Treinamento Dos Doze - a.b Bruce

August 6, 2018 | Author: O Mundo DA Patologia Clínica | Category: John The Apostle, Jesus, Saint Peter, Acts Of The Apostles, Faith
Share Embed Donate


Short Description

Download Treinamento Dos Doze - a.b Bruce...

Description

Um dos maiores desafios dos nossos dias é o treina­ mento de novos líderes, que

possam continuar, com in­ tegridade e seriedade, o tra­ balho -de evangelizar e le­ var ao mundo a mensagem do Evangelho. D atado do século X IX , O Treinamento dos D oze é Vi r\ c

i

clássica. Desenvolvido pelo D r. A lex a n d e r B alm ain Bruce, esta obra fala, à nos­ sa geração, acerca da im ­ p o rtân cia do preparo de novos obreiros para o R eiro . principal escopo a forma com que o Senhor Jesus trei­ nou seus discípulos para que estes dessem continuidade à obra que Ele iniciara.

REIS BOOK’S DIGITAL

A. B. B R U C E Prefácio de D. Stuart Briscoe

E

nos Para ο n .......

:seDv°ivimeni:o da Lirterariça

I a E dição

Traduzido por Degmar Ribas

CPAD R io d e Ja n e iro

Todos os direitos reservados. Copyright © 2 0 0 7 para a língua portuguesa da Casa Publicadora das Assembléias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina. T ítulo do original em inglês: The Training o f the Twelve Kregel Publications, Grand Rapids, M I 49 5 0 1 , EUA Primeira edição em ingles: 1971 Tradução: Degmar R ibas

Revisão: Elaine Arsenio e Daniele Pereira Capa e projeto gráfico: Leonardo M arinho Editoração: Leonardo M arinho

CDD: 24 8-V id a Cristã ISBN: 9 7 8 -8 5 -2 6 3 -0 8 5 5 -8 As citações bíblicas foram extraídas da versão Alm eida Revista e Corrigida, edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrário. Para maiores informações sobre livros, revistas, periódicos e os últim os lançamentos da CPAD, visite nosso site: h ttp ://www.cpad.com.br. SAC — Serviço de Atendimento ao Cliente: 0 8 0 0 -2 1 -7 3 7 3 Casa Publicadora das Assembléias de Deus Caixa Postal 331 2 0 0 0 1 -9 7 0 , R io de Janeiro, RJ, Brasil I a ed ição / 200 7

Prefácio de D. Stuart Briscoe

A

-Z Alexander Balmain Bruce, um homem tão escocês quanto seu nome, nasceu em uma fazenda de Perthshire e foi educado no Edinburgh College. M inistrou em congregações no território escocês e deu aulas em um Seminário em Glasgow. Por mais de quarenta anos, dedicou-se a minis­ trar o evangelho cristão, primeiro como pastor, e então como um ilustre professor de Apologética e Exegese do Novo Testamento. Começou a escrever durante o tempo em que pastoreava, e seu conhecido livro O Treinamento dos Doze foi publicado em 1871. Mantendo a preferência por títulos ponderosos e descritivos no século XIX, a obra recebeu o seguin­ te subtítulo: “Passagens Extraídas dos Evangelhos Apresentando os Doze Discípulos de Jesus sob Disciplina para o Apostolado”. Por mais de um século O Treinamento dos Doze foi altamente respeita­ do e amplamente recebido. Uma autoridade como o Dr. W. H. Griffith Thomas chamou o livro de “um dos grandes clássicos cristãos do século XIX”, e o Dr. W ilbur Smith, principal bibliófilo americano, observou: “Não há nada importante na vida de nosso Senhor em relação ao treina­ mento dos doze apóstolos que não tenha sido relatado nesse livro...” Agora, esse “clássico do século XIX” pode expandir seu ministério já rico e abençoado. Embora com mais de cem anos de idade, a obra do Dr. Bruce fala poderosa e efetivamente à geração cristã contemporânea. Nos anos recentes, tem havido uma redescoberta da importância dos ensinamentos de Paulo no capítulo 4 de Efésios acerca da responsa­ bilidade de os pastores e mestres prepararem os santos para a obra do ministério. Por vários anos, muitas igrejas ignoraram, ou escolheram ig­

6

O Treinamento dos Doze

norar, esses ensinamentos bíblicos, e, portanto, uma pequena parte do povo de Deus ficou sobrecarregada enquanto a m aio ria ficou subempregada. Enquanto um pouco dos dons eram colocados em práti­ ca de forma plena, milhares de pessoas que receberam dons nem mesmo sabiam que os haviam recebido. Como resultado, o ministério potencial da Igreja de Cristo foi reduzido consideravelmente. O Dr. Bruce teria se sentido em casa com a ênfase atual no treinamento de pessoas para o ministério, e seu livro tem muito a oferecer como fonte para o treina­ mento ao apresentar o Mestre ensinando sua equipe especial. Ver a Igreja como o Corpo de Cristo é outra ênfase contemporânea saudável. Ela serve para libertar as pessoas da idéia equivocada de que a igreja é um lugar que as pessoas freqüentam e as apresenta ao conceito bíblico de que a Igreja é algo que as pessoas são. E potencialmente revolucionário para os cristãos verem a si mesmos como o Corpo de Cristo e consagrarem suas vidas a amar uns aos outros como membros companheiros, comprometidos com a nutrição mútua. Este livro documenta com todo o cuidado os confli­ tos e os sucessos do primeiro grupo de pessoas que se empenhou tanto para amar aos outros que se tornaram reconhecidos como discípulos de Cristo. Recentemente, muito tem sido escrito sobre o crescimento cristão pessoal. Alguns materiais se inclinam mais para as ciências sociais do que para ensinamentos teológicos e bíblicos, e cheiram mais a autoaperfeiçoamento do que a crescimento espiritual. A obra do Dr. Bruce beneficiará muitos leitores modernos porque seus estudos examinam cuidadosamente de que forma os discípulos cresceram como resultado do relacionamento que tinham com o Mestre. A igreja contemporânea precisa lembrar-se de que informação inestimável ajuntada aos poucos de cientistas sociais acerca do comportamento humano nunca deve ser vista como substituta para um relacionamento pessoal com o Senhor Jesus semelhante àquele experimentado pelos doze enquanto caminha­ vam juntos para cima e para baixo. Como eles ouviam sua palavra, estu­ davam suas reações, cumpriam seus mandamentos e respondiam às suas promessas estão fielmente registrados para nós nas Escrituras e muito bem aplicados a nossas situações neste livro. Pessoalmente, constatei que O Treinamento dos Doze é de imenso valor por motivos além dos relacionados acima. Quando prego acerca dos

Prefácio

7

Evangelhos, constantemente uso este livro, e descobri que se trata de um excelente comentário. Além disso, quase sempre me sento e leio alguns capítulos apenas porque preciso do alimento que só encontro nas aplica­ ções devocionais das Escrituras em minha alma. Poucos expositores fi­ zeram mais do que A. B. Bruce em relação a isso. Talvez a melhor recomendação que posso dar sobre o livro, porém, é dizer que embora eu tenha centenas de livros em minha crescente bibli­ oteca, todos cuidadosamente catalogados e organizados em prateleiras, percebi que O Treinamento dos Doze nunca foi incluído oficialmente em minha biblioteca! A razão é simples. Desde que adquiri meu exemplar, anos atrás, ele fica em minha escrivaninha ou em minhas mãos, com muitos outros livros a que recorro constantemente. Simplesmente não consegui ficar sem usá-lo por tempo suficiente para que minha secretária pudesse colocá-lo no lugar apropriado! Pensando bem, o lugar apropri­ ado para ele é onde eu possa pegá-lo rapidamente. Espero que o seu exemplar encontre esse lugar em sua vida e em sua experiência. D. Stuart Briscoe

Prefácio à Segunda Edição

A

JL Vd ser informado por um editor de que seria necessária uma segunda edição de O Treinamento dos Doze, que foi publicado pela primeira vez em 1871, fui compelido a pensar sobre a questão de que alterações deveriam ser feitas em um trabalho que, embora escrito com cuidado, também esta­ va obviamente, em minha opinião, selado com imperfeição. Duas alterna­ tivas surgiram em minha mente. Uma foi reformar a obra por inteiro, a fim de conferir-lhe um caráter mais crítico e científico, e fazer com que resistis­ se mais diretamente as atuais controvérsias sobre a origem do cristianismo. A outra era permitir que o livro ficasse substancialmente como estava, conservando sua forma popular, e limitando as alterações a detalhes susce­ tíveis de melhoria sem mudança do plano. Depois de um pouco de hesita­ ção, optei pela última, pelas seguintes razões. De expressões de opiniões que me alcançaram de muitas e diversas áreas, fiquei convencido de que o livro era apreciado e útil, e por isso concluí que, apesar de suas falhas, continuaria sendo útil em sua forma original. Então, considerando quão difícil em todas as coisas é servir a dois senhores ou concluir com dois finais, percebi que a escolha da primeira das duas alternativas era equiva­ lente a escrever um novo livro, o que poderia ser feito, se necessário, inde­ pendentemente da atual publicação. Confesso ter uma vaga idéia de tal trabalho em minha mente, que pode ou não ser colocada em prática. A escola Tübingen de críticos, com cujas palavras os leitores ingleses estão ficando acostumados através das traduções, afirma que o cristianismo ca­ tólico foi o resultado de um compromisso ou reconciliação entre duas tendências radicais opostas, representadas respectivamente pelos apósto­

1

10

O Treinamento dos Doze

los originais e por Paulo, sendo as duas tendências uma exclusividade ju­ daica por um lado e, por outro, o universalismo paulino. Os doze disse­ ram: Cristianismo para os judeus, e todos que estão dispostos a se torna­ rem judeus por submissão aos costumes judaicos; Paulo disse: Cristianis­ mo para o mundo todo, e para todos nos mesmos termos. Agora o mate­ rial com que se lidou em O Treinamento dos Doze, deve, pela natureza do caso, ter algum resistência nessa hipótese-conflito do Dr. Baur e seus amigos. Surge a questão: O que deve ser esperado dos homens que estavam com Jesus ? E a consideração dessa questão formaria uma importante divisão no traba­ lho tão controverso que tenho em vista. Um outro capítulo poderia ser considerado a parte designada a Pedro em Atos dos Apóstolos (alegado pela mesma escola de críticos como sendo uma parte inventada pelo escri­ tor com propósito apologético), buscando especialmente determinar se era uma parte apropriada para ele desempenhar —apropriada em vista de suas idiossincrasias, ou o treinamento que ele havia recebido. Um outro tópico adequado seria o caráter do apóstolo João como retratado nos Evan­ gelhos Sinóticos, em sua resistência sobre as questões acerca da autoria do quarto Evangelho, e a hostilidade a Paulo e seu universalismo que alegava estar manifesto no livro de Apocalipse. Em uma obra dessas, falharia em considerar os materiais resistindo ao mesmo tema em outras partes do Novo Testamento, especialmente aquelas encontradas na Epístola aos Gaiatas. Por fim, apropriadamente seria encontrado um lugar na obra para discutir sobre a questão: Até que ponto os Evangelhos Sinóticos —as prin­ cipais fontes de informação acerca dos ensinamentos e dos atos públicos de Cristo —conservam traços da influência de tendências controversas ou conciliatórias? Por exemplo: Qual é a razão para se afirmar que a missão dos setenta é uma invenção causada pelo interesse do universalismo paulino com a intenção de superar os apóstolos originais? No presente trabalho, não tentei desenvolver o argumento esboça­ do aqui, mas simplesmente indiquei os lugares em que diferentes pon­ tos do argumento aparecem, e a maneira como poderiam ser usados. A hipótese-conflito não esteve ausente de minha mente enquanto eu escre­ via este livro inicialmente; mas eu nem estava acostumado com a litera­ tura relativa a isso, nem tão sensível acerca de sua importância como estou agora.

Prefácio à Segunda Ediçao

11

Ao preparar esta nova edição, não perdi de vista quaisquer dicas de críticas amigáveis que podem torná-la mais aceitável e útil. Em particular, tenho mantido a vista fixa na economia de elementos homiléticos, embora eu esteja ciente de que ainda posso ter conservado demais para o gosto de alguns, porém espero que não tanto para os leitores em geral. Tive que me lembrar que enquanto alguns amigos pediram condensação, outros recla­ maram que a questão estava hermeticamente fechada. Também tive opor­ tunidade de observar em minhas leituras de obras sobre a história do Evan­ gelho que é possível ser tão breve e resumido a ponto de perder não só as conexões latentes das idéias, mas também as próprias idéias. Nem todas as mudanças foram na direção da economia. Embora alguns parágrafos te­ nham sido cancelados ou reduzidos em tamanho, outros foram adiciona­ dos, e em um ou dois casos, páginas inteiras foram reescritas. Entre os acréscimos mais importantes podemos mencionar uma nota no final do capítulo acerca do discurso de despedida, fazendo uma análise do discurso e das partes que o compõem; e um parágrafo conclusivo no final da obra resumindo as instruções que os doze receberam de Jesus durante o tempo em que estiveram com Ele. Além disso, uma característica dessa edição é uma série de notas de rodapé referindo-se a algumas das principais publi­ cações recentes, inglesas ou não, cujo conteúdo se relacione mais ou menos com a história do Evangelho, tais como as obras de Keim, Pfleiderer, Golani, Farrar, Sanday e Supernatural Religion (Religião Sobrenatural). As notas em referência à obra do Sr. Sanday apoia-se na importante questão, até que ponto temos no Evangelho de João um registro confiável das palavras ditas por Jesus aos seus discípulos na véspera de sua morte. Além do índice de passagens examinadas que aparece na primeira edição, essa contém uma tabela cuidadosamente preparada com os con­ teúdos no final, com a qual se espera acrescentar utilidade à obra. Para tornar a base do conteúdo do treinamento dos discípulos mais aparente, em vários casos mudei o título dos capítulos, ou incluí títulos alternativos. Com essas explicações, envio esta nova edição, com sentimentos de gra­ tidão pela gentil recepção com que a obra já tem sido recebida, e na esperan­ ça de que pela bênção divina continuará a ser usada como uma tentativa de ilustrar um tema tão interessante e importante. A. B. B.

Sumário Prefácio de D. S tu a rt Briscoe .............................. ........................................................ .............. 5 Prefácio à Segunda Edição............................................................................................................................ 9 1. O P r in c íp io ....................................................................................................................................... 15 2. Pescadores de H o m e n s ...............................................................................................................2 5 3. M ateus, o P u b lican o ......................................................................................................... .........33 4. Os D o z e ..............................................................................................................................................4 5 5. O uvindo e V e n d o ...........................................................................................................................5 7 6. Lições sobre a O ração ..................................................................................................................69 7. Lições sobre a Liberdade R eligiosa; ou A N atureza da Verdadeira Santidade ...8 7 Seção I. O Jejum ....................................................................................................................87 II. Abluções R itu a is.................................................................................................96 III. A Observância do Sábado........................................................................... 106 8. Prim eiras Tentativas de E vangelização............................................................ .............. 119 Seção I. A M issão .............................................................................................................. 119 II. As Instruções.....................................................................................................129 9. A C rise da G a lilé ia ..................... ............................................................................................141 Seção I. O M ila g re ............................................................................................................ 141 II. A Tempestade.................................................................................................... 149 III. O Serm ão..........................................................................................................156 IV A Escolha —“Peneirando” .......................................................................... 165 10. O Ferm ento dos Fariseus e dos S ad u ce u s................................................................... 179 11. A Confissão de Pedro; ou A O pinião C orrente e a V erdade E tern a......... . 1 8 7 12. A P rim eira L ição sobre a C r u z ............................................................................................1 9 7 Seção I. O Primeiro Anúncio da M orte de C risto................................................. 197 II. Tomar a sua Cruz, a Lei do Discipulado............................................... 205 13. A T ran sfigu ração ......................................................................................................................2 1 3 14. Treinando o Tem peram ento; ou D iscurso sobre a H um ildade .............. .........2 2 3 Seção I. Como uma Criancinha.................................................................................... 223 II. A Disciplina da Igreja.................................................................................... 2 3 1 III. Perdoando as O fensas..................................................................................239 IV O Imposto do Templo: Uma Ilustração do Serm ão.......................... 246 V A Interdição do Homem que Expulsava Demônios: Outra Ilustração do Serm ão................ ...............................................................................................253

14

0 Treinamento dos Doze

5 1 5 . Os F ilhos do T ro vão .......................................................... ................................................2 6 5 16. N a Peréia; ou A D outrina do A u to -S a c rifíc io ....... ...................................................2 7 5 Seção I. Conselhos de Perfeição....................................................................................2 75 II. As Recompensas do Sacrifício Pessoal..................................................... 287 III. Os Primeiros que se Tornarão os Últimos e os Últimos que se Torna rão os Primeiros......................................................................................................296 17. Os Filhos de Zebedeu de Novo; ou Segunda Lição sobre a Doutrina da Cruz .. 3 0 9 18. A U nção em Betânia; ou A Terceira Lição da D outrina da C r u z .......................3 2 5 19. As Prim ícias dos G en tio s........................................................................................... .

347

2 0 . Õ Jerusalém , Jerusalém ! ou O D iscurso sobre as U ltim as C o isa s..................... 3 5 7 2 1 . O M estre Servindo; ou U m a O utra Lição de H u m ild a d e ................................... 37 3 Seção I. A Cerimônia de Lavar os Pés.......................................................................... 373 II. A Explicação...................................................................................................... 381 2 2 . Em M em ória; ou A Q uarta Lição sobre a D outrina da C r u z ............................ 3 8 9 2 3 . Judas Iscario tes......................................... ...................... ...... .................................................. 40 1 2 4 . O Pai que M o rre e seus F ilh in h o s................................................................................... 4 1 1 Seção I. Palavras de Conforto e Conselho para os Filhos Entristecidos........4 1 1 II. As Perguntas dos Filhos e a D espedida....................................................420 2 5 . O rientações aos Futuros A póstolos antes da M o rte do S e n h o r.............. 443 Seção I. A Videira e seus R am o s....................................................................................443 II. Tribulações Apostólicas e Encorajamento................................................455 III. O Breve Período e o Final do D iscurso..................................................467 2 6 . A O ração In te rc e ssó ria............................... ......................................................................... 481 Apêndice dos C apítulos 2 4 —2 6 ............................................................ ..................... . 4 9 4 2 7 . As Ovelhas D ispersas................................................................... ..........................................4 9 7 Seção I. “Todos os Discípulos, Deixando-o, Fugiram” ............. ........................... 497 II. Peneirados como o Trigo .............................................................................. 504 III. Pedro e João......................................................................................................514 2 8 . O Pastor R essu scitad o ....................................................................................................... 5 2 3 Seção I. Uma N otícia Boa demais para Ser Verdade.................................................................... 523 II. Os Olhos dos Discípulos São Abertos..................................................... 5 3 1 III. A Dúvida de Tomé.........................................................................................540 2 9 . Os Co-pastores São A d v ertid o s........ ............................................................................... 551 Seção I. Dever Pastoral...................................................................................................... 551 II. Pastor Pastorum ...................................................................................... . 560 3 0 . Poder do A lto ............................................... .................... ............................................... . 5 6 9 3 1 . E sperando ................................................................................................................. ..................5 7 5

1 0 Princípio João 1.2 9 -5 1

Ο

trecho do Evangelho de João indicado acima possui um interesse ímpar para o conhecimento da gênese de algumas coisas que vieram a alcançar a grandeza. Aqui nos é mostrado a Igreja ainda em seu berço, as fontes singelas do Rio da Vida, o desabrochar da fé cristã, a origem humilde do poderoso Império de Jesus Cristo. Todo início é mais ou menos obscuro em relação à sua aparência, mas nenhum foi tão obscuro quanto o cristianismo. Que evento insigni­ ficante na história da igreja, para não dizer do mundo, foi esse primeiro encontro de Jesus de Nazaré com os cinco homens humildes, André, Pedro, Filipe, Natanael, e outro cujo nome não é mencionado! N a reali­ dade, parece um tanto trivial que esse evento encontre um lugar até mes­ mo nas narrativas dos Evangelhos. Não se trata aqui de nenhum chama­ do solene à função do apostolado, ou mesmo do início de um apostolado ininterrupto, mas no máximo do início de um conhecimento da fé em Jesus por parte de certos indivíduos que subseqüentemente se tornaram assistentes constantes de sua pessoa, e finalmente apóstolos de suas Boas Novas. Assim, não encontramos nos três primeiros evangelhos nenhuma menção dos eventos aqui registrados. Longe de se surpreender com o silêncio dos evangelistas sinópticos, alguém pode sentir-se tentado a questionar o fato de João, o autor do quarto evangelho, depois de um intervalo de tempo tão grande, ter pen­ sado que valeria a pena relatar incidentes tão minuciosos, especialmente em relação à proximidade das sentenças sublimes com as quais seu Evan­ gelho começa. Mas somos afastados de tais dúvidas incrédulas através

16

0 Treinamento dos Doze

da reflexão de que fatos objetivamente insignificantes podem ser muito importantes para os sentimentos daqueles a quem são pessoalmente di­ rigidos. E se João fosse um dos cinco homens presentes na ocasião em que conheceram Jesus? Haveria então uma grande diferença entre ele e os outros evangelistas, que poderiam saber dos incidentes aqui relatados, se realmente tivessem conhecimento dos mesmos, somente por interme­ diários. No suposto caso, não é de se estranhar que João, em seus últi­ mos momentos, tenha se lembrado com emoção da primeira vez que viu o verbo encarnado, e considerado as lembranças mínimas daquele mo­ mento de preciosidade ímpar. Os primeiros encontros são sagrados, as­ sim como os últimos, especialmente quando são seguidos de uma histó­ ria significativa, e acompanhados, como é apropriado ao caso, com pres­ ságios proféticos do futuro1. Tais presságios não estavam ligados ao pri­ meiro encontro de Jesus com os cinco discípulos. Não foi João Batista quem primeiro deu a Jesus o nome de “Cordeiro de Deus”, descrevendo tão precisamente sua missão e destino na terra? Não foi a pergunta du­ vidosa de Natanael: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” um pressá­ gio indicando um conflito e a descrença que aguardavam o Messias? E que bom presságio aquele da chegada de uma nova era de milagres a serem realizados através da graça divina e do poder contidos na promes­ sa de Jesus aos israelitas, embora a princípio duvidosos: “Daqui em di­ ante, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem!” Pode ser considerado como certo que João, o escritor do quarto Evangelho, realmente tenha sido o quinto discípulo cujo nome não foi mencionado. Este é o seu estilo, ao longo de seu Evangelho: quando se referia a si próprio, usava perífrases, ou deixava em branco, como aqui, o lugar onde deveria constar o seu nome. Dos discípulos que ouviram João Batista chamar Jesus de Cordeiro de Deus, provavelmente um fosse o próprio evangelista, e o outro fosse André, irmão de Simão Pedro2. As impressões produzidas em nossas mentes por essas pequenas passagens da infância do Evangelho devem ser pequenas, quando com­ paradas às emoções despertadas pela memória delas no peito do velho apóstolo, por quem foram registradas. De qualquer modo, não seria possível creditar nem à nossa inteligência, nem à nossa piedade um exa-

0 Princípio

17

me dessa página da história evangélica, inalterada, como se fosse total­ mente destituída de interesse. Devemos nos dirigir ao estudo dessa sim­ ples história com um pouco do sentimento com que os homens fazem peregrinações a locais sagrados; por que de fato o solo é sagrado. O cenário das ocorrências sobre o qual estamos falando é a região da Peréia, nas margens do Jordão, na região mais baixa do seu curso. As pessoas que aparecem em cena eram todas nativas da Galiléia, e sua pre­ sença aqui deve-se à fama do notável homem, cujo ofício era ser o pre­ cursor de Cristo. João, chamado de Batista, que havia passado sua juven­ tude no deserto como um ermitão, vivendo de mel silvestre e gafanho­ tos, vestido com pêlos de camelo, saiu de seu retiro, e apareceu diante dos homens como um profeta de Deus. O conteúdo de sua profecia era: “Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus”. Em um curto período de tempo, muitos foram atraídos de todos os cantos para vê-lo e ouví-lo. Daqueles que se reuniam para ouvir sua pregação, um grande número se foi da mesma forma como tinha vindo; mas não eram poucos os que estavam profundamente impressionados e, confessando os seus pecados, submetiam-se ao batismo nas águas do Jordão. Daqueles que foram batizados, um número seleto formou um círculo de discípulos ao redor da pessoa de João Batista, dentre os quais pelo menos dois, e pro­ vavelmente todos os cinco homens mencionados pelo evangelista. A con­ versão anterior por intermédio de João Batista despertou nesses discípu­ los um desejo de ver Jesus, e os preparou para crer nele. Em sua comuni­ cação com as pessoas ao seu redor, João freqüentemente fazia alusões "Aquele” que viria depois dele. Ele falou da vinda dessa pessoa em uma linguagem peculiar, de modo a despertar grandes expectativas. Ele se referiu a si próprio em relação ao que estava por vir, como sendo uma mera voz no deserto, clamando: “Preparai o caminho do Senhor”. Em uma outra ocasião ele disse: “E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; não sou digno de levar as suas sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”. Esse grandioso homem não era outro senão o Messias, o Filho de Deus, o Rei de Israel. Tais discursos, por parte do homem de Deus que os proferiu, pro­ vavelmente teriam como resultado o fato de os discípulos de João Batista

18

O Treinamento dos Doze

deixarem-no para seguir Jesus. E aqui vemos, na verdade, o início do processo de transição. Não afirmamos que as pessoas aqui mencionadas tenham se privado da companhia de João Batista na ocasião para se tor­ narem, a partir de então, seguidores regulares de Jesus. Mas aqui tem início um conhecimento que no final levará esses homens a seguirem ao Senhor. A noiva é apresentada ao noivo, e o casamento se dará na devida estação; não para o pesar, mas para a alegria do amigo do Noivo3. Com que facilidade e simplicidade a noiva mística, representada pelos cinco discípulos, se familiarizou com o Noivo! A importância des­ se encontro é idílica pela simplicidade, e somente seria danificada por um comentário. Não há necessidade de uma apresentação formal: todos se apresentam uns aos outros. Nem mesmo João e André foram formal­ mente apresentados a Jesus por João Batista; eles mesmos se apresenta­ ram. A exclamação do profeta do deserto ao ver Jesus: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” repetida de uma forma abrevia­ da no dia seguinte, foi uma elocução involuntária de alguém absorto em seus próprios pensamentos, e não o discurso deliberado de alguém que estava orientando seus discípulos a deixarem-no e a seguirem Aquele de quem ele falava. Os dois discípulos, por outro lado, em sua partida rumo àquele cuja presença havia sido tão largamente anunciada, não estavam obedecendo à ordem dada por seu velho mestre; estavam simplesmente seguindo a ordem dos sentimentos que foram despertados dentro deles por tudo o que o ouviram dizer a respeito de Jesus, tanto no presente como em outras ocasiões. Eles não precisavam de uma injunção para buscar o conhecimento daquele por quem se sentiam tão profundamen­ te interessados: tudo o que precisavam saber era que esse era Ele. Esta­ vam ansiosos para ver o Rei Messiânico da mesma forma que o mundo está ansioso para ver a face de um príncipe secular. E natural que devamos examinar cuidadosamente a narrativa dos Evangelhos para encontrar indicações referentes àqueles que, no modo tão singularmente descrito, viram Jesus pela primeira vez. Pouco tem sido dito sobre os cinco discípulos, mas esse pouco é suficiente para demonstrar que eram todos homens piedosos. O que encontraram em seu novo amigo indica o que queriam encontrar. Evidentemente, eles pertenciam a um grupo seleto que esperava pela consolação de Israel, e

0 Princípio

19

procuravam avidamente por Aquele que cumpriria as promessas de Deus e as expectativas de todas as almas devotas. Além dessa indicação geral do caráter contido em sua confissão comum de fé, alguns poucos fatos são relatados a respeito desses primeiros crentes em Jesus que nos levam a saber mais sobre eles. Provavelmente todos tenham sido discípulos de João Batista (dois deles com certeza foram). Este fato é decisivo em relação à sua seriedade moral. De tal região ninguém, além dos homens que eram espiritualmente sinceros, poderia possivelmente surgir. Se to­ dos os seguidores de João fossem de alguma forma como ele, seriam homens famintos e sedentos pela verdadeira justiça, fartos dos “justos” populares de então. Disseram amém em seus corações à exposição do pregador dos desertos, sobre o vazio existente na profissão religiosa e da inutilidade das obras de então, e suspiravam por uma santidade que esta­ va além da superstição farisaica e da ostentação; suas consciências reco­ nheciam a verdade do oráculo profético: “Todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; e todos nós caímos corno a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arreba­ tam”; e eles oravam fervorosamente pela revivificação da verdadeira reli­ gião, pela vinda do reino divino, pelo advento do Rei Messiânico com a pá em sua mão para separar o joio do trigo, e para corrigir todas as coisas que estivessem erradas. Tais, sem dúvida, eram os sentimentos daqueles que tiveram a honra de ser os primeiros discípulos de Cristo. Simão, o mais conhecido dos doze, sob o nome de Pedro, nos é apresentado aqui por meio do critério profético de Jesus, pelo lado bom de seu caráter, como um homem “de pedra”. Quando este discípulo foi trazido por seu irmão André à presença de seu futuro Mestre, “olhando Jesus para ele, disse: Tu és Simão, filho de Jonas; tu serás chamado Cefas” — Cefas em aramaico significa, como o evangelista explicou, o mesmo que Petros em grego. O olhar penetrante de Cristo discerniu nesse discí­ pulo a capacidade latente de fé e devoção, os rudimentos da força máxi­ ma e poder. O evangelista não nos diz diretamente que tipo de homem era Fili­ pe, mas apenas de onde ele veio. Pela passagem presente, e pelas outras observações contidas nos Evangelhos, a conclusão é que ele era caracteristicamente deliberado, lento para tomar uma decisão; e para provar tal

20

O Treinamento dos Doze

ponto de vista, foi feita uma referência à “circunstância flegmática”4 com a qual ele descreveu a Natanael quem era Aquele que havia acabado de conhecer5. M as estas palavras de Filipe, e tudo o que lemos em outros lugares sobre ele, nos sugerem a idéia de um inquiridor sincero buscando a verdade, que havia realmente pesquisado as Escrituras, e s’e tornado conhecedor do Messias da promessa e da profecia, e a quem o conheci­ mento de Deus era summum bonum. N a solicitude manifestada por esse discípulo para cativar seu amigo Natanael à mesma fé, reconhecemos um espírito generoso e solidário, característico dos inquiridores since­ ros, que posteriormente se revelou quando se tornou o portador do pedido dos gregos devotos que queriam ver Jesus6. As observações relacionadas a Natanael, conhecido de Filipe, são mais detalhadas e mais interessantes do que no caso de qualquer um dos outros cinco discípulos; e não é de causar surpresa o fato de que deverí­ amos vir a saber mais sobre alguém de quem, de outra maneira, não conheceríamos quase nada. Não é absolutamente certo afirmar que ele tenha pertencido ao círculo dos doze, embora exista a probabilidade de que ele seja identificado como Bartolomeu nos sinópticos — seu nome completo seria Bartolomeu, filho deTolmai. Por causa desta suposição é que o nome Bartolomeu vem imediatamente após o de Filipe na lista dos apóstolos7. Sendo assim, sabemos que Natanael era um homem de grande excelência moral. Assim que Jesus o viu, exclamou: “Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não há dolo!” As palavras sugerem a idéia de alguém puro de coração; em quem não havia inconstância, motivos impuros, orgulho, ou paixões profanas: um homem brando, de espírito pensativo, em cuja mente o céu era refletido como o céu azul em um lago de águas tranqüilas em um dia calmo de verão. Ele era um homem afei­ çoado aos hábitos da devoção: ele estava entregue a exercícios espirituais debaixo da copa de uma figueira pouco antes de conhecer a Jesus. Che­ gamos a esta conclusão a partir da profunda impressão causada em sua mente pelas palavras de Jesus: “Antes que Filipe te chamasse, te vi eu estando tu debaixo da figueira”. Natanael parece ter compreendido estas palavras da seguinte maneira: “Eu vi teu coração e sei com que estavas ocupado. Por esta razão declarei que és de fato um verdadeiro israelita”. Natanael aceitou a declaração feita por Jesus como uma evidência de

0 Princípio

21

conhecimento sobrenatural, e então sem demora fez a seguinte confis­ são: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel” — o Rei daquele reino sagrado de onde dizes que sou cidadão. E notável que esse homem, tão dotado das disposições morais ne­ cessárias para ver a Deus, fosse o único de todos os cinco discípulos que tenha manifestado alguma hesitação em relação a receber Jesus como o Cristo. Quando Filipe lhe falou que havia encontrado o Messias em Jesus de Nazaré, ele perguntou com incredulidade: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” E difícil imaginar tanto preconceito em alguém tão brando e amável; porém, quanto à sua reflexão, percebemos ser um tanto característica. O preconceito de Natanael contra Nazaré não se originava de orgulho, como no caso das pessoas da Judéia, que despreza­ vam os galileus em geral, mas da humildade. Ele próprio era galileu, e um objeto de desprezo dos judeus tanto quanto os nazarenos. Seu pen­ samento íntimo era: “Certamente o Messias nunca poderia vir de um pobre povo desprezado como o nosso — de Nazaré ou de qualquer outra cidade ou vila da galiléia!”8. Natanael timidamente permitiu que sua mente fosse influenciada pela opinião geral, o que originou senti­ mentos com os quais ele não simpatizava; uma falha comum nos ho­ mens cuja piedade, embora pura e sincera, têm uma elevada considera­ ção pela autoridade humana, e naqueles que se tornam escravos de sen­ timentos absolutamente indignos de sua qualidade moral. Embora Natanael não estivesse livre de preconceitos, mostrou sin­ ceridade ao se dispor a desprender-se deles. Ele veio e viu. Esta abertura à convicção é a marca da integridade moral. A sinceridade que o homem não dogmatiza, mas investiga, e que, ao final, se mostra a contento. O homem propenso ao mal, que tem o coração desonesto, ao contrário, não vem e vê. Considerando seu interesse de permanecer em seu estado presente, ele cautelosamente evita olhar para qualquer coisa que não seja para confirmar suas conclusões anteriores. Natanael poderia, de fato, professar um desejo de questionar — como certos israelitas a respeito dos quais lemos neste mesmo Evangelho — um tipo de caráter diferente do seu, mas compartilhando com esses homens o preconceito contra a Galiléia. “Examina e verás”, diziam esses israelitas, em resposta à per­ gunta ingênua do honesto e tímido Nicodemos: “Porventura, condena a

22

O Treinamento dos Doze

nossa lei um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?” “Examina e verás”, disseram eles, apelando à observação e atrain­ do a dúvida; porém acrescentaram: “Da Galiléia nenhum profeta sur­ giu”9 — uma expressão que proibia a realização do questionamento e sugeria que isso era desnecessário. “Procure e veja; mas nos dizemos antecipadamente que você não poderá chegar a nenhuma outra conclu­ são além da nossa; e ainda o alertamos, é melhor que não o faça”. Assim era o caráter dos dois primeiros homens que creram em Je­ sus. Qual era, então, o tamanho e o valor de sua fé? Â primeira vista, a fé dos cinco discípulos, ignorando o relato da hesitação de Natanael, pare­ ce naturalmente repentina e madura. Eles creram em Jesus rapidamente e expressaram a sua fé em termos que pareciam apropriados apenas ao conhecimento cristão avançado. N a presente seção do Evangelho de João, vemos Jesus ser chamado, não apenas de Cristo, o Messias, o Rei de Israel, mas de Filho de Deus e de Cordeiro de Deus — nomes que para nós expressam as principais doutrinas do cristianismo, a encarnação e a expiação. A rapidez e a maturidade que pareciam caracterizar a fé dos cinco discípulos eram apenas uma aparência superficial. Como já foi dito an­ teriormente, estes homens acreditavam que o Messias viria em breve, e àesejavam muito que tosse naquele momento, porque sentiam que Ele era imensamente necessário. Eles eram homens que esperavam pela con­ solação de Israel, e estavam preparados para testemunhar o advento do Consolador a qualquer momento. Então João Batista disse-lhes que Cristo havia chegado, e que era a pessoa a quem ele havia batizado, e cujo batis­ mo havia sido acompanhado por notáveis sinais vindos do céu; e eles criam implicitamente naquilo que João Batista lhes havia dito. Final­ mente, a impressão produzida neles quando conheceram a Jesus, confir­ mava o testemunho de João, pois todo o conjunto era digno de Cristo. A aparência da maturidade da fé dos cinco irmãos era igualmente superficial. O nome “Cordeiro de Deus” foi dado a Jesus por João, não por eles. O príncipe dentre os pregadores do arrependimento havia apren­ dido que o Senhor Jesus era o Cordeiro de Deus por meio da reflexão, ou por uma revelação especial. Ele mesmo compreendia apenas vaga­ mente o que esse nome significava. Sua repetição mostrava que ele era

0 Princípio

23

um aprendiz que estava se esforçando para entender a sua lição; mas sabemos que aquilo que João compreendia somente em parte, também não foi totalmente compreendido pelos homens apresentados a Jesus, naquele momento, e por muito tempo10. O título “Filho de Deus” foi dado a Jesus por um dos cinco discí­ pulos assim como por João Batista, um título que até mesmo os apósto­ los anos mais tarde consideraram suficiente para expressar a sua creduli­ dade madura em relação à pessoa do seu Senhor. Mas não lhes ocorreu que o nome usado por eles no início teria o mesmo significado no final. Era um nome que poderia ser usado em um sentido muito além do que é capaz de transmitir, e que foi transmitido na pregação apostólica — meramente como um dos títulos do Antigo Testamento para o Messias, um sinônimo de Cristo. Sem dúvida foi neste sentido rudimentar que Natanael aplicou essa designação a Cristo, a quem também chamou de Rei de Israel. A fé desses irmãos estava, portanto, de acordo com aquela que de­ vemos esperar«dos iniciantes. Em essência, eles reconheceram em Jesus o divino Profeta, o Rei, o Filho da profecia do Antigo Testamento. E seu valor não repousa em sua maturidade ou precisão, mas nisto: que mesmo sendo imperfeita, a fé que possuíam os aproximou, os colocou em con­ tato e íntima comunhão com o Senhor, na companhia de quem veriam coisas ainda maiores do que quando creram no início; uma verdade após outra, assumindo o seu lugar no firmamento de suas mentes, como as estrelas aparecendo no céu vespertino à medida que a luz se desvanece.

1 Omina principiis inesse solent. — OVID. Fast. i. 178 2 v. 41 3 João 3.29 4 Luthardt, Das Johan. Evang. i. 102 5 v. 45 6 João 12.22. 7 Ewald enfatiza este argumento como prova da identidade dos dois, na obra Geschichte Christus, p. 327. Em Atos 1.13, Tomé está entre Felipe e Bartolomeu. 8 Stanley pensa que Natanael teve a intenção de separar Nazaré do resto da Galiléia como um local de má reputação. Neste caso o argumento seria àfortiori: Pode algo bom vir da Galiléia, e especialmente de Nazaré, mesmo sendo um local tão infame? — Sinai and Palestine, p. 366. 9 João 7.52. Na versão moderna (N T LH ) lê-se: “Estude as Escrituras Sagradas e verá que da Galiléia nunca surgiu nenhum profeta”.

24

O Treinamento dos Doze

10 O uso de tal título por João em um período tão precoce é certamente surpreendente. E não é mais surpreen­ dente encontrar tal passagem no capítulo 53 de Isaías, em qualquer interpretação do mesmo ou em qualquer livro do Antigo Testamento? E estando lá, porque nos maravilharmos de que este título estivesse nos lábios de João? Não pocjemos afirmar nem sugerir que João compreendesse toda a profundidade de suas palavras. Por que a afirmação não seria tão misteriosa para ele como, de acordo com o apóstolo Pedro, as afirmações semelhantes o eram para profetas mais antigos?

Pescadores de Homens Mateus 4 .18 -2 2 ; Marcos 1 .16 -20 ; Lucas 5 .I -I I

O s doze haviam chegado ao relacionamento íntimo com Jesus por etapas; três etapas na história de sua comunhão com Ele são identificáveis. N a primeira etapa eles simplesmente criam nele como sendo o Cristo, e sendo seus companheiros mais próximos, particularmente em eventuais ocasiões festivas. Desta fase inicial do relacionamento dos discípulos com seu Mestre, temos algumas lembranças nos primeiros quatro capí­ tulos do Evangelho segundo Jcsão^. que narra como alguns deles inicial­ mente conheceram Jesus, e o acompanharam nas bodas de Caná1, na Páscoa em Jerúsalém2, em uma visita ao local onde João Batista estava ministrando3, e na jornada de retorno do sul para a Galiléia, passando por Samaria4. N a segunda etapa, a comunhão com Cristo assumiu a forma de uma presença ininterrupta de sua pessoa, em tempo integral ou, ao me­ nos, o abandono das ocupações seculares habituais5. As narrativas pre­ sentes nos mostram alguns discípulos entrando nesta segunda fase do discipulado. Das quatro pessoas aqui mencionadas, reconhecemos três: Pedro, André e João, como antigos conhecidos, que já haviam passado pela primeira fase do discipulado. De um deles, Tiago, o irmão de João, tomamos conhecimento pela primeira vez; um fato que sugere a obser­ vação de que em alguns casos, a primeira e a segunda fase podem ter ocorrido simultaneamente — profissões de fé em Jesus como o Cristo sendo imediatamente seguidas pela renúncia das atividades seculares com o propósito de se unir à sua companhia. Tais casos, de qualquer modo, eram provavelmente excepcionais e raros.

26

0 Treinamento dos Doze

Os doze entraram no estágio final e mais elevado do discipulado quando foram escolhidos por seu Mestre dentre toda a multidão de seus seguidores, e formaram um grupo seleto, a ser treinado para a grande obra do apostolado. Este importante evento provavelmente não ocorreu até que todos os membros do círculo apostólico tivessem convivido por algum tempo com Jesus. A partir dos registros dos Evangelhos parece que Jesus começou logo no início de seu ministério a reunir em torno de si um grupo de discípulos, com a intenção de preparar uma representação para a conti­ nuação do trabalho do reino divino. Os dois pares de irmãos foram chamados no início do primeiro ministério galileu, no qual o primeiro ato foi a seleção de Cafarnaum, ao lado do mar, como o centro das operações e o lugar comum de residência6. E quando pensamos na cha­ mada que receberam, percebemos que esta não poderia ter vindo cedo demais. Os doze deveriam ser testemunhas de Cristo no mundo após a sua partida; era o dever peculiar deles transmitir ao mundo um relato fiel das palavras e atos do Mestre, uma imagem justa do seu caráter, e um reflexo verdadeiro do seu espírito7. Este serviço obviamente só poderia ser realizado por aqueles que tivessem sido, tanto quanto possível, teste­ munhas oculares e servos do Verbo Encarnado desde o início. Como exceto nos casos de Pedro, Tiago, João, André e Mateus, não há menção no Evangelho em relação ao chamado de homens que posteriormente se tornaram apóstolos, devemos assumir que todos os chamados ocorre­ ram no primeiro ano do ministério público do Salvador. Estes chamados foram feitos com referência consciente a um final distante, o próprio apostolado, ficando evidente a partir dos termos notáveis através dos quais foram expressos. “Vinde após mim”, disse Jesus ao pescador de Betsaida, “e eu vos farei pescadores de homens”. Estas palavras (cuja originalidade as identifica como uma declaração de Jesus) mostram o grande fundador da fé, desejando não somente ter discípulos, mas ter consigo homens que pudesse treinar para fazer ou­ tros discípulos: para lançar a rede da verdade divina ao mar do mundo, e para aportar nas margens do reino divino uma grande multidão de almas crentes. Tanto de suas palavras como de seus atos, podemos ver que Ele dava suma importância a esta parte de seu trabalho, que consistia no

Pescadores de Homens

27

treinamento dos doze. N a oração intercessória8 por exemplo, Ele fala do treinamento que havia concedido a estes homens nos dando a idéia de que esta fosse a parte principal de seu próprio ministério terreno. E, de certo modo, o foi. O cuidadoso e esmerado ensino dos discípulos asse­ gurou que a influência do professor no mundo deveria ser permanente; que seu reino deveria ser fundado sobre a rocha da profunda convicção indestrutível na mente de poucos, não na areia movediça das impressões superficiais imperceptíveis na mente de muitos. Em relação a tal reino, nosso Senhor nos ensinou em uma de suas parábolas a trabalhar9 como aquele que introduz no mundo uma semente que é lançada ao solo e que deverá crescer de acordo com as leis naturais. Mas para os doze havia o risco da doutrina, das obras e da lembrança de Jesus perecerem na mente humana, não restando senão uma vaga tradição mítica, sem valor histó­ rico e de pouca influência prática. Aqueles de quem essa obra tanto dependia possuíam, claramente, qualificações extraordinárias. Os espelhos devem ser completamente polidos pois estavam destinados a refletir a imagem de Cristo! Os após­ tolos da mensagem cristã deveriam ser homens de rara capacitação espi­ ritual. Trata-se de uma religião universal, direcionada a todas as nações; portanto, seus'apóstolos deveriam ser livres da mesquinhez judaica e ter sentimentos tão amplos quanto o mundo. Trata-se de uma religião espiri­ tual, há muito destinada a tornar antiquado o cerimonialismo judaico; e assim, seus apóstolos deveriam ser emancipados, em sua consciência, em relação ao jugo das ordenanças10. Trata-se de uma religião que deve pro­ clamar a cruz. A cruz, dantes um instrumento da crueldade e uma insíg­ nia da infâmia, agora se torna a esperança da redenção do mundo e o símbolo de tudo o que é nobre e heróico em conduta. Portanto, seus arautos deveriam ser superiores a todos os conceitos convencionais de dignidade humana e estarem à altura da dignidade divina, sendo capazes de se gloriar na cruz de Cristo, e estarem dispostos a carregar, eles pró­ prios, a cruz. Em suma, o caráter apostólico deveria combinar a liberda­ de de consciência, a amplitude de coração, a iluminação da mente e todas as qualidades no grau superlativo. Os humildes pescadores da Galiléia tinham muito a aprender antes de corresponderem satisfatoriamente a essas elevadas exigências; porém

28

0 Treinamento dos Doze

o tempo do seu aprendizado para o desempenho do trabalho apostólico, mesmo contando desde o início do ministério de Cristo, parece muito curto. Eles eram homens devotos, que já haviam mostrado a sinceridade de sua piedade ao renunciar a tudo pela causa de seu Mestre. M as na ocasião de seu chamado, eles eram excessivamente ignorantes, de mentes limitadas, supersticiosos, cheios de preconceitos judaicos, concepções errôneas, e animosidades. Tinham muito a mudar em relação ao que era mau, assim como tinham muito a aprender sobre o que era bom. Eram lentos tanto para aprender quanto para “desaprender” o que era incon­ veniente. Velhas crenças já incutidas em suas mentes fizeram da comuni­ cação das novas idéias religiosas uma tarefa difícil. Homens de coração bom e honesto, o solo de sua natureza espiritual era adequado para pro­ duzir uma colheita abundante; mas era duro, e precisava ser muito arado antes de produzir frutos. Então, mais uma vez, demonstravam ser ho­ mens pobres, de origem humilde, de posição inferior, com ocupações simples, que nunca haviam sentido a influência de uma educação liberal ou de um relacionamento social com pessoas cultas11. A medida que prosseguimos com os estudos relativos ao assunto em questão, podemos observar as evidências abundantes da condição de imaturidade espiritual dos doze, mesmo muito'tempo depois do perío­ do em que foram chamados para seguir Jesus. Neste processo, podemos vir a descobrir indicações significativas da imaturidade religiosa de pelo menos um dos discípulos — Simão, o filho de Jonas — na narrativa de Lucas quanto aos incidentes relacionados ao seu chamado. Pressionado por uma multidão que se reuniu à margem do lago para ouvi-lo pregar, Jesus entrou em um barco (um dos dois mais próximos), que era de Simão e pediu-lhe que o afastasse um pouco da margem; sentou-se e, do barco, ensinava as pessoas. Quando terminou de falar, Jesus disse ao dono do barco: “faze-te ao mar alto, e lançai as vossas redes para pes­ car”. Seus esforços anteriores de pesca foram em vão; mas Simão e seu irmão fizeram como Jesus havia ordenado, e foram recompensados com uma pesca extraordinária, que para eles e seus companheiros, Tiago e João, não era nada menos do que uma pesca milagrosa. Simão, o mais impressionável e impulsivo dos quatro, expressou seu sentimento de es­ panto por meio de palavras e gestos característicos. Ele caiu aos pés de

Pescadores de Homens

29

Jesus dizendo: “Senhor, ausenta-te de mim, por que sou um homem pecador!” Esta exclamação abre uma janela para o seu lado interior aqui de­ monstrado; através dessa janela podemos ver o seu estado espiritual. Em tal ocasião, observamos em Pedro uma mistura de bem e mal, de graça e natureza, que com freqüência reaparece em seu caráter na história subse­ qüente. Dentre os bons elementos que podem ser discernidos está o temor reverente na presença do poder divino, uma pronta lembrança do pecado que incomoda a consciência, e uma sincera auto-humilhação em razão do benefício imerecido. Valiosas características de caráter; mas existiam em Pedro na forma de uma mistura. Junto com essas estavam associados temores supersticiosos do sobrenatural, e um escravizante medo de Deus. A presença do elemento anterior está implícita na exor­ tação tranqüilizadora dirigida por Jesus ao discípulo: “Não temas; de agora em diante, serás pescador de homens”. O medo escravizante que Pedro sentia em relação a Deus é manifestado por suas próprias palavras: “Senhor, ausenta-te de mim”. M uito impressionado com o conheci­ mento sobre-humano revelado na grande pesca, Pedro considera, por um momento, que Jesus é um ser sobrenatural, e tal fato o leva a concluir que não é segiíro estar próximo dele, especialmente tratando-se de um pobre mortal, pecador. Este estado de consciência mostra quão incapa­ citado era Pedro para ser um apóstolo de um Evangelho que exalta a graça de Deus dirigida até mesmo aos maiores pecadores. Sua piedade, suficientemente forte e decidida, não era cristã, era legal, quase, pode-se dizer, pagã em espírito. Com todas as suas imperfeições, que eram tanto numerosas como grandes, esses humildes pescadores da Galiléia tinham, no início de sua carreira, uma grande virtude que os distinguia. Embora esta pudesse coexistir com muitos defeitos, é a principal virtude da ética cristã, e a precursora para se alcançar as maiores realizações. Eles eram incentiva­ dos pela devoção a Jesus e pelo reino divino que os tornou capazes de quaisquer sacrifícios. Ao crerem naquele que os convidou a segui-lo com a finalidade de estabelecer o reino de Deus na terra, “imediatamente” deixaram as suas redes e se juntaram à sua companhia, para serem, a partir de então, seus companheiros em todas as suas jornadas. Isto foi

30

O Treinamento dos Doze

reconhecido pelo próprio Senhor Jesus Cristo como meritório; e não podemos, sem cometer injustiça, buscar menosprezar os motivos dos apóstolos, relacionando-os ao ócio, ao descontentamento ou à ambição. A narrativa do Evangelho mostra que os quatro irmãos não eram ocio­ sos, e sim trabalhadores assíduos, homens laboriosos. Nem.eram des­ contentes, porque não havia outro motivo para que o fossem. A família de Tiago e João parecia ter uma situação confortável. Marcos relata que quando estes foram chamados por Jesus, eles deixaram seu pai Zebedeu no barco com os servos e o seguiram. Mas e a ambição, ela tinha lugar em meio aos seus motivos? Bem, devemos admitir que os doze, especial­ mente Tiago e João, não estavam livres do sentimento de ambição, como veremos a seguir. M as qualquer que fosse a extensão da ambição que pode ter influenciado a conduta desses homens em um período posteri­ or, não foi este o motivo que determinou que deixassem suas redes. A ambição precisa de uma tentação: ela não se une a uma causa obscura e relutante, cujo sucesso seja duvidoso; tem início quando o sucesso é aparentemente certo e quando o movimento que ela incentiva se dá na véspera de sua glorificação. A causa de Jesus ainda não havia alcançado tal estágio. Somente uma acusação pode ser feita contra aqueles homens, e po­ dem ser feitas com veracidade e sem causar dano algum à sua memória. Eles eram entusiastas: seus corações eram inflamados e, como o mundo descrente poderia dizer, suas idéias estavam voltadas ao sonho de estabe­ lecer o reino divino em Israel, com Jesus de Nazaré como o seu rei. Este sonho os possuía, e imperiosamente governava suas mentes e moldava seus destinos, compelindo-os, como Abraão, a deixarem suas famílias e seu país, para seguir o que antes parecia ser um objetivo tolo. Que bom para o mundo que eles estavam possuídos pela idéia do reino! Porque seu objetivo não era tolo, ao deixarem suas redes para trás. O reino que buscavam se tornou tão real quanto a terra de Canaã, embora não fosse inteiramente do modo como o haviam imaginado. Os pescadores da Galiléia se tornaram pescadores de homens em uma escala mais extensi­ va e, com a ajuda de Deus, reuniram, na igreja, muitas almas que deveri­ am ser salvas. Eles estavam lançando suas redes ao mar do mundo, e pelo seu testemunho a respeito de Jesus nos Evangelhos e nas Epístolas, leva­

Pescadores de Homens

31

ram multidões a se tornarem discípulos dele, dentre as quais tiveram a alegria de ser contados como os primeiros seguidores. Os quatro, e mais tarde os doze, renunciaram a tudo e seguiram ao seu Mestre. A palavra “tudo” incluía também a esposa e os filhos? Sim, em pelo menos um caso — 110 caso de Pedro; os Evangelhos contam como a sogra de Pedro foi curada de uma febre pelo poder miraculoso de Cristo12. A partir de uma passagem na primeira epístola de Paulo à igreja de Corinto, parece que Pedro não era o único casado entre os apóstolos13. N a mesma passagem observamos que tal renúncia das espo­ sas pela causa de Cristo não significava a deserção literal. Pedro, como apóstolo, levou sua esposa consigo, e Pedro, como discípulo, ao lado de Jesus, algumas vezes pode ter feito o mesmo. Provavelmente, os discípu­ los casados, assim como os soldados casados, tenham levado suas espo­ sas consigo ou as deixado em casa, conforme as circunstâncias permiti­ am ou exigiam. As mulheres, mesmo as casadas, às vezes seguiam a Jesus; e a esposa de Simão, ou de qualquer outro discípulo casado, pode ocasi­ onalmente ter estado entre elas. Em um período avançado na história, vemos a mãe de Tiago e João na companhia de Cristo e longe de casa; e onde havia mães, as esposas, se desejassem, também poderiam estar. A igreja, em seu 'estado inicial nômade ou itinerante, parece ter sido uma mistura de peregrinos, na qual havia todos os tipos de pessoas, de ambos os sexos, de várias posições sociais e caráter moral diverso, totalmente unidas, sendo o laço de união um intenso apego a Jesus. Essa igreja itinerante não era uma sociedade regularmente organiza­ da, da qual era necessário ser um membro constante para ser considera­ do um verdadeiro discípulo. Exceto no caso dos doze, seguir a Jesus de um lugar para outro era opcional, não um ato compulsório; e na maioria dos casos provavelmente era somente ocasional14. Era a conseqüência natural da fé, cujo objeto, o centro do círculo, era o próprio Senhor Jesus em movimento. Os crentes espontaneamente desejavam ver o maior nú­ mero possível das obras de Cristo, e ouvir as suas palavras tanto quanto fosse possível. Quando o objeto dessa fé deixou a terra, e sua presença passou a ser espiritual, todas as ocasiões para o discipulado itinerante foram encerradas. A partir de então, para estar em sua presença, os ho­ mens devem apenas renunciar aos seus pecados.

32

0 Treinamento dos Doze

1 João 2.1 2 João 2.13, 17, 22 3 João 3.22 4 João 4.1-27, 3 1 ,4 3 -4 5 5 Um abandono completo no caso de Mateus, é claro; no caso dos pescadores, não necessariamente. 6 Mateus 4.13 7 Não se assume aqui que os Evangelhos, como os temos, tenham sido escritos pelos apóstolos. A declaração no texto implica apenas que o ensino dos apóstolos, quer orais ou escritos, foram a fonte suprema das tradições registradas nos Evangelhos. 8 João 17.6 9 Marcos 4.26 10 E universal e espiritualmente admitido pela escola Tübingen que os atributos da religião de Jesus foram estabelecidos por Ele mesmo. Este é um fato importante em relação às suas hipóteses-conflitos. 1 1 Ao longo deste trabalho é dada grande proeminência aos defeitos morais e espirituais dos doze. Mas deve­ mos protestar desde o início contra a inferência de que tais homens sejam permanentemente considerados desqualificados (exceto Judas) para a tarefa de serem apóstolos da religião universal, a religião da humanidade. Tudo de bom pode ser esperado de homens que foram capazes de deixar tudo para seguir a Cristo. Onde quer que exista uma alma nobre, existirá uma capacidade extremamente grande de crescimento. 12 Mateus 8 .14; Marcos 1,29-31; Lucas 4.38, 39 13 I Coríntios 9.5 14 As palavras registradas em Lucas 22.28, ditas por Jesus aos seus discípulos na noite anterior à sua morte: “Vós sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentações”, têm sido utilizadas com a intenção de provar tanto a continuidade da companhia dos doze com Jesus quanto a data do seu início. Este pronunciamento tem a intenção direta de transmitir o testemunho da fidelidade dos discípulos, mas indiretamente também dá testemunho de outros pontos. Eles estiveram com o seu Mestre, se não como um corpo constituído por doze pessoas, pelo menos como indivíduos, desde o tempo em que Ele começou a sofrer “tentações”, o que ocorreu muito cedo, e estiveram com Ele ao longo de todas elas.

Mateus, o Publicano Mateus 9 .9 -13; Marcos 2 .I5 -I7 ; Lucas 5.2 7-3 2

O chamado de Mateus ilustra bem o caráter proeminente da ação pública de Jesus, e seu desprezo absoluto em relação ao máximo da sabe­ doria mundana. Um discípulo publicano, e muito mais um apóstolo publicano, não deixaria de ser uma pedra de tropeço ao preconceito judeu e, na ocasião, uma fonte de fraqueza e não de força. E mesmo estando perfeitamente ciente desse fato, Jesus convidou ao convívio ínti­ mo do discipulado alguém que havia procurado uma ocupação de co­ brador de impostos, e que posteriormente foi selecionado para ser um dos doze. Seu procedimento nesse caso é o mais notável de todos quan­ do comparado com o modo como Ele tratou outros que tinham aparen­ tes vantagens que os recomendavam favoravelmente, e que haviam mos­ trado sua boa vontade de seguirem-no voluntariamente como discípu­ los. Observe, por exemplo o escriba que se apresentou e disse: “Mestre, aonde quer que fores, eu te seguirei”1. Esse homem, cuja posição social e capacidade profissional pareciam apontá-lo como uma aquisição muito desejável, não foi convidado pelo Mestre, que deliberadamente lhe mos­ trou o difícil panorama de sua própria condição, dizendo: “As raposas têm covis2, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Os olhos de Jesus são únicos e também oniscientes. Ele olhava para o coração e tinha um respeito exclusivo pela aptidão espiritual. Ele não tinha fé alguma no discipulado baseado em equívocos e coisas munda­ nas; e, por outro lado, não tinha medo de obstáculos vindos das cone­ xões externas ou da história passada dos crentes; pelo contrário, Ele era

34

0 Treinamento dos Doze

completamente indiferente aos antecedentes dos homens. Confiante no poder da verdade, escolheu as coisas básicas do mundo ao invés das coisas favoráveis, seguro de que venceriam no final. Ciente de que tanto Ele quanto os seus discípulos seriam desprezados e rejeitados pelos ho­ mens por algum tempo, seguiu seu caminho calmamente,, escolhendo como seus companheiros e auxiliares “os que Ele quis”, sem se preocu­ par com a contradição de sua geração — como alguém que sabia que sua obra dizia respeito a todas as nações; em todas as épocas. O discípulo publicano possui dois nomes no relato do Evangelho. No primeiro Evangelho ele é chamado de Mateus, enquanto no segun­ do e no terceiro é chamado de Levi. Podemos considerar com certeza tratar-se da mesma pessoa3. Dificilmente seria concebível que dois publicanos tivessem sido chamados para ser discípulos no mesmo lugar e ao mesmo tempo, e com as mesmas circunstâncias envolvidas, e estas tão notáveis e precisamente similares. Não deveríamos nos surpreender pelo fato de a identidade não ter sido notificada, em razão dos dois nomes pertencentes à mesma pessoa terem sjdo familiares aos primeiros leitores do Evangelho, o que tornaria tal informação supérflua. Não é improvável que Levi tenha sido o nome desse discípulo antes de receber seu chamado, e que Mateus tenha sido seu nome como discípu­ lo — assim, o novo nome passou a ser um símbolo e uma lembrança da mais importante mudança ocorrida em seu coração e em sua vida. M u­ danças emblemáticas de nomes ocorriam com freqüência no início do Evangelho. Simão, o filho de Jonas, passou a se chamar Pedro; Saulo de Tarso passou a ser Paulo, e José, o Cipriota, recebeu dos apóstolos o belo nome cristão Barnabé (filho da consolação, ou profecia), por sua filantropia, magnanimidade, e sabedoria espiritual — um nome bem merecido. Parece que Mateus desempenhava a função de coletor de impostos na ocasião em que foi chamado em Cafarnaum, cidade que Jesus adotou como residência. Foi enquanto Jesus estava em casa, em “sua cidade”4, como Cafarnaum passou a ser chamada, que o paralítico foi levado até Ele para ser curado; e em todos os Evangelhos5 constatamos que foi na saída de sua casa — onde o milagre foi efetuado — que Ele viu Mateus, e disse-lhe: “Siga-me”. A inferência a ser feita a partir desses fatos é simples, e também importante, para explicar a prontidão do chamado e

Mateus, o Publicano

35

a prontidão com que foi respondido. Sendo Jesus e seus novos discípu­ los da mesma cidade, provavelmente tiveram oportunidades de se ver anteriormente. A data do chamado de Mateus não pode ser determinada com pre­ cisão, mas existe uma boa razão para colocá-la antes do Sermão da Montanha, sobre o qual o Evangelho segundo Mateus contém o relato mais completo. O fato por si só sustenta uma forte evidência a favor dessa colocação cronológica, porque tal narrativa tão completa do Ser­ mão não poderia se originar de alguém que não o tivesse ouvido. Um exame do terceiro Evangelho converte a probabilidade em algo como certo. Lucas anexa à sua abreviada narrativa do Sermão uma nota da constituição da sociedade apostólica e representa Jesus como descendo “com eles”6 — os doze, cujos nomes ele havia acabado de citar — à cena onde o sermão foi proferido. E óbvio que o ato da constituição deve ter sido precedido pelos atos separados do chamado, e pelo chama­ do de Mateus em particular, que é relatado pelo terceiro evangelista em um trecho anterior ao seu Evangelho7. E verdade que a posição do cha­ mado na narrativa de Lucas por si só não prova nada, já que Mateus relata o seu próprio chamado depois do Sermão. E assim, nenhum deles nem outros afirmam algum princípio cronológico de organização no relato dos fatos. Baseamos a nossa conclusão na suposição de que quando algum dos evangelistas professa dando a ordem de seqüência, seu depoi­ mento pode ser confiável; e na observação, Lucas manifestadamente em­ prega uma ordem cronológica na organização dos doze antecedendo o Sermão da Montanha. A organização de Mateus no início de seu Evange­ lho não obedece a uma cronologia; sua questão se concentra no seguinte princípio típico: capítulos 5 a 7, mostrar Jesus como um grande professor ético; capítulos 8 e 9, como um operador de milagres; capítulo 10, como um Mestre, escolhendo, instruindo, e ordenando uma missão evangelística dos doze discípulos; capítulo I I , como um crítico dos seus contemporâ­ neos e preservador das suas próprias prerrogativas; capítulo 12, como ex­ posto às contradições da incredulidade; e capítulo 13, ensinando as dou­ trinas do reino por meio de parábolas. Passando desses pontos subordinados ao chamado em si, observa­ mos que as narrativas do evento são muito breves e fragmentadas. Não

36

0 Treinamento dos Doze

há nenhuma insinuação de algum conhecimento prévio que pudesse pre­ parar Mateus para aceitar o convite que lhe fora feito por Jesus. Não se deve concluir, de qualquer forma, que tal conhecimento não existisse, como podemos ver no caso dos quatro pescadores cujo chamado é nar­ rado com igual brevidade nos evangelhos sinópticos, enquanto sabemos a partir do Evangelho de João que pelo menos três deles já conheciam Jesus. A verdade é que, considerando ambos os chamados, os evangelistas se preocuparam somente com os momentos críticos, passando em silêncio por todos os estágios preparatórios, e não considerando necessário in­ formar aos leitores inteligentes que, é claro, nem os publicanos nem os outros discípulos seguiram cegamente àquele a respeito de quem não sabiam nada, meramente por terem sido convocados a segui-lo. Um fato já averiguado — que Mateus, na condição de publicano, residia em Cafarnaum — torna absolutamente certo que ele conhecia Jesus antes de ser chamado. Nenhum homem poderia ter vivido em tal cidade na­ queles dias sem ter ouvido falar das “obras maravilhosas” realizadas nela e em sua vizinhança. O céu havia sido aberto exatamente sobre Cafarnaum, aos olhos de todos, e os anjos “subiam e desciam” sobre o Filho do Homem. Leprosos foram limpos, os demônios dos possessos foram ex­ pulsos, os cegos voltaram a ver, e os homens paralíticos puderam usar seus membros; uma mulher foi curada de uma doença crônica, e uma outra, filha de um cidadão distinto — Jairo, príncipe da sinagoga — foi ressuscitada. Estas coisas eram feitas publicamente, causavam grande alarde e eram notáveis. Os evangelistas relatam como as pessoas “se admira­ ram, a ponto de perguntarem entre si, dizendo: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Pois com autoridade ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem!”8, como glorificavam a Deus dizendo: “Nunca tal vimos”9 ou, “Hoje, vimos prodígios”10. O próprio Mateus concluiu sua narrativa da ressurreição da filha de Jairo com a seguinte observação: “E espalhou-se aquela notícia por todo aquele país”11. Não afirmamos que todos esses milagres foram realizados antes do chamado do publicano, mas alguns deles certamente o foram. Compa­ rando um Evangelho com o outro, para determinar a seqüência históri­ ca12, concluímos que a maior de todas essas obras maravilhosas, a última mencionada, embora narrada por Mateus depois de seu chamado, real­

Mateus, o Publicano

37

mente ocorreu antes disso. Pense, então, no efeito poderoso que esse ato excelente teria na preparação do coletor de impostos para reconhecer, em uma palavra solenemente pronunciada: "Siga-me”, a ordem daquele que era o Senhor tanto da morte como da vida, e se render ao seu convi­ te, prontamente, obedecendo sem hesitação! Ao creditar a Mateus algum conhecimento prévio de Cristo, faze­ mos essa conversão ao discipulado parecer razoável sem diminuir seu valor moral. Não era natural que ele devesse se tornar um seguidor de Jesus meramente por ter ouvido, ou mesmo visto, suas obras maravilho­ sas. Os milagres por si só não poderiam fazer nenhum homem se tornar crente, porque se este fosse o caso, todas as pessoas de Cafarnaum teri­ am crido. Que fato diferente aprendemos a partir das reclamações mais tarde feitas por Jesus em relação às cidades ao longo das margens do Lago de Genesaré, onde a maior parte de suas obras poderosas foi feita, e de Cafarnaum em -particular. A respeito desta cidade, Ele disse com amar­ gura: “E tu, Cafarnaum, que te ergues até aos céus, serás abatida até aos infernos; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje”13. A queixa de Cristo contra os habitantes dessas cidades favorecidas era que elas não se arre­ pendiam, ou seja”, não permitiam que o Reino dos céus se tornasse o seu maior bem, assim como o motivo de sua vida. Questionavam o suficien­ te seus milagres, e falavam muito sobre eles. Corriam atrás dele para ver mais obras do mesmo tipo e ter uma nova sensação de estupefação. Po­ rém depois de algum tempo, reincidiam em sua própria estupidez e indi­ ferença, e permaneciam moralmente como eram antes de sua presença entre eles, não se tornando filhos do reino, mas permanecendo ainda como filhos deste mundo. Não foi assim com o coletor de impostos. Ele não vagava e falava simplesmente, mas se “arrependeu”. Se ele tinha mais do que se arre­ pender que seus vizinhos, não sabemos. E verdade que Mateus pertencia a uma classe de homens que, vistos através do preconceito popular co­ mum, eram todos maus, e muitos eram realmente culpados de fraudes e extorsões, mas ele pode ter sido uma exceção. Seu banquete de despedi­ da mostra que ele possuía recursos, mas não podemos presumir que estes tenham sido adquiridos de forma ilícita. Porém podemos dizer

38

O Treinamento dos Doze

com certeza que se o discípulo publicano era cobiçoso, agora o espírito da ganância havia sido expulso; se alguma vez foi culpado de oprimir os pobres, agora abominava tal atitude. Ele havia se cansado de coletar im­ postos de uma população relutante, e estava feliz por seguir alguém que tinha vindo para carregar os fardos, e não para se apoiar neles, para perdoar as dívidas ao invés de cobrá-las com rigor. E então aconteceu que a voz de Jesus agiu em seu coração com muito vigor: “E ele, deixan­ do tudo, levantou-se e o seguiu”. Esta importante decisão, de acordo com o relato de todos os evangelistas, foi feita logo após o banquete na casa de Mateus, no qual Jesus estava presente14. A partir da narrativa de Lucas, podemos ver que essa festa tinha todas as características de uma grande ocasião, e que havia sido feita em homenagem a Jesus. A homenagem, contudo, não estava à altura, pois os outros convidados eram peculiares. “Chegaram muitos publicanos e pecadores e sentaram-se juntamente com Jesus e seus discípulos”15; e em meio aos “outros” haviam alguns que eram esti­ mados, em um grau superlativo, como “pecadores”16. Esse banquete era, como julgamos, não menos rico em importância moral do que as iguarias servidas à mesa. Para o próprio anfitrião era, sem dúvida, um jubileu, um banquete comemorativo de sua emancipa­ ção do trabalho enfadonho, da sociedade incompatível e do pecado ou, de um modo geral, da tentação de pecar, e o seu ingresso na livre e abençoada vida de comunhão com Jesus. Era um tipo de poema, dizen­ do a Mateus o que as linhas familiares de Doddridge dizem a muitos outros, talvez não tão bem: O dia feliz, quando fiz a minha escolha Por ti, meu Salvador e meu Deus! Que este coração ardente possa se regozijar, Contar sobre seu entusiasmo em todos os lugares! Está feita; a grande transação está feita: Eu sou do meu Senhor, e Ele é meu; Ele me chamou, e eu o segui, Fascinado por confessar a voz divina.

Mateus, o Publicano

39

O banquete também foi, como já mencionado, um ato de homena­ gem a Jesus. Mateus fez seu esplêndido banquete em honra ao seu novo mestre, assim como Maria, de Betânia, derramou seu precioso ungüento sobre os seus pés. E o meio de aqueles a quem muita graça é mostrada manifestarem seu grato amor*em seus atos, exibindo o que um filósofo grego chamava de magnificência17, e as pessoas mais simples chamam de extravagância. Quem quer que tente criticar tais atos de devoção, deve se lembrar de que Jesus sempre os aceitou com prazer. O banquete do publicano parece ter tido o caráter de uma festa de despedida para seus amigos publicanos. Dali em diante, Mateus e seus amigos seguiriam caminhos diferentes, e ele se separaria deles em paz. Mais uma vez podemos acreditar que Mateus fez o banquete com a intenção de apresentar Jesus aos seus amigos e vizinhos, procurando com o zelo característico de um jovem discípulo induzir outros a tomar a mesma decisão que ele, ou pelo menos esperando que alguns pecadores presentes pudessem ser tirados do caminho do mal e levados ao cami­ nho da justiça. E por que não poderíamos dizer que foi nessa reunião festiva, ou em alguma outra ocasião semelhante, que as impressões da graça haviam produzido o resultado final da comovente demonstração de gratidão inefável naquele outro banquete na casa de Simão, no qual nem os publicanos nem os pecadores foram admitidos? O banquete de Mateus foi visto internamente como muito agradá­ vel, inocente e até edificante. Mas que i n fe l ic id a d e ! Visto externamente, como por janelas sujas, tinha um aspecto diferente: era, de fato, nada menos que escandaloso. Certos fariseus observaram a chegada ou a saída daquelas pessoas, notaram quem eram, e depois fizeram reflexões sinis­ tras a seu bel-prazer. Quando surgiu uma oportunidade, eles fizeram aos discípulos de Jesus uma pergunta que era simultaneamente um elogio e uma censura: “Por que comeis e bebeis com publicanos e pecadores?” Aqueles que fizeram esta pergunta eram, em sua maioria, membros da seita local dos fariseus, pois Lucas se refere a eles como: “os escribas deles e os fariseus”18, o que implica que Cafarnaum era suficientemente importante para ser honrada com a presença dos representantes de tal facção religiosa. E pouco provável, contudo, que em meio aos especta­ dores pouco amistosos estivessem alguns fariseus vindos de Jerusalém, o

40

O Treinamento dos Doze

centro do governo eclesiástico, já no encalço do Profeta de Nazaré, ob­ servando seus atos, assim como fizeram com João Batista, antes dele. As notícias das obras milagrosas de Cristo logo se espalharam por toda a terra, e atraíram espectadores de todos os cantos — de Decápolis, de Jerusalém, da Judéia, e da Peréia, assim como da Galiléia19! e podemos estar certos de que os escribas e fariseus da cidade santa não foram os últimos a ir e ver. Devemos considerar que estes cumpriram o dever da espionagem religiosa com diligência exemplar. A presença desses homens doentes da ordem farisaica era quase um aspecto permanente no ministério público de Cristo. M as isso nunca o perturbou. Ele seguiu calmamente o seu caminho fazendo a sua obra; e quando sua conduta era posta em questão, Ele estava sempre pronto com uma resposta conclusiva. Dentre as mais impressionantes de suas respostas ou apologias aos que o examinavam, estavam aquelas nas quais Ele se justificava por se misturar com pecadores e publicanos. São três, expressas em muitas ocasiões: a primeira relacionada ao banquete de Mateus; a segunda na casa de Simão, o farkeu20; e a terceira, em uma ocasião sem data definida, quando certos escribas e fariseus lhe fizeram uma grave acusação: “Este recebe pecadores e come com eles”21. Essas apologias pelo fato de amar os não-amados e os moralmente desagradá­ veis estão repletas de verdade e graça, poesia e compaixão, com um to­ que particular de sátira dirigida contra os santarrões acusadores. A pri­ meira pode ser distinguida como o argumento profissional, e tinha o se­ guinte conteúdo: “Eu freqüento a casa dos pecadores porque sou um médico; eles estão doentes e precisam de cura. Onde deveria estar um médico se não em meio aos seus pacientes? Onde mais se não entre os mais gravemente aflitos?” A segunda pode ser descrita como sendo um argumento político, e sua construção tem o seguinte sentido: “E uma boa política ser amigo dos pecadores que têm muito a ser perdoado; porque quando forem restituídos ao caminho da virtude e da piedade, quão grande será o seu amor! Veja aquela mulher penitente, chorando de dor e também de alegria, banhando os pés do seu salvador com suas lágri­ mas. Tais lágrimas são um refrigério para o meu coração, como uma fonte de água no deserto árido do formalismo e da indiferença farisaica”. A terceira pode ser chamada de argumento do instinto natural, e poderia

Mateus, o Publicano

41

ser expressa assim: “Eu recebo os pecadores, e como com eles, e assim procuro estabelecer a sua restauração moral. Faço-o pela mesma razão que leva o pastor a sair em busca de uma ovelha perdida, deixando o seu rebanho no deserto. Porque é natural procurar o perdido e ter mais ale­ gria ao encontrar coisas perdidas do que se alegrar por aquilo que nunca foi perdido. Os homens que não compreendem este sentimento são so­ litários no universo; porque os anjos no céu, os pais, as donas de casa, os pastores, todos os que têm corações humanos na terra, compreendem bem, e agem dessa forma todos os dias”. Em todo esse raciocínio Jesus falou aos seus acusadores baseandose nas próprias premissas deles, aceitando as estimativas que tinham de si próprios e da classe que julgavam ser infame para se associarem, como justos e pecadores respectivamente. Mas Jesus decidiu expor que seu julgamento em relação a essas duas classes não coincidia com o de seus interrogadores. Ele o fez na ocasião do banquete de Mateus, ordenando que fossem estudar o texto: “Misericórdia quero e não sacrifício”, que­ rendo pela citação insinuar que, embora fossem muito religiosos, os fariseus eram também muito desumanos, cheios de orgulho, preconcei­ tos, severidade, e ódio. E, proclamando a verdade, disse-lhes que este caráter era, aos°olhos de Deus, muito mais detestável que o daqueles que eram afeiçoados às vozes vulgares da multidão, para não falar daqueles que eram “pecadores” principalmente na imaginação farisaica. Desse modo, Jesus mostrou-lhes um outro lado da situação. As últimas palavras de nosso Senhor para as pessoas que haviam colocado a sua conduta em questão nessa ocasião não eram meramente apologéticas, mas judiciais: “Eu não vim”, disse Ele, “chamar os justos, mas sim os pecadores, ao arrependimento”22. Com isto, declarou que aqueles que se consideravam justos ficariam sozinhos, e convidou ao arrependimento e às alegrias do reino aqueles que não estivessem satis­ feitos com a sua própria vida. Estes últimos passariam a cuidar dos be­ nefícios agora oferecidos, e o banquete do evangelho lhes seria uma ver­ dadeira festa. A palavra, na verdade, continha uma significativa alusão a uma iminente revolução religiosa, na qual os últimos se tornariam os primeiros e os primeiros, os últimos; os judeus proscritos, os vis gentios (considerados até mesmo como cães), tomariam parte das alegrias do

42

0 Treinamento dos Doze

reino e os aparentemente “justos” seriam excluídos. Este foi um dos discursos significativos através do qual Jesus tornou conhecido para aque­ les que podiam compreender que a sua religião era universal, uma reli­ gião para a humanidade, um evangelho para o gênero humano, um evan­ gelho para os pecadores. E o que estava sendo declarado em palavras, a apologia à conduta cristã, era proclamado de forma ainda mais expressi­ va por meio de suas obras. Tal compaixão pelos “publicanos e pecado­ res” era algo abominável — o instinto farisaico o discerniu deste modo — e eles em seguida se alarmaram. Significava a morte dos monopólios e privilégios da graça e do orgulho judaico e do exclusivismo — todos os homens são iguais aos olhos de Deus, e são bem-vindos à salvação nos mesmos termos. De fato, era uma proclamação virtual do programa paulmo de um evangelho universalista, o qual os doze deveriam, como uma escola de teólogos, defender com a mesma determinação exibida pelos próprios fariseus. Causa estranheza saber que aqueles que estive­ ram com Jesus tivessem a visão tão restrita a ponto de não entenderem, mesmo no final, o que estava envolvido na comunhão de seu Mestre com aqueles que eram considerados inferiores e perdidos! [Será que Buda foi mais afortunado em relação aos seus discípulos do que Jesus em relação aos seus? Buda disse: “M inha lei é uma lei de graça para todos”, dirigindo suas palavras imediatamente contra a preconceituosa casta bramânica; e seus seguidores entenderam o que isto significava; o budis­ mo como uma religião missionária, uma religião para os sudras, e conse­ qüentemente para toda a humanidade!]

I Mateus 8.18-20 " Mais corretamente, alojamentos, pousadas. 3 Ewald ( Cbristus, pp. 364, 397) nega a identidade, e afirma que Levi não era um dos doze; porém admite a identidade menos evidente de Natanael e Bartolomeu. 4 Mateus 9.1 3 Mateus 9.9; Marcos 2.13; Lucas 5.27 6 Lucas 6.13-17 7 Lucas 5.27 8 Marcos 1.27 9 Marcos 2.12 10 Lucas 5.26 II Mateus 9.26 12 Veja Ebrard, Gospel History, sobre o assunto da seqüência.

Mateus, o Publicano

43

13 Mateus 11.23. Podem haver poucas dúvidas de que mh , na primeira cláusula, adotada na versão revisada, seja a correta. Ela traz a palavra profética de Cristo a uma correspondência mais próxima com Isaías 14.13-15, ao qual existe uma alusão óbvia: “E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu... contudo, levado serás ao inferno...” 14 Mateus diz modestamente, “em casa’•(9.10). 13 Mateus 9.10 16 Lucas 5.29 ll mepãloprepeiíi — Aristóteles, Ética a i\'ic$waco 4.2 '» Lucas 5 30 10 Mateus 4.25 20 Lucas 7.36 21 Lucas 15.2 22 e parece ser genuíno somente em Lucas, e as palavras expressam somente uma parte daquilo que Cristo estava dizendo. Ele convidou os homens não somente ao arrependimento, mas à participação em todas as bênçãos do reino.

4 Os Doze Mateus I0.I-4; Marcos 3.13-19; Lucas 6.I2-I6; Atos I.I3

A

L. 1 escolha que Jesus fez dos doze discípulos que gradualmente se reuniram ao seu redor é uma importante referência na história do evan­ gelho. Tal ato divide o ministério do nosso Senhor em duas partes pro­ vavelmente muito semelhantes quanto à duração, mas diferentes quanto à extensão e a importância do trabalho realizado em cada uma. No perí­ odo inicial Jesjjs trabalhou sozinho; suas obras milagrosas estavam con­ finadas a uma área limitada, e seu ensino era, em sua maior parte, de caráter elementar. Mas na ocasião em que os doze foram escolhidos, a obra do reino "assumiu dimensões que requeriam organização e divisão de trabalho. O ensino de Jesus estava começando a ser de natureza mais profunda e elaborada, e suas atividades beneficentes estavam crescendo muito. E provável que a escolha de um número limitado de discípulos para ser seus companheiros íntimos e constantes tenha se tornado uma neces­ sidade para Cristo, em conseqüência de seu próprio sucesso ao fazer discípulos. Seus seguidores eram tão numerosos a ponto de serem um impedimento aos seus movimentos, especialmente nas longas jornadas que marcam a parte posterior de seu ministério. Era impossível que to­ dos os que criam pudessem então continuar a segui-lo de modo literal, para onde quer que Ele fosse: o grande número de pessoas agora poderia ser apenas de seguidores ocasionais. Mas era seu desejo que alguns ho­ mens escolhidos estivessem consigo em todos os momentos e em todos os lugares — seus companheiros de viagem em todas as suas jornadas, testemunhando toda a sua obra e ministrando às suas necessidades diá­

46

0 Treinamento dos Doze

rias. E assim, nas palavras singulares de Marcos: “E subiu ao monte e chamou para si os que ele quis; e vieram a ele. E nomeou doze para que estivessem com ele...”1. Estes doze, contudo, como sabemos, deveriam ser mais que meros companheiros de viagem ou servos comuns do Senhor Jesus Cristo. Eles deveriam ser, então, aprendizes da doutrina cristã, e ocasionais cooperadores das obras do reino, e mais tarde agentes treinados, escolhi­ dos por Cristo para propagar a fé depois que Ele deixasse a terra. A partir do momento em que foram escolhidos, de fato, os doze iniciaram um aprendizado regular para o grande ofício do apostolado, no curso do qual deveriam aprender, na privacidade de um relacionamento ínti­ mo diário com seu Mestre, como deveriam ser, agir, crer, e ensinar como suas testemunhas e seus embaixadores no mundo. Doravante o treina­ mento desses homens deveria ser uma parte constante e proeminente da obra pessoal de Cristo. Ele os orientava à noite a respeito do que deveri­ am falar de dia, e falava aos seus ouvidos o que nos anos posteriores anunciariam publicamente2. A ocasião em que ocorreu essa eleição (embora não se conheça tal data com precisão) é fixa em relação a certos eventos-chave da história do evangelho. João se refere aos doze como uma companhia organizada na ocasião em que o Senhor realizou o milagre de alimentar mais de cinco mil pessoas, e do discurso sobre o Pão da vida na sinagoga de Cafarnaum, proferido pouco tempo após aquele milagre. Desse fato aprendemos que os doze foram escolhidos pelo menos um ano antes da crucificação; pois o milagre da multiplicação dos alimentos ocorreu, de acordo com o quarto evangelista, logo após a festa da Páscoa3. A partir das palavras ditas por Jesus aos homens que havia escolhido, transmitin­ do a sua pergunta em relação à fidelidade devida a ele depois da multi­ dão tê-lo abandonado: “Não vos escolhi a vós os doze? E um de vós é um diabo”4, concluímos que a escolha não era tão recente. Os doze haviam estado juntos durante tempo suficiente para dar ao falso discí­ pulo a oportunidade de mostrar o seu verdadeiro caráter. Voltando agora aos evangelistas sinópticos, encontramo-los tentan­ do estabelecer a posição da eleição em referência a dois outros eventos ainda mais importantes. Mateus fala pela primeira vez dos doze como

Os Doze

47

um corpo distinto em relação à sua missão na Galiléia. Ele não diz, contu­ do, que foram escolhidos imediatamente antes e com referência direta a tal missão. Antes, fala como se a fraternidade apostólica já existisse ante­ riormente, sendo estas as suas palavras: “E, chamando os seus doze dis­ cípulos...” Lucas, por outro lado, faz um relato formal da eleição, como um prefácio de seu relatório do Sermão ia Montanha, dando a impressão de que um evento ocorreu logo após o outro5. Finalmente, a narrativa de Marcos confirma o ponto de vista sugerido por essas observações de Mateus e Lucas, isto é, os doze foram chamados pouco antes da realiza­ ção do Sermão da Montanha, e um tempo considerável antes de terem sido enviados em missão para pregar e curar. Está escrito: “E subiu ao monte (t ) 6 e chamou para si os que ele quis” — a subida obviamente se refere à ocasião em que Jesus subiu antes de pregar seu grande discurso. Marcos continua: “E nomeou doze para que estivessem com ele e os mandasse a pregar e para que tivessem o poder de curar as enfermidades e expulsar os demônios”. Aqui há uma alusão feita a uma intenção da parte de Crist® de enviar seus discípulos em uma missão, mas a intenção não é representada e imediatamente executada. Nem pode ser dito que a execução imediata esteja implícita, embora não tenha sido expressa; o evangelista faz um relato da missão como consta em vários capítulos seguintes em seu Evangelho, iniciando com estas palavras: “Chamou a si os doze, e começou a enviá-los de dois a dois...”7. Deve ser considerado, então, como toleravelmente certo, que o cha­ mado dos doze tenha sido um prelúdio à pregação do grande sermão sobre o reino, em cuja fundação eles teriam, posteriormente, uma parti­ cipação ainda mais distinta. Não podemos determinar com exatidão em que período do ministério de nosso Senhor o sermão em si deve ser precisamente alocado. Nossa opinião, contudo, é que o Sermão da M on­ tanha foi proferido próximo ao primeiro ministério prolongado de Cristo na Galiléia, durante o tempo passado entre as duas visitas a Jerusalém em ocasiões de festas mencionadas no segundo e no quinto capítulo do Evangelho de João8. O número da companhia apostólica é significativo e, sem dúvida, uma questão de escolha, assim como a composição daquele grupo sele­ to. Um número maior de homens elegíveis poderia ser facilmente en-

48

0 Treinamento dos Doze

contrado no círculo de discípulos que, mais tarde, não se tornou menor que setenta auxiliares na obra evangelística9; e um número menor pode ter servido a todos os propósitos presentes ou futuros do apostolado. O número doze foi recomendado por óbvias razões simbólicas. Expressava de uma forma feliz e figurada o que Jesus reivindicava ser e o que veio fazer e, deste modo, fornecia apoio à fé e estímulo à devoção de seus seguidores. Isto sugeriu de forma significativa que Jesus era o divino Rei messiânico de Israel, que veio para estabelecer o reino cujo advento fora anteriormente previsto pelos profetas em linguagem fervorosa, sugerida pelos dias de felicidade da história de Israel, quando a comunidade teocrática existia em sua integridade, e todas as tribos da nação escolhi­ da eram unidas sob a casa real de Davi. Sabemos que o número doze estava designado a conter tal significado espiritual através das próprias palavras de Cristo aos apóstolos em uma ocasião posterior, quando, ao descrever as recompensas que os esperavam no reino pelos serviços e sacrifícios prestados, Ele disse: “Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho «do Homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis sobre doze tronos, para jul­ gar as doze tribos de Israel”10. E possível que os apóstolos conhecessem muito bem a importância espiritual do seu número, e tenham encontrado nele o encorajamento para a terna e ilusória esperança de que a vinda do reino não deveria ser apenas um cumprimento espiritual das promessas, mas uma restauração literal de Israel em relação à sua independência e integridade política. O risco de tal equívoco era um dos obstáculos relacionados ao número doze em particular, mas não foi considerado por Jesus como uma razão suficiente para estabelecer outro. Seu método de procedimento nesse caso, como em todas as coisas, era continuar o que era verdadeiro e certo, e então corrigir os equívocos à medida que surgissem. Do número do grupo apostólico passamos para as pessoas que o compõem. Sete dos doze — os primeiros sete na lista de Marcos e Lucas, presumindo que Bartolomeu seja Natanael — são pessoas já conhecidas por nós. Dois dos cinco restantes — o primeiro e o último — conhece­ remos bem à medida que avançarmos na história.Tomé, chamado Dídimo ou o Gêmeo, aparece como um homem de coração terno, mas de tempe-

Os Doze

49

ramento melancólico, pronto para morrer por seu Senhor, mas lento para crer em sua ressurreição. Judas Iscariotes e conhecido em todo o mundo como o Traidor. Ele aparece pela primeira vez nessa lista de apóstolos com o título infame marcado em sua testa: “Judas Iscariotes, aquele que o traiu”. A presença de um homem capaz de trair entre os discípulos eleitos é um mistério no qual não devemos tentar penetrar. Meramente fazemos aqui uma observação histórica sobre Judas — ele parece ter sido o único não galileu entre os doze. Seu sobrenome veio aparentemente de seu lugar de origem, Queriote; e no livro de Josué podemos constatar que existia uma cidade com tal nome na fronteira do sul da tribo de Judá11. Os três nomes que restam são extremamente obscuros. Em bases fa­ miliares aos estudiosos da Bíblia, existem tentativas de identificar Tiago, filho de Alfeu, com Tiago, o irmão ou parente do Senhor. O próximo na lista de Mateus e Marcos é apontado por muitos como sendo o irmão deste Tiago, e assim, possivelmente um outro irmão de Jesus. Esta opinião é baseada no fato de, em lugar de Lebeu e Tadeu dos dois primeiros Evan­ gelhos, encontrarmos na lista de Lucas o nome Judas “... de Tiago”. A elipse nesta designação foi preenchida pela palavra irmão, e presume-se que o Tiago aludido seja Tiago, filho de Alfeu. Independentemente de quão tentador esses resultados possam ser, não podemos considerá-los como apurados, e devemos nos satisfazer com a idéia de que em meio aos doze havia um segundo Tiago, além do irmão de João e filho de Zebedeu, e também um segundo Judas, que novamente aparece como um interlocutor na conversa de despedida entre Jesus e seus discípulos na noite anterior à crucificação, cuidadosamente distinguido do traidor, pelo evangelista, através da anotação parentética: “não o Iscariotes”12. Este Judas, que é o próprio Lebeu ou Tadeu, foi chamado de discípulo de três nomes13. O discípulo a quem reservamos o último lugar, como aquele que fica no topo de todas as listas, é Simão. Este segundo Simão é desconhe­ cido, enquanto o primeiro é notório, porque não é mencionado na his­ tória do evangelho, exceto nas listas dos apóstolos; e assim, pouco se sabe a respeito dele, o apelido anexado ao seu nome leva a uma informa­ ção curiosa e interessante. Ele é chamado de kananita (não de cananita), o que é uma designação política e não geográfica, como consta no termo

50

O Treinamento dos Doze

grego que Lucas usou para substituir o termo hebraico, chamando o discípulo do qual falamos de Simão, o zelote. Este apelido, zelote, rela­ ciona Simão indiscutivelmente ao famoso partido que surgiu da rebelião sob a coordenação de Judas nos dias da taxação14, aproximadamente vinte anos antes do mício do ministério de Cristo, quando*a Judéia e Samaria ficaram sob o comando direto do governo de Roma, e o censo populacional foi feito com a intenção de se impor uma tributação subse­ qüente. Que fenômeno singular foi a presença desse ex-zelote entre os discípulos de Jesus! Dois homens não poderiam diferir mais em relação ao seu espírito, metas, e pretensões do que Judas (o líder dos zelotes) e Jesus de Nazaré. Um era um político descontente; o outro, completa­ mente vencedor, daria a César o que era de César. O primeiro desejava a restauração do reino de Israel, adotando como lema: “Nós não temos um Senhor ou Mestre, exceto Deus”; o segundo desejava a fundação do reino que não era nacional, e sim universal; não deste mundo, e sim “puramente espiritual”. Os métodos empregados pelos dois eram tão diferentes quanto os seus objetivos e fins. Um havia recorrido às armas carnais de guerra, a espada e o punhal; o outro confiava apenas na força bondosa e amável, porém onipotente, da verdade. Não sabemos o que levou Simão a deixar Judas (o líder dos zelotes) para seguir Jesus; mas ele fez uma troca feliz para si, pois anos depois o partido que ele abandonou atraiu a ruína para si e seu país devido a seu patriotismo fanático, inconseqüente e inútil. Embora a insurreição de Judas fosse subjugada, o fogo do descontentamento ainda queimava no peito dos seus adeptos; e com o tempo, eclodiu na fogueira de uma nova rebelião, que fez surgir uma luta mortal contra o poder gigantesco de Roma, e terminou na destruição da capital do judaísmo, e na dispersão do povo judeu. A escolha desse discípulo para ser um apóstolo fornece uma outra ilustração do desprezo de Cristo pela sabedoria humana. Não era seguro transformar um ex-zelote em um apóstolo, porque ele poderia ser o meio de transformar Jesus e os seus seguidores em objetos de suspeitas políticas. Mas o Autor da nossa fé estava disposto a correr este risco. Ele desejava ganhar tanto discípulos das classes perigosas como das classes desprezadas, e queria que também estivessem representados entre os doze.

51

Os Doze

É uma surpresa agradável pensar que Simão, o zelote, e Mateus, o publicano, homens de posições opostas, estivessem juntos e em comu­ nhão naquele pequeno grupo de doze pessoas. N a pessoa desses dois discípulos os extremos se tocam — o ex-coletor de impostos e aquele que odiava os impostos: o judeu que não era patriota, que havia se degra­ dado ao se tornar um servo do governante estrangeiro, e o judeu patrio­ ta, que se irritava com o domínio estrangeiro, e suspirava pela emancipa­ ção. Esta união dos opostos não era acidental, mas havia sido designada por Jesus como uma profecia daquilo que aconteceria no futuro. Ele desejava que os doze fossem a igreja em miniatura ou como o seu em­ brião; e assim, Ele os escolheu para que a distinção entre publicanos e zelotes não existisse, e então na igreja do futuro não deveria haver nem gregos nem judeus, circuncisão ou incircuncisão, escravos ou livres, mas somente Cristo — Ele é tudo em todos e todos estão nele. Estes eram os nomes dos doze conforme consta nas listas dos evangelistas. Quanto à ordem são apresentados, examinando-se cautelo­ samente as listas, podemos observar que elas contêm três grupos de qua­ tro pessoas, e em cada um deles os mesmos nomes são sempre encontra­ dos, embora a ordem não seja a mesma. O primeiro grupo inclui aqueles que são mais conhecidos, o segundo inclui aqueles que são pouco menos conhecidos, e o terceiro inclui aqueles que são os menos conhecidos de todos, exceto no caso do traidor, que ficou muito bem conhecido. Pedro, a figura mais proeminente entre os doze, está no topo de todas as listas, e Judas Iscariotes no rodapé, cuidadosamente designado, conforme já foi observado, como o traidor. O rol apostólico, a partir da ordem fornecida em Mateus, e empregando os cognomes característicos da his­ tória do evangelho como um todo, é o seguinte: P R IM E IR O G R U PO Sim ão Pedro

O hom em de pedra

A ndré

Irm ão de Pedro

T iago e João

Filhos de Zebedeu, e filhos do trovão

52

0 Treinamento dos Doze

SE G U N D O G R U PO F ilip e

O in q uirid o r sincero

Bartolom eu ou N atanael

O israelita em quem não havia dolo

Tomé

O m elancólico

M ateus

O publicano (assim cham ado apenas por si m esm o)

T E R C E IR O G R U PO T iago (filh o ) de A lfeu

(T iago o menor? M arcos 1 5 .4 0 )

L ebeu.T adeu, Judas de T iago

O discípulo que tin h a três nomes

Sim ão

O zelote

Judas, o hom em de Q ueriote

O traido r

Estes foram os homens que Jesus escolheu para o acompanharem enquanto estivesse nesta terra, e para dar continuidade à sua obra depois de sua partida. Estes são os homens que a igreja celebra como “a compa­ nhia gloriosa dos apóstolos”. O louvor é merecido; mas a glória dos doze não era deste mundo. Sob um ponto de vista mundano, alguns podem considerá-los, de fato, uma companhia insignificante — um grupo de pobres e iletrados galileus provincianos, totalmente desprezados, pri­ vados das características sociais mais elevadas, com mínimas chances de serem escolhidos por alguém que valorizasse as considerações da pru­ dência. Por que Jesus escolheu tais homens? Teria Ele sido levado por sentimentos de antagonismo por aqueles que possuíam vantagens soci­ ais, ou uma predileção por homens de sua própria classe? Não; sua esco­ lha foi feita com base na verdadeira sabedoria. Se Ele escolheu principal­ mente os galileus, não foi por preconceito provincial contra aqueles do sul; se, como algumas pessoas pensam, Ele escolheu dois ou mesmo quatro15 de seu próprio parentesco, não foi por nepotismo; se Ele esco­ lheu homens rudes, ignorantes, humildes, não foi movido pela inveja do conhecimento, da cultura, ou da boa origem. Se qualquer mestre, ho-

Os Doze

53

mem rico, ou governante estivesse disposto a se entregar sem reservas ao serviço do reino, nenhuma objeção teria sido feita a ele em virtude de suas habilidades, posses ou títulos. O caso de Saulo de Tarso, o pupilo de Gamaliel, prova a verdade dessa afirmação. Nem mesmo o próprio Gamaliel poderia ter impedido que Paulo se tornasse um discípulo do Nazareno. Mas sim! Nem ele nem nenhuma de suas ordens chegariam tão longe. Por esta razão o desprezado Senhor não teve nenhuma opor­ tunidade de mostrar sua disposição de aceitá-los como díscípulos e escolhê-los como apóstolos. A verdade é que Jesus quis se contentar com pescadores, publicanos, e antigos zelotes como apóstolos. Eles eram o melhor que se poderia obter. Aqueles que se consideravam melhores, eram também muito or­ gulhosos para se tornarem discípulos, e por isso se excluíram do que o mundo considera agora como a honra de serem os príncipes escolhidos do reino. A aristocracia civil e religiosa se gabava de sua descrença16. Os cidadãos de Jerusalém se sentiram, por um momento, interessados no jovem entusiasta que havia purificado o templo com um chicote de cor­ reias curtas; mas a fé deles era superficial e sua atitude era defensiva, e por isso Jesus não se entregou a eles, porque sabia o que havia no interior de cada um deles17. Alguns poucos eram simpatizantes sinceros, mas não estavam decididos quanto ao seu ingresso na eleição para o apostolado. Nicodemos mal era capaz de dizer uma tím ida palavra apologética a favor de Cristo, e José de Arimatéia foi um discípulo “secretamente”, por medo dos judeus. Estes dificilmente seriam os ho­ mens certos para ser enviados como missionários da cruz — homens tão presos aos laços sociais e conexões partidárias, e tão escravizados pelo medo dos homens. Os apóstolos do cristianismo devem ser feitos de material rígido. E assim Jesus preferiu optar pelos homens da Galiléia: rústicos, po­ rém simples, sinceros e motivados. E Ele ficou bastante satisfeito com sua escolha, e devotadamente agradeceu a seu Pai por ter-lhe concedido homens como esses. Jesus não desprezaria a erudição, a posição, a rique­ za, o requinte, voluntariamente deixados em razão de seu serviço; mas preferia homens devotos que não tivessem nenhuma dessas vantagens a homens não devotos que tivessem todas elas. E com uma forte razão;

54

0 Treinamento dos Doze

isso importava muito pouco, exceto aos olhos do preconceito contem­ porâneo, para o qual a posição social ou mesmo a história prévia dos doze teria algum significado. O importante é que eram espiritualmente qualificados para o trabalho que foram chamados a fazer. Ou seja, o que importa não é o exterior do homem, mas o seu interior. João* Bunyan foi um homem de origem simples, de posição inferior, e até à sua conversão tinha hábitos pouco louváveis; mas era por natureza um homem capaci­ tado e, pela graça, um homem de Deus. Ele teria se tornado — como de fato foi — um dos apóstolos mais eficientes. Alguém pode argumentar que nenhum dos doze foi tão dotado quanto Bunyan. De fato, a julgar pela obscuridade que envolve alguns deles, e o silêncio da história a seu respeito, não sendo destacados nem por sua alta qualificação ou por sua grande carreira, poderiam ser consi­ derados, por alguns, como inúteis. Como esta objeção contesta frontalmente a sabedoria da escolha de Cristo, podemos dizer que não está de acordo com a verdade18. Submetemos as seguintes considerações em re­ lação a este ponto de vista: I) Não se pode negar que alguns dos apóstolos eram comparativa­ mente desconhecidos, homens aparentemente inferiores aos seus com­ panheiros de ministério; porém mesmo os menos afamados dentre eles podem ter sido mais úteis como testemunhas daquele a quem estavam acom­ panhando desde o início. Não é necessário ser um grande homem para ser uma boa testemunha, e ser testemunha dos fatos cristãos era o mais importante para os apóstolos. Não devemos duvidar que mesmo o ho­ mem mais humilde dentre eles tenha prestado um serviço importante com sua capacidade, embora nada tenha sido dito sobre o tal nos escri­ tos apostólicos. Não se deveria esperar que a história tão fragmentada e tão breve como aquela narrada por Lucas mencionasse alguém além dos personagens principais, especialmente quando refletimos como são pou­ cos os que aparecem no palco em quaisquer crises particularmente rela­ cionadas aos assuntos humanos, e são proeminentemente notados até mesmo em relatos detalhados de acontecimentos. O propósito da histó­ ria é servido pelo registro das palavras e atos de homens representativos, e muitos que fizeram coisas nobres em suas vidas podem cair no esque­

Os Doze

55

cimento. Os membros menos distintos do grupo apostólico contribuem em benefício dessa reflexão. 2) Três homens eminentes, ou mesmo dois (Pedro e João), dentre os doze, é uma boa parcela. Havia poucas sociedades nas quais a excelên­ cia superior tinha uma proporção tão elevada em relação à média. Talvez o número de “pilares”19 fosse tão grande quanto o desejável. Longe de lamentar que nem todos fossem como Pedro e João, devemos, ao contrá­ rio, ser gratos por ter existido uma diversidade de dons entre os primei­ ros pregadores do evangelho. Uma regra geral nos diz que não é bom quando todos são grandes líderes. Homens de menor destaque são tão necessários quanto os grandes homens; a natureza humana é unilateral, e há homens de menor projeção que têm suas virtudes e dons peculiares, podendo fazer algumas coisas melhor que seus irmãos mais célebres. 3) Devemos nos lembrar que sabemos muito pouco sobre qualquer um dos apóstolos. E moda entre alguns biógrafos escrever para um pú­ blico ocioso, entrando em pormenores particulares de um evento ou em peculiaridades pessoais relacionadas aos seus heróis. Não existe nenhum traço dessa afeição idólatra nas histórias evangélicas. Os escritores dos Evangelhos não eram aficionados pela mania da biografia. Além disso, os apóstolos não eram o seu tema. Cristo era o seu herói; e seu único desejo era contar o que sabiam a respeito dele. Eles olharam tão fixa­ mente para o Sol da Justiça e para o seu esplendor, que perderam de vista as estrelas auxiliares. Faz pouquíssima diferença saber quais dentre eles eram estrelas de primeira magnitude, ou de segunda, ou de terceira.

1 Marcos 3.13. O verbo epoiêse, “feito”, é usado aqui com o mesmo sentido de Hebreus 3.2, “sendo fiel ao que o constituiu” ( tõ poiêsanti auton ). Algumas traduções como a Versão Revisada em inglês traduzem este termo como “designou”. 2 Mateus 10.27 ° João 6.4 4 João 6.70, conforme aVersao Revisada. ^ Lucas 6.13 comparado com o verso 17, onde Lucas apresenta o nome “apóstolos” como ordenado por Cristo: “a quem também deu o nome de apóstolos” (versículo 13). ^ Esta expressão é usada por todos os smópticos. Parece significar uma região montanhosa e não uma colma em particular. ' Marcos 6.7

56

0 Treinamento dos Doze

8 De acordo com Ebrard, na obra Gosp. History., Ewald coloca a eleição depois do banquete de João 5. 9 Essa missão dos setenta é considerada por Baur, e outros da mesma escola, como pura invenção do terceiro evangelista, com a intenção de lançar os doze na obscuridade, e para servir à causa do universalismo paulino. Esta opinião é inteiramente arbitrária. Mesmo supondo que concordássemos com Baur, o ponto ainda permaneceria verdadeiro, conforme foi declarado no texto, que Cristo poderia ter tido mais que os doze apóstolos que desejou. 10 Mateus 19.28. Keim reconhece o número doze como sendo de significado simbólico, conforme declarado no texto, contra Schleiermacher, que o considerava puramente acidental. — GeschichteJesu von Nazara, 2.304. 11 Josué 15.25. Veja Renan, Vie de Jésus, p. 160 (13° edição). Ewald ( Cbristus, p. 398) pensa que Queriote é Cartá, na tribo de Zebulom (Js 21.34). Se Judas fosse da Judéia, poderia ter se tornado discípulo na ocasião da visita de Cristo ao Jordão, mencionada em João 3.22. 12 João 14.22 13 Ewald ( Cbristus, p. 399) pensa que Lebeu e Judas eram pessoas diferentes, e que o primeiro havia morrido durante a época em que Cristo estava vivo, e que Judas havia sido escolhido para ocupar o seu lugar. 14 Atos 5.37 15 Mateus ou Levi, sendo filho de Alfeu, era supostamente irmão de Tiago e Simão, o zelote, mencionado como Simão em Mateus 13.55 16 João 7.48 17 João 2.23-25 18 Keim diz que Jesus foi verdadeiramente humano ( àcht menschlich), tendo se equivocado em relação a seus discí­ pulos até um certo ponto. Este escritor pensa que eles não se tornaram os homens que Jesus esperava. A observação ocorre em relação à missão na Galiléia. — Geschicbte Jesu von Nazara, 2.332 19 Este título é dado a Pedro, Tiago, e João por Paulo em sua epístola aos Gálatas (2.9). Por isso, na literatura de Tübingen, devotada à sustentação da teoria-conflito, estes três são chamados de “apóstolos-pilares”.

58

0 Treinamento dos Doze

o que vós vedes, pois vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vós vedes e não o viram; e ouvir o que ouvis e não o ouviram”1. Algumas gerações de Israel tinham visto coisas extraordinárias: uma tinha visto as maravilhas do Exodo, e coisas sublimes com relação às tábuas da Lei no Monte Sinai; outra, os milagres feitos por*Elias e Eliseu; e gerações sucessivas tinham sido privilegiadas por ouvirem os não me­ nos maravilhosos oráculos de Deus, proferidos por Davi, Salomão, Isaías, e os demais profetas. Mas as coisas testemunhadas pelos doze apóstolos eclipsaram as maravilhas de todas as eras passadas; pois Alguém maior que Moisés, Elias, Davi, Salomão ou Isaías esteve aqui, e a promessa para Natanael havia sido cumprida. O céu havia sido aberto e os anjos de Deus — os espíritos da sabedoria, poder e amor — estavam subindo e descendo sobre o Filho do Homem. Aqui podemos fazer um rápido exame da mimbilia que era o privilé­ gio peculiar dos doze apóstolos quanto a ver e ouvir, mais ou menos durante todo o período do seu discipulado, e especialmente logo após a sua eleição. Isso pode ser compreendido nos dois tópicos principais: a Doutrina do Reino, e o Trabalho Filantrópico do Reino. I ) Antes de o ministério de Jesus começar, seu antecessor havia aparecido na região despovoada da Judeia pregando e dizendo: “Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus (M t 3.2)”. Algum tempo depois de sua eleição, os doze apóstolos foram enviados para as cidades e vilas da Galiléia para repetir a mensagem de João Batista. Mas o próprio Senhor Jesus fez algo mais que proclamar a chegada do reino. Ele explicou a natureza do reino divino, descreveu o caráter dos seus cidadãos e estabeleceu a diferença entre os genuínos e os falsos membros da comunidade divina. Isso Ele fez parcialmente no que é comumente chamado de Sermão da Montanha, proferido logo após a eleição dos apóstolos, e parcialmente em certas parábolas proferidas aproximada­ mente no mesmo período2. No extenso discurso feito no topo da montanha, as qualificações para a cidadania no reino dos céus foram explicadas, primeiro positiva­ mente, e então comparativamente. A verdade positiva foi resumida em sete sentenças áureas chamadas Beatitudes, nas quais a felicidade do reino era representada independen­

Ouvindo e Vendo

59

temente das condições exteriores e com as quais a felicidade no mundo está associada. Os bem-aventurados, de acordo com o Senhor, eram os pobres de espírito, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, os pacificadores e os que sofrem perseguição por causa da justiça (M t 5 .3-11). Dessa manei­ ra eles eram abençoados, e fonte de bênçãos para a raça humana: o sal da terra, a luz do mundo aumentava sobre outros em espírito e caráter, para elevá-los, e levá-los a glorificar a Deus. Depois, com mais detalhes, Jesus apresentou a justiça do reino e dos seus verdadeiros cidadãos, em contraste com o que tinha prevalecido. “Se a vossa justiça”, Ele disse solenemente e com ênfase, “não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no Reino dos céus” (M t 5.20); e então ilustrou e reforçou a proposição geral com uma deta­ lhada descrição da falsidade em seus aspectos morais e religiosos: em seu modo de interpretar a lei moral, e em sua maneira de executar tarefas piedosas, como orações, esmolas e jejuns. Em um aspecto Ele caracteri­ zou a justiça dos fariseus como superficial e técnica; em outro, como ostentadora, autocomplacente e censuradora. Em contraste com isso, Ele descreveu a ética do reino como um puro fluxo da vida, tendo a cari­ dade como sua fonte principal: a moralidade do coração, não meramen­ te da conduta exterior; um moralismo também amplo e universal, ultra­ passando todas as barreiras arbitrárias erguidas pelo pedantismo e egoís­ mo natural. Ele explicou a religião do reino como humilde, reservada, devotada do fundo do coração a Deus e às coisas celestiais. Devemos ter fé em Deus como um Pai gentil e benevolente, e contentamento, alegria, e liberdade em relação aos cuidados seculares como seus frutos. Final­ mente, reservados em nossa conduta para com o profano, adversos à severidade no julgar, e não julgando de modo nenhum, deixando que os homens sejam julgados por Deus. O discurso, do qual fizemos um rápido resumo, causou um podero­ so impacto nos ouvintes. “A multidão”, lemos, “se admirou da sua dou­ trina, porquanto os ensinava com autoridade” (a autoridade da sabedo­ ria e da verdade) “e não como os escribas” (M t 7.28,29), que tinham meramente a autoridade que lhes era conferida por sua posição. Não é provável que a multidão ou os doze apóstolos tenham entendido o ser­

60

O Treinamento dos Doze

mão, pois foi profundo e grandioso, e suas mentes estavam ocupadas com idéias muito diferentes do reino que estava por vir. Contudo, a intenção de tudo o que foi dito era clara e simples. O reino do qual Jesus é tanto Rei quanto Legislador não é desse mundo: não está aqui ou ali, em espaço, mas dentro do coração do homem; não é um monopólio de nenhuma classe ou nação, mas aberto a todos os que o aceitarem, em termos iguais. Em nenhum momento foi dito no sermão que rituais para qualificação, como a circuncisão, fossem indispensáveis para a admissão no reino. Mas a circuncisão é aqui ignorada, como foi ignorada nos ensinamentos de Jesus. Ela é tratada simplesmente como algo fora de lugar, que não pode ser presa à doutrina estabelecida; uma incongruên­ cia cuja simples menção traria um sentido grotesco. A simplicidade e a verdade são tão evidentes que qualquer um pode perceber, rapidamente, que as Beatitudes não incluem nada como: Bem aventurados são os circuncidados, pois nenhum incircunciso entrará no Reino dos céus. Esse silêncio significativo em relação ao selo da aliança nacional não poderia deixar de causar dúvidas na mente dos discípujos; porém não fazia parte da nova aliança. Jesus procurou popularizar as importantes verdades que foram pri­ meiramente ensinadas de forma didática, em úm discurso ético, usando parábolas. No decorrer de seu ministério Ele usou muitas parábolas, sen­ do esta a sua forma favorita de instrução. Das trinta3 parábolas preserva­ das nos Evangelhos, a maioria foi de caráter ocasional, e são melhor compreendidas quando vistas em conexão com as circunstâncias em que foram usadas. Mas existem oito parábolas especiais que parecem ter sido proferidas no mesmo período, e designadas para servir a um objetivo; em outras palavras, para apresentar em simples ilustrações os excelentes temas do Reino dos céus em sua natureza e progresso, e em suas relações com as diversas classes dos homens. Uma dessas, a parábola do semea­ dor, aparentemente a primeira a ser proferida, mostra a diferente recep­ ção oferecida à palavra do Reino por várias classes de ouvintes, e os variados temas da vida deles. Duas — as parábolas do joio e do trigo e da rede lançada ao mar — descrevem a mistura dos bons e dos maus que deveria existir no Reino até o fim, quando acontecerá a grande separação final. Outro par de parábolas curtas — a do tesouro escondido em um

Ouvindo e Vendo

61

campo e a da pérola preciosa — explica a incomparável importância do Reino e da cidadania nele. Outras duas — a do grão de mostarda e a do fermento escondido em três medidas de farinha — explicam como o Reino avança de um início pequeno para um grande final. Uma oitava parábola, apenas encontrada no Evangelho de Marcos, ensina que o cres­ cimento no reino divino se dá em estágios, análogos à situação da erva, que se torna uma espiga, e, por último, o grão cheio na espiga4. Essas parábolas, ou a maioria delas, foram proferidas para uma audi­ ência mista; e considerando uma resposta de Jesus a uma pergunta feita pelos discípulos, pode parecer que elas foram principalmente dirigidas ao populacho ignorante. A pergunta foi: “Por que lhes falas por parábolas?” e a resposta, “a vós é dado conhecer os mistérios do Reino dos céus, mas a eles não lhes é dado” (M t 13.10); o que parece implicar que no caso dos doze apóstolos tais visões elementares da verdade — como um sermão tão simples, por assim dizer — podiam ser dispensadas. Jesus, no entanto, quis dizer que as parábolas não eram tão importantes para eles quanto para os ouvintes comuns; eram apenas alguns dentre os vários meios da graça pelos quais no final eles se tornariam escribas instruídos acerca do Reino, familiarizados com todos os seus mistérios, e capazes, como um sábio pai de família que tira do seu tesouro co isa s novas e velhas5; enquan­ to para as multidões as parábolas eram indispensáveis, como a única chance de ter um vislumbre dos mistérios do Reino. Fica claro que os doze apóstolos não estavam acima das parábolas pois perguntavam e recebiam do Mestre explicações a respeito delas, em particular. Provavelmente tenham recebido explicações de todas as pará­ bolas, embora apenas a interpretação de duas delas — a do semeador, e a do joio e do trigo — sejam apresentadas nos Evangelhos6. Ainda eram apenas como crianças; as parábolas eram lindas estórias para eles, mas talvez não as compreendessem em sua profundidade. Mesmo depois de terem recebido explicações particulares de seus significados, eles prova­ velmente não se tornaram mais sábios do que eram antes, embora te­ nham dito que estavam satisfeitos7. As palavras dos discípulos eram, sem dúvida, sinceras: eles falavam o que sentiam; mas falavam como crianças, entendiam como crianças, pensavam como crianças e tinham muito a aprender sobre esses divinos mistérios.

62

O Treinamento dos Doze

Quando as crianças atingiram a maturidade espiritual, e compre­ enderam totalmente esses mistérios, elas deram muito mais valor à felici­ dade que sentiram nos anos anteriores, e por serem privilegiadas de ou­ vir as parábolas de Jesus. Temos um interessante memorial da profunda impressão produzida em suas mentes por esses simples retratos do Rei­ no. Como reflexo de tudo isso, o primeiro evangelista finaliza o relato que faz dos ensinos de Cristo através de parábolas: “Tudo isso”, ele observa, “disse Jesus por parábolas... para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta, que disse: Abrirei em parábolas a boca; publicarei coisas ocultas desde a criação do mundo”8. A citação (do Salmo 78) diverge significativamente tanto do hebraico original quanto da versão da Septuaginta9. Mateus conscientemente adaptou as palavras para ex­ pressar a originalidade absoluta dos ensinos nos quais ele encontrou o cumprimento dessas Escrituras. Enquanto o salmista proferiu palavras obscuras dos tempos antigos da história de Israel, Jesus, em suas parábo­ las, falou de coisas que haviam estado ocultas desde a criação do mundo. Isso não foi um exagero da parte do evangelista. O uso de parábolas como um veículo de instrução era tudo, menos novo, porém as verdades expressas nas parábolas eram todas novas. Elas eram realmente a eterna verdade do Reino celestial, mas até os dias de Jesus ainda não haviam sido anunciadas. As coisas terrenas sempre tinham sido apropriadas para simbolizar as divinas; mas até o grande Mestre aparecer, ninguém jamais havia pensado em ligá-las, para que uma pudesse se tornar o espelho da outra, revelando as profundezas de Deus para as pessoas comuns: assim como ninguém, antes de Isaac Newton, havia pensado em ligar a queda das maçãs à revolução dos corpos celestes, embora as maçãs sempre ti­ vessem caído no chão desde a criação do mundo. 2 ) As coisas que os discípulos tiveram a felicidade de ver em cone­ xão com o trabalho filantrópico do Reino foram tão maravilhosas quan­ to aquelas que ouviram na companhia de Cristo. Eles foram testemu­ nhas oculares dos eventos que Jesus mandou os mensageiros de João reportarem ao seu mestre na prisão, como uma inquestionável evidência de que Ele era o Cristo que havia de vir10. Na presença deles, como espectadores, homens cegos ganharam a visão, aleijados andaram, lepro­ sos foram curados, surdos recuperaram a audição e pessoas mortas vol-

Ouvindo e Vendo

63

taram a viver. O desempenho de obras tão maravilhosas foi por um tem­ po a ocupação diária de Cristo. Ele andou pela Galiléia e por outras regiões, “fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo”11. Os “milagres” contados em detalhes nos Evangelhos não dão idéia da extensão e da duração dessas maravilhosas operações. O leproso curado na descida da montanha, quando o grande sermão foi proferido, o servo doente do centurião romano recuperado com saúde e força, a sogra de Pedro curada de uma febre, a libertação do endemoninhado na sinagoga de Cafarnaum, o filho da viúva trazido de volta à vida enquanto estava sendo levado para o enterro — esses, e outros semelhantes a esses, são algumas amostras selecionadas de uma incontável multidão de ações não menos extraordinárias, milagres ou atos de bondade do Senhor. A verda­ de dessa declaração aparece em parágrafos de freqüente recorrência nos Evangelhos, que relatam não milagres individuais, mas um número inde­ finido deles feitos em massa. De tais parágrafos tome como exemplo o seguinte, que narra as obras realizadas por Jesus no final de um dia ata­ refado: “E, tendo chegado a tarde, quando já estava se pondo o sol, trouxeram-lhe todos os que se achavam enfermos e os endemoninhados. E toda a cidade se ajuntou à porta. E curou muitos que se achavam enfermos de diversas enfermidades e expulsou muitos demônios”12. Isso foi o que aconteceu em um único entardecer de sábado em Cafarnaum, logo após o Sermão da Montanha; e tais cenas parecem ter sido comuns no ministério de Jesus, como podemos ler um pouco mais adiante no mesmo Evangelho: “E ele disse aos seus discípulos que lhe tivessem sempre pronto um barquinho junto dele, por causa da multidão, para que o não comprimisse, porque tinha curado a muitos, de tal maneira que todos quantos tinham algum mal se arrojavam sobre ele, para lhe tocarem”13. E ainda outra vez Marcos conta: “E foram para uma casa. E afluiu outra vez a multidão, de tal maneira que nem sequer podiam comer pão”14. A inferência sugerida nessas passagens como a vasta extensão dos trabalhos de Cristo entre os sofredores, surgiu pelas impressões que cau­ saram nas mentes tanto dos amigos quanto dos adversários. Os adversá­ rios do evangelho estavam tão impressionados com o que viam, que con­ sideraram necessário elaborar uma teoria para expressar o que pensa­ vam sobre a grande influência exercida por Jesus na cura do físico, espe­

64

O Treinamento dos Doze

cialmente na cura das enfermidades espirituais. Eles disseram: “Tem Belzebu e pelo príncipe dos demônios expulsa os demônios (M c 3.22)”. Esta era uma teoria absurda, como o próprio Senhor Jesus mostrou; mas foi pelo menos uma evidência conclusiva de que os demônios foram expulsos, e em grande quantidade. Os pensamentos dos afetados de maneira positiva pelas obras de Jesus foram vários, mas todos que foram relatados envolvem o testemu­ nho da sua vasta atividade e extraordinário zelo. Alguns, provavelmente parentes, consideraram-no louco, achando que o entusiasmo tinha per­ turbado a sua mente, e por compaixão procuravam salvá-lo para que não causasse nenhum dano a si mesmo através da excessiva solicitude de fa­ zer o bem a outros15. Os sentimentos das pessoas que tinham recebido os seus benefícios eram mais devotos. “E a multidão, vendo isso, mara­ vilhou-se e glorificou a Deus, que dera tal poder aos homens”16; não estavam, naturalmente, inclinados a criticar um “entusiasmo de humani­ dade” através do qual eles mesmos haviam sido beneficiados. As impressões contemporâneas dos doze apóstolos em relação às ações do seu Mestre não são registradas; mas em suas reflexões subse­ qüentes como apóstolos, temos uma interessante amostra nas observa­ ções feitas pelo primeiro evangelista, em seu relato dos acontecimentos daquela noite de sábado em Cafarnaum, já aludidas. O devoto Mateus, de acordo com o seu costume, viu nessas maravilhosas obras o cumpri­ mento das Escrituras do Antigo Testamento; e a passagem onde encon­ trou o cumprimento foi o tocante oráculo de Isaías: “Verdadeiramente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si” (Is 53.4); e, partindo da Septuaginta, ele o tornou adequado ao seu propósito, interpretando: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças”17. Alguns tradutores gregos interpretaram o texto como se referindo às enfermidades espirituais dos homens — os seus pecados18; mas Mateus não considerou uma interpretação errada nem uma degradação das palavras por encontrar nelas a profecia da pro­ funda solidariedade do Messias com sofredores de quaisquer enfermi­ dades, espirituais ou mentais, ou meramente físicas. Ele não sabia como expressar melhor a intensa compaixão do seu Senhor para com os sofre­ dores, do que representá-la em linguagem profética mostrando que Ele

Ouvindo e Vendo

65

tomou sobre si mesmo as nossas enfermidades. Mateus não distorceu o pensamento do profeta nessa interpretação. Antes, estabeleceu os alicer­ ces de uma inferência àfortiori em que mostrava uma simpatia ainda mais intensa por parte do Salvador para com os doentes espirituais. Certa­ mente, aquele que tanto cuidou dos corpos dos homens cuidaria ainda mais de suas almas. Com certeza seria seguro antecipar que Ele, que era tão admirável e conhecido como alguém que curava as enfermidades do corpo, se tornaria ainda mais famoso como aquele que salva dos pecados. As obras que os doze apóstolos tiveram o privilégio de ver eram realmente preciosas, e todas dignas do Rei Messiânico. Elas serviram para demonstrar que o Rei e o Reino não estavam apenas vindo, mas já tinham chegado; pois o que mais poderia indicar a sua presença que o perdão caindo como “chuva serôdia que rega a terra” (Os 6.3)? João realmente parece ter pensado o contrário quando mandou perguntar a Jesus se Ele era o Cristo que estava por vir. Em nossa opinião, ele pode ter considerado que um trabalho de julgamento sobre os impenitentes seria uma prov^ mais confiável da chegada do Messias, do que os mila­ gres de misericórdia. A situação de insatisfação e descontentamento de João, além do ambiente da prisão, subtraiu o melhor de seu coração e de sua capacidade de julgamento. João sentia o mesmo mau humor de Jonas, que estava descontente com Deus não porque Ele fosse muito severo, mas por ser excessivamente bondoso e extremamente disposto a perdoar. O menor no Reino dos céus mostra-se agora incapaz de sentir-se ofendido com essas obras de nosso Senhor, que são fruto de sua miseri­ córdia para com os necessitados. A ofensa em nossos dias está em dire­ ção diferente. Os homens erram quanto aos milagres vistos pelos discí­ pulos e relatados pelos evangelistas. A misericórdia, dizem, é divina, mas os milagres são impossíveis; e pensam que fazem bem ao serem céticos. Fazem uma exceção, realmente, a favor de alguns milagres de cura, por­ que não é considerado impossível que estes possam acontecer no curso da natureza, e assim deixarem de pertencer à categoria dos milagres. Os “terapeutas morais” podem contribuir para essa situação -— um depar­ tamento de ciência médica que o senhor Matthew Arnould pensa não ter sido ainda de modo algum suficientemente estudado19. Todos os outros milagres além daqueles trabalhados por terapeutas morais são conside­

66

0 Treinamento dos Doze

rados fabulosos. Mas por que não estender o domínio da moral sobre o físico e dizer sem qualificação: A misericórdia faz parte do caráter de Deus, portanto obras como aquelas que foram feitas por Jesus poderiam ser consideradas naturais? Assim consideram os escritores do Evange­ lho. O que lhes interessava não era o aspecto sobrenatural das curas e milagres realizados por Cristo, mas a insondável e incomensurável pro­ fundidade da divina compaixão que elas revelaram. Alguns pensam que não há vestígios desse amor nessas maravilhas, nem nos Evangelhos nem nas Epístolas; para estes, os discípulos talvez tenham experimentado esse sentimento quando a época das maravilhas explodiu pela primeira vez diante de seus olhos atônitos, mas perderam-no completamente quando os livros do Novo Testamento começaram a ser escritos20. Ao longo do Novo Testamento os milagres são contados de maneira sóbria, em um tom equilibrado. Como isso pode ser explicado? Uma explicação é que os apóstolos tinham visto tantos milagres enquanto estiveram com Je­ sus, que não os expressaram com a ênfase esperada. Alguns entendem que eles já não se maravilhavam como dufante os primeiros milagres, por terem visto muitos milagres. Mas nunca deixaram de admirar a gra­ ça do Senhor. O amor de Cristo permaneceu neles durante toda a vida como algo que lhes transmitia conhecimento; e quanto mais viviam, mais reconheciam cordialmente a verdade das palavras de seu Mestre: “Bemaventurados os olhos que vêem o que vós vedes” (Lc 10.23).

1 Lucas 10.23-24. Os autores da Versão Revisada introduziram muitas mudanças na Versão Autorizada pela estrita interpretação dos tempos verbais, e especialmente os aoristos, os quais na versão antiga são freqüentemente tratados como perfeitos. Podem ter levado isso muito adiante, mas, no todo, prestaram um bom serviço neste particular. 2 Fica claro em Marcos 10.10 que a eleição dos doze apóstolos precedeu as parábolas: “Os que estavam junto dele com os doze interrogaram-no acerca da parábola”. 3 Esse número é apenas uma estimativa aproximada. Os diferentes escritores estimam um número diferente de parábolas, de acordo com a definição de parábola adotada por cada um deles, bem como o método de tratar a coleção de parábolas. 4 Marcos 4.26 5 Mateus 13.52 6 Marcos 4.34 7 Mateus 13.51 8 Mateus 13.34-35 9ereuxomai kekrummena apo katabolês kosmou (M ateus); ’abbiâ lídótb minni~qedem (hebraico); phtbenxomaiproblemata ap’arcbes (Septuaginta)

Ouvindo e Vendo

67

10 Mateus 1 1.2 11 Atos 10.38 12 Marcos 1.32-34 13 Marcos 3.9-10 f ^ Marcos 3 .1 9 — 'br- ^ 15 Marcos 3.21 16 Mateus 9.8 17 Mateus 8.17 18 boutos tas hamartias hêmõn pberer 19 literature and Dogma, página 143, 4 a edição. 20 Isaac Taylor, na obra The Restauration o f Belief, encontra nesse fato um argumento para a realidade dos milagres, alegando que a maneira pela qual são relatados nas Escrituras mostra que foram fatos gloriosos e excelentes para a época (vide páginas I2 8 -2 II).

14

Mc

Lições sobre a Oração Mateus 6 .5 -13; 7 .7 -1 1; Lucas I I .I - I 3 ; I8 .I-5

T

JL eria sido motivo de surpresa se, entre os vários assuntos sobre os

quais Jesus deu instruções aos seus discípulos, a oração não tivesse ocu­ pado um lugar proeminente. A oração é uma necessidade na vida espiri­ tual, e todos aqueles que tentam orar seriamente, logo sentem a necessi­ dade de aprender como fazê-lo. E qual seria o tema que estaria mais de acordo com os pensamentos de um Mestre que foi, enfaticamente, um homem de oração e freqüentemente passava noites inteiras orando em comunhão com o seu Pai celestial?1 Concluímos, de acordo com este raciocínio, que a oração era um assunto sobre o qual Jesus conversava freqüentemente com os seus discí­ pulos. No Sermão da Montanha, por exemplo, Ele dedicou um parágra­ fo inteiro a esse tópico, no qual alertou seus ouvintes contra as ostenta­ ções hipócritas dos fariseus e as repetições gentílicas, e recitou uma for­ ma de devoção como um modelo de simplicidade, compreensão e brevi­ dade2. Em outras ocasiões, Ele direcionou a atenção à necessidade, a fim de que a oração fosse constante e aceitável trazendo perseverança3, har­ monia4, o fortalecimento da fé5, e grande expectativa6. A passagem relacionada ao décimo primeiro capítulo do Evangelho de Lucas nos dá uma explicação sobre aquela que pode ser considerada a mais completa e abrangente de todas as lições dadas por Jesus aos seus discípulos, sobre o importante assunto com o qual está relacionada. As circunstâncias em que essa lição foi dada são interessantes. A própria lição sobre a oração foi uma resposta a uma oração. Um discípulo, pro­ vavelmente um dos doze apóstolos7, depois de ouvir Jesus orar, fez o

70

O Treinamento dos Doze

seguinte pedido: “Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensi­ nou aos seus discípulos”. Juntos, o pedido e sua ocasião, nos dão duas informações. Do pedido percebemos que Jesus, além de orar muito sozi­ nho, também orava na companhia de seus discípulos, fazendo orações familiares como um pai de família, da mesma forma que fqzia suas ora­ ções em particular, em comunhão pessoal com Deus, seu Pai. Da oca­ sião, percebemos que as orações sociais ou públicas de Jesus eram comoventes. Ao ouvi-las os discípulos ficaram dolorosamente conscien­ tes de sua própria incapacidade, e depois do amém mostraram-se instin­ tivamente prontos a fazer o seguinte pedido: “Senhor, ensina-nos a orar”, como se sentissem vergonha de tentar o exercício com suas próprias palavras fracas, vagas e intermitentes. Não sabemos quando essa lição foi dada, pois Lucas introduz sua narrativa sobre esse tema de maneira mais indefinida, sem mencionar nem a ocasião, nem o lugar. A referência a João Batista, no passado, parece indicar uma data subseqüente à de sua morte; mas o modo da expressão seria suficientemente explicado pela suposição de que o discí­ pulo que fez o pedido havia previamente sido um discípulo de João Batista8. Nenhuma inferência correta pode ser extraída do conteúdo dessa lição. E uma lição que deve ter sido dada aos doze apóstolos em qual­ quer época durante o seu discipulado, quando estavam preocupados com as suas necessidades espirituais. Esta é uma lição para “crianças”, ou seja, cristãos no estágio inicial da vida com Deus, aqueles que estão aflitos, mentalmente confusos, emudecidos, abatidos, incapazes de orar com pensamentos claros, palavras apropriadas, e acima de tudo, com a fé que ensina a esperar sem perder a esperança. E ela supre as suas necessi­ dades sugerindo tópicos, ensinando formas de linguagem, e preenchen­ do a sua fraca fé com argumentos convincentes sobre a perseverança. Essa era a situação dos doze apóstolos durante o período que estiveram com Jesus, até Ele ascender ao céu, e o poder descer do céu sobre eles trazendo consigo a facilidade para falar e a largueza de coração. Durante todo o período de seu discipulado, precisavam estar preparados para orar como uma mãe que está sempre preparada para atender os seus filhos. Precisavam também de exortações à perseverança no hábito de orar, assim como convém aos mais humildes seguidores de Cristo. Lon-

Lições sobre a Oração

71

ge de estarem isentos de tais fraquezas, os doze apóstolos talvez até tenham tido essa experiência em um grau superlativo. Quando se trata das experiências espirituais, os pontos mais altos estão relacionados à profundidade tanto da dedicação quanto da experiência. Homens que são destinados a ser apóstofos devem, como discípulos, ter a grande capacidade de enfrentar condições caóticas e indescritíveis, conhecendo a grande e cansativa, porém a mais saudável tarefa que é esperar de Deus a luz, a verdade e a graça, tão desejadas, e às vezes contidas. Convinha à igreja que os seus primeiros ministros tivessem essas lições sobre a oração; porque chega a hora, na maioria dos casos, se não em todos, em que aqueles que estão espiritualmente determinados pre­ cisam da grande oportunidade de ter esse ensino. N a primavera da vida com Deus e no belo florescer da piedade, os cristãos poderão orar com fluência e fervor, sem qualquer embaraço de palavras, pensamentos, e sentimentos de qualquer espécie. Mas esse estágio feliz logo passa, e é sucedido por outro no qual a oração freqüentemente se torna um gran­ de esforço, um gemido mal articulado, um silêncio angustiado e deses­ perado que aguarda a Deus, fazendo com que sintam-se tentados a duvi­ dar de que Deus realmente ouve as orações, ou ainda a questionar se as orações não são perda de tempo ou até mesmo inúteis. As três necessida­ des contempladas e providas nessa lição — a necessidade de idéias, de palavras, e de fé — são tão comuns quanto dolorosas. Quanto tempo é necessário para atender até o mais simples pedido da oração do “Pai Nosso” com o seu significado definitivo! O segundo pedido, por exem­ plo, “Venha o teu Reino”, pode ser apresentado com perfeita inteligên­ cia apenas por, dessa maneira, ter formado para eles mesmos uma clara concepção do Reino ou da comunidade ideal. Quão difícil e, portanto, quão raro, é encontrar palavras aceitáveis para pensamentos preciosos calmamente alcançados! Quantos, que nunca conseguiram o que deseja­ ram sem ter precisado pedir com freqüência e esperado muito para recebêlo (uma experiência comum), sentiram-se tentados, por causa da demo­ ra, a desistir de pedir mesmo em meio ao desespero! E não é de admirar; porque, em todos os casos, é difícil suportar a demora, especialmente em conexão com as bênçãos espirituais que são, de fato, e por Cristo, aqui admitidas como o principal objeto de desejo dos cristãos. Almas

72

O Treinamento dos Doze

devotas não deveriam ser confundidas pela demora, ou até pela recusa com relação aos bens meramente temporários; porque deveriam saber que coisas como saúde, riqueza, cônjuge, filbos, lar e posição, não são incondicionalmente boas, e às vezes pode ser bom não tê-las, ou ainda não obtê-las tão facilmente ou muito cedo. Porém alguém pode se sentir ainda mais confuso ao desejar, de todo o coração, o Espírito Santo e, contudo, essa bênção de valor incalculável parecer ter-lhe sido negada; orar pela luz e ao invés dela receber a profunda escuridão; orar por fé e ser atormentado com dúvidas que balançam estimadas convicções em seus alicerces; orar por santidade e ter, aparentemente, a lama da corrupção lançada na fonte da vida eterna que está no fundo do coração.Tudo isso, como todo cristão experiente sabe, ainda é parte da disciplina pela qual os estudantes da escola de Cristo têm que passar antes dos desejos de seu coração serem realizados9. A lição sobre a oração, ensinada por Cristo em resposta ao pedido de seus discípulos, consiste em duas partes; em uma delas os pensamen­ tos e as palavras são colocados nas bocas d©s discípulos imaturos, en­ quanto a outra provê ajuda na fé em Deus, por ser aquele que atende as orações. Existe primeiro uma forma de orar, e então um argumento re­ forçando a perseverança na oração. A forma de orar, normalmente chamada de “Pai Nosso”, que apa­ rece no Sermão da Montanha como um modelo do tipo certo de ora­ ção, traz um resumo dos tópicos gerais sob os quais todo pedido especi­ al está compreendido. Podemos chamar essa forma de alfabeto de todas as possíveis orações. Ela engloba os elementos de todos os desejos espiritu­ ais, resumidos em algumas sentenças escolhidas, para o benefício daque­ les que podem não ser capazes de expressar suas difíceis aspirações com uma linguagem articulada. Ela contém ao todo seis pedidos, dos quais os três primeiros se referem à glória de Deus, e os três restantes ao bem do homem. Somos ensinados a orar primeiro pela vinda do Reino divi­ no, na forma de reverência universal ao nome de Deus, e obediência universal à sua vontade; e então, em segundo lugar, pelo pão cotidiano, perdão, e proteção contra o mal. Esta oração é, como um todo, direcionada a Deus como o nosso Pai, e devemos agir de acordo com esse preceito para termos comunhão uns com os outros, como membros de uma fa-

Lições sobre a Oração

73

mília Divina, e assim dizermos: “Pai Nosso”. Esta oração não termina com as palavras, “em Nome de Jesus Cristo”, e nem poderia, uma vez que ela procede de Jesus. Nenhuma oração ensinada pelo Senhor aos seus discípulos, para ser proferida antes de sua morte, poderia terminar com tais palavras finais, porque a súplica que ela conteria não seria inte­ ligível para eles antes daquele evento. Os doze apóstolos ainda não co­ nheciam completamente o poder do Nome de Jesus Cristo; somente o conheceriam depois do seu Senhor ter ascendido e o Espírito ter desci­ do e lhes revelado o verdadeiro significado dos fatos da história de Jesus Cristo na terra. Por esta razão, encontramos Jesus, na noite de sua Pai­ xão, dizendo aos seus discípulos que até aquela hora eles não tinham pedido nada em seu nome; e então representou o uso do seu nome como uma súplica que seria ouvida, como um dos privilégios que teriam no futuro. “Até agora”, Ele disse, “nada pedistes em meu nome; pedi e recebereis, para que a vossa alegria se cumpra”10. E em uma outra parte do seu discurso: “E tudo quanto pedirdes em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorifiçado no Filho”11. Não sabemos por quanto tempo os discípulos fizeram uso dessa bonita, simples e profundamente significativa forma de orar; mas se pode concluir que adquiriram o hábito de repeti-la, como os discípulos de João Batista devem ter repetido as formas de orar que aprenderam com o seu mestre. Não existe, portanto, nenhuma razão para pensar que o “Pai Nosso” (ou “a oração do Senhor”), embora de valor permanente como parte dos ensinos de Cristo, tenha sido designado para ser um método estereotipado e obrigatório de se dirigir ao Pai celestial. O “Pai Nosso” foi designado para ser uma ajuda aos discípulos inexperientes, e não uma regra imposta aos apóstolos12. Mesmo depois de terem alcançado a ma­ turidade espiritual, os doze apóstolos podiam usar essa forma se quises­ sem, e possivelmente a tenham usado ocasionalmente. Mas Jesus espera­ va que quando se tornassem mestres na igreja, superassem a necessidade de ter esta ajuda para a devoção. Cheios do Espírito, com corações dila­ tados, amadurecidos no entendimento espiritual, deveriam então ser ca­ pazes de orar como o seu Senhor tinha orado quando estava com eles; e embora os seis pedidos que constam na oração-modelo ainda estivessem presentes em todas as suas súplicas diante do trono da graça, participa­

74

O Treinamento dos Doze

riam somente como os verbetes de uma língua participam do mais elo­ qüente discurso de um palestrante, que nunca pensa sobre como as letras das palavras que profere são compostas13. Ao manter o caráter pro tempore e provisional do “Pai Nosso” com relação aos doze apóstolos, não enfatizamos o fato, já advertido, de que esta oração não termina com a frase “em Nome de Jesus Cristo”. A falta dessa expressão poderia ser, posteriormente, facilmente preenchida mental ou oralmente e, portanto, não haveria uma razão válida para não usá-la. A mesma observação se aplica ao uso que fazemos da oração em ques­ tão. Deixar essa forma cair em desuso meramente pela ausência da súpli­ ca habitual conclusiva é tão errado quanto a excessiva repetição dessa oração. O “Pai Nosso” não é nem uma composição de Deísmo indigno de um cristão, nem um talismã como o Pater Noster da devoção católica romana. O fiel mais evoluído geralmente encontra alívio e descanso para a sua alma ao refletir sobre as simples e sublimes sentenças, enquanto mentalmente percebe os muitos particulares que cada uma inclui. E na­ tural, no caso daqueles que estão iniciando a sua vida de oração e a sua vida espiritual em geral, que a sua devoção consista exclusivamente, ou até principalmente, em repetir as palavras que Jesus ensinou aos seus imaturos discípulos. O ponto de vista agora defendido com relação ao objetivo do “Pai Nosso” está em harmonia com o espírito de todos os ensinos de Cristo. Formas litúrgicas e métodos religiosos em geral eram muito mais apro­ priados na rigorosa escola ascética de João Batista do que na escola livre de Jesus. Nosso Senhor evidentemente deu pouca importância às for­ mas de orar, como também a períodos fixos para o jejum; caso contrário, Ele não teria esperado até lhe pedirem para ensinar uma forma, mas teria feito uma provisão sistemática para as necessidades dos seus seguidores — assim como fez João Batista, por assim dizer — redigindo um livro de devoção ou compondo uma liturgia. E evidente que, mesmo nas ins­ truções presentes sobre esse tema, Jesus considerou a forma que forneceu como tendo uma importância relativa: um remédio meramente temporá­ rio para um mal menor (a necessidade de expressão), até que o mal maior (a necessidade de ter mais fé) fosse curado; pois a maior parte da lição é dedicada ao propósito de providenciar um antídoto para a descrença14.

Lições sobre a Oração

75

A segunda parte dessa lição sobre a oração tem a finalidade de trans­ mitir a mesma moral que está contida na parábola do juiz iníquo — “sobre o dever de orar sempre e nunca desfalecer”. A suposta causa do desfalecimento é também a mesma, e pode também ser considerada a razão da demora da parte de*Deus para responder as nossas orações. Isso realmente não é tão óbvio nas primeiras lições quanto nas posterio­ res. A parábola do amigo inoportuno não é adaptada para transmitir a idéia de uma longa espera; pois neste caso o favor pedido, se concedido, é atendido em poucos minutos. Mas, o lapso de tempo que decorre entre solicitar e receber a dádiva de nossas súplicas é algo lógico e natural que está implícito e pressupos­ to. E usando de uma certa protelação que Deus, mesmo sendo bondoso, parece estar nos dizendo aquilo que o vizinho disse ao seu amigo, e que nos leva a pensar que é inútil orar. Cristo contou essas duas parábolas a fim de mostrar aos discípulos que uma oração perseverante demonstra o poder da constância nas cir­ cunstâncias mais desesperadoras. Os dois personagens, a quem o apelo foi feito, são bastante maus — um é sovina e o outro é injusto, e nada têm a nos oferecer a não ser a exploração de seu egoísmo. E nos dois casos, o ponto principal das parábolas é mostrar que a persistência tem um poder de incomodar que lhe permite a conquista de seu objetivo. Novamente, é importante observar qual seria o propósito princi­ pal da oração em relação ao argumento que está sendo agora conside­ rado. O que Cristo está pretendendo é que seus discípulos se empe­ nhem em sua santificação pessoal15 e isso pode ser constatado através da sentença que encerra o discurso: “Quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?” Jesus tem como certo que as pessoas às quais está se dirigindo estão, em primeiro lugar, à procura do Reino de Deus e de sua justiça. Portanto, embora tenha incluído uma súplica para o pão de cada dia, sob forma de uma oração, Ele deixa esse assunto de lado na últim a parte de seu discurso por não ser, por suposição nossa, o principal objeto de desejo e também porque, para todos que realmente concedem ao Reino de Deus o primeiro lugar em suas preocupações, o alimento e o vestuário lhes sejam quase que automaticamente concedidos16.

76

O Treinamento dos Doze

Aqueles que não desejam o Espírito Santo acima de todas as coisas Jesus nada tem a dizer. Ele não os leva a esperar que irão receber alguma coisa do Senhor, nem mesmo a justiça do Reino ou a santificação pesso­ al. Ele considera as orações de um homem inconstante, que tem dois objetivos principais em vista, como um escárnio — meras palavras que nunca chegarão aos ouvidos do Senhor. Se a demora foi a suposta causa do desfalecimento, e o suposto objeto do desejo foi o Espírito Santo, então a condição espiritual con­ templada no argumento está definitivamente determinada. O propósito do Mestre é socorrer e encorajar aqueles que sentem que a obra da graça opera devagar dentro deles, estão curiosos por saber porque isso assim ocorre, e suspiram com tristeza. Esse é o estado em que, segundo imagi­ namos, estavam os doze discípulos quando receberam essa lição. Havi­ am se tornado dolorosamente conscientes de que eram incapazes de realizar corretamente seus deveres devocionais, e consideravam essa in­ capacidade como um sinal da condição geral de seu espírito e, por con­ seguinte, estavam muito deprimidos. O argumento usado por Jesus para incutir em seus desanimados discípulos a esperança e a confiança como a derradeira realização de seus desejos caracteriza-se pela ousadia, genialidade, sabedoria e força lógica. Sua ousadia está evidenciada na escolha das ilustrações. Jesus tinha tanta confiança na excelência de sua causa que descreve o caso sob o aspecto mais desvantajoso possível para si, evitando escolher como exemplo a figura de homens bons preferindo, ao contrário, pessoas que estivessem abaixo dos padrões normais da virtude humana. Um homem que, ao ser procurado a qualquer hora da noite por um vizinho necessitado de aju­ da para um caso de real emergência, como podemos supor através da parábola, ou mesmo em um caso de doença súbita, resolve rechaçá-lo com a seguinte resposta: “Não me importunes; já está a porta fechada, e os meus filhos estão comigo na cama; não posso levantar-me para tos dar”, teria realmente que sofrer o desprezo de seus amigos e se tornar um bom exemplo de todos os que são mesquinhos e insensíveis. A mes­ ma presteza em se aproveitar de outro caso extremo pode ser observada no segundo argumento retirado da conduta dos pais em relação aos fi­ lhos: Ele começa dizendo “E qual o pai dentre vós que, se o filho lhe

Lições sobre a Oração

77

pedir pão...”17. Jesus não está preocupado com o pai que tenha sido esco­ lhido e está disposto a aceitar qualquer um deles; tanto o pior quanto o melhor, porque o argumento não está dirigido à bondade do pai mas à ausência dela, já que o objetivo é mostrar que os pais não precisam de uma bondade especial para evitar fazer aquilo que seria um ultraje ao afeto natural e revoltante aos sentimentos de toda a humanidade. O caráter bondoso e amável do argumento manifesta-se através da simpatia e do critério que exibe. Jesus enxerga os desagradáveis pensa­ mentos que os homens alimentam a respeito de Deus quando estão sob o peso de anseios não realizados; como duvidam de sua bondade e chegam a considerá-lo indiferente, insensível e injusto. Ele demonstra ter um íntimo conhecimento de seus mais secretos pensamentos atra­ vés dos casos que apresenta, pois o amigo hostil e o pai desnaturado, e podemos ainda acrescentar o juiz injusto, não representam verdadeira­ mente o que Deus é, ou o que Ele gostaria que acreditássemos que fosse, mas certamente o que até os homens mais piedosos às vezes imaginam qua Ele seja18. E Ele não apenas enxerga como também de­ monstra sua simpatia. Ao contrário dos amigos de Jó, não encontra culpa naqueles que guardam pensamentos duvidosos e aparentemente profanos, nem os repreende por sua impaciência, desconfiança e desa­ lento. Ele os trata como homens cheios de fraquezas e necessitados de simpatia, conselhos e ajuda. E, ao conceder essas graças, Ele desce ao mesmo nível de seus sentimentos e procura mostrar que, mesmo quan­ do as coisas são exatamente como parecem, não há razão para desespe­ ro. Ele argumenta, a partir de seus próprios conceitos sobre Deus, que ainda assim todos devem esperar por Ele. E como se o Senhor Jesus dissesse: “Suponha que Deus seja aquilo que você imagina, indiferente e insensível. Ainda assim continue a orar; veja o que a perseverança conquistou no caso que eu apresentei. Faça o seu pedido como o ho­ mem que suplicava por pães e você também os receberá daquele que, nesse momento, parece estar surdo às suas súplicas. Garanto que as aparências podem ser muito desfavoráveis, mas não mais desfavoráveis em seu caso do que naquele do suplicante da parábola; e você pode observar como ele se saiu bem por não se deixar dominar tão facil­ mente pelo desânimo”.

78

0 Treinamento dos Doze

Jesus revela sua sabedoria ao lidar com as dúvidas de seus discípu­ los, ao evitar qualquer explicação elaborada sobre as causas ou razões da demorada resposta às orações e ao usar apenas argumentos apropriados à capacidade das pessoas de pouca fé e de reduzida compreensão espiri­ tual. Ele procura mostrar que a santificação é um processo lento e tedi­ oso e não um ato momentâneo, porque o Espírito é concedido gradual­ mente e em uma medida limitada, e não de imediato e com toda libera­ lidade. Ele simplesmente insiste com seus ouvintes que devem perseverar na busca do Espírito Santo e lhes assegura que, apesar dessa tão árdua demora, seus desejos serão finalmente realizados. Ele não lhes ensina qualquer filosofia de esperar em Deus, mas apenas que não irão esperar em vão. O Mestre optou por esse método não por qualquer necessidade, mas por sua própria escolha. Embora nenhuma tentativa tenha sido feita para explicar a demora da divina graça e providência, isso não aconteceu por essa explicação ser impossível. Havia muitas coisas que Cristo pode­ ria ter dito aos seus discípulos nessa ocasião, caso fossem capazes de suportar; algumas delas eles mesmos disseram mais tarde quando o espí­ rito da verdade desceu sobre eles e os guiou na verdade e os fez conhecer os caminhos de Deus. Ele poderia, por exemplo, ter mostrado que a demora da qual se queixavam estava de acordo com o exemplo da natu­ reza segundo a qual o crescimento gradual representa uma lei universal; que o tempo necessário para a produção dos frutos maduros do Espírito é exatamente igual ao dos frutos maduros do campo ou do pomar, e não deveriam se admirar se os frutos espirituais fossem particularmente len­ tos em seu amadurecimento. Pois há uma lei de crescimento segundo a qual quanto mais elevado o produto estiver na escala da natureza, mais lento será o processo pelo qual é produzido19. E assim uma santificação momentânea, embora não seja impossível, será muito mais um milagre no sentido de uma exceção a essa lei, como foi a imediata transformação da água em vinho nas bodas de Caná. E se a santificação imediata fosse uma regra, ao invés de uma rara exceção, o Reino da graça se tornaria demasiadamente parecido com o mundo dos sonhos infantis no qual árvores, frutas e palácios surgem completamente crescidas, maduras e mobiliados, respectivamente, de um momento para outro como que por

Lições sobre a Oração

79

mágica; isto é demasiadamente diferente do mundo verdadeiro e real com o qual os homens estão familiarizados e no qual a demora, o cresci­ mento e as leis estabelecidas são características invariáveis. Jesus poderia ter ido mais longe para reconciliar seus discípulos com a idéia dessa demora dissertando sobre a virtude da paciência. Muito poderia ser dito a respeito desse tópico. Poderia ser mostrado que um caráter não poderá ser perfeito se a virtude da paciência não encontrar nele lugar, que o método gradual da santificação é o mais apropriado para o seu desenvolvimento, e que este permite um abundante escopo para a sua prática. Poderia ter sido mencionado o quanto a suprema alegria de conquistar qualquer coisa é ainda mais apreciada pela demora em consegui-la, assim como o triunfo da fé é proporcional à sua prova. Vejamos isto nas palavras singulares de quem se tornou sábio sobre esse assunto através de experiência própria e da época em que viveu: “E justo ver e sentir o formato e a costura de cada peça do vestuário nupcial e a criação, moldagem e adaptação da coroa de glória para a cabeça do cida­ dão do céu”; cpmo “a repetida compreensão e freqüente experiência da graça nos altos e baixos do caminho, o cair e novamente levantar do peregrino, as revoluções e as mudanças da condição espiritual, a lua nova, a lua obscura e a lua cheia na maré vazante e crescente do Espírito fize­ ram surgir no coração dos santos em seu caminho para o país celestial o doce perfume da rosa mais formosa, do Lírio dos Vales e da Rosa de Sarom”; e como, “os viajantes da noite falam sobre seus hábitos impu­ ros e os louvores de seu guia. E tendo a batalha chegado ao fim, os soldados contam as suas vítimas, exaltam o valor, a habilidade e a cora­ gem de seu líder e capitão”, e da mesma forma “será apropriado que os soldados glorificados levem consigo para o céu abundante experiência da generosa graça e lá chegando falem de sua vida e de sua terra e louvem àquele que redimiu a todos, de todas as nações, povos e línguas”20 . Tais considerações, embora justas, não seriam completamente apli­ cáveis a homens que tinham a condição espiritual dos discípulos naquele momento. As crianças não têm qualquer simpatia com o crescimento em nenhum lugar no mundo, quer se trate do crescimento natural ou do crescimento na graça. Não as agradaria saber que uma bola se transfor­ masse imediatamente em um carvalho, e que em apenas poucos minutos

80

O Treinamento dos Doze

este produzisse um broto que imediatamente se tornasse um fruto ma­ duro. Portanto, é inútil falar das qualidades da paciência a pessoas inexperientes; pois o valor moral da disciplina produzido pelas provas não pode ser apreciado até que as provas passem. Portanto, conforme já mencionado antes, Jesus se absteve completamente de lhes ensinar lições como estas, preferindo adotar um estilo de raciocínio simples e popular que até mesmo uma criança seria capaz de compreender. O raciocínio de Jesus, embora bastante simples, é muito convincen­ te e conclusivo. O primeiro argumento — contido na parábola do vizi­ nho egoísta — é adequado para inspirar a esperança em Deus, mesmo nas horas mais sombrias, quando Ele parece estar indiferente às nossas súplicas ou positivamente indisposto a ajudar, e dessa forma somos in­ duzidos a perseverar em nossas orações. “O homem que queria os pães bateu à porta cada vez com maior força, com uma impertinência que não conhecia vergonha21, e por não aceitar recusa acabou conquistando seu objetivo. O amigo egoísta teve, afinal, que se contentar em levantar e servi-lo somente por consideração ao seu próprio conforto, pois era simplesmente impossível dormir com tal barulho; portanto (esse é o curso do argumento) continue a bater à porta do céu e você obterá o que deseja, mesmo que seja para livrarem-se de você. Veja nessa parábola o poder da impertinência em uma hora extremamente inoportuna — à meia-noite — e com a pessoa mais desfavorável, que prefere seu próprio conforto ao bem de seu vizinho; portanto, peça persistentemente e lhe será concedido, procure e encontrará, bata e a porta se abrirá para você”. N a verdade, existe um ponto em que esse argumento tão patético e simpático parece ter um lado frágil. Na parábola, o solicitante tinha o amigo egoísta em seu poder por ser capaz de incomodá-lo e impedir que dormisse. Agora, o desanimado e atormentado discípulo, a quem Jesus desejava confortar, poderia responder: “Que poder tenho eu para inco­ modar a Deus, que reside no alto, muito além do meu alcance, em sua imperturbável felicidade? Oh! Se eu pudesse encontrá-lo, se pudesse chegar até o seu trono! Mas, olhe, quando caminho à frente, Ele não está lá; caminho para trás, mas não o percebo; se opera à mão esquerda, não o vejo; caso se oculte à mão direita não o diviso”22. Essa objeção raramente deixa de ocorrer ao perspicaz espírito do desesperado e devemos admitir

Lições sobre a Oração

81

que ela nada tem de frívola. Nesse ponto realmente existe a necessidade de entender melhor a analogia. Podemos incomodar um homem em sua cama, como o vizinho que não era generoso ou o juiz injusto, mas não somos capazes de incomodar a Deus. A parábola não sugere a verdadeira explicação para a divina demora na concessão das súplicas, ou o supre­ mo sucesso da importunação. Ela simplesmente prova, através de um exemplo simples, que a demora ou a aparente recusa, por qualquer que seja a sua causa, não é necessariamente final e, portanto, que não existe uma boa razão para desistir de suplicar. Esse é um verdadeiro serviço a ser prestado, embora não seja muito grande. M as o discípulo incrédulo, além de descobrir com característica precisão o que a parábola está deixando de provar, pode não ser capaz de extrair nenhum conforto daquilo que ela realmente está provando. Vol­ temos para a forte afirmação que Jesus usou para acompanhar a parábo­ la: “E eu vos digo a vós”. Aqui, sem dúvida, encontra-se uma máxima infalível daquele que pode falar com autoridade; daquele que já esteve no seio do Deus eterno e que veio para revelar o íntimo de seu coração aos homens, que na escuridão da natureza tateavam em busca dele a fim de, se possível, encontrá-lo. Quando Ele se dirige a nós em termos tão enfáticos e solenes como esses: “E eu vos digo a vós: Pedi, e dar-se-vosá; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”, podemos confiar em sua palavra, no mínimo visando um benefício pro tempore. Mesmo aqueles que têm dúvidas do poder da oração, por causa da constância das leis da natureza e da imutabilidade dos propósitos divinos, podem crer na Pala­ vra de Cristo quando diz que a oração nunca é em vão, mesmo em relação ao pão de cada dia, sem falar em assuntos mais elevados, até alcançar uma certeza maior sobre o assunto que aquela que visam no momento. Estas pessoas poderão até mesmo desprezar a parábola consi­ derando-a infantil, ou por transmitir idéias simples demais sobre o ser divino; mas não poderão desprezar as deliberadas declarações daquele a quem consideram como o melhor e o mais sábio dos homens. O segundo argumento empregado por Jesus para insistir na perse­ verança na oração tem a natureza de um reductio a i absurdum * e termina com uma conclusão àfortiori. Segundo ele, se Deus se recusasse a ouvir a oração de seus filhos, ou ainda pior, se caçoasse deles dando-lhes alguma

82

0 Treinamento dos Doze

coisa que aparentasse ter uma semelhança apenas superficial com o que foi pedido somente para provocar um amargo desapontamento, quando o engano fosse descoberto Ele não seria considerado somente mau; pior ainda, seria considerado mais depravado que a própria humanidade. Pois, qual pai, qualquer que fosse, se um filho lhe pedisse pão lhe daria uma pedra? Se o filho pedisse peixe daria uma serpente? Ou se pedisse um ovo lhe ofereceria um escorpião? A mera hipótese de que isso poderia acontecer é monstruosa. A natureza humana é extremamente corrompi­ da pelo pecado moral, existe um espírito maligno de egoísmo no cora­ ção que entra em conflito com as generosas afeições e que, muitas vezes, leva os homens a fazer coisas contrárias à natureza. N a média, entretan­ to, os homens não são diabólicos e nada que não fosse um diabólico espírito de maldade levaria um pai a caçoar da penúria do filho, ou a deliberadamente entregar-lhe dádivas repletas de perigo mortal. Se os pais terrenos, embora maldosos em muitas de suas inclinações, dão a seus filhos somente coisas que, conforme seu entendimento, são boas e ficam horrorizados perante qualquer outro modo de tratamento, como poderíamos acreditar que o ser supremo, a providência, o Deus que é absolutamente bom, e que personifica todas as qualidades positivas, fa­ ria algo que somente os demônios pensariam em fazer? Pelo contrário, o mal que o homem poderia fazer, para Deus é completamente impossí­ vel. Com toda certeza Ele concederá boas dádivas, e somente elas, a seus filhos que lhe suplicam. E, mais especialmente, concederá a melhor de­ las, o Espírito Santo, o iluminador e santificador, que os seus verdadei­ ros filhos desejam acima de todas as outras. Portanto, digo-vos nova­ mente: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. No entanto, alguns pensarão que pelo simples fato de Cristo apre­ sentar esses casos, como a pedra que é dada no lugar do pão, a serpente no lugar do peixe e o escorpião no lugar do ovo, que Deus possa em alguma ocasião tratar os seus filhos dessa forma. Chegou o momento em que os doze discípulos pensaram estar sendo tratados assim com referência ao assunto com o qual estavam tão profundamente interessa­ dos, depois de sua própria santificação, isto é, a restauração do Reino de Israel. Mas sua experiência revela a verdade geral de que quando aquele que ouve a oração parece tratar os seus servos de forma ilógica, é porque

Lições sobre a Oração

83

estes se enganaram sobre a natureza do que é bom e não sabem o que estão pedindo. Pediram uma pedra, pensando que fosse pão; portanto o verdadeiro pão parecerá uma pedra; pediram uma sombra, pensando ser uma riqueza, portanto a riqueza se parecerá com uma sombra. O reino pelo qual os doze discípulos oravam era uma sombra, daí seu desaponta­ mento e desespero quando Jesus foi condenado à morte: “o ovo” da esperança, que sua carinhosa imaginação havia estado desenvolvendo, produziu um escorpião — a cruz — e assim podem ter imaginado que Deus os havia enganado e zombado deles. Mas viveram para saber que Deus era verdadeiro e bom e que haviam enganado a si próprios e que tudo que Cristo havia dito se cumpriu. E que todos os que esperam em Deus irão, ao final, fazer a mesma descoberta e se unir para testemunhar que “bom é o Senhor para os que se atêm a ele, para a alma que o busca”23. Por essas razões todos devem orar e nunca desfalecer. A oração é racional, ainda que o ser divino fosse como a média dos homens: dispos­ to a fazer o bem quando o egoísmo não se interpusesse em seu caminho — isto é, o credo do paganismo. Seria ainda mais manifestadamente racional sendo, como Cristo ensinou e os cristãos acreditam, Deus me­ lhor que o melhor dos homens — Aquele que é o ser supremamente bom — , o Pai no céu. Somente em um dos dois (ou nos dois) casos a seguir a oração seria irracional: se Deus não fosse absolutamente um ser vivo — este é o credo dos ateus, a favor do qual Cristo não expressa qualquer argumento — ; ou se Ele fosse um ser capaz de fazer coisas perante as quais até os homens mais cruéis se afastassem horrorizados, isto é, um ser que não tivesse a natureza benigna e santa que Ele possui — uma crença que, esperamos, não seja defendida por nenhum ser hu­ mano. *N. doT. Refutação de uma proposição através da demonstração da inevitável e absurda conclusão à qual ela iria logicamente levar.

1 Marcos 1.35; Lucas 6.12; Mateus 14.23 2 Mateus 6.5-13 3 Lucas I I .I - I 3 ; I8 .I-5 4 Mateus 18.19 5 Mateus 21.22

84

O Treinamento dos Doze

6 João 16.23-24 7 Os doze não estão nomeados; mas a lição deve, por sua natureza, ter sido dada a um círculo de discípulos mais próximos. 8 O pedido, nesse caso, pode ser parafraseado: “Senhor, nos ensine (também) a orar, como João nos ensinou quando éramos seus discípulos”. 9 Os leitores podem se lembrar aqui do conhecido hino de Newton, que começa com as seguintes palavras: “Eu pedi a Deus que crescesse na fé, no amor e em toda a graça” — (número 25, F. C. Hymn-Book}. 10 João 16.24 11 João 14.13 12 Jeremy Taylor, na obra Apologyf o r Authorized and Set Forms of Liturgy, não faz distinção entre discípulos e apóstolos. Quando se faz tal distinção, muitos dos seus argumentos perdem a importância. Vide páginas 86-112. 13 Keim tem o mesmo ponto de vista: ele pensa que Mustergebet não deveria ser um Alltagsgehet, e como prova cita os fatos de que nenhum vestígio disso aparece na história da vida de Cristo na época da igreja de Jerusalém, nas recordações do apóstolo Paulo, e que só no segundo século isso começou a ser objeto de um uso regular “ja mechamsch-katolischen” — Jesu von Nazara, 2.280 14 Pela forma como o “Pai Nosso” é agora explicado, podemos determinar o lugar e o uso apropriado de todas as formas estabelecidas de devoção. As formas litúrgicas destinam-se ao uso particular mais do que ao uso público; mais para aqueles que estão no silêncio, no estágio árido da vida espiritual, do que para aqueles que obtiveram o poder e a expressão da maturidade espiritual. Para o uso particular dessas formas por pessoas que querem orar, mas ainda não conseguem, não há nenhuma objeção. A vantagem justifica o uso. O cristão menos experiente pode pedir ao mais experiente para ensiná-lo a orar, e receber em resposta: “Nós oramos dessa forma...” Se podemos ler e repetir as sagradas canções de poetas cristãos para encontrar expressões de emoção que são comuns para nós e para eles, mas que podem rião nos agcadat, podemos adequadamente petguntar. “Pot que não podemos \et e tepetvt as orações dos santos por uma razão semelhante? Os superficiais, que não têm seriedade e sinceridade suficientes para saber o que deve ser balbuciado, podem desprezar tais auxílios por considerarem-nos apropriados apenas para crianças; e aqueles que ainda estão no início do fervor religioso podem desistir das formas escritas por considerarem-nas frias e mortas, mesmo sendo clássicas”. Bem, não há problema quanto àqueles que puderem dispensar esses auxílios; mesmo para os fervorosos — que desprovidos de emoções, deficientes em experiência, desencorajados pelo fracasso, decepcionados em suas grandes esperanças da mocidade, atormentados pelas dúvidas especulativas com relação à utilidade e às razões das orações — pode chegar a época em que sintam os ventos gelados do inverno da história religiosa invadindo a alma. Estes podem se sentir muito felizes ao ler sobre as formas de devoção, que por sua simplicidade e dignidade servem para inspirar um senso de realidade e produzir um efeito suave e relaxante em seus espíritos enfermos e cansados. Para todos os que estiverem em tal condição nós, respeitando o exemplo de Jesus Cristo, sentimo-nos na obrigação de dizer que não devem permanecer sem orar por não poderem fazê-lo sem um livro que lhes ensine. Mas quando passamos do recesso para a igreja, o caso é alterado. Lá devemos encontrar pastores capazes de fazer pelos seus companheiros de devoção, o que Cristo fez pelos seus discípulos, orar com a liberdade e a força que os discípulos posteriormente alcançaram. Pode-se afirmar, com certeza, que por mais desejável que pareça, esta não é a situação em determinados lugares. Um escritor recente, defendendo a introdução de formas de orações escritas na igreja presbiteriana, diz: “Estou convencido de que um relatório verbatin de todas as orações públicas feitas na Escócia em qualquer domingo do ano esclareceria essa questão para sempre nas mentes de todas as pessoas que fossem capazes de formar um julgamento racional sobre esse assunto”*. Deve ser esperado que isso seja uma visão exagerada da incapacidade do ministério existente; mas mesmo garantindo a sua exatidão, seria uma questão justa se a solução proposta não fosse pior que o mal em si, e o ganho em adequação mais contrabalançado pela perda da qualidade mais importante que é o fervor. Podemos dizer isso, mesmo não dispostos a nos opormos às formas litúrgicas, mas concordar com os sentimentos moderados de Richard Baxter, quando diz: “Não posso ter a mesma opinião daqueles que pensam que Deus não aceitaria as orações de um Livro de Orações comum, e que tais formas sejam venerações inventadas, que Deus rejeitaria. Nem posso pensar como aqueles que preferem orações completa­ mente improvisadas”.* N a época de Baxter havia muita controvérsia religiosa, e pontos de vista contrários eram expostos de maneiras extremadas. Os clérigos ridicularizavam as improvisações dos puritanos; os puritanos foram tão longe com sua oposição às orações litúrgicas que até consideravam que o “Pai Nosso” nunca deveria ser repe­ tido. Baxter, não sendo um partidário, mas um amante da verdade, não era solidário a nenhum partido, mas consi­ derava esta questão como política e não de princípio, que não deveria ser resolvida por meio de uma argumentação abstrata, mas através de uma calma consideração sobre aquilo que, como um todo, conduziria à edificação; nesta, o ponto de vista do seu julgamento e prática estavam ambos do lado da oração improvisada.

Lições sobre a Oração

85

Olhando para a questão do ponto de vista de Baxter, como uma questão política, somos inteiramente persuadi­ dos a concordar que a prática existente no presbiterianismo e em outras igrejas pode ser justificada em bons termos já que estão contentes com as suas próprias maneiras, e indispostos a imitar aqueles que têm maneiras diferentes de lidar com essa questão. Os ministros da religião, como os apóstolos, deveriam ser capazes de dispensar as formas litúrgicas; e a melhor maneira de assegurar que podem possuir essa capacidade, é deixá-los por sua própria conta, e por conta de Deus, e assim converter o ideal em um requisito aplicável a todos, sem exceções. O completo benefício de um sistema não pode ser alcançado a menos# que haja uma rígida obrigatoriedade; e até mesmo esta obrigatoriedade pode envolver algumas desvantagens ocasionais, como o relaxamento da regra, que provavelmente causaria um dano maior à igreja. A amenização permitida devido à timidez, inexperiência ou a uma incapacidade extraordinária, sofreria abuso por parte dos indolentes e irresponsáveis; e muitos permaneceriam sempre em um estado semelhante ao dos discípulos que, se compelidos a usar o dom que Deus lhes deu ou a buscar seriamente dons e graças que não possuíssem, alcançariam em pouco tempo a liberdade e o poder apostólico. A mesma observação pode ser aplicada à pregação. H á exemplos individuais de congregações que podem se beneficiar do fato de o pregador estar autori­ zado a usar os materiais de instrução que quiser; mas sob tal permissão, quantos ficariam contentes ao ler os sermões dos livros ou de manuscritos comprados às dúzias, que são escritos sob um sistema que visa tornar-se a avaliação máxima do talento individual e, deste modo, pede a todos os professores da verdade que dêem aos seus ouvintes o benefício dos seus próprios pensamentos. Tais professores, através daprática, alcançariam uma medida justa de poder para pregar. No todo, portanto, a igreja presbiteriana, por exemplo, tem razões para ficar satisfeita com o seu sistema de adoração pública existente, seja qual for a razão da existência do descontentamento com o atual estado de adoração em exemplos particulares. O ideal é bom, mesmo que a realidade deixe algo a desejar. O objetivo e o efeito do sistema litúrgico é tornar o grande número de adoradores o mais independente possível do ministro, através do crescimento na fé e na graça do Senhor. O objetivo não é o efeito do nosso sistema, mas sim tornar o ministério individual o mais valioso possível para os adoradores, pela sua instrução e edificação. Um sistema pode assegurar uma solenidade e decência uniforme, mas o outro sistema tende a assegurar as qualidades mais importantes da devoção fervorosa, eqergia e vida; e acreditamos, a despeito de quão meticulosas possam ser as críticas, que isso pode assegurá-los consideravelmente. No mínimo, o método não-litúrgico assegura que a adoração da igreja deva ser uma reflexão verdadeira de sua vida e, portanto, smcera. Homens que pregam seus próprios sermões e fazem suas próprias orações têm uma tendência maior a pregar e a orar mais como acreditam e vivem, do que aqueles que meramente lêem composições que lhes foram dadas. Só resta dizer que enquanto não houver objeção à tentativa de fundir os dois métodos para usar as vantagens de ambos — um sistema gentilmente oferecido a todas as igrejas por algum irmão respeitável — confessamos ter dúvidas quanto à utilidade de tal tentativa, pelas razões acima explicadas. [Deixamos o texto acima tal qual consta na segunda edição. Nossa atual impressão, no entanto, é que uma mistura do sistema litúrgico de formas fixas, com uma metodologia que não restringe o improviso, não é impraticável e pode ainda dar melhores resultados do que ambos separadamente — Nota da terceira edição]. * The Reform o f the Church of Scotland, de Robert Lee, D.D., página 76. * Da obra Baxters Life, de seu original M S., livro I, parte I, página 213. 15 O suposto objeto da oração em Lucas 18 é o interesse geral, que existe na terra, sobre o remo divino. 16 Em Mateus 7.2, que responde a Lucas I I . 13, a frase expressiva do objeto de desejo é agaqa, “boas coisas”, ao invés de pneuma agion. O caráter paulino da segunda expressão tem sido observado como um dos muitos traços da influência do apóstolo sobre o terceiro evangelista. A doutrina que diz que o Espírito Santo é a base imanente da santidade cristã é enfaticamente paulina. Porém a doutrina da santificação gradual não é proeminentemente paulina. 17 A tradução na ARA tem o mesmo sentido: “Qual dentre vós é o pai que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? 18 Veja o livro de Jó, passim, e Salmos 73, 77, etc. 19 Esta idéia foi bem trabalhada em um sermão de H. W. Beecher intitulado: “Esperando pelo Senhor” — na obra Sermons, volume I. 20 Veja a obra de Samuel Rutherford, Trial and Triumph of Faith, sermão 18. 21 O termo grego anaideian, que significa impudência, cinismo. 22 Jó 23.3, 8, 9 23 Lamentações 3.25

7 Lições sobre a Liberdade Religiosa ou A Natureza da Verdadeira Santidade Seção I - O Jejum Mateus 9 .14 -17 ; Marcos 2 .16 -2 2 ; Lucas 5.33-39

N.

capítulo anterior aprendemos como Jesus ensinou os seus dis­ cípulos a orar, e agora, neste presente capítulo, vamos aprender como Ele ensinou-lhes a viver. A ratio vivendi de Cristo era caracteristicamente simples; seus princi­ pais aspectos eram a indiferença quanto às minuciosas e mecânicas re­ gras, e o hábito de se afastar de todas as coisas em detrimento dos exce­ lentes princípios de moralidade e compaixão. O cumprimento prático dessa regra de vida levou a uma considerá­ vel divergência em relação ao costume prevalecente. Em três aspectos, especialmente de acordo com os registros do Evangelho, nosso Senhor e seus discípulos foram cobrados pela ofensa de não se conformarem. Eles se separaram das práticas existentes com relação ao jejum, cerimônias de purificação, como as prescritas pelos anciãos, e a santificação do sábado. A primeira, negligenciaram quase que por completo; a segunda completa­ mente; e a terceira não negligenciaram, mas seu modo de observar o des­ canso semanal era totalmente em espírito, e mais aberto em relação aos detalhes, diferente daquilo que era praticado pelos religiosos da época. Essas divergências dos costumes estabelecidos são historicamente interessantes como pequenos começos de uma grande revolução moral e religiosa. Por ensinar esses novos hábitos aos seus discípulos, Jesus estava inaugurando um processo de emancipação espiritual, que resultou na completa libertação dos apóstolos e, através deles, na libertação da igre­ ja da sobrecarga do jugo vindo das ordenanças de Moisés, e ainda mais do irritante cativeiro dos costumes vãos recebidos via tradição dos pais.

88

0 Treinamento dos Doze

As divergências em questão despertam grande interesse por estarem biograficamente relacionadas, também, com a experiência religiosa dos doze. Portanto, é uma grave crise na vida de qualquer homem quando ele, em primeiro lugar, separa-se da maioria dos minuciosos pormenores das opiniões religiosas e das práticas de sua época. Os primeiros passos no processo de mudança são geralmente os mais difíceis, mais perigosos, e mais decisivos. Com relação a esses aspectos, aprender a liberdade espi­ ritual é como aprender a nadar. Todo especialista na arte aquática lem­ bra-se dos problemas que experimentou em relação às suas primeiras tentativas, como achou difícil manter as braçadas e mexer suas pernas, como debateu-se e afundou, como estava assustado e com medo de na­ dar em um local cuja profundidade superasse a sua altura, levando-o a afundar. Agora ele pode sorrir para esses anos iniciais. No entanto, eles não foram totalmente infundados, pois o novato, de fato, corre algum risco de se afogar, mesmo que o local da natação seja uma pequena pis­ cina, ou represa, cuidadosamente construída, em um rio que flui por pequenos vales no interior, distante dos rios [argos e do grande mar. E bom, tanto para jovens nadadores quanto para aprendizes da li­ berdade religiosa, fazerem seus primeiros ensaios na companhia de um amigo experiente que poderá lhes salvar, caso estejam em perigo. Que grande amigo os doze tiveram em Cristo, cuja presença não era somente uma proteção contra todos os riscos espirituais mais íntimos, mas um abrigo contra todos os ataques que poderiam lhes sobrevir a partir do nada. Tais ataques deveriam ser esperados ou não — o inconformismo, invariavelmente, ofende a muitos; expõe a parte ofendida no mínimo à interrogação, e freqüentemente a algo mais sério. O costume é um deus para a multidão, e ninguém pode negar-se a prestar homenagem ao ídolo sem impunidade. Os doze, por conseguinte, contraíram, de fato, as pe­ nalidades comuns em relação às singularidades. A conduta deles foi ques­ tionada e censurada, em todo exemplo de afastamento dos usos e dos costumes. Se tivessem que responder por si mesmos, teriam feito uma defesa fraca das ações impugnadas, pois não entendiam os princípios nos quais as novas práticas foram baseadas, mas simplesmente agiam como eram direcionados. M as em Jesus tinham um amigo que entendia esses princípios, e que ainda estava pronto para atribuir bons motivos a

Lições sobre a Liberdade Religiosa

89

tudo o que fizesse, e a tudo o que ensinou os seus seguidores a fazer. As razões pelas quais defendeu os doze contra os detentores dos costumes predominantes foram especialmente boas e eficazes; e estas constituíam, juntas, uma desculpa para o não-conformismo não menos notável do que aquele que Ele demonstrou ao receber, bondosamente, publicanos e pecadores1 consistindo, assim, de três linhas de defesa correspondentes às acusações que deveriam ser enfrentadas. Nos propomos a considerar esta apologia, neste capítulo, sob três divisões; na primeira delas aborda­ remos o tema “jejum”. A partir do registro de Mateus, aprendemos que a conduta dos discípulos de Cristo, ao negligenciarem o jejum, era censurada pelos dis­ cípulos de João Batista. Lemos: “Vieram, depois, os discípulos de João” (que estavam próximos a eles) “e lhe perguntaram: Por que jejuamos nós, e os fariseus, muitas vezes, e teus discípulos não jejuam?”2. Por esta questão aprendemos que, quanto ao jejum, a escola de João Batista e a seita dos fariseus estavam de acordo em suas práticas gerais. Como Jesus disse aos fariseus, dias mais tarde, “João veio a vós no caminho de justi­ ça”3. M as este foi o caso de um encontro de extremos; pois nenhum dos dois partidos religiosos podia estar mais distante em alguns aspectos do que os dois já citados. Mas a diferença consiste, mais exatamente, nos motivos do que nas atitudes exteriores de suas vidas religiosas. Ambos faziam as mesmas coisas — jejuavam, praticavam abluções cerimoniais, faziam muitas orações — mas faziam tudo isto com uma mentalidade diferente. João e seus discípulos cumpriam suas obrigações religiosas com simplicidade, humildade, sinceridade e com zelo moral. Os fariseus, como uma classe, faziam todos os seus trabalhos de maneira ostentosa e hipócrita; e como uma rotina mecânica. Da mesma questão, aprendemos, mais adiante, que os discípulos de João, assim como os fariseus, eram muito zelosos em relação à prática do jejum. Eles jejuavam “freqüentemente”, “muitas” vezes (itukna, Lucas; polia, M ateus). Nós, por outros aspectos, sabemos que essa declaração em relação aos fariseus é rigorosamente verdadeira, porque estes tinham grandes pretensões religiosas. Além do jejum anual no grande dia da expiação, exigido pela lei de Moisés, e os quatro jejuns que se tornaram habituais na época do profeta Zacarias, no quarto, quinto, sétimo e dé­

90

O Treinamento dos Doze

cimo mês do ano judaico, a classe mais rigorosa dos judeus jejuava duas vezes por semana, a saber, nas segundas e nas quintas-feiras4. Esse jejum bi-semanal é mencionado na parábola do fariseu e do publicano5. Não se deve supor, evidentemente, que a prática dos discípulos de João Batis­ ta coincidisse, nesse aspecto, com a da classe mais rigorosa’ do partido dos fariseus. O sistema de jejum deles pode ter sido organizado em um plano independente, envolvendo diferentes preparativos quanto ao tem­ po e às ocasiões. O único fato conViecido é que, como os fariseus, os discípulos de João jejuavam com freqüência, talvez não precisamente nos mesmos dias, nem pelas mesmas razões. Não parece claro que os sentimentos tenham sido a causa da ques­ tão apresentada a Jesus pelos discípulos de João. Não é impossível que o sentimento faccioso estivesse presente, pois a rivalidade e a inveja não eram desconhecidas, mesmo no ambiente do precursor6. Nesse caso, a referência à prática dos fariseus pode ser explicada pelo aparente desejo de derrotar os discípulos de Jesus pelos números, e colocá-los como se estivessem, na questão, em uma minoria sem-esperança. E mais provável, contudo, que o maior sentimento na mente dos interrogadores fosse o de surpresa, entendendo que em relação ao jejum estivessem se aproxi­ mando mais de uma seita — cujos seguidores eram tachados por seu próprio mestre de uma “raça de víboras” — do que de seguidores da­ quele por quem João Batista demonstrava o maior apreço e expressava a mais profunda veneração. Nesse caso, o objeto da questão era obter in­ formação e instrução. Foi de acordo com essa visão que direcionaram a pergunta a Jesus. Se o propósito tivesse sido discutir, os questionadores certamente teriam questionado os discípulos, e não a Jesus. Se os discípulos de João estavam, de fato, procurando instrução, não ficaram decepcionados. Jesus respondeu-lhes de forma extraordiná­ ria ao mesmo tempo pela originalidade, intenção e emoção. E expôs, vigorosamente e com compaixão, em estilo de parábolas, os grandes prin­ cípios pelos quais a conduta dos seus discípulos poderia ser justificada, os quais Ele desejava ver na conduta de todos aqueles que usavam o seu nome. Deve ser observado em sua resposta, em primeiro lugar, que ela é de uma natureza puramente defensiva. Jesus não culpa os discípulos de João por jejuarem, mas contenta-se em defender os seus próprios discí-

Lições sobre a Liberdade Religiosa

91

pulos por, naquele momento, absterem-se do jejum. Ele não se sentiu chamado a menosprezar uma parte, a fim de justificar a outra, mas to­ mou a posição de alguém que praticamente diz: “Jejuar pode ser certo para vocês, que são seguidores de João: não jejuar, neste momento, é igualmente certo para os meus seguidores”. Como deve ter sido agradá­ vel para o Senhor Jesus Cristo poder assumir essa atitude tolerante em uma questão na qual o nome de João foi envolvido. Pois Ele tinha um profundo respeito pelo precursor e pelo seu trabalho, e ainda falava dele nos mais generosos termos apreciativos, agora chamando-o de uma “candeia que ardia e alumiava”7, e em outro momento afirmando que ele não era apenas um profeta, mas algo mais8. E podemos observar na pas­ sagem, que João retribuía esses gentis sentimentos, e não tinha simpatia com as insignificantes invejas às quais seus discípulos, às vezes, entregavam-se. Os dois maiores (O Senhor Jesus Cristo e João Batista), por diferentes razões, censurados por seus contemporâneos corrompidos, sempre falavam um do outro para seus discípulos e para o público, em termos de um amoroso respeito; a menor luz, magnanimamente, confes­ sando sua inferioridade; a maior exaltando o valor de seu humilde com­ panheiro e servo. Que contraste reconfortante foi assim apresentado para as vis paixões da inveja, preconceito e maledicência, tão prevalecentes em outros lugares, sob a influência de homens malignos, dos quais piores coisas podiam ser esperadas. Estes chegaram a falar de João como se fosse um insano, e de Jesus como se fosse imoral e profano!9 Passando da forma ao assunto da resposta, observamos que, com o propósito de justificar seus discípulos, Jesus aproveitou-se de uma metá­ fora proposta por uma memorável palavra que fora verbalizada a respei­ to dele em um período inicial, pelo mestre daqueles que agora examina­ vam-no. Para certos discípulos que reclamaram que os homens estavam deixando-o e indo a Cristo, João disse, com efeito: “O que tem a noiva é o noivo; o amigo do noivo que está presente e o ouve muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim”10. Jesus, agora, toma as palavras de João Batista, e as transforma em uma explicação com o propósito de defender o modo de vida de seus discí­ pulos. Sua resposta, livremente parafraseada, tem esse efeito: “Eu sou o noivo, como disse seu mestre; é certo que os filhos das bodas venham a

92

0 Treinamento dos Doze

mim; e também é certo que, quando vierem, devam adaptar o seu modo de vida às novas circunstâncias. Conseqüentemente, fazem bem em não jeju­ ar, pois o jejum é uma expressão da tristeza, e como podem estar tristes em minha companhia? Seria o mesmo que os homens estarem tristes em uma festa de casamento. Dias chegarão em que os filhos das bodas estarão tristes, pois o noivo não estará sempre com eles; e na tenebrosa hora da sua partida, lhes será natural e propício jejuar, pois então estarão em um esta­ do de jejum — chorando, lamentando-se, tristes e desconsolados”. O princípio por trás dessa representação gráfica é que o jejum não deve ser algo como uma regra mecânica, estabelecida, mas deve referir-se ao estado de espírito; ou, mais claramente, os homens devem jejuar quando estão tristes, ou em um estado de espírito semelhante à tristeza — ab­ sorto, preocupado — como em algumas fortes e graves crises que ocor­ rem na vida das pessoas, ou de uma comunidade, tais como aquelas na história de Pedro, quando ele foi usado na grandiosa questão sobre a admissão dos gentios na igreja; ou tais como aquelas na história da co­ munidade cristã, em Antioquia, quando estavam prestes a designar os primeiros missionários para o mundo pagão. A doutrina de Cristo indi­ cou clara e nitidamente aqui, que o jejum em quaisquer outras circuns­ tâncias é forçado, não natural, irreal; algo que os homens podem estar prontos para fazer em termos de formalidade, mas que não fazem com os seus corações e almas. “Podeis vós fazer jejuar os convidados das bodas, enquanto o esposo está com eles?”11 perguntou o Senhor, prati­ camente afirmando que isso seria impossível. Por meio dessa regra, os discípulos do nosso Senhor foram justifi­ cados; no entanto, os de João não foram condenados. Jejuar era reconhe­ cidamente algo natural para eles, quando estavam pesarosos, melancóli­ cos, ou insatisfeitos. Eles não tinham encontrado aquele ,que era o dese­ jado de todas as nações, a esperança de um futuro, o noivo da alma. Apenas sabiam que tudo estava errado, e em seu estado de desespero e lamentação, tinham prazer em jejuar, usar trajes grosseiros e freqüentar regiões isoladas e desoladas, vivendo como ermitões, um protesto práti­ co contra um período de crise. A mensagem de que o Reino estava pró­ ximo foi, de fato, pregada a eles também; mas enquanto proclamada por João, o anúncio foi uma terrível notícia, e não boas novas; isso os deixou

Lições sobre a Liberdade Religiosa

93

ansiosos e desanimados, e não contentes. Homens nesse estado de espí­ rito não podiam fazer outra coisa se não jejuar; embora se devessem ou não continuar nesse estado de espírito depois do noivo ter vindo, e ter lhes sido anunciado como tal pelo seu próprio mestre, seja outro assunto. Seus pesares eram obstinados* infundados e injustificáveis após a vinda de Jesus, aquele que estava prestes a tirar o pecado do mundo. Jesus, contudo, tinha mais a dizer em resposta às questões dirigidas a ele. Coisas novas e incomuns precisam de diversas explicações, e conse­ qüentemente, à linda semelhança dos filhos das bodas Ele adicionou outras duas sugestivas parábolas: a saber, a do remendo novo em trajes velhos, e a do vinho novo em odres velhos. O modelo dessas parábolas é muito semelhante àquele da primeira parte de sua resposta, ou seja, apli­ car a “lei da congruência” em relação ao jejum e a assuntos semelhantes; isto é, mostrar que em todos os serviços religiosos voluntários, onde somos livres para regular a nossa própria conduta, nossas atitudes devem corresponder à nossa condição espiritual interior, e nenhuma tentativa deve ser feita para forçar atitudes particulares, ou hábitos, nos homens, sem referência a essa concordância. Ao mencionar as coisas naturais, Ele quis se referir à observação dessa lei da congruência. Nenhum homem põe um remendo de pano novo12 em um vestido velho. Nem põem vi­ nhos novos em odres velhos, e isso não apenas por causa da conveniên­ cia, mas para evitar conseqüências desagradáveis, ou até mesmo desas­ trosas. Pois se a regra da congruência for negligenciada, o vestido re­ mendado se rasgará pela contração da nova roupa13; e os odres velhos se romperão sob a força da fermentação da nova bebida, e o vinho se derra­ mará e será perdido. As vestes e os odres velhos, nessas metáforas, representam antigos costumes ascéticos da religião; as novas vestes e o novo vinho represen­ tam a nova e feliz vida em Cristo, não desfrutada por aqueles que obsti­ nadamente aderiram às formas antigas. As parábolas foram aplicadas primeiramente à época de Cristo, mas podem ser aplicadas a todas as épocas de transição; de fato, elas encontram uma nova ilustração em quase todas as gerações. A força dessas simples parábolas como argumentos de defesa do abandono das práticas comuns da religião pode ser rejeitada em uma ou

94

O Treinamento dos Doze

outra destas formas: Primeiro, sua relevância pode ser negada; isto é, pode ser negado que crenças religiosas sejam de tal natureza quanto à exigência de modos inatos de expressão, sob pena da exigência não ser aceita. Essa postura é habitualmente admitida, parcial ou abertamente, pelos patronos dos usos e dos costumes. Mentes conservadoras têm, na maioria das vezes, uma concepção inadequada da força vital da crença. Suas próprias crenças e toda a sua vida espiritual são, freqüentemente, algo frágil; e essas pessoas imaginam que a mansidão ou a flexibilidade também devem ser um atributo da fé de outros homens. Nada além de uma terrível experiência irá convencê-los de que estão enganados, e quando a prova aparecer na forma de uma irreprimível explosão revolucionária, eles ficarão pasmados. Tais homens nada aprendem da história das gera­ ções anteriores, pois persistem em pensar que os seus próprios casos serão uma exceção. Por isso, o vis inertíce do costume instituído sempre insiste na adesão ao que é velho, até que o novo vinho prove seu poder, produzindo uma explosão desnecessariamente esbanjadora, pela qual tanto o vinho quanto os odres, com freqüência, deterioram-se; e energias que poderiam, tranqüilamente, ter trazido uma benéfica reforma, são pervertidas em cegos poderes de indiscriminada destruição. Ou, em s e g u n d o p la n o , ao a d m itir -se a r elev â n cia d essa s m etá fo r a s em termos gerais, pode ser negado que um novo vinho — tomando emprestada a forma de expressão da segunda metáfora, a mais sugestiva — chegou à existência. Essa foi, praticamente, a atitude assumida pelos fariseus em relação a Cristo. Em outras palavras, estavam perguntando ao Senhor: “O que você trouxe aos seus discípulos? Por que não podem viver como os outros vivem, mas acham necessário inventar novos hábi­ tos religiosos para si próprios? Essa nova vida da qual você se vangloria é uma vã pretensão, ou algo ilegítimo, espúrio, não digno de tolerância, e a perda disso não seria motivo de arrependimento”. Semelhante foi a atitude adotada em relação a Lutero pelos oponentes da Reforma. Eles, verdadeiramente, disseram-lhe: “Se esta sua nova revelação, de que os pecadores são justificados apenas pela fé, fosse verdadeira, admitimos que isso implicaria em muitas modificações consideráveis na opinião religiosa, e em muitas alterações na prática religiosa. Mas negamos a verdade da sua doutrina, consideramos a paz e o conforto que nela você

Lições sobre a Liberdade Religiosa

95

encontra, como uma alucinação; e, assim, insistimos que você retorne à fé tradicional, e então não terá dificuldade em aquiescer à prática insti­ tuída há anos”. O mesmo acontece, em maior ou menor extensão, a todas as gerações; pois o vinho novo está sempre a caminho de ser pro­ duzido pelo eterno vinho da .verdade, exigindo, em algumas particulari­ dades da crença e da prática, novos odres para a sua preservação, e recebe em resposta uma ordem para se conciliar com os odres antigos. Sem chegar ao limite da denúncia, ou à tentativa direta de supres­ são, aqueles que ficam ao lado do antigo com freqüência opõem-se ao novo pelo mais suave método da depreciação. Eles louvam o venerável passado, e o contrastam com o presente. E fazem-no em detrimento do presente. “O vinho antigo é vastamente superior ao novo: como ele é maduro, suave, fragrante, saudável! Já o outro, como é áspero e ardente/” Aqueles que dizem isso não são os piores dos homens: eles são, muitas vezes, os melhores — os homens que têm bom gosto e sensibilidade, os gentis, respeitosos, bons, que são eles próprio exemplos excelentes da antiga vindima. Suas formas de oposição são certamente o maior obstá­ culo para o reconhecimento público e para a tolerância ao que é novo na vida religiosa; já que isso naturalmente cria um forte preconceito contra qualquer motivo quando os religiosos o desaprovam. Observe, então, como Cristo responde aos sinceros admiradores do vinho velho. Ele reconhece o argumento: Admite que suas preferências são naturais. Lucas o apresenta dizendo, na conclusão de sua resposta aos discípulos de João Batista: “E ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo, porque diz: M elhor é o velho”14. Esse sentimento impressi­ onante mostra uma rara imparcialidade em expor a causa dos oponentes, e também uma rara modéstia e tato em defesa da causa de seus amigos. E como se Jesus tivesse dito: “Eu não me admiro que vocês amem o vinho velho da devoção judaica, fruto de uma vindima muito antiga; ou mes­ mo que estejam fascinados pelos muitos odres que o contenham, cober­ tos inteiramente pelo pó e por antigas teias de aranha. Mas e então? Os homens opõem-se à existência do vinho novo, ou recusam-se a possuí-lo pelo fato do antigo ser superior em sabor? Não: eles tomam o antigo, mas cuidadosamente preservam o novo, sabendo que o velho irá se esgo­ tar, e que o novo, mesmo sendo áspero, irá melhorar com o tempo, e

96

O Treinamento dos Doze

poderá, enfim, ser superior mesmo em sabor ao que está em uso atual­ mente. Mesmo assim vocês devem comportar-se de acordo com o novo vinho do meu reino. Vocês podem não desejá-lo imediatamente, porque ele é estranho e novo; mas certamente poderiam lidar com isso de uma forma mais sábia, ao invés de meramente rejeitá-lo, ou derramá-lo e destruí-lo!” Com pouca freqüência, para o bem da igreja, os apreciadores das formas antigas entenderam a sabedoria de Cristo, e os apreciadores dos novos caminhos simpatizaram-se com sua caridade. Um célebre histori­ ador observou: “Um homem se tornará desprezível, se, quando estiver no início de uma idade avançada, com inquietação olhar para a geração que se forma, e não se alegrar ao observá-la; no entanto, isso é muito comum em homens mais velhos. Fábio preferiria ter visto Aníbal invic­ to, do que ver sua própria fama obscurecida por Scipio”15. Existem sem­ pre no mundo muitos como Fábio, que se sentem incomodados porque as coisas não continuarão imóveis, e porque novas formas e novos ho­ mens estarão sempre surgindo para assumir o lugar dos antigos. Não menos raro, por outro lado, é a caridade de Cristo entre os defensores do progresso. Aqueles que lutam a favor da liberdade, posicionam-se contra a classe mais rigorosa dos fanáticos' e intolerantes, e combatem a favor das mudanças sem consideração aos seus escrúpulos, e sem qualquer apreço pelas qualidades excelentes do “vinho antigo”. Quando será que homens jovens e mais velhos, liberais e conservadores, cristãos tolerantes e legalistas, aprenderão a suportar uns aos outros, e, de fato, reconhece­ rão nos outros o complemento que lhes é necessário?

Seção II — Abluções R itu ais Mateus 15.1-20; Marcos 7.1-23; Lucas II .37-41

A sociedade alegre e livre em torno de Jesus, que vivia em clima de festa (como de casamento), enquanto outros jejuavam, era também, nes­ se aspecto, singular em seus modos. Assim, os seus membros faziam suas refeições despreocupados com as práticas correntes de purificação. Eles comiam pão com “mãos contaminadas”, por assim dizer, não porque não as lavassem, mas porque de fato não as lavavam de acordo com a forma prescrita na lei cerimonial. Podemos admitir que esta tenha sido a

Lições sobre a Liberdade Religiosa

97

sua forma de agir desde o início, embora não tenha se tornado um tema de reprovação até um período avançado do ministério de nosso Senhor16. Entendemos que mesmo que tenha havido algum conflito sobre este assunto, as circunstâncias não foram merecedoras de observação nos re­ gistros do Evangelho. Mesmo, no casamento em Caná, onde estavam postas seis talhas de pedra com o propósito de purificação, Cristo e seus discípulos estavam sujeitos a serem julgados como distintos dos outros convidados por uma certa negligência às abluções rituais. E isso inferi­ mos a partir dos motivos pelos quais a negligência foi defendida quando contestada, e na prática percebe-se que o hábito condenado não era ape­ nas legítimo, mas obrigatório — um dever indiscutível sob aquelas cir­ cunstâncias da sociedade judaica e, portanto, certamente um dever que em nenhum momento poderia ser negligenciado por aqueles que deseja­ vam agradar a Deus e não aos homens. Mas certamente não se precisava de provas de que alguém com tal alma distinta e sincera como Jesus nunca teria prestado atenção às insignificantes regras sobre os rituais de purificação antes das refeições, inventadas pelos “anciãos”. Essas regras não eram insignificantes aos olhos dos fariseus; e, portanto, não nos surpreendemos ao aprender que a indiferença com que eram tratadas por Jesus e pelos doze, tenha provocado a censura dessa zelosa facção de religiosos em pelo menos duas ocasiões, referi­ das nos relatos do Evangelho. Em uma dessas ocasiões, certos fariseus e escribas, que tinham seguido Jesus de Jerusalém ao Norte, ao verem alguns de seus discípulos comerem sem antes passarem pelas cerimô­ nias habituais de abluções, chegaram-se a Ele, e lhe perguntaram: “Por que não andam os teus discípulos conforme a tradição dos antigos, mas comem com as mãos por lavar?”17 Em outra ocasião, o próprio Senhor Jesus foi objeto da censura direta desses homens. “Um fariseu”, relata Lucas, “o convidou para ir comer com ele; então, entrando, to­ mou lugar à mesa. O fariseu, porém, admirou-se ao ver que Jesus não se lavara primeiro, antes de comer”18. O texto sagrado não nos infor­ ma se o anfitrião expressou sua surpresa por palavras ou por olhares; mas isso foi percebido pelo seu convidado, e assim foi criada uma ocasião para expor as falhas do caráter farisaico. “Agora”, disse o acu­ sado, em um zelo santo pela verdadeira pureza, “vós, fariseus, limpais

98

0 Treinamento dos Doze

o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está cheio de rapi­ na e maldade. Loucos! O que fez o exterior não fez também o interior? Dai, antes, esmola do que tiverdes, e eis que tudo vos será lim po”19. Por assim dizer, o convidado ofendido acusou seu escandalizado anfi­ trião, e a facção à qual este pertencia, de renunciar à pureza interior em benefício da exterior; e, ao mesmo tempo, ensinou-lhes a importante v e r d a d e d e que, para o que é puro, c o d a s as c o is a s s ã o puras, e mostrou-lhes o caminho pelo qual a verdadeira pureza interior seria alcançada, isto é, pela prática daquelas virtudes infelizmente negligen­ ciadas: a bondade e a caridade. A resposta do Senhor em outro encontro com os adversários fariseus sobre o tema da lavagem foi similar em seu princípio, mas diferente em sua forma. Ele falou aos zelotes sobre purificações, sem perífrases, mos­ trando-lhes que eram culpados da grave ofensa de sacrificar os manda­ mentos de Deus para obedecerem a mandamentos humanos — as tradi­ ções tão estimadas pelos anciãos. A declaração não foi uma calúnia, mas uma simples e triste constatação, embora sua verdade não fique comple­ tamente exposta. Pretendemos mostrar isso nos comentários seguintes; mas antes de prosseguir com essa tarefa, devemos nos esforçar, mesmo que de forma relutante, para obter um entendimento um pouco melhor sobre as desprezíveis senilidades cuja negligência outrora parecia um abominável pecado das pessoas que se consideravam santas. O objetivo dos preceitos rabínicos em relação às lavagens não era o de limpeza física, mas era concebido para ser algo mais elevado, mais consagrado. Seu objetivo era garantir a pureza cerimonial, não física; isto é, purificar a pessoa de impurezas que podiam ser contraídas pelo contato com um gentio, ou com um judeu ritualmente impuro, ou com um animal impuro, ou com um corpo morto, ou com qualquer parte desse corpo. As regras na lei de Moisés relacionadas a tais impurezas, os rabinos acrescentaram um vasto número de regras adicionais por conta própria, em um zelo obstinado pela meticulosa observância dos precei­ tos de Moisés. Eles emitiram os seus mandamentos, como a igreja de Roma emitiu os dela, sob o pretexto de que estes eram necessários como meios para se alcançar o grandioso objetivo de cumprir rigorosamente os mandamentos de Deus.

Lições sobre a Liberdade Religiosa

99

As cargas colocadas nos ombros dos homens pelos escribas, sobre esse fundamento aparentemente plausível, eram, de acordo com a maio­ ria, certamente as mais pesadas. Não satisfeitos com as purificações or­ denadas na lei para as verdadeiras situações de impureza, eles simples­ mente criaram prescrições para possíveis casos. Se um homem não ficas­ se em casa o dia todo, mas saísse para ir ao mercado, deveria lavar suas mãos quando voltasse, conforme o ritual religioso, porque era. possível que ele tivesse tocado em alguma pessoa ou em algo ritualmente impuro. Parece também que deveria ser tomado muito cuidado também com a água usada no processo de ablução, para que esta fosse perfeitamente pura; e era necessário até mesmo aplicá-la de uma maneira singular às mãos, a fim de assegurar o pretenso resultado. Sem irmos além dos re­ gistros sagrados encontramos, nas informações fornecidas por Marcos com relação aos costumes judaicos de purificação, o suficiente para mos­ trar a que ridículos exageros esse sisudo serviço de lavagem havia chega­ do. “E, quando voltam do mercado”, ele observa de forma singular, e não sem um toque de ironia, “se não se lavarem, não comem. E muitas outras coisas há que receberam para observar, como lavar os copos, e os jarros, e os vasos de metal, e as camas”20. Todas as coisas, em síntese, usadas em relação à comida — na sua preparação, ou na forma de colocála à mesa — deveriam ser lavadas, não meramente como as pessoas po­ dem lavá-las atualmente, para remover verdadeiras impurezas, mas para livrá-las das “mais graves impurezas” que podiam possivelmente ter con­ traído, desde a última vez que usaram-nas, por terem tocado em alguma pessoa ou em algo que não estivesse cerimonialmente limpo. Almejavam um tipo e uma medida de pureza que, na verdade, eram incompatíveis com a vida neste mundo. A verdadeira atmosfera do céu não era limpa o bastante para os insanos incentivadores das tradições desses religiosos; pois, para não falar de outras fontes de contaminação mais verdadeiras, a brisa, trazendo terras gentias à santa terra dos judeus, tinha-se poluído, o que a tornou inadequada para passar por pulmões ritualistas até que tivesse sido peneirada por um filtro que possuísse o poder mágico de limpá-la de suas contaminações. O zelo extravagante e fanático dos judeus nessas questões é ilustra­ do no Talmude por histórias que, embora pertencentes a uma época

100

O Treinamento dos Doze

posterior, podem ser consideradas como fiéis reflexos do espírito que inspirava os fariseus na época que nosso Senhor veio à terra. A seguinte história é um exemplo: “O rabino Akiba foi lançado na prisão pelos cristãos, e o rabino Josué trazia-lhe todo o dia água suficiente tanto para se lavar quanto para beber. Mas em uma ocasião, aconteceu-que o carce­ reiro da prisão pegou a água para tomá-la, e deixou cair metade dela. Akiba viu que tinha pouca água, porém mesmo assim disse: Dê-me a água para as minhas mãos. Seu irmão, rabino, respondeu, meu mestre, você não tem o bastante para beber. Mas Akiba respondeu, aquele que come com mãos impuras comete um crime que deve ser punido com a morte. Para mim é melhor morrer de sede do que transgredir as tradi­ ções dos meus antepassados”21. O rabino Akiba preferiria quebrar o sexto mandamento, e ser culpado de suicídio, do que separar-se da me­ nor formalidade de um ritualismo irracional; esta é uma ilustração da veracidade da declaração feita pelo Senhor Jesus Cristo em sua resposta aos fariseus, e que agora continuaremos a considerar. Não deveria ser esperado que, ao defender seus discípulos da co­ brança vã de negligenciarem a lavagem das mãos, Jesus mostrasse muito respeito pelos seus acusadores. Portanto, notamos uma considerável di­ ferença entre o tom de sua resposta no presente caso, e o de sua resposta aos discípulos de João. Com respeito aos discípulos de João, a atitude adotada foi respeitosamente defensiva e apologética; com respeito aos presentes interrogadores a atitude adotada é ofensiva e denunciatória. Jesus disse aos discípulos de João, em outras palavras: “Jejuar é correto para vocês; não jejuar é igualmente correto para meus discípulos”. Para os fariseus, entretanto, o Senhor responde com um sentença que de uma vez condena a conduta daqueles homens, e justifica o comportamento que eles contestaram. “Por que”, eles perguntaram, “transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?” O Senhor lhes respondeu fazendolhes outra pergunta: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus pela vossa tradição?” Como se dissesse: “Não convêm que vocês julguem; vocês, que vêem o cisco imaginário nos olhos de um irmão, têm uma trave nos seus próprios olhos”. Essa resposta corajosa foi algo mais que uma mera réplica, ou um argumento et tu quoque. Sob uma forma interrogativa, ela proclamou um

Lições sobre a Liberdade Religiosa

101

grande princípio, isto é, que a meticulosa observância das tradições hu­ manas em termos de prática leva, com certeza, a uma correspondente negligência e inconsciência em relação às eternas leis de Deus. Portanto, a defesa de Cristo para seus discípulos foi essencialmente esta: “Eu e meus seguidores desprezamos e negligenciamos esses costumes, porque desejamos guardar a lei moral. Essas lavagens, na verdade, podem não parecer entrar gravemente em conflito com os grandes temas da lei, sen­ do, na melhor hipótese, apenas superficiais e desprezíveis. Mas esse não é o caso. Tratar insignificâncias como assuntos sérios, como assuntos de consciência, assim como fazeis, é degradante e desmoralizante. Nenhum homem pode fazer isso sem ser ou se tornar um imbecil moral, ou um hipócrita. O mesmo ocorre com qualquer um que for incapaz de discernir entre o que é vital e o que não o é em relação à moralidade, e igualmente o que encontra prazer em obter ninharias, como a lavagem das mãos, ou o pagamento do dízimo das ervas, para que sejam aceitos como assuntos importantes; e às grandes e genuínas questões da lei — justiça, miseri­ córdia e fé — discretamente não deram importância como se estas fos­ sem a todo o momento questões sem qualquer importância”. Toda a história da religião prova a veracidade desses pontos de vis­ ta. Uma época repleta de cerimônia e tradição é, de forma inevitável, uma época moralmente corrompida. Hipócritas ostensivamente zelo­ sos, secretamente ateus; devassos tomando suas vinganças de forma licenciosa por terem sido obrigados, por costumes tirânicos ou por into­ lerantes autoridades eclesiásticas, a se conformarem exteriormente com práticas pelas quais eles não têm respeito; sacerdotes do tipo dos filhos de Eli, glutões, cobiçosos, devassos: tais são os sombrios presságios de um tempo em que os rituais são tudo; e a piedade e a virtude, nada. Práticas ritualistas e deveres artificiais de todos os tipos, quer originados pelos rabinos judeus, ou pelos doutores da igreja cristã, devem ser total­ mente renunciados. Recomendados pelos seus zelosos defensores, fre­ qüentemente com sinceridade, como algo notavelmente adequado para promover a cultura da moralidade e da piedade, estes sempre trazem, a longo prazo, a fatalidade para todos. Apropriadamente são chamados na epístola aos Hebreus de “obras mortas”. Elas não estão apenas mortas, mas produzindo a morte; pois, como todas as coisas sem vida, elas ten-

102

O Treinamento dos Doze

dem a apodrecer e a provocar uma peste espiritual que leva milhões de almas à perdição. Se elas têm alguma vida, é uma vida sustentada pela morte, a vida de um fungo crescendo em árvores mortas; se elas têm alguma beleza, é a beleza da decadência, de folhas do outono, secas e amarelas, quando a seiva está descendo à terra, e a madeira está prestes a entrar em seu estado de inverno, de nudez e desolação. O ritualismo é, no máximo, apenas o fugaz período após o verão do ano espiritual! Pode ser muito fascinante, mas quando ele vier, tenha a certeza de que o inver­ no estará às portas. “E todos nós caímos como a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arrebatam”. Tendo trazido uma séria contra-acusação aos fariseus, a de renunci­ ar à moralidade em benefício do cerimonialismo, e os mandamentos de Deus em benefício das tradições dos homens, Jesus continuou, em se­ guida, a substanciar a sua afirmação através de um forte exemplo e de uma citação bíblica. O exemplo selecionado foi a evasão dos deveres provenientes do quinto mandamento, sob o pretexto de uma prévia obri­ gação religiosa. Deus disse: “Honra a teu pai e a tua mãe”, e vinculou a quebra deste mandamento à pena de morte. Os escribas judeus diziam: “Se um homem disser ao pai ou à mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta ao Senhor”, já não precisaria obedecer à Palavra de Deus. A palavra “Corbã”, na lei de Moisés, significa um pre­ sente ou uma oferta a Deus, de qualquer tipo, com ou sem derramamen­ to de sangue, ofertada em qualquer ocasião, como por exemplo no cum­ primento de um voto22. No dialeto rabínico, isso significava algo consa­ grado a propósitos santos e, por conseguinte, não disponível para o uso particular ou secular. A doutrina tradicional em relação ao Corbã era prejudicial, de duas formas. Ela encorajava os homens a fazer da religião uma desculpa para negligenciarem a moralidade, e abria uma larga porta para a desonestidade e para a hipocrisia. Ela ensinava que um homem não precisava, apenas por causa de um voto, negar a si mesmo aquilo que lhe era lícito; mas que podia, por consagrar algo a Deus, livrar-se de todas as obrigações de dar algo aos outros, mesmo que se tratasse de algo que tivesse a obrigação de lhes dar. Assim, de acordo com o perni­ cioso sistema dos rabinos, não era necessário, na verdade, dar algo lite­ ralmente a Deus a fim de ser livre da obrigação de dá-lo a outra pessoa.

