Trocando As Lentes PDF

April 12, 2023 | Author: Anonymous | Category: N/A
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TROC NDO m

S

LENTES

novo foco foco sobre o crime e a justiça

HOW RD ZEHR

Tradução de Tânia Van

cker

 

Titulo original: original: Changing Lense Lensess - A New Focus fo forr Crime and Justice © 2005 by Herald Press, Scottdale, Pa. 15683 Primeira edição 1990 Lia Diskin Projeto editorial: Tradução: Tônia Van Acker Coordenação editorial: Daniela Baudouin Projeto gráfico e diagramação: Luciano Pessoa Capa: Fábio Miguez Foto da capa: Craig Spaulding e Howard Zehr

Dados

Deus é compaixão e piedade Lento para a cólera e cheio de amor. Deus não disputa perpetuamente E seu rancor não dura para sempre. Nunca nos trata conforme nossos pecados Nem nos devolve segundo nossas faltas.

Internacionais de

Catalogação na Publicação CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil)

Zehr, Howard Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça / Howard Zehr ; tradução de Tônia Van Acker. -- São Paulo: Palas Athena, 2008.

Salmos 103: 8-10, Bíblia de Jerusalém

Título original: Chanping lenses : a new focus for crime and justice. Bibliografia. ISBN 978-85-60804-05-4 1. Crimes e criminosos 2. Justiça criminal - Administração 3. Punição 4. Reconciliação 5. Vítimas de crimes I. Título.

08-02407

CDD-340.114

Índices para catálogo sistemático: 1. Justiça restaurativa: Direit Direitoo 340.114

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização prévia, por escrito, da Editora. Direitos Direit os adquiridos para a língua portuguesa por Palas Athena Editora Rua Leôncio de Carvalho, 99 - sa sala la 1 - Par Paraís aísoo 04003-010 São Paulo - SP - Brasil- Tel/Fax: l I ) 3289-5426 [email protected] 2008

• •

2

6

 

  umário

Prefácio

Parte

I

A experiência experiência do crime

apítulo 1

Uma ilustração

O caso Capítulo 2

A vítima

A vivência

5 5

19 19

Por que tão traumático?

24

O processo de recuperação

25

Nossa reação

29

Capítulo 3

O ofensor

A experiência da prisão O que precisa acontecer? O que acontecerá? Capítulo 4

Alguns temas comuns

Arrependimento e perdão A questão do poder A mistificação do crime

33 33 40 43 45 45 5

57

 

  arte li

Capítulo\ Capí tulo\S S - O dire direito ito da alianç aliança: a: a alternativa bíbl ica

O paradigma de justiça

Capítulo 5 - justiça retributiva

O que diz a 61

Estabelecimento da culpa A vitória da justiça e a dor

63 71

O processo

74

O crime como violação da lei

77

Quem é a vítima?

78

Capítulo 6 - justiça como paradigma A importância do paradigma os

Aplicando paradigmas Os paradigmas mudam

8

12

Bíblia?

uma visão unificadora

Shalom

126

A justiça da aliança aliança Quais as qualidades da justiça divina?

129

Direito da aliança

135

O paradigma bíblico Conceitos de de justiça bíblicos e modern os

14

Um curto-circuito histórico

146

128

13

143

81

84 86

Capítulo 9 -

O conceito

VORP

um campo experimental

VORP

O VORP como catalisador

Raízes e marc marcos os

Capítulo 7 - justiça comunitária: a alternativa histórica

124

Aliança: a base para shalom Shalom e aliança como forças transformadoras

O que aprendemos Os objetivos são importantes

Parte

12

93

Parte

IV

-

149 151

154 159 162

Lentes novas

Justiça comunitária

94

A opção retributiva A opção judicial

97 1

Uma avaliação

1 2

A revolução jurídica

1 3

Formas de ver o crime

174

O papel da lei canônica

1 5

175

Vitória da justiça do Estado

1 9

Restauração: o objetivo A justiça começa nas necessidades

115

O crime gera obrigações

185

118

Ofensores também têm necessidades

188

As

dimensões da revolução jurídica

Uma mudança

de

paradigma

Capítulo 10 - Uma lente restaurativa Crime: violação de pessoas e relacionamentos

Uma

questão de responsabilidade

Compreendendo a responsabilidade

167 171

18

189 19

 

o processo deve empoderar e informar

A justiça envolve rituais Há lugar para punição? Duas lentes Visões de justiça

Capítulo 11 - E ago agora ra??

191 196 197

199 199 2 3

Possibilidades sistêmicas Enquanto isso O novo dentro do antigo No mínimo

2 3

Posfácio à primeira edição

215

Apêndice Apêndice Apêndice Apêndice

Indicadores de justiça restaurativa

217

A subversão das visões Sugestões para grupos de estudo

219

1 2 3 4

-

Lições aprendidas com os círculos de sentenciamento e conferências de grupo s familiares

Posfácio à terceira edição

Questões pertinentes às partes interessadas História e origens O conceito de justiça restaurativ restaurativaa Na prática Um modo de vida? Valores

Ensaio bibliográfico à terceira edição

Prefácio

21

212

214

223

244 251 253 256 257 262

264 266 269

Este livro surgiu da minha experiência ao longo de vários anos e de leituras e discussões, discussões, send o mais um trabalho de síntese do que de criação. Ou seja seja,, resulta das idéias e experiências de inúmeras pesso as a quem eu devo muito. Elas são bem mais numerosas do que seria possível registrar aqui, mas ao menos gostaria de expressar minha gratidão a algumas delas nominalmente. Meu colega canadense Dave Worth, que me incentivou e con venceu a terminar este livro, e também contribuiu com suas idéias e sugestões. A Martin Wright, Millard Lind, Alan Kreider e W H. Allchin, que leram o manuscrito, me oferecera ofereceram m incentivo para cont inuar e fizeram muitas sugestões úteis. Àqueles cujas cujas contribuições p rocurei dar reconhecimento neste livr livroo e a muitos qu e contri buíram de formas que eu não seria capaz ele citar especificamente. E especialmente a Nils Christie e erman Olanchi, cujos escritos e discussões me ajudaram a vislumbrar o caminho a seguir. Ao Aoss participantes de conferências e seminários nos Estados Uni dos, Canadá e Inglaterra, Inglaterra, que ouviram e testaram ao longo dos últi mos anos as idéias que consignei aqui. Às centenas de pessoas envolvidas no movimento VORP nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e alhures - cuja determinação e exemplo me deram coragem e ancoragem na vida real. Ao Comité Central Menonita dos Estados Unidos Mennonite Central Committee u.s.) que me ofereceu incentivo e espaço para de11

 

senvolver

grama

minhas idéias e escrevê-las.

MCC-US,

H A

Penner, ex-diretor do Pro

me deu especial incentivo ao longo do processo.

john Harding e ao Hampshire Probation Service, que me con

vidaram a visitar a Inglaterra, me acolheram e me ofereceram uma casa casa onde trabalhar no manuscrito durante minha estada. A Doris Rupe, que providenciou um lugar silencioso para eu escrever enquanto estava longe do meu escritório.

arte

Muitas pessoas ajudara m a dar forma a esse trabalho - na verda de, mais do que as que consegui agradecer aqui. No entanto, neste momento assumo a responsabilidade pelo conteúdo total, que não reflete necessariamente a posição do Comité Central Menonita, onde trabalhei enquanto escrevia, nem de outros que mencionei acima. Nos anos após o lançamento da presente obra, ela se tornou um clássico no campo da justiça restaurativa. Por isso, e pelo fato dos meus horizontes terem se expandido (mais do que se desenvolvido) em muitas direções, não mudei o texto para a edição de 2005. Ao invés disso, escrevi um novo posfá io que delineia alguns desdobra mentos recentes e substituí a antiga bibliografia bibliografia por uma nova. nova. Obri gado ajudah Oudshoorn e jenni fer Larson Sawin Sawin por suas sugestões sobre o posfácio e a judah por seu auxílio com a bibliografia. Como sustenta a presente obra, a justiça restaurativa é acima de tudo, uma introdução ao diálogo e ao descobrimento. Espero que você se junte ao crescente número de comunidades que empreen dem essa jornada.

Howard Zehr

12

A experiência do crime

---- 

./-----. Capítulo 1

Uma ilustração

Este é

u

livro que trata de princípios e ideais. Ele busca busca - talv talvez ez

presunçosamente - identif identificar icar e av avaliar aliar al alguns guns do doss nossos pressu postos básicos sobre o crime a justiça e o modo como vivemos em comunidade. Procura esboçar brevemente a forma como viemos a adotar esses pressupostos e sugere algumas alternativas. Tal esforço envolve abstrações sem se limitar a elas. Devemos

começar por entrar na experiência real do crime e da justiça o mais profundamente possível. Somente com uma base firme nessa reali dade é que começaremos a compreender o que fazemos e por quê. E talvez talvez assim espero será possível identificar o que podemos come çar a fazer de modo diferente. ácil e Mas compre ender a experiência do crime não é tarefa ffácil nem todos estamos dispostos a empreendê-la. Enfrentar o signifi cado de ser uma vítima ou fazer de outra pessoa uma vítima é algo que desencadeia emoções intensas que em g geral eral assustam e nos fa recuar. A menos que tenhamos vivenciado o crime diretamente pode ser difícil criar uma empatia total com a situaçào. No entanto preciso tentar sabendo que a tentativa será incompleta e, talvez

z m

dolorosa. Portanto este livro livro começa assim assim..

o caso li. muitos anos eu me encontra va na corte de uma pequena cidade ftorte-americana sentado ao lado de u réu de dezessete anos. Ha-

15

-..._- 

UMA I L UST R AÇ ÃO

liMA II USTRAÇAo

viam pedido a mim e a um colega que preparássemos uma proposta de sentenciamento para submeter à apreciação do juiz. Agora aguar dávamos a sentença. Uma triste sucessão de eventos é que culminou nessa situação. Esse jovem (que na época do crime tinha dezesseis anos) usara uma faca para confrontar uma moça num corredor escuro. Durante a luta que se seguiu ela perdeu um olho. Agora a sorte dele seria decidida. Embora os detalhes não tenham ficado claros, algo assim parece ter aconteci acontecido: do: O rapaz - que vinha de um contexto famili familiar ar infeliz, onde provavelmente provavelmente sofria sofria abuso abusoss - decid decidira ira fugir com sua namo rada, mas não tinha o dinheiro necessário. Ele não possuía histórico de violência, mas a televisão parece tê-lo convencido de que se ele ameaçasse alguém, esse alguém daria a ele o dinheiro e o problema estaria resolvido. Como vítima ele selecionou uma moça com a qual cruzara na rua ocasionalmente. Várias vezes tentara conversar com ela, mas fora rejeitado. Presumindo que ela estava bem de vida, concluiu que a moça seria uma boa escolha. Esperou no corredor do apartamento dela com uma faca na mão e o rosto coberto por uma máscara (ele alegou ter escolhido uma faca pequena de propósito). Quando ela entrou, ele a agarrou por trás. Mas em vez de passivamente entregar o dinheiro, conforme o rapaz esperav esperava, a, a moça entrou em pânico - como a maioria maioria de nós provavelmente faria faria - e começou a gritar e reagir reagir.. A mâe do rapaz mencionou mais tarde que ele jamais suportara que lhe levantassem a vo voz, z, e que ele tendia a agir de modo irracional qu ando isso aconte cia. Talvez Talvez isso explique o compor tamento dele, pois quan do a moça reagiu, ele também entrou em pânico, apunhalando-a várias vezes, inclusive no olho. Os dois então entraram no apartamento dela. Nesse ponto as estórias do rapaz e da moça começam a divergir, ela dizendo que ele a manteve cativa, e ele dizendo que tentou ajudá-la e que ela coo16

perou. Segundo relatos, na ocasião da prisão ele teria dito: Eu não queria fazer isso, eu não queria fazer isso. Eu não queria machucar ninguém. Diga a ela que sinto muito . De qualquer forma, ele foi preso quando os dois saíam do apartamento. Por fim foi indiciado e agora aguardava a sentença. Na minúscula corte dessa pequena comunidade ele estava sen tado com seu advogado de frente para o juiz. Atrás dele estavam os membros de sua família. Na fila de trás, a família e parentes da vítima. Dispersos pela sala estavam uns poucos observadores inte ressados e profissionais de direito criminal. Antes que ele ouvisse a condenação, apresentei minha proposta de sentença que pedia por um tempo limitado de privação de liber dade, supervisão posterior, ressarcimento à vítima, reintegração à comunidade, aconselhamento, educação, rotina de vida estruturada e emprego. Foi-lhe perguntado se queria dizer alguma coisa. Ele falou falou de seu arrepen dimento pelo que ti nha feito, feito, de sua ten

tativa de comp compreen reender der o que aquilo significava significava para a moça: Perce bo , disse ele, que cau causei sei muito sofrimento. A srta. [ . . ] perdeu uma coisa que nunca terá de volta. Com prazer eu daria meu olho a ela para que pudesse enxergar de novO. Sinto muito pelo que fiz e peço que ela me perdoe. Não quero causar nenhum dano à família dela no futuro, não importa quando . E então veio o momento da sentença. Mas antes do pronunciamento da sentença o juiz enumerou me todicamente os objetivos corriqueiros das sentenças: a necessidade de ressarcimento, a necessidade de isolar os ofensores da sociedade, a necessidade de reabilitação, a necessidade de coibir. Observou, ainda, que é necessário que os ofensores sejam responsabilizados por suas ações. O juiz também examinou a intenção do rapaz ao cometer o crime. Ele havia sido acusado de assalto à mão armada com intenção r e matar. O juiz pareceu concordar com a versão do réu de que não

havia intenção de matar no início do assalto. Contudo, o juiz con17

 

~ ' M A

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A ~ A ( l

Capítulo 2

cluiu que a intenção havia se formado durante a luta e portanto, a

A vítima

acusação era acertada e grave. E então o juiz pronunciou a sentença. O rapaz foi condenado a uma pena de 20 a 85 anos de prisão sem possibilidade de condicio nal ou liberdade por bom comportamento antes do cumprimento

da pena mínima. Na melhor das hipóteses, ele sairá da prisão com 7 anos de idade. idade. Esp Espero ero , admoestou o juiz aao o pronunciar sua sentença, que lá você esqueça os padrões de comporta ment o que o

levaram a essa violenta transgressão . Não se pode negar a nature za trágica desse caso. Mas é uma tra gédia que foi logo abstraída para tornar-se um outro tipo de drama. Em vez de um confronto trágico entre dois indivíduos, o procedi mento legal e a mídia o transformaram num crime envolvendo um algo o lembrado apenas apenas secundariamente - uma vítima criminoso e - alg O drama foi travado entre duas abstrações. O acontecimento foi mis tificado e mitificado até que as verdadeiras experiências e motiva ções desaparecessem. Comecemos, portanto, a desmistificar e desmitificar essa tra gédia tão comum. Tentemos desembaraçar os meandros dessa vi vência, enxergando-a como uma tragédia humana que envolve duas pessoas - pessoas que, pessoas que, em muitos aspectos, se assemelham assemelham bastante a nós mesmos.

Nunca estive com a moça do caso narrado acima. A natureza ad versarial versari al do processo judicial deses timulou esse encontro pelas cir cunstâncias do meu envolvimento no caso, e por minha própria dúvida quanto ao modo de agir. Olhando em retrosp retrospectiva, ectiva, pens o que deveria ter arriscado uma tentativa. De qualquer modo, pro curei projetar, com base base nas experiências de outras víti vítimas mas , um pouco do que ela passou.

A vivência Quando ela entrou no corredor de seu apartamento e foi atacada por um homem de máscara com uma faca na mão, ficou aterrorizada. Sua primeira reação foi de choque e negação: Isso não pode estar acontecendo comigo . Algumas vítimas relatam que ficam inicial mente paralisadas, incapazes de agir. Ela, no entanto, gritou e tentou se livr livrar. ar. A moça disse, depois, que teve certeza de que ia morrer.

Uma reação comum entre as vítimas é o que os psicólogos denominaram aceitação por pavor paralisante . Diante de uma situação apavorante e inescapável, as vítimas de crimes violentos (como, por exemplo, seqúestros) freqúentemente parecem cooperar com seus 1.11

•••

1

t.t

v m

sendo disponibilizadas muitas informações sobre a experiência de ser vítima. Cos

p e c i a l m e n t e de The Crime Victim s Book, de Morton Bard e Oawn Sangrey (Nova York: 'runner-Mazel, 1986), 2a ed. Ver também Shelley Neiderbach, Invisible Wounds: Crime Victims (Nova York: The Haymorth Press, 1986) e Doug Magee, What Murder Leaves Behind: The , , . . \ I I e / t l l 1 ~ Family York: 1983). ~

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18

(Nova Oodd, Mead and Co., Charlotte Hullinger, co-fundadora 'Delação Parents of Murdered Children, foi de grande ajuda.

19

T

 

 

VÍTIM

VÍTIM

opressores. Em alguns crimes como o estupro, essa reação psicoló

esnobado o rapaz das vezes que ele tentara falar com ela .. Se ela não tivesse saído naquela noite .. Talvez isto fosse uma punição por algo que fizera no passado ..

gica natural pode ser interpretada erroneamente durante o processo judicial como colaboração voluntária. Na verdade, entretanto, tal colaboração colaboraç ão se funda n o medo. Ao fim do

Elae sempre lutaráAlguém com o medo e com a sensação de vulnerabi lidade impotência. assumiu o controle deixando-a impo tente e vulnerável e será difícil reconquistar a confiança de sentir-se segura e no controle da situação. Junto com essa luta interior ela es tará tentando recobrar a confiança nos outros, no mundo. Ela e seu mundo foram violados por alguém, e a sensação de estar à vontade com as pessoas pessoas,, com sua casa, casa, sua vizinhança e com seu mu ndo será difícil de resgatar.

ataque inicial, a moça de fato reagiu dessa forma. Do

ponto de vista do agressor, depois de perceber o que tinha feito, ele tentou procurar socorro. Na ótica dele, ela cooperou. Mas, na ver dade, ela estava com medo, sentia-se totalmente a mercê dele, e por isso procurou cooperar e acalmá-lo como pôde. Durante a fase do impacto inicial, porta nto, as reaçôes dela foram iguais à da maioria das vítimas: viu-se tomada por sentimentos

A maioria das vítimas vítimas sente muita raiva raiva da pessoa que cometeu o ato, dos outros que deveriam ter evitado evitado isso e de Deus que permi tiu que acontecesse. Essa intensa raiva poderá contradizer os valores que professam, agravando o sentimento de culpa. Para uma pessoa religiosa, uma experiência assim muitas vezes provoca uma crise de fé Por que isso aconteceu? O que fiz para merecê-lo? Como pôde um Deus justo e bom deixar que isso acontecesse? A falta de uma resposta satisfatória a essas perguntas pode levar a uma profunda crise de crença religiosa.

de confusão, impotência, pavor e vulnerabilidade. Estas emoções a acompanharam po r alguma algumass semanas, embora com meno r intensida de. Contudo, novas e intensas emoções surgiram: raiva, culpa, sus peita, depressão, ausência de sentido, dúvidas e arrependimento. peita, Durante essa

fase

de retração ela lutou para se ajustar e passou

por violentas variações de humor. Havia dias em que parecia ter reco brado sua animação animação costumeira, seu otimismo, que em seguida eram substituídos po r depressão profund a e/ou raiva. raiva.

Ela

passou a suspei

tar dos outros, especialmente estranhos, e a se assustar facilmente.

Durante as semanas que se seguiram ao assal assalto to essa jovem luto u para se adaptar à sua nova situação. Em parte ela lamentava uma

Começou a ter sonhos vívidos e assustadores e fantasias que não lhe eram próprias e que iam contra seus valores. Ela fantasiava, por exemplo, que estava se vingando cruelmente da pessoa que lhe tinha causado mal. Pelo fato disso ser contrário aos seus valores, sentia

perda, a perda de seu olho, de sua inocência. Ela buscou formas de lidar com as novas e intensas emoções de raiva, culpa e vulnerabili dade. E precisou reajustar sua visão de mundo e de si mesma. Hoje el vê o mundo como um lugar potencialmente perigoso que a traiu; n o mais lhe parece o ambiente confortável e previsível do passado. Ela se vê como tendo sido inocente, e sente que precisa parar de ser t o boazinha e confiante. Diante destes novos sentimen tos ela in clusive começou a reajustar sua auto-imagem. Embora antes visse como um indivíduo amoroso, voltado para o cuidado dos outros e

ansiedade e culpa. Acordada, muitas vezes repassava mentalmente o ocorrido e também suas reações, imaginando por que teria reagido daquela forma e o que poderia ter feito de modo diferente. Como a maioria das vítimas vítimas de crimes, ela lutou co m sentimen tos de vergonha e culpa. culpa. Repetidamente ssee perguntava por que aqui lo tinha acontecido com ela, por que tinha reagido daquele modo e se poderia ter agido de outra forma, sentindo-se tentada a concluir que tudo aquilo era de algum modo culpa sua. Se ela não tivesse 20

...

para

as

pessoas em geral, esta idéia de si mesma E seus amigos? l

foi

destruída.

 

A VÍTIM

A VÍTIM

Com u pouco de sorte ela teria ami amigos, gos, companheiros de fé e de trabalho e vizinhos que a procurassem. Ela precisava de pessoas que aceitassem seus sentimentos, independente de compreensão e julgamento, e que estivessem dispostas a ouvir sua história repetidas vezes. Precisava de amigos que a ajudassem a não sentir culpa pelo que aconteceu ou pela forma como reagiu, e que oferecessem apoio e ajuda sem paternalismo. 2 Mas para sua infelicidade os amigos procuraram evitar o assunto. Logo se cansaram de ouvir essa história e acharam que ela precisava esquecer e tocar a bola para frente. A aconselharam a não sentir raiva e sugeriram, de várias maneiras, que ela contribuiu com o acontecido - que ela foi·em parte culpada. Sugeriram que os fatos foram de certa forma a vontade de Deus. Talvez ela estivesse precisando ser punida por alguma coisa. Talvez Deus tenha feito isto para o bem dela. Talvez Deus estivesse tentado ensinar-lhe algo. Tais sugestões aumentaram sua tendência de culpar a si mesma e questionar sua fé. Essass reaçõ Essa reações es por parte de amigos e conhecidos são exemplos do que os psicólogos psicólogos chamam de viti vitimizaç mização ão secund secundária ária . Quand o ou vimos o relato de u crime, quando escutamos a vítima contar sua história, também nós vivenciamos a dor que gostaríamos de evitar. 2.

Charlotte Hullinger. co-fundadora da Parents of Murdered Children, e ela própria uma

vítima, identificou quatro modos como os amigos tendem a reagir diante de uma vítima: O salvador: salvador: O medo faz com que queira uma decisão rápida. Em vez de ouvír, ele faz sugestões e incentiva a dependência. Sente-se desconfortável desconfortável em deixar a vítima desabafar. desabafar. É difícil para ele ver pessoas sofrendo e sentirem-se impotentes, portanto quer solucionar as coisas rapidamente. O ajudante hostil: O medo o toma agressivo. Ele talvez culpe a vítima. Fala emitindo jul gamentos e procura distanciar-se da vítima. Como sente medo, alega que tal coisa não teria acontecido com ele. O ajudante impotente: É tomado pelo medo. Sente-se tão mal ou pior do que a vítima, mas não ouve realmente. Poderá fazer a vítima sentir-se tão mal que esta ficará com pena daquele que está tentando ajudar. O ajudante positivo: Essa pessoa está consciente e reconhece o medo. Encara a vulnerabi lidade, ouve sem julgar e sabe fazer as coisas coisas no momento apropriado. Tal ajudante poderá dizer coisas do tipo: Você deve estar se sentind o muito mal mal ou Vai levar tempo ou Você fez o certo ou Deve ser horrível horrível . Em outras palavras, dão à vítima permissão para falar sem dizer especificamente como devem fazê-lo.

22

Então procuramos fugir do assunto e estabelecer culpas. Afinal, se conseguirmos localizar localizar a causa do problema em algo algo que a vítima é ou fez, nos distanciaremos de sua situação. Conseguiremos acreditar que tal coisa não acontecerá a nós. Isto nos faz sentir mais seguros. Portanto, ela teve que lutar pelo direito de lamentar sua per Como seus amigos mais próximos (inclusive, talvez, o namorado) sofreram com ela, u estresse adicional foi causado pelo fato de que cada u deles lamentou de modo diferente e expressou menos abertamente seus sentimentos. Sabemo Sabemos, s, por exemplo, que o índice de divórcios entre os pais de crianças assassinadas é alto, em parte porque os parceir parceiros os chora m a perda de mod o diferente e têm formas distintas de se adaptarem. Essas diferenças, se não identificadas e compreendidas, podem afastar as pessoas.

da.

A experiência de ser vítima de u crime pode ser muito inten sa, afetando todas as áreas da vida. No caso desta moça afetou seu sono, seu apetite e sua saúde. Ela recorreu a drogas e bebidas alco ólicas para agüentar. Os custos do tratamento foram muito pesados. Seu desempenho no trabalho caiu. Várias experiências e eventos continuaram a leválevá-la la de volta a lembranças doloros dolorosas. as. Se ela fosse casada, seu casamento poderia ter sofrido. Seu interesse sexual e comportamento poderiam ter sido afetados. Para as vítimas de cri mes, os efeitos colaterais são muitas vezes bastante traumáticos e de longo alcance. Não é difícil reconhecer a amplitude e intensidade da experi encia do crime no caso de u ataque violento como este, mas para pessoas que não foram vítimas não é fácil avaliar a dimensão total da crise. O que ignoramos é que as vítimas de agressões menos graves podem ter reações semelhantes. Ao descrever suas experiências, as vitimas de furto muitas vezes têm u discurso semelhante às vítimas de estupro. Vítimas de vandalismo e furto de carro relatam muitas reações semelhantes às de vítimas de assalto, embora, talvez, de form menos intensa.

..

23

 

A VÍTIM

A VÍTIM

Por que tão traumático? Qual o por quê dessas reações? reações? Por que o crime é tão devastador, tão difícil de superar? Porque o crime é essencialmente uma violação: uma violação do ser, uma dessacralização dessacralização daquilo que somos, daqu i em que acreditamos, de nosso espaço privado. O crime é devasta dor porque perturba dois pressupostos fundamentais sobre os quais calcamoss nossa vida: a crença de que o m undo é um lugar ordenado calcamo e dotado de significado, e a crença na autonomia pessoal. Esses dois pressupostos são essenciais para a inteireza do nosso ser lo

A maioria de nós supõe que o mundo (ao menos a parte do mundo na qual vivemos) é um lugar ordenado, previsível e com preensível. Nem tudo acontece da forma como gostaríamos, mas ao menos conseguimos encontrar explicações para boa parte do que acontece.. Geralmente sabemos o que esperar. Não fosse assim, como acontece ter alguma sensação de segurança? O crime, como um cânce câncer, r, rompe com o sentido de o rdem e sig nificado. Conseqüentemente, as vítimas de crime, como as vítimas de câncer, procuram explicações. Por que isso aconteceu a mim? O que eu poderia ter feito para impedir? Estas são apenas algumas das questões que atormentam as vítimas. import ante encontra r as respostas porque elas restauram a ordem e o significado. Se conse guirmos responder ao como e aos porquês, o mundo pode tornar seguro outra vez. Sem respostas as vítimas tendem a culpar a si mesmas, aos outros, ou a Deus. A culpa, de fato, é uma importante forma de responder às perguntas que buscam restaurar o significado e um simulacro de inteireza. se

Mas para sermos inteiros também é preciso possuir um sentido autonomia pessoal, pessoal, de pode r sobre nossas vidas. intensament e degradante e desumanizador perder o poder pessoal contra a pró pria vontade e ficar sob o poder dos outros contra a própria vontade.

de

O crime destrói o sentido de autonomia. Alguém de fora assume o controle de nossa vida, nossa propriedade, nosso espaço. Isto deixa a 24

vítima vulrierável, vulrierável, indefesa, sem controle, desumanizada. Novamen te, a auto-culpabilização oferece oferece um mecanismo para lidarmos com a experiência. Se conseguirmos localizar em algo que fizemos a cau sa do crime, podemos tomar a decisão de evitar tal comportamento, reconquistando assim um sentido de controle. A moça da nossa história não foi simplesmente vítima de um assalto físico, portanto. Ela foi - e ain ainda da é - ví víti tima ma de um assalto ao seu próprio sentido de ser, de sua auto-imagem como ser autõnomo atuando num mundo previsível. Na verdade, os efeito efeitoss psicológicos podem ser mais graves que a perda física

o processo de recuperação Para se recuperarem as vítimas precisam passar da fase de retração caso de crimes graves, precisam deixar à fase de reorganização . No caso de ser vítimas e começar a ser sobreviventes. As vítimas precisam progredir até o ponto onde a agressão e o agressor não mais os do minem. Contudo, este é um processo difícil difícil e que leva muito tempo. Para muitos ele jamais termina. O que é preciso para que a vítima se recupere? Qualquer res posta a essa questão é um pouco arriscada. Somente a vítima poderia responder com autenticidade, e as necessidades variam de pessoa para pessoa. Mas em geral as necessidades das vítimas incluem (sem se limitarem) as que descrevo a seguir. O mais óbvio é que as vítimas precisam ressarcimento por suas perdas. Prejuízos financeiros e materiais podem constituir um fardo financeiro muito concreto. Além do mais, o valor simbólico das per  ias pode ser tão importante ou até mais importante que o prejuízo material em si Em todo caso, a indenização contribui para a recupe ração. Pode ser que seja impossível ressarcir plenamente as perdas e psicológicas. Mas a sensação de perda e conseqüente ne cessidade de reparação material podem tornar-se muito prementes. 25

 

A

V ÍT IM A A

N· p o d e devolver o olho à moça desse caso. Mas ° eemmguem pode bolso das despesas pode suavizar o ônus. Ao. m ~ m o t ~ m p , oferecer uma sensação de restauraçã o no âmbno slmbóhco. . Mesmo que as perdas materiais sejam importantes, p ~ s q U l s a s feitas entre vítimas de crimes mostram que elas em geral dao pndodee respostas e e1 idade a outras necessidades. Uma d e1as é a sede d . COlsa .m f oço r es m Por que eu? Essa pessoa tinha alguma pessoa . ha a contra mim? Ele ou ela vão voltar? O que ac_onteceu com mm _ ro riedade? O que eu poderia ter feito feito para nao me tor nar uma Vl ~ m ~ As informações precisam ser fornecidas e as respostas dadas.

Poderíamos dizer que a vítima precisa encontrar respostas para seis perguntas básicas a fim de se recuperar..3 1

. ( 2. Por que aconteceu comlgo.

3. Por que agi da forma como agi na ocaSlao. 4. Por que tenho agido da forma como tenho desde aquela ocasião? novo? 5. E se acontece r de novo?

.

6. O que isso significa para mim e para minhas e x ~ e c (minha fé, minha visão visão de mun do, meu futuro).

t a t l v a s

Algumas destas perguntas só podem ser r e s p o n d i d a ~ pelas róprias vítimas. Elas devem encontrar sua própria e x p ~ l C a ç a o ~ o r ~ x e m lo, para seu comportamento na ocasião e partlr de e n t ~ o preci m também resolver qual será sua reação dlante de sltuaçoes similares no futuro. No entanto, as duas primeiras perguntas se . l'enCl.a . O que aconteceu eferem aos fatos que conStltUlram a VlO S'

realmente? Por que comigo? Informações podem ser muito preciosas para as vítimas, e as respostas a tais perguntas poderão constituir uma passagem para o caminho da recuperação. Sem respostas a essas questões, a cura pode ser difícil. Além de indenização e respostas, as vítimas precisam Oportunidades para expressar e validar suas emoções: sua raiva, medo e dor. Mesmo que seja difícil ouvir esses sentimentos, e mesmo que não estejam de acordo com o que gostaríamos que a vítima sentisse, eles são uma reação humana natural à violação do crime. Aliás, a raiva precisa ser reconhecida como uma fase normal do sofrimento, um estágio que não pode ser pulado. O sofrimento e a dor fazem parte da violação e precisam ser ventilados e ouvidos. As vítimas precisam encontrar Oportu Oportunidade nidadess e espaços para expressar seus sentimentos e seu sofrimento, mas também para contar suas histórias. Elas precisam que sua verdade seja ouvida ouvida e validada pelos outros.

O que aconteceu?

.

ViTIMA

An Overview ofFamily Reactions , capo 1 do

3. Adaptado deFinley Charles Fmley, catastroph\.. livro de Charles e Hamilton 1. McCub m, 5 tress and the Family vaI. Il: Coping wlth Catastrophe (Nova York: BrunnerlMazel, 1983).

26

As vítimas precisam também de empoderamento. Seu sentido de autonomia pessoal lhes foi roubado e precisa ser restituído. Isto inclui uma sensação de controle sobre seu ambiente. Assim, fechaduras novas e outros equipamentos de segurança são importantes para elas. Elas talvez queiram modificar seu estilo de vida como for ma de minimizar riscos. Precisam igualmente de uma sensação de controle e envolvimento com a solução de seu caso. Necessitam sentir que têm escolhas, e que tais escolhas são reais.

Um fio condutor que une tudo isto pode ser descrito como a necessidade de uma experiência de justiça. Para muitas vítimas isto pode assumir a forma de uma exigência de vingança. No entanto, uma exigência de retribuição pode surgir da própria frustração da vítima que não conseguiu ter uma experiência positiva de justiça. Com efeito, a experiência de justiça é tão básica que sem ela a cura poderá ser inviável. Aquilo que a vítima vivencia como experiência de justiça é algo tem muitas dimensões, algumas das quais já esboçadas aqui. As vitimas precisam ter certeza de que o que lhes aconteceu é errado,

27

 

A VÍTIM A VÍTIM

mundo que tem significado. O crime é também uma violação da confiança depositada no relacionamento com os outros,

injusto, imerecido. Precisam oportunidades de falar a erdade o b ~ e o que lhes aconteceu, inclusive seu sofrimento. NecessItam ser OUVIdas e receber confirmação. profissionais que trabalham com mulhe res vítimas de violência doméstica sintetizam as necessidades delas usando termos como dizer a verdade , romper o silêncio , tornar público e deixar de minimizar . Como parte integrante da experiência de justiça, a s v ~ t i m a ~ ~ r e cisam saber que passos estão sendo tomados para cornglr as mJus tiças e reduzir as oportunidades de reincidência. Como o b s e r v ~ ~ o antes, podem desejar indenização não só para os aspectos matenms, mas para os aspectos morais implícitos no reconhecimento de que o

r

Em segundo lugar, isto é verdadeiro não apenas nos crimes vio lentos como assassinato e estupro, que a maioria de nós vê como graves, mas também para crimes como violência conjugal, assalto, vandalismo ou roubo de carro - delitos que a sociedade muitas ve vezes zes trata como de menor gravidade. Em terceiro lugar, entre as vítimas há padrões comuns de rea ção, mesmo levando em conta as variações advindas de personali dade, situação e tipo de delito. Sentimentos como medo e raiva são quase universais, por exemplo, e muitas vítimas parecem transitar

ato foi injusto, numa tentativa de corrigir as coisas.

por estágios identificáveis identificáveis de adaptação,

A justiça pode ser um estado de coisas, mas é também uma ex periência, e deve ser vivenciada como algo real. vítimas g e ~ a l não se satisfazem com afirmações de que as devIdas provIdenClas estão sendo tomadas. Querem ser informadas e ao menos em certos

Por fim ser vítima de uma outra pessoa gera uma série de necessidades que, se satisfeitas, podem auxiliar no processo de recu peração. No entanto, a vítima desatendida poderá ter muita dificul dade para recuperar-se, ou ter uma recuperação incompleta.

aspectos, consultadas e envolvidas no processo. O crime poderá nos roubar o sentido de significado, que c o ~ s t i tui uma necessidade humana básica. Conseqüentemente, o cammho para a recuperação envolve a busca de significado. De fa.to as seis perguntas que as vítimas devem responder para c o ~ s e g l r se recu perarem envolvem precisamente essa busca. Para vlt1mas de cnmes a necessidade de justiça é a mais básica porque, como observou o filósofo e historiador MichaelIgnatieff, a justiça oferece uma estru 4 tura de significado que confere sentido à experiência. Tudo isto me levou a várias constatações. Em primeiro lugar, a vitimização poderá ser uma experiência extremamente traumática. Isto porque é uma violação de algo fun damental: a nossa auto-imagem como indivíduos autõnomos num .. Imprisonment and the Need for Justice , c o ~ f e r ê n c i a proferida no . ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ . ~ ~ ~ t i e f f Congresso de Justiça Criminal Canadense em Toronto, 1987. Urna versao edItada fO publicada em Liaison,janeiro de 1988.

28

N assa

reação

Diante de tudo isso, seria mais lógico que as vítimas estivessem no fulcro do processo judicial, e que suas necessidades fossem o foco central. Seria de se supor que as vítimas tivessem alguma ingerên cia sobre as acusações que são feitas, e que suas necessidades se riam levadas em consideração no desenlace final do caso. Seria de se esperar que, ao menos, elas fossem informadas de que o infrator foi identificado, e sobre as demais fases do processo penal. Mas na maioria dos casos pouco ou nada disso acontece. Elas não podem influenciar em nada o modo como o caso será decidi decidido. do. Freqüen temente as vítimas são levadas em consideração apenas quando são necessárias necessári as como testemunhas, Raramente Raramente são notificadas notificadas qu ando um infrator é preso, Somente quando a lei exige é que as varas criminais fazem um esforço sistemático para notificar as vítimas

29

 

A

V ÍT IM A

A

nizatórios permitem às vítimas de crimes graves se candidatarem ao reembolso de despesas, já que para tanto elas enfrentam vários crité rios muito rigorosos. Nas comunidades onde foram implantados, os programas de assistência às vítimas oferecem aconselhamento e ou tros recursos. A Inglaterra é líder no desenvolvimento de programas locais de apoio a vítimas, usando voluntários que oferecem apoio e assistência a vítimas enquanto estas passam pelo processo judicial e buscam recuper recuperação. ação. 5

sobre o andamento do processo ou solicitar sua contribuição para o sentenciamento.

. .

Isto foi ilustrado exemplarmente por uma

m u l h ~ r

que partlCl

um

que ajudei a organizar. passeI algum tempo ~ e ou s de r e v e n d oseminário a situação situação das vít vítimas imas de crimes crimesEu - seu sofnmento, suas

. t IÇ a - quando uma necessidades, sua ausência do processo d a JUS mulher sentada lá no fundo se levantou e disse:

Tudo isso ajuda e revela uma nova e importante preocupação para com as vítimas. Mas lamentavelmente estas iniciativas conti nuam incipientes, verdadeiras gotas no oceano das necessidades existentes. As vítimas ainda continuam prioridades periféricas no processo judicial. Elas são as notas de rodapé do processo criminal.

Você está certo. A minha casa já foi arrombada por assaltantes. Eu já

fui assaltada numa rua escura. Em nenhum dos casos fui informada u consultada até que o processo já estivesse no fim ou quase finaliza O. E eu eu sou a procuradora de ju justiça stiça A minha própria eqmpe deIXOU de me informar .

Imaginem, então, o que acontece ao restante dos cidadãos.

?

Essa percepção em geral chega às vítimas logo depois de terem . e de I com um o seu assombro dIante do fato umxdelito d ad o q u a Ide que suas denúncias são investigadas ou abandonadas sem qua quer respeito respeito ao desejo delas, vítimas, e sem que recebam qualquer informação sobre o caso. · . ale'm ale'm de não atende r às suas necessidades, Ta I neg11genCIa, _ . .a "segunda . agrava sua d Or. M"litos 'falam sobre vItImIzaçao , per-_ petrada pelos profissionais do j u d l C l ~ n o .e pelo processo. A ques tão do poder pessoal é de importãnCla VItal n ~ s s e c o n ~ e x t o Parte da natureza desumanizadora da vitimização cnmmosa e seu poder de roubar à vítima seu poder pessoal. Em vez de de.volver-.lhes o poder permitindo-lhes participar do processo da JustIça, o SIstema judicial reforça o dano negando às vítimas esse poder. Em vez de

ajudar, o processo lesa.

.

Nos Estados Unidos foi aprovada uma legislação

f e d e r ~

c U J ~

fito é auxiliar no apoio às vítimas e fomentar programas de mdem zação que haviam surgido em muitos Estados. Os programas mde30

VíTIMA

O fato de que não levamos as vítimas a sério deixa um imenso legado de medo, suspeita, raiva e culpa e nos conduz a exigências persistentes e crescentes de vingança. Encoraja a formação de estere ótipos (como entender um transgressor que não conhecemos?) que, por sua vez, levam ao agravamento da desconfiança, estimulando preconceitos de raça e classe social. Do ponto de vista da vítima, talvez o pior de tudo seja a falta de encerramento da experiência. Quando as vítimas não têm suas necessidades atendidas, muitas vezes acham difícil deixar a expe riência no passado. Freqúentemente relatam suas experiências de modo muito vívido, como se tivessem acontecido ontem, mesmo que anos tenham se passado. Nada do que vivenciaram as ajudou a superar o trauma. Pelo contrário. A experiência e o perpetrador ainda dominam suas vidas. A vítima continua desprovida de poder. E os danos não se limitam à vítima individualmente, são partilhados 5. National Association ofVictim Support Schemes, Cranmer House, 39 Brixton Rd., Lon dres sw9 6DZ, Reino Unido; wwwvictimsupport.org.uk. Nos Estados Unidos a National Or ganization for Victim Assistance, 1730 Park Rd. N.W., Washington DC 20010, serve como centro de referência; www.trynova.org.NationaICenterforVictimsofCrime.2000M.St. N.W. Washington, DC 20036; www.ncvc.org. www.ncvc.org.

31

 

A

VÍTIM

por amigos

e conhecidos que o uviram sobre a t r a g ~ d i a E s s a ~ feridas abertas acabam gerando mais suspeitas, medo, ralVa e s e ~ t I m ~ n t o s de vulnerabilidade em toda a comunidade. Aliás, operam sllenclOsa mente minando o espírito comunitário.

Capítulo 3

ofensor

Mas o fato de não conseguirmos atender às necessidades da vítima não significa que jamais mencionemos a vítima no processo judicial ou nas notícias. Pelo contrário. o n s e g u i m o ~ usar o nome da vítima para impor todo tipo de coisas ao ofensor, m d e ~ e ~ d e m ~ mente da vontade da vítima. O fato é que, apesar da retonca, nao fazemos quase n d que beneficie diretamente a vítima. Não escuta mos o seu sofrimento nem as suas necessidades. Não nos esforçamos para restituir parte do que perderam. Não p e n n i t i m ~ s que ajudem a decidir como a situação deve ser resolvida. Não auxIlIamos n sua

No capítulo amerior sugeri que a vítima ferida no caso que relatei provavelmente não tenha sentido que a justiça fora feita. Mas o que aconteceu ao rapaz que a assaltou? Ele passou por um processo elaborado e longo no qual um pro fissional - um advogado, que Supostamente representa seus ime

recuperação. Talvez nem informemos a elas o que aconteceu desde o momento do delito Este é portanto, o cúmulo da ironia, o cúmulo da tragédia. Àque les que mais sofreram diretameme negamos p a r t i c i p ~ Ç ã O n r ~ s o l ~ ção da ofensa. De fato, como veremos adiante, as VltImas nao sao sequer parte da nossa compreensão do problema.

 

num arena contra um outro profissional _ o resses - foidecolocado promotor justiça, que representa o Estado e seus interesses. Tal processo é guiado por um complexo labirimo de regras chamadas "processo penal", penal", concebido para proteger os direitos de ambos (mas não necessariamente os da vítima). Ao longo do processo uma série de profissionais (promotores, juiz, oficiais de condicional, psiquia tras) comribuíram para decidir se ele é de fato culpado de um delito definido em lei. Não apenas o processo determinou que de fato ele cometeu um delito definido em lei, mas também que teve intenção de fazê-lo. E o juiz decidiu o que será feito dele.

t

I

li

Ao longo do processo o ofensor foi quase um espectador. Ele manteve sua atenção sobre sua próp ria situação e seu futuro. futuro. lnevita velmeme preocupou-se Com os vários obstáculos, decisões e estágios que precisam ser encarados. No entanto, boa parte das decisões foi tomada por outros em seu nome

.

I

A experiência da prisão Agora ele está na prisão. Embora a extensão da pena em geral de terminada nos Estados Unidos possa parecer incomum no Canadá

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33

. ...lt>.  

o

OFENSOR

O

ou na Europa Ocidental, a decisão de privação de liberdade não é. Com efeito, efeito, o enc arceramento é a reação normal ao crime nas socie dades contemporâneas ocidentais. Funcionamos sob o pressuposto da prisão. A privação de liberdade não é um último recurso que deve ser ponderado e justificado pelo juiz que a impõe. Pelo contrário. A prisão é normativa, e os juízes sentem a necessidade de explicar e justificar as sentenças que diferem da privação de liberdade. Esse pressuposto explica por que nossos índices de encarcera mento são tão altas. Os cidadãos estadunidenses muitas vezes con sideram que o país é tolerante demais demais diante do crime. Embora de fato fato haja casos particulares e jurisdiç ões em que o criminoso escapa impune, a realidade é bem outra quando se pensa em termos do país como um todo. Pelos padrões internacionais os Estados Unidos são bastante rigorosos. No início da década de 1990 o país tinha o maior índice de encarceramento per capita do mundo. Desde então, essas taxas aumentaram ainda mais em função das leis do tipo Three-stri kes, y'ou're out ,* sancionadas a partir de 1994. A prisão é o primeiro em vez de ser o último recurso, e não ape nas para crimes violentos. Muitos observadores i nternacionais ficam ficam surpresos ao saber que boa parte dos condenados à prisão nos EUA servem penas por crimes patrimoniais. As taxas de encarceramento estadunidenses são altas porque consideramos a privação de liber dade uma norma. No caso do rapaz do assalto relatado acima, em sua sentença o juiz expressou a esperança de que o jovem ofensor aprendesse pa drões de comportamento não-violento enquanto estivesse na prisão. Mas na realidade o que ele aprenderá? A esta altura o rapaz bem pode ter se tornado uma vítima da violência. Qual a lição violência. lição que ele aprenderá? Aprenderá que o embate é * N.T.: Lei que determina aumento de pena automático para réus reincidentes. O nome se refere refere a uma regra do beisebol segundo a qual o rebatedor é eliminado se não conseguir bater três bolas válidas consecutivas.

34

OFENSOR

normal, que a violência violência é a chave chave ara a saIu é preciso ser violento para sob çao dos problemas, que reVIver que a . I . de reagir à frustração Afi I _ VIO enCla e uma forma . na , este e o padrão d l'd d mund o distorcido da prisão. e norma I a e no

vítim~ ~ ~ ~ a ~ o e ; ~ ~ s e ~ t ~ ~ ; ~ c a ~ ~ s rapaz o tornarão uma xuaI. O estupro homossexu I d la _ SIca mas de vlOlência sea e Jovens e freqüent . transgressores mais velhos e cal . d . e na pnsao, onde delinqüentes mais novos eJa os mUItas vez vezes es ficam ficam jun to com refletir a prolongada . m:nos expenentes. Estupros assim podem vida carcerária. Mas e n : : ~ ; o sexual e frustração características da de afirmar o poder sob g o estupro se torna uma forma distorcida re os outros entre pess formas legítimas de atrI b d . oas que nao pOSsuem UIr pouer m tupra homossexual é também e sIgmficado a SI. mesmas. O esdepreciar o outro o que po melO de expressar desprezo e de , r sua vez reflete um cida - e infelizmen infelizmente te m 't a compreensão distorUI o comum comum - do q u e l' . minilidade minili dade Dada . seja mascu mIdade e fe. a aparente msegurança d d é provável que seu sent sentido ido d I _ o rapaz a nossa história, . d . e va or propn o e masculinid masculinid d . am a maIS severamente p . d' d a e sejam P reJU Ica os e dIstorcidos pela experiência arece certo, portanto, que são vãs as e . . . padrões de comportament .speranças do JUIZ de que os I o VIO ento sejam esquec' d N d o juiz decidiu que esse ofensor viv _ lOS. a ver ade A por no ~ n m o VInte anos numa atmosfera que nutre e ensin ele um meio de sobreviver a I o ~ e n C l a A vlOlência se tornará para E ' e reso ver problemas, de se comunicar sse rapaz já se met eu nessa situa ' tima, auton omia e pode I çao por ter pouca auto-esr pessoa Mas a expe . d mento irá despHo compl t .d nenCl nenClaa e encarcerae amente amente o pouco q t h d ainda mais privado d ue In a eIxando-o e recursos para obter a t . mia de forma legítima. u o-estIma e auto no•

Estou convencI'do de q u e enmes e uma forma de afirmar a iden identid tidade ade e

. IA . o enCIa ~ ã O muitas vezes

VI

bem colocado po r um amIgo . que P pod erd pessoars. Isto foi muito por causa de uma série d I ezessete anos na prisão a s s o ~ e assa tos a mao armada, Depois, com a

35  

o

OF

NSOR

o

paciente ajuda de pessoas religiosas, ele fez a transição para a vida em sociedade. Bobby foi um menino negro e pobre. Seu pal, um alcoólatra que trabalhava como zelador, sentia-se preso ~ u m mundo que se tornou uma prisão sem saída. Para B o b ~ o cnme era uma esperança de sair da prisão da nulidade pessoal. Com uma arma na - ao menos eu me sent sentia ia algu alguém ém " ele ele . me disse isse.. Co Como respeI eIta tarr mao } mo resp os outros se ele tinha tão pouco respeito por

S

mesmo.

O psicólogo Robert Johnson, que esc reveu. sobre a s s a s s i ~ o s condenados à morte, apreendeu muito bem o sIgmficado e as raIzes da violência. Sua violência não é um fantasma ou doença que os aflige

~ e m

motivo,

nem tampouco um veículo convenient e para paixões hedl hedlOn.d On.das. as. Pelo contrário, sua violência é uma adaptação a vIdas vaZIas e m U l ~ a s v e ~ e s

. [ ] . [A violência] de boa parte dos homens vlOlentosl'e, em ulb rutaIs d tima análise, gerada pela hostilidade e abusos de outros , e a Imenta a pela falta de confiança em si e baixa auto-estima. Paradoxalmente, sua violência é um tipo deformado de auto-defesa e serve somente para confirmar os sentimentos de fraqueza e vulnerabilidade

~ u e

foram a

origem primeira dessa mesma violência. Quando sua vlOlenCla atmge vítimas inocentes, assinala não um triunfo da coragem, mas uma per da de controle.

l

Dadas a baixa auto-estima e autonomia pessoal.características da maioria dos criminosos, pequenas brigas e conflItos dentro pnsao freqüentemente levam a violência extrema. Uma dIscussao por causa de um dólar pode facilmente acabar em ~ r t e O jovem ofensor do nosso caso pode ter .se metido na encren ca por causa de sua baixa auto-estima e s e n t ~ d o de poder p e s s o l ~ Seu crime pode ter sido uma tentativa distorCIda de dIzer que ele e alguém e afirmar algum controle sobre sua vida e talvez sobre a dos · · · ; . · ~ ~ ~ ~ ~ · ; ~ ~ ~ ~ ~ n

A Life for a Life? ,Justice Quarterly, 1, n° 4 (dez, 1984), p 571.

36

OF

NSOR

outros. No entanto, o ambiente prisional irá despi-lo de todo o seu senso de valor e poder. Todo o entorno carcerário é estruturado com o fim de desuma nizar. Os prisioneiros recebem um nümero, um uniforme, pouco ou nenhum espaço pessoal. São privados de praticamente todas as oportunidades de tomar decisões e exercer poder pessoal. De fato, o foco de todo o ambiente é a obediência e o aprendizado de aceitar ordens. Numa situação assim a pessoa tem poucas escolhas. Ele ou ela talvez aprendam a obedecer, a ser submissos, e essa é a reação que o sistema prisional incentiva. Mas é justamente a reação que menos propiciará uma transição bem sucedida para a liberdade da vida lá fora. Esse rapaz se meteu na encrenca por não saber como se auto-governar, auto-go vernar, conduzir a sua vida de modo legíti legítimo mo - e a prisão ir iráá agravar essa inabilidade. Assim, não é de se surpreender que aque les que melhor se conformam às regras da prisão são os que pior se adaptam à vida na comunidade depois de soltos. Uma segunda reação diante da pressão para obedecer é a re belião, e muitos se rebelam. Em parte, essa reação é uma tentativa de reter algum sentido de individualidade. No geral, aqueles que se rebelam parecem ter mais sucesso na transição para a vida em liberdade do que aqueles que se submetem (muito embora a rebelião reduza em muito as chances de uma soltura com condicional). Mas há exceções. Se a rebelião for muito violenta ou muito prolongada, um padrão de revolta e violência poderão dominar. Jack Abbot é um prisioneiro que passou boa parte de sua vida lutando contra a conformidade na prisão. Seu livro intitulado In the Belly of he Beast [Na barriga da besta] é uma obra articulada e perspi caz sobre o mundo prisional,2 Depois de anos na prisão ele foi solto, e cometeu novo assassinato na primeira ocasião em que se sentiu ofendido. 2. Jack Henry Abbott, In the Belly oj the Beas/: Letters from House, 1981).

rison (Nova York: Random

37  

o

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o

A terceira reação possível é tornar-se ardiloso: manter as apa rênciass de obediência enq uanto e ncontra formas de conservar algu rência mas áreas de liberdade pessoal. Isto leva a um outra lição ensinada pela privação privação de liberdade: aprende-se que a manipulação é normal. Afinal, é assim que se conseguem as coisas na prisão. É também o método usado pelas autoridades para gerenciar os prisioneiros. De que outra forma poderiam tão poucos funcionários lidar com tantos prisioneiros, dada a limitação de recursos existente? Em resumo, o condenado aprende a ludibriar. O jovem ofensor do nosso caso delinqüiu porque não soube tomar boas decisões. decisões. A capacidade de decidir bem por conta própria fic ficará ará ainda mais comprometida pela experiência prision prisional. al. Durante os vinte ou mais anos que passará ali, ele terá pouco ou nenhum estímulo e oportunidade para tomar decisões e assumir responsabi lidades. De fat fato, o, ele aprenderá a dependência. Ao longo desses anos ele não terá que pagar aluguel, nem gerenciar seu dinheiro, nem manter um família. Ele dependerá do Estado que cuidará dele. E quando sai sair, r, terá poucas habilidades de sobrevivênc sobrevivência. ia. Como apren  derá a manter um emprego, poupar, ficar dentro de seu orçamento, pagar as contas? Na prisão esse transgressor absorverá um padrão distorcido de relacionamentos interpessoais. interpessoais. A dominação sobre os o utros será seu objetivo, seja no caso do parceiro matrimonial, dos contatos comer ciais ou dos amigos. O cuidado amoroso será visto como uma fra queza. E os fracos existem para serem explorados. Esse delinqüente precisa aprender que ele é alguém de valor, que ele tem poder e responsabilidade suficientes para tomar boas deci sões. Ele precisa aprender a respeitar os outros e seus bens. Ele precisa aprend er a lidar pacificamente com frustrações e conflitos. conflitos. Ele precisa aprender a lidar com as coisas. Ao invés disso, aprenderá a recorrer à violência para obter validação pessoal, para conseguir lidar com o mundo, para resolver problemas. Seu sentido de valor e autonomia será solapado ou então fincará suas raízes em terreno perigoso. 38

OF

NSOR

Vistas nesse contexto, as esperanças do juiz se mostram incri velmente inocentes e equivocadas equivocadas.. _

S ~ r á

que a prisão ensinará a ele padrões de comportamento

n a o - V I ~ l e n t o ? Dificilme Dificilmente. nte. Com toda probabilidade o tornará ainda mms VIolento. Conseguirá a prisão proteger a sociedade desse rapaz? Talvez por algum tempo, mas, por fim, ele sairá bem pior do que entrou. E enquanto estiver lá dentro, talvez se torne uma ameaça para os outros internos.

Será que prisão coíbe o crime? É discutível se seu aprisiona mento desestlmulará outros a cometerem crimes similares. Mas ele próprio com certeza não será desestimulado. Como já mencionei a ~ t e s ele tem maior, e não menor probabilidade de cometer novos cnmes em função da falta de habilidade para lidar com a liberdade e ~ ~ s padrões de relacionamento e comportamento aprendidos na ~ n s a o . Além disso, a ameaça de encarceramento não será mais algo tao assustador para ele, depois de ter descoberto que consegue so breVIver alI Na verdade, depois de vinte anos na prisão ela se terá tornado sua casa e ele se sentirá inseguro fora dela. Algumas pessoas que cumpriram penas longas cometem crimes serem libertadas exatamente para poder voltar ao lugar onde se s.entem em casa. Preferem estar num lugar onde conhecem as habi hdades ~ e c e s s á r i a s para sobreviver sobreviver do que ter que enfrentar os peri gos VIda la fora Recentemente fui convidado a participar de uma reumao ~ u m centro de apoio a ex-prisioneiros na Inglaterra. Um dos r ~ p a z e s ]a tmha estado na prisão várias vezes. vezes. Eu gosto de estar fora , d l s ~ e ele, 'mas também não acho ruim estar na prisão . A ameaça de apnslOnamento não consegue intimidar uma pessoa assim. ao

A prisão prisão também não constitui desestímulo para pessoas pobres e ~ r g m a h z a d a s que vêem a vida em liberdade como uma espécie de ~ n s a o . Para uma pessoa em tais condições, ser sentenciada à prisão é sImplesmente trocar um tipo de confinamento po r outro. No entanto sã basicamente pobres e desvalidos desvalidos os que condenamos à prisão. '

39  

o

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o

o que precisa acontecer? Na sentença desse rapaz o juiz mencionou a necessidade de res

ponsabilizar os ofensores. A maioria de nós concorda com isso. Os ofensores precisam, de fato, ser responsabilizados por seu compor tamento. Mas o que significa responsabilizar? Para esse juiz, e para a maioria das pessoas no mun do de hoje, a responsabilização sig significa nifica que o ofensor deve deve sofrer conseqüências punitivas - no mais das ve ve zes, a prisão - seja com o intuito de coação ou de punição. "Respon "Respon sabilizar" significa forçar as pessoas a "tomar u remédio amargo" - uma velha me metáfora táfora para algo algo tã tão o insalubre como a prisão. Esta é uma visão extremamente limitada e abstrata da responsa bilidade. Sem u vínculo intrínseco entre o ato e as conseqüências, a verdadeira responsabilidade é praticame nte impossível. E visto que

as conseqüências são escolhidas por outros que não o ofensor, elas

não levam o of ensor a responsabilizar-se. Para cometer ofensas e conviver com seu comportamento, os ofensores freqüentemente constro em racionalizações racionalizações bastante elabo radas para os atos que cometeram, e a prisão lhes oferece tempo e incentivo de sobra para tanto. Eles acabam acreditando que o que fizeram não é tão grave assim, que a vítima "mereceu", que todos estão fazendo a mesma coisa, que o seguro pagará pelos danos. En contram maneiras de colocar a culpa em outras pessoas e situações. Também adotam estereótipos sobre as vítimas de fato, e sobre víti mas em potencial. Inconscientemente, ou talvez conscientemente, procuram isolar-se das vítimas. Alguns assaltantes chegam a relatar que, ao entrar numa casa, viram os retratos para a parede a fim de não pensar em suas vítimas. Nenhuma etapa do nosso processo judicial questiona essas atri buições equivocadas. Pelo contrário. O processo em geral fomenta racionalizações e fortalece os estereótipos. A natureza adversarial do processo tende a sedimentar os estereótipos sobre as vítimas e.sobre a sociedade. A natureza complicada, dolorosa e não partlC partlClpatlv lpatlvaa do 40

OF

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processo estimula uma tendência a focalizar os erros cometidos pelo ofensor, desviando a atenção que deveria estar sobre o dano causado à vítima. Muitos, senão a maioria dos ofensores, acabam sentindo que foram maltratados e bem podem ter sido ). Por sua vez, isto os incentiva a olhar para sua própria condição ao invés de ver a condi ção da vítima. No mínimo, e por causa da complexidade e foco no ofensor do processo criminal, eles se vêem totalmente envolvidos com sua própria situação jurídica. Por conseguinte, os ofensores raramente são estimulados a olha rem para os verdadeiros custos humanos dos atos que cometeram. Qual será a sensação de ter sua casa invadida e roubada, o carro roubado? omo será sentir medo e dúvida quanto a quem fez isto e por quê? Como será a sensação de sentir que se vai morrer e depois perder u olho? Que tipo de pessoa é a vítima? vítima? Dentro do âm bito da experiência do ofensor no processo judicial nada toca nessas ques tões. tões. Nada o obriga a encarar suas racionalizações racionalizações e estereótipos. No caso acima, o ofensor tentou entender o ocorrido, mas sua compre ensão foi incompleta e, além do mais, logo será ofuscada pela sua vivência da justiça e da punição. A verdadeira responsabilidade, portanto, inclui a compreensão das conseqüências humanas advindas de nossos atos - encarar aqui lo que fizemos e a pessoa a quem o fizemos. Mas a verdadeira res ponsabilidade vai um passo além. Ela envolve igualmente assumir a responsabilidade pelos resultados de nossas ações. Os ofensores deveriam ser estimulados a ajudar a decidir o que será feito para corrigir a situação, e depois incentivados a tomar as medidas para reparar os danos. O juiz Dennis Challeen mostra que o problema da maioria das sentenças é que, embora responsabilizem os ofensores (no sentido ele receberem a punição), essas sentenças não os tornam responsá veis. Aliás, a falta de responsabilidade é justamente o que os leva a transgredir. Quando uma punição é imposta a pessoas responsáveis, argumenta Challeen, estas reagem com responsabilidade. Mas quan-

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