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TZVETAN TODOROV
Goya à sombra das Luzes Tradução
Joana Angélica d’Avila Melo
Para Pierre Skira
Sumário
Goya pensador A entrada no mundo Uma teoria da arte A doença e suas consequências Cura e recaída: a duquesa de Alba Máscaras, caricaturas ca ricaturas e brux br uxas as A interpretação interpretação dos Caprichos Tornar Tornar visível visí vel o invisível invisível A invasão napoleônica Os estragos da guerra Homicídios, estupros, salteadores, soldados Os desastres da paz Esperanças e alertas Os dois regimes de pintura Segunda doença, Pinturas Negras, Loucuras Uma nova partida par tida A herança de Goya Caderno de fotos otas ibliografia Créditos das imagens ndice das obras de Goya
GOYA À SOMBRA DAS LUZES
Fig. 1. Pobre 1. Pobre e nua nu a vai va i a f ilosofia. ilosof ia.
Goya pensador
Goya não é somente um dos principais pintores de sua época: é também um dos pensadores mais profundos profundos daquele período, períod o, não menos que seu contem contemporâneo porâneo Goethe, Goethe, por exemplo, exemplo, ou que um Dostoiévski, cinquenta anos mais tarde. Isso era uma evidência para seus primeiros biógrafos, em meados do século XIX, embora a interpretação que eles davam ao seu pensamento fosse superficial. “Ele misturava ideias com suas cores”, escreve Laurent Matheron em 1858; Charles Yriarte, em 1867, tem a mesma opinião: “Por trás do pintor, há o grande pensador cuja trilha foi fecunda. […] O desenho se faz idioma e serve para formular o pensamento”. Quanto às suas gravuras, estas possuem, diz Yriarte, “todo o alcance da mais alta filosofia”. 1* No século seguinte, contudo, justamente enquanto se reafirmava a glória de Goya pintor, criou-se o hábito de encarar com certa condescendência a contribuição filosófica desse autodidata, de quem Ortega y Gasset descrevia a “mentalidade pouco diferente daquela de um operário manual” e de cujas cartas dizia serem as “de um ebanista”. ebanis ta”.2 Goya deixou um desenho com a legenda Pobre Pobre e nua vai a filosof f ilosofia ia (GW 1398, fig. 1), que provém de um poema de Petrarca. Nele vê-se uma jovem, sem dúvida uma camponesa, cuja condição modesta é indicada pelas roupas. Na verdade, ela não está nua, mas apenas desprovida de qualquer espécie de calçado! Traz um livro aberto na mão direita e outro, fechado, na esquerda. Seu rosto é uvenil, um pouco ingênuo, e ela ergue olhos indagadores para o céu. A filosofia poderia então encarnar-se encarnar-se em pessoas simples, descalças, descal ças, que ignoram ignoram tudo tudo das carreiras carr eiras universitárias? niversitárias ? Por algumas rupturas decisivas com a tradição, Goya anuncia o advento da arte moderna. Claro, trata-se aqui de uma uma avaliaaval iação retrospectiva, para não dizer anacrônica. Goya não exerceu uma influência imediata sobre a trajetória da pintura na Espanha, e muito menos sobre os pintores dos outros países europeus: ele só começa a ser conhecido fora da Espanha a partir de meados do século XIX, décadas após sua morte. Não foi o líder lí der tonitruant tonitruantee de um moviment ovimentoo internacional internacional de vang vanguarda, uarda, à maneira maneira de Marin Mari netti etti para par a XXII, o futurismo, ou de Breton para o surrealismo. Somente quando nós, os habitantes do século XX lançamos um olhar sobre a evolução das artes da imagem na Europa, ao longo dos duzentos anos que acabam de passar, pass ar, é que somos levados a constatar: produziu-se produziu-se uma subversão durante durante esse período da história, e Goya é o artista que, certamente não o único, mas melhor do que ninguém, pressentiu os novos caminh caminhos os que se abriam à sua arte e esboçou algun alguns prim pr imeiros eiros passos por esses es ses caminh caminhos. os. Mudanças de tal amplitude, porém, não são, nem poderiam ser, puramente formais. Tais
subversões não podem originar-se unicamente na imaginação de alguns indivíduos, mesmo quando estes são dotados de uma sensibilidade artística excepcional. Embora não sejam a consequência mecânica das mutações que toda a vida social sofre na mesma época, essas subversões entram em ressonância com elas. A revolução pictórica que se manifesta através da obra de Goya faz parte de um movimento que inclui o fortalecimento do espírito iluminista, a progressiva secularização dos países europeus, europeus, a Revolução Francesa e a crescent cresc entee popularidade dos valores valore s democráticos democráticos e liberais. Essa solidariedade não tem nada de fortuito: a pintura nunca foi simples jogo, puro divertimento, elemento decorativo arbitrário. A imagem é pensamento, tanto quanto aquele que se exprime por palavras; ela é, sempre, reflexão sobre o mundo e os homens. Quer saiba disso ou não, um grande artista é um pensador de primordial importância. Mas de que pensamento se trata? Aqui, convém distinguir entre várias posições dentro de um vasto espaço comum. Numa de suas extremidades, encontram-se as reflexões formuladas em termos abstratos por um teórico que analisa um aspecto da existência humana: as paixões ou as ações, o indivíduo ou a sociedade, a moral ou a política. Seguramente, Goya jamais praticou nenhum desses discursos. Em outro extremo, lidamos com aquilo que a imagem revela, mas que a expressão verbal não consegue apreender, aquelas sensações que dispensam palavras e que entram em contato com nossas pulsões primárias: a de permanecer vivo, de absorver e transformar o alimento, de respirar, de temer pela própria sobrevivência — tudo aquilo que Yves Bonnefoy denomina, num ensaio sobre Goya, o “pensamento figural”. Talvez existam poetas capazes de produzir um equivalente linguístico dessa apreensão elementar do mundo, que às vezes encontra uma encarnação na pintura; mas, quanto a mim, sei que sou incapaz de rivalizar com Goya nesse sentido. Para conhecer essa vertente do pensament pensamentoo dele, é preferível, preferível , em vez de ler os coment comentários ários do crítico, observar as imagen imagenss do pintor pintor — ou, à falta falta destas, suas reproduções. Contudo, entre esses dois extremos, o discurso teórico e a sensação pré-verbal da vida, encontrase um vasto território que se comunica com os dois sem se reduzir a nenhum deles. Trata-se de um lugar intermediário, que engloba os discursos, as imagens, mas também o ambiente histórico e social no qual foram escritos os textos, pintados os quadros, desenhadas as figuras. É a existência desse território que nos nos perm pe rmite ite dizer, para evocar apenas um exemplo, exemplo, que a pint pi ntuura europeia do século XV traz um novo pensamento, o da descoberta e da valorização do indivíduo humano, que nessa época a literatura e a filosofia ignoram — ao passo que o descobrirão e o celebrarão, por sua vez, cem ou duzentos anos mais tarde. Portanto, é possível introduzir-se nesse pensamento tanto pelo verbo quanto pela imagem, mas também — ou talvez fosse melhor dizer: sobretudo — por esse encadeamento de atos desejados ou suportados que formam aquilo que denominamos uma biografia. É esse espaço de mediação entre diferentes percepções e interpretações do mundo, e portanto de pensament pensamentoo não teorizado, qu quee constitu constituii o quadro do presente estudo. estudo. A vida e a obra de Goy Goya, a, convém dizer, inserem-se nele sem opor nenhuma resistência. Se adotarmos tal perspectiva, logo nos daremos conta de que Goya não apenas sofreu a influência do espírito das Luzes, mas é também, uma das maiores figuras intelectuais da época, impregnado por
esse pensamento e simultaneamente capaz de transcendê-lo. Ora, o pensamento iluminista não apresenta um interesse apenas acadêmico: ele forma o alicerce sobre o qual estão construídas muitas das sociedades contemporâneas, especialmente a nossa. Por conseguinte, conhecê-lo melhor pode ter consequências diretas para nossas interrogações sobre nós mesmos, sobre nossos valores, sobre o mundo no qual desejamos viver. Assim, meu interesse por Goya não está ligado unicamente à história da arte ou da cultura, mas também participa de uma necessidade de compreender melhor minha época e meus contemporâneos. A obra dele contém uma lição de sabedoria que se dirige a nós, hoje. O pensamento de Goya se expressa sobretudo através das imagens que ele produziu — pinturas, gravuras, desenhos: quase 2 mil trabalhos! Além disso, temos a sorte de dispor de outra forma de expressão praticada por ele, verbal e já não visual. Talvez por causa de sua dificuldade de comunicar-se oralmente, em consequência da surdez que o afetou em 1792, Goya deixou vários indícios escritos de sua reflexão. Para começar, ele é o autor de duas verdadeiras obras, as coletâneas de gravuras dos Caprichos (1798) e dos Desastres da guerra (c. 1820), a primeira publicada em vida, a segunda apenas depois de sua morte, mas ambas compostas com o maior cuidado. Tanto a ordem na qual se sucedem as imagens quanto as legendas de que todas elas são dotadas permitem ver ali a expressão direta — e quão preciosa — do pensamento de Goya. Além disso, o pintor deu títulos ou legendas a muitos de seus desenhos, assim como às suas outras gravuras, o que permite orientar a interpretação desses trabalhos. Embora não tenha sido um autor que tratasse diretamente de questões filosóficas, políticas ou artísticas, Goya deixou um certo número de textos: cartas pessoais, um relatório dirigido à Academia de Pintura, um anúncio da publicação dos Caprichos, requerimentos e missivas oficiais, conceitos transcritos pelos contemporâneos. Comparado a outros pintores do passado, um Rembrandt, um Watteau, dos quais só dispomos de algumas cartas de duvidosa autenticidade e, de qualquer modo, pouco reveladoras, Goya é um homem que se expressou muito bem no seu idioma nacional, a língua espanhola, e não somente na linguagem universal das imagens. Por fim, dispomos de numerosas informações sobre os grandes eventos decisivos para a forma de sua existência, uma forma, por sua vez, rica de sentido. Nem por isso eu me proponho a contar a vida de Goya nos mínimos detalhes, e tampouco a analisar o conjunto de sua produção pictórica. Deixarei de lado grande parte de sua obra, os retratos, a pintura religiosa, as naturezas-mortas, as tauromaquias. O objeto de minha análise será o pensamento de Goya, tal como se revela tanto através de suas imagens quanto de seus escritos, ou nos outros atos de sua vida, em relação a estas duas questões centrais: o sentido de sua revolução pictórica e a subversão que ele traz às concepções iluministas. Para interpretar seu pensamento, sou levado a narrar alguns fatos bem conhecidos de sua biografia e de sua carreira; evidentemente, muito me beneficiei dos trabalhos de outros historiadores e críticos. Sem dirigir-me unicamente aos especialistas na obra de Goya, eu quis apresentar (ou recordar) ao meu leitor o conjunto das informações que o ajudarão a compreender as surpreendentes inovações desse pintor excepcional. * As referências das citações encontram-se nas Notas e na Bibliografia, no final deste volume. As obras de Goya são identificadas por
seu número no catálogo de Gassier e Wilson (abreviado para GW).
entrada no mundo
Nascido em 1746 numa família modesta de Saragoça, bem cedo Goya se orienta para a pintura e adquire in loco os primeiros rudimentos do ofício. Mas, para ter êxito nessa área, é preciso dirigirse a Madri, onde podem ser obtidas encomendas bem remuneradas. Ali ele participa de vários concursos, de início em 1763, depois em 1766, sem obter nenhum sucesso. Decide então tomar um rumo diferente. Para começar, deve completar sua educação de pintor iniciada em Saragoça, e assim ganhar um pouco mais de prestígio; então parte, às próprias custas, para a Itália — o que não deve ter sido um empreendimento fácil. Essa viagem, mal conhecida por falta de documentos, situa-se provavelmente entre 1769 e 1771. Goya se demora especialmente em Roma, onde adquire melhor domínio do seu ofício, ao mesmo tempo que obtém alguns elementos de prestígio. A segunda providência que ele toma para garantir o próprio sucesso é de natureza muito diferente; de volta à Espanha, casa-se em 1773 com Josefa Bayeu, irmã de um dos pintores bem cotados do momento, Francisco Bayeu. Nenhum testemunho permite ver nessa união uma história de amor. Nada prova que Goya tenha jamais pintado um retrato da esposa, e um único pequeno desenho ( GW 840) preserva os traços dela; nas cartas, ele só fala de Josefa de passagem, essencialmente no momento de seus numerosos partos (somente um dos filhos do casal sobreviverá). A impaciência de vê-los chegar, que ele expressa nessa ocasião, parece ter como único motivo o desejo de deixar a casa o mais depressa possível. No entanto, Josefa não devia ser desprovida de inteligência, pois, numa carta, Goya cita uma de suas tiradas: “A casa é a sepultura das mulheres” (a Martín Zapater, 9 de agosto de 1780).1 Em compensação, o casamento lhe abre muitas portas. Ele se torna membro do clã Bayeu, e até chega a morar, a partir de 1774, na casa do cunhado em Madri; e o próprio Francisco é o favorito de Anton Raphael Mengs, o artista considerado então o maior pintor da Espanha. Os primeiros quadros e afrescos de Goya se referem a temas religiosos, pois são encomendas ligadas à Igreja. Falta-lhes originalidade, mas já está claro que o jovem pintor não é atraído pelo estilo neoclássico então em voga, justamente o de Mengs e de Bayeu. O fato de pertencer ao clã Bayeu rapidamente lhe vale as primeiras encomendas ligadas ao palácio. São “cartões” (isto é, quadros-modelo) para as tapeçarias régias destinadas à residência do príncipe herdeiro, o futuro Carlos IV, e de sua esposa Maria Luísa. Os temas são escolhidos pelos financiadores, pelo casal principesco e por seus conselheiros. Por essa época difunde-se na Espanha, particularmente nos círculos aristocráticos ou próximos da corte, uma moda que consiste em valorizar os trabalhos e as festividades populares, as diversões ou simplesmente os modos de vestir
dos jovens de condição modesta, os majos e as majas. Em suma, é o equivalente espanhol das festas galantes que Watteau introduziu na pintura europeia no início do século XVIII. Goya, ele mesmo oriundo de um ambiente popular, domina rapidamente o estilo desses quadros e torna-se o melhor no grupo de pintores que os executam. Ele realizará 63 cartões (dos quais subsistem cerca de cinquenta), ao longo de três períodos distintos: 1775-80, 1786-8 (interrompido pela morte do rei Carlos III) e 1791-2 (interrompido pela doença de Goya). Seu sucesso deve ter-lhe assegurado uma certa liberdade na escolha dos temas. No primeiro ciclo são representadas festas, cenas da vida cotidiana ou cenas de caça. O segundo contém também algumas imagens de assunto mais grave, por exemplo, uma série consagrada ao tema tradicional das quatro estações, que ele trata com muita atenção aos detalhes extraídos da observação. É o caso de O inverno (GW 265): uma família camponesa caminha com dificuldade pela neve, acompanhada de seu cão, de seu jumento e de seu porco — este último, já abatido e amarrado ao dorso do jumento. Esse quadro não remete, como preferiria a tradição, a um ciclo cósmico, tão forte é a presença dessa cena: sente-se a fadiga dos caminhantes, o vento glacial, o frio cortante apesar de alguns raios de sol. Outras imagens evocam a vida das pessoas simples, sem nenhuma implicação idílica ou alegórica; por exemplo, Os pobres na fonte (GW 267). Um cartão como O edreiro ferido (GW 266, il. 1) até surpreende nesse contexto: a cena, que se desenrola na paisagem urbana de uma construção, no meio dos andaimes, não tem nada de divertido nem de instrutivo. Goya havia feito inicialmente uma versão leve, e até humorística, da mesma cena, mostrando O pedreiro bêbado (GW 260); entre as duas versões, a composição se manteve idêntica, somente a expressão dos rostos mudou. O incidente inicial se presta ao riso, mais do que à compaixão. Já O pedreiro ferido é mais grave, e nós nos perguntamos o que ele vem fazer nas paredes de um palácio real. Notam-se também as liberdades tomadas por Goya em sua maneira de tratar o fundo por trás dos personagens: ele os rodeia de grandes massas de cor, que parecem justificadas unicamente pelas necessidades internas do quadro. A encomenda do terceiro ciclo refere-se a temas “rústicos e cômicos”; nele, Goya mostra jogos de crianças, caso de Os pequenos gigantes (GW 304), ou de adultos, como em O fantoche (GW 301), um boneco lançado no ar por várias jovens, quadros de ressonâncias mais dramáticas. Na época dos primeiros cartões, em 1777-8, Goya estuda a obra de Velázquez, da qual produz cópias e gravuras, e que ele escolhe como modelo privilegiado. Tal escolha de predecessor influencia sua maneira de pintar, que se opõe, e disso ele tem consciência, ao cânone contemporâneo: “O estilo hoje é preferencialmente neoclássico [arquitectonico]”, escreve ao seu amigo Zapater (6 de junho de 1787). Por isso, seus quadros são às vezes criticados por serem, segundo a frase empregada, “pinturas inacabadas”. As primeiras encomendas régias favorecem grandemente sua carreira. Seu contato inicial com o rei Carlos III data de 1779; ele postula então o cargo — vantajoso, porque lucrativo — de pintor unto ao rei. Obtém uma primeira integração em 1786 (pintor do rei), uma promoção em 1789 (pintor de câmara do rei) e uma última consagração em 1799 (primeiro pintor de câmara do rei), a cada uma
delas correspondendo um aumento de salário. Paralelamente, torna-se membro da Academia de Pintura de San Fernando em 1780, seu subdiretor em 1785, seu diretor em 1795. Também pinta retratos de membros da família real, tais como o do irmão do rei, Luís de Bourbon, o do filho do rei, o futuro Carlos IV, e o da esposa deste. O conde de Floridablanca ( GW 203, il. 2), que ele executa em 1783, ilustra involuntariamente os perigos de sua situação: demonstra demais seus esforços para lisonjear o primeiro-secretário da época (equivalente a primeiro-ministro). Goya se representa no interior do quadro no papel de um cortesão obsequioso, a ponto de fazer pensar nas miniaturas medievais em que se via o humilde pintor oferecer, dobrando os joelhos, sua obra ao cliente. É verdade que Goya está muito excitado com a perspectiva de pintar esse grande homem, o primeiro personagem realmente importante que lhe encomenda seu retrato. “Ele quer que eu lhe faça o retrato. Isso pode me render muito. Devo tanto a esse senhor!”, escreve a Zapater (22 de janeiro de 1783). Será por tal razão que o retrato nos deixa uma impressão de inabilidade? Floridablanca tem na mão um pincenê, prova de que acaba de examinar o quadro que o pintor lhe apresenta; está acompanhado de um arquiteto, ou engenheiro, que lhe mostra os planos de construção de um canal, como se pode ver pelas folhas pousadas ao seu lado; aos seus pés repousa uma obra sobre pintura; acima dele, o retrato do rei Carlos III está vigilante. Goya quer nos mostrar que o ministro é versado em todas essas matérias, o que não o impede de ser um servidor devotado. Ele mesmo se representa como servidor do servidor, ainda mais submisso: estamos diante de uma verdadeira celebração de autoridade! O pintor quer significar tantas coisas que o quadro se torna ilegível. O ministro está paralisado numa postura rígida, o pintor — que, no entanto, supostamente estaria mais perto de nós — é estranhamente pequeno; sua humildade é excessiva. Aliás, na vida real, Floridablanca não manifesta nenhum entusiasmo diante desse retrato aplicado demais: “Não há senão silêncio, cada vez mais silêncio em meus assuntos [com ele], ainda mais silêncio do que antes do retrato”, queixa-se Goya a Zapater (7 de janeiro de 1784). Outro quadro que ilustra o conformismo social de Goya é o que ele envia à Academia para sua admissão, um Cristo crucificado perfeitamente conforme ao gosto reinante ( GW 176), revelando muita habilidade, mas não uma inspiração original. Convém dizer que sua manobra é bem calculada: ele obtém a aprovação dos acadêmicos. Pouco a pouco, torna-se também um dos retratistas mais apreciados pela alta sociedade madrilenha. Desse modo, faz o percurso de um jovem de talento, ambicioso e oportunista, obcecado pelo sucesso, bem decidido a ter êxito e, portanto, a ganhar mais dinheiro e mais honrarias, sejam quais forem os meios; e chega lá. Para o conhecimento desse período da vida de Goya, dispomos de um documento precioso, as cartas que ele dirige ao seu melhor amigo de infância, que permaneceu em Saragoça: Martín Zapater. A imagem que resulta dessa correspondência é bem diferente daquela que se pode deduzir dos documentos oficiais ou das obras do pintor; não que seja necessariamente mais verdadeira do que as outras, mas traz uma luz complementar. Nessa troca de cartas entre amigos, fala-se muito raramente de pintura. No início, Goya nos aparece como um homem de gostos simples e populares. Seus
prazeres principais são a boa comida, em particular o chocolate (“tens de me enviar uma grande caixa de chocolate” [1780]), a tourada e, sobretudo, a caça: “Caça e chocolate cozidos juntos: eis a boa mistura” (20 de outubro de 1781). “Para mim, verdadeiramente, não há coisa que me divirta mais do que a caça” (6 de outubro de 1781). Também se encontram nessas cartas algumas alusões às prostitutas; mas a afeição que Goya sente por seu amigo parece prevalecer, e de longe, sobre o interesse que ele dedica às mulheres. “Quando penso nos pequenos momentos de conversa que nos esperam, chupo meus dedos de tanta felicidade” (24 de maio de 1780). “Tu e eu somos um só e calaremos o que houver a calar” (6 de outubro de 1781); a fusão entre os dois amigos é ilustrada pela assinatura que Goya apõe no final dessa carta: “Martín e Paco” (isto é, Francisco), como se o texto emanasse tanto do autor quanto do destinatário. Às vezes a própria fronteira entre amizade e amor desaparece. “Partir contigo me encantaria. Porque me agradas tanto e és a tal ponto de minha raça, não seria possível encontrar outro como tu, e podes acreditar, a vida para mim seria estar ao teu lado […] seria verdadeiramente a maior felicidade do mundo” [20 de outubro de 1781]. “Sou apaixonado por este zangão, mais do que ele merece” (mesma data). “Tenho cada vez mais vontade de te ver e de viver contigo” [13 de novembro de 1781]. Tais declarações se sucedem pelo menos até 1793. “Prefiro as conversas contigo a todos os prazeres e alegrias do ninho matrimonial” [dezembro de 1790]. A partir do momento em que é recebido na corte, Goya sente muito orgulho em comunicar ao amigo todas as gratificações que recebe. Quando tem oportunidade de apresentar pela primeira vez seus quadros à família real, fica extremamente sensibilizado. “Beijei-lhes a mão, não, eu jamais tivera uma tal felicidade, não podia desejar mais. […] Que grandeza, meu Deus, nem eu nem minhas obras merecíamos tanto!” (9 de janeiro de 1779). O encontro com o irmão do rei o encanta particularmente. “Fiquei um mês inteiro, sem interrupção, com Suas Altezas, são uns anjos” (20 de setembro de 1783). As atenções que ele recebe, alguns anos mais tarde, do favorito do casal real, Manuel Godoy, não são menos apreciadas. Em uma palavra, “os reis são loucos pelo teu amigo” (31 de outubro de 1799). Uma parte desse prazer resulta de essas honrarias serem acompanhadas de salários e recompensas, dos quais Goya dá conta fielmente a Zapater (as considerações financeiras ocupam boa parte da correspondência). “Meu querido Martín, aí está, eu sou pintor do rei com 15 mil reales por ano” (7 de julho de 1786). Com frequência, ele pede conselhos a Zapater. “Diz-me, tu que tens talento, tanto tino para as coisas, diz-me onde ficariam melhor meus 100 mil reales, no banco, em valor real, ou nas corporações?” (23 de maio de 1789). Bem integrado a esse novo ambiente, Goya adota certas maneiras dele, de modo que acrescenta um “de” ao sobrenome e assina as cartas ao amigo como “teu Francisco de Goya”. Ocorre que essa elite espanhola na qual ele se introduziu é adepta das grandes ideias iluministas, que provêm de toda a Europa e penetram no país a partir do vizinho do Norte, a França. A contaminação se produz lentamente, mas com firmeza, ao longo de todo o século XVIII. Pode-se ver um primeiro sinal importante disso nos ensaios de Feyjoo, monge beneditino e professor da Universidade de Oviedo, os quais foram reunidos numa série de volumes sob o título coletivo Teatro
critico universal (publicados a partir de 1726). Feyjoo critica o estado de atraso intelectual que ele observa em seu país e apresenta ao público uma síntese do pensamento racionalista. Seus heróis são Descartes, Newton e sobretudo Francis Bacon; seu ideal é o conhecimento científico, livre das tutelas religiosas. Esse abalo da autoridade tradicional pela escolha da crítica livre encontra um grande sucesso popular. Progressivamente, multiplicam-se os estudos sobre as ciências empíricas destinados ao grande público, assim como as traduções e adaptações dos escritos de Montesquieu e de Jean-Jacques Rousseau, de Adam Smith e de Condillac, de Beccaria e de Filangieri. O pensamento iluminista que se difunde com sucesso pelo continente europeu não é o de um determinado filósofo ou erudito específico, mas uma síntese anônima, obra de alguns vulgarizadores de talento. Seu ponto de partida é a crítica à autoridade mantida pela tradição, sob todas as suas formas. Para dar legitimidade a uma afirmação, já não basta lembrar sua antiguidade, nem sua conformidade a um texto considerado sagrado, como a Bíblia. Em seu lugar coloca-se o direito à livre busca da verdade por meio de observações imparciais do mundo e de raciocínios lógicos. Portanto, os partidários das Luzes denunciam os preconceitos, as superstições, a ignorância, e invocam a razão e a ciência. Todos os domínios da vida pública, administração, economia, Justiça, devem ser geridos de acordo com princípios racionais. Ao mesmo tempo, esses partidários pedem que a ação da Igreja se limite unicamente à esfera espiritual e não interfira no poder temporal. Também se permitem criticar o clero, cujos representantes nem sempre estão à altura das exigências que dirigem habitualmente aos outros fiéis. De maneira mais difusa, defendem-se as ideias de liberdade individual, de igual dignidade de todos, e procura-se um fundamento puramente humano para todos os valores. Os monarcas espanhóis adotam o modelo do despotismo esclarecido. Carlos III (1759-88) e Carlos IV (1789-1808) conscientizaram-se da necessidade de modernizar o país nos planos econômico e administrativo, assim como no jurídico e no cultural. Querem promover uma organização racional do Estado, favorecer as práticas e o pensamento científicos. Também esperam proteger a população contra a exploração impiedosa à qual os potentados locais a submetem, remediar o estado de miséria em que ela está mergulhada (na Espanha, a expectativa de vida para os pobres situa-se nessa época entre 27 e 32 anos). De igual modo, sem jamais pôr em dúvida a religião católica (Carlos III é um homem particularmente piedoso), gostariam de modificar o equilíbrio entre poder espiritual e poder temporal, e portanto livrar-se da tutela papal, submetendo a Igreja ao Estado: é um movimento regalista, paralelo ao galicanismo francês. Por essa razão, os jesuítas, ligados ao papa, serão expulsos em 1767. A Inquisição, igualmente próxima do papa, será enfraquecida mas não desmantelada, e suas intervenções prosseguirão. Os assuntos de Estado foram confiados a um grupo de aristocratas e intelectuais abertos às ideias iluministas; em espanhol, são chamados os ilustrados, os “esclarecidos”. Em parte, é o caso do primeiro-ministro Floridablanca, no poder desde 1777; mas também e sobretudo dos membros do círculo que o rodeia, administradores, economistas, historiadores ou literatos, entre os quais convém mencionar Jovellanos, Cabarrús, Meléndez Valdés; eles pertencem à mesma geração de Goya.
Podem parecer bastante tímidos ao lado dos enciclopedistas franceses; no entanto, fazem soprar um vento novo sobre as terras da Espanha. Ao redor, de maneira ainda mais difusa, gravita um grupo mais amplo de indivíduos “esclarecidos”, livres dos preconceitos comuns, e às vezes dotados de espírito libertino. Contudo, em seu conjunto, esses personagens, que numericamente só correspondem a uma pequena minoria, assumem uma atitude crítica em relação ao povo; tentam despertá-lo a fim de aproximá-lo do ideal deles. Querem arrancá-lo à influência dos vigários retrógrados que lhe servem de guia e que são responsáveis por sua ignorância, por sua rudeza, pelas superstições que ele mantém. Assiste-se portanto a um conflito latente, que ganhará amplitude durante os anos seguintes, entre, de um lado, a elite esclarecida, que deseja promover a razão e as ideias liberais, e, de outro, os representantes de uma corrente oposta, descartada pela política régia e que, por simetria, poderíamos denominar “obscurantista”. Estes últimos defendem a supremacia do papa, o papel ativo da Inquisição, a propriedade da Igreja e das ordens monásticas, o interesse dos grandes proprietários de terras. No plano ideológico, poderíamos dizer que a separação entre os poderes teológico e político, nos primeiros, opõe-se à confusão entre tais poderes, nos segundos, assim como o reformismo ao conservadorismo. O prêmio do conflito é o povo: cada corrente gostaria de atraí-lo para seu lado. É verdade que o próprio projeto do despotismo esclarecido é minado por uma contradição interna: seus promotores querem que os habitantes do país se comportem como indivíduos livres e racionais, e sejam considerados dotados da mesma dignidade que eles próprios, mas ao mesmo tempo se reservam o direito de outorgar essa liberdade e esses direitos aos outros quando bem lhes parecer. Desejam conduzir a população à autonomia e para isso a conservam em submissão. Propõem a igualdade como ideal, mas não aceitam renunciar a nenhum de seus privilégios. Gostariam de se emancipar da tutela da Igreja, mas não se dispõem a defender a liberdade de consciência. Capturados entre exigências contraditórias, são levados a construir compromissos laboriosos. A simpatia pelas Luzes, nas esferas dirigentes do país, irá perpetuar-se, é verdade que em graus variáveis, com fluxo e refluxo, até a invasão napoleônica de 1808, e isso apesar do pavor causado pelos eventos que se desenrolam na vizinha França: a Revolução de 1789, o regicídio e o Terror. Em consequência de um desses refluxos, em 1790, alguns “esclarecidos” sofrem represálias: Cabarrús é lançado na prisão, Jovellanos e Ceán Bermúdez são banidos da capital. Outro recuo das ideias liberais se produzirá nos primeiros anos do século XIX. Por suas origens, Goya pertence ao povo, mas, graças ao convívio que seu estatuto de pintor mundano lhe impõe, integrou-se à elite esclarecida. Ao tornar-se cortesão e acadêmico, sofre a influência dos membros de seu círculo, figuras políticas ou culturais favoráveis às ideias iluministas. Àqueles já mencionados, acrescentam-se alguns outros, como Moratín ou Iriarte. Também trava conhecimento com abastados colecionadores de convicções liberais, tais como o duque e a duquesa de Osuna, de quem se tornará próximo. O fato de pertencer a um novo ambiente vai transformar seus gostos e seus hábitos. “Tenho a impressão de nascer para outro mundo”, escreve ele a Zapater (29 de agosto de 1781). Nem sempre, contudo, isso o satisfaz, como comprova outra carta:
Já não vou aos lugares onde se podem ouvir as seguidilhas [danças populares], pois cismei de satisfazer certo capricho e de manter certa dignidade, a qual, segundo ouvi de ti, um homem deve ter; com tudo isso, compreenderás que não estou muito contente [1792]. Visivelmente, sob a influência da corte e dos “esclarecidos”, ele deve renunciar aos prazeres simples de que tanto gostava!
Nessa época, a hierarquia dos valores de Goya comporta vários graus. As honrarias recebidas, as marcas de reconhecimento, as gratificações pecuniárias são bem-vindas. Mas ele gosta de pensar que as alegrias simples da vida material e da amizade são superiores a tudo isso. “Quero fazer o que me agrada, e que vá à merda aquele que leva em conta o mundo e as fortunas da corte, vejo bem claramente que os ambiciosos não vivem, que nada sabem do lugar onde vivem” (20 de outubro de 1781). Tal é sua posição de princípio: “Para os quatro dias que temos a viver sobre esta terra, viver segundo o próprio gosto é verdadeiramente um dever” (25 de abril de 1787). “Não desejo outro renome afora o de agradar aos meus amigos” [1787]. Contudo, ele é obrigado a reconhecer que, apesar dessas declarações, continua levando uma vida de cortesão, embora esta não o satisfaça plenamente: Tenho tantas coisas a fazer que não há espaço para nada, mas estou farto de ser infeliz, queria muito estar contigo e degustar esse prazer que temos de estar juntos, e nada, nem os aplausos nem todas as satisfações com o rei, o príncipe, me impede de estar cheio de preocupações (16 de dezembro de 1786).
Na realidade, ao lado desses dois rivais, o reconhecimento público e as alegrias da amizade, surgiu uma terceira ocupação, cuja importância não para de crescer ao longo dos anos: a própria pintura. Embora seja apresentada como uma obrigação, é ela que doravante ocupa o topo no panteão de Goya. “Nada poderia te dar uma ideia de tudo o que me cai em cima, eu vivo sempre às pressas” (23 de junho de 1787). “Não terei nem sono nem repouso enquanto não tiver concluído meu assunto, e não chamo isto de viver, esta vida que tenho” (31 de maio de 1788). No entanto, é a vida que Goya escolheu levar, mesmo quando o grande rei, agora seu amigo, lhe diz que ele não deveria trabalhar tanto… Sua vocação de pintor o mantém, sobretudo a partir do momento em que ele tem consciência de ser “o melhor que existe aqui” (13 de junho de 1787). Agora pertencente ao meio dos “esclarecidos”, nem por isso Goya procura ilustrar suas novas ideias através da pintura. Embora trate os temas de suas encomendas com frescor e originalidade, os próprios temas permanecem puramente convencionais, correspondem a um gosto passageiro das elites aristocráticas, e não a um apego qualquer aos valores liberais. Ele parece haver atingido seu objetivo, o êxito social, e, embora seja melhor do que seus colegas, nada indica ainda que, nos anos vindouros, revolucionará a pintura europeia, ao mesmo tempo que o pensamento das Luzes! Para isso, será preciso que sobrevenha um choque para o qual Goya não estava nem um pouco preparado.