Lições sobre a Liberdade Religiosa

103

Era suficiente chamar aquilo de Corbã. Bastaria apenas pronunciar essa palavra mágica sobre qualquer coisa, e em seguida esta passaria a ser de Deus, e assim não deveria ser usada por outros, exceto pelo próprio “ofertante”. Portanto, o zelo obstinado por honrar a Deus levou aqueles homens a desonrar a Deus, por tomarem seu precioso nome em vão; e as práticas que, na melhor hipótese, seriam responsáveis por “lançar a pri­ meira tábua da lei contra a segunda”, mostraram-se destrutivas para ambas. Eles anularam toda a lei de Deus, tornando-a sem efeito para si mesmos, por causa de suas tradições. A anulação do quinto mandamento foi ape­ nas um exemplo do dano que os zelotes, pelos mandamentos dos ho­ mens, fizeram, como está subentendido nas palavras do Senhor Jesus Cristo, “... invalidando, assim, a palavra de Deus pela vossa tradição, que vós ordenastes. E muitas coisas fazeis semelhantes a estas”23. A citação bíblica24 proferida pelo nosso Senhor em resposta aos fariseus, não foi menos adequada do que o exemplo ilustrativo, igual­ mente mostrando seus vícios característicos, hipocrisia e superstição. Eles estavam próximos de Deus apenas em palavras, honravam-no com seus lábios, mas em seus corações estavam distantes dEle. Sua religião era totalmente exterior. Eles lavavam cuidadosamente suas mãos e suas ta­ ças, mas não tinham o cuidado de purificar suas almas poluídas. Então, em segundo lugar, aprenderam sobre o temor a Deus por meio de pre­ ceitos de homens. As prescrições humanas e as tradições eram seus guias na religião, e eles as seguiam cegamente, sendo negligentes em relação a quanto esses mandamentos de homens poderiam levá-los para longe dos caminhos da eqüidade e da verdadeira vida com Deus. A palavra profética era rápida, poderosa, direta, perspicaz e conclu­ siva. Nada mais foi preciso para consternar os fariseus, e nada mais foilhes dito nesse momento. O oráculo sagrado era a conclusão convenien­ te para um argumento irrefutável contra os defensores da tradição. Mas Jesus teve compaixão da pobre multidão que estava sendo levada à ruína pelos seus guias espirituais cegos; e, por essa razão, Ele aproveitou a oportunidade para dirigir uma palavra àqueles que estavam em torno do assunto da controvérsia. Ele expressou aquilo que tinha a lhes dizer, na forma concisa e penetrante de um provérbio: “Ouvi-me, vós todos, e compreendei. Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa

104

O Treinamento dos Doze

contaminar; mas o que sai dele, isso é que contamina o homem”. Este era um enigma a ser decifrado, um segredo de sabedoria para ser analisa­ do, uma lição de religião a ser memorizada. Seu significado, embora provavelmente entendido por poucos no momento, era muito evidente. O sentido de suas palavras foi simplesmente este: “Prestem mais atenção à limpeza do coração, e não, como os fariseus, à limpeza das mãos. Quan­ do o coração é puro, tudo é puro; quando o coração é impuro, toda a purificação exterior é vã. A sujeira a ser temida não é a da carne cerimonialmente impura, mas a que emerge de uma mente carnal, a imundície de maus pensamentos, más paixões e maus hábitos”. Essa palavra dirigida aos espectadores tornou-se o assunto de uma subseqüente conversa entre Jesus e seus discípulos, na qual Ele aprovei­ tou a ocasião para justificar a razão de proferi-la, e lhes explicou o seu significado. Os fariseus ouviram o comentário, e mostraram-se natural­ mente ofendidos, já que este tendia a enfraquecer a autoridade deles sobre a consciência popular. Os doze notaram o seu desgosto, e talvez tenham ouvido os comentários dos fariseus; e, com medo de más conse­ qüências, informaram o seu Mestre. Ao falarem-lhe, provavelmente te­ nham apresentado um tom que continha uma secreta preocupação pelo fato de o Senhor ter sido tão assertivo. Seja como for, Jesus deu-lhes a entender que não era um caso de clemência, de compromisso, ou de uma política tímida, oportunista e prudencial; a tendência ritualista é uma má planta que deve ser arrancada, mesmo que isso ofenda os seus defen­ sores. O Senhor alegou, ao defender a forma direta de seu discurso, sua preocupação com a alma das pessoas ignorantes, que tinham como guias os fariseus, reivindicadores de tal título. “Deixai-os; são condutores ce­ gos; ora, se um cego guiar outro c e g o , ambos cairão na cova”. Portanto, se os líderes são tão desesperadamente apegados aos seus erros que não podem se dissuadir deles, deixe-nos ao menos tentar salvar suas vítimas ignorantes. A pedido de Pedro, Jesus deu a seus discípulos a explicação da pala­ vra proverbial dita às pessoas25. Ela é rudemente clara e singular, porque foi encaminhada a simples ouvintes ignorantes. Ela expressa, mais uma vez, na linguagem mais forte possível, a de que comer com mãos cerimonialmente impuras não contamina o homem, porque nada que

Lições sobre a Liberdade Religiosa

105

entra pela boca pode chegar à alma; que a sujeira a ser temida, a única impureza que vale a pena ser mencionada, é a de um coração mau e não nascido de novo, do qual procedem maus pensamentos, palavras e atos que são ofensas contra a pura e santa lei de Deus. As palavras conclusi­ vas, “ficando puras todas as comidas”, têm, sem dúvida e de qualquer forma, uma importância peculiar, se adotarmos a leitura aprovada pelos críticos: “Ele disse, ficando puras todas as comidas”. Nesse caso, temos o evangelista dando sua opinião pessoal quanto ao efeito das palavras de Cristo, isto é, que elas eqüivaliam a uma anulação da distinção cerimoni­ al entre puro e impuro. Um comentário muito notável vem do homem a quem nos tornamos devedores pelo relato da pregação desse apóstolo, que em seus tempos de discípulo inspirou a declaração, e que teve a visão do lençol sendo baixado do céu. Já que o evangelista deu-nos seu comentário, podemos adicionar os nossos. Percebemos que o nosso Senhor está aqui, silenciosamente, re­ fletindo sobre a lei cerimonial de Moisés (à qual as tradições dos anciãos foram um suplemento), e Ele fala apenas dos mandamentos de Deus, isto é, dos preceitos do decálogo. O fato é significativo por mostrar em que termos Ele veio ab-rogar, e em que termos Ele construiu. O ritualismo estava prestes a ser abolido, e as eternas leis da moralidade estavam pres­ tes a se tornar o mais importante. A consciência dos homens estava prestes a ser separada da carga das óbvias ordenanças exteriores, para que as pessoas pudessem estar livres para servir ao Deus vivo, guardando seus dez mandamentos, ou a magnífica lei do amor. E é dever da igreja per­ manecer firme na liberdade que Cristo criou e conquistou para ela, e ficar atenta a todas as tradições humanas que não condigam com o zelo santo pela vontade de Deus, afastando a superstição por um lado, e a liberdade licenciosa da devassidão ímpia por outro. Os verdadeiros se­ guidores de Cristo desejam ficar livres, mas não para fazer o que quise­ rem; antes, para fazer o que Deus quer que façam. Com o pensamento assim disposto, eles rejeitam o cerimonialismo e toda a autoridade hu­ mana na religião, separando-se por meio disso, dos devotos da tradição; e ao mesmo tempo, como servos de Deus, honram a sua Palavra e a sua lei, colocando assim um extenso abismo entre eles mesmos e aqueles que não vivem de acordo com a lei, os desobedientes, que tomam partido

106

O Treinamento dos Doze

nos movimentos de reforma religiosa, não a fim de obterem algo melhor no lugar daquilo que é rejeitado, mas para livrarem-se de todas as restri­ ções morais em questões humanas e divinas.

Seção III - A O bservância do Sábado

.

Mateus I2.I-I4; Marcos 2.23-3.1-6; Lucas 6.1-2; 13.10 -16 ; I4.I-6; João 5.I-I8; 9 .I3 -I7

Jesus e seus discípulos foram, mais freqüentemente, considerados culpados pelo modo como lidavam com a questão do sábado do que por sua conduta em geral. Seis diferentes casos de ofensas ligadas ao sábado (em que os fariseus sentiram-se ofendidos ou ofenderam ao Senhor) estão registradas na história do Evangelho; em cinco delas o próprio Senhor Jesus foi o ofensor, enquanto nos outros casos, seus discípulos foram, pelo menos, objetos de censura ostensiva. As ofensas de Jesus foram todas de uma mesma espécie; o crime de que o acusaram foi o de, no dia de sábado, realizar curas em corpos de homens aflitos, respectivamente por paralisia, mãos deformadas, ceguei­ ra, hidropisia, e no corpo de uma pobre mulher “encurvada” por uma enfermidade que sofria há dezoito anos. A ofensa dos discípulos, por outro lado, foi que, enquanto andavam juntos por um caminho que pas­ sava por um milharal, arrancaram algumas espigas com a intenção de satisfazer a sua fome. Isto não era furto, pois era permitido pela lei de Moisés26; mas, apesar disso, era, de acordo com o julgamento dos fariseus, desobediência ao mandamento relacionado ao sábado. Diziam ser uma atitude contrária à ordem de não trabalhar no sábado; pois arrancar algumas espigas era ceifar em uma pequena escala, e friccioná-las era uma espécie de debulha! Essas ofensas, consideradas tão graves quando cometidas, parecemnos muito pequenas. Todas as transgressões da lei do sábado de que o Senhor Jesus foi acusado estavam relacionadas às suas obras de miseri­ córdia; e a única suposta transgressão dos discípulos foi a realização de um trabalho que era necessário para a sobrevivência deles. A tolerância em relação a esses atos era um dever de misericórdia; então, ao condenálos, os fariseus esqueceram-se da Palavra do Senhor: “Misericórdia que­ ro e não sacrifício”. N a verdade, é difícil para nós, agora, imaginar como alguém poderia estar sendo sério considerando tais ações como viola­

Lições sobre a Liberdade Religiosa

107

ções do sábado, especialmente o inocente ato dos doze. H á uma peque­ na demonstração de plausibilidade na objeção assumida pelo adminis­ trador da sinagoga a curas miraculosas feitas no sétimo dia: “Seis dias há em que é mister trabalhar; nestes, pois, vinde para serdes curados e não no dia de sábado”27. A observação foi especialmente plausível com refe­ rência ao caso que provocou a ira do dignitário da sinagoga. Uma mu­ lher que sofria há dezoito anos, podia certamente suportar seu proble­ ma por mais um dia, e vir para ser curada na manhã seguinte! Mas com que pretexto os discípulos poderiam ser acusados de violar o sábado, só por servirem-se de algumas espigas de milho? Chamar tal ato de traba­ lho era ridículo. Os homens que nessa ocasião viram uma ofensa ao sábado, deveriam estar muito ansiosos para apanhar os discípulos de Jesus em alguma falta. Não temos nenhuma dúvida de que os fariseus estavam à procura de transgressões; e ainda devemos admitir que, condenando o referido ato, estavam agindo fielmente de acordo com as suas perspectivas teóricas e suas tendências naturais. Seus julgamentos em relação à conduta dos doze estavam de acordo com as suas tradições acerca das lavagens, do pagamen­ to de dízimos da hortelã e de outras ervas, e de seus esforços para manter limpas suas taças de vinho. Seus hábitos, em todas as coisas, deveriam degradar a lei de Deus, por conceberem inúmeras regras insignificantes para a sua melhor observância, que, ao invés de garantirem esse fim, apenas faziam com que a lei parecesse ter pouco valor e ser desprezível. Em ne­ nhum caso essa miserável meticulosidade atingiu as proporções do caso relacionado ao quarto mandamento. Com uma ingenuidade perversa, as atitudes mais insignificantes foram trazidas para dentro do campo da proi­ bição ao trabalho. Mesmo no caso exemplificado por nosso Senhor, aque­ le de um animal caindo dentro de um poço, era considerado lícito tirá-lo de lá — pelo menos dizem-nos esses eruditos do saber rabínico — apenas quando deixá-lo lá, até o sábado passar, envolvesse um risco de vida. Quando o atraso não envolvesse risco de vida, a regra era dar ao animal comida suficiente para o dia; e se houvesse água no fundo do poço, devia-se apoiálo por baixo, de modo que não submergisse28. Contudo, a despeito de todos os seus cuidados para se absterem de tudo o que tivesse o mínimo indício de trabalho, os judeus eram curiosa­

108

O Treinamento dos Doze

mente negligentes com outras coisas. Enquanto observavam minuciosa­ mente a lei que proibia cozinhar no sábado29, não faziam do dia santo, de nenhuma forma, um dia de jejum. Ao contrário, consideravam seu dever, fazer do sábado um dia de festa e de comer bem30. N a verdade, em uma festa para celebrar o sábado, promovida por um dos principais fariseus, Jesus realizou um grande milagre. Nessa festa havia muitos convidados, e Jesus era um deles — porém tudo indica que o Senhor não foi convi­ dado devido a um sentimento amigável; parece que desejavam encontrar algo contra Ele em relação à lei do sábado. “Aconteceu”, lemos em Lucas, “que, entrando ele em casa de um dos principais dos fariseus para comer pão, eles o estavam observando”31. Colocaram uma armadilha, e espera­ vam apanhar aquele que era odiado sem causa; e se esforçaram nessa busca. Como recompensa por seus ímpios esforços, receberam repreen­ sões que provavelmente nunca tinham ouvido32. Esse hábito de festejar havia alcançado um nível de extremo abuso na época de Agostinho, con­ forme a descrição que ele faz do modo como os judeus contemporâneos celebravam o seu feriado semanal. “Hoje”, ele escreve, “é sábado, o dia que os ju d eu s de nossa época guardam com um con fo rto descompromissado e exuberante, pois ocupam seu tempo livre com futilidades; e gastam o dia estabelecido por Deus para o descanso com aqui­ lo que Ele proíbe. Em nosso descanso nos abstemos das más obras, enquanto eles descansam das boas obras; pois é melhor arar do que dançar. Eles descansam das boas obras, mas não descansam da ociosida­ de”33. Da insensatez e do pedantismo dos escribas e dos fariseus, pra­ zerosamente voltamo-nos à sabedoria de Jesus, como reveladas nas ani­ madas, profundas e, ainda, sublimemente simples respostas que Ele deu às diversas acusações de quebrar o descanso do sábado, colocadas contra Ele e seus discípulos. Antes de considerarmos essas respostas detalhada­ mente, estabeleceremos como premissa um comentário genérico em re­ lação a todas elas. Em nenhuma dessas defesas, Jesus colocou em dúvida a obrigação de se cumprir a lei do sábado. Com relação a isso, Ele não teve nenhuma dissensão contra os seus acusadores. Seu argumento nessa ocasião é totalmente diferente da linha de defesa adotada em relação ao jejum e às purificações. Com respeito ao jejum, a posição que Ele adotou

Lições sobre a Liberdade Religiosa

109

foi a seguinte: Jejuar é algo intencional, e os homens devem ou não jejuar no momento em que estão dispostos. Em relação à purificação, sua po­ sição era: Abluções religiosas são, no máximo, de segunda importância, sendo meras formas de pureza interior, e como praticadas naquele mo­ mento, levavam inevitavelmente à completa negligência da pureza espiri­ tual, e por causa disso devem ser desconsideradas por todos os que estão preocupados com os maiores interesses da moralidade. M as com relação à alegada violação da lei do sábado, a posição tomada por Jesus foi: Esses atos que vocês condenam, não são transgressões da lei, são perfeitamen­ te compreensíveis, em seu espírito e princípio. A importância da lei foi reconhecida, mas a interpretação farisaica de seu significado foi rejeita­ da. Foi feito um apelo em relação ao seu código pedante de regras sobre a observância do sábado para o grandioso princípio e criação da lei; e foi declarado justo examinar todas as regras à luz do princípio, e rejeitar ou desconsiderar aquelas em que o princípio havia sido aplicado erronea­ mente, ou, como acontecia em grande parte com os fariseus, perdido a noção do todo. A chave para todos os ensinos de Cristo sobre o sábado, portanto, permanece em sua concepção da idéia original dessa instituição divina. Encontramos essa concepção expressa com característica epigramática e concisão, em contraste com a idéia farisaica do sábado, em palavras pro­ nunciadas por Jesus na ocasião em que Ele estava defendendo seus discí­ pulos. “O sábado”, Ele disse, “foi feito por causa do homem, e não o homem, por causa do sábado”. Em outras palavras, era esta a sua doutri­ na: O sábado foi feito para ser uma bênção para o homem, não uma carga; não foi um dia tirado do homem por Deus em um espírito de severida­ de, mas um dia dado por Deus ao homem por misericórdia — um dia de descanso que pertence a Deus, e que deve ser dedicado às coisas dele. Toda a legislação que reforça a sua observância, tem por finalidade asse­ gurar que todos devem, de fato, obter o benefício dessa bênção — que nenhum homem deve se privar, e menos ainda os seus semelhantes, desse gracioso favor. Essa diferença entre a forma de Cristo julgar o sábado e a dos fariseus inclui, inevitavelmente, uma diferença correspondente no espírito e nos detalhes de sua observância. Tome a perspectiva de Cristo, e seu princí­

110

O Treinamento dos Doze

pio tornar-se-á: Essa é a melhor forma de guardar o sábado, que é mais condizente com o bem-estar físico e espiritual do homem — em outras palavras, é melhor para seu corpo e para sua alma; e à luz desse princípio, você guardará o dia santo com um espírito de alegria racional e de grati­ dão a Deus, o Criador, por sua graciosa consideração para* com as suas criaturas. Considere a perspectiva farisaica, e seu princípio de observân­ cia tornar-se-á: O que melhor guarda o sábado é o que vai às maiores extensões na mera abstinência a qualquer coisa que possa ser interpreta­ da como trabalho, sem consideração ao e fe i t o dessa abstinência para o seu próprio bem-estar ou o de outros. Resumidamente, chegamos à es­ túpida e absurda exatidão da legislação rabínica. Esta enxerga uma ofen­ sa abominável contra o quarto mandamento e seu Autor, por exemplo, nos seguintes atos: aquele em que os discípulos colhem e debulham espi­ gas de milho, ou aquele em que o homem curado da paralisia por Jesus carregou sua cama em seus ombros à sua casa34, ou ainda aquele em que alguém devesse andar uma distância maior que dois mil côvados, ou três quartos de uma milha35 em um sábado. Uma observância do sábado ordenada pelo princípio de que a sua instituição foi feita para o bem do homem, obviamente implica duas práticas grandes e gerais — descanso para o corpo, e adoração como o conforto para a alma. Devemos descansar do trabalho servil nesse dia concedido por Deus, e devemos elevar os nossos corações em sincera meditação àquele que fez todas as coisas em primeiro lugar, e que “tra­ balha até agora”, protegendo a existência e o bem-estar da criação, e cuja afável compaixão para com homens pecadores é grande e incompreensí­ vel. Essas coisas são necessárias ao verdadeiro bem do homem, e por isso devem ser elementos essenciais de uma adequada observância do sábado. Mas, por outro lado, uma vez que o sábado foi feito para o homem, as duas principais exigências, o descanso e a adoração não podem ser exigidas a ponto de se tornarem hostis ao bem-estar do homem, e de fato prejudiciais para a pessoa, ou mutuamente destrutivas. A regra: “Descansarás”, não deve ser aplicada de modo a excluir toda a ação e todo o trabalho; pois a completa inércia não e descanso, e a completa abstinência de trabalho de toda espécie seria, muitas vezes, prejudicial para o bem-estar privado e público. Deve-se deixar espaço para atos de

Lições sobre a Liberdade Religiosa

111

“necessidade e misericórdia”; e uma legislação muito categórica e minu­ ciosa em relação ao que são ou não atos de qualquer dessas espécies deve ser evitada, visto que esses assuntos podem variar para diferentes pesso­ as, tempos e circunstâncias, e os homens podem realmente diferir de opinião em detalhes que são pêrfeitamente fiéis aos princípios gerais da consagração do sábado. Da mesma maneira, a regra: “Adorarás”, não deve ser tão reforçada a ponto de fazer dos deveres religiosos algo cansa­ tivo e pesaroso — um mero serviço mecânico e aceito; ou de tal forma que envolva o sacrifício de outro objetivo prático do sábado, a saber, descanso para a natureza animal do homem. Os homens também não podem impor, mutuamente, como para fins de adoração, nada mais do que a essência; pois alguém pode encontrar ajuda na devoção de formas que para outros seriam um obstáculo e um impedimento. Foi apenas com referência à interrupção do trabalho que a legisla­ ção e prática farisaica com respeito à observância do sábado foram leva­ das ao excesso supersticioso e opressivo. A obsessão pelo sábado era uma monomania; e os afetados por ela tornaram-se loucos simplesmente em um ponto: o severo cumprimento do descanso. Aqui está o caráter peculiar de todas as acusações trazidas contra Cristo e os seus discípulos, e tam­ bém de suas respostas. As ofensas cometidas eram todas trabalhos con­ siderados proibidos; e todas as defesas tiveram a finalidade de mostrar que os trabalhos feitos não eram contrários à lei, quando essa era inter­ pretada à luz do princípio que dizia que o sábado foi feito para o ho­ mem. Eram trabalhos de necessidade e de misericórdia e, portanto, per­ mitidos no dia de repouso e adoração. Jesus extraiu suas provas dessa posição, a partir de três fontes: da história das Escrituras, da prática diária dos próprios fariseus e da provi­ dência de Deus. Em sua defesa a seus discípulos, Ele se referiu ao caso de Davi que comeu os pães da proposição quando fugiu para a casa de Deus saindo da corte do rei Saul36, e à constante prática dos sacerdotes em fazerem obras para o serviço do templo nos dias de sábado, tais como oferecer holocaustos duplos, e remover os pães amanhecidos da proposição do lugar santo e substituí-los por pães quentes. O caso de Davi provou o princípio geral de que a necessidade não tem lei; a fome justificou o seu ato, como também deveria ter justificado o ato dos dis­

112

0 Treinamento dos Doze

cípulos, mesmo na visão farisaica. A prática dos sacerdotes mostrou que o trabalho — meramente como trabalho —não é contrário à lei do dia de repouso e adoração, sendo que alguns trabalhos não são apenas líci­ tos, mas obrigatórios nesse dia. O argumento extraído por Jesus da prática comum foi bem adequa­ do para silenciar capciosos críticos, e para sugerir o princípio pelo qual sua própria conduta podia ser defendida. Ele teve o seguinte efeito: “Você tiraria um jumento ou um boi de um poço no sábado, não tiraria? Por quê? Para salvar a vida? Então, por que eu não devo curar uma pessoa doente pela mesma razão? Ou a vida de um animal é mais importante que a vida de um ser humano? Ou novamente: Você hesitaria em perder seu boi, ou o seu jumento, não o desprendendo da manjedoura no dia do descanso, para levá-lo a beber água?37 Se não, por quê opõem-se a mim quando, no sábado, eu liberto uma pobre vítima de uma dependência que sofria há dezoito anos, para que ela possa tirar água da fonte da salvação?” O argumento é irresistível, e a conclusão é inevitável; fazer o bem no dia de sábado é legítimo, conveniente e mostra obediência. Como estavam cegos aqueles a quem tão óbvia sentença precisava ser provada! Como estavam esquecidos do fato de que o amor é o fundamento e o cumprimento de toda a lei, e que, assim, nenhum preceito específico ja­ mais poderia ser destinado a suspender a operação desse princípio divino! O argumento da providência usado por Jesus em outra ocasião38 teve a finalidade de servir ao mesmo propósito que os outros, isto é, mostrar a legitimidade de certos tipos de trabalho no dia do descanso. “M eu Pai trabalha até agora”, Ele disse aos seus acusadores, “e eu traba­ lho também”. O Filho reivindicou o direito de trabalhar porque, e como, o pai trabalha em todos os dias da semana. O pai trabalhou incessante­ mente por fins beneficentes e conservadores, a maior parte do tempo preservando e governando, de forma santa, sábia e poderosa, todas as suas criaturas e todas as suas ações, mantendo os planetas em suas órbi­ tas, fazendo o sol nascer e brilhar, os ventos circularem em seus rumos, e as marés a vazar e subir no sétimo dia, como em todos os outros seis. Então, Jesus Cristo, o Filho de Deus, reivindicou o direito de trabalhar e, de fato, trabalhou — salvando, restaurando, curando — e assim pôde restaurar a natureza decaída dos seres humanos a seu estado original, em

Lições sobre a Liberdade Religiosa

113

que Deus, o Criador, declarou boas todas as coisas, e descansou e se satisfez com o mundo que trouxe à existência. Tais trabalhos de benefi­ cência, de acordo com a doutrina de Cristo, podem ser sempre feitos no dia de repouso e adoração: trabalhos de natureza humanitária, como aqueles do médico; o do professor de crianças que foram negligenciadas; os de natureza filantrópica, entre os pobres e necessitados; ou o do mi­ nistro cristão pregando o evangelho da paz; e assim muitos outros, dos quais os homens ocupam-se com amor, e os fazem de bom grado, mas em relação aos quais algumas pessoas, na frieza de seu coração, não fa­ zem tanto quanto sonham. Contra tais trabalhos, não há lei, salvo as dos rudes e desagradáveis costumes farisaicos. H á uma outra declaração que o nosso Senhor proferiu sobre o pre­ sente assunto, que traz um grande peso para os cristãos, embora possa não ter tido nenhum valor apologético na opinião dos fariseus, mas an­ tes deve ter parecido um agravamento da ofensa que deveria ser perdoa­ da. Nos referimos à palavra: “O Filho do homem até do sábado é Se­ nhor”, dita por Jesus na ocasião em que Ele defendeu seus discípulos contra a acusação de violarem o sábado. Essa declaração extraordinária, como a reivindicação feita, no mesmo momento, de ser maior que o templo, como uma asserção da dignidade sobre-humana da parte da­ quele que é manso e humilde, não tinha a intenção de ser uma pretensão ao direito de violar a lei do descanso sem razão, ou anulá-la totalmente. Isso é evidente no relato de Marcos39, onde as palavras vêm como uma inferência da afirmação de que o sábado foi feito para o homem, e que não poderia, obviamente, tornar-se o alicerce de uma revogação do esta­ tuto, visto que esse é o mais poderoso argumento para a perpetuação do descanso semanal. Se o descanso semanal tivesse sido uma mera restri­ ção opressiva imposta aos homens, deveríamos ter esperado que o Se­ nhor Jesus Cristo o tivesse anulado, pois Ele veio para libertar os ho­ mens de todo o tipo de escravidão. Mas o sábado foi feito para o ho­ mem — para o seu bem. Então, devemos esperar que a função de Cristo não seja a de um anulador, mas a de um legislador universal e filantrópi­ co, fazendo com que aquilo que era previamente um privilégio exclusivo de Israel, se tornasse uma bênção universal, para toda a humanidade. Pois o Pai enviou o seu Filho ao mundo para verdadeiramente libertar o

114

O Treinamento dos Doze

homem do jugo das ordenanças, mas não para cancelar nenhuma das suas bênçãos, pois estas são sem arrependimento; os dons e a vocação de Deus, uma vez concedidos, não são retirados (R m 11.29). Então, o que significa o senhorio de Cristo sobre o sábado? Sim­ plesmente isso: que uma instituição que faz parte da natufeza de uma bênção para o homem, submete-se ao controle daquele que é o Rei da graça e o administrador da misericórdia divina. Ele é o melhor Juiz para julgar como determinado preceito deve ser observado; só Ele tem a prer­ rogativa de ver que isso não deve ser pervertido de uma graça para um peso, passando a se opor à verdadeira e imperial lei do amor. O Filho do Homem tem autoridade para cancelar todos os regulamentos que se inclinam nessa direção, emanados dos homens, e até mesmo todos os preceitos paralelos às leis de Moisés que foram preparados pelos ho­ mens, repletos do rigor legal, e que tendem a cobrir a concepção benéfi­ ca do quarto mandamento do decálogo40. Ele pode, no exercício de sua prerrogativa mediadora, dar à antiga instituição um novo nome, alterar o dia da sua celebração, de maneira a envolvê-la distintamente com associ­ ações cristãs apropriadas ao coração dos crentes, e torná-la, em todos os detalhes de sua observância, subserviente ao grande objetivo de sua encarnação. Com tal propósito, o Filho do Homem afirmou ser Senhor do sá­ bado; e sua afirmação, assim compreendida, foi admitida pela igreja, quando, seguindo as pegadas da prática apostólica, mudou o descanso semanal do sétimo para o primeiro dia da semana41, a fim de poderem comemorar o alegre acontecimento da ressurreição do Salvador, que fica mais próximo do coração do crente do que o antigo acontecimento da criação, e chamou o primeiro dia pelo seu nome, o dia do Senhor42. Em relação a essa afirmação, todos os cristãos admitem que, olhando para o dia à luz da criação original de Deus, dos ensinos, exemplos e obras de Cristo, observam-na como para manter o meio termo entre dois extre­ mos: o do rigor farisaico e o da falta de cuidado dos saduceus. Os cris­ tãos reconhecem, por um lado, as finalidades benéficas fornecidas pela instituição, e fazem o máximo para assegurar que esses fins sejam total­ mente realizados; e, por outro lado, evitam o cuidado insignificante do triste legalismo, que leva muitos, especialmente os jovens, a se chocarem

Lições sobre a Liberdade Religiosa

115

com a lei como um estatuto de restrições injustas e arbitrárias. Os cris­ tãos evitam também o mau hábito farisaico de dar indultos em julga­ mentos indiscutíveis com relação a difíceis questões e detalhes, e na con­ duta daqueles que em tais questões não pensam nem agem como eles mesmos. Não devemos encerrar este capítulo, no qual temos estudado as lições de forma livre, mas reverente, dadas pelo nosso Senhor aos seus discípulos, sem adicionarmos uma reflexão aplicável a todas as três. Por meio dessas lições, os doze aprenderam uma virtude muito necessária para os apóstolos de uma religião que era nova em muitos aspectos — o poder de suportar o isolamento e as suas conseqüências. Quando Pedro e João compareceram diante do sinédrio, os administradores se admira­ ram com a audácia deles, a ponto de reconhecerem que eram compa­ nheiros de Jesus, o Nazareno. Parece que imaginaram os seguidores de Jesus Cristo como estando preparados para qualquer coisa que viesse a requerer a intrepidez. E estavam certos. Os apóstolos tinham “nervos fortes”, e não eram facilmente intimidados; e as lições que temos consi­ derado nos ajudam a entender de onde eles tiraram sua rara coragem moral. Durante anos estes homens se acostumaram a permanecer sozi­ nhos e a negligenciar o padrão do mundo, até que finalmente pudessem fazer o que era correto, indiferentes à censura humana, sem qualquer esforço aparente, quase que automaticamente, sem pensar duas vezes.

1 Veja o capítulo 3 2 Mateus 9.14. De Marcos e Lucas pode ser inferido que alguns fariseus eram interrogadores contumazes; mas isto não é afirmado no texto sagrado. 3 Mateus 21.32 4 Veja Buxtorf, De Synagoga Judaica, capítulo 30; também Zacarias 8.19 5 Lucas 18.12 6 João 3.26 7 João 5.35 8 Mateus I I .7-15 9 Mateus 11.16,19 10 João 3.29 11 Lucas 5.34, m ê âunastbe ... poiêsai nêsteuein 12 Mateus 9.16, rhakous agnaphou 13 Lucas 5.36 dá à reflexão uma outra direção. O pano é meramente novo (kainon), e duas objeções ao remendo são sugeridas. Primeira, o bom pano é perdido devido ao remendo, e teria sido melhor empregado na construção de uma nova peça. Segundo, o trabalho feito de retalhos é inadequado e insatisfatório. O velho e o novo não estão de acordo (Jean Paul Richter, Siebenkas, Erstes Blumenstück. 36 Veja o capítulo 4 deste livro. 37 Luthardt (Das Johan. Evang. 2.213) argumenta que há o sentido de uma manifestação corpórea (por ocasião do fim do mundo), e argumenta de modo tênue que se o sentido fosse de apenas uma presença espiritual Jesus teria dito en autõ em vez de par1autõ no versículo 23. O termo Para está de acordo com o estilo parabólico de discurso; en seria uma interpretação dessa figura de linguagem. 38 João 14.30,31 39 Versículos 25, 26 40 Versículo 27 41 João 14.28 42 Versículo 29 43 João 14.30, 31 44 Versículo 31

25 Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor Seçao I — A Videira e seus Ramos João I 5 .I -I 5

O tema do discurso nestes capítulos é a futura obra dos apóstolos — sua natureza, honras, dificuldades e alegrias. M uito do que é dito a esse respeito se aplica aos cristãos em geral, mas a referência em primeiro lugar é, sem dúvida alguma, aos onze que estavam presentes naquela ocasião; e somente mantendo isso em mente é que podemos ter uma idéia clara da importância do discurso como um todo. A primeira parte das recomendações aos futuros apóstolos tem como objetivo fazê-los entender que têm uma grande obra diante de si1. A idéia fundamental dessa passagem pode ser encontrada nas palavras: “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós, e vos nomeei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça”2. Jesus queria que os seus escolhidos entendessem que quando Ele deixasse a terra esperaria muito deles, e não que apenas não desanimassem, Eles deveriam ser gran­ des protagonistas no mundo, e deixar sua marca permanentemente na história: deveriam, na verdade, assumir o seu lugar, permanecer firmes nEle e continuar a obra que Ele havia começado, em seu nome, e com a sua ajuda. Para colocar essas obrigações de uma forma clara diante da mente de seus discípulos, Jesus fez uso de uma linda ilustração a partir da figueira, introduzindo-a bem no início de seu discurso. “Eu sou a videi­ ra verdadeira”; este é o tema que na seqüência é desenvolvido com con­ siderável riqueza de detalhes —a figura e a interpretação são livremente

444

0 Treinamento dos Doze

mescladas na exposição. Uma pergunta que tem sido freqüentemente feita é a seguinte: O que levou Jesus a adotar este símbolo em particular como o veículo de seus pensamentos? M uitos têm se arriscado a tentar oferecer respostas conjunturais a esta questão. Porém, em virtude da falta de informação na narrativa, devemos nos sentir satisfeitos por con­ tinuar na ignorância em relação a este ponto, sem tentar fornecer a liga­ ção perdida dessa associação das idéias. Esta não é uma grande dificul­ dade; porque, afinal, qual é a importância de se conhecer com precisão a maneira como uma metáfora é sugerida (algo que —exceto no caso de Jesus — até mesmo a pessoa que emprega a metáfora freqüentemente desconhece), contanto que ela seja, em si mesma, apta para o propósito ao qual é aplicada? Sobre a conveniência e adequação da metáfora aqui aplicada, não pode haver nenhuma dúvida na mente daqueles que aten­ tamente consideram o uso apropriado que o narrador dela fez3. Voltando a nossa atenção, então, ao discurso de Jesus em seu pró­ prio texto escolhido, não podemos deixar de ficar impressionados com a maneira como Ele se apressa sem demora a falar do fruto. Poderíamos esperar que, ao introduzir a figura da videira, Ele fosse em primeiro lugar se expressar completamente nos termos da figura, e de acordo com o caso. Após ouvir as palavras: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o lavrador”, esperamos ouvir algo como: “e vós, meus discípulos, são os ramos, através dos quais a videira produz os seus frutos”. Isto, porém, não é dito aqui; mas o autor da declaração passa imediatamente a dizer a seus ouvintes como os ramos (dos quais nenhuma menção foi feita) são tratados pelo Lavrador divino; como os ramos infrutíferos, por um lado, são cortados, enquanto os ramos frutíferos são podados para que possam se tornar ainda mais produtivos4. Isto mostra os pensamentos predominantes na mente de Jesus. O desejo de seu coração é que seus discípulos possam ser espiritualmente frutíferos. E como se o Senhor estivesse exclamando: “Frutifiquem, frutifiquem, meus discípulos; vocês serão inúteis a menos que produzam frutos: meu Pai e eu desejamos frutos; e o nosso trato com vocês, em sua totalidade, será regulado pelo expresso propósito de aumentar a fertilidade de cada um ”. Embora insistente em sua exigência por 'frutos, observamos que em nenhuma parte deste discurso sobre a videira Jesus indica no que consis­

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

445

te este fruto esperado. Porém, quando consideramos com quem Ele está falando, não podemos ter nenhuma dúvida quanto ao que Ele deseja dizer. O fruto que Ele deseja é que o evangelho seja propagado, e que os discípulos contribuam para o aumento das almas no Reino de Deus, cumprindo deste modo a sua vocação apostólica. A santidade pessoal não é negligenciada; mas é exigida preferivelmente como um meio de se favorecer a fertilidade, e não como um fruto em si. A santidade é a limpeza do ramo que leva ao aumento da fertilidade. Parece ser melhor considerar a próxima frase ( “Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado”5) como um parêntesis, no qual por um momento a figura da videira é perdida de vista. A menção dos ramos que quando improdutivos são cortados traz à memória do Senhor o caso de alguém que já havia sido cortado —o falso discípulo Judas —e o leva, naturalmente, a garantir aos onze que espera coisas melhores de cada um deles. O processo de extirpação já havia sido empregado entre eles em uma ocasião: portanto não deveriam se sentir orgulhosos, mas temer. No entanto, por outro lado, o Senhor havia dito anteriormente, em relação à lavagem dos pés, que eles estavam limpos, com uma exce­ ção; então agora Ele diria que eles estavam todos limpos, sem exceção, pela palavra que lhes havia falado. Como ramos, os discípulos poderiam precisar ser podados, mas não haveria ocasião para cortes. Tendo declarado fortemente que era indispensável produzirem fru­ tos a fim de continuarem ligados à videira, o Senhor Jesus passou em seguida a apresentar as condições da fertilidade, e (o que deveríamos ter esperado desde o início do discurso) a relação subsistente entre Ele mes­ mo e os seus discípulos. “Eu sou a videira”, disse Ele, “vós as varas”6. Através dessa declaração, Ele explica por que é tão urgente que os seus discípulos sejam frutíferos. A razão é que eles são o meio através do qual Ele mesmo produz frutos; os discípulos estão para o Senhor, assim como os ramos estão para a videira. A sua própria obra pessoal tinha sido escolhê-los e treiná-los —para enchê-los, por assim dizer, com a seiva da verdade divina; e o trabalho deles agora era transformar esta seiva em uvas. O Pai que está no céu, enviando o seu Filho ao mundo, plantou-o na terra como uma videira nova e espiritual; e Ele havia produzido os onze como seus ramos. Agora, o seu ministério pessoal estava se findan­

446

0 Treinamento dos Doze

do; e ficava para os ramos a incumbência de dar prosseguimento à obra até a sua consumação natural, e apresentar uma colheita de frutos, na forma de uma igreja de homens e mulheres salvos que crêem em seu nome. Se eles falhassem em fazer isso, todo o trabalho do Senhor seria em vão. Voltando-nos agora para as condições da fertilidade, encontramos Jesus expressando-as nos seguintes termos: “Estai em mim, e eu, em vós”7. Essas palavras apontam para a dependência que os discípulos têm de seu Senhor, sob duas formas que, com a ajuda da analogia de uma árvore e seus ramos, se torna fácil de distinguir. O ramo permanece na videira estruturalmente; e a videira permanece no ramo vitalmente, através de sua seiva. Essas duas conexões são necessárias para produzir fruto. A menos que o ramo esteja organicamente ligado ao caule, a seiva que corre para produzir o fruto não pode passar por ele. Por outro lado, embora o ramo esteja ligado organicamente ao caule, se a seiva do caule não subir por este (um caso que é possível e comum no mundo natural), ele deverá permane­ cer tão estéril quanto se fosse arrancado e caísse no chão. Tudo isso é claro; mas quando perguntamos o que as duas conexões significam em relação à videira espiritual, a resposta já não é assim tão fácil. A tendência aqui é fundir as duas em uma, e tornar a distinção entre elas meramente nominal. A melhor maneira de se chegar à verdade é ficar o mais próximo possível da analogia natural. O que, então, seria dito mais apropriadamente em correspondência à ligação estrutural do ramo com a árvore? Respondemos, permanecendo na doutrina de Cris­ to, na doutrina que Ele ensinou; e reconhecendo-o como a fonte de onde ela foi aprendida. Em outras palavras: “Permanecei em mim” sig­ nifica “detenham e professem a verdade que eu vos ensinei, e apresen­ tem-se simplesmente como testemunhas”. A outra ligação, por outro lado, significa a habitação do Espírito de Jesus Cristo no coração daque­ les que crêem. Jesus dá a entender a seus discípulos que, enquanto per­ manecerem em sua doutrina, terão o seu Espírito habitando neles, e que devem não apenas reter firmemente a verdade, mas serem cheios do Es­ pírito da verdade. Assim diferenciadas, as duas ligações não apenas são diferentes em conceito, mas separáveis de fato. Por um lado, pode haver uma ortodoxia

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

447

cristã na letra onde há pouca ou nenhuma vida espiritual; e, por outro, pode haver uma certa espécie de vitalidade espiritual, uma grande moral e de certa forma uma sinceridade muito cristã, acompanhada por um sério abandono da fé. Um pode ser equiparado a um ramo morto em uma árvore viva, branqueada, sem casca, musgosa, e, mesmo no verão, sem folhas, que se estende como um braço seco do tronco no qual está inserido, e com o qual ainda mantém uma ligação estrutural orgânica. O outro é um ramo cortado da árvore pelo orgulho ou pela obstinação, cheio da seiva da árvore, e coberto com a folhagem no momento da extirpação. Pode-se imaginar por que ele não murchou imediatamente, sendo capaz de viver, crescer e florescer de um modo totalmente inde­ pendente da árvore. As coisas não foram assim desde que o cristianismo começou? Infelizmente, foi sempre assim! N a grande floresta da igreja, muitas ortodoxias mortas sempre foram visíveis; e quanto aos ramos que se mantém por si mesmos, seu nome é legião. As duas ligações que vimos não são apenas separáveis, mas encontram-se freqüentemente separadas, e não podem ser separadas sem que haja efeitos fatais. O resultado está sempre no final para ilustrar a verda­ de das palavras de Cristo: “Porque sem mim nada podereis fazer”8. A ortodoxia morta é notoriamente impotente. Mostrando-se fraca, tím i­ da, apática, relutante a qualquer coisa árdua, heróica, na melhor das hi­ póteses viva em pensamento ou conduta, torna-se finalmente desprovida de sinceridade e desmoralizante: como o sal sem sabor, que serve apenas para ser lançado fora; madeira inútil da videira, boa para nada, exceto para combustível, e que não vale muito sequer para este propósito. As heresias, por não estarem de acordo com a doutrina de Cristo, são igual­ mente inúteis. A princípio, na verdade, elas possuem uma vitalidade efêmera e espúria, e fazem um pouco de barulho no mundo; mas pouco a pouco suas folhas começam a murchar, e não produzem nenhum fruto permanente. O conceito de um ramo morto, aplicado a indivíduos, de uma for­ ma diferente das igrejas ou do mundo religioso visto coletivamente, apre­ senta dificuldades. Um ramo morto em uma árvore nem sempre esteve morto: ele foi produzido pela força vital da árvore, e teve um pouco da vida da árvore em si. A analogia entre os ramos naturais e espirituais se

448

O Treinamento dos Doze

sustenta neste ponto? Não em qualquer sentido, como acreditamos, o que comprometeria a doutrina da perseverança na graça, que foi clara­ mente ensinada nas palavras de nosso Senhor. Ao mesmo tempo, não pode ser negado que existe algo como uma experiência religiosa abortiva. Existem flores na árvore da vida que são atacadas pela geada, frutos verdes que caem antes de amadurecer, ramos que se tornam fracos e morrem. Jonathan Edwards, um calvinista convicto, mas também um observador franco e perspicaz dos fatos, comenta: “Não posso dizer que a maior parte dos supostos convertidos dê motivo, por sua conversa, para se supor que sejam verdadeiros convertidos. A proporção talvez possa ser melhor representada pela proporção dos botões em uma árvo­ re que subsistem e chegam a amadurecer em frutos, ao número total de flores na primavera”9. A permanência de muitos botões espirituais é negada aqui, mas a própria negação sugere uma admissão de que eram botões. Que alguns ramos se tornariam infrutíferos, e até mesmo morre­ riam, enquanto outros iriam florescer e produzir fruto, é um grande mistério, cuja explicação é mais profunda do que os teólogos da escola arminiana estão dispostos a admitir. Contudo, embora isso seja verda­ deiro, não se pode insistir com seriedade na atribuição da responsabili­ dade, ao homem, de seu próprio caráter espiritual. Embora o Pai, como lavrador, maneje a podadeira, o processo de limpeza não pode ter conti­ nuidade sem o nosso consentimento e cooperação. Pois este processo significa, praticamente, a remoção dos impedimentos morais visando a favorecer a vida e o crescimento — os cuidados da vida, a influência insidiosa da riqueza, a concupiscência da carne e as paixões da alma — males que não podem ser vencidos a menos que a nossa vontade e todos os nossos poderes morais venham a frutificar contra estes. Portanto, Jesus coloca sobre os seus discípulos o dever de permanecer nele, e de têlo permanecendo neles, e resolve toda a questão em termos simples, ensinando que devem guardar os seus mandamentos10. Se fizerem a sua parte com diligência e fidelidade, o Lavrador divino lhes assegura que não falhará em lhes dar generosamente todas as coisas necessárias para a mais abundante fertilidade. “Pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito”11.

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

449

O destino dos ramos que não correspondem a nenhuma das duas possíveis maneiras é claramente declarado por Jesus. O destino do ramo que, estando estruturalmente nele, não produz fruto por estar absoluta­ mente morto e seco, ou por estar afligido com um mau hábito que o torna estéril, é ser removido — ser judicialmente separado da árvore12. O destino do ramo que não permanecerá na videira não é ser cortado — porque ele mesmo o faz — mas ser lançado fora da vinha, para ali per­ manecer até murchar, e, por fim, em um momento conveniente, ser reu­ nido aos seus irmãos obstinados e errantes, em um monte, e queimado em uma fo gueira ao ar livre como os restos secos de um jardim13. N a parte final do discurso sobre a videira14, Jesus expressa suas altas expectativas em relação à fertilidade dos ramos apostólicos, e sugere uma variedade de considerações que, agindo na mente dos discípulos como motivos, podem levar à realização de suas esperanças. Primeiro, Ele deu a entender aos discípulos que esperava deles não apenas frutos, mas muitos frutos15, e frutos não apenas abundantes em quantidade, mas bons em qualidade16, frutos que deveriam permanecer, uvas cujo suco deveria ser digno de preservação, como vinho em garrafas; uma igreja que deveria permanecer até o fim do mundo. Esses dois requisitos, considerados juntamente, constituem uma ele­ vada exigência. E realmente muito difícil gerar, simultaneamente, frutos abundantes e resistentes. Até certo ponto os dois requisitos limitam um ao outro. A ênfase na alta qualidade leva a uma excessiva diminuição dos grupos, enquanto a ênfase na quantidade pode facilmente levar à deterio­ ração da qualidade do todo. E necessário estudar como se pode assegu­ rar tanto uma grande quantidade de frutos quanto uma permanência consistente; e, por outro lado, cultivar a excelência de um modo consis­ tente com o objetivo de se obter uma colheita justa que venha a compen­ sar o trabalho e os gastos. Esta é, por assim dizer, a teoria ideal da cultu­ ra da vinha; mas, na prática, devemos nos sentir satisfeitos com algo menor do que a realização perfeita da nossa teoria. Não podemos, por exemplo, insistir rigorosamente que todos os frutos devam permanecer. Muitos frutos do trabalho cristão são apenas meios transitórios para se gerar outros frutos de natureza permanente; e se satisfizermos a lei de Cristo no que se refere a produzir muitos frutos, alguns deles permanece-

450

O Treinamento dos Doze

rão, e teremos feito o bem. A porção permanente do trabalho de um homem será pequena em relação ao total. Ela poderá ser, no máximo, apenas uma proporção do total, como a relação entre o suco de uva e as uvas que foram prensadas para que este fosse feito. Um pequeno barril de vinho representa uma quantidade muito maior de uvas; e do mesmo modo o resultado perene de uma vida cristã é muito insignificante em volume comparado com a massa de pensamentos, palavras e obras, da qual esta vida é composta. Um pequeno livro, por exemplo, pode preser­ var, para todas as gerações, a alma e a essência dos pensamentos de uma mente mais dotada, e a graça de um coração nobre. Um testemunho desse fato é o maravilhoso livro O Peregrino, que contém em si mais vmho do que se pode encontrar nos frondosos escritos de alguns autores pro­ lixos, cujas obras são apenas imensos barris de vinho que contêm pouco vinho, chegando, às vezes, a não ter sequer o seu aroma. Para satisfazer a esses dois requisitos, duas virtudes são acima de tudo necessárias, isto é, diligência e paciência —uma que garanta a quan­ tidade, e outra que garanta uma qualidade superior. Deve-se saber tanto como trabalhar quanto como esperar, nunca ocioso, contudo nunca apressado. Porém apenas a diligência não é suficiente. Uma atividade desempenha­ da com afobação poderá até mesmo produzir muitos resultados aparen­ tes, porém trará muitas conseqüências ruins. Por outro lado, a paciência desacompanhada da diligência se degenera em indolência, que não pro­ duz absolutamente nenhum fruto, nem bom nem mau. As duas virtudes devem andar juntas; e quando isso acontece, elas nunca falham em pro­ duzir, em maior ou menor quantidade, frutos que permaneçam em uma vida santa e exemplar, cuja memória é alimentada por gerações em uma igreja universal, em livros ou instituições filantrópicas, no caráter de des­ cendentes, estudiosos e ouvintes. Quando os dois requisitos são considerados e aplicados a todos os crentes em Cristo, o termo “muito” deve ser entendido de uma forma relativa. Em nossa opinião não é exigido de todos, indiscriminadamente, que produzam uma quantidade de frutos absolutamente grande, mas apenas daqueles que, como os apóstolos, foram escolhidos e dotados para ocupar posições de destaque. Daquele a quem pouco foi dado, pouco será pedido. No caso de um homem de pouco talento, é melhor não

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

451

esperar uma grande produção de frutos mas, antes, esperar que este faça com qualidade o pouco para o qual tem capacidade. A aspiração é boa em teoria; mas aspirar exceder as dimensões designadas de nossa carrei­ ra, é fornecer uma nova ilustração da antiga fábula do sapo e do boi. O homem que se lançar a intentar fazer mais do que aquilo para que está preparado, torna-se pior do que o inútil. Ele produz, não os frutos do­ ces e sadios do Espírito, mas os frutos orgulhosos da vaidade, que, como os de Sodoma, são belos e adequados em aparência, e tenros ao toque de nossas mãos; mas interiormente são inchados, cheios de vento, e quando são pressionados explodem como uma bufa-de-lobo, um fungo17. A exigência de muitos frutos, embora muito rigorosa em relação aos apóstolos, a quem em primeiro lugar é referida, tem um aspecto bondoso para o mundo. O fruto que Jesus espera de seus escolhidos é a conversão dos homens à fé no evangelho —o ajuntamento das almas no Reino de Deus. Uma exigência de muitos frutos neste sentido é uma expressão de boa vontade para com a humanidade, uma revelação da compaixão amorosa do Salvador para um mundo que jaz no pecado, no erro e nas trevas. Ao fazer esta exigência, Jesus está na verdade dizendo aos seus apóstolos: Ide pelo mundo, empenhai-vos em evangelizar todas as nações; sede frutíferos e multiplicai-vos, enchei a terra, e cultivai-a. Mesmo que não possais trazer muitos à obediência da fé; quanto maior o número daqueles que crerem em mim através da vossa palavra, maior será o meu prazer. Temos aqui, resumidamente, apenas um eco dos fer­ vorosos discursos daquela ocasião anterior, quando Jesus recebeu a mor­ te como a condição de fertilidade abundante, e a cruz como um poder por cuja atração irresistível Ele deveria atrair todos a si18. A partir dos elevados requisitos do Senhor, passamos aos argumen­ tos pelos quais Ele procurou transmitir aos seus discípulos o dever de produzir muitos frutos e permanecer. Destes, há não menos do que seis, agrupados em pares. Encontramos o primeiro par indicado nas seguin­ tes palavras: “Nisto é glorificado meu Pai: que deis muito fruto; e assim sereis meus discípulos”19. Em outras palavras, Jesus queria que os seus discípulos se lembrassem de que o crédito, tanto do Lavrador divino quanto dEle mesmo, a Videira Verdadeira, dependia grandemente do comportamento deles. O mundo julgaria pelos resultados. Se eles, os

452

0 Treinamento dos Doze

apóstolos, fossem perfeitamente férteis, seria dito que Deus não enviou Cristo ao mundo em vão; e seu sucesso seria atribuído aquEle de quem eram discípulos. Se falhassem, os homens diriam: Deus plantou uma videira que não floresceu; e a videira produziu ramos que não deram frutos; ou em termos simples, Cristo escolheu agentes que não fizeram nada. A força desses argumentos de fertilidade é mais óbvia no caso des­ ses apóstolos, os fundadores da igreja, do que em relação à condição atual da igreja, quando a honra de Cristo e de Deus Pai parece depender, em uma medida muito pequena, da conduta dos indivíduos. Toda a ên­ fase então recai sobre os onze homens. Atualmente, essa responsabilida­ de está distribuída entre milhões de cristãos. No entanto, ainda hoje há uma grande necessidade de uma vida espiritualmente frutífera na igreja, para defender a honra do nome de Cristo; porque na atualidade há uma tendência de se olhar para o cristianismo como uma religião com a qual as pessoas simplesmente se acostumaram, algo do passado. O estoque da antiga videira é considerado por muitos como estando esgotado, e a produção de frutos, finda; e assim surge espaço para uma nova e vigorosa religião. Essa idéia só poderá ser efetivamente contradita de uma manei­ ra, isto é, através do surgimento de uma geração de cristãos cujas vidas demonstrem que a “videira verdadeira” não é uma das coisas que enve­ lheceram e desapareceram, mas que possui uma vitalidade eterna, sufici­ ente não apenas para produzir novos ramos e novos cachos, mas para se livrar dos ramos mortos e de todo o musgo que possa ter crescido com o decorrer do tempo. Encontramos um segundo par de motivos para a fertilidade, sugeri­ do nas seguintes palavras: “Tenho-vos dito isso para que a minha alegria permaneça em vós, e a vossa alegria seja completa”20. Jesus quer dizer que a continuidade de sua alegria na vida dos discípulos, e a própria alegria deles como crentes em Jesus, dependia de serem frutíferos. A ênfase na primeira frase reside na palavra “permaneça”. Mesmo agora, embora sejam espiritualmente imaturos, Jesus sente alegria em seus dis­ cípulos, como o jardineiro que se alegra com os cachos de uva quando ainda estão verdes, azedas, e não podem ser comidas. Mas Ele se alegra neles, neste momento, não pelo que são, mas por causa da promessa de

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

453

fruto maduro que está neles. Se essa promessa não fosse cumprida, Ele se sentiria como o jardineiro se sente quando a flor é queimada pela geada, ou o fruto verde é atacado pela praga; ou como um pai se sente quando um filho não corresponde à brilhante promessa de sua juventu­ de. Ele pode suportar a demora, mas não pode suportar o fracasso. Pode esperar pacientemente até que o processo de crescimento tenha passado por todas as suas etapas, e pode suportar todas as qualidades insatisfatórias da imaturidade, por causa da maturidade que alcançarão. M as se nunca amadurecerem —se as crianças nunca se tornarem homens, se os alunos nunca se tornarem professores —então Ele exclamará, em um amargo desapontamento: “Quão infeliz sou! M inha alma desejou frutos madu­ ros; e é isto o que encontro depois de esperar tanto tempo?” N a segunda frase a ênfase reside na palavra “completa”. Não é dito ou insinuado que um cristão não possa ter alegria até que seu caráter esteja maduro e sua obra realizada. A linguagem de Jesus é bastante com­ patível com a afirmação de que mesmo no início da vida espiritual pode haver uma grande, até mesmo apaixonada, explosão de alegria. Mas, por outro lado, essa linguagem sugere com clareza que a alegria do discípulo imaturo é necessariamente precária, e que a alegria que é estável e com­ pleta vem apenas com a maturidade espiritual. Esta é uma grande verda­ de prática, que todos os discípulos devem ter em mente. A alegria no sentido mais elevado é um dos frutos maduros do Espírito Santo, a re­ compensa da perseverança e da fidelidade. O regozijo no início é bom, na medida em que ele prossegue; mas tudo depende da seqüência. Se pararmos logo e não crescermos, seremos infelizes; porque o fracasso em todas as coisas, e em especial na religião, é uma desgraça. Se formos comparativamente infrutíferos, poderemos não ser totalmente infelizes, mas nunca conheceremos a plenitude da alegria; porque somente ao ser­ vo fiel serão ditas as palavras: “Entra no gozo do teu Senhor”. A perfeita medida de alegria é para o soldado que conquistou a vitória, para o lavrador que celebra a colheita em casa, para o atleta que ganhou o prê­ mio de força, habilidade e velocidade. As duas últimas considerações pelas quais Jesus procurou imprimir em seus discípulos o dever de serem frutíferos eram a natureza honrada de seu chamado apostólico e a dívida de gratidão que têm para com

454

0 Treinamento dos Doze

aquEle que os chamou, e que estava agora prestes a morrer por eles. O Senhor descreveu, nos seguintes termos, a dignidade do apostolado em contraste com a posição servil do discípulo: “Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhe­ cer”21. Em outras palavras, os discípulos eram aprendizes; os apóstolos, parceiros; os discípulos eram como funcionários públicos; os apóstolos seriam ministros confidenciais do rei; os discípulos eram alunos na esco­ la de Jesus; os apóstolos seriam os guardiões da verdade cristã, os narra­ dores e expositores da doutrina de seu Mestre, as únicas fontes de infor­ mação confiáveis a respeito da letra e espírito de seu ensino. Que ofício poderia ser mais importante do que o deles? E quão necessário era que eles percebessem suas responsabilidades em relação a tudo isso! Enquanto tentavam caminhar de modo digno de sua tão elevada vocação, os apóstolos também teriam em mente suas obrigações em rela­ ção àquEle que os chamou para o ofício apostólico. A consideração devida a essas coisas seria um estímulo à diligência e à fidelidade. Por isso Jesus é cuidadoso ao frisar para os seus discípulos que eles devem tudo o que são, e que serão, a Ele. Ele lhes diz: “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós”22. O Senhor deseja que eles entendam que não conferiram a Ele nenhum benefício por se tornarem seus discí­ pulos: o benefício estava todo do lado deles. Ele os havia tirado da obs­ curidade para serem a luz do mundo, para serem seus atuais companhei­ ros e seus futuros amigos e representantes. Tendo feito tanto por eles, Ele estava habilitado a lhes pedir que sinceramente tentassem alcançar a finalidade para a qual lhes havia escolhido, e cumprir o ministério para o qual foram chamados. H á algo ainda mais claro e digno de observação neste discurso so­ bre a videira verdadeira —a reiteração do mandamento de amar uns aos outros. No início de suas palavras de despedida, Jesus ordenou aos seus discípulos o amor fraternal como uma fonte de consolo em relação à perda; aqui Ele o ordena novamente como uma condição de fertilida­ de23. Embora não o diga com tantas palavras, Ele evidentemente quer que os seus discípulos entendam que permanecer uns nos outros em amor é tão necessário ao seu sucesso quanto a sua permanência no Se­

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

455

nhor, pela fé. A divisão, o ciúme e a discórdia no grupo serão simples­ mente fatais para a sua influência e para a causa que representam. Eles precisam ser amigos tão leais a ponto de estarem dispostos a morrer uns pelos outros. Se os cristãos sempre se lembrassem do mandamento do amor, sobre o qual o Senhor Jesus Cristo tão seriamente insistiu, que história diferente a igreja teria! Quão frutífera seria em todos os grandes resultados para os quais foi instituída!

Seção II — T rib ulaçõ es Apostólicas e Encorajam ento João 15.18-27; I6.I-I5

Dos deveres apostólicos Jesus passou a falar das tribulações apostó­ licas. A transição era natural; porque todos os grandes protagonistas da causa de Deus, cujos frutos permanecem, deverão experimentar, com certeza, dores. Ser odiado e maltratado é uma das penalidades da gran­ deza moral e do poder espiritual; ou, colocando de modo diferente, um dos privilégios que Cristo confere aos seus “amigos”. E muito difícil suportar o ódio, e o desejo de fugir dele é principal causa de infidelidade e incapacidade de gerar frutos. Os homens bons moldam a sua conduta para se manterem longe dos problemas, e pelo excesso de prudência covarde degeneram-se em uma nulídade espiritual. Era primeiramente importante que os apóstolos da fé cristã não se tor­ nassem impotentes por essa causa. Por esta razão Jesus apresenta o as­ sunto da tribulação aqui. Ele iria fortalecer os seus discípulos para que pudessem resistir aos sofrimentos falando-lhes antecipadamente. No decorrer de seu discurso sobre o tema desagradável, Ele disse: “Tenhovos dito essas coisas para que vos não escandalizeis”24, como se justifi­ cando a sua apresentação, isto é, para que não ficassem surpresos quan­ do o tempo da dificuldade chegasse. Para encorajar os jovens soldados da cruz, o Capitão da salvação tem recursos para vários expedientes, dentre os quais o primeiro é dizerlhes, sem disfarce, o que devem esperar, uma vez que a familiaridade com a perspectiva sombria pode torná-la menos terrível. Jesus fala do ódio do mundo como uma questão absolutamente certa, não apenas julgando-o necessário para afirmar a sua certeza, mas assumindo-o como algo evidente: “Se o mundo vos aborrece”25. Em seguida Ele descreve,

456

0 Treinamento dos Doze

sem eufemismo ou rodeios, o tipo de tratamento que iriam receber nas mãos dos homens: “Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus”26. Palavras duras e horríveis; mas uma vez que estas coisas deveriam acon­ tecer, era aconselhável que tivessem conhecimento sobre o pior. Jesus a seguir diz a seus discípulos que seja o que for que venham sofrer, não poderá ser pior do que aquilo que Ele já havia passado. “Se o mundo vos aborrece, sabei que, primeiro do que a vós, me aborreceu a mim”. Pobre conforto, alguém diria; contudo não é tão pobre quando se considera a posição relativa das partes. Aquele que já foi odiado é o Senhor; aqueles que deverão ser odiados são apenas os servos. Jesus lem­ bra isso aos seus discípulos, repetindo e trazendo à memória deles uma palavra que já havia falado naquela mesma noite27. A consideração deve­ ria ao menos reprimir a murmuração; e devidamente tomada a sério, poderia até tornar-se uma fonte de inspiração heróica. O servo deveria se sentir envergonhado por reclamar da sorte da qual seu Mestre não está isento e nem deseja estar; ele deveria ficar orgulhoso de ser um companhei­ ro nas tribulações daquEle que é seu superior, e considerar a sua experiên­ cia da cruz não como um mero destino, mas como um privilégio. Um terceiro expediente empregado por Jesus para conciliar os após­ tolos com o ódio do mundo, é representá-lo como algo que necessaria­ mente acompanha a eleição28. Bem avaliado, esse pensamento tem muita força. O amor geralmente reside em uma similaridade de interesses. Os homens amam aqueles que têm as mesmas opiniões, que ocupam posi­ ções que lhes agradam, que seguem a mesma moda, e que perseguem os mesmos objetivos; e consideram todos aqueles que divergem deles a res­ peito dessas coisas, com indiferença, desgosto, ou animosidade positiva, de acordo com o grau em que se tornam conscientes do contraste. Por isso surge um dilema para os escolhidos. Ou eles devem ser privados da honra, privilégios e esperança de sua eleição, e descer ao mundo sombrio em que não há Deus nem esperança; ou devem ficar satisfeitos, enquanto retêm a sua posição como chamados das trevas, para aceitar as desvanta­ gens que se juntam a ela, e serem odiados por aqueles que amam as trevas e não a luz por terem uma vida ímpia. Que verdadeiro filho da luz hesi­ tará em sua escolha?

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

457

Para mostrar aos discípulos que eles não têm nenhuma alternativa exceto se submeterem pacientemente a sua sorte designada como os es­ colhidos, Jesus vai ainda mais fundo na filosofia do ódio do mundo. Ele explica que o que em primeiro lugar será odiado neles, significará em segundo lugar o ódio a Ele mesmo; e em último lugar, e radicalmente, ignorância e hostilidade a Deus, seu Pai29. Ao apresentar esta verdade, Ele aproveita para fazer algumas reflexões severas sobre o mundo incré­ dulo da Judéia, no qual Ele mesmo havia trabalhado. O Senhor enfatiza a incredulidade daquele povo, e declara que esta é indesculpável; acusa aqueles que têm sido culpados disso, de odiá-lo sem motivo, isto é, de odiar aquele cujo caráter, conduta, palavras e obras deveriam ter con­ quistado sua fé e amor. O Senhor também destaca o ódio que demons­ tram para com Ele, o que revela um ódio ao próprio Deus por cuja glória professavam ser tão zelosos30, Como é dolorosa a perspectiva aqui mostrada da inimizade do mundo para com a verdade e suas testemunhas! Alguns gostariam de ver, na amargura com a qual os mensageiros da verdade foram recebidos (não excetuando o caso de Jesus), o resultado de um mal-entendido perdoável. E sem dúvida esta é a origem de muitas animosidades religiosas. Houve muitos pecados cometidos contra o Filho do Homem, e outros da mesma natureza que eram apenas em um grau moderado pecados contra o Espírito Santo. Se não fosse assim, ai de todos nós! Pois quem não perseguiu o Filho do Homem ou o seu interesse, nutrindo um mau sentimento e pronunciando palavras amargas contra os seus membros, se não contra Ele pessoalmente, sob a influência do preconceito, che­ gando a ponto de infligir ferimentos físicos aos apóstolos das verdades desconhecidas e indesejáveis, em obediência aos impulsos cegos de medo excessivo ou paixão egoísta? Se houver poucos que não o perseguiram de uma forma ou de ou­ tra, talvez hajam também poucos dos perseguidos que não tiveram pers­ pectivas muito sombrias da culpa de seus perseguidores. Os homens que sofrem por suas convicções são grandemente tentados a considerar seus adversários como sendo, em igual medida, adversários de Deus. As coi­ sas erradas que suportam os fazem pensar e falar dos malfeitores como os próprios filhos do maligno. Então se dá importância à causa de al­

458

0 Treinamento dos Doze

guém, ou dignidade aos sofrimentos de alguém, julgando os primeiros como de Deus, e os últimos como aqueles que sofrem com paciência por amor a Deus. Por fim, afirmar amplamente esta situação como uma questão entre os amigos e os inimigos de Deus satisfaz tanto o intelecto quanto a consciência — o primeiro exigindo um status qucestionis que é simples e facilmente entendido; o segundo, um que nos coloca obvia­ mente do lado certo, e nossos adversários obviamente do lado errado. Tudo isso mostra que muita franqueza, humildade e paciência de espírito são necessárias antes que alguém possa dizer seguramente: “Aquele que me odeia, odeia a Deus”. No entanto, permanece verdadeiro que a atitude real de um homem em relação a Deus é revelada pela maneira como ele trata a obra atual de Deus e seus servos viventes. Jesus julgava seus inimigos de acordo com este princípio, embora não alimentasse nenhum ressentimento, e estava sempre pronto a tratar a ignorância da forma devida. Apesar de sua caridade, Ele cria e dizia que a hostilidade que encontrou provinha de uma vontade maligna e de um coração ímpio e mau. Ele tinha em vista principalmente os líderes da oposição que organizaram a multidão de ignorantes e preconceituosos em um exército hostil; homens que o Senhor sem hesitação denunciou como aqueles que odiavam a Deus, a verdade e a justiça. Jesus apontou o tratamento que estes lhe dispensavam como a evidência conclusiva deste fato. O aparecimento e o ministério de Jesus entre eles haviam retirado a másca­ ra daqueles homens e revelado o seu verdadeiro caráter como hipócritas, fingindo santidade, mas por dentro cheios de mesquinhez e impiedade, que odiavam a genuína bondade, e não poderiam descansar até pregá-lo em uma cruz e tê-lo fora do mundo. Tendo a história e as palavras de Cristo diante de nossos olhos, devemos ter cuidado para não exagerar­ mos nas desculpas para a incredulidade. Tendo falado brevemente de sua amarga experiência no passado, Jesus continua com naturalidade expressando a esperança que nutre de um futu­ ro brilhante. Até este ponto Ele foi desprezado e rejeitado pelos homens, mas crê que isto não será sempre assim. O mundo, tanto o judaico como o gentio, logo começará a mudar de idéia, e o Crucificado se tornará um objeto de fé e reverência. Essa esperança que Ele constrói em um alicerce forte e seguro é o testemunho combinado do Espírito da verdade e de seus

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

459

próprios apóstolos. “M as”, Ele diz, com seu rosto brilhando, “quando vier o Consolador (de quem Ele havia falado aos seus filhinhos, e a quem agora faz alusão como seu próprio Consolador, não menos do que deles) que eu da parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito da verdade, que procede do Pai, testificará de mim”31. Ele não declara aqui que resultados o Espírito traria por meio de seu testemunho. Ele fala brevemente sobre este ponto mais tarde, ao perceber que seus ouvintes não compreenderam seu significado, ou que ao menos falharam em encontrar em suas palavras qualquer conforto para si mesmos. Enquanto isso Ele se apressa em indi­ car que seus discípulos, assim como o Espírito da verdade, terão parte na honrada obra de redimir da desgraça o nome e o caráter de seu Mestre. Eles também deveriam dar testemunho, uma vez que estavam bem qualifi­ cados a fazê-lo, tendo estado com Ele desde o início de seu ministério32, e conhecendo plenamente a sua doutrina e modo de vida. Nesse futuro testemunho do Espírito e dos apóstolos, Jesus buscou conforto para o seu próprio coração sob o peso depressivo de um retrospecto triste e da perspectiva imediata da crucificação. M as Ele tam­ bém pretendia que os seus discípulos buscassem, do mesmo lugar, a força necessária para enfrentar suas próprias tribulações. N a verdade, nenhuma consideração poderia tender mais efetivamente a reconciliar mentes generosas com uma sorte dura do que aquelas sugeridas no que Jesus havia acabado de dizer, isto é, que os apóstolos sofreriam por uma causa favorecida pelo céu, e tenderiam a honrar aquEle a quem amavam mais que a própria vida. Quem não escolheria estar do lado a favor do qual o Espírito divino luta, mesmo correndo o risco de receber ferimentos? Quem não estaria feliz em ser reprovado e maltratado por um nome que é digno de estar acima de todo nome, especialmente se garantido que os sofrimentos suportados contribuiriam diretamente para a exaltação des­ se nome abençoado, para que esteja no lugar de soberania que lhe per­ tence por direito? Foram exatamente tais considerações que mais que qualquer outra coisa apoiaram os apóstolos sob suas grandes e múltiplas tribulações. Eles aprenderam a dizer: “Por amor a Cristo somos mortos todos os dias; somos reputados como ovelhas para o matadouro. Mas que importa? A igreja está se espalhando; os crentes estão se m ultipli­ cando de todos os lados, brotando a cem por um em relação à semente

460

O Treinamento dos Doze

do sangue dos mártires; o nome de nosso Senhor está sendo glorificado. Alegremente sofreremos, portanto, dando testemunho da verdade”. Tendo estabelecido como premissa essas observações a respeito do auxílio para resistir, Jesus seguiu por fim declarando distintamente, em palavras já citadas, o que os apóstolos teriam de suportar33. A estas pala­ vras fazemos apenas uma observação adicional, isto é, que os discípulos iriam aprender delas não apenas a natureza de suas futuras tribulações, mas também o local onde iriam acontecer. O Mestre os previne nesta parte de seu discurso contra o ódio do mundo; não do mundo do paga­ nismo, que é irreligioso, cético, indiferente e indecente. Aqui o Senhor se refere ao mundo do judaísmo anticristão; dos homens freqüentadores das sinagogas, acostumados a distinguirem-se do “mundo” como o povo de Deus, muito zelosos até certo ponto pela glória de Deus, conservado­ res fanáticos de suas opiniões e práticas religiosas, totalmente intoleran­ tes e discordantes, excomungando implacavelmente todos os que se des­ viassem sequer “um milímetro” da crença estabelecida, julgando sua morte não um crime, mas um serviço religioso, um sacrifício aceitável aoTodoPoderoso. Para este mundo judaico é atribuída a honra de representar todo o cosmos dos homens alienados de Deus e da verdade; e se o ódio aos bons for a característica central do mundanismo, a honra estava bem ganha, pois foi entre os judeus que o poder de odiar atingiu seu máximo grau de intensidade. Ninguém seria capaz de odiar como um judeu reli­ gioso da era apostólica: ele era famoso por sua capacidade diabólica de odiar. Até mesmo um historiador romano, Tácito, comenta o “hostile odium” da raça judaica contra toda a humanidade; e a experiência dos apóstolos cristãos justificava totalmente a proeminência dada por Jesus aos judeus ao discursar sobre o ódio do mundo. Deviam principalmente aos judeus incrédulos o conhecimento que tinham sobre o que significa­ va o ódio do mundo. O mundo pagão os desprezava em vez de odiá-los. Os gregos riam e os romanos demonstravam uma indiferença desdenho­ sa, ou no máximo se lhes opunham comedidamente, como a alguém que não preferiam. Mas que hostilidade constante, implacável e maligna dos religiosos judeus! Era sedenta de sangue, sem compaixão, digna do pró­ prio Satanás. Jesus pôde verdadeiramente dizer aos judeus: “Vós tendes por pai ao diabo e quereis satisfazer os desejos de vosso pai”.

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

461

Que fruto estranho era este espírito ímpio de ódio crescendo sobre a bonita videira que Deus havia plantado na terra santaJ Escolhido para ser o veículo de bênçãos para o mundo, Israel acaba se tornando o inimi­ go do mundo, “contrário a todos os homens”, para fazer com que até mesmo os bons e humanitários a considerem e a tratem como uma pra­ ga, cuja destruição da face da terra seria uma causa de congratulação para todos. Observe o resultado do abuso da eleição! Favores peculiares ministrando ao orgulho, em vez de incitar os favorecidos a dedícarem-se à sua elevada vocação como os benfeitores da humanidade; e assim uma nação santa é transformada em uma sinagoga de Satanás, a ponto de os inimigos mais destrutivos de Deus serem os de sua própria casa. Ai de nós! O mesmo fenômeno tem reaparecido na igreja cristã. O mundo que mais se opõe a Cristo, o próprio Anticristo, deve ser encontrado não em meio aos povos pagãos, mas em meio ao povo cristão; não entre os nãoreligiosos e céticos, mas entre aqueles que julgam ser o povo peculiar de Deus. O anúncio feito por Jesus a respeito de suas futuras tribulações produziu, como era de se esperar, uma grande sensação entre os discípu­ los. A perspectiva sombria revelada pelo levantar momentâneo do véu os horrorizou completamente. A consternação apareceu em seus rostos, e a tristeza encheu seus corações. Devem ter pensado que ser abandonado por seu Mestre já era suficientemente ruim, mas ser deixado para um destino como este era ainda pior. Jesus conhecia a impressão que suas palavras produziriam, e fez o possível para cuidar deles e ajudá-los a recobrar a serenidade. Em primeiro lugar o Senhor justifica a necessidade de falar de as­ suntos tão dolorosos, transmitindo o seguinte sentido: “Eu preferiria ficar em silêncio a respeito dos vossos problemas vindouros, e não os mencionei enquanto foi possível; mas não poderia pensar em vos deixar sem qualquer conhecimento sobre aquilo que está diante de vós. Faço-o agora que estou prestes a partir”34. O sentimento bondoso que ditou a declaração assim parafraseada é evidente; mas a declaração em si pode parecer inconsistente com os registros dos outros Evangelhos, dos quais aprendemos que as dificuldades ligadas ao discipulado em geral, e ao apostolado em particular, eram um assunto de freqüente observação nas

462

0 Treinamento dos Doze

conversas de Jesus com os doze. A dificuldade tem sido tratada pelos comentaristas de uma forma variada. Alguns admitem a contradição, e presumem que tais discursos anteriores a respeito das perseguições como são encontrados —por exemplo, no décimo capítulo de Mateus —são apresentados pelo evangelista fora de sua ordem cronológica. Outros insistem que a diferença entre os pronunciamentos anteriores e o presen­ te reside na simplicidadr. representando o primeiro como vago e geral, como as primeiras alusões feitas por Jesus à sua própria morte; o segun­ do como particular, definido e inconfundível, como os anúncios que Jesus fez com respeito à sua paixão no final de seu ministério. Uma terceira ala de expositores explica que a novidade desse discurso sobre o ódio do mundo reside em sua causa e origem35. H á ainda um quarto grupo que insiste que a grande diferença entre esse discurso e todos os que vieram antes, é que este foi um discurso de despedida; portanto, em virtude dessa situação, causou uma impressão singular36. Onde predomina tamanha diferença de opinião, é impróprio dogmatizar. A nossa opinião, porém, é que a peculiaridade do pronuncia­ mento atual com relação às tribulações apostólicas reside na maneira ou no estilo, e não na questão. Em ocasiões anteriores, especialmente na oca­ sião da missão de teste dos doze, Jesus havia dito as mesmas coisas: Ele havia falado pelo menos dos açoites nas sinagogas, se não da excomunhão deles, e havia feito alusões às mortes violentas como no mínimo um desti­ no possível para os apóstolos do Reino. Mas Ele havia dito tudo de uma maneira diferente. Ali Ele pregou a respeito da perseguição; aqui Ele faz um anúncio terrivelmente real. Nisso está toda a diferença entre aquele discurso e a presente comunicação. Haveria uma diferença entre um sermão que tinha como tema a frase: “Aos homens está ordenado morrerem uma vez” e uma intimação especial para um indivíduo semelhante a: “Este ano morrerás”. O sermão pode dizer muito mais sobre a morte do que a intimação, porém de uma maneira diferente, e com um efeito diferente! O próximo expediente para curar a dor para a qual Jesus tem a solução é uma admoestação amigável. Ele gentilmente censura os discí­ pulos por seu silêncio, que Ele considera como um sinal de tristeza desesperançada e desesperadora. “E, agora, vou para aquele que me en­ viou; e nenhum de vós me pergunta: Para onde vais? Antes, porque isso

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

463

vos tenho dito, o vosso coração se encheu de tristeza”37. “Por que”, Ele quer dizer, “estão tão abatidos? Não têm perguntas para me fazer sobre a minha partida? Estavam cheios de perguntas a princípio. Estavam curio­ sos para saber para onde eu estava indo. Eu ficaria grato se essa pergunta fosse feita novamente, ou, na verdade, se qualquer pergunta me fosse feita, quer seja sábia quer tola. As interrogações mais infantis seriam melhores do que a melancolia de um desespero mudo”. Como a pergunta “Para onde vais?” já havia sido suficientemente respondida, poderia ter sido desnecessário perguntar outra vez. Havia, porém, outras perguntas, nem desnecessárias nem impertinentes, que os discípulos poderiam ter aproveitado para fazer sobre o comunicado que haviam acabado de receber, a respeito do destino futuro que teriam. E provável que tivessem feito outro tipo de perguntas se não estivessem tão deprimidos de espírito. Eles poderiam ter perguntado: “Se acontecerá algo tão ruim conosco após a tua partida, por que não permaneces? Enquanto tens estado conosco, tens-nos protegido do ódio do mundo, e nos dizes que quando tu, nosso líder e cabeça, partires, o ódio será diri­ gido contra nós, teus seguidores. Se é assim, como podemos considerar a tua partida como algo que não seja uma calamidade?” Jesus continua a responder a essas perguntas não pronunciadas na próxima passagem. De modo ousado Ele afirma que, a despeito do que possam pensar, é para o bem deles que Ele deve partir38. A declaração, também verdadeira em outros aspectos, é feita com especial referência ao trabalho do apostolado. N a parte inicial de suas palavras de despedida, Jesus havia explicado a seus discípulos como a sua partida os afetaria individualmente, como pessoas ou como crentes. O Senhor lhes havia ga­ rantido que quando “o Consolador” viesse, faria com que se sentissem como se o seu falecido Mestre tivesse retornado para eles; sim, como se estivesse mais realmente presente com eles do que jamais havia estado. Aqui o seu objetivo é mostrar o propósito de sua partida para o bene­ fício do trabalho que desempenhavam como apóstolos, e fazê-los entender que a sua partida seria boa para eles como ministros públicos. A prova dessa afirmação vem em seguida39 e tem, em essência, o seguinte sentido: “Quando eu vos deixar e for para o Pai40, duas desideratas, de importância essencial para o sucesso do vosso trabalho como apósto­

464

O Treinamento dos Doze

los, serão fornecidas. Então tereis ouvintes receptivos, e vós mesmos sereis competentes para pregar. Nenhuma dessas desideratas existem no momento. O mundo me rejeitou e as minhas palavras; e vós, embora sinceros, ainda não compreendeis o que vos ensinei. Após a minha ascensão, haverá uma grande mudança em ambos os aspectos; o mundo estará mais preparado para ouvir a verdade, e vós podereis declará-la inteligentemente. A mu­ dança não poderá acontecer até então, porque ela será produzida pela obra do Consolador, o Espírito da verdade, e Ele não pode vir até que eu /» va . Na seção desse discurso sobre o qual temos dado o sentido geral, Jesus esboça em rápidas linhas primeiro a obra de conversão do Espírito no mundo41, e então a sua obra iluminadora na mente dos apóstolos42. Ele descreve o primeiro nestes termos: “Quando ele vier, convencerá (gerará um sério pensamento e convicção) o mundo do pecado, e da justiça, e do juízo”. Então Ele explica em quais aspectos especiais o Espírito trará essas grandes realidades morais à mente dos homens; e aqui Ele apenas expõe o que já havia dito a respeito do testemunho do Espírito em seu próprio favor43. O Senhor diz a seus discípulos que o Consolador, testemunhando de si mesmo nos corações e consciências dos homens, os convencerá do pecado, especialmente como incrédulos nEle; da justiça em relação à sua partida ao Pai; e do juízo (por vir), porque o príncipe deste mundo já está julgado (isto é, terá sido, quando o Consolador iniciar a sua obra). A segunda e a terceira observações explanatórias são enigmáticas, e em vez de esclarecer o assunto tratado, parece antes envolvê-lo na escu­ ridão. Os discípulos manifestaram tanta disputa e diferença de opinião, que estender-se no assunto com eles seria inútil, e dogmatizar seria pre­ sunção. Um grande ponto de discussão tem sido o seguinte: A que jus­ tiça Jesus se refere, —à sua própria ou à dos pecadores? Será que Ele quer dizer que depois de Ele ter deixado a terra o Espírito convencerá o mun­ do de que Ele era um homem justo? Ou quer dizer que o Espírito ensi­ nará os homens a enxergar no Senhor crucificado a sua justiça? A nossa opinião é que Ele quis dizer as duas coisas. A justiça deve ser entendida em sua generalidade indefinida: e a idéia é que o Espírito fará uso da exaltação de Cristo para fazer com que os homens pensem sinceramente

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

465

em todo o assunto da justiça; para lhes mostrar o caráter totalmente podre de sua própria justiça, cuja proeza foi crucificar Jesus; para convencer seus corações em relação à verdade solene de que o Crucificado era o Justo; e finalmente conduzi-los a encontrar em Jesus a sua verdadeira justiça, pensando na pergunta: Por que então o Justo sofreu? Entendemos o significado da terceira observação explanatória no seguinte sentido: “Quando eu for crucificado, o deus deste mundo terá sido julgado. Decerto, tanto este mundo como o seu deus, mas este último de um modo sutil e irreversível —o mundo, embora atualmente seguindo a Satanás, ainda tem a chance de se converter. Quando eu su­ bir, o Espírito usará então o juízo proferido contra Satanás no passado para convencer os homens de um juízo por vir; ensinando-os a enxergar neste uma profecia de separação final entre mim e todos que persistem obstinadamente na incredulidade, e assim, pelos terrores da perdição, os levará ao arrependimento e à fé”. O que Jesus diz a respeito da obra iluminadora do Espírito sobre a mente dos discípulos significa o seguinte: Ele vos adequará para serdes inteligentes e minhas testemunhas dignas de confiança, e para serdes guias da igreja na doutrina e na prática. Para esses elevados propósitos duas coisas seriam necessárias: que eles compreendessem a verdade cris­ tã, e que possuíssem o dom da profecia, a fim de serem capazes de pre­ dizer o futuro em suas linhas gerais, para a advertência e o encorajamento dos crentes. Jesus lhes promete ambas as vantagens como frutos da in­ fluência ilum inadora do Espírito. Ele lhes garante que, quando o Consolador vier, os guiará em toda a verdade que Ele mesmo havia lhes ensinado, relembrando coisas esquecidas, explicando coisas não enten­ didas, desenvolvendo sementes em um sistema de doutrina que estava inteiramente acima do atual poder de compreensão deles44. O Senhor também os informa que esse mesmo Espírito lhes mostrará as coisas por vir — tais como o surgimento das heresias e apostasias, a vinda do Anticristo, o conflito entre a luz e as trevas, e a questão do fim, como descritos no livro de Apocalipse. Tais eram as mudanças que deveriam surgir no mundo e na vida dos discípulos pelo advento do Consolador. Verdadeiramente mudanças de grande benefício; mas por que elas não podem ocorrer antes que Jesus deixe o mundo?

466

0 Treinamento dos Doze

A resposta para esta pergunta é sugerida por Jesus, quando Ele fala do Espírito: “Não falará de si mesmo”45 e “H á de receber do que é meu e volo há de anunciar”46. Cabia ao ministério pessoal de Jesus chegar ao fim antes do ministério do Espírito começar, porque este último é uma aplica­ ção do primeiro. O Espírito não fala de si mesmo: Ele simplesmente toma as coisas relativas a Cristo e as mostra aos homens —aos incrédulos, para que se convençam e se convertam; e aos crentes, para a sua iluminação e santificação. Mas até que Jesus tivesse morrido, ressuscitado e subido aos céus, aquilo que fosse essencial a seu respeito permaneceria incompleto; os materiais para o Evangelho não estariam prontos para serem entregues. Poderia não haver a pregação apostólica nem a demonstração do Espírito acompanhada de poder. Deveria ser possível aos apóstolos e ao Espírito darem testemunho daquele que, embora perfeitamente santo, foi crucifica­ ndo, para mostrar ao mundo a atrocidade do pecado. Eles deviam ter essas informações para poderem declarar que Deus fez do mesmo Jesus a quem eles crucificaram tanto o Senhor como o Cristo, exaltado à glória celestial, antes que seus ouvintes pudessem sentir remorso no coração e serem leva­ dos a exclamar aterrorizados: “Que faremos, varões irmãos?” Somente após Jesus ter ascendido à glória, e se tornado invisível aos olhos mortais47, os homens conseguiram compreender que Ele não foi apenas pessoalmente um homem justo, mas o Senhor, a sua justiça. Então seria forçada em suas mentes a seguinte pergunta: Qual poderia ser o significado do Senhor da glória tornar-se homem e morrer na cruz? E pelo ensino' do Espírito eles aprenderiam a responder, não como nos dias de sua ignorância, “Ele sofre por suas próprias ofensas”, mas, “Verdadeiramente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si... ele foi ferido pelas nossas transgressões...” Finalmente, não até que estivessem em uma posição de dizer que o seu Senhor havia ido para o céu, os apóstolos não poderiam aplicar com plena força sobre o impenitente a doutrina do juízo. Então eles pode­ riam dizer: Cristo está assentado no trono celestial, como Príncipe e Salvador para todos os que crêem, mas também um Juiz para aqueles que continuam em rebelião e incredulidade. “Beijai o Filho, para que se não ire, e pereçais no caminho, quando em breve se inflamar a sua ira. Bem-aventurados todos aqueles que nele confiam”.

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

46 7

Os discípulos não compreenderam tudo isso naquele momento. Eles não tinham noção da obra do Espírito na consciência do mundo e em seus próprios pensamentos, e da relação na qual a terceira pessoa da Trindade48 representava a segunda. Assim Jesus não se estende nesses tópicos, mas se restringe ao que é explicitamente necessário para indicar a verdade. M as chegou o momento em que os discípulos de fato conse­ guiram entender essas questões, e então apreciaram plenamente o entu­ siasmo de seu Senhor em relação à dispensação do Consolador. Então eles reconheceram que a afirmação era certamente verdadeira, que era vantajoso para eles que Jesus partisse, e sorriram quando se lembraram que certa vez haviam pensado de outra forma; sim, perceberam que a palavra “vantajoso”, longe de ser forte demais, era, antes, uma expressão fraca, escolhida em auxílio bondoso à sua fraca capacidade espiritual, em vez da forte palavra “indispensável”. Então imaginamos que tenham se sentido como os homens bons se sentem em relação à morte quando chegam ao céu. Deste lado do túmulo podemos dizer: T ím id o s m ortais avançam e retroagem Para cruzar o m ar estreito; D em oram -se, trem endo, na m argem ; E tem em lançar-se a esta nova condição.

M as para aqueles que estão do outro lado, como a morte parece ser um assunto insignificante, e como parece estranho à sua visão purificada, que sempre deveria ter sido necessário provar-lhes que era melhor partir para a glória do que permanecer em um mundo de pecados e tristezas!

Seção III - O Breve Período e o F in a l do D iscurso João 16.16-33

O louvor à dispensação do Consolador faz surgir um paradoxo. Jesus havia dito aos seus discípulos que a sua partida seria benéfica para eles em vários aspectos, mas particularmente neste: que eles deveriam alcançar uma compreensão clara e total a respeito da verdade cristã. De fato, o que Ele estava dizendo significava: E bom para vocês que eu vá, porque quando eu me tornar fisicamente invisível, serei espiritualmente visível para vocês. Devo me retirar de seus olhos físicos para que possa

46 8

0 Treinamento dos Doze

ser visto pelos olhos do entendimento. Assim Ele adequadamente ter­ mina seu discurso sobre o Consolador repetindo um enigma, que Ele havia proposto de uma forma menos evidente em sua primeira referência à despedida: “Um pouco, e não me vereis; e outra vez um pouco, e verme-eis, porquanto vou para o Pai”. Este enigma, como todos os outros, torna-se muito simples quando possuímos a chave para entendê-lo. Como em outras declarações para­ doxais de Jesus em relação a perder e salvar a vida49, a palavra principal, “ver”, é usada em dois sentidos50 —primeiro no sentido físico, e depois, no segundo, em um sentido espiritual. E, assim, a possibilidade de um acontecimento, da partida de Cristo para o Pai, torna-se a razão de não ver, assim como a razão de ver. Quando Jesus ascendeu ao céu, os discí­ pulos não o viram mais como no cenáculo, na última Ceia. Mas imedia­ tamente depois dessa ocasião, passaram a vê-lo de outra forma. A idéia de sua vida chegou com doçura aos seus olhos e à sua alma. E a visão era satisfatória: ela justificou a bela linguagem com que o seu Mestre lhes havia falado antes de tê-los deixado. Embora não o tivessem visto mais em carne, ainda criam nEle, e, nas palavras do apóstolo Pedro, alegra­ vam-se com gozo inefável e glorioso. Porém, neste momento, os discípulos não têm uma concepção da visão e da alegria que os aguarda. As palavras de seu Senhor não têm significado para eles; são um enigma, de fato uma aparente contradição. Estando próximos ao locutor inspirado, eles sussurram uns aos outros comentários a respeito das palavras enigmáticas que o Senhor havia profe­ rido, momentos antes, sobre ver e não ver e sobre ir para junto do Pai. O enigma evidentemente serviu a pelo menos um propósito: afastou os discí­ pulos do estupor do sofrimento, e despertou a sua curiosidade. Esta, por­ tanto, foi a recompensa pelo serviço prestado: Criou surpresa, mas não entenderam o seu sentido; os ouvintes foram constrangidos a confessar: “Não sabemos o que Ele diz”51. E assim, observamos que eles não fiz;eram perguntas a Jesus. Gostariam de fazê-las neste ponto, mas não se sentem capazes de tomar tal liberdade; refreados, imaginamos, por respeito ao tom com que o Mestre se dirigira a eles na segunda parte de seu discurso de despedida. Jesus, entretanto, consciente de que tinham algo a perguntar, de modo amável os beneficia com uma palavra de explicação52.

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

469

Tal palavra não explica exatamente o enigma. Jesus não diz a seus discípulos o que aquele curto período de tempo significa, nem distingue os dois tipos de visão: Ele deixa que o enigma fique por ser esclarecido, do único modo possível: pela experiência. Tudo o que Ele procura fazer é mostrar que o mesmo evento que agora traz uma tristeza imediata poderá se tornar, após a sua ocorrência, um motivo de grande alegria. Com este propósito Ele compara a crise pela qual os discípulos estão prestes a passar, não como já fizemos, com o acontecimento solene atra­ vés do qual um cristão parte deste mundo para um outro melhor; mas com o acontecimento com o qual a vida humana começa53. A comparação é adequada ao propósito para o qual é introduzida; mas não podemos com certeza, para não dizer com propriedade, levá-la a detalhes. Intérpretes que aspiram compreender todos os mistérios e todo o conhecimento levantaram muitas questões, tais como: Quem é representado pela mãe na parábola —Cristo ou os discípulos? Quando o sofrimento começa, e quando e em que termina? As respostas dadas a essas perguntas são variadas. De acordo com uma delas, o próprio Jesus é o novo homem, e o sofrimento ao qual alude é a sua própria morte, vista como a redenção da humanidade pecadora. Uma outra interpreta­ ção é que Jesus representa seus próprios discípulos como filhos do Cris­ to espiritual, que nascerá quando o Consolador vier. A maioria entende o início do sofrimento como a morte de Cristo, mas há muitas opiniões diferentes a respeito de quando este termina. Alguns dizem que a data do gozo refere-se à data da ressurreição porque, decorrido um breve período de dolorosa separação, Jesus é restituído aos seus sofridos discí­ pulos. Outros estendem a expressão “um pouco” como relacionada ao Pentecostes, quando a igreja nasceu no mundo como um novo homem em Cristo. Um terceiro grupo faz do curto período um longo período através das palavras: “Mas outra vez vos verei”, referindo-se à segunda vinda de Cristo, e à era abençoada do novo céu e da nova terra onde habita a justiça, pela qual toda a criação geme, e cujo tempo haverá de chegar54. Não consideramos necessário nos manifestar a respeito desses te­ mas tão discutidos. Ás vezes consideramos necessário conceder à ana­ logia uma variação doutrinária e encontrar nela uma referência à rege­

470

O Treinamento dos Doze

neração. O que Jesus tem em vista nesta parte de seu discurso não é o novo nascimento, seja dos discípulos ou da igreja, mas a iluminação espiritual dos apóstolos; sua transição de meros filhotes ao ponto de terem asas; de uma fé ignorante implícita a uma fé desenvolvida e inteli­ gente; sua iniciação no grau mais elevado dos mistérios cristãos, quando devem enxergar claramente as coisas que no presente não lhes são inteli­ gíveis; e serem mestres no Reino dos céus55. Para eles, como também para os cristãos em geral (pois há um sentido no qual a experiência dos após­ tolos se repete na história espiritual de muitos crentes), esta crise não é menos importante do que a inicial, através da qual os homens passam da morte para a vida. E algo realmente importante ser regenerado, mas não é menos importante ser iluminado. A ocasião em que Cristo entra pela primeira vez em um coração é memorável, um objeto de fé e amor. Mas é também um momento igualmente importante, quando Cristo, depois de ter partido, talvez durante uma estação, deixando as mentes povoadas de dúvidas e os corações oprimidos pelo sofrimento, retorna para nunca mais partir, eliminando a frigidez do inverno e a escuridão, trazendo assim a luz, a alegria, o calor do verão e a fecundidade da alma. De fato, os discípulos deveriam estar satisfeitos com a partida de Cristo, na for­ ma em que foi primeiramente conhecido, para que mais tarde tivessem tamanha alegria! Sendo mostrada, por uma analogia familiar e singela, a possibili-dade de o sofrimento presente ser transformado em uma grande alegria, Jesus passa então a descrever, de um modo breve, as características do estado que os apóstolos em outros tempos viriam a atingir56. Primeiro, em meio a estas, Ele menciona uma compreensão ampliada da verdade; porque é a isto que se refere quando diz: “Naquele dia, nada me perguntareis”. Ele quer dizer que eles então não fariam perguntas tais como haviam feito ao longo do tempo em que conviveram, e especialmente naquela noite —per­ guntas infantis, feitas com a curiosidade de uma criança, e também com a incapacidade infantil de compreender as respostas. O espírito inquiridor da infância seria substituído pelo espírito de compreensão da fase adulta. As verdades do Reino não seriam mais, como antes, mistérios impenetráveis para eles: deveriam ter a unção do Santo, e conhecer todas as coisas.

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

471

Algumas pessoas pensam que é demais dizer isso a respeito de qual­ quer cristão, não excetuando sequer os próprios apóstolos, enquanto no estado terreno, e assim dizem que o dia referido aqui é o da segunda vinda de Cristo, ou de sua feliz reunião, no Reino de seu Pai, com aque­ les que salvou57. E, sem dúvida, é verdade que no último dia os cristãos deverão conhecê-lo como são conhecidos, e não ter absolutamente a necessidade de fazer quaisquer perguntas. Então, Poder central que não conhece lim ites, E sabedoria livre de em pecilhos, A visão beatifica deve alegrar Os santos que estão à tua volta...

como nunca os alegrou aqui em baixo. A declaração que está diante de nós tem uma verdade relativa em referência a esta vida presente. En­ quanto comparada com o estado perfeito, a visão mais clara de qualquer cristão se trata de enxergar como que através de um vidro, de forma obscura. E o grau de iluminação alcançado pelos apóstolos pode ser descrito, sem exagero, em contraste com a sua ignorância como discípu­ los, como homens que ainda precisavam fazer mais perguntas. Ao pro­ meter aos seus discípulos que atingiriam este alto grau, Jesus estava di­ zendo, de fato, que como apóstolos eles seriam professores, não sábios — doutores em divindade com títulos conferidos pelo próprio céu —capa­ zes de responder às perguntas dos jovens discípulos, parecidas com aquelas que um dia eles mesmos fizeram. O segundo aspecto da iluminação apostólica mencionado por Je­ sus é a influência ilimitada de D eus através da oração. Sobre isso Ele fala com grande ênfase: “N a verdade, na verdade vos digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar”58. Ou seja, os apóstolos deveriam ter à sua disposição o poder de Deus: o poder de operar milagres, de curar enfermidades; da profecia, de prever coisas do interesse da igreja, e o que era desejável que os crentes viessem a saber; da providência, para fazer todos os acontecimentos subservien­ tes ao seu bem-estar, e à causa na qual estivessem trabalhando. A pro­ messa, em sua essência, embora não em seus acidentes milagrosos, é

472

0 Treinamento dos Doze

feita para todos os que aspiram a maturidade cristã, e é cumprida na vida de todos aqueles que a recebem. N a sentença seguinte, Jesus, se não estivermos enganados, particulariza um terceiro aspecto do estado espiritual de maturidade que Ele almejava que seus discípulos aspirassem. Ê um coração dilatado para dese­ jar, perguntar e esperar grandes coisas para si próprios, para a igreja e para o mundo. “Até agora”, o Senhor lhes diz, “nada pedistes em meu nome”. Havia uma razão para isso, diferente do estado espiritual dos doze. Ainda não havia chegado o momento de pedir qualquer coisa em nome de Cristo: eles não poderiam receber este benefício até que a obra de Cristo estivesse completa e Ele fosse glorificado. Mas Jesus quis dizer algo mais através de seu comentário. Ele quis dizer algo que é de fato também verdadeiro, que até então os seus discípulos haviam pedido pouco em qualquer nome. Os desejos daqueles homens haviam sido pequenos, e suas idéias a respeito do que perguntar eram obscuras e toscas; quais­ quer desejos de amplas dimensões que tivessem, haviam sido de caráter mundano, de forma que Deus não poderia concedê-los. Eles haviam se comportado como crianças, para quem um centavo parece ser maior do que m il para um homem rico. Mas Jesus sugere que, embora não diga claramente, sucederá o contrário com os seus apóstolos depois do ad­ vento do Consolador. Então eles serão pobres meninos que se tornaram ricos mercadores, cujas idéias de alegria foram ampliadas pela sua fortu­ na exterior. Então eles serão capazes de orar de tal modo como fez Paulo em sua prisão romana em favor da igreja efésia, e da igreja de todos os tempos; serão capazes de fazer a oração do Senhor, e especialmente de dizer: “Venha o teu reino”. E isso farão com compreensão do sentido, um fervoroso desejo e uma garantia da fé, da qual no presente não têm sequer a concepção. Até agora eles têm se comportado como crianças, que questionam os seus pais a respeito de coisas insignificantes como brinquedos e moedas; então devem crescer e aumentar a sua demanda em relação à riqueza da graça de Deus para si próprios, para a igreja e para o mundo. Junto com esse aumento, as promessas de Jesus serão repletas de alegria. O que for pedido, o Pai concederá; e a resposta à oração encherá o cálice da alegria até à borda. A esperança pode ser deferida por uma

Orientação aos Futuros Apéstolos antes da Morte do Senhor

473

estação, mas no final virá a alegria inexprimível do cumprimento da esperança. “Pedi e recebereis, para que a vossa alegria se cumpra”. E assim foi a experiência dos apóstolos. Eles tinham abundância de alegria no Espírito Santo, na obra deste em seus próprios corações e no mundo. E essa lei ainda permanece. Mas por que, então, o cristianismo parece não estar progredindo como poderia? Devemos responder a esta questão perguntando uns aos outros: Quantas pessoas têm um coração ansioso e desejoso pela compreensão? Quantas pessoas, de toda a sua alma, dese­ jam para si, sobre todas as coisas, a santificação e o entendimento? Quantas, sincera e fervorosamente, desejam a conversão dos ímpios, a união, a paz, a pureza da igreja e que a integridade prevaleça na socieda­ de como um todo? Somos limitados em nossos próprios corações, não em Deus. O discurso de despedida está agora no final. Jesus disse aos seus discípulos o que o tempo permitia e o que eles eram capazes de ouvir. Ele não considerou que havia transmitido muitas instruções às suas men­ tes, ou que havia feito muito por eles em termos de consolação. O Se­ nhor tem uma idéia muito humilde sobre o efeito prático imediato do discurso que acabou de fazer. Fazendo uma breve retrospectiva, em uma provável alusão ao que acabara de dizer, o Senhor observa: “Disse-vos isso por parábolas”. Podemos citar algumas parábolas proferidas pelo Senhor: sobre a casa que tem várias moradas, sobre a Trindade Divina vindo para fixar sua moradia nos fiéis, sobre a vinha e seus ramos, e sobre as dores e alegrias maternais. Estas, sob a perspectiva do locutor, demonstram a essência de seu discurso. Consciente da inevitável lentidão para entenderem não apenas o discurso presente, mas todo o seu ensino anterior, Jesus aproveita pela terceira vez a ocasião para repetir a promessa da compreensão espiritual futura, desta vez falando de si próprio como aquEle que dá a compreen­ são, e representando a doutrina do Pai como o grande tópico desta. “Chega, porém, a hora em que vos não falarei mais por parábolas, mas abertamente vos falarei acerca do Pai”. A ocasião referida é o período a partir de sua ascensão. Pouco tempo depois, os discípulos viriam a vivenciar a resposta do pedido de Filipe, que desejava compreender o que seu Senhor quis dizer quando falou em ir até o Pai, e a .perceber a

474

0 Treinamento dos Doze

respectiva conseqüência abençoada em suas vidas. Então o seu Senhor exaltado, através do Espírito da verdade, lhes fala abertamente desta e de outras questões em comparação com o estilo de seu discurso presente, que era espiritual e proferido através de parábolas, elucidando outras passagens das Escrituras que relacionam a parcialidade e a falta de clare­ za de todo o conhecimento espiritual neste estado de vida na terra. Dos tempos felizes por vir, Jesus ainda tem algo mais a dizer; não algo novo, mas antigo, dito de modo novo, magnificamente benevolente e singelo. Suas palavras estão relacionadas à oração e aos seus efeitos. Em outras palavras: “No dia de vossa iluminação, como Eu já disse, não orareis menos do que antes, e sim muito mais, e usareis o meu nome como um apelo para que sejais ouvidos. Asseguro-vos, uma vez mais, de que sereis ouvidos. Em apoio a esta afirmação, devo lembrar-vos de que estarei no céu com o Pai, sempre pronto a pronunciar uma palavra a vosso favor, dizendo: ‘Pai, ouve-os por amor a mim, pois é em meu Nome que os seus pedidos são feitos’. Mas não insisto nisso, não apenas porque não precisais ser assegurados de meu interesse contínuo em vos­ so bem-estar, mas especialmente porque minha intercessão não se fará necessária. M eu Pai sempre vos ouvirá, pois estivestes comigo em todas as minhas tentações59, amastes-me com afeição e coração leal, crestes em mim como o Cristo, o Filho do Deus vivo, enquanto muitos no mundo têm me considerado como um impostor e um blasfemador. Por esses serviços a seu Filho, meu Pai vos ama e vos é grato —em um sentido no qual Ele se considera vosso devedor60”. Que coração, que humanidade, que poesia existe em tudo isso! —poesia, e também verdade; a verdade inexprimivelmente confortadora não apenas para os onze companheiros fiéis de Jesus, mas para todos os que crêem nEle sinceramente. Tendo aludido à fé de seus discípulos —tão meritória, por ser tão rara —Jesus aproveita a ocasião para encerrar o seu discurso, e no final de sua vida na terra solenemente declara mais uma vez a verdade. “Saí do Pai e vim ao mundo; outra vez, deixo o mundo e vou para o Pai”61. Os discípulos acreditaram apenas na primeira parte desta declaração, pois não compreendiam a segunda; mas Jesus coloca ambas juntas como duas metades de uma única verdade, onde uma implica necessariamente na outra. A declaração é altamente importante pois resume a história de

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

475

Cristo; é a essência da fé cristã; afirma doutrinas absolutamente incom­ patíveis com a visão meramente humana da pessoa de Cristo, e torna a sua divindade uma parte fundamental da fé. Essas últimas palavras de Jesus eclodem sobre os discípulos como uma estrela que brilha repentinamente em meio às nuvens em uma noite escura. Com o tempo, uma expressão luminosa rompeu a neblina do discurso misterioso de seu Mestre, e eles imaginaram que finalmente haviam compreendido o seu significado. Jesus havia acabado de lhes di­ zer que saíra do Pai e que viera ao mundo. Pelo menos isso eles compreen­ deram; porque acreditavam que haviam se tornado discípulos. Satisfei­ tos por terem ouvido algo a que poderiam dar uma resposta sincera, eles fazem o máximo e informam a seu Mestre que a sua locução inteligível e plena, e a compreensão inteligente que Ele havia projetado para o futu­ ro, já existiam de fato. “Eis que”, disseram eles, com ênfase na partícula temporal, “agora, falas abertamente e não dizes parábola alguma. Agora, conhecemos que sabes tudo e não precisas de que alguém te interrogue. Por isso, cremos que saíste de Deus”. E assim, é impossível que as crianças se expressem de um modo diferente daquele cabível à sua idade! Ao professarem o seu conhecimen­ to, os discípulos demonstram a sua completa ignorância. Começando com o segundo “agora”, a declaração indica uma grande falta de compre­ ensão em relação àquilo que Jesus havia dito a respeito de lhe fazerem perguntas quando tivessem mais entendimento. Ele quis dizer que eles então não necessitariam fazer perguntas como os aprendizes; os discípu­ los entenderam suas palavras como significando que Ele próprio não necessitava fazer perguntas sobre quem era ou de onde vinha. Eles já aceitavam sua reivindicação de ter vindo do céu. E assim nada podemos dizer quanto à inferência expressa pela declaração: “Por isso, cremos”. Após muitas tentativas de compreender a lógica dos discípulos, devemos nos confessar perplexos. O único meio pelo qual podemos dar um sen­ tido tolerável a estas palavras, é considerar o termo traduzido como “isso” como um advérbio de tempo, e ler “neste momento presente”. Embora alguma idéia adicional possa nos estar reservada para o futuro, nós agora cremos que Tu vieste de Deus. Esta tradução, contudo, não é apoiada, ou mesmo sugerida, por nenhum dos críticos62.

476

0 Treinamento dos Doze

Os discípulos sinceramente acreditavam que aquilo que professa­ vam era a verdade. Jesus havia acabado de confirmar isso. Mas eles não haviam compreendido o que estava envolvido em sua crença. Eles não compreendiam que a vinda de Jesus do Pai implicava uma nova partida. Eles não haviam compreendido isso no início do discurso; não compre­ enderam quando o discurso havia terminado; não compreenderiam até que o Senhor partisse e o Espírito viesse para tornar claras todas as coisas. Em conseqüência dessa ignorância, a fé daqueles homens não os sustentaria naquelas horas tão cruéis que se aproximavam. A morte de seu Mestre, o primeiro passo no processo de sua partida, os pegaria de surpresa e os faria entrar em pânico, como ovelhas atacadas por lobos. Então, Jesus lhes disse claramente: “Credes, agora?” Ele disse: “Eis que chega a hora, e já se aproxima, em que vós sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis só, mas não estou só, porque o Pai está comigo”63. Uma dura realidade, duramente anunciada; mas com toda a dificul­ dade, Jesus não tem medo de encará-la de forma direta. Seu coração se encontra em perfeita paz, porque Ele tem dois grandes consolos. O Se­ nhor tem uma boa consciência. Ele pode dizer: “Eu venci o mundo”. Jesus assegurou a sua integridade moral contra a tentação incessan­ te. O príncipe deste mundo não encontrou nenhum traço do seu espíri­ to nEle, e por esta exata razão irá crucificá-lo. Mas assim procedendo, Satanás não anulará, mas, ao contrário, selará a vitória de Cristo. A apa­ rente derrota pelo poder mundano, será apenas o início e a medida de sua conquista espiritual. O mundo pensa que levá-lo à morte seja o segundo melhor modo de vencê-lo. Seus inimigos estariam muito mais contentes se tivessem obtido sucesso intimidando-o ou subornando-o para obter um acordo. Os poderes malignos do mundo sempre preferem a corrupção à perseguição como o meio mais adequado de se livrarem da verdade e da justiça; somente depois de falharem nas tentativas de corromper a consciência, e tornar o homem venal, é que recorrem à violência. A outra fonte de consolação de Cristo diante da morte é a aprova­ ção de seu Pai: “Não estou só, porque o Pai está comigo”. O Pai estava com Ele durante todo o tempo. Em três ocasiões críticas —no batismo, na transfiguração ocorrida no monte, no Templo há poucos dias atrás —

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

477

o Pai o havia encorajado com uma voz de aprovação. O Senhor sente que o Pai ainda está com ele. Espera que o Pai continue ao seu lado quando for abandonado por seus escolhidos, e em meio a todas as crises terríveis que está prestes a enfrentar, mesmo naquele momento que seria o mais amargo e escuro, quando a perda da sensível presença de seu Pai o faria exclamar: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Ele espera que seu Pai esteja com Ele então, não para salvá-lo do sentimento de deser­ ção (Ele não desejava ser salvo disso, porque tinha plena consciência de que veio para sofrer a maior de todas as dores, neste e em todos os outros aspectos, para ser como um irmão de cada ser humano; e assim seria capaz de socorrê-los quando se sentissem tentados a se desesperar), mas para sustentá-lo sob a chaga da aflição, e habilitá-lo com a fé filial para clamar “Deus meu” mesmo quando se sentisse abandonado. Livre de toda inquietação em relação a si próprio, Jesus propõe a seus discípu­ los que tenham bom ânimo; e isto pela mesma razão que fez com que Ele não temesse, isto é, por ter vencido o mundo. O Senhor fará com que compreendam que a sua vitória também é deles. Em outras palavras: Tende bom ânimo; eu venci o mundo, e vós também o fizestes —isso foi o que Ele quis dizer. Homens de tendências socinianas interpretariam as palavras de forma diferente. Eles interpretariam as palavras de Jesus como: Eu venci o mundo, e assim vocês também deverão fazê-lo. Sigam o meu exemplo, e corajosamente lutem a batalha da justiça, apesar das tribulações64. O significado é bom o suficiente, até o seu limite. Encoraja as pessoas para a batalha da vida através do conhecimento de que o Senhor da glória passou por tudo isso antes delas. O fato de Ele ter sido um combatente é um pensamento inspirador; pois quem não seguiria o D i­ vino Capitão da Salvação, que nos lidera em meio ao sofrimento levando-nos à glória? Então, quando pensamos que esse Combatente augusto foi completamente vitorioso na batalha, seu exemplo se torna ainda mais encorajador. Sua vitória mostra que o deus deste mundo não é onipo­ tente; qualquer pessoa que desejar vencê-lo poderá fazê-lo simplesmente estando disposta a carregar a cruz. Vendo a forma como Jesus suportou a contradição dos pecadores —enfrentando até mesmo a morte, e des­ prezando a vergonha da crucificação —seus seguidores se sentem mais encorajados a combater o bom combate da fé.

478

0 Treinamento dos Doze

Mas embora isso seja verdade, é a menor parte dela. O fato importan­ te é que a vitória de Cristo é a vitória de seus seguidores, e assegura que eles também devem vencer. Jesus combateu o seu combate não buscando um benefício individual, mas como um personagem público, como um repre­ sentante da raça humana. E todos são bem-vindos a reivindicar os benefí­ cios de sua vitória —o perdão dos pecados, o poder para resistir ao malig­ no e a admissão no Reino eterno. Por Cristo ter vencido, podemos dizer a todos que tenham bom ânimo. A vitória do Filho de Deus em sua nature­ za humana é um recurso de consolação disponível a todos os que fazem parte dessa natureza. E um privilégio de todo homem (assim como um dever) reconhecer a Cristo como o seu representante nessa grande batalha. “Cristo é a cabeça de todo varão”. Todos aqueles que reconhecem sincera­ mente este relacionamento receberão os seus benefícios. Reivindique a sua filiação ao Sumo Sacerdote, e você deverá receber dEle a misericórdia e a graça que lhe ajudarão em seus momentos de necessidade. Coloque em seu coração que os homens não são unidades isoladas, lutando suas próprias bata­ lhas sem qualquer ajuda ou encorajamento. Somos de fato membros uns dos outros, e sobretudo, temos em Cristo um pai e um irmão mais velho. Aqueles que ainda não têm um relacionamento regenerado com Cristo devem saber que já têm, ao menos, um relacionamento humano com Ele. Enxerguemo-lo, então, como a nossa Cabeça em todas as coisas: como o nosso Rei, e abaixemos as armas da nossa rebelião; como o nosso Sumo Sacerdote, e recebamos dEle o perdão de nossos pecados; como o nosso Senhor, e sejamos governados por sua vontade, defendidos por seu poder e guiados por sua graça. Se o fizermos, o acusador dos irmãos não terá chance de prevalecer contra nós. As palavras do apóstolo João em Apocalipse serão cumpridas em nossa história: “Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram a sua vida até à morte”. 1 João I 5 .I -I 7 2 Versículo 16 3 Sanday (Forth Gospel, p. 231) fala da alegoria da videira como pertencendo a um período diferente e mais didático da vida de Cristo, e o representa como um momentâneo rompimento da linha de raciocínio que tem a finalidade de confortar os discípulos quanto à perspectiva da iminente partida de seu Senhor. Este foi certamente um objetivo, mas não o único. A alegoria é muito adequada a outro objetivo principal do discurso, isto é, colocar diante dos ouvintes as responsabilidades que tinham como apóstolos da fé cristã.

Orientação aos Futuros Apóstolos antes da Morte do Senhor

47 9

4 João 15.2 5 João 15.3 6 Versículo 5 7 João 15.4 8 João 15.5 9 Veja o estudo biográfico de Sereno E. Dwight, prefixado na edição inglesa das Works o f Edwards, em dois volumes: vol. I. p. 172. 10 João 15.10 EI Versículo 7 12 João 15.2 13 Versículo 6 14 Versículos 8-17 15 Versículo 8 16 Versículo 16 17 Robinson, Biblical Researches, I. 523. 18 João 12.24, 33 19João Í5.8. Vide leituras variadas, genesthe em v ez de genêsestbe. O sentido é basicamente o mesmo, qualquer que seja a leitura que preferirmos. 20 João 15.IX 21 João 15.15 22 Versículo 16 23 Versículos 12, 17 24 João 16.1; veja também o versículo 4 25 João 15.18 26 João 16.2; conforme aVersão Revisada em inglês. A idéia é que os assassinos imaginem que estão oferecendo um serviço ou sacrifício religioso aceitável a Deus. 27 João 15.20; comp. 13.16, também 12.26 28 João 15.19 29 João 15.21 30 Versículos 22-25 31 João 15.26 32 Versículo 27. Hofmann considera martureite no versículo 27 como um imperativo: “E também dai testemunho de mim: dizei ao mundo quem eu sou” —Schriftbeweis, 2te Hálfte, 2te Abtheilung, p. 19. 33 João 16.2 34 João 16.4 35 Stier 36 Luthardt 37 João 16.5, 6. Olshausen une a primeira parte do versículo 5 ao versículo anterior, e supõe uma pausa depois que as palavras foram proferidas. 38 João 16.7 39 João 16.7-15 40 apeltho, poreutko 41 João I6 .8 -II 42 João 16.12-15 43 João 15.26 44 João 16.12 45 Versículo 13 46 Versículo 14 47 Versículo 10: “E não me vereis mais'’ é uma expressão que eqüivale a dizer: Não serei mais visto na terra. Esta expressão sugere que a terra era o lugar da peregrinação de Cristo, e o céu o seu lar; portanto, pode-se afirmar, através desta passagem, a sua Divindade. 48 A personalidade do Espírito Santo é assumida ao longo de todo esse discurso. Veja o versículo 13, ekeinos. 49 Mateus 16.25 50 Existem duas palavras em grego theoreite, opsesthe.

480

O Treinamento dos Doze

51 João 16.18 32 Versículos 19-21 53 Versículos 20-22 4 Para conhecer as várias opiniões a respeito dessas questões, veja as obras de Stier, Luthardt, Lange, Olshausen. Alford, etc. 5:> Alguém que tivesse sido apresentado ao mais alto grau (terceiro) dos mistérios eleusinianos era chamado de epoptes. Veja Platão, Convivium (O discurso de Sócrates a respeito de Diotime, como Erõs). 56 João 16.23-24 57 Assim como Luthardt, 2.348, que sustenta que a primeira cláusula do versículo 23 se refere à condição final da igreja, e a segunda, ao seu estado de imperfeição, com base no fato de que os dois não podem ser contemporâ­ neos. Ele diz que onde há oração há um pedido, e vice-versa. Contudo, é ainda verdadeiro que quanto menos um homem necessita fazer perguntas, mais esclarecido é; e assim supõe-se que desejará orar mais. 58 João 16.23. O verbo traduzido nesta frase como pedir não é o mesmo daquele representado pela mesma palavra em inglês no primeiro. Na primeira oração é erõtesate; na segunda, aitêsête. 59 Lucas 22.28. Veja a nota 14 do capítulo 2 60 João 16.26,27 61 Versículo 28 62 Winer, em sua obra Neutest. Grammatik, declara que não conhece um exemplo mais claro do uso de en touto = por isto, ou por causa de. De seu uso = intereâ ele cita vários exemplos de autores clássicos, p. 361-362 (tradução de Moulton, p. 484). 63 Os comentaristas nos dizem que arti pisteuete não é uma pergunta. Se não, por que não há uma partícula adversativa na próxima oração ( erchetai de)} A oração é, sem dúvida, interrogativa. Cristo questiona não a realidade em si, mas a suficiên-cia da fé de seus discípulos. 64 Sobre a teoria sociniana da expiação, veja a obra The Humiliation o f Christ (a 6a série de Cunningham Lectures) Lect. 7. p. 296, 2 a edição.

26 A Oração Intercessória João 1 7

solene e respeitoso silêncio e sem qualquer anotação ou comentário, o conteúdo ou as circunstâncias em que foi oferecida a Deus a incompará­ vel e sublime oração pronunciada por Jesus em seu discurso de despedi­ da aos discípulos. Não é sem relutância que agora abandonamos nossa intenção, compelidos pelas considerações de que ela não foi oferecida apenas mentalmente a Deus, mas também para os ouvidos e a instrução dos onze homens presentes, e isso foi registrado por um deles para o benefício da igreja em todos os séculos. E devemos nos esforçar para compreender e interpretar aquilo que foi agradável a Deus preservar para nosso uso. A oração está originariamente dividida em três partes: na primei­ ra, Jesus ora por si mesmo, na segunda pelos seus discípulos, e na terceira pela igreja que passaria a existir através das pregações deles. A oração em que Jesus pede por si mesmo (v. 1-5) contém ape­ nas um pedido e suas duas razões. O pedido é: “Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho”; onde a maneira de se dirigir, simples, familiar e confidencial, é verdadeiramente digna de nota. "Pai!” —essa é a pri­ meira palavra da oração, repetida seis vezes em seu decurso, com ou sem um epíteto anexado a ela, mas com o nome que Jesus dá a quem a sua oração é dirigida. Ele fala com Deus como se já estivesse no céu, segundo diz expressamente um pouco depois: “E eu já não estou mais no mundo”.

482

0 Treinamento dos Doze

A frase bastante significativa, “é chegada a hora”, não é menos dig­ na de nota. O quanto ela exprime! —obediência filial, intimidade filial, esperança e alegria filiais. A hora! Era a hora pela qual Ele havia espera­ do pacientemente, que havia aguardado com ansiosa expectativa, mas que, no entanto, nunca havia procurado apressar; a hora determinada pelo seu Pai e sobre a qual Pai e Filho sempre estiveram de acordo e da qual ninguém, a não ser Eles, tinha qualquer conhecimento. Aquela hora havia chegado, e sua chegada é anunciada como uma justificativa para dar suporte ao seu pedido; em outras palavras: “Tu sabes, Pai, o quanto esperei pacientemente pelo que agora estou pedindo, sem me cansar de bem proceder, nem me afastar dos percalços de meu destino terreno. Agora que minha missão se aproxima de seu desfecho final, conceda-me o desejo de meu coração e glorifica-me”. “Glorifica-me”, isto é, “leva-me para estar junto a ti”. A oração de Jesus é para que seu Pai possa agora se alegrar em transportá-lo desse mundo de tristezas e pecados para o estado de glória que Ele havia dei­ xado para trás, quando se tornou homem. Assim Ele explica sua própria intenção quando repete o pedido sob uma forma mais alongada, tal qual encontramos no versículo 5: “E, agora, glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existis­ se”, isto é, com a glória que Ele gozava no seio do Pai antes de sua encarnação, como o Filho Eterno de Deus. Podemos observar que nessa oração por si mesmo, Jesus não faz nenhuma alusão aos seus sofrimentos tão próximos. Pouco tempo de­ pois, no Getsêmani, Ele oraria assim: “Pai... afasta de mim este cálice”. M as aqui não há nenhuma menção a esse cálice de sofrimento, mas so­ mente à coroa de glória, pois o verdadeiro céu está totalmente visível e a antecipação de suas glórias fazem com que Ele se esqueça de todas as outras coisas. Somente depois de Ele ter penetrado nas trevas, as nuvens cinzentas começarão a se reunir, obscurecendo o céu e apagando de sua visão o mundo celestial. No entanto, a morte que se aproxima, embora não mencionada, está virtualmente incluída na oração. Jesus sabe que deve passar do sofrimento para a glória, e que deve se comportar digna­ mente durante a sua última provação a fim de alcançar o tão desejado objetivo. Portanto, a oração que pronunciou inclui uma outra oração

A Oração Intercessória

483

silenciosa: “Leva-me com segurança através da luta que se aproxima, deixe-me passar do vale das trevas para os domínios da luz, sem temor ou hesitação”1. A primeira razão anexada a essa oração é: “Para que também o teu Filho te glorifique a ti”. Jesus está buscando a sua própria glorificação simplesmente como o meio de chegar a um fim mais supremo —a glorifi­ cação de Deus Pai. E assim fazendo a conexão das duas glorificações como meio e fim, Ele está apenas repetindo ao Pai o que já havia dito aos discí­ pulos em seu discurso de despedida, isto é, que seria bom para eles que Ele partisse porque somente depois de sua partida uma profunda impressão seria deixada indelével na consciência do mundo no que se refere à sua pessoa e à sua doutrina. Agora, Ele verdadeiramente diz ao Pai, em outras palavras: “Será bom para a tua glória que eu deixe a terra e vá para o céu; pois assim poderei melhor promover a tua glória na terra do que através de uma prolongada estadia aqui”. Para reforçar essa razão, Jesus declara em seguida que deseja glorificar o Pai em seu ofício como o Salvador dos pecadores: “Assim como lhe deste poder sobre toda carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste”2. Interpretada à luz dessa sentença, essa oração quer dizer: “Tu me enviaste ao mundo para salvar os pecado­ res, por isso tenho estado constantemente ocupado em procurar os perdi­ dos e comunicar a vida eterna àqueles que desejarem recebê-la. Mas é chegada a hora em que essa missão poderá ser melhor desempenhada se Eu tiver ressuscitado. Portanto, elevai-me a teu trono, pois, a partir dele, como Príncipe e Salvador, poderei distribuir as bênçãos da salvação”. E importante observar como Jesus define sua incumbência de ser o Salvador. Ele a representa como imediatamente relativa a toda a humani­ dade e, em especial, a uma classe seleta de homens, atribuindo dessa ma­ neira à sua missão uma referência geral e outra particular, de acordo com os ensinos contidos em todo o Novo Testamento que, em um momento, estabelece a figura de Cristo como o Salvador de todos os homens e em outro a sua figura como Salvador de seu povo, dos eleitos, de suas ovelhas, daqueles que nEle crêem. Temos o dever e o privilégio de imitar esse estilo de discurso que fala sobre a obra redentora de nosso Salvador, evitando quaisquer extremos, tanto o de negar ou ignorar os aspectos universais da missão de Cristo, como o de sustentar que, no mesmo sentido, Ele é o

484

O Treinamento dos Doze

Salvador de todos ou que Ele deverá e irá salvar a todos, de qualquer modo,, no final. Esses dois extremos foram excluídos pelas palavras cuida­ dosamente escolhidas por Jesus em sua oração intercessória. Por um lado, Ele está se referindo a toda a humanidade como se ela pertencesse à sua jurisdição como Salvador e, em seguida, como se fosse uma massa na qual deveria ser introduzido o fermento com o objetivo de fazê-la crescer. Por outro lado, existe uma óbvia restrição à universalidade da primeira cláusula nos termos da segunda. Os defensores da restauração universal não encon­ tram aqui nenhum suporte para o seu dogma. Estes podem até indagar: “Uma vez que Jesus tem poder sobre toda a carne, não seria de acreditar que Ele iria usá-lo o máximo possível?” Em nossa resposta não iremos procurar fugir à questão reduzindo o poder reivindicado por Ele a uma simples soberania mediadora em relação ao todo apenas em benefício de uma parte, porque sabemos que a parte eleita foi escolhida não apenas em seu próprio benefício, mas também em benefício do todo, por ser o que de melhor havia na terra, por ser a luz do mundo e o fermento que levedaria a massa corrupta3. Simplesmente observaremos que o poder do Salvador não é compulsório. Os homens não são salvos à força, como se fossem máquinas, mas pelo amor e pela graça, porque são seres livres; e infeliz­ mente existem muitos que poderiam ser reunidos sob as asas da expressão do amor, porém preferiram permanecer do lado de fora para a sua própria destruição. A essência da vida eterna está definida na sentença seguinte da ora­ ção, e é representada pelo conhecimento do único e verdadeiro Deus, e de Jesus Cristo como seu mensageiro; conhecimento esse assumido de uma forma abrangente, que incluiu fé, amor, adoração e a ênfase aos objetos de tal conhecimento. Aqui, a religião cristã é descrita, por um lado, em oposição ao paganismo com seus inúmeros deuses e, por outro, em oposição ao judaísmo que acreditava em um Deus único mas rejeitava as alegações de Jesus quando dizia ser o Cristo. Sua descrição vai mais além e exclui, por antecipação, as opiniões do arianismo e do socianismo a respeito da pessoa de Cristo. Os nomes de Deus e de Jesus são colocados no mesmo nível como objetos de uma consideração religiosa por meio da qual é atribuída ao último uma importância incompatível com o dogma de que Jesus era um simples homem. Pois a vida eterna não pode depen­

A Oração Intercessória

485

der do conhecimento de qualquer homem, por melhor e mais sábio que seja; o máximo que se pode dizer a respeito do benefício auferido de tal conhecimento é que ele pode ajudar a conhecer melhor a Deus, e isso pode ser afirmado não só em relação a Jesus, mas também a Moisés, Paulo, João e todos os apóstolos. Pode parecer estranho que Jesus, ao se dirigir ao Pai, tenha conside­ rado necessário explicar em que consiste a vida eterna, sendo que alguns, para se verem livres dessa dificuldade, chegaram a supor que essa senten­ ça fosse apenas uma reflexão explicativa introduzida pelo evangelista na oração. No entanto, essas palavras estão perfeitamente adequadas à ex­ press ão do próprio Senhor Jesus. A primeira cláusula é uma confissão, feita pelo homem Jesus, de sua fé em Deus, seu Pai, como o supremo objeto do conhecimento, enquanto a sentença como um todo é, na ver­ dade, um argumento usado para amparar a oração, “Glorifica a Teu Fi­ lho”. A força dessa declaração reside naquilo que ela implica a respeito da ignorância existente nos homens a respeito do Pai e seu Filho. E como se Jesus dissesse: “Pai, tu sabes que a vida eterna consiste em co­ nhecer a ti e a mim. Portanto, olhe em volta, e veja como são poucos os que possuem esse conhecimento. O mundo pagão não te conheceu, pois adorava os ídolos. O mundo judeu é igualmente ignorante a teu respeito, em espírito e em verdade, pois enquanto se vangloriava de te conhecer, me rejeitava. O mundo todo está coberto pelo obscuro véu da ignorân­ cia e da superstição. Portanto, leva-me embora daqui, não porque Eu esteja cansado dos pecados e da ignorância deles, mas para que Eu possa me tornar uma luz para eles. Até agora, os meus esforços para iluminar as trevas tiveram sucesso, porém conceda-me uma posição de onde Eu possa iluminar toda a terra”. M as por que o Salvador sozinho, aqui, em toda a história do evan­ gelho, dá a si mesmo o nome de Jesus Cristo ? Alguns vêm nesse nome composto, comum na idade apostólica, uma outra prova de que esse versículo é uma interpolação. Isso, entretanto, não tem qualquer razão, pois o estilo com que Jesus indica a si próprio está exatamente adequa­ do ao objetivo que tem em mente. Ele está implorando ao Pai que o conduza à glória para que possa, mais eficientemente, propagar a ver­ dadeira fé. O que poderia ser mais apropriado, nessa conexão, do que

486

O Treinamento dos Doze

falar objetivamente de si próprio sob o nome pelo qual Ele se tornaria conhecido entre os mestres dessa verdadeira fé? A segunda razão pleiteada por Jesus, em suporte à sua oração, é que a missão que lhe havia sido confiada tinha sido fielmente cumprida, e agora Ele está reclamando a sua recompensa: “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer. E, agora, glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo”4. O Grandioso Servo de Deus está falando aqui não só com referência ao passado mas também, e por antecipação, com referência ao seu sofrimento já suportado em seu propósito; portanto, nessa oração a expressão “tendo consumado” eqüivale, em seu significado, ao “está con­ sumado” que Ele pronuncia na cruz. E o que Ele diz a respeito de si mesmo é verdadeiro: essa declaração, que nenhum outro ser humano po­ deria ter feito sem se abater, não representa um exagero ou uma presumida peça de louvor próprio, mas a declaração humana, humilde e sóbria de uma consciência isenta de ofensas em relação a Deus e aos homens. Nem poderíamos afirmar que essa declaração, embora verdadeira, fosse supér­ flua ou mesmo uma excessiva expressão de si próprio. Era preciso que Jesus a fizesse e, embora o fato em si já fosse do conhecimento de Deus, era desejável proclamá-lo aos ouvidos dos onze e de toda a igreja através de seu registro, sobre as bases em que repousava seu pleito de ser recompensa­ do com glória para o fortalecimento da fé. Pois, uma vez que a nossa fé e esperança em relação a Deus estão baseadas no fato de Jesus Cristo ter feito a declaração acima, elas também são confirmadas pelo seu verdadeiro entendimento, por sua afirmação de que Ele manteve o seu pacto de traba­ lhar, o qual, de alguma forma, representou para nós o selo de uma graça cuja finalidade é a mesma da ordenança da Santa Ceia. Tendo apresentado essa breve petição por si próprio, Jesus prosse­ guiu orando mais longamente pelos seus discípulos, e tudo que se segue está relacionado principalmente a eles, isto é, do versículo 6 ao 20, tudo se refere exclusivamente a eles. A transição é feita através de uma declara­ ção especial onde aplica a idéia geral da sentença precedente àquela parte da obra pessoal de Cristo que consistia no treinamento desses homens: “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste”5. Depois dessa declaração introdutória, segue-se uma breve descrição das pessoas que em seguida iriam receber a sua oração. Jesus dá aos discípulos um

A Oração Intercessória

487

bom caráter. Em primeiro lugar, ao ser escrupulosamente cuidadoso em não exagerar a importância do serviço que prestou ao treiná-los para o apostolado, Ele reconhece que eles eram bons quando os encontrou: “Eram teus e tu mos deste”. Eles eram homens piedosos e devotos, ensi­ nados por Deus, enviados por Deus e concedidos por Deus. Em segui­ da, Ele dá testemunho de que desde o momento em que passaram a estar em sua companhia haviam mantido o mesmo caráter que possuíam an­ tes de se juntar a Ele: “E guardaram tua palavra”. E, finalmente, o Se­ nhor confirma que os homens que seu Pai lhe havia concedido tinham se mostrado verdadeiros crentes em sua pessoa e tinham recebido todas as suas palavras como sendo a própria verdade de Deus e dEle próprio, que havia sido enviado ao mundo por Deus6. Encontramos aqui, com toda certeza, uma generosa graça de Deus aos discípulos que, embora since­ ros e devotados ao seu Mestre, estavam, como já sabemos, extremamente faltosos em conduta e lentos para aprender. Após ter, generosamente, elogiado seus humildes companheiros, Jesus transmite a sua intenção de orar por eles: “Eu rogo por eles”. Mas essa oração ainda não vem a princípio, pois algumas palavras, como pre­ fácio, deveriam ser apresentadas para dar-lhe maior ênfase quando fosse realmente proferida. Em primeiro lugar, porque as pessoas que iriam recebê-la foram escolhidas para ser, naquele momento, os únicos objetos de uma concentrada solicitude. “Eu rogo por eles; não rogo pelo mun­ do”7. A intenção de Jesus ao fazer essa declaração não era, naturalmente, sugerir a exclusão do mundo de sua compaixão. Seu propósito aqui não é a exclusão, mas uma atenção dirigida a uma eventual inclusão. Ele iria pedir ao Pai para dirigir as suas especiais considerações a esse pequeno grupo de homens aos quais o destino do cristianismo estaria intimamente ligado. Ele ora por eles como uma mãe às portas da morte oraria ex­ clusivamente por seus filhos, não por estar indiferente aos interesses de todos aqueles que a cercavam, mas porque sua família nessa solene situação representa para ela o objeto legítimo de uma solicitude absor­ vente e monopolizadora. Ele ora por eles como se fossem o fruto pre­ cioso do trabalho de sua vida, a esperança do futuro, os fundadores da igreja, a Arca de Noé da fé cristã, os missionários da verdade a todo o mundo: somente para eles, mas em benefício do mundo, sendo que a

488

0 Treinamento dos Doze

melhor coisa que Ele pode fazer ao mundo, nesse intervalo, será encomendá-lo aos cuidados do Pai. O que Jesus quer dizer aos homens assim escolhidos não podemos, por nós mesmos, imaginar. Talvez para que seu Pai os guardasse, agora que Ele estava prestes a deixá-los. Porém, antes de fazer o pedido, aparecem duas razões pelas quais seu pedido deveria ser concedido. A primeira está expressa nestes termos: “E todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e nisso sou glorificado”8. Na verdade, seu significado é: “E de tua responsabilidade, de teu interesse, guardar esses homens. Eles são teus, tu me deste estes homens; guarda-os como se fossem teus. Embora te­ nham pertencido a mim desde que se tornaram discípulos, isso não faz qualquer diferença: eles ainda te pertencem, pois entre tu e mim não existe distinção entre o que é meu e o que é teu. Então, sou glorificado através deles; minha causa, meu nome e minha doutrina irão, daqui por diante, ser identificados com eles e, se eles fracassarem, meus interesses naufragarão. Portanto, assim como tu valorizaste a honra de teu Filho, guarda esses homens”. A outra razão por que o pedido a ser anunciado deveria ser concedido é: “Eu já não estou mais no mundo”9. O Mestre, prestes a partir da terra, encomenda aos cuidados de seu Pai aqueles a quem Ele está deixando, sem colocar um líder em seu lugar. E agora, finalmente, vem a oração pelos onze, oferecida com a devi­ da solenidade através de um enfático pronunciamento ao seu Ouvinte: “Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós”10. O epíteto “santo” estaria adequado ao signifi­ cado dessa oração quando ela diz que os discípulos devem ser guardados puros na fé e na prática, isolados de todo erro e pecado que existem, para que possam finalmente representar uma graça para o mundo cor­ rupto do qual seu Senhor está prestes a sair. A oração compreende, em si mesma, duas peculiaridades. A primeira é que os discípulos possam ser guardados no nome do Pai que Jesus lhes manifestou, isto é, que possam continuar a acreditar naquilo que Ele lhes ensinou a respeito de Deus, e assim tornar-se o seu instrumento para a propagação do conhecimento do verdadeiro Deus e da verdadeira fé por toda a terra. A segunda é que possam estar em unidade, isto é, que possam ser guardados dentro de um amor mútuo, assim como na fé ao nome divino, separados do mun-

A Oração Intercessória

489

do, mas não divididos entre si11, Essas duas virtudes, verdade e amor, são as que Jesus está pedindo para si próprio, como sendo vitais naquele momento: a verdade como uma insígnia de distinção entre a sua igreja e o mundo, e o amor como o vínculo que une os crentes em uma santa comunidade de testemunhas da verdade. A igreja deve guardar essas duas qualidades para sempre como sendo de igual importância, sem sacrificar o amor à verdade, dividindo aqueles que deveriam ser apenas um ao insistir em um testemunho demasiado detalhado ou insignificante, nem sacrificar a verdade ao amor, isto é, fazendo da igreja uma sociedade demasiadamente ampla e extensa, porém, uma sociedade sem vocação, ou sem uma “razão de ser”, sem nenhuma verdade para guardar e ensi­ nar, ou nenhum testemunho para ostentar. Tendo encomendado os seus discípulos aos cuidados do Pai, Jesus em seguida faz um relato de sua própria gestão como Mestre e afirma que os manteve fielmente na verdade divina12. O Senhor declara ter cumprido o seu dever em relação a todos eles, sem mesmo excluir Judas, que fracassou, isentando-se ao mesmo tempo de toda culpa. A referência ao falso discípulo mostra o quanto o Senhor era escrupuloso ao fazer o seu relato. Nestas circunstâncias Ele se sente em uma situação de defesa com referência ao apóstata e provavelmente imagina que alguém poderia lhe fazer a seguinte pergunta: “O que você tem a dizer a respeito desse homem?” E Ele de fato responderia: “Fiz todo o possível para evitar que praticasse o mal, mas ele o escolheu. O filho da perdição não se perdeu por minha culpa”13. Sabemos muito bem que Jesus teria todo o direito de fazer essa afirmação. Na parte seguinte da oração14Jesus define o sentido no qual pede que seus discípulos sejam guardados e, ao fazê-lo, oferece novas razões que justificam porque seu pedido deveria ser aceito. Ele os encomenda aos cuidados de seu Pai como depositários da verdade, e por esse motivo são dignos de serem protegidos e precisam desses cuidados por causa da aver­ são que o mundo tem à verdade15. O Senhor explica que, quando diz guardar, Ele não quer dizer uma transposição para fora desse mundo, mas sua preservação contra todos os males de natureza moral, pois sua presen­ ça no mundo era tão necessária quanto o sal e sua pureza não menos necessária, pois o sal não pode existir sem sabor e virtude. Ele dirigiu essa explicação não apenas aos ouvidos de seu Pai, mas também aos ouvidos de

490

O Treinamento dos Doze

seus discípulos. Ele desejava que compreendessem as duas coisas que deve­ riam ser igualmente evitadas; a conformidade com o mundo e o cansaço do mundo. Eles deveriam permanecer na verdade, e permanecer no mun­ do pelo bem da verdade; atentos, se isso lhes servisse de consolo, para entender, quando sentissem o máximo ódio do mundo, que estavam fa­ zendo o bem e que o peso de sua cruz era a medida de sua influência. Essa proteção pleiteada por Jesus para os seus nada mais era do que a continuação e o aperfeiçoamento de uma condição moral já existente. Agora, pela primeira vez, Ele não precisava pedir ao Pai que separasse seus discípulos do mundo, em espírito e caráter, pois separados eles já estavam desde quando, inicialmente, se juntaram à sua companhia, mas pedia que assim continuassem. E para fazer-lhes justiça, seu Mestre teve o cuidado de declarar duas vezes nessa parte de sua oração. Eles, o Se­ nhor testemunha, “não são do mundo, assim como eu não sou do mun­ do”16; assim os coloca no mesmo nível que Ele com sua característica generosidade e com toda a verdade, pois as pessoas assim descritas, em­ bora sob muitos aspectos cheias de defeitos, eram extremamente abnega­ das e nem um pouco preocupadas com a trindade do mundo —riquezas, honras e prazeres —mas somente com as palavras da vida eterna. No entanto, apesar de sua sinceridade, os onze ainda precisavam não só da guarda divina, mas também de aperfeiçoamento; por esta razão, seu Mestre continuou a orar por sua santificação, tendo em vista, na verdade, não apenas sua perseverança, crescimento e maturidade na gra­ ça como soldados cristãos, mas especialmente que fossem equipados para a função do apostolado. Em seguida, Ele continua nas palavras seguintes a fazer menção à sua vocação apostólica, mostrando que ela é primordial aos seus olhos: “Assim como tu me enviaste ao mundo, tam­ bém eu os enviei ao mundo”17. Seu grande desejo é que eles possam estar aparelhados para a sua missão. Portanto, Ele prossegue falando sobre a sua própria santificação como o meio para alcançar o fim da santificação apostólica dos discípulos, como se o seu ministério estivesse meramente subordinado ao deles. “E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade”18. Palavras notáveis, cujo significado é obscuro e tem sido muito discutido, mas nas quais pode­ mos, pelo menos com segurança, descobrir uma singular exibição de

A Oração Intercessória

491

condescendência e amor. Aqui Jesus fala como um Pai que vive por amor e pelo bem de seus filhos, dedica especial atenção ao treinamento moral em todos os seus hábitos pessoais, recusa todos os prazeres em seu bene­ fício, faz desse treinamento o seu principal objetivo e cuida para formar seu caráter, aperfeiçoar sua educação e prepará-los para os deveres da posição que estão destinados a ocupar. O restante dessa oração (com exceção das duas sentenças finais)19, de um modo geral, diz respeito à igreja —àqueles que deverão crer em Cristo através da palavra dos apóstolos, ouvida de seus lábios ou relata­ da em seus escritos. O que Jesus deseja para o corpo de crentes encontrase parcialmente pressuposto, pois quando Ele diz: “Eu não rogo somente por estes”, está sugerindo que deseja àqueles que em seguida receberão suas orações as mesmas coisas que já pediu para os seus discípulos: preservá-los na verdade e contra todo o mal desse mundo, além da san­ tificação pela verdade. A única bênção que Ele expressamente pede para a Igreja é a “unidade”. O anseio de seu coração, para aqueles que acreditarem nEle, é que “todos sejam um”. Seu ideal da unidade da igreja é bastante elevado, seu exemplo divino é a unidade existente entre as pessoas da Divindade, especialmente exemplificadas entre o Pai e o Filho, e seu fundamento é a mesma unidade divina: “como tu, ó Pai, o és em mim, e eu, em ti; que também eles sejam um em nós”, unidos íntima e harmoniosamente pelo nome comum pelo qual foram batizados e pelo qual eles são chamados20. Essa unidade é desejada por Jesus não só por sua própria impor­ tância, mas por causa do poder moral que irá conferir à igreja como uma instituição propagadora da fé cristã: “Para que o mundo creia que tu me enviaste”21. E claro que esse objetivo não poderia ser promovido a não ser que a unidade dos crentes se tornasse, de alguma maneira, de conhe­ cimento público. Uma unidade que não seja visível não pode exercer qualquer efeito sobre o mundo, e seria como uma vela acesa que sob uma arca não transmite luz, mais no final até mesmo deixa de ser luz e se extingue. Não pode haver dúvida, portanto, de que o nosso Senhor ti­ nha em vista uma unidade que fosse patente, e a única questão era como isso poderia ser alcançado. O primeiro e mais óbvio caminho seria atra­ vés da união em uma única organização da igreja, com intermediários

492

0 Treinamento dos Doze

nomeados para representar todo o corpo e expressar a unidade de seu pensamento, como por exemplo os conselhos ecumênicos dos primeiros séculos. Essa mais completa manifestação de unidade pode ser encon­ trada na Igreja Primitiva. Em nossos dias não é possível fazer, em grande escala, a incorporação dessa união22 e devemos lançar mão de outros métodos para expressar o sentimento de universalidade. Um dos métodos que poderia ser experi­ mentado seria aquele de uma confederação onde organizações de igrejas independentes que se reuniriam seguindo o exemplo dos Estados Unidos da América, ou das repúblicas gregas que fundaram um centro de unidade em assembléias legislativas e jurídicas chamados Conselhos Anjitiônicos. No entanto, qualquer que seja o nosso conceito, uma coisa é certa, a unidade dos crentes em Cristo deve ser feita de maneira patente e como um acon­ tecimento de alguma forma inegável se a igreja desejar cumprir a sua voca­ ção como nação santa, requisitada das trevas para demonstrar as virtudes daquEle cujo nome ela ostenta, e para conquistar para Ele a fé e as home­ nagens do mundo. E verdade que a unidade da igreja realmente encontra verdadeira expressão em seu credo, e com isso não estamos nos referindo ao credo seccional dessa ou daquela denominação, mas àquele credo den­ tre todos os credos, aquele que expressa a ortodoxia universal do cristianis­ mo e compreende seus fundamentos, mas somente os fundamentos da fé cristã. Existe uma igreja, dentre todas as igrejas, para a qual esse credo representa alguma coisa valiosa, tudo o mais sendo, na opinião de seus membros, apenas um invólucro que contém a preciosa semente. Mas a existência dessa igreja é um fato reconhecido apenas pela fé e não pela aparência, e sua influência quase não é percebida pelo mundo. Porém, por mais agradecidos que possamos estar por sua presença em meio às organi­ zações eclesiásticas dessa santa comunidade, não podemos aceitar apenas este conjunto organizado como o cumprimento daquele ideal que o Salva­ dor tinha em mente quando pronunciou as palavras: “Para que sejam um”. Nas duas sentenças seguintes23, Jesus amorosamente se demora nes­ ta oração, repetindo, expandindo, reforçando seu pedido em linguagem profunda demais para a nossa linha de análise, mas que transmite de forma clara a verdade de que sem unidade a igreja não poderá glorificálo e louvá-lo como um Ser divino, nem ter a glória da presença dEle

A Oração Intercessória

493

permanecendo em seu meio. E essa é uma verdade que, segundo o nosso entendimento, irá mostrar-se à altura da razão. As controvérsias não têm nada de divino, e não é necessária nenhuma participação ou influência de Deus para se instalarem. Qualquer pessoa pode contender; e o mun­ do, sabendo disso, terá pouquíssimo respeito por uma igreja envolvida em contendas. Mas o mundo, admirado, arregala os olhos perante uma comunidade na qual prevalecem a paz e a concórdia e diz: “Aqui está algo fora do comum, onde o egoísmo e a obstinação das pessoas foram extirpados da natureza humana. Nada, a não ser a influência divina, poderia subjugar dessa forma as forças centrífugas que tendem a separar os homens uns dos outros”. O amantíssimo nome do Pai, com que começa a próxima sentença, assinala o início do parágrafo final da oração do grande Sumo Sacerdo­ te24. Nesse ponto, Jesus lança seu olhar adiante, em direção ao final de todas as coisas e ora pela consumação final do propósito de Deus em relação à igreja: que a igreja militante possa se tornar a igreja triunfante, que o corpo dos santos, imperfeitamente santificado na terra, possa se tornar perfeitamente santificado e glorificado no céu, ao seu lado, no lugar onde Ele estará, observando a sua glória e transformado em sua imagem pelo Espírito de Deus. Em seguida vem a conclusão onde Jesus retorna do futuro distante até o presente e reúne em seus pensamentos não só a igreja como um todo mas também o grupo que havia se reunido naquele cenáculo, isto é, Ele próprio e seus discípulos25. Na oração do Senhor, essas duas senten­ ças terminais têm a mesma finalidade da frase “em nome de Jesus Cris­ to” que mencionamos as nossas orações. Elas contêm dois apelos —pela assistência aos participantes pelos quais a oração é feita, e pela justiça do Ser a quem ela é dirigida —sendo que esse último vem antes, personifica­ do no título “Pai justo”. Os serviços, méritos e apelos de Jesus e seus discípulos são mencionados especificamente como itens aos quais o Pai, em sua justiça, não deixará de dar o devido valor. Também é mencionada a ignorância do mundo a respeito de Deus para intensificar o valor do reconhecimento que Ele recebeu de seu Filho, assim como dos compa­ nheiros de seu Filho. Essa ignorância explica porque Jesus considerou necessário dizer: “Mas eu te conheci”. Nem mesmo o seu reconhecimen­

494

0 Treinamento dos Doze

to era algo natural naquele mundo, e o esforço com que o homem Jesus preservou Deus em seu entendimento foi igual ao esforço que precisou despender para manter-se imaculado em meio à corrupção do mundo. Como humano era difícil para Ele conhecer e confessar Deus como sendo seu Pai em um mundo que, usando mais de mil maneiras, pratica­ mente negava essa paternidade. Também era difícil viver uma vida de amor em meio às múltiplas tentações de demonstrar egoísmo, cuidando apenas de si mesmo. N a verdade, os dois problemas eram apenas um. Ser luz em meio às trevas, amar em meio ao egoísmo e ser santo em meio à depravação, na verdade tudo isso quer dizer a mesma coisa. Enquanto fazia um apelo por seus méritos, Jesus não se esquecia dos apelos de seus discípulos. A respeito deles, Ele diz com efeito: E estes te conheceram através de mim, como Eu te conheci de uma forma direta26. Não satisfeito com essa afirmação, Ele discorre de forma por­ menorizada sobre a importância desses homens como objetos do cuida­ do divino, e mostra claramente que eles são dignos de serem guardados como aqueles que possuem o conhecimento do nome de Deus, e estão antecipadamente destinados a conhecê-lo ainda mais perfeitamente, de modo a se tornarem capazes de fazê-lo conhecido, perante os outros, como aquEle que é digno de toda a honra e glória. E Deus será capaz de amá-los da mesma forma que amou ao seu próprio Filho quando Ele esteve no mundo servindo fielmente a seu Pai celestial. “E eu lhes fiz conhecer o teu nome e lho farei conhecer mais, para que o amor com que me tens amado esteja neles, e eu neles esteja”27. Palavras maravilho­ sas que foram proferidas a favor de simples vasos terrenos!

APÊNDICE DOS CAPÍTULOS 24 — 26 Anexamos aqui uma análise do discurso de despedida e da oraçào que o acompanhou.

PARTE I - João 13.31-14.31 Div. I —Palavras de conforto aos discípulos como se fossem crianças, dez (ou no máximo treze) sentenças ao todo: I. Primeira palavra, 13.34,35: Que vos ameis uns aos outros na minha ausência.

A Oração Intercessória

495

2. Segunda palavra, 14.1-4: Credes em Deus e crede também em mim. Vou cuidar dos vossos interesses enquanto fisicamente ausente, e mais tarde voltarei para vós. 3. Terceira palavra, 14.15-18: Mesmo tendo partido fisicamente, estarei convosco através do Espírito Santo (19-21, ampliados).

Div. II - P erguntas in fan tis e su as resp o stas: 1. A pergunta de Pedro, 13.36-38: “Senhor, para onde vais?” 2. A pergunta de Tomé, 14.5-7. “Como podemos saber o caminho?” 3. O pedido de Felipe, 14.8-14. “Mostra-nos o Pai.” 4. A pergunta de Judas, 14.22-24 “De onde vem que te hás de manifestar a nós e não ao mundo?”

PARTE II - João 15,16: A in cum b ência p a ra os futuros apóstolos após a p a rtid a do Senhor (estilo m odificado)

1. Alegoria da Vinha, I5 .I-I6 : Os meios de os apóstolos de Cristo trabalharem no mundo. Eles trabalham através da vida do Senhor que permanece neles. 2 .Tribulações apostólicas e encorajamentos, 15.18-27; I6 .I-I 5 : O mundo irá odiá-los, mas o Espírito irá convencer o mundo e iluminá-lo. 3. Um breve intervalo e o final do discurso, 16.16-33: O paradoxo de ver e não enxergar = ausência física, mas presença espiritual. O adeus.

PARTE III - João 17. Oração in tercessó ria 1. 2. 3. 4.

Oração por si mesmo, versículos 1-5 Oração pelos discípulos, versículos 6-19 Oração pela igreja, versículos 20-23 Conclusão da oração, versículos 24-26

496

O Treinamento dos Doze

I Reuss ( Theologie Chrétienne, 2.455) afirma que o Evangelho de João não conhece uma situação de humilhação e como prova disso faz alusão ao fato de que nesse Evangelho a morte de Cristo é representada como uma glorifica­ ção. Sobre esse ponto de vista, veja The Humiliation of Christ, p. 34, 2a ed; e sobre a importância teológica do versículo 5, veja a mesma obra, p. 359. “ João 17.2. A versão revisada traz a expressão: “Tu deste”. Nesse capítulo, os revisores conduziram de forma extremamente rígida suas opiniões sobre a versão do aoristo. Não há dúvida de que alguns dos aoriscos estão, na verdade, no modo perfeito. Podemos citar aqui as seguintes sentenças da obra de Buttman, Grammar o f The New Testament Greek: “Tem sido negado por muitos gramáticos que o aoristo quer dizer modo perfeito quando se referem ao uso do grego comum, e também por W iner com referência ao Novo Testamento, porém com muito pouca qualificação. Como em muitos outros exemplos, essa questão depende simplesmente de ligar a idéia correta à sua terminologia gramatical; isto é, desde que a relação de tempo expressa pelo modo perfeito esteja, de qualquer forma, de acordo com aquela do aoristo e do modo presente, nos casos em que o aoristo é usado no sentido do modo perfeito, devemos adotar essa opinião sobre o assunto —que o aoristo não tinha a intenção de expressar as duas relações do perfeito ao mesmo tempo, mas que o autor naquele momento afasta-se do presente e coloca-se no passado, conseqüentemente na çosição de um narrador, Essa é., ^ vcvaAs. tva&iraV yari. o "àto de fazer uma redação, e dela resulta não uma aversão positiva ao perfeito, mas uma maior preferência pelo aoristo. Portanto, a continuidade da ação, assim como seu efeito sobre o tempo presente, na verdade resid e não no tempo, mas na ligação; e a necessária inserção dessa relação, em todos os casos, é deixada por conta do leitor” —Páginas 197-8; Edição Americana. 3 Sobre esse assunto, veja Martensen, Die Cbristlicbe Dogmatik, § 215 (traduzido na Foreign Theological Library). 4 João 17.4 5 Versículo 6 6 Versículos 7, 8, cf. Lucas 22.28, 29 7 Versículo 9 8 Versículo 10 9 Versículo 1 1 10 Versículo II II Versículo II 12 Versículo 12 13 Versículo 12 14 Versículos 14-20 15 Versículo 14 16 João 17.14, 16 17 Versículo 18 18 Versículo 19 19 Versículos 20-24 20 Versículo 21 21 Versículos 21, 23 22 Essa observação tem o propósito de ser aplicada a toda a igreja visível, dividida não somente pela diversidade de opiniões sobre doutrinas de importância fundamental, mas também por formas incompatíveis de governar a igreja. A incorporação, local ou parcial, de uma união de corpos, realmente aliados em doutrina e governo, não é apenas praticável, mas obrigatória. 23 João 17.22, 23 24 Versículo 24 25 Versículos 25, 26 26 João 17.25 27 Versículo 26

27 As Ovelhas Dispersas Seçao I - “Todos os Discípulos, Deixando-o, Fugiram” Mateus 2 6 .3 6 -4 1, 55, 56, 6 9-7 5; João 1 8 .1 5 -1 8

D

o cenáculo, onde nos demoramos por tanto tempo, passamos para o mundo exterior, a fim de testemunhar o comportamento dos onze discípulos na grande crise final. As passagens citadas acima descrevem o papel que eles desempenharam nas cenas solenes relacionadas com a morte de seu Mestre. E esse papel, lamentavelmente, nada teve de herói­ co. Fé, amor, princípios, tudo isso foi traído perante os instintos do medo, vergonha e autopreservação. Os melhores discípulos, aqueles três que, por serem os mais confiáveis, foram escolhidos por Jesus para fazerlhe companhia no jardim do Getsêmani, mostraram-se totalmente inca­ pazes de prestar o serviço que deles se esperava. Enquanto o Mestre estava atravessando o seu momento de agonia, eles adormeceram, exata­ mente como haviam feito anteriormente no monte da transfiguração. Até os homens que haviam sido selecionados revelaram-se recrutas despreparados e incapazes de se livrar da sonolência e cumprir o seu dever como sentinelas. “Então, nem uma hora pudeste vigiar comigo?” E quando o inimigo apareceu não só esses três, mas também os oito discípulos restantes, fugiram tomados de pânico. “Todos os discípulos, deixando-o, fugiram”. E, ao final, um dentre eles, que se considerava o mais corajoso de seus irmãos, não só fugiu como também negou seu amado Mestre declarando, sob juramento: “Não conheço tal homem”. A conduta tão frágil e tão covarde dos discípulos durante essa crise de sua história, leva-nos, naturalmente, a fazer duas perguntas: Como deveriam ter agido? E por que agiram dessa forma — quais foram as causas de seu fracasso?

498

0 Treinamento dos Doze

Agora, ao considerar em primeiro lugar a última dessas perguntas, e tentar por nós mesmos elaborar uma idéia distinta a respeito do conjun­ to de ações que seriam exigidas como prova de fidelidade, não se conse­ gue perceber imediatamente a razão por que os discípulos, com exceção de Pedro, cometeram esse erro. O que poderiam ter feito quando seu Senhor foi detido, a não ser fugir? Oferecer resistência? Mas isso Jesus havia expressamente proibido poucos momentos antes: “E, vendo os que estavam com ele o que ia suceder, disseram-lhe: Senhor, feriremos à espada?”1 Sem esperar resposta, um deles golpeou o servo do sumo sa­ cerdote e extirpou-lhe a orelha. Esse discípulo brigão, segundo João nos informa, era Simão Pedro. Ele havia trazido uma espada, uma das duas que o grupo possuía, desde o cenáculo até o Getsêmani, pensando que ela poderia ser necessária, e estava completamente disposto a usá-la se chegasse a ocasião. Embora não fosse tão valente, como mais tarde se revelou perante os servos e os empregados, não foi assim que agiu no jardim, pois usou sua arma de forma corajosa, embora com pouca des­ treza, e praticou uma execução que, felizmente, não foi mortal. Jesus imediatamente interferiu para evitar mais derramamento de sangue, pro­ ferindo palavras que foram registradas de várias maneiras mas que, em suas diferentes versões, estavam inculcando uma política de não-resistência. “M ete no seu lugar a tua espada”, Ele disse a Pedro, completan­ do a ordem com a seguinte explicação, “porque todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão”. Isso era o mesmo que-dizer: “A nossa guerra é outra!” Em seguida, Ele continuou a dar a entender que havia outras razões superiores para não oferecer resistência, e que não se tratava de simples considerações de prudência ou conveniência: “Ou pensas tu que eu não poderia, agora, orar a meu Pai e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escri­ turas, que dizem que assim convém que aconteça?”2 Ele poderia enfren­ tar as forças humanas com forças divinas, superiores e celestiais, se assim quisesse; mas não quis, pois vencer os seus inimigos seria o mesmo que derrotar o propósito pelo qual veio ao mundo, que era conquistar, não pela força física, mas pela verdade, pelo amor e pela resignação divina e pelo beber do cálice que seu Pai havia colocado em suas mãos, por mais amargo que fosse para a carne e para o sangue3.

As Ovelhas Dispersas

499

Totalmente em harmonia com esses pronunciamentos no Getsêmani estão as declarações feitas por Jesus sobre o mesmo assunto, antes de deixar o cenáculo, como registra Lucas4. N a verdade, as declarações fei­ tas em sua carta parecem expressar exatamente o oposto de uma atitude de não-resistência. Parece que Jesus está dizendo que o grande dever e obrigação daquele momento, para todos aqueles que estavam ao seu lado, era armar-se com uma espada, e que isso era tão urgente que aquele que dela precisasse deveria vender suas vestes para comprá-la. Mas a própria ênfase com que fala mostra que suas palavras não devem ser entendidas em seu prosaico sentido literal. E é muito fácil entender o que Ele quer dizer. Usando uma linguagem descritiva, seu objetivo era transmitir aos discípulos uma idéia da gravidade da situação. “Agora”, Ele diria, “che­ gou o dia, sim, a hora da batalha: se o meu reino fosse desse mundo, como vocês imaginaram, agora teria chegado a hora de lutar e não de sonhar: agora, de fato, a situação chegou ao extremo e vocês precisam de todos os seus recursos. Portanto, equipem-se com sapatos, bolsas e alforjes e, sobretudo, com espadas e coragem de guerreiros”. Os discípulos não entenderam o significado das palavras de seu Senhor e deram a essa parte uma interpretação vulgar e desprovida de sentido, assim como a muitas outras partes de seu discurso de despedi­ da. Portanto, com uma seriedade ridícula, disseram: “Senhor, eis aqui duas espadas”. Essa absurda resposta provocou uma observação que, cer­ tamente, deve ter aberto seus olhos e fez com que Pedro levasse o assun­ to adiante a ponto de carregar consigo uma das espadas. “Basta!”, disse Jesus, provavelmente com um sorriso melancólico em seu rosto, ao pen­ sar na ignorante simplicidade daqueles homens tão queridos e infantis: “Basta!” Duas espadas; bem, elas seriam suficientes apenas para alguém que não tivesse a menor intenção de lutar. O que representava duas espa­ das para doze homens contra uma centena de armas de ataque? Naque­ las circunstâncias, a própria idéia de lutar era absurda e bastava apenas ser amplamente difundida para se revelar um completo despropósito. Os discípulos, então, não foram convocados a lutar pelo seu Mestre e evitar que fosse entregue aos judeus. No entanto, o que mais então poderiam ter feito? Não era seu dever sofrer com Ele e, colocando em prática as confissões de Pedro, acompanhá-lo na prisão e na morte? Mas

500

O Treinamento dos Doze

isso também ninguém havia exigido que fizessem. Quando Jesus se en­ tregou nas mãos daqueles que o vieram capturar, pediu que, embora o estivessem levando em custódia, deixassem seus acompanhantes segui­ rem o seu caminho5. Ele não fez isso meramente por compaixão, mas como o Capitão da salvação, e no seu melhor interesse e no interesse de seu Reino, pois era muito necessário a esses interesses que os discípulos vivessem e que Ele próprio morresse e ressuscitasse. Ele se entregou à morte para que houvesse um evangelho a ser pregado e desejou a salva­ ção de seus discípulos para que houvesse homens para pregá-lo. De ma­ neira evidente, portanto, não era dever dos discípulos exporem suas vi­ das ao perigo e poderíamos dizer, ao contrário, que seu dever estava no sentido de cuidar de sua vida para uma utilidade futura. Onde, então, poderia estar o erro cometido pelos onze discípulos ao deixar de lutar ou sofrer pelo seu Senhor? Estava na sua falta de fé. “Credes em Deus, crede também em mim”, Jesus lhes havia dito no início de seu discurso de despedida e, no momento crítico, eles não fizeram nem uma coisa nem outra. Não acreditaram que no final tudo terminaria bem, para eles e seu Mestre, e especialmente que Deus iria providenciar a sua segu­ rança sem qualquer sacrifício de qualquer princípio, ou mesmo da digni­ dade, de sua parte. Eles tinham confiança apenas na rapidez de suas per­ nas. Se tivessem tido fé em Deus e em Jesus teriam, sem temor, testemu­ nhado na ocasião da prisão de seu Senhor, confiantes não só em seu futuro regresso como em sua própria segurança. Conforme a inclinação de seus sentimentos, teriam acompanhado os oficiais da justiça para ver o que iria acontecer ou, avessos a quaisquer cenas emocionantes e dolorosas, teriam se retirado silenciosamente para suas moradias até que a tragédia tivesse terminado. Porém, na ausência da fé, eles nem acompanharam seu Mestre calmamente, nem se retiraram calmamente, mas descrente e vergonhosa­ mente abandonaram-no efugiram. O pecado reside não tanto no ato exte­ rior, mas no estado interior da mente e do coração, do qual ele era o reflexo. Eles fugiram por descrença e desânimo, como homens cuja espe­ rança havia sido perdida, e por um homem cuja causa estava perdida e a quem Deus havia abandonado aos seus inimigos. Tendo estabelecido onde os discípulos erraram, podemos agora in­ dagar as causas de sua má conduta e aqui, logo de início, vem à nossa

As Ovelhas Dispersas

501

mente que Jesus havia antecipado o colapso de seus seguidores. Ele não contava com sua fidelidade e esperava pela deserção como fato lógico e natural. Quando Pedro se ofereceu para segui-lo, em qualquer lugar que fosse, Ele disse que antes de o galo cantar na manhã seguinte, Pedro o teria negado por três vezes e, ao encerrar o discurso de despedida, disse a todos os discípulos que eles o deixariam sozinho. No caminho do monte das Oliveiras Ele repetiu essa afirmação nos seguintes termos: “Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim, porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão”6. E, em todas essas ocasiões, o tom que Ele usou em suas palavras era mais profético do que reprovador. Ele esperava que os seus discípulos fossem domina­ dos pelo pânico, do mesmo modo que alguém pode esperar que as ove­ lhas fujam na presença do lobo, ou que as mulheres desmaiem ao presen­ ciar uma carnificina. A partir dessa indulgência podemos inferir que, na opinião de Jesus, o pecado dos discípulos havia sido um pecado de fra­ queza, e essa opinião foi a que Ele assumiu daí por diante, pois conhece­ mos as palavras que dirigiu ao três sonolentos irmãos no Getsêmani. “Vigiai e orai”, disse-lhes, “para que não entreis em tentação; na verda­ de, o espírito está pronto, mas a carne é fraca”7. Embora pronunciada com especial referência à fraqueza demonstrada por Pedro, Tiago e João no jardim, essa espécie de juízo, da forma como foi expresso, aplica-se à conduta de todos os discípulos (inclusive à negação de Pedro) em meio a toda aquela terrível crise. Jesus considerava os onze discípulos como homens cuja ligação com sua pessoa estava acima de qualquer suspeita, mas que eram sujeitos a errar, pela fraqueza de sua carne, ao ficarem expostos a uma repentina tentação. Mas o que devemos entender por fraqueza da carne? Um mero amor instintivo pela vida, o pavor do perigo, o medo dos homens? Não, esses instintos continuaram com os apóstolos ao longo de sua vida, sem levá-los, exceto uma única vez, a repetir seu presente erro de conduta. Não só a carne dos discípulos era fraca, mas também a disposição de seu espírito. Seu caráter espiritual, nesse momento, era deficiente em certos elementos que promovem firmeza aos bons impulsos do coração e do­ mínio sobre as enfermidades cuja natureza se mostra sensível. Os ele­ mentos que faltavam a esse poder eram a premeditação, uma clara percepção da

502

O Treinamento dos Doze

verdade; o conhecimento de si próprio e a disciplina da experiência. Por falta de premeditação, aconteceu que a prisão de seu Senhor tomou-os de surpresa. Isso pode parecer quase inacreditável depois das freqüentes insinuações que seu Mestre havia feito sobre a proximidade de sua morte; depois da instituição da Santa Ceia, o discurso de despedida, a referência ao trai­ dor, o aviso profético a respeito de sua própria fragilidade e o discurso sobre a espada pareciam mais o toque de um clarim chamando para a batalha. M as não resta dúvida de que esse era o caso. Os onze discípulos saíram do Getsêmani sem uma idéia definida sobre o que estava por acontecer. N a verdade, esses inexperientes recrutas não sabiam que esta­ vam marchando para o campo de batalha e o sono dos três discípulos no jardim é prova suficiente disso. Se as três sentinelas estivessem profunda­ mente impressionadas pela crença de que o inimigo estava próximo, elas não teriam caído no sono por mais tristes e cansadas que estivessem. O medo teria feito com que se conservassem em estado de alerta. “Se o pai de família soubesse a que vigília da noite havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua casa”. N a crise final, o colapso dos discípulos era, em parte, devido tam­ bém à falta de uma clara percepção da verdade. Eles não entendiam a doutrina a respeito de Cristo. E embora acreditassem que seu Mestre fosse o Cristo, o Filho de Deus, sua fé estava envolvida por uma falsa teoria sobre a missão e a carreira do Messias, e nessa teoria não havia lugar para a cruz. Enquanto a cruz permanecia apenas como assunto de conversa, sua teoria permanecia arraigada com firmeza em sua mente, e as palavras de seu Mestre eram rapidamente esquecidas. Mas quando a cruz finalmente apareceu, quando as coisas que Jesus havia previsto co­ meçaram a se cumprir, então sua teoria desabou como uma árvore que foi destroçada de repente por um vendaval, carregando consigo a videira da sua fé. Desde o momento em que Jesus foi preso, tudo o que restou de fé na mente dos discípulos foi simplesmente a tristeza de terem se enganado: “Nós esperávamos que fosse ele o que remisse Israel”. Como pode alguém agir heroicamente em tais circunstâncias? Um terceiro defeito radical no caráter dos discípulos era a ignorân­ cia em relação a si mesmos. Aquele que conhece as suas próprias fraque­ zas pode se tornar forte, mesmo nos pontos mais fracos; mas quem não

As Ovelhas Dispersas

503

as conhece não poderá ser forte em ponto algum. Nesse momento, os seguidores de Jesus não conheciam as suas próprias fraquezas. Acredita­ vam que possuíam uma dose de fidelidade e de bravura que só existia em sua imaginação, e todos adotavam como seu o mesmo sentimento de Pedro: “Ainda que me seja necessário morrer contigo, não te negarei”8. M eu Deus! Eles não sabiam quanto medo humano havia dentro de si mesmos, e que desprezível covardia demonstrariam na presença do peri­ go. E é claro que, quando o perigo realmente apareceu, seguiu-se a costu­ meira conclusão de uma inconsciente bravura e todos esses corajosos discípulos abandonaram o seu Mestre e fugiram. A última, e não menos importante, causa da fraqueza dos discípu­ los foi sua inexperiência perante as cenas que estavam agora prestes a presenciar. A experiência adquirida na guerra é a grande promotora da indiferença e da coragem dos soldados veteranos em meio ao perigo, e o conhecimento prático dos perigos da vida militar faz com que se tornem empedernidos e destemidos. Mas os discípulos de Cristo ainda não eram veteranos e tinham acabado de assumir o seu primeiro compromisso. Até então, tinham experimentado apenas as provações próprias dos re­ crutas mais inexperientes. Tinham sido convocados a abandonar suas casas, amigos, barcos de pesca e tudo mais que era terreno, para seguirem Jesus. M as esses sofrimentos iniciais não são suficientes para transfor­ mar alguém em soldado, nem o uso do uniforme, nem mesmo a discipli­ na imposta por um sargento-instrutor. Imagine um soldado imaturo, com seu brilhante uniforme, colocado frente a frente com a horrível realidade de uma batalha. Seus joelhos chocam-se um contra o outro, seu coração fica aflito, às vezes chega até a desmaiar e é levado para a retaguarda, incapaz de participar da luta. Pobre rapaz, ele é digno de pena, não caçoe dele. Até mesmo Frederico, o Grande, fugiu de sua pri­ meira batalha. Provavelmente o mais corajoso dos soldados não se sente muito heróico na primeira vez que enfrenta o fogo inimigo. Essas observações nos ajudam a entender como aquele pequeno re­ banho se dispersou quando Jesus, o seu Pastor, foi atingido. A explica­ ção, em essência, não deixa de ser uma prova de que os discípulos eram como ovelhas ainda despreparadas para ser pastores de homens. Assim sendo, não devemos nos admirar com a indulgência de Jesus, à qual já

504

O Treinamento dos Doze

nos referimos anteriormente. Quando o lobo aparece, ninguém espera que as ovelhas façam mais do que fugir. Somente aos pastores pode-se severamente repreender por sentirem algum medo covarde. Tendo isso em mente, iremos mais prontamente perdoar a Pedro, por ter negado a seu Senhor em um momento de surpresa, do que por sua covardia em Antioquia, alguns anos depois, quando desprezou seus irmãos gentios por medo dos judeus sectários de Jerusalém. Pedro, então, já era um pastor e tinha como dever liderar as ovelhas, ou mesmo conduzi-las até mesmo contra a sua inclinação, para os grandes e verdes pastos da liber­ dade cristã, em vez de, humildemente, seguir aqueles que por sua meticulosidade mostravam-se apenas como carneiros no rebanho de Cristo. Seu comportamento, nessa ocasião, foi bastante censurável e muito pre­ judicial. Pois se não estava realmente liderando, já havia liderado antes e, como apóstolo, ele gozava da reputação e da influência de um pastorchefe. Portanto, não tinha outra opção a não ser liderar ou deixar que o enganassem, e assim procedeu, a ponto de envolver Barnabé em sua dis­ simulação. E muito sério para a igreja quando aqueles que são pastores na função e na influência tornam-se ovelhas na opinião e no coração; são líderes apenas no nome; na realidade são liderados.

Seção II - Peneirados como o Trigo Lucas 22.31, 32

Esse fragmento de conversa que ocorreu no cenáculo é importante porque nos mostra a perspectiva adotada por Jesus em relação à crise que seus discípulos estavam prestes a atravessar. Sob a forma de uma mensa­ gem dirigida a Pedro, ela era realmente uma palavra muito oportuna e também dizia respeito a todos os demais. Isso se torna evidente pelo uso do pronome plural ao dirigir-se diretamente ao discípulo com quem falava. “Satanás”, disse Jesus, “vos pediu (não a ti, mas a vós)”. Entende­ mos que o Senhor estava dizendo: A ti Simão, e também a todos os teus irmãos ao teu lado. O mesmo aparece na injunção imposta a Pedro para transformar seu erro em um benefício aos seus irmãos. Os irmãos, natu­ ralmente, não eram apenas os demais discípulos que estavam ali presen­ tes, mas todos os que também, no futuro, creriam no Senhor. Entretanto, os apóstolos não devem ser excluídos da fraternidade que se beneficiaria

As Ovelhas Dispersas

505

da experiência de Pedro; ao contrário, eles eram provavelmente os prin­ cipais participantes e os seus primeiros destinatários. Observando, então, esse pronunciamento como uma expressão do juízo de Jesus sobre o caráter da crise que se aproximava, encontramos, na história dos futuros apóstolos, três particularidades dignas de nota. I) Primeiro, Jesus considera a crise como um momento em que os seus discípulos estão sendo peneirados. Satanás, o acusador dos irmãos, cético a respeito da fidelidade e integridade deles, assim como no caso de Jó e de todos os homens justos, tentaria peneirá-los como se faz com o trigo, esperançoso de que iriam se mostrar mais como o joio, tornan­ do-se apóstatas como Judas, ou pelo menos que entrariam em um escan­ daloso e desprezível colapso. Sob esse aspecto, essa crise final era pareci­ da com a crise ocorrida em Cafarnaum no ano anterior. Aquele também havia sido um momento de seleção para o discipulado de Cristo. Nessa ocasião, o trigo também foi separado da palha, e entendemos que a pa­ lha estava presente em grande- número, pois “desde então, muitos dos seus discípulos tornaram para trás e já não andavam com ele”. Mas, ao lado dessa semelhança de caráter geral entre as duas crises — a menor e a maior, como poderíamos assim chamar — , uma impor­ tante diferença deve ser observada. N a crise menor, os poucos escolhi­ dos eram como trigo puro, enquanto a instável multidão seria o joio. Na maior, eles eram ao mesmo tempo o trigo e o joio, e a seleção não era entre um e outro homem, mas entre o bem e o mal, entre o que existia de valor e de desprezível no mesmo homem. O coração dos onze fiéis dis­ cípulos deveria ser sondado para se descobrir sua latente fraqueza. O velho coração deveria ser colocado à parte, e o novo coração deveria ser assumido; o coração vaidoso, confiante e impetuoso de Simão, filho de Jonas, à parte do devotado, nobre e heróico coração de Pedro, firme como uma pedra. Essa distinção entre as duas crises implica que a última tenha um caráter mais inquiridor do que a primeira e, após um momento de refle­ xão, vemos que ela foi realmente assim. Considere apenas como era dife­ rente a situação dos discípulos- em ambos os casos! N a crise menor, a multidão partiu, mas Jesus permaneceu; na maior, o próprio Senhor Jesus foi afastado de sua presença e eles se sentiram como ovelhas sem o

50 6

O Treinamento dos Doze

seu Pastor. Uma diferença suficientemente grande para explicar a corres­ pondente diferença na conduta dos mesmos homens nas duas ocasiões. Era sem dúvida desconcertante e desanimador ver a multidão de pesso­ as, que ultimamente tinha acompanhado seu Mestre com tanto entusias­ mo, dispersar-se como uma ociosa ralé depois de assistir a um show. Mas enquanto o seu Mestre permanecesse ao seu lado, eles não se entris­ teceriam com a deserção desses discípulos espúrios. Eles amavam a Jesus por ser quem Ele era e é, não por sua popularidade ou por qualquer outro interesse. Ele era o Mestre deles e podia dar-lhes o pão da verdade eterna, que, diferente do pão que se deteriora, era o que estavam procu­ rando. Ele era a sua Cabeça, seu Pai, seu Irmão mais velho e seu Esposo espiritual, e eles se apegariam a Ele em todas as eventualidades com uma fidelidade filial, fraternal e espiritual. Se as suas expectativas pareciam sombrias mesmo ao seu lado, onde poderiam ir para conseguir algo melhor? Não tinham outra escolha a não ser permanecer onde estavam. Portanto, assim permaneceram, fiéis e valorosos, firmemente sus­ tentados por sua sinceridade, pela clara percepção das alternativas e pelo fervoroso amor ao seu Senhor. Mas agora, meu Deus! Quando não é a multidão é o próprio Senhor Jesus que os estava deixando —na verdade não os estava abandonando, mas tinha sido arrancado de sua presença pelas mãos firmes de um poder mundano — e o que deveriam fazer? Nessa ocasião poderiam muito bem fazer a mesma pergunta de Pedro: “Para quem iremos nós?” e sentirem-se desesperados por uma resposta. AquEle cuja presença tinha sido seu consolo em uma ocasião penosa e desanimadora, aquEle que nos piores momentos, quando sua doutrina era para eles misteriosa e sua conduta incompreensível, significou mais para eles do que tudo o que havia de melhor nesse mundo, é agora arre­ batado do seu lado e se sentem completamente desamparados, sem um Mestre, um Senhor a seu lado, um Guia, um Amigo e um Pai. Pior ainda, ao perderem-no, perdiam não apenas o seu melhor amigo, mas também a sua fé. Eles podiam acreditar que Jesus era o Cristo, embora a multidão tivesse apostatado, pois conseguiam entender sua apostasia como resul­ tado da ignorância, da falta de sinceridade e da superficialidade. Mas como poderiam entender o messianato de alguém que é levado para a prisão e não para o trono? E que em vez de ser coroado rei está a cami­

As Ovelhas Dispersas

507

nho de ser executado como criminoso? Ao ficarem assim privados de Jesus, ficaram também privados de seu Cristo. O mundo dos incrédulos iria perguntar-lhes: “Onde está o teu Deus?”, e naquele momento não encontrariam uma resposta. “Nós e Cristo contra o mundo” e “Cristo sob o domínio do mun­ do, e nós sozinhos e abandonados”; essa, em resumo, era a diferença entre os dois momentos de seleção e, da mesma forma, eram diversos os resultados desse processo. No primeiro caso ele fazia a separação entre os sinceros e aqueles que não o eram; no segundo, descobria fraquezas mesmo nos mais sinceros. Os homens, que em ocasiões anteriores ape­ gavam-se resolutamente aos seus partidos, na última fugiam tomados pelo pânico, discutindo sem dignidade sobre sua segurança e, pelo me­ nos em um caso, com uma vergonhosa indiferença pela verdade. Observe como até os homens justos se tornam fracos quando não têm fé! Com fé, por mais imaturo ou ignorante que seja, você poderá conquistar o mundo todo; sem a fé que deliberadamente coloca Deus ao seu lado, você não tem qualquer possibilidade de vencer. Se você não mantiver a sua fé, Satanás se apoderará de sua vida e lhe fará errar como Abraão, fingir-se de louco como Davi, e dissimular ou jurar com falsidade e sacrilégio como Pedro. Os justos só vivem com justiça e nobreza através de sua fé. 2) Jesus considera que, embora perigosa, a crise pela qual seus discí­ pulos iriam passar não se revelaria como uma ameaça mortal à sua fé. Sua esperança é que, não obstante eles pudessem errar, não entrariam em colapso, e que, embora o sol da fé pudesse entrar em eclipse, ele não iria se extinguir. Ele tem essa esperança mesmo em relação a Pedro, tendo tomado o cuidado de evitar uma catástrofe tão completa. “Mas eu ro­ guei por ti, para que a tua fé não desfaleça”. E o resultado foi aquele que Ele esperava. Os discípulos mostraram-se fracos na crise final, mas não pecadores. Satanás fez com que tropeçassem, mas não conseguiu entrar e tomar posse deles. A esse respeito eles eram totalmente (ou diame­ tralmente) opostos ajudas que não somente perdeu a sua fé, mas desper­ diçou o seu amor e, abandonando o seu Senhor, entregou-se ao inimigo, tornando-se um instrumento para a realização de seus maléficos desíg­ nios. Os onze apóstolos, na pior hipótese, continuaram com o coração

50 8

O Treinamento dos Doze

fiel ao seu Mestre. Não cometeram, nem eram capazes de cometer atos de perfídia mas, ao fugir, identificaram-se com o lado perdedor. Mas Pedro, o que podemos dizer sobre ele? Não seria uma exceção a esse raciocínio? Bem, certamente ele fez muito mais que desmoronar na fé e não temos qualquer desejo de atenuar a gravidade de seu pecado, e preferimos considerá-lo um solene exemplo da íntima proximidade com o pior, à qual os melhores homens podem ser levados. Ao mesmo tempo, não estaríamos sendo injustos ao afirmar que existe uma enorme diferença entre negar a Cristo entre os servos do sumo sacerdote e entregálo às mãos deste em troca de uma soma em dinheiro. Esse último ato representa o crime de um traidor patife enquanto o primeiro poderia ser cometido por alguém que havia sido sincero com o seu Mestre em todos os momentos em que seus interesses pareciam estar seriamente envolvi­ dos. Ao negar conhecer Jesus, Pedro pensou estar salvando a si mesmo através da dissimulação, sem cometer qualquer ofensa material contra o seu Senhor. Seu ato se parece com aquele de Abraão, quando fez circular a mentirosa história a respeito de sua esposa ser sua irmã para protegerse da violência dos devassos. Esse foi, certamente, um ato muito mesqui­ nho, egoísta e totalmente indigno do pai dos fiéis. O ato de Pedro não foi menos mesquinho e egoísta, mas também não foi além disso. Ambos foram atos de fraqueza e não de iniqüidade, pois poucos entre os justos podem se dar ao luxo de jogar pedras no patriarca e nos discípulos. Mesmo aqueles que agem como heróis mas grandes ocasiões possivel­ mente agirão, em outras, de forma muito indigna. H á homens que cora­ josamente proclamam seus sentimentos ao discursar de um púlpito ou de um palanque, porém escondem e desmentem as suas convicções à mesa do jantar. Colocando-se no lugar em que os servos de Cristo de­ vem falar a verdade, com bravura tomam as suas espadas em defesa de seu Senhor; mas, ao se misturar em termos iguais com a sociedade di­ zem, muitas vezes, “Não conheço tal homem”. Portanto, se o pecado de Pedro é grave, lembremo-nos de que certamente não é incomum. E co­ metido virtualmente, se não formalmente, por multidões que seriam incapazes de uma deliberada traição pública contra Deus e a verdade. O discípulo faltoso foi muito mais singular em seu arrependimento do que em seu pecado. De todos aqueles que, com meros atos de fraqueza virtu­

As Ovelhas Dispersas

509

almente negam a Cristo, poucos são os que, como ele, retiram-se e cho­ ram amargamente! O fato de Pedro não ter pecado de forma cabal e irrevogável como Judas, deve-se, em parte, à radical diferença existente entre os dois homens. Pedro, no fundo, era um filho de Deus; Judas em seu íntimo tinha sido o tempo todo um filho de Satanás. Portanto, podemos dizer que Pedro não podia ter pecado como Judas, nem que Judas podia ter se arrependido como Pedro. No entanto, quando afirmamos isso não po­ demos nos esquecer de que Pedro foi protegido para não cometer uma apostasia através da graça especial que lhe foi concedida em resposta às orações de seu Mestre. Não sabemos exatamente quais foram os termos com os quais Jesus orou por Pedro, pois a oração em nome de um só discípulo, como aquela feita pelos outros onze, não foi registrada. Mas a direção dessas intercessões especiais é bastante clara a partir do relato que Jesus fez a Pedro. O Mestre havia orado para que a fé de seu discípu­ lo não viesse a faltar, mas não para que ele ficasse isento do processo de seleção de Satanás, ou mesmo protegido contra qualquer pecado, pois Ele sabia que uma falta seria necessária para revelar ao confiante discípu­ lo a sua própria fraqueza. Ele havia orado para que o pecado de Pedro não lhe fosse ruinoso, para que sua horrível falta pudesse ser seguida por uma devota tristeza e não por um endurecimento do coração e, no caso do traidor, que o seu pecado fosse acompanhado pelo arrependimento do mundo que lhe provocou a morte e pelo remorso de uma consciência culpada que, como a fúria, conduz o pecador rapidamente à condena­ ção. E no arrependimento de Pedro, imediatamente após as suas negativas, vemos a concretização das orações de seu Mestre, uma graça especial sendo concedida para comover o seu coração, dominá-lo com uma benfazeja mágoa e levá-lo a extravasar a sua alma em lágrimas. E o salutar resultado que se produziu não foi por causa da piedade ou da bondade de seu coração, mas ao Espírito de Deus e à providência divina que trabalharam para esse fim. Mas pelo cantar do galo e pelas palavras de advertência que trazia à mente, assim como pela expressão nos olhos de Jesus e a terna misericórdia do Pai celestial, quem pode dizer qüais hu­ mores demoníacos seriam capazes de se apossar do coração daquele culposo discípulo! Lembre-se de todo o tempo em que até mesmo Davi,

51 0

O Treinamento dos Doze

um homem temente a Deus, cedeu a vez ao Diabo, abrigando em seu seio os demônios do orgulho, da falsidade e impenitência depois de ter pecado, e veja como estava longe de ser um fato lógico e natural que Pedro, imedi­ atamente após ter negado a Cristo, se encontrasse sob a abençoada influ­ ência de seu espírito perturbado e contrito, ou mesmo que a crise espiritu­ al, pela qual tinha passado, chegasse naquela situação a um feliz resultado. Ele foi salvo pela graça, assim como ocorre com cada um de nós. 3) Jesus considera a crise, que estava prestes a ser experimentada por seus discípulos, como aquela que, além de ter um final feliz, resultaria em benefício espiritual para todos eles, qualificando-os para serem úteis aos semelhantes. Isso aparece na determinação que dá a Pedro: “E tu, quando te converteres, confirma teus irmãos”. Jesus espera que o frágil discípulo torne-se forte pela graça e, portanto, capacitado e pleno em disposição para ajudar os fracos. Ele acalenta essa expectativa em relação a todos eles, mas especialmente em relação a Pedro, entendendo que o mais fraco poderia e deveria, ao final, transformar-se no mais forte, o último em primeiro, o maior pecador no maior santo e o mais tolo no mais sábio e mais amável e bondoso dos homens. Como essa bondosa e reconfortante concepção de fraqueza moral podia ser tão encoraj adora àquele que havia errado! O Salvador diz, na verdade, “não há razão para se desesperar, o pecado não apenas pode ser perdoado, mas transformado em uma boa causa para vocês mesmos e para os outros”. As faltas, quando devidamente consideradas, podem se tornar um trampolim para a virtude cristã e um treinamento para a po­ sição de confortar e guiar. Como esse conceito pode trazer tanto confor­ to a uma consciência atormentada! Homens que têm errado, e que con­ sideram seriamente o seu pecado, estão sujeitos a consumir o coração e gastar o seu tempo em amargas reflexões sobre a sua má conduta anteri­ or. Cristo lhes oferece coisas mais úteis para fazer. “Quando te converte­ res”, Ele lhes diz, “confirma teus irmãos”: elimine seus inúteis remor­ sos do irrevogável passado, e devote o seu coração e alma às obras do amor; deixe que elas lhe ajudem a perdoar a si mesmo, para que de suas próprias faltas e loucuras você possa aprender humildade, paciência, compaixão e sabedoria, necessárias para continuar, com todo sucesso, a praticá-las.

As Ovelhas Dispersas

511

Mas, embora extremamente encorajadoras àqueles que têm pecado, as palavras de Cristo a Simão não contêm qualquer estímulo ao pecado. Alguns adotam uma doutrina que lhes é favorita —que podemos fazer o mal para chegar ao bem, que devemos ser perdulários a fim de sermos bons cristãos, que um banho de lama deve preceder à ablução da regene­ ração e do batismo da alma no sangue do Redentor. Essa é uma falsa e perniciosa doutrina da qual o Santíssimo não pode ser defensor. Para que o bem venha do mal, é isso que você está dizendo? E se o bem não vier? N a verdade, ele não vem mesmo, como um fato lógico e natural, segundo temos visto; nem seria provável que viesse caso você transfor­ masse a esperança de sua vinda em um pretexto para pecar. Se o bem realmente vier, será através dos estreitos portais do arrependimento. Você somente poderá se tornar sábio, bondoso, humilde, gentil e um verda­ deiro suporte para os fracos se sair e chorar amargamente. Mas que chances existem de surgir um penitente enternecimento do coração em alguém que adota e age segundo o princípio de que será necessário ter um currículo de pecados para se chegar à consciência do conhecimento próprio, da compaixão e de todas as virtudes humanas? O provável re­ sultado de tal treinamento será um coração endurecido, uma consciência insensível, um julgamento moral pervertido, a eliminação de todas as mais fervorosas convicções a respeito das diferenças entre o certo e o errado. E a convicção de que o mal leva ao bem insensivelmente se trans­ formando na idéia de que o mal é bom, portanto, ajustando sua defesa para cometer pecados sem pejo ou arrependimento. E nós teríam os coragem de proferir essa idéia, D e que a aveia-brava não foi sem eada, Q ue no solo, abandonado estéril, pouco havia crescido D os grãos dos quais o hom em pode viver? O h, se adotássem os inteiram ente essa doutrina D urante a vida, mesmo depois dos ardores da juventude; M as quem iria p regá-la com o verdade A queles que estão desorientados?

512

O Treinamento dos Doze

A pegue-se ao que é bom : defina-o bem: E tem a a teologia da filosofia Q ue poderá arrastar-te além de seu lim ite e tornar-se A caftina dos senhores do inferno9.

No caso de Pedro, o bem realmente veio do mal. Aquele período de seleção havia inaugurado um momento decisivo em sua história espiri­ tual e, como resultado, esse processo trouxe uma segunda conversão mais profunda e completa do que a primeira —um afastamento do pecado, não apenas de forma geral, mas em seus detalhes; dos pecados costumei­ ros até um arrependimento mais esclarecido, se não mais fervoroso, e com o propósito de uma nova obediência mais vazia de confiança, mas por isso mesmo mais segura. Até agora ele havia sido um filho —na verdade um filho de Deus, mas apenas uma criança —e Pedro se tornou um homem na graça e pronto para suportar o fardo dos fracos. No entanto, é digno de nota que, demonstrando a pouca simpatia que como Autor de nossa fé tinha pela doutrina de que o mal pode ser praticado em benefício do bem, Jesus, embora sabedor de como o erro de Pedro iria terminar, por essa mesma razão não a considerou proveitosa. O Se­ nhor não disse: “Eu desejei peneirar vocês”, mas permitiu que o espírito maligno que havia, no início, tentado nossos primeiros pais a pecar usando o argumento ilusório de que “sereis como Deus, sabendo o bem e o mal”, o fizesse. E reservou para si próprio o papel de intercessor que ora para que o mal possa ser dominado pelo bem. “Satanás vos pediu”, mas “eu roguei por ti”. Que palavras poderiam transmitir mais fortemente a idéia de culpa e de perigo do que essas ao insinuar que Simão está pres­ tes a praticar um feito que é objeto de desejo para o Maligno, fazendose necessário que recebesse orações feitas especialmente por ele pelo Sal­ vador das almas? Os homens conseguem ir a qualquer lugar à procura de apoio para as suas opiniões apologéticas e panteístas sobre o pecado. Poderíamos acreditar que a referência a Satanás inclina-se, por outro lado, a enfraquecer a severidade moral, encorajando os homens a lançar a culpa de suas faltas sobre ele. Teoricamente plausível, essa obje­ ção é praticamente contrária aos fatos, pois os defensores de teorias ambíguas sobre o pecado são também aqueles que não acreditam na

As Ovelhas Dispersas

513

personalidade do demônio. “As civilizações mais modernas removeram da mente o conceito do demônio e se tornaram mais negligentes quanto a imputar o castigo pelo pecado. A época anterior, que não negava as tentações e os assaltos do Diabo, era pouco inclinada a desculpar os homens que omitiam a resistência ao espírito do mal, ou a submissão a ele, considerando tais atitudes o grau extremo da culpa, e exerciam sobre essa falta de resistência um rigor jurídico que nos faz recuar cheios de horror. O extremo oposto a esse rigor é a lassidão da recente jurispru­ dência criminal, segundo a qual juizes e médicos estão demasiadamente inclinados a justificar os culpados com base em fundamentos físicos e psíquicos, enquanto o juízo moral da opinião pública é relapso e indul­ gente. E inegável que, para cada pecado, contribui não somente a má disposição, mas também o encantamento de alguma tentação; e quando essa tentação não é atribuída ao demônio, o pecador não culpará sua má disposição, mas as tentações que brotaram de algum outro refúgio que ele não deduz ser do pecado, mas da natureza, embora a natureza so­ mente exerça alguma tentação sob a influência do pecado. O mundo e a carne são verdadeiramente os poderes da tentação, não através de sua essência natural, mas através da influência dos maus que os estão infectando. Mas quando, como no presente, a sedução ao demônio está relacionada à sensualidade, ao temperamento, à luxúria e às paixões físi­ cas, às circunstâncias ou idéias fixas, às monomanias etc., a culpa é reti­ rada dos ombros do pecador e colocada sobre alguma coisa eticamente indiferente ou simplesmente natural”10. O parecer apresentado por Jesus a respeito da falta de seu discípulo não poderá, portanto, ser debitado ao enfraquecimento de seu senso de responsabilidade; ao contrário, é um parecer que está inclinado a inspi­ rar ódio ao pecado e esperança ao pecador. Ele mostra o pecado que está prestes a ser cometido como sendo objeto de temor e de aversão e, quan­ do já cometido, não só como perdoável quando houver arrependimento, mas capaz de se tornar útil ao progresso espiritual. De um lado, ele nos diz: Não brinque com a tentação, pois Satanás está próximo, procuran­ do a ruína da alma — “Perturbai-vos e não pequeis” (SI 4.4) ou ainda, “V igiai justamente e não pequeis” (I Co 15.34) e, por outro lado, “Se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o Jus-

514

O Treinamento dos Doze

to” (I Jo 2.1) —não se desespere; abandone os seus pecados e assim encontrará o perdão.

Seção III - Pedro e João João I8 .I5-I8; 19.25-27

Embora todos os discípulos, sem exceção, tivessem abandonado Je­ sus no momento de sua prisão, dois deles logo recuperaram coragem suficiente para retornar da fuga e seguir o seu Mestre enquanto Ele esta­ va sendo levado a julgamento. Um deles era Simão Pedro, sempre origi­ nal no bem e no mal e que, segundo nos contam, seguiu Jesus “de longe até ao pátio do sumo sacerdote... para ver o fim”11. O outro, de acordo com a opinião geral dos intérpretes, que acreditamos ser correta, era João. N a verdade seu nome não é mencionado, e ele é simplesmente descrito como “um outro” ou “o outro discípulo”. Mas como o próprio João é o nosso informante, existe uma prova bastante segura de que ele seja a pessoa à qual foi feita essa alusão. O “outro discípulo” que “era conhecido do sumo sacerdote... e entrou com Jesus na sala do sumo sacerdote”12, é aquele muito conhecido anônimo que tantas vezes en­ contramos no quarto Evangelho. Caso o homem, cuja conduta era tão notável, fosse algum outro e não o evangelista, ele não teria permanecido anônimo em uma narrativa tão minuciosamente precisa em que até o nome do servo, cuja orelha Pedro havia cortado, é considerado bastante importante a ponto de ser registrado13. Esses dois discípulos, embora muito diferentes quanto ao caráter, parecem ter desenvolvido uma certa amizade entre si. Em várias ocasi­ ões, além da atual, encontramos seus nomes associados de maneira su­ gestiva a uma ligação especial. A mesa da ceia, quando foi dada a notí­ cia a respeito do traidor, Pedro fez um sinal ao discípulo que Jesus ama­ va, e que iria perguntar quem era aquele de quem Ele falava. Por três vezes, durante o intervalo entre a ressurreição e a ascensão, os dois ir­ mãos permaneceram unidos como companheiros. Correram juntos até o sepulcro na manhã da ressurreição e conversaram confidencialmente a respeito daquele estranho que apareceu no início da madrugada às mar­ gens do mar da Galiléia, quando participavam de sua última expedição como pescadores. O discípulo a quem Jesus amava, ao reconhecer aquEle

As Ovelhas Dispersas

515

que havia ressuscitado, disse a Pedro: "E o Senhor”. Logo depois cami­ nharam juntos na margem, seguindo a Jesus —Pedro por ter sido ordena­ do, e João pelo impulso natural de seu amoroso coração. Uma intimida­ de cimentada por essas sagradas associações tinha toda a possibilidade de se manter permanente, de modo que encontramos os dois discípulos ainda como companheiros, mesmo depois de se iniciarem nos deveres do apostolado. Iam juntos ao Templo àhora da oração e, ao se encontra­ rem em dificuldades por terem curado o paralítico à porta do Templo, compareceram juntos perante o tribunal eclesiástico para serem julgados pelos mesmos homens —Anás e Caifás —que haviam presidido o julga­ mento de seu Senhor, companheiros dessa vez perante a justiça, da mes­ ma forma como haviam sido anteriormente no palácio do sumo sacer­ dote. Segundo esses fatos indicam, essa amizade que se formou entre os dois discípulos não tinha nada de surpreendente. Pertencendo ao círcu­ lo mais próximo daqueles três a quem Jesus honrava com a sua confiança nas ocasiões especiais, eles tinham a oportunidade de se tornar bastante próximos; além disso, foram colocados em circunstâncias que os uniram em íntimos laços de fraternidade espiritual. E ambos estariam prepara­ dos para desenvolver uma amizade especial, não obstante suas diferentes características, pois eram homens de uma acentuada originalidade e for­ ça de caráter e encontrariam, um no outro, mais centros de interesse do que nos demais membros do grupo apostólico. Também suas peculiari­ dades, longe de os manterem à parte, iriam, ao contrário, contribuir para uni-los. Eles eram constituídos de tal forma que um encontrava no ou­ tro o complemento de si próprio. Em relação ao temperamento, Pedro era mais impulsivo e João era mais cauteloso; Pedro era um homem de ação, João era um homem da razão e do sentimento; o papel que compe­ tia a Pedro era o de ser um líder e alguém que facilitasse o crescimento dos outros; o de João era o de ser fiel, confiar e ser amado; Pedro era o herói, e João o auxiliador e admirador do heroísmo. Os dois amigos, em seus respectivos comportamentos nessa crise, foram ao mesmo tempo parecidos e diferentes entre si. Foram parecidos quando ambos demonstraram uma generosa solicitude em relação ao destino de seu Mestre, pois, enquanto os outros se retiraram da cena,

516

0 Treinamento dos Doze

eles o seguiram para ver como tudo terminaria. Provavelmente esse ato comum tenha se derivado, em ambos, dos mesmos motivos. Não fica­ mos sabendo quais eram esses motivos, mas não é difícil imaginar. Em primeiro lugar, podemos atribuir certa influência a uma atividade natu­ ral do espírito. Não fazia parte da natureza de Pedro, nem de João, per­ manecerem indiferentes e passivos enquanto acontecimentos tão graves estivessem em andamento. Não podiam ficar sentados em casa, sem fa­ zer nada, enquanto seu Senhor estava sendo julgado, sentenciado e trata­ do como qualquer malfeitor. Se não pudessem evitar, seriam ao menos testemunhas de seus últimos sofrimentos. A mesma irreprimível energia de pensamento que três dias depois fez esses dois discípulos correrem para ver o sepulcro vazio estava agora impelindo seus passos em direção à sala do julgamento para testemunhar os acontecimentos que lá se pas­ sariam. Além das atividades de seu pensamento, podemos perceber, na con­ duta dos dois discípulos, um certo espírito de ousadia em ação. Ficamos sabendo, através do livro de Atos dos Apóstolos, que quando Pedro e João compareceram perante o conselho de Jerusalém, os dirigentes fica­ ram admirados com sua coragem. No entanto, essa coragem só podia ser esperada de homens que tinham tido esse tipo de comportamento du­ rante a crise. Ê verdade que nessa ocasião, e em comum com os outros irmãos, eles já haviam passado por uma grande modificação espiritual, mas ainda assim não podemos deixar de reconhecer uma certa identida­ de no caráter de cada um deles. Esses dois apóstolos tinham alcançado aquela maturidade espiritual que haviam prometido nos dias de seu discipulado, pois não deixou de ser um ato de coragem seguir, mesmo à distância, o grupo que havia levado Jesus como prisioneiro. Em homens que conseguem agir dessa maneira já existem, pelo menos, os rudimen­ tos do caráter de um mártir. Se fossem meros covardes não teriam se com­ portado desse modo; mas teriam prontamente se aproveitado da autori­ zação para fugir que Jesus lhes havia concedido, confortando seu cora­ ção com o pensamento de que, ao procurarem sua segurança, estavam apenas cumprindo a obrigação que lhes fora imposta. M as acreditamos que a conduta dos dois irmãos tenha se originado principalmente de seu fervoroso amor por Jesus. Quando desapareceu o

As Ovelhas Dispersas

517

primeiro paroxismo de medo, o cuidado pela segurança pessoal deu lu­ gar a uma generosa preocupação com o destino daquEle a quem real­ mente amavam mais que a própria vida. O amor a Cristo os obrigou a pensar não em si mesmos, mas naquEle cuja hora de aflição havia chega­ do. Primeiro, eles afrouxaram o passo; em seguida pararam e olharam em volta; e ao ver aquele grupo armado se aproximando da cidade, pro­ vavelmente tenham sentido que estavam magoando alguém e dito consi­ go mesmos: “Não podemos abandonar nosso Mestre em sua hora de perigo, devemos ver o desdobramento desse assunto tão doloroso”. E assim, com o espírito angustiado, eles se dirigiram a Jerusalém, Pedro à frente e João logo atrás. Os dois irmãos, que até agora tinham sido companheiros, desentenderam-se profundamente ao chegar à cena do julgamento e do sofri­ mento. João apegou-se ao seu Senhor até o último momento. Parece que esteve presente nas várias inquirições às quais Jesus foi submetido e ou­ viu com seus próprios ouvidos o processo jurídico do qual ele faz um relato tão interessante em seu Evangelho. Ele era um espectador quando a iníqua sentença foi proferida, tomou seu lugar aos pés da cruz onde a tudo podia assistir, não só para que seu moribundo Mestre pudesse vêlo, mas também falar com ele. E viu, entre outras coisas, o fenômeno do sangue e da água fluindo da ferida provocada pela lança no corpo do Salvador, que ele com tanto cuidado registra em sua narrativa. Foi nesse lugar que ouviu as últimas palavras de Cristo, entre elas as que foram dirigidas a M aria (mãe de Jesus) e a ele mesmo. O Senhor disse a Maria: “Mulher, eis aí o teu filho”; e a ele, “Eis aí tua mãe”. Dessa forma, João foi persistentemente fiel o tempo todo; mas e Pedro, o que aconteceu com ele? M eu Deus! Será que há necessidade de repetir a conhecida história de sua deplorável fraqueza no pátio do palá­ cio do sumo sacerdote? Como, tendo conseguido entrar pela porta late­ ral, através da intercessão de um discípulo irmão, ele primeiro negou ao porteiro sua ligação com Jesus, depois repetiu essa negação a outras pes­ soas, acrescentando um solene juramento e, em seguida, muito irritado pela repetição da acusação, e talvez por uma consciência da culpa, decla­ rou pela terceira vez, não apenas com um voto, mas com o acompanha­ mento degradante de um juramento profano: “Não conheço tal homem”;

5 18

0 Treinamento dos Doze

para, por fim, — ao ouvir o galo cantar e ao mesmo tempo sentir o olhar de Jesus e lembrar-se das palavras “Antes que o galo cante, três vezes me negarás”— sair para a rua e chorar amargamente? Não fomos informados sobre o que aconteceu com Pedro depois dessa melancólica exibição. E provável que tenha se retirado para a sua casa sentindo-se humilhado, abatido e esmagado, para lá permanecer coberto de dor e de vergonha até ser liberto desses sentimentos pelas emocionantes notícias da manhã da ressurreição. Essa diferença de conduta entre os dois discípulos correspondia a uma diferença de caráter, e cada um agia conforme a sua natureza. E mesmo verdade que as circunstâncias não foram iguais para os dois; houve pontos favoráveis para um e desfavoráveis para o outro. João tinha a vantagem de ter um amigo na corte e era, de alguma forma, conhecido pelo sumo sacerdote. Essa circunstância permitiu-lhe a admissão na sala de julgamento, dando-lhe uma certa segurança contra qualquer risco à sua pessoa. Pedro, por outro lado, além de não ter nenhum amigo na corte, também podia naturalmente temer que algum inimigo pessoal estivesse presente nesse local. A precipitação de seu ato no jardim o havia tornado uma pessoal indesejável, e ele podia estar sentindo medo de, como conseqüência, ter problemas naquele local. Ficamos sabendo, através da descrição desse fato feita por João, que tais receios não deixavam de ter fundamento, pois uma das pessoas que acusaram Pedro de ser discí­ pulo de Jesus pertencia à família do homem cuja orelha Pedro havia decepado, e que dirigiu sua acusação contra o discípulo com as seguintes palavras: “Não te vi eu no horto com ele?” Portanto, de qualquer forma, é muito provável que a consciência de ter cometido uma ofensa que poderia provocar algum rancor tenha tornado Pedro ansioso por não ser identificado como um dos discípulos de Cristo. Sua inoportuna cora­ gem no jardim ajudou a fazer dele um covarde no pátio do palácio. Entretanto, concedendo aos efeitos das circunstâncias todos os pos­ síveis descontos, acreditamos que a diferença no comportamento dos dois discípulos tenha se devido, principalmente, a uma diferença exis­ tente nos próprios homens. Receamos que, mesmo que não tivesse sido culpado de qualquer imprudência no jardim, Pedro teria negado a Jesus no pátio da casa do sumo sacerdote. Por outro lado, supondo que João

As Ovelhas Dispersas

519

tivesse sido colocado na posição de Pedro, não acreditamos que tivesse cometido o pecado que Pedro cometeu. A disposição de Pedro o deixava aberto à tentação, enquanto a de João, ao contrário, oferecia uma certa proteção contra ela. Pedro era franco e impetuoso, enquanto João era reservado e nobre; a tendência de Pedro com todas as pessoas era agir de uma forma calorosa e aberta, enquanto João se mantinha em seu lugar e tinha a facilidade de colocar as outras pessoas em seus próprios lugares. E fácil enxergar o importante efeito que essa diferença exercia na condu­ ta de pessoas colocadas na posição de Pedro. Vamos supor que João estivesse no lugar de Pedro, e imaginar como teria agido. Certas pessoas que estivessem na corte, sem possuir qualquer autoridade ou influência, iriam interrogá-lo sobre sua ligação com Jesus. João não teria medo nem vergonha de reconhecer seu Senhor; entretanto, ele daria as costas sem responder a qualquer pergunta dos que o interrogavam. Eles não tinham qualquer direito de questioná-lo. João não teria tido qualquer simpatia pelo espírito que conduzia as perguntas daquela gente e certamente pen­ saria que não serviria a nenhum propósito confessar seu discipulado a tais pessoas. Portanto João, assim como fez seu Mestre quando foi con­ frontado com falsas testemunhas, manteria a sua tranqüilidade e se reti­ raria da companhia das pessoas com as quais nada tinha em comum e pelas quais não nutria qualquer respeito. Mas proteger-se contra esse inconveniente interrogatório, através de uma tão majestosa reserva, era algo que estava além da capacidade de Pedro. Ele não conseguia manter à distância pessoas que não eram ade­ quadas à sua companhia; era demasiadamente aberto e sensível à opinião pública, e não era capaz de fazer uma seleção entre as pessoas. Se uma serva lhe perguntasse sobre a sua relação com o prisioneiro ele não con­ seguiria passar por ela como se não a tivesse ouvido. Pedro lhe daria imediatamente uma reposta e, se sentisse instintivamente que a animosi­ dade da questão estava dirigida ao seu Mestre, essa resposta precisaria ser uma mentira. Então, desprevenido quanto ao encontro com o perigo que se originaria de um contato muito próximo com aqueles que anda­ vam pelo palácio, esse imprudente discípulo deve ter se envolvido e se prendido cada vez mais na rede, ao se misturar alegremente com os ser­ vos e os empregados reunidos em volta do fogo que havia sido aceso no

520

O Treinamento dos Doze

pátio externo. É claro que não tinha qualquer chance de escapar dali, era como uma pobre mosca apanhada na teia de uma aranha. Se esses ho­ mens, com seu tom insolente de lacaios da corte, o acusassem de ser seguidor de um homem a quem seus mestres tinham agora em seu po­ der, ele nada podia fazer além de irrefletidamente responder com uma ignóbil e básica negativa. Pobre Pedro; ele não estava evidentemente à altura da situação. Teria sido mais prudente ter permanecido em casa, restringindo a sua curiosidade de ver o fim. Mas ele, assim como a maio­ ria dos seres humanos, somente alcançaria a sabedoria através de uma amarga experiência. O contraste que desenhamos entre as características dos dois discí­ pulos sugere o seguinte pensamento: Que resultado diferente pode pro­ vocar o crescimento na graça em diferentes cristãos! Nem João nem Pedro tinham alcançado a maturidade de espírito, mas essa imaturidade se re­ velava de maneiras opostas. A fraqueza de Pedro estava dirigida à sua indiscriminada cordialidade e à sua tendência de ser “amigo de todo mundo”. João, por outro lado, não corria nenhum risco de formar laços próximos com tudo e todos. Ao contrário, para ele era demasiadamentejácil estabelecer a diferença entre amigos e inimigos. Ele podia tomar um partido e nele permanecer; podia até odiar com fanática intensidade, assim como amar com uma maravilhosa devoção. Observe sua proposta de pedir fogo do céu para consumir as aldeias samaritanas! Essa era uma proposta que Pedro nunca poderia fazer, pois não era de sua natureza ser truculento contra qualquer ser humano. Até então, sua cordial natureza havia sido algo a se comentar, embora em outros aspectos pudesse deixálo aberto à tentação. Sendo as falhas dos dois discípulos tão opostas, o crescimento na graça iria naturalmente assumir duas formas opostas em suas respectivas experiências. Em Pedro ele iria tomar a forma de uma concentração; e em João, a de expansão. Pedro se tornaria menos genero­ so e João m uito m ais. Pedro p ro gred iria de uma benevolência indiscriminada para uma determinação moral que faria a distinção entre amigos e inimigos, a igreja e o mundo. O progresso de João, por outro lado, consistiria em deixar de ser intolerante e se tornar imbuído do espírito bondoso, humano e gentil de seu Senhor. Pedro, no estado ma­ duro de seu espírito, se importaria muito menos com a opinião e os

As Ovelhas Dispersas

521

sentimentos dos homens do que naquele momento, e João, por outro lado, passaria a se importar muito mais. Podemos acrescentar algumas palavras a essa questão: Teria sido certo ou errado os dois discípulos terem seguido o seu Senhor até o local do julgamento? Em nossa opinião, não foi certo nem errado. Foi certo para aquele que era capaz de fazê-lo sem qualquer dano espiritual, e errado para aquele que tinha razões para acreditar que, assim fazendo, estaria se expondo a esse perigo. A última parte dessa resposta representa o caso de Pedro, enquanto a primeira parece ter sido o caso de João. Pedro havia sido bastante prevenido sobre a sua fraqueza e, se tivesse levado isso a sério, teria evitado a cena da tentação. Ao desconsiderar as advertências, ele se lançou voluntariamente nos braços do tentador e, é claro, cometeu um pecado. Seu erro ensina uma lição a todos aqueles que, sem procurar a orientação de Deus e negligenciando os conselhos recebi­ dos, assumem compromissos que estão além de suas próprias forças.

1 Lucas 22.49 2 Mateus 26.52-54 3 João 18.11 4 Lucas 22.35-38 5 João 18.8 6 Mateus 26.31 7 Versículo 41 8 Mateus 26.35 9 Teenyson, In Memoriam3 53. 10 Sartorius, Die Lebre von der heiligen Liebe, p. 79, 80. 11 Mateus 26.58 12 João 18.15 13 João 18.10

28 O Pastor Ressuscitado Seçao I - Uma Notícia Boa demais para Ser Verdade Mateus 2 8 .17 ; Marcos I 6 .I I - I 5 ; Lucas 2 4 .1 1 , 13 -22 , 3 6-4 2; João 20.20, 2 4 -2 9

O dia negro da crucificação é passado; o dia seguinte, o sábado judeu, quando aquEle abatido dormiu em sua sepultura talhada na ro­ cha, também é passado; o primeiro dia de uma nova semana e de uma nova era já raiou, e o Senhor ressuscitou dos mortos. O Pastor voltou a reunir as suas ovelhas dispersas. Certamente um dia feliz para os discí­ pulos infelizes! Que alegria arrebatadora deve ter emocionado seus cora­ ções com o pensamento de um encontro com o seu amado Senhor! Com que fervorosa esperança eles devem ter aguardado ansiosamente por aquela manhã da ressurreição! Assim poderia se pensar; mas o estado real do caso não era este.Tais fervorosas expectativas não tiveram lugar na mente dos discípulos. O estado real de suas mentes na ressurreição de Cristo era bem semelhante ao dos judeus exilados na Babilônia, quando ouviram que seriam resta­ belecidos em sua terra natal. O primeiro efeito da boa nova foi que eles eram como homens que sonhavam. A notícia parecia boa demais para ser verdade. Os cativos que haviam se assentado à beira dos rios da Babilônia, e que choravam quando se lembravam de Sião, deixaram de esperar pelo retorno à sua própria pátria, e certamente de serem capazes de esperar por qualquer coisa. “A dor estava instalada e a esperança esta­ va morta” dentro deles. Então, quando os exilados haviam se recuperado do sentimento de surpresa, o efeito seguinte das boas notícias foi um acesso de júbilo. Eles se desatam em um riso histérico e em cânticos irreprimíveis1.

524

0 Treinamento dos Doze

M uito similar foi a experiência dos discípulos em relação à ressur­ reição de Jesus dos mortos. A sua dor ainda não estava profundamente enraizada, mas a sua esperança estava morta. A ressurreição de seu M es­ tre era totalmente inesperada por eles, e receberam a notícia com surpre­ sa e incredulidade. Este fato é expresso nas afirmações dos quatro evangelistas. Mateus afirma que na ocasião do encontro de Cristo com os seus seguidores na Galiléia, depois da ressurreição, alguns duvidaram, enquanto outros adoraram2. Marcos relata que quando os discípulos ouviram M aria Madalena dizer que Jesus estava vivo, e que havia sido visto por ela, “não o creram”3; e quando os dois discípulos que viajavam para Emaús contaram a seus irmãos sobre o seu encontro com Jesus no caminho, “nem ainda estes creram”4. Ele posteriormente relata como, em uma ocasião subseqüente, quando Jesus se encontrou com os onze de uma vez, ele “lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração, por não haverem crido nos que o tinham visto já ressuscitado”5. Em total concordância com estas afirmações dos dois primeiros evangelistas estão as de Lucas, cuja representação da atitude mental dos discípulos em relação à ressurreição de Jesus é detalhada e anima­ da. De acordo com ele, os relatórios das mulheres lhes pareceram “como desvario, e não as creram”6. Os dois irmãos, vagamente mencionados por Marcos como caminhando pelo campo quando Jesus lhes apare­ ceu, são representados por Lucas como tendo um semblante triste, embora conscientes dos rumores sobre a ressurreição; na verdade, estavam tão deprimidos no espírito, que não reconheceram Jesus quando Ele se juntou a eles e começou a conversar7. A ressurreição não era um fato para eles: tudo o que sabiam era que seu M estre estava morto, e que eles haviam confiado inutilmente que seria Ele quem deveria ter redimido a Israel. O mesmo evangelista também nos informa que na primeira ocasião em que Jesus se apresentou no meio de seus discípu­ los, eles reconheceram a semelhança da aparição com o seu Senhor morto, mas pensaram que era apenas um fantasma, e assim ficaram aterrorizados e apavorados de maneira que, a fim de afastar o medo, Jesus lhes mostrou suas mãos e seus pés, e lhes rogou que tocassem seu corpo, e assim se convencessem de que Ele não era um fantasma, mas um ser que possuía um corpo8.

0 Pastor Ressuscitado

525

Em vez de declarações gerais, João dá um exemplo da incredulidade dos discípulos com relação à ressurreição, como mostrado de forma extrema por Tomé. Este discípulo é representado como alguém tão in­ crédulo, que recusou-se a crer até que se lhe desse a oportunidade de colocar seu dedo nas marcas dos cravos e a sua mão na ferida feita por uma lança no lado do Salvador. Os outros discípulos compartilharam da mesma incredulidade de Tomé, embora em um grau menor; essa in­ formação está implícita na afirmação feita por João em uma parte ante­ rior de sua narrativa, em que se diz que quando Jesus encontrou seus discípulos na noite do dia em que ressuscitou, “mostrou-lhes as mãos e o lado”9. As mulheres que haviam crido em Cristo não tinham mais expecta­ tivas de sua ressurreição do que os onze. Elas saíram em direção à sepul­ tura na manhã do primeiro dia da semana, com a intenção de embalsa­ mar o corpo morto daquEle a quem amavam. Elas procuraram o vivo entre os mortos. Quando Madalena, que havia estado no túmulo antes das outras, encontrou a sepultura vazia, seu pensamento foi que alguém tivesse levado o corpo morto de seu Senhor10. Quando a incredulidade dos discípulos finalmente deu lugar à fé, eles passaram, como os hebreus exilados, da extrema depressão à alegria exuberante. Quando a dúvida de Tomé foi removida, ele exclamou em êxtase: “Senhor meu, e Deus meu!”11 Lucas relata que quando reconhe­ ceram seu Senhor ressuscitado, os discípulos não crendo ainda “por causa da alegria”12 trataram a dúvida como um estímulo à alegria. Os dois discípulos com quem Jesus conversou no caminho de Emaús disseram um ao outro quando Ele lhes deixou: “Porventura, não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava e quando nos abria as Escrituras?”13 Sob outro aspecto ainda mais importante, os onze se assemelhavam aos antigos hebreus exilados no momento de sua chamada. Enquanto a sua fé e esperança estavam paralisadas durante o intervalo entre a morte e a ressurreição de Jesus, seu amor permaneceu com uma vitalidade cons­ tante. O judeu expatriado não se esqueceu de Jerusalém na terra dos estranhos. A ausência apenas fez seu coração ficar mais desejoso. Quan­ do se sentava à beira dos rios da Babilônia, desanimado, inerte, em um

526

O Treinamento dos Doze

estado de espírito indistinto e abstrato, olhando com olhos vidrados para as águas indolentes, grandes lágrimas rolavam silenciosamente por seu rosto, porque estava pensando em Sião. O exílio da alma poética não trouxe o esquecimento em relação à honra que era devida a Jerusalém. Ele era incapaz de cantar as canções do Senhor aos ouvidos de um públi­ co pagão, que não se importava com o seu significado, mas apenas com o estilo da execução. Não prostituiria os seus talentos para a diversão dos opressores voluptuosos de Israel, embora deste modo pudesse con­ seguir a sua restauração para a amada pátria de seu nascimento, como os cativos atenienses na Sicília dizem ter feito recitando versos de seu poeta favorito, Euripides, aos ouvidos de seus senhores sicilianos14. Os discípulos não eram menos verdadeiros à memória de seu Se­ nhor. Eles eram como “verdadeiras viúvas”, que permanecem fiéis a seus falecidos maridos e idolatram suas virtudes, embora a sua reputação seja nula na avaliação geral do mundo. Não poderiam chamá-lo de grande enganador, pois não podiam crer que Jesus fosse um enganador. Poderi­ am ter se enganado e não compreendido, naquele momento, alguns pon­ tos em seu ensino; mas um impostor —nunca! Portanto, embora Ele esti­ vesse morto e a esperança deles tivesse desaparecido, eles ainda agiam como homens que nutriam a ligação mais afetuosa ao Mestre que ha­ viam perdido. Eles se mantêm juntos como uma família consternada, com as cortinas abaixadas, por assim dizer, fechando e trancando as suas portas por medo dos judeus, identificando-se com o Crucificado e, como seus amigos, temendo a má vontade do mundo incrédulo. Exemplo ad­ mirável a todos os cristãos de como se comportar em um dia de tribulação, censura e blasfêmia, quando a causa por Cristo parecer perdida, e os poderes das trevas no momento tiverem todas as coisas sob seu controle. Ainda que a fé seja eclipsada e a esperança dissipada, deixe que o coração seja sempre leal a seu verdadeiro Senhor! O estado de espírito dos discípulos por ocasião da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é de grande importância do ponto de vista apologético. O desespero que sentiram após a crucificação de seu Se­ nhor colaborou para que expressassem a grande importância do teste­ munho que dariam sobre o fa to de sua ressurreição. Não era provável que homens em tal estado de espírito cressem no acontecimento que viria,

O Pastor Ressuscitado

527

mesmo sendo um fato tão contundente e que não pudesse ser desacredi­ ta do. Eles não ficariam ligeiramente satisfeitos com a verdade, como os homens estão inclinados a ficar no caso de eventos tão desejados quanto esperados: exigiriam, com ceticismo, evidências superabundantes, como os homens fazem no caso de eventos desejáveis e esperados. Seriam len­ tos para crer no testemunho de outros, e poderiam até hesitar em crer naquilo que viam com seus próprios olhos. Não seriam capazes, como M . Renan supõe, de crer na ressurreição de Jesus, pelo simples fato de sua sepultura ter sido encontrada vazia, ao terceiro dia após a sua morte, pelas mulheres que foram embalsamar o seu corpo. Esta circunstância, ao ser divulgada, poderia fazer com que Pedro e João corressem para a sepultura para ver como as coisas estavam; mas após terem confirmado o relato das mulheres, ainda permaneceria a pergunta sobre como o fato deveria ser explicado; e a teoria de M aria Madalena, de que alguém havia levado o corpo, não pareceria totalmente improvável. Essas nossas inferências, do que sabemos a respeito da condição mental dos discípulos, são totalmente confirmadas pelos relatos do Evan­ gelho a respeito da recepção que deram ao Senhor Jesus ressuscitado em suas primeiras aparições a eles. Um dentre todos eles considerou essas aparições de modo cético, esforçando-se para satisfazê-los, e tornou ne­ cessário que Jesus os convencesse de que o objeto visível não era uma aparição fantasmagórica, mas um homem vivo, e nenhum outro homem exceto aquEle que havia morrido na cruz. Os discípulos duvidaram en­ tão da substancialidade, da identidade da pessoa que lhes apareceu. Não estavam, portanto, satisfeitos apenas por ver Jesus, mas, a seu próprio pedido, o tocaram. Um deles não somente tocou o corpo para se certi­ ficar de que Ele possuía a incompressibilidade da matéria, mas insistiu em examinar com curiosidade cética aquelas partes que foram feridas pelos cravos e pela lança.Todos perceberam a semelhança entre o objeto da visão e Jesus, mas não puderam ser persuadidos quanto à identidade, tão despreparados que estavam para ver, novamente vivo, aquele que ha­ via morrido; e sua teoria a princípio era a mesma de Strauss, de que eles teriam visto um fantasma ou um espectro. E o próprio fato de eles cogi­ tarem essa teoria faz com que nos seja impossível cogitá-la. Não pode­ mos, diante deste fato, aceitar o dogma de Strauss, de que “a f é e m Jesus

528

0 Treinamento dos Doze

como o Messias, que por sua morte violenta havia recebido um golpe aparentemente fatal, foi subjetivamente restaurada por intermédio da mente, do poder da imaginação e do nervosismo”. Sabemos que o poder da imaginação e do nervosismo pode fazer muitas coisas. Freqüente­ mente tem acontecido que homens em um estado anormal de entusias­ mo vejam projetados no espaço exterior as criações de uma mente acalo­ rada. M as as pessoas em um estado insano como este —sujeito à alucina­ ção —geralmente não estão tranqüilas e racionais o bastante para duvida­ rem daquilo que vêem; nem é necessário, no caso delas, esforçarem-se para superar tais dúvidas. O que elas precisam, na realidade, é se torna­ rem cientes de que o que pensam ver não é a realidade: o oposto daquilo que Jesus precisou fazer pelos discípulos, e o fez, por uma declaração solene de que Ele não era um espírito, convidando-os a tocarem-no, e assim convencendo-os de sua substancialidade material, chegando a com­ partilhar alimentos na presença deles. Quando mantemos firmemente diante de nossos olhos a condição mental dos doze no momento da ressurreição de Cristo, vemos a falsida­ de e o absurdo transparentes da teoria do roubo inventada pelos sacerdo­ tes judeus. Essa teoria diz que os discípulos vieram durante a noite, enquanto os guardas estavam dormindo, roubaram o corpo de Jesus e conseguiram divulgar a crença de que havia ressuscitado. Mateus diz que antes mesmo da ressurreição, os assassinos de nosso Senhor estavam com medo de que isso pudesse acontecer; e então, para prevenir qual­ quer fraude desse tipo, rogaram a Pilatos que tivessem uma guarda colo­ cada no sepulcro e, assim, com menosprezo lhes concedeu a permissão para tomarem as medidas que quisessem para prevenir qualquer proce­ dimento com relação à ressurreição, tanto por parte do morto como dos vivos, respondendo com desdém: “Tendes a guarda; ide, guardai-o como entenderdes”. Eles assim o fizeram, selando a pedra e reforçando a guar­ da. Ai deles! Suas precauções não impediram nem a ressurreição nem a crença nela, mas apenas forneceram uma ilustração da falsidade daqueles que tentam controlar a providência e o curso da história do mundo. Deram a si mesmos muito trabalho, e tudo isso resultou em nada. Não que estejamos inclinados a negar a astúcia desses políticos eclesiásticos. Sua trama para impedir a ressurreição foi muito prudente, e seu modo

0 Pastor Ressuscitado

529

para explicá-la, mais tarde, foi até mesmo um tanto plausível. A história que criaram foi realmente uma invenção em que alguns acreditaram, e com certeza satisfaria a todos os que desejavam uma teoria decente para justificar uma conclusão prévia, como de fato parece ter acontecido; pois, de acordo com Mateus, ela foi relatada comumente nos anos seguintes15. Não era improvável que os soldados caíssem no sono durante a vigília da noite, em especial guardando um corpo morto, que provavelmente não lhes causaria nenhum problema; e aos olhos do mundo incrédulo, os seguidores do Nazareno eram capazes de usar qualquer meio para pro­ mover os seus propósitos. M as admitindo tudo isso, e ainda admitindo que os membros do sinédrio estavam certos em suas opiniões em relação ao caráter dos discípulos, a sua teoria do roubo é ridícula. Os discípulos, ainda que fossem capazes de tal roubo (o que de fato não eram), no que diz respeito aos seus escrúpulos de consciência, não estariam em um esta­ do de espírito para pensar nisso, ou de tentar fazê-lo. Não lhes restava nenhum ânimo para uma ação tão ousada. A tristeza era sentida como um peso de chumbo em seus corações, e os tornou tão inoperantes quanto o corpo que supostamente teriam roubado. Então o motivo para o roubo não poderia tê-los influenciado naquele momento. Rou­ bar o corpo para propagar a crença da ressurreição! Que interesse eles teriam em propagar uma crença que eles mesmos não nutriam? “Por­ que ainda não sabiam a Escritura, que diz que era necessário que res­ suscitasse dos mortos”16. Nem se lembraram absolutamente do que seu Mestre havia dito sobre isso antes de sua morte. Para alguns essa declaração posterior pareceu difícil de acreditar; e para superar a difi­ culdade, foi sugerido que as previsões de nosso Senhor com respeito à sua ressurreição poderiam não ter sido tão explícitas como aparecem nos Evangelhos, mas podem ter assumido essa forma explícita após o evento, quando seu significado já estava claramente entendido17. Não vemos nenhuma ocasião para tal suposição. Não pode haver dúvida de que Jesus tenha falado, no mínimo, de forma suficientemente clara sobre a sua morte; e mesmo assim os discípulos foram surpreendidos por sua morte e ressurreição18. H á uma explicação que é suficiente para ambos os casos. Os discípulos não eram homens inteligentes,

530

O Treinamento dos Doze

espertos e sentimentais tal como Renan os descreve. Eram pessoas comuns e lentas em raciocínio; eram muito honestos, mas pouco aptos para aceitar novas idéias. Eram como cavalos com anteolhos, e podiam ver apenas em uma direção —isto é, na direção de seus preconceitos. Era necessária a cirurgia dos eventos para inserir uma nova verdade em suas mentes. N ada mudaria a torrente de seus pensamentos exceto uma represa de fatos inegáveis. Eles só poderiam ser convencidos de que Cristo deveria morrer e ressuscitar voluntariamente, e de que seu Reino não seria deste mundo, pelo derramamento do Espírito no Pentecostes e por sua chamada e vocação de pregar aos gentios. Sejamos agradecidos pela tolice honesta desses homens. Isso dá grande valor a seu testemunho. Sabemos que nada além dos fatos poderia fazer tais homens acreditarem naquilo de que foram acusados, por alguns, de inventar. O uso apologético que temos feito das dúvidas dos discípulos com relação à ressurreição de Cristo não é apenas legítimo, mas é exatamente o que se pretendia ao serem registradas. Os evangelistas relataram cuida­ dosamente essas dúvidas, para que nós não tivéssemos nenhuma dúvida. Essas coisas foram escritas para que pudéssemos crer que Jesus realmen­ te ressuscitou dos mortos; pois os apóstolos deram suprema importân­ cia a esse fato, do qual haviam duvidado nos dias de seu discipulado. A ressurreição foi o alicerce de sua estrutura doutrinária, uma parte essen­ cial de seu evangelho. O apóstolo Paulo corretamente resumiu o evange­ lho pregado por si mesmo e pelos homens que haviam estado com Jesus, nestes três itens: "que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. Todos os onze concordaram inteiramente com o senti­ mento de Paulo, de que se Cristo não tivesse ressuscitado, a sua pregação seria vã, e a fé dos cristãos também seria vã. Não haveria absolutamente nenhum evangelho, a menos que aquele que morreu pelos pecados dos homens ressuscitasse para a sua justificação. Com esta convicção em suas mentes, eles constantemente davam testemunho da ressurreição de Jesus aonde quer que fossem. Este testemunho lhes parecia uma parte tão importante de seu trabalho, que quando Pedro propôs a eleição de al­ guém para preencher o lugar de Judas, destacou esta parte como uma

0 Pastor Ressuscitado

531

função característica do ofício apostólico. “Dos varões”, disse ele, “que conviveram conosco todo o tempo em que o Senhor Jesus entrou e saiu dentre nós... um deles se faça conosco testemunha da sua ressurreição”. E nosso grande dever nos solidarizarmos com este valor supremo ligado ao fato da ressurreição de Cristo na pregação apostólica. Incrédu­ los modernos, como alguns na igreja de Corinto, tentam nos persuadir de que não importa se Jesus ressuscitou ou não; tudo isso é valioso no cristianismo sendo inteiramente independente da mera verdade históri­ ca. Com estes praticamente concordaram muitos crentes habituados a uma vida espiritual elevada, que tratam fatos simplesmente sobrenatu­ rais com uma negligência desdenhosa, julgando que apenas as elevadas doutrinas da fé sejam dignas de sua consideração. Para as pessoas que têm esta índole, tais estudos como aqueles que têm nos ocupado neste capítulo parecem uma perda de tempo; e se dissessem como se sentem, ouviríamos: “Abandone essas ninharias, e nos dê o evangelho puro e simples”. Os cristãos inteligentes, sóbrios e desejosos diferem fofo coelo dessas duas classes de pessoas. N a opinião deles, o cristianismo é, em primeiro lugar, uma religião de fatos sobrenaturais. Esses fatos ocupam o lugar principal em seu credo. Eles sabem que se crerem honestamente, todas as grandes doutrinas da fé devem, cedo ou tarde, ser aceitas; e, por outro lado, compreendem claramente que uma religião que despreza, para não dizer que desacredita, esses fatos, não é senão uma utopia que deve logo ser dissipada, ou uma casa construída na areia cuja tempestade irá destruir. Portanto, enquanto reconhecem a importância de toda a verdade revelada, dão um destaque muito especial aos fatos revelados. Crendo de coração na preciosa verdade de que Cristo morreu por nossos pecados, estes se mostram cuidadosos ao pregar o evangelho, como os apóstolos, afirmando que o Senhor Jesus Cristo morreu, foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia19.

Seção II — Os Olhos dos D iscípulos São A bertos Marcos 16.14; Lucas 24.25-32, 44-46; João 20.20-23

Após a sua morte, Jesus mostrou-se vivo a seus discípulos em um corpo, pela primeira vez, na noite do dia de sua ressurreição. Foi a quar­ ta vez que Ele se tornou visível desde que havia ressuscitado dos mortos.

532

O Treinamento dos Doze

O Senhor havia aparecido naquela manhã primeiro a M aria Madalena. Ela havia recebido a honra que assim lhe fora conferida por sua preeminente devoção. De espírito semelhante a M aria de Betânia, ela havia sido a primeira dentre as mulheres que vieram ao túmulo de José de Arimatéia para embalsamar o corpo morto do Salvador. Encontrando a sepultura vazia, ela chorou amargamente, porque pensou que haviam levado o seu Senhor, e ela não sabia onde o haviam colocado. Aquelas lágrimas, sinal certo de amor verdadeiro e profundo, não passaram despercebidas pelo Senhor ressurrecto. As dores dessa alma fiel tocaram o terno coração do Senhor, e o trouxeram para junto dela para confortá-la. Voltando em aflição do sepulcro, ela o viu de pé, mas não o reconheceu. “Disse-lhe Jesus: Mulher, por que choras? Quem buscas? Ela, cuidando que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o levaste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. Disse-lhe Jesus: M aria!”20 Atônita por ouvir aquela voz tão familiar, ela olha com mais atenção, e imediatamente devolve a saudação benigna com uma expressiva palavra de reconhecimento: “Rabom!” Desse modo, “para lágrimas santas, nas horas solitárias, o Cristo ressurrecto sempre aparece.” A segunda aparição foi concedida a Pedro. Com respeito a este en­ contro particular entre Jesus e seu discípulo errante não temos nenhum detalhe: é simplesmente mencionado por Paulo em sua Epístola aos Coríntios e por Lucas em seu Evangelho; mas não podemos ter nenhu­ ma dúvida de seu objetivo. O Mestre ressurrecto lembrou-se do pecado de Pedro; Ele sabia como Pedro estava com sua mente perturbada por conta disso, e desejou sem demora avisá-lo de que estava perdoado; e em consideração atenciosa pelos sentimentos do ofensor, planejou encontrálo pela primeira vez depois de sua queda, sozinhos. No decorrer do dia Jesus apareceu, pela terceira vez, a dois irmãos que viajavam para Emaús. Lucas deu um maior destaque a essa terceira aparição do que a qualquer outra em sua narrativa, provavelmente por­ que esse tenha sido, para o evangelista, um dos casos que mais lhe tenha chamado a atenção após a ressurreição, ao selecionar as passagens que deveria inserir em seu Evangelho. E, na verdade, é impossível imaginar algo mais interessante do que essa linda história. Quão vivida é toda a situação dos discípulos trazida diante de nós pela figura de dois amigos

0 Pastor Ressuscitado

533

andando pelo caminho, e conversando juntos sobre as coisas que haviam acontecido, os sofrimentos de Jesus três dias atrás, e dos rumores que acabavam de chegar a seus ouvidos sobre a sua ressurreição; e enquanto conversavam, vibrando entre o desespero e a esperança, meditando des­ consoladamente na crucificação daquEle que até então consideravam ser o Redentor de Israel, e imaginando se seria possível que Ele pudesse ter ressuscitado! Por um artifício de amor ele assume a posição de um ho­ mem incógnito, e juntando-se à companhia dos dois homens pesarosos, lhes pergunta de forma indiferente qual era o assunto de que falavam tão triste e seriamente; e ao receber como resposta uma pergunta que expres­ sava surpresa por ele ignorar fatos que eram conhecidos até mesmo por estrangeiros em Jerusalém, novamente pergunta de forma seca e indife­ rente: “Quais” coisas?Tendo assim arrancado deles a história, o Senhor começa por sua vez a lhes mostrar que um leitor inteligente do Antigo Testamento não deveria ficar surpreso por tais coisas acontecerem àquEle a quem acreditavam ser o Cristo, aproveitando para expor-lhes “o que dele se achava em todas as Escrituras”, sem dizer que é de si mesmo que está falando. N a chegada dos viajantes ao vilarejo para onde os dois irmãos se dirigiam, o desconhecido assume o ar de um homem que pre­ tende seguir em frente, como um estranho que não imporia a sua com­ panhia não sendo convidado; mas ao receber um convite insistente, Ele aceita, e finalmente os dois irmãos descobrem, para sua alegria, quem estavam recebendo sem saber. A propósito, esta aparição de Jesus aos dois irmãos foi um tipo de prelúdio àquilo que fez na noite do mesmo dia em Jerusalém, aos onze, ou melhor, aos dez. Logo que descobriram quem haviam tido como convidado, Cleopas e seu companheiro partiram de Emaús para a C i­ dade Santa, ansiosos para contarem a seus amigos dali essas notícias sensacionais. E, eis que, enquanto eles estavam contando o que havia acontecido no caminho, e como Jesus se lhes tornou conhecido no partir do pão, o próprio Senhor Jesus apareceu entre eles, pronunciando uma gentil saudação: “Paz seja convosco!” Ele veio fazer pelos futuros apóstolos o que já havia feito pelos dois amigos: mostrar-se vivo a cada um deles após a sua morte, e abrir seus entendimentos para que pudes­ sem compreender as Escrituras, e verem que, de acordo com o que

534

O Treinamento dos Doze

havia sido escrito antes de Cristo, cabia a Ele sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia. Embora o modelo geral das duas aparições seja o mesmo, observa­ mos uma diferença na ordem dos procedimentos seguidos por Jesus. Em um caso ele abriu os olhos do entendimento em primeiro lugar e os olhos do corpo em segundo; no outro caso, Ele inverteu esta ordem. Em sua conversa com os dois irmãos, Ele primeiro lhes mostrou que a cruci­ ficação e a ressurreição estavam em perfeito acordo com as Escrituras do Antigo Testamento, e então, em conclusão, se fez visível aos seus olhos físicos como o Jesus ressuscitado. Em outras palavras, Ele primeiro lhes ensinou a verdadeira teoria escriturística da experiência terrena do M es­ sias, e então os satisfez com a questão de fato. Por outro lado, à noite, na reunião com os dez, Ele empregou primeiramente a questão de fato, e em seguida passou à teoria. Ele convenceu os seus discípulos de que havia realmente ressuscitado, mostrando-lhes suas mãos e seus pés, e ingerindo alimentos; e então continuou mostrando que esse fato era apenas o que eles deveriam ter esperado como o cumprimento das pro­ fecias do Antigo Testamento. Variando assim a ordem da revelação, Jesus estava apenas adequan­ do o seu procedimento às diferentes circunstâncias das pessoas com quem tinha de lidar. Os dois amigos que viajavam para Emaús não notaram nenhuma semelhança entre o estranho que se juntou a eles e seu amado Senhor, em quem vinham pensando e de quem vinham falando. “M as os olhos deles estavam como que fechados, para que o não conhecessem”21. A principal causa disso, cremos, era desviar o peso do coração. A dor os havia cegado. Eles estavam tão absortos em seus próprios e tristes pensa­ mentos, que não tinham nenhum interesse nas coisas exteriores. Não se deram ao trabalho de olhar quem estava com eles; não teria feito nenhu­ ma diferença se o estranho fosse seu próprio pai. E óbvio como os ho­ mens nesse estado de espírito devem ser tratados. Eles só podem receber a visão exterior após terem primeiramente os seus olhos interiores aber­ tos. A sua mente enferma deve ser curada, a fim de que possam olhar para o que está diante de si mesmos, e realmente enxergá-lo. Foi de acordo com esse princípio que Jesus procedeu com os dois irmãos. Ele se ajustou ao humor deles, e os conduziu do desespero à esperança, e

0 Pastor Ressuscitado

535

então os sentidos exteriores recobraram seu poder perceptivo, dizendolhes quem era o estranho. E como se a própria consciência tivesse lhes dito: “Vós ouvistes um rumor de que aquele que foi crucificado há três dias ressuscitou. Considerastes este rumor uma história incrível. Mas por que deveriam fazê-lo? Crestes que Jesus é o Cristo. Se Ele é o Cristo, a sua ressurreição também deve ser esperada tanto quanto a paixão, pois as duas coisas, semelhantemente, estão preditas nas Escrituras que vós crestes ser a Palavra de Deus”.Tendo esses dois pensamentos tomado as suas mentes, o coração dos dois irmãos começou a arder com o poder abrasador de uma nova verdade; a aurora da esperança rompe em seus espíritos; eles despertam de um sonho opressivo; olham para fora, e, vêem que o homem que vinha falando com eles é o próprio Senhor Jesus! Com os dez o caso foi diferente. Quando Jesus apareceu no meio deles, reconheceram imediatamente o semblante de seu falecido Mestre. Eles estavam ouvindo a história de Cleopas e seu companheiro, e esta­ vam em um estado de espírito mais observador. Mas não puderam acre­ ditar que o que tinham visto fosse realmente Jesus. Estavam aterroriza­ dos e apavorados, e supunham que tivessem visto um fantasma — o fantasma ou o espectro do Crucificado. A primeira coisa a ser feita nesse caso, portanto, era manifestadamente mitigar o medo despertado, e con­ vencer os discípulos aterrorizados de que o ser que havia aparecido de repente não era um fantasma, mas um homem: o mesmo homem que parecia ser o próprio Senhor Jesus. Até que tal aparição tivesse ocorrido, não poderia haver qualquer conversa proveitosa a respeito do ensino do Antigo Testamento sobre a questão da história terrena do Messias. Jesus falou de si mesmo como aquEle que cumpriu essa tarefa, e só depois disso começou a expor a verdadeira teoria messiânica. Algo semelhante à diferença que assinalamos na experiência dos dois e dos dez discípulos em relação à crença na ressurreição pode ser encon­ trado nas maneiras pelas quais diferentes cristãos agora são trazidos à fé. As evidências do cristianismo são comumente divididas em duas gran­ des categorias —a externa e a interna; uma tirada dos fatos históricos externos, a outra da adaptação do evangelho à natureza e às necessidades dos homens. Ambos os tipos de evidência são necessários para uma fé

53 6

0 Treinamento dos Doze

perfeita, como também ambos os tipos de visão, a interna e a externa, foram necessários para tornar os discípulos totalmente crentes em rela­ ção à ressurreição. Mas alguns começam com um tipo, e outros com o outro. Alguns são convencidos primeiro de que a história do evangelho é verdadeira, e então, talvez muito tempo depois, despertam para um sen­ tido da importância e preciosidade das coisas que se relacionam. Ou­ tros, novamente, são como Cleopas e seu companheiro; tão absortos em seus próprios pensamentos que são incapazes de apreciar ou enxergar os fatos, exigindo primeiro ter seus olhos do entendimento iluminados para verem a beleza e o valor da verdade como ela é em Jesus. Eles podem de uma vez ter um tipo de fé tradicional nos fatos, como suficientemente bem atestados. Mas, com tristeza, devem ter perdido essa fé. São céticos e se sentem tristes por serem assim, e sentem que as coisas iam melhor na vida deles quando, como os outros, criam. Contudo, embora tentem, não podem restaurar a sua fé pelo estudo de meras evidências externas. Eles lêem livros que tratam de tais evidências, mas não ficam muito impressionados com eles. Seus olhos estão presos, e não conhecem o Cristo que vem a eles daquela maneira externa. M as Ele se revela a cada um deles de outra maneira. Por um diálogo oculto com a alma deles, o Senhor transmite às suas mentes um poderoso senso da grandeza moral da fé cristã, fazendo-os sentir que, verdade ou não, tudo isso é, ao me­ nos, digno de ser verdade. Então seus corações começam a arder: eles espe­ ram que aquilo que é tão belo possa vir a ser objetivamente verdadeiro; a questão das evidências externas assume um novo interesse em suas men­ tes; eles investigam, lêem e contemplam; e, vejam, enxergam a Jesus res­ suscitado, uma verdadeira pessoa histórica para eles: levantando-se da sepultura da dúvida para ser para sempre o sol de suas almas, mais pre­ cioso que a perda temporária; e que vem... V estido em um traje m ais precioso, M ais tocante, digno e cheio de vida, D entro d a visão e perspectiva da alm a deles,

... como nunca dantes havia acontecido antes de duvidarem. Dessas observações na ordem das duas revelações feitas por Jesus aos seus discípulos —de si mesmo aos olhos físicos deles, e da doutrina

O Pastor Ressuscitado

537

escriturística do Messias aos olhos do intelecto deles —passamos a con­ siderar a pergunta: O que a segunda revelação significa? Qual foi o efeito preciso daquelas exposições das Escrituras com a qual o Cristo ressurrecto favoreceu os seus ouvintes? Os discípulos extraíram daí uma quantidade de luz para suplantar a necessidade de qualquer iluminação posterior? O próprio Senhor Jesus fez a obra do Espírito da verdade, cujo advento Ele havia prometido antes de sofrer, e os conduziu em toda a verdade? Cer­ tamente que não. A abertura do entendimento que ocorreu nesse mo­ mento, não significou, de maneira alguma, um esclarecimento total da doutrina cristã. Os discípulos ainda não compreendiam as bases morais dos sofrimentos e da ressurreição de Cristo. Eles não sabiam por que o Senhor passou por essas experiências; palavras como dever ou estar in­ cumbido não significavam para eles, por hora, nada mais que algo que estivesse de acordo com as profecias do Antigo Testamento, corretamen­ te entendidas; que as coisas que haviam acontecido poderiam e deveriam ter sido antecipadas. Eles estavam no mesmo estado de espírito dos cris­ tãos judeus, a quem a Epístola aos Hebreus foi dirigida. Tiveram mais tarde que perseguir o>conteúdo daqueles escritos profundos. Esses cris­ tãos estavam mal fundamentados na verdade do evangelho: não enxerga­ ram a glória da dispensação do evangelho, nem a sua harmonia com o que havia se passado anteriormente, sob a qual haviam sido educados. Em particular, a dignidade divina d© Autor da fé cristã lhes parecia in­ compatível com a sua humilhação terrena. Assim, o escritor da epístola se pôs a provar que a divindade, a humilhação temporária e a subseqüen­ te glorificação de Cristo foram todas ensinadas nas Escrituras do Antigo Testamento, citando-as generosamente para este propósito nos primei­ ros capítulos de sua epístola. Ele fez, na verdade, por suas exposições escritas a seus leitores, o que Jesus fez por sua exposição oral a seus ouvintes. E o que devemos dizer sobre o efeito imediato do argumento do escritor na mente daqueles que atenciosamente o procuraram? Imagi­ namos que o crente imaturo, ao deixar o livro seria constrangido a admi­ tir: “Bem, ele está certo: todas essas coisas estão escritas a respeito do Messias; e, portanto, nenhuma delas, nem mesmo a humilhação e o so­ frimento nos quais eu tropeço, podem ser uma razão para rejeitar a Jesus como o Cristo”. Um resultado muito importante, contudo muito ele­

53 8

0 Treinamento dos Doze

mentar. Que distância há da simples admissão de que a vida de Jesus correspondeu à vida ideal do Messias como retratado no Antigo Testa­ mento, a admirável, entusiástica, e totalmente inteligente apreciação da verdade do evangelho mostrada pelo próprio escritor em cada página de sua epístola! Não menor foi a distância entre o estado de espírito dos discípulos depois que Jesus lhes expôs as coisas que foram faladas a respeito de si mesmo na lei, nos profetas e nos salmos, e o estado de iluminação que eles atingiram como apóstolos após o advento do Consolador. Agora eles conheciam meramente o alfabeto da doutrina de Cristo; então che­ garam à perfeição, e foram totalmente iniciados nos mistérios do evan­ gelho. Agora um simples raio de luz foi lançado em suas mentes sombrias; depois, o dia claro da verdade derramou a sua abundância sobre suas almas. Ou podemos expressar a diferença de acordo com os termos su­ geridos pela narrativa dada por João dos eventos relacionados à pri­ meira aparição do Jesus ressurrecto aos seus discípulos. João relata que em uma etapa dos procedimentos, Jesus soprou sobre os discípulos, e lhes disse: “Recebei o Espírito Santo”. Não devemos entender que nesse momento e nessa situação tenham recebido o Espírito na plenitude pro­ metida. O sopro foi antes um sinal e penhor daquilo que estava por vir. Era uma renovação emblemática da promessa, e a primeira parcela de seu cumprimento. Era apenas uma pequena nuvem como a mão de um ho­ mem que pressagiava uma chuva copiosa, ou o primeiro sopro de vento que antecede o poderoso vendaval. Agora eles têm o pequeno sopro da influência do Espírito, mas não até que sintam o vento impetuoso do Pentecostes.Tão grande é a diferença entre agora e antes, entre a ilumi­ nação espiritual dos discípulos na primeira noite do sábado cristão e nos dias posteriores. Este ainda era o dia das pequenas coisas para os discípulos. As pe­ quenas coisas, porém, não deveriam ser desprezadas; nem foram. Não somos realmente informados sobre o valor que os dez atribuíram à luz que receberam, mas seguramente podemos presumir que seus sentimen­ tos eram muitos semelhantes aos dos dois irmãos que viajavam para Emaús. Conversando sobre as palavras de Jesus depois de sua partida, disseram um ao outro: “Porventura, não ardia em nós o nosso coração

0 Pastor Ressuscitado

539

quando, pelo caminho, nos falava e quando nos abria as Escrituras?” A luz que receberam pode ter sido pequena, mas era uma nova luz, e tinha todo o poder que queima o coração e arrebata o pensamento em relação à nova verdade. Aquele diálogo na estrada trouxe uma crise à sua história espiritual. Foi o dia do raiar do evangelho; foi a pequena centelha que acendeu uma grande fogueira; depositou em suas mentes um pensamen­ to que formaria a semente ou o centro do novo sistema de crença; remo­ veu o véu que estava sobre os seus rostos quando liam o Antigo Testa­ mento, e foi assim o primeiro passo em um processo que colocaria em seu olhar uma face reveladora, como em um espelho, a glória do Senhor, e em seu ser mudado na mesma imagem, de glória em glória, pelo Se­ nhor, o Espírito. Feliz é o homem que tem, neste momento, o mesmo que esses dois discípulos/ Alguma alma desconsolada pode dizer: “Queria que essa felicidade fosse minha!” Para o conforto de algum irmão tão infeliz, observemos as circunstâncias em que essa nova luz surgiu para os discípulos. Seus cora­ ções foram incendiados quando haviam se tornado muito secos e murchos: desesperançados, doentes e cansados da vida, pela dor e pelo desa­ pontamento. E sempre assim: o combustível deve estar seco para que a faísca possa funcionar. Assim, foi quando o povo de Israel reclamou: “Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; nós estamos corta­ dos”, que veio a palavra: “Eis que eu abrirei as vossas sepulturas, e vos farei sair das vossas sepulturas, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel”. O mesmo ocorreu com esses discípulos de Jesus. Foi quando cada partícula da gota de esperança se tornou totalmente pálida para cada um deles —e a sua fé foi reduzida a isso: “Esperávamos que fosse ele o que remisse Israel” —que seus corações foram inflamados pelo poder abrasador da nova ver­ dade. Assim foi em muitos momentos desde então. O fogo da esperança foi aceso no coração, para nunca mais ser apagado, exatamente no momen­ to em que os homens estavam entrando em desespero; a fé foi reavivada quando um homem pareceu a si mesmo ser infiel; a luz da verdade surgiu para as mentes que haviam deixado de procurar pelo amanhecer; o confor­ to da salvação retornou às almas que haviam começado a pensar que a misericórdia de Deus havia desaparecido para sempre. “Quando, porém, vier o Filho do Homem, porventura, achará fé na terra?”

540

O Treinamento dos Doze

Não há nada estranho nisso. A verdade é que o coração precisa ser seco pelas provações antes de poder ser queimado. Até que a tristeza venha, os corações humanos não se incendeiam com o fogo divino; há neles muito da seiva deste mundo. Foi isso que tornou os discípulos tão lentos de coração para crerem em tudo o que os profetas haviam dito. Sua ambição mundana os impediu de aprenderem a espiritualidade do Reino de Deus, e o orgulho os tornou cegos para a glória da cruz. Por isso Jesus os censurou justamente por sua incredulidade e insensatez. Se os seus corações fossem puros, eles poderiam ter sabido com antecedên­ cia o que iria acontecer. De fato, eles não compreenderam nada até que a morte do Senhor frustrou sua esperança e destruiu sua ambição, e a amarga tristeza os preparou para receber a instrução espiritual.

Seção III - A D úvida de Tomé João 20.24-29

“Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quan­ do veio Jesus”, naquela primeira noite de sábado cristão, e se mostrou aos seus discípulos. Espera-se que ele tenha tido um bom motivo para a sua ausência; mas é ao menos possível que não tivesse. Em seu estado de espírito melancólico Tomé pode simplesmente ter se entregado à luxúria da tristeza solitária, assim como alguns, cujo Cristo está morto, passam o sábado em casa ou em retiros rurais, fugindo da alegria ofensiva ou do tédio sonolento da adoração social. Seja como for, qualquer que seja o caso, ele perdeu um bom sermão; o único, que saibamos, durante todo o período do ministério de nosso Senhor, no qual Ele se apresentou for­ malmente à tarefa de expor a doutrina messiânica do Antigo Testamen­ to. Oh, se ele soubesse que tal discurso seria proferido naquela noite! Mas nunca se sabe quando as coisas boas virão, e a única maneira de ter certeza de as conseguir é estar sempre em seu posto. O mesmo humor melancólico que provavelmente fez com que Tomé estivesse: ausente durante a ocasião da primeira reunião de Cristo com seus discípulos depois que Ele ressuscitou dos mortos, o tornou cético acima de todos os demais tópicos relacionados às notícias da ressurrei­ ção. Quando os outros discípulos, em seu retorno, disseram-lhe que haviam acabado de ver Jesus, ele respondeu com veemência: “Se eu não

O Pastor Ressuscitado

541

vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei”22. Ele não ficaria satisfeito com o testemunho de seus irmãos: deveria ter, para si, uma evidência palpável. Não que duvidasse de sua veracidade; mas não conseguia se livrar da desconfiança de que o que eles disseram ter visto não passava de uma aparição fantasmagórica que enganara os seus olhos. O ceticismo de Tomé foi, pensamos, principalmente uma questão de temperamento, e teve pouco em comum com a dúvida de homens de tendência racionalista, que são inveteradamente incrédulos com respeito ao sobrenatural, e que se escandalizam com tudo o que lembre algo miraculoso. E comum chamar Tomé de “O Racionalista” entre os doze, e alguns até mesmo supõem que ele tenha pertencido à seita dos saduceus antes de se unir ao grupo de Jesus. Em uma reflexão sensata, somos obrigados a dizer que vemos pouco fundamento para tal opinião sobre o caráter do discípulo, enquanto certamente não invejamos os duvidosos modernos por nenhum conforto que possa se originar disso. Estamos bem cientes de que entre os sinceros, e mesmo entre aqueles que têm uma mente espiritual, existem homens cujas mentes estão tão formadas que consideram muito difícil crer em algo sobrenatural e miraculoso: tão difícil que, se estivessem no lugar de Tomé, um livre manuseio e a mais diminuta inspeção das feridas no corpo do Salvador ressurrecto teriam suscitado neles uma expressão de fé não hesitante na realidade de sua ressurreição. Também não vemos nenhuma razão a priori para afirmar que nenhum discípulo de Jesus poderia ter sido alguém com tal tipo de pensamento. Tudo o que dizemos é que não há nenhuma evidência de que Tomé, na verdade, fosse um homem dessa índole. Em nenhuma pas­ sagem na história do evangelho descobrimos qualquer despreparo de sua parte para crer no sobrenatural ou no miraculoso como tal Não encontra­ mos, por exemplo, que fora cético sobre a ressurreição de Lázaro: somos apenas informados que, quando Jesus se propôs a visitar a família aflita em Betânia, ele considerou a viagem repleta de perigos para o seu amado Mestre e para todos os discípulos, e disse: “Vamos nós também, para morrermos com ele”. Então, como agora, ele não se mostrou tão racionalista quanto o homem de temperamento melancólico, propenso

542

0 Treinamento dos Doze

a olhar o lado sombrio das coisas, vivendo no triste luar ao invés de no alegre raio de sol. Sua dúvida não provinha de seu sistema de pensamen­ to, mas do estado de seus sentimentos. Devemos dizer aqui uma outra coisa sobre a dúvida desse discípulo. Ela não procedia de uma indisposição ou de uma má vontade para crer. Era a dúvida de um homem triste, cuja tristeza devia-se à falta de certeza sobre um evento do qual posteriormente teria a maior e mais feliz garantia. Nada poderia dar a Tomé mais prazer do que receber a certeza de que seu Mestre havia realmente ressuscitado. Isso fica evidente pela alegria que ele manifestou quando finalmente foi convencido —“Senhor meu, e Deus meu!” —e que não é a exclamação de alguém que é forçado relutan­ temente a admitir um fato que preferiria negar. E comum para homens que nunca tiveram qualquer dúvida em si mesmos investigar toda dúvida por motivos errados e denunciá-la de modo indiscriminado como um crime. Agora, inquestionavelmente, muitos duvidam pelos motivos erra­ dos, porque não desejam e não se permitem crer. M uitos negam a ressur­ reição dos mortos, porque isso seria, para eles, a ressurreição para a ver­ gonha e desonra eterna. Mas isso não é verdade, de forma alguma. Al­ guns duvidam daqueles que desejam crer; e não somente isso, sua dúvida se deve à sua ansiedade para crer. Eles se mostram tão ansiosos para conhecer a verdade, e sentem tão intensamente a imensa importância dos interesses que estão em jogo, que não podem pensar que as coisas estão garantidas, e por um tempo suas mãos tremem tanto que não con­ seguem agarrar com firmeza os grandes objetos da fé —um Deus vivo; um Salvador encarnado, crucificado, morto e ressuscitado; um futuro glorioso e eterno. Deles é a dúvida peculiar a homens sinceros, atencio­ sos e de coração puro, distantes como os pólos separados da dúvida do frívolo, mundano e mau: uma dúvida santa e nobre, não uma dúvida mesquinha e ímpia; se não para ser louvada como positivamente louvá­ vel, ainda menos para ser duramente condenada e excluída do seio da solidariedade cristã —uma dúvida que na pior hipótese é apenas uma fraqueza, e que sempre resulta em uma fé forte e firme. Inferimos que Jesus considerava a dúvida dos tristes discípulos como sendo desse tipo, a partir de sua maneira de lidar com ela. Como Tomé estava ausente na ocasião da primeira aparição do Senhor ressurrecto aos

O Pastor Ressuscitado

543

discípulos, Ele faz uma segunda aparição especial em benefício do discí­ pulo ausente, e lhe oferece a prova desejada. Ao concluir a saudação introdutória, Ele se volta imediatamente ao duvidoso, e se dirige a ele em termos que tinham a finalidade de lembrar-lhe de sua própria declaração a seu irmão, dizendo: “Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; chega a tua mão e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente”. Pode ter havido aqui um pouco de repreensão, mas há muito mais uma solida­ riedade de muita consideração. Jesus fala como a um discípulo sincero, cuja fé é fraca, não como a alguém que tem um coração mau e incrédulo. Quando as exigências por evidências foram feitas por homens que mera­ mente queriam uma desculpa para a incredulidade, Ele os atendeu de uma maneira muito diferente. “Uma geração má e adúltera”, Ele estava habituado a dizer em tais circunstâncias, “pede um sinal, e nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal do profeta Jonas”. Tendo averiguado o caráter da dúvida de Tomé, consideremos agora a sua fé. As dúvidas do discípulo melancólico foram logo removidas. Mas como? Tomé se aproveitou das facilidades oferecidas para a verificação da realidade da ressurreição de seu Senhor? Ele colocou realmente seus dedos e sua mão nas feridas dos cravos e da lança? As opiniões divergem neste ponto, mas pensamos que a maior probabilidade esteja ao lado daqueles que mantêm a negativa. Vários pontos nos conduzem nessa direção. Primeiro, a narrativa parece não deixar espaço para o processo de investigação. Tomé responde à proposta de Jesus com o que parece ser uma imediata profissão de fé. Então a forma como esta profissão é feita não é aquela que deveríamos esperar, onde se assumisse o resultado de uma investigação deliberada. “Senhor meu, e Deus meu!” é a linguagem calorosa e afetiva de um homem que sofreu alguma mudança repentina de sentimentos, e não de alguém que acabou de concluir uma experiên­ cia científica. Além disso, observamos que não há alusão a tal processo na declaração feita por Jesus com respeito à fé de Tomé. O discípulo é representado como crendo porque viu as feridas mostradas, não porque as tenha tocado. Por fim, a idéia do processo proposto como tendo realmente ocorrido é incoerente com o caráter do homem para o qual a proposta foi feita. Tomé não era um homem frio e calculista, que conduz

544

0 Treinamento dos Doze

a investigação sobre a verdade com a imparcialidade fria de um juiz, e que teria examinado as feridas no corpo do Salvador ressurrecto com toda a frieza com que os anatomistas dissecam cadáveres. Ele era um homem de temperamento exaltado e poético, veemente tanto na crença como na incredulidade, e passava da fé para a dúvida pelos sentimentos de seu coração e não pelos raciocínios de seu intelecto. Imaginamos que a verdade sobre Tomé fosse algo assim. Quando, oito dias antes, ele fez aquela declaração aos seus irmãos discípulos, não queria deliberadamente dizer tudo o que disse. Era a declaração excên­ trica de um homem melancólico, que estava em um estado de espírito tão desolado e infeliz quanto possível. “Jesus ressurrecto! Isso é impos­ sível, porém é algo que tem uma importante finalidade. Eu não acredita­ rei até que faça isso e aquilo. Não sei se acreditarei depois que tiver feito tudo.” M as oito dias haviam se passado e, vejam só, Jesus está no meio deles, visível ao discípulo que estava ausente na primeira ocasião bem como para os demais. Tomé ainda insistirá em aplicar seu rigoroso teste? Não, não! As suas dúvidas se dissiparam assim que ele viu Jesus, como a névoa da manhã ao nascer do sol. Mesmo antes de o Senhor ressurrecto colocar as suas feridas à mostra e pronunciar aquelas palavras um tanto reprováveis, ainda que gentis e solidárias, que evidenciam um conheci­ mento íntimo de tudo o que estava se passando pela mente duvidosa de seus discípulos, Tomé se torna um crente; e após ter visto as desagradá­ veis feridas e ouvido as palavras generosas, está envergonhado de suas palavras precipitadas e imprudentes a seus irmãos, e, tomado de alegria e de lágrimas, exclama: “Senhor meu, e Deus meu!” Foi uma nobre confissão de fé —a mais avançada, na verdade, já feita por qualquer um dos doze durante o tempo em que estiveram com Jesus. O último é o primeiro; o mais duvidoso atinge a crença mais firme e completa. Assim aconteceu com freqüência na história da igreja. Baxter registra, como sua experiência, que nada é tão firmemente crido como aquilo de que já se teve dúvidas. Muitos Tomés têm dito, ou poderiam dizer o mesmo de si próprios. Os duvidosos no final se tornaram os crentes mais firmes e até mesmo os mais fervorosos. A dúvida em si é algo frio, e, como no caso de Tomé, sempre declara palavras duras e insensíveis. Porém isso não deve nos surpreender; porque quando a mente

0 Pastor Ressuscitado

545

está em dúvida a alma está na escuridão, e durante a noite fria o coração se torna congelado. Mas quando a luz do dia da fé chega, o gelo se derrete, e os corações que uma vez pareceram duros e empedernidos se mostram capazes de um entusiasmo generoso e de fervorosa devoção. Os socinianos, cujo sistema é derrubado por completo pela confis­ são de Tomé naturalmente interpretada, nos dizem que as palavras “Se­ nhor meu, e Deus meu” não se referem de maneira alguma a Jesus, mas à Divindade no céu. Julgam que elas sejam meramente uma expressão de surpresa da parte do discípulo, ao descobrir que aquilo de que ele duvi­ dara viria de fato a ocorrer. Os socinianos dizem que Tomé levanta os seus olhos e as suas mãos aos céus, e exclama: Senhor meu, e Deus meu!, de fato o Jesus crucificado é restaurado à vida outra vez. Essa interpreta­ ção é totalmente insensata. Desconsidera a declaração do texto, de que Tomé, ao pronunciar essas palavras-, estava respondendo e falando com Jesus, e procura fazer com que um homem explodindo de emoção fale friamente; pois enquanto uma única expressão como “Deus meu” pode­ ria ter sido uma declaração apropriada de espanto, as duas frases, “Se­ nhor meu, e Deus meu” seriam, para este propósito, fracas e superficiais. Não temos aqui,, portanto, nenhuma mera expressão de surpresa, mas uma profissão de fé muito apropriada para o homem e as circuns­ tâncias; tão fecunda em significado quanto vigorosa e impetuosa. Tomé declara imediatamente a sua aceitação de um fato miraculoso, e a sua crença em uma importante doutrina. Na primeira parte de suas palavras a Jesus, ele reconhece que aquEle que esteve morto está vivo: M eu Se­ nhor, meu amado Mestre! E Ele mesmo —a mesma pessoa com quem desfrutamos uma comunhão tão abençoada antes que Ele fosse crucifi­ cado. N a segunda parte de suas palavras, ele reconhece a divindade de Cristo, se não pela primeira vez, ao menos com: uma inteligência e uma ênfase totalmente novas. Do fato ele passa à doutrina: M eu Senhor ressurrecto, sim, e portanto meu Deus; porque Ele é Divino, aquEle sobre quem a morte não tem nenhum poder. E a doutrina, por sua vez, ajuda a dar à ressurreição uma certeza adicional; porque uma vez que Cristo é Deus, a morte não poderia ter qualquer poder sobre Ele; logo, a sua ressurreição foi natural. Tomé, tendo alcançado a afirmação sublime, “Deus meu”, fez a transição da plataforma baixa da fé na qual. permane­

546

0 Treinamento dos Doze

ceu quando exigiu evidências sensatas, para uma mais alta, na qual sentiu que tais evidências eram superficiais. Devemos agora notar, em último lugar, a observação feita pelo Se­ nhor com respeito à fé que o seu discípulo acabou de professar. “Disselhe Jesus: Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram!”. Esta reflexão sobre a bênção daqueles que crêem sem ver, embora expressa no tempo passado, realmente também dizia respeito ao futuro. O caso suposto por Jesus deveria ser o caso de todos os crentes depois da era apostólica. Desde então ninguém viu, e ninguém pode crer por ter visto, como os apóstolos viram. Eles viram, para que pudéssemos ser capazes de crer sem ver, através de nossa fé em seu testemunho. M as o que Jesus quer dizer ao pronunciar uma bem-aventurança a favor daqueles que não vêem, e mesmo assim crêem? O Senhor não está elogiando aqueles que crêem sem qualquer in­ vestigação. Uma coisa é crer sem ver, outra coisa é crer sem considerar. Crer sem ver é ser capaz de ficar satisfeito com algo menor que uma demonstração absoluta, ou ter uma iluminação interior que, até certo ponto, faz com que não dependamos de evidências externas. Tal faculda­ de da fé é muito necessária; porque se a fé fosse possível apenas para aqueles que vêem, a crença no cristianismo não poderia ter se estendido além da era apostólica. Mas crer sem investigar ou considerar é um as­ sunto totalmente diferente. E simplesmente não se importar se aquilo em que se está crendo é verdadeiro ou falso. Não há nenhum mérito em se fazer isso. Tal fé tem a sua origem naquilo que é básico nos homens — em sua ignorância, preguiça e indiferença espiritual; e não pode trazer nenhuma bênção a seus possuidores. Mesmo supondo que aquilo em que a pessoa está crendo são verdades tão elevadas, santas e abençoadas, que bem tal fé pode fazer a quem as recebe naturalmente sem investiga­ ção, ou até mesmo sem conhecer muito sobre aquilo que essas verdades de fato significam? O Senhor Jesus, então, não outorga aqui uma bênção à credulidade. Tampouco pretende dizer que toda a felicidade é derramada sobre aque­ les que jamais duvidaram como Tomé. O fato não é este. Aqueles que crêem com facilidade certamente desfrutam de uma bênção toda pró­

0 Pastor Ressuscitado

547

pria. Escapam do tormento da incerteza, e a corrente de sua vida espiri­ tual flui com grande suavidade. Mas aqueles que duvidaram, e agora finalmente crêem, também têm a sua alegria peculiar, na qual nenhum estranho pode interferir. Deles é a alegria experimentada quando o que estava morto está vivo novamente, e quando o que estava perdido é en­ contrado. Deles é o êxtase de Tomé quando exclamou, com referência a um Salvador que se pensava ter desaparecido para sempre: “Senhor meu, e Deus meu!”. Deles é a bem-aventurança do homem que, tendo mergu­ lhado em um mar profundo, traz uma pérola muito valiosa. Deles é o conforto de terem suas dúvidas do passado tornadas disponíveis para o avanço de sua fé, cada dúvida tornando-se uma pedra no alicerce não aparente sobre o qual a superestrutura de seu credo está construída. As perturbações da fé são convertidas em confirmações —da mesma manei­ ra que as perturbações nos movimentos planetários a princípio tiveram supostamente a função de lançar dúvidas sobre a teoria da gravitação de Newton —e foram convertidas, por mais investigações e pesquisas, na prova mais forte de sua veracidade. O que, então, o Senhor Jesus quer dizer com essas palavras? Sim­ plesmente isto: Ele deseja que aqueles que devem crer sem ver, entendam que não têm motivos para invejar aqueles que tiveram uma oportunidade de ver e que só creram após isso. Nós, que vivemos tanto tempo após os acontecimentos registrados na Palavra de Deus, somos muito propensos a imaginar que estamos em uma grande desvantagem quando compara­ dos aos discípulos de Jesus. E, de certa forma, realmente estamos em desvantagem, e a fé é muitas vezes algo mais difícil para nós do que foi para eles. M as então não devemos nos esquecer de que, à medida que se torna mais difícil alcançar a fé, ela se torna mais louvável e preciosa ao coração. Sermos capazes de crer sem ver é uma realização mais elevada do que a de alguém que foi capaz de crer por ter visto; e se essa realiza­ ção exige um esforço, a prova da fé apenas aumenta o seu valor. Deve­ mos nos lembrar, além disso, de que jam ais alcançamos a plenitude da bênção da fé até que aquilo em que cremos brilhe à luz de sua pró­ pria auto-evidência. Você pensa que os discípulos eram felizes por terem visto o seu Senhor ressuscitado e crido? Eles se sentiram muito mais felizes quando tiveram uma inspiração muito clara sobre todo o mistério

548

0 Treinamento dos Doze

da redenção; e assim a prova deste ou daquele fato ou doutrina específica foi considerada desnecessária. Jesus desejou que o seu discípulo duvidoso aspirasse a esta felicida­ de; e contrastando o seu caso com o daqueles que crêem sem ver, Ele nos faz saber que esta é uma bênção que nós também podemos receber. Tam­ bém podemos alcançar a bênção de ter uma fé elevada acima de toda a dúvida por sua própria e clara inspiração em relação à verdade divina. Se formos fiéis, poderemos nos elevar a este nível a partir das coisas humil­ des. Podemos começar, em nossas fraquezas, sendo Tomés, agarrandonos ansiosamente a cada discussão das evidências externas para nos sal­ var do afogamento, e terminarmos com uma fé quase palpável, regozi­ jando-nos no Senhor Jesus Cristo como o nosso Senhor e Deus, com uma alegria indizível e cheia de glória.

1 Salmo 137. A experiência dos exilados e a dos apóstolos relembra os escritos do poeta grego Eurípedes: pollai morphai tõn daimoniõn polia d’ aelptos krainousi theoi kai ta dokêthent}ouk etelesthê tõn d’ adokêtõn poron heure theos

2 Mateus 28.17 3 Marcos 16. I I 4 Marcos 16.13 5 Marcos 16.14 6 Lucas 24.11 7 Lucas 24.16 â Lucas 24.36, 37 9 João 20.20 10 João 20.2 11 João 20.28 12 Lucas 24.41 13 Lucas 24.32 14 A história é contada por Plutarco em sua obra Paralkla (Nikias), além de ser citada e comentada por Gillies, History o f Greece, cap. 20. 15 Mateus 28.15 16 João 20.9 17 Veja Neander, Life o f Jesus. 18 Colam (Jésus Christ et les Croyances messianiques de son Temps, 2ième ed. p. 164) tenta enfraquecer a força desse argumento pela observação de que a morte de Jesus, sendo um evento indesejável, era algo de que os discípulos não desejavam se lembrar ou crer, pois envolvia a ruína de suas esperanças messiânicas; ao passo que a ressurreição, sendo um evento alegre, teria sido crida e recebida com alegria caso tivesse realmente sido predita. Esse autor se esquece de que a ressurreição implicava na morte como seu antecedente, e que, se crida, teria feito com que a morte fosse vista sob um enfoque totalmente diferente; também se esquece de que, se isso tivesse falhado, o mesmo

0 Pastor Ressuscitado

549

destino da morte teria sido compartilhado com antecedência, isto é, ser desconsiderado; e depois, mais tarde, pareceria uma “notícia boa demais para ser verdade”. 19 Baur, negando, ou tacitamente ignorando o fato da ressurreição, admite que a crença nela pelos apóstolos era a pré-suposição necessária a todo o desenvolvimento histórico do cristianismo. Ele não tenta explicar como essa crença surgiu em suas mentes, e declara que ela é inexplicável através da análise psicológica ( vide Kirchen geschicbte der Drei Erstein Jahrhunderte, 3te Ausg., p. 40). A opinião de Keim é peculiar. Mesmo defendendo com Baur e Strauss a impossibilidade de uma ressurreição no sentido comum, ele difere de Strauss com relação às aparições de Jesus depois de sua morte como algo mais que alucinações, como ocorrências objetivas, comunicações “telegráficas” do mundo dos espíritos para avisar aos desanimados discípulos que tudo estava bem (Jesu von Nazara, Band 3. p 605). Esta hipótese, que parece ter sido sugerida pelo fenômeno do espiritualismo moderno, acrescenta um quarto tópico à lista de tentativas naturalistas para dispor do grande fato cardinal considerado neste capítulo —a Ressurreição. Para conhecimento do leitor, expomos esta lista espúria: 1. Jesus nunca esteve morto: a ressurreição foi meramente uma reanimação após um desmaio. 2. O corpo morto foi roubado, e circulou a mentira de que Jesus havia ressuscitado. 3. Os discípulos honestamente criam que Jesus havia ressuscitado, mas a sua crença era pura alucinação criada por uma mente fértil. 4. Após a sua morte, Jesus fez comunicações espiritualistas aos seus discípulos, o que naturalmente levou à crença de que Ele havia ressuscitado. 20 João 20.15,16 21 Lucas 24.16 22 Versículo 25

29 Os Co-pastores sao Advertidos Seçao 1 - Dever Pastoral João 2 1 . 1 5 - 1 7

VV

ou pescar , afirmou Simão a seus companheiros, pouco tempo depois de retornar de Jerusalém, nas proximidades do lago galileu; “tam­ bém nós vamos contigo”, responderam Tomé, Natanael, Tiago, João e outros dois anônimos, formando com Pedro sete homens, provavelmen­ te todos, dentre os onze, que eram pescadores por profissão. Todos em­ barcaram nessa expedição com amor. Presumimos que essa tenha sido uma expedição com o intuito de buscar comida, porém havia algo mais. Era uma volta aos seus antigos e amados modos de vida, cercado de cenas familiares, que traziam adoráveis lembranças de tempos passados. Era uma recreação e um consolo, mais do que bem-vindos e necessários aos homens que haviam passado por momentos de dor e experiências intensas; um feriado para homens fatigados pela mágoa, surpresa, e vigí­ lia. Todo estudioso com a mente sobrecarregada, todo artesão com ten­ dões fatigados, poderia entender o abandono que aqueles sete discípulos estavam sentindo em seus barcos, navegando no mar de Tiberíades, e desempenhando sua antiga função. Quais eram os pensamentos daqueles homens fora da água naquela noite? A partir da significativa alusão feita por a Jesus à juventude de Pedro durante uma conversa na manhã seguinte, inferimos que fossem os seguintes: “Após tudo isso, não seria melhor sermos simples pescado­ res do que apóstolos da religião cristã? O que conseguimos por seguir a Jesus? Certamente não o que esperávamos. E temos alguma razão para esperar algo melhor no futuro? Nosso Mestre nos disse que o nosso

552

0 Treinamento dos Doze

futuro seria parecido com o dEle —uma vida de tristezas, terminando provavelmente no martírio. Porém aqui, em nossa província da Galiléia, perseguindo o nosso antigo chamado, podemos pensar, acreditar e agir como nos agrada, guardados, pela obscuridade, de todos os perigos. E então quão deleitável, livre e independente será esta vida rústica às mar­ gens do lago! Em dias passados, antes que deixássemos nossas redes e seguíssemos a Jesus, nos vestíamos com nossos casacos de pescadores e andávamos por onde queríamos. Ao nos tornarmos apóstolos, perdería­ mos essa liberdade. Carregaríamos uma pesada carga de responsabilida­ des; estaríamos obrigados, continuamente, a pensar nos outros e não agradar a nós mesmos; sujeitos a termos a nossa liberdade pessoal, e até a nossa vida, tiradas de nós”. Ao colocar tais palavras na boca dos discípulos, não violamos a probabilidade; os sentimentos que essas palavras expressam são naturais e comuns em vista da séria responsabilidade e dos perigos a que poderiam estar expostos. Talvez jamais ninguém tenha tomado essa árdua iniciativa, sem ao menos saborear um pequeno momento de relembranças. Esta é uma debilidade que facilmente persegue a natureza humana. Contudo, apesar de ser natural, não é sábio para os homens olhar para o passado.Tristes pensamentos do passado são, em sua maior parte, enganosos; pelo menos no caso dos discípulos, eles o foram. Se a vida simples que tinham deixado para trás os fazia tão felizes, por que a abandonaram? Por que abruptamente abandonaram suas redes e seus barcos e seguiram a Jesus? Ah! Pescar nas águas claras do mar da Galiléia não satisfaz o homem completamente. A vida é mais que os alimentos, e o Reino de Deus é o principal objetivo do homem. Além disso, a vida do pescador tem suas inconveniências e, com o passar dos anos, não é tão romântica quanto parece. Um pescador pode, às vezes, sair com suas redes e trabalhar arduamente durante toda a noite, e não pescar sequer um peixe. Isso foi o que de fato aconteceu na presente ocasião. “E naquela noite nada apanharam”1. A circunstância provavelmente ajudou a que­ brar a fórmula mágica do romance, e a despertar os sete discípulos de um sonho apaixonado. E quando isso aconteceu, houve Alguém que conhecia seus pensamentos, e que viu que não saciaram a luxúria do

Os Co-pastores S3o Advertidos

553

sentimento reacionário. “E, sendo já manhã, Jesus se apresentou na praia”2. Ele veio para mostrar-se, pela terceira vez3, a seus discípulos —não como antes, para convencê-los de que havia ressuscitado —mas para induzi-los a dedicar suas mentes e seus corações por completo às suas vocações futuras como pescadores de homens, e como co-pastores do seu reba­ nho, preparando-os para a sua partida do mundo. Toda a conduta do Senhor nessa ocasião está dedicada a este objetivo. Primeiramente, Ele faz com que pesquem uma enorme quantidade de peixes, a fim de lembrálos de seu antigo chamado para serem seus apóstolos, tornando-se sím­ bolos de coragem e sucesso no trabalho apostólico. E então Ele os con­ vida a jantar os peixes que Ele mesmo havia conseguido4, assados em um fogo que Ele mesmo preparou na praia, para curá-los dos sentimentos e cuidados terrenos, e assegurá-los de que se quisessem realmente servir ao Reino, com todo o coração, todas as suas necessidades seriam atendidas. Finalmente, ao término da refeição da manhã, Ele inicia uma conversa, na presença de todos, com o discípulo que havia sido o líder na aventura daquela noite no lago, e dirige-se a este de uma forma que traria à tona todo o seu entusiasmo latente; essa conversa surtiria um efeito seme­ lhante na mente de todos os presentes. Superficialmente, as palavras proferidas por Jesus a Pedro parecem se referir apenas a esse discípulo; e o objetivo desejado parece trazê-lo de volta à posição de apóstolo, que ele pode ter considerado perdida por causa de sua conduta no pátio da casa do sumo sacerdote. Esta, conse­ qüentemente, é a visão adotada em relação à cena impressionante nas margens do lago. E concordando ou não com essa visão, temos que ad­ mitir que por alguma razão o Senhor Jesus queria fazer com que Pedro se lembrasse de suas recentes imperfeições. Os traços de alusão aos inci­ dentes do passado, na história dos discípulos, durante a última crise, são inconfundíveis. Até o momento escolhido para a conversa é significati­ vo. Foi durante o jantar que Jesus perguntou a Pedro se ele o amava; foi após cearem que Jesus deu a seus discípulos o seu novo mandamento de amor, e que Pedro fez seu veemente protesto de devoção à causa e à pessoa de seu Mestre. O nome pelo qual o Mestre ressuscitado se dirigiu a seu discípulo —não Pedro, mas Simão, filho de Jonas —teve a intenção de lembrá-lo de sua fraqueza, e daquela outra ocasião em que, chaman-

554

O Treinamento dos Doze

do-o pelo mesmo nome, Jesus o advertiu de que Satanás queria cirandálo como trigo. A pergunta repetida por três vezes, “Amas-me?”, não poderia deixar de lembrar a Pedro, com tristeza, de sua tríplice negação, e então, reavivar a sua dor. A maneira como a questão foi colocada pela primeira vez — “Amas-me mais do que estes?” — contém uma alusão manifesta à declaração de Pedro, “Ainda que todos se escandalizem em ti, eu nunca me escandalizarei”. A injunção “Apascenta as minhas ove­ lhas” refere-se à proclamação profética feita por Jesus a caminho do monte das Oliveiras: “Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim, porque escrito está: Ferirei o pastor, e as ovelhas se dispersarão”, e não significa sofrer como um rebanho disperso, como vocês já sofreram. A injunção, “Apascenta os meus cordeiros”, associada à primeira pergunta, “Amas-me mais do que estes?” nos faz pensar na responsabilidade: “E tu, quando te converteres, confirma teus irmãos”; a idéia sugere, em ambos os casos, a mesma coisa, isto é, que o homem que caiu mais profundamente e com­ preendeu mais completamente a sua própria fraqueza, é, ou deveria ser, o melhor qualificado para fortalecer os mais fracos —para apascentar os cordeiros. Entretanto, dentre todas essas alusões à queda de Pedro, somos in­ capazes de concordar com a visão de que a cena aqui registrada signifi­ casse uma restauração formal do discípulo culpado à sua posição como apóstolo. Não negamos que depois de tudo o que aconteceu, aquele discípulo precisasse de cura para seu próprio conforto e paz. Porém, nossa dificuldade é a seguinte: Será que ele já não havia sido restaurado? Qual foi o significado daquele encontro particular entre ele e Jesus, e qual foi o resultado? Quem pode questionar se após aquele encontro a mente do discípulo não esteve à vontade, e logo após ele se sentiu em paz, tanto consigo mesmo quanto com o seu Mestre? Ou, caso seja ne­ cessário uma evidência, olhe para o comportamento de Pedro ao reco­ nhecer Jesus do barco —enquanto o Senhor estava na praia naquela ma­ nhã cinzenta —lançando-se ao mar para encontrar-se com o seu amado Mestre. Será que este era o comportamento de um homem afligido por uma consciência culpada? Entretanto, pode ser respondido que ainda havia a necessidade de uma restauração formal pública, em virtude do escândalo público causado por Pedro. Questionamos esse ponto; po­

Os Co-pastores Sao Advertidos

555

rém, mesmo que assim seja, o que isso significa? Por que essa restauração não aconteceu antes, durante o primeiro ou o segundo encontro em Jerusalém? E então, a cena ocorrida nas margens do lago realmente re­ mete a uma transação formal? Podemos considerar esse encontro casual, tranqüilo, familiar e uma conversa após o café da manhã com dois terços dos discípulos, como uma reunião eclesiástica, com o propósito solene de cura de um irmão caído e sua readmissão à comunhão e permanência na igreja? Em nossa opinião, a idéia é muito fria e pedante para ser seriamente alimentada. E então, mais uma objeção a essa teoria está por ser exposta, isto é, que ela falha em dar unidade às várias partes da cena. Isso pode explicar a pergunta que Jesus fez a Pedro, porém não explica a referência profética à sua história futura que ali foi declarada. Entre a expressão “Permito que você, a despeito de sua má conduta no-passado, seja um apóstolo” e a expressão “Eu lhe advirto que, neste assunto, você não terá a liberdade de ação com que se deleitava anteriormente” não existe nenhuma conexão identificável. A queda de Pedro não sugeriu um desvio de pensamento, pois não veio do amor à liberdade, e sim do medo dos homens. Nesta cena não encontramos a restauração de Pedro a uma posição que lhe havia sido retirada, mas sua lembrança do sentido mais solene de sua elevada vocação. Não está sendo dito: “Eu lhe permito”, e sim “Eu lhe ordeno”. Este nos parece ser o sentido correto das palavras de Cristo a seu discípulo e, através dele, a todos os seus companheiros. Por todas essas considerações, Ele faria com que se dedicassem de coração e alma ao seu trabalho apostólico, deixando suas redes e barcos e tudo o mais para sempre. Pensamos que o Senhor diria a Simão, por fim: “Pela me­ mória de sua própria fraqueza, pelo meu amor clemente e perdoador, e sua gratidão por ele; pela necessidade dos irmãos discípulos, de que sua própria fraqueza do passado possa lhe ensinar a entender e a ter compai­ xão; pela fervorosa ligação que sei que você anseia ter comigo: Por essas e todas as considerações de família, Eu te responsabilizo, na véspera de minha partida, a ser um herói, a desempenhar o papel de homem, a ser forte pelos outros e não apenas para ti mesmo, a ‘apascentar o rebanho de Deus, assumindo a supervisão deste, não por constrangimento, mas de boa vontade’. Não se esquive da responsabilidade, não cobice a ocio­

556

O Treinamento dos Doze

sidade, curve o teu pescoço ao jugo e deixe que o amor o torne mais leve. Doce é a liberdade aos seus corações humanos; porém muito mais nobre —embora menos prazeroso —é o amor paciente e que suporta o jugo”. Sendo essa a mensagem de Jesus a todos os presentes, Pedro foi apropriadamente selecionado como o meio de transmiti-la. Ele foi um excelente exemplo para se pregar um sermão de auto consagração. Seu caráter e sua conduta passaram toda poesia, todo argumento e toda ilus­ tração necessários para dar o direcionamento ao tema. Que situação ade­ quada à sua impetuosidade, espírito passional e liberdade irrestrita! E que coração não se sente tocado pelo pensamento de tal homem, disci­ plinando sua elevada e corajosa alma em paciência e submissão? O pes­ cador jovem, brincalhão, decidido, vestido de seu manto, indo de lá para cá em seu próprio e doce desejo; o apóstolo santo, amadurecido, dócil como um cordeiro, estende seus braços para serem atados e destinados ao martírio: que contraste comovente! Será que este homem apaixonado possuía, de alguma maneira, o mais forte caráter dentre os doze, sendo, por outro lado, o mais fraco, e por esta razão aquele que poderia ilustrar melhor a necessidade que os homens têm de serem apascentados? Será que ele reconheceu as suas próprias fraquezas, e a partir desse conheci­ mento se fortaleceu? Então, quão melhor se afirma o dever geral do mais forte ajudar o mais fraco, que designou a este discípulo em particular o especial dever de cuidar dos mais fracos? Dizer a Pedro: “Apascenta os meus cordeiros”, é o mesmo que dizer a todos os apóstolos: “Apascenta as minhas ovelhas”. Ao exigir que Pedro mostrasse o seu amor desempenhando o papel de pastor para o pequeno rebanho de fiéis, Jesus adaptou sua demanda à capacidade espiritual do discípulo. O amor ao Salvador não se manifes­ ta, exclusivamente, através da atitude de alimentar as ovelhas; os discípu­ los imaturos e inexperientes deveriam demonstrá-lo sendo ovelhas. So­ mente após os fracos tornarem-se fortes, e estabelecidos na graça, é que devem tornar-se pastores, encarregando-se de cuidar dos outros. Ao de­ signar a Pedro e a seus companheiros deveres pastorais, portanto, Jesus anuncia que eles saíram, ou estão quase saindo, da categoria dos mais fracos e passando para a categoria dos mais fortes. “Até agora”, Ele lhes afirma, em outras palavras, “vocês têm sido como ovelhas, que necessi­

Os Co-pastores S3o Advertidos

557

tam ser guiadas, observadas e defendidas pela sabedoria e coragem de outras. Agora, no entanto, chegou a hora de tornarem-se pastores, capa­ zes e dispostos a fazer pelos fracos o que tenho feito por vocês. Até agora, vocês me deixaram cuidar de vocês; de hoje em diante, vocês de­ vem habituar-se a serem vistos como guardiões, como eu fui visto por vocês. Até agora, vocês têm sido como crianças dependendo de mim, seu Pai; daqui por diante, vocês também deverão ser pais, cuidando de meus outros filhos. Até hoje vocês têm sido como novatos, inexperientes, que se entregam ao pânico, e fogem do perigo; de hoje em diante, vocês devem ser capitães superiores ao medo, e através de sua serena determi­ nação, devem inspirar os soldados da cruz com coragem heróica”. Em poucas palavras, Jesus aqui anuncia a Pedro e aos demais, que agora eles farão a transição da juventude para a maturidade, da tutela para o autogoverno, de uma posição onde eram dependentes e recebiam cuida­ dos, passariam a cuidar da influência, autoridade e responsabilidade, como líderes e comandantes na comunidade cristã, realizando a obra para a qual foram treinados. Tal transição e transformação ocorreram em pouco tempo na história dos discípulos. Eles assumiram a posição de embaixadores ou representantes de Cristo após a sua ascensão. Pedro, como líder ou representante, apesar de não ser o “papa” na igreja que estava nascendo, teve seu caráter alterado com a finalidade de estar à altura de suas elevadas funções. Os tímidos discípulos tornaram-se cora­ josos apóstolos. Pedro, que de maneira fraca negou ao Senhor na sala do julgamento, heroicamente o confessou diante do Sinédrio. Os discípulos ignorantes e tolos, que continuaram a interpretar as palavras de seu Mestre de maneira errônea, foram cheios com o Espírito de sabedoria e enten­ dimento, e então os homens ouviram suas palavras como estavam acos­ tumados a ouvir as palavras do próprio Senhor Jesus. Temos afirmado que o amor a Cristo não impôs a todos os seus discípulos o dever de pastorear; ele mostrou, antes, que o maior número simplesmente ouviria a voz dos pastores e os seguiriam, e geralmente com uma disposição de serem guiados por aqueles que fossem mais sá­ bios do que eles mesmos. Devemos acrescentar, contudo, que todos os que são animados pelo espírito de amor ao Redentor, serão pastores ou ovelhas, ativamente úteis para cuidar das almas de outras pessoas. Ou

558

0 Treinamento dos Doze

ainda, com gratidão, utilizarão esta provisão para o cuidado de suas pró­ prias almas. M uitos, no entanto, não se incluem em qualquer classifica­ ção. Alguns são ovelhas de fato, porém ovelhas que estão desviadas; ou­ tros, não são nem ovelhas nem pastores, sendo autoconfiantes, ainda relutantes e até desqualificados para serem úteis; muito rebeldes para serem guiados, ainda não inclinados a tornar sua força e experiência disponíveis para seus irmãos, utilizando todo o seu talento exclusiva­ mente a serviço de seus próprios interesses. Tais homens são encontrados na igreja e no Estado, diligentemente contidos pelo ofício e pela responsa­ bilidade, e criticam severamente aqueles que se submetem ao jugo; por sua vez são criticados por sua timidez e servidão, como pessoas inexperientes, por assim dizer, comparáveis a “cavalos selvagens” em seus procedimentos em relação à igreja, merecedores de uma dupla censura5. Agora, não há problemas em ser como “cavalos selvagens” alegran­ do-se na liberdade desenfreada, na época da juventude; porém, não é possível rejeitar por toda a vida o jugo de um procedimento bom, corre­ to e adulto. “M as nós que somos fortes devemos suportar as fraquezas dos fracos e não agradar a nós mesmos.” Não há dúvidas quanto à van­ tagem de ser livre de cuidados, e liberto em relação a opiniões e ações, e, livrando-nos daqueles que nos causariam embaraços, vivermos uma vida de “deuses”, indiferentes à humanidade. Porém, esta não é a finalidade da vida de qualquer homem, menos ainda tratando-se de homens sábios e fortes, pois nem estes estão livres de cuidados e problemas. Aquele que tem um coração cristão deve sentir que é suficientemente forte e sábio para proporcionar o bem aos outros que precisam de força e sabedoria; e ele irá se encarregar da função de pastor, embora, às vezes, sentindo medo e tremendo por causa de suas responsabilidades. Contudo, deve ter plena consciência de que, ao fazê-lo, estará consentindo que a sua liberdade e independência tornem-se muito limitadas. O jugo do amor que nos une a nossos irmãos às vezes não é fácil, e o fardo de cuidar deles não é leve; porém, de um modo geral, é melhor e mais nobre ser um servo e um escravo ao oferecer amor, do que ser um homem livre através do poder emancipador do egoísmo. E melhor ser um Pedro como prisio­ neiro e mártir por amor ao evangelho, do que um Simão que tenta inculcar na mente de seu Senhor a política egoísta do “Salve a si mesmo”, ou

Os Co-pastores São Advertidos

559

jazer em um luxurioso conforto no monte da Transfiguração, exclamando: “Senhor, bom é estarmos aqui”. E melhor ser um Pedro preso por causa dos outros e, como um bom pastor, ser levado para onde não queria ir, para ser sacrificado pelas ovelhas, do que um Simão, provido de seus próprios trajes, perambulando com indiferente ar de elegância e uma moderna indiferença. Uma vida nas ondas do oceano, uma vida nos bos­ ques, uma vida nas montanhas ou nas nuvens pode ser ótima para so­ nhos e letras de músicas; porém, a única vida em que o genuíno e poético heroísmo prevalece é aquela que é gasta nesta terra prosaica, no humilde e despretensioso trabalho de fazer o bem. Observe agora, finalmente, a evidência mostrada pelas respostas de Pedro às perguntas de seu Senhor, de que ele está, de fato, preparado para o trabalho responsável a que foi convocado. Não é, meramente, que ele apele ao próprio Senhor Jesus, como alguém que sabe de todas as coisas, afirmando: “Tu sabes que eu te amo”; e como já tínhamos suge­ rido, cada sincero discípulo pode fazer isso. Dois sinais específicos de maturidade espiritual são discerníveis aqui, não para serem encontrados naqueles que são fracos na graça, e que não foram, também, previamente encontrados no próprio Pedro. O primeiro deles é a modéstia —muito notável no caráter de um homem como ele. Pedro não faz agora compa­ rações entre si mesmo e seus irmãos como fez anteriormente. Apesar das aparências, ele ainda afirma que realmente ama Jesus; porém, é cauteloso para não dizer: “Amo-te mais que estes outros”. Ele não o diz, e eviden­ temente não pensa desse modo: o espírito fanfarrão o deixou; ele é um homem humilde, controlado e sábio, espiritualmente equipado para pastorear, simplesmente porque deixou de se considerar, de modo vai­ doso, competente para isso. O segundo sinal de maturidade discernível nas respostas de Pedro é o piedoso arrependimento pelas falhas cometidas no passado: “Simão entristeceu-se por (Jesus) lhe ter dito terceira vez: Amas-me?” Ele prova­ velmente tenha se entristecido por causa da tripla interrogação lhe ter lembrado de que havia negado o Senhor por três vezes. Desse modo pode ter sentido que o seu amor estava sendo colocado em questão. Observe particularmente o sentimento produzido pela delicada referên­ cia aos pecados que havia cometido no passado. Tratava-se de uma triste­

560

O Treinamento dos Doze

za, não uma irritação, ira ou vergonha. Não existe orgulho, paixão ou vaidade na alma desse homem, somente algo santo, uma humilde contrição; supomos que não tenha sido observada qualquer alteração repentina em sua fisionomia, mas somente uma expressão graciosa e atenuada de um espírito penitente, que se sentira castigado. O homem que faz alusões a seus pecados não somente tende a ser uma ovelha, como também a cuidar dos cordeiros. Ele será capaz de restaurar aqueles que tiverem um espírito de mansidão. Ele será brando em relação aos ofensores, não com uma falsa caridade que não possa ser oferecida para condenar fortemente os pecados, mas com a genuína caridade de alguém que recebeu misericórdia pelos pecados de que sinceramente se arrepen­ deu. Por sua benigna simpatia, os pecadores se converterão a Deus em lamentos sinceros pelas suas ofensas, e em esperança humilde de perdão; e pelo seu cuidado cauteloso, muitas ovelhas serão guardadas para que não se percam do rebanho.

Seção II - Pastor Pastorum João 2 1.19 -2 2

Para ser um co-pastor zeloso é necessário, em outra visão, ser uma ovelha cheia de fé, e seguir o Supremo Pastor para onde for. Os pastores não são senhores sobre a herança de Deus, mas meros servos de Cristo, o grande Cabeça da igreja, que têm como obrigação considerar a vontade do Senhor como sua lei, e sua vida como seu modelo. N a cena do lago, Jesus se esforçou para que seus discípulos entendessem isso. Ele não permitiu que viessem a supor que, ao comprometer-se com a obrigação pastoral de seu rebanho, Ele estivesse abdicando de sua posição como Pastor e Bispo das almas. Ao dizer a Pedro: “Apascenta os meus cordei­ ros”, “Apascenta as minhas ovelhas”, estava dizendo, como sua última palavra, “Segue-me”. Está sugerido na narrativa que, enquanto Jesus afirmava isso, Ele se levantou e saiu do local onde estavam os discípulos, que haviam termi­ nado sua refeição matinal. Não sabemos para onde Ele foi, porém sabe­ mos que foi em direção à “Montanha da Galiléia”, o ponto de encontro previamente designado onde o ressuscitado Salvador “foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez”. As ovelhas já haviam se dirigido a

Os Co-pastores São Advertidos

561

esse local por duas vezes para encontrar o seu Divino Pastor, em um aprisco montanhoso e afastado; e também é possível que o objetivo da jornada na qual Pedro foi convidado a se unir a seu Mestre seja a apre­ sentação dele ao rebanho que foi incumbido de cuidar. Assim sendo, Pedro obedece ao seu chamado, e passa a seguir a Jesus de uma vez. Ele pode ter tido como primeira impressão a idéia de que seria o único a atender ao seu Senhor, e sentido um desejo natural de olhar para trás para ver o que seus companheiros estavam fazendo. Olhan­ do ao redor, ele observou o discípulo que Jesus amava, e que ele também amava, seguindo bem de perto os seus passos; e eis que surge uma per­ gunta em seus lábios: “Senhor, e deste que será?” A pergunta foi elíptica, mas significou: João está nos seguindo; ele terá o mesmo destino que o Senhor reservou para mim? Ele também será atado e levado, para onde não deseja ir; ou será, como o discípulo mais querido e mais amado, desobrigado das dificuldades que estou destinado a enfrentar? A mais afortunada situação que estava reservada a João, cremos, também estava à disposição de Pedro. Ele não podia deixar de lembrarse da memorável cena em que a mãe de João fez aquele pedido ambicio­ so em benefício de seus dois filhos; e, apesar do que Jesus havia dito sobre experimentar o seu cálice e ser batizado com o seu batismo, Pedro bem pode ter imaginado que o desejo de João seria realizado, e que ele viveria para ver a chegada do Reino dos céus e compartilhar a sua glória. Assim como todos os demais discípulos, provavelmente Pedro esperasse, até o último dia da permanência de seu Senhor na terra, que o reino de Israel fosse restaurado muito em breve. Se esse fosse o pensamento de Pedro, não seria surpreendente que ele perguntasse, se não por inveja, ao menos com um sentimento triste de perda: “Senhor, e deste que será?” A adversidade é algo difícil de suportar, porém torna-se ainda mais difícil quando o infortúnio permanece em evidente contraste com a prosperi­ dade de um irmão que começou sua trajetória na mesma ocasião em que aquele que está sofrendo e, mesmo sem expectativas melhores, supera de longe o primeiro ao longo da carreira. Jesus parece não ter se incomodado com a pergunta de Pedro. “Se eu quero”, Ele afirmou, “que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Segue-me tu”. Alguém poderia considerar esta resposta como um tanto

562

0 Treinamento dos Doze

severa. Será que Jesus não poderia ao menos ter lembrado Simão, para seu conforto, das palavras que dirigiu a Tiago e a João: “Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber?” Será que isso não teria ajudado Pedro a seguir mais alegremente o seu Mestre no árduo caminho da cruz, sabendo que, a despeito da maneira como João tivesse que morrer, também teria que sofrer pelo evangelho; que sua vida, quer fosse curta ou longa, seria repleta de tribulações; que a participação na glória do Reino dos céus não depende da longevidade; e que, de fato, o primeiro a morrer seria o primeiro a alcançar a glória? Mas poderia ser que não. Administrar tal conforto teria sido o mesmo que se mostrar indulgente em relação à fraqueza dos discí­ pulos. Aquele que precisa desempenhar o papel de um soldado deve ser treinado com rigor militar. A fraqueza excessiva, como um suspiro pela felicidade, a meditação excessiva e saudosista sobre a felicidade perdida, não deve fazer parte do caráter de um apóstolo. E Jesus, a quem tais dispo­ sições são, em sua maioria, repugnantes, tomará todo o cuidado para não lhes conceder qualquer apoio. Ele terá todos os seus seguidores, e em especial os líderes de seu povo, como heróis —“Soldados enérgicos e com­ pletamente dispostos”, prontos a comandar, sem medo do perigo, pacien­ tes em relação à fadiga, sem traços de fraqueza ou egoísmo. Ele não dará ocasião à fraqueza natural, desconsiderará a dor presente, e fará com que possamos resistir à censura, contanto que conquiste o seu objetivo final — a produção de um caráter à prova de tentações. Tendo este fim em vista, Jesus não teve problemas para corrigir o mal­ entendido por parte de Pedro sobre seu irmão discípulo. Tratava-se, na verdade, de equívocos. João não ficaria até que o Senhor voltasse do modo que Pedro havia entendido. Ele realmente viveu até o final do primeiro século da era cristã, portanto, até muito tempo depois da vinda do Senhor para executar o juízo sobre Jerusalém. Entretanto, exceto pela longevidade de que desfrutou, o último dos apóstolos não poderia, de maneira nenhu­ ma, ser invejado. A igreja foi militante em todos os seus dias: ele participou de muitas de suas batalhas, e, como conseqüência, adquiriu várias cicatri­ zes. Companheiro de Pedro no primeiro conflito da igreja com o mundo, ele foi prisioneiro em Patmos por amor à Palavra de Deus, e áo testemu­ nho de Jesus Cristo, após a morte de Pedro. Talvez alguém possa dizer, em virtude do temperamento de João, que a sua vida foi menos agitada que a

Os Co-pastores São Advertidos

563

de seu irmão apóstolo. Ele foi um homem de menos impetuosidade, em­ bora não apresentasse menor intensidade de trabalho; e talvez o seu caráter não despertasse tamanha oposição do mundo. Por suas virtudes e fraque­ zas, Pedro se tornaria um herói da fé, o Lutero da era apostólica, dando e recebendo os mais árduos golpes, e suportando o impacto da batalha. João, por outro lado, pode ser considerado o mais amoroso dentre os apóstolos, sem, no entanto, apresentar uma tendência de ceder às pressões. E, como tal, provavelmente desfrutou uma vida mais calma e pacífica. Porém a diferença entre os dois homens era, acima de tudo, a subordina­ ção. E, considerando todas as coisas, podemos dizer que João não bebeu menos profundamente do cálice de Cristo do que Pedro. Não havia nada glorioso ou invejável em sua parte na terra, exceto a visão que recebeu em Patmos da glória que ainda seria revelada. Ainda que tudo isso fosse claro a seus olhos prescientes, Jesus não se dignou a dar quaisquer explicações referentes ao futuro de seu amado discípulo, porém permitiu que Pedro pensasse o que lhe agradasse em relação ao futuro de seu amigo. “Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa a ti? Esta frase não significava dar quaisquer infor­ mações, como os crentes contemporâneos podem ter imaginado, mas expressa preferencialmente a recusa a fornecer qualquer informação de caráter final. O Senhor poderia estar dizendo: “Suponha que fosse de meu agrado que João permanecesse na terra até que eu retornasse; o que isso significaria para ti? Suponha que eu o escolhesse para se sentar à minha destra em meu Reino Messiânico; o que, pergunto novamente, isso significaria para ti? Suponha que João não experimentasse a morte, sobrevivendo, deste modo, até à minha segunda vinda, ou fosse, como um outro Elias, levado diretamente ao céu, ou ainda que o seu corpo fosse dotado do poder da vida eterna; ainda assim o que isso significaria para ti? Quanto a ti, segue-me”. A repetição enfática dessa injunção é muito significativa. Por um lado, mostra que quando Jesus disse a Pedro: “Apascenta os meus cor­ deiros”, Ele não tinha a intenção de torná-lo o pastor dos pastores, um pastor ou bispo sobre seus companheiros. N a teologia romanista, os cordeiros são os membros leigos da igreja, e as ovelhas são os co-pastores —todo o corpo do clero, com exceção do papa. Quão estranho seria, se

564

0 Treinamento dos Doze

tal doutrina fosse verdadeira, que Pedro fosse corrigido, ao se interessar pelo rebanho, por fazer uma pergunta tão simples como essa: “Senhor, e deste que será?” Jesus responde como se Pedro estivesse se intrometendo em questões que não lhe diziam respeito. E, de fato, a intromissão era uma das falhas de Pedro. Ele sentia prazer em administrar e cuidar de outras ^pessoas; ele tentou, mais de uma vez, administrar o próprio Se­ nhor. E bastante curioso lembrar que a igreja recebeu desse apóstolo a importante advertência contra o procedimento acima nomeado. “Que nenhum de vós padeça como homicida, ou ladrão, ou malfeitor, ou como o que se entremete em negócios alheios”; literalmente, no caso do catolicismo romano, Pedro está dizendo que um bispo não deve se intrometer em outra diocese6. Evidentemente, as freqüentes censuras administradas a Pedro da parte do Mestre tiveram um efeito duradouro. Por mais pesada que fosse a carga da responsabilidade de seu discí­ pulo nessa época, não eqüivalia a qualquer coisa tão formidável como a envolvida em ser um Cristo visível, por assim dizer, para a igreja como um todo. Nem Pedro nem qualquer outro homem seria capaz de supor­ tar essa carga, e felizmente não é necessário que alguém o faça. A respon­ sabilidade até do mais elevado cargo na igreja, deve ser restrita a limites relativamente estritos. O principal objetivo, até mesmo para o líder dos co-pastores, não é fazer com que os outros sigam a Cristo, mas manter a sua própria vida na presença de Deus, seguindo a Cristo. E ótimo que o nosso Senhor faça com que isso se torne evidente por meio das palavras endereçadas aos seus representantes dentre os apóstolos. Os cristãos de natureza ativa, enérgica e intensa, têm idéias muito exageradas sobre as suas responsabilidades; e cuidar, por si próprios, de todo o mundo, e impor a si mesmos a obrigação de remediar todo o mal que é feito sob o sol é uma carga demasiadamente grande para eles. Eles seriam defenso­ res gerais da fé onde quer que fossem atacados, e reparadores gerais de tudo o que é errado, como ajudadores de todas as almas. Existe algo nobre e quixotesco nesse temperamento; e esse não seria o melhor sinal da seriedade moral do homem se ele não tivesse conhecido, em determi­ nado momento de sua vida, algo sobre esse espírito meticuloso e muito zeloso. Contudo, deve-se entender que o Cabeça da igreja não impôs, a nenhum homem, tal responsabilidade tão ilimitada; e a partir daí, quan­

Os Co-pastores Sao Advertidos

565

do se trata de auto-imposição, não conduz ao verdadeiro proveito. Ne­ nhum homem pode fazer o trabalho dos outros homens, e ninguém é responsável pelos erros e falhas que outros homens cometem; cada ho­ mem contribui mais efetiva e certamente para o bem de todos, condu­ zindo a sua própria vida de acordo com os princípios de Deus. O mun­ do está cheio de maldade e pecados por todos os lados — ceticismo, superstição, ignorância, imoralidade —uma visão extremamente infeliz. “O que então devemos fazer?” Acima de tudo, seguir a Cristo. Ser fiéis, deixar os infiéis. Tratar a religião de forma sensata, deixando de lado aqueles que baseiam a sua fé na autoridade humana, que é falha, e a sua religião em rituais fantasiosos e idolatrias vulgares. Sejamos santos, exem­ plos de sobriedade, justiça e piedade, mesmo que todo o mundo venha a se tornar um caos sufocante de impureza, engano e impiedade. Digamos como Josué: “Se vos parece mal aos vossos olhos servir ao Senhor, escolhei hoje a quem sirvais... porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor”. A injunção repetida: “Segue-me”, restringe a responsabilidade indivi­ dual e prescreve inteira atenção às obrigações pessoais. Cristo exige que os seus discípulos o sigam com integridade de coração, sem distrações, murmurações, invejas, maldade, e sem medir as conseqüências de lhe ser fiel. Podemos pensar que Pedro ainda não estava à altura nessa questão. Ainda permanecia em seu coração um anseio vulgar pela felicidade de ser o maior líder dos homens. A isenção de carregar a cruz ainda lhe pareceu supremamente desejável. Pedro provavelmente tenha pensado que o favor especial da parte de Cristo a um discípulo em particular poderia se mani­ festar através de tal isenção. Ele ainda não havia entendido que Cristo com freqüência mostra favor especial a seus seguidores tornando-os, de forma notável, participantes de seu cálice amargo e de seu batismo sangrento. O grande entusiasmo de Paulo, que fez com que desejasse conhecer a Jesus e ter comunhão com os seus sofrimentos, ainda não havia se apossado do coração de Simão. Quando um serviço árduo e perigoso precisava ser rea­ lizado, aqueles que eram selecionados para ser a esperança em meio ao desespero pareciam, a Simão, objetos de compaixão. Longe de se voluntariar a tal serviço, ele preferia congratular-se por ter escapado; e a mais elevada e concebível virtude, caso alguém não tivesse a sorte de escapar, seria, em sua opinião, submissão àquilo que fosse inevitável.

566

0 Treinamento dos Doze

Pedro também foi deficiente na virtude m ilitar da obediência inquestionável a ordens, que é o segredo da força de um exército. Um general diz a alguém: V á e ele vai; e a outro: Venha e ele vem. O general designa a posição de cada um, e ninguém se aventura a perguntar por quê, ou a fazer comparações invejosas. Existe uma entrega absoluta da vontade individual à vontade do comandante. E a respeito dos pensa­ mentos ligados à preferência, cada homem é como uma máquina que tem cabeça, mãos e coração, somente para o desempenho efetivo da tare­ fa que lhe foi designada. Pedro ainda não havia alcançado esse nível de abnegação. Ele não era capaz de fazer simplesmente o que lhe havia sido ordenado, mas olhava ao redor para ver o que os outros estavam fazendo. Não imaginemos, de modo algum, que isso fosse uma pequena falha desse apóstolo. Esta era uma falha disciplinar que não poderia ser igno­ rada pelo Comandante dos fiéis. A obediência implícita é necessária tan­ to na igreja como no exército. O antigo soldado Loyola entendeu isso, e então apresentou um sistema de disciplina militar à organização chama­ da “Sociedade de Jesus”. E a história dessa sociedade mostra a sabedoria de seu fundador; a despeito do que possamos pensar sobre a qualidade do trabalho realizado, não podemos negar a energia da fraternidade jesuítica, nem a devoção de seus membros. O Senhor Jesus Cristo exige de todos os seus fiéis a mesma devoção que os jesuítas demonstravam para com os seus superiores; e esta devoção deve ser oferecida ao Senhor de uma maneira pura e perfeita. O Senhor deseja que o seu povo se entregue à sua vontade demonstrando uma obediência cordial, precisa e habitual, considerando todas as suas ordens como sábias, e todas as suas providências como boas, reconhecendo o direito que Ele tem de dispor de nós como quiser, sentindo-nos satisfeitos por servi-lo em um peque­ no ou grande local, através da realização ou do sofrimento, por um cur­ to ou por um longo período de tempo, na vida ou na morte, tendo como único objetivo que o Senhor seja glorificado. Este é o nosso dever, e também a nossa bem-aventurança. E assim dispostos, estaremos despreocupados quanto a todas as possíveis conse­ qüências, as tristezas imaginárias, a inveja, o mau humor e a inquietação da obstinação. Não devemos mais nos distrair nem ser atormentados por querermos constantemente saber o que vem acontecendo ou o que

Os Co-pastores São Advertidos

567

acontecerá a este ou àquele companheiro discípulo; mas sim, sermos capazes de dar continuidade e nos sentirmos realizados por meio de nossos próprios trabalhos com paz e serenidade. Não devemos nos preo­ cupar com o nosso futuro ou com o futuro de qualquer outra pessoa, mas viver a nossa vida no presente de uma forma saudável e feliz. Deve­ mos nos livrar para sempre do medo, dos cuidados, das intrigas, do engano e da aflição; e, como cotovias na porta dos céus, cantar: Pai, eu sei que toda a m inha vida È estabelecida po r ti, E as m udanças que certam ente vierem N ão terei m edo de enfrentar; Porém lhe peço hoje, Q ue possa a ti servir. N ão quero ter um pensam ento incansável E ao mesm o tem po inconstante, Buscando algo novo p ara fazer, O u desvendar os segredos que m e estão ocultos; Q uero ser tratado com o um a criança, G uiado por tua m ão aonde quer que vá”.

Dessa forma, irmão, “...vai até ao fim; porque repousarás e estarás na tua sorte, no fim dos dias”.

1 João 21.3 2 João 21.4 3 A sexta aparição desde que ressuscitou. 4 Quando os discípulos desembarcaram, viram o fogo e o peixe que já estava sendo assado. E havia também pão. DE justo avaliar se nossa venerável confissão não é pequena e estrita, um tipo de limitador, mesmo tratando-se de ministros.Também é possível avaliar o que deve ser exigido de cooperadores leigos que não exercem o ministério de ensino e que colocam o seu conhecimento secular a serviço do desempenho inteligente de suas tarefas e do cuidado com os detalhes. Estes são geralmente exemplares em disciplina por sua crença e conduta. Nenhum homem se dispõe a manter a lei moral contida nos Dez Mandamentos com a finalidade de estar sujeito a ser disciplinado por imoralidade. 6 I Pedro 4.15; o termo grego aqui é allotrioepiskopos.

30 Poder do Alto Mateus 2 8 .18 -2 0 ; Marcos 16 .1 5 ; Lucas 2 4.47 -53 ; Atos I.I-8

l~ ^ a Galiléia os discípulos, de comum acordo ou orientados, toma­ ram o caminho de volta a Jerusalém onde o seu Senhor ressuscitado se mostrou uma vez mais, a última vez, para dar-lhes as últimas instruções e despedir-se deles. Não há menção distinta nos Evangelhos desse último encontro. Cada um dos evangelistas sinópticos, entretanto, preservou algumas das últi­ mas palavras ditas por Jesus aos seus discípulos antes que ascendesse ao céu. Entre essas, consideramos os versículos finais do Evangelho de Mateus, onde lemos: “E-me dado todo o poder no céu e na terra. Por­ tanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos”1. Destas últimas palavras, Marcos dá, no final de seu Evangelho, uma versão abreviada, nestes termos: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”2. Na narrativa de Lucas as palavras ditas por Jesus na ocasião de sua última aparição aos onze estão tão entretecidas com as que Ele disse na noite de sua ressurreição que, exceto por sua característica suplementar e circunstancial, transmitida pelo mesmo autor no Livro de Atos, nunca poderíamos pensar em fazer uma distinção, muito menos saber onde colocar uma linha divisória. Comparando as duas descrições, entretanto, podemos ver que as pala­ vras proferidas em dois momentos diferentes são interpretadas juntas em um discurso contínuo; e não temos grande dificuldade em determi­ nar o que pertence à primeira aparição e o que pertence à última. De

570

O Treinamento dos Doze

acordo com o livro de Atos, Jesus, em sua última conversa com os seus discípulos, falou-lhes de seus deveres apostólicos como suas testemu­ nhas e como pregadores do seu evangelho; da promessa do Espírito, cuja descida visava capacitá-los para a sua obra; e sobre o que eles deveriam fazer até que a promessa fosse cumprida. Agora estes são somente os tópicos considerados nos versículos citados no último capítulo do Evan­ gelho de Lucas. Existe primeiro a delegação apostólica para pregar arre­ pendimento e remissão dos pecados em nome de Jesus entre todas as nações, começando por Jerusalém; e uma injunção virtual recaiu sobre os discípulos para que fossem testemunhas fiéis de todas as coisas que tinham visto e ouvido na companhia de seu Senhor, e, especialmente, de sua ressurreição dos mortos. Então, há a renovação da promessa, aqui chamada de “a promessa do Pai”. Finalmente, existe a orientação para esperar pela bênção prometida na cidade santa: “Ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder”. Todos esses dizeres sustentam a evidência interna de serem as últi­ mas palavras, porque são completamente adequados à situação. Era na­ tural e necessário que Jesus falasse, então, com seus agentes escolhidos na hora de sua partida final, dando-lhes instruções para guiarem-se em seus futuros trabalhos apostólicos, e no pequeno intervalo que estava para decorrer antes que esses trabalhos começassem. A brevidade e o tom dessas últimas palavras estão de acordo com a ocasião em que fo­ ram proferidas. Pela primeira vez, deveríamos, talvez, ter esperado um estilo mais patético de discurso em relação à reunião de despedida; mas, ao refletirmos melhor, percebemos que tudo o que fosse saboreado com mero sentimentalismo teria sido inferior à dignidade da situação. No discurso de despedida, antes da paixão, a ternura estava em seu devido lugar, mas nas palavras de despedida, antes da ascensão, teria sido malempregada. No caso anterior, Jesus foi um pai falando suas últimas pala­ vras de conselho e conforto aos seus filhos tristes; por fim, Ele foi: “como se um homem, partindo para fora da terra, deixasse a sua casa, e desse autoridade aos seus servos, e a cada um, a sua obra, e mandasse ao porteiro que vigiasse”3 e sua maneira de discursar foi adaptada ao seu caráter. E, ainda, o tom adotado por Jesus em sua última entrevista com os onze não foi puramente magistral. O Amigo não estava totalmente per-

Poder do Alto

571

dido na presença do Mestre, Ele tinha palavras doces e ordens aos seus servos. O que poderia ser mais doce e mais encorajador do que estas palavras: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos?” E não existe nem um tom de amizade nessa declaração, na qual Jesus, agora, prestes a ascender à glória, parece por antecipação re­ tomar o manto de majestade divina que tinha colocado de lado quando tornou-se homem: “E-me dado todo o poder no céu e na terra”. Por que Ele fala disso agora? Não com o propósito de auto-exaltação; não para colocar uma distância entre Ele e seus companheiros, como se fosse rebaixá-los da posição de amigos para a posição de meros servos. A verdadeira finalidade dessa declaração era animá-los em seu caminho por todo o mundo, como mensageiros do Reino; era fazê-los sentir que a tarefa a eles designada não era, como poderia parecer, impossível. Em outras palavras: “Tenho todo o poder no céu e em toda a terra: portanto ide4 por todo o mundo, fazendo discípulos de todas as nações, não duvi­ dando de que toda a influência espiritual e todos os agentes providenciais se tornarão subservientes à grande incumbência a qual eu vos envio”. Jesus tinha atos e palavras doces para os seus amigos por ocasião de sua partida. De fato, não existiu um beijo de despedida, ou um aperto de mãos, ou outro ato simbólico em uso entre os homens que pudesse ser­ vir para dizer adeus; mas o modo em que se deu a ascensão foi o mais gracioso e benevolente para com aqueles que o Ascendente estava dei­ xando para trás. Jesus se moveu para cima sendo suspenso da terra por alguma força de atração celestial, olhando para baixo em direção aos seus amados companheiros, provavelmente com as suas mãos estendidas em um gesto de bênção. Aqui, os onze não se entristeceram nem se afligiram pela partida de seu Senhor. De fato, eles se maravilharam e olharam fixa e ansiosamente, surpre­ sos, em direção ao céu, como se tentando penetrar na nuvem que recebeu a pessoa de seu Mestre; mas a partida não deixou tristeza para trás. Já não vendo mais o seu Senhor, provavelmente tenham curvado suas cabe­ ças em reverência ao Cristo ascendido. Em seguida retornaram a Jerusa­ lém com grande alegria, como se tiv e s s e m ganhado, e não perdido, um amigo, e como se a ascensão não fosse o pôr-do-sol, mas o nascimento dele —como de fato era, não somente para eles, mas para todo o mundo.

572

0 Treinamento dos Doze

Do miraculoso evento, pelo qual nosso Sumo Sacerdote passou pelo véu e entrou no santuário celestial, não podemos falar. Como na transfi­ guração, este é um tópico sobre o qual não sabemos o que dizer; um evento que não precisa ser explicado, mas crido com devoção e alegria, em companhia de semelhante verdade declarada aos discípulos pelos dois homens em trajes brancos, que disseram: “Varões galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir”5. Por essa razão, deixamos de falar da ascensão e passamos a fazer algumas observações sobre a grande incumbência dada pelo Senhor aos seus apóstolos, pela última vez, antes de ter ascendido à glória. Aquela incumbência era valiosa por causa daquEle de quem ema­ nou, quer nEle pensemos como o Filho de Deus ou como o Filho do Homem. “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”. Certamente essa é a linguagem do Ser Divino. Que mero homem já fez um plano de beneficência que alcançasse, em seu escopo, toda a raça humana? E quem, senão um, possuindo todo o poder no céu e na terra, poderia atrever-se a esperar ter sucesso em tão gigantesco empre­ endimento? E quão cheia de graça e amor era a questão da Grande Comissão! A incumbência que Jesus deu aos seus apóstolos consistia em pregar o arrependimento e a remissão dos pecados em seu nome, fazendo desse modo uma conquista pacífica do mundo para Deus pela palavra de reconciliação através de sua morte. Tal filantropia é, ao mes­ mo tempo, divina e intensamente humana. E marca, como característi­ ca especial daquEle que concede a sua graça, a direção: “começando de Jerusalém”. As palavras indicam um plano de operações adaptado, a princípio, às circunstâncias do mundo e à capacidade e idiossincrasias dos agentes; no entanto, fazem mais. Abrem uma janela voltada para dentro do coração de Jesus e mostram-no como sendo o mesmo que orou na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Por que começar por Jerusalém? Por causa dos “pecadores de Jerusalém”; a maioria precisa do arrependimento e do perdão. E porque Jesus mos­ traria neles, no início, a extensão de sua bondade, que serviria como um padrão para aqueles que viviam em Samaria, Antioquia e nos con­ fins da terra.

Poder do Alto

573

Esta era, de todas as maneiras, uma incumbência à altura de ser dada por Jesus, como o Filho de Deus e Salvador dos pecadores. Mas que incumbência para ser recebida por pobres pescadores galileus! Que fardo de responsabilidade a ser colocado sobre os ombros de qualquer pobre mortal! Quem é suficiente para essas coisas? Jesus conhecia a insu­ ficiência de seus instrumentos. Por isso, tendo investido-os com autori­ dade oficial, passou a falar de outro tipo de poder, sem o qual os oficiais seriam totalmente ineficazes. Ele disse: “Eis que envio sobre vós a pro­ messa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até que do alto sejais revestidos de poder”. “Até que do alto sejais revestidos de poder”. Esta expressão tem um som místico, e o seu sentido parece difícil de definir; contudo, o sentido geral é, certamente, simples o bastante. Ela significou não total ou prin­ cipalmente um poder para operar milagres, mas justamente o que Jesus tinha dito em seu discurso de despedida, antes de sua morte. Este poder que vem do alto significa tudo o que os apóstolos receberiam através da missão do Consolador —esclarecimento da mente, dilatação do coração, santificação de suas faculdades e transformação de caráter, para tornálos espadas afiadas e flechas polidas para subjugar o mundo à verdade; essas qualidades, ou o efeito combinado delas, constituíram o poder que Jesus direcionou os onze a esperar. O poder, portanto, era espiritual, não mágico; uma inspiração, não uma possessão; um poder que não agiria como uma força fanática cega, mas que se manifestaria como um espíri­ to de amor e de uma consciência sã. Depois que o poder desceu, os apóstolos não se tornaram menos racionais, porém mais racionais; não loucos, mas sóbrios; não meros entusiastas inflamados e vazios, mas entusiastas equilibrados, claros e dignos expositores da verdade divina, tal como o relato de Lucas sobre o seu ministério. Em resumo, estavam prestes a ser diferentes daquilo que foram no passado, e mais parecidos com o seu Mestre: e não mais ignorantes, infantis, fracos, carnais, mas iniciados nos mistérios do Reino, e habitualmente sob a direção do Es­ pírito de graça e santidade. Tal poder prometido era evidentemente indispensável para que fos­ sem bem-sucedidos. Os títulos oficiais não seriam o mais importante, e sob certos aspectos poderiam ser vãos —apóstolos, evangelistas, pasto­

574

0 Treinamento dos Doze

res, professores, governantes; as vestes clericais seriam vãs se a alma dos onze não fosse vestida com esta peça de roupa do poder divino. Vãos, então, e igualmente vãos agora. O mundo está prestes a ser evangelizado, não pelos homens investidos com dignidades eclesiásticas e com peças de roupas parcialmente coloridas, mas por homens que têm experimen­ tado o batismo no Espírito Santo, e que estão visivelmente imbuídos do poder divino da sabedoria, amor e zelo. O poder prometido era indispensável, e também era, em sua nature­ za, algo a ser simplesmente esperado. Os discípulos foram instruídos a esperar até que viesse. Não deveriam tentar fazer nada sem ele, nem tentar alcançá-lo. E foram sábios o suficiente para seguir as instruções. Entenderam completamente que o poder era necessário, e que não po­ deria ser alcançado, mas que deveria vir sobre eles. Nem todos são igual­ mente sábios. M uitos virtualmente assumem que o poder do qual Cris­ to falou pode ser dispensado, e que, de fato, não é uma realidade, mas uma quimera. Outros, mais devotados, acreditam no poder, mas não na impotência do homem de investir-se dele por si mesmo. Estes tentam ganhar o poder por meio de seu próprio trabalho, ou assumem para si e para outros uma situação de frenesi e entusiasmo. O fracasso, mais cedo ou mais tarde, convence essas pessoas de seus erros, mostrando que os resultados espirituais são produzidos por algo mais do que eloqüência, intelecto, dinheiro e organização; mostra, também, que o verdadeiro poder espiritual não pode ser produzido, como faíscas elétricas, por fricção ou estímulo, mas deve, soberana e graciosamente, vir do alto.

1 Mateus 28.18-20 2 Marcos 16.15. A expressão “a toda criatura” corresponde a pase ktisei sem o artigo. Não desejamos entrar aqui na questão da autenticidade do texto de Marcos 16.9-20. 3 Marcos 13.34 4 O termo Oun é uma leitura discutida, mas a idéia que expressa implica em conexão. 5 Atos 1 2

31 Esperando Atos I .I 2 - I 4 1

l ^ 3 e p o i s que o Senhor havia partido e ascendido ao céu, os onze retornaram a Jerusalém como lhes fora ordenado. Reuniram-se em um cenáculo na cidade e, em companhia das mulheres crentes, dentre as quais Maria, a mãe de Jesus, e seus parentes e outros irmãos, somando cento e vinte pessoas, esperavam pelo poder como homens que esperam pela aurora; ou como homens que vieram ver um panorama, à espera da subida da cortina que escondia da visão as cenas que os olhos não ti­ nham visto, nem seus ouvidos tinham ouvido, nem teriam subido aos seus corações. Estes versículos do primeiro capítulo de Atos nos mos­ tram os discípulos e os demais cristãos esperando e orando. Quão solene é a situação desses homens nessa crise de sua história! Eles estão prestes a passar por uma transformação espiritual; passar, por assim dizer, do casulo à condição de ter asas para alçar vôo. Estão pres­ tes a receber a promessa feita por Jesus antes de sua morte. O Espírito da verdade está prestes a vir e guiá-los em toda a verdade cristã. A estrela da alva está prestes a nascer em seus corações, depois da lúgubre e intensa noite de perplexidade mental e dor desesperadora pela qual passaram recentemente. Estão prestes a ser dotados com as expressões do poder divino e ter a sua compreensão aumentada em relação às palavras e obras de Cristo, de modo que os homens que os ouvissem se surpreenderiam e diriam uns aos outros: “Pois quê! Não são galileus todos esses homens que estão falando? Como pois os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos?... Todos os temos ouvido em nossas pró­ prias línguas falar das grandezas de Deus”2. Com um pressentimento

576

0 Treinamento dos Doze

sombrio do que estaria por vir, com corações que palpitavam e cresciam de entusiasmo pela expectativa e elevando-se com pensamentos admirá­ veis sobre as grandes coisas que estavam prestes a ser reveladas, eles sen­ taram-se naquele cenáculo por dez longos dias e esperaram pela promes­ sa do Pai. Esta é verdadeiramente uma cena impressionante e sublime. Mas como esperaram? Ficaram sentados quietos e silenciosos, du­ rante todo aquele tempo, esperando pela descida do poder? Não, a reu­ nião no cenáculo não era uma reunião da seita “Quaere”. Eles oraram, e até cuidaram de alguns assuntos de ordem administrativa; naqueles dias, Pedro se levantou entre os discípulos e propôs a eleição de um novo apóstolo para o lugar de Judas, que foi para seu próprio lugar. Sua reu­ nião também não foi tediosa, como podem imaginar muitos que nunca passaram por nenhum tipo de crise espiritual, para aqueles que pensam que esperar por Deus é um sinônimo de indolência e indiferença. Pode­ mos ter certeza de que os cento e vinte crentes não sofreram de tédio. Orações e súplicas solitárias preencheram muitas daquelas abençoadas horas. Para homens na situação dos discípulos, a oração não é uma for­ ma de devoção “tediosa” com a qual nós, nestes degenerados dias, estamos tão familiarizados. Em vez disso, é uma luta com Deus, durante a qual as horas passaram sem ser notadas, e o dia acabava antes que percebessem. “Todos estes perseveravam unanimemente em oração e súplicas.” Eles oraram sem esmorecer, sem dar lugar ao cansaço, com um só coração e mente. Além de orar, os discípulos, sem dúvida, passaram parte de seu tem­ po lendo as Escrituras. Isso não foi declarado, mas pode ser assumido como algo a se esperar, e também pode ser inferido pela maneira com a qual Pedro lidou com os textos do Antigo Testamento em seu discurso ao povo no dia de Pentecostes. Aquele sermão pentecostal mostra sinais de preparação prévia. Era, em certo sentido, uma efusão improvisada sob a inspiração do Espírito Santo; mas, por outro lado, o fruto de um estudo cuidadoso. Pedro e seus irmãos tinham, sem dúvida, relido cui­ dadosamente todas aquelas passagens que Jesus tinha exposto no dia em que ressuscitou dos mortos, e entre elas aquele salmo de Davi, cujas palavras os apóstolos citaram em seu primeiro sermão evangélico para sustentar a doutrina da ressurreição de Cristo. Podemos encontrar evi-

Esperando

577

ciências da cuidadosa atenção dedicada a esta e a outras porções messiâ­ nicas das Escrituras pela precisão com que são citadas. Os quatro versí­ culos do salmo colocam palavra por palavra do discurso de Pedro como estão no texto original —um fato marcante, já que vários pregadores e escritores do Novo Testamento não o fazem, preferindo não aderir à ipsissima verba em suas citações do Antigo Testamento, citando os textos mais livremente. Os exercícios espirituais daqueles dez dias seriam mais adiante di­ versificados por conversas religiosas. A leitura das Escrituras traria, na­ turalmente, comentários e discussões. Aqueles que tinham sido privile­ giados pela oportunidade de ouvir Jesus ressuscitado expondo o que estava escrito na lei, nos profetas e nos Salmos a respeito dEle mesmo, não falhariam em transmitir aos seus irmãos o benefício das instruções através das quais o seu próprio entendimento tinha sido aberto. Pedro, que estava tão pronto a propor a eleição de uma nova testemunha para a ressurreição de Jesus, estava não menos pronto para contar a seus com­ panheiros no cenáculo o que o Jesus ressuscitado havia dito sobre esses textos do Antigo Testamento. Ele lhes falaria livremente sobre o signifi­ cado que Jesus lhe ensinou a encontrar no Salmo 16, e faria o mesmo nas ruas de Jerusalém, ao tomar a liberdade de discursar às multidões. Após a leitura do Salmo 109, ele diria: “Homens e irmãos, assim e assim, o Senhor Jesus interpretou estas palavras”. E provavelmente após a leitura do Salmo 109 ele se levantou e disse: “Varões irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi, acerca de Judas... Fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite; e: Tome outro o seu bispado”. Por isso —escolhamos outro para assumir o seu lugar. Assim os irmãos se ocuparam durante esses dez dias. Eles oraram, leram as Escrituras, conferenciaram juntos sobre o que leram e sobre o que esperavam ver. Então continuaram esperando de comum acordo em um mesmo lugar até que o dia do Pentecostes tivesse chegado, quando “de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impe­ tuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a

578

0 Treinamento dos Doze

falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. Então a promessa se cumpriu, o poder tinha vindo do alto, ilustrando de certa maneira, as palavras do profeta: “As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do ho­ mem são as que Deus preparou para os que o amam”. Os eventos do Pentecostes foram a resposta às orações oferecidas durante aqueles dez dias, os quais podemos chamar de “período de in­ cubação” da igreja cristã. Também concluímos que a lição de encora­ jamento a ser aprendida por meio desse fato não pode ser perdida, pois as orações daquele grupo do cenáculo não foram, essencialmente, dife­ rentes das orações dos santos em qualquer outro período da história da igreja. Elas têm se referido praticamente aos mesmos temas. Os onze e os outros oraram pelo poder prometido, para que tivessem mais enten­ dimento quanto ao significado das Escrituras, pela vinda do Reino divi­ no à terra. E enquanto oravam por essas coisas, acreditamos, com fervor peculiar, não oravam por elas com extraordinária inteligência. Deles, tal­ vez mais enfaticamente do que o normal, poderia ser dito que não sabi­ am como convinha orar. Acreditamos que tenham tido muitas idéias confusas sobre o “poder” e sua natureza, e sobre os efeitos que este estava prestes a produzir. Sabemos que eles tinham idéias superficiais e até errôneas sobre o “reino”, pois foi registrado que no dia da ascensão de Jesus eles lhe perguntaram: “Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel?”3 Nesta rápida questão, estão contidos três erros conceituais crassos. Acreditava-se que Cristo estava prestes a reinar pessoalmente na terra, tornando-se um grande rei, como Davi. Os discípulos não tinham nenhuma idéia de uma ascensão ao céu. Então o reino que esperavam era meramente do tipo judaico, nacional. “Restaurarás tu”, eles pergunta­ ram, “o reino a Israel?” Finalmente, o reino por eles procurado era polí­ tico, e não espiritual: não uma nova criação, mas um reino terreno res­ taurado, a partir de uma condição presente de prostração, a uma condi­ ção de poder e esplendor que a nação já havia possuído. As noções dos onze no que concerne ao reino continuaram a ser praticamente as mesmas até o dia de Pentecostes, como aquelas que tinham tido no dia da ascensão. E verdade que Jesus tinha, em sua res­ posta, feito uma declaração que, se rigorosamente entendida, visava a

Esperando

579

corrigir os conceitos errôneos deles. Embora fosse, formalmente, uma declinação a dar informação a respeito do assunto sobre o qual os discí­ pulos estavam curiosos, aquela resposta proporcionava uma explicação real e suficientemente clara do caso. Quando falou do poder que deveriam receber, Jesus deu claras evidências de que o trabalho de inauguração do reino estava prestes a ser feito pelos apóstolos como Ele os incumbira, e não por Ele mesmo em pessoa. E o mesmo está implícito nas palavras: “Ser-me-eis testemunhas”. As testemunhas só são necessárias para al­ guém que não pode ser visto. Conectando o “poder” com a descida do Espírito Santo, Jesus efetivamente corrigiu o terceiro erro dos onze a respeito do reino —isto é, a noção de que o reino teria uma natureza política. O poder recebido através do batismo no Espírito é moral, não político, em seu caráter; e um reino fundado através de tal poder não é um reino deste mundo, mas um reino cujas características e cidadãos são homens que crêem na verdade. Jesus mencionou a verdade ao falar de seu remo a Pilatos. E, em último lugar, as palavras “ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” estavam certamente ajustadas para banir da mente dos onze o sonho de um mero reino judaico nacional. Se a questão fosse apenas a restauração do reino de Israel, para que seria necessário testemunhar a respeito de Jesus até aos confins da terra? Tal testemunho fala de um reino de natureza universal, incluindo todas as pessoas, de todas as lín­ guas e parentescos sob o céu. Pela resposta do Senhor aos discípulos, podemos compreender a verdadeira idéia do reino como um reino fundamentado na fé em Cristo; presidido por um rei, não mais fisicamente presente, mas espiritualmen­ te onipresente; não limitado a um país, mas formado por todos os que fossem da verdade, em todas as partes do mundo. Esta grande idéia, entretanto, não emergiu das palavras que estivemos comentando. Os dis­ cípulos poderiam perceber a natureza do reino, tanto a partir dos ensi­ nos de Jesus, quanto a partir dos eventos da providência divina. O pano­ rama do Reino de Deus deveria permanecer oculto aos seus olhos até que a cortina fosse levantada em três movimentos históricos distintos — a ascensão, a descida do Espírito Santo no Pentecostes, testemunhada pela multidão que tinha vindo festejar, e a conversão dos samaritanos e dos gentios4. O primei­

580

O Treinamento dos Doze

ro desses movimentos já tinha acontecido quando os discípulos se reuni­ ram no cenáculo para esperar pela promessa do Pai. Jesus tinha ascendi­ do, então agora sabiam que o trono do império, a capital do reino, seria no céu, e não em Jerusalém. Este era um conhecimento valioso, mas não era tudo o que precisavam. Somente uma pequena parte do panorama já era visível aos espectadores, e eles ainda estavam no escuro em relação à natureza e extensão do reino por vir. Esperavam ver um panorama de uma nova Palestina, não de um novo céu e uma nova terra onde deveria habitar a justiça; e indubitavelmente continuaram a alimentar essa ex­ pectativa até que as cortinas foram levantadas e os fatos mostraram que tinham, de modo inconsciente, estado orando por isso. Então, a esta altura, aprenderam que aquEle que ouve as orações não só faz pelo seu povo o que este pede, mas faz muito mais do que podem imaginar. Esta cena de espera vista em relação aos eventos subseqüentes regis­ trados em Atos dos Apóstolos, sem mencionar toda a história da igreja, sugere uma outra observação. Podemos aprender através dela a grande importância que pode existir em coisas aparentemente insignificantes. Tivemos a oportunidade de fazer esta observação em conexão com a primeira reunião de Jesus com cinco homens que mais tarde se tornari­ am membros do grupo dos doze escolhidos, e consideramos oportuno repeti-la neste ponto. Se o mundo judeu contemporâneo soubesse da existência de uma reunião como aquela no cenáculo, considerariam-na uma questão desprezível. Porém esta foi a reunião de maior importância ocorrida na Judéia naquele tempo. A esperança de Israel, sim, do mun­ do, estava naquela pequena congregação. Por menor que fosse, Deus estava com aqueles que a formavam. Os infiéis que não criam na influên­ cia sobrenatural riam de tais palavras; mas até estes deveriam reconhecer que alguma fonte de poder estava centrada naquela pequena comunida­ de, pois se multiplicaram com grande rapidez, excedendo até mesmo a dos israelitas no Egito. Aqueles que rejeitaram a influência divina impu­ seram a si mesmos o fardo de uma complicada e difícil explicação do fato. Para aqueles que crêem nessa influência, é suficiente dizer que aquele pequeno rebanho cresceu muito, não pela força, não pelo poder deste mundo, mas pelo Espírito de Deus. Foi de bom grado que o Pai lhes deu o seu reino.

Esperando

581

E agora, deixando para trás aqueles homens pelos quais temos por tanto tempo nutrido considerável comunhão, pode ser bom, aqui, indi­ car em uma sentença, como um resumo, a soma dos ensinos que eles receberam do Mestre. A partir de tal resumo é, de fato, impossível trans­ m itir uma idéia adequada do treinamento que receberam para desempe­ nhar a sua carreira futura. E importante enxergar que a principal parte do treinamento consistiu em estarem na companhia de alguém como Jesus. Contudo, pode ser bom permitir que os nossos leitores enxer­ guem, mesmo que de relance, que a instrução comunicada por Jesus aos seus discípulos não era sistemática e que tinha até mesmo um caráter ocasional. Ela difere totalmente do ensino ministrado nas escolas teoló­ gicas. Durante o tempo em que o Senhor e os seus discípulos estavam juntos, lições de valor inestimável eram transmitidas pelo Divino Mestre aos seus pupilos em muitos assuntos de vital importância. Para enume­ rar os tópicos, tanto quanto possível, na ordem em que têm sido consi­ derados neste trabalho, podemos destacar que o Senhor Jesus deu aos seus discípulos lições sobre a natureza do Reino divino5; sobre a ora­ ção6; sobre liberdade religiosa ou a natureza da verdadeira santidade7, sobre sua própria Pessoa e reivindicações8; sobre a doutrina da cruz e a importância de sua morte9; sobre humildade e virtudes semelhantes, ou sobre o temperamento cristão correto que foi exigido dos discípulos, tanto na vida privada como na vida eclesiástica10; sobre a doutrina do sacrifício pessoal11; sobre o fermento dos fariseus e dos saduceus, e os infortúnios que sobreviriam à nação judaica12; sobre a missão do Consolador, que consiste em convencer o mundo e esclarecê-lo13. As­ sumindo com segurança a precisão dos registros bíblicos, podemos ter a certeza de que o ensino transmitido foi ajustado para fazer dos discípu­ los o que eles tinham sido solicitados a ser: apóstolos de uma religião espiritual e universal. Tiveram o entendimento iluminado, foram capaci­ tados com um amor amplo o suficiente para abraçar toda a humanidade, suas consciências se tornaram tremendamente sensíveis a todas as reivin­ dicações do dever, foram libertos de todos os escrúpulos supersticiosos, emancipados dos grilhões dos costumes, das tradições e dos manda­ mentos dos homens, e passaram a possuir temperamentos purgados do orgulho, da vontade própria, da impaciência, das paixões iracundas, do

582

0 Treinamento dos Doze

espírito de vingança e da implacabilidade. Temos de admitir francamen­ te que eram lentos para aprender, e mesmo quando o seu Mestre os deixou estavam longe da perfeição. Porém eram homens de tão grande excelência moral, que poderíamos confiantemente antecipar que —tendo estado tanto tempo com Jesus —provariam ser excepcionalmente bons e nobres quando se apresentassem ao mundo como líderes de um grande movimento, chamados a agir sob sua própria responsabilidade. Porém jamais dispensariam o precioso auxílio do prometido poder do alto e da influência esclarecedora e santificadora do Paracleto. Até mesmo aque­ les que não crêem na influência sobrenatural devem admitir, em bases puramente psicológicas, que homens que receberam um treinamento tão excepcional se portariam, muito provavelmente, de uma forma sábia, com bravura e heroísmo ao desempenhar suas tarefas como homens pú­ blicos. De acordo com a narrativa de Atos dos Apóstolos, eles cumpri­ ram o seu dever. Porém, de acordo com uma conhecida escola de críti­ cos, cumpriram-na de uma maneira muito pobre —de uma maneira to­ talmente indigna de seu grande Mestre. Qual visão merece mais crédi­ to: a visão do evangelista Lucas ou a do Dr. Baur?

1 As partes do Evangelho e de Atos dos Apóstolos mencionados neste capítulo contêm questões que têm sido motivo de muitos debates. M as por não ser apropriado ao caráter desta obra abordar esses debates e questões, preferimos nos limitar a fornecer a nossa própria opinião a respeito dos eventos sem fazer referência às visões céticas de muitos críticos modernos. 2 Atos 2 .7 -1 1 3 Atos 1.6 4 Considere as observações feitas no capítulo 28 sobre a lentidão do entendimento dos discípulos, que os levou a não compreender as palavras de Cristo até que fossem interpretadas e esclarecidas pelos eventos que se seguiram. 5 Capítulos 5 e 8 6 Capítulo 6 7 Capítulo 7 8 Capítulo 1 1 9 Capítulos 12, 17, 18, 22 e também 9 10 Capítulos 14, 15, 17, 21 e 29 11 Capítulo 16 12 Capítulos 7, 10 e 20 13 Capítulos 25 e 29

Os m étodos que Jesus u ti­ liz o u p ara p rep arar seus discípulos são um modelo inspirador no preparo de novos líderes e servos, e O Treinamento dos 12 documen­ ta os conflitos e sucesso dos que tiveram a oportu­ nidade e o privilégio de se­ rem alunos do M estre por excelência. Ele transformou seus seguidores em pesso­ as que levariam a m ensa­ gem da salvação pelos sé­ culos, de geração a geração. Se você deseja crescer m i­ nis terialm ente e treinar ou­ tros discíp u lo s e líderes, esta obra o auxiliará trazen­ do como exemplo aqueles que estiveram aprendendo aos pés do Senhor dos se-

:

-

e você deseja crescer no discipulado e no ministério, precisa en­ tender de que forma os discípulos se relacionavam com o Senhor. Alexander Balmain Bruce, pastor escocês, ministrou em congregações na Escócia e deu aulas em um Seminário em Glasgow. Por mais de quarenta anos, dedicou-se a ministrar o evangelho, primeiro como pas­ tor, e então como um ilustre professor de Apologética e Exegese do Novo Testamento. Começou a escrever durante o tempo em que pastoreava, e seu conhecido livro O Treinamento dos TDoze foi publicado em 1871. Uma autoridade como o Dr. W. H. Griffith Thomas chamou o livro de “um dos grandes clássicos cristãos do século X IX”, e o Dr. W ilbur Smith, principal bibliófilo americano, observou: “Não há nada impor­ tante na vida de nosso Senhor em relação ao treinamento dos doze apóstolos que não tenha sido relatado nesse livro...” Agora, esse “clássico do século X IX ” pode expandir seu ministério já rico e abençoado. Embora com mais de cem anos de idade, a obra do Dr. Bruce fala poderosa e efetivamente à geração cristã contemporâ­ nea, e beneficiará muitos leitores modernos, porque seus estudos exa­ minam de modo cuidadoso de que forma os discípulos cresceram como resultado do relacionamento que tinham com o Mestre.

ISBN 8 5 -2 6 3 -0 8 5 5 -6

Liderança

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF