Tudo Sobre Cinema_Trecho

June 11, 2019 | Author: Alex Fonte | Category: Charlie Chaplin, The United States, Time, Animation, Books
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EDITOR GERAL

PHILIP KEMP

PREFÁCIO DE

CHRISTOPHER FRAYLING

TUDO SOBRE

SUMÁRIO

PREFÁCIO de Christopher Frayling

6

INTRODUÇÃO

8

1

| DE 1900 A 1929

14

2

| DE 1930 A 1939

86

3

| DE 1940 A 1959

160

4 | DE 1960 A 1969

256

| DE 1970 A 1989

314

6 | DE 1990 ATÉ HOJE

438

5

GLOSSÁRIO

564

COLABORADORES

565

CITAÇÕES

566

ÍNDICE

568

CRÉDITOS DE FOTOS E ILUSTRAÇÕES

575

PREFÁCIO

E

m 1950, durante minha inância no sul de Londres, havia uma enciclopédia para crianças na estante da nossa casa com uma seção sobre “as sete artes”. Não sobre as nove Musas, mas sobre as sete artes. Elas eram a Literatura, a Música, a Ópera, a Dança, o Teatro, as Artes Plásticas e o Cinema, que era descrito como “a” orma de arte do século XX. Apesar de suas origens como uma espécie de entretenimento de baixo nível, havia tempos que o cinema, graças a uma mistura de avanço tecnológico, popularização, industrialização e criatividade humana, tinha amadurecido e se tornado a sétima arte. O enciclopedista anônimo previu que, em breve, a história do cinema – como a história da arte – adentraria os portais sagrados da alta cultura por meio de museus, exibições e publicações acadêmicas baseadas em diversas ontes, com direito a toda a austeridade crítica que costumava ser aplicada às outras seis artes. No começo da minha adolescência, ui um leitor assíduo da revista Films and Filming, que me apresentou à crítica cinematográca séria e que, em seus números, armava basicamente o mesmo: ela azia parte de uma série de publicações dedicadas à sétima arte. Meio século depois, nem todas essas previsões se cumpriram. Para o establishment artístico, ainda existem “as artes” (as seis), alguns poucos lmes realizados por artistas e, por m, algo chamado cinema, lmes, ou películas – ninguém sabe ao certo. Quando companhias de teatro estreiam montagens de lmes amosos, a cultura popular se transorma misteriosamente em arte. Quando a Tate Modern preparou uma exibição das obras do pintor Edward Hopper, as imagens que ilustram sua infuência inegável sobre o cinema oram colocadas ora da galeria propriamente dita; do lado da cantina, na verdade. Em uma mostra posterior sobre “Dalí e o Cinema”, que incluía material sobre Walt Disney (1901-1966) e Alred Hitchcock (1899-1980), as palavras “e o Cinema” oram reduzidas no material promocional, por medo de que elas augentassem o público interessado em arte. Os motivos para essa noção de hierarquia cultural são complexos, pois envolvem – entre várias outras coisas – o ato de que os lmes não são “colecionáveis” no sentido tradicional do termo. Eles não tratam de comunicação interpessoal ou de criatividade artística individual, exceto em um nível metaórico. Podem ser tanto um negócio quanto cultura – e muitas vezes são. O que você vê não é exatamente um arteato, mas sim parte do que costumava ser chamado de cultura de massa, que, desde os sociólogos e lósoos da Escola de Frankurt do entreguerras, tende a ser contrastada com a experiência individual autêntica. O cinema não possui séculos de tradição. Não é experimentado “ao vivo”. E é democrático. O ato de quase tudo isso poder ser aplicado a grande parte da arte contemporânea é tacitamente esquecido. Esse tipo de hierarquização tem raízes proundas, sobretudo na cultura britânica. O que é estranho, se pensarmos que as ronteiras tradicionais estão se diluindo em quase tudo o mais que se possa imaginar. Mas, quando essa noção de hierarquia se une à polêmica atual quanto aos estudos de mídia – que assumiram o papel da sociologia de bode expiatório daqueles que gostam de lamentar a decadência da educação superior –, ela começa a car séria. Tudo isso talvez explique o tom deensivo de muitos dos estudos sobre cinema  já publicados: uma ânsia por exibir credenciais acadêmicas e ser levado a sério por outras disciplinas mais bem estabelecidas, geralmente literatura e história, em vez de história da arte e estudos visuais. Essa tônica deensiva coincidiu com novas correntes teóricas vindas da Europa, que pareciam ornecer um curriculum vitae intelectual instantâneo para os estudos de cinema. Essa undamentação, no entanto, oi alvo de grandes suspeitas por diversos motivos metodológicos relacionados aos seus arquivos, dicionários, enciclopédias e textos. O resultado oi que os estudos de cinema herdaram uma desconança quanto às suas bases teóricas antes mesmo de existirem. A disseminação do entretenimento doméstico, aliada ao amadurecimento dos estudos sobre cinema, criou uma demanda maciça por obras de reerência

