Turner - Communitas

November 24, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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3 Liminaridade e "Communitas" FORMA E ATRIBUTOS DOS RITOS DE PASSAGEM

NESTE CAPÍTULO RETOMO UM TEMA QUE JÁ DISCUTI resumidamente em outra ocasião (Turner, 1967, p. 93-111); observo algumas de suas variações, e passo a considerar-lhe as ulteriores implicações para o estudo da cultura e da sociedade. Este tema é, em primeiro lugar, representado pela natureza e características do que Arnold van Gennep (1960) chamou "fase liminar" dos rites de passage. O próprio Van Gennep definiu os rites de passage como "ritos que

acompanham toda mudança de lugar, estado, posição social de idade". Para indicar o contraste entre "estado" e "transição", emprego "estado", incluindo todos os seus outros termos. É um conceito mais amplo do que "status" ou "função", e refere-se a qualquer tipo de condição estável ou recorrente, culturalmente reconhecida., Van Gennep mostrou que todos os ritos de passagem ou de "transição" caracterizam-se por três fases: separação, margem (ou "limen", significando "limiar" em latim) e agregação. A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer de um ponto fixo anterlo na estrutura social, quer de um conjunto de condições culturais (um "estado"), ou ainda de ambos. Durante o período "limiar" intermédio, as características do sujeito

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ritual (o "transitante") são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem. O sujeito ritual, seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente estável mais uma vez, e em virtude disto tem direitos e obrigações perante os outros de tipo claramente definido e "estrutural", esperando-se que se comporte de acordo com certas normas costumeiras e padrões éticos, que vinculam os incumbidos de uma posição social, num sistema de tais posições.

Liminaridade Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtamse ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades Iiminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais.  Assim, a Iiminaridade freqüentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualida de, às regiões selvagens e a um eclipse do sol ou da lua.  As entidades Iiminares, como os neófitos nos ritos de iniciação ou de puberdade, podem ser representadas como se nada possuíssem. Podem estar disfarçadas de monstros, usar apenas uma tira de pano como vestimenta ou aparecer simplesmente nuas, para demonstrar que, como seres liminares, não possuem "status", propriedade, insígnias, roupa mundana indicativa de ela ou papel social, posição em um sistema de parentesco

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em suma, nada que as possa distinguir de seus colegas neófitos ou em processo de iniciação. Seu comportamento é normalmente passivo e humilde. Devem, implicitamente, obedecer aos instrutores e aceitar punições arbitrárias, sem queixa. É como se fossem reduzidas ou oprimidas até a uma condição uniforme, para serem modeladas de novo e dotadas de outros poderes, para se capacitarem a enfrentar sua nova situação de vida. Os neófitos tendem a criar entre si uma intensa camaradagem e igualitarismo. As distinções seculares de classe e posição desaparecem, ou são homogeneizadas. A condição da paciente e de seu marido no Iso ma tinha alguns desses atributos - passividade, humildade, nudez quase completa - num ambiente simbólico que representava ao mesmo tempo uma sepultura e um útero. Nas iniciações com longo período de reclusão, tais como os ritos de circuncisão de muitas sociedades tribais ou a entrada em sociedades secretas, há freqüentemente uma rica proliferação de símbolos Iiminares.

"Communítas" O que existe de interessante com relação aos fenômenos Iiminares no que diz respeito aos nossos objetivos atuais é que eles oferecem uma mistura de submissão e santidade, de homogeneidade e camaradagem. Assistimos, em tais ritos, a um "momento situado dentro e fora do tempo", dentro e fora da estrutura social profana, que revela, embora efemeramente, certo reconhecimento (no símbolo, quando não mesmo na linguagem) de um vínculo social generalizado que deixou de existir, contudo simultaneamente tem de ser fragmentado er uma multiplicidade de laços estruturais. São os laço organizados em termos ou de casta, classe ou orden hierárquicas, ou de oposições segmentares, nas sociedades onde não existe o Estado, tão estimada pelos antropólogos políticos. É como se houvesse neste caso dois "modelos" principais de correlacionamento humano

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no, justapostos e alternantes. O primeiro é o da sociedade tomada como um sistema estruturado, diferenciado e freqüentemente hierárquico de posições político-jurídico-econômicas, com muitos tipos de avaliação, separando os homens de acordo com as noções de "mais" ou de "menos". O segundo, que surge de maneira evidente no período Iiminar , é o da sociedade considerada como um "comitatus" não-estruturado, ou rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado, uma comunidade, ou mesmo comunhão, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos rituais. Prefiro a palavra latina comtnunitas à comunidade, para que se possa distinguir esta modalidade de relação social de uma "área de vida em comum". A distinção entre estrutura e "communitas" não é apenas a distinção familiar entre "mundano" e "sagrado", ou a existente por exemplo entre política e religião. Certos cargos fixos nas sociedades tribais têm muitos atributos sagrados; na realidade toda posição social tem algumas características sagradas. Porém este componente "sagrado" é adquirido pelos beneficiários das posições durante os "rites de passage", graças aos quais mudam de posição. Algo da sacralidade da transitória humildade e ausência de modelo toma a dianteira e modera o orgulho do indivíduo incumbido de uma posição ou cargo mais alto. Como Fortes (1962, p. 86) demonstrou de maneira convincente, não se trata simplesmente de dar um cunho geral de legitimidade às posições estruturais de uma sociedade. É antes uma questão de reconhecer um laço humano essencial e genérico, sem o qual não poderia haver sociedade. A Iiminaridade implica que o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no alto deve experimentar o que significa estar em baixo. Sem dúvida um pensamento deste tipo esteve na base da decisão do príncipe Phillip, alguns anos atrás, de mandar o filho, o herdeiro presuntivo do trono britânico, para

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uma escola no meio da floresta na Austrália, por determinado tempo, a fim de que pudesse aprender a "levar uma vida dura".

A Díalétíca do Ciclo de Desenvolvimento De tudo isso, concluo que, para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um tipo de processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade. A passagem de uma situação mais baixa para outra mais alta é feita através de um Iimbo de· ausência de "status". Em tal processo, os opostos por assim dizer constituem-se uns aos outros e são mutuamente indispensáveis.  Ainda mais, como qualquer sociedade tribal é composta de múltiplas pessoas, grupos e categorias, cada uma das quais tem seu próprio ciclo de desenvolvimento, num determinado momento coexistem muitos encargos correspondentes a posições fixas, havendo muitas passagens entre as posições. Em outras palavras, a experiência da vida de cada indivíduo o faz estar exposto alternadamente à estrutura e à communitas, a estados e a transições.

A LIMINARIDADE DE UM RITO DE INVESTIDURA Um exemplo sumário de um rite de passage dos ndembos do Zâmbia será citado com utilidade aqui, porqu se refere à mais alta posição social naquela tribo, do chefe mais velho Kanongesha. Também servirá par desenvolver nossos conhecimentos sobre o modo com os ndembos se utilizam de seus símbolos rituais e explicam. A posição de chefe mais velho ou supremo entr os ndembos, como em muitas outras sociedades africanas, é paradoxal, pois ele representa ao mesmo tem o ápice da hierarquia político-legal estruturada e a

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comunidade total, enquanto unidade não-estruturada. É também, simbolicamente, o próprio território tribal e todos os seus recursos. A fecundidade e a condição de não: sofrer seca, fome, doença e pragas de insetos estão ligadas ao seu cargo e a seu estado físico e moral. Entre os ndembos os poderes rituais do chefe mais antigo eram limitados, combinando-se com eles, pelos poderes possuídos pelo chefe mais velho de tribo do povo autóctone mbwela, que só foi submetido depois de longa luta com os conquistadores lundas, conduzida pelo primeiro Kanongesha. O chefe chamado Kafwama, dos humbos, um ramo dos ndembos,

foi investido de um importante direito. Era o direito de conferir, impregnando-o periodicamente de substâncias medicinais, o símbolo, supremo da posição de chefia entre as tribos de origem lunda, o bracelete lukanu, feito com os órgãos genitais e tendões humanos embebidos no sangue sacrifical de escravos e escravas, em cada investidura. O título ritual do Kafwama  era Chivwikankanu, "aquele que se veste ou se cobre com o lukanu", Possuía também o titulo de Mama yakanongesha , "mãe de Kanongesha ", porque simbolicamente dava nascimento a cada novo ocupante daquele cargo. Dizia-se que o Kafwana ensinava a cada novo Kanongesha  os remédios da feitiçaria, que o faziam ser temido por seus rivais e subordinados, talvez um indício de fraca centralização política. O lukanu,  primitivamente conferido pelo chefe de todos os lundas, o Mwantiyanvwa, que governava em Katanga, muitas milhas ao norte, era ritualmente tratado pelo Kafwana e oculto por ele durante os interregnos. O poder místico do lukanu, e portanto da condição de Kanongesha , vinha conjuntamente do Mwantiyanvwa, o chefe de quem emanava o poder polltico, e do Kafwana, a fonte ritual. O emprego dele em benefício da terra e do povo estava nas mãos de uma sucessão de indivíduos incumbidos da chefia. A origem no Mwantiyanvwa  simbolizava a unidade histórica do povo ndembo e sua diferenciação política em subchefias

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dominadas pelo Kanongesha. A medicação periódica do lukanu  pelo Kafwana  simbolizava a terra - da qual o Kafwana  era o "proprietário" original - e a comunidade inteira que vivia nela. As invocações diárias feitas a ele pelo Kanongesha, ao nascer e ao pôr-do-sol, visavam à fertilidade, à saúde e vigor

permanentes da terra, dos animais e recursos vegetais, e do povo - em resumo, ao bem público. Mas o lukanu tinha um aspecto negativo, o de poder ser usado pelo Kanongesha  para amaldiçoar. Se o Kanongesha  tocava a terra com ele e proferia uma certa fórmula, acreditava-se que a pessoa ou o grupo amaldiçoado se tornava estéril, sua terra perdia a fertilidade e sua caça desaparecia. No lukanu, finalmente, os lundas e os mbwelas se uniam no conceito coletivo da terra e da gente ndembo. Na relação entre os lundas e os mbwelas, e entre o Kanongesha  e o Kafwana, encontramos uma distinção comum na África entre o povo política ou

militarmente forte e o povo autóctone subjugado, entretanto ritualmente potente. Iowan Lewis (1963) definiu esses inferiores estruturais como tendo "o poder ou os poderes do fraco" (p. 111). Um exemplo bastante conhecido na literatura encontra-se no relato de Meyer Fortes sobre os tallensis do norte de Gana, onde a chegada dos namoos trouxe a chefia e um culto ancestral altamente desenvolvido para os autóctones tales, que, por sua vez, julga-se terem importantes poderes rituais relativos à terra e às cavernas. No grande festival Golib, realizado anualmente, a união dos poderes de chefia de sacerdócio é simbolizada pelo casamento místico entr o chefe de Tongo, líder dos namoos, e o sumo-sacerdot da terra, o Golibdaana, dos tales, retratados, respecti vamente, como "marido" e "mulher". Entre os ndembos, Kafwana  é também considerado, como vimos, simbolicamente feminino em relação ao Kanongesha. Poderi multiplicar os exemplos deste tipo de dicotomia, retira dos apenas de fontes africanas, e seu âmbito abrang o mundo inteiro. O ponto que gostaria de acentuar aqui é a existência de certa homologia entre a "fraqueza"

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a "passividade" da Iiminaridade nas transições diacrônicas entre uma posição social e outra, e a inferioridade "estrutural" ou sincrônica de certas pessoas, grupos e categorias sociais nos sistemas políticos, legais e econômicos. As condições "liminares" e "inferiores" estão freqüentemente f reqüentemente associad associadas as aos poderes rituais e à comunidade inteira, considerada como indiferenciada. Voltemos aos ritos de investidura do Kanongesha dos ndembos. O componente Iiminar de tais ritos começa com a construção de um pequeno abrigo de folhas, distante mais ou menos um quilômetro e meio da aldeia principal. Esta cabana é conhecida por kaju  ou kafwi , termo ndembo derivado de ku-fwi , "morrer", porque é aí que o chefe eleito morre para o seu estado de homem comum. As imagens da morte proliferam na liminaridade dos ndembos. Por exemplo, o lugar secreto e sagrado onde os noviços são circuncisados, é conhecido como  ifwilu  ou chifwilu, termo também derivado de ku-fwa. O chefe eleito, vestido apenas com um pano esfarrapado .na cintura e uma esposa." ritual, que é ou sua esposa mais idosa ( mwadyi ) ou uma mulher escrava especial, conhecida como lukanu (em conformidade com o bracelete real), nessa ocasião, vestida da mesma maneira, são ,convocados pelo Kafwana  a entrar no abrigo kaiu, logo depois do pôr-do-sol. Diga-se de passagem que o próprio chefe é também conhecido como mwadyi   ou Iukanu, nesses ritos. O casal é conduzido para a cabana como se fossem inválidos. Lá, o homem e a mulher se sentam agachados numa postura indicativa de vergonha ( nsonyi ) ou de recato, enquanto são lavados com remédios misturados com água trazida do Katukang'onyi , o local do rio onde os chefes ancestrais da diáspora lunda meridional habitaram durante algum tempo, na viagem iniciada na capital Mwantiyanvwa, antes de se separarem para conquistar reinos para si. A madeira para o fogo não deve ser cortada com um machado, mas deve ser encontrada caída no solo. Isto significa que é produto da terra e não artefato. Uma

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vez mais vemos a conexão do caráter ancestral de pertencer aos lundas com os poderes ctônicos. Em seguida começa o rito de Kumukindyila, que quer dizer literalmente "falar palavras más ou insultantes contra ele". Podemos denominar este rito "O Insulto ao Chefe Eleito". Começa quando o Kafwana faz um corte no lado inferior do braço esquerdo do chefe - no qual o bracelete lukanu  será colocado no dia seguinte espreme um remédio na incisão, e aperta uma esteira sobre a parte superior do braço. O chefe e sua mulher são, então, forçados rudemente a se sentarem na esteira. A mulher não deve estar grávida, pois os ritos que se seguem são considerados destruidores da fecundidade. Além do mais, o par soberano deve ter-se abstido de relações sexuais por vários dias antes dos ritos. O Kafwana começa a fazer uma homilia, transcrita a seguir: "Silêncio! Tu és um tolo egoísta e desprezível, além de ter mau gênio! Não amas teus companheiros, só te zangas com eles! Baixeza e ladroeira é tudo o que tens! No entanto, chamamos-te aqui e te dizemos que deves ser o sucessor na chefia. Põe de lado a mesquinhez, põe de lado a cólera, renuncia às relações adúlteras, renuncia a elas imediatamente! Nós te outorgamos a chefia. Deves comer junto com teus companheiros, deves viver bem com eles. Não prepares remédios de feitiçaria a fim de poderes destruir teus companheiros nas cabanas dele - isto é proibido! Desejamos que tu e só tu sejas nosso chefe. Que tua mulher prepare alimento para as pessoas que vêm aqui, à aldeia principal. Não sejas egoista, não conserves a chefia somente para ti! Deves rir junto com o povo, deve abster-te de praticar feitiçaria, se porventura já a realizaste! Não deverás matar gente! Não deves deixar de ser generoso para com o povo! Mas tu, Chefe Kanongesha, Chifwanakenu ['filho que se pa rece com o pai'] de Mwantiyanvwa, dançaste para obter chefia porque teu predecessor morreu [isto é, porque tu óma taste]. Mas hoje tu nasceste como um novo chefe. Deves conhecer o povo, Chifwanakenu. Se eras mesquinho, e costu mavas comer teu pirão de mandioca, ou tua carne sozinho, hoje estás na chefia. Deves abandonar tuas maneiras egoístas, dev saudar amavelmente a todos, és o chefe! Deves deixar de se adúltero e briguento. Não deves fazer julgamentos parciais em nenhum caso legal que envolva teu povo, especialmente se teu

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próprios filhos estiverem implicados. Deves dizer: Se alguém dormiu com minha mulher, ou me fez algum mal, no dia de hoje não devo julgar seu caso injustamente. Não devo guardar ressentimento no coração'", Depois de toda esta arenga, qualquer pessoa que Julgue ter sido prejudicada pelo chefe eleito, no passado, está autorizada a insultá-lo e a expressar plenamente seu ressentimento, entrando em detalhes conforme desejar. O chefe eleito, durante tudo isso, deve ficar sentado silenciosamente, com a cabeça inclinada, "o modelo de paciência" e da humildade. Entrementes, o Kafwana borrifa o chefe com remédio, de vez em quando batendo com o traseiro

contra ele (kumubayishas de modo insultuoso. Muitos informantes me disseram que "um chefe é como um escravo ( ndung'u) na noite antes de subir ao trono". Fica proibido de dormir, em parte como ordálio, em parte porque se acredita que se ele cochilar terá maus sonhos com as sombras dos chefes mortos, "quem dirá que não tem razão em suceder a eles, pois ele não os matou?" O Kafwana, seus assistentes, e outros homens importantes, como os chefes da aldeia, maltratam o chefe e sua mulher - que é igualmente insultada - e Ihes ordenam que apanhem lenha e realizem outras tarefas servis. O chefe não pode ofender-se com isto ou reter a lembrança do que lhe fizeram e usá-Ia no futuro contra os que praticaram tais ações.

OS ATRIBUTOS DAS ENTIDADES LIMINARES LIMIN ARES  A fase de reagregação, neste caso, compreende a investidura pública do Kanongesha, com toda a pompa e cerimônia. Apesar deste ato ter o máximo interesse para o estudo da chefia dos ndembos e para uma importante tendência da antropologia social britânica da atualidade, não nos ocuparemos aqui do assunto. Nossa atenção prende-se agora à questão da liminaridade e dos poderes rituais dos fracos. Estes aparecem sob dois aspectos. Primeiramente, o Kafwana e as outras pessoas 125

 

comuns do povo ndembo revelam-se privilegiados, ao exercer autoridade sobre a figura da suprema figura da tribo. Na Iiminaridade o subordinado torna-se o predominante. Em segundo lugar, a suprema autoridade política é retratada "como um escravo", lembrando O aspecto da coroação do papa na cristandade ocidental em que ele é chamado "servus servorum Dei". Sem dúvida, uma parte do rito tem aquilo que Monica Wilson (1957, p. 46-57) chamou "uma função profilática". O chefe precisa exercer o autocontrole nos ritos para ser capaz de autodomínio depois, diante das tentações do poder. Mas o papel de chefe humilhado é somente um exemplo extremo de um tema repetido das situações Iiminares. Este tema consiste no despojamento dos atributos pré-liminares e pósliminares. Vejamos os principais ingredientes dos ritos Kumukindyila. O chefe e sua mulher vestem-se da mesma maneira, com uma tira de pano esfarrapada na cintura, e partilham do mesmo nome, mwadyi.  O termo é também aplicado a meninos submetidos à iniciação e à primeira esposa de um homem, na ordem cronológica do casamento. É um sinal do estado anônimo do "iniciando". Esses atributos de ausência de sexualidade e de anonímia são inteiramente característicos da Iiminaridade. Em muitas espécies de iniciação, nas quais os neófitos são de ambos os sexos, homens e mulheres vestem-se do mesmo modo e são denominados pelo mesmo termo. É o que acontece por exemplo em muitas cerimônias batismais nas seitas cristãs, ou sincréticas da Africa, Afr ica, assim as do culto  no Gabão (James Fernandez, comunicação pessoal). Também é verdade na Bwiti  no iniciação para a entrada na associação funerária dos ndembos de Chiwila. Simbolicamente, todos os atributos que distinguem categorias e grupos na ordem social estruturad ficam aqui temporariamente suspensos. Os neófitos são meramente entidades em transição, não tendo ainda lugar ou posição. Outras características são a submissão e o silêncio. Não somente o chefe, nos ritos agora examinados, ma também os neófitos, em muitos rites de passage, deve

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submeter-se a uma autoridade que nada mais é senão a da comunidade total. Esta comunidade é a depositária da gama completa dos valores da cultura, normas, atitudes, sentimentos e relações. Seus representantes nos diversos ritos - e podem variar, de ritual a ritual representam a autoridade genérica da tradição. Nas sociedades tribais, também, a fala não é apenas comunicação, mas poder e sabedoria. A sabedoria transmitida na liminaridade sagrada não consiste somente num aglomerado de palavras e de sentenças; tem valor ontológico, remodela o ser do neófito. É por isto que, nos ritos Chisungu, dos bembas, tão bem descrito por Audrey Richards (1956), as mulheres mais velhas dizem que a moça reclusa "cresceu e se tornou mulher", cresceu em virtude das instruções verbais e nãoverbais que recebeu mediante os preceitos e os símbolos, especialmente pela revelação, que lhe é feita, dos sacra tribais em forma de imagens de barro. O neófito na Iiminaridade deve ser uma tabula rasa, lima lousa em branco, na qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes ao novo "status". Os ordálios e humilhações, com freqüência de caráter grosseiramente fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em parte a destruição de uma condição anterior e, em parte, a têmpera da essência deles, a fim de prepará-los para enfrentar as novas responsabilidades e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus novos privilégios. É preciso mostrar-Ihes que, por si mesmos, são barro ou pó, simples matéria, cuja forma Ihes é impressa pela sociedade. Outro tema liminar, exemplificado nos ritos de investidura dos ndembos, é a continência sexual. É um tema difundido no ritual ndembo. De fato, o reatamento das relações sexuais é usualmente uma marca cerimonial de retorno à sociedade como estrutura de posições. Embora este seja um traço de certos tipos de comportamento religioso em quase todas as sociedades, na sociedade pré-industrial, com sua forte acentuação

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do parentesco como "base de muitos tipos de filiação ao grupo, a continência sexual tem além disso força religiosa. Tal acontece porque o parentesco, ou as relações configuradas pela linguagem do parentesco, constitui um dos principais fatores da diferenciação estrutural. O caráter indiferenciado da Iiminaridade reflete-se na descontinuidade das relações sexuais e na ausência de uma marcada polaridade sexual. É instrutiva a análise do sermão do Kafwana, para se procurar apreender o significado de Iiminaridade. O leitor certamente se lembrará de que ele repreendeu o chefe eleito por seu egoísmo, mesquinharia, roubo, cólera, feitiçaria e avareza. Todos esses vícios representam o desejo de possuir para si mesmo aquilo que deveria ser repartido para o bem comum. Uma pessoa incumbida de um alto cargo fica especialmente tentada a usar a -,autoridade de que foi revestida pela sociedade para satisfazer desejos particulares e exclusivos. Mas deveria encarar seus privilégios como dádivas da comunidade inteira, que em última análise tem um direito supremo sobre todas as suas ações. A estrutura e os altos cargos providos pela estrutura são assim considerados como meios para o bem-estar público, e não como recurso de engrandecimento pessoal. O chefe não deve "conservar a chefia só para si". Deve rir junto com o povo, e o riso ( kuseha) é para os ndembos uma qualidad "branca", participando da definição da

"brancura" ou das "coisas brancas". A brancura representa atei inconsútil de conexão, que deverá ideal mente incluir ao mesmo tempo os vivos e os mortos. É à relação certa entre as pessoas, apenas enquanto seres humanos, seus frutos são a saúde, o vigor, e os outros bens. O riso "branco", por exemplo, que é visivelmente manifestado pelo brilho dos dentes, representa camaradagem e companhia agradável. É o reverso do orgulho ( winyi ), ), e da inveja, da cobiça, e dos rancores secretos que dã em resultado comportamentos de feitiçaria ( wuloji ), ), roubo (wukombi ), ), aduItério (kushimbana), baixez (chifwa) e homicídio (wubanji ). ). Mesmo quando um

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homem se tenha tornado chefe, continua sendo ainda membro da comunidade inteira das pessoas ( antu), e demonstra isto "rindo junto com elas", respeitandoIhes os direitos, "saudando amavelmente a todos", e partilhando do alimento com elas. A função purificadora exercida pela Iiminaridade não está confinada a esse tipo de iniciação, mas forma um componente de muitos outros tipos, em várias culturas. Um exemplo bastante conhecido é o da vigília medieval, feita pelo cavaleiro, durante a noite que precede a sua investidura, quando promete empenhar-se em servir aos fracos e aflitos e a meditar em sua própria indignidade. Acredita-se que o poder subseqüente que possui deriva parcialmente desta profunda imersão na humildade.  A pedagogia da liminaridade, portanto, representa a condenação de duas espécies de separação do vínculo comum da "communitas". A primeira espécie consiste em agir somente de acordo com os direitos conferidos ao indivíduo pelo exercício do cargo na estrutura social. A segunda consiste em seguir os impulsos psicológicos do indivíduo, à custa de seus companheiros. Atribui-se um caráter místico ao sentimento de bondade humana em muitos tipos de Iiminaridade, e em várias culturas este estágio de transição relaciona-se estreitamente com as crenças nos poderes protetores e punitivos de seres e potências divinas ou sobrenaturais. Por exemplo, quando o chefe eleito ndembo sai da reclusão, um dos sub-chefes - que desempenha um papel sacerdotal nos ritos de investidura constrói uma cerca ritual em redor da nova morada do chefe, e reza da seguinte maneira, dirigindo-se às sombras dos antigos chefes, diante do povo que se reuniu para assistir à posse no cargo: "Ouvi, vós, todo o povo. O Kanongesha nasceu para a chefia hoje. Esta argila branca (mpemba), com a qual o chefe, os sacrários dos ancestrais e os oficiantes serão ungidos, significa para vós todos os antigos Kanongeshas Kanongeshas,, reunidos aqui. [Neste ponto os antigos chefes são mencionados pelo nome] Portanto, todos vós que morrestes, olhai para vosso amigo que vos sucedeu [no banco da chefia], para que eIe possa ser forte. Ele deve continuar a orar a vós. Deve, tomar conta das crianças,

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cuidar de todo o povo, homens e mulheres, para que sejam fortes e para que ele próprio seja vigoroso. Eis aqui a argila branca. Eu vos entronizei, entronizei, ó chefe. Que o povo lance sons de louvor. Surgiu a chefia".

Os poderes que modelam os neófitos na Iiminaridade para a entrada em uma nova "condição", nos ritos em todas as partes do mundo, são considerados poderes sobre-humanos, embora sejam invocados e canalizados pelos representantes da comunidade.

A LIMINARIDADE CONFRONTADA COM O SISTEMA DE POSIÇOES SOCIAIS Expressemos, agora, à maneira de Lévi-Strauss, a diferença entre as propriedades da Iiminaridade e as do sistema de posições sociais, em termos de uma série de oposições, ou discriminações binárias. Estas podem ser ordenadas do modo seguinte: Transição/estado Totalidade/parcialidade Horrrogeneidade/heterogeneidade "Communitas"/estrutura Igualdade/desigualdade  Anonímla/sistemas de nomenclatura nomenclatura  Ausência de propriedade/propriedade propriedade/propriedade  Ausência de "status"/"status" Nudez ou uniformidade de vestuário/variedade de vestuário Continência sexual/sex sexual/sexualidade ualidade Subestimação das distinções importância dasorgulho dist inções distinções sexuais  Ausência de classejdistinções classejdis tinçõessexuais/Alta de classe Hum Humildade/justo ildade/justo da posiç posição ão Descuido com a aparência pessoal/cuidado com a aparência pessoal Nenhuma distinção de riqueza/distinções de riqueza  Altruísmo/egoísmo Obediência total/obediência apenas à classe superior Sacralidade/secularidade Silêncio/fala Suspensão dos direitos e obrigações de parentescu/obrigações e direitos de parentesco

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Referência contínua aos poderes místicos/referência intermite aos poderes místicos Insensatez/sagacidade Insensatez/sagacida de Simplicidade/complexidade Simplicidade/complexidade  Aceitação de dores e sofrimentos sofrimentos /evitação de dores e ssofrimentos ofrimentos Heteronomia/graus de autonomia Esta lista poderia ser consideravelmente aumentada se ampliássemos a extensão das situações Iiminares consideradas. consideradas. Ainda, os o s símbolos em que essas propriedades se manifestam e corporificam são vários e múltiplos, e freqüentemente se relacionam com os processos fisiológicos de morte e de nascimento, de anabolismo e de catabolismo. O leitor terá notado, de imediato, que muitas dessas propriedades constituem aquilo que julgamos serem características da vida religiosa na tradição cristã. Indubitavelmente, também os muçulmanos, os budistas, os hindus e os judeus enumerariam muitas delas entre as suas características religiosas. O que parece ter acontecido é que, com o incremento da especialização da sociedade e da cultura, com a progressiva complexidade na divisão social do trabalho, aquilo que era na sociedade tribal principalmente um conjunto de qualidades transitórias "entre" estados definidos da cultura e da sociedade, transformou-se num estado institucionalizado. Mas traços da qualidade de passage da vida religiosa permanecem em várias formulações, tais como: "O cristão é um estranho no mundo, um peregrino, um viajante, sem nenhum lugar para descansar a cabeça". A transição tornou-se, neste caso, numa condição permanente. Em parte alguma esta institucionaIização da liminaridade foi mais claramente marcada e definida do que nos estados monástico e mendicante, nas grandes religiões mundiais. Por exemplo, a regra cristã ocidental de São Bento "provê a subsistência de homens que desejam viver em comunidade e devotar-se inteiramente ao serviço de Deus pela autodisciplina, a oração e o trabalho. Devem formar essencialmente famílias, sob os cuidados e o controle absoluto de um pai (o abade); individualmente, são

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obrigados à pobreza pessoal, abstenção do casamento e obediência aos superiores, bem como pelos votos de estabilidade e conversão de conduta [sendo originariamente sinônimo de "vida em comum”, "a vida monástica" distinguia-se da vida secular]; um grau moderado de austeridade é imposto pelo ofício noturno, o jejum, pela abstinência de carne e restrição na conversa" (Attwater, 1961, p. 51 - grifos meus). Acentuei os traços que denotam uma notável semelhança' com a condição do chefe eleito durante a transição para os ritos públicos de tomada de posse, quando inicia seu reinado. Os ritos de circuncisão dos ndembos (Mukanda) apresentam novos paralelos entre os neófitos e os monges beneditinos. Erving Goffman (Asylums, 1962) estuda aquilo que chama "características de instituições totais". Entre essas incIui os mosteiros, devotando grande atenção "aos processos de despojamento e de nivelamento que ... diretamente atravessam as várias distinções sociais com que os recrutas chegam". Em seguida, cita um conselho de São Bento ao abade: "Que ele não faça distinção de pessoas no mosteiro. Que uma não seja mais amada que outra, a menos que se distinga em boas obras e em obediência. Que o indivíduo de origem nobre não seja elevado acima do que era antes um escravo, exceto se intervier alguma outra causa justa" (p. 119). Neste ponto, os paralelos com o Mukanda são surpreendentes. Os noviços são "despojados" das roupas seculares quando passam através de um portão simbólico; são "nivelados" pelo fato de abandonarem seus antigos nomes, dandose a todos a designação comum de mwadyi , ou "noviço", e tratados da mesma maneira, Um dos cantos entoados pelos circuncisores dirigindo-s às mães dos noviços na noite antes da circuncisão contém a seguinte frase: "Mesmo que seu filho seja filho de um chefe, amanhã ele será igual a um escravo", exatamente como um chefe eleito é tratado como cravo antes da sua investidura. Além do mais, na cabana de reclusão o instrutor mais idoso é escolhido

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em parte por ser pai de vanos meninos submetidos aos ritos, e porque se torna um pai para o grupo inteiro, uma espécie de "abade", embora seu título Mfumwa  tubwiku  signifique literalmente "marido dos noviços", para acentuar o papel

passivo destes últimos.

O PERIGO MÍSTICO E OS PODERES DOS FRACOS Pode-se perguntar por que em quase toda parte se atribuem às situações e papéis liminares propriedades mágico-religiosas, ou por que tão freqüentemente estas são consideradas perigosas, de mau agouro, ou contaminadoras para pessoas, objetos, acontecimentos e relações que não foram ritualmente incorporados ao contexto liminar. Minha opinião, em resumo, é que na perspectiva daqueles aos quais incumbe a manutenção da "estrutura", todas as manifestações continuadas da "communitas" devem aparecer como perigosas e anárquicas, e precisam ser rodeadas por prescrições, proibições e condições .. E, como afirmou recentemente Mary Douglas (1966), aquilo que não pode, com clareza, ser classificado segundo os critérios tradicionais de classificação, ou se situe entre fronteiras classificadoras quase em toda parte é considerado "contaminador" e "perigoso" (passim). Repito o que disse anteriormente: a liminaridade não é a única manifestação cultural da "communitas". Na maioria das sociedades há outras áreas de manifestação, facilmente reconhecidas pelos símbolos que se agrupam em torno delas e pelas crenças a elas vinculadas, tais como "os poderes dos fracos", ou, em outras palavras, os atributos permanente ou transitoriamente sagrados, relativos a um "status" ou posição baixa. Nos sistemas estruturais estáveis há muitas dimensões de organização, Já mencionamos que os poderes místicos e morais são mantidos pelos autóctones subjugados sobre o total bemestar de sociedades cuja estrutura política é constituída pela linhagem ou pela organização territorial de

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conquistadores invasores. Em outras sociedades - a ndembo e a lamba, de Zâmbia, por exemplo - podemos indicar associações de culto, cujos membros, devido a um infortúnio infor túnio comum ou circunstâncias debilitantes, conseguiram acesso a (poderes terapêuticos relativos a certos bens gerais da humanidade, como a saúde, a fecundidade e o clima. Essas associações seccionam importantes componentes do sistema político secular, como linhagens, aldeias, subchefias e chefias. Poderíamos também mencionar o papel de nações estruturalmente pequenas e politicamente insignificantes dentro de sistemas de nações como sustentáculos de valores religiosos e morais, tais como os hebreus no antigo Oriente Próximo, os irlandeses na primitiva cristandade medieval e os suíços na Europa moderna. Muitos escritores chamaram a atenção para o papel do bobo da corte. Max Gluckman (1965), por exemplo, escreve: "O bobo da corte operava como árbitro privilegiado dos costumes, dada a permissão que tinha de zombar de reis e cortesãos, ou do senhor do solar". Os bobos da corte eram "comumente homens da classe baixa - algumas vezes no Continente europeu eram sacerdotes - que claramente saíam do seu estado habitual... Em um sistema onde era difícil para outros censurar o chefe de lima unidade política, podíamos ter aqui um trocista institucionalizado, atuando no ponto mais alto da unidade... um galhofeiro capaz de expressar os sentimentos da moral idade ofendida". Menciona ainda que os bobos da corte ligados a muitos monarcas africanos eram "freqüentemente anões e outro. indivíduos estranhos". Semelhantes a esses pela função eram os tamborileiros da barcaça real dos barotses, na qual o rei e sua corte se deslocavam de uma capital na planície aluvial do rio Zambezi para uma elas margen durante as cheias anuais. Eles tinham o privilégio de atirar na água qualquer dos grandes nobres "que tivessse ofendido a eles e a seu sentido de  justiça durante ano anterior" (p. 102-104). Estas figuras, representan os pobres e os deformados, simbolizam os valor

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morais da "communitas" contrapondo-se ao poder coercitivo dos dirigentes políticos supremos.  A literatura popular é rica em figuras simbólicas, como os "mendigos santos", "terceiro filho", "pequenos alfaiates" e "simplórios", que arrancam as pretensões dos detentores de categorias e cargos elevados e reduzem-nos ao nível da humanidade e dos mortais comuns. Ainda, nos tradicionais filmes ele "faroeste", vemos o misterioso "estranho" sem lar, sem riqueza ou nome, e que restaura o equilibrio legal e ético num grupo local de relações políticas de poder, eliminando os "chefões" profanos injustos que oprimem os pequenos proprietários. Os membros de grupos étnicos e culturais desprezados ou proscritos desempenham importantes papéis nos mitos e nos contos populares, como representantes ou expressões de valores humanos universais. São famosos entre estes o Bom Samaritano, o violinista judeu Rothschild, no conto de Tchekhov "O Violino de Rothschíld", o escravo negro fugitivo Jim, em Huckleberry Finn, de Mark Twain, e Sonya, a prostituta que redime o imaginário "superhomem" nietzscheano Raskolnikov, em Crime e Castigo de Dostoievski. Todos esses tipos místicos são estruturalmente inferiores ou "marginais", não obstante representem o que Henri Bergson chamaria de "moral idade aberta", opondo-se à "moralidade fechada", sendo a última essencialmente o sistema normativo de grupos limitados, estruturados, particularistas. Bergson fala do modo como um grupo fechado preserva sua identidade contra os membros de grupos abertos, protege-se contra as ameaças ao seu modo de vida, e renova o desejo de manter as normas de que depende o comportamento rotineiro necessário à sua vida social. Nas sociedades fechadas ou estruturadas, é a pessoa marginal ou "inferior", ou o "estranho" que freqüentemente chega a simbolizar o que David Hume chamou "o sentimento com relação à humanidade", o qual por sua vez se liga ao modelo que denominamos "communitas".

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OS MOVIMENTOS MILENARISTAS Entre as mais extraordinárias manifestações da "communitas" encontram-se os movimentos religiosos, chamados milenaristas, que surgem no meio das massas que Norman Cohn (1961) denominou "massas desarraigadas e desesperadas, na cidade e no campo... vivendo à margem da sociedade" (p. 31-32) (isto é, da sociedade estruturada), ou onde sociedades anteriormente tribais são postas sob o domínio estranho e absoluto de sociedades complexas e industriais. Os atributos de tais movimentos devem ser bastante conhecidos dos leitores. Somente lembrarei aqui algumas das propriedades da Iiminaridade nos rituais tribais que mencionei antes. Muitos desses correspondem bem de perto aos dos movimentos milenaristas: homogeneidade, igualdade, anonímia, ausência de propriedade (muitos movimentos realmente ordenam aos seus membros a destruição de qualquer propriedade que possuam, a fim de tornarem mais próximos o advento do estado perfeito de harmonia e comunhão que desejam, pois os direitos de propriedade estão ligados a distinções estruturais, tanto verticais quanto horizontais); redução de todos ao mesmo nível de "condição social"; uso de vestuário uniforme (às vezes para ambos os sexos); continência sexual (ou a antítese desta, a comunidade sexual, pois tanto a continência quanto a comunidade sexual liquidam com o casamento e com a família, que legitimam o estado da estrutura); redução ao mínimo das distinções de sexo (todos são "iguais à vista de Deus" ou dos ancestrais); abolição de categorias, humildade, descuido pela aparência pessoal, altruísmo, obediência total ao profeta ou líder, instrução sagrada; levar ao máximo as atitudes e o comportamento religioso, por oposição ao secular; suspensão dos direitos e obrigações de parentesco (todos são irmãos ou camaradas uns dos outros, quaisquer que tenham sido os laços mundanos anteriores); simplicidade de fala e de maneiras, loucura sagrada, aceitação da dor e do sofrimento (até o ponto de se submeter ao martírio), e assim por diante.

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É digno de nota que muitos desses movimentos permeiam, seccionandoas, as divisões tribais e nacionais durante o impulso inicial. A "communitas", ou "sociedade aberta", difere neste ponto da estrutura ou da sociedade fechada, pelo fato de ser potencial ou idealmente extensiva aos limites da humanidade. Na prática, naturalmente, o ímpeto logo se exaure, e o próprio "movimento" se torna uma instituição entre outras instituições, freqüentemente mais fanático e militante que os restantes, por julgar-se o único possuidor das verdades humanas universais. Muitas vezes, tais movimentos ocorrem durante fases da história que sob vários aspectos são "homólogas" a períodos Iiminares de importantes rituais em sociedades estáveis e rotineiras, quando os mais importantes grupos ou categorias sociais naquelas sociedades estão passando de um estado cultural para outro. São essencialmente fenômenos de transição. Talvez seja esta a razão pela qual em tantos desses movimentos muito da mitologia e do simbolismo que possuem é tomado de empréstimo dos mitos e símbolos de tradicionais rites de passage, quer nas culturas em que se originam, quer nas culturas com as quais estão em contato dramático.

OS "HIPPIES", A "COMMUNITAS" E OS PODERES DOS FRACOS Na moderna sociedade ocidental, os valores da "communitas" estão surpreendentemente presentes na literatura e no comportamento do fenômeno que veio a ser conhecido como a "geração 'beat"', a que se sucederam os "hippies", os quais, por sua vez, têm uma jovem divisão conhecida como o "teenyboppers". São os membras "audaciosos" das categorias de adolescentes e jovens adultos - que não têm as vantagens dos rites de passage  nacionais - que "optaram" fugir da ordem social ligada ao "status" e adquiriram os estigmas dos mais humildes, vestindo-se como "vagabundos", ambulantes

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em seus hábitos, "populares" no gosto musical e subalternos em qualquer ocupação casual de que se incumbam. Valorizam mais as relações pessoais do que as obrigações sociais, e consideram a sexualidade instrumento polimórfico da "communitas" imediata, ao invés de tomá-Ia por base para um vínculo social estruturado e duradouro. O poeta Allen Gínsberg é, em particular, eloqüente sobre a função da liberdade sexual. Também as propriedades "sagradas", com freqüência atribuídas à "communitas", não estão ausentes aqui. Comprova-se isto pelo uso habitual de termos religiosos, como "santo" e "anjo", para definir seus congêneres, e pelo interesse no zembudismo. A fórmula zen "tudo é um, um é nada, nada é tudo" expressa bem o caráter não estruturado e global primitivamente aplicado à "communitas". A acentuação dada pelos "hippies" à espontaneidade, ao imediatismo e à "existência" põe em relevo um dos

sentidos em que "communitas" contrasta com a estrutura. A "communitas" pertence ao momento atual; a estrutura está enraigada no passado e se estende para o futuro pela linguagem, a lei e os costumes. Embora nosso interesse se centralize aqui nas sociedades pré-industriais tradicionais, torna-se claro que as dimensões coletivas, a "communitas" e a estrutura, devem encontrar-se com todos os estádios e níveis da cultura e da sociedade.

A ESTRUTURA E A "COMMUNITAS" NAS SOCIEDADES BASEADAS NO PARENTESCO P ARENTESCO 1. Os Talensis Há algumas outras manifestações desta distinção encontradas nas sociedades mais simples. Serão consideradas por mim não como passagens entre estados, mas antes como estados binários opostos, que, sob certos aspectos, expressam a distinção entre a sociedade considerada como estrutura de partes opostas hierárquica

 

138 ou segmentariamente e como totalidade homogênea. Em muitas sociedades; é feita a distinção terminológica entre parentes do lado materno e os do lado paterno, sendo os últimos vistos como pessoas de espécie completamente diferente. É o que acontece especialmente com relação ao irmão do pai e ao da mãe. Onde existe descendência unilinear, a propriedade e a posição social passam ou de pai para filho ou do irmão da mãe para o filho da irmã. Em certas sociedades, ambas as linhas de descendência são usadas para fins de herança. Mas mesmo neste caso os tipos de propriedade e posição social que passam em cada linha são muito diferentes. Consideremos de início uma sociedade na qual existe descendência unilincar som ente na linha paterna. O exemplo é tirado mais uma vez do povo talensi, de Gana, do qual temos grande quantidade de informações. Nosso problema consiste em descobrir se, numa discriminação binária em um nível estrutural do tipo "superioridade estrutural-inferioridade estrutural", podemos encontrar algo que se aproxime do "poder do fraco", no ritual, que, por sua vez, demonstra-se estar relacionado com o modelo "communitas". Fortes (1949) escreve: "A linha dominante de descendên descendência cia confere os atributos claramente significativo significativoss da personalidade social, social, o estado jurídico, os direitos de herança e de sucessão quanto à propriedade e ao cargo a fidelidade política, privilégios e obrigações rituais. A linha subjacente [constituída por matrifiliação; eu preferiria dizer o "lado subiacente" já que o vínculo é pessoal entre o indivíduo e sua mãe, e através desta chega tanto aos parentes patrilineares dela quanto aos seus cognatos] confere certas caracteristicas - espirituais, Entre os talensis é fácil observar-se que isso é um reflexo do fato de o elo da descendência uterina ser mantido como vincuio puramente pessoal. Não favorece os interesses comuns de espécie material, jurídica ou ritual; une os indivíduos apenas por laços de interesses e preocupações mútuos, semelhantes aos que prevalecem entre parentes colateraís próximos, em nossa cultura. Embora constitua um dos fatores que contrabalançam a exclusividade da linha agnatícia, não cria grupos associados, em competição com a linhagem

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agnatícia e com o clã. Transportando apenas um atributo espiritual, o laço uterino não pode enfraquecer a solidariedade jurídica e político-ritual da linhagem patrilinear" (p. 32 os grifos são meus).

Temos aqui a oposição patrilinear/matrilinear, que tem funções de dominante subjacente. O laço patrilinear relaciona-se com a propriedade, o cargo, a fidelidade política, a exclusividade, podendo ainda dizer-se incluídos os interesses i nteresses setoriais e particulares. É o vínculo "estrutural" por excelência. O laço uterino refere-se às características espirituais, interesses e preocupações mútuos, e à colateralidade. Contrapõe-se à exclusividade, o que presumivelmente significa que contribui para a inclusividade, e não está a serviço de interesses materiais. Em resumo, a matrilateralidade representa, na dimensão do parentesco, a noção de "communitas". Um exemplo, tomado dos talensis, do caráter "espiritual" " espiritual" e "comunitário" da matrilateralidade encontra-se nos ritos de consagração do chamado bakologo, ou do sacrário do adivinho. Por definição, este sacrário, quem o diz é Fortes (1949), é "feminino": "Isto é, os ancestrais relacionados com ele derivam, por definição, de uma linhagem matrilinear do adivinho, e a figura dominante entre eles é geralmente uma mulher, "uma mãe". O bakologo... é a autêntica encarnação do aspecto vingativo e invejoso dos ancestrais. Persegue o homem em cuja vida intervém inexoravelmente, até que o homem afinal se submeta e o "aceite, isto é, se encarregue de montar um sacrário para os espíritos [matrilaterais] bokologo em sua própria casa, a fim de poder oferecerIhes sacrifícios com regularidade. Toda homem, e não apenas aqueles que sosreram infortúnios excepcionais, excepcionais, é levado pelo sistema religioso dos talensis a projetar seus mais íntimos sentimentos de culpa e de insegurança amplamente sobre a imagem da mãe, corporificada noàscomplexo bakologo. Em geral, também, um homem foge, não se sujeita,' imediatamente, exigências dos ancestrais bakolo go. Contemporiza, resiste, às vezes durante anos, até ser por fim forçado a submeter-se e a aceitar o bakologo, Nove de cada grupo de dez homens acima de quarenta anos têm sacrários bakologo, mas nem todo homem tem talento para ser adivinho, e por isso a maioria dos homens simplesmente possuem sacrário mas não o usam para a adivinhação" (p. 325 grifas são meus).

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Transcrevi mais longamente o relato de Fortes, por achar que demonstra claramente não só a oposição e a tensão entre os vínculos de parentesco matrilinear e patrilinear, mas também a tensão produzida no psiquismo dos indivíduos, à medida que alcançam a idade madura, entre o modo estrutural e o comunitário de considerar a sociedade talensi . Devemos lembrar-nos de que o dogma da patrilinearidade, que Homans e Schneider chamariam de linha de descendência "rigorosa" através da qual são transmitidos os direitos sobre a propriedade e a posição social, é dominante e dá colorido aos valores dos talensis em muitos níveis da sociedade e da cultura. Do ponto de vista e da perspectiva des pessoas ocupantes de posições de autoridade na estrutura patrilinear os vínculos sociais estabelecidos através das mulheres, simbolizando a comunidade tale mais ampla, onde seleciona os estreitos laços grupais de descendêncíà e localidade, parecem necessariamente ter um aspecto destruidor. É por isso que, segundo minha opinião, os talensis têm a "imagem da mãe" bakologo, que "persegue" o homem maduro e "intervém" na vida dele, até que a "aceite". Porque, à medida que os homens se desenvolvem e passam a influenciar uns aos outros em círculos mais e mais amplos de relações sociais, tornam-se cada vez mais conscientes de que sua patrilinhagem é meramente parte da totalidade dos talensis. Para eles, de maneira rigorosamente literal, a comunidade maior intervém, destruindo a auto-suficiência e a relativa autonomia da linhagem setorial e dos assuntos do clã. Os sentimentos globais, anualmente acentuados nos grandes festivais de integração, como o do Golib, onde, conforme mencionei, se realiza uma espécie de casamento místico entre representantes dos invasores namoos e dos tales autóctones, tornam-se cada vez mais significativos para os "homens acima dos quarenta anos" que participam das festas como chefes de família e de sublinhagens, e não mais como menores, sob a autoridade paterna.  As normas e os valores "provenientes "provenientes

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de fora" rompem o exclusivismo da lealdade à linhagem. É perfeitamente adequado que a "communitas" seja aqui simbolizada pelos ancestrais matrilaterais, em especial pelas imagens da mãe, já que nesta sociedade patrilinear e virilical as mulheres m ulheres penetram de fora nos patrissegmentos da linhagem, e, como o demonstrou Fortes, os parentes matrilaterais, na maioria, habitam fora do "campo do clã" de um homem. É compreensível também que tais espíritos sejam consíderados "vingativos" e "invejosos": são as "mães" (as instituidoras das tetas, ou matrissegmentos) que introduzem divisões na unidade ideal da patrilinhagem. Resumindo, diremos que em determinadas crises da vida, a adolescência, a chegada da velhice e a morte, variando em signifícação de cultura para cultura, a passagem de uma condição estrutural para outra pode ser acompanhada por um forte sentimento de "bondade humana", um sentido do laço social genérico entre todos os membros da sociedade - em alguns casos transcendendo do mesmo as fronteiras tribais ou nacionais - independentemente das afiliações subgrupais ou da ocupação de posições estruturais. Em casos extremos, como a aceitação da vocação para xamã entre os saoras, da índia Central (Elwin, 1955), isto pode dar em resultado a transformação do que é essencialmente uma fase liminar ou extra-estrutural em uma condição permanente de "estrangeirice" sagrada. O xamã, ou profeta, assume uma condição sem "status", exterior à estrutura social secular, que lhe dá o direito de criticar todas as pessoas ligadas à estrutura segundo uma ordem moral que envolve a todos, e também de servir de intermediário entre todos os segmentos ou componentes do sistema estruturado. Nas sociedades em que o parentesco constitui o que Fortes chama um "princípio irredutível" de organização social e onde a patrilinearidade é a base da estrutura social, a ligação de um indivíduo aos outros membro da sociedade através da mãe e, conseqüentemente, por extensão e abstração, através das "mulheres" e da "feminilidade”, 

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tende a simbolizar a comunidade mais ampla e seu sistema ético, que abrange e invade o sistema político-legal. Pode-se mostrar a existência de fascinantes correlações em várias sociedades entre esta conversão à perspectiva da "communítas" e a afirmação da individualidade por oposição ao desempenho de uma posição social. Por exemplo, Fortes (1949) demonstrou-nos as funções individualizantes do vínculo entre o filho da irmã e o irmão da mãe entre os talensis. Isto, diz ele, "é uma importante brecha na cerca genealógíca que circunda a linhagem agnatícia; é uma das aberturas mais importantes para as relações sociais de um indivíduo com os membros de outros clãs que não o seu" (p. 31). Pela matrilateralidade, o indivíduo, em seu caráter integral, fica emancipado dos encargos da posição segmentar, determinados pela patrilinhagem, entrando na vida mais ampla de uma comunidade que se estende além dos talensis, propriamente ditos, alcançando grupos tribais de cultura religiosa semelhante. Vejamos agora um exemplo concreto do modo pelo qual a consagração de um sacrário bakologo torna visível e explícita a comunidade talensi mais ampla, através dos laços matrilaterais. Todos os rituais têm esse caráter exemplar, modelar. Em certo sentido, pode dizer-se que "criam" a sociedade, mais ou menos da mesma maneira pela qual Oscar Wilde considerou a vida "uma " uma imitação da arte". No caso citado (Fortes, 1949), um homem chamado Naabdiya "aceitou" como seus ancestrais bakologo o pai de sua mãe, a mãe do pai de sua mãe, e a mãe da mãe do pai de sua mãe. Foram os membros do clã destes últimos que vieram instalar o sacrário para o seu "neto por classificação, Naabdiya. Mas para chegar a eles, Naabdiy a primeiramente teve de ir ao povo do irmão de sua mãe; este o escoltou até a linhagem do irmão da mãe de sua mãe, vinte quilômetros distante do seu próprio povoado. Em cada localidade, ele devia sacrificar uma galinha e uma galinha-d'angola - isto é, uma ave domesticada e uma nãodomesticada - ao "bogar" da linhagem, li nhagem, ou ao sacrário do ancestral fundador.

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 A linhagem do ancestral dominante, ou mais freqüentemente uma ancestral ancestral do complexo bakologo, quase sempre uma ancestral matrilateral, tem a responsabilidade de instalar o sacrárío para a pessoa aflita. O chefe da linhagem sacrifica as duas aves trazidas pelo paciente no sacrário de sua linhagem, explicando aos ancestrais a natureza da ocasião que trouxe o filho de sua irmã ou neto

matrilateral

a

fazer-Ihes

súplicas.

Pede-lhes

que

abençoem

o

estabelecimento de um novo sacrárlo, que ajudem o candidato a tornar-se um adivinho bem sucedido, e que lhe concedam prosperidade, filhos e saúde - isto é, as coisas boas em geral. Em seguida, apanha alguns sedimentos que ficaram no fundo do pote, que é o mais importante componente de um sacrário bogar, e coloca-os num pequenino pote que o candidato deve levar para casa e acrescentá-lo ao seu novo sacrário. "Deste modo", diz Fortes, a "continuidade direta do novo sacrário bakologo com o bogar da linhagem matrilateral fica tangivelmente simbolizada" (p. 326).  Assim, dois sacrários separados por mais de trinta quilômetros - e é preciso lembrar que a própria Talelândia "quase não tem trinta quilômetros de extensão" - e diversos outros sacrários intermediários são direta e "tangivelmente" " tangivelmente" ligados pelos ritos. O fato de ser quase impossível o contato físico contínuo entre a linhagens em questão, não é ideologicamente importante no caso, porque os sacrários bokologo são símbolos expresões da comunidade tale. "Nove entre dez" dos homens maduros têm uma quantidade de ancestral bakologo cada um. Todos esses homens estão ritualmen te interligados através deles a uma pluralidade de po voados, inversamente, cada bogar de Iinhagem tem ligado a si um certo número de sacrários bakologo, m diante conexões sororais ou de irmãs. Tais encad mentos, nos seus conjuntos e secções transversas, S mais do que vínculos meramente pessoais ou espiritual representam os laços da "communitas" opondose divisões da estrutura. São, além de tudo, vínculos criados

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a partir do lado "subjacente" do parentesco, o lado juridicamente mais fraco ou inferior. Mais uma vez pudemos manifestar a íntima conexão existente entre "communitas" e os poderes dos fracos.

2. Os Núeres É a tensa oposição permanente entre "communitas" e estrutura que, para mim, está situada por detrás dos aspectos sagrados e "afetivos" da relação irmão da mãe/filho da irmã, em muitas sociedades patrilineares. Nessas sociedades, como numerosos estudiosos do assunto o demonstraram, o irmão da mãe, que tem fraca autoridade jurídica sobre o sobrinho, pode ter contudo um estreito vínculo pessoal de amizade com ele, pode dar-lhe refúgio contra a rispidez paterna, e muito freqüentemente tem poderes místicos de abençoá-lo e amaldiçoá-Ia. Neste caso a fraca autoridade legal no âmbito de um grupo unido sofre a oposição de fortes influências pessoais e místicas. Entre os núeres do Sudão o papel de "sacerdote de pele de leopardo" une, de maneira bastante interessante, o valor simbólico do irmão da mãe na sociedade patrilinear com alguns dos outros atributos de figuras limínares, marginais e politicamente fracas, que já examinamos. Segundo Evans-Pritchard (1956) "em certos mitos das tribos jikany [dos núeres] a pele do leopardo [insígnia da função sacerdotal] foi concedida pelos ancestrais das linhagens [agnatícias], dominantes [territorialmente], a seus tios maternos, a fím de que estes pudessem desempenhar o papel de sacerdotes tríbaís. As linhagens do clã, estruturalmente opostas, estavam então na relação comum dos filhos das irmãs com a linha dos sacerdotes, que deste modo possuía uma posíção mediadora entre elas" (p. 293 os grifos são meus). Tanto quanto absolutos irmãos da mãe para os setores políticos, os sacerdotes com pele de leopardo acham-se "na categoria de rul , estrangeiros, e não na

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de diel , membros do clã que possuem os territórios tribais... Não possuem territórios tribais próprios, mas vivem formando famílias e p e que nas linhagens, na maioria dos territórios possuídos por outros clãs, ou em quase todos. São como membros da tribo de Levi, divididas na de Jacó e dispersos em Israel" (p. 292). (Algo desse caráter sacerdotal se encontra nas linhagens dispersas dos circuncisadores e dos faze dores de chuva entre os gisus, de Uganda.) Os sacerdotes núeres revestidos de pele de leopardo têm "uma relação mística ... com a terra, em virtude da qual se julga que suas maldições possuem uma potência especial, pois... pode afetar não só as colheitas de um homem, mas o seu bem-estar em geral, já que todas as atividades ati vidades humanas se realiz realizem em na terra" (p. 291). O principal papel do sacerdote está em conexão com o homicídio, pois dá abrigo ao assassino, negocia um acordo, realiza sacrifícios para que as relações sociais sejam retomadas e reabilita o assassino. Esse tipo generalizado de irmão da mãe possui assim muitos dos atributos de "communitas" com os quais nos estam os familiarizando: ele é um estrangeiro, um mediador, age em favor da comunidade inteira, tem uma relação mística com a totalidade da terra em que habita, representa a paz contra a discórdia e não está vinculado em nenhum segmento político específico.

3. Os Ashantis Para que não se julgue que a estrutura está universalmente associada à patrilinearidade e à masculinidade, e que a "communitas" está associada à matrilateralidade e à feminilidade nas sociedades articuladas segundo o princípio da descendência unilinear, vale a pena examinar-se brevemente uma sociedade matrilinear bastante conhecida, a dos ashantis, de Gana. Os ashantis pertencem a um grupo de sociedades da Africa Ocidental, que possuem sistemas políticos e religiosos muito desenvolvidos. Todavia, o parentesco unilinear ainda tem

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considerável importância estrutural. A matrilinhagem localizada, estabelecendo a descendência a partir de uma ncestral comum conhecida, durante um período de dez a doze gerações, é a unidade fundamental para as finalidades políticas, rituais e legais. Fortes (1950) descreveu assim o caráter segmentar da linhagem: "cada egmento é definido em relação aos outros da mesma ordem pela referência a ancestrais (femininas) comuns discriminadoras" (p. 255). A sucessão nos cargos e a herança da propriedade são matrilineares, e os bairros das divisões das aldeias dos ashantis são, cada um deles, habitados por uma matrilinhagem central, envolvida por uma franja de cognatos e de afins. O nome para designar a matrilinhagem é abusua, que, segundo Rattray (1923), é "sinônimo de mogya, sangue" (p. 35), como se verifica no provérbio abusua bako mogya bako, "um clã, um sangue". Discute-se às vezes se o

parentesco ashanti não deveria ser classificado como um sistema de "dupla descendência". Este ponto de vista deriva das referências de Rattray (1923, p. 4546) a um modo de categorização social conhecido pelos ashantis como ntoro (literalmente "sêmen"), que aquele autor considerava uma divisão exógama, baseada na transmissão pelos homens, exclusivamente. Fortes (1950, p. 266) pôs em relevo a significação mínima desse elemento patrilinear para o sistema de parentesco e para a ordem político-legal. Refere-se ao ntoro como "divisões especificadas semi-rituais", porém estas não são nem exógamas nem grupos organizados, em qualquer sentido. Entretanto, do ponto de vista do presente artigo, as divisões ntoro são da maior importância. Uma das razões para o olvido da dimensão da "communitas" na sociedade, com suas profundas implicações para a compreensão de muitos fenômenos e processos rituais éticos, estéticos e, na verdade, políticos e legais, tem sido a propensão a igualar o "social" com o "sócioestrutural". Sigamos, então, o indício do ntoro em muitos recantos obscuros da cultura ashanti.

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Em primeiro lugar, o vínculo pai-filho, base da divrsao nioro, é o vínculo estruturalmente inferior. No entanto, os símbolos com os quais se associa delineiam um quadro de enorme valor para a compreensão da "communitas". De acordo com Rattray (1923) .os ashantis acreditam que é o "ntoro ou o sêmen, transmitido pelo homem, misturado ao sangue [um símbolo de matrilinhagem] na mulher, que explica os mistérios fisiológicos da concepção... ntoro... é... empregado às vezes como sinônimo de sunsum, o elemento espiritual, no homem ou na mulher, do qual depende... a força, o magnetismo pessoal, o caráter, personalidade, poder, alma, chamem-no como quiserem, de que dependem a saúde, a riqueza, o poder da palavra, o sucesso em qualquer empreendimento, enfim, tudo aquilo que faz valer a pena viver" (p. 46). Mais uma vez, deparamonos com as particulares correlações entre personalidade e valores universais, de um lado, e "espírito" ou "alma", de outro, que parecem ser os sinais característicos da "communitas". Rattray (1923) enumerou nove divisões nioro, embor afirme poder haver mais. Essas divisões, naturalmente, permeiam o conjunto dos membros das matrilinhagen segmentares abusua. Um dos

ntoro  é

considerado tra

dicionalmente, como "o primeiro ntoro  já outorgado aos homens, o ntoro Bosommuru" (p. 48). O mito corre lacionado com o estabelecimento dele,

segundo o modo de ver de Rattray, esclarece o modo de pensar do ashantis sobre o nioro em geral: Há muito tempo atrás, um homem e uma mulher desceram do céu, e uma mulher subiu da terra. Do Deus do Céu (Onyame), também veio uma serpente ( onini ), ), que fez sua casa no rio chamado Bosammuru. No princípio, esses homens e essas mulheres não tiveram filhos, não sentiam desejo, e a concepção e o nascimento não eram conhecidos naquele tempo. Um dia, a serpente perguntou-Ihes se não tinham filhos, sendo-lhe dito que não, ela disse que ·faria com que a mulh pudesse conceber. Mandou que os casais se defrontassem, depois mergulhou mergulhou no rio e; ao emergir, borrifou-Ihes de água

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ventres, com as palavras kus kus  (usadas na maioria das cerimônías em conexão com ntoro e Onyame), e então ordenou-Ihe que voltassem para casa e se deitassem juntos.  As mulheres conceberam e deram à luz as primeiras crianças o mundo, que tomaram o Bosommuru como seu ntoro, passando cada homem adiante este ntoro a seus filhos. Se um homem ntoro Bosommuru, ou mulher, vê uma serpente morta (nunca matam uma serpente) espalha argila branca obre ela e a enterra (p. 48-49).

Esse mito simbolicamente relaciona o ntoro, ao mesmo tempo sêmen e divisão social, com o Deus do Céu (que é também um deus da chuva e da água) com a gua, um rio e a fecundação das mulheres. Outras divisões ntoro como o Bosomtwe, grande lago na parte central dos ashantis, e o Bosompra, rio que nasce no território dos ashantis, associam-se com corpos de água. Os principais deuses ashantis são divindades masculinas, filhos de Onyame, o supremo Deus masculino. Além disso, todos se relacionam com a água, o símbolo dominante da fecundidade, e, por extensão, de todas as coisas boas que os ashantis possuem em comum, independentemente das filiações subgrupais. Rattray (1923) cita os ashantis, que dizem: "Onyame decidiu mandar os seus próprios filhos à terra, a fim de que pudessem receber benefícios da humanidade e também conferi-Ios a ela. Todos esses filhos traziam os nomes do que são agora rios e lagos ... ou todo outro rio ou água de alguma importância. Os tributários desses são também seus filhos" (p. 145- 146). Acrescenta: "O que foi dito até aqui é suficiente para demonstrar que as águas para os ashantis ... são consideradas possuidoras do poder ou do espírito do divino Criador, sendo portanto uma grande força doadora de vida. Assim como uma mulher .dá nascimento a uma criança, do mesmo modo possa a água fazer nascer um deus, disse-me certa vez um sacerdote" (p. 146). Outros líquidos corpóreos ligam-se simbolicamente com "o elemento ntoro  no homem", diz Rattray (1923, p. 54), por exemplo, a saliva; e a água borrifada pela boca do rei ashantí durante os ritos relativos ao rio

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Bosommuru, acompanhados pelas seguintes palavras: "Vida para mim, e que esta nação prospere". O simbolismo branco no mito Bosommuru reaparece em muitos contextos rituais, onde os deuses aquáticos são venerados, enquanto os sacerdotes do supremo Deus c de outras divindades regularmente usam vestimentas brancas. Já examinei o simbolismo branco e suas conotações de sêmen, saliva, saúde, vigor e bom augúrio em muitas sociedades africanas e outras, em vários trabalhos publicados (Turner, 1961; 1962; 1967). O simbolismo branco dos ashantis não difere, em sua semântica, do simbolismo branco dos ndembos. Façamos o resumo de nossas descobertas sobre os ashantis até agora. Pareceria haver um nexo entre a ligação pai-filho, ntoro (como sêmen, espírito e divisão social dom um conjunto de membros grandemente dispersos), a masculinidade (representada pela imagem do pai, Onyame, seus filhos e a serpente mítica, símbolo masculino, a saliva, a água, a bênção com a água borrifada, os lagos, os rios, o mar, o simbolismo branco e o sacerdócio. Alem disso, os chefes, especialmente o rei, estão claramente associados, no Adae e em outras cerimônias, com o Deus do Céu e com 'os rios, especialmente o Tano, conforme sugerem as mensagens do tambor de comunicação tocado nos ritos  Adae (Rattray, 1923, p. 101). [O princípio feminino e o abusua estão relacionados, relacionados, como vimos, com o sangue e, por meio deste, a uma rica variedade de símbolos vermelhos. Em quase toda parte o sangue e o vermelho têm significado ao mesmo tempo auspiciosos e inauspiciosos. Para os ashantis, o vermelho está associado à guerra (Rattray, 1927, p. 134), à feitiçaria (p. 29, 30, 32, 34), aos espíritos vingadores das vítimas (p. 22), e aos funerai (p. 150). Em alguns casos, há direta oposição entre o simbolismo branco (masculino) e o simbolismo vermelho (feminino). Por exemplo, o deus do rio Tano ou Ta kora, segundo Rattray (1923) "parece ser particularmente indiferente, e até hostil, às mulheres. São criaturas ingratas (bonniaye), declara ele. Nenhuma

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mulher tem perrmssao para tocar no seu santuário e não tem akotnio (sacerdotes) do sexo feminino. As mulheres na época da menstruação são um de seus tabus" (p. 183). Deve ser lembrado que o rio Tano desempenha importante papel nos ritos Adae do asantehene, supremo chefe da nação. A feitiçaria e o simbolismo vermelho do ritual funerário têm relação com a qualidade de membros do abusua,  já que são os parentes matrilineares que se acusam uns aos outros de feitiçaria, sendo muitas mortes atribuídas à feitiçaria. Existe outro significado sinistro escondido aqui na noção do vínculo do sangue. O simbolismo vermelho liga-se também ao culto da terra,  Asase Ya, julgada "divindade feminina" (Rattray, 1929). De acordo com Rattray, "ela não tornou tabu a menstruação (kyiri bara); ela gosta de sangue humano" (p. 342). Poderia fazer inúmeras citações retiradas dos magníficos e minuciosos dados de Rattray (1927) sobre o simbolismo vermelho, com a finalidade de demonstrar a relação que os ashantis estabelecem entre feminilidade, morte, assassinato, feitiçaria, mau agouro, polução menstrual e o sacrifício de homens e animais. Por exemplo, os ashantis possuem um "vermelho" suman, ou "fetiche", que "tem a natureza de um bode expiatório, ou algo que toma sobre si os males e pecados do mundo" (p. 13). É embebido em tinta esono vermelha (feita de casca pulverizada da árvore adwino, provavelmente uma espécie de Pterocarpus), que é "um substituto do sangue humano", utilizado no culto da terra. O esono também representa o sangue menstrual. Esse fetiche, chamado kunkuma, é ainda "colorido com sangue coagulado de carneiros e de aves que foram sacrificados sobre ele", e nele se "esconde um pedaço de fibra (baha) que tenha sido usada por uma mulher na menstruação" (p. 13). Vejamos aqui o sangue sacrifical e a menstruação postos em relação com rupturas das ordens natural e social - "males e pecados". Um exemplo final, talvez o mais interessante de todos, será suficiente. Uma vez por ano há uma violação ritual do sacrário ntoro original,

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o ntoro Bosommuru anteriormente mencionado. Este ntoro é freqüentemente o do próprio Asantehene. Ne dia dos ritos "o rei é lambuzado com a tinta eson vermelha" (p. 136). Deste modo, a brancura do nior e do rio Bosommuru é violada. Quando, mais tarde, santuário é purificado, a água de determinado número de rios sagrados é misturada à argila branca em uma tigela, sendo o sacrário borrifado com ela. Em muitas sociedades patrilineares, especialmente que cultivam a vendeta, é a descendência através dos homens que se associa ao simbolismo ambivalente d sangue. Mas, entre os ashantis, onde a matrllínhagem é o princípio organizador dominante, o vínculo de descendência de homem para homem é considerado qua inteiramente auspicioso e correlacionado com o Deus de Céu e com os grandes deuses dos rios, que decidem sobre a fertilidade, a saúde, o vigor e" todos os valor da vida compartilhados por todos. Mais uma vez, en contramos os seres estruturalmente inferiores considera dos moral e ritualmente superiores, e a fraqueza mun dana, como poder sagrado.

A LlMINARIDADE, A BAIXA CONDIÇÃO SOCIAL, E A "COMMUNITAS" Chegou o momento de fazermos o cuidadoso exame de uma hipótese que procura explicar os atributos de fenômenos aparentemente diversos, tais como os neófito na fase Iiminar do ritual, os autóctones subjugados, a nações pequenas, os bufões da corte, os mendigo santos, os bons samaritanos, os movimentos quiliâsticos, os "vagabundos darma", a matrilateralidade nos sistemas patrilineares, a patrilateralidade nos sistemas matrilineares e as ordens monásticas. Trata-se sem. dúvida de um feixe de fenômenos sociais que não combinam bem! No entanto, todos têm a seguinte característica comum: são pessoas ou princípios que (1) se situam nos interstícios da estrutura social, (2) estão à margem

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dela, ou (3) ocupam os degraus mais baixos. Isto levanos de volta ao problema da definição da estrutura social. Uma fonte autorizada de definição é  A Dictionaty of the Social Sciences (Gould e Kolb, 1964) no qual A. W. Eister examina algumas

das principais formulações dessa concepção. Spencer e muitos sociólogos modernos consideram a estrutura social como "a combinação mais ou menos distintiva (da qual pode haver mais de um tipo) de instituições especializadas e mutuamente dependentes [a acentuação é de Eister] e as organizações institucionais de posições e de atores que Implicam, todas originadas no curso natural dos acontecimentos, à medida que os grupos de seres humanos com determinadas necessidades e capacidades atuarem uns sobre os outros (em vários tipos ou modos de interação) e procuraram enfrentar o meio ambiente” (p. 668-669). A concepção de Raymond Firth (1951), mais analítica, exprime-se da seguinte maneira: "Nos tipos de sociedades comumente estudadas pelos antropólogos a estrutura socia pode inclulir relações críticas ou fundamentais provenientes de modo semelhante de um sistema de classes, baseado nas relações com o solo. Outros aspectos da estrutura social surgem mediante a participação em outros tipos de grupos persistentes, os cIãs, castas, grupos etários ou sociedades secretas. Outras relações básicas devem-se também à posição no sistema de parentesco" (p. 32).  A maioria das definições contém a noção de uma combinaçao e posições ou de situações sociais. Muitas implicam a institucionalização e a persistência de grupos e de relações. A mecânica clássica, a morfologia e a fisiologia dos animais e das plantas, e, mais recentemente, com Léví-Strauss, a lingüística estrutural, foram exploradas pelos cientistas sociais à procura de conceitos, modelos e formas homólogas. Todos têm, em comum, a noção de uma combinação supçrorgãnica de partes ou de posições, a qual persiste, com modificações mais ou menos gradativas, através do tempo. O conceito de "conflito" passou a relacionar-se com o conceito

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de "estrutura social", desde que a diferenciação das partes se torna oposição entre. as partes, e a situação insuficiente se torna objeto de lutas entre pessoas e grupos que pretendem alguma coisa.  A outra dimensão de "sociedade" pela qual me interessei é menos fácil de definir. G. A. Hillery (1955) examinou noventa e quatro definições do termo "comunidade" e chegou a conclusão de que "além do conceito de que as pessoas estão incluídas na comunidade, não há completo acordo quanto à natureza da comunidade" (p. 119). O campo pareceria, pois, estar ainda aberto a novas tentativas! Procurei fugir à noção de que a "communitas" tem uma localização territorial específica, geralmente de caráter limitado, que permeia muitas definições. Para mim, a "communitas" surge onde não existe estrutura social. Talvez o melhor modo de traduzir em palavras este difícil conceito seja o (de Martin Buber, embora julgue que ele deveria ser considerado mais um talentoso informante nativo do' que um cientista social! Buber (1961) usa o termo "comunidade" para designar "communitas": "A comunidade consiste em uma multidão de pessoas que não estão mais lado a lado (e, acrescenta-se, acima e abaixo), mas umas com as outras. E esta multidão, embora se movimente na direção de um objetivo, experlmenta no entanto por toda parte uma virada para os outros, o enfrentamento - dinâmico com o outros, uma influência do Eu para o Tu.  A comunidade existe onde a comunidade acontece acontece"" (p. 51). Buber chama a atenção para a natureza espontânea, imediata, concreta da "comniunitas", por oposição natureza governada por normas, - abstrata, institucionalizada da estrutura social. Contudo, a "communitas" só torna evidente ou acessível, por àssim dizer, por su justaposição a aspectos da estrutura social ou pela hibridização com estes. Assim como na psicologia da Gestalt a figura e o fundo são mutuamente determinates ou como certos elementos raros nunca são encontrados na natureza em estado de pureza más apenas enquanto componentes de compostos químicos, do mesmo

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modo a "communitas" unicamente pode ser apreendida por alguma de suas relações com a estrutura. Se o componente constituído peIa "communitas" é impreciso, difícil de fixar, isto não quer dizer que seja sem importância. Aqui a história da roda do carro de Lao-tsé pode vir a propósito. Os raios da roda e o cubo (isto é, o bloco central da roda que segura o eixo e os raios) ao qual estão presos não teriam utilidade se não fosse o buraco, a abertura, o vazio do centro.  A "communitas", com seu caráter não estruturado, representando o "ângulo" do correlacionamento humano, aquilo que Buber chamou das Zwischenmenschliche, pode bem ser representada pelo "vazio do centro", que entretanto é indispensável ao funcionamento da estrutura da roda. Não é por acaso nem por falta de precisão científica que, juntamente com outros que estudaram o conceito de "communitas", sinto-me forçado a recorrer à metáfora e. à analogia. Porque a "communitas" tem uma qualidade existencial, abrange a totalidade do homem, em sua relação com outros homens inteiros. A estrutura, por seu. lado, tem quaIidade cognoscitiva conforme observol LéviStrauss, a estrutura consiste essencialmente num conjunto de classificações, num modelo para pensar respeito da cultura e da natureza, e para ordenar a viela pública ele alguém. A "communitas", tem também um aspecto de potencialidade; está freqüentemente no modo subjuntivo .. As relações entre os seres totais são geradoras de símbolos de metáforas, de comparações. A arte e a religião são produtos delas, mais do que estruturas legais e polítícas. Bergson viu nas palavras e nos escritos dos profetas e dos grandes artistas a criação de uma "moral aberta", expressão ela própria do que chamou élan vitàl ou "força vital" evolutiva. Os profetas e os artistas tendem a ser pessoas liminares ou marginais, "fronteiriços" que se esforçam com veemente sinceridade por libertar-se cios clichês ligados às incumbências da posição social e à representação de papéis, e entrar em relações vitais com os outros homens, de fato ou na imaginação. Em suas produções

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podemos vislumbrar por momentos o extraordinário potencial evolutivo do gênero humano, ainda não exteriorizado e fixado na estrutura. estrutur a.  A "communitas" irrompe nos interstícios da estrutura, na Iiminaridade; nas bordas da estrutura, na margínalídade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em quase toda parte a "communitas" é considerada sagrada ou "santificada", possivelmente p o r que transgride t ransgride ou anula as normas que governam as relações estruturadas e institucionalizadas, sendo acompanhada por experiência de um poderio sem precedentes. Os processos de "nívelamento" e de "despojamento" para os quais Goffman chamou nossa atenção, freqüentemente parecem inundar de sentimento os que estão sujeitos a eles. Esses processos libertam seguramente energias instintivas, porém estou agora inclinado a pensar que a "commpnitas" não é apenas produto de impulsos biologicamente herdados, liberados das coações culturais. São antes produtos d faculdades peculiarmente humanas, incluindo a racíonalídade, a volição e a memória, desenvolvidas pela experiência da vida em sociedade, do mesmo modo como, entre os talensis, são só os homens maduros que sofrem as experiências que os induzem a receber os sacrário bakologo.  A noção de haver um vínculo genérico entre os homens, e o correlato sentimento de "bondade humana", não são epifenômenos de certa espécie de instinto gr gário, mas produtos de "homens inteiramente dedicado em sua totalidade". A Iíminaridade, a margínalidade e inferioridade estrutural são condições em que freqüenl mente se geram os mitos, símbolos rituais, sistem filosóficos e obras de arte. Estas formas culturais pro porcionam aos homens um conjunto de padrões ou modelos que constituem, em determinado nível, reclassificações periódicas da realidade e do relacionamento do homem com a sociedade, a natureza e a cultura. Todavia, são mais que classificações, visto incitarem homens à ação, tanto quanto ao pensamento. Cada uma dessas produções tem caráter multívoco, possui várias

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significações, sendo capaz de mover os homens simultaneamente em muitos níveis psicobiológicos. Existe, aqui, uma dialética, pois a imediatidade da "communitas" abre caminho para a mediação da estrutura, enquanto nos rites de passage os homens são libertados da estrutura e entram na "communitas" apenas para retornar à estrutura, revitalizados pela experiência da "communitas". Certo é que nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente sem esta dialética. O exagero da estrutura pode levar a manifestações patológicas da "communitas", fora da "lei" ou contra ela. O exagero da "communitas", em alguns movimentos políticos ou religiosos do tipo nivelador, pode rapidamente ser seguido pelo despotismo, o excesso de burocratização ou outros modos de enrijecimento estrutural. Pois, tal como os neófitos, na África, na cabana da circuncisão ou os monges beneditinos, os membros de movimentos milenaristas, aqueles que vivem em comunidade parecem exigir, mais cedo ou mais tarde, uma autoridade absoluta, seja sob a forma de um mandamento religioso, de um líder inspirado pela divindade ou de um ditador. A "communitas" não pode ficar isolada, se as necessidades materiais e de organização dos seres humanos têm de ser adequadamente satisfeitas. A maximização da "communitas" provoca a maximização da estrutura, a qual por sua vez produz esforços revolucionários pela renovação da "communitas". A história de toda grande sociedade fornece provas dessa oscilação no nível político. O próximo capítulo trata de dois importantes exemplos. Já fiz menção da íntima conexão existente entre estrutura e propriedade, quer esta seja possuída, herdada ou administrada de maneira privada ou coletiva.  Assim, muitos movimentos milenaristas procuram abolir a propriedade ou possuir todas as coisas em comum. Geralmente isto só é possível por um pequeno período de tempo até a data fixada para o advento do milênio ou das cargas ancestrais. Quando a profecia falha, a propriedade e a estrutura retornam e o movimento se torna institucionalizado ou se desintegra, dissolvendo-se seus

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membros na ordem estruturada circunstante. Suspeito qu Lewis Henry Morgan. (1877) tenha desejado ardentemente o advento da "communitas" para o mundo inteiro. Por exemplo, nos últimos e sonoros parágrafos de  Ancient Society   diz o seguinte: "Um modo de vida baseado meramente na propriedade não é o destino final da humanidade, se o progresso tem de ser a lei do futuro como foi a do passado... a dissolução da sociedade promete vir a ser o término de um modo de vida do qual a propriedade é o fim e o objetivo; porque essa existência contém os elementos de sua própria destruição. A democracia no governo, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e privilégios e a educação universal pressagiam o próximo plano mais elevado d sociedade, para o qual tendem continuamente a experiência, a inteligência e o conhecimento" (p. 552). Que significa este "plano mais elevado"? Neste ponto Morgan aparentemente sucumbe ao erro cometido por pensadores como Rousseau e Marx: a confusão entre "communitas", que é uma dimensão de todas as sociedades passadas e presentes e a sociedade arcaica ou primitiva. "Será o renascímento", continua ele, "numa forma superior, da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gentes". No entanto, como a maioria dos antropólogos confirmaria agora, as normas consuetudi nárias e as diferenças de "situação" e de prestígio nas sociedades pré-Ietradas só permitem pequeno alcance para a liberdade e a escolha individuais. O individualista é freqüentemente considerado um feiticeiro. Só per mitem pequena extensão para a verdadeira igualdad entre homens e mulheres, por exemplo, entre velhos moços, entre chefes e subordinados, enquanto a frater nidade muitas vezes sucumbe a uma aguda distinção (de situações sociais entre irmãos mais velhos e mais moços. O fato de pertencerem a segmentos rivais de sociedades tais como a dos talensis, núeres e tives não permite nem mesmo a fraternidade tribal. A condição de membro de um grupo submete o indivíduo. à estru tura e aos conflitos inseparáveis da diferenciação estrutural.

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Contudo, mesmo nas sociedades mais simples existe a distinção entre estrutura e "communitas", encontrando expressão simbólica nos atributos culturais de Iiminaridade, marginalidade e inferioridade. Em diferentes sociedades, e em períodos diferentes em cada sociedade, um ou outro desses "antagonistas imortais" (fazendo uso de termos que Freud empregou em sentido diverso) assume a supremacia. Mas, juntos, constituem a "condição humana", no que diz respeito às relações do homem com seus semelhantes

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