Uma teoria da arte
Esses mesmos convívios e obrigações incitam Goya a completar sua educação intelectual; assim, ele aprende o idioma francês (irá esquecê-lo totalmente mais tarde). Também lê e reflete sobre seu ofício, como comprova o relatório que dirige à Academia em outubro de 1792, em resposta a uma pesquisa sobre os métodos de ensino das artes visuais. Enquanto seus colegas dão respostas bastante técnicas e se limitam a indicações práticas sobre as salas onde as pessoas estudam, a iluminação mais conveniente, os pintores que é preciso imitar ou a organização dos ateliês, Goya redige e lê diante dos colegas um verdadeiro manifesto. Afirma que esse ensino deve ser tão pouco impositivo quanto possível; que é preciso esquecer as regras e imitar a natureza, em vez dos antigos mestres. “Não há regras em pintura, e a opressão, ou a obrigação servil de fazer estudar a mesma coisa ou de seguir o mesmo caminho, é um grande obstáculo para os jovens que escolhem essa arte tão difícil, que se aproxima do divino mais do que qualquer outra, por representar [ significar ] tudo o que Deus criou.” A pluralidade dos caminhos que permitem aproximar-se do objetivo é colocada de saída, assim como a necessidade de dar a cada indivíduo o direito de escolher o dele. Para isso, o estudo é necessário, mas depende do conhecimento do mundo, e não dos modelos antigos: “Que escândalo, ouvir depreciarem a natureza em comparação com as estátuas gregas!”. A ustificação dessa escolha encontra-se no fato de que, dessa maneira, o pintor observa as obras de Deus, criador como ele, em vez de imitar as de um intermediário: “Por mais excelente que seja o professor copiado pelo artista, pode este último fazer outra coisa, além de proclamar: postas lado a lado, uma é a obra de Deus, e a outra, de nossas mãos miseráveis?”. Goya também formula, indiretamente, uma defesa de sua maneira de pintar: “Mesmo aqueles que estão mais avançados nesse caminho não podem senão dar poucas regras das profundas operações do entendimento necessárias para isso, nem explicar por que, às vezes, têm mais êxito numa obra executada com menos cuidado do que em outra mais esmerada”. Fica, assim, defendido o caráter “inacabado” de suas pinturas, que certos connaisseurs criticam. Os resultados desse ensino liberal são imprevisíveis, e portanto é preciso agir como Annibale Carracci com seus discípulos, “deixando cada um seguir a inclinação de seu próprio espírito, sem forçar nenhum deles a seguir o estilo [do mestre], seu método”. Goya, portanto, prega a liberdade dos alunos. O objetivo da pintura, contudo, continua sendo revelar as criaturas divinas, “ter êxito na imitação da verdade” ou da natureza. Na contramão das práticas correntes, os artistas, para aprender a manejar a perspectiva, “não devem ser rebaixados pelo poder ou pelo conhecimento de outras ciências”, como a geometria; as
artes serão julgadas segundo seus próprios méritos, as habilidades que elas exigem lhes são igualmente próprias. Para adquiri-las, bastará “ter em grande estima os verdadeiros artistas, dar livre curso ao engenho dos estudantes que desejam conhecê-los, sem opressão nem imposição de métodos”. E o relatório se conclui com uma nota grave: “Toda a minha vida foi consagrada a alcançar o fruto daquilo que exprimo aqui”. Destaquemos três ideias-força formuladas nesse escrito. Para começar, Goya rejeita o dogma da imitação-cópia, já seriamente abalado desde algum tempo antes, e vai ao encontro dos artistas que, em vez de buscar a semelhança exata entre suas obras e as criaturas naturais, querem imitar o Criador supremo, Deus; eles já não devem aspirar à semelhança das formas, mas à analogia dos atos que as produzem. Nem por isso Goya renuncia à concepção da pintura como conhecimento do mundo, mas, insiste ele, trata-se de um conhecimento específico, irredutível àquele que as ciências produzem. Finalmente, todos os artistas, e não só os gênios excepcionais, têm o direito de se liberarem das regras comuns: a descoberta da verdade, à qual o pintor aspira, passa pela adequação entre a interioridade do indivíduo e os meios acionados, e não pela submissão às tradições comuns e às regras ensinadas nas academias. Essas três ideias mantêm relações diferentes com as doutrinas do passado. A primeira se impôs progressivamente à consciência dos artistas e dos connaisseurs desde a época da Renascença, e encontrou um novo impulso, no início do século XVIII, na filosofia de Leibniz, que introduziu a noção de “mundos possíveis”, paralelos ao mundo existente mas diferentes dele. O objetivo do criador não é imitar a natureza visível, as formas materiais que ele percebe ao seu redor, mas o processo de criação em si. O artista cria um microcosmo análogo ao cosmo, mas que fica separado deste; é por isso que, dizia Leon Battista Alberti, teórico das artes que viveu no século XV, “pintando ou esculpindo seres vivos, ele se distingue como outro deus entre os mortais”. Os criadores se assimilam ao Criador. A segunda ideia, a da arte como conhecimento, embora não seja ignorada pelos pensadores da época, não participa da corrente principal da estética no século XVIII, pela qual as pessoas se preocupam sobretudo em pregar a autonomia da arte e erigir a beleza como princípio estruturante da obra. Goya se mantém inteiramente estranho a essas preocupações, tanto em seu manifesto quanto nas obras que produzirá ao longo das décadas seguintes. Nele, não encontramos cuidado puramente estético nem aspiração específica ao belo: antes de tudo, Goya busca apreender a verdade do mundo, tanto aquele que o rodeia quanto o de sua mente. Mas, ao mesmo tempo, tem consciência de que esse conhecimento é sui generis e não se confunde com o dos cientistas, é um “conhecimento sensível”, poderia ele dizer com Alexander Baumgarten, o inventor, em meados do século XVIII, do termo “estética”; tal conhecimento privilegia o particular em detrimento da abstração, como afirmava no início desse mesmo século o filósofo e historiador italiano Giambattista Vico. Se a primeira grande ideia do relatório de Goya está de acordo com o espírito da época e a segunda é ligeiramente anacrônica (mas está presente nas mentes mais sagazes do Iluminismo), a terceira é francamente revolucionária e anuncia as mutações artísticas vindouras: “não há regras em
pintura”, “é preciso deixar que cada um siga a inclinação de seu espírito”, “dar livre curso ao engenho dos estudantes”! Sem fazer alarde, Goya formula com firmeza um princípio que ninguém ao seu redor ousa proclamar em voz alta. Para isso, foi preciso que se suavizasse o controle da ordem social sobre as escolhas do indivíduo, uma luta travada desde a Renascença, mas que agora atingiu uma nova intensidade. Está aberto o caminho para a emancipação do indivíduo perante as tradições de sua arte. Essa declaração audaciosa em favor da liberdade de criação anuncia a pluralização dos ideais artísticos, que se produzirá nos séculos XIX e XX. A posição de Goya, no entanto, é menos extrema do que a de seus sucessores. O “nada de regras” concerne à maneira de pintar, e não ao objetivo da pintura, que é sempre o de revelar o mundo. E a recusa a impor o mesmo modelo a todos não significa que “os estudantes” não têm nada a aprender — do contrário, Goya não se daria ao trabalho de refletir sobre o ensino desse ofício. Enquanto reina ao seu redor uma visão uniforme da excelência em pintura, ele defende não a complacência e o arbítrio generalizados, mas uma educação atenta às qualidades de cada um. Depois desse texto, Goya não produzirá nenhum outro destinado a expor suas ideias gerais sobre a pintura. Contudo, em seus últimos anos de vida, em Bordeaux, ele fará amizade com um jovem pintor, Antonio Brugada, com quem compartilhará suas reflexões. Brugada, que acompanhará o colega mais velho até o seu último alento, conservou algumas dessas ideias e as confiou ao primeiro biógrafo de Goya, Laurent Matheron, que observa em seu livro: “Devemos à extrema cortesia do sr. Brugada preciosas informações sobre a vida de Goya”. Brugada indica que, em Bordeaux, Goya “raramente falava de pintura e quase nunca respondia quando era conduzido a esse terreno”. Tal observação torna ainda mais plausível a veracidade das opiniões preservadas — pois, felizmente para nós, houve exceções a essa regra. Transcrevo aqui duas afirmações atribuídas a Goya. Em suas raras conversas sobre pintura, Goya, ao falar de seus antigos tempos, gostava de zombar dos acadêmicos e da maneira como estes ensinavam o desenho: “Sempre linhas”, dizia, “jamais corpos. Mas, afinal, onde eles encontram essas linhas na natureza? Quanto a mim, eu só vejo nela corpos iluminados e corpos que não o são, planos que avançam e planos que recuam, relevos e vazios. Meu olho jamais percebe nem lineamentos, nem detalhes. Eu não conto os pelos da barba do homem que passa, e as botoeiras de sua roupa tampouco retêm meu olhar. Meu pincel não deve ver nele mais do que eu. Na contramão da natureza, esses mestres cândidos vão dos detalhes ao conjunto, e seus detalhes são quase sempre fictícios ou mentirosos. Eles confundem seus jovens alunos fazendoos traçar, com seus lápis mais apontados, e isso durante anos, olhos em amêndoa, bocas em arco ou em coração, narizes em 7 invertido, cabeças em oval. Ah! que afinal lhes deem a natureza: ela é o único mestre do desenho!”. Assim como negava o desenho, ou melhor, a linha, Goya negava totalmente a cor, e no entanto era colorista. Apoiava essas duas negações sobre um argumento único: “Na natureza”, dizia, “a cor não existe, tampouco a linha; só existem o sol e as sombras. Deemme um pedaço de carvão, e eu vos farei um quadro: toda a pintura está nos sacrifícios e nos partis pris!”.
Tais afirmações, portanto, dão prosseguimento ao intercâmbio empreendido por Goya com seus colegas acadêmicos sobre o ensino da pintura. Ele parte, aqui, de um princípio: o pintor não deve mostrar o mundo tal como é, mas sua visão pessoal desse mundo. Charles Yriarte, um dos primeiros biógrafos de Goya, que leu o livro de Matheron, assim resume essa ideia: “Ele desenha aquilo que vê, e não aquilo que existe”. Portanto, nem linhas nem cores, mas luzes e sombras; nada de detalhes,
e sim massas em movimento, “tais como vos aparecem à distância, a não ser que sejais míope”, acrescenta Matheron (ainda parafraseando Brugada?). Os “sacrifícios” e os “ partis pris ” são as transformações trazidas ao mundo objetivo pela percepção subjetiva; afirmar que toda a pintura está nisso introduz uma revolução coperniciana. Yriarte relata outra frase, sem esclarecer sua fonte: “Abrindo o mais amplo espaço à luz, ele dizia que um quadro cujo efeito é certo é um quadro acabado”. 1 A experiência do pintor, e não o mundo em si, constitui o objeto de seu quadro; a experiência do espectador, e não as qualidades materiais do quadro, é o que garante a qualidade deste. Nem por isso são experiências estritamente individuais: Goya sabe que seus interlocutores podem aderir à sua própria visão, assim como espera que numerosos espectadores confirmem os efeitos de seus quadros. A verdade à qual a pintura aspira não é individual, mas sim compartilhável por todos.
doença e suas consequências
Após o debate, na Academia, sobre o ensino da pintura, Goya parte para a Andaluzia. O objetivo dessa viagem é desconhecido. Em todo caso, é provável que o pintor não pretendesse ficar muito tempo por lá, pois não havia comunicado essa ausência aos seus superiores, dos quais deveria ter solicitado uma autorização; será obrigado a cuidar disso mais tarde. Também devia ter motivos para não falar da viagem com sua família; nenhum membro desta irá visitá-lo a seguir. Seria uma escapada amorosa ou passional? Ou de engajamento político, já que seu amigo Ceán Bermúdez, historiador de arte, está exilado em Sevilha, justamente a cidade aonde ele se dirige? Não se sabe; mas é pouco provável que se trate de uma simples excursão a fim de ver quadros. É lá que, em novembro de 1792, ele é atingido por uma grave enfermidade, sobre a qual nos informam primeiro as cartas de seus amigos, e em seguida as suas próprias (a partir de janeiro de 1793). A prostração acontece em Sevilha, de onde em seguida é preciso levá-lo a Cádiz, para a casa de seu amigo Sebastián Martínez. Ele permanece ali por vários meses, ao menos até abril; somente em julho de 1793 reencontramos sua pista em Madri. Os sintomas descritos da doença não permitem deduzir a sua natureza. Numa carta de 17 de aneiro de 1793, Goya se diz “de cama há dois meses, com dolorosas cólicas”. Passam-se outros dois meses, e em 19 de março de 1793 Martínez o descreve como ainda acamado e doente, “em péssimo estado”. Dez dias depois, lê-se uma descrição um pouco mais precisa: “Os zumbidos na cabeça e a surdez não diminuíram”, mas os outros sintomas recuam, agora ele recuperou os outros sentidos, enxerga e já não perde o equilíbrio, pode subir e descer escadas. O próprio Goya, nos dias subsequentes, informa em carta a Zapater sentir-se “tão mal que me pergunto se minha cabeça está sobre meus ombros, não tenho vontade de comer, não tenho vontade de nada” [1793]. Passado mais de um ano, ele ainda evoca a tristeza que o assalta e se descreve assim: “Às vezes estou em tal humor que nem eu mesmo posso suportar, em outros momentos me sinto mais calmo” (23 de abril de 1794). Há também uma alusão enigmática numa carta de Zapater a Francisco Bayeu: “Foi sua pouca reflexão que o levou a isso” (30 de março de 1793). Esses sintomas se manterão até o fim de sua vida. Goya permanecerá surdo: irá expressar-se pela linguagem dos sinais e escrevendo. Pequeno consolo: durante sua estada em casa de Martínez, ele pode contemplar a rica coleção de quadros e gravuras que seu amigo reuniu; nela descobre várias imagens que não conhecia, tais como as prisões de Piranesi e as caricaturas de Hogarth. Essa doença, qualquer que tenha sido sua natureza, provoca em Goya uma grande mudança. A
surdez é para ele uma enfermidade menos dramática do que para esse contemporâneo ao qual as pessoas gostam de compará-lo, Beethoven; no entanto, o efeito é igualmente decisivo. A noite auditiva na qual ele está mergulhado vai obrigá-lo a abrir mais os olhos. Sua maneira de pintar, mas também de se conduzir, torna-se diferente. A perda de contato com o mundo exterior e a impossibilidade de comunicar-se oralmente, que reforçam sua solidão, aguçam seu sentido da visão e ao mesmo tempo incitam-no a focalizar-se antes de tudo em seu interior, a explorar sua própria imaginação. Ele renuncia ao cargo na Academia e se retira progressivamente da vida pública. A crescente atenção que dá aos próprios sonhos e fantasias pode ser explicada pelas mesmas causas. Sem dúvida, as premissas do novo Goya estavam presentes no antigo; mas é esse acontecimento recente que lhe permite realizar o programa anunciado em seu manifesto: liberado das convenções pictóricas de seu tempo, ele poderá ir bem mais longe em sua busca da verdade. Pode-se afirmar retrospectivamente que aquilo que fez a desgraça de Goya produziu a felicidade dos incontáveis espectadores de suas imagens, pois é a partir desse momento que o ambicioso pintor de talento se torna um gênio. Na nota biográfica que redigiu pouco após a morte do pai, Javier Goya assim transcreve aquilo que devia ser uma afirmação ouvida com frequência: “Ele havia observado com veneração Velázquez e Rembrandt, e não estudou nem observou outra coisa afora a natureza, mas apontou como sua mestra a situação devida à perda do sentido da audição com a idade de 43 [na verdade, 46] anos”.1 Nessa frase encontram-se tanto um eco do relatório de Goya sobre o ensino da pintura quanto um testemunho de reconhecimento para com os pintores dos quais ele sempre se sentiu próximo; mas, sobretudo, descobre-se nela uma espantosa valorização da doença: ao mesmo tempo que provocou a morte da audição, levou também ao segundo nascimento do pintor. Ela é até mesmo apresentada como a principal responsável por sua nova pintura, aquela que o tornará diferente de todos os pintores que o precederam. Convém notar também que essa subversão interior coincide cronologicamente com um episódio inaudito, que por sua vez abala todas as sociedades do continente europeu: é no mês de janeiro de 1793 que o rei da França Luís XVI, primo do rei da Espanha, é guilhotinado, o que revela a insuspeitada fragilidade de uma ordem social que parecia decorrer da própria natureza do universo. Os dois eventos, um puramente privado, o outro ocorrido no grande palco do mundo, contaminando-se um ao outro, devem ter participado simultaneamente da transformação mental que Goya experimentou. Sua primeira reação à nova situação se produz em sua prática de pintor. Em 4 de janeiro de 1794, ele envia onze pequenos quadros a Bernardo de Iriarte, amigo “esclarecido” e um dos protetores da Academia de San Fernando. Os quadros são acompanhados de uma carta que explica a originalidade deles pela doença que o pintor acaba de sofrer: Para ocupar minha imaginação mortificada pela consideração dos meus males, e para compensar em parte as grandes despesas que eles me ocasionaram, comecei a pintar um conjunto de quadros de gabinete nos quais consegui fazer observações que geralmente não têm lugar nas obras por encomenda, em que o capricho e a invenção não podem permitir-se livre curso.
Goya acrescenta que sua remessa é uma maneira de tornar públicos os quadros, de “submetê-los à censura dos doutos”; e, portanto, de indicar ao mesmo tempo que eles estão prontos (não são simples esboços) e merecem ser vistos pelos conhecedores. A carta mistura, como ocorre frequentemente em Goya, preocupações materiais (“compensar as grandes despesas”) e exigências espirituais. Por causa da doença e da nova enfermidade, ele pinta outra coisa que não quadros de encomenda, pela primeira vez é impelido unicamente pela necessidade interior, pela carência de expressão; a mudança é tão importante que deve ser formulada com todas as letras. Havia sido preparada nas cartas de Goya anteriores à doença, só que em termos mais vagos. “Prefiro fazer ainda outra coisa que será mais do meu gosto”, escrevia a Zapater já em 21 de janeiro de 1778, antes de ser um pouco mais preciso, dez anos mais tarde: “No tempo que me restasse, eu poderia fazer coisas do meu gosto, perspectiva que mais acaricio no mundo” (2 de julho de 1788). As palavras de sua nova carta à Academia são escolhidas com cuidado. “De gabinete” significa, aqui, de pequeno formato; “imaginação” deve ser entendida no sentido de mente, e não de imaginário (ele só pensa em sua doença). Mais importante: através dessas imagens livremente escolhidas e já não produzidas sob encomenda, Goya faz “observações” daquilo que existe fora dele; ao mesmo tempo, essas obras cedem espaço ao “capricho”, aqui no sentido de fantasia e de liberdade, e à “invenção”. Encontra-se, portanto, uma articulação original entre o observado e o inventado, entre o real e o imaginário: enquanto os outros pintores escolheram praticar ou um ou o outro registro, ele quer manter simultaneamente os dois, enriquecendo cada um pelo outro. Através de uma certa inabilidade de expressão, afirma-se algo de novo: o imaginário não se opõe ao real, mas, ao contrário, permite revelá-lo. Uma segunda carta a Iriarte, alguns dias mais tarde, descreve o tema de um dos quadros, O pátio dos loucos ( GW 330). Na mesma época, uma carta a Zapater diz a mesma coisa: “Escolhi a liberdade e trabalho para conservá-la” [1793]; alguns anos antes, ao elogiar a energia de seu amigo, Goya já se situava assim em relação a ele: “Tens tudo na manga, como eu a invenção em pintura” [fevereiro de 1784]. Os quadros acompanhados pela carta têm, assim, um valor de manifesto: comprovam que, apesar do desgosto no qual a nova enfermidade deve tê-lo mergulhado, Goya não perdeu sua aptidão para pintar. Ao mesmo tempo, revelam ao mundo a mutação que ele sofreu em consequência da doença. Portanto, têm uma importância excepcional. A Academia acolhe os quadros enviados classificandoos como “diferentes cenas de divertimentos nacionais”, sem dúvida por causa das imagens de tauromaquia que figuram no conjunto. Mais tarde, Goya retoma os quadros e os vende a um colecionador. Essas obras são identificadas hoje como uma série de quinze pequenos formatos (os onze enviados à Academia e outros quatro de mesmo estilo) pintados sobre folha de flandres ( GW 317-330 e GW 929). Todas representam cenas realistas, e não seres de fantasia, o que torna as frases de Goya um pouco mais enigmáticas. Dividem-se tematicamente em dois grupos: oito figuram tauromaquias, e as outras sete correspondem a assuntos variados. As cenas de tauromaquia, sobre as quais também é possível pensar que precedem um pouco a
doença, representam os diferentes momentos de uma corrida, desde a escolha dos touros ( GW 317) até a evacuação do animal morto ( GW 324). Recordemos que, na época, a tauromaquia é desprezada e vilipendiada pelos amigos “esclarecidos” de Goya, o qual, por sua vez, jamais renunciou totalmente aos seus gostos “plebeus”. Portanto, autoriza-se por sua doença a mostrá-los aqui, como se tivesse deixado de preocupar-se com a impressão que iria causar. Pode-se observar, aliás, que os cartões para tapeçarias contêm numerosas cenas da vida cotidiana das pessoas comuns ou das festas populares, mas nenhuma tauromaquia. Nos oito quadros, três retratam a morte, a do picador ( GW 322) ou do touro ( GW 323 e 324), e cinco mostram arenas semelhantes às de Sevilha, onde Goya se encontrava pouco tempo antes de adoecer (as outras três devem remeter a lembranças mais longínquas; tem-se a impressão de estar numa aldeia). Todos ilustram a notável perícia do artista na representação de corpos em movimento. Entre os outros sete quadros figuram, de saída, duas cenas de teatro popular, que poderiam igualmente corresponder à designação “divertimentos nacionais”. São O vendedor de marionetes (GW 326) e Os cômicos ambulantes (GW 325). O primeiro, raramente exposto (e cuja autenticidade é contestada), representa, de frente, um grupo de crianças cativadas por marionetes e que rodeiam o personagem central, o vendedor, que usa uma capa escura e um chapelão. Este último é visto de costas, e sua silhueta esconde o que ele mostra ao seu público. As crianças olham as marionetes como nós olhamos as crianças: para nós, o que constitui o espetáculo são os espectadores. Ao lado deles está um adulto que parece totalmente estranho à cena: sentado, numa postura distendida, desvia o olhar das crianças e do vendedor, dirigindo-o para um objeto externo ao quadro. A imagem desses dois adultos introduz certo mistério na cena: um nos é escondido, a presença do outro é inexplicável. Os rostos das crianças não estão propriamente pintados, são simplesmente indicados, reduzidos essencialmente ao seu olhar cativo (“toda a pintura está nos sacrifícios”). O local onde se desenrola a cena, ao ar livre, é bastante indeterminado: compõe-se de massas de cor às quais falta brilho. O segundo quadro (il. 3) comporta uma inscrição, “aleg. men.”, abreviação para “alegoria menandrea”: é uma frase da commedia dell’arte, que gosta de invocar o dramaturgo grego Menandro. A escolha do ponto a partir do qual vemos a cena é singular, mostrando-nos os artistas e a parte do público que fica à direita deles, mas não aquela a sua frente. Esses espectadores são ainda menos existentes do que as crianças no quadro precedente; seus rostos permanecem imprecisos. Não são indivíduos, mas sim os membros intercambiáveis de uma multidão, reduzidos a simples manchas de cor; a multidão é, portanto, uma soma de indivíduos que apaga a singularidade deles e atribui a todos uma vontade e uma personalidade comuns. O desaparecimento dos traços distintivos é potencialmente ameaçador, essa multidão anônima — entidade que pela primeira vez vemos representada dessa maneira na história da pintura — obedece às suas próprias pulsões e, em outras circunstâncias, pode transformar-se em “populacho”, para retomarmos um termo de Goya. A cena representada pelos atores mostra Polichinelo que leva consigo Colombina, sob o olhar perplexo de Pantaleão, o tapeado; ao mesmo tempo, Arlequim diverte o público fazendo malabarismos com dois copos cheios de vinho, enquanto um anão dança na parte da frente do
estrado, também segurando uma garrafa de vinho e um copo: a embriaguez anunciada acompanha a sedução da beldade. Pantaleão e Colombina estão em trajes burgueses, ao passo que os outros personagens são simples saltimbancos. Arlequim e Polichinelo usam máscaras — que parecem designar sua identidade, mais do que escondê-la. Portanto, esse tipo de espetáculo, igualmente desprezado pelos “esclarecidos”, retém a atenção de Goya, como se o teatro pudesse dizer a verdade sobre os comportamentos humanos mais diretamente do que os gestos observáveis na vida cotidiana (o pintor compartilha esse interesse pelo teatro com outros artistas do século XVIII: basta pensar em Watteau, em Magnasco, em Hogarth, e mais tarde em Füssli ou em Giandomenico Tiepolo). Como no quadro precedente, a paisagem é mostrada de maneira surpreendente: o céu é da mesma cor que as montanhas no horizonte, e estas mal se distinguem da cortina atrás dos artistas e do estrado sobre o qual eles se encontram. As massas de cores se sobrepõem às formas. Três outros quadros já não têm nada de “divertimento nacional”, exceto se tomarmos essa expressão num sentido irônico: trata-se de cenas de violência. Um deles é O assalto à diligência (GW 327, il. 4). Não é a primeira vez que Goya pinta situações desse gênero. Um quadro de vida cotidiana datado dos anos 1770, que não é um cartão de tapeçaria, já mostra Bandidos assaltando uma diligência (GW 152). Dez anos mais tarde, em 1787, Goya pintou para o duque de Osuna, cliente de gostos esclarecidos, O assalto à diligência ( GW 251), de feitura bastante livre. Mas o tratamento dado ao mesmo assunto no novo quadro é diferente: em vez do ambiente bucólico — bela floresta, céu idílico —, descobre-se um lugar sinistro, rochoso e desértico; as cores claras e vivas cedem a vez a um magma lamacento, muito semelhante àquele que rodeava os artistas da commedia dell’arte. No quadro de 1787, viam-se cadáveres, mas pelo menos os bandidos escutavam as súplicas de suas vítimas; estas estavam amarradas, e não mortas. Na nova imagem, assiste-se a uma simples eliminação dos importunos: os salteadores massacram com indiferença, olhando para outro lado. Nenhum vestígio de uma visão romântica dos fora da lei: são assassinos sem piedade. A violência se mostra aqui em estado puro, indiferente a qualquer norma social. A segunda cena se desenrola no cárcere ( Interior de prisão , GW 929, il. 5). Sob uma volumosa abóbada, iluminada a partir do fundo, jazem sete homens em andrajos. Todos estão acorrentados, alguns mais cruelmente do que outros, pelas mãos, pelos pés, pelo pescoço. Suas posturas revelam o desespero: eles estão condenados a uma imobilidade da qual só poderão sair com a morte. Serão criminosos, como, por exemplo, os bandidos do quadro precedente, agora aprisionados? Se for esse o caso, sua sorte não é menos cruel do que a de suas vítimas: a morte rápida de uns equivale à morte lenta dos outros, a violência impessoal da Justiça não é menos impiedosa do que aquela, individual, dos salteadores. Os corpos deles parecem bastante frágeis em contraste com a espessura das paredes que os rodeiam. Mais ainda do que no quadro precedente, as formas se interpenetram, todas as cores são contaminadas pelo tom cinzento do lugar. Por fim, a última cena, O pátio dos loucos (il. 6), situa-se num manicômio e é bem descrita na segunda carta de Goya a Iriarte: “Representa um pátio de loucos no qual se veem dois deles lutando, completamente nus, enquanto apanham do homem que os vigia, e outros [vestidos] com sacos (é uma
cena à qual assisti em Saragoça)” (7 de janeiro de 1794). As posturas assumidas pelos loucos são tão teatrais que foi possível especular se não se tratava da cena de um espetáculo visto em Saragoça — o que parece pouco provável. Em contraposição, pode-se constatar que esse espaço no manicômio se assemelha de fato a uma cena de teatro, e a gesticulação dos loucos, assim como suas caretas exageradas, lembra a dos atores ou dançarinos profissionais, só que, aqui, os atores se confundem com seus papéis. Como naquelas duas obras, O assalto à diligência e Interior de prisão, somos impressionados pela quase monocromia do quadro: o solo, as paredes, os corpos nus ou mal cobertos parecem participar da mesma substância. A frase “eu assisti a essa cena” (ou outras semelhantes, que Goya empregará depois) não deve ser tomada muito ao pé da letra: ela indica que o pintor se inspirou em fatos cuja autenticidade ele garante, e não que os reproduz com exatidão. Essa é a primeira imagem de loucura em Goya, que mais tarde retomará com frequência o tema da razão e da desrazão, a tal ponto que, durante longos anos, será propagada uma lenda segundo a qual o próprio pintor teria conhecido a loucura. Nenhum fato de sua existência confirma essa imagem popular. Os “esclarecidos” de seu tempo encaram a loucura como uma simples falta ou uma decadência; na estética romântica, que começa a se afirmar já no início do século XIX, a loucura é, ao contrário, valorizada como a manifestação de um estado extremo da humanidade — o louco é um parente próximo do gênio. A atitude de Goya, desde essa primeira imagem, é outra: para ele, a loucura não tem ligação nem com o inumano nem com o demoníaco, não é uma simples curiosidade nem um descolamento heroico do indivíduo às regras sociais. Os loucos de Goya são ao mesmo tempo bizarros e familiares; é que, longe de nos ser estranha, a loucura está em nós, as margens da condição humana permitem iluminar-lhe o centro. Pode-se também pensar que o tema do confinamento, comum à prisão e ao manicômio, não veio do nada na mente de Goya, que acaba de descobrir o isolamento imposto pela surdez. Doravante, o louco e o prisioneiro são ele mesmo. Os dois últimos quadros dessa série representam por sua vez cenas de violência, mas que se devem ao desencadeamento dos elementos naturais: O naufrágio ( GW 328) e O incêndio (GW 329), duas imagens de grande força. O naufrágio mostra um grupo humano feito de mortos e de vivos, no meio das ondas, alguns estendidos sobre rochedos; no centro, uma mulher ergue em vão os braços para o céu. O incêndio (il. 7) substitui o terror das águas pelo das chamas que parecem avançar para o grupo de homens, mais numeroso e mais compacto do que o do Naufrágio; os corpos, nus ou vestidos, são como que impelidos pelo sopro do fogo, alguns — doentes? feridos? mortos? — são carregados pelos companheiros. Os rostos são pouco marcados, as roupas e os corpos dos fugitivos se confundem: os indivíduos não existem mais, tornaram-se simples ingredientes de uma massa humana em ebulição. Aqui, saímos do campo da representação de um evento real, ainda que extremo: o quadro de Goya assume uma dimensão simbólica. A luz do fogo clareia, fugitivamente, uma humanidade mergulhada nas trevas, carregada por um turbilhão. Esse incêndio não se produz num momento preciso, num lugar específico: revela o estado do mundo inteiro, e ao mesmo tempo alguma coisa do interior de cada ser humano. As catástrofes naturais tornam-se o emblema de uma dimensão da existência; o caos que elas provocam é tudo, menos eufórico.
Esses dois quadros mostram uma extrema tribulação humana; contudo, não podem ser qualificados de melodramáticos nem de sentimentais: com um agudo senso do movimento, e também com uma precisão um tanto fria, Goya se empenha em pintar a impotência das vítimas. Pode-se dizer que, com os três precedentes, esses quadros figuram entre as primeiras representações, na pintura europeia, de uma violência sobrevinda na existência ordinária e comum, capaz de atingir qualquer pessoa, e que não é aliviada por nenhuma alusão mitológica, nenhum olhar satírico, nenhuma historieta: uma infelicidade que não deixa esperança — nem divina nem humana. É impossível descrevê-los como elogios ou reprimendas; mais do que referir-se a certezas morais, eles despertam angústias e nos mergulham na perplexidade. O destino, que infligiu a Goya a enfermidade da surdez, abriu-lhe ao mesmo tempo os olhos sobre um aspecto da vida: a impotência ante o desastre. A maneira como o pintor executa sua tarefa impressiona pela extrema liberdade. Todos os quadros dessa série tratam de temas marginais (tauromaquia ou teatro, violência ou loucura), que não podiam encontrar espaço nas encomendas oficiais; além disso, os sete últimos, em relação às normas da época, são “pinturas inacabadas”, realizadas com “menos cuidados”. Ao enviá-las à Academia, Goya significa que, apesar das aparências, elas estão de fato “acabadas”, pois considera “justo” o efeito que produzem. Em seus predecessores, observavam-se tais exemplos unicamente nos esboços que não se destinavam a ser mostrados ao público. Aqui, a perspectiva já não é rigorosamente construída, a ordem do mundo é abalada. Os limites dos objetos se embaralham e passa-se sem transição de um a outro, pois é assim que eles se oferecem ao olhar do pintor. Agora, é a interpenetração das sombras e das luzes que organiza os quadros. O traço que deveria delimitar os objetos é descartado em proveito das massas de cores, e estas já não têm uma função de designação: mais do que refletir a realidade dos objetos, parecem expressar a atitude do pintor diante daquilo que ele mostra e apresentar uma moldura apropriada à cena que ali se desenrola. Goya já não pinta o mundo tal como este existe em si mesmo, mas a visão que um indivíduo tem dele: a percepção subjetiva tomou o lugar da objetividade impessoal, e, doravante, sua pintura não aspira a reproduzir formas, mas sim a captar o clima de um lugar, de uma ação, de um ser. Fiel às suas ideias, ele preferiu “seguir as inclinações de seu próprio espírito”, em vez de dobrar-se às regras acadêmicas. Mas isso não significa em absoluto que ele ceda a uma complacência narcísica, que dê prioridade ao seu ego: Goya está de todo voltado para o mundo, só que simplesmente sabe que o conhecimento é forçosamente subjetivo. Mas a subjetividade de que ele dá provas não lhe é própria, o espectador é convidado a compartilhá-la, a fim de que ela venha a ser de todos: o individual não se opõe ao comum. Portanto, de vários pontos de vista, esse grupo de quadros datados de 1793 anuncia uma ruptura com as tradições da pintura europeia, tais como foram estabelecidas quase quatrocentos anos antes. A produção de quadros havia sido integrada em um sistema global que fixava o sentido e a função deles. Os gestos humanos, assim como os objetos pertencentes à natureza inanimada, possuíam uma significação convencional, que até se podia encontrar repertoriada nos tratados de iconologia. As imagens serviam para decorar as igrejas, os palácios ou, um pouco mais tarde, as residências dos
aficionados ricos, e correspondiam às exigências dos que as encomendavam. Pois bem, eis que Deus, fiador dessa ordem que parecia destinada a durar eternamente, recuou, e os regimes políticos que o invocavam são abalados: a cabeça do rei da França rolou sobre o cadafalso. No mesmo momento, Goya produz quadros que ninguém lhe encomendou, quadros que ele, o humilde indivíduo, decide pintar impelido unicamente pela necessidade interior. A hierarquia própria da pintura foi questionada ao mesmo tempo que a da ordem social, aqui e ali apareceu uma nova exigência de igualdade. O pedreiro ferido (il. 1) já não correspondia a um código de interpretação bem estabelecido; agora, a própria ideia de um código se torna imprópria. Os acadêmicos de San Fernando tentam agarrar-se a categorias antigas, como “divertimentos espanhóis”, mas o que têm de divertido as cenas de assassinato, de prisão, de loucura, de catástrofes naturais que afligem a população? Tais cenas já não correspondem a nenhum repertório de signos convencionais. Goya as representa sem nos indicar qual é seu objetivo. Sentiu que elas revelavam algo de essencial à condição humana; isso lhe bastou para que ele julgasse útil colocá-las sob nossos olhos. A pintura europeia dos séculos precedentes se submetia a uma dupla exigência: prodigalizar lições de sabedoria e de moral, em consonância com o discurso da religião ou da filosofia, e ao mesmo tempo seduzir os espectadores pela beleza do quadro, pela harmonia das linhas e das cores. Assim como a poesia, a pintura deve ao mesmo tempo instruir e agradar, numa proporção variável segundo as épocas. O estilo neoclássico que domina o cenário pictórico no momento em que Goya aparece reduziu a instrução a uma conformidade aos temas e aos gêneros canônicos, e a beleza a uma ornamentação harmoniosa. Goya, contudo, rejeita simultaneamente os dois caminhos. Seus quadros não transmitem nenhuma lição, nenhuma mensagem, são representações literais: eis como são uma cela de prisão, um manicômio, um incêndio; mas tampouco revelam uma preocupação com o prazer dos olhos, com as formas agradáveis e a beleza do cenário. Goya está a mil léguas da busca por um “prazer desinteressado”, identificado na mesma época por Kant como lei fundamental das artes. Na pintura europeia dos séculos precedentes, a submissão ao bem e ao belo devia levar a aproximar-se da verdade: a do mundo visível, a do ser humano. Esse objetivo último será o único que Goya conservará. Doravante ele é guiado por uma só necessidade, a de penetrar o enigma do mundo, de surpreender corajosamente, e impiedosamente se preciso, o seu ser. Tendo aflorado a morte e, portanto, defrontado sua própria finitude, ele agora escolhe, ao menos numa parte de sua obra, ir diretamente ao essencial. Nem por isso renuncia a representar o mundo, ainda que as categorias familiares estejam embaralhadas. “A observação” concerne aos temas; “a invenção”, à maneira de figurá-los.
Cura e recaída: a duquesa de Alba
No decorrer do período 1794-5, Goya trava um conhecimento marcante, o da duquesa Cayetana de Alba, uma das mulheres mais ricas e poderosas do reino, mas também uma das mais belas e de costumes mais livres. A reputação de Goya como retratista explica o encontro; este, ainda assim, é singular. Goya o descreve numa carta ao seu amigo Zapater: “Ela me procurou no meu ateliê para que eu lhe pintasse o rosto, e conseguiu; claro que isso me agrada mais do que pintar sobre tela!” (2 de agosto de 1794). Que cena extravagante! Somente uma pessoa desse nível social pode permitir-se tais gestos: pedir ao pintor do rei que a maquile… Também se fala de um retrato (sem dúvida o GW 351, bastante oficial); no mesmo momento, em 1795, Goya pinta um retrato do duque ( GW 350), com quem ela se casara aos treze anos de idade. Outro quadro, menor e bastante cômico, mostra-a numa cena íntima, sacudindo sua camareira, que fica muito assustada ( GW 352). A duquesa tem então 33 anos e Goya, 49. A continuação dos fatos sugere fortemente que a relação tomou um rumo erótico, embora nenhum documento o ateste formalmente (certos historiadores contestam a existência de qualquer aventura galante entre os dois). Em maio de 1796, Goya está na Andaluzia para pintar imagens religiosas, ver amigos e admirar outras pinturas. Em 9 de junho, o duque morre de repente, aos quarenta anos, quando se encontrava sozinho em sua propriedade de Sevilha. E, em julho do mesmo ano, Goya passa uma temporada em Sanlúcar, outra propriedade do duque, ao mesmo tempo que a duquesa de Alba. Consta que ela se ausenta dali no mês de setembro, mas retorna logo depois; quanto a Goya, sabe-se apenas que, em dezembro e janeiro, ele está em Cádiz e, em 1 o de abril, encontra-se em Madri. Terá permanecido em Sanlúcar em outubro-novembro de 1796? Voltou lá em fevereiro-março de 1797? Em fevereiro desse mesmo ano, em Sanlúcar, a duquesa dita seu testamento; entre seus beneficiários figura o filho de Goya, Javier. O primeiro indício claro de que a relação se tornou mais íntima surge no álbum que Goya começa a preencher com desenhos no início do verão de 1796, dito álbum A. De fato, ao longo dessa temporada, o artista inaugura uma prática à qual dará prosseguimento até sua morte, trinta anos mais tarde: desenha regularmente aquilo que vê ou aquilo em que pensa, constituindo assim uma espécie de diário de bordo visual, destinado a ele mesmo ou a amigos próximos. As imagens desse álbum são reveladoras, pois nelas descobrimos a duquesa na intimidade, penteando-se ( GW 358), acariciando a garotinha negra que ela adotara ( GW 360) ou escrevendo ( GW 374); tem-se a impressão de que Goya pôde observá-la de perto na vida cotidiana. Os outros desenhos do mesmo álbum sugerem mais
fortemente ainda, uma atmosfera de intimidade e de sensualidade: neles vemos jovens nuas, sozinhas ou acompanhadas. A relação íntima entre o pintor e a duquesa não pode ter começado após a morte do duque, deve tê-la precedido ao menos em alguns meses. Uma fase ulterior da relação é sugerida por um retrato da duquesa pintado em 1797 no qual ela está vestida de maja e traz nos dedos dois anéis em que estão escritas as palavras “Goya” e “Alba” (GW 355). No chão, também se podem ler outras palavras, traçadas na areia: “Solo Goya”; o termo solo (“somente”) foi recoberto numa data ulterior, e foi a restauração do quadro que o fez reaparecer. É pouco provável que esse quadro, que anuncia a proximidade entre o pintor e sua modelo, tenha circulado em público. Sabe-se que a tela permaneceu no ateliê de Goya ao menos até 1812; de certa forma, portanto, ele a pintou para si mesmo. O que também se observa nesse quadro é a postura firme, e até autoritária, da duquesa, cuja mão aponta a inscrição no solo. Esse retrato é sensivelmente menos rígido do que o precedente. A imagem da duquesa também aparece nos Caprichos, que datam essencialmente de 1797-8. Assim, o Capricho 19 (GW 489), no qual se mostram as majas que depenaram seus frangos suspirantes e se preparam para assá-los, representa também, nos ramos de uma árvore, uma mulherave com os traços da duquesa, à qual se agarra um homem parecido com Goya; outra ave-macho, com trajes militares, se aproxima. No Capricho 61 (GW 573), intitulado Volaverunt , que significa (em latim) “alçaram voo”, “partiram para sempre”, a duquesa voa: agora tem asas de borboleta pregadas à cabeça e também uma grande capa negra presa aos braços; um grupo de três personagens masculinos está como que suspenso entre seus pés. A imagem aparece no meio de uma série de Caprichos que mostram bruxas, e os comentários contemporâneos se referem ao mundo da bruxaria. Sua interpretação não é evidente, mas em todo caso a duquesa parece levantar voo e desaparecer (ao passo que nos retratos mantinha os pés bem firmes no solo). Seria para dizer que ela borboleteia e foge, em companhia de outros homens? É o que sugere outra imagem contemporânea, sem dúvida excluída dos Caprichos por ser portadora de uma alusão demasiado específica ( GW 619, fig. 2). Seu desenho preparatório ( GW 620) traz a seguinte legenda: Sonho. Da mentira e da inconstância. Essas imagens contam toda uma história. Nelas se vê uma mulher dotada das mesmas asas de borboleta que no Capricho 61; parecese com a duquesa, mas sua cabeça tem duas faces. Uma destas olha um homem com os traços de Goya, choroso, agarrado ao braço da mulher numa atitude de súplica, como se pedisse atenção e consolo; a outra está voltada para outro homem, novo pretendente, que se aproxima colocando o dedo diante dos lábios: pede silêncio, não convém trair o segredo! Uma segunda mulher, que se supõe ser a serva, é igualmente dotada de dois rostos, participa da duplicidade de sua patroa. Por fim, uma máscara bloqueada entre duas bolsas, plantada diante desse grupo, exibe um sorriso zombeteiro, observando atentamente o confronto de uma serpente (enganadora) com duas rãs. Reencontra-se essa assimilação da mulher à serpente num desenho datado da mesma época ( GW 648) que pertence a uma série na qual o personagem humano está diante de um espelho, o qual lhe devolve uma imagem que, em vez de assemelhar-se a ele, revela sua verdadeira natureza, muitas
vezes encarnada por um animal. No mencionado desenho, uma mulher com o tipo da duquesa mantém-se então diante do espelho, e a imagem que ela vê é a da serpente. Se aceitamos buscar nessas imagens os vestígios de experiências vividas, podemos reconstituir a sequência dos acontecimentos da seguinte maneira: após um primeiro período durante o qual se esboçam movimentos de aproximação (em 1794-5), em 1796 instaura-se entre o homem e a mulher uma intimidade que será rompida pela duquesa nos primeiros meses de 1797. Deve-se interpretar a frase “Solo Goya” como emanada da duquesa, que por esse gesto exige a submissão incondicional do pintor como preço de seu consentimento? Ou como o desejo formulado pelo pintor, que se desespera ao ver que ela lhe escapa? A fase seguinte é a do ciúme e da separação: a duquesa se afasta de Goya, voando em direção a novas aventuras (“mentira e inconstância”).
Fig. 2. Sonho. Da mentira e da inconstância.
Esse episódio biográfico não é anedótico; ele marca por sua vez a transformação interna do pintor. Evidentemente, estamos aqui no terreno da hipótese, mas esta encontra apoio nos rastros deixados por Goya em suas imagens. Após o trauma da doença, que deve ter-lhe causado uma sensação de envelhecimento, de isolamento e de inferioridade, o pintor não pôde evitar sentir-se revigorado pela atenção e pela benevolência a ele demonstradas pela mais bela e rica dama da Espanha! Mas sua euforia é de curta duração — o tempo do álbum A, com imagens que figuram entre as mais luminosas na obra de Goya. Para a duquesa, a aventura com o pintor célebre (mas um tanto velho e, ainda por cima, surdo) parece não ter sido mais do que uma distração entre outras; alguns meses ou, no
máximo, um ano mais tarde, ela a interrompe tão subitamente quanto a iniciou. Após sua rejeição por essa dama fulgurante, Goya parece afundar ainda mais no isolamento e na solidão. O que ele havia acreditado ser um remédio torna-se um agravamento da doença. Agora está velho (51 anos!), surdo e enfraquecido; dissipa-se a ilusão de que ainda pode seduzir e participar da troca passional e, além disso, da vida ativa. A doença, durante o outono de 1792, o tinha liberado definitivamente das convenções impostas pela pintura contemporânea, quer na escolha dos temas, quer na maneira de representar o mundo visível. A ruptura afetiva, na primavera de 1797, leva-o a voltar-se preferencialmente para seu universo interior: é este que, de agora em diante, ele buscará expressar. As formas imaginárias afluem ao seu pincel, sem retenção. A duquesa morre em 1802, aos quarenta anos (como o duque), de um mal misterioso; corre o boato de que foi envenenada. Goya lhe desenha um projeto de mausoléu ( GW 759) — e guarda consigo o retrato dela.
Fig. 3. Caricatura alegre.
Máscaras, caricaturas e bruxas
Pode-se observar a evolução de Goya no álbum de desenhos seguinte, dito álbum de Madri (ou B). Convém lembrar aqui que, desde 1796 e até sua morte, em 1828, Goya não se contenta, como todos os pintores antes dele, em praticar o desenho na intenção de preparar suas pinturas ou suas gravuras, mas sim compõe conjuntos coerentes, hoje chamados “álbuns”, nos quais os desenhos são numerados e, na maioria, dotados de uma legenda — prática inovadora, na época. Ao todo contam-se oito álbuns, que os especialistas em Goya designam pelas letras do alfabeto, de A a H. Após sua morte, os herdeiros do pintor desmontaram os álbuns para que cada folha pudesse ser vendida em separado; felizmente, os historiadores atuais conseguiram reconstituí-los. O álbum B segue imediatamente o álbum A, que contém os croquis da duquesa de Alba, e data dos mesmos anos 1796-7. Na primeira metade (38 desenhos, dos 74 preservados), compõe-se de imagens que registram observações do mundo exterior: majos e majas, patrões e servos, casais diversos ( GW 377 a 414). Não estamos longe da realidade representada pelos cartões de Goya anteriores a 1792, destinados a servir de modelos às tapeçarias. As coisas mudam brutalmente no meio do álbum, o que corresponde provavelmente à primavera de 1797: formas antes desconhecidas irrompem, e das visões regozijantes passa-se às imagens satíricas. Esses desenhos anunciam e preparam o primeiro volume de gravuras que Goya publicará pouco depois, em janeiro de 1799: os Caprichos. Pela primeira vez também aparecem, ao lado das figuras desenhadas, legendas e títulos genéricos, tais como Bruxas, Máscaras , Caricaturas , como se o pintor sentisse a necessidade de orientar a interpretação da imagem mediante uma palavra. * Cerca de metade dos desenhos que acompanham essa ruptura evoca sempre os mesmos assuntos que os precedentes, mas parece que a atitude do artista ganhou mais importância do que a representação fiel da realidade. Reencontra-se, assim, o mundo dos majos e das majas, os jogos de coquetismo e de sedução. Contudo, a sensualidade é mostrada mais abertamente, e ao mesmo tempo os detalhes dos corpos e dos rostos são eliminados em proveito dos efeitos de luz e de ambientação. Outros desenhos figuram personagens que assombram as margens da sociedade, prostitutas ou bandidos. Causa ou efeito dessa mudança, a própria técnica de Goya evolui. Pode-se ver isso no desenho B 85 ( GW 443), que figura no meio da série consagrada às prostitutas e traz esta longa legenda: É verão, eles tomam a fresca e se catam pulgas. Em primeiro plano, duas jovens seminuas estão sentadas diante de uma janela aberta; atrás delas encontra-se um homem, visivelmente interessado sobretudo nas partes dos corpos femininos onde as pulgas poderiam se esconder. Os
rostos são apenas esboçados; a atmosfera de conjunto é enfeitiçante e lembra fortemente a que encontramos em alguns desenhos de Rembrandt, pintor admirado por Goya. Vários outros desenhos mostram indivíduos com máscaras. Às vezes a ocasião é proporcionada por uma festa religiosa durante a qual as pessoas as usam, o Carnaval ou a Semana Santa. Goya manterá por muito tempo o gosto por essas mascaradas, que reencontraremos nos quadros mais tardios. Outras vezes, a máscara assume uma função específica, a de revelar a identidade secreta do personagem que a usa. Ela esconde o rosto, mas mostra a interioridade invisível. É o caso de alguns homens disfarçados por cabeças de jumento que contemplam o peito de uma mulher ( GW 415), ou daquele que gostaria de fazer-se passar por um homem letrado ( GW 432). Para Goya, a máscara pode revelar a verdade, ao passo que o rosto é enganador. Aqui, estamos longe do mundo de Pietro Longhi, o pintor veneziano contemporâneo, em que a meia-máscara negra dissimula os traços do indivíduo. É que o real não é o verdadeiro. Todo mundo constrói a própria identidade; no cotidiano, o indivíduo acaba por fabricar para si uma série de personagens, cujos papéis ele assume segundo as circunstâncias. Mas, aos olhos de terceiros, nada assinala que se trata de fabricações. Em contraposição, se o indivíduo usar uma máscara, em vez de deixar-se enganar por seu disfarce, tornase consciente dele e não o esconde dos outros; se for bem escolhida, a máscara revela a pessoa, ao passo que o rosto a dissimulava. Ao impor tal máscara aos rostos que desenha, Goya exibe ao mesmo tempo o caráter construído de cada indivíduo e aquilo que seus atos públicos escondem habitualmente; substitui as poses inconscientes e dissimuladas por máscaras escolhidas e chamativas. Esse uso da máscara faz pensar no teatro; encenado, o vivido deixa de ser óbvio; tornado espetáculo, ele se problematiza. O homem se revela travestindo-se. Para tornar críveis os papéis que desempenha em cena, o ator deve abastecer-se em profundezas de sua mente de cuja existência nem ele mesmo suspeitava. O personagem que ele cria — uma máscara, se quisermos — afasta-se de sua identidade habitual, e ao mesmo tempo lhe permite tornar-se mais verdadeiro. Assim, a ficção revela o mundo melhor do que o faz a existência ordinária; a máscara diz a verdade escondida pela fachada mentirosa da face nua. As caricaturas, nesse sentido próximas das máscaras, tornam mais simples e amplificam os traços do rosto para tornar visível aquilo que habitualmente se tenta esconder. A diferença entre as duas reside no fato de que as máscaras são atribuídas aos personagens representados, ao passo que a caricatura provém do modo de representação. Goya, portanto, vai forçar o traço, eliminando todos os detalhes inúteis e recorrendo à hipérbole, o que nos faz descobrir o avesso desses indivíduos sérios ou derrisórios, ingênuos ou pretensiosos. À diferença de outro artista que o precede de pouco e cuja obra ele conheceu, William Hogarth, o pintor inglês da primeira metade do século, em Goya as “caricaturas” não se opõem aos “caracteres”; o exagero é um caminho para a verdade dos seres, mais do que uma expressão do julgamento feito pelo artista. É o caso do marido enganado pela mulher ( GW 418), do amante de música pretensioso ( GW 425), das mulheres bêbadas ( GW 427) ou do charlatão que arranca dentes ( GW 428). Ou ainda o dos monges, glutões e lúbricos, que se empanturram
avidamente (em Caricatura alegre , GW 423, fig. 3), um dos quais, em primeiro plano, tem um nariz que se transformou num pênis tão pesado que ele precisa de uma muleta para apoiá-lo. Podemos nos surpreender por encontrar a palavra “bruxas” em companhia dos outros dois termos genéricos, “máscaras” e “caricaturas”, que se referem a um modo de existência, e não a uma classe de seres. Tal proximidade pode ser interpretada como o indício de que as bruxas que vemos ali não deveriam ser tomadas ao pé da letra: por sua vez, elas não passam de representações caricaturais ou mascaradas de seres comuns. Todas essas visões imaginárias permitem acessar a verdadeira identidade das pessoas, melhor do que o fazem as formas visíveis a olho nu. O mesmo se dava com a série já evocada de personagens diante de um espelho: a imagem refletida se revelava mais expressiva do que o original (por exemplo, no desenho da mulher-serpente), o invisível era mais preciso do que o visível. É também nesse sentido que poderíamos compreender uma frase que, num poema de sua lavra, enviado ao amigo Zapater, Goya aplica, por brincadeira, a ele mesmo: “Eu sou um pintor-diabo” (19 de novembro de 1788)… Em outra carta a Zapater, Goya indica à sua maneira que, por trás das bruxas e dos outros demônios que ele representa, convém ver simplesmente os traços dos seres humanos: “Eu já não temo as bruxas, nem os duendes, nem os fantasmas, nem os gigantes fanfarrões, nem os poltrões, nem os larápios, nem qualquer tipo de ser, não temo nada nem ninguém, exceto os humanos” (fevereiro de 1784). Dois desenhos do álbum de Madri mostram bruxas. No momento em que os produz, Goya tornarase próximo do autor dramático Leandro de Moratín, homem “esclarecido”, apaixonado por histórias de bruxas e da Inquisição, que proporcionou ao pintor as informações necessárias às suas imagens. O primeiro dos desenhos (GW 416, fig. 4) tem a legenda Bruxas prestes a voar ; ele será retomado ulteriormente em Capricho 70 (GW 591), denominado “Profissão de fé”. Nele se vê uma aprendiz de feiticeira com uma máscara de raposa, termo que em gíria designa a prostituta, carregada por um homem-bode (um demônio), e que fita um livro, sustentado com pinças por outros dois personagens caricaturais: estes são feiticeiros já qualificados que, vestidos de bispos e sentados sobre um altar, apresentam à nova candidata seu livro sagrado, uma espécie de manual de bruxaria, no qual ela poderá aprender a lista dos seus deveres e sobre o qual deverá jurar fidelidade e obediência. Aos seus pés jaz uma caveira. Mas afinal trata-se, aqui, de bruxas imaginárias ou de desejos familiares a todos? Esta última hipótese se reforça quando observamos a segunda imagem de bruxas no mesmo álbum, GW 417, e mais ainda um desenho contemporâneo que lhe é aparentado, denominado Proclamação de bruxas (GW 626, fig. 5). Nele se vê uma cabeça masculina gigantesca cuja boca aberta recebe os excrementos de outro personagem, um feiticeiro, o qual se apresta a soprar entre as nádegas de uma criança, transformando-a assim em instrumento de sopro; a gravura relacionada com esse desenho, Capricho 69 (GW 589), contém igualmente uma cena de pedofilia. Em primeiro plano, um segundo feiticeiro faz o mesmo, mas invertendo a direção de seu “instrumento”: ele sopra na boca de outra criança, o ar sai entre as nádegas dela. A ideia das “crianças-fole” provém dos tratados de bruxaria, mas aqui tornou-se o ponto de partida de uma imersão nas fantasias do pintor. O mundo da magia já
não é senão um pretexto, e essa visão parece alimentar-se num imaginário pessoal, mais do que nesses manuais. Nota-se ao mesmo tempo que a técnica do desenho se transformou, os claros tornaram-se contrastados, as linhas precisas são substituídas por aguadas. Pouco tempo depois, sem dúvida no início de 1798, as bruxas passam dos desenhos às telas. Zombar das superstições do povo está em voga entre os “esclarecidos”; o duque e a duquesa de Osuna, que participam disso, compram então de Goya seis quadros desse gênero, descritos nos registros como “cenas de bruxas para [sua] casa de campo”. Eles são entregues em junho de 1798. Aqui, o mundo da bruxaria encontra o modo de representação inaugurado pelos quadros de 1793. Várias telas pertencentes a esse grupo são inspiradas em peças de teatro contemporâneas (a representação de um fato continua sendo mais confiável e mais expressiva do que o próprio fato), caso de O convidado de pedra ( GW 664) ou de A lâmpada monstruosa ( GW 663, il. 8). Na peça de Zamora O enfeitiçado à força, na qual se inspira este último quadro, o personagem principal é um padre supersticioso que acredita ser objeto de um malefício e, para permanecer vivo, deve alimentar a chama de uma lâmpada do diabo — lâmpada “monstruosa”, como indicam as palavras inscritas num canto do quadro (“Lam. desco.”, por lámpara descomunal ). O padre ocupa o centro do quadro; está rodeado por suas visões de pesadelo: diante dele, o diabo chifrudo que segura a lâmpada e, do outro lado, três jumentos-demônio que caminham sobre as patas traseiras. A cor invade todo o quadro, ultrapassando os limites dos seres e dos objetos, como nas telas de 1793, por exemplo, O átio dos loucos (il. 6); trata-se agora de um dégradé de vermelhos e marrons. Esse quadro representa o pavor angustiado do personagem central; pouco importa saber se os seres demoníacos ao seu redor existem realmente ou se são apenas fruto de sua imaginação, o essencial é que ele acredita nisso — pois sua angústia, essa sim, é bem real. Aquelarre (ou O sabá das bruxas, GW 660) representa o grande bode (ou o diabo) rodeado por um grupo de feiticeiras que trouxeram crianças para sacrificar. Na época, tanto na Espanha como em outros lugares, a mortalidade infantil é muito elevada, o que incita a buscar uma razão externa para tal desgraça. Quem melhor do que o diabo e seus acólitos poderia ser o responsável? Pode-se também pensar que existe uma relação entre a frequente representação, na obra de Goya, de crianças raptadas e sacrificadas pelas bruxas e, em sua vida, a morte repetida de seus filhos recém-nascidos, em número de seis pelo menos. Voo de bruxos ( GW 659) mostra três feiticeiros (de novo, homens) que, atravessando a noite negra, carregam pelos ares o corpo nu de uma vítima, plantando os dentes em sua carne. Duas testemunhas assistem apavoradas à cena, mas esforçam-se por não ver nada: uma cobre os olhos, a outra foge cobrindo a cabeça. Esses demônios atléticos parecem perfeitamente reais, não têm nada de fantasmático.
Fig. 4. Bruxas prestes a voar .
Fig. 5. Proclamação de bruxas.
Em outros quadros bastante inquietantes, as imagens são menos convencionais, caso de A cozinha dos bruxos (GW 662), no qual se veem quatro personagens meio humanos, meio animais, alvoroçados em torno de sua comida, ou de Exorcismo ( GW 661, il. 9). Neste último quadro, à direita, vê-se um homem apavorado. A julgar pelo camisolão de dormir que constitui seu único traje, ele está sonhando — mas, evidentemente, não sabe disso. Embora esteja quase nu, encontra-se ao ar livre, num lugar indeterminado, sob a luz esbranquiçada da lua. Uma espécie de bruxo (homem ou mulher?), envolto num tecido amarelo, estende as mãos para ele, tentando agarrá-lo, o que explica o terror que vemos em seu olhar. Inclusive porque essa figura ameaçadora não está isolada: atrás dela aparecem quatro de suas comparsas, vestidas de preto. Cada uma traz um instrumento indispensável às suas ações mágicas: a primeira estende à frente um cesto cheio de criancinhas nuas, a segunda lê fórmulas em um manual de bruxaria, à luz de uma vela, a terceira enfia agulhas numa boneca que tem nas mãos, a quarta benze todo o ritual. Acima delas flutua um anjo-demônio que segura duas tíbias; várias aves noturnas o acompanham. As cabeças monstruosas das bruxas que se veem nessa tela haviam aparecido pela primeira vez na pintura de Goya dez anos antes, em um quadro que mostra São Francisco Borgia (esboço GW 244; quadro GW 243, mais convencional), já destinado, como os de bruxaria, ao duque de Osuna. Elas pertenciam a fantasmas agrupados em torno do leito de um homem moribundo e repelidos — sem nenhum efeito aparente — pelo santo. Tais fantasmas, portanto, estavam presentes na mente de Goya antes de sua doença; mas agora podem manifestar-se sem reservas. É como se a doença o incitasse às vezes a dispensar não somente seus ouvidos, mas também seus olhos: doravante ele observa dentro de si mesmo. Goya não é o primeiro artista, nem na Europa nem na Espanha, a representar seres e formas que não existem na realidade. Desde a Idade Média, encontram-se na decoração das igrejas imagens cuja origem não está nem nos textos sagrados, nem na observação do mundo circundante, mas sobretudo na imaginação dos escultores e dos pintores. Esses monstros, quimeras e híbridos, muitas vezes combinações inexistentes de elementos perfeitamente realistas, em geral têm uma função didática; representam, por exemplo, os seres que povoam o inferno, cujos tormentos os humildes pecadores devem temer; ao mesmo tempo, encarnam as fantasias ou as pulsões sádicas dos artistas e oferecem uma matéria aos devaneios dos espectadores. Goya pode ter visto os quadros de Hieronymus Bosch — pintor do final do século XV, início do século XVI, já bem conhecido, e de quem havia vários quadros na Espanha — que mostram seres compósitos, com cabeça de homem e corpo de inseto, ou de lagarto, ou de arbusto, ou mesmo de casa. As visões infernais de Bosch, que encontramos em vários de seus trípticos ( O Juízo Final , O jardim das delícias , O carro de feno) ou nas Tentações de santo Antão, também representam numerosos personagens oriundos da imaginação do pintor. A comparação das imagens que se inscrevem nessa tradição com as visões de Goya permite definir melhor a originalidade destas últimas. Os monstros de Bosch, ao menos para o espectador do século XVIII, não habitam o mundo humano, mas outro universo, imaginário. A fabricação deles parece obedecer a operações racionais e controladas: assim, o pintor representa à beira de um lago
uma casa cujo andar superior se transformou numa cabeça masculina. Com isso, as imagens suscitam espanto ou curiosidade, mais do que inquietação. As de Goya são de natureza muito diferente: na maioria das vezes, apresentam seres que habitam nossa realidade, mas cujos traços são deformados a ponto de se tornarem apavorantes. Longe de provir de outro mundo governado por leis próprias, eles são nossos próximos — e até uma outra versão de nós mesmos. Para retomar uma frase de Malraux: “Bosch introduz os homens em seu universo infernal, Goya introduz o infernal no universo humano”. 1 Aliás, nunca estamos seguros da existência deles no mundo exterior: A lâmpada monstruosa os apresenta — talvez? — como o fruto da imaginação supersticiosa e febril do padre; Exorcismo sugere — mas sem o afirmar claramente — que esses monstros provêm de um pesadelo do indivíduo adormecido. Somos levados a hesitar entre uma explicação que não transgride as leis naturais — é um sonho, uma fantasia — e outra que recorre ao sobrenatural — são monstros, demônios. O que corresponde bem ao nascimento, nesses mesmos anos do final do século XVIII, anos de rápido avanço do pensamento racional, de uma literatura que faz viver o fantástico e não mais o maravilhoso, o embaralhamento da fronteira entre real e irreal em vez da instalação tranquila no irreal, aquele dos contos de fadas e das lendas. Os personagens noturnos de Goya inquietam precisamente porque não são muito diferentes de nós. Um dos autores de narrativas fantásticas merece ser lembrado neste contexto, em virtude das numerosas ressonâncias que se podem destacar entre seu destino ou sua obra e as imagens de Goya. Trata-se do conde polonês Jan Potocki, nascido em 1761, grande viajante, político, historiador e poliglota. Viveu, entre outros lugares, na Alemanha, onde conheceu Herder e Goethe, e na França, onde fez amizade com Cazotte, autor de uma narrativa fantástica, e com Germaine de Staël, íntima dos círculos enciclopedistas. Em março de 1791, Potocki chega à Espanha em companhia do embaixador da Polônia. Em Madri, frequenta os ambientes da corte (teria encontrado Goya?) e trava conhecimento com o embaixador do Marrocos, o qual lhe transmite, ao que parece, “longos relatos de sabor oriental”. Em 1794, empreende a redação, em francês, de um grande romance intitulado anuscrito encontrado em Saragoça , que ele abandona alguns anos mais tarde. Em seguida o retoma, primeiro em 1804 e por fim em 1810. A versão final é terminada em 1815. Alguns meses depois, Potocki se suicida de maneira particularmente teatral: ele lima a bola de prata da tampa de um açucareiro, até obter o tamanho desejado, e a introduz no cano de sua pistola. Não deixa nenhuma mensagem para explicar seu gesto, mas, ao lado do cadáver, encontra-se uma folha na qual figuram “algumas caricaturas fantásticas”. O romance narra as aventuras espanholas, e em parte “orientais”, do jovem militar Alphonse (o prólogo conta a descoberta do manuscrito, durante o cerco de Saragoça pelo Exército napoleônico — Goya visita a cidade nesse momento). Todo o início do livro pode ser lido como a evocação de um mundo que as imagens fantásticas de Goya ilustrariam. Durante suas peregrinações pela Sierra Morena, Alphonse é confrontado com todos os personagens que habitarão o universo do pintor entre 1795 e 1815: contrabandistas, salteadores, ciganos, mas também padres, inquisidores e militares; também se verá diante de prisioneiros, de cadáveres, de enforcados. Com frequência, suas aventuras
o levam a suspeitar da presença de seres sobrenaturais: demônios, assombrações, vampiros, ou mesmo o próprio diabo. Quando lemos que “o fantasma abriu uma boca tão grande que a cabeça pareceu partir-se em duas”, não acreditamos ver uma imagem de Goya? Outras vezes, os seres encontrados por Alphonse são jovens sedutoras, mas ele jamais tem certeza quanto à identidade delas: “Eu já não sabia se estava com mulheres ou com insidiosos súcubos”. E não sem motivo: após ter adormecido entre os braços de duas beldades que lhe prodigalizam carícias, ele desperta ao pé de um patíbulo, tendo nos braços dois cadáveres enforcados. Como o personagem de Exorcismo (il. 9), não sabe se sonha ou se realmente está lidando com seres sobrenaturais. Seriam, segundo a frase do inquisidor que o ameaça de torturas, “duas princesas de Túnis ou duas bruxas infames, vampiros execráveis e demônios encarnados”? 2 No final do livro, após incontáveis relatos picarescos intercalados, Alphonse — e o leitor — descobrirá que nenhuma força sobrenatural tinha intervindo: todos os acontecimentos estranhos correspondiam a provas às quais era submetido o herói, cuja coragem devia ser testada. As aparições maravilhosas eram encenações, manipulações, simulações; o uso de soníferos permitia explicar os deslocamentos noturnos de Alphonse. Como Goya, Potocki é um partidário das Luzes e da razão, mas, como ele, sabe que as fantasias humanas que se expressam através das superstições são bem reais; e que as fronteiras entre loucura e razão, entre aparência e realidade, são porosas. Quando penetram na França, em meados do século XIX, as imagens de Goya são descritas por observadores atentos, como Théophile Gautier (autor de narrativas fantásticas) ou Baudelaire, como exemplos do gênero fantástico. Este último assim descreve Goya: “O olhar que ele lança sobre as coisas é um tradutor naturalmente fantástico”, ou seja, trata-se realmente de um olhar sobre o mundo tal como este existe, mas que ao mesmo tempo revela (que “traduz”) dimensões insuspeitadas dele. “Essa atmosfera fantástica que banha todos os seus temas” permite a Goya mostrar a verdade de nosso mundo moderno, “horrores da natureza e fisionomias estranhamente animalizadas pelas circunstâncias”. Baudelaire insiste nessa proximidade entre os seres imaginários de Goya e aqueles que encontramos no mundo de todos os dias: “O grande mérito de Goya consiste em criar o monstruoso verossímil. Seus monstros nasceram viáveis, harmônicos. […] Todas essas contorções, essas faces bestiais, essas caretas diabólicas são penetradas de humanidade ”. Baudelaire não se ilude em absoluto com o exotismo das imagens; elas não nos falam de um outro mundo, mas sim representam aquilo que o nosso esconde, por exemplo, “velhas sempiternas lavam e preparam” as belas jovens “seja para o sabá, seja para a prostituição da noite, sabá da civilização!”. 3 Os desenhos e as telas de Goya se prestam, portanto, a uma dupla leitura: seu objetivo declarado é zombar das superstições; sua mensagem indireta é a revelação de nossos terrores secretos, das visões vindas das profundezas de nossa mente. Numa época em que o Iluminismo parece ganhar novos territórios a cada dia, a posição do pintor (como observa Werner Hofmann em um ensaio sobre Bosch e Goya) ecoa preferencialmente um personagem de Shakespeare, Lafeu, 4 o qual se pergunta se não estamos errados em nos extasiarmos diante do que nos aparece como o triunfo da razão, ao passo que as antigas superstições, agora eliminadas, continham, sob uma forma disfarçada, revelações sobre
nossas próprias profundezas inconscientes: “ Hence it is that we make trifles of terrors, ensconcing ourselves into seeming knowledge, when we should submit ourselves to an unknown fear ” (“Eis o que nos faz tratar como puerilidades nossos terrores, entrincheirando-nos num suposto saber, em vez de nos submetermos a um medo desconhecido”). Goya, porém, sabe encontrar o sentido oculto das imagens antigas. Tal é a segunda etapa na transformação de Goya entre 1792 e 1798, graças à qual o autor dos cartões que mostravam as festividades populares se torna o autor dos Caprichos. A primeira, consequência de sua surdez, subverte sua maneira de pintar, introduzindo o olhar subjetivo no mundo objetivo; a segunda, possível consequência de sua desventura sentimental, anima-o a desviar-se do mundo exterior e a explorar sua própria imaginação. Ao fazer isso, ele descobre que máscaras e caricaturas permitem visualizá-la melhor do que a representação fiel ao real poderia conseguir. Percebe, ademais, que as superstições populares, aquelas que povoam o universo com bruxas, assombrações e demônios, dão forma a essas mesmas fantasias inconscientes. É nesse momento que sua exploração vai ao encontro das tentativas dos “esclarecidos” no sentido de combater o obscurantismo e, portanto, também as crenças nas bruxas. Nesse plano, o encontro repousa sobre um mal-entendido — mas é um mal-entendido fecundo, pois Goya se beneficiará das pesquisas dos “esclarecidos” sobre as superstições. A evolução interna de Goya poderia ser apresentada como uma ilustração eloquente daquilo que Hegel acreditava ser o sentido da história da arte ocidental. Desde o fim do período clássico, que para o filósofo alemão corresponde à escultura grega, os homens, explica ele em sua Estética, deixam de confiar nas formas naturais que eles observam ao seu redor, e o espírito “se retira do exterior para recolher-se em si mesmo”. O artista já não busca reproduzir a beleza da natureza, mas sim explora e exprime sua vida interior. “A alma não cessa de escavar em suas profundezas mais íntimas.” Essa etapa da arte, que Hegel chama de romântica, desemboca na arte moderna, aquela de seu tempo — que é também o de Goya —, na qual já nenhuma constrição pesa sobre os objetos a representar, nem sobre a maneira de representá-los, visto que agora tudo depende da “invenção pessoal”.5 Hegel, que ministra seus cursos de estética a partir de 1818, ignora tudo de Goya, mas, para um filósofo, tem notável conhecimento das grandes correntes da arte, o que lhe permite identificar algumas tendências fundamentais. Quando Ortega y Gasset, mais de cem anos depois, descreve a evolução da pintura ocidental como um deslocamento da atenção, do mundo-objeto para o pintor-sujeito, não faz senão resumir uma das ideias centrais da Estética de Hegel. Goya, por sua vez, parece ter concentrado em sua própria existência um movimento que, no dizer dos filósofos, levou séculos. * Hoje essas legendas servem de títulos aos desenhos e, por essa razão, estão em itálico neste texto. Já as gravuras têm um título (por exemplo, Capricho 64) e uma legenda (“Boa viagem”), a qual, portanto, figura no texto entre aspas.
interpretação dos Caprichos
Goya publica os Caprichos, seu primeiro grande conjunto de gravuras acompanhadas de legendas (oitenta, ao todo), em fevereiro de 1799. Provavelmente, essas imagens foram gravadas em 1797 e na primeira metade de 1798, no moment omentoo em que são pintados pintados os quadros de bruxaria. bruxaria. As gravuras gravuras foram preparadas prepara das por desenhos, desenhos, os quais, por sua vez, são, em muit muitos os casos, ca sos, inspirados i nspirados naqueles que encontramos no álbum de Madri (dito B). Num primeiro momento, o artista parece projetar uma coletânea intitulada Sueños , sonhos ou devaneios, título que ele provavelmente toma de empréstimo à história da literatura. Quevedo, no século XVII, havia intitulado de Sueños seus ensaios satíricos, como um meio de prevenir-se contra os golpes eventuais da censura, mas também de aventurar-se por terrenos pouco explorados explorados.. Esses “sonhos” (foi possível recuperar 26 deles) trazem, nos desenhos de Goya, números de ordem. A sequência deles obedece a agrupamentos temáticos fáceis de identificar: após a imagem inaugural (que se tornará o Capricho 43), vêm nove representações de bruxos e bruxas, em seguida doze consagradas ao comércio do amor e, por fim, algumas caricaturas. Goya, porém, abandona esse primeiro projeto e, quan quando do substitu substituii o primeiro título título pelo de Caprichos, também subverte a ordem de apresentação das gravuras. As diferentes séries anteriores não são conservadas como estavam, mas sim entremeadas; a ordem final, contudo, não é nem um pouco arbitrária. O vocábulo Caprichos, entendido no sentido de liberdade em relação às formas visíveis dos seres, e portanto de direito à invenção, engloba todos os termos precedentes: Máscaras , Caricaturas , Sonhos . No passado, a palavra já fora utilizada nesse sentido. Giambattista Tiepolo, então no auge de sua glória e trabalhando para a corte da Espanha, havia publicado coletâneas intituladas Vari capricci e Scherzi di fantasia (um pouco mais tarde, seu filho Giandomenico Tiepolo, que retornara à Itália nesse meio-tempo, adquirirá um exemplar completo dos Caprichos de Goya). Piranesi, cujas gravuras Goya conhecia, é o autor de uma coletânea intitulada Invenzioni capricci di carceri , que representa prisões — um assunto que Goya faz seu na mesma época. No século precedente, em 1617, Jacques Callot havia publicado, sob o título Caprichos, um conjunto de cinquenta pequenas gravuras. No moment omentoo em que os Caprichos são postos à venda, em 6 de fevereiro de 1799, aparece um anúncio no jornal Diario de Madrid . É muito provável que tenha sido diretamente inspirado em Goya e redigido por um de seus amigos “literatos”, como Moratín. Podemos, portanto, considerá-lo como um terceiro texto “teórico” do pintor, após o relatório de outubro de 1792 e a carta a Iriarte de
aneiro de 1794. Várias ideias estão desenvolvidas ali. O anúncio afirma, de saída, que o objeto dessas imagens é constituído pelas “extravagâncias e pelos desacertos desacer tos comu comuns em toda sociedade socieda de civil” civil ” e pelas “preocupações vulgares”, vulgares”, autorizadas autorizadas “pelo costume, pela ignorância ou pelo interesse”, visto que o objetivo do autor é “a crítica dos erros e dos vícios vício s hum humanos”. Esclarece Esclar ece que os vícios em questão, questão, e portan po rtanto to os personag per sonagens ens represent repres entados, ados, não correspondem a indivíduos, mas a tipos sociais, obtidos pela confrontação prévia de vários modelos. Nesse sentido, não são imagens copiadas do mundo real, mas invenções; aliás, é justamente assim assi m que procede a pintura pintura em e m geral. O pintor sempre sempre mistura mistura a invenção invenção à observação, observaç ão, e é por isso que merece “o título de inventor, e não o de copista servil”. Portanto, reencontra-se aqui o programa iluminista, tal como o professam os amigos “esclarecidos” de Goya (combater os vícios e as superstições); o artista se mantém fiel a ele, apesar dos inquietantes rumores que chegam à Espanha sobre os transtornos ocorridos na França (o Terror, o regicídio), apresentados pelos inimigos das Luzes como consequência inelutável delas. Reconhece-se igualmente a concepção de pintura que Goya invocava em seu relatório à Academia: o pintor não imita as criaturas, mas o Criador. O anúncio está de acordo com as ideias de seu tempo, afirmando que o pintor busca representar uma construção mental, e não aquilo que vê com os próprios olhos. E Goya se submete efetivamente a essa exigência, exigência, elim eli minando inando da coleção definitiva definitiva as gravuras cujos modelos podiam podi am ser identificados identificados (caso, como vimos, da duquesa de Alba), exceto uma: seu autorretrato no início do volume. Contudo, a esse conjunto de ideias gerais, o anúncio dá uma inflexão original. O objetivo de Goya não é conformar-se a uma beleza ideal, como quer a estética neoclássica (encarnada, por exemplo, por Mengs), Mengs), mas sim s im ating atingir ir a verdade ver dade oculta dos seres que ele represe r epresennta. A própria oposição opos ição entre entre ideal e real é abolida. Goya não se preocupa com o belo, o que ele quer transformar é a imitação. Não se trata apenas de decidir decidi r represent repres entar ar tipos em vez de indivíduos; mais importan importante, te, ele quer mostrar o invisível em vez do visível, e nisso, esclarece o anúncio sem falsa modéstia, seu projeto é único, pois “o autor não seguiu o exemplo de outro”. A mudança é significativa: “Os objetos representados nesta obra são, na maior parte, imaginários [ ideales]”, portanto o pintor “afastou-se inteiramente” da natureza visível e fixou para si outro objetivo: tentar “expor à visão formas e atitudes que até agora só existiram na mente humana, obscurecida e confundida pela falta de luzes [ilustración] ou acalorada acalor ada pelo pel o desencadeament desencadeamentoo das paixões”.1 Tal declaração é de fato revolucionária: doravante, o pintor visará a representar o imaginário, e não o visível. O descarte do visível assume aqui um sentido muito diferente daquele que possuía dentro da tradição teológica cristã. Na Imitação de Cristo , Tomás de Kempis aconselhava aos homens: “Aplicai-vos em desapegar vosso coração do amor às coisas visíveis, para dirigi-lo inteiramente às invisíveis”. 2 O monge do século XV queria que os homens deixassem de olhar a natureza e suas obras a fim de contemplar unicamente a graça, que se desligassem do mundo daqui de baixo a fim de se voltarem para par a o reino do céu. Goy Goya, a, em contraposição, quer arrastar arras tar o invisível para o mundo mundo do visível, dar forma forma às fantasias fantasias que habitam habitam o espírito espír ito hum humano. ano. Tais fantasias fantasias nascem não só das superstições do povo simples e dos vigários retrógrados, mas também das paixões
humanas; ora, estas últimas são compartilhadas por todos e constituem uma parte inextirpável do homem: ninguém pode pretender que o avanço das Luzes o tenha libertado de todas as paixões. O imaginário não é o contrário do real, é até mesmo o melhor caminho para alcançá-lo. De saída, portanto, Goya tem perfeita consciência de uma certa dualidade dos Caprichos: eles representam simultaneamente uma sátira deliberada dos comportamentos ridículos de sua época e um mergulho no inconsciente — do autor, mas também de seus espectadores. Esse termo não deve ser tomado no sentido freudiano, corriqueiro em nossos dias, mas naquele, mais geral, que já possuía na época em outras línguas. Uma famosa carta de Schiller a Goethe, datada de 27 de março de 1801, insiste em que o verdadeiro artista sempre deve partir de um impulso inconsciente, mesmo que mais tarde o submeta a um trabalho consciente: “O poeta toma seu único ponto de partida no inconsciente […]. A poesia, se não me engano, consiste precisamente em saber exprimir e comunicar esse inconsciente […]. O inconsciente, unido à coisa refletida, constitui o artista poético”. Em sua resposta, Goethe vai no mesmo sentido: “Creio que tudo o que o gênio faz enquanto gênio se passa na inconsciência”.3 É impossível reduzir os Caprichos, como faz hoje a interpretação corrente, a uma simples crítica das superstições e das taras sociais, conduzida segundo o programa dos “esclarecidos”. Os dois elementos, crítica lúcida dos costumes e revelação dos abismos escondidos no fundo de cada um, interpenetram-se a cada instante: as bruxas ou os diversos seres sobrenaturais são mostrados de maneira realista, enquanto os indivíduos humanos se transformam em fantasmas. O Capricho mais célebre é provavelmente aquele que traz atualmente o número 43. A gravura tem uma legenda, traçada pelo próprio Goya dentro da imagem (o que ele não faz em nenhum outro lugar), que diz: “O sonho [ sueño] da razão produz monstros” ( GW 536). Em espanhol, o termo sueño possui um sentido duplo, o de “sono” e o de “sonho”, o que autoriza uma dupla interpretação dessa frase. Se ele significa “sono”, entende-se por aí que, quando a razão adormece, os monstros noturnos levantam a cabeça, e portanto é preferível que ela desperte para expulsá-los. Os monstros são externos à razão, permanecemos dentro de um projeto educativo. Mas, se a palavra significa “sonho”, então é a própria própri a razão r azão que, quando quando funciona funciona em regime regime noturno, noturno, produz monst monstros. ros. Aqui, Aqui, a condenação condenação desses personagens personagens é muito menos menos nítida: nítida: a razão ra zão fabrica ideias i deias claras clar as mas também também pesadelos, e o pin pi ntor se propõe a ampliar o campo do conhecim conheciment entoo mostrando-n mostrando-nos os o conteúdo conteúdo deles. dele s. A razão está ausent ausentee do sono, está envolvida no sonho. E o sentido que a palavra assumiu nos desenhos precedentes de Goya intitulados Sueños é de fato sonho, e não sono. Os objetivos iluministas são mantidos, mas a concepção antropológica na qual eles se apoiam, ao menos em sua versão popular, foi abandonada: a eliminação das paixões e de suas criações é inconcebível, subentende Goya, é melhor tentar conhecê-las. O projeto já não é destruir as superstições e as fantasias, mas compreendê-las e, consequentemente, domesticá-las; quando ele o consegue, essas visões, longe de causar medo, fazem rir. Encontra-se uma confirmação dessa inflexão dada ao programa inicial em certos comentários contemporâneos, que se supõe terem sido redigidos por pessoas próximas do pintor, as quais teriam transcrito suas explicações das gravuras; esses comentários aos Caprichos são designados pelo local onde foram conservados, como o
“manuscrito do Prado” e o “manuscrito da Biblioteca Nacional de Madri”. No manuscrito do Prado, lê-se este comentário: “A imaginação [ fantasia ] abandonada pela razão produz monstros impossíve impossíveis; is; unida unida a ela, é a mãe mãe das artes e a origem de suas maravil maravilhas”. has”. O título de outro desenho preparatório, GW 623, que na gravura correspondente ( Capricho 50, GW 551) será fortemente transformado, sugere uma interpretação semelhante: é A enfermidade da razão. Sem dúvida tal estado é deplorável, mas está ligado a um dos registros da atividade racional: uma razão enferma ainda é uma razão. Os filósofos racionalistas fustigados pelo personagem de Shakespeare, assim como os devotos do irracional que se multiplicarão nas décadas vindouras, encontram-se do mesmo lado: escolhem um dos termos em detrimento do outro. Já Goya faz colaborarem razão e imaginação, reflexão e inconsciente, para ele nem um pouco incompatíveis. É precisam preci sament entee essa combinação combinação que define define a especificidade especi ficidade do conh conhecimen ecimento to ao qual as artes conduzem, diferente daquele das ciências. Sob esse ponto de vista, os Caprichos trazem um enriquecimento decisivo à doutrina iluminista — sem com isso renegá-la. A gravura mostra um homem adormecido sobre sua escrivaninha, cercado por aves noturnas, morcegos e mochos, assim como por um gato enorme, na época símbolos familiares da estupidez e da ignorância, ou mesmo do próprio diabo. Aliás, encontram-se as mesmas encarnações das forças negativas no esboço contemporâneo de uma alegoria à qual se dá o título de A Verdade, erdade, o Tempo Tempo e a istória ( GW 696), na qual os dignos personagens que figuram nessas abstrações são atacados por uma revoada de mochos e morcegos, mas ao mesmo tempo protegidos por uma abundante onda de luz. Na gravura, os animais noturnos são acompanhados de um lince, animal famoso pela acuidade de sua visão: a cegueira cegueira e a visão agu aguda da coexistem sempre. sempre. Essa gravura havia sido preparada por dois desenhos. Um deles traz o título Sonho 1 ( GW 537), o que indica que ele deveria ficar no início da série dos Sonhos. O lince já se s e encontra encontra lá, mas as aves, uma das quais é imensa e apavorante, são bem diferentes; todo o canto superior esquerdo da folha está vazio. O texto da legenda também é diferente. Sob a mesa na qual o homem se apoia, lê-se: “Idioma universal. Desenhado e gravado por F. de Goya em 1797”. Mais embaixo, fora do desenho, o texto continua: “O autor sonhando [ou dormindo]. Seu único desígnio [ yntento ] é banir nocivas crenças comuns [bulgaridades ] e perpetuar com esta obra de caprichos o sólido testemunho da verdade”. De certo ponto de vista, essas frases de 1797 preparam o anúncio publicado em 1799: o projeto das Luzes está claramente afirmado nelas, a razão e a verdade acossam as superstições vulgares, embora embora tomem tomem o caminh caminhoo específico espe cífico das artes, a rtes, o dos “capric “ caprichos hos e inven i nvenções”; ções”; os dois element elementos os são s ão solidários. O comentário da Biblioteca Nacional explica: “Quando os homens não ouvem o grito da razão, tudo se torna visão”. O “idioma universal” pode ser o das imagens: Goya quer corrigir também aqueles que não sabem ler. Está especificado, enfim, que o homem adormecido é de fato o pintor, pintor, o próprio própri o Goya; Goya; quant quantoo ao termo termo sueño, este mantém sua ambiguidade.
Fig. 6. O sonho da razão.
Esse desenho é, por sua vez, precedido por outro, GW 538 (fig. 6). Aqui, o homem adormecido é atacado por outros seres. As aves noturnas e o lince já estão presentes, mas com bem menos precisão. Acima deles, veem-se os cascos de um jumento e, ao lado deste, um cão; mas, sobretudo, um rosto repetido muitas vezes, que não é outro senão o do próprio Goya: certas imagens mostram-no calmo, outras o representam fazendo caretas. Essas cabeças ocupam, em particular, a parte superior esquerda da folha, precisamente aquela que o desenho seguinte deixará vazia. Esse desenho, o
primeiro da série, sugere que os “monstros” de que fala a legenda da gravura não só provêm da mente do autor como têm a forma de seus diferentes gestos e poses. As vítimas de fantasmas e bruxas, faces atribuídas às nossas paixões, não são os outros, pessoas incultas, mas o próprio pintor e (talvez) seus espectadores; ademais, esses fantasmas têm um rosto familiar: o de cada um de nós. Toda separação estanque é abolida entre nós, os “esclarecidos”, e o mundo das trevas, entre o regime diurno da consciência e aquele, noturno, das paixões inconscientes. Mas Goya deve ter achado que essa imagem era clara demais, que ela fornecia uma explicação excessivamente límpida dos Caprichos; na versão seguinte do desenho e na gravura, ele deixa um grande vazio no lugar onde aparecia seu próprio rosto angustiado. Comparemos esses desenhos (e essa gravura) de Goya a um célebre desenho de Michelangelo, habitualmente designado por um termo semelhante, O sonho (fig. 7), que data aproximadamente de 1533.
Fig. 7. Michelangelo, O sonho.
O homem, nu e parecido com o Adão do Juízo Final , está sentado sobre uma caixa que contém máscaras com caretas, e se apoia sobre um globo que figura a Terra. Está rodeado por outras figuras nuas, nas quais foi possível reconhecer seis dos sete pecados capitais (falta o Orgulho, fonte de todos os outros), todos dotados de uma aparência fantasmática. O homem, que não está adormecido, volta seu olhar para uma figura que o sobrevoa e que lhe insufla o espírito, com o auxílio de um tubo. A interpretação corrente vê nessa figura alada uma encarnação da Glória: aspirar a ela permite manter à distância os pecados ameaçadores e afastar as máscaras, símbolo das ilusões enganosas. Essa lição, mais próxima do espírito antigo do que do cristianismo, distingue-se por vários traços
daquela que Goya sugere. Para começar, é significativo que Michelangelo represente o homem em geral, o homem universal, cuja nudez o extrai de toda situação particular e o torna intemporal, ao passo que Goya se mostra pessoalmente em sua singularidade. O indivíduo pertencente a um momento da história, a um lugar único, substituiu a abstração alegórica, ao mesmo tempo que a visão subjetiva se introduziu no mundo objetivo. Esse personagem central é ameaçado, no italiano, por forças do mal existentes fora dele, os pecados; no espanhol, por quimeras nascidas de sua própria mente: o perigo já não vem do exterior, mas de dentro. Em Goya, à diferença de Michelangelo, nenhuma ajuda pode vir do céu: acima do homem adormecido, só existem seus fantasmas noturnos. As máscaras, rejeitadas e descartadas no desenho antigo, já não são separadas do rosto nu por uma fronteira nítida: é à sua própria figura que Goya dá o aspecto de uma máscara, e é justamente esta que lhe permite ver-se melhor e portanto aproximar-se da verdade da condição humana. Entre os dois desenhos escancara-se um vazio: aquele que separa o mundo antigo da modernidade. Goya não manterá esse Sonho na abertura da obra, mas colocará a gravura correspondente no meio desta, atribuindo-lhe o número 43. Com isso, a interpretação de conjunto se vê modificada. No início da série, vem agora outro autorretrato de Goya ( Capricho I , GW 451), que, em vez de ser dominado por visões noturnas, permanece senhor de si e do mundo circundante; usa chapéu e trajes formais, e lança um olhar frio sobre o que o rodeia. O comentário da Biblioteca de Madri assim o descreve: “Verdadeiro autorretrato, de mau humor e com expressão satírica”. Esse personagem se situa claramente do lado da razão e das Luzes: através dele, Goya afirma sua distância em relação àquilo que representa em seu trabalho. O centro de gravidade da coletânea foi deslocado, as imagens satíricas de intenção social foram multiplicadas. O Capricho 43 vem na sequência destas, anunciando as representações de bruxas e outros seres fantasmáticos na segunda metade da coletânea. Portanto, essas duas gravuras, os Caprichos 1 e 43, ilustram as duas interpretações bastante diferentes que o autor dá para suas imagens: o pintor trajado com apuro simboliza o reinado da razão que permite fustigar as taras da sociedade; o pintor adormecido, invadido por suas visões noturnas, encarna a impotência em controlar o que provém de sua própria mente. Aquele que concebe ou imagina as visões é o sonhador do Capricho 43; aquele que as organiza e comenta para oferecê-las ao público, dom Francisco Goya do Capricho 1. Nenhum dos dois pode dispensar o outro; os Caprichos são o resultado da colaboração entre eles. Outras legendas de desenhos e textos de acompanhamento contêm igualmente indícios para a interpretação da série. O Capricho 6 (GW 461) traz como legenda: “Ninguém se conhece”. O manuscrito do Prado acrescenta: “O mundo é uma mascarada: rostos, trajes, vozes, tudo é fingido; todos querem aparentar o que não são, todos se enganam reciprocamente e ninguém se conhece”. Tem-se a impressão de ler La Rochefoucauld ou outros autores jansenistas do século XVII. Mas, na verdade, a mensagem de Goya é um pouco diferente: os rostos que cada um fabrica para si no mundo é que são enganosos; as máscaras com as quais Goya vai recobri-los, transformando os homens em umentos ou em macacos, revelam, ao contrário, a verdadeira natureza deles. O desenho A enfermidade da razão, já evocado, comporta esta legenda inacabada: “Pesadelo no qual eu não
podia nem acordar nem me livrar da nobreza na qual…”. A primeira pessoa do singular, utilizada aqui, é reveladora: de fato, é de seus próprios sonhos que Goya nos fala; mas nem por isso faz deles um relato direto, que seria caótico demais: seu desenho é a reconstrução desses sonhos feita por um homem acordado. O último Capricho, o de número 80 ( GW 613), recebe este comentário no manuscrito do Prado: “Assim que começa a clarear, cada um foge para seu lado, bruxas, duendes, visões e fantasmas. […] Essa gente só se deixa ver à noite e no escuro. Ninguém conseguiu saber onde eles se encerram e se escondem durante o dia”. Mas aqui Goya banca o modesto; na verdade ele conhece a resposta desse enigma: eles se escondem no âmago de cada um de nós, são nossos próprios demônios. O mundo é estruturado por categorias cuja oposição é clara: saúde/doença, razão/loucura, dia/noite, luzes/trevas. Ora, por suas imagens, Goya se empenha em demonstrar a interpenetração e a inseparabilidade das duas: a fronteira que as divide é permeável. Razão e desrazão são características humanas ao mesmo título. As superstições das pessoas simples e ignorantes, que acreditam em bruxas e em fantasmas, podem também povoar os sonhos das pessoas “esclarecidas”, como Goya e seus amigos. O sobrenatural já não habita os campos ou as florestas, mas o interior de nossa mente, e portanto é perfeitamente explicável. Assim é que Goya abandona o cenário tranquilizador onde se mantêm os “esclarecidos”, e que lhes permite criticar os outros, e passa para o lado dos homens comuns, cuja mente é invadida por essas imagens inquietantes. A desordem, o caos, o Carnaval oferecem uma imagem visível daquilo que forma nossa mente. Numa carta a Zapater, datada de 1785, encontramos um exemplo — raro — dos meandros aos quais a imaginação de Goya pode conduzi-lo. No meio de frases perfeitamente anódinas, lê-se o seguinte: Ah, como era bom teu cantinho com chocolate e roscas, mas sem liberdade, porque é cheio de variados insetos munidos de instrumentos mortais, ganchos e navalhas, com os quais, uma vez por descuido, outra por invenção, arrancaram de quem tu sabes um pedaço de carne e alguns cabelos do crânio, e eles não somente arranham e brigam mas também mordem e cospem, picam e perfuram; e além disso servem de alimento a outros bichos mais gordos e bem piores (19 de fevereiro de 1785).
Não temos a impressão de haver mergulhado repentinamente num quadro de Bosch ou, mais perto de nós, num relato de Kafka? Por essas frases, Goya talvez se refira aos incômodos que lhe provocam as pessoas com as quais ele tem de conviver na corte, primeiro os outros pintores, os críticos, os “conhecedores” (“variados insetos”), em seguida os cortesãos, nobres e religiosos (“bichos mais gordos”), uns tão ignorantes e invejosos quanto os outros; mas o que impressiona acima de tudo é a força de evocação dessas frases, a comprovar que Goya sabe exprimir em palavras aquilo que habitualmente ele confia às suas imagens. Não se pode afirmar que Goya tenha desejado facilitar a interpretação dos Caprichos. Em geral, os desenhos preparatórios comportam legendas mais explícitas do que aquelas, irônicas e paradoxais, que acompanham as gravuras; tem-se a impressão de que ele escolheu deliberadamente embaralhar o sentido de sua mensagem, torná-la mais ambígua do que ela era na origem. Retomemos um exemplo analisado por outros comentaristas. A primeira versão do Capricho 13 é o desenho já
evocado (GW 423, fig. 3), intitulado Caricatura alegre , e que representa um grupo de monges comendo gulosamente, um dos quais tem um pênis gigante no lugar do nariz. A segunda versão do desenho, preparada com vistas à gravura ( GW 477), suprime o nariz e traz uma legenda que expressa mais claramente a intenção satírica: “Sonho. De certos homens que nos comiam”. A refeição torna-se aqui metafórica, a alusão sexual desapareceu, foi substituída por uma referência ao contexto social: na realidade, esses monges que declaram consumir o corpo e o sangue de Cristo durante a comunhão engordam explorando a população que eles alegam servir; como prova, um criado lhes traz sobre uma bandeja uma cabeça humana pronta para o consumo. Por fim, a gravura ( GW 476) retoma essa segunda versão da imagem (GW 477), mas inclui a legenda “Estão quentes”, o que evoca novamente associações sexuais, ainda que estas tenham deixado a representação; aliás, o comentário contemporâneo do Prado só fala de alimento. Resultado: a gravura tornou-se enigmática, ao passo que nos desenhos o sentido era transparente. Em outros casos, reencontra-se a mesma operação de embaralhamento. Se levarmos em conta todas as indicações textuais da época — o anúncio de venda, as legendas que acompanham cada gravura, os desenhos preparatórios com suas próprias legendas, os comentários inspirados em Goya e transcritos nos manuscritos do Prado e da Biblioteca Nacional —, a leitura de cada imagem é relativamente fácil. Mas, evidentemente, não é esse o caso para o espectador e leitor comum, que Goya preferiu deixar na ambiguidade e na indecisão, talvez para incitá-lo a buscar o sentido por si mesmo — e, portanto, também em si mesmo.
Fig. 8. “Aonde vai a mamãe?”, Capricho 65.
Tornar visível o invisível
No plano temático, costuma-se dividir os Caprichos em três grandes grupos. O primeiro reúne as imagens cuja intenção de sátira social é clara, que visam a vícios ou maus hábitos e atacam as falsas reputações, a hipocrisia generalizada, as trapaças, a ignorância, a estupidez do clero, a embriaguez: cerca de 25 gravuras. O segundo narra a comédia sexual, as relações, geralmente interessadas, entre mulheres e homens, nas quais os gestos convencionais mal escondem o apetite sexual e a sede de riquezas — os homens são alternativamente ingênuos e cobiçosos, as mulheres frequentemente pérfidas (a ideia de “mentira e inconstância” não está longe): cerca de 23 gravuras se vinculam a essa linha. Por fim, o terceiro grupo é aquele que se refere às superstições, às bruxas e aos fantasmas: 26 gravuras. Permanecem externas a esses conjuntos as duas gravuras que enquadram o todo, de número 1 e 43, e algumas imagens alegóricas que não se referem especificamente a nenhum desses temas. As imagens de cada grupo às vezes se sucedem, mas em geral estão entremeadas, nova prova do fato de que Goya não desejava facilitar a sua interpretação. Os três conjuntos estão de acordo com o programa “esclarecido” dos amigos de Goya, que consiste em combater a falta de educação, as superstições das massas, o conservadorismo do clero, os abusos da Inquisição, o parasitismo dos aristocratas, opondo-lhes ideias consideradas por seus inimigos como importadas da França. Por exemplo, a legenda do Capricho 2 (“Elas pronunciam o sim e estendem a mão ao primeiro que se apresenta”, GW 454) é tirada de um poema de Jovellanos. Os dardos disparados por Goya são distribuídos equitativamente: os pobres não são melhores do que os ricos, nem as mulheres do que os homens (o manuscrito do Prado comenta o Capricho 6 : “Onde os homens são perversos, as mulheres o são igualmente”). As pessoas comuns não valem mais do que aquelas que as oprimem; o Capricho 24 (GW 499) mostra a multidão regozijando-se ao ver uma mulher condenada pela Inquisição: os risos são esgares, os rostos caricaturais, o povo já não é senão populacho. A legenda confirma o julgamento desencantado do pintor: “Não houve remédio”. Goya não ministra lições, ele formula constatações. Não se coloca numa perspectiva didática, suas gravuras não parecem dizer tanto “não convém agir assim” quanto “eis como se comportam os homens e as mulheres”. Nenhuma categoria humana é reservada sistematicamente à figuração das forças do mal. Com frequência Goya escolhe como alvo os monges, mostrados como preguiçosos, hipócritas, cobiçosos, mas em outras ocasiões representa-os de maneira benévola. E não confunde anticlericalismo com ateísmo, fiel, nisso, à tradição central do Iluminismo: ele zomba dos representantes da Igreja ou da
Inquisição, não ataca a fé. Como outros “esclarecidos”, critica a intromissão do clero no mundo profano, deseja a separação entre a Igreja e o Estado (o que os filósofos denominam “o fim do teológico-político”), mas não hesita em executar pinturas sobre temas religiosos, e algumas de suas imagens de Cristo ou dos apóstolos revelam uma emoção autêntica. O que sabemos de suas práticas pessoais não permite concluir por uma rejeição radical à religião cristã. À diferença dos “esclarecidos”, porém, Goya não aborda a contrapartida positiva desse empreendimento crítico. Ele é — e será de agora em diante — muito mais sensível aos vícios e às paixões subterrâneas do que às virtudes e à propensão para a felicidade; as calamidades humanas suscitam sua curiosidade mais do que sua inspiração educadora. Desde a doença, e mais ainda após a ruptura com a duquesa de Alba, suas imagens apresentam uma visão crítica da humanidade. Os seres humanos que ele decide mostrar são ou bestas (isto é, ignorantes, ingênuos, crédulos), ou maus (cobiçosos, brutais, cruéis), ou feios — e às vezes as três coisas ao mesmo tempo! Evidentemente, há exceções: mesmo na parte não oficial de sua obra, encontram-se desenhos que representam relações maternais (como GW 1251) ou paternais (por exemplo, GW 1252) idílicas; porém, são mais raros. No entanto, a postura de Goya não se confunde com a dos satiristas antigos, que não veem nada além da miséria humana, nem com a dos niilistas modernos, os quais ensinam aos seus seguidores que a vida é desprovida de todo sentido e valor. As obras de Goya produzem uma impressão diferente: para começar, qualquer tom professoral ou sentencioso está excluído; além disso, as imagens, mesmo as mais negativas, não dão a impressão de que o objeto das zombarias é radicalmente diferente do pintor: a familiaridade das invectivas dele ou de suas descrições sublinha a proximidade dos dois. Deveríamos deduzir daí que o artista, e não somente seus quadros, era um misantropo e um melancólico? Os outros documentos de que dispomos não confirmam essa visão. Goya se revela um amigo fiel, um pai (e, mais tarde, um avô) que zela ferozmente pelos interesses de seus próximos, um homem que não parece haver perdido uma certa alegria de viver. Talvez ele não dedique grande estima à humanidade, mas preza sempre as pessoas que o rodeiam, como se a pintura, absorvendo seus rancores, tivesse livrado sua vida cotidiana deles. Algumas dessas representações são realistas, outras contêm visões fantásticas, mas isso não depende do assunto delas. Goya pode levar a deformação de um personagem até à caricatura, sem que nisso esteja envolvido nenhum elemento sobrenatural. A caricatura, como vimos, abandona as aparências para melhor mostrar o que elas escondem. Como pinta o ser interior, mais do que aquele que se oferece ao olhar, Goya pode tomar todo tipo de liberdade com as formas visíveis. Por exemplo, no Capricho 2, que mostra as núpcias de um velho com uma bela jovem: o caráter socialmente escandaloso desse casamento é indicado pela cabeça monstruosa das pessoas na plateia. Os jumentos e os macacos, em outras gravuras, referem-se a atitudes humanas corriqueiras: o disfarce as revela abertamente. A intenção satírica está presente ao longo de toda a coletânea, mas não lhe esgota o sentido. As figuras assustadoras do bicho-papão ( Capricho 3, GW 455), dos monges ( Capricho 13, GW 476), dos gnomos (Capricho 49, GW 549), do alfaiate ( Capricho 52, GW 555), da ave noturna (Capricho 75, GW
602) ou dos fantasmas ( Capricho 80) vêm das profundezas da própria mente. Imagens como o Capricho 62 (GW 575), com a legenda “Quem diria?”, não podem ser explicadas pelo desejo de combater as superstições; trata-se antes de uma visão de pesadelo pessoal, como sentiu Baudelaire (encontram-se nos Caprichos, escrevia ele, “todas as libertinagens do sonho, todas as hipérboles da alucinação”): duas bruxas nuas lutam ao mesmo tempo em que afundam num abismo, enquanto um bicho flutua acima delas e outro tenta agarrá-las a fim de puxá-las para baixo. Baudelaire comenta essa imagem: “Toda a hediondez, todas as imundícies morais, todos os vícios que a mente humana pode conceber estão escritos nessas duas faces, as quais, segundo um hábito frequente e um procedimento inexplicável do artista, ficam a meio caminho entre o homem e a besta”. 1 Ou ainda o Capricho 65 (GW 581, fig. 8), legendado “Aonde vai a mamãe?”: como traduzir em sátira social essa aglutinação incrível de corpos nus em torno de uma personagem feminina central, acompanhados de um gato satânico que traz uma sombrinha e de uma ave cuja cabeça vem no lugar do sexo do personagem que tem os pés no chão? No entanto, essa mãe de fantasmas, carregada pelas criaturas de pesadelo, tem o corpo de uma mulher comum e vive bem perto da plácida aldeia que vemos ao seu lado. À noite, mesmo as mães mais calmas são carregadas pelos monstros do inconsciente! A imagem mais noturna de todas é o Capricho 64 (GW 579, fig. 9), “Boa viagem”, feita de corpos e de rostos indistintos, assim comentados no manuscrito do Prado: “Aonde vai esta caterva infernal, gritando pelos ares em meio às trevas da noite?”. Durante o dia seria possível afugentá-la, prossegue o texto, mas não no escuro, pois, “como é noite, ninguém a vê”. Esses habitantes da escuridão não podem ser expulsos do espírito, que é sua morada permanente. Às vezes considera-se que as cenas de bruxaria e de fantasmas, tanto nos Caprichos quanto já nos quadros adquiridos pelo duque de Osuna, têm a função de dissimular os elementos de crítica social, cuja presença explícita poderia ser prejudicial a Goya. Mas tal suposição não é muito convincente, por duas razões. Primeiro, a crítica dos vícios públicos ou do atraso do país, enraizado na ignorância e nas desigualdades sociais, não revelaria nenhuma coragem cívica por parte de Goya: essa postura é também a do casal régio, do favorito deste, Godoy, e de seus conselheiros “esclarecidos”, todos defensores de uma certa versão do Iluminismo. Inversamente, podemos nos perguntar se essas imagens de crítica social não estão aí sobretudo para dissimular — aos olhos das elites esclarecidas do país, mas às vezes também aos do próprio Goya — as descobertas que ele acaba de fazer em relação às profundezas da mente humana, a dele mesmo e a dos outros, um pouco como os escritores dos tempos passados que, no dizer de Leo Strauss, sabiam praticar uma arte de escrever que os deixava a salvo das perseguições. A representação dos bruxos e bruxas não serve apenas para fustigar as superstições: ela permite revelar os desejos inconscientes, evocar o peso da sexualidade sobre os comportamentos corriqueiros. A razão não reina como senhora na casa da mente, na qual a ordem é contaminada pelo caos.
Fig. 9. “Boa viagem”, Capricho 64.
Tal descoberta é muito mais subversiva do que a sátira de superfície, pois abala os próprios fundamentos da ordem estabelecida, quer seja esta moral, política ou religiosa. Meio e fim permutariam então seus lugares, as visões noturnas tornando-se o objetivo, talvez parcialmente inconsciente, do empreendimento. Foi-se o tempo em que Goya sofria passivamente a influência de seus amigos “esclarecidos”, tempo que Ortega y Gasset imaginava assim: “Ele os ouve falar. É inculto, de espírito lento, não compreende muito bem o que ouve…”. 2 Doravante, Goya já não é somente filósofo por contaminação e impregnação; ele o é pela transformação à qual submete o pensamento das Luzes e que seus amigos filósofos não têm em vista. Estes últimos podem ter
imaginado que as Luzes resultariam na Revolução; mas Goya sabe que elas também podem desembocar no Terror. O que é novo não é somente o sentido daquilo que é mostrado; a própria maneira de fazê-lo subverte os hábitos. Essas imagens que já não pretendem mostrar o visível renunciam também a todas as regras de construção do espaço. As distâncias são abolidas, as referências desaparecem, em cima e embaixo se confundem, os personagens se transformam em cosmonautas que flutuam livremente pelos ares. A renúncia à representação do visível torna-se assim uma renúncia parcial às regras e convenções sociais. Como, doravante, o que é mostrado é o interior da mente, já não pode existir uma lei geral: começa o reinado do indivíduo, e os indivíduos são múltiplos e diferentes. Portanto, não é de espantar a violência das reações que os Caprichos suscitaram, como a de Ruskin, o mais famoso crítico de arte de seu tempo, o qual, no fim do século XIX, se vangloria de ter queimado pessoalmente um exemplar completo da coletânea de gravuras, a fim de proteger a humanidade dessa ignomínia moral e estética! A arte clássica queria servir à beleza e imitar a natureza. Depois de renunciar ao primeiro objetivo, Goya agora abandona o segundo: já não é necessário que a arte represente as formas visíveis, ela pode consagrar-se àquilo que “só existe na mente”. Contudo, nem toda linguagem comum desaparece dessas imagens. Nelas, o artista se mantém fiel aos princípios da pintura figurativa que aspira a revelar a verdade do mundo, animado ou inanimado. Simplesmente, como se propõe a mostrar o invisível, ele não pode mais apoiar-se num acordo geral, e para isso deve recorrer a uma interpretação pessoal. A visão subjetiva substitui a vista comum a todos. Com isso, Goya amplia ainda mais a brecha aberta por ele na tradição pictórica que havia dominado a representação na Europa durante os séculos precedentes e que refletia a fé na existência de um mundo estável, fiador do consenso social. A Revolução Francesa liberou forças insuspeitadas que Goya, por suas imagens, é o primeiro a revelar. Mas essa interpretação do mundo se exprime numa linguagem de formas reconhecíveis por todos. O sentido dos objetos representados por Goya é às vezes mais difícil de identificar do que o era o das imagens convencionais, mas não é inexistente nem arbitrário. Em outras palavras: suas imagens cessam de ser uma representação do mundo, mas nem por isso deixam de fornecer uma figuração dele. Cem anos após a morte de Goya, uma russa exilada na França, Marina Tsvetáieva, reflete sobre sua própria arte — que é a poesia, e não a pintura; no entanto, as palavras que ela encontra para descrevê-la são bem aplicáveis à arte visual tal como a compreendia o pintor espanhol. Para o artista, escreve Tsvetáieva, o visível é um adversário: é preciso saber ir além das coisas e dos seres, não se contentar com o que se oferece espontaneamente aos sentidos. Mas o único meio para dominar esse adversário é perscrutá-lo com todas as forças, a fim de conhecê-lo melhor. “Trabalhar o visível para servir o invisível — eis o que é a vida do poeta. […] E é preciso levar ao extremo sua visão exterior para tornar visível o invisível.” Conhecer o interior do ser humano não significa em absoluto que se está renunciando a observar as formas sensíveis. “O visível é o cimento, as pernas sobre as quais se apoiam as coisas.” 3 Contudo, é igualmente obrigatório lembrar-se de que ele é meio, e não fim. O exterior não é o contrário do interior; longe de dissimulá-lo sempre, pode conduzir a ele —
mas desde que se saiba interpretá-lo. A coletânea de gravuras não terá sucesso comercial, e Goya a retira de venda alguns dias mais tarde; somente 27 exemplares foram comprados… A mensagem de Goya é complexa demais para ser compreendida e para agradar ao grande público. Que contraste com as gravuras de Hogarth, sátiras acessíveis a todos, que em meados do século conheceram tão grande sucesso! Em compensação, seria impróprio evocar aqui um efeito de censura: as imagens satíricas são bem convenientes à elite reinante. Aliás, é pouco depois da publicação do volume dos Caprichos, em 1799, que Goya recebe a promoção suprema que o faz primeiro pintor de câmara do rei. E quando, em 1803, ele oferece a matriz de suas gravuras ao rei, é menos para fugir à ira da Inquisição do que para obter, em troca, uma pensão anual para seu filho. A partir dos Caprichos e até o fim da vida, trinta anos mais tarde, Goya levará, o que é outra grande novidade, uma vida dupla. Numa parte de sua existência, aquela que se desenrola à vista do público, ele permanece submisso às regras sociais do seu tempo e frequenta a corte régia; na outra, aquela que está encerrada em seu mundo particular, dá livre curso à imaginação, a qual o conduz por caminhos nunca explorados. Essa ruptura interior irá levá-lo a produzir duas séries de obras, umas em conformidade com a tradição, outras nascidas de suas buscas pessoais, umas “diurnas”, as outras “noturnas”. Na parte pública de sua vida, ele continua a prática oficial de pintor da corte e de amigo dos grandes deste mundo, executando diversas encomendas. Assim, pinta o retrato de vários personagens do palácio, além de um grande retrato coletivo da família do rei e da rainha (em 1800-1, GW 783). Mantém boas relações com Godoy, de quem executa um retrato lisonjeiro, mostrando-o como grande chefe militar ( GW 796). Outros retratos, menos ou mais inspirados, mostram os membros da alta sociedade madrilenha. No entanto, mesmo nesses trabalhos de encomenda, é impossível não perceber que seu olhar se mantém impiedoso: ele não sacrifica o verdadeiro ao belo. Já os modelos deviam ficar satisfeitos por ver seus traços fielmente reproduzidos, sem se preocuparem com a conformidade deles a um ideal. Ao mesmo tempo, Goya continua pintando imagens religiosas. Artista de renome, ele pode permitir-se inovações estilísticas que antes não lhe eram perdoadas. É o caso de sua decoração para a igreja San Antonio de la Florida, em Madri ( GW 717-35), notável êxito pictórico, que rompe com as convenções das imagens piedosas: os personagens pintados não são muito diferentes dos visitantes que virão observá-los; Goya realmente não faz diferença entre os habitantes desses dois mundos, o lendário e o cotidiano. Ele também decora a catedral de Toledo; suas pinturas se degradaram com o tempo, mas delas subsiste um esboço, A detenção de Cristo (GW 737), de feitura particularmente livre, na qual a cor substitui o desenho. No mesmo momento, pinta um certo número de obras que poderíamos considerar como pertencentes à pintura “de gênero”, representando o mundo profano. Algumas delas se inscrevem em projetos sistemáticos, como os quatro medalhões alegóricos que ele pinta no fim do século para Manuel Godoy (hoje subsistem três, entre os quais O comércio, GW 692). Goya continua a circular no ambiente dos “esclarecidos” e também pinta a maior parte de seus
amigos, em particular um belo retrato melancólico de Jovellanos ( GW 675). A proximidade entre eles tem mais de uma razão: esse grupo se interessa diretamente pela pintura; por exemplo, Jovellanos pronunciou um “Elogio das belas-artes”, assim como outro “À glória das artes”, sempre no espírito iluminista. As ideias de Jovellanos sobre o assunto não deixam Goya indiferente: seu amigo afirma que não basta pintar o que se vê, também é preciso pensar aquilo que se pinta. Ao mesmo tempo, limita-se a uma concepção utilitária da arte. Goya, por sua vez, constatará que a observação e o pensamento não lhe bastam, e acrescentará a essa dupla um terceiro cúmplice: a imaginação, faculdade particularmente útil aos pintores. Para ele, a arte não pode servir simplesmente à educação do povo, pois tem por vocação penetrar os mistérios do mundo. Uma tela célebre dessa época é La maja desnuda (GW 743). Pensa-se hoje que ela foi pintada para o gabinete secreto de Godoy: esse dirigente do país, de gostos libertinos, coleciona quadros de mulheres nuas. Convém dizer que a vizinhança não tem nada de desonroso: Goya deve rivalizar com a Vênus ao espelho de Velázquez, um presente da duquesa de Alba a Godoy, de quem ela foi amante, e com uma Vênus adormecida de Ticiano… Mas Goya não pinta uma Vênus, nem sequer, como Boucher algumas décadas antes, uma “odalisca”; ele mostra uma mulher de sua época inteiramente despida, que fita o espectador diretamente nos olhos. O caráter cru da cena pode surpreender. Os nus clássicos participavam de um elogio à criação, de um hino à beleza; Goya despoja sua imagem de toda significação sublime e produz, mais uma vez, uma imagem literal: uma mulher contemporânea que posa encarando o pintor (e o espectador). Esse quadro foi pintado antes de 1800; alguns anos mais tarde, Goya executará, no mesmo formato, uma Maja vestida (GW 744), que talvez servisse para esconder, em certas circunstâncias, a imagem indecente. Esses quadros, alguns de estilo bastante convencional, outros mais livres (quando são destinados a amigos ou a colecionadores entendidos), pertencem todos a uma das vidas de Goya como pintor. Já os quadros que não correspondem a encomendas e que, na verdade, permaneceram no ateliê de Goya ao menos até 1812, como comprova o inventário elaborado nessa data, resultam de outra inspiração. Entre eles encontra-se uma série de variações sobre os temas já explorados nos Caprichos, por exemplo, pessoas do povo entregues à bebida ( Os bêbados, GW 871), ou ainda as prostitutas que se expõem na sacada e atrás das quais ficam ora seus rufiões ( GW 960), ora a velha proxeneta chamada de Celestina ( GW 958). Outro quadro combina a visão do comércio sexual com a contaminação do visível pelo invisível: As velhas (ou O tempo, GW 961), duas figuras femininas grotescas, cujos traços faciais se congelaram em máscara. Essas anciãs continuam preocupadas com a própria aparência, sem perceber que estão sentadas à frente de um personagem alegórico, sem dúvida o Tempo, ou a Morte, armado de uma vassoura que lhe permitirá fazer com que as vaidades humanas desapareçam. O rosto da personagem principal, assim como o sentido da cena, lembram fortemente o Capricho 55, legendado com “Até a morte” ( GW 561); mas o próprio quadro faz pensar nas obras de “capricho e invenção”, pintadas em 1793 ou em 1798: mesmos contrastes de luz, mesma liberação das cores. Ao lado desses quadros, encontramos alguns outros que podem ser interpretados como uma visão
benévola do mundo do trabalho, tema recorrente na obra de Goya: temos uma Aguadeira (GW 963) ou um Amolador (GW 964), os quais, à diferença dos frades preguiçosos, se consagram a um trabalho útil à comunidade. Na linhagem do Pedreiro ferido (il. 1), mas despojados de qualquer historieta, aparentemente esses personagens merecem respeito — o que seria ainda mais claro se, como se supõe, os quadros atuais que trazem esses títulos fossem a redução de pinturas de formato sensivelmente maior. Por fim, no mesmo inventário, figura um grupo de naturezas-mortas bastante surpreendentes, que por sua vez rompem com as tradições do gênero ( GW 903-13). Esses pedaços de carne ou de peixe, essas aves depenadas não aspiram nem à beleza decorativa nem ao sentido habitualmente atribuído às vaidades: esses pedaços de carne morta contentam-se em demonstrar sua presença. Podemos nos perguntar a qual espectador ideal Goya destinava esses quadros e a qual espaço de exposição. A pintura de gênero, as paisagens, as naturezas-mortas de que os Países Baixos se haviam tornado pátria nos séculos XVII e XVIII ficavam nas paredes das casas burguesas mais ou menos abastadas. Esses quadros se relacionavam com uma concepção coerente do mundo natural e da ordem social. As cenas da vida cotidiana repousavam sobre julgamentos compartilhados por todos em relação às virtudes e aos vícios, quer fossem elogios ou críticas; as imagens da natureza inanimada participavam de uma visão harmoniosa do cosmo ou de uma sabedoria comum quanto à passagem do tempo e à fragilidade de todas as coisas. Ora, é difícil imaginar os quadros “pessoais” de Goya não só nos palácios régios como até mesmo nos salões de aficionados esclarecidos, como os Osuna. Já que esses quadros não deixaram o ateliê do pintor, deve-se concluir que ele os pintava por necessidade interior, e não para atender a uma encomenda. Quando, ulteriormente, os quadros acham um comprador, e se não se trata de um simples investimento comercial, pode-se supor que Goya encontrou mentes próximas da sua, aficionados que apreciam a busca incessante da verdade na qual ele está envolvido. A abundância de pequenos formatos entre essas pinturas pessoais (“quadros de gabinete”) não é casual: eles comprovam uma procura inicialmente pessoal — e, por seu preço, estão ao alcance de pessoas comuns. Hoje esses quadros decoram habitualmente os museus, onde se expõem a outro tipo de malentendido. O museu transforma todo objeto pendurado em suas paredes, até mesmo O mictório de Duchamp, em peça de contemplação estética. Ele arranca as obras à sua interação com o mundo circundante e faz delas encarnações da arte pura. Mas Goya não aspira a produzir belos objetos: em vez disso, transmite o testemunho atento de suas visões. A partir dessa época, é sobretudo nos desenhos que Goya dará livre curso àquilo que povoa sua mente. Essa abundante produção visual não se destina a ser vista por terceiros, a não ser a título excepcional, e nela o pintor se mostra inteiramente livre de toda consideração de conformidade com os gostos da época. Contudo, ao reunir tais desenhos em álbum, numa ordem bem refletida, ele lhes atribui o estatuto de obras a pleno título. Os dois primeiros álbuns, designados pelas letras A e B, e dos quais já vimos alguns exemplos, datam dos últimos anos do século XVIII. Os dois últimos, G e H, compõem-se de desenhos realizados em Bordeaux, onde Goya se instalará de 1824 até o fim da vida.
Como os próprios desenhos não são datados, há menos certeza em relação à cronologia dos quatro álbuns restantes (C, D, E e F), mas hoje em dia concorda-se em pensar que o álbum C é o mais antigo deles e corresponde aos anos 1808-14, ao passo que os outros três seriam posteriores à Guerra da Independência. Esse álbum C (o mais volumoso, com 133 desenhos) se apresenta, ainda mais do que os precedentes, como o diário de bordo do pintor, que nele anota regularmente aquilo que vê ao seu redor, mas também aquilo que imagina e de que se lembra, acrescentando-lhe um breve comentário; aliás, as fronteiras entre essas diferentes fontes das imagens — observação, imaginação, lembranças — não são impermeáveis. Ali encontramos os agentes da vida cotidiana, atentamente observados por Goya: mendigos, passeadores e patinadores, caçadores, artistas e dançarinos de rua. Várias imagens figuram cenas galantes, destacando a ternura, como em C 84 ( GW 1320). Outros representam ações e situações geralmente percebidas como louváveis: o amor materno ou paterno, a intimidade familiar, a aplicação no trabalho, os gestos de caridade — como o de uma mulher dando de beber a um doente (C 67, GW 1304). Na maioria das vezes, porém, Goya se deixa levar por seu pendor satírico, desenhando personagens disformes e grotescos, situações em que os homens parecem ridículos, mostrando impiedosamente bêbados, monges, camponeses crédulos. Os atos de violência ocupam sempre um grande espaço em sua obra: ele não se cansa de nos mostrar as manifestações dessa tendência humana, obrigando-nos a nos interrogarmos sobre as raízes dela, como ele mesmo devia fazer. Algumas formas da violência são codificadas: por exemplo, a prisão, a tortura legal, a brutalidade dos policiais ou ainda os duelos. Outras são o efeito das circunstâncias, como as mortes em consequência da fome generalizada ou os feridos de guerra; outras ainda decorrem dos costumes próprios dos “selvagens”. Não menos impressionantes são os desenhos que mostram uma violência desprovida de qualquer outra razão além das irresistíveis pulsões oriundas do interior do indivíduo. É o caso dos atos de pilhagem ou das brigas entre homens, que podem acabar em homicídio ou, mais cruelmente ainda, numa tortura destinada a matar lentamente, como no desenho C 32 ( GW 1270), legendado Que vingança horrível!
Fig. 10. Visão burlesca. A mesma noite 4.
Outras imagens resultam claramente da invenção, ou da visão “noturna”, caso da espantosa série (C 39-47, GW 1277-85) que contém nove “visões burlescas”, oriundas, com toda a evidência, de um pesadelo. Por exemplo, C 42 ( GW 1280, fig. 10), quarta visão da mesma noite, em que um soldado dotado de uma cabeça gigantesca (ou de uma máscara) esboça um passo de dança. Impossível saber se o espanto maior nos vem dos seres estranhos que povoam os sonhos de Goya ou da habilidade com que ele consegue restituí-los; no mínimo, essas imagens comprovam a atenção com a qual o pintor perscruta seus pesadelos, as visões que o invadem depois que a razão adormece. As bruxas também reaparecem, especialmente no desenho (C 70, GW 1307) que as mostra em voo,
tentando levantar uma pesada tampa. A legenda anuncia: Elas não dizem nada, ou talvez Nada, dizem elas, como mais tarde em Desastres 69. Aqui, impressiona-nos sobretudo a estranha contorção dos corpos voadores. Desde a época dos Caprichos, Goya associa regularmente as bruxas e o voo (fig. 8 e 9); nele, o ato de voar está igualmente ligado a temas eróticos. Um desenho contemporâneo (GW 641) mostra uma jovem inteiramente nua que voa cavalgando o grande bode, isto é, o próprio diabo, enquanto outros dois habitantes desse mundo noturno se mantêm entre as patas dele; o rosto da mulher não exprime nenhum pavor. A separação entre as duas séries de imagens, uma reservada à circulação pública, outra ao uso privado, é nítida. Ela não se explica, como alguém já afirmou, pela passagem de um Goya homem do povo, aldeão confuso, a um Goya citadino e cortesão, amigo dos nobres e dos intelectuais. Tampouco se assemelha àquilo que conhecemos da vida dos pintores anteriores, mesmo daqueles que pintaram esboços de estilo mais livre que o dos quadros acabados: para eles, tratava-se de imagens com função preparatória, que nosso gosto contemporâneo valoriza e dota de uma existência autônoma, mas que, para os próprios artistas, não tinham esse estatuto. Já Goya, que agora leva uma vida dupla, pratica simultaneamente duas maneiras independentes de pintar cujas inspirações permanecem distintas. Não se conhece nenhum exemplo equivalente entre os pintores do passado, e tampouco entre os artistas posteriores: nenhum outro artista seguiu a tal ponto duas linhas de produção inteiramente separadas, uma oficial, outra confidencial. Na Rússia soviética, onde o poder bolchevique exercia uma censura ainda mais invasora do que a da Inquisição, certos pintores conheceram entre vida pública e privada uma clivagem comparável; mas aqueles cujo trabalho inicial não correspondia ao gosto oficial eram bem depressa levados a escolher entre o conformismo e a clandestinidade — não chegavam a praticar os dois. Em Goya, as razões da dualidade parecem ser ao mesmo tempo de ordem pública e privada. Outro paralelo poderia ser estabelecido com os escritores que publicam obras ao mesmo tempo em que redigem um diário íntimo, o qual revela novas facetas de sua pessoa. Muito tempo depois, o diário é editado — e o leitor dispõe então de duas versões bem dessemelhantes do mesmo indivíduo. Os primeiros exemplos desse tipo datam, aliás, da época de Goya: tal prática pressupõe um interesse e um respeito pela vida interior do indivíduo que não eram encontrados antes. Um Benjamin Constant, por exemplo, escreve durante anos um diário íntimo, que ele não destina em absoluto à divulgação — mas que o leitor de hoje pode preferir aos textos que ele entregou ao público. Com frequência, as imagens que Goya reserva para si mesmo assumem uma função parecida. Só que o gesto de desdobramento é muito mais violento por se tratar de imagens e não de textos; e pelo fato de, em Goya, a parte secreta da obra ser imponente, quantitativa e qualitativamente: não se trata apenas de desenhos, que na época não são normalmente destinados ao público, mas também gravuras e até pinturas. O artista pode então virar as costas à sociedade, mantendo-se ao mesmo tempo artista.
invasão napoleônica
O choque psicológico sofrido por Goya nos últimos anos do século XVIII, em consequência de sua doença de 1792-3 e da aventura interrompida com a duquesa de Alba em 1796-7, acarreta uma mutação em sua visão do mundo, assim como em sua maneira de representá-lo. Ao mesmo tempo, o pintor extrai conclusões radicais do transtorno provocado pelos acontecimentos políticos na Europa, principalmente pela Revolução Francesa: estando abalados os próprios fundamentos da ordem social, as normas da representação vacilam, por sua vez, e abre-se o caminho para a inovação individual. A comunicação com os outros não precisa ser imediata, a imagem se torna sobretudo, para Goya, um meio de expressão pessoal; doravante o artista pode pintar e desenhar mantendo para si mesmo os resultados de seu trabalho. Os primeiros anos do século XIX vão imprimir à sua visão de mundo uma nova transformação. Esta á não concerne à mente humana nem aos caminhos da pintura, mas à ação social e pública dos homens. É provocada pelos eventos políticos sobrevindos em seu país. Na Europa dilacerada pelas guerras desencadeadas por Napoleão, na qual todos são instados a tomar partido pró ou contra ele (e, neste último caso, a favor da Inglaterra), a situação da Espanha não é fácil. Às ideias revolucionárias francesas já presentes na península Ibérica, Napoleão acrescentou o poderio militar de seus regimentos: as primeiras inquietavam, os segundos apavoravam. A situação interna do país também é instável: o governo mais ou menos liberal de Manuel Godoy descontenta a facção oposta, “obscurantista”, que se sente desprovida de seus poderes e se agarra à sua identidade religiosa (os “esclarecidos” são descritos por ela como ateus), tradicional (o governo acaba de proibir a tourada, ritual antigo) e moral (Godoy é acusado de ser amante da rainha, o que provavelmente ele não é). As esperanças dessa franja conservadora da população se dirigem ao herdeiro do trono, Fernando, conhecido por essas opiniões tradicionalistas. Este último, para livrar-se de Godoy, recorre em 1807 a Napoleão, sem perceber que desse modo introduz o lobo no aprisco. Imediatamente Napoleão aproveita para enviar seu exército à Espanha; seu objetivo último é ocupar Portugal, para poder opor-se eficazmente aos ingleses. Num primeiro momento, o grupo conservador acolhe os soldados franceses com benevolência, acreditando que eles reforçarão Fernando e o ajudarão a livrar-se de Godoy. A agitação ganha as massas e em março de 1808, em Aranjuez, produz-se uma sublevação contra o governo, encorajada na surdina pelo príncipe herdeiro: a multidão ocupa o palácio de Godoy e o prende. Nessa situação explosiva, e para salvar a vida de seu ministro, Carlos IV abdica em favor do filho — o qual, agora
chamado Fernando VII, entra triunfalmente em Madri. Sua posição, contudo, é paradoxal: ele deve seu trono a uma revolta popular que lembra a Tomada da Bastilha, em 1789, e sua segurança às tropas francesas de Murat! Essa situação confusa não satisfaz inteiramente Napoleão, o qual, no fim de abril de 1808, convoca todos os dirigentes espanhóis a Bayonne: Fernando, seu pai, Carlos IV, a mãe, Maria Luísa, o protegido do casal real, Godoy, e outros membros da família. Nessa ocasião, obriga Fernando a devolver a coroa a Carlos IV, que abdica de novo, desta vez em favor do irmão do próprio imperador, José Bonaparte! A multidão de Madri, mais ou menos a par dessas manobras, tem a impressão de que estão lhe tirando seu favorito e se revolta, em 2 de maio de 1808. Murat ordena a repressão, o sangue corre. Ao longo do verão, após diversas peripécias, José é entronizado como rei da Espanha, Fernando é exilado na França e seus parentes, na Itália. Agora o Exército francês está a serviço de José, e não mais de Fernando. Tal situação se manterá, no essencial, até 1813. José, por sua vez, adota uma política inspirada nos princípios “esclarecidos” que haviam guiado Carlos III, Carlos IV e seus ministros sucessivos, Aranda, Jovellanos e mesmo Manuel Godoy. Impõe várias medidas com as quais seus predecessores seguramente haviam sonhado, mas que não ousaram promover: suprime a Inquisição, extingue os direitos feudais e as alfândegas internas, fecha numerosos conventos. O Estado se apodera de dois terços dos bens da Igreja e moderniza a administração — o que significa também que recolhe mais rigorosamente os impostos. José até se compromete a promulgar uma Constituição que limitaria seus poderes; discute-se a manutenção da proibição da tauromaquia. Vários “esclarecidos” se reconhecem nesse programa e, por convicção ou por comodidade, alistam-se a serviço do governo: é o caso, entre as boas relações de Goya, de Cabarrús, Urquijo, Meléndez Valdés, Moratín (mas não Jovellanos, que apoia o campo oposto); a família de sua nora também faz parte do grupo. Eles não acreditam ter-se tornado colaboradores do invasor, pois servem aos ideais que sempre defenderam. Os opositores designarão esse grupo como o dos afrancesados , insinuando que tal é a verdadeira identidade dos ilustrados (esclarecidos): essa assimilação lhes permite apresentar seus inimigos ideológicos como estranhos ao autêntico espírito espanhol, como indivíduos comprometidos na colaboração com o ocupante. Tal propaganda, ao apresentar as ideias liberais como exteriores à tradição espanhola, será de grande eficácia. Na realidade, a situação é mais complexa, pois à primeira oposição, entre “obscurantistas” e “esclarecidos”, acrescenta-se uma segunda, que divide o ambiente dos “esclarecidos” em partidários e inimigos da ocupação francesa. Os “obscurantistas” se recusam a ver e a reconhecer esse outro conflito, cuja existência enfraquece sua argumentação: se o aceitassem, seriam obrigados a admitir, ao mesmo tempo, que as ideias das Luzes não são apenas uma importação francesa, elas têm uma dimensão universal e portanto não são menos “espanholas” do que as deles. Preferem apresentar sua resistência ao ocupante como uma nova cruzada, conduzida pelos representantes da Igreja e da Inquisição, que visa a defender a identidade tradicional do país, católica e espanhola, ameaçada por esses estrangeiros descrentes. Na prática, os liberais patriotas, que combatem a ocupação francesa sem renegar os princípios iluministas, são mais numerosos do que aqueles que aceitaram trabalhar
sob as ordens do ocupante. Eles se agrupam em algumas províncias espanholas que não foram ocupadas; em 1812, formam em Cádiz uma assembleia que adota uma Constituição de espírito liberal: pretendem impô-la depois de expulsos os franceses. É verdade que o teor do texto está próximo das reformas promovidas pelo detestado soberano francês… A Guerra de Independência é conduzida contra um inimigo que uns apresentam como a encarnação das ideias liberais e “esclarecidas”, e outros como aquele que utiliza tais ideias para mascarar uma política cuja verdadeira inspiração é nacionalista e imperial. Portanto, essa guerra contra o estrangeiro invasor dissimula um conflito hispano-hispânico de natureza ideológica, que opõe os espanhóis católicos e tradicionalistas aos espanhóis partidários das ideias iluministas, e que atingirá, muito mais tarde, a intensidade de uma verdadeira guerra civil. Se tivéssemos de achar uma comparação com eventos mais recentes, esta seria com a oposição entre, de um lado, as forças ocidentais que ocupam o Afeganistão, munidas do projeto de levar à população desse país a democracia e os direitos humanos, e que se apoiam, localmente, sobre alguns indivíduos “esclarecidos”, assim como sobre os que esperam aproveitar a oportunidade para fazer uma carreira rápida; e, de outro, os chefes de guerra afegãos e os talibãs, clero ignorante e retrógrado, que se veem desprovidos de seu poder e que, para ter êxito no combate, apelam para os sentimentos patrióticos da população. Esta, que aspira sobretudo à paz e à prosperidade, é a principal vítima dos confrontos sangrentos entre os diferentes pretendentes ao poder. Assim, a presença de forças militares estrangeiras compromete os ideais que elas supostamente promoveriam, em vez de torná-los mais eficazes. Reencontra-se aí um esquema característico das conquistas coloniais do século XIX: utilizados como pretexto ou desculpa para a ocupação de terras estrangeiras, os valores das Luzes e da civilização europeia se veem desconsiderados, percebidos agora como a camuflagem de uma política conduzida unicamente no interesse dos colonizadores. A esperança dos franceses de serem acolhidos com flores e festejados como libertadores desaparece; começa então a longa Guerra de Independência. A forma que o combate assume é nova. O Exército francês invoca um espírito revelado pelas guerras revolucionárias, o de um messianismo secular que legitima sua violência pela promessa de uma salvação temporal para todos; trata-se de uma “cruzada de liberdade universal”, segundo a frase de um de seus promotores. Para alcançar um objetivo tão sublime, todos os meios são permitidos e, em vez dos conflitos convencionais do século precedente, vem uma guerra total que atinge a população civil tanto quanto os soldados. Os espanhóis resistentes, por sua vez, sabem que suas forças militares não são suficientes para enfrentar os regimentos de Napoleão. Mas eles têm outras vantagens: conhecem bem o terreno e beneficiam-se da simpatia da população. Então inventam uma nova maneira de lutar, na qual o assédio, a importunação, substitui a batalha: é a pequena guerra, a guerilla, que desconcerta o Exército francês, habituado a confrontações mais francas. No início do século XIX, portanto, a Espanha se torna o terreno onde se manifestam várias inovações que serão familiares às gerações seguintes: o primeiro exército moderno, o de Napoleão, enfrenta a primeira resistência armada organizada, a guerrilha! Não é de espantar que, no mesmo momento, apareça o primeiro grande pintor da modernidade.
A guerrilha prosseguirá ao longo de toda a ocupação, de 1808 a 1813. Numerosas publicações denunciam a selvageria francesa. Em 1809, a junta de Valência assim descreve os ocupantes: “Comportaram-se pior do que os hotentotes. Profanaram nossos templos, insultaram nossa religião e estupraram nossas mulheres”.1 Isso merece reparação! Um observador inglês relata haver visto um guerrilheiro espanhol mostrar sua coleção de orelhas e dedos humanos, “arrancados aos corpos dos franceses que ele mesmo havia matado na batalha”. A violência aumenta regularmente, de uma e de outra parte: cada agressão de um lado provoca represálias, seguidas de um ataque ainda mais feroz, que supostamente vingará a ofensa sofrida, em um crescendo sem fim. À guerra total conduzida pelos franceses responde uma violência exacerbada do lado espanhol. Um chefe de destacamento relata: “Eu sempre mantinha numerosos prisioneiros. Se o inimigo enforcava ou fuzilava um dos meus oficiais, como represália eu submetia quatro dos seus oficiais à mesma sorte; para um soldado morto, eu sacrificava vinte”. 2 São esses, segundo a frase de Germaine Tillion, os “inimigos complementares”, visto que cada um alimenta a intransigência do outro. Uns matam e torturam em nome da liberdade e da igualdade, os outros em nome de Cristo e da Espanha; uns esquecem os direitos humanos, os outros a caridade cristã: todos têm certeza de seu direito, todos massacram impiedosamente os inimigos. Contemporâneo exato de Goya, Goethe (1749-1832) reagirá assim a uma situação análoga, a ocupação da Alemanha pelas tropas napoleônicas e a encarniçada resistência da população: Maldito seja aquele que, irrefletido, Com uma coragem demasiado temerária, Faz hoje, enquanto alemão, O que o franco da Córsega fez ontem. 3
Em 1811-2, aos outros desastres trazidos pela guerra acrescenta-se em Madri a fome, que segundo estimativas provocou 20 mil mortes. Ao longo de todo esse período, Goya continua como pintor de câmara do rei, assalariado no palácio. Convém distinguir aqui seu comportamento público, fácil de reconstituir graças aos documentos, e seus sentimentos e pensamentos, que podemos apenas adivinhar. No que se refere ao primeiro, o pintor está submetido às obrigações inerentes ao seu cargo. Assim que Fernando se torna rei, Goya deve pintar-lhe o retrato, o que faz em março-abril de 1808, aparentemente sem grande entusiasmo de ambos os lados. Durante o verão, José substituiu Fernando, mas foi obrigado a fugir quase imediatamente, antes de voltar a Madri em novembro. Nesse ínterim, o general que comanda a defesa de Saragoça contra as tropas francesas pediu a Goya que retornasse à sua região natal para “ver e examinar as ruínas da cidade, com o objetivo de pintar as glórias de seus habitantes”. Goya faz a viagem em outubro-novembro desse ano e, portanto, vê de perto os horrores da guerra. Em dezembro de 1808, está de novo em Madri, onde é obrigado, assim como todos os outros chefes de família, a jurar “amor e fidelidade” ao rei José. Em 1809, ele aceita uma encomenda da municipalidade de Madri, concluída pouco depois; o
quadro se chama hoje Alegoria da cidade de Madri (GW 874). A história dessa tela, de feitura totalmente convencional, é instrutiva. No meio das figuras alegóricas encontra-se um medalhão que continha, num primeiro momento, o retrato de José Bonaparte. Quando este último é expulso da cidade, em 1812, Goya apaga o retrato e escreve no lugar a palavra “Constitución”. Falta de sorte: José retorna antes do fim do ano, e Goya realiza rapidamente um novo retrato do soberano. Quando este é definitivamente expulso, a palavra “Constitución” reaparece. Pouco depois Fernando é feito novamente rei, mas não gosta da ideia de uma constituição: o termo é então apagado mais uma vez e substituído pelo retrato do novo soberano… Em meados do século XIX, bem depois da morte de Goya, recobre-se este último retrato para escrever no lugar a frase “El libro de la Constitución”. Trinta anos mais tarde, contudo, sobrevém uma última transformação: em lembrança da insurreição contra os franceses, escreve-se no medalhão “Dos de mayo”, termos que ainda hoje podem ser vistos no quadro. Finalmente se encontrou uma recordação heroica na qual todos — liberais e conservadores — podem se reconhecer! Na mesma época, Goya também pinta o retrato dos diferentes personagens que ocupam sucessivamente a ribalta da cena política, tanto dignitários franceses quanto insurretos espanhóis; o último da série é o general inglês Wellington… Tais são as servidões do palácio! O primeiro biógrafo de Goya, Matheron, que via no pintor um representante do Iluminismo francês materialista e republicano, exprime sobre isso uma crítica: “Esse furioso liberal, por uma inconsequência inexplicável, serviu com igual zelo a todos os reis de seu país”. 4 Mas será essa atitude realmente incompreensível e condenável? Deve-se exigir de um artista do nível de Goya que se comporte como bom cidadão, e até como fervoroso militante de um programa de ação? À diferença do político, que em princípio visa melhorar a condição de seus compatriotas e, por essa razão, privilegia a ação pública, o artista — pintor, escritor — vive simultaneamente em duas temporalidades distintas, o presente e uma espécie de eternidade. De um lado, ele é um cidadão como os outros, cujos atos serão julgados segundo as leis e as normas de sua época; mas, de outro, está envolvido numa busca por uma verdade intemporal cujos resultados já não se destinam aos seus compatriotas, mas à humanidade. O que é bom para um político não basta ao artista, que tem uma ambição mais alta. Goya pode admirar a ação cívica de Jovellanos, mas não pode contentar-se com ela. Um deve julgar os homens, favorecer os bons e repelir aqueles que considera maus; o outro, embora não possa renunciar às suas tendências e aos seus julgamentos, deve compreender e representar tanto as forças do bem quanto as do mal. A intransigência do cidadão prejudica o trabalho do artista. Ora, para conduzir essa busca da verdade, o artista precisa livrar-se das preocupações com a sobrevivência cotidiana. Duas soluções se oferecem a ele: dispor de um protetor rico e mecenas ou colocar suas obras em venda livre. Não é garantido que essa última solução, que será preponderante na época moderna, sobretudo para os escritores mas também para os pintores, contribua muito para a autonomia e a liberdade da busca que eles desenvolvem. Viver com a obrigação de agradar ao público — o que significa também a de levar em conta a opinião comum de seu tempo, e mesmo os
estereótipos vigentes entre os críticos, esses legisladores do gosto — pode desviar a atividade criadora de maneira mais profunda e mais danosa do que o faria a dependência de um “patrão”, sobretudo se este for tolerante e de espírito amplo. A posição de pintor do rei assegura a Goya sua independência econômica; suas obrigações perante a corte não o impedem absolutamente de, em sua arte, explorar caminhos desconhecidos. A prova é que justamente ele, o artista oficial, e não algum outro pintor politicamente irrepreensível, é quem desencadeia a revolução pictórica mais marcante desses dois últimos séculos na Europa, e ao mesmo tempo transforma o pensamento das Luzes! De qualquer modo, não podemos nos impedir de notar este paradoxo: o pintor que, mais do que qualquer outro, anuncia o advento da modernidade, subverte as hierarquias existentes e revoluciona as relações da arte com a autoridade, é também aquele que, ao longo de todos os seus anos de maturidade, será sustentado pelos reis do país, inclusive por um soberano tão retrógrado e repressivo como Fernando VII. Nesse sentido, poderíamos dizer que o comportamento de Goya está conforme à descrição feita por Montaigne de sua própria conduta pública: “Minha razão não está moldada para curvar-se e dobrar-se, mas meus joelhos sim”. 5 Quanto à razão e aos sentimentos de Goya, o que se sabe? Em 1805, seu filho se casa, e nessa ocasião o pintor trava conhecimento com uma jovem chamada Leocadia, então com dezessete anos, parenta de sua nora. Dois anos depois, Leocadia desposa um comerciante rico, Isidoro Weiss, com quem terá dois filhos; mas parece que em dado momento se criou uma ligação entre ela e o pintor. Em setembro de 1811, declara-se a ruptura entre os cônjuges Weiss; no ano seguinte, o marido presta queixa contra a esposa por infidelidade (mas nada prova que essa queixa se refira a Goya). Em 1812, morre Josefa, mulher do pintor; em 1813 (ou no final de 1812), Goya tenta deixar Madri, talvez em companhia de Leocadia, mas é chamado às suas obrigações, por ordem do ministro da Polícia, e retorna prontamente à capital. Em 1814, Leocadia dá à luz uma filha, María Rosario, de quem Goya se ocupará ativamente em seus últimos anos de vida (pois Leocadia e María Rosario o acompanham no exílio em Bordeaux). Após a morte de Josefa, fazse um inventário dos bens do casal (possível indicação de que o filho do pintor, Javier, teme o aparecimento de uma candidata à partilha da futura herança). Esse inventário mostra que Goya é um homem rico, proprietário de várias casas, de joias e de importantes somas em dinheiro líquido, sem falar de seus quadros — que valem muito. No plano dos sentimentos políticos, Goya só pode estar dividido, diante de uma situação razoavelmente complexa. De saída, seu patriotismo espontâneo, mas também seus gostos “plebeus” (pela tourada, pelo teatro popular, pelas festas) o levariam a aproximar-se do povo, tanto mais quanto este último é a principal vítima da guerra sempre mais violenta. Por outro lado, sua posição de pintor da corte obriga-o a mostrar-se fiel aos detentores do poder, quaisquer que sejam estes. Seus amigos “esclarecidos”, enfim, encontram-se dos dois lados no conflito em curso. O que ele agora compreende claramente é que não pode satisfazer a todos os partidos ao mesmo tempo. Parece então adotar uma posição mais reservada, e também mais complexa. Percebe que as opiniões professadas não garantem a virtude dos atos. Os grandes princípios “esclarecidos” podem servir de
ustificativa para uma ocupação estrangeira e para uma obrigação de colaboração. Se se contentasse em defender as ideias liberais, ele poderia ser confundido com os inimigos de seu povo. Mas, se se limitasse unicamente à defesa da Espanha contra os franceses, ficaria ao lado do clero retrógrado e da Inquisição, da qual zombou a vida toda! E m Herman e Doroteia , sua “epopeia burguesa” publicada em 1798, Goethe resume os sentimentos ambivalentes dos povos vizinhos à França diante da Revolução Francesa e dos transtornos que ela acarretava. No início, a população vibra ao evocar este novo ideal: liberdade, igualdade, fraternidade; entusiasma-se pela defesa dos direitos humanos. Impossível não ter sentido o coração bater mais forte Quando se ouviu falar de direitos comuns a todos os homens, Da liberdade que exalta e da louvável igualdade!
Pouco depois, contudo, surgem as nuvens no horizonte. O Exército francês penetra no país, trazendo, no início — à Alemanha e à Espanha —, uma mensagem amigável. Mas, desde a primeira veleidade de resistência, desencadeia-se a luta pelo poder, o sangue corre, a violência se instala. Só então experimentamos o destino trágico da guerra .6
Malraux usa uma comparação eloquente para descrever os Desastres da guerra , novo conjunto de gravuras criado por Goya: é como “o álbum de um comunista após a ocupação de seu país pelas tropas russas”.7 Pior: doravante Goya sabe que as ideias iluministas podem também servir para ustificar invasão, repressão, massacres; elas não bastam para impedir a violência, muito pelo contrário — é em seu nome que as tropas de Napoleão a praticam. O remédio contra os males sociais, no qual ele havia acreditado, revela-se ineficaz, e até provoca danos suplementares. Não somente o sono da razão gera monstros, seu estado de vigília faz o mesmo. É de espantar, então, que, tendo-se tornado mais cético, Goya se abstenha de manifestar sua adesão a qualquer ideologia? Ele não satisfará o pedido de seus concidadãos de Saragoça, não pintará, nessa época, “as glórias dos habitantes”. Produzirá numerosas imagens da guerra, mas, como regra geral, estas não terão nada de heroico. Em sua maioria, elas não defendem nem glorificam nenhum partido, contentam-se em mostrar a violência e seus terríveis efeitos; não defendem nenhuma causa, e sim transmitem o desespero — e a compaixão. Diante do espetáculo da guerra, Goya jamais cederá a uma tentação estetizante, assim como não sentirá admiração pelo campeão da época, o imperador Napoleão. Em relação a este último, ele não compartilhará os sentimentos de Goethe. O poeta alemão conheceu o imperador em Erfurt, em 1808, no exato momento em que ocorria o cerco a Saragoça. Aliás, foi para pedir a neutralidade dos russos durante sua campanha na Espanha que Napoleão quis encontrar em Erfurt o imperador russo Alexandre I: os dois soberanos, numa prefiguração do pacto germano-soviético de 1939-41, entram em acordo para repartir suas esferas de influência na Europa e no mundo, em detrimento do inimigo inglês. Goethe conservou uma lembrança emocionada dessa
entrevista e uma admiração por Napoleão: não tanto pelo que este fez quanto por seu modo brilhante de agir. Em suma, é o julgamento de um artista sobre outro. “Sempre iluminado, sempre claro e resoluto, e dotado a cada momento da energia suficiente para desencadear de imediato aquilo que ele havia reconhecido como vantajoso e necessário”, dirá Goethe ao seu secretário Eckermann, em 11 de março de 1828. E acrescenta: “Napoleão foi um dos homens mais produtivos que já existiram. Sim, meu amigo, não se é produtivo somente ao escrever poemas ou peças de teatro, existe também uma produtividade das ações”.8 Nem em 1808, nem em 1828 Goya será tentado a fazer um julgamento estético sobre a maneira de conduzir a guerra ou de vencer as batalhas. Ele jamais separará seu julgamento sobre os fins desastrosos de uma ação e a repulsa que lhe inspiram os meios utilizados para alcançá-los; jamais ulgará os políticos como se estes fossem artistas. Os ideólogos justificam os meios atrozes por fins sublimes: claro, matar e torturar é deplorável, mas pelo menos terão sido instaurados neste país selvagem a democracia e os direitos humanos! Os estetas estão prontos a admirar a beleza de um ato mesmo quando este é posto a serviço de um objetivo desolador: assim foi que, muito tempo depois de Nero diante de Roma em chamas e de Napoleão evocando os incêndios de Moscou, Albert Speer, ministro do Armamento de Hitler, não pôde impedir-se de admirar o belo espetáculo das bombas incendiárias caindo sobre a cidade onde ele se encontrava, Berlim. A Goya, o “destino trágico da guerra” inspirará unicamente um sentimento: o horror.
Fig. 11. “Enterrá-los e calar-se”, Desastres 18.
Os estragos da guerra
A principal reação artística de Goya ao conflito bélico será constituída pela série de gravuras intitulada Desastres da guerra e pelos desenhos a ela relacionados, assim como por alguns quadros. Os Desastres são em número de oitenta na primeira edição (póstuma) da série, publicada em 1863. De fato, por razões que veremos adiante, e contrariamente aos Caprichos, Goya jamais publicou essa segunda coletânea de gravuras. Mas organizou um volume de provas, confiado (ou oferecido) ao seu amigo Ceán Bermúdez, que comporta 85 imagens. Como no caso dos Caprichos, todas trazem uma legenda, em geral lacônica: esta, em vez de explicar a imagem, incita a generalizar-lhe o sentido ou a problematizá-la, ou então formula um comentário irônico. Tematicamente, as gravuras se distribuem em três grupos: as violências bélicas propriamente ditas; os efeitos da fome em Madri; e um terceiro conjunto que parece visar às reações sobrevindas após a Restauração de 1814 (as quais, por enquanto, deixaremos de lado). Cronologicamente, essas gravuras, as primeiras depois dos Caprichos, pertencem igualmente a três momentos. O primeiro conjunto foi constituído a partir de 1810 (em todo caso, é essa a data mais antiga que aparece), um segundo é posterior a 1812 (contém tanto imagens da fome quanto da guerra) e finalmente um terceiro provém dos anos 1815 a 1819, talvez até 1823. No início do volume, Goya coloca o seguinte título: “Fatais consequências da guerra sangrenta na Espanha contra Bonaparte e outros caprichos impressionantes [ enfáticos]” (o título Desastres da guerra será escolhido pelos editores). O termo capricho estabelece de saída a continuidade com as gravuras dos anos 1797-8, afirmando, portanto, a parte da imaginação ao lado daquela da observação; quanto a enfáticos, acredita-se que esse termo de retórica significa mais ou menos “alegóricos” e se refere às gravuras pertencentes ao terceiro grupo cronológico. A ordem na qual se sucedem as gravuras não é absolutamente indiferente. Assim como para os Caprichos, Goya hesitou e experimentou, como testemunham os números gravados nas estampas, que não correspondem à sucessão finalmente adotada. As imagens do início e do fim contêm sugestões sobre a maneira de interpretar o conjunto. Voltaremos mais adiante àquelas que terminam a série, em relação temática com o período da Restauração; observemos antes a gravura agora colocada no início, embora pertença ao grupo mais tardio. Desastres 1 (GW 993) mostra um homem ajoelhado, braços abertos, olhar acabrunhado dirigido para o alto, no meio de um cenário indeterminado mas sinistro, no qual flutuam alguns espectros humanos. A legenda diz: “Tristes pressentimentos do que vai acontecer”. Essa imagem, portanto, encontra-se no lugar que era ocupado pelo retrato de Goya
nos Caprichos, tanto o do homem seguro de si, na versão definitiva, quanto o daquele invadido por pesadelos, na versão inicial. É legítimo pensar que esse homem sofredor e suplicante, colocado na abertura dos Desastres , é ainda uma imagem — simbólica, dessa vez — do pintor, e que é o próprio Goya que experimenta esses penosos pressentimentos, ele que, assumindo igualmente a postura de Cristo no jardim de Getsêmani, esperava não ter de beber daquele cálice. Haveria aí um segundo indício sugestivo de que, após aquele fornecido pelo termo “capricho”, as imagens seguintes, longe de ser um simples registro daquilo que o pintor viu durante os terríveis anos de guerra, prolongam a exploração de seu mundo interior, povoado de demônios. Se dermos crédito a tais indícios, Goya havia, ao menos parcialmente, imaginado esses “desastres” antes mesmo do início da guerra: já fazia anos que representava os horrores humanos. Seus pesadelos se revelaram proféticos, o mundo se tornou tão negro quanto eles. Os estragos da guerra, agora mostrados, dão continuidade ao mundo dos bruxos, que ele tinha começado a representar dez anos antes. É por isso que, nessa época, não precisa mais pintar demônios: já que o real ultrapassou sua imaginação, não é necessário nos mostrar o que lhe vai no íntimo. Convocar o diabo para que, se os homens se comportam de maneira diabólica? A loucura do mundo foi ao encontro dos delírios mais desenfreados do pintor; ambos formam agora um todo. Chega-se à mesma conclusão examinando as gravuras em si: não é concebível que Goya (ou quem quer que seja, aliás) tenha sido testemunha ocular de todas essas sevícias, desse pavoroso inventário das violências bélicas. Provavelmente, ele viu um certo número delas. Durante sua viagem a Saragoça, em 1808, assim como mais tarde, por ocasião de sua escapada de Madri em 1812 ou 1813, ele deve ter observado os resultados dos combates encarniçados entre soldados e insurretos; em 1811-2, não pôde evitar ver os cadáveres que se espalhavam pelas ruas de sua cidade, em consequência da fome geral. Por duas vezes, Goya anota abaixo da gravura “eu vi isto” — mas, mesmo nesses casos, a composição esmerada e equilibrada da gravura nos faz duvidar de que ela seja a transcrição direta de suas impressões: a verdade que ele invoca é a da arte, e não a da cópia do real. Então, esses poucos massacres observados despertaram suas visões anteriores; sua imaginação, nutrida além disso pelos relatos que não podiam deixar de circular, multiplicou e diversificou as cenas vistas, originando assim os Desastres. É preciso renunciar a ver em Goya um precursor do repórter ou do fotógrafo de guerra. Nessa época, assim como no momento da Restauração, o pintor se contenta em explorar sua memória. Esta, sem dúvida, alimentou-se de suas experiências vividas, mas não só delas. Igualmente decisivas são as lembranças antigas, as narrativas dos contemporâneos, a leitura de obras históricas, as imagens de outros pintores do passado, às quais se acrescentam, claro, as fantasias pessoais. Os quadros, gravuras e desenhos de Goya revelam aquilo que ele pensou e imaginou, e não o que viu. Aqui, de novo, o pintor não se dirige apenas ao presente: suas lembranças e suas invenções são generalizadas e dotadas de sentido, e é por isso que nos falam com tanta força hoje. A verdade do artista não é a do ornalista. Como precedentemente, se ele usa frases como “eu vi isto” (caso dos Desastres 44 e 45), é menos para pretender uma precisão fotográfica do que para atestar a realidade das ações
representadas — e essas duas gravuras não representam as cenas mais chocantes. Existe outra lenda tenaz a respeito dos Desastres , dificilmente defensável se olharmos o conjunto dessas imagens. Segundo ela, tais gravuras seriam a expressão do espírito patriótico de Goya, mostrando os espanhóis como vítimas inocentes ou como heróis valorosos, e os ocupantes franceses como carrascos bárbaros. Essa opinião, evidentemente, não é compartilhada por todos; Lafuente Ferrari, por exemplo, escreve: “Os que não se resignam a ser vítimas se tornam por sua vez carrascos, sempre que podem: resistentes, cujas reações os levam às piores crueldades. […] O valor excepcional dos Desastres vem precisamente de que essa série gravada não foi feita para servir ao patriotismo”.1 É verdade que as vítimas espanholas são mais numerosas (as armas dos franceses são mais aperfeiçoadas), mas violência e absurdo se distribuem equitativamente de um lado e de outro. Observemos a demonstração dessa tese por Goya. Para que não haja equívoco, ele insere logo no início do conjunto, imediatamente após a gravura sobre os “pressentimentos”, outras duas que mostram, a primeira ( Desastres 2 , GW 995, fig. 12), soldados franceses executando insurretos espanhóis, e a segunda ( Desastres 3 , GW 996, fig. 13), combatentes espanhóis massacrando franceses a machadadas. Se ainda tivéssemos dúvidas sobre o sentido dessa justaposição, elas seriam dissipadas pela leitura das legendas, que põem os pingos nos is. A primeira diz “Com ou sem razão”; a segunda, simplesmente “A mesma coisa” — embora o primeiro massacre seja “imperialista” e o segundo, “patriótico”… Assim, a série de gravuras estabelece de saída a equivalência possível entre carrascos e vítimas. Ela também lembra o papel marginal das justificações fornecidas pela razão: a violência é desencadeada por forças que escapam a essa mesma razão. Outros grupos de gravuras ilustram a mesma proximidade entre os atores. Desastres 32 (GW 1047) mostra o laborioso enforcamento de um “inimigo” por três soldados franceses: a árvore à qual ele está pendurado é muito baixa, seus pés se arrastam no solo, e então os soldados se empenham em empurrá-lo e puxá-lo até que ele expire. A legenda diz simplesmente: “Por quê?”. Essa pergunta não espera resposta. Na guerra, o horror não tem explicações. Cento e trinta anos mais tarde, Primo Levi escutaria da boca de um guarda SS esta lei que descrevia o regime de Auschwitz: “Aqui não existe por quê”; na guerra de Goya, também não. Três imagens adiante, em Desastres 35 ( GW 1050), vê-se um grupo de espanhóis garroteados; foram executados pelos franceses ou por outros espanhóis, que os teriam considerado traidores? Em todo caso, a cruz lhes foi colocada na fronte e nas mãos (matase, dessa vez, em nome de Deus), a lista de seus crimes pende do pescoço deles, e o modo de execução é conforme ao costume espanhol. Agora a legenda diz, sem ponto de interrogação: “Não se consegue saber por quê” — aparentemente, para o pintor, o pretexto invocado na condenação inscrita no papel oficial não é suficiente. Logo depois, em Desastres 36 (GW 1051), vê-se de novo um espanhol enforcado; a legenda emenda, como se se tratasse dos mesmos atores: “Aqui tampouco”. Desastres 16 (GW 1017), por sua vez, mostra os insurretos espanhóis despindo os soldados franceses que eles acabam de matar; a legenda explica sobriamente: “Eles se aproveitam”.
Fig. 12. “Com ou sem razão”, Desastres 2.
Vimos que, no plano ideológico, a oposição entre as duas forças presentes era irredutível: os defensores das Luzes enfrentavam os servos de Deus, os partidários dos ideais universais se distinguiam claramente dos tradicionalistas. Mas Goya não se contenta em registrar os discursos mantidos por uns e por outros; também observa as práticas deles. Ora, desse último ponto de vista, as semelhanças vencem as diferenças: nos combates, os uniformes desaparecem, os guerreiros se tornam intercambiáveis, os partidos se confundem; mesmas atrocidades, mesmo absurdo.
Fig. 13. “A mesma coisa”, Desastres 3.
Para ilustrar as intenções patrióticas de Goya, cita-se habitualmente a gravura Desastres 7 (GW 1000), que mostra uma mulher manejando um canhão. Acreditou-se que esse era um fato histórico: a gravura seria inspirada na jovem Augustina de Aragón, que, durante o cerco de Saragoça pelos franceses, se distinguira armando o canhão. Contudo, pode-se observar, de saída, que essa foi a única imagem (de um total de 85) que se conseguiu vincular a um fato específico da resistência espanhola. Além disso, convém lembrar o contexto no qual ela aparece no interior da obra. Na verdade, tal gravura é a última de uma série de quatro, todas as quais mostram o comportamento das mulheres durante a guerra. A primeira, Desastres 4 ( GW 997), que representa mulheres ajudando os homens, tem uma legenda puramente descritiva: “As mulheres dão coragem”. A seguinte, Desastres 5 (GW 998), já comporta um texto bem mais ambíguo: “E são feras”, o que dificilmente pode passar por um simples elogio, até porque a imagem é a de um massacre impiedoso. Dessa vez, as mulheres participam ativamente do combate. Uma delas se apresta a esmagar o crânio de um soldado francês com uma pedra enorme; uma segunda, que, no entanto, segura com uma das mãos seu bebê às costas,
enfia com a outra mão uma lança no ventre de um segundo soldado. Os inimigos, por sua vez, não permanecem passivos: um terceiro soldado atira à queima-roupa nas mulheres. Pode-se deduzir daí que a legenda de Desastres 6 (GW 999), “Bem feito para ti”, a qual mostra o cadáver de um soldado francês, não pode ser tomada ao pé da letra: são as mulheres combatentes que falam assim, e não Goya. Essa interpretação é reforçada por outro par de gravuras, Desastres 28 (GW 1040) e Desastres 29 (GW 1042), que mostram dois momentos de uma mesma cena. Na primeira, os insurretos espanhóis estão massacrando outro espanhol caído no chão: é de novo um traidor, um colaborador, um afrancesado . Um dos carrascos enfia sua arma no ânus dele. A legenda diz “Populacho”, termo claramente pejorativo para designar a face sombria do povo. Tal distinção não é supérflua: essas duas facetas de uma mesma entidade são as que nós distinguimos ao opor os regimes democráticos aos regimes populistas. Os primeiros veem no povo a fonte de todo poder e o beneficiário último de sua ação; os segundos se deixam guiar pelas paixões dominantes do momento. Uns agem com vistas ao interesse geral, ainda que este seja impopular, os outros adulam o gosto da multidão. Na gravura seguinte, arrasta-se o corpo inanimado cujos pés estão atados por uma corda, enquanto se continua a espancá-lo, dando assim novas provas de patriotismo. O sentido é claro: o linchamento está concluído, agora a procissão triunfal pode começar. A legenda, “Ele merecia”, é manifestamente irônica — e ao mesmo tempo bastante próxima do “Bem feito para ti” de Desastres 6 . Podemos, portanto, perguntar-nos se a legenda da gravura “patriótica” da mulher com o canhão, Desastres 7 , que diz “Que coragem!”, não deve por sua vez ser entendida ironicamente: o tiro de canhão disparado por essa mulher, embora defenda os “nossos” contra os “outros”, os “bons” contra os “maus”, provocará, como qualquer explosão, morte e desolação. Goya não se empenha em ilustrar os feitos heroicos dos combatentes, mas as “consequências fatais da guerra”. Aliás, é o que mostram as gravuras imediatamente seguintes: assim que se conclui a série ilustrativa da bravura militar das mulheres, encadeiam-se imagens que as representam num papel mais familiar, o das vítimas de estupros ( Desastres 9, 10, 11, 13, 19; GW 1005, 1006, 1007, 1011, 1022). A legenda de Desastres 10 (fig. 14), “Também não”, remete à precedente, “Elas não querem”; a imagem mostra um embaralhamento extraordinário de corpos, no qual já não se sabe a quem pertence este ou aquele membro — a transgressão das regras morais parece redobrada pela dos contornos dos corpos. No entanto, a significação global da cena não deixa nenhuma dúvida: trata-se realmente de estupros e de morte. Para quem vive no século XXI, tais cenas evocam os relatos de estupros coletivos e de massacres ocorridos na Iugoslávia ou no Congo; elas também lembram — mas isso não é um consolo — que essa forma de violência não é uma invenção recente, assim como não é reservada aos povos exóticos. A guerra acarreta matanças, atrocidades, fome. A tonalidade que domina toda essa parte dos Desastres é a de um grito de indignação ante esse desencadeamento da violência. Somente as seis primeiras gravuras ( Desastres 2 a 7 ) mostram combates; na sequência da coletânea, Goya se empenha em representar vítimas — aqueles que suportam, e não aqueles que agem. Pelo menos metade das gravuras lhes é consagrada: vítimas dos
estupros ou da fome ( Desastres 48 a 64), de torturas ou de execuções, civis fugindo à violência dos combates ( Desastres 41 a 45) ou entregando-se à pilhagem: os vivos despem ou descalçam os mortos, abastecendo-se assim sem grande custo ( Desastres 16 , 24, 25; GW 1017, 1033, 1035). Goya mostra cadáveres em abundância. O amontoamento de corpos nus e mortos evoca para nós as imagens dos campos de concentração (Zoran Mušicˇ, saído de Dachau, dizia encontrar somente em Goya uma imagem do que ele mesmo tinha vivido). Desastres 18 (GW 1020, fig. 11), uma das gravuras mais antigas, nos coloca diante de uma simples pilha de cadáveres, contemplada por duas testemunhas, seres humanos normais e portanto desesperados, um dos quais poderia ser o pintor, observador acabrunhado; o odor pestilencial dos corpos em decomposição invade a imagem. Desastres 60 (GW 1094), gravura relativa ao período da fome, é muito semelhante: uma figura fantasmática está de pé, desorientada, no meio dos cadáveres; a legenda é “Não há quem os socorra”. Outra gravura, Desastres 12 (GW 1009), mostra um homem vomitando diante da massa de corpos mutilados, em putrefação; a legenda formula um epitáfio desesperado: “Foi para isto que vocês nasceram”. A legenda de Desastres 18 diz simplesmente “Enterrá-los e calar-se”, mas essa simplicidade é eloquente: diante das vítimas, os discursos estão fora de lugar. Que argumentos, invocando as causas justas ou a necessidade de vingar a afronta sofrida, poderiam legitimar tal hecatombe?
Fig. 14. “Também não”, Desastres 10.
Às vítimas diretas da guerra acrescentam-se, no seio da população civil, as da fome provocada pelo cerco de Madri, acompanhada de suas próprias consequências — a redução à mendicância, os estupros, as mortes em massa. Uma das imagens mais comoventes mostra apenas um corpo morto, o de uma jovem carregada por três homens ( Desastres 50, GW 1074, fig. 15) e seguida a poucos passos por uma garotinha que tenta enxugar as lágrimas: é o desespero em estado puro, sublinhado ainda mais pela grisalha uniforme que recobre a gravura. Outras imagens dos Desastres mostram (e esse é o tema mais frequente na coletânea) cenas de execução individual ou coletiva pelos meios mais variados, nos quais a imaginação humana parece dar-se livre curso; ou ainda o encarniçamento sobre os cadáveres inimigos. Desastres 33 (GW 1048) representa dois soldados franceses partindo com serra um homem nu. Desastres 39 (GW 1055), ironicamente intitulado “Que façanha! Com mortos!”, apresenta vários cadáveres cortados em pedaços, como num balcão de açougue. Pensa-se hoje que esses cadáveres pertencem a espanhóis
executados como “traidores” por outros espanhóis, pois um bom número desses casos de mutilação e esquartejamento era descrito na imprensa contemporânea que Goya podia ler. Diz o texto de uma sentença pronunciada contra dois “traidores” por um “tribunal popular” em Tarragona, em 9 de julho de 1809: “Que sejam condenados ao enforcamento e seus cadáveres, depois de arrastados, sejam decapitados e sua mão direita cortada, e que suas cabeças e mãos sejam colocadas às portas da cidade, para serem vistas por todos, a fim de servir de exemplo aos outros celerados espanhóis”. 2 Em contraposição, em Desastres 37 (GW 1052), o homem nu, empalado vivo, é de fato vítima dos soldados napoleônicos que vemos atrás dele. Desnudadas, as vítimas já não pertencem a nenhum campo, as justificativas dadas para os massacres se evaporam. Todas essas cenas poderiam ser dispostas sob o signo da legenda que acompanha Desastres 26 ( GW 1037), e que veremos retomada em outro lugar: “Não se consegue olhar”; no entanto, é precisamente o que Goya nos obriga a fazer.
Fig. 15. “Mãe infeliz!”, Desastres 50.
Marina Tsvetáieva descreverá em termos semelhantes as vítimas da terrível guerra civil que, em 1919, oporá na Rússia os “vermelhos” aos “brancos”: Ele era branco — está vermelho: O sangue o empurpurou. Ele era vermelho — está branco: A morte o branqueou .3
Um dos elementos mais chocantes dessas imagens reside não na violência dos atos, mas na indiferença, e até na calma, com a qual seus autores continuam a comportar-se. Desastres 36 (fig. 16) é exemplar nesse sentido: o que nos impressiona não é tanto o enforcado do primeiro plano, nem os outros executados que vemos atrás dele, mas a postura descontraída, tranquila, para não dizer meditativa, do soldado francês que supervisionou tal execução. Ao espectador de hoje, ela lembra as famosas fotografias saídas da prisão de Abu Ghraib no Iraque: mais ainda do que os corpos nus amontoados, torturados com eletricidade ou trêmulos de medo diante de cães, o que chocava era o sorriso nos lábios daqueles rapazes e moças americanos, bem alimentados e saudáveis, para os quais torturar os prisioneiros não apresentava aparentemente problema algum. A gravura de Goya traz a legenda “Aqui tampouco”, que remete àquela da gravura anterior, a qual diz, retornando a um motivo
á presente, “Não se consegue saber por quê”. Longe de encarnar o páthos patriótico, Goya se dedica a mostrar que a guerra é um “meio” que ultrapassa qualquer “fim”. No ponto de partida, aqueles que a desencadeiam têm indubitavelmente razões de agir que lhes parecem legítimas, objetivos que eles consideram necessário alcançar. Mas a experiência mesma da guerra é tão intensa que faz esquecer tudo o que não é ela, arrastando em seu turbilhão as decisões anteriores tanto quanto as justificações dadas em nome dos efeitos previstos. O que importa num ato de guerra é que se faz a guerra, e não a razão pela qual ela é feita, nem o benefício que se espera dela. A violência dos atos neutraliza a ideologia em cujo nome eles são realizados.
Fig. 16. “Aqui tampouco”, Desastres 36 .
As imagens de Goya são de uma brutalidade extrema. Os poucos paralelos que nos vêm à mente permitem sobretudo apreender melhor a originalidade delas. As misérias e os infortúnios da guerra de Jacques Callot, que datam de 1633, registram numerosos massacres cometidos durante a Guerra dos Trinta Anos , mas não possuem nem a ambição nem a força das imagens de Goya: essas pequenas gravuras desprovidas de julgamento moral dão uma visão distante dos atos executados; nós não somos colocados diante de nenhum detalhe, nenhum rosto, nenhum sentimento. As imagens das Grandes viagens, gravadas por Théodore de Bry e seus colaboradores e publicadas a partir do fim do século XVI, representam com frequência as atrocidades cometidas pelos colonizadores espanhóis durante a conquista da América; trata-se, contudo, de violências infligidas aos “selvagens”, e não — como no caso de Goya — a compatriotas. Também nos vêm à mente as imagens que ilustram a vida dos mártires cristãos ou a de Cristo: nelas, os corpos mutilados e desmembrados eram representados segundo um contexto religioso ou mitológico. Os Desastres da guerra revelam uma grande familiaridade com essa tradição da pintura cristã. Mas, em um caso, o sofrimento das vítimas supostamente ilustra a força da fé e prova a grandeza de Deus, ao passo que, em outro, ele é vão, inteiramente desprovido de justificação. Esses desastres não remetem a uma ordem superior, mas à sua ausência; não se aparentam com sacrifícios purificadores (supondo-se que estes existam), mas a massacres que atraem outros massacres. A guerra e a corrente de atrocidades que a acompanha já não podem ser úteis a nenhum objetivo nobre; simplesmente revelam a violência de que os homens (e às vezes as mulheres) são capazes. É
totalmente inútil procurar quem começou, quem defende ideais superiores, qual objetivo é mais sagrado: na violência, os inimigos que acreditavam que tudo os separa se parecem, na realidade. A legenda de Desastres 2 dizia, como vimos: mata-se com ou sem razão, indiferentemente — o que, no essencial, significa sem. Mas a ausência de razão não significa a ausência de causa, e é por isso que Goya pinta essas imagens nas quais se esforça por explorar a face sombria do ser humano. Tal é o cálice amargo que o autor dos Desastres , que se representou na primeira imagem do volume como um Cristo moderno, aceitou a contragosto beber até a borra. Não sugere que ele mesmo morrerá na cruz; seu doloroso destino consiste em ter tido de antemão a revelação dos horrores vindouros, em tê-los visto acontecer ao seu redor e em ter se sentido encarregado de uma missão: mostrar aos homens o mal de que eles são capazes. Sua tarefa é ainda mais pesada pelo fato de que, contrariamente ao seu longínquo modelo, Goya não indica em absoluto que acredita em uma salvação qualquer, na ressurreição futura dos corpos ou na imortalidade da alma. A morte cujas formas ele mostra parece mesmo definitiva, e o pintor não propõe nenhum consolo. A narrativa de guerra é palpitante, recria um lugar onde se exibem coragem, força, solidariedade; mas a guerra em si — e o que Goya ambiciona mostrar com suas imagens são os efeitos dela — produz a perda de sentido das ações humanas concebidas em tempo de paz. Quiçá pela primeira vez na história da pintura, a guerra aparece despojada de todo brilho, de toda sedução: é a encenação de um massacre imundo, e não de um espetáculo heroico. Não há em Goya a menor tentação estetizante: esses corpos dilacerados, essas mulheres estupradas, esses enforcados não são belos. Iríamos inteiramente de encontro às intenções de Goya se, ao ver essas gravuras, nos contentássemos em admirar sua perfeição gráfica. A reação que ele deseja provocar é sobretudo a seguinte: a guerra é horrível. Ele despoja suas imagens de toda função que não a de designação: abstém-se de extrair lições destinadas aos espectadores, assim como deixa abafadas suas próprias reações. Evita dramatizar o que mostra, o mundo se encarregou disso em seu lugar; não faz ostentação de bons sentimentos. Quanto a isso, a gravura legendada como “Caridade” ( Desastres 27 , GW 1038) é reveladora: essa virtude cristã cardinal consiste aqui, muito prosaicamente, em empurrar os corpos nus dos massacrados para dentro de uma cova. Goya visa unicamente a um objetivo: mostrar a verdade da guerra, a violência humana que se desencadeia nela, a destruição de todos os valores próprios à convivência em tempo de paz. Até mesmo o espaço parece subvertido, as árvores que vemos esporadicamente também estão mutiladas, já não se distinguem muito bem o céu e a terra. Nesse sentido, a gravura mais espantosa é Desastres 30 (GW 1044, fig. 17), legendada como “Os estragos da guerra”, título no qual se inspiraram os primeiros editores da série: nela, os cadáveres de mulheres e de homens dilacerados se assemelham de novo a cosmonautas flutuando sem peso; nesse movimento, são alcançados por uma poltrona e vários outros objetos. Terá sido o efeito de uma bala de canhão que se abateu sobre essa casa? A imagem do caos daí resultante não tem nada a invejar ao Guernica de Picasso e forma um símbolo inesquecível da destruição bélica. O massacre não atingiu apenas os seres humanos, mas também o espaço onde eles viveram — e no qual vivem o pintor e os espectadores de suas imagens.
A perda das referências materiais é como que a consequência do desaparecimento de toda referência moral. As imagens que Goya desenhou e gravou constituem uma série sem precedentes, tanto pelo detalhe daquilo que é mostrado como pela qualidade do traço. Alguns desenhos contemporâneos reforçam essa impressão. Um deles deve ter sido realizado com vistas a Desastres 21 , “Será a mesma coisa”, mas a gravura final é bastante diferente. No desenho (GW 1028, fig. 18), ao qual a aguada de sépia dá uma força expressiva imediata, somos confrontados com uma luta em que mortos e vivos se assemelham, em que é impossível saber a que campo pertence cada combatente. Os gestos deles falam, o rosto dele está mudo; o céu é negro, a terra, branca. Ou ainda GW 1148, outra sépia negra, em que a luta está mais avançada: um dos combatentes se encontra no chão, sua angústia se condensa no gesto da mão esquerda e na expressão do rosto; o outro se apresta a massacrá-lo — mas, quem sabe, sucumbirá antes, sob os golpes de um terceiro atacante? Mais uma vez, os meios utilizados servem admiravelmente ao objetivo do pintor, a impressão de rapidez do toque reproduz a precipitação dos combates; a interpenetração das formas e o jogo entre preto e branco permitem fixar para sempre o caos e a violência da guerra.
Fig. 17. “Os estragos da guerra”, Desastres 30.
Por que Goya produziu os Desastres da guerra ? Tem-se a impressão de que a resposta a essa pergunta é simples: porque não podia agir de outro modo. O fato de ter vivido e observado essa experiência fez dele uma testemunha preciosa. Um pouco como os sobreviventes dos campos de concentração, que na volta se sentem encarregados de uma missão — contar o que testemunharam para que a humanidade saiba aquilo de que é capaz —, ele sentiu a necessidade de soltar um grito de aflição. É sua maneira de solidarizar-se com todas as vítimas, e também de mostrar que não somos obrigados a matar como resposta às matanças. Goya renunciará a publicar essas imagens, mas isso não prejudica sua decisão de gravá-las e preservá-las. Ele sem dúvida acredita que, certamente, um dia elas chegarão aos seus destinatários (isso se produziria 35 anos após sua morte). Como a garrafa lançada ao mar, contendo uma mensagem preciosa, seu relato sobre a guerra acabou chegando à praia, onde foi encontrado e decifrado pelos novos habitantes.
Fig. 18. Será a mesma coisa.
Homicídios, estupros, salteadores, soldados
O inventário dos bens que Goya possui no momento da morte de sua mulher, em 1812, permite ter uma ideia aproximada dos quadros que ele havia pintado nos anos anteriores. Entre estes, um certo número parece ter relação com os acontecimentos em curso (os que trazem no catálogo os números GW 914 a 946); alguns formam no inventário um grupo designado como “Doze horrores da guerra”. Mas não conhecemos a data de sua execução e é possível que vários deles sejam anteriores à “guerra sangrenta” que começou em 1808. Goya pode se inspirar naquilo que observa ou naquilo de que ouve falar, mas também no que ele denomina seus “tristes pressentimentos”, suas apreensões quanto às “consequências fatais” de uma natureza humana violenta. Seus quadros, como vimos, não são o reflexo direto dos eventos em curso, mas o resultado das meditações que estes lhe suscitaram. Alguns deles permaneceram no ateliê do pintor, outros foram vendidos a aficionados, mas todos foram pintados por iniciativa própria e não são produto de uma encomenda; pertencem à vertente pessoal, privada, íntima desse pintor duplo que Goya se tornou. Como nas gravuras, ele mostra, em vez de combatentes heroicos, as vítimas impotentes da violência generalizada, quer esta assuma ou não a face da guerra. Desde 1793, Goya procura revelar a verdade do mundo que habita empenhando-se na representação dos seres que lhe povoam as margens: criminosos, prisioneiros ou loucos (ils. 4, 5 e 6). Reconhecem-se os prisioneiros em vários desses novos quadros, como o que representa um pequeno grupo de pessoas prostradas atrás de um homem imobilizado ( GW 933), ou o de uma mulher que espera em sua cela o momento de ser executada ( GW 915). Encontra-se uma abóbada semelhante à das prisões, iluminada por uma janela ao fundo, num quadro cujos personagens são identificados como pestíferos, encerrados em um asilo ( GW 919, il. 10). Lê-se o desespero em suas posturas, tanto quanto na dos detidos: eles jamais deixarão esses lugares. Aqui, os moribundos se misturam aos cadáveres. Algumas outras cenas remetem ainda mais diretamente aos temas dos Desastres . A guerra civil não se limitou a causar vítimas entre os combatentes; teve como efeito a suspensão de toda ordem social, a abolição das regras da vida comum: a força bruta substituiu a lei. Mas já faz anos que a Espanha é presa dos bandos que escapam a qualquer controle (ainda estamos no mundo do anuscrito encontrado em Saragoça ). Goya deixou várias séries de pequenas pinturas que narram as diferentes fases dos confrontos violentos que se seguem. Uma delas parte de um incidente que, na época (em 1806), teve muita repercussão: um bandido é desarmado e detido por sua vítima, um religioso; seis quadros ( GW 864 a 869) reconstituem o fato à maneira de uma história em quadrinhos.
Outra série, de três quadros, que pode ser anterior, conta o infortúnio de um grupo de viajantes parado por salteadores, tema já abordado várias vezes por Goya, como em O assalto à diligência (il. 4). Dessa vez a agressão é particularmente brutal, e suas consequências são cruamente mostradas. O primeiro quadro da série ( GW 918, il. 11) representa a execução dos homens: um deles já está no chão, implorante; o outro, com os olhos vendados, reza. Os salteadores não parecem nem um pouco tocados por essas súplicas, e tampouco pela intervenção de uma mulher que tenta comovê-los; as armas falarão nos próximos instantes. A cena seguinte ( GW 916, il. 12) situa-se no interior de uma espécie de gruta, provável refúgio dos bandidos. Tendo sido eliminados os homens, agora é a vez de as mulheres sofrerem sua sorte. Um dos salteadores está estuprando uma delas, inteiramente nua; outro tira as últimas roupas da segunda mulher. Um terceiro bandido espia, aguardando sua vez. A mulher que ocupa o centro do quadro está situada diante do espectador, e portanto este é arrastado para dentro do quadro como um participante. Por fim, o terceiro quadro ( GW 917, il. 13) mostra o último ato desse encadeamento sinistro: um dos bandidos, debruçado sobre a mulher que ele acaba de estuprar, termina de apunhalá-la, o sangue dela á escorre. Esse tríptico é memorável não só pela precisão na expressividade dos corpos e pela violência dos atos representados, mas também pelos fragmentos do cenário natural onde eles se situam, evocando o caos que precede ou rodeia toda ordem, talvez até o interior do corpo humano. As cores escuras predominam, com raros toques claros: uma roupa, os restos de uma fogueira, o sangue que brilha. Em vez da visão panorâmica que tínhamos no precedente O assalto à diligência, dispomos aqui de três grandes planos, o que aumenta ainda o impacto emocional das imagens. Outros dois quadros (cuja autenticidade é frequentemente contestada) representam episódios semelhantes, sem que possamos saber a ordem na qual devem ser vistos. Duas mulheres seminuas são violentadas e arrastadas por homens armados, enquanto uma criança, em prantos, tenta em vão reter uma delas ( GW 931). Outra criança procura impedir os homens de estuprar sua mãe, estendida seminua no chão; cadáveres femininos nus estão pendurados pelos pés nas árvores vizinhas, anunciando a sorte que espera a próxima vítima ( GW 930, il. 14). Tais cenas ecoam certas gravuras, como Desastres 11 . Goya não assistiu a esses atos de banditismo nem a esses estupros; provavelmente jamais penetrou nas prisões e nos calabouços. Ele soube da existência de tais fatos e, a partir daí, sua imaginação se encarregou de fornecer os contornos exatos das imagens. As cenas de guerra, portanto, não destoam nesse conjunto. O frade enforcado (GW 932) mostra quatro personagens: um soldado está desprendendo o cadáver rígido de um frade, duas mulheres acorrem gritando. Cena de guerra (GW 948), que faz parte de um conjunto de quadros que podem ser vistos em Buenos Aires e cuja autoria às vezes é posta em dúvida, é um dos raros exemplos de imagem de batalha. Os dois grupos de combatentes encontram-se tão próximos um do outro que seus fuzis não podem errar o alvo. Duas fileiras de atiradores se defrontam, como numa imagem refletida: à direita, os atiradores estão alinhados, semelhantes aos soldados no quadro Três de maio de 1808 (GW 984), só que à esquerda, em vez das vítimas impotentes, veem-se outros soldados; os dois grupos, irmãos inimigos, fazem fogo no mesmo momento. Diante dessas duas fileiras de homens estão
algumas pessoas que não participam do combate, mas estão sujeitas a ele. Uma mulher abre amplamente os braços, lembrando a vítima com os braços em cruz no Três de maio , mas aqui uma criança se agarra à sua saia. Aos seus pés, uma segunda mulher está caída, morta. Uma terceira se ajoelha, as mãos postas num gesto de prece; diante dela, um homem igualmente de joelhos recebe golpes de um soldado. Uma figura misteriosa se mantém atrás dos combatentes virando-lhes as costas, braços erguidos para o ar, como asas. Desprovida de cores, com contornos incertos, essa figura parece encarnar um ser sobrenatural, um espírito que, desesperado, desvia os olhos do massacre que se desenrola a dois passos dele. Outra cena ( GW 921, il. 15) mostra um acampamento militar: os atacantes (bandidos?) atiram sobre um grupo de soldados; no chão os cadáveres se misturam aos corpos dos feridos, um homem que mal respira está sendo carregado; uma mulher que devia estar na companhia dos soldados tenta fugir, descalça, carregando nos braços um bebê que chora. Encontram-se nesse quadro elementos de várias outras gravuras dos Desastres da guerra : à direita a fileira de fuzis, os quais vão atirar a qualquer momento, como em Desastres 26 ; o fogo do qual os civis fogem, socorrendo-se uns aos outros, como em Desastres 41; ou esses outros habitantes das aldeias que escapam às pressas, com, também aqui, uma mãe e seu filho em primeiro plano ( Desastres 44 ). O rosto da mulher no quadro, embora reduzido a poucos traços simples, é um dos mais inesquecíveis que Goya pintou: três pinceladas bastaram. Os traços do pavor se fixam para sempre em nossa memória, um pouco como, bem mais perto de nós, na célebre fotografia de Nick Ut que mostra uma criança vietnamita de nove anos, nua, fugindo de sua aldeia bombardeada com napalm. Os historiadores de hoje identificam os protagonistas desses quadros ora como salteadores, ora como soldados; de maneira evidente, Goya não faz muita diferença entre bandidos profissionais e militares errantes pelo país: são de qualquer modo homens armados que impõem sem cerimônia sua vontade aos outros; por toda parte, as vítimas deles são civis, mulheres, crianças. Convém notar que nas cenas de estupro, assim como em outras imagens, Goya não representa os órgãos genitais do homem (ou da mulher): o que interessa é o gesto, mais do que a anatomia. Uma série de quatro quadros, igualmente datada da primeira década do século XIX, mostra uma forma totalmente diversa de violências, as dos “selvagens” da América. Goya talvez tenha se lembrado de certos relatos de massacres cometidos no continente americano pelos índios (que em sua época passam por antropófagos), o que lhe permite introduzir o motivo do canibalismo. Mas, na verdade, não precisa disso: a selvageria se desencadeia então na Espanha e, ademais, ele agora sabe que ela pode se esconder dentro de cada um de nós. É sem dúvida o que indicam os traços europeus desses selvagens nus que vemos decapitando uma mulher, igualmente nua ( GW 924); despedaçando alegremente dois homens mortos, um dos quais está enforcado e o outro, jogado no chão ( GW 922); ou ainda brandindo a cabeça e a mão que um homem acaba de decepar, enquanto várias mulheres assistem calmamente à cena ( GW 923, il. 16). Como não pensar nas gravuras dos Desastres que mostravam corpus nus, partidos em pedaços, por exemplo, em Desastres 39 ? A posição das pernas do homem, no último quadro, lembra também a postura das bruxas (em Capricho 65, fig. 8): assim
como os outros gestos desses canibais exóticos, ela é fruto da imaginação de Goya, mais do que da observação. Tais cenas — de banditismo, de guerra ou de canibalismo — não têm nada de anedótico, Goya não busca estigmatizar este ou aquele comportamento deplorável, ora entre os “selvagens”, ora entre os “civilizados”. Através das diferentes formas que ela assume, ele mostra a violência em si, própria de todas as comunidades humanas e que, para revelar-se, só espera as circunstâncias adequadas. Goya não se contenta em figurar cenas de violência extrema; por sua vez, ele violenta nesses quadros as convenções pictóricas. Suas pinceladas são vivas e ultrapassam os contornos das figuras. Sua paleta é muito limitada, tendente à monocromia, uma mistura lamacenta de amarelo, marrom e verde-escuro, inundada de negro. Passa-se, sem transição, do solo aos amontoamentos de pedras, das massas de árvores ao céu. Na verdade, este não é bem um céu. O que emerge da obscuridade são imensos rochedos, árvores fantásticas, terrenos vagos: não se consegue reconhecer nenhuma paisagem familiar, a natureza, aqui, não passa de um prolongamento afetivo da violência humana e não é menos deprimente do que as salas abobadadas das prisões e dos hospitais. As figuras dos soldados-bandidos às vezes são realistas, outras vezes suas silhuetas se tornam fluidas e eles se assemelham a fantasmas; podemos captar suas expressões, mas os rostos não são individualizados. De novo, a abolição das leis morais parece ter acarretado a perturbação das leis físicas. Um quadro mais enigmático, do mesmo período, cuja atribuição a Goya é hoje contestada, representa a guerra de maneira alegórica: trata-se de O gigante (ou O colosso, GW 946). Embaixo, vemos dispersarem-se homens e mulheres, vacas e cavalos, aparentemente apavorados pelo gigante que surge acima deles. Mas esse gigante é símbolo de quê? Não pode ser do povo espanhol, visto que os personagens do quadro, aterrorizados por essa visão, tentam fugir. Nem de Napoleão: os soldados franceses mostrados por Goya em outros trabalhos não têm nada de sobrenatural. Não seria antes o próprio espírito da guerra, que habita tanto o ocupante estrangeiro quanto os insurretos espanhóis, um Marte sedento de sangue, parente do Saturno que devora seus filhos? Goya (ou um pintor que era próximo dele) não deixou nenhuma chave para a decifração desse quadro. Uma gravura (GW 985) mostra um colosso semelhante, sentado sob uma lua crescente. Ainda que pareça mais pacífico, nem por isso ele é muito tranquilizador: nada de bom pode vir desse ser de potência desmesurada, que permite visualizar a violência dissimulada no coração dos homens. O conjunto dessas imagens — quadros, gravuras, desenhos — que representam os horrores da guerra rompe novamente com a imagem convencional que se faz do pensamento iluminista. Os Caprichos transformam a visão corrente do homem, revelando suas fantasias e seus pesadelos, mostrando que seu ser não é dominado exclusivamente pela razão e pela vontade. As imagens da guerra vão mais longe: elas nos fazem ver que, em certas circunstâncias, os pacíficos habitantes das cidades e dos campos podem se transformar em assassinos e torturadores. Não devemos crer, porém, que os pensadores mais lúcidos do Iluminismo não tinham suspeitado disso. Rousseau, contrariamente ao que uma lenda tenaz sustenta, sabe que a maldade é própria dos homens que vivem em sociedade (e não existem outros), que eles são geralmente animados por uma “negra tendência a
se prejudicarem mutuamente”.1 Em todo caso, está claro que as coisas mudaram desde a época em que Goya, executando as encomendas régias para as tapeçarias, pintava um povo imaginário, composto de camponeses e de cidadãos jubilosos, alternando trabalhos realizados na alegria e festas tranquilas; ele agora sabe que o povo tem também outra face, a do populacho disposto a torturar seus inimigos, a linchá-los e a despedaçar-lhes os cadáveres. Os olhos do pintor se abriram, já não unicamente para os desejos inconscientes dos homens, mas também para os atos de que eles são capazes. Contudo, à diferença de um Sade, cujos escritos fazem com deleite o inventário detalhado dos sofrimentos que os homens sabem infligir-se mutuamente, Goya não sente com isso nenhum júbilo: contenta-se em representar fielmente os abismos humanos que vislumbrou, e, se existe um sentimento que estes provocam nele, adivinha-se que é sobretudo o desalento. Goya não esquece que as piores maldades são realizadas em nome de valores elevados: a defesa das ideias liberais ou da pátria e da identidade tradicional, ou da Santa Madre Igreja e de Deus. Os belos discursos, os magníficos programas jamais constituem uma garantia contra a violência e a destruição, pois os meios acionados para concretizá-los aniquilam os objetivos iniciais. Pior: a certeza sincera e apaixonada de estar a serviço do Bem e de contribuir para a felicidade da humanidade fornece aos seus detentores uma desculpa excelente (e geral) para justificar todos os abusos futuros. O que importam alguns “danos colaterais” diante da salvação trazida a todos? Assim como Erasmo havia constatado cerca de trezentos anos antes, a adesão a um objetivo altamente desejável permite esquecer que os meios empregados para alcançá-lo nos afastam dele todos os dias. Falando do papa e dos príncipes da Igreja, que se consideravam servidores zelosos da fé cristã, Erasmo constatava: “Hoje, como se Cristo tivesse desaparecido […], eles defendem a Igreja pela espada. Embora a guerra seja […] tão pestilencial que traz consigo a total corrupção dos costumes, tão injusta que nunca é mais bem conduzida do que pelos piores bandidos, tão ímpia que é incompatível com Cristo, eles abandonam todo o resto para ocupar-se unicamente dela”. 2 Goya pinta os resultados calamitosos desses nobres projetos — trazer as Luzes, lutar pela independência, servir a Deus — e constata: a tentação do bem é mais perigosa do que a do mal. Não é porque se aspira à liberdade — a do espírito ou a do país — que se deixará de infligir sofrimentos e participar dos crimes. É justamente por isso que Goya assimila, em suas imagens, os combatentes pela liberdade ou pelo bem aos salteadores de estradas e aos canibais. Desse ponto de vista, novamente, sua lucidez assume para nós um aspecto profético.
Fig. 19. Foi porque ela era liberal? .
Os desastres da paz
Em junho de 1813, as tropas conduzidas por Wellington obtêm a vitória sobre as de José. Alguns meses mais tarde, Fernando volta à Espanha para retomar o trono que ele havia ocupado brevemente em 1808. Nesse ínterim, Madri mergulha numa atmosfera patriótica. Goya se apressa a recuperar seu prestígio. Em fevereiro de 1814, dirige à Regência que detém provisoriamente o poder um requerimento no qual, diz o relatório que o resume, manifesta seu desejo ardente de perpetuar por meio do pincel as ações ou as cenas mais notáveis e mais heroicas de nossa gloriosa insurreição contra o tirano da Europa; e, chamando a atenção sobre o estado de penúria absoluta em que se encontra e sobre a impossibilidade em que está, por tal razão, de assumir as despesas de um trabalho tão interessante, ele pede ao Tesouro Público que lhe ofereça uma certa assistência para realizá-lo.
Como frequentemente ocorre, Goya visa a um objetivo duplo. Por um lado, quer melhorar suas finanças; na verdade, ao falar de “penúria absoluta”, exagera muito suas carências: o inventário de 1812 prova o contrário; mas convém dizer que Goya sempre cuidou ativa e eficazmente de seus rendimentos. Por outro lado, quer ganhar uma reputação de patriota infalível, talvez precisamente porque não o foi; pede, portanto, para exercer um papel que lhe é estranho, o de cantor dos altos feitos heroicos de seus compatriotas. Aqui, quem se exprime já não é o autor dos Desastres da uerra, mas seu duplo, aquele que julga (como Montaigne) que não há mal nenhum em “dobrar seus oelhos” diante do poder absoluto. Sua demanda será atendida, e ele pintará dois quadros relativos à insurreição, Dois de maio de 1808 (GW 982) e Três de maio de 1808 . Para falar a verdade, esses quadros não são assim tão conformes ao espírito heroico quanto a proposta de Goya fazia imaginar. O primeiro mostra o povo simples de Madri atacando os mamelucos, mercenários de Napoleão: estes, montados em seus cavalos, tentam se defender, lê-se o medo em seu olhar. O rosto dos atacantes espanhóis exprime, ao contrário, uma resolução irrevogável: para vencer, é preciso matar. À diferença das cenas clássicas de batalha, estamos mergulhados aqui em plena luta corporal e temos dificuldade de compreender a quem pertence tal parte de tal corpo, mas essa indistinção traduz bem a confusão do próprio combate. Nas duas obras, Goya não hesita em exagerar as proporções dos corpos, em colocá-los em posições impossíveis, a fim de reforçar-lhes a expressividade. O segundo quadro, Três de maio de 1808 , muito célebre, tendo-se tornado uma espécie de
emblema nacional espanhol, mostra uma execução: aqui, as simpatias do pintor se dirigem claramente às vítimas, bem diferenciadas de seus executores; a composição faz pensar no Fuzilamento num acampamento militar (il. 15), mas também em várias gravuras dos Desastres , com a fileira de fuzis à direita e as vítimas à esquerda (como em Desastres 2 , fig. 12). Aqui, os assassinos são franceses, e não espanhóis. Os fuzilados pelos franceses no quadro Três de maio teriam sido aqueles que matavam os soldados de Napoleão, no Dois de maio? Vistos de costas, os soldados não têm rosto nem individualidade; estão ali, organizados em linha, somente para acionar os fuzis, e abrirão fogo no instante seguinte. Diante deles, a vítima central se destaca graças à camisa branca e à calça amarela: como sugerem seus braços abertos e os estigmas em suas palmas, esse homem é um duplo do Cristo crucificado. De fato, a propaganda católica da época apresentava Napoleão como um anticristo. Fiel ao pensamento que suas gravuras expressavam, Goya não perpetua a gloriosa insurreição por um ato que ilustre a força dela, mas pela imagem de um assassínio coletivo. A assimilação da vítima a Cristo é impressionante; convém dizer que, nos raros quadros de Goya consagrados à história de Jesus, vemos o Filho de Deus reduzido à impotência, tornado pura vítima expiatória: é o que se dá no jardim de Getsêmani ( GW 1640) ou no momento de sua prisão (GW 737). Contudo, a semelhança do insurreto espanhol com Cristo não chega ao ponto de sugerir que ele será salvo no reino de Deus. Se os gestos do cidadão Goya ao longo desse período não estão acima de qualquer crítica, isso não o impediu em absoluto de pintar, no Três de maio , uma obra-prima que hoje fala a todos e diz a verdade sobre esses fatos e os sentimentos que eles suscitam. Fernando retorna a Madri em maio de 1814 e toma rapidamente algumas decisões que indicam em que espírito ele pretende reinar: revoga a Constituição adotada em 1812 pelos liberais que haviam fugido da ocupação francesa e restabelece a Inquisição; o clero recupera todas as suas prerrogativas. Uma parte da população aplaude essa volta aos velhos hábitos; os liberais partem para o exílio: pelo menos 12 mil famílias, entre as quais boa parte dos parentes da nora de Goya. Instauram-se comissões de expurgo, diante das quais cada um deve provar que se manteve patriota ao longo de toda a ocupação francesa. Goya encontra testemunhas complacentes, as quais certificam que ele sempre se manteve fiel ao monarca espanhol e que, por essa razão, foi obrigado a vender suas joias (duas piedosas mentiras). No mesmo momento, a Inquisição se apodera dos quadros escondidos no gabinete privado de Godoy e exige que Goya se explique sobre sua Maja desnuda; mas, como tem relações nas altas-rodas, o autor consegue abafar o caso. Ele conserva, assim, sua posição de pintor da corte e o salário que a acompanha. Se os joelhos se dobram, o espírito se mantém de pé. Durante esses mesmos anos, Goya empreende dois ciclos de desenhos que representam sua reação, não mais aos “desastres da guerra”, mas àquilo que poderíamos chamar de “desastres da paz”: não as violências que se desencadeiam nos campos de batalha, mas as que se manifestam no próprio seio da sociedade espanhola. Isso inclui a tirania exercida pela Igreja católica e pela Inquisição sobre a sociedade civil, as perseguições que atingem todos os que haviam escolhido o partido contrário, e abrange a tortura, as execuções. Um
desses ciclos, desenhado ao longo dos anos 1810-3, figurará no álbum C: são as páginas numeradas por Goya de 85 a 109 ( GW 1321 a 1345), 25 desenhos conservados, ao todo. O outro ciclo será desenhado e gravado nos anos 1816-20 e formará a última parte da coletânea Desastres da guerra (gravuras 65 a 78). Todas as imagens que compõem esses dois ciclos comportam uma legenda e, de novo, Goya cuidará atentamente da ordem na qual elas se seguem, deslocando-as várias vezes. O ciclo que encontramos no álbum C começa por um ataque contra o poder religioso e, mais especificamente, contra a Inquisição. Suas vítimas aparecem cobertas dos atributos dos culpados: uma túnica de papel, sobre a qual estão descritos os “crimes” que provocaram a condenação, e o chapéu cônico, ou coroza, que os torna reconhecíveis de longe. As legendas desses desenhos indicam as razões alegadas para os julgamentos: porque ele nasceu em outro lugar, porque carrega livros proibidos, porque é judeu, porque amou uma jumenta… Uma imagem alude à condenação de Galileu. Em dois desses desenhos, Goya indica que assistiu ao evento representado: uma bruxa amordaçada, acusada de ter fabricado ratos (C 87, GW 1323), e um mendigo aleijado (C 90, GW 1326). A presença desse tipo de menção aqui (“Eu a vi em Saragoça”, “Eu o conheci”), assim como, às vezes, nos Desastres (“Eu vi isto”), alimentou a ideia de um Goya jornalista, circulando no meio dos cadáveres e das execuções públicas com o caderno nas mãos, captando suas impressões do momento. Podemos nos perguntar se, ao contrário, a raridade de tais comentários não indica que aquelas são as únicas imagens correspondentes a uma cena à qual Goya esteve presente, e que esse caráter excepcional é que justifica a menção. Recordemos que a maioria dessas imagens não representa eventos contemporâneos ocorridos na pátria do pintor, mas o mal que o homem pode fazer ao homem. Na época de Goya, mesmo nos piores momentos de reação, a Inquisição já não tem o poder de montar tais processos e muito menos de praticar a tortura; ela se limita a condenar as ideias e a estigmatizar os indivíduos que considera perigosos. Ao que parece, os detalhes relativos às práticas inquisitoriais devem mais aos estudos consagrados à história da Inquisição por um amigo de Goya, Juan Antonio Llorente, do que a uma prática contemporânea qualquer (um pouco como as pesquisas de Moratín haviam inspirado suas imagens de bruxos). A Inquisição é utilizada por Goya à maneira de emblema intemporal, o de um controle das mentes acompanhado da capacidade de infligir sevícias aos corpos. Por isso é que nossa incerteza quanto às datas dos desenhos — eles podem ter sido produzidos antes, no decorrer ou depois da guerra de 1808-13 — não tem maiores consequências: Goya se preocupa com esses temas ao longo de todas essas décadas. As menções de autenticação dos eventos representados são reveladoras de outra maneira ainda. Elas aparecem à margem de desenhos destinados a não ser vistos por ninguém, afora o próprio pintor. Então, a quem se dirigem essas legendas, considerando que, de sua parte, Goya sabe muito bem que viu aquela mulher e conheceu aquele homem? Sem dúvida, não ao público contemporâneo, mas àquele que Adam Smith, em meados do século XVIII, denominava “o suposto espectador imparcial e bem informado”, 1 que habita o espírito de toda pessoa de boa vontade. Ao mesmo tempo que aos destinatários reais, que às vezes estão totalmente ausentes, toda mensagem se dirige também a essa abstração indispensável. Goya não a menciona nunca, e no entanto sente-se que ela constitui
uma peça indispensável de seu universo interior: do contrário, como poderia ele continuar alimentando a parte secreta de sua obra, aquela que os contemporâneos não conhecem? O grande cuidado que Goya dedica à preservação dessa parte é como um ato de fé na humanidade, para além de tudo o que ele sabe de suas crueldades. O conjunto seguinte mostra prisioneiros. O assunto atrai Goya desde a época dos Caprichos, mas nesse meio-tempo adquiriu nova atualidade. Os desenhos representam prisioneiros homens e mulheres, de pé, sentados ou deitados, atados pelo pescoço, pelas mãos ou pelos pés, em geral sozinhos, como em C 103 ( GW 1339). A janela é gradeada, a porta está obstruída; compreende-se que a legenda diga: É melhor morrer . Certas legendas indicam a causa do aprisionamento. Uma jovem está presa por pesadas correntes a um poste; a legenda pergunta: Foi porque ela era liberal? (C 98, GW 1334, fig. 19); portanto, as mulheres, emancipadas, envolvem-se com política. Outra mulher, no fundo de uma cela escura, foi lançada ao chão pelos torturadores. Seu crime? Por casar-se com quem ela quis (C 93, GW 1329). Claro, os pretextos da punição deviam ser formulados de modo totalmente diferente: porque ela ameaça a ordem pública, porque transgride as normas estabelecidas… Um desenho audacioso mostra um rapaz envolto numa coberta, no fundo da cela, onde está atado à parede; uma jarra de água constitui o único mobiliário. Sabemos por que ele foi preso: Por não ter escrito para os imbecis (C 96, GW 1332). Seu crime, portanto, é puramente ideológico, seus escritos se dirigiam preferencialmente aos liberais, e não aos reacionários; através de seu exemplo, fica clara a conivência dos poderes religioso (aquele que condena) e civil (aquele que aprisiona). A Inquisição não dispõe de tribunais, não controla a polícia, não ergue fogueiras para queimar os heréticos, mas o aparelho inteiro da Justiça fica sob seu controle, e é ele que ordena encarceramentos, torturas, execuções. Tem-se vontade de dizer que a prisão é desumana, e no entanto foram os homens que a inventaram e que continuam a servir-se dela. Eles até inventaram coisa pior: a tortura. Sua estigmatização é um motivo que aparece com frequência nos textos dos “esclarecidos”, os quais conhecem Dos delitos e das penas de Beccaria; Jovellanos até escreveu uma comédia sobre o tema do crime e do castigo. Em Goya, passa-se sem transição do enclausuramento à tortura, os prisioneiros são acorrentados em posições tão incômodas que já não há espaço para dúvida: o objetivo da prisão não é impedi-los de delinquir, mas fazê-los sofrer. Certas imagens vão mais longe e ilustram a engenhosidade dos homens quando desejam infligir dores a outros homens. O desenho C 101 ( GW 1337) traz como legenda Não se consegue olhar ; ele mostra um homem esticado por duas cordas: uma, atada aos seus tornozelos, ogou-o de cabeça para baixo; a outra bloqueia suas mãos. Outra imagem do mesmo álbum (C 108, GW 1344, fig. 20) ilustra torturas dignas de Abu Ghraib: uma roldana estica cordas atadas às mãos e aos artelhos do prisioneiro, enquanto outra corda, presa a outra roldana, está enrolada em torno de seu pescoço; o espectador se pergunta se ele morrerá de sufocação ou de uma ruptura dos órgãos internos. Num álbum contemporâneo, dito F, realizado inteiramente em sépia, vê-se uma tortura requintada: o torturador faz girar uma roldana, o torturado está preso à outra ponta da corda, com as mãos às costas. É o suplício da polé (F 56, GW 1477).
Goya não devia conhecer os quadros de Alessandro Magnasco, o pintor genovês que, na primeira metade do século XVIII, havia representado suplícios semelhantes, igualmente atribuídos à Inquisição; por outro lado, é pouco provável que tenha podido assistir a tais cenas. Seus desenhos não visam atingir a precisão histórica na apresentação das técnicas, mas à verdade das experiências humanas. De novo pensa-se no Manuscrito encontrado em Saragoça , no qual um inquisidor ameaça assim o herói do livro, que se cala obstinadamente: Não dizes nada? […] Vamos te maltratar um pouco. Estás vendo estas duas pranchas: nelas poremos tuas pernas e as apertaremos com uma corda. Em seguida, vamos pôr entre tuas pernas as cunhas que vês aqui e as enfiaremos a marteladas. De início teus pés incharão, em seguida o sangue jorrará dos teus artelhos, e as unhas dos outros dedos cairão todas. Em seguida a planta dos teus pés rebentará e dela veremos sair uma gordura misturada com carnes esmagadas. […] Não respondes nada? E tudo isto ainda é apenas a questão ordinária… 2
Essas torturas já não são praticadas na época dos nossos autores, mas o foram; e aquilo que foi pode sempre recomeçar. Os criminosos são, portanto, primeiro presos e depois torturados; por fim, são mortos. Os Desastres ilustravam as múltiplas maneiras de matar em tempo de guerra; com o retorno da paz, os algozes já não enforcam, nem fuzilam, nem desventram, nem cortam em pedaços os inimigos: matam os criminosos garroteando-os. Essa forma de execução, considerada na época a mais misericordiosa, á chamara a atenção de Goya antes de 1792, como deixa claro sua primeira gravura conservada, que representa um garroteado ( GW 122); algumas gravuras nos Desastres (34 e 35, GW 1049 e 1050) mostram que essa maneira de matar também não era negligenciada em tempo de guerra.
Fig. 20. Que crueldade!
Um desenho do álbum C que a ilustra (C 91, GW 1327, fig. 21), legendado como Muitos acabaram assim, não nos poupa de nenhum detalhe: vê-se o condenado solidamente amarrado ao assento, o carrasco atrás dele apoiando todas as suas forças sobre o mecanismo do garrote, os juízes que calmamente observam a execução de seu veredicto e, por fim, atrás desses personagens de primeiro plano, os numerosíssimos espectadores, transformados em multidão anônima que veio assistir a essa demonstração pública da violência infligida a um corpo humano. “Não se consegue olhar”, dizia Goya, frase que ele emprega várias vezes, por exemplo também em Desastres 26 , a propósito de uma execução; no entanto, por causa dele, nós não paramos de fazê-lo. Admiradores de suas imagens,
ficamos igualmente fascinados, mas as duas reações não se confundem: a multidão participa do movimento que resulta na execução, ela veio assistir à concretização do seu desejo; o simples espectador das imagens é por sua vez atraído pelo espetáculo da violência, mas, confrontado com uma representação, e não com o ato em si, ele pode mudar de lugar e descobrir, com estupefação e pavor, o que os homens são capazes de infligir a outros homens. Nas últimas gravuras dos Desastres , o alvo principal é o poder civil e religioso, do qual se sabe agora que forma uma só entidade teológico-política. O espírito das imagens é diferente daquele que reinava na primeira parte da coletânea, e, da compaixão pelas vítimas, passa-se aqui à sátira contra os opressores. A ação desses detentores do poder mantém o povo — ou seria o populacho? — na ignorância e na estupidez. Várias gravuras reatam com o espírito dos Caprichos, caricaturando as forças obscurantistas, cobrindo-as de máscaras grotescas ou transformando-as em animais ameaçadores: morcego, gato, lobo, jumento, ave de rapina. As legendas não deixam dúvidas quanto à interpretação que convém dar a essas imagens. “Contra o bem geral”, diz uma delas; a gravura mostra um homem com asas de morcego, escrevendo aplicadamente num grande caderno ( Desastres 71 , GW 1116). “Farândola de charlatães”, anuncia outra, mostrando um dignitário da Igreja cuja cabeça é a de uma ave de rapina, rodeado por um jumento, um lobo, um papagaio e frades de traços simiescos ( Desastres 75 , GW 1124). Ele parece rezar com devoção — mas a legenda nos alerta contra essa farsa. As poucas imagens que representam cenas realistas vão no mesmo sentido. Os fiéis prostrados diante das relíquias ou das decorações de igreja arrancam de Goya esta exclamação: “Estranha devoção!” ( Desastres 66 e 67 , GW 1106 e 1108). As mulheres que figuram no centro de Desastres 65 (GW 1104) são ameaçadas tanto pelos cães que as atacam quanto pelos soldados (?), ocupados em fazer um inventário. Desastres 70 ( GW 1114) mostra uma fila de homens — frades, padres, nobres, burgueses — semelhantes aos cegos de Bruegel, ligados entre si por uma corda e impelidos por um frade, que enveredam por uma brecha aberta no meio da paisagem desolada. Seria um grupo de simpatizantes do regime precedente, amigos dos franceses ou das Luzes, agora levados para uma prisão longínqua? Ou, ao contrário, os adversários deles, que conduzem ao impasse o povo da Espanha, submetido aos seus novos senhores? A legenda se limita a nos alertar: “Não sabem o caminho”. A salvação não pode vir de tais guias. Mas não convém acreditar que o povo valha muito mais: ele se submete docilmente aos poderosos da vez. Em outra gravura, Desastres 74 ( GW 1122), que traz a legenda “Este é o pior!”, o lobo adorado pela multidão escreve numa grande folha: “Mísera humanidade, a culpa é tua”, uma frase que Goya tomou emprestada, para a ocasião, do poeta Casti, mas da qual não se pode afirmar que ele a assuma: ele não é um simples misantropo.
Fig. 21. Muitos acabaram assim.
No meio dessas imagens aparece também aquela que Goya destinava originariamente à conclusão do conjunto que mostra os efeitos da guerra e da fome: trata-se de Desastres 69 ( GW 1112, fig. 22). Sua presença atual entre as gravuras consagradas aos malefícios da paz amplia ainda mais seu alcance. Essa gravura representa um morto acompanhado de máscaras fantasmáticas que exprimem caretas e também de uma balança da Justiça. Na mão esquerda, o morto segura uma coroa de palha e com a direita — apesar de seu estado de decomposição — ele conseguiu traçar sobre uma tabuleta a palavra nada, que Goya confirma na legenda: “Nada. Isto o dirá”.
O primeiro biógrafo de Goya, Laurent Matheron, relata a respeito uma historieta que ele talvez tenha escutado de Antonio Brugada, e que nesse caso seria proveniente do próprio pintor, já velho. Um prelado que viu essa gravura teria felicitado o autor por haver desenhado uma bela vanité, alegoria sobre a precariedade da existência terrestre. E Goya teria retrucado: “Meu espectro quer dizer que fez a grande viagem e que não encontrou nada lá!”. 3 Nenhum consolo, nenhuma sabedoria virá atenuar nossa reação diante da morte, a harmonia divina desapareceu sem deixar vestígios, as honrarias humanas não duram, a Justiça é impotente. Esse julgamento final não separa os justos dos pecadores, pois constata que após a morte não resta nada. A mensagem de além-túmulo confirma o nada revelado pelos horrores da guerra. No exemplar de provas dos Desastres entregue ao seu amigo Ceán Bermúdez, Goya incluiu bem no final três imagens de prisioneiros, com legendas eloquentes, que destacam a violência do castigo mais do que a do crime que se pretende punir: A detenção é tão bárbara quanto o crime (GW 986), É ossível controlar um prisioneiro sem que seja necessário torturá-lo (GW 988) e por fim Que não o executem imediatamente, se ele for culpado! (GW 990).
Fig. 22. “Nada. Isto o dirá”, Desastres 69.
A inclusão dessas três imagens na coletânea dos Desastres , logo depois das catorze sátiras anticlericais, confirma a mudança de sentido de todo o conjunto. Os desenhos satíricos e alegóricos que encerram os Desastres já não denunciam a guerra, mas aquilo que se seguiu a ela, a tirania dos homens de Estado e do clero que governam a Espanha. Goya postula, assim, uma continuidade entre tempo de guerra e tempo de paz; seu interesse se volta para as “consequências fatais” da invasão, entre as quais as ações do poder estatal legalmente estabelecido. Depois que se manifesta abertamente na vida pública de um país, a violência repercute por muito tempo e produz réplicas não menos ensurdecedoras do que a explosão inicial. A contrarrevolução não é menos sangrenta do que a revolução, o contraterrorismo do que o terrorismo, a repressão não é menos cruel do que o crime punido por ela. O poder mudou de mãos, mas a brutalidade dos atos se mantém: a conduta dos homens não parece depender das convicções que os animam, os dois partidos são devorados pelo mesmo furor. Todos invocam o bem e promovem o mal. A tortura e os assassínios não se explicam somente pelas circunstâncias excepcionais da guerra, eles têm raízes mais profundas. O tema geral desse conjunto de gravuras torna-se o lado sombrio da espécie humana, que engendra tais atos em
todas as circunstân circunstâncias. cias. Esses desenhos e gravuras que representam as diferentes formas de violência não impressionam unicamente pelo assunto; a arte de Goya atinge neles novos cumes. A economia e a potência de seu traço são impressionantes. Nos Caprichos e nos desenhos que os preparavam, Goya se prendia aos detalhes; na época dos Desastres , as cenas são simplificadas e os personagens, vistos cada vez mais de perto; seus traços exprimem apenas um estado, uma atitude, um sentimento — mas com uma força aumentada. Os próprios princípios da representação evoluíram. No passado, pintores e espectadores compartilhavam uma mesma concepção do espaço, que lhes permitia comunicar-se com sucesso; ao mesmo tempo, as fronteiras entre observação e invenção, entre real e imaginário, eram claras. Nas gravuras dos Desastres e nos desenhos que lhes são contemporâneos, Goya abandona progressivamente progressivamente toda toda preocupação desse tipo. Uma imagem como Desastres 68 (GW 1110, fig. 23), com a legenda “Que loucura!”, não nos permite permite saber se estamos estamos na cabeça de Goy Goyaa ou na Espanha Espanha entregu entreguee às forças obscuras. O desenh dese nhoo preparatório prepar atório ( GW 1111) era muito mais simples. Mostrava o mesmo frade agachado, aparentemente defecando, enquanto um penico se encontrava à sua direita e outros frades o observavam sem se mexer. A “loucura” evocada não era mais do que a estupidez e a vulgaridade do frade; o desenho ilustrava uma visão satírica do clero. Mas a gravura é diferente: ao lado do frade e de seu penico vemos agora, de um lado, uma pilha de máscaras e, do outro, um conjunto de objetos associados a cerimônias religiosas — um manequim, quadros, uma muleta, roupas. Atrás dele, outros personagens (uma procissão de frades?) aparecem como fantasmas. Onde estamos, o que está acontecendo, quem é o sujeito dessa loucura?
Fig. 23. “Que loucura!”, Desa loucura!”, Desastres stres 68 6 8.
É dessa indecisão que vem a capacidade de tais imagens de nos interpelar, dois séculos mais tarde. Se elas fossem puramente satíricas, sua pertinência teria se dissolvido com o desaparecimento de seu objeto — no caso, o clero ignorante e hipócrita — e além disso seu valor moral seria nulo: é sempre fácil fustigar os outros, assumindo nós mesmos o papel do reparador de injustiças. A atualidade de Goya resulta de que — tenha ele sabido disso ou não — suas imagens revelam ao mesmo tempo as profundezas de sua própria mente; graças à veracidade delas, tornamo-nos capazes de nos interrogar sobre nós mesmos.
Fig. 24. Tomara que dure a alegria.
Esperanças e alertas
O regime que se instalou na Espanha a partir de 1814 é impiedoso, mas não chega a erradicar toda XIX pode ser descrita esquematicamente como a oposição. A história desse país no início do século XIX um conflito conflito in i ninterrupto interrupto entre entre forças conservadoras, apoiadas pela Igreja Igreja católica e pela pel a Inquisi Inquisição, ção, e forças liberais, mais ou menos inspiradas nas ideias do Iluminismo. Estas últimas ocupam a ribalta sob Carlos IV e, de maneira muito diferente, sob José Bonaparte; também dominam o grupo de deputados patriotas que elaboram a Constituição de 1812. Contudo, eles serão combatidos por Fernando VII, retornado ao poder em 1814. Em sua ação, o novo rei encontra a aprovação dos meios tradicionalistas, mas também a daquela parte da população que tem nostalgia do poder absoluto. A multidão comemora a volta de Fernando com manifestações de rua, durante as quais entoa: “Vivam os grilhões, viva a opressão!”. Há também membros da elite intelectual que, em seu desejo de agradar ao poder, aprovam todas as medidas retrógradas de Fernando. Uma frase do reitor de uma universidade ficou nos anais: “Longe de nós a funesta mania de pensar”, declara ele ao rei que veio visitar visi tar a instituição. instituição. 1 A repressão é tão brutal que suscita uma forte reação. Em 1 o de janeiro j aneiro de 1820, um jovem oficia oficial,l, Rafael del Riego, organiza um golpe de Estado liberal e toma o poder. Ele não destitui Fernando, mas lhe pede que restabeleça a Constituição liberal de 1812. Fingindo aceitar, Fernando presta uramento à Lei Fundamental, mas, ao mesmo tempo, alerta os governos europeus sobre essa nova ameaça que pode reanimar a chama da revolta em seus próprios países. Estes, membros da Santa Aliança, encarregam a França, país vizinho (e cujo exército já conhece o terreno!), de restabelecer a ordem na Espanha. Em 1823, como em 1808, os regimentos franceses invadem o país — só que, dessa vez, já não são as crias da Revolução que aparecem, mas os “cem mil filhos de São Luís”… Os soldados franceses esmagam o movimento liberal com o mesmo entusiasmo que os levara a encorajá-lo, quinze anos antes. No fim do mês de agosto, a resistência espanhola está destroçada; Chateaubriand, então ministro francês das Relações Exteriores, qualifica a operação de obra-prima. Em novembro, Riego é enforcado. De novo, abate-se sobre os liberais a repressão, mais brutal do que antes, e a multidão aplaude; Chateaubriand exprime agora sua reprovação. Como esses eventos políticos lembram as esperanças suscitadas pela redação da Constituição de 1812, à qual se segue a repressão desencadeada desde o retorno de Fernando, os ciclos de Goya, por sua vez, repetem o mesmo percurso, no álbum C e nos Desastres da guerra . Os desenhos do álbum C (111 a 131, GW 1346 a 1366) se referem provavelmente à época da Constituição de 1812. Eles
formam duas sequências, C 111 a C 118 e C 119 a C 131, cada uma ilustrando um movimento completo, desde as promessas de liberalização até o seu triunfo encarnado por uma figura alegórica, mas que é por sua vez acompanhada de uma imagem que lembra a inquietante realidade. A primeira sequência sequência começa começa imediatam imediatament entee após a pós os “desastres da paz” pa z” que acabamos acabamos de d e ver (aprisionam (apri sionament entos, os, torturas, execuções): a partir de certo momento, Goya nos comunica uma esperança nascente. Os desenhos 111 a 114 ( GW 1346 a 1349) mostram prisioneiros semelhantes aos precedentes, mas as legendas são réplicas que o artista dirige a eles, anunciando o fim iminente de seus sofrimentos: Não te apavores; Desperta, inocente ; Estás no fim de tuas penas ; Logo serás livre livr e. Esses desenhos são seguidos por uma imagem que figura uma explosão de alegria: um homem de chapéu está ajoelhado em postura de oração; mas, em vez de baixar os braços em sinal de impotência, como na gravura introdutória dos Desastres (“Tristes pressentimentos…”), ele os levanta em êxtase, e seu rosto é iluminado por um sorriso triunfante. Ao seu lado, no chão, veem-se um tinteiro com penas e uma folha de papel: é um escritor preso por suas opiniões, consideradas heréticas. A legenda legenda nos dá a razão ra zão de sua alegria: ale gria: Divina liberdade liber dade, exclama ele (C 115, GW 1350). É impressionante o contraste entre esses dois homens em oração, aquele invadido pelos pressent presse ntim iment entos, os, em Desastres 1 , e, aqui, o escritor: o desespero histórico de um se opõe à alegria pontual pontual do outro. outro. Desta Desta vez, as opiniões políticas de Goya não não deixam dúvida. As im i magens seguintes seguintes confirmam confirmam esse sentimento sentimento de triunfo, triunfo, tendo igu i gualment almentee um caráter car áter alegórico ale górico.. O desenho C 117 ( GW 1352) traz como legenda, escrita em maiúsculas e em latim: Lux ex tenebris t enebris , a luz nasce das trevas, uma frase extraída dos Evangelhos (João 1,5). Nela vemos uma jovem voar no espaço acima dos homens; nas mãos, segura um livro, sem dúvida a Constituição liberal, do qual orra uma luz ofuscante, que forma um halo atrás de sua cabeça. Em suas representações da guerra, Goya nos tinha habituado a desconfiar das promessas luminosas: a ocupação da Espanha pelas tropas francesas podia ser descrita preferencialmente como “as trevas nascem das Luzes”… Visivelmente, aqui ele e le está num hu hum mor mais otimista. otimista. O desenh des enhoo segu s eguinte inte desse dess e álbum ál bum,, C 118 ( GW 1353), é animado pelo mesmo esmo espírito. espí rito. Não traz legenda, legenda, mas a imagem imagem em si é eloquen el oquente. te. O círcu círc ulo luminoso, luminoso, no alto do desenho, contém no centro a balança da Justiça. Mais embaixo, veem-se dois grupos de seres humanos. À esquerda, uns dançam, manifestando sua alegria; à direita, os outros se aglomeram, apavorados; um frade ensaia a fuga. A hora do julgamento — não final e divino, mas recémconquistado e humano — parece haver soado. Nesse mesmo esmo grupo, grupo, contu contudo, aparece outra outra imagem imagem (C 116, GW 1351, fig. 24), que introduz a dúvida nessa explosão de alegria. Vemos ali um grupo de homens sentados atrás de uma mesa, cantando e bebendo à saúde dos dois personagens diante deles, vistos de costas por nós. A jovem sentada à esquerda, toda vestida de branco, nos é familiar. Assemelha-se à Luz (em C 117), evoca as ideias de Liberdade (em C 115) e de Justiça (em C 118): o lugar desse desenho na ordem do álbum facilita a interpretação da figura. O homem sentado à direita, longe de sua companheira, e tão negro quanto ela é branca, deve designar outra abstração. Será o Estado, o poder, a monarquia? O que introduz a dúvida naquilo que parece uma cena de comemoração não são apenas o contraste e a
distância entre os dois membros da dupla, mas também as expressões dos felizes companheiros que bebem à glória deles. Os rostos dessas pessoas não são muito tranquilizadores, lembram as máscaras e caricaturas de Goya, essa maneira que os indivíduos têm de desumanizar-se quando transformados em multidão. Hoje eles cantam a Liberdade e a Justiça, mas amanhã revelariam o mesmo entusiasmo para celebrar o retorno à fé e à ordem. A legenda tampouco exprime uma confiança absoluta no advento do bem: Tomara que dure a alegria . Esse voto se realizará? A segunda sequência (C 119 a C 131) começa por seis imagens que apresentam uma visão satírica dos monges, cujo poder aumentou sensivelmente durante a guerra. Eles se pretendem próximos de Deus; na realidade, recusando-se a trabalhar, vivem nas costas do povo e abusam da sua credulidade. Um desenho impressionante mostra um prelado visto por trás, vestido numa capa magnífica; a legenda pergunta: Quantas alnas? (C 125, GW 1360). Outro (C 123, GW 1358, fig. 25) mostra um monge caricato e ao mesmo tempo reata com as visões de pesadelo de Goya, como sugere também a legenda: O que deseja este grande fantasma?. A fronteira entre mundo exterior e mundo interior continua porosa. Contudo, os seis desenhos seguintes dão a entender um timbre diferente. Devemos estar agora na euforia de 1812, durante a qual os religiosos são convidados a largar a batina. Doravante, em vez de estigmatizá-los ou de ridicularizá-los, Goya parece vê-los com simpatia e nos mostra esses personagens em regozijo por reencontrarem a plenitude da vida terrena. Sem camisão eles são elizes , proclama a legenda do primeiro desses desenhos (C 126, GW 1361), e os outros o confirmam: uma freira despe o hábito, mantendo-se pensativa, um frade pendura o dele num gesto de raiva, mas todos, sem protestar, aceitam abandonar o traje religioso. A franqueza sobrepuja a hipocrisia, a aceitação da vida vence a submissão a um dogma obsoleto. A essas doze imagens, Goya acrescenta uma 13 a, que tem estatuto diferente. Mostra um personagem alegórico e apresenta-se como um comentário dos desenhos que a rodeiam, expressando diretamente a posição do autor. Nela se vê uma jovem toda vestida de branco, com uma coroa de louros. Na mão direita, ela traz um açoite com o qual fustiga os pássaros negros à sua frente. Com a esquerda, segura uma balança. A legenda diz Divina razão, título completado algum tempo mais tarde por Não poupes nenhum (C 122, GW 1357). O sentido parece claro: os pássaros negros evocam os membros das ordens monásticas, a mulher encarna a razão, a qual, por sua vez, conduz tanto a Justiça (a balança) quanto o poder do Estado (o açoite). Com isso, Goya formula um simples voto, mas parece crer na possibilidade de sua realização. Trata-se visivelmente, aqui, de um regime da razão diferente daquele cujo resultado era o de produzir monstros. A coletânea dos Desastres da guerra termina igualmente com uma nota de esperança; provavelmente, o que a suscita não são as expectativas geradas pela Constituição de 1812, mas sim o ambiente que precede ou acompanha o golpe de Estado liberal de 1820. No fim do ciclo vêm agora quatro gravuras exteriores ao assunto tratado anteriormente e que reatam com a veia alegórica. Três delas formam uma sequência. A primeira, Desastres 79 (GW 1132), traz a legenda “A verdade morreu”; mostra uma jovem morta, de seios nus, que no entanto é fonte de luz. Está rodeada por seus
coveiros, visivelmente felizes, entre os quais figuram com destaque os representantes da Igreja. A gravura seguinte, Desastres 80 (GW 1134), mostra ainda a Verdade imóvel, mas a luz que emana dela se intensificou, os seres nefastos que a cercavam tiveram de recuar. Dessa vez, a legenda diz: “Ressuscitará?”. A verdade ocuparia, no panteão de Goya, o lugar antes ocupado por Cristo? Por fim, a terceira gravura, que é também a última imagem da coletânea ( Desastres 82 , GW 1138), apresenta mais uma vez a Verdade. Agora, a jovem de peito generoso está de pé, radiosa, ao lado de uma cesta transbordante de frutas e de um cordeiro: é a era da abundância. Ela repeliu seus adversários e se dirige no momento a um velho camponês ao seu lado, talvez símbolo do trabalho. A mulher lembra as encarnações dos outros valores celebrados por Goya, Razão e Luz, Liberdade e Justiça. A legenda afirma: “Eis o Verdadeiro”. Um desenho (F 45, GW 1470) ilustra a mesma situação.
Fig. 25. O que deseja este grande f antasma?
Essa sequência de três imagens parece sugerir um certo otimismo da vontade em Goya: a verdade sucumbiu sob os golpes da repressão, mas pode ressuscitar — ou melhor, continua viva. A própria existência da imagem é a prova da justeza de tal afirmação: a verdade vive, ao menos no coração de certos indivíduos como o pintor; e ele não está sozinho. Contudo, essa mensagem positiva é de imediato temperada por outra imagem ainda, que vem se inserir no meio da sequência. Trata-se de Desastres 81 (GW 1136, fig. 26), que representa uma espécie de animal gigantesco fartando-se com o que parecem ser pedaços de cadáveres. Aliás, no meio da coleção inteira encontra-se uma variante da mesma cena ( Desastres 40 , GW
1056): uma pessoa tenta reter um animal semelhante, mas menor (é do tamanho de um ser humano, ao passo que o anterior pode abocanhar um corpo inteiro). “Algum partido ele tira”, diz a legenda. Essa imagem, pertencente à série tardia dos enfáticos, e que não representa propriamente um desastre da guerra, não foi posta por acaso nesse lugar emblemático: um pouco como o Capricho 43 situado no meio da primeira coletânea, representa um comentário sobre as outras gravuras. O animal de Desastres 81, que se intercala nas gravuras de conclusão, tem claramente um sentido simbólico, também sugerido pela legenda “Monstro cruel!”: ele encarna, à maneira do Colosso, o próprio espírito da guerra, ou mesmo, de modo mais geral, a brutalidade humana tal como a vimos em detalhe ao longo de todas as gravuras precedentes. Goya não quer acalentar ilusões, e o apelo ao ideal é logo seguido por uma chamada ao real. Essa mensagem dupla já está presente nas gravuras que antecedem imediatamente as quatro imagens de conclusão. Desastres 77 (GW 1128), por exemplo, anuncia que a corda sobre a qual caminhava o poder da Igreja católica está em vias de romper-se. Devemos nos regozijar com isso? As faces da multidão que aguarda esse feliz acontecimento não possuem, contudo, nada de tranquilizador. As imagens alegóricas pelas quais Goya evoca seus ideais não têm a força de seus desenhos e gravuras que representam as devastações da guerra e os desastres da paz. Aliás, é significativo que o pintor recorra à alegoria para figurar o bem, embora fosse suficiente mostrar exemplos do mal. É como se os artistas reagissem diante do espetáculo do mundo da mesma maneira como nós fazemos diante das representações dos vícios e das virtudes: umas são infinitamente mais chamativas do que as outras. A Verdade radiante e a Razão dominadora nos interessam menos do que as pilhas de cadáveres e os corpos supliciados. Essa assimetria, que caracteriza também a literatura, impressionou Balzac, o qual descobriu, perplexo, que a pintura do mal em seus romances interessava mais do que a do bem. “As grandes obras subsistem por seus aspectos apaixonados. Ora, a paixão é o excesso, é o mal. […] O procedimento antigo sempre consistiu em mostrar a ferida. […] O Paraíso quase não é lido, foi o nferno que se apoderou das imaginações, em todas as épocas.” E Balzac acrescenta, ele mesmo impressionado pelas perspectivas que abre: “Que lição! Não é terrível?”. 2 A causa não seria que Verdade, Razão, Liberdade e Justiça são abstrações que não podem jamais encarnar-se plenamente? Mais uma vez, portanto, isso seria uma consequência das exigências de verdade, que Goya consegue satisfazer melhor por meio de suas representações do mundo humano na realidade concreta deste, como quando nos mostra que as aspirações humanas mais nobres podem gerar desastres. O que é difícil de representar não é o bem, mas os ideais abstratos, que só se prestam a uma representação alegórica. Seja como for, essas imagens de Goya são portadoras de uma mensagem claramente política. Sem aderir a um programa preciso, o pintor indica enfaticamente sua condenação às correntes obscurantistas da Igreja e àqueles que as apoiam e se beneficiam delas, a saber, a corte de Fernando VII. Ele nunca havia sido tão claro em seu apego às ideias liberais de seu tempo e ao espírito do Iluminismo. Mas essa posição é complicada e enriquecida por sua aguda consciência da presença, no
homem, de forças incontroláveis, de um caos interior irredutível. Neste, o amor à verdade é secundado por uma inclinação pela crueldade, do mesmo modo como a razão não pode existir sem seus pesadelos e sua loucura. A veia satírica de Goya indica que ele não quer se resignar diante dessas forças maléficas; mas nada mostra que acredite numa vitória definitiva sobre elas. No fundo, sua postura de modo geral não é nem otimista nem pessimista. Goya é um humanista dotado de uma consciência trágica da condição humana, mas que escolheu para si mesmo o caminho da resistência. Compreende-se bem, agora, por que ele já não podia sonhar com uma publicação dos Desastres (no mesmo momento, colocava à venda uma série consagrada à tauromaquia, temática muito menos perigosa). Goya preferiu manter-se fiel à sua verdade íntima e ao seu desígnio profundo, em vez de tirar proveito da difusão das imagens de guerra, únicas aceitáveis para a opinião pública do momento. Tal decisão tem consequências de longo alcance, pois modifica o próprio estatuto das imagens que ele produz. Doravante, seu objetivo não é mais agradar aos que lhe fazem encomendas ou aos seus compradores, nem mesmo comunicar seus sentimentos; ele já não visa senão a compreender o mundo, a conhecer seus próprios pensamentos e reações diante dele, e a exteriorizá-los. Já era assim com seus desenhos, dos quais ele era o único destinatário, pois supostamente não seriam vistos por mais ninguém. É verdade que o desenho sempre foi considerado pelos pintores do passado uma forma de expressão auxiliar, ou privada; contudo, ao constituir seus álbuns, verdadeiras obras, Goya indica que lhes atribui um estatuto autônomo. Agora, essa mutação se estende às gravuras, cuja razão de ser, no entanto, é permitir a circulação das imagens entre um público amplo. Nos Caprichos, Goya também buscava mostrar suas obsessões secretas, mas essa finalidade ficava dissimulada por trás do objetivo proclamado: fustigar as superstições populares ou os vícios humanos. Doravante, a moldura egocêntrica (no sentido literal) vem em primeiro plano: o Goya privado se apodera de um lugar ocupado precedentemente pelo Goya público. Essa decisão capital — a saber, que a imagem está ali para servir primeiro ao conhecimento do mundo e à expressão do indivíduo, mas não imediatamente à comunicação social — permite-lhe eliminar as últimas concessões que ele podia fazer às regras comuns da prática pictórica, aquelas que deviam assegurar a boa recepção às suas imagens.
Fig. 26. “Monstro cruel!”, Desastres 81.
Os dois regimes de pintura
A nova concepção de Goya sobre suas imagens não se limita unicamente às gravuras: expressa-se igualmente por meio das pinturas. Até 1808, os quadros de encomenda constituem a grande maioria de suas obras (vimos como eram os que ele pintava sem solicitação). Durante os anos de guerra, as encomendas se reduzem, sem desaparecer inteiramente: Goya podia pintar alguns retratos oficiais, alguma alegoria. Após a partida dos franceses, executa vários quadros comemorativos. A partir de 1814, a separação entre os dois registros de produção é ainda mais nítida. Sem muito esforço, Goya atende às raras encomendas que recebe, uns vinte retratos, num estilo bastante convencional; os outros quadros são pintados essencialmente para ele mesmo, e de maneira totalmente diferente. Comparemos esses retratos contemporâneos, os oficiais, de Fernando VII (por exemplo, GW 1540), e o privado, dele mesmo, preservado na Academia de San Fernando ( GW 1551): temos dificuldade de acreditar que se trata do mesmo pintor. À pose rígida de um, aos traços bem desenhados do rosto, aos detalhes dos trajes e das insígnias, opõe-se a visão inspirada de um homem simples, estranho a toda pose, sofredor, dubitativo, que somente a iluminação do rosto arranca à escuridão ambiente. É incomum que Goya pinte quadros de encomenda aplicando as regras de sua arte pessoal, como em ssembleia da junta das Filipinas (GW 1534). Seus quadros “livres” podem eventualmente atrair os admiradores que compartilham seu gosto; mas não foram encomendados, é somente a posteriori que os clientes decidem se os quadros lhes convêm ou não. Por um lado, portanto, Goya é capaz de pintar retratos oficiais, quadros alegóricos ou imagens religiosas; por outro, cria para si mesmo os horrores da guerra, no sentido amplo dessa expressão. A diferença visual mais impressionante entre as duas séries, constituídas a partir de 1793, concerne à relação entre figuras e cor. No primeiro conjunto de quadros, os objetos são claramente desenhados, e as cores vêm preencher os contornos preexistentes. No segundo, é o toque de cor que cria a figura — esta já não tem existência autônoma. Como ele dizia a Brugada, não existem linhas na natureza (e tampouco regras em pintura…). Goya pinta agora o mundo tal como o vê, e não tal como este existe independentemente dele: a ruptura que os impressionistas irão trazer já está presente. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, essa submissão a uma visão pura abre caminho à figuração do invisível. Na primeira série, cada objeto tem existência autônoma, e estabelece-se uma hierarquia entre tal objeto e tal outro; na segunda, os objetos se interpenetram e formam um todo; a hierarquia desapareceu. De um lado, os rostos mantêm seus contornos e se submetem à exigência de semelhança com o modelo; de outro, são reduzidos a algumas manchas que indicam, mais do que os representam,
os olhos ou a boca, e a forma preexistente do objeto cede lugar à expressão de um sentimento ou de uma atitude. Os quadros dessa série, afirma Javier Goya na nota biográfica que consagra ao pai, “especialmente os que ele guardava em seu ateliê, mostram que nada o detinha em pintura, e que ele conhecia a magia (o termo que sempre utilizava) da atmosfera de um quadro”. Os amigos de Goya gostariam de ajudá-lo no plano material, conseguindo-lhe novas encomendas, mas sabem agora que ele se tornou incontrolável. Uma carta de Ceán Bermúdez comprova isso. Bermúdez proporcionou ao amigo uma encomenda para a catedral de Sevilha; mas, conhecendo a hostilidade do pintor à Igreja, teme o resultado e precisa vigiá-lo de perto. Em 27 de setembro de 1817, escreve a um amigo: “O senhor conhece Goya e compreende a dificuldade que tive para insuflar nele ideias que lhe são tão manifestamente estranhas. Dei-lhe instruções escritas sobre a maneira de pintar o quadro e o fiz preparar três ou quatro esboços preliminares”. Ceán Bermúdez tem êxito em sua aposta: o quadro em questão, Santa Justina e santa Rufina (GW 1569), é perfeitamente “correto” — e bem diferente das imagens que o artista pinta fora de qualquer encomenda. Encontra-se um exemplo contrário, o de quadros produzidos segundo seus próprios gostos e oferecidos só depois ao olhar dos admiradores, em A forja (GW 965), que ficou no ateliê do pintor e, após sua morte, passou a pertencer a seu filho. O mesmo ocorre com uma série de cinco painéis que se tornarão propriedade de um amigo de Goya, Manuel García de la Prada, rico homem de negócios e afrancesado notório (mais tarde ele os oferecerá à Academia de San Fernando, onde tais quadros permanecem até hoje). Todos mostram cenas coletivas. A Procissão de flagelantes (GW 967) representa personagens nus até a cintura, mas cobertos de máscaras e de altos chapéus cônicos, semelhantes aos usados pelas vítimas da Inquisição; participam de uma procissão religiosa. A Cena de Inquisição (GW 966) põe em primeiro plano vários acusados; ao redor, vê-se a multidão dócil. A Corrida de touros (GW 969) mostra uma multidão cativada pelo espetáculo. A tourada é uma ocupação cuja marca está presente em todo o percurso de Goya: paixão pessoal inconfessável, antes de 1792, pois esse tipo de espetáculo popular é considerado vulgar pelos “esclarecidos”; oito quadros de 1793, na primeira série de temas livremente escolhidos; publicação das 33 gravuras reunidas sob o título Tauromaquia , em 1816; grupo de quadros de touradas pintados em 1824, logo após sua chegada à França; litografias de 1825… Por que essa obstinação de Goya? Não se trata de uma simples fidelidade aos seus gostos de juventude. O encontro entre touro e toureiro se tornou para ele a encarnação de uma das grandes dimensões da existência: é o confronto entre o homem e o animal, entre a habilidade e a força bruta, entre a arte e a natureza. Ao mesmo tempo, é um concentrado do destino humano, um momento de verdade: assim como no duelo, o risco de morte é assumido aqui, e ademais é transformado em espetáculo. A morte do touro, a morte do toureiro: Goya não se cansa de retornar a esse desnudamento da fragilidade de uma vida. O futebol, esporte favorito dos europeus hoje, possui um simbolismo ao mesmo tempo mais sublimado e menos rico. Casa dos loucos (GW 968, il. 17) representa outra multidão, a dos internos de um manicômio: nus, ou vestidos de trapos, eles estão imersos em seus delírios. Foram encerrados numa sala que lembra o
ospital de pestíferos (il. 10) ou as prisões de Goya. Um se considera um touro, outro sopra numa zarabatana, um terceiro está paramentado com uma coroa de penas, enquanto um quarto, de tricórnio, segura um fuzil invisível. Um quinto canta, um sexto nos abençoa. Num canto da sala, um homem está ajoelhado diante do sexo de outro. Eles constituem, portanto, uma amostra bastante completa de atitudes bem representadas entre aqueles de mente saudável. Aqui, ainda mais do que no primeiro quadro consagrado à loucura (il. 6), lembram sobretudo atores de teatro, envolvidos em papéis variados; essa teatralização produz um efeito surpreendente de aproximação. No entanto, certamente são loucos! Mas nós somos assim tão diferentes deles, quando nos consagramos aos nossos assuntos? As atitudes deles não evidenciam as nossas? As poses dos loucos não exerceriam o mesmo papel que as máscaras, que escondem e revelam ao mesmo tempo? O último quadro da série que pertencerá a García de la Prada traz habitualmente o título O enterro da sardinha (GW 970, il. 18). Sua interpretação não é evidente. Dispõe-se para essa tela de um desenho preparatório ( GW 971), que intriga sobretudo pelas mudanças que ela introduz. O desenho parece de fato relacionar-se a um momento preciso do calendário, o fim do Carnaval e o início da Quaresma, a transição entre Terça-Feira Gorda e Quarta-Feira de Cinzas. Essa passagem anuncia o fim das comemorações e dos excessos carnavalescos e o início das abstinências exigidas pela Quaresma. No desenho, quem dança são os frades e as freiras, que agitam um estandarte com o nome mortus: portanto, celebram o fim desse período bastante pagão que é o Carnaval e o retorno a costumes mais piedosos. Mas o quadro final inverte sistematicamente os signos do ritual representado pelo desenho. No lugar da palavra mortus (ainda visível no quadro, no exame radiográfico), vem agora a imagem de uma máscara que exibe um amplo sorriso: é uma celebração, e não mais um enterro. Tal subversão dos valores tradicionais combinaria melhor com o que sabemos dos sentimentos do pintor pela Igreja. Aliás, no inventário dos quadros encontrados no ateliê de Goya após sua morte, O enterro da sardinha parece ser designado por uma frase sem a menor ressonância religiosa: Baile de máscaras. Mas, afinal, o Carnaval comporta de fato uma inversão de valores e pode-se aceitar, com os historiadores, que a “sardinha” é aqui um eufemismo para o “porco”: portanto, o que se anuncia é o fim das comilanças e a substituição destas pela dieta à base de peixe. Essa festa será então interpretada como um ritual carnavalesco, que saúda com exuberância aquilo que deveria provocar lamentações. O quadro representa uma procissão regozijante, em cujo centro se encontram cinco dançarinos com máscaras: duas mulheres totalmente vestidas de branco, um homem de máscara grotesca à direita e no meio um segundo, cujo rosto talvez não seja mascarado, mas simplesmente caricato; por fim, um quinto personagem vestido de diabo chifrudo, com uma máscara de caveira. Duas outras figuras igualmente fantasiadas, de aspecto assustador, se aproximam do grupo pela esquerda: um traz uma lança, o outro é um urso mostrando os dentes (ou melhor, um homem vestido de urso). Sabe-se que de fato tais brincadeiras e danças faziam parte das tradições carnavalescas antigas. Atrás deles, uma multidão densa e agitada na qual se misturam máscaras assustadoras e rostos descobertos; em frente,
alguns espectadores, jovens ou adultos, muito menos numerosos do que os participantes do espetáculo. Acima dessa multidão caótica, um céu não menos tumultuado. É pouco provável que Goya represente aqui uma cena de procissão real, pois tais cerimônias não eram autorizadas em sua época; aliás, os comentadores contemporâneos do quadro indicam explicitamente que ele transformou a realidade pela imaginação. Em todo caso, esse regozijo popular se afasta bastante do espírito cristão. Também não é uma glorificação do povo: os rostos que emergem dessa multidão em delírio não deixam de ser inquietantes; a violência poderia explodir ali a qualquer momento. O mesmo se dá com os outros quadros dessa série: nenhum deles pode ser tomado como a representação fiel de um fato. As procissões de flagelantes estão proibidas há décadas, a Inquisição á não move tais processos, a casