Um Auto Gil Vicente de Almeida Garrett

October 12, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
Share Embed Donate


Short Description

Download Um Auto Gil Vicente de Almeida Garrett...

Description

 

U M AU AU TO D E G IL VICENT VICE NTEE

DRAMA Representado pela primeira primeira vez em Lisboa L isboa no teatro teat ro da Rua dos Condes, Cond es, em 15 15 de Agosto Agosto de MDCCCXXXVIII PESSOAS

E L -R E I D O M M ANUEL I NFANTA D ONA B EATRIZ B ERNARDIM R IBEIRO G IL V ICENTE

B ARÃO DE S AINT-G ERMAIN D R . J OFRE P ASSERIO C HATEL B ISPO DE TARGA

PP AULA V ICENTE ÊRO S ÁFIO C ON ONDE DE D E V ILA N OVA G ARCIA DE R ESENDE

ORDOMO-M OR DE E L -R E I M U M P AJEM DE E L -R E I D ONA I NÊS DE M E LO ACO O J OANA DO TAC

Quatro Qua tro actores a ctores e duas actrizes de G il Vicente Vicente D ama s, cavaleiros, cavaleiros, escudeiros, escudeiros, falcoei fa lcoeiros, ros, moços-fidalgos, moços-fidalgos, moços do monte, reis-de-armas, arautos, passavantes, menestréis, archeiros, remeiros, marinheiros, pajens, escravos índios, pretos e chins Lugar da cena: Lisboa e Sintra

1

 

ACTO CTO PR IMEIR O O pá pátitioo ou largo dos paços paços de SiSintra ntra com a antiga antiga escada escadaririaa descobe descober-rta e praticável, fontes e tanque. À esquerda o palácio real; à direita e no fundo montes e arvoredos. Começa o crepúsculo da madrugada. Pelo meio da terceira cena terá amanhecido.

CENA I

PÊR O SÁFIO SÁFIO

Traz um papel Traz papel de solfa solfa meio enrolado, na mão, e passea passeando ndo lentamenlentamente como quem decora, canta por entre dentes: Niña la casó su padre, Muy hermosa a mara vi villa, lla, Con el duque de Saboya Que bien le pertenecía... P Ê R O S ÁFIO Pertenecía!... — Pertenecía, diz cá o castelhano do romance: em português tem mais que se lhe diga... — Psiu! que as paredes têm ouvidos, e paredes de palácio, ouvidos e bocas. (Deita os olhos à roda de si 

como quem se acautela; e torna a cantar:)

Niña la casó ca só su padre... Ora onde foi este mal-aventurado mal-aventurado de G il Vicen Vicente te buscar buscar solfa tã o encatarroada comosensabores. esta para uma função vodas —as enão vodas reais!cá—a Pois as coplas? — Se letra de e música animar brilhante bril hante e donosa garganta de uma certa pessoa... (afagando o pescoço)) desta feita perdes tua fama e nome, Gil Vicente, meu amigo e ço mestre, compositor-mor de momos e chacotas, comédias, tragicomédias e autos aut os por el-rei el-rei meu senhor que D eus guarde. (Canta:) Ya se parte parte la I nfanta, La I nfanta se partía partía D e la mui leal leal ciudad Que Lisbona se decía; La riqueza que llevaba Vale toda to da Alej Alejandria... andria...

2

 

CENA II

PÊR O SÁF SÁFIO, IO, BER NA NARD RD IM R IBE IRO , PPA AU LA V VICENT ICENTEE

Enquanto Pêro Sáfio canta os últimos versos, Bernardim Ribeiro embuçado na capa, o chapéu sobre os olhos, aparece com Paula Vicente no  pa  patim da da esc scaadaria à esq sque uerd rdaa. Paul Paulaa fa fazz sina sinall a B erna rnard rdim im de de que ali est estáá Pêro Sáfio. P AULA Olhai quem ali está. B ERNARDIM Pêro Sáfio, vosso devoto. Receais que tenha ciúmes? — Não me conhecerá. P AULA Receio que... q ue... Não qquis uisera era q ue ele ssoubess oubessee ta tanto nto como sabe. B ERNARDIM Antes ele que outro. — E deixai-o comigo.

(Desce as escadas pé ante pé, que não o sinta Pêro Sáfio. Paula fica imóvel contemplando Bernardim com ternura e ansiedade até lhe parecer  que está fora de risco de ser visto.) CENA III II I

PÊR O SÁ SÁFIO, FIO, BER NA NARD RD IM RIBEIR O

Bernardim vai-se retirando cautelosamente, mas no momento de pas sar  sar por por trás rás de Pêro Pêro,, est estee se vo voltltaa e dão fa face ce a fa face ce um co com m o out utro. ro. PÊR O Oh!, não se esconda, senhor embuçado, que já o desembuçou a minha pers perspic picácia. ácia. B ERNARDIM ( tir tirand andoo a espa espada da)) Arreda, q ue heihei-de de passar. PÊR O Passareis, passareis, senhor das  Sau  Sauddades; passareis como quiserdes, mas não sem vvos os eu conhece conhecer.r. Que por esta estass madrugada s por aqui, e tão recatado... só um homem que eu conheço — um louco de atrevidos pensamentos e desmesurada confiança... só ele e ninguém mais. — Ide, ide, que q ue este úl último timo capítulo da  Me  Menina nina e Moç a não está para durar muito... e D eus queira que não a cabe mal!

3

 

B ERNARDIM ( de desem sembuçando-s buçando-see e embai embainhando) Amigo, pois que me conheceste — que me não posso encobrir de ti — amigo, tem compaixão, compaixão, não nã o me percas. Confio Co nfio da tua lealdade q ue ma guardarás a mim, desgraçado e desvalido, a mim o mais infeliz...

(Dá com os olhos num anel que traz no dedo, beija-o repetidas vezes e  p  pros rosse segu guee em tom dife ifere rent ntee:) antes o mais afortunado homem que hoje vê vê na nascer scer aquele sol rad radioso, ioso, destoucaremdestoucarem-se se de nevoeiros aq aquelas uelas serras, viçarem esses arvoredos tão belos e tão verdes como as minhas esperanças!... — Pêro, meu amigo, eu sempre em ti descobri, com toda essa tua galhofa e zombaria, uma alma elevada, um pensamento grande, capaz de compreender as coisas altas. — Conhecem-te por cantares nos autos de Gil Vicente e em semelhantes momos, não sabem de ttii mais que os trejeitos e ledic ledices es com que ta nto ri essa corte sem alma , ess essas as da mas sem espí espírito, rito, esses esses fidalgos sem coração. Mas o teu é para muito, Pêro: tu és capaz de me entender. Para mais é a poesia da tua alma que para a do teu mestre Gil Vicente... que o tenho em muito, e muito vale; mas pesapesa-me me que se aavalie valie ele ele em tã o pouco. — Pêro, tu t u sabes que ninguém é por mim, que me não posso posso fiar em ninguém; que só, isolado no mundo... mundo ... vi vivo vo com minha saudasauda de, e para pa ra ela e por ela... P êro, eu precis precisoo de um amigo: q ueres sêsê-lo lo tu? tu ? PÊR O Precisas de um amigo, de um amigo que te entenda, com uma alma grande, capaz... não sei de quê — de subir, de trepar até à tua, aos teus pensamentos, à alteza de tuas sublimes inspirações — e não sei que ma is coi coisas sas de vers versos os e trovadores, que a í embrul embrulhaste haste em prosa, mas que soam como cascavéis de coplas! — Assim costumais sempre. — Ora traduzamos isto em romance, id est , em língua vulgar, e vem a dizer: — Bernardim Ribeiro, homem de prol e cavaleiro de ousadas empresas, meteu-se em camisa-de-onze-varas por certos amores que lho Diabo meteu na cabeça; andou a sonhar — ou a trovar que é o mesmo — por essas essas sserras erras de Sintra, fa lou com as mouras encanta encantadas das do C astelo, encomendouencomendou-se se à Senhora da Pena, esconjurou esconjurou a Lua L ua em verso, as estrelas em prosa... Ninguém lhe acudiu. E vendo-se extraordinariamente entalado, em vez de tomar a única resolução prudente e de siso siso que em ta l caso podia toma tomar... r... B ERNARDIM Qual era? PÊR O Ir de passeio por Colares fora, esperar maré propícia — e atirar consigo da Pedra de Alvidrar abaixo — único termo verdadeiro de seus fantásticos fant ásticos e des desvairados vairados amores. B ERNARDIM ( com paciênc paciêncii a) Ah!

4

 

PÊR O Sim, senhor. O deus do amor, e todas aquelas ninfas e deusas que nos mostra cá, em seus autos e comédias famosas, o amigo Gil Vicente, viriam recebê-lo; e passaria vida alegre e ditosa em terra... terra não, que a coisa era no mar — mas entre gente da sua igualha, coisas cois as do outro mundo; q ue trovadores e poetas não são na turais deste nem anda m correntes ppor or cá. B ERNARDIM É bem certo o que dizes, amigo. Um mundo de vaidades e fingimentos, um mundo árido e fals fa lso, o, em que a fortuna cega, os ssórdidos órdidos interesses, as imaginárias distinções corrompem, quebram o coração; — cujas leis iníquas fazem violência à liberdade natural das almas; — em que a amizade é um tráfico — e o próprio amor, o mais nobre, o mais sublime afecto humano, é mercadoria que se vende e troca pelas vis vis e mesquinhas conveni conveniências ências da terra... O h!... P ÊRO (arremedando-o com ênfase ridícula) Oh! este mundo está inabitável desde que as donzelas nobres deixaram de fugir com os escudeiros de seus pais — e que os reis entraram a usar da d a ttirania irania de casar aass infantas suas filhas com prín príncipe cipess de sua aliança, sem esperar que algum Amadis de Gaula ou de Grécia, ou... — Como se chama aq uele vvoss osso, o, aq uele famoso cavaleiro do voss vossoo livro das  Sau  Sauddades? Bimnardel — Narbimdel? coisa assim parecida — ou qualquer outro, lhas safe pelas seteiras do castelo, e vão fazer vida santa para uma choupana à borda de um ribeiro, já que fortuna injusta não deu a o guapo cavaleir cavaleiro. o. Nem torre em que hasteie sua nobre bandeira, Nem porta de vila que lhe encha a caldeira.

(Muda para um tom sério.) Senhor Bernardim Ribeiro, tomai conselho de um fraca-figura — Pêro do Porto ou Pêro Sáfio, segundo mais vos praza praza,, que a mbos os nomes tenho — vos vosso so ser servidor, vidor, moço da capela de el-rei, e uma das principais figuras dos autos e comédias do poeta G il Vi Vicente cente — es espos posoo q ue esp espera era ser da Senhora P aula Vicente, sua filha e minha dama, moça de espantoso saber e aviso, mas ingrata se as há, e desdenhosa como as que o são. I-vos em paz, que só eu, por ora, vos vi sair daquela aziaga porta. Paula guardará segredo, e eu também. Assim i-vos com Deus para vosso esconderijo da serra conversar com as fadas e duendes do castelo velho — em que, tão louco sois que estais vivendo como um anacoreta. — Olhai: a corte vai amanhã para Lisboa. Depois de amanhã se recebe a infanta com Messer de Balaison, barão de Saint-Germain, em nome do Duque seu amo. À noite, sarau, e o nosso auto (ou tragicomédia, segundo se diz agora por moda) — no qual eu, Pêro do Porto — ou Pêro Sáfio, como me chama o excomungado de Gil Vicente... — E pegou a alcunha; que até el-rei meu senhor — e as Senhoras, já não há senão: «anda cá, PPêro êro Sáf Sáfio io — ccanta anta lá, Pêro SSáfio áfio — vaivai-te te daí,

5

 

Pêro Sáfio...»— Só nunca tal me chamou Paula Vicente, minha dama!... Ora ainda hei-de averiguar a razão desta cortesia... Será que me não queira dar confiança? confiança? — Cachopa é ela para ta nto, que a não vi nunca mais sobre si. — Veremos. — O caso é que depois de ama nhã, sarau, dança e auto. E ao outro dia ... acabouacabou-se se tudo. — E ntendeisntendeis-me? me? — Acabo Acabouu-se se tudo: porq ue a muito ilustre ilustre e muito excelente Senhora Infanta D. Beatriz, filha do muito alto e poderoso rei o senhor, o Senhor D. Manuel, rei de Portugal e Algarves de aquém e de além-mar, etc., e, agora depois que voltou Vasco da G ama — da conquis conquista ta e na ve vegação gação da Etiópia, Ar Arábia, ábia, P érs érsia, ia, Índia... Ah! não ouvis o que vos digo! (Vai atrás dele repetindo com

muita mui ta pausa.) pausa.)

A Senhora Senhora I nfanta D ona B eatriz — Dona B ee-aa-triz triz parte parte no alteros alterosoo e soberbo galeão de teca, Santa Catarina do Monte Sinai, obra-prima da Ribeira das Naus de Goa, feita por calafates naires, carpinteiros samorins e mestres-velas sabaios. — Que Deus Nosso Senhor a leve a porto e salvamento. — E acabou-se tudo. Entendeis-me, Senhor D. B ernardim ou DD.. Bimnard Bimnardel... el... como quereis que vos chame?

(Bernardim, que tem estado distraído quase todo o tempo que falou Pêro Sáfio, repara apenas em uma ou outra palavra que o faz estremecer, inquieto e passeando à toa, e Pêro Sáfio atrás dele falando sempre: agora estaca de repente.) B ERNARDIM Mofino de mim! Que farei em tanta desventura! Quem se viu já tão felizz e tã o desgraçado! (Repara no anel que traz no dedo e torna a beifeli  já-loo muita  já-l uitass ve vezzes.) D oce penhor de uma esp esperança erança q ue mal eu via via em sonhos — que me começa a parecer realidade, oh!, se é verdade o que prometes... Mas quê! Não f oi este o sinal sinal da despedida — última, derradeira! Que ventura pode haver para mim se não torno a vê-la! Que me fazem as memórias do prazer onde me não ficam senão mágoas! FezFez-sese-me me o prazer ddaa má goa maior; e já me pesa pesa ma is do bem que tive que do mal que me aguarda. Oh!, pensamento de minha alma, porq ue tão alto subi subiste! ste! E , se tanto ous ousaste, aste, porque porque não morres aí que te não torne a ver a terra! PÊR O Essa é minha opinião e voto em cortes. Que morra, já que para viver não é. B ERNARDIM Amigo Pêro, tu t u sabes o meu segr segredo, edo, o segr segredo edo da minha vida, o mistério inefável de minhas divinas tenções... Há segredos que matam: sabes? Que trazê-los na memória é trazer a morte consigo — que deixá-los vir aos beiços é como sorver peçonha com eles. Entendes-me? Ver-nos-emos em Lisboa amanhã.

6

 

PÊR O Sempre ao vosso dispor. (Aparte.) Maldito seja ele e o seu segredo! (Alto.) De manhã Pêro Sáfio vosso cativo; à noite, Marte, deus da guerra que vou às Cortes de Júpiter , no auto assim intitulado de meu digno mestre G il... il... B ERNARDIM Basta com esse bobo de Gil Vicente e seus autos, que já me enfadam ele, tu e vossas vossas comédias, que assi assim m tra trazem zem embelecada esta corte de comediantes, que de mais ma is nnão ão cuidam. — O h! sublime iinsp nspiração iração dos d os anjos, ardente linguagem de q uerubins, uerubins, vvida, ida, ffogo, ogo, aamor, mor, luz — cântico de serafins que amam e ado adoram, ram, divina poesi poesia! a! e por vi vilancetes lancetes de salões, por coplas de jograis, saltimbancos te trazem prostituída! E assim, assi m, e só a ssim ssim te conhecem e t e entendem — q ue em tua si singela ngela e severa beleza não é para tais compreender-te! — Bem me chamam louco: devo de o parecer; não há dúvida. E até eu me tenho já por tal. Que importa? — Uma só vez tornar a vê-la; uma só vez ainda o Céu cá na T Terra; erra; e para pa ra q ue quero eu mais a vida! PÊR O Ouço vozes. — H ão-de ser os italianos que costumam mad madrugar rugar aq ui em Sintra para anda rem embasbacad embasbacados os por es essas sas dev devesas. esas. — D eve de não haver pedras nem despenhadeiros em Itália, para fazerem tanto espanto esp anto destes quebraquebra-costas costas de Sintra. BBom om será que o nã o vej vejam am no pátio a esta hora. — (Aparte.) Aqui estou eu, sem sem qquerer: uerer: feito confidente e protegedor da d a ma is pperigos erigosaa a ventura... que me pode custar... (Afagando a garganta ) .) uma afinação de gorgomilo que nunca mais desentoe. — E q ue lhe heihei-de de eu fa zer? — (Alto.) Senhor Bernardim, vem gente: creio que são os italianos, os embaixadores de Sabóia. Vá-se, Vá-s e, por D eus eus,, se não quer ser causador ddee grandes desgraças, se é que tem em alguma conta a fama, a vida, a honra de quem... de quem... B ERNARDIM De quem não é para teus lábios nomear — para os de nenhum homem que queira viver um minuto mais. (Lança mão ao punhal que traz no seio; Pêro estremece, e ele continua.) Eu vou-me, Pêro. — A que horas é o Auto? PÊR O Às oito oito hora horass começará. B ERNARDIM (como quem lhe acode de repente uma lembrança) Levam máscara as figuras? PÊR O Máscara?... Só se for a moura — a moura encantada que vem no fim. É verdade, sim, de máscara há-de ir a moura Tais, a que entrega o anel à infanta-duquesa. B ERNARDIM Como disseste? Um anel?

7

 

PÊR O Pois não sabeis o enredo do auto, das Cortes de Júpiter , composto para este casamento e f estas reais reais?? As C orte ortess de Júpiter , coisa magnífica, são os deus d euses es todos princip principais ais que se juntam juntam em cortes no C éu para avisarem e concertarem no melhor modo e mais grandioso de ir ao bota-fora do galeão, e acompanhar a infanta-duquesa por esses mares abaixo; fazer-lhe leda e próspera a viagem, e a levar sã e salva a terras de Sabóia. (Bernardim suspira, Pêro continua.) Suspirais? Também eu; ma s é porque ainda não sei de cor todo o maldito ma ldito papel de Marte que me arrumaram. E Paula que faz a Lua! E eu ao pé dela!! Temos eclipse, e perco-me; esto dela estouu vendo. B ERNARDIM Aviai já, e concluamos. PÊR O Agora, agora mano da minha alma. Hoje por vós, amanhã por nós: chegou-me chegoume a minha vez de ternura. — Mas Ma s is isto to comigo pa ss ssaa d epresepressa. — Já lá vai. — Vêm então os deuses a cortes por ordem de Júpiter. G il V Vicente icente é o Júpiter desta feita; eu Ma rte, como já vos disse; G arcia Peres o Sol; Pa ula também já vos contei... contei... B ERNARDIM A Lua, bem sei, bem sei. Por vida tua acaba, homem. Juntam-se as cortes; falam muito, não fazem nada. Esse é o costume; sabemos. — Não me enfades enfa des mais mais.. PÊR O Pois fazem alguma coisa desta vez as cortes (e não fique de mau exemplo:) exemplo:) distribu distribuem em os llugares ugares para o cortejo da partida — e por fim desencantam a famo famosa sa moura Tais, filh filhaa ddoo a ntigo rei do Algarve, mágicaa a famada , a q ual mour mágic mouraa tem um a nel de condão condão q ue adiv adivinh inhaa tudo; e o anel é obrigada a moura por Júpiter, creio eu, a entregá-lo à infanta minha senhora. Com o que acaba o auto; e nós todos cantando e da nçando coa lin linda da chacota. Por el rio me llevad, llevad, bailando e folgando, nos vamos cada um a seu pouso. Senhores e damas ficam dançando no sarau. E eis aqui como amanhã à noite se diverte e passa o tempo o muito alto e poderoso rei D. Manuel de Portugal, e toda a sua corte. B ERNARDIM (impaciente) Bem, bem. Quem faz a moura? PÊR O A moura! Oh! isso isso é a mal-en mal-entroux trouxada ada de J oana do Taco. Taco. Aquele demónio, Deus me perdoe e eiramá a tome — que é tal como a Maria Parda das trovas de mestre Gil. Nunca tal papel fará em termos: se

8

ela está sempr sempree De profundis!  B ERNARDIM Folgaria bem o meu amigo Gil Vicente que outrem lhe aparecesse para a f igura igura da moura?

 

PÊR O Se folgaria! B ERNARDIM Bem: não lhe digas mais nada. PÊR O Que lhe hei-de eu dizer se vos não entendo? B ERNARDIM Não digas que falámos nisto. Cala-te que é o maior serviço que me podes fazer. PÊR O E acha q ue é pou pouco! co! B ERNARDIM Não acho, não. Bem sei quanto te há-de custar. E mais será se falares, que a vida te custará. É gra nde o papel da moura? PÊR O Nada. Três ou quatro coplas  p  pro ronu nunx nxiad iadaas à moirixc oirixcaa com muitos ax xess e exxes. É o ma is soez e ranço que ainda compôs mestre G il.  xe B ERNARDIM Embora. — C anta a mou moura? ra? PÊR O Não. B ERNARDIM Óptimo. — Feliz, feliz lembrança! PÊR O Alegre estais! estais! Tão pesado e triste ainda agora ! — D ar-v ar-vosos-ia ia no miolo ser comediante? Olhai que acertáveis: escorreito de tristezas vos prometo eu que ficaríeis. É a mais bela, a ma is di ditosa tosa profiss profissão. ão. B ERNARDIM Tens razão, a migo: e a melhor, a mais útil que há. O h! minha vida, que ainda uma vez te vviv iverei. erei. Uma só e derradeira! M as que importa! PÊR O I-vos já, que realmente ouço vozes, e devem de ser os italianos. (Vai  são. P or vida voss vossaa q ue não ffiqueis iqueis mais aq ui. ver.) — Eles são. B ERNARDIM Até amanhã, meu Pêro. (Abraça-o.) CENA IV

PÊR O SÁFIO SÁFIO (só) P Ê R O S ÁFIO Até amanhã! E dia de juízo seja esse amanhã para ti, mofino poeta namorado, queeutão e saudoso és. EPamais, não deixas: deix as: aass ssim im viva vivadolorido e com minha senhora ula mesaudades ca case. se. —me O pior é que ele tem razão. Eu sei — inda mal! — o terrível segredo que o ato atormenta. rmenta. Ma çã de ciênci ciênciaa q ue se me atra ves vessou sou no gorgomil gorgomiloo como

9

 

a nosso pai Adão. Serpente que entraste no Paraíso, que tentaste Eva, quem me mandou a mim ver-te a falar? Se houve maçã que comer, não tive eu quinhão nela, que Pêro sou, e não é de pêros roer maçãs. Mas cá a tenho engasgada todavia. Tomara-me eu ver fora disto — ou fora daqui, e para bem longe quem causa tudo isto. — Vamos, vamos: casarás, ama amansarás. nsarás. Seu marido de Sa Sabóia bóia qque ue se ave ave-nha lá com esses debuxos. Que tenho eu com isso? O negócio é de Sua Alteza Ducal, não meu. — Oh! aí vem Monsior Chatel. Refinado sonso de ita liano, vem, que em boa hora vens. sonso vens. Não hás-de hás-de ser tu, com toda a tua italianice ou saboiice, que me hás-de apanhar. — Sentido na língua, Pêro Sáfio, meu amigo, que é o teu fraco, e o forte destes meninos embaixadores e de seus secretários. O tal Monsior Chatel cuida que os Portuguesinhos são umas crianças. Enquanto lá os embaixadores do duque — o Senhor Barão de Saint-Germain, todo galante e cortesão, o Senhor Doutor Passerio, todo grave como um Bártolo, andam intrigando com condes e marqueses e desembargadores do paço pa ço — vem o senhor sec secretário retário espreitar cá por baixo, e tirar língua pela sala da Tocha. C uida qque ue é a sala ddas as Pegas ali a li dentro! Pois esta não há -de ser palrei palreira, ra, q ue capaz sou eu de me comer a língua se me ela comer muito — com a sua comichão costumada .

(Faz cortesia a Chatel que se vem chegando.)

CENA V

PÊ RO SÁFIO, CHA CHAT TEL C HATEL Belo dia, bela madrugada, senhor Pêro! E já a aproveitastes bem. Tendes gozad o a frescura da manhã neste delicioso sítio, sítio, creio eu. São de uma formosura sem igual as manhãs em Sintra. Na nossa Itá lia tão bela não há cois coisaa q ue riv rivalize alize com este este oásis, este este jardim de delícias. — Tendes aí um pa papel pel que vos dá muito que ffaze azer.r. P ÊRO (que tem estado a fingir muita atenção ao seu papel) É o meu papel de Ma rte para o Auto de amanhã. E studo studo a sol solfa. fa. C HATEL Ah! também admite o canto o teatro português! Verdadeiramente não se imagina em Itá lia, nem em França, como os portugueses portugueses es estão tão adiantados nas artes. O vosso Gil Vicente é um prodígio: prodígio natural — e também pouco cultivado. Se ele conhecesse os clássicos; se, como o nosso Ariosto, soube soubesse sse imi imita tarr Terêncio Terêncio e Aristó Aristófa fanes; nes; se

10

aprendesse e as regras de art arte!... e!... P Ê Raprendess O Havia de ser um sensaborão insulso e insípido segundo a arte; havia de marca r seu eng engenho enho natura natural,l, e...

 

C HATEL Pode ser, pode ser. O D ante ttambém ambém desprezou as regras — ou fê-l fê-las as novas... — Com que, vamos amanhã até Lisboa. Vai toda a corte; não é assim? E o sara u há-de ser esp esplêndido. lêndido. El-r El-rei, ei, a rainha, ooss senhores senhores todos costumam dançar nestas ocasiões, ouvi eu. Mas é impossível que não haja — há-de haver um certo resguardo, escolha nas pessoas... Nós somos amigos cá sem cerimónia: (Pêro Sáfio parece enfadar-se ) .) e entre a migos é que a gente fafalala nestas coisas.. coisas.... — D izeiizei-me. Estas damas que vão com a duquesa minha ama... são da primeira fidalguia, sem dúvida; e gentis são, bem vejo; — galantes e avisadas... Muito cortejadas haviam de ser por tanto ma ncebo ilustre, ilustre, tant tantoo guapo cavaleiro que anda na corte. Não Nã o é ver verdad dade? e? PÊR O Perguntai-me Perguntaime por a utos e comédias, senhor sec secretário; retário; que eu criado sou de el-rei, mas não curo senão deste meu mister de músico que Sua Alteza tanto estima. C HATEL E com razão, amigo Pêro, com razão. El-rei D. Manuel é um Augusto, um Leão X; bons exemplos segue. PÊR O El-rei de Portugal não é para tomar, senão para dar exemplos. E ainda nenhum príncipe lhe tomou a ele o de mandar descobrir mares e terras ao cabo do mundo. C HATEL Bem dizeis, amigo, bem dizeis. Nenhum príncipe fez tantos serviços à Cristandade! Assim ele não recusasse admitir o santo tribunal da Inq uis uisição, ição, que tã o precis precisoo lhe é. Ma Mass tempo vi virá... rá... PÊR O É o tribunal que queima a gente? C HATEL Os hereges, hereges, e os Judeus, meu amigo; não é a gente. PÊR O B oa vai ela! — E entã o elel-rei rei não o quer? C HATEL Não se res resolve. olve. — Oh! , se foss fossee o prínci príncipe pe D . João! J oão! Santo príncipe! príncipe! PÊR O Abençoado seja el-rei nosso senhor! Deus o conserve! C HATEL É uma excelente e exemplar família a Real Casa de Portugal. — Que formosa e avisada não é a Senhora Infanta D. Beatriz, que amanhã será duquesa de Sabóia e minha ama! — O duque meu senhor há-de amá-la e respeitá-la como nunca o foi princesa alguma. É a jóia mais preciosa preci osa que vai ter a coroa ducal de Sabó Sabóia. ia. P Ê R O (aparte) E para engaste da jóia não leva mau ouro no dote. — Que nos levem estrangeiros, a troco de palavrinhas doces, o que tanto custa a ir desenterrar na Mina — a lavrar às espadeirada espadeirada s na Índia!

11

 

C HATEL Dizíeis?... PÊR O Nada. R epe epetia tia o meu papel de Marte. C HATEL É muito moça a infanta; e tem contudo um cabedal de instrução que admira.. Lê muito — ffolga admira olga com livros de... ccavalarias avalarias e ca ncionei ncioneiros... ros... protege muito os homens de letras... — A propósito, que é feito do seu mestre de literatura e poesia? Homem de gosto; não era? E raro talento. Um tanto entusiasta, cuido eu. — E poeta? Não? Conheceis-lo? — Creio que ainda o não vi na corte. Não vem jájá aaoo paço. — Era moço, ouvi dizer, e gentil-homem, mas deixou-se do mundo, e foi viver como ermitão para a serra. — Dizei-me, Pêro amigo, conheceis este tal B ernardim R ibeir ibeiro, o, de cujos versos versos e prosas tanto se fa fala? la? PÊR O Co Conheçonheço-oo de o ver com G il Vi Vicente, cente, a q uem muito conversava. conversava. C HATEL (com vivacidade) Ah! eram a migos migos?? P Ê R O (aparte) Querem ver que disse alguma! O diacho te açaime a língua, Pêro de uma figa. — (Alto.) Hum! amigos... amigos... como homens de letras — já se sabe — oficiais do mesmo ofício. C HATEL Mas Ma s Berna Bernardim rdim é pes pessoa soa de na sci scimento, mento, cavaleiro... PÊR O Sim é, mas dado dad o e lhano; e nunca se correu de sser er noss nossoo amigo, e de nos tratar como seus iguais. — As letras... (Aparte.) Cala-te, maldito. C HATEL As letras, dizeis bem, são uma república em que não há distinções. — Mas, Senhor Pêro, este nosso literato ou poeta Bernardim, dizem que é homem de altivos pen pensamentos, samentos, orgulhos orgulhoso... o... PÊR O D e seu mérito, devi deviaa sê-lo; sê-lo; mas não nã o é. C HATEL Bem, bem: tanto melhor... (Ouvem-se as charamelas e sacabuxas dos menestréis de el-rei.) Que música música é esta esta?? PÊR O E ll-rei rei que sai. — Já por aí senti os falcoeiros falcoeiros;; mas não me parece dia para caçar. ca çar. É pa pass sseio eio talvez.

12

 

CE CENA NA VI VI

EL-REI DOM MANUEL, INFANTA DONA BEATRIZ, BISPO DE TARG A, GI L VICE NT NTE, E, B ARÃO D E SAINT SAINT--G ER MAIN, DOU TOR JOFR E PA PASSERIO, SSERIO, PA PAUU LA VICENT VICENTE, E, G ARCIA DE RE SENDE, CH ATEL, PÊ RO SÁFIO, COND E D E VILA NOV NOVA, A, DAMA DAMAS, S, FIDALG OS, ESCUD EIR OS, MOÇOS DO M ONT ONTE, E, FFALCOEIRO ALCOEIRO S, etc . D OM M ANUEL Não esta tornará s a vertãotãoviçosa, cedo — talvez nunca mais — Beatriz. es estes tes belos montes, verdura estas águas tão frescas, Diz-lhes adeus, que bem to merecem, fil filha. ha. D ON A B EATRIZ E que saudades sauda des le levo vo delas, meu ppai! ai! Oh! , ningu ninguém ém é capaz ddee as sentir como eu. D OM M ANUEL As sauda sauda des queremos nós para nós, eu e teus irmãos, e a rainha ra inha que q ue tanto te quer. — Oh! e por saudades — (Com intenção, e observando os embaixadores de Sabóia) o nosso Bernardim Ribeiro, o homem das  Sauddades, que é feito dele? Não te vem beijar a mão, Beatriz; despe Sau dir-se dirse de ssua ua aama, ma, q ue deix deixaa pa partir rtir tão despeg despegada ada mente... Ora creiam em afeições de melhor poetas! em Belamente escreve amores. Ninguém o fez nossa língua. — de Nãosaudades é assim, eGarcia de Resende, ( G arci arciaa de de R esende sende i nclina-se) que depois que a ele tratou, parece outra? Mas estes escritores costumam-se a sentir e pensar com o papel e a pena; tirados daí, não são já os mesmos. — Se ele quisesse ir para a Índia, far-lhe-ia mercê. Carecemos de quem faça crónica de tantas gentilezas que por lá se obram. — Serás contente, B eatriz, que ddesenterre esenterremos mos o teu apa ixonad ixonado, o, dessas bren brenhas has por onde anda, e o tornemos ao mundo? D ON A B EATRIZ (que suspira e estremece por vezes durante a fala de el-rei) Meu senhor e meu pai, já que de mim dispusestes, e pois que Vossa Alteza me dá a outrem, nã nãoo devo ter, nem tenho, pens pensamento amento ou empenho senão para minhas novas obrigações obrigações.. D OM M ANUEL Obrigações, vamos, e prazeres também: que hás-de ser uma ditosa e festejada festej ada noiva: esposa esposa de um ga galante lante príncip príncipe, e, senhora de gra nde estado, e feliz como merece a minha adorada Beatriz. — Não é assim, barão? ( A Saint-G erma rmaii n, que que se i nclina.) — Doutor Passerio, ( o doudoutor inclina-se) a duquesa, vossa ama que há-de ser amanhã, é grande devota de letras e letrados: na vossa Itália, onde estão em tanta honra, háhá -de acha rr-se se como em terra sua. P ASSERIO Todos receberão das inspirações de tão excelsa musa o incentivo para serem dignos dela.

13

 

C HATEL ( ba baii xo a Sai Sai nt-G nt-Geermai rmai n) El-reii que fa la aass El-re ssim im S AINT-G ERMAIN ( ba baii xo a CChat hateel) Não há nada do q ue ssee pens pensava. ava. A infanta é vi virtuosa rtuosa e sisuda. sisuda. C HATEL (aparte) Será; mas aqueles olhos são de namorada — ou eu não sou genovês. D O NA B EATRIZ ( ba baii xo a Paula Vi Vice cente nte)) Pa ula, eu sinto morrermorrer-me. me. Se me não deixam, deixam, se continuo neste passeio, com este tormento — aqui ficarei de vez em Sintra — morro. Oh! , se o permitis permitisse se DDeus! eus! P AULA ( baixo a D . Be B eatri atriz) z) Ânimo, senhora! senhora! vede elel-rei rei que parece convers conversar ar com G arcia de Resende — e que não nã o tira os o s olhos de nós nós.. D O M M ANUEL Doutor Jofre Passerio, respondido como digno poeta italiano — sempre sempre brilh brilhante! ante! Também fa zeis traição a B ártolo — cá me disse Garcia de Resende. — Hei-de-vos denunciar ao reverendo B ispo ispo de T Targa arga que presente ssee acha , e a quem ta mbém às vezes sucede troca rr-sese-lhe lhe o breviár io pelo Virgílio. Não é Virgíli Virgílio, o, meu digno prelado? B ISPO DE TARGA O exemplo exemplo de Sa Santo nto Agostinho... D O M M ANUEL B em sei — e que era bispo bispo af africano ricano como vós — mas cansavacansava-me me um tanto mais com as suas ovelhas getulas e númidas. — Não é assim, Garcia de Resende? ( G arcia de R ese sende nde i nclina-se.) nclina-se.) Lá ides para Itá lia, Senhor Bispo; e o Santo Pa dre que componha essas coisas. coisas. Sua Santidade folga com versos latinos. Se lhos não quereis fazer, aí tendes André de Resende que vo-los fará como qualquer poeta pontifício. — E André que os faz em todas as línguas, cuido eu. — Mas perdoem-me todos, que para mim ninguém compõe trovas que tão bem me saibam como o nosso G il Vicente Vicente nos seus seus autos — que são meu único refrigério e distracção de tantos cuidados e trabalhos. — Gil Vicente, vinde cá, homem, não vos escondais, que sois homem para se mostrar em q ualq ualquer uer parte. T Todos odos aqui a qui são vossos amigos. Receais que o A  Aut utoo das B arcas rcas vos pusesse em mau cheiro para além dos Alpes? Alpes? Estes cavalhei cavalheiros ros ssão ão ddee Sabóia e não ma ndam dizer d izer nada para Roma. G IL V ICENTE Vossa Alteza bem sabe que não sou medroso. Quando eu fiz o

C lé léririgo go da da Beira...

14

D O M M ANUEL Essa é a melhor farsa fa rsa que nunca fizeste. G IL V ICENTE Nunca me escondi de priores nem de cónegos, e mais... D O M M ANUEL E ma is não lhes falta ria vontade de te ensi ensinar. nar.

 

G IL V ICENTE E no dia depois do  Juiz da da Beira jantei com dois desembargadores dos agra vos vos.. T Tudo udo pode o exempl exemploo de tolerância e liberdade com q ue Voss ossaa Alteza nos ensina a todos. D OM M ANUEL Barão, podeis dizer em Itália que nem só de marfim e especiarias se trata na corte de Lisboa. Trazemos guerra, e mandamos nossos galeões a pelejar e traficar, nas quatro partes de que hoje — graças aos nossos pilotos! pilotos! — se compõe o mundo mundo;; ma mass em casa cultivamos as artes da paz. P ASSERIO Os soberanos de Portugal são a admiração do universo. Mas Vossa Alteza não se digna permitir que os nossos pilotos genoveses reclamem alguma parte da glória marítima de suas desc descobertas? obertas? D OM M ANUEL Por Deus! que bem pouca lhes poderemos conceder, Misser Jofre. Aqui esteve esteve Cris Cristóvão tóvão C olombo; e a ffalar alar a verdade, verdade, grande na naveg vegador ador era e homem de altos pensamentos e ânimo grande. Mas os nossos cosmógrafos não entendiam (e tinham razão) que fôssemos cometer tamanhos riscos para ir encontrar terras do Tártaro. Que a essas ia, e essas cuidou descobrir o vosso Colombo, que supunha o nosso globo mais pequeno do d o que q ue lhe ele ssaiu. aiu. — E a ssim ssim mesmo, se não fo foss ssem em os papéis de Perestrelo que levou para Castela, não seriam hoje tão aumentados os Estados do imperador meu cunhado. — Nós não fomos perguntar perg untar a G énov énovaa ou a Venez enezaa como se dobrava o Ca bo das Tormenta s — nem Pedr’Álvares desc descobriu obriu a tterra erra ddee Sant Santaa C ruz pelos roteiros de Colombo e Vespúcio. — Mas isto é tarde. A manhã não está para ga gavi viões. ões. Da Daremos remos uuma ma volta passeando. — Amanhã em Lisboa não faltarão faltarã o negócios negócios.. Mo Monteironteiro-mor, mor, manda i embora os falcoeiros falcoeiros..

(Dona Beatriz senta-se em um poial de pedra como quem está angustiada. Todos a rodeiam.) D OM M ANUEL Que é isso, Beatriz? Cansámos-te com tanta conversa aqui parados, não é assi assim? m? D ON A B EATRIZ Não estou boa; passe passeii muito mal a noite. Se Vos Vossa sa Alteza me permite, ficarei em casa. Não Nã o é na nada: da: estou fraca, e custa-me ir ppassear. assear. D OM M ANUEL Fica embora . D eixar-teeixar-te-ei ei o conde de Vila Nova... ou o bis bispo po para te fazerem companhia. D ON A B EATRIZ Não, meu pai, não preciso de tanta gente. Paula ficará comigo, e é basta. D OMquanto M ANUEL Senhor Bispo capelão-mor, ficai com vossa ama. Adeus, filha; não tardaremos.

15

 

CE NA VII D ONA BE ATRI Z, PA PAUU LA VICENT VICENTE, E, BI SPO D E TARG TARG A D O NA B EATRIZ (levantando-se) Senhor Bispo capelão-mor, é nossa real vontade ficarmos aqui sós com Paula Vicente, nossa criada. Vossa Reverência há-de ter provavelmente as suas devoções... B ISPO DE TARGA Tenho, minha senhora; e obrigações ta mbém: aagora gora principalmente principalmente a de obedecer a Voss ossaa Alteza. (Beija-lhe a mão, e parte.)

CE NA VIII D ONA BE ATR IZ , PPAULA AULA VIC ENTE ENTE D O NA B EATRIZ Eu abafo, Paula, estalo! — Sinto que se me esmaga o peito debaixo deste peso. — Ai meu Deus! — Tu ouviste o que aquele homem me disse esta noite? Ouviste tudo? — Que homem, que louco; mas que amor! Mas que alma, mas que coração aquele! — Sabes que mais Paula? E u amoamo-oo como ele me ama. P AULA Já o sabia. sabia. D O NA B EATRIZ Quem to dis d isse? se? Não eu. P AULA Não. D O NA B EATRIZ Nem ele, que o não sabe, — Espera, adivinha... E eu que lho encubro, Paula! P AULA Muito bem, dando-lhe d ando-lhe um anel em si sinal nal de f idelidad idelidadee e... D O NA B EATRIZ E amizade, Paula: pois não há fidelidade entre amigos também? Tomara-lhe eu dar a minha vida, o meu sangue, e tudo quanto sou e valho. — E mais ainda lhe ficava devedora. Oh! como aquele infeliz me ama! P AULA Mas Ma s casaicasai-vos vos amanhã. D O NA B EATRI z Meu meu Deus, Paula, que lhe hei-de eu fazer? — Que farias tu no Deus, meu caso?

16

P AULA Oh! cá eu é muito diferente. Quem não é princes princesa... a...

 

D ON A B EATRIZ Que faz, Paula? P AULA Morre. D ON A B EATRIZ Morrer! Tomara eu. Mas meu pai... P AULA Aquele homem era digno de melhor fortuna. D ON A B EATRIZ Fortuna, fortuna! Que me importa a mim a fortuna, ou a ele? Amor, amor é que nós precisamos... Paula, minha querida amiga, se eu pudesse vê-lo vê-lo outr outraa vez! Se tu q uises uisesses... ses... P AULA E u! D ON A B EATRIZ Tu; que não temos outro ninguém que no noss valha; tu q ue ju juraste raste proteger-nos, tu que... P AULA Eu q ue sou. sou..... D ON A B EATRIZ A minha amiga, a minha verdadeira amiga. Paula, quero vê-lo. Aquela despedida despedida de ont ontem em não me basta. Ama Amanhã nhã serei italiana; hoje sou sou portuguesa ainda , pertençopertenço-me me a mim. Que me pode suceder? Morrer, matarem-me mat arem-me?? P AULA D ifama ifamarr-se, se, perder a honra! D ON A B EATRIZ Isso nunca. Sou filha de el-rei Dom Manuel, sou uma infanta de Portugal,l, sei Portuga sei o que devo a mim e aos meus. P AULA A maledicência não poupa os príncipes. D ON A B EATRIZ Porq uê? J á o vi, vi, já lhe falei alguma vez que não estiv estivess esses es tu ao pé de mim? Não ouves qua quanto nto me diz, não lês quanto me escrev escreve? e? P AULA (aparte) Inda mal! D ON A B EATRIZ Há maledicência, há calúnia que possa manchar amores tão inocentes? P AULA Inocentes! Vossa Vossa Alteza é desposada, e ele é... D ON A B EATRIZ Não digas, Paula, não digas, que me ma tas. T Tem em dó de mim. Vamos, Vamos, minha amiga, vamos ao meu quarto, e concertaremos... Oh!, meu D eus, que eu não resisto; resisto; morro, morro d esta angústia!

17

 

ACTO CTO SEG U NDO Os paços paços da da Ri R i be beii ra. G rande salão no esti estilo lo de B elé lém: m: é góti gótico co florido flori do inclinando fortemente à renascença. Tochas e placas com luzes. CENA I

PA PAUU LA VIC ENT ENTEE s  sóó, G IL VICENT VICENTEE de dentro, depois um pajem mourisco

Paula, vestida de túnica e manto roçagante está sentada ao pé de um bufete e como absorvida em profunda meditação. Sobre o bufete coroa e ceptro — alguns papéis. P AULA E aqui está a minha vida! O que eu sou, o que eu valho, o para que me querem — uma comediante!... É o meu destino, vivo para isto, nisto se gasta uma existência. — E deu-me Deus alma para compreender a vida! Sente-me o coração, concebe-me o espírito quanto podia, quanto devia ser alta e sublime a minha missão na terra — e pobre, e sujeita, sujeita, e humil humilde, de, e mulher mulher sobretudo... até a té estas a sp spirações irações me são vedadas, hei-de afogá-las; hei-de afogá-las, hei-de enterrá-las no peito antes a ntes que ninguém saiba que na sce sceram, ram, e cobri-lo cobri-lo de leviandad es e abjecç abjecções ões para não ser cri criminos minosaa ou ridícula! ridícula! G IL V ICENTE (dentro) Paula! P AULA Meu pai! G IL V ICENTE (dentro) Ouve cá, filha. P AULA (levantando-se) Eu vou, meu pai. — Mais algum aborrecimento com esta maldita comédia! Comédia, comédia! Tudo é representar e fingir nesta vida de corte. Que foss fo ssee para os grandes em quem é natureza natureza,, não lhes cus custa. ta. Ma s para ooss pequenos também... é supl suplíci ício. o. — Aqui está a minha coroa, o meu ceptro: vou sser er rainha meia hora; vou ser grande, vou ser admirada, a plaudida, plaudida, festej festejada ada mei meiaa hora. (Pegando na coroa  ).) É de ouripel o meu diadema diadema:: os outros de que são? — Acabada a comédia valem mais do que este? — Oh!, vida, vida! G IL V ICENTE (dentro) Pa Paula, ula, que é tempo de começ começar ar o ensaio. P AULA Estou estudando a minha parte. G IL V ICENTE (dentro) Pois avia.

18

 

P AULA Quem tivera aquela paixão de arte que o domina, aquele entusiasmo pela beleza ideal desse mundo de ficções que se criou e em que vive; aquela cegueira ditosa que lhe não deixa ver a miserável realidade que o cerca! Meu pobre pai, como ele vive enganado! Inda bem. — Cuida que o avaliam, que o entendem. As sublimes criações do seu engenho, as graciosas pinturas de seu estilo, aplaudem-nas. Como, Co mo, porquê? — Porq ue é moda, porque os fazem rir às vezes. vezes. Sem o salvo-conduto salvo-conduto de bobo e chocarreiro, morri morriaa de fome o grande poeta. — Nã o o conhecerá ele? Às ve vezes zes des desconfio confio que sim: quer-me parecer que de propósito busca iludir-se, e foge da realidade porque a teme. — Assim fizera essoutro infeliz, essoutro espírito elevado que de suas imaginações tão altas a ltas aí se despen despenhou hou agora . — Que duas almas tão tã o semelhantes e tão diversas!

( E ntra um pa pajenzito jenzito mourisco mouri sco e entrega-lhe um bilhete.) bilhete.) Um bilhete! De quem? (O pajem faz sinal de não saber.) — Agora verei. (Abre e lê.) Ah! sim. — Já me admirava, desde esta manhã que chegámos de Sintra, nã o ter no novas vas dele. — V Veio, eio, está aq ui. — Iss Issoo esperava. — Está bom, (ao pajem que logo se retira) podes-te ir. — Que me quererá ele? A mim deseja falar por acaso de vida e de morte... e a meu pai também! E não se esconde de Pêro; antes parece... (afirma-se na carta) que dele faz confidência. Grande estranheza! — (Torna a olhar para a carta.) Não assinou o prudente cavaleiro. Nem era preciso; preciso; bem sabe como lhe conheç conheçoo a letra. — Oh! e quem se havia de enganar engana r com este teor ddee escre escrever! ver! Ma s que vies viesse se de outra mão, só Bernardim Ribeiro podia escrever assim. (Lê) «S e m mee não desamais já tanto, que me queirais ver morto de paixão e angústia, fa zei com que vos pos possa sa fa falar lar já, nesta hora, e a sós ccom om vosso vosso pai. — Não é segredo para o nosso bom Pêro. — Sabeis que vos amo... quanto quereis, e que vos mereço compaixão.»(Fala.) Que vos amo quanto qua ntoVicen q uereis uereis! PPorque orque enjei enjeitei tei seuddooggalanteio alanteio a trevido, porque eu, Pa Paula ula Vicente, te, !a — ffilha ilha do comediante, jogral, do chocarreiro — como lhe eles chamam ao maior poeta que ainda teve esta nação de bárbaros — porque eu, eu filha do poeta pobre, não quis aceitar o cortejo do poeta senhor e cavaleiro... — cuida que o não amo, o louco! — Que mal entendem o coração da mulher estes homens dos livros — e eles todos! — Que o não amo, que não quero o seu amor, que me contento desta amizade que fingimos entre nós, ele para cobrir sua indiferença, eu para enganar minha paixão! — Eu, eu que daria a vida vida para ser ser amada (mas amada — requestada, não) por um homem como como B ernardi ernardim! m! — Q ue o não a mo! E u que me si sinto nto ralar de ciúmes cada vez que penso... — É bela, é grande dama. Não representa comédiasrica de eseu pai — noutras o farálhe —deu nãoadiverte público públi co —nas é senhora, poderosa... M Mas as quem lma parao entender aquela alma? Ah! — Aí vem meu pai e toda a caterva do Auto. Dissimulemos.

19

 

CENA II

PAU LA VICENT VICENTE, E, G IL VIC ENT ENTE, E, PÊ R O SÁFIO, JOANA DO T TACO, ACO, ACTOR ACTOR ES e ACTRIZES ( Uns já j á vestidos vestidos para para o Auto,

outros acabando acabando de se preparar.) preparar.)

G IL V ICENTE Se to digo, Joana , que em má hora me meti a f azer-te azer-te moura. ACO O J OANA DO TAC Tão boa cris cristã tã sou eu? G IL V ICENTE Não eras má, não. Judia serás tu por mal-pecados, que assim judias comigo. Mas o que tu não hás-de nunca ser é uma moura capaz que se mostre, moura que q ue fale mourisco, que saiba o seu papel papel,, que possa aparecer apa recer num Au Auto, to, q ue poss possaa dizer com graça e chis chiste: te: Exte anel de condón Perguntalde box a el, y el dará a box razón D e qua quantos ntos xxacretos acretos xxon. on.

Oradoanda mal-amanhada, repete nte) isto. J oana T Taco acolá,( repete repe te mui muito to sensabormente) sensaborme Exte anel de condón Perguntalde box bo x a el... Não sei; não me lembra. Dai-me outro papel, que me não avenho com este. G IL V ICENTE Oh! , ex excomungada comungada mulher, negreg negregada ada J oana do T Taco aco (q (que ue um taco de Belzebu te carambole na alma!), pois a esta hora, nós já vestidos, a corte aí junta toda, el-rei que não tarda a aparecer — a esta hora te eu eoutro papel!te—havia Quedevoseuparece, que estou tonto? — Edaria como, que papel dar, malmana, entrouxada? J OANA DO TAC ACO O O de Providência, que é para que eu tenho jeito. Coisa heróica e grande. Isto de fazer rir não sei. Ali está Paula, que fazia a Lua e que não descansou enquanto não apanhou a Providência. — Paula que faça este papel. Eu não quero; tenho dito. G IL V ICENTE Mofino de mim! Em que dia! Nestas vodas reais! — E os italianos, que é o que me dá mais cuidado, queria-lhes mostrar que coisa é um Auto português — que vis vissem sem quem é G il Vicente. Vicente. Ca stigo de D eus! eus! — Paula?

20

P AULA Já vou, meu pai. — Estou aqui... (Torna a ler a carta.) PÊR O Oh! bilhetinho! Que curiosidade tamanha!

 

(Anda à roda de Paula a ver se percebe o que é, e rosnando a cantiga.) À minha da ma lhe escrev escrevem em Os galantes cada cada dia; Ela, Ela , que a mim ssóó queria, A mim só me respondia. Tra le, la re. P AULA E mais a este também. — E sois vós, Pêro, que lhe ireis levar a resposta. PÊRO Beijo-vos as mãos pela mercê. — Assim me encartais em ofício de boa lotação! P AULA E não menos honra: — correio-mor de minhas cartas e alvissareiro de meus favores. — Olhai, dizei a meu pai que venha cá, que deixe ess essaa pa smaceira. T Temos emos que ffalar alar todos três aaqui qui em segredo. Id e já.

( Pêro Sáfio Sáfi o vai vai pa para ra G i l Vi V i ce cente nte e lhe fala ao ao ouv ouvii do do.).) G IL V ICENTE ( mei mei o enfada enfadado) do) Então que queres, filha? Que quer este homem com os seus segredos? — Há uma hora que quero começar o ensaio geral; e é sempre is isto. to. U ma vez fa las tu, depois é este, logo aq aquele uele.. — Agora temos negócios particulares. — Que é, que é? É o vosso casamento? Já disse que sim: não não me a poquentem mais; não es estou tou agora para casamentos. P AULA É isso, é! G IL V ICENTE Queres este sensabor, tu? — Dou-to: lá te avem, e acabemos com isto. (Olha para Pêro Sáfio com complacência.) Representou como um homem o papel de Aires Rosado. E ntendeuntendeu-me me o ma magano. gano. D esde es es-se dia fez de mim quanto q uis. uis. — Mas agora a qui, a estas horas... P AULA Bem cuidamos dessas frioleiras agora. — Meu pai, está ali fora no cais Bernardim Ribeiro que me escreve este bilhete. (Dá-lho.) Ma ndai retirar essa gente; e Pêro o irá buscar, que venha já. G IL V ICENTE Filha da minha alma, mas tu não sabes que este homem está doido? Varrido, perdido! E não o vês nesta carta ? — Queres que nos ponhamos agora a pa pales lestrar trar com d oidos a estas horas? — T Todos odos aí fora à espera do Auto. El-rei que não tarda a mandar-me recado. A infanta — a Senhora Duquesa é, e que nada boaquero — quedizer, se quer acomodar cedo eque quehoje o sarau não não deiteestá a muito tarde. tard e. — E eu perdi perdido, do, perdido sem uuma ma moura moura!! J oana do Taco Taco nã nãoo sabe o papel — e parece-me parece-me que está borracha, b orracha, D eus me pperdoe! erdoe!

21

 

P AULA Deixai; que em piores nos temos visto, e sempre nos saímos bem. G IL V ICENTE Não hoje, Paula, não hoje: tenho cá uma coisa que me diz, uma coisa que me agoura mal deste auto da infanta. Desde Sintra que ando com esta freima. G il Vi Vicente, cente, hoj hojee ficas mal, meu amigo. P AULA Então, meu pai? G IL V ICENTE Que era má tolhess tolhessee os doidos, mais quem... P AULA Ma ndai agora busc buscar ar esse homem, que à fé de quem sou, não farei eu de Providência se lhe lhe não f alo, e já. PÊR O A peito peito o toma is, is, Senhora Pa Paula! ula! P AULA Tomo-o como quero e é minha vontade. vontad e. — Ide vós já ao cais, aí achareis um homem de capa caída e chapéu de romeiro: Trazei-mo aqui aforrado, que o não conheçam os moços do monte e escudeiros que aí estão fora. Ouvis? — É uma figura que vem para o Auto, se perguntarem.

( Pêro Sáfi S áfioo parte parte de má vo vontade ntade.).) G IL V ICENTE Assim o quer a senhora minha filha, assim o manda: seja feito. — Vão-se, vão-se embora.

(Retiram-se os actores todos.) CENA II IIII

G IL VIC ENT ENTE, E, PAU PAU LA VICE NT NTEE G IL V ICENTE El-reii que fique sem auto El-re auto.. P AULA (passeando com enfado) Tem a uto de m mais. ais. G IL V ICENTE A Senhora Infanta-Duquesa que se amofine. P AULA Amofinada seja seja ela! — Pelo bem que lhe eu quero...

22

G IL Paula, V ICENTE Paula, a ingratidão é a coisa mais feia que há. — Hei-de fazer um Auto da ingratidão... (pensando) em que há-de figurar... o Diabo, pai da M enti entira... ra... com sua sua neta D . Ingratidão... Dona, si sim, m, com dom

 

— que é vício vício mais azado de and andar ar pelos grandes. — Ma Mass tu bem pequenas és, Paula, e por essa parte tinhas serviços decretados para condessa — pelo menos. P AULA Condess Co ndessa, a, condessa — duquesa... — Que são elas mais que eu? G IL V ICENTE Boa vai ela! — Estás nos teus dias, Paula. — Ora vem cá: pois aquele anjo da infanta infant a que q ue te trata como sua igu igual, al, que não pode viv viver er ssem em ti — que tu és a sua sua ma ior amiga?... P AULA Amiga! G IL V ICENTE A confidente de seus segredos... P AULA E quem lhos pede os seus segredos? Quem lhos quer saber os seus Reais segredos, os seus segredos de princesa? — Que os diga às da sua igualha... G IL V ICENTE Que toda via não são mais que tu... P AULA Não por certo; — nem tanto: — que eu sinto, penso, entendo — sei — vivo! — E elas existem para aí. G IL V ICENTE (com entusiasmo) Oh! tu és a minha Paula, o meu braço direito, a minha musa. Sem ti que fora da reputação de Gil Vicente que já assombrou João de la Encina, q ue jjáá nã o tem a quem temer para cá dos Pirenéus, e depressa irá desafiar esses poderosos de Roma e de Florença. — De ti me vem quanta inspiração grande tenho tido, por ti tem brilhado na cena. Oh!, O h!, minha PPaula! aula! — As Assi sim m te quero eu... P AULA Como à vossa melhor comédia. — Não falemos hoje de amizades ou de amores, amo res, que não estou em vveia eia de ama r. G IL V ICENTE Oh!, Paula, Paula, como me dirás tu aqueles versos da Providência!... P AULA (secamente) Que eu fiz. G IL V ICENTE (ressentido) Que fizeste, não há dúvida, foste tu; quem to nega? — Fizeste-los — para glória de teu pai. — Que te criou (com as lágrimas nos olhos) — que te trouxe ao colo — que te serviu de pai e de mãe... — Levou-no-la D eus eus,, tua mã mãee — e eu fiquei ppara ara velar velar aass noites ao pé do teu berço, roendo nas unhas muita noite de Inverno, e fazendo trovas t rovas enquanto dormias, acalentando-te quando rabujavas. — Fizeste, Paula, são teus os versos: e eu quedeem ti pus minhas esperanças, quanto soube, dei-te mestres tudo. Poucos letrados sabem ensinei-te tanto em Portugal: disso presumes e tens razão: mas eu é que te fiz o que és, minha filha; cuidei que te t e lembravas ma mais is dis disso so que do doss versos versos que compunhas...

23

 

P AULA (chorando, e abraçando-o) Perdoai-me, meu pai; perdoai-me, que não sei ora o que digo. D evaneiaevaneia-me me es esta ta pobre cabeça ddee tanto pa padecer decer e ssofrer. ofrer. G IL V ICENTE Pois que t ens tu, minha filha, minha q uerida filha? — T Tudo udo está perdoado. Eu sei quanto te devo; e nunca me esqueço, Paula, nunca. — Ma s háshás-de de represen representar tar logo. Não? P AULA Sim, meu pai. G IL V ICENTE H ás-deás-de-me me entrar por aq uela sala dentro, de ceptro na mão mão,, coroa na cabeça — a túnica roçagante — a cauda sobraçada. — E os italianos embasbacados — corridos, metidos num chinelo de mouro. —E tu bela — mais bela de teu t eu esp espírito írito e formosa d e expres expressão são e a lma q ue... (abaixando a voz) — que essas condessas — princesas e infantas todas. — E quanto quant o tu dizes ( D eclama com ênfase) ênfase): Júpiter há-de fazer Co Cortes rtes llogo ogo em um momento; Porq ue Deus me deu a mim Que o f izes izesse se rei do ma r E dos ventos outross outrossi,i, E dos sign signos. os. V Venha enha a qui Para logo come começar. çar. (Falando.) — Bravo, bravo! Que o façam melhor em Florença ou em casa do Papa.

CENA IV

G IL VICE NT NTE, E, PPA AU LA VICENT VICENTE, E, PÊR O SÁFIO, e BER NARD IM RIBEIRO, que entra embuçado e de chapéu desabado, como no 1. o acto.

— Paula estreme estremece ce,, G i l VVii ce cente nte impacienta-se: impacienta-se: observam-se observam-se todos todos alguns  se  segu gund ndos os..

G IL V ICENTE ( i ndo para eele le como como quem quem descob descobririuu alguma coi coisa) sa) Meu a migo, jjáá a divi divinhei nhei o que q ueríei ueríeis.s. V Ver er o Auto: hem? Andais arredio da corte — não sei porquê: ta tanto nto vos querem todo todoss — e a nossa nossa infanta , a nossa querida infa infanta, nta, q ue isso isso era por de mais! — Princesa e trovador... É o que vale, que não fica mal, senão tinham que falar

24

linguarudos. — Mas que tomastes, todos. — Ora pois, quereis ver oenfim Auto,éejeito não quereis que vosfugis vejam.deSou o vosso homem. Próprio tenho um lugar de d e amigo para um escudeiro escudeiro embuçado e encapelado, que pode ver tudo, e não o ver ninguém a ele.

 

— Vá por santo Apolo e suas manas. — Vós ssois ois quase do of íci ício, o, que também rimais, ssenhor enhor cavaleiro : (Canta) Trovador, por minha ddama ama Me fiz trovador. Que não fará quem ama Por seu amor! Rimais, e como os mestres. Assim, a propósito, vede-me estas coplas, este romance da partida da d a infant infanta, a, que logo se hhá-de á-de cantar... P AULA ( signi signifificant canteemente mente pa para ra Be B ernardim) rnardim) E chor chorar; ar; q ue... ue... G IL V ICENTE E são para isso as coplas. Por menos tenho visto mais. (Repete com

animação)

Niña era la Infanta, D ona B eatriz ssee decí decía, a, Nieta del buen rey H ernando, E l mej mejor or rey de Ca stilla, stilla, H ija ija del rey Don M Manuel anuel Y reina Dona Ma ria, Reys de tanta bondad Que ta les dos no había. Niña la casó ca só su ppadre adre Mui hermosa a maravill ma ravillaa Con el duque de Saboya Que bien le pertenecí pertenecía, a, Señor de muchos señores, Más que rey es su valía... P AULA (com impaciência e olhando para Bernardim) Basta, meu pai: logo nos fartaremos disso. Agora vejo que enfadam e estão mortificando essas essas vossas coplas. G IL V ICENTE Porq ue não( ap aparte sãoarte tua tuas asPaula) es estas, tas, Pa Paula. ula. — V Valha-te alha-te não sei quê, rapariga. P AULA ( a Gil G il Vice V icent ntee) Sim, nisso pensava eu agora; é o que me dá cuidado. (A Bernardim.) J á vedes que tendes lugar para ver o Auto. B ERNARDIM ( de desem sembuçando-s buçando-see e levantando levantando o cchapé hapéu) u) Não é ver o Au Auto to q ue eu quero, é entrar nele. G IL V ICENTE Como Co mo assi assim! m! P AULA Praz-lhe ao Senhor Bernardim Ribeiro zombar de nós e de nossa humilde profissão. B ERNARDIM Não sei dela mais nobre, meus amigos. Sois criados de el-rei, de um príncipe que sabe a valia das artes, que estima e cultiva as letras...

25

 

PÊR O E premeia como vemos aos seus cultivadores... B ERNARDIM Mesquinharias de ruins conselheiros e de soberbos invejosos. El-rei é liberal, e o será convos convosco. co. CCultiv ultivais ais uma gentil arte... PÊR O Já é gentil gentil!! B ERNARDIM Sempre e quando quer que se não prostitui, como todas as artes, como toda t odass as coisas deste mundo. — Vós, digo, cultiv cultivais ais uma gentil arte, honrais e aformoseais a língua; sereis a glória dos nossos e a inveja de estranhos: que mais é preciso para ser nobre e grande — maior que ninguém na tua terra ? P AULA Adular os grandes e oprimir os pequenos... B ERNARDIM Pa ula, a bela e a desdenhosa Pa Paula ula está de uma sev severidade eridade — que lhe fica bem d ecerto — que lhe dá uma expressão... expressão... PÊR O Satânica... B ERNARDIM Enérgica... P AULA D á-lhe á-lhe a que me praz dar a boa ou a má cara que D eus me deu, e de cujas cujas feições se não trat trataa a gora. B ERNARDIM (a Paula, galanteando — que lhe volta a cara) Mil perdões perdõ es se... — Amigo G il Vic Vicente, ente, peçopeço -vos um papel no vosso auto. Alguns tendes com máscara, dai-me um desses. Verei assim tudo, sem me verem ou me conhecerem; e tenho o gosto, porque sempre suspirei de vos ajudar em vossa bela empresa. Dai-me já o papel e o vestido. G IL V ICENTE Que capricho é este? E stais dev deveras? eras? B ERNARDIM (ao ouvido de Paula) À fé que estou. Não tenho outro modo de a ver, de lhe falar. J uraste ajudarajudar-me, me, prometes prometeste te a inda ontem ser fiel a a mbos. É preciso ciso q ue me dêem o papel da mo ura, que seja eu quem lhe entregue o a nel.. nel.... P AULA ( afastando-se afastando-se um pouco, apa aparte rte e com com iimpa mpaciciêênci ncia) a) E quer a sorte mofina que seja eu quem por minhas próprias mãos me esteja dilacerando assim! — (A Bernardim.) Farei como quereis. (Alto.) Meu pai, temos um bom a chado. J oana do TTaco aco vos perderia o Auto: daremos o papel a este cavalheiro, que o fará à ma ravilha. ravilha.

26

G IL Oh! V ICENTE se ele quisesse! B ERNARDIM Co Como mo vos heihei-de de dizer qque ue quero? — Venha Venha má scara e vestido.

 

G IL V ICENTE E o papel? pa pel? Inda o nã nãoo vi vistes stes..

(Pêro Sáfio lhe traz uma espécie de opa larga, um turbante e uma máscara.) B ERNARDIM (enfiando a opa e cingindo-se) Já sei tudo o que heihei-de de dizer. G IL V ICENTE Quem vovo-lo lo ensinou? B ERNARDIM (ainda vestindo-se e distraído) Não se ens ensina, ina, não se aprende — sentesente-se. se..... Louco q ue eu sou! (Olha  pa  para G il Vice Vicent ntee que est stáá pasm smaado.) o.) — Ensinou-mo Ensinou-mo P aula. P AULA Estais Esta is en engana ganado: do: reflecti no qque ue dizei dizeis... s... Não é comigo. B ERNARDIM Pois então foi Pêro. — Pêro foi, Pêro Sáfio. Por sinal que tem muito  xe, xemourisco, muito trejeito. — Farei tudo. G IL V ICENTE Óptimo! Assim é, assim é. Vesti-vos pois, que é tarde. — E vamos. Ó lá de dentro! Ensaio geral geral..

CENA V

Os MESMOS e os ACTORES todos entr entrando ando G IL VICENTE Ca da um a seu lugar. Acolá está elel-rei, rei, a rainha, os infantes — os embaixadores — ali a corte. — Tocam os charaméis. — Silêncio geral. Vamos. — Porte, dignidade — um ar majestoso e grande. Cortes de  Júpite  Júp iter r é o título da nossa comédia. Deuses e deusas: não há doutra gente aq ui. — Pa Paula, ula, tu sabes que és a Providência, que vais ordenar a J úpi úpiter ter qque ue chame a cortes os rege regedores dores de toda s as cois coisas, as, o deus do mar, o d os ve ventos, ntos, da guerra, So Sol,l, Lua, estrelas. B ERNARDIM Providência! De molde lhe vai a esta altivez natural e génio sobranceiro. — Dizia-me Dizia-me PPêro êro qque ue éreis a L ua. P AULA Não me contento de luz emprestada, senhor cavaleiro. B ERNARDIM Porq ue da própria ssabeis abeis quanto brilha. P Ê R O (aparte) Em oquarto saiuNos a talprimeiros — en que esse (Alto.) era papel minguante da Senhora me Pa Paula. ula. priLua. meiros ensaios saios Juraria em Sin Sintra... tra... B ERNARDIM Fostes Diana em Sintra?...

27

 

P AULA Para castigar Actéon. B ERNARDIM E sois a Providência em Lisboa?... P AULA Pa Para ra o salvar de seu seuss própri próprios os mastins. B ERNARDIM Sempre bela e discreta! P AULA D eixemos eixemos este tom de ga lanteria, senhor cavaleiro. Não vos fica bem a vós, e sabeis sabeis que me não aagrada grada a mim. B ERNARDIM (aparte) Porq ue não havia de eu amar esta mulher! P AULA (aparte) Meu D eus eus!! Se este homem me ama ss sse! e! G IL V ICENTE Assim foi, Pêro; dizes bem. Mas em Sintra ainda eu não tinha pensado no prólogo. O prólogo — vês tu — é a exposição e clareza de tudo. Para estas grandes entradas quer-se majestade, desembaraço, um não sei quê solene na voz e no gesto. gesto. Só a minha Pa ula. Paula, minha filha, vamos pois. (Tomando a atitude e declamando) : Eu P rov rovidên idênci ciaa chamada Sou por Deus ora enviada... P AULA O meu papel todo agora! Oh! isso é impossível. Tirava-me o ânimo de o repetir logo. Demais o tendes ouvido todos. Fazei de conta que está dito. G IL V ICENTE Bem, bem: como quiseres; — Júpiter? venha Júpiter... Ah! sou eu mesmo. ( E m atitude como qquem uem eentra ntra na cena) : Eis-me Eisme aq ui, alta senhora; Que q uer V Vossa ossa Ma Maje jestade? stade? P AULA Que passemos avante. D e vós es estamo tamoss certos. — O mar? G IL V ICENTE Mar, Ma r, ven ventos, tos, Norte e Nordeste? ( A code codem vários vários actore actores.) s.) P RIMEIRO ACTOR Aqui estou. S EG U N DO ACTOR E eu. TERCEIRO ACTOR Pronto.

28

G IL Sol? V ICENTE Q UARTO A CTOR Aqui nasço, ou aqui aq ui me ponho, ssegundo egundo manda rdes.

 

G IL V ICENTE Nascei, homem. — Nada de oca ocasos sos.. — Lua, V Vénus énus?? P RIMEIRA ACTRIZ Eis-me. S EG U N DA ACTRIZ Pronta. G IL V ICENTE Excelente! — Belas, galantes estais. Que viva toda a corte celestial! Como vêm guapos! — Marte? — Oh! Marte, o nosso Pêro Sáfio. P Ê R O ( entrando em cena e declamando) declamando) H umil umilhoho-me me a vós vós,, sagrado Júpiter. Que me mandais manda is?? G IL V ICENTE (do mesmo modo) Vós sejais mui bem chegado A estas Cortes Rea is. is. Manda Ma nda elel-rei rei de Portugal, Senhor Senh or do mar Oceano, Sua filha natural Per conjunção div d ivinal inal Pelo mar MeioMeio-T Terra errano. no. P Ê R O ( como como acima) E ma is eu tenho cu cuidado idado D este rei reino no lus lusitano: itano: D eus me tem dito e mandado Que lho tenha bem guardado Porque o q uer fazer Romano... P AULA (interrompendo-os e parodiando o tom da declamação) E a Providência divina, que está secadíssima de ouvir as conversas sensabores sens abores destes d estes deus deuses es pagãos, ord ordena ena que vos caleis já, e gua guardeis rdeis isso Oso para logo. P Ê Ris Pois nem sequer hei-de repetir o meu romance? Niñaa era la I nfanta, Niñ Niña la casó su padre Con el duque de Sa boya?... P AULA Não. PÊRO É que no fim dele é que en entra tra a moura. P AULA A moura q ue estude o seu ppapel. apel. O pa papel pel é curto: vede, ssão ão duas palavras. (Busca no bufete um papel, e dá a Bernardim.) E que o diga o melhor que puder. Vamos; Vamos; e a cabemos com isto antes qque ue nos acabe a paciência a todos. todo s.

29

 

CE CENA NA VI VI

U M PPAJEM AJEM DE E LL-RE RE I, os MESMOS

B ernardi rnardim m Ri R i be beii ro põe a máscara máscara eem m vendo vendo o pa pajjem. P AJEM El-rei meu senhor entra para a sala do dossel. Manda o mordomo-mor qque ue se aprontem as figuras, e que saia o Auto. G IL V ICENTE Vamos.

( Saem todos todos aalvoroçado lvoroçados,s, pre prece cedi didos dos de G i l VVii ce cente nte e do do paj pajem. Paula depois de todos. Bernardim Ribeiro fica como suspenso.) CENA CENA VII

BERNARDIM RIBEIRO, depois PA PAUU LA VIC ENTE ENTE B ERNARDIM ( tir tirand andoo a máscara) máscara) Incrível! Incrível o que está passando por mim. Eu nos paços da Ribeira com estes trajos! Eu diante da corte toda representando um Auto de G il Vicen Vicente! te! E u... P AULA ( tornando a aparece aparecer)r) Se vos arrependeis, arrependeis, ainda é tempo. B ERNARDIM Nunca. Se de outro modo a não posso ver! — Oh!, querida Paula, tu és decerto decerto a minh minhaa P rovi rovidênci dência. a. B em te acertara acertaram m o nome nesta noite. Que seria de mim sem sem a tua protecção! P AULA O mesmo que com ela. Amanhã parte a frota ao romper da alva. E que fareis fa reis?? B ERNARDIM Que me importa amanhã? Eu vivo para hoje, vivo para esta hora. Que se me dá a mim que acab acabee o mundo depois! P AULA (aparte) Muito a ama! B ERNARDIM Pa Paula, ula, minha Paula, tu aass ssis ististe tiste à fat al cerimóni cerimónia? a? P AULA Fomos todos à sé. Ca Casousou-os os o a rcebispo. rcebispo. ElE l-rei rei estava muito comovido... B ERNARDIM

30

E ela? Nã o vis viste te se?... Não pa pareceu receu ssentir?... entir?... Não observaste?... P AULA Observo que perdemos aq ui o tempo. Vamos, Vamos, vede o que q ue fazeis, vede vede a q uanto me arrisco por.. por....

 

CENA VII VIIII

BER NA NARD RD IM RIB EIR O, PPA AU LA V VICENT ICENTE, E, PÊR O SÁF SÁFIO IO PÊRO Providência, Providência? Paula! Meus pecados! ainda de conversa! — (Aparte.) Se não soubera o que sei, era capaz de ter ciúmes da moura — e como um mouro. P AULA Aí vou. — ( A B ernardim rnardim Ri Ribbeiro.) Lembrai-vos do que vos disse. CENA IX

BERNARDIM RIBEIRO, só, depois U M ACT ACTOR OR

Passeia, lendo o papel que tem na mão; depois de considerável silêncio: B ERNARDIM E eu hei-de dizer isto! — Fazer estes trejeitos... Eu, diante de tanta gente! — E para estuda estudarr isto isto de cor? Impossí Impossível vel.. Quem me deu cabeça agora?... ACTOR Senhoraa moura , senhora moura Tais — depressa, depressa, que esta Senhor estais is a entra r por ins instant tantes. es. B ERNARDIM Vamos. Ânimo; e suceda o que suceder. Avante Avante com a empres empresa. a. CENA CENA X

 Ap  A penas nas sa saii Be B ernard rnardim im Rib Ri beiro, lleeva vant ntaa-se o pano do fund fundo e aparece rece a sa sala la do trono, ricamente adereçada e iluminada. E L -R -R E I D O M M A AN N U E L à direita, sentado em cadeira alta de es pald  paldar ar,, sobre sobre um um eest strad radoo; SAINTSAINT-G ER MAIN, JOFR E PASS ASSER ER IO e CHATEL à di di reita de el-r l-reei ; à sua esque squerda rda o MORDOMO-MOR, o BISPO DE TARGA, CONDE DE VILA NOVA, GARCIA DE RESENDE e mais senhores da corte. — No fundo, e quase tocando na esquerda da cena, a infanta DONA BEATRIZ, em outro estrado e em cadeii ra alta; à esquerda cade squerda do estrado da infanta, i nfanta, em almofadas, INÊS DE M E L O e todas as damas da corte. Onde convier, P A J E N S , MENE ST STRR ÉIS, ARA ARAUU TOS, R EISEIS-DD EE-ARMAS ARMAS e PASSAVANTES. Os ARCHEIROS estão distri distr i buí buídos dos pela pela sala. À esquerda squerda da cena, de-

 fronte de el-rei e ao pé do est strad radoo da da infanta, infanta, est estáá eest steendido um tap tapeete e, sobre emOsemicírculo, as figuras todasnodomeio Auto,doque estáem quase no fim. —ele,PÊR SÁFIO, vestido de Marte, tapete, atitude de representar. — No momento que corre o pano, el-rei aplaude; toda a corte o imita.

31

 

D O M M ANUEL G enti entill romance! romance! E bem cantado. Não dirás que não deix deixas as saudades, saudades, Beatriz: todos estão como eu, coas lágrimas nos olhos, só de ouvir neste romance o que amanhã, minha querida filha, há-de ser realidade. Mas não são para agora tristezas. Ânimo e alegria, senhores! Co ntinue o A Auto. uto. M ORDOMO -MO R ( chama um pajem pajem e diz) diz) Manda Ma nda elel-rei, rei, meu senhor, que continue o Auto. P AJEM ( i ndo para para Gi G i l Vi V i ce cente nte,, re r epete pete)) Manda Ma nda elel-rei, rei, meu ssenhor enhor que cont continue inue o Auto. G IL V ICENTE (aparte) Só fa lta a moura. T Teremos eremos alguma? — Ca paz é ele de fa zer das suas. — Não; ei-lo, aí vem.

CENA XI

BERNARDIM BERNA RDIM R IBEIRO e DITOS B ERNARDIM (em trajo de moura, entrando gravemente, encara com a in-

 fant  fantaa, fica su susp speens nsoo alg lgum um tempo, ppõõe a mão na fro front ntee, ddeepois no co cora raçã ção, o, e logo começa) Quebrado está meu encanto Por outro poder mais forte; Torno outra vez à vida Pa Para ra ma mais is sentir sentir a morte. G IL V ICENTE Perdeu-se, Perdeuse, perdeuperdeu-se: se: não é a quilo! (Chega-se a Bernardim, e aponta-

-l-lhe he bai baixo) xo)

Mi no xaber que exto estar Mi no xaber que exto xer. Que diabo dia bo de versos são aaqueles? queles? B ERNARDIM (sem atender, e entusiasmando-se) Viver Viv er que nã nãoo era vi vida, da, Sempre o mesmo, sem mudança, Os desejos viv vivos os sempre, E sempre morta a esperança... G IL V ICENTE ( ap aparte arte a Pêro Sáfi Sáfio) o) Endoideceu. Estou perdido. E o meu Auto, o meu nome! E os italianos! D eus ssee compadeça de mim. V Vou ou empurrá-lo empurrá-lo dali para fora. fora . PÊR O D eixá-l eixá-lo, o, já’gora; nã o vos deis ppor or acha do. Vejamos Vejamos em q ue isto isto pára. pá ra.

32

(Dona Beatriz parece inquieta, e olha significativamente para Paula, que encolhe os ombros.)

 

B ERNARDIM ( de depoi poiss de eestar star algum algum temp tempo, o, como quem reflecte reflecte)) Cuidei que maior tormento Não mandava à terra o C éu: Há mais, há pior ainda, E em sorte me coube: é meu. — Deste anel, que o ta lismã lismã D e minha fortuna encerr encerra, a, Já que eu goz gozar ar não podia, Não gozava ooutrem utrem na Terra. — E agora agora,, entregá-l entregá-loo a ssim, ssim, Agora obrigar-me o fado... G IL V ICENTE Já não há remédio: estou perdido. Pêro, Pêro, vê com que cara está el-rei! PÊRO Ânimo, mestre Gil, que, nestes casos, acobardar é o pior. — Interrompei-o com vossa autoridade de Júpiter, e acabai já com esta comédia, que me cheira cheira que q ue tres tresanda anda a ir desabar em tragédia. G IL V ICENTE Dizes deixai-o raio a Be Bbem: ernard rnardi i m:) comigo. (Adianta-se em carácter e estentendo o Presentai isso isso à senhora Infanta e nov novaa duquesa. B ERNARDIM ( como como caindo em em si) À duquesa! P AULA (baixo a Bernardim) À infanta. I de já, ou tudo está perdido, e nós todos. B ERNARDIM (ajoelha diante da infanta, que está ao pé, e tomando o anel,

diz baixo)

Duquesa de Sabóia, este anel deu a infanta D. Beatriz de esmola a um desgraçado. O povo queria-lhe mais que à vida; mas desde hoje lhe não pertence já. — Cuidava ter t er nele uma promessa, promessa, uma espe esperanrança... — A duquesa de Sa bóia q ue lhe le leva va tudo — to tomeme-lhe lhe também o anel. (Mete-lhe o anel no dedo. Toca a música; dão palmas ao Auto; os

actores acto res retiram-se retir am-se.).) D ON A B EATRIZ ( i nte nterdi rdita ta e ba baii xo)

Desgraçado, não vês que me matas? B ERNARDIM (do mesmo modo) Que disseste, disseste, B eatriz? D ON A B EATRIZ (do mesmo modo) Que me matas mat as — que te não mereço — que te... (Desfalece.)

( B ernardi rnardim m RRii be beii ro levanta-se levanta-se sem pe perceb rcebeer que Beatri Beatrizz eestá stá desfalecida. desfalecida. Pêro SSáfi áfioo trava-lhe o braço e o le leva va para para dentro. dentro. — E l-r l-reei , com ar enfadado, levanta-se. Todos o imitam. — Parece haver alguma confusão: mas ninguém se apercebe do estado da infanta.)

33

 

D O M M ANUEL O noss nossoo G il V Vicente icente não foi feliz desta vez na conclus conclusão ão do seu Au Auto. to. Costuma acabar mais alegre e gracioso. — Passemos à outra sala; e alegrem-nos alegremnos danças e folgares, jjáá que nos deixou tão triste a comédia. Barão de Saint-Germain, a duquesa, minha filha, espera o braço de seu noivo noivo para a conduzir ao ba ile — enquanto enquant o eu lhe não do u a mão para o rompermos ambos.

( Tocam os menes menestréis. tréis. E l-r l-reei sai prece precedi dido do dos dos re reii s-de-armas, etc. etc. O barão de Saint-G Sai nt-G ermain fifica ca ao ao pé de D ona BBeeat atririz.z. Chat C hateel em distância. — Paula entra, já em traje ordinário, pela mesma porta porque saíra o Auto. C hatel hatel se aproxima dela cortejando. cortejando. Paula corre corr esponde sponde fri friame amente nte.. V ão continuando a sair as damas e senhores da corte.) CENA XII

D ONA B EAT EATRR IZ , SA SAINT INT--G ER MAIN, CH ATEL, PA PAUU LA, INÊS D E MELO , DAMAS, etc. S AINT-G ERMAIN El-rei, que já está na outra sala, me concede a honra de conduzir a Vossa Alteza... D O NA B EATRIZ (acordando) Para onde? J á embarcar? Oh!, não, por pi piedade! edade! Ainda não. S AINT-G ERMAIN Embarcaremos quando mandar Vossa Alteza... Agora só tomo a liberdadee de lhe lembrar q ue elberdad el-rei rei a espera. D O NA B EATRIZ (caindo em si) Tendes razão. Vamos. — Paula, vinde comigo. (Paula inclina-se duvidando.) Vinde, que mando eu.

(Paula, inclinando-se com respeito, obedece. Olham uma para a outra signi ficattiva  fica ivam mente nte, e pro ross sseegue guem.) C HATEL (aparte) Aqui há mistério! E eu hei-de descobri-lo.

34

 

ACTO CTO TER TER CE IR O Recâmara do galeão Santa Catarina, ricamente tapeçada de veludo carmesim com franjas de ouro. No fundo as varandas de popa abertas. — A um lado a porta que leva ao camari camarim m da I nfanta, nfanta, com repostei repostei ro iigual gual à ta pe  peça çaria, ria, e nele nele as arm rmaas partrtida idass de Port Portug ugaal e Sabóia Sabóia.. — D o ou outtro la laddo vê vê--se o princípio da ponte ou comunicação de pranchas que une o galeão ao cais. — A um canto, almofadas como a tapeçaria, formando uma espécie de divã. CENA I

BISPO DE TARG A, CONDE DE VILA N NOV OVA, A, G ARCIA DE R ESEND E, SAINT SAINT--G ER MAIN, JO FRE PASSER ASSER IO, CH ATEL. Os REIS-DE-ARMAS e ARAUTOS  posta  postados dos à porta por ta do camarim camari m da I nfanta; ARCHEIROS no princípio da ponte. Os SENHOR ES DA CO RT RTEE  fo  for-rmam grupos grupos e conve conversam rsam entre entre si . ONDE D E V IL A N OVA C ONDE Sabereis, senhores, senhores, que lhe obedecem os a stros ao nosso G il Vi Vicente, cente, como se fora a Pedro Nunes que se entendia com eles. — A Lua cumpriuu a palavra q ue inda agora nos deu, lláá no Auto. EEla cumpri la aí está bela e radiante para acompanhar a armada. E Júpiter quase que não brilha menos. Como ele bate nestas águas do Tejo com seu raio de prata! — D elici eliciosa osa noite! ( E ntra ppara ara de dentro.) E a alvorada não promete ser menos. P ASSERIO E é de servi servirr o vento, Senhor C ondeonde-Almir Almirante? ante? ONDE D E V IL A N OVA C ONDE Ó ptimo. T Teremos eremos uma m monçã onçãoo de rosa rosas.s. — Ora deixedeixe-me me ver: a maré ma ré da uma às quatro. Isto é meia-noite. — Daqui a três horas começarei

ameu manobrar... mandando Alteza o contrário; que o pendão denão almirante não Sua se ala senãoDucal por baixo do estandarte partido de Portugal e Sabóia. G ARCIA DE R ESENDE ( falando com o bispo de Targa) Quando el-rei Dom João — o príncipe Dom João que então era — foi à jornada de África, lev levava... ava... ONDE D E V IL A N OVA C ONDE Eram fortes viagens essas! Agora vamos a Malaca como então se ia a Ceuta, e bordejamos ali no mar Vermelho como então se bordejava aqui no Restelo. G ARCIA DE R ESENDE Sois para muito, e muito se faz agora, Senhor Conde: mas de lá vem, de lá vem.da—Índia, Lembrai-vos que foi el-rei João Fostes quem vos caminho e, se lá chegastes, a ele Dom o deveis. maispôs feli-a zes; ele trabalhou ma is. is.

35

 

C ONDE ONDE D E V ILA NOVA Não me parece isso de leal vassalo, Senhor Garcia de Resende: desmerecer assim a glória de el-rei nosso senhor! Tão criado sois dele como fostes de elel-rei Dom J oão oão.. G ARCIA DE R ESENDE Perdoareis, Senhor Conde de Vila Nova: sou mais criado de el-rei que Deus guarde do que fui de quem está em glória. — Lá creio firmemente que descansa aquela aq uela grande alma! — Esse chamava-me seu seu amigo. — Mas nem a memória do defunto nem a presença do que reina me farão farã o dizer o que não é. — O felice rreinado einado do Senhor D om Manuel é o tempo da colheita; seu primo gastou a vida a semear. Vamos, Senhor Conde, que a ambos devemos muito. — Isto é achaque de velhos estar sempre com o passado. Não sei se fazem melhor... os moços que se esquecem dele. C ONDE ONDE D E V ILA N OVA ( olha com desdém desdém para G arcia arci a de R esende esende e vai 

 p  paara Saint Saint-G -G erm rmaain que que est stáá ent ntre rettido co com m C ha hattel) El-rei demora-se bastante, Senhor Barão. Há mais de uma hora que ali está fechado com a Senhora Infanta no seu camarim. É natural. A amboss lhes cus ambo custará tará separarem-s separarem-se. e. Ma s faz-s faz-see tard tardee e... S AINT-G ERMAIN D izeis bem: é uma longa entrevi entrevista, sta, Senhor C onde; ma mass devemos respeitar o motivo. C ONDE ONDE D E V ILA NOVA Certamente. U M ARAUTO El-rei!

( L ev evantam-se antam-se todos e se compõe compõem m em at atii tude de respei respei to.)

CENA II

Os MESMOS, DOM MANUE L, sa  saindo indo do ca cam marim, DO NA BEAT BEATRI Z, que fifica ca à po porta rta, INÊS INÊS D E MELO, etc. D O M M ANUEL Basta, não venhas cá fora, minha filha. — Outro abraço, (abraça-a) minha Bea triz. — E não saias da tua câ mara, q ue es está tá muito fresco aqui. — Filha! (Volta para trás outra vez, e fala-lhe ao ouvido.)

36

— mereço, (  Alt sentido, lembra-te do que me prometeste. — Vê se A ltoo.) Toma to Beatriz. D O NA B EATRIZ (soluçando) Meu querido pai...

 

D OM M ANUEL B em, bem: estou satisfeito: não falemos mais nis nisso. so. — Se puder, ainda te irei ver ao Restelo... Nossa Senhora de Belém quero que lhe chamem agora. — Verás que bela figura já fazem do mar as arcadas da minha igreja — a memória que levantei a este grande feito, em que D eus foi serv servido ido que eu tive tivess ssee minha pequena part e. — D e há muitos séculos é o maior acontecimento do mundo, Senhor Barão. — É o monume monumento nto da desc descoberta oberta da Índia, a noss nossaa I greja greja de B elém — que já vistes vistes mas que vos parecerá melhor do mar. — H á-de se serr o nosso jazigo, meu e de meus filhos. — A Batalha é de outra magnificência: não há dúvida. Mas deixei-me das capelas que ali comecei, porque me quero aq ui ao pé do mar. Somos gentes do ma marr nós agora. S AINT-G ERMAIN Reinam vossos pendões sobre ele, senhor: justo é que vossa Alteza estejaa perto para receber a vass estej vassalagem. alagem. D OM M ANUEL Adeus,, minha filha! Adeus D ON A B EATRIZ Meu pai! D OM M ANUEL (abraçando-a) Não é a última ddesp espedida, edida, filha. Até logo. — Senhores Senhores,, os que somos de terra deix deixemos emos repous repousar ar ooss navegantes; que já pouco lhes fica fica papa ra isso. — Conde de Vila Nova, escuso encomendar-vos cuidado: sempre fostes bom servidor. — Vamos, senhores. — Minha filha, adeus!

(Dona Beatriz beija a mão a el-rei: o mesmo faz o conde de Vila Nova, bispo de Targa, damas e senhores da casa da infanta.)

CENA III II I

DONA BEATRIZ, CONDE DE VILA NOVA, SAINT-GERMAIN, JOFRE PASS ASSER ER IO, BI BISPO SPO D E T TARG ARG A, CH CHA ATEL, INÊS DDEE ME MELO, LO, DAMAS, etc.

Dona Beatriz deixa cair-se sobre as almofadas que estão a um canto da recâmara, e fica como absorvida em seus pensamentos. ONDE D E V ILA NOVA C ONDE As ordens de Voss Vossaa Alteza D ucal são? D ON A B EATRIZ Que ordens, conde? ONDE D E V ILA N OVA C ONDE Para partida, para levantarmos fer ferro. ro. D ON A B EATRIZ Que se cumpram as ordens de el-rei meu senhor.

37

 

C ONDE ONDE D E V IL A N OVA Então começaremos a suspender à volta das três; e às quatro desceremos com a maré. D O NA B EATRIZ Sim, sim: o que el-rei mandou. — E ide descansar, que o haveis mister. — Esperai, conde. Mandar-meMand ar-me-eis eis esta esta carta já para o paço.

( Saint-G Sai nt-G ermain rmai n e C hatel hatel dei dei tam olhos suspe suspei tosos à carta. carta. O conde a mete nas pregas do saio; beija a mão à infanta e parte.) CENA IV

Os MESMOS, menos o COND E D E VILA NOV NOVA A C HATEL ( ap aparte arte a Saint-G Sai nt-G ermain) Vistes, Vis tes, Senh Senhor or BBarã arã o? S AINT-G ERMAIN ( ap aparte arte a Chate Chatel)l) É uma ca rta: nã o se ssegue egue que... C HATEL ( falando falando consi consi go) Pa ra mim seguesegue-se se mui muito. to. — Pa recerece-me me que a inda temos temo s grande tormenta a ntes de ccomeçar omeçar a viagem. — Esta Estarei rei alerta. D O NA B EATRIZ Podereis Pod ereis retirar-v retirar-vos. os. — Estais dispen dispensados sados de ttodo odo o serviço serviço por agora .

( B ei jam-lhe to todos dos a mão mão e sae saem, menos Inês I nês de de Melo.)

CENA V

DO NA BEA BEAT TRIZ , INÊS DE MELO D O NA B EATRIZ Ide repousar, que é tarde. — Inês de Melo, encostai-vos aí ao meu camarim, para, se eu chamar; que nestas almofadas fico por ora, quero respirar este ar puro — é da minha terra ainda. Esperai, Inês: dai-me daquele cofre que aí há-de estar dentro, aquele que me trouxe da China Fernão Pires, a viagem passada — um livro que lá heis-de achar. Nã o o desabrocheis, que tem papéis dentro. ( I nê nêss de M elo sai sai e volta com um livro de quarto, grosso, com broches de prata.) Esse é: acertastes.

38

I NÊ S Voss ossaa Alteza nã o lê por outro: tinhatinha-oo à mã o para lho dar. D O NA B EATRIZ B em es está. tá. — Ide descansar.

 

CE CENA NA VI VI

D ONA BE ATRI Z D ON A B EATRIZ Este livro!... São nossos tristes tristes amores contado contadoss por um modo que os não entenderá ninguém. E aqui está a verdade toda — mas posta por ele com com aq uel uelaa a lma que sabe dar tudo! — E de t udo o que me fica é este livro. — Nada é já do que foi: está em história como as coisas passadas! — Se viere vierem m a escr escrevêevê-lo lo por esta invenção invenção q ue agora vei veioo da Alemanha, e que chegue às mãos de todos, quantos não chorarão sobre nossas desgraças! — Eu sei! Carpi-lo-ão talvez a ele, acusar-me-ão a mim. — A mim não, que bem delicadamente encobertos deixou os nomes todos — menos o seu. — Generoso coração de homem! (Levanta-se.) Oh!, que tem o mundo para me dar que me compense o que perco aqui! — Ah!, meu pai e meu senhor, o soldado que por vós vai morrer nas areias de África, ou nos palmares da Índia não vos faz tamanho sacrifício. ( Torna a recosta recostar-r-se.) — «Saud ades!» ad es!»Que Que tít título ulo lhe pôs! — Adivi Adivinhava nhava q ue delas havíamos de morrer. (Lê:) «Sobre um verde ra ramo, mo, q ue por cima da água se estendia veio pousar um rouxinol, começou a cantar tão docemente que de todo me levou após a si o meu sentido de ouvir; e ele cada vez cres crescia cia ma is em seu seuss queix queixumes, umes, que parecia q ue como ca nsado queria acaba r; sen senão ão q uando, tornava como que começava; então — triste triste da avezinha! — q ue, es estand tandoo-se se ass assim im queix queixando, ando, não sei como se caiu morta sobre aquela á gua...»

CENA VI VII

DONA BEATRIZ, CHATEL D ON A B EATRIZ (erguendo os olhos de repente do livro, dá com Chatel que

estava estava eesprei spreitando tando e que não pôde fu fugigirr sem se serr vivisto. sto. L evanta-se evanta-se com didi gni gni-dade) Que fazeis aí, senhor secretário? Não mandei eu a todos que fossem repousar? C HATEL Tinha saído ali — a tomar ar... Pareceu-me ouvir que Vossa Alteza chamava. D ON A B EATRIZ Quando o fizer não será por vós. — Não chamei ninguém agora.

— Obrigais-me a ir fechar-me no meu camarim para estar livre de... Bem. Ficai, pois, aí. — Alguém virá do paço em minha procura: chamai logo Inês de Melo... Mandai-a chamar. (Aparte.) Importun Importunoo d e italiano!

39

 

CENA VII VIIII

CHATEL (só) C HATEL Ofendeu-se minha augusta ama. — Poh! — Mas aquela história do Auto tem segredo que é preciso penetrar. E se eu chego a ser bem senhor sen hor dele. dele..... que fa rei? rei? — D eitar a perder a infanta, declarar t udo ao d uque? — T Tão ão louco sou eu eu!! Na da. — B asta q ue a duquesa saiba que eu sei o que ela não q uer que se saiba: está feita a minha fortuna. — Quem temos? — Oh! a bela Paula. — Esta é do conselho íntimo, como dizem os tudescos. — E fina como um flamengo de Carlos V. — Ma s vej vejamo amoss semp sempre re se pesco alguma coisa nestes mares. CENA IX

CH ATEL, PA PAUU LA VI CE NT NTEE C HATEL Por aqui, formosa e discreta Paula? — Não vi o vosso nome na lista: de q ue muito me pesa. — Ma Mass sabeis que foi f oi el-rei el-rei de Portugal Port ugal quem nomeou os oficiais, damas, cavaleiros e todos os que hão ser da viagem. — Para mim já ela será triste com com a f alta d e uma pess pessoa... oa... P AULA Sei muito bem que não tenho a honra de ser da viagem da Senhora Infanta-Duquesa. Nem aqui venho a estas horas senão porque me ordenou que q ue lhe vi viess essee beij beijar ar a mão, d e última despedida. C HATEL Pode ser. ser..... P AULA E é. C HATEL É certamente: basta afirmá-lo boca tão formosa. — Mas é muito mais de meia-noite. El-rei El-rei já se retirou. A SSenhora enhora D uquesa fechou-se fechou-se no seu camarim. Não tardará a começar a manobra da nau. E não sei, bela Paula, se é possível... P AULA Nem eu. Mas Ma s sei sei que há um q uarto ddee hora, e já ddepois epois de elel-rei estar estar de volta volta no paço, me mandou a Senhora Senhora I nfanta recado, por letra de sua mão, para pa ra q ue vi viess essee logo e sem detença. — Eu obedeci: vós fazei como quiserdes. — Mas... não me irei daqui sem que Sua Alteza me mande.

( Sentando-se Sentando-se nas almofadas.) almofadas.)

40

C HATEL O meu desejo é servir-vos como mereceis... — Vou mandar ver se a Senhoraa D ona I nês Senhor nês... ...

 

P AULA Avisai a quem quiserdes. O nosso costume das que somos criadas é entrar sem essas formalidades. — Eu, ainda que humilde, sou criada de Sua Alteza, Alteza , e sempr sempree mereci a minha ama ... C HATEL Bem, bem; tudo mereceis. — E porque não havíeis de ser desta viagem, bela Paula? Queria que as nossas italianas, tão presumidas de seus olhos pretos, vissem uns olhos portugueses que as matassem de inveja. P AULA ( seca  secam mente nte) Sois galante. C HATEL De galantes vos veríeis vós perseguida em Turim. Sabeis lá que terra é Itá lia lia para galantes! P AULA Inda bem que não vou; é raça que muito me enj enjoa, oa, a d os galantes. C HATEL Como assim! Tão bela e tão discreta, e galantes vos enfadam! — Percebo. (Com finura.) — A Providência dispôs já talvez de seu coração... Lá meceleste pareceu naquelas , naquele Cortes de parlamento haviaqueoradores inspirados porJúpiter  um sentimento mais vivo... Eram tão poderosos, tão irresistíveis os feitiços e esconjuros daquela moura... P AULA (aparte) Confirmemo-lo neste engano: duvida ainda. Oh meu Deus, quem me diria! Até a verdade verda de preci precisa sa fingida, e ssee engana com ela! (Alto  ).) Vejo que sois ppenetrante, enetrante, senhor secr secretário. etário. E bem dizem que não há esconder nada da finura de vossa nação. — (Aparte.) Com italiano, italiano e meio. — (Alto.) Pois bem; confessar-vos-ei tudo, já que sabeis tanto. — Estou em grande ânsia e apertura. Era um homem o que fez de moura no Auto; um homem que amou, endoideceu puro amor. — Ia-nos perdendo hojeme a meu paique... e a mim... fez umdeestranho alvoroto na corte. Misturou os seus loucos amores com o papel do auto... — Verdadeiramente a inda nã nãoo estou em mim com o susto que tive. — Mas se eu o amo; se, apesar de tudo, não posso deixar de amá-lo! (Com entu siasm  sia smoo ) .) — Se para o adorar e servir — nem a morte nem a infâmia diante de mim... Oh!, meu D eus eus!! C HATEL (aparte) Não era com a outra o utra — está visto: visto: aass ssim im não se finge, vvemem-lhe lhe do coração. P AULA A Senhora Infanta que me protege — (aparte) — ou eu a ela; horrorosa situação a minha! (Alto) quer...

41

 

C HATEL Interessar-se Interessarse por voss vossas as coisas... Entendo: negócio de ca casamento, samento, é a madrinha... P AULA (aparte) Sou eu, eu é que sou a madrinha... ma drinha... C HATEL Cois Co isaa tã o natura natural,l, tão louv louvável. ável. — É um anj a njoo a Senhora I nfanta . — Vou já fazer chamar D ona I nês nês... ... — (aparte) e tranquilizar de todo os escrúpulos do barão. — Enganei-me com efeito: perdi o meu tempo: vou ver ver se o reparo, dormindo um pouco antes que comece a maldita algazarra da manobra. CENA X

PAU LA VICENT VICENTE, E, INÊS D E ME LO P AULA (apenas Chatel se retira, corre com os olhos rapidamente a câ-

mara, palpa as tapeçarias — sente que uma do lado oposto ao camarim da i nfanta está em em vão, levanta-a. levanta-a. I me medi diatam atamente entechega ao lado com que comucomunica a ponte do cais, e faz sinal com um lenço. — Bernardim Ribeiro acode. — Paula, sem lhe dizer uma palavra, o toma pelo braço e empurra violentamente para o vão da tapeçaria, que deixa cair: e diz pondo o dedo na boca) Silêncio!

( N o mesmo mesmo iinstante nstante se abre abre a pporta orta da infanta, infanta, e sai.) sai. ) I NÊ S Manda a Senhora Infanta-Duquesa que aguardeis um instante, e já vos falará.

CENA XI

PA PAUU LA VIC ENTE ENTE P AULA V ICENTE E eu... eu é que assi assim m arrisco minha vida, minha fa fama, ma, pa para ra lhes valer em seus amores! — Todas as delícias deste adeus derradeiro — a mim mas devem! A mim que o amo — que a detesto... Oh!, não detesto, não. — Pobre B eatriz, tão boa, bo a, tã o inocente, tão tímida! ... Tu amas, desgraçada, desgraçada, e muito! D ele te apartam, para longe te le levam vam aos braços de outrem! — Reclinada no peito do estrangeiro, mesquinha!

42

— tu estremecerás com as aborrecidas carícias de um esposo indiferente; e o asco dos beijos de um marido que não amas, que em teu coração traíste já — te arrepiará os cabelos, te engulhará engulhará como peçonha! — Mas vais... E vives! E acabarás por te acostumar. — Sintra e

 

suas árvores tão verdes, Colares Co lares e suas relvas relvas tã o viçosas, tão estreladas de flores — te parecerão como um sonho de infância — singelo de mais, inocente que enfada, para quem passeia pelos recortados florões de teu magnífico jardim italiano... Costumar-te-ás à natureza afectada e factícia; e a natureza verdadeira te parecerá impossível. — E que importa! — As grandezas, o poder, a fortuna, a ambição, aí estão para compensar o perdido. — Mas aquele infeliz, que não tem outra glória, outros desejos, desejos, outra exis existência, tência, outra vi vida, da, mais que esse funesto amor que o mata — desgraçado! — oh!, para esse é que todo vai o dó do meu coração. — Inexplicável martírio que é o meu! — Amo-o; e já não é possível que eu ame outro homem senão ele. Amo-o; e assim me empenho em seus amores com outra — com uma rival que devia detestar, e não detesto — quero-lhe antes, sirvo-a, deixo caluniar a minha para salvar a sua honra!... (Longo silêncio.) E se alguém disser: — «Pa ula Vicente filha ddoo comed comediant iante, e, tu fizeste como os chocarreiros do palácio; serviste os amores de tua ama — e pelo pão com que matavas a fome, vendeste a uma princesa o teu amante.»— Di-lo-ão, meu Deus! — di-lo-ão: — e eu ficarei infame... (Reflecte; e já resoluta.) — Que o digam. Vil seria eu a meus olhos, se, para servir a este ciúme que me rala as entranhas, que me confrange os ossos — negasse a dois infelizes o amparo que só eu posso dar-lhes... (Fica por muito tempo com os braços cruzados, olhando fita para o sítio em que está escondido Bernardim Ribeiro.) Ei-lo ali está, ali que, escondido e protegido por mim, conta os ins instantes tantes q ue esp espera... era... — E não é por mim que ele espera. — Ouço-lhe quase as pulsações impacientes do coração que lhe bate de ânsia... E não é por mim que ele bate. — Vê-la-á, e a mim mo deve. — Protestar-lhe-á de seu amor eterno... e eu serei testemunha do juramento q ue toda s as minhas es es-peranças destrói. — Ouvirá que é amado... saberá... receberá... E eu, eu... — (Com amarga alegria.) Mas em poucas horas este pavimento há-de começar a mover-se, estes lenhos tomarão asas e fugirão por mares a fora com todos de fidelidade ternura... quem não suspiraria peloesses dia devotos amanhã! — Eu. —e Eu não sei Oh!, que ele há-de há-de ser mais negro ainda q ue o de hoje. — Eu, a o rgul rgulhosa hosa filha do comediante, eu, que de frente ousaria lutar com minha poderosa rival, rival, eu nã nãoo heihei-de de valervaler-me me da sua ausênci ausênciaa — não me aproveitarei de seus desej desejos. os. O mundo q ue fale. A filha do comediante é gra grande nde a seus olhos. CENA XII

PA PAUU LA VICE NT NTE, E, D ONA BE ATR IZ D ON A B EATRIZ (abrindo a porta do camarim) Pa ula, minha boa P aula, venho eu mes mesma ma a brirbrir-te, te, que nã o quero ninguém entre nós nestas horas derradeiras de nossa despedida.

43

 

— Meu Deus, eu não tinha senão esta amiga: mandam-me desterrada, e até dela me privam! — Entra, Paula, que se me arromba o peito, se não desabafo contigo de tanta mágoa que aqui está. Vem: tenho muito que te dizer. P AULA A mim, senhora! senhora! — a mim tendes que dizer! — Se foss fossee a... D O NA B EATRIZ Não, Paula; já agora não! Depois do que meu pai me disse, depois do que lhe eu prometi... P AULA Po Pois is elel-rei?... rei?... D O NA B EATRIZ Sabe tudo. — Não que mo dissesse, Paula; mas falou-me de um modo... deu-me deu-me uns cons conselhos elhos... ... Oh! , que se me pa partia rtia a alma de o ouvir! ouvir! Não me repreendeu, não me q uis envergonhar; envergonhar; chorou comigo... Tão Tão bom pai! — Oh! , que mocidade a minha! — Não, não quero ve verr mais aq uele homem. E q ue lhe havia de eu dizer, se o vis visse! se! Que Q ue lhe havia de eu dizer àquele infeliz que me ama tanto, e que eu... que eu devo esquecer para semp sempre... re... (Ouve-se ruído detrás da tapeçaria. Beatriz estremece.) Que seria isto? — Não estamos bem aqui, Paula: — entra. São decerto boas duas horas. Às quatro dizem que sairemos: Ai! daqui a duas horas começará a mover-se isto tudo; — e a minha terra a fugir para sempre — a minha terra, e quanto nela me prendia a esta vida... vida que já agora não sei para que me serve. — Oh!, Paula, Pa ula, que noite a de ontem pa ra ser a última! — Que Q ue terrív terrível el ssurpreurpresa aquela do Auto! E o anel, o fatal anel... — Pois não mo entregou o insensato! Não me restituiu o anel que lhe eu dera! — Não me disse!... — Oh!, queimam-me ainda aqui no ouvido as terríveis, as desdenhosas palavras que me disse aquele louco. — E eu q ue me sentia morrer! — E meu pai ali, e todos... Tremo ainda quando me lembro que o podia m descobrir. P AULA Certo que maior imprudência se não fez ainda. Acuso-me a mim mesma de ter concorrido para vos pôr em tamanho perigo. D O NA B EATRIZ O meu peri perigo! go! — Bem pensava eu em mim naq uele iinstante. nstante. Ai! por ele é que eu tremia, Pa ula. Se o descobris descobrissem, sem, meu Deus! — Ma s que amor, que força de amor não é necessária para cometer ousadia tal! — Dir-lhe-ás, Paula, tu que o hás-de ver ainda, tu que és tão afortunada... P AULA E u! D O NA B EATRIZ

44

Que há s-de s-de to rnar a vêvê-lo lo — dirdir-lhelhe-ás ás que... q ue... P AULA Que muito lhe estranhais seu atrevime atrevimento? nto?

 

D ON A B EATRIZ Estranhar-lho! — Se prazer como eu tive então — misturado, é verdade, de pena tão cruel! — se eu nunca senti o que senti então — se aq uele transe transe... ... P AULA G rande aapertura pertura ser seria, ia, senh senhora: ora: nã o a qquis uiséreis éreis tornar a passar... passar... D ON A B EATRIZ Oh! , Paula, a minha vida por outro ins instant tantee como aq aquele. uele. CENA XIII

DO NA BEA BEAT TRIZ , PPA AU LA VICENT VICENTE, E, BE RNARD IM R IBEIR O sa  saind indoo D ON A B EATRIZ Ai! (Desfalece: acode-lhe Paula.) B ERNARDIM E eu que não soube morrer naquele instante! Fui um cobarde: não merecia viver até este; não merecia ouvir de teus lábios que morro amado, que morro ditoso. Beatriz, Beatriz, eu venho morrer a teus pés. (Ajoelha e toma-lhe as mãos.) — Tenho pa padecido decido o qque ue nenhum homem sofreu ainda; tenho levado uma vida... que — se eu fora amaldiçoado de Deus... se neste mundo me começara o Inferno por meus crimes — não a podia ter pior nem outra... — Oh!, Beatriz, foi dura a provança, longa a expiação. — Mas este céu, mas esta bem-aventurança nã o tinham preço. — Oh! , Beatriz, B eatriz, deixa-me deixa-me que te beije estas mãos, que te adore aqui, que de joelhos diante do anjo que me vem buscar, que me despena — que me remiu — eu viva estes minutos de êxtase, de felicidade que não é, não pode ser, não é da Terra erra.. — T Tuu és princesa — eu sou um pobre t rovad rovador. or. M Mas as esta coroa de glória, não a têm t êm os rei reis.s. De onde a houves houveste! te! — D o CCéu, éu, anj anjo, o, do Céu queque te descria manda jájaá de esteD eus baixo—mundo uma alma se perdia, que ia qconfortar uase a blasfemar! — que Estiv Estive, e, estive a ponto de blasfemar de ti! — Oh!, Beatriz, eu sou um monstro, eu não te mereço. — E mais, olha, se não for eu, nenhum outro homem te merece. — Tu és uma princesa, bem sei; eu sou um triste menestrel, já to disse. Mas, sabes tu? Aquela formosa rainha de Inglaterra beij beijou ou o trovad trovador or que do rmia... — Meu DDeus eus,, dormirei eu, sonharei eu! — Oh!, deixem-me morrer antes de acordar. — Deixa-me aq ui morrer a teus ppés, és, Beat Beatriz riz — B eatriz, não ttee peço ssenão enão q ue me deixes morrer aqui a teus pés. D ON A B EATRIZ E qual outra esperança há para nós, Bernardim? — Era piedade da sorte que nos mata sse sse aqui a aambos. mbos.

45

 

P AULA (aparte) Não poss possoo ouvir is isto. to. PParte-s arte-see-me me a alma: e já não sei que sentimento sentimento é o que tenho no coração, se é paixão se é dó — ou se ainda tenho zelos! ( Vai pre precicipitadam pitadameente para para a varanda.) B ERNARDIM Ouve: a flor dos meus anos murchou-se na tristeza e no desconsolo — mirrou-se na esterilidade; sacudiu-lhe o vento do deserto as folhas desbotadas e secas. — Que a hástia espere pelas águas do Inverno que a apodreçam — ou que a segue já a foice do ceifeiro... importa alguma coisa? — Nunca vivi vivi até a gora; tiv t ivee estes iinstantes nstantes para a valiar valiar a mercê do Criador em me dar o ser. — Morrer, para mim, é necessidade. Não sou eu que o quero, que o desejo; é que por força há-de ser assim. assim. — Poeta, ddizes izes tu agora — perdes perdeste te o juízo a fa ntasiar — enlouquec lou queces este. te. — Não, Bea triz, nnunca unca me ssubiu ubiu a fa ntasia tão a lto.

( Ouve-se uve-se o api api to de bordo.) D O NA B EATRIZ Que será isto?... P AULA ( frfrii amente amente entrando entrando na varanda) O apito do mestre. — É mais tarde do que supúnhamos: vai começar a manobra. — Senhora, eu tive dó deste homem: prometi-lhe de fazer com que vos visse um instante. — Deve a mim, a si próprio, e a Vossa Alteza sobretudo, não abusar agora. — Se nos demoramos um momento ma is, is, estamos perdidos todos...

(Segundo apito prolongado. Sente-se grande ruído de manobra e vozeaririaa da tripulaçã tripulaçãoo que traba trabalha.) lha.) D O NA B EATRIZ Santoss do Céu! q ue jjáá o galeã Santo galeãoo se mov move. e. P AULA Ainda não; ainda é possível escapar. (Olha para o lado respectivo.) Ainda está sabereis fixa a ponte dofizgaleão no Adeus, cais. — Senhora, adeus! Não nu nunca ncaque tudotoca o q ue por vós. Adeus , lembrailembrai-vos vos alguma vez da pobre Paula.

( O ruí ruído do cessa cessa:: Paula vai vai be beii jar a mão mão da infanta.) infanta.) B ERNARDIM (em desvario, afastando-a com violência e pondo-se em pé) Desgraçado do que tocar nesta mão. — São duques, são reis, são príncipes? — Eu sou Bernardim Ribeiro, o trovador, o poeta, que tenho maior coroa que a sua. O ceptro com que reino aqui, ganhei-o, não o herdei como eles. — Beatriz é minha. (Ouve-se música de cha-

raméis.)

46

 

P AULA Nossaa é a desonra e a morte. Noss mort e. D ON A B EATRIZ Paula, Paula, que é? P AULA El-rei que chega. — Já não há remédio. — (Vai ver.) Já lá vem ao princípi princ ípioo da d a ponte. B ERNARDIM Quem? P AULA El-rei, que vem achar a infanta sua filha com um homem escondido em sua câmara. câmara . — Devanea Devaneaii agora à vontade: já completastes a vos vossa sa obra. B ERNARDIM (caindo em si, e com tranquilidade) Não tenhais receio. Estou perfeitamente em meus sentidos. — B eatriz, um derradeiro adeus — uum m adeus até aaoo CCéu! éu! — A rola, que perdeu o companheiro, compa nheiro, deix deixa-s a-see morrer d e míngua sobre o ramo lascado da árvore em que lho mataram... — Estas águas, em que já baloiça o navio em que te levam — Bea triz!... (Ajoelha e esconde o rosto entre as mãos da infanta) estas águas que me roubam tudo... (Ouve-se

 grand  gra ndee alarido larido.).) P AULA El-reii que entra... El-re B ERNARDIM Que tomem também a minha vida. ( A rrrreemessa-se, messa-se, pela pela varanda do ga-

leão, ao mar.) D ONA BE ATRI Z Ai! (Cai sem sentidos.) P AULA (olha para o rio, e volta em desespero) : Já vai sseguido eguido o galeão! CENA ÚLTIMA

D ONA BEAT BEATRI RI Z, PPA AU LA VICENT VICENTE, E, EL -RE I D OM MANU EL e SÉQUITO

Paula ajoelha junto à infanta i nfanta este estendi ndida da no chão, e lhe be bei ja a mão mui mui-tas vezes, leva-a ao coração, e levanta-se precipitadamente. — Neste mesmo i nstanteentra el-re el-r ei . D OM M ANUEL O último adeus, minha filha, um abraço ainda! (Todos rodeiam a in fant  fantaa ) .) Já o galeão vai navegado! Tomouomou-aa o sus susto. to. — Filha! (Aparte.) Eu constrangi sua vontade. — Meu Deus, se eu matei a minha filha!

47

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF