pessoas doentes que a peste passou imediatamente para outras que tinham saúde, mas também através das que estavam bem. Explico-me: por pessoas doentes me refiro àquelas que estavam sabidamente doentes, porque estavam na cama, estavam sob

tratamento ou tinham inchaços, tumores e sintomas semelhantes pelo corpo. Destas, todos podiam se cuidar, elas estavam nas suas camas ou em condições tais que não conseguiam disfarçar. Pelos que estavam bem, entendo os que tinham se contaminado e realmente traziam a peste no corpo e no sangue, mesmo assim não apresentavam os sintomas da doença em seu semblante. Ainda mais, sequer sofriam com a doença, como aconteceu a muitos, durante muitos dias. Estes sopravam a peste em todos os lugares e sobre todo mundo que chegasse perto deles. Mais que isso, suas roupas tinham peste, suas mãos contaminavam as coisas que tocassem, principalmente se sentissem calor e suassem; e eles geralmente suavam. Então, era impossível reconhecer estas pessoas que, como disse, muitas vezes nem elas mesmas sabiam estar contaminadas. Eram elas que tão freqüentemente caíam e desmaiavam pelas ruas, porque muitas vezes andavam pelas ruas até o fim, até começarem a transpirar subitamente, ficando tontas, sentando-se num portal e morrendo. É verdade que, descobrindo estar assim, elas lutavam para chegar à porta de suas próprias casas ou, em outras condições, sendo capazes apenas de entrar em casa e morrer instantaneamente. Outras vezes, continuaram circulando até lhes aparecerem os sinais, morrendo ainda sem sabê-lo uma ou duas horas depois de chegar em casa, embora estando bem durante todo o tempo que andaram pelas ruas. Estas eram as pessoas perigosas, estas eram as pessoas de quem os que estavam bem deviam ter medo; por outro lado, no entanto, era impossível reconhecê-las. É por essa razão que, numa epidemia, é impossível evitar a disseminação da peste pela mais rigorosa das vigilâncias: ou seja, é impossível diferenciar as pessoas contaminadas das sadias, ou que as pessoas contaminadas consigam saber perfeitamente seu estado. Conheci um homem que se relacionou livremente durante toda a estação da peste de 1665 em Londres, trazendo consigo um antídoto ou tônico com o propósito de ingeri-lo quando achasse que corria algum perigo. Para saber ou se prevenir do perigo, tinha um critério que realmente nunca encontrei antes nem depois. Não sei o quanto se deve confiar nele. O homem tinha um ferimento na perna e, sempre que se encontrava entre pessoas que não estavam sadias e a epidemia começava a afetá-lo, ele se dizia capaz de perceber por aquele sinal, ou seja, seu ferimento na perna passava a doer, ficando esmaecido e branco. Assim, sempre que sentia a dor, era momento de se retirar, ou de se cuidar, ingerindo sua beberagem, que trazia sempre consigo para este propósito. Agora, parece que a ferida doía muitas vezes quando ele estava em companhia de quem se considerava sadio e assim parecia ser aos outros. Ele, nesse momento, levantava-se e dizia publicamente: “Amigos, há alguém com a peste aqui nesta sala”. Imediatamente, afastavase do grupo. Isto foi um indicador realmente de confiança, para todas as pessoas, de que a peste não tem como ser evitada por aquelas que se relacionam promiscuamente numa cidade contaminada, onde as pessoas têm a doença sem sabê-lo e, igualmente, a transmitem para outras, quando não sabem que elas mesmas estão doentes. Nesse caso, não basta confinar os sãos ou remover os doentes, a não ser que se possa retroagir, confinando todos aqueles com quem os doentes conversaram mesmo antes de saberem que estavam doentes; e ninguém sabe o quanto retroagir, ou onde parar, porque ninguém sabe quando, onde, como ou de quem eles contraíram a doença. Considero esta a razão que faz tanta gente falar sobre o ar estar apodrecido e contaminado e que não era preciso ser cauteloso com quem se conversasse, pois a contaminação estava no ar. Vi essa gente em estranha agitação e surpresa diante disso. “Eu nunca cheguei perto de qualquer corpo contaminado”, disse uma pessoa atingida. “Não

conversei com ninguém que não estivesse são, gente com saúde e, mesmo assim, contraí a doença!” “Tenho certeza que fui atingido pelo Céu”, disse outro, caindo em si circunspecto. O primeiro, mais uma vez, continuou exclamando: “Não cheguei perto de qualquer infecção ou pessoa contaminada, tenho certeza que foi o ar. Mergulhamos na morte quando respiramos e isto é a mão de Deus, não há como evitá-la”. No fim, muita gente, já insensível ao perigo, passou a se preocupar menos com isso, tornando-se no final daquela época, quando a peste chegou a seu clímax, menos cautelosa do que o foi no princípio. Assim, com o tipo de pedestrianismo turco15, as pessoas se diziam atingidas por vontade de Deus, dando na mesma ficarem em casa ou saírem para a rua. Não tinham como se salvar, então saíam destemidamente por aí, indo até mesmo em casas contaminadas ou andando em companhia de pessoas contaminadas, de pessoas doentes, com a epidemia; em resumo, deitavam-se nas suas camas com esposas e parentes que tinham a doença. Qual foi a conseqüência, senão a mesma conseqüência do que aconteceu na Turquia e naqueles países onde fizeram estas coisas – ou seja, também se contaminaram e morreram às centenas e milhares? Estou longe de diminuir o temor aos desígnios de Deus e o respeito a suas determinações, que devem estar sempre nos nossos espíritos em ocasiões como estas. Sem dúvida, a epidemia é em si um castigo do Céu sobre a cidade, país ou nação que a recebe. Um mensageiro da Sua vingança e um alto brado para que a nação, país ou cidade se penitencie e se arrependa, conforme o que disse o profeta Jeremias (XVIII, 7,8): “Em que momento devo falar em direção a uma nação, em direção a um reino, para atingi-lo, derrubá-lo e destruí-lo? Se esta nação contra quem me pronunciei se afastar do mal, arrepender-me-ei do mal que lhe pensei em fazer”. Foi para avivar impressões pertinentes do temor a Deus no espírito dos homens nestas circunstâncias, e não para diminuí-las, que registrei aqueles instantes. Digo, portanto, que não recrimino homem algum por situar o motivo daquelas coisas na ação direta de Deus e na indicação das determinações de Sua providência. Ainda mais e pelo contrário, houve muitos e maravilhosos exemplos de pessoas que se salvaram da epidemia, de pessoas já contaminadas que se salvaram, os quais implicam em providência original e notável nas circunstâncias particulares a que se referem. Suponho que meu próprio salvamento foi próximo ao milagre e o registro com gratidão. Quando falo da peste como uma doença emergente de causas naturais, devemos considerá-la como se fosse realmente propagada por meios naturais. Também não foi, de maneira alguma, um castigo menor por estar subordinada à conduta de causas e efeitos humanos, pois assim como os Poderes Divinos formaram todo um sistema na natureza e mantêm a natureza em seu curso, o mesmo Poder considera-se apto para ter Sua própria ação junto aos homens, seja com misericórdia ou punição, levada adiante no curso comum das causas naturais. Ele se satisfaz agindo através daquelas causas naturais de meios corriqueiros, excluindo-se e reservando a Si mesmo um poder nada menor para intervir de modo sobrenatural quando vê uma oportunidade. Agora, é evidente que no caso de uma epidemia não há ocasião extraordinária aparente para operações sobrenaturais, pois o rumo cotidiano das coisas parece suficientemente armado e feito com capacidade para as conseqüências de tudo que o Céu habitualmente envia através de uma epidemia. Entre estas causas e efeitos, um transmissor secreto da epidemia, imperceptível e inevitável, é mais do que suficiente para executar com violência a vingança Divina, sem atribuí-la a causas sobrenaturais e milagres.

A aguda e penetrante natureza da doença em si mesma era tal, e o contágio se dava tão imperceptivelmente que, enquanto se permanecesse num lugar, a mais perfeita precaução não poderia nos dar segurança. Mas devo ter permissão para crer – e tenho tantos exemplos vivos na minha memória para me convencer disso que acho que ninguém pode resistir a suas evidências – digo, devo ter permissão para acreditar que ninguém, em toda a nação, jamais recebeu a doença ou epidemia a não ser contraindo-a pelo modo comum de contágio através de outra pessoa, tocado nas roupas ou pela catinga de alguém que já estivesse contaminado. A maneira como a peste começou em Londres também prova isso, ou seja, através de mercadorias trazidas da Holanda, onde chegaram vindas de Levante. O primeiro sinal da peste surgiu numa casa de Long Acre, onde aquelas mercadorias foram entregues e abertas primeiro. Daquela casa, a peste se espalhou por outras casas pelo visível contato desprecavido com aqueles que ficaram doentes; mais a contaminação de funcionários da paróquia que lidavam com as pessoas mortas e semelhantes. Estes são os argumentos conhecidos para a fundamentação de um importante ponto: a peste foi transmitida e contraída de pessoa para pessoa e de casa para casa, não de outro modo. Na primeira casa contaminada, morreram quatro pessoas. Ouvindo dizer que a dona da casa estava doente, uma vizinha foi visitá-la, voltando para casa e passando a doença para a família. Então, ela morreu, junto com todos os moradores da casa. Disseram que um sacerdote, chamado para rezar pela primeira pessoa morta na segunda casa, adoeceu imediatamente depois, morrendo com muitos outros em sua casa. Os médicos, então, começaram a se preocupar, pois, no princípio, nem sonhavam com uma epidemia geral. Ao serem enviados para examinar os cadáveres, os médicos garantiram aos moradores que não era nada mais nada menos do que a peste, com todas suas características horripilantes; e que ameaçava se tornar uma epidemia geral por tanta gente já ter entrado em contato com os doentes ou contaminados e, como se deveria supor, contraído a doença daqueles; e que seria impossível pôr um fim nisso. Aqui, a opinião dos médicos está de acordo com minhas observações posteriores, especificamente, que o perigo estava na peste se espalhar insensivelmente, uma vez que os doentes não poderiam contaminar outros além dos que estivessem a seu alcance. Como um homem que podia já estar contaminado sem sabê-lo, andando por aí feito uma pessoa sadia, poderia passar a peste para mil pessoas e estas para uma multidão de maiores proporções, sem que a pessoa que a transmitisse ou as pessoas que se contaminassem soubessem qualquer coisa sobre isso; e talvez sem sentir as conseqüências da peste até vários dias depois. Por exemplo, muita gente, no tempo dessa epidemia, nunca percebeu que estava contaminada até descobrir, para sua indizível surpresa, os sinais surgindo pelo corpo. Depois, raramente viviam mais seis horas, porque aquelas manchas, que chamavam de sinais, realmente eram pontos de gangrena ou carne necrosada em pequenos caroços, largos como um pêni de prata e duros como um calo ou um corno. Assim que, a doença atingindo este estágio, nada mais poderia acontecer, a não ser a morte. Mesmo assim, como disse, as pessoas não sabiam que estavam contaminadas, nem se sentiam muito indispostas até que as manchas letais surgissem pelo corpo. Todo mundo deve reconhecer, porém, que já estavam contaminadas num alto grau e que se encontravam assim há algum tempo; conseqüentemente, seu hálito, seu suor, suas próprias roupas eram contagiosas há muito tempo.

Isso gerou uma grande diversidade de casos que os médicos estariam em condições muito melhores do que eu para recordar. Alguns chegaram nos meus círculos de observação e escuta; destes, citarei poucos. Um certo cidadão viveu seguro e intocado até o mês de setembro, quando o peso da doença sobre a city aumentou como nunca fizera antes. Ele era inteiramente jovial e algo ousado demais (como eu acho que era), falando que estava a salvo, porque era cauteloso e nunca chegava perto de qualquer corpo doente. Um dia, outro cidadão seu vizinho, lhe disse: “Não seja tão confiante, Sr.(...). É difícil saber quem está doente e quem está bem, vemos homens vivos, com boa aparência exterior numa hora e estão mortos na hora seguinte”. “Isto é verdade”, disse o primeiro homem, que não era um homem presunçosamente seguro, mas tinha se salvado por muito tempo – e os homens, principalmente na city, como disse acima, começavam a facilitar demais a este respeito. “Isto é verdade – ele disse –, não me sinto seguro, mas espero não ter entrado em contato com nenhuma pessoa onde houvesse qualquer perigo.” “Não? – disse o vizinho – Não estavas na taverna Bull Head em Gracechurch Street com o Sr. (...) anteontem à noite”? “Sim – disse o primeiro – estava, mas não havia ninguém lá que, por alguma razão, devêssemos considerar perigoso.” Diante do que seu vizinho nada mais disse, não querendo assustá-lo, mas isso deixou o outro ainda mais curioso e, como o vizinho parecia reticente, ele ficou mais inquieto e falou alto com um tipo de ardor: “Por quê? Ele não morreu, morreu?” Diante disso, o vizinho continuou em silêncio, mas voltou os olhos para cima e disse alguma coisa para si mesmo, fazendo com que o primeiro cidadão ficasse pálido e dissesse não mais que “então também sou um homem morto”. Foi imediatamente para casa, mandou chamar o boticário seu vizinho para lhe dar algum preventivo, uma vez que ainda não se sentia doente. Descobrindo o seu peito, o boticário identificou uma marca e não disse mais que isto: “Ergue os olhos a Deus”; e o homem morreu em poucas horas. Agora, a partir de um caso como este, que cada homem julgue se, com as determinações das autoridades para trancafiar ou remover doentes, é possível conter uma epidemia que se espalha de homem para homem, mesmo quando estão perfeitamente bem e inconscientes da aproximação da peste, podendo continuar assim bem por muitos dias. Talvez seja pertinente perguntar aqui quanto tempo deve-se supor que os homens carregam as sementes da contaminação antes delas se revelarem daquela maneira fatal; e por quanto tempo eles podem andar por aí, parecendo sadios e mesmo assim sendo contagiosos para todos que se aproximarem deles. Acredito que os médicos mais experientes não consigam responder esta questão mais objetivamente do que eu. Às vezes, um observador comum pode notar o que para eles passa despercebido. A opinião dos médicos no exterior parece ser que a peste pode ficar adormecida um tempo considerável nos espíritos ou nos vasos sangüíneos. Qual seria a outra razão para exigirem uma quarentena àqueles que chegam em seus cais e portos vindo de lugares suspeitos? Quarenta dias, alguém pode pensar, é muito tempo para a natureza lutar contra um inimigo como este sem dominá-lo nem se render a ele. Pelas minhas próprias observações, não posso achar que depois de, no máximo, quinze ou dezesseis dias, ainda pudessem estar contaminados ou ser contagiosos para os outros. Tanto era assim que ao fecharem uma casa na city onde qualquer um tivesse morrido de peste, mas ninguém da família ficasse doente durante dezesseis ou dezoito dias, não eram tão rigorosos e permitiam que os moradores saíssem privadamente. Afinal, o povo também não tinha mais muito medo deles, antes considerando que estavam ainda mais fortalecidos, não sendo vulneráveis quando o inimigo estava em

sua própria casa; mas nós descobrimos que, algumas vezes, a peste permaneceu muito mais tempo oculta. Ao pé de todas estas observações, devo dizer que, embora a Providência parecesse orientar minha conduta noutro sentido, mesmo assim sou de opinião que – e devo deixar isto como uma prescrição – o melhor remédio contra a peste é fugir dela. Sei que nos encorajava dizer que Deus seria capaz de nos proteger em meio ao perigo e capaz de nos atingir quando nos considerássemos fora de perigo. Isso reteve na cidade milhares de pessoas cujas carcaças terminaram às carradas nas grandes covas e eu acredito que, se fugissem do perigo, teriam se salvado; pelo menos é provável que se salvariam. Se esse aspecto fundamental for devidamente considerado pelo povo em qualquer circunstância futura como esta ou de natureza semelhante, estou convencido que isto o levará a providências muito distintas daquelas tomadas em 1665 pela administração pública ou quaisquer outras que ouvi dizer que tomaram no exterior. Em poucas palavras, pensariam em separar as pessoas em grupos menores, deslocando-as em tempo, umas afastadas das outras, não permitindo o contágio, que realmente é o principal perigo dos grandes grupos coletivos que tenham um corpo de um milhão de pessoas, como chegou bem perto de ser no caso anterior e como certamente será o caso se alguma vez isto voltar a acontecer. A peste, assim como um grande incêndio, só pode queimar poucas casas, se apenas as poucas casas onde surgir forem contaminadas. Se a peste começa numa única ou, como nós chamamos, numa casa separada, só pode queimar aquela casa separada onde começa. Mas se ela começa num conjunto cercado de casas ou na city e segue adiante, então sua fúria aumenta: ataca o lugar todo e consome tudo que consegue alcançar. Eu poderia propor muitos projetos a partir dos quais o governo desta cidade, caso se encontre sob ameaça de outro inimigo como este (Deus não permita que isto aconteça), poderia se tranqüilizar em relação a boa parte das pessoas perigosas sob sua responsabilidade. Refiro-me aos mendigos, os famintos, os trabalhadores pobres e, entre eles, principalmente aqueles que, em caso de um cerco, são chamados de bocas inúteis. Estes sendo prudentemente retirados para seu próprio benefício e os moradores ricos se retirando com seus criados e crianças, a cidade e suas adjacências seriam evacuadas tão eficientemente que não restaria mais que a décima parte de sua população reunida para a doença atingir. Mas suponha-se que seja a quinta parte e que 250 mil pessoas tenham permanecido: se a peste as atacasse, por viverem mais afastadas, estariam muito mais preparadas para se defenderem contra a epidemia, ficando menos expostas às suas conseqüências do que o mesmo número de pessoas vivendo juntas numa cidade menor como Dublin, Amsterdam ou parecida. É verdade que centenas, mais, milhares de famílias fugiram desta última peste, mas muitas delas fugiram tarde demais e, então, não apenas morreram durante a fuga como levaram consigo a doença pelos campos por onde andaram, contaminando aqueles a quem procuravam por segurança. Isso confundiu muito as coisas, causando a propagação da doença através do que seria o melhor meio de evitá-la. Isso também é uma evidência sobre a peste e me traz de volta ao que apenas mencionei antes e aqui devo comentar mais detalhadamente, ou seja, os homens andarem por aí aparentemente bem muitos dias depois das marcas da doença estarem em suas vísceras e seus espíritos estarem tão tomados que nunca conseguiriam se salvar, tornando-se perigosos para os outros o tempo todo que andassem assim. Digo, isto prova que foi assim que tais pessoas contaminaram as cidades por onde passaram, assim como as famílias com as quais estiveram; e foi dessa maneira

que, mais ou menos, quase todas as grandes cidades da Inglaterra tiveram peste e sempre contavam que tal ou qual londrino a trouxera para lá. Não se deve omitir que, ao falar daquelas pessoas que eram realmente tão perigosas, eu as imagino completamente ignorantes das suas próprias condições, pois se soubessem que as circunstâncias eram como realmente eram, elas seriam um tipo de assassinos deliberados ao andarem junto com pessoas saudáveis – e isso teria, de fato, confirmado a suposição que fiz antes e que considerei falsa: a saber, as pessoas contaminadas eram totalmente descuidadas e passavam a epidemia para outros, com mais vontade de fazer isso do que de evitá-lo. Acredito que foi por isso mesmo que se levantou aquela suposição, que espero não ser realmente verdade de fato. Reconheço que nenhum caso particular é suficiente para provar o geral, mas poderia citar várias pessoas conhecidas por alguns vizinhos ou familiares ainda vivos que se revelaram o extremo oposto. Um homem, chefe de família da minha vizinhança, estando com a doença, pensou tê-la contraído de um pobre operário a quem empregara e a quem fora ver em sua casa ou fora lá devido a algum serviço que quisesse ver terminado. Ele teve algum receio, mesmo ficando na porta da casa do pobre operário, mas não se deu conta disso completamente. No dia seguinte, ficou evidente, pois passou muito mal, diante do que ele imediatamente fez com que o levassem para uma construção que tinha em seu quintal, com um quarto em cima de uma oficina (o homem era funileiro). Lá ficou e lá morreu, não deixando que nenhum de seus vizinhos o cuidasse, mas chamando uma enfermeira de fora. Não permitiu que sua esposa, nem suas crianças ou seus criados entrassem no quarto, temendo que se contaminassem – enviava-lhes sua benção e suas orações através da enfermeira, que as transmitia a distância, e tudo isso só por medo de lhes passar a epidemia, pois sabia que assim, mantendo-os afastados, eles não a contrairiam. E aqui devo observar que a peste, como suponho que seja com todas as doenças, agia de modo distinto em diferentes constituições físicas. Alguns eram imediatamente tomados por ela, que provocava febres violentas, vômitos, dores de cabeça insuportáveis, dores nas costas e assim por diante, até enlouquecerem delirando com estas dores. Outros tinham inchaços e tumores no pescoço, na virilha ou nas axilas, os quais também podiam arrebentar, levando-os a agonias e tormentos insuportáveis. Enquanto outros, como mencionei, eram contaminados silenciosamente, com a febre devorando insensivelmente seus espíritos e eles pouco o percebiam até enfraquecerem, desmaiarem e morrerem sem dor. Não sei medicina o suficiente para entrar nas razões e formas particulares destes distintos efeitos de uma mesma doença e sua ação diferente em diversos corpos; nem cabe a mim registrar estas observações que realmente fiz, porque os próprios doutores já fizeram isso com eficiência muito maior do que sou capaz e porque minha opinião pode divergir da deles em algumas coisas. Estou apenas relatando o que sei e escutei ou o que penso de casos específicos, o que aconteceu diante dos meus olhos e sobre a natureza diferenciada da infecção conforme se manifestou nos casos específicos que citei. Mais ainda, pode-se acrescentar que, enquanto o primeiro tipo destes casos, ou seja, daqueles evidentemente contaminados, era o pior e o mais doloroso – refiro-me aos que tinham as tais febres, os vômitos, as dores de cabeça e os inchaços, aqueles que morriam de maneira tão horripilante –, o segundo tipo tinha a pior forma da doença porque, no primeiro caso, mesmo assim, freqüentemente se recuperavam, principalmente se os inchaços arrebentassem; mas os últimos, inevitavelmente morriam, nenhuma cura, nenhuma ajuda era possível, nada além da morte poderia acontecer. Isso era ainda pior também para os outros porque, secreta e

imperceptivelmente (tanto para si quanto para os outros), transmitiam a morte àqueles com quem se relacionasse, com o veneno penetrante se insinuando em seu sangue de uma maneira impossível de descrever ou mesmo imaginar. Este contaminar e ser contaminado sem que qualquer pessoa o percebesse fica evidente a partir de dois tipos de casos que aconteciam freqüentemente naquele tempo. Dificilmente há alguém vivo que esteve em Londres durante a epidemia e que não conheça vários casos dos dois tipos. 1) Pais e mães que continuavam circulando como se estivessem bem e assim acreditavam estar, até que insensivelmente contaminassem e fossem a destruição de todas suas famílias, o que estariam longe de fazê-lo se tivessem a menor desconfiança de estarem mal e serem perigosos. Uma família, cuja história toda me contaram, foi assim contaminada pelo pai e a doença começou a aparecer em alguns deles antes mesmo do próprio pai descobri-la em si mesmo. Mas, examinando-o mais rigorosamente, esclareceu-se que ele se contaminara há algum tempo e tão logo descobriu que ele mesmo envenenara sua família, enlouqueceu e teria se eliminado violentamente se não fosse impedido por aqueles que o assistiam; e morreu em poucos dias. 2) O outro tipo particular é que muitas pessoas, no seu melhor juízo e pelas melhores observações que conseguissem fazer sobre si mesmas durante vários dias, estavam bem, sentindo apenas falta de apetite ou leve mal-estar no estômago; mesmo assim, algumas que continuavam com grande apetite, insaciável até, sentindo apenas uma leve dor de cabeça, chamavam o médico para saber o que as afligia e descobriam, para seu grande desespero, que estavam à beira da morte: os sinais pelo corpo ou a peste já desenvolvida a um grau incurável. Era muito triste pensar como uma pessoa tal qual a acima mencionada por último fora um destruidor ambulante talvez durante uma ou duas semanas antes disso; e como ela tinha arruinado aqueles por quem arriscaria sua vida para salvar, soprando a morte sobre eles, talvez até mesmo com suaves beijos e abraços em seus próprios filhos. Assim era e assim certamente foi muitas vezes e eu poderia dar muitos exemplos específicos onde isso aconteceu. Se o bafo é assim insensivelmente fulminante – se a flecha voa desta maneira insensível e não pode ser descoberta –, qual é o sentido de todos aqueles esquemas para fechamento das casas ou para remoção dos doentes? Aqueles projetos não podem ser implantados, a não ser com aqueles que aparentem estar doentes ou contaminados, enquanto, ao mesmo tempo, entre eles há milhares de pessoas que parecem estar bem, mas trazem a morte consigo o tempo todo, passando-a para todos os que encontram. Isso freqüentemente confundiu nossos médicos, principalmente os boticários e os cirurgiões, que não sabiam como identificar os doentes entre os sãos. Todos concordavam que realmente era assim; muitas pessoas tinham a peste no seu próprio sangue devorando seus espíritos e nada mais eram do que carcaças ambulantes, cujo hálito era contagioso, seu suor um veneno. E, mesmo assim, pareciam estar tão bem quanto as outras pessoas e talvez elas mesmas não o soubessem; digo, todos concordavam que isso era, de fato, realmente verdade, mas não sabiam como propor uma identificação. Meu amigo dr. Heath era de opinião que se poderia saber pelo cheiro de seu hálito; mas, então, dizia ele, quem se arriscaria a cheirar aquele hálito para se informar? Para sabêlo, teria que aspirar o fedor da peste para dentro de seu próprio cérebro a fim de reconhecer o cheiro! Ouvi dizer que outros eram de opinião que a peste podia ser identificada pelo bafo sobre um pedaço de vidro, onde, com a condensação do hálito, poder-se-iam ver criaturas vivas no microscópio, com estranhas, monstruosas e horripilantes formas, tais como

dragões, cobras, serpentes e demônios terríveis de se ver. Mas eu questiono muito a veracidade disso e, conforme me recordo, naquele tempo não tínhamos microscópios para fazer a experiência. Outro homem instruído também era de opinião que o hálito de tal pessoa envenenaria um pássaro, matando-o instantaneamente. Não apenas um passarinho, mas até mesmo um galo ou uma galinha e, se não matasse os últimos imediatamente, os deixaria boubentos, como dizem; as galinhas, principalmente, se botassem alguns ovos a qualquer momento, eles estariam todos podres. Mas estas são opiniões que nunca vi apoiadas em qualquer experiência, nem ouvi falar de outros que as tenham visto. Assim, deixo-as como as encontrei, somente com esta observação objetiva: acho que as probabilidades são fortemente a favor delas. Alguns chegaram a propor que tais pessoas deveriam espirrar com força sobre a água quente e assim deixariam uma espuma incomum sobre a água ou sobre várias outras coisas, especialmente as substâncias viscosas capazes de receber e reter uma espuma. De tudo isso, eu concluí que a natureza do contágio era tal que se tornava completamente impossível descobri-lo ou impedir que a doença passasse de um para outro através de qualquer recurso humano. Aqui está, de fato, uma dificuldade que nunca consegui superar completamente até hoje e para a qual só há uma maneira de explicar que eu conheça, e esta é que, objetivamente, foi no dia 20 de dezembro ou por aí, em 1664, que a primeira pessoa morreu de peste, em ou perto de Long Acre, onde a primeira pessoa contraiu a doença, pelo que geralmente se diz, de um pacote de sedas importadas da Holanda, aberto pela primeira vez naquela casa. Depois disso, porém, nunca mais se ouviu falar em qualquer pessoa morrendo de peste ou na doença estar naquele lugar, até o dia 9 de fevereiro, cerca de sete semanas mais tarde. Então, enterraram mais um vindo da mesma casa. Isso foi abafado e continuamos perfeitamente à vontade em público por um longo tempo, pois não surgiram mais indicações de peste no boletim semanal de mortos até o dia 22 de abril, quando ocorreram mais dois enterros vindos não da mesma casa, mas da mesma rua; e, tão bem quanto me recordo, vieram da casa ao lado da primeira. Isso foi num intervalo de nove semanas e, depois, não tivemos outros por mais duas semanas e, então, a peste surgiu em diversas ruas, espalhando-se em todas as direções. Agora, a questão parece ser esta: onde ficaram as sementes da epidemia todo esse tempo? Como a peste pôde ficar tanto tempo parada e depois não parar mais? A doença não surgiu imediatamente por contágio corpo a corpo ou, se foi assim, então, um corpo pode ser capaz de se manter contaminado sem que se descubra a doença durante muitos dias, mais que isso, semanas seguidas; nem mesmo uma “quarentena”, mas uma “sessentena”16, não apenas quarenta dias, mas sessenta dias ou mais. É verdade que, como observei no início e é bastante sabido por muitos ainda vivos, o inverno foi muito frio, com longas nevadas que continuaram por três meses. Isso, dizem os doutores, teria contido a epidemia. Os eruditos, porém, devem me permitir dizer então que, de acordo com a opinião deles, a doença foi (como posso dizer) apenas congelada, retomando, feito um rio congelado, sua força e correnteza com o degelo – mas o principal recesso desta epidemia foi entre fevereiro e abril, depois que o gelo se derretera e o tempo ficara ameno e quente. Penso, porém, que minhas recordações da coisa fornecerão outra maneira de resolver toda essa complicação. Isto é, o fato não está comprovado – objetivamente, que ninguém

morreu durante aquele intervalo, ou seja, de 20 de dezembro a 9 de fevereiro e de lá até 22 de abril. Os boletins semanais de óbito são a única evidência em contrário, mas aqueles registros, para mim pelo menos, não são dignos de crédito para fundamentar uma hipótese ou resolver uma questão de tamanha importância como esta, porque era opinião corrente na época – e eu creio que com muito embasamento – que a fraude era comum entre os funcionários de paróquia, inspetores e pessoas nomeadas para fazer a contagem dos mortos e indicar de que doença morreram. No princípio, as pessoas eram relutantes em deixar seus vizinhos saberem que suas casas estavam contaminadas. Então, elas davam dinheiro para tentar ou tentavam de outro modo registrar as pessoas mortas como vítimas de outras doenças. Isto eu sei que, posteriormente, foi praticado em muitos lugares e acredito que deva dizer em todos os lugares onde a doença surgiu, como será visto pelo enorme aumento nos números localizados nos boletins semanais de óbitos como indicadores de outras doenças durante a duração da epidemia. Por exemplo, nos meses de julho e agosto, quando a peste atingiu seu ponto mais alto, era muito comum haver de mil a mil e duzentos, mais que isto, até quase mil e quinhentos mortos por semana com outras doenças. Não que os casos daquelas doenças tivessem realmente aumentado a tal ponto, mas um grande número de famílias e casas que realmente estavam com a epidemia obteve o favor de situar seus mortos em outras doenças para evitar o fechamento de suas casas. Por exemplo: Mortos de outras doenças além da peste De 18 a 25 de julho 942 De 25 de julho a 1° de agosto 1.004 De1° a 8 de agosto 1.213 De 8 a 15 de agosto 1.439 De 15 a 22 de agosto 1.331 De 22 a 29 de agosto 1.394 De 29 de agosto a 5 de setembro 1.264 De 5 a 12 de setembro 1.056 De 12 a 19 de setembro 1.132 De 19 a 26 de setembro 927 Agora, não havia dúvidas que a maior parte ou uma grande parte deles morrera com peste, mas os funcionários foram convencidos a registrá-los como acima. Os números dos indicadores específicos de algumas doenças identificadas são os seguintes: Agosto de 1° a 8 Febre

Setembro de 15 a 22 314 268 Febre tifóide 174 Indigestão 85 Dentes 90 112 663 743

de 22 a 29 de 29 a 5 de set. de 5 a 12 de 12 a 19 353 348 383 364 332

de 19 a 26 309

190 87 113

166 74 111

165 99 133

157 68 138

97 45 128

101 49 121

699

780

727

602

580

481

65 36

Havia várias outras indicações proporcionais a estas que, é fácil perceber, estavam com sua contagem aumentada, tais como velhice, fraqueza, vômito, abscessos, cólicas e

semelhantes, muitas das quais não se duvidava serem de pessoas contaminadas; mas era da maior importância para as famílias não serem reconhecidas como contaminadas, se fosse possível evitá-lo. Assim, tomavam todas as medidas que pudessem para que ninguém acreditasse nisso e para que, morrendo alguém em suas casas, os inspetores ou visitadores o registrassem como morto com outra doença. Eu digo que isso conta para o longo intervalo que houve, como eu disse, entre a morte das primeiras pessoas registradas com peste nos boletins semanais de óbitos e o momento em que a doença se espalhou abertamente e não pôde ser disfarçada. Além do que, os próprios boletins semanais de óbitos daquele período deixavam a verdade evidente. Não havia qualquer referência à peste, que não aumentou depois de ser registrada, mesmo assim ficava aparente o aumento das doenças que mais se pareciam com ela. Numa semana, por exemplo, havia oito, doze, dezessete mortos com febre tifóide, mas nenhum ou muito poucos com peste, embora anteriormente o número habitual de mortos com aquela doença fosse um, três ou quatro por semana. Da mesma forma, como já observei antes, naquela paróquia específica e nas paróquias adjacentes, os enterros semanais aumentaram mais do que em qualquer outra paróquia, embora nenhum fosse registrado com peste. Tudo isso nos diz que a epidemia continuou contagiando, mantendose o crescimento da doença, mesmo que, na época, nos desse a impressão de ter parado, para surgir outra vez de uma maneira surpreendente. Também pode ser que a infecção tenha permanecido no mesmo lote de mercadorias em que veio primeiro, mas em outras partes que não foram abertas antes ou, pelo menos não completamente, ou ainda nas roupas da primeira pessoa contaminada. Por isso, não posso pensar que alguém tomado pela doença em grau fatal e mortal conseguisse manter seu estado de saúde tão bem a ponto de nem ele mesmo percebê-lo durante nove semanas seguidas. Se foi assim, então o argumento é o mais forte a favor do que estou afirmando: objetivamente, a infecção fica retida em corpos aparentemente bem, passando destes para aqueles com quem convivem, enquanto não é reconhecida por nem um nem outro. Grandes foram as confusões naquele tempo em torno desse mesmo ponto e, quando o povo começou a se convencer de que a epidemia era contraída de gente aparentemente sadia dessa maneira surpreendente, as pessoas se tornaram extremamente retraídas e desconfiadas de qualquer um que se aproximasse. Uma vez, num feriado público, não me recordo se era um domingo, na igreja de Aldgate, num banco cheio de gente, uma mulher de repente começou a sentir um mau cheiro. Imediatamente, ela supôs que a peste estava naquele banco, cochichando sua impressão ou suspeita para quem estava a seu lado; depois, levantou-se e saiu do banco. Imediatamente, o próximo fez o mesmo e assim foi até saírem todos; e cada um de dois ou três bancos mais próximos também saiu da igreja sem saber o que o atingia ou de quem vinha. Isso imediatamente encheu a boca de todo mundo com uma ou outra poção, tais como as preparadas pelas velhas curandeiras e algumas talvez prescritas por médicos, a fim de evitar o contágio através do hálito dos outros. Assim que, se fôssemos a uma igreja cheia de gente, encontraríamos na entrada uma tal mistura de cheiros muito mais fortes, embora não tão salubres, do que se entrássemos numa loja de boticário ou drogaria. Em suma, toda a igreja era feito uma garrafa de cheiro; num canto, tudo era perfumes; noutro, fragrâncias, bálsamos e uma variedade de drogas e ervas; em mais outro, essências, estando todo mundo precavido para sua preservação pessoal. Mesmo assim, notei que depois da população ser possuída, como disse, pela crença, ou antes, pela certeza de que a epidemia se transmitia através de pessoas aparentemente com saúde, as igrejas e as assembléias tiveram muito

menos gente do que costumavam ter em outros tempos anteriores àquele. Sobre isso, é preciso dizer do povo de Londres que, durante todo o período de pestilência, as igrejas e assembléias nunca ficaram totalmente fechadas, nem o povo se esquivou de vir a público reverenciar a Deus, com exceção somente de algumas paróquias na época em que a epidemia esteve mais violenta e, mesmo então, não mais do que enquanto continuou assim. Com efeito, nada foi mais estranho do que ver a coragem com que as pessoas saíam para a celebração pública de Deus, mesmo na época em que tinham medo de circular fora de suas casas em qualquer outra ocasião; isso, saliento, antes do período de desespero que já mencionei. Isso foi uma prova da excessiva população na cidade durante a epidemia, apesar do grande número dos que foram para o interior com o primeiro alarme, fugindo para os matos e florestas quando ficaram mais apavorados com o crescimento espetacular da peste. Quando chegamos a ver as multidões e aglomerações que se formavam aos domingos nas igrejas, principalmente naquelas zonas da cidade onde a peste tinha diminuído ou onde ainda não tinha atingido seu clímax, aquilo foi surpreendente. Devo falar mais sobre isso oportunamente. Por enquanto, retorno primeiro ao aspecto das pessoas se contaminarem entre si e de como elas se contaminavam umas às outras, antes da população adquirir uma noção correta da epidemia. O povo só se cuidava daqueles que estavam realmente doentes – um homem com um gorro na cabeça ou com panos ao redor do pescoço, indicando que tinha um inchaço ali. Estes eram temidos de fato, mas quando vinha um cavalheiro alinhado, de gravata e com luvas na mão, chapéu na cabeça e cabelos penteados, deste não tínhamos o menor receio e as pessoas conviviam livremente com ele, principalmente seus vizinhos e conhecidos. Quando os médicos nos garantiram que o perigo estava tanto entre os doentes quanto entre os sãos (ou seja, os que pareciam sãos) e que muitos dos que se consideravam completamente saudáveis muitas vezes eram os mais letais; quando isso foi compreendido pela maioria e as pessoas foram sensibilizadas para isso e para a razão disto; então, digo, começaram a desconfiar de todo mundo e um grande número de gente se trancou em casa, não saindo para a rua na companhia de quem quer que fosse, nem permitindo que qualquer um que andasse promiscuamente entre outros entrasse em suas casas ou chegasse perto delas – pelo menos não tão perto que as deixasse ao alcance de seu hálito ou seu cheiro; e quando eram forçadas a conversar a distância com estranhos, tinham sempre preventivos em suas bocas e nas suas roupas para repelir e manter a doença afastada. É preciso reconhecer que o povo ficou menos exposto ao perigo quando passou a adotar estas precauções e a epidemia não atingiu estas casas tão vorazmente como fizera anteriormente em outras. Milhares de famílias foram poupadas (falando com o devido respeito às determinações da Divina Providência) desta maneira. Mas foi impossível meter qualquer coisa dentro da cabeça dos pobres. Eles continuaram com a mesma impetuosidade típica de seu temperamento, com muitos gritos e lamúrias quando estavam contaminados, mas loucamente descuidados consigo mesmos, imprudentes e teimosos enquanto estavam bem. Onde quer que pudessem conseguir trabalho, aceitavam qualquer tipo de tarefa, as mais perigosas e passíveis de contágio. Se alguém lhes prevenisse, sua resposta seria: “Tenho que entregar isto a Deus. Se for contaminado, este era o meu destino e este será o meu fim” e coisas do estilo; ou, então: “Por que, o que devo fazer? Não posso passar fome. Tanto faz pegar a peste ou morrer de inanição. Não tenho trabalho, o que posso fazer? Tenho que aceitar isto ou mendigar”. Imagine-se que isso era enterrar cadáveres, atender doentes ou vigiar casas contaminadas, todas elas tarefas terrivelmente arriscadas, mas suas histórias eram geralmente as mesmas.

É verdade que a necessidade era um argumento muito justo e legítimo, não havendo outro melhor; mas falavam sempre o mesmo, quando as necessidades não eram as mesmas. Esta conduta aventureira dos pobres foi o que espalhou a peste com mais violência entre eles. Isso, junto com a aflição de suas condições uma vez contaminados, foi a razão pela qual morreram aos montões. Não posso dizer que tenha observado um mínimo de melhor comportamento entre eles, refiro-me aos trabalhadores pobres; enquanto estavam plenamente saudáveis e ganhando dinheiro, continuavam tão perdulários, extravagantes e desprecavidos como sempre em relação ao futuro. Assim que, ao caírem doentes, imediatamente ficavam na maior miséria, tanto por carência quanto pela doença, tanto por falta de comida quanto por falta de saúde. Tive muitas oportunidades para ser testemunha ocular desta miséria dos pobres e, algumas vezes, também da caridosa assistência que pessoas piedosas lhes prestavam diariamente, enviando-lhes auxílio e suprimentos de comida, remédios e outras ajudas, conforme o que achassem que faltava. De fato, é uma justiça devida ao espírito do povo daqueles dias registrar aqui que quantias não apenas grandes, quantias muito grandes de dinheiro foram caridosamente enviadas ao Lorde Prefeito e vereadores para auxílio e assistência dos doentes pobres; privadamente, porém, muita gente distribuía diariamente grandes quantias de dinheiro em auxílio daqueles, enviando alguém para averiguar as condições e socorrer determinadas famílias contaminadas e miseráveis. Mais que isso, algumas senhoras caridosas ficaram tão enlevadas no zelo de tão boa obra e tão confiantes na proteção da Providência durante o cumprimento desse dever de caridade, que saíam por aí distribuindo pessoalmente esmolas aos pobres, até mesmo visitando famílias pobres em suas próprias casas, embora doentes e contaminadas, indicando enfermeiras para atender aquelas que necessitassem assistência, mandando boticários e cirurgiões, os primeiros para fornecer drogas, emplastros e coisas como estas que estivessem faltando, os últimos para perfurar ou cobrir os inchaços e tumores quando fosse preciso; oferecendo seu amparo aos pobres tanto através de auxílio material quanto através de pungidas orações. Não pretendo afirmar, como fazem outros, que nenhuma destas pessoas caridosas foi atingida pela calamidade em si, mas posso dizer que nunca soube de qualquer uma delas ter sucumbido, o que registro para incentivo de outras, em caso de uma catástrofe semelhante. Sem dúvida, se os que dão aos pobres emprestam a Deus e Ele os recompensará, aqueles que arriscam suas vidas para dar aos pobres, para consolar e socorrer os pobres numa desgraça como esta, podem esperar ser protegidos na tarefa. Esta caridade tão extraordinária e eminente tampouco foi de apenas alguns (não posso simplesmente ignorar este ponto), mas a caridade dos ricos, tanto na city como nos subúrbios e também no interior, foi tão grande que, em poucas palavras, um número prodigioso de pessoas teria inevitavelmente morrido de fome e doença, caso elas não fossem socorridas e, assim, sobrevivessem. Embora eu nunca tenha conseguido nem acredito que qualquer outro pudesse ter pleno conhecimento de quanto foi contribuído desta forma, mesmo assim, eu acredito que, como ouvi um crítico observador deste aspecto dizer, não apenas vários milhares de libras, mas várias centenas de milhares de libras foram distribuídas em auxílio dos pobres desta miserável e atormentada cidade. Ainda mais, um homem me assegurou que podia estimar que mais de cem mil libras por semana foram distribuídas pelos funcionários da Igreja nas sacristias de diversas paróquias pelo Lorde Prefeito e vereadores nos vários distritos e circunscrições e por ordem específica da corte e dos juízes, nas respectivas zonas onde residiam, além e acima da caridade privada oferecida

por mãos piedosas, conforme já falei; isso continuou assim durante muitas semanas consecutivas. Reconheço ser uma quantia muito grande, mas, se for verdade que só na paróquia de Cripplegate distribuíram 17.800 libras de ajuda aos pobres em uma semana, conforme me informaram e eu realmente acredito ser verdade, a soma anterior não é improvável. Sem dúvida, entre os muitos sinais de boa providência a que assistiu esta grande cidade, dos quais muitos outros seriam dignos de registro, ficou por ser reconhecido – digo, foi um dos mais notáveis – o fato de ser do agrado de Deus induzir os corações de pessoas de todas as partes do reino a contribuir tão entusiasticamente para a ajuda e manutenção dos pobres de Londres. Os bons resultados disso foram sentidos de diversas formas, principalmente na preservação de vidas, no restabelecimento da saúde de tantos milhares, na salvação de tantos milhares de famílias do extermínio e da fome. Agora, estou falando na misericordiosa determinação da Providência neste tempo de calamidade. Não posso deixar de mencionar, mais uma vez, embora já tenha comentado isso várias vezes por outros motivos; refiro-me à propagação da doença, como começou numa extremidade da cidade, propagando-se gradual e lentamente de uma zona para outra, feito uma nuvem escura que passa por cima de nossas cabeças e, conforme engrossa e ensombra o ar de um lado, clareia no outro extremo. Assim, enquanto a peste avançava do oeste para o leste, ia diminuindo no oeste, de modo que aquelas partes da cidade que não estavam tomadas ou foram abandonadas pela peste depois de seu furor eram (como que) poupadas para que pudessem auxiliar as outras. Se a peste tivesse se espalhado pela city e subúrbios ao mesmo tempo, atacando todos os lugares da mesma forma, como aconteceu mais em certos lugares no exterior, o conjunto de toda a população seria dizimado e haveria vinte mil mortos por dia, como dizem que aconteceu em Nápoles; nem as pessoas seriam capazes de se ajudarem e se auxiliarem umas às outras. É preciso notar que a peste atacou com toda sua força o povo mais miserável e o terror foi indescritível. Mas um pouco antes de atingir de vez uma zona, ou logo depois de passar, o povo tornava-se um tipo de gente bem diferente e não posso deixar de reconhecer que se podia encontrar entre todos nós muito daquela índole comum na humanidade daquele tempo, ou seja, esquecer a salvação quando o perigo passou; mas voltarei a falar sobre isso outra vez. Não devo esquecer de chamar atenção aqui para a situação do comércio durante essa calamidade pública, tanto com respeito ao comércio exterior quanto ao nosso comércio doméstico. Sobre o comércio exterior, pouco se precisa dizer. Todas as nações comerciantes da Europa tinham medo de nós. Nenhum porto da França, da Holanda, da Espanha ou da Itália recebia nossos navios ou fazia correspondência conosco. De fato, mantínhamos relações hostis com os holandeses e estávamos em furiosa guerra contra eles, mesmo em más condições para lutar no exterior, pois tínhamos um inimigo tão terrível para enfrentar aqui dentro. Nossos mercadores ficaram, portanto, completamente parados. Seus navios não podiam ir a parte alguma – isto é, a lugar nenhum no exterior; suas manufaturas e mercadorias – isto é, de produção nossa – não seriam tocadas no exterior. Tinham tanto medo de nossas mercadorias quanto tinham de nosso povo; e de fato tinham razão: nossos produtos de lã retinham tanto a epidemia quanto corpos humanos e, caso empacotados por pessoas contaminadas, recebiam a doença, sendo tão perigoso tocá-los como seria a um homem contaminado. Por isso, quando um navio inglês chegava a outros países, se viesse a

deixar as mercadorias na margem, sempre mandavam abrir os fardos, arejando-os em lugares indicados para este propósito. Mas se o navio viesse de Londres, não permitiam que entrasse em seus portos, muito menos que desembarcasse suas mercadorias, de maneira nenhuma; este rigor foi aplicado especialmente na Espanha e na Itália. Na Turquia e também nas ilhas dos Arcos, como são chamadas, assim como naquelas pertencentes aos turcos e nas dos venezianos, não eram tão rigorosos. No princípio, não havia impedimento nenhum; então, quatro navios que estiveram no rio recebendo carga para a Itália – isto é, para Liorne e Nápoles – tiveram negado o product17, como dizem, e seguiram para a Turquia, sendo admitidos sem qualquer dificuldade para desembarcar sua carga. Só que, chegando lá, algumas de suas mercadorias não podiam ser vendidas naquele país e outras eram destinadas a mercadores de Liorne. Os capitães dos navios não tinham direito ou qualquer ordem para disporem das mercadorias, surgindo assim um grande transtorno para os mercadores. Isso não era nada além do que exigiam as circunstâncias do negócio e os mercadores de Liorne e Nápoles, ao serem informados, mais uma vez enviaram alguém para cuidar da carga destinada àqueles portos, trazendo em outros navios o que não era apropriado para os mercados de Esmirna e Escanderum. Na Espanha e em Portugal, as dificuldades foram ainda maiores, porque não admitia de forma alguma que nossos navios, principalmente os que vinham de Londres, entrassem em quaisquer de seus portos; e muito menos descarregar. Surgiu uma história de que um dos nossos navios entregou sua carga clandestinamente; nela, havia alguns lotes de confecções inglesas, algodão, calças de lã e mercadorias semelhantes. Os espanhóis mandaram que todas as mercadorias fossem queimadas e condenaram à morte os homens que as trouxeram para terra. Isso, acredito, em parte é verdade, embora não o garanta, mas não é de maneira nenhuma improvável, vendo que o perigo era realmente enorme, a epidemia estando tão violenta em Londres. Também ouvi dizer que a peste foi levada para estes países por alguns dos nossos navios, principalmente para o porto de Faro no reino de Algarve, que pertencia ao rei de Portugal, com várias pessoas morrendo de peste; mas isso não foi confirmado. Por outro lado, embora os espanhóis e portugueses tivessem tanto medo de nós, é mais do que certo que, no princípio (como foi dito), a peste permaneceu principalmente no extremo da cidade próximo a Westminster, com a parte comercial da cidade (tal como a city e a beira do rio) continuando perfeitamente saudável até, pelo menos, o início de julho e, no rio, entre os navios, até o começo de agosto. No dia primeiro de julho morreram só sete dentro de toda a city e sessenta nas liberties, mas só um em todas as paróquias de Stepney, Aldgate e Whitechapel e só dois nas oito paróquias de Southwark. No exterior, era tudo a mesma coisa, pois a má notícia de que a city de Londres estava contaminada com peste correu o mundo inteiro e ninguém perguntava como a epidemia evoluía ou em que região da cidade começara ou até onde tinha chegado. Além disso, depois que ela começou a se espalhar, aumentou tão rapidamente que os registros de óbitos cresceram muito, todos de supetão, e não fazia sentido diminuir o fato ou se esforçar para que as pessoas no exterior considerassem a epidemia melhor do que estava. A contagem apresentada pelos boletins semanais de óbitos era suficiente, a morte de duas a três ou quatro mil pessoas por semana era suficiente para alarmar todos os centros comerciais do mundo. No momento seguinte, tornando-se tão terrível também na própria city, o mundo inteiro se pôs na defensiva contra a peste. Também podeis ter certeza que as informações sobre estas coisas nada perdiam pelo caminho. A peste em si era muito terrível e o desespero do povo foi enorme, como podeis

notar pelo que eu disse. Mas os rumores foram infinitamente maiores e não deve causar surpresa que nossos amigos no exterior (como constava na correspondência enviada a meu irmão, principalmente de Portugal e Itália, onde ele mais comerciava) [dissessem] que, em Londres, morriam vinte mil pessoas por semana e montes de cadáveres ficavam insepultos, pois os vivos não eram suficientes para enterrar os mortos, ou os sãos para cuidar dos pesteados; e que todo o reino estava contaminado desta maneira, com uma moléstia universal tal como nunca se ouvira falar por aquelas bandas do mundo. Eles dificilmente conseguiriam acreditar se lhes contássemos como as coisas realmente eram e que não havia mais do que uma décima parte da população morta; que quinhentos mil sobreviventes ficaram o tempo todo na cidade e que, no momento, o povo voltava outra vez a andar pelas ruas, os que fugiram estavam voltando e não se sentia falta da costumeira aglomeração de gente nas ruas, com exceção de todas as famílias sentirem falta de seus parentes, amigos e semelhantes. Digo que não podiam acreditar nessas coisas e se agora fosse feita uma investigação em Nápoles ou outras cidades da costa da Itália, diriam que houve uma terrível epidemia em Londres muitos anos atrás, na qual, como acima, morriam vinte mil por semana, etc; da mesma forma, foi informado, em Londres, que houve uma peste na cidade de Nápoles no ano de 1656, na qual morriam vinte mil pessoas por dia, o que tenho provas convincentes e satisfatórias de ser totalmente falso. Estas informações extravagantes, porém, foram muito prejudiciais ao nosso comércio, além de injustas e injuriosas em si, porque só muito tempo depois da peste ter definitivamente passado é que nosso comércio pôde se recuperar naquelas partes do mundo. Os flamengos e os holandeses (principalmente os últimos) tiraram grandes vantagens disso, tomando para si todo o nosso mercado e até mesmo comprando nossas manufaturas em diversas regiões da Inglaterra onde não havia a peste, levando-as para a Holanda e Flandres e de lá transportando-as para a Espanha e Itália, como se fossem de sua própria fabricação. Algumas vezes foram impedidos e punidos: quer dizer, suas mercadorias foram confiscadas, assim como seus navios, pois, sendo verdade que nossas manufaturas estavam contaminadas como o nosso povo, era perigoso tocá-las ou abri-las ou aspirar seu cheiro; então, aquelas pessoas, com seu comércio clandestino, não apenas corriam o perigo de contaminarem seus próprios países, mas também de levarem a epidemia para as nações com quem comerciassem aquelas mercadorias; o que, considerando-se quantas vidas podiam se perder em conseqüência de tal atividade, é forçosamente um comércio com o qual nenhum homem consciente poderia permitir se envolver. Não assumo a responsabilidade de dizer se algum dano deste tipo foi causado por aquelas pessoas, mas duvido que não precise fazer qualquer ressalva do gênero no caso do nosso próprio país; porque, seja pela nossa população em Londres ou pelo comércio que a levava a entrar em contato com toda espécie de gente em cada país e em cada cidade importante necessários, digo, dessa maneira a peste mais cedo ou mais tarde se espalhou por todo o reino, tanto em Londres quanto em todas as cidades e grandes povoados, principalmente nas cidades comerciais manufatureiras e portos marítimos. Assim que, no começo ou no fim, todos os cantos consideráveis da Inglaterra ficaram mais ou menos contaminados e, de modo menos geral, o reino da Irlanda em alguns lugares. Não tive oportunidade de averiguar como foi com a população da Escócia. Fica por ser observado que, enquanto a peste continuou assim violenta em Londres, os portos externos, como são chamados, desfrutaram de um comércio muito intenso, principalmente no interior adjacente às nossas plantações. Por exemplo, as cidades de Colchester, Yarmouth e Hull, naquele lado da Inglaterra, exportaram as manufaturas do

interior adjacente para Holanda e Hamburgo até vários meses depois que o comércio com Londres foi como que totalmente suspenso. Igualmente, as cidades de Bristol e Exeter, com o porto de Plymouth, tiraram a mesma vantagem com a Espanha, as Canárias, a Guiné, as Antilhas e, principalmente, com a Irlanda. Conforme, porém, a peste se espalhou por todos os lados, depois de atingir em Londres um grau tal como em agosto e setembro, todas ou a maioria daquelas cidades e entrepostos mais cedo ou mais tarde foram contaminados. O comércio, então, ficou como sob um embargo geral ou foi totalmente suspenso – conforme observarei mais adiante, quando falar sobre nosso comércio doméstico. Uma coisa, no entanto, deve ser destacada: dos navios chegando do exterior (como, podeis ter certeza, muitos fizeram), alguns que partiram para todos os cantos do mundo um bom tempo antes e alguns que saíram sem saber nada sobre a epidemia, pelo menos de uma tão terrível – estes subiam corajosamente o rio e entregavam suas cargas conforme tinham se comprometido fazer, com exceção apenas dos dois meses de agosto e setembro, quando o peso da epidemia derrubava, como posso dizer, tudo abaixo da Ponte, ninguém se arriscando a aparecer para comerciar durante algum tempo; mas isso continuou apenas por algumas semanas, com os navios de circulação interna, principalmente aqueles cujas cargas podiam se deteriorar, ancorando por um curto período no Pool 18 ou a parte do rio de água doce, descendo até o rio Medway, onde entravam alguns, outros ficando em Nore e em Hope, abaixo de Gravesend. Assim, no final de outubro, havia uma grandiosa frota de navios domésticos ancorados como não se soube de semelhante por muitos anos. Dois comércios particulares foram levados adiante por transporte fluvial durante todo o tempo de peste com pouca ou nenhuma interrupção, para grande proveito e conforto do desesperado e pobre povo da city: o comércio costeiro de trigo e o comércio de carvão em Newcastle. O primeiro foi realizado principalmente por pequenas embarcações vindas do porto de Hull e de outros lugares do Huber, nas quais grandes quantidades de trigo foram trazidas de Yorkshire e Lincolnshire. O resto deste comércio de trigo vinha de Lynn, em Norfolk; de Wells, Burnham e de Yarmouth, todas no mesmo condado. A terceira rota era pelo rio Medway e vinha de Milton, Feversham, Margate, Sandwich e de todos os outros lugarejos e portos ao longo da costa de Kent e Essex. Também havia um comércio muito bom vindo da costa de Suffolk, com trigo, manteiga e queijo. Aquelas embarcações mantiveram o comércio em andamento constante, vindo sem falta até o mercado ainda conhecido pelo nome de Bear Key, onde abasteceram a city com trigo em abundância, quando o transporte terrestre começou a falhar e as pessoas que vinham de diversos lugares do país começaram a se sentir mal. Muito disso também foi em grande parte devido à prudência e iniciativa do Lorde Prefeito, que tanto cuidava para proteger do perigo os mestres e marinheiros que chegassem, fazendo com que seu trigo fosse comprado à hora que quisessem no mercado (o que, no entanto, era muito raro) e fazendo os comerciantes descarregarem e despacharem imediatamente os navios abarrotados de trigo. Assim, eles tinham poucas possibilidades de sair de seus navios ou embarcações, com o dinheiro sendo levado para eles a bordo e colocado dentro de um balde com vinagre antes de ser recolhido. O segundo comércio foi aquele de carvão vindo de Newcastle-upon-Tyne, sem o qual a city teria ficado sob grande aflição, não somente nas ruas, mas nas casas particulares e familiares, onde então queimavam grandes quantidades de carvão, mesmo durante todo o verão e quando o tempo estava mais quente; o que era feito por recomendação dos médicos. É verdade que alguns se opunham a isso, insistindo que manter as casas e salas aquecidas

era uma maneira de propagar a doença, que já era calor e fermentação no sangue; e que era sabido que a peste aumentava e se espalhava com tempo quente e diminuía com o frio. Por isso, alegavam que todas as doenças contagiosas pioram com o calor, porque o contágio se intensifica e se fortalece com tempo quente, como que se propagando pelo calor. Outros garantiam que o clima quente poderia propagar a epidemia – já que o clima quente e mormacento enchia o ar de vermes e nutria um número incontável de espécies de criaturas verminosas que cresciam em nossa comida, na vegetação e mesmo em nossos corpos, podendo se propagar só pelo fedor da infecção; mas também diziam que o ar quente ou tempo quente, como costumamos dizer, torna os corpos relaxados e enfraquecidos, exaure os espíritos, abre os poros e nos deixa mais suscetíveis para contrair a epidemia ou qualquer influência maléfica, sejam nocivos vapores pestilentos ou qualquer outra coisa no ar. O calor do fogo, porém, principalmente do fogo de carvão mantido em nossas casas ou próximo a nós, tinha um efeito muito distinto. Não sendo o mesmo tipo de calor, mas súbito e forte, tendia a não nutrir, mas a consumir e dissipar todos os fumos nocivos que o outro tipo de calor mais exalava e impregnava do que espalhava e queimava. Além disso, alegouse que todas as partículas sulfurosas e nitrosas seguidamente encontradas no carvão, junto à substância betuminosa que arde, ajudam a limpar e purgar o ar, deixando-o saudável e seguro para se respirar, depois que as partículas nitrosas, como acima, se queimam e dispersam. Esta última opinião prevaleceu naquele tempo e, devo admitir, penso que por uma boa razão: a experiência dos cidadãos confirmou isso, pois muitas casas que mantiveram fogo constante nas salas nunca foram contaminadas; devo acrescentar minha experiência a esta, porque acho que, mantendo uma boa lareira acesa, nossas salas permaneceram doces e saudáveis e acredito firmemente que isso protegeu toda nossa família melhor do que teria sido de outra forma. Retorno, porém, ao comércio de carvão. Este comércio foi mantido o tempo todo sem a menor dificuldade, principalmente porque, como estávamos em guerra declarada com os holandeses, no começo, os corsários holandeses tomaram grande número dos nossos navios carvoeiros, deixando os restantes cautelosos e levando-os a esperar para se moverem juntos em esquadras. Depois de algum tempo, porém, os corsários ficaram com medo de atacá-los ou seus patrões, os Estados, ficaram com medo que o fizessem e proibiram os assaltos temendo que estivessem com peste, o que permitiu que se movimentassem muito melhor. Para segurança daqueles comerciantes nortistas, os navios carvoeiros receberam ordens do Lorde Prefeito para não entrar no Pool acima de um determinado número ao mesmo tempo, estabelecendo que as chatas e outras embarcações, tais como jangadas (ou seja, os trapicheiros ou os vendedores de carvão), em condições, descessem o rio e recolhessem o carvão lá embaixo, em Deptford, Greenwich e também um pouco mais abaixo. Outros entregavam grandes quantidades de carvão em lugares especiais, onde os navios podiam atracar, como em Greenwich, Blackwall e outros, deixando enormes montanhas como que guardadas para a venda; estas só eram levadas embora depois que os navios que as trouxeram se afastassem, assim que os marinheiros não se comunicavam com os homens do rio, muito menos se aproximavam uns dos outros. Mesmo toda esta precaução não conseguiu evitar eficientemente que a doença atingisse as minas de carvão: isso quer dizer entre os navios, de modo que um grande número de marinheiros morreu de peste; e o que foi ainda pior, eles levaram a doença para Ipswich e Yarmouth, até Newcastle-upon-Tyne e outras partes da costa – onde,

principalmente em Newcastle e Sunderland, a peste exterminou grande quantidade de gente. O ateamento de tantas fogueiras, como acima, realmente consumiu uma quantidade descomunal de carvão. Durante uma ou duas suspensões da chegada de navios, não me recordo se por tempo inóspito ou interceptação dos inimigos, o preço do carvão tornou-se excessivamente alto, chegando até mesmo a quatro libras por chalder19, baixando assim que chegaram navios; e como passaram a ter livre trânsito depois disso, o preço permaneceu bastante razoável todo o resto do ano. As fogueiras públicas feitas naquela ocasião, se fossem mantidas, pelos meus cálculos, deveriam necessariamente custar à city cerca de duzentos chalders de carvão por semana, o que, de fato, seria uma quantidade muito grande. Como isso era considerado necessário, nada foi poupado. Alguns médicos, entretanto, condenaram tanto as fogueiras, que elas não foram mantidas acesas mais do que quatro ou cinco dias. As fogueiras estavam distribuídas assim: Uma no prédio da Alfândega, uma em Billingsgate, uma em Queenhith e uma em Three Cranes; uma em Blackfriars e uma no portão de Bridewell; uma na esquina de Leadenhal Street e Gracechurch; uma no portão norte e outra no portão sul da Bolsa Real; uma em Guild Hall e uma no portão de Blackwell Hall; uma na porta do Lorde Prefeito em St Helen; uma na entrada oeste de St Paul e uma na entrada da igreja de Bow. Não me recordo se havia alguma nos portões da city, mas havia uma ao pé da Ponte, junto à igreja de St Magnus. Sei que alguns têm questionado esta experiência deste então, dizendo que mais gente morreu por causa daquelas fogueiras. Eu, porém, estou convencido de que dizem isso sem oferecer qualquer evidência para prová-lo, nem consigo acreditar nisso, quaisquer que sejam os depoimentos. Resta dar um testemunho sobre o estado do comércio doméstico na Inglaterra durante esta época pavorosa, principalmente no que se refere às manufaturas e ao comércio na city. Na primeira manifestação da epidemia, surgiu, como é fácil imaginar, um grande medo entre as pessoas e, conseqüentemente, uma suspensão geral do comércio, com exceção de alimentos e necessidades vitais. Como, além dos mortos, uma grande quantidade de gente fugiu e outra grande quantidade sempre estava doente, mesmo nestas coisas não havia mais do que dois terços, se é que era mais da metade, do consumo de alimentos que costumava haver na cidade. Aprouve a Deus dar-nos um ano com grande abundância de trigo e frutas, mas não de feno e grama – o que significa pão barato, porque o trigo era abundante. A carne era barata, devido à escassez de pastos; mas a manteiga e o queijo eram raros pelo mesmo motivo e, no mercado logo depois de Whitechapel Bars, o feno era vendido a quatro libras por fardo. Isso, porém, não afetou os pobres. Havia a maior e excessiva abundância de todos os tipos de frutas, tais como maçãs, pêras, ameixas, cerejas e uvas, muito baratas devido à falta de gente, levando os pobres a comê-las em excesso, o que lhes causou diarréias, cólicas intestinais, indigestões e males semelhantes que muitas vezes os precipitaram para a peste. Mas, entrando nas questões do comércio. Primeiro, estando as exportações para o exterior suspensas ou pelo menos irregulares e repletas de dificuldades, é claro que se seguiu uma parada geral em todas as manufaturas normalmente destinadas à exportação. Ainda que algumas vezes, no exterior, os comerciantes se mostrassem ansiosos por mercadorias, mesmo assim pouco era remetido, pois em geral as passagens estavam tão bloqueadas que os navios ingleses não seriam admitidos, como já foi dito, em seus portos.

Isso levou à suspensão das manufaturas para exportação na maioria das regiões da Inglaterra, com exceção dos portos externos; e até nestes, logo foram suspensas, já que todos, por sua vez, tinham a peste. Embora isso fosse sentido em toda a Inglaterra, a paralisação dos negócios da city foi muito pior, com o fim repentino de todo intercâmbio de mercadorias para consumo interno, principalmente daquelas que costumeiramente circulavam através das mãos dos londrinos. Todo trabalho manual, na city etc., os artesãos e os mecânicos, como disse antes, ficaram sem trabalho e isso provocou a dispensa e demissão de um número incontável de diaristas e operários de todos os tipos, visto que nada se fazia com seus ofícios, a não ser o que se poderia chamar de absolutamente necessário. Isso gerou uma multidão de solitários sem recursos em Londres, além de famílias cuja subsistência também dependia do trabalho dos chefes de família. Digo que assim foram reduzidos à extrema miséria e, devo reconhecer para a honra da cidade de Londres, o que assim será por muitas eras, enquanto isso for algo a ser comentado: a população foi capaz de, por caridade, oferecer provisões para as necessidades de muitos milhares dos que mais tarde ficaram doentes ou estavam desesperados; assim, pode-se afirmar com segurança que ninguém morreu de fome, pelo menos ninguém que tenha chegado ao conhecimento das autoridades. Esta estagnação do nosso comércio manufatureiro no interior colocaria o povo em dificuldades muito maiores, mas se os mestres de ofício, os tecelões e outros continuassem fazendo suas mercadorias até o esgotamento de seus estoques e forças, acreditando que a epidemia diminuiria logo, eles teriam em seguida uma demanda rápida, proporcional à queda de seus negócios naquele período. Como, porém, nenhum – a não ser os patrões ricos – podia fazer isto porque muitos eram pobres e incapazes, o comércio de manufaturas da Inglaterra sofreu enormemente e os pobres foram espoliados em toda a Inglaterra pela calamidade só da city de Londres. A verdade é que, no ano seguinte, eles seriam totalmente recompensados por outra terrível calamidade na city; assim, com uma tragédia, a city enfraqueceu o país e com outra tragédia, também terrível a seu modo, enriqueceu o país, recompensando-os outra vez. Uma quantidade infinita de utensílios domésticos, peças de vestuário e outras coisas, além de todos os armazéns abarrotados de mercadorias e manufaturas vindas de todas as partes da Inglaterra, foram consumidos pelo incêndio de Londres, no ano seguinte a este terrível flagelo. O comércio gerado pelo incêndio em todo o reino é inacreditável, suprindo as necessidades e reparando os danos. Assim que, em resumo, todas as mãos manufatureiras da nação foram postas para trabalhar e mal foram suficientes para abastecer o mercado e dar conta da demanda durante vários anos. Todos os mercados estrangeiros também estavam sem as nossas mercadorias devido à estagnação provocada pela peste, antes do comércio aberto ser novamente permitido. Junto com a prodigiosa demanda interna, isso contribuiu para uma rápida vazão de todos os tipos de mercadorias; assim que nunca se soube de um tal comércio, em toda a Inglaterra, como nos sete primeiros anos depois da peste e depois do incêndio de Londres. Resta agora que eu diga alguma coisa sobre o lado misericordioso desse terrível castigo. Na última semana de setembro, estando a peste em seu momento crítico, sua fúria começou a amenizar. Recordo que meu amigo dr. Heath veio me visitar na semana anterior e me disse ter certeza que a violência da peste diminuiria em poucos dias. Quando, porém, vi o registro de óbitos daquela semana, que foi o maior do ano inteiro, com 8.297 mortos de todas as doenças, eu perdi a paciência e, diante disso, perguntei-lhe de onde tinha tirado

aquela conclusão. Sua resposta, no entanto, não foi tão ambígua como pensei que seria. “Olha aqui – ele disse –, pela quantidade de pessoas doentes e contaminadas nesse momento, deveria haver vinte mil mortos na semana passada em vez de oito mil, caso o crônico e mortal contágio fosse o mesmo de duas semanas atrás. Então, a peste mataria em dois ou três dias, mas agora leva não menos do que oito ou dez. Antes, não mais do que um em cada cinco se curavam, enquanto agora noto que não morrem mais do que dois em cada cinco. E observa isto por mim: o próximo registro de óbitos vai diminuir e verás muito mais gente se restabelecendo do que costumava acontecer. Embora uma enorme multidão esteja contaminada agora, com muita gente ficando doente em todos os lugares, mesmo assim, não haverá tanta gente morrendo como antes, porque a malignidade da doença diminuiu” – e ainda acrescentou que começava a ter esperança, não, mais que esperança, de que a crise da epidemia tinha passado e ela agora iria embora; e foi assim mesmo, porque na semana seguinte, a última semana de setembro, como disse, o registro de óbitos baixou quase dois mil. É verdade que a peste continuou com uma intensidade pavorosa e o registro seguinte foi não menos do que 6.460 e, depois deste, 5.720; mesmo assim, o comentário do meu amigo estava correto e realmente parecia que as pessoas iam se restabelecendo mais rapidamente e em maior número do que costumava acontecer. E, de fato, se não fosse assim, em que estado ficaria a cidade de Londres? De acordo com o meu amigo, não havia menos de sessenta mil pessoas contaminadas na época, das quais 20.477 morreriam e quase quarenta mil se recuperariam, conforme acima. Mantendo-se como fora anteriormente, no entanto, provavelmente cinqüenta mil delas teriam morrido, se não mais, com outras cinqüenta mil ficando doentes; pois, em poucas palavras, o povo começou a adoecer em massa e tinha-se a impressão que ninguém escaparia. Esta observação do meu amigo tornou-se ainda mais evidente em poucas semanas, pois o decréscimo continuou e, noutra semana de outubro, diminuiu 1.843, de modo que o número de mortos pela peste foi só 2.665 e, na semana seguinte, diminuiu mais 1.413 e, mesmo assim, via-se claramente que havia uma abundância de gente doente, mais que isto, uma quantidade extraordinária, com uma multidão ficando doente todos os dias, mas (como acima) a malignidade da doença diminuíra. Tal é o temperamento precipitado do nosso povo (se é assim ou não no mundo inteiro, não é da minha conta averiguar), e vi isto claramente aqui, pois, diante do primeiro pavor da epidemia, as pessoas evitavam-se umas às outras e fugiam das casas dos outros e da cidade com um indescritível e, na minha opinião, desnecessário medo. Assim que, nesse momento, espalhando-se a noção de que a doença não era mais tão contagiosa como antes e que contraí-la já não era fatal, ou seja, vendo a abundância de gente realmente doente que se restabelecia todos os dias, o povo adquiriu uma coragem tão precipitada e tornou-se tão despreocupado consigo mesmo e com a epidemia que não considerava a peste mais do que uma febre comum, ou nem mesmo isso. As pessoas não somente se misturavam com aqueles que tinham tumores e carbúnculos supurando pelo corpo e, conseqüentemente, eram contagiosos, mas comiam e bebiam em sua companhia, mais que isso, entravam em suas casas para visitá-los e, conforme me contaram, entravam até mesmo nos quartos onde estavam os doentes. Não pude considerar isto racional. Meu amigo dr. Heath reconhecia, e estava comprovado pela experiência, que a doença continuava tão contagiosa como sempre, com a mesma quantidade de gente ficando doente, somente que – alegava ele – muitos dos que caíam doentes não morriam. Eu, porém, acho que muitos morriam e, pelo melhor, a doença

continuava muito terrível em si, com feridas e inchaços atormentadores e o perigo de morte não estando excluído das circunstâncias da doença, embora já não fosse tão freqüente como antes. Todas essas coisas, junto com a excessiva morosidade da cura, a repugnância da doença e muitas outras particularidades, eram suficientes para afastar qualquer homem vivo de uma perigosa mescla com pessoas doentes e para deixá-lo tão ansioso para evitar o contágio como anteriormente. Mais ainda, havia outra coisa que tornava a mera contração da doença apavorante, a terrível queimadura dos corrosivos que os cirurgiões jogavam sobre os inchaços para que se rompessem e supurassem, pois sem isso o perigo de morte era muito maior, mesmo no final. E também o tormento insuportável dos inchaços que, embora não levassem as pessoas ao delírio e à loucura como antes, do que já dei vários exemplos, mesmo assim expunham o paciente a um tormento indescritível. Os que ficavam assim, embora escapassem com vida, faziam amargas queixas daqueles que lhes disseram não haver perigo, arrependendo-se tristemente de sua imprudência e maluquice ao se arriscar ficando ao alcance da peste. Esta conduta imprudente do povo tampouco terminou aí e muitíssimos dos que desprezaram as precauções dessa maneira sofreram ainda mais profundamente e, mesmo que muitos tenham escapado, muitos também morreram. Ligado a isso, houve pelo menos um malefício público, o de tornar a redução dos enterros mais lenta do que teria sido de outro modo. Como aquela noção correu feito um raio pela cidade, com a cabeça das pessoas ficando possuída por ela, mesmo que, logo depois de aparecer a primeira grande redução no registro dos mortos, víssemos que os registros das duas semanas seguintes não diminuiriam na mesma proporção. A razão disso eu considero a imprudente exposição do povo ao perigo, abandonando todas suas precauções e cuidados anteriores, todo o recato que costumava cultivar, acreditando que a doença não o atingiria – ou, se o fizesse, não mataria. Os médicos se opuseram com todo seu poder a esse estado de espírito impensado do povo, lançando instruções impressas que foram distribuídas na city e subúrbios aconselhando o povo a continuar recolhido e ainda empregar as mais extremas precauções na sua conduta cotidiana, apesar do abrandamento da epidemia, e o atemorizava com o perigo de uma recaída em toda a cidade, dizendo que uma recaída poderia ser mais fatal e perigosa do que todo o flagelo que já ocorrera, com muitos argumentos e razões para explicar e provar isso ao povo que são longos demais para repeti-los aqui. Tudo, porém, foi em vão. As criaturas audaciosas estavam tão possuídas pela primeira alegria e tão surpresas com a satisfação de ver uma grande redução nos registros semanais de óbitos, que ficaram insensíveis a qualquer novo terror e não seriam persuadidas, a não ser de que o amargor da morte passara. Também não adiantava nada conversar com elas, não mais do que com um vento leste. Abriram as lojas, saíram para as ruas, fizeram negócios, conversaram com qualquer um que encontraram para conversar em seu caminho, fosse a negócios ou não, sequer perguntando pela sua saúde, nem mesmo ficando apreensivos de qualquer perigo vindo destes, embora soubessem que não estavam sãos. Essa conduta imprudente e precipitada custou muitas e muitas vidas daqueles que tinham se trancafiado com muito cuidado e precaução, mantendo-se isolados de toda a humanidade como se fazia, sendo, deste modo, sob a providência de Deus, poupados durante todo o clímax daquela epidemia. Essa conduta precipitada e maluca do povo foi tão longe, digo, que os sacerdotes afinal chamaram sua atenção para ela, expondo o perigo e a loucura daquilo; o que a

conteve um pouco, pois assim o povo tornou-se mais prudente. Isso, porém, teve outra conseqüência que não pôde ser evitada. Quando se espalharam os primeiros rumores, não somente na cidade mas em todo o país, isso teve o seguinte efeito: o povo estava tão cansado de permanecer tanto tempo longe de Londres e tão ansioso por voltar, que veio para a cidade em multidões, sem medo ou previsões, começando a surgir pelas ruas como se todo o perigo tivesse passado. Ver isso foi realmente surpreendente, pois embora ainda morressem lá de mil a 1.800 por semana, o povo, mesmo assim, se aglomerava na cidade como se estivesse tudo bem. O resultado disso foi que os registros de óbitos aumentaram outra vez: quatrocentos mortos na primeira semana de novembro e, se devo dar crédito aos médicos, mais de três mil ficaram doentes naquela semana, sendo a maioria também recém-chegada. Um tal John Cock, barbeiro de St Martin’s-le-Grand, foi um exemplo notório disso; refiro-me à volta precipitada do povo quando a peste diminuiu. Este John Cock tinha trancado sua casa e deixado a cidade com toda a família, indo para o interior, como fizeram muitos outros. Vendo a peste diminuir muito em novembro, quando morreram só 906 por semana em todas as doenças, ele se arriscou a voltar para casa. Tinha dez pessoas na família, quer dizer, ele e a esposa, cinco crianças, dois aprendizes e uma criada. Não tinha voltado para casa há mais de uma semana, reabrindo seu estabelecimento e retomando seu trabalho, quando a doença surgiu na família e, em cerca de cinco dias, morreram todos menos um; quer dizer, ele, sua esposa, todas as cinco crianças e os dois aprendizes. Só a criada continuou viva. Para os outros, porém, a misericórdia de Deus foi maior do que teríamos motivos para esperar; porque (como eu disse) a malignidade da doença passou, exaurindo-se o contágio e o inverno também chegou em seguida e o ar limpo e frio, com geadas cortantes. Com isso ainda se acentuando, a maioria dos que estavam doentes recuperou-se e a saúde da cidade começou a se restabelecer. É verdade que ocorreram algumas recaídas da doença até o mês de dezembro, com os boletins de óbitos aumentando quase uma centena, mas a peste desapareceu outra vez e, assim, em pouco tempo as coisas começaram a voltar para seus devidos lugares. Foi maravilhoso ver como a cidade toda voltou subitamente a ser habitada, a ponto de um forasteiro não poder se ressentir da falta dos que se perderam. Tampouco sentiu-se falta dos moradores das casas: havia poucas ou nenhuma casa vazia à vista e, havendo alguma, não faltavam locatários para ela. Gostaria de poder dizer que, conforme a cidade ganhava nova fisionomia, também os modos do povo tinham uma nova aparência. Não duvido que muitos guardassem um sincero reconhecimento pela sua salvação, sendo profundamente gratos àquela Mão Soberana que os protegeu num tempo tão perigoso. Seria muito injusto pensar de outra maneira numa cidade tão populosa, onde o povo era tão devoto como o foi aqui mesmo no tempo da epidemia; mas, como exceção do que se constatava em rostos e famílias particulares, é preciso reconhecer que o comportamento geral da população voltou a ser igual ao que era antes, havendo muito pouca diferença a ser notada. Alguns disseram, é verdade, que as coisas ficaram piores, que a moralidade do povo decaiu desde aquela época e o povo, endurecido pelo perigo em que esteve metido, assim como os marinheiros depois que passa uma tempestade, tornou-se mais pervertido e mais estúpido, mais audacioso e insensível nos seus vícios e imoralidades do que antes. Consumiria uma história de tamanho nada pequeno dar detalhes de toda a progressão pela qual o curso das coisas foi mais uma vez restabelecido nesta cidade, voltando a andar pelos canais competentes como fazia antes.

Algumas partes da Inglaterra ficaram tão violentamente contaminadas como esteve Londres; as cidades de Norwich, Peterborough, Lincoln, Colchester e outros lugares foram atingidos e, então, as autoridades de Londres começaram a estabelecer regras de conduta no contato com aquelas cidades. É verdade que não podíamos pretender proibir seus habitantes de virem a Londres, porque seria impossível diferenciá-los. Assim, depois de muitas consultas, o Lorde Prefeito e a Corte de Vereadores foram obrigados a retirá-las. Tudo que puderam fazer foi avisar e prevenir a população para não se relacionar ou receber em suas casas qualquer pessoa que se soubesse vir destes lugares contaminados. Eles, porém, bem poderiam ter falado ao léu, porque o povo de Londres se considerava tão livre da peste, depois de ter passado por todas as suas abominações, que parecia acreditar que o ar estava restabelecido e que o ar era feito um homem que teve sarampo, incapaz de ser contaminado outra vez. Isso reviveu aquela noção de que a epidemia estava toda no ar e que não havia esta coisa de contágio de pessoa doente para sadia. E tão fortemente esta fantasia prevaleceu entre as pessoas que todas andavam promiscuamente juntas, doentes e sadias. Os próprios maometanos que, possuídos pelo princípio da predestinação, não davam nada pelo contágio, aceitando o que quer que acontecesse, não conseguiriam ser mais obstinados do que o povo de Londres. Os que estavam perfeitamente sadios chegavam na cidade vindos do ar puro, como dizemos, e não se importavam em entrar nas mesmas casas, nos mesmos quartos, mais que isso, até mesmo nas mesmas camas daqueles que tinham a doença pelo corpo e não estavam curados. Alguns, de fato, pagaram o preço de sua audaciosa arrogância com suas vidas; um número infinito caiu doente e os médicos tiveram ainda mais trabalho do que nunca, somente com a diferença que mais pacientes seus se recuperavam. Isso quer dizer que eles geralmente se recuperavam, mas certamente havia mais gente contaminada ficando doente agora, quando não morriam mais de mil ou mil e duzentos por semana, do que havia quando morriam cinco ou seis mil por semana. Naquele tempo, o povo estava tão completamente negligente diante do grande e perigoso caso de saúde e epidemia, que foi capaz de aceitar ou receber muito mal os conselhos daqueles que o preveniam para seu próprio bem. As pessoas, tendo retornado assim como fizeram em geral, acharam muito estranho descobrir que, ao perguntar pelos seus amigos, alguns deles tiveram suas famílias tão completamente varridas que não ficou a menor lembrança, nem se encontraria alguém que possuísse ou apresentasse qualquer título de posse do pouco que deixaram; nestes casos, o que havia para ser herdado geralmente era desviado ou roubado, um pouco gasto de uma maneira, outro tanto de outra. Foi dito que tais recursos abandonados iam para o rei enquanto herdeiro universal; e sobre isso nos contaram, e eu suponho que seja em parte verdade, que o rei doava tudo como deodands20 ao Lorde Prefeito e à Corte de Vereadores de Londres, para que fosse revertido em proveito dos pobres, pois havia muitos. É de se destacar que, embora as ocasiões para a ajuda e os motivos da miséria fossem muitíssimas vezes maiores no tempo da violência da peste do que então, quando tudo já tinha passado, mesmo assim a miséria dos pobres era muito maior do que antes, porque, agora, todas as fontes de caridade geral tinham se fechado. As pessoas achavam que o pior momento já tinha passado e, assim, fecharam suas mãos; mesmo que cenas específicas ainda fossem muito comoventes e o sofrimento daqueles que eram pobres fosse realmente muito grande. Embora a saúde já estivesse bastante restabelecida na cidade, o comércio exterior, mesmo assim, não voltou a circular, nem os estrangeiros admitiriam nossos navios em seus

portos durante muito tempo. Quanto aos holandeses, os desentendimentos entre a nossa corte e eles se transformaram em guerra no ano anterior, de modo que nosso comércio naquela direção fora totalmente suspenso; mas Espanha e Portugal, Itália e Barbária, como também em Hamburgo e todos os portos do Báltico, continuaram ainda por muito tempo precavidos contra nós, todos sem restabelecer o comércio conosco durante vários meses. A peste levando embora tamanhas multidões, como disse antes, fez com que muitas se não todas as paróquias de fora fossem obrigadas a criar novos cemitérios, além do que mencionei em Bunhill Fields, sendo que alguns continuaram e continuam em uso até os dias de hoje. Outros, porém, foram abandonados e (confesso mencionar com algum constrangimento) convertidos para outros fins, ou mais tarde construíram prédios em cima, com os cadáveres sendo perturbados, abusados, desenterrados, alguns antes mesmo da carne desaparecer dos ossos, transportados para outros lugares como lixo ou esterco. Alguns destes chegaram ao meu conhecimento e são os seguintes: 1) Um pedaço de terra depois de Goswell Street, perto de Mount Mill; tinha ruínas das antigas linhas ou fortificações da city e ali foram promiscuamente enterrados muitos vindos das paróquias de Aldersgate, Clarkenwell e mesmo da city. Este cemitério, conforme o localizo, foi posteriormente transformado num jardim de plantas medicinais e depois construíram sobre o terreno. 2) Um pedaço de terra logo acima de Black Ditch 21, como era então chamado, no final de Holloway Lane, na paróquia de Shoreditch. Depois, virou um chiqueiro de porcos e teve outros usos comuns, mas está bastante desativado enquanto cemitério. 3) A parte final de Hand Alley, em Bishopsgate Street, que então era um campo verde e foi utilizado principalmente pela paróquia de Bishopsgate, embora muitos carros de fora da city também trouxessem seus mortos para lá, principalmente os que vinham de St Allhallows, junto à muralha. Não posso mencionar esse local sem grande pesar. Se bem me lembro, foi cerca de dois ou três anos depois da peste passar que Sir Robert Clayton veio tomar posse do terreno. Informou-se – não sei o quanto é verdade – que o terreno ficara para o rei por falta de herdeiros, com todos os que tinham algum direito sendo eliminados pela pestilência e que Sir Robert Clayton recebera o terreno de presente do rei Charles II. Seja como foi que o obteve, o certo é que o terreno foi alugado para que se construísse em ou se construísse sobre por ordens suas. A primeira casa construída foi uma grande e bela casa que ainda existe, de frente para a rua ou passagem chamada Hand Alley – o que, embora chamem de passagem, é tão larga quanto uma rua. As casas na mesma calçada do lado norte estão construídas exatamente sobre o chão onde foram enterrados os pobres e, durante a perfuração do solo para as fundações, os cadáveres eram desenterrados, alguns ficando tão expostos que se distinguiam os crânios das mulheres por seus cabelos longos e viam-se outros cujas carnes ainda não estavam bem mortas. Então, a população reclamou aos brados contra isso e alguns opinaram que aquilo poderia provocar a volta da epidemia; depois disso, os ossos e cadáveres, tão logo surgiam, eram carregados para outro canto do mesmo terreno e jogados todos juntos num valão profundo, cavado para este fim, que agora é identificado onde não se construiu sobre, pois é uma passagem para outra casa mais acima, no fim de Rose Alley, diante da porta de uma assembléia erguida ali há muitos anos. Naquele canto, separado do resto da alameda por uma cerca formando um grande quadrado, ali se encontram os ossos e restos de quase dois mil cadáveres, transportados pelos carros dos mortos para sua sepultura naquele mesmo ano.

4) Além disso, havia um pedaço de terra em Moorfields, na direção da rua que agora é chamada de Old Bethlem, que foi muito alargada, mas naquela ocasião não chegou a ocupar todo o terreno. (N. B.: O autor deste diário está enterrado neste mesmo terreno porque este foi seu desejo, sendo sua irmã lá enterrada poucos anos antes.) 5) A paróquia de Stepney, estendendo-se do leste para o norte de Londres até o limite do cemitério de Shoreditch, tinha um pedaço de terra reservado para enterrar seus mortos perto do dito cemitério que, por esta razão, foi mantido aberto e, deste então, imagino que incorporado ao mesmo cemitério. Também havia outros locais para sepulturas em Spittlefields, um onde depois construíram uma capela ou tabernáculo para tranqüilizar esta grande paróquia e outro em Petticoat Lane. Havia não menos de cinco outros terrenos utilizados pela paróquia de Stepney na época: um onde agora fica a igreja paroquial de St Paul, Shadwell, e outro onde agora está a igreja paroquial de St John’s em Wapping, sendo que ambas não tinham títulos de paróquias naquele tempo, pois pertenciam à paróquia de Stepney. Eu poderia citar muitos outros, mas estes chegaram até meu conhecimento pessoal, circunstância que me fez pensar na utilidade de registrá-los. No conjunto, pode-se observar que, naquele tempo de desespero, foram obrigados a abrir novos cemitérios na maioria das paróquias de fora para enterrar a prodigiosa quantidade de gente que morreu num espaço de tempo tão curto. Por que não tomaram o cuidado de manter estes lugares separados do uso cotidiano, para que assim os corpos pudessem descansar sem ser perturbados, não sei responder; mas devo confessar que achei isso errado e não sei a quem devemos condenar. Eu também deveria ter mencionado que, na época, os quakers também tinham um cemitério separado para eles, o qual ainda utilizam e eles ainda tinham um carro especial para buscar seus mortos em casa. O famoso Solomon Eagle que, como disse antes, previu a peste como um castigo e corria nu pelas ruas dizendo ao povo que ela vinha para puni-lo por seus pecados, ele perdeu sua esposa no dia seguinte à chegada da peste, sendo uma das primeiras transportadas no carro dos quakers mortos até o novo cemitério deles. Eu poderia encher este relato com muitas outras coisas notáveis que aconteceram naquele tempo de epidemia, principalmente com o que se passava entre o Lorde Prefeito e a corte que então estava em Oxford e quais as instruções recebidas do governo de tempos em tempos para sua conduta nessa situação crítica. Mas a corte realmente se preocupava tão pouco e o pouco que fazia era de tão pouca importância, que não vejo grande relevância em mencionar aqui qualquer parte: exceto pela determinação de um jejum mensal na cidade e pelo envio de caridade real para o amparo dos pobres, ambos feitos que já mencionei antes. Grandes foram as recriminações dirigidas àqueles médicos que abandonaram seus pacientes durante a epidemia e agora voltavam outra vez para a cidade, mas ninguém se interessava em consultá-los. Eram chamados de desertores e freqüentemente colocavam em suas portas cartazes escrito “Aqui, um doutor para alugar”, de modo que muitos daqueles médicos se contentaram por um tempo em ficar sentados imóveis e olhar a sua volta, ou pelo menos mudar de endereço, estabelecendo-se em novos lugares, com novas relações. O caso do clero foi semelhante e com ele o povo foi realmente muito ofensivo, escrevendo versos e reflexões escandalosas, fixando nas portas das igrejas “Aqui, um púlpito para alugar” e algumas vezes “para vender”, o que era pior. Não foi a menor das nossas desgraças o fato de, quando a nossa epidemia desapareceu, não desaparecer também o espírito de discórdia e descontentamento, calúnia e condenação que, antes disso, já era, realmente, o grande perturbador da paz desta nação.

Foi dito que isso era remanescente de antigas animosidades que ultimamente envolviam todos nós em sangue e desordem. Como, porém, a última lei de Anistia pôs as próprias divergências para dormir, o governo recomendava, em todas as oportunidades, paz pessoal e familiar para toda a nação. Isso, porém, não pôde ser obtido, principalmente depois que terminou a peste em Londres, quando qualquer um que tivesse visto as condições em que se encontrara o povo e como as pessoas se preocupavam umas com as outras na época prometeria ser mais caridoso no futuro e não fazer mais recriminações. Digo que, vendo isso, qualquer um teria pensado que o povo por fim se uniria com outro estado de espírito. Digo, porém, que isso não pôde ser alcançado. As discussões continuaram, a Igreja e os presbiterianos eram incompatíveis. Logo depois da peste passar, os despojados sacerdotes não-conformistas que ocuparam os púlpitos abandonados por seus responsáveis foram dispensados. Não podiam esperar outra coisa, senão que caíssem em cima deles e os perturbassem com suas leis penais, aceitando suas pregações enquanto estavam doentes e perseguindo-os tão logo voltaram a se restabelecer. Isto, até nós que pertencíamos à Igreja achávamos muito duro e não podíamos aprovar de maneira alguma. Mas assim era o governo e não podíamos dizer nada para impedi-lo. Somente podíamos dizer que não era obra nossa e não poderíamos responder por isso. Por outro lado, os não-conformistas recriminavam aqueles sacerdotes da Igreja por irem embora, abandonando suas obrigações, abandonando o povo em perigo, quando ele mais precisava de conforto e coisas assim: isso não podíamos aprovar de maneira nenhuma, porque nem todos os homens têm a mesma fé e a mesma coragem e as Escrituras ordenam que julguemos pelo mais favorável e de acordo com a misericórdia. Uma peste é um inimigo formidável, armado com temores que nem todo homem é suficientemente forte para resistir ou está preparado para agüentar o baque contra. É muito certo que uma grande parte do clero que tinha condições de agir assim recuou e fugiu para salvar sua própria vida. Também é verdade que uma grande parte dele ficou e muitos sucumbiram devido à calamidade, mas cumprindo seus deveres. É verdade que alguns não-conformistas destituídos do sacerdócio permaneceram e sua coragem ainda está por ser contada e altamente valorizada – mas estes não foram muitos. Não se pode dizer que todos eles ficaram e que nenhum se refugiou no interior, não mais do que se pode dizer que todo o clero da Igreja foi embora. Nem que todos aqueles que foram embora partiram sem deixar curas e outros substitutos em seus lugares para fazer os ofícios necessários e visitar os doentes, tanto quanto isso fosse praticável. Assim que, no total, deve-se fazer um crédito de caridade para os dois lados e devemos pensar que um tempo como aquele de 1665 não tem paralelo na História e não é a coragem intrépida que sempre mantém os homens nessas situações. Eu não disse isso, antes preferindo registrar a coragem e o zelo religioso daqueles que, em ambos os lados, realmente se arriscaram a serviço do povo pobre em seu sofrimento, não recordando, em nenhum dos lados, qualquer falha em seus deveres. A falta de serenidade entre nós, porém, causou o contrário do que se fazia necessário: alguns dos que ficaram não somente se vangloriavam demais, mas insultavam aqueles que fugiram, acusando-os de covardia, de desertarem seu rebanho e desempenharem o papel de mercenários e semelhantes. Em nome da compaixão para com toda gente boa, eu recomendaria olhar para o passado e refletir honestamente sobre os terrores do tempo, e quem quer que faça isso verá que a coragem comum não conseguia suportá-los. Não era como aparecer um exército pela frente ou enfrentar um corpo de cavalaria num campo, era enfrentar a própria Morte em seu cavalo pálido. Na verdade, ficar

era morrer e não se podia esperar nada menos, principalmente conforme as coisas pareciam no final do mês de agosto e começo de setembro e havia razões para esperar por isso naquele tempo, porque nenhum homem esperava, me arrisco a dizer acreditava, que a doença tomaria o rumo que subitamente tomou imediatamente, com menos dois mil mortos numa semana, quando ainda havia uma quantidade tão grande de gente doente, como se sabia haver na época; e foi então que muitos fugiram depois de permanecer a maior parte do tempo anterior. Além disso, se Deus deu mais forças para alguns do que para outros, seria para que se vangloriassem de sua capacidade de suportar o golpe, depreciando aqueles que não tinham o mesmo dom e apoio, ou não deveriam eles se mostrar humildes e agradecidos por serem considerados mais úteis do que seus irmãos? Acho que isso tem que ser registrado em honra de tais homens, tanto clérigos quanto médicos, cirurgiões, boticários, autoridades e funcionários de todos os tipos, assim como todas as pessoas dedicadas que arriscaram suas vidas no cumprimento de seus deveres, como quase certamente todos os que ficaram fizeram até o mais alto grau; entre todos esses tipos, muitos não apenas se arriscaram, mas perderam suas vidas naquela triste ocasião. Eu comecei a fazer uma lista de todos estes, refiro-me a todos os que morreram nestas profissões e serviços, como direi, a caminho de seu dever. Mas foi impossível para um particular adquirir certeza sobre pormenores. Recordo somente que morreram dezesseis homens do clero, dois vereadores, cinco médicos, treze cirurgiões, dentro da city e liberties, antes do começo de setembro. Como disse antes, mesmo sendo esta a grande crise e o clímax da epidemia, não pode existir uma lista completa. Quanto aos subalternos, acho que morreram quarenta e seis policiais e guardas inferiores nas duas paróquias de Stepney e Whitechapel, mas não poderia levar minha lista adiante porque em setembro, quando a doença nos atingiu com um ataque violento, isto nos levou à perda de todas as contas. Os homens não morriam mais por contagens e números. Podiam divulgar um registro semanal de óbitos dizendo que eram sete ou oito mil ou o que preferissem. O certo é que morriam aos montes e eram enterrados aos montes, quer dizer, sem contagem. Se devo acreditar em certas pessoas que andavam mais pelas ruas e estavam mais ao par dessas coisas do que eu – embora eu fosse um homem bastante conhecido para alguém que não tinha mais negócios do que eu para fazer – digo, se posso acreditar nelas, não enterraram menos de vinte mil por semana naquelas três primeiras semanas de setembro. Mesmo que outros garantam a verdade disso, ainda assim eu prefiro ficar com a contagem pública. Sete ou oito mil mortos por semana são suficientes para justificar tudo que falei sobre o terror daquele tempo; é para grande satisfação minha que escrevo, assim como para aqueles que lêem, estar habilitado a afirmar que tudo está registrado com moderação e antes com desconto do que com acréscimo. Diante de todas essas contagens, digo, eu poderia supor que, uma vez restabelecidos, nossa conduta se distinguiria mais pela caridade e pela bondade com a recordação da calamidade passada, e não tanto por nos orgulharmos da nossa coragem de ficar, como se todos os homens que fogem das mãos de Deus fossem covardes, ou aqueles que ficam muitas vezes não devessem sua coragem a sua ignorância, menosprezando as mãos de seu Criador – o que é um tipo criminoso de desespero e não coragem de verdade. Não posso deixar de registrar que os funcionários civis, tais como policiais, guardas subalternos, os homens do Lorde Prefeito e dos xerifes, assim como os funcionários das paróquias cuja função era se ocuparem dos pobres, em geral eles cumpriram seus deveres com tanta coragem como quaisquer outros, talvez com mais ainda, porque seu trabalho

estava cercado de mais riscos e ficavam mais junto aos pobres, que eram mais sujeitos ao contágio e, quando atingidos pela epidemia, ficavam nas condições mais lastimáveis. Mas, então, também é preciso acrescentar que grande número deles morreu; e realmente era pouco provável que fosse de outra maneira. Não disse aqui uma palavra sobre os medicamentos e poções que nós comumente utilizávamos nesta terrível situação – digo nós que freqüentemente saíamos para cima e para baixo pelas ruas, como eu fazia. Falou-se muito sobre isso nos livros e receitas de nossos falsos médicos, sobre os quais eu já falei bastante. Pode-se, no entanto, acrescentar que a Escola de Medicina publicava diariamente diversas poções que os médicos estudavam no processo de sua prática e, por estarem impressas, evito repeti-las por esta razão. Uma coisa não poderia deixar de observar: o que aconteceu com um dos charlatães que publicou que ele tinha o melhor preventivo contra a peste e quem quer que o levasse consigo nunca se contaminaria ou seria suscetível à epidemia. Este homem, podemos supor racionalmente, não saía de casa sem um pouco daquele excelente preventivo em seu bolso, mesmo assim, foi atingido pela doença e eliminado em dois ou três dias. Não sou dos muitos que odeiam médicos e desprezam medicamentos. Ao contrário, várias vezes mencionei o respeito que tinha pelas recomendações do meu particular amigo dr. Heath; mas também devo reconhecer que fiz uso de pouco ou nada – exceto, como já observei, trazer sempre à mão um preparado de cheiro forte para caso encontrasse alguém com mau cheiro ou chegasse muito perto de qualquer cemitério ou cadáver. Tampouco fiz o que sei que alguns fizeram: manter o espírito sempre alto e quente com vinho, estimulantes e coisas como estas; às quais, como observei, um médico recorreu tanto que não conseguiu mais largá-las quando a epidemia tinha terminado há muito, tornando-se assim um bêbado para toda a vida. Recordo que meu amigo médico costumava dizer que havia um certo grupo de drogas e poções que, com toda certeza, eram boas e úteis em caso de contágio; das quais ou com as quais os médicos podiam preparar uma variedade infinita de medicamentos, assim como os tocadores de sinos fazem várias centenas de tipos diferentes de música invertendo a ordem do som de apenas seis sinos, e todas estas poções seriam realmente muito boas: “Portanto – ele disse –, não me espanto que uma quantidade tão grande de medicamentos seja oferecida na atual calamidade e que quase todo médico prescreva ou prepare uma coisa diferente, conforme sua razão ou experiência lhe sugiram, mas – disse o meu amigo – permita-se que todas as prescrições de todos os médicos de Londres sejam examinadas e se descobrirá que todas elas são compostas das mesmas coisas, somente com as variações indicadas pelas preferências particulares dos médicos. Assim que – disse ele –, pensando um pouco na sua própria constituição, seu modo de vida e nas circunstâncias em que se contaminaria, todo homem pode escolher seu próprio remédio entre as drogas e poções comuns. Somente que – disse ele – alguns recomendam uma coisa como a melhor e alguns uma outra. Uns pensam que pílulas ruff, autodenominadas pílulas antipestilenciais, são o melhor medicamento que se pode fabricar. Outros acham que basta melado de Veneza para resistir ao contágio. E eu – disse ele – penso como ambos pensam, ou seja, que o último é bom para se tomar antes a fim de prevenir e o primeiro para expelir a peste de quem está contaminado”. De acordo com essa opinião, eu várias vezes tomei melado de Veneza, seguido de um bom suadouro, sentindo-me tão fortalecido contra a epidemia quanto qualquer outro conseguiria se fortificar pelo poder da medicina.

Quanto ao charlatanismo e aos curandeiros itinerantes, dos quais a cidade estava tão cheia, não escutei nenhum, notando desde então, com alguma surpresa, que mesmo dois anos depois da peste, raramente vi ou ouvi um deles pela cidade. Alguns supunham que todos eles foram varridos pela peste até o último homem e o foram por invocarem uma marca especial da vingança de Deus, conduzindo os pobres para a vala da destruição meramente para ganhar o pouco dinheiro que arrancavam deles. Também não posso me estender no assunto. É certo que morreram em abundância – muitos deles ficaram ao alcance dos meus conhecimentos –, mas questiono muito se todos eles foram eliminados. Acredito mais que tenham ido para o interior e lá tentaram suas práticas junto às pessoas que estavam com medo da epidemia, antes dela surgir entre elas. Isso, no entanto, é certo: durante muito tempo nenhum daqueles homens apareceu em ou perto de Londres. Houve, é verdade, muitos doutores que publicaram cartazes recomendando suas diferentes poções medicinais para, como diziam, a limpeza do corpo depois da peste que, segundo eles, as pessoas contaminadas que se curavam necessitavam tomar; enquanto eu devo reconhecer que acredito ser opinião da maioria dos eminentes médicos daquele tempo que a peste era em si uma purgação suficiente e aqueles que sobreviviam à infecção não precisavam de remédios de espécie alguma para limpar o corpo. As feridas supurantes, os tumores etc., rompidos e mantidos abertos por determinação dos médicos, já as teriam limpado suficientemente. Todas as outras doenças ou causas de doenças seriam efetivamente eliminadas daquela maneira. Como os médicos, onde quer que fossem, diziam ser esta a sua opinião, os curandeiros fizeram poucos negócios. Houve, é verdade, várias outras pequenas confusões depois do decréscimo da peste. Se foram premeditadas para atemorizar e tumultuar o povo, como muitos supuseram, não posso dizer, mas algumas vezes fomos informados que a peste voltaria em tal data. O famoso Solomon Eagle, o quaker nu que mencionei, profetizava enchentes de males todos os dias. Muitos outros nos diziam que Londres não fora suficientemente castigada e que ainda estavam por vir ataques ainda mais severos e dolorosos. Parassem eles por aí ou entrassem em detalhes, dizendo-nos que a cidade seria destruída no ano seguinte por um incêndio, depois, quando vimos isso acontecer, realmente não nos deveriam condenar por prestar mais que a atenção habitual a seus espíritos proféticos; deveríamos, pelo menos, ter pensado neles e ser mais sérios nas nossas investigações sobre o significado daquilo e de quem receberam o conhecimento antecipado. Mas como geralmente nos falavam de uma recaída da peste, nunca mais nos preocupamos com eles; ainda assim, devido a estes freqüentes boatos, ficamos todos com algum tipo de apreensão constante entre nós. Se alguém morria subitamente, logo ficávamos assustados; muito mais se aumentassem os mortos com peste, pois no final daquele ano sempre havia entre duzentos e trezentos mortos com peste. Em qualquer dessas ocasiões, digo, ficávamos alarmados de novo. Aqueles que se lembram da cidade de Londres antes do incêndio devem recordar que não havia aquele lugar que agora chamamos de Newgate Market, no centro da rua que agora chamamos de Blow-bladder Street22 e que deve seu nome aos açougueiros que costumavam matar e preparar seus carneiros ali (e, ao que parece, tinham o costume de inflar a carne soprando em canudos para deixá-la com aparência mais grossa e gorda do que realmente tinha, sendo ali punidos por isso pelo Lorde Prefeito). Digo, o final da rua em direção a Newgate, onde ficavam duas longas filas de balcões para a venda de carne. Foi naqueles balcões que duas pessoas caíram mortas quando compravam carne, espalhando o boato de que toda a carne estava contaminada; embora isso tenha amedrontado o povo e prejudicado o mercado durante dois ou três dias, posteriormente

ficou plenamente estabelecido não haver nada de verdadeiro naquela suposição. Mas ninguém consegue explicar o poder do medo quando ele toma conta da mente. No entanto, aprouve a Deus prolongar o inverno e assim restaurar a saúde da cidade de maneira que, em fevereiro do ano seguinte, acreditamos que a epidemia tinha acabado, e, então, não nos assustamos mais tão facilmente outra vez. Havia ainda uma polêmica entre os eruditos que, no princípio, deixou o povo um pouco perplexo: como purificar as casas e mercadorias onde a peste esteve e como tornar novamente habitáveis as casas que ficaram vazias durante a peste. Uma enormidade de perfumes e preparados foram prescritos pelos médicos, uns de um tipo, outros de outro, nos quais as pessoas que lhes deram atenção fizeram realmente grandes e, a meu ver, desnecessárias despesas. Os pobres apenas deixaram suas janelas abertas dia e noite, queimando enxofre, piche, pólvora e coisas assim em seus quartos e obtendo resultados tão bons quanto os melhores. Mais que isso, as pessoas ansiosas que, como disse antes, voltaram apressadas apesar de todos os riscos, viram pouca ou nenhuma inconveniência em suas casas ou em mercadorias, tendo feito pouco ou nada com elas. Em geral, porém, as pessoas prudentes e cautelosas tomaram providências como arejar e perfumar suas casas, queimando incensos, benjoim, resina e enxofre em seus quartos bem fechados, onde espalhavam tudo isso no ar com uma explosão de pólvora. Outros faziam grandes fogueiras dia e noite, durante vários dias e noites. Mais que isso, dois ou três resolveram botar fogo em suas casas e, assim, efetivamente purificá-las, queimando-as até o chão; especificamente, uma em Ratcliff, uma em Holbourn e uma em Westminster, além de duas ou três que pegaram fogo, mas o incêndio felizmente foi controlado antes de se espalhar queimando as casas todas. O criado de um cidadão, acho que foi em Thames Street, botou tanta pólvora na casa de seu patrão para purificá-la da peste, fazendo isto tão enlouquecidamente que arrancou parte do teto da casa. Ainda não tinha, porém, chegado completamente o tempo em que a cidade seria purificada pelo fogo; nem estava tão distante, pois dentro de mais nove meses eu veria tudo reduzido a cinzas. Foi quando as sementes da peste, assim como sustentavam alguns dos nossos filósofos charlatães, foram totalmente destruídas, e não antes. Uma idéia ridícula demais para se discutir aqui: como as sementes da peste teriam permanecido nas casas para só serem destruídas pelo incêndio e, desde então, não apareceram mais, tendo em vista todas as construções dos subúrbios e liberties, em todas as grandes paróquias de Stepney, Whitechapel, Aldgate, Bishopsgate, Shoreditch, Cripplegate e St Giles que não foram atingidas pelo incêndio, mas foram atacadas com a maior violência pela peste e continuaram nas mesmas condições anteriores? Para deixar estas coisas assim como as encontrei, é certo que as pessoas mais cuidadosas do que o comum com sua saúde tomaram providências especiais para o que chamavam de aclimatação das suas casas e uma enorme quantidade de coisas caras foram consumidas nesse sentido, de modo que não posso deixar de dizer que não apenas aclimataram as suas casas conforme desejavam, mas encheram o ar de cheiros muito agradáveis e saudáveis, cujos benefícios outros desfrutaram tanto quanto quem pagou por aquilo. E, mesmo assim, depois de tudo, embora os pobres voltassem muito precipitadamente para a cidade, como disse, ainda devo dizer que os ricos não tiveram tanta pressa. Muitos homens de negócios, na verdade, voltaram mas não trouxeram suas famílias antes da chegada da primavera, quando tinham motivos para acreditar que a peste não voltaria.

A corte, de fato, voltou logo depois do Natal, mas a nobreza e a pequena nobreza, com exceção dos que dependiam e estavam a serviço da administração, não voltaram em seguida. Eu deveria chamar atenção aqui que, apesar da violência da peste em Londres e em outros lugares, foi bastante evidente que ela nunca esteve a bordo da armada. Mesmo assim, houve um estranho recrutamento de marinheiros ao longo do rio e mesmo nas ruas para tripular a armada. Isso, porém, aconteceu no início do ano, quando a peste mal tinha começado e de maneira alguma descido até aquela parte da cidade onde habitualmente se recrutam marinheiros. Mesmo a guerra com os holandeses não sendo nada agradável para o povo naquele tempo, com os marinheiros entrando para o serviço com uma certa relutância e muitos se queixando de serem arrastados à força, naquele momento isso também se revelou uma violência afortunada para muitos deles que, provavelmente, teriam perecido na calamidade geral; estes, após o término do serviço de verão, embora tivessem motivos para lamentar a desgraça de suas famílias – pois, quando voltaram, tinham muitos dos seus em suas tumbas – mesmo assim, tiveram condições de agradecer serem levados para longe do alcance da peste, ainda que tão contra a vontade. Na verdade, naquele ano tivemos uma guerra quente com os holandeses, com uma grande batalha no mar na qual os holandeses levaram a pior, mas perdemos muitos homens e navios. Como observei, porém, a peste não esteve na nossa armada e quando voltaram a ancorar os navios no rio, a violência da epidemia começava a diminuir. Ficaria satisfeito se pudesse encerrar o relato deste ano melancólico com alguns exemplos históricos particulares. Refiro-me à gratidão a Deus, nosso protetor, por sermos poupados nesta horripilante calamidade. As circunstâncias da nossa salvação, assim como o terrível inimigo do qual fomos salvos, certamente clamavam isto de toda a nação. As circunstâncias da salvação foram grandemente memoráveis, como em parte já mencionei, principalmente pelas tenebrosas condições em que todos nós nos encontrávamos, quando fomos surpreendidos pela cidade toda se alegrando com a esperança do fim da epidemia. Nada, a não ser a intervenção imediata do dedo de Deus; nada, a não ser Seu poder onipotente poderia fazer isso. O contágio ridicularizava todos os remédios, a morte atacava em cada esquina e se continuasse como estava, mais algumas semanas e a peste teria limpado a cidade de tudo e todos que tivessem uma alma. Em toda parte, os homens começavam a se desesperar e todo coração falhava de medo. As pessoas ficavam enlouquecidas pela aflição de suas almas e os temores da morte estavam estampados nos rostos e nos semblantes do povo. No exato momento que bem deveríamos dizer “é inútil a ajuda do homem” – digo, neste exato momento, para nossa agradável surpresa, Deus quis que a fúria da peste diminuísse, ainda que por si mesma. Declinando a malignidade, embora uma quantidade infinita continuasse doente, como disse, mesmo assim morriam muito menos e o registro de óbitos da primeira semana já baixou para 1.843; de fato, um vasto número. É impossível expressar a mudança da própria fisionomia das pessoas naquela manhã de quinta-feira, quando foi divulgado o registro semanal de óbitos. Podia-se perceber nos semblantes um espanto secreto e um sorriso de satisfação estampados na face de todo mundo. Aqueles que antes não passariam pelo mesmo lado de uma rua onde viesse alguém apertaram as mãos uns dos outros. Nas ruas não muito largas, as pessoas abriam suas janelas e chamavam de uma casa para outra, perguntando como estavam e se ouviram a boa notícia da diminuição da peste. Algumas, ao ouvirem falar em boa notícia, respondiam perguntando: “Que boa notícia?” Ao responderem que a peste tinha diminuído e o registro

de óbitos baixado quase dois mil mortos, gritavam “Deus seja louvado!” E choravam alto de contentamento, dizendo que não sabiam nada disso. Tamanha foi a alegria das pessoas que parecia, como realmente foi, que ganhavam vida dentro do túmulo. Provavelmente, eu poderia citar tantas coisas extravagantes por excesso desta alegria quantas por seu sofrimento, mas isto seria diminuir o valor daquela. Devo confessar que antes disso acontecer eu mesmo andava muito deprimido. O prodigioso número de pessoas que ficaram doentes uma ou duas semanas antes, mais as que morreram, foi tal, com lamentações tão grandes em todo lugar, que um homem pareceria agindo contra sua razão se tivesse qualquer esperança de escapar. Dificilmente encontrava uma casa, a não ser a minha em toda vizinhança, que não estivesse contaminada e, se continuasse assim, não levaria muito tempo para que não houvesse mais vizinhos para serem contaminados. De fato, é difícil acreditar na horrenda destruição ocorrida nas últimas três semanas; pois, se devo acreditar na pessoa cujos cálculos me pareceram bem fundamentados, não houve menos de trinta mil mortos e cerca de cem mil ficando doente nas três semanas a que me refiro. A quantidade de doentes era surpreendente, realmente assombrosa, e aqueles cuja coragem os mantivera todo o tempo anterior, agora sucumbiam na peste. Em meio a sua aflição, quando a cidade de Londres estava em condições verdadeiramente calamitosas, foi justamente então que aprouve a Deus – através da intervenção imediata de sua mão – desarmar o inimigo, retirando o veneno da sua ferroada. Foi maravilhoso e até os médicos se surpreenderam. Onde quer que fizessem uma visita encontravam seus pacientes passando melhor; tiveram um suadouro benigno ou os tumores arrebentaram, com a pústula desaparecendo e mudando a cor ao redor da inflamação, ou a febre tinha passado, ou amenizaram-se as violentas dores de cabeça ou havia algum bom sintoma no caso. Assim, em poucos dias todo mundo estava se restabelecendo. Famílias inteiras que, contaminadas e abatidas, esperavam a morte a qualquer hora e já tinham padres rezando com elas, foram revividas e curadas, não morrendo ninguém entre elas. Isso tampouco aconteceu pela descoberta de um novo medicamento, nem por um novo método de cura ou por qualquer experiência em andamento que os médicos e cirurgiões estivessem testando; evidentemente, isso veio da secreta e invisível mão Dele que, primeiro, enviou a doença como um castigo sobre nós. Deixai a porção ateísta da humanidade chamar do que quiser o que estou dizendo, não é nenhuma inspiração divina, mas algo reconhecido por toda a humanidade naquele tempo. A doença perdeu seu vigor e consumiu sua malignidade; e deixai que isto venha de onde vier, deixai os filósofos procurarem razões na natureza para explicar o fato, fazendo tudo que podem para diminuir a dívida que eles têm para com o Criador. Aqueles médicos que não tinham a menor religiosidade foram obrigados a reconhecer que tudo foi sobrenatural, foi extraordinário e não se conseguida dar qualquer explicação para isso. Se eu disser que isto é um visível apelo para todos nós agradecermos, principalmente nós que estivemos sob o terror de seu crescimento, talvez alguns, depois de passada a sensação da coisa, pensem que é uma lamúria impertinente de coisas religiosas, fazendo um sermão em vez de escrever uma história, fazendo de mim mesmo um professor em vez de contar minhas observações das coisas; e isso me inibe muito para prosseguir aqui como eu poderia fazer em outras circunstâncias. Mas, se dez leprosos forem curados e somente um voltar para agradecer, desejo ser como este, ser grato por mim mesmo. Tampouco vou negar que havia muita gente que, para todas as aparências, ficou muito agradecida naquele tempo, pois suas bocas calaram-se, mesmo as bocas daqueles

cujos corações não foram extraordinária e longamente atingidos com isso. Naquele tempo, porém, o impacto foi tão forte que ninguém conseguiu resistir a ele; não, nem a pior das pessoas. Era muito comum encontrar pessoas estranhas, de quem não sabíamos absolutamente nada, expressando sua surpresa pelas ruas. Certo dia, passando por Aldgate enquanto uma boa multidão ia e vinha, um homem chegou vindo do fim das Minories e, olhando um pouco a rua de cima a baixo, jogou os braços para o alto: “Senhor, como tudo mudou! Vim aqui na semana passada e dificilmente se conseguia ver alguém”. Ouvi outro homem acrescentar a suas palavras: “Tudo isto é maravilhoso, tudo isto é um sonho”. “Deus seja louvado”, disse um terceiro homem, “agradeçamos a Ele, pois tudo é obra Sua, os recursos e os talentos humanos estavam no fim”. Todos eles não se conheciam entre si. Saudações como estas, porém, eram freqüentes todos os dias pelas ruas e, apesar de um comportamento relapso, as pessoas mais comuns andavam pelas ruas dando graças a Deus pela sua salvação. Foi então, como disse antes, que o povo perdeu todos os seus medos muito rapidamente. De fato, não tínhamos mais medo de cruzar com um homem de boné branco na cabeça ou com um pano enrolado no pescoço, ou arrastando uma perna devido às feridas na virilha e tudo que na semana anterior era apavorante no mais alto grau. Agora, porém, as ruas estavam cheias deles e estas pobres criaturas convalescentes, dando-lhes o que lhes é devido, pareciam muito sensibilizadas pela sua inesperada salvação. Faria grande injustiça com eles se eu não reconhecesse que eu acredito que muitos deles ficaram realmente agradecidos. Mas devo admitir que, do povo em geral, pode-se dizer o que foi dito dos filhos de Israel depois de libertados do cativeiro do Faraó, quando cruzaram o mar Vermelho, olharam para trás e viram os egípcios sendo engolidos pelas águas: ou seja, cantaram em Seu louvor, mas logo esqueceram Suas obras. Aqui, não posso ir adiante. Serei considerado um censor e talvez injusto se entrar na desagradável tarefa de refletir, por qualquer que seja o motivo, sobre a ingratidão e o retorno a todas as formas de perversidade entre nós, das quais eu muito fui testemunha ocular. Concluirei, então, o relato deste calamitoso ano com um vulgar porém sincero verso de minha autoria, que coloquei no fim das minhas anotações cotidianas no mesmo ano em que foram escritas: Terrível peste esteve em Londres no ano de sessenta e cinco cem mil almas levou consigo mesmo assim, estou vivo! H. F.

DANIEL DEFOE (1660-1731) “Homem nenhum provou destinos tão distintos: 13 vezes fiz fortuna e 13 vezes perdi tudo.” D. D. Comerciante, industrial jornalista, panfletista, espião, viajante, satirista, novelista... em tudo que fez e foi, Daniel Defoe imprimiu a marca da modernidade, tal qual ainda a conhecemos no século XXI. Nos seus escritos econômicos, teorizou e defendeu a livre iniciativa e o comércio internacional sem barreiras. Nos seus tratados e ensaios, discutiu a necessidade de liberdade religiosa, de reforma do sistema financeiro, do sistema de ensino, do sistema penal, da moralidade pública. Na escrita profissional, estabeleceu os padrões do jornalismo popular comprometido com a verdade, mas também praticou o seu oposto, com panfletos promovendo os interesses de quem pagasse mais. Na ficção, estabeleceu o formato da novela contemporânea e seus subgêneros (história popular de aventuras com Robinson Crusoe, a novela social em Moll Flandres, a novela de costumes em Roxanna, a reportagem romanceada com Um diário do ano da peste). Em 1958, no estudo “Daniel Defoe, um cidadão do mundo”, o professor J. R. Moore atribuiu ao escritor 545 títulos de livros, panfletos e tratados, ensaios e artigos publicados anonimamente. Mesmo descontando as cerca de cem ou mais desatribuições posteriores, a produção intelectual de Defoe continua sobre-humana para alguém que passou anos viajando a cavalo, teve família com oito filhos, montou uma trading company e uma olaria, além ficar um tempo na cadeia como preso político e passar a vida fugindo de credores. Daniel de Foe nasceu em 1660, em uma família de classe média de Londres. Por ser presbiteriano não-conformista ou dissidente da Igreja Anglicana, não podia ser aceito numa universidade inglesa. A falta da formação acadêmica convencional, entretanto, foi amplamente compensada pela educação progressista da escola experimental do reverendo Charles Morton, o primeiro a criar laboratórios científicos, cultivando o empirismo e a objetividade. Encaminhado pela família para se tornar pregador presbiteriano, Defoe preferiu se aventurar no mundo dos negócios, além de praticar a escrita profissional. Durante quatro décadas, sua vida e sua obra podem ser divididas em três fases mais nítidas. De 1682 a 1692 foi mercador da city de Londres, tornando-se um próspero homem de negócios, com importação e exportação de vinho, perfumes e medicamentos. Em 1692, faliu pela primeira vez, endividando-se para o resto da vida. Recuperou-se com uma fábrica de tijolos em Tilbury, que também faliria quando Defoe foi preso, em 1713. A segunda fase vai de 1704 a 1713, quando se dedica ao jornalismo popular e à panfletagem política. Por dez anos, escreveu quase sozinho três edições semanais da sua Review, onde se antecipou ao que viria a ser tanto o jornalismo popular democratizador da informação quanto o dito “jornalismo marrom” e manipulador da verdade. A terceira fase de sua vida profissional começa aos 59 anos de idade, quando se dedica à literatura, tornando-se o inventor da novela popular inglesa. Em toda esta atividade frenética, a contribuição mais importante de Daniel Defoe provavelmente tenha sido a conquista de um novo público – o leitor comum, curioso e interessado, mas leigo e sem grande escolaridade. Defoe criou a escrita popular, seja no

jornalismo ou na literatura. Este sucesso de massa lhe rendia desprezo intelectual nos círculos de “gente bem”. Richard West, um repórter social da época, resume a imagem pública de Defoe nestes termos: “Um escritor foragido da Justiça, amante de nomes falsos, propenso a publicações anônimas ou sob pseudônimo, um mercador de classe média que usa peruca para se passar por aristocrata, um pugilista literário que menospreza as ortodoxias de seu tempo, sendo considerado por muitos dos seus contemporâneos um rato perigoso, uma cobra venenosa, uma ameaça pública”. Uma visão panorâmica da ainda incomensurável obra escrita de Daniel Defoe revela a dedicação e determinação do autor de, seja na discussão política, no jornalismo ou na literatura, servir o seu público, dedicando-se aos temas e histórias de maior impacto e interesse popular. No jornalismo, explorou o sensacionalismo das histórias de piratas e criminosos famosos, além de fazer crítica de costumes e estudos religiosos, como a sua História política do Diabo e o Livro de aparições, sobre bruxas, videntes e fenômenos paranormais. Na literatura, constantemente retratou e denunciou tanto “a terrível ameaça da miséria”, como em Moll Flandres, quanto o texto de entreterimento, como as histórias de soldados e piratas (Colonel Jack, Capitão Singleton, Aventuras de Avery Fisher). Nos seus panfletos políticos, cultivou o humor e a sátira, como nesta passagem do seu libelo mais famoso sobre a hipocrisia das falsas virtudes inglesas, The True Born Englishman (1700): Onde quer que Deus erga uma igreja O Diabo vai lá e constrói um altar Depois, basta prestar atenção, Para ver que é dele a maior congregação Assim como seu público leitor, o homem comum do século XVIII, Defoe esforçou-se para ascender socialmente. Como a maioria, fracassou na busca de fortuna pessoal e passou a vida correndo atrás do dinheiro ou fugindo de credores. Foi nestas mesmas circunstâncias que Daniel Defoe morreu, escondido numa pensão barata de Ropemaker’s Alley, Moorefields, no dia 26 de abril de 1731. 1. Hall é o diminutivo de Town Hal1, o palácio do paço municipal. (N. do T.) 2. A city é o bairro central e financeiro de Londres às margens do estuário do Tâmisa. Nesta área de pouco mais de uma milha quadrada (677 acres), os romanos se estabeleceram no século I d. C., com a city recebendo o nome de Londres a partir de Lyn-dum, a cidade fortificada junto às águas. (N. do T.) 3. As liberties inglesas eram povoados próximos às cidades que desfrutavam de privilégios em relação à jurisdição do rei. As liberties eram administradas pelas cidades, mesmo situando-se fora de seus limites. (N. do T.) 4. Mais freqüentemente grafada Aceldama. Palavra de origem greco-árabe, significando, literalmente, “campo de sangue”. É o nome do campo próximo a Jerusalém que os cristãos relacionam com o dinheiro recebido por Judas Iscariotes, também empregado como “lugar de derramamento de sangue”. (N. do T.)

5. Flavius Josephus (37-38 d. C., Jerusalém - 100 d. C., Roma) foi um sacerdote e historiador judeu, autor de uma história da revolta judia de 66-70 d. C. e outros estudos da história judaica antiga. (N. do T.) 6. Roger Bacon (1220, Somerset ou Glouscester - 1292, Oxford) foi um filósofo franciscano e reformador educacional inglês, destacando-se na Idade Média por seus estudos de ciências experimentais, sendo o primeiro europeu a descrever o processo de fabricação da pólvora, além de projetar máquinas voadoras e navios motorizados. Sua precocidade histórica de cientista empírico transformou-o em mito popular como feiticeiro, atribuindo-se-lhe a criação de uma cabeça capaz de fazer profecias. (N. do T.) 7. Na mitologia medieval inglesa, Mother Shipton tornou-se uma bruxa lendária do século XV com grandes poderes proféticos. A primeira referência escrita a sua figura surge em 1641, sendo atribuída a ela a profetização do Grande Incêndio de Londres. (N. do T.) 8. Dia de São Miguel, 29 de setembro. (N. do T.) 9. Embora seja uma medida provavelmente arbitrária, a sepultura com seis pés (ou sete palmos) de profundidade estabeleceu-se como um padrão desde o século XVII. (N. do T.) 10. Denominavam-se entusiastas os membros de uma seita herética do século IV que se diziam portadores de revelações divinas. Entusiasta também designa alguém que se imagina possuidor de comunicação especial com Deus. (N. do T.) 11. Parece que John estava na barraca, mas, ao ouvir alguém chamar, saiu colocando a arma nas costas e conversou com eles como se fosse a sentinela posta ali de guarda por algum oficial seu superior. (N. do A.) 12. Isto assustou o policial e as pessoas que estavam com ele, pois imediatamente mudaram de tom. (N. do A.) 13. Eles tinham apenas um cavalo. (N. do A.) 14. Aqui, ele chamou um de seus homens e deu-lhe ordens para que o capitão Richard e seu grupo marchassem pelo caminho de baixo ao lado dos banhados e que se encontrariam na floresta. Tudo era simulação, não tinham um capitão Richard, nem qualquer companhia. (N. do A.) 15. Sinônimo de fatalismo oriental. (N. do T.) 16. Soixantine, no original; a tradução sessentena não está dicionarizada no Brasil. (N. do T.) 17. No jargão portuário, product é a autorização para atracar que os navios suspeitos de trazerem doenças transmissíveis recebem depois de uma quarentena. (N. do T.) 18. Aquela parte do rio onde os navios se alinham quando voltam para casa é chamada de Pool e inclui todo o rio de ambos os lados, da Torre até Cuckold’s Point e Limehouse. (N. do A.) 19. Também chaldron, antiga medida inglesa de carvão, equivalente a trinta e seis alqueires. (N. do T.) 20. Do latim Deo dandum, ou seja, dar a Deus. Na legislação inglesa anterior a 1846, referia-se aos bens arrolados como causa imediata da morte de qualquer pessoa em qualquer disputa, sendo então confiscados pela coroa e distribuídos como caridade. (N. do T.) 21. Literalmente, rua do Fosso Negro ou rua da Vala Negra. (N. do T.) 22. Literalmente, rua dos Sopradores de Bexiga ou rua dos Enchedores de Bexiga. (N. do T.)

1a orelha A grande peste que assolou a Inglaterra Um diário do ano da peste, “com observações ou memórias das ocorrências mais marcantes tanto públicas quanto privadas registradas em Londres durante a última grande epidemia, em 1665. Escrito por um cidadão que permaneceu o tempo todo em Londres”. Daniel Defoe, o autor, tinha então cinco anos. Logo, não se trata de fato de um livro de memórias. O que não o torna menos verossímil. Daniel Defoe, prolífico escritor profissional de romances, narrativas e novelas (Robinson Crusoe e Moll Flanders são seus livros mais conhecidos), foi também um grande jornalista, para Anthony Burgess, o primeiro grande jornalista inglês. Um diário tem tal paixão pelo “fato” – essa entidade tão prezada e desprezada pelo jornalismo – que o transforma no que afinal ele é mesmo: a imaginação criadora na descrição da rede de relações que o sustentam, a observação e avaliação do olhar (sempre valorativo). A Londres de 1665 que surge dessa grande reportagem é tão vívida que literalmente podemos caminhar por ela, tropeçar nos seus mortos, ouvir os gritos dos moribundos, sentir o cheiro da cidade imunda, flagelada. Somos de fato assolados pelo peso de uma tragédia coletiva. Ao mesmo tempo, como toda boa reportagem – e Defoe nos ensina isso –, Um diário nos coloca em Londres como observadores, de modo que é praticamente impossível deixar de refletir sobre o que aqueles fatos têm a ver com os nossos atuais: a AIDS, o dengue, os surtos de meningite. “Uma intensa curiosidade, um olho sem sono, uma pena incansável”, assim Burgess define Um diário. “O relato de Defoe é mais convincente do que qualquer um dos tratados contemporâneos, com seu moralismo embutido e seu ‛estilo’ superficia1.” Além das qualidades enquanto jornalismo, Um diário é também o relato de um historiador consciencioso, consistente, de modo que, conforme o ponto de vista do leitor, pode ser considerado uma História da grande peste (1665). Os Editores

O furor da peste (Londres, 1665) “Era uma coisa muito triste ouvir as lamentações angustiadas das pobres criaturas moribundas pedindo um sacerdote para consolá-las e rezar junto, para aconselhá-las e orientá-las; clamavam perdão e misericórdia a Deus, confessando seus pecados antigos em voz alta. O mais valente dos corações sangraria ao ouvir todas as advertências dos corações dos penitentes moribundos, dizendo aos outros para não protelarem e adiarem seu arrependimento até o dia da desgraça. Um tempo de calamidade como aquele não era mais

hora para arrependimento, para suplicar a Deus. Gostaria de ser capaz de reproduzir o som exato daqueles gemidos e lamentações que ouvi de algumas pobres criaturas moribundas no auge da sua agonia e sofrimento. Gostaria de fazer aquele que me lê ouvi-los como os ouço na memória, pois o som parece ainda zumbir nos meus ouvidos.” Daniel Defoe (1660-1731) é o autor de Robinson Crusoe, cujo personagem e aventuras se tornaram verdadeiros símbolos da ética do capitalismo. Em Um diário do ano da peste, publicado pela primeira vez em 1722, Defoe já pratica, sob a forma de novela, um jornalismo que somente no século XX assumirá suas características definitivas, centradas na paixão pelo fato.

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