6 PREFÁCIO

conáveis, escritas de orma clara e sem jargões, sobre a história do cinema, para contra-atacar a insipidez da maioria dos making of de extras de DVD. Essas obras vieram colocar os relatos sobre a experiência do espectador em uma espécie de contexto cinematográco e histórico mais amplo, além de ornecerem uma alternativa bem embasada às resenhas rancamente promocionais, às avaliações eitas por estrelas e às oocas sobre valores de produção e brigas em sets de lmagem. E talvez, acima de tudo, lançar um olhar crítico sobre o cinema numa época em que a distribuição, a exibição, as tecnologias e a apreciação dos lmes se encontram em um momento de infexão. A possibilidade de congelar a imagem certamente levou a uma análise mais detida dos lmes, mais até do que os cineastas gostariam em muitos casos. Mas essa análise em geral se limita a anacronismos e erros de continuidade que azem o cinélo se sentir superior: o assistente de terno e gravata enquanto os persas atacam a Babilônia em Intolerância (1916); Ilsa usando um terninho em vez de um vestido no fashback de Paris em Casablanca (1942); um cego usando um relógio de pulso em Os dez mandamentos (1956) e vários soldados com um deles em Spartacus (1960); marcas de pneu modernas em inúmeros aroestes, inclusive em No tempo das diligências (1939). E você já viu o refexo de David Lean (1908-1991) e sua equipe em Doutor Jivago (1965)? Este livro az algo bem mais interessante com as imagens congeladas ao selecionar de modo criterioso as “cenas marcantes” de cada lme e explicar a importância delas. Tudo sobre cinema oerece um relato cronológico da história da sétima arte, desde a primeira exibição pública dos lmes dos irmãos Lumière em 1895 até os lmes americanos após o 11 de Setembro, as imagens geradas por computador e o 3-D, e o cinema europeu do novo milênio. Não se trata de uma lista de nomes e datas sobre Hollywood – o que geralmente se vê por aí –, mas sim de uma narrativa harmônica sobre o mundo do cinema, que enatiza culturas cinematográcas plurais, em vez de uma cultura cinematográca única. Todo esse rico material está organizado tematicamente por períodos, região ou g ênero. O livro conta ainda com introduções escritas por especialistas, que situam os lmes em seu contexto histórico; artigos sobre lmes especícos; listagens cronológicas dos principais acontecimentos; pers de cineastas; e quadros sobre temas relevantes (“Das páginas para as telas”, a relação dos lmes com os movimentos artísticos da época, música, otograa e assim por diante). Um dos dierenciais de Tudo sobre cinema é a importância dada à maneira como cada geração de cineastas dialoga com as anteriores, com textos que vão e voltam no tempo em suas análises. Outro é a alta qualidade de suas ilustrações, algo comum em obras sobre história da arte, mas recente em livros sobre história do cinema. As amosas palavras de abertura de Ernst Gombrich em  A história da arte são: “Na verdade, a Arte não existe. Existem apenas ar tistas A Arte, com A maiúsculo, se tornou algo como um bicho-papão e um etiche.” Da mesma maneira, este livro não é sobre “Cinema” ou “Filmes” em abstrato. Ele é sobre cineastas e películas e sua importância ainda subestimada na vida de todos nós. E isso envolveu uma seleção muito criteriosa de estudos de caso, o que é sempre um ato de bravura

PROFESSOR CHRISTOPHER FRAYLING HISTORIADOR, CRÍTICO E RADIALISTA, LONDRES, REINO UNIDO PREFÁCIO 7

INTRODUÇÃO

S

erá que alguma orma de arte se espalhou tão rapidamente ou de um modo tão universal quanto o cinema? Embora o exato momento de sua gênese seja discutível, a maioria dos estudiosos concorda que oi em 1895: o ano em que os irmãos Louis (1864-1948) e Auguste (1862-1954) Lumière (à direita) projetaram  A saída dos operários das usinas Lumière para os integrantes da Société d’Encouragement pour L’Industrie Nationale, em 22 de março, e depois, em 10 de junho, izeram uma demonstração particular de seus ilmes no Congresso Fotográico, em Lyon. Seis meses depois, em 28 de dezembro, no Hotel Scribe, em Paris, organizaram a primeira exibição de ilmes de todos os tempos para um público pagante. Em meros 20 anos desses esorços pioneiros – um piscar de olhos na história da literatura ou da arte –, os ilmes passaram a ser assistidos por grandes plateias em todo o globo. A produção estava sendo implantada nos principais países da Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, na Índia, n a China, na Turquia, no México, no Brasil, na Argentina e na Austrália, já apoiada por uma indústria consistente em muitos desses lugares. Tão imediato era o apelo do cinema que Charlie Chaplin (1889-1977, abaixo) postou-se diante de uma câmera pela primeira vez em janeiro de 1914 , como um jovem artista inglês do teatro de variedades, e, ao inal daquele ano já havia se tornado a pessoa mais reconhecida no mundo inteiro. De orma paradoxal, um dos principais atores para a rápida universalização do cinema era sua grande limitação: o silêncio. Filmes mudos eram acilmente adaptáveis, a custos baixos: bastava colocar alguns intertítulos traduzidos e um ilme podia ser exibido para plateias de qualquer lugar. Mesmo os baixos níveis de alabetização raramente eram uma barreira. Os requentadores do cinema logo se acostumaram com o murmúrio de espectadores prestativos que liam os intertítulos para vizinhos em diiculdades. (Os japoneses, idiossincráticos como sempre, empregavam leitores oiciais conhecidos como benshi, cuja unção era icar de pé ao lado da tela e recontar a trama para a plateia.) É possível especular que, se o cinema tivesse nascido no modo alado, talvez houvesse levado mais tempo para obter aceitação mundial. Do jeito que as coisas ocorreram, quando os ilmes alados entraram em cena o hábito de ir ao cinema já estava irmemente arraigado para ser desencorajado por barreiras da linguagem. Os principais gêneros cinematográicos também emergiram cedo. Meses depois das projeções dos irmãos Lumière, o ex-ilusionista Georges Méliès (1861-1938) criava ilmes de antasia, terror e icção cientíica. O documentário, Charlie Chaplin, figura central nos primeiros tempos do cinema, em um cenário no Keystone Studios em 1914. O Vagabundo, seu personagem icônico das telas, era imediatamente reconhecível por causa do terno desajeitado, do chapéu-coco e da bengala de bambu.

8 INTRODUÇÃO

Auguste e Louis Lumière em Lyon, França, em 1892. Os irmãos desenvolveram uma câmera para fazer filmes e se tornaram pioneiros do cinema. O primeiro filme deles (1895) mostrava os trabalhadores deixando a fábrica Lumière.

naturalmente, existiu desde o começo, pois muitos dos primeiros cineastas simplesmente apontavam as câmeras para o mundo que os cercava. A comédia veio logo em seguida, junto com os dramas de época, romances, ilmes de ação, drama psicológico, ilmes de guerra, arsa, épicos da antiguidade e até mesmo pornograia. Não surpreende a abundância de prestigiosas adaptações literárias, inspiradas tanto pelo palco quanto pela literatura. Os aroestes oram uma opção natural para os cineastas americanos, especialmente depois que o setor transeriu o centro de suas atividades para a Caliórnia. A animação logo surgiu, com sua primeira ocorrência creditada a J. Stuart Blackton (1875-1941) com Humorous Phases of Funny Faces (Fases cheias de humor de caras engraçadas, 1906). Em 1910, quase todos os gêneros que reconhecemos hoje já tinham se estabelecido, embora alguns de orma primitiva. O mesmo se pode dizer a respeito das principais técnicas cinematográicas. Levou um tempo bem curto para que os cineastas descobrissem os variados truques da câmera. Close-ups, tomadas panorâmicas, câmera lenta, velocidade acelerada, tela dividida (split-screen), múltipla exposição, superimposição, stop-action, quadros congelados, usões,  fade-ins e fade-outs oram usados pela primeira vez naquelas décadas iniciais. Pode-se dizer que os principais desenvolvimentos técnicos – à exceção do som, da cor e do 3-D – já haviam sido inventados até 1914. O mesmo vale para as técnicas narrativas: lashbacks e  flash-forwards, edição paralela (eventos simultâneos apresentados de orma sequencial), tomadas subjetivas, sequências de sonhos e outros recursos estavam presentes em orma embrionária. Todos os desenvolvimentos desde então se deram em termos de uma soisticação cada vez maior e de agilidade técnica. Mais jovem e mais dinâmico entre as principais ormas de arte, o cinema viajou do primitivismo ao pós-modernismo em menos de um século, ainda trazendo as marcas de suas origens. A revolução que tomou conta do cinema em sua terceira década de existência teve menos relação com a técnica do que com o domínio do mercado nacional. Antes da Primeira Guerra Mundial, as indústrias cinematográicas europeias dominavam o mercado internacional, com a França, a Itália e a Dinamarca entre os principais produtores. Os Estados Unidos eram importadores: em 1907, dos 1.200 ilmes lançados no país, apenas 400 oram eitos internamente. Tudo mudou com a guerra. Com a redução das atividades dos cineastas europeus por causa do conlito, a emergente indústria cinematográica americana – com undos exorbitantes e recém-estabelecida na Costa Oeste – aproveitou a oportunidade. Nos anos 1920, Hollywood, com recursos inanceiros e técnicos inigualáveis, tinha assegurado o papel principal no mundo do cinema e se tornado um ímã irresistível para os talentos de além-mar – situação que permanece até os dias de hoje.

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Howard Hawks no estúdio durante as filmagens de À beira do abismo (1946), com Lauren Bacall e Humphrey Bogart. O diretor geralmente produzia os próprios filmes e fazia cenas de improviso, sem a aprovação das autoridades da censura.

Praticamente desde o início, oi reconhecido que o cinema era único em seu imediatismo e sua acessibilidade. Para alguns, era motivo de comemoração. “Esta é a maravilha do cinema”, entusiasmou-se a  American Magazine em 1913, “é uma arte democrática, uma arte para todas as raças... Aqui as massas da humanidade entram através do movimento vibrante na luz que voa e na beleza que invoca o espírito da raça.” Porém, um meio tão amplamente disseminado e inluente logo caiu sob suspeita – de vulgarizar, de emburrecer, de praticar o sensacionalismo, a lubricidade, a propaganda política, de encorajar o consumismo desenreado e corromper a mente e a moral dos jovens. (Muito do que oi dito, alguns séculos antes, sobre os romances e o teatro, que agora são pilares da cultura de elite.) Essas condenações oram extremamente amplas. Os ilmes “[não dispõem] de qualquer característica que os redima e justiique sua existência”, rosnou o jornal Chicago Tribune em 1907. “Lixo pecaminoso e abominável” oi como o primeiro-ministro britânico Ramsay MacDonald qualiicou a produção de Hollywood e, bem mais tarde, em 1958, o inluente  Journal of Education descartou a arte do cinema como sendo “eêmera” e “parasítica”. Dos políticos, pregadores e proessores vieram demandas por controle, por sistemas de censura, resultando com requência na montagem de sistemas de autorregulamentação para o setor. O mais amoso deles oi o Motion Producers and Distributors o America, cuja lista de limitações icou conhecida como o Código Hays. Mesmo assim, longe de serem tolhidos por essas determinações mesquinhas, muitos cineastas – como Ernst Lubitsch (1892-1947, à direita, em cima) e Howard Hawks (1896-1977, acima) – se deliciavam em usar de sutileza para se esquivarem delas. Um obstáculo mais duradouro e em muitos aspectos mais restritivo para a criatividade dos cineastas estava dentro da própria estrutura do setor. De certa orma, a própria popularidade do meio o prejudicava. Assim que se tornou evidente o potencial de lucro que podia ser gerado pelos ilmes, o aspecto comercial buscou um domínio sobre os elementos mais experimentais ou artísticos. Embora os três principais ramos da produção, da distribuição e da exibição permanecessem separados, havia espaço para manobras. Porém, à medida que o poder dos estúdios

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cresceu e a integração vertical se tornou comum, o escopo para a independência diminuiu rapidamente. Quase desde os primeiros anos, a história do cinema oerece exemplos requentes demais de talentos originais que oram prejudicados, paralisados ou obrigados a ingressar no mainstream populista e medíocre. Em quase todas as décadas, em todos os países, a produção cinematográica é uma batalha renhida entre os investidores que querem maximizar seus lucros e os criadores, que desejam azer algo de que possam se orgulhar. Os homens do dinheiro icariam elizes de dispensar os artistas, se pudessem, mas poucos contadores sabem como escrever um roteiro ou dirigir um ilme. (Não que esta incapacidade tenha impedido que eles tentassem azê-lo em diversas ocasiões.) Portanto, diz muito a respeito da pura vitalidade do meio o ato de que, dentro e ora dos grandes estúdios, tenham sido realizados tantos ilmes excepcionais e, como deve ser acentuado, continuam sendo eitos ainda hoje. No cinema, como em tantas outras atividades, o mito da “era de ouro” prossegue: aquela era lendária quando clássicos e mais clássicos eram produzidos e os padrões criativos gerais eram vertiginosamente elevados. Em geral, quando se examina de perto, constata-se que o mito costuma ser produzido pela memória seletiva, como também é este caso. Vejamos, por exemplo, a suposta era de ouro de Hollywood, no apogeu dos grandes estúdios dos anos 1930: é verdade, produziu-se Scarface – A vergonha de uma nação (1932) e A noiva de Frankenstein (1935), Rainha Christina (1933) e Levada da breca (1938), bem como ...E o vento levou (abaixo) e O mágico de Oz (ambos de 1939), mas esses são ilmes que conquistaram o direito de sobreviver. Junto deles havia uma grande massa de competência duvidosa, mediocridade e alta de qualidade que ninguém pensaria em retomar nos dias de hoje. Em qualquer época, provavelmente não mais do que 5% da produção mundial merece uma atenção mais do que passageira e talvez esse número esteja superestimado. De qualquer orma, houve uma série de eras de ouro cinematográicas e Tudo sobre cinema vai chamar atenção para algumas delas: aqueles períodos – que raramente parecem durar mais do que uma década – em que a indústria cinematográica de determinado país é impulsionada por uma onda de originalidade criativa, graças a uma mistura de atores sociais, técnicos, históricos e econômicos. Além de Hollywood nos anos 1930, podemos destacar a Alemanha e a Rússia soviética na década de 1920; a França na década de 1930; a Grã-Bretanha e a Itália do neorrealismo no im dos anos 1 940; o Japão dos anos 1950; novamente a França com a nouvelle vague nos anos 1960; os ilmes da Primavera de Praga em meados dos anos 1960, na Tchecoslováquia; mais uma vez a Alemanha, com o Novo Cinema Alemão nos anos 1970; a Hollywood dos “pirralhos do cinema” como Martin Scorsese (n.1942, ver p. 13, embaixo) e Robert Altman (1925-2006) na mesma década

Ernst Lubitsch com Jeanette MacDonald em 1932. O diretor nascido na Alemanha ganhou renome por suas refinadas comédias de costumes. Os temas picantes e os diálogos sugestivos e oblíquos de seus filmes deixavam os censores perplexos.

Clark Gable lendo o best-seller de Margaret Mitchell, ...E o vento levou, em 1939. O filme em que ele interpretou Rhett Butler ganhou o Oscar em 10 categorias e continua sendo uma das obras mais populares de Hollywood em todos os tempos.

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Jean-Luc Godard (ao centro) com Eddie Constantine e Anna Karina em 1965. Como outros diretores da nouvelle vague francesa, Godard desafiou o cinema tradicional, inspirando cineastas como Wim Wenders (n. 1945) e Quentin Tarantino (n.1963).

e a Quinta Geração do cinema chinês, nos anos 1980. Décadas mais recentes viram o lorescimento da produção cinematográica no Irã, na Coreia do Sul, na Tailândia, na América Latina e na Romênia. Em outras ocasiões – nem sempre coincidindo com uma era de ouro especíica –, certos gêneros e estilos desrutam de uma ascensão, geralmente em reação ao clima nacional. Olhando para Hollywood, um historiador social poderia acompanhar a orma com que o ilme noir – aquela emanação sinistra da psique americana – emergiu das sombras de um conlito mundial iminente no momento em que a saliência espevitada da comédia amalucada dos anos 1930 chegava ao im de seu ciclo e prosseguiu durante os anos paranoicos da Guerra Fria, se sobrepondo a gêneros mais otimistas como o musical e o aroeste. Da mesma orma, é possível vincular o ciclo dos ilmes de “terror-J” que começaram com O chamado (1998), de Hideo Nakata (n.1961), com o aumento da incerteza nacional e da desilusão que se seguiu à crise da economia japonesa. O segundo século do cinema parece destinado a assistir a mudanças revolucionárias nesta orma de arte e possivelmente sua metamorose em algo radicalmente dierente. Nas últimas três décadas, com o advento e a crescente soisticação das imagens geradas por computador (CGI), o cinema se tornou cada vez mais conduzido pela tecnologia. É algo inédito, como se poderia dizer. Os primeiros aprimoramentos importantes na tecnologia cinematográica – som, cor e widescreen (tela panorâmica) –, embora tivessem um impacto proundo, permaneceram subordinados ao processo de produção cinematográica. Mesmo quando suas palavras podiam ser ouvidas e as ações vistas em Technicolor, em telas imensas, os atores ainda atuavam diante de uma câmera em um estúdio ou locação, como antes. Porém, os computadores revolucionaram o cinema de live-action talvez mais do que a animação. Ainal de contas, os realizadores de Toy Story (1995) e seus sucessores ainda estão pintando desenhos animados como izeram os artistas da Disney em Bambi (1942). Tudo o que mudou oram as erramentas. Nos ilmes de live-action não são apenas enormes monstros e vastos exércitos (como na Batalha do Abismo de Helm em O senhor dos anéis – As duas torres, 2002) que podem ser criados na tela, mas os atores podem aparecer em paisagens complexas sem nunca as terem visto. Os próprios atores podem ser abricados por meio da captura de movimentos – basta assistir à atuação de Andy Serkis como Gollum, no mesmo ilme – e talvez até se tornem supérluos à medida que as técnicas de CGI e captura de movimento icarem mais soisticadas. Em pouco tempo, poderemos ver o primeiro ator “humano” convincente inteiramente gerado por computador e estrelas alecidas poderão ser ressuscitadas em novas atuações. Marilyn Monroe ainda poderá estrelar um ilme com Humphrey Bogart. Enquanto isso, o cinema pode seguir o mesmo caminho do music hall: em 50 anos, os ilmes como os conhecemos e os experimentamos talvez se tornem antiquados.

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Neste ponto, porém, é possível acreditar que o século XXI seja uma espécie de era de ouro para os cinéilos. O desenvolvimento do vídeo, dos DVDs e dos downloads permite que mais tesouros do cinema mundial do passado e do presente estejam acessíveis do que em qualquer outro momento. Há pouco tempo, ter contato com clássicos ou ilmes de língua estrangeira signiicava necessariamente viver nas imediações de um cinema de arte em uma grande cidade ou coniar na casual exibição na televisão. Hoje, é provável que os leitores deste livro sejam capazes de assistir ou rever todos os ilmes apresentados nestas páginas, julgando nossas inclusões e omissões, chegando às próprias conclusões sobre nossos vereditos. O propósito deste volume é proporcionar uma visão geral do cinema desde o início até os dias atuais e dar uma ideia de seu escopo cada vez mais abrangente. É, naturalmente, uma tarea ambiciosa: o cinema é versátil e multiacetado demais para caber em apenas um volume e excessivamente ambíguo para ser deinido. O cinema, como declarou Jean-Luc Godard (n.1930, à esquerda), é “a verdade a 24 quadros por segundo” – o que parece impressionante até que se considere, digamos, obras como o antissemita  Jud Süss (1940), de Veit Harlan (1899-1954). Sam Fuller (1912-1997, à direita) talvez tenha chegado mais perto ao descrever o cinema como “um campo de batalha: amor, ódio, ação, morte. Em uma palavra: emoção”. Embora isso mal se aplique às animações abstratas de Hans Richter (1919-2008) ou Oskar Fischinger (1900-1967). Em Tudo sobre cinema, optamos por uma série de tomadas de introdução, cada uma apresentando uma ase signiicativa ou um elemento na história do meio – uma década crucial, uma tendência, um gênero ou o ponto alto na produção de um determinado país ou região –, antes de partir para os close-ups de ilmes marcantes do momento em questão. O critério deu preerência aos exemplares mais representativos e esclarecedores, em vez daqueles que poderiam ser considerados “os melhores”. Os leitores e os críticos não terão diiculdades em identiicar lacunas: em um livro desse tipo, decidir o que vai icar de ora é um processo mais doloroso do que decidir o que incluir. Os ilmes despertam discussões das mais apaixonadas e desavenças, como qualquer outra arte, ou talvez até mais do que as outras artes. Se este livro provocar debates, sugestões ou uriosas objeções, se provocar reavaliações, pró ou contra, se inspirar os leitores a buscarem obras, cineastas, gêneros ou produções nacionais que teriam de outra orma ignorado – ele terá cumprido seu objetivo. PK

Sam Fuller nas filmagens de  Agonia e glória (1980), sobre a Segunda Guerra Mundial. Os filmes de Fuller, contundentes e de baixo orçamento, refletem sua carreira anterior como jornalista em tabloides.

Martin Scorsese (no meio) durante as filmagens de Caminhos perigosos (1973) com Robert De Niro e Harvey Keitel. O cineasta escreveu o roteiro baseando-se em acontecimentos reais que ele testemunhou na adolescência passada no bairro de Little Italy, em Nova York.

INTRODUÇÃO 13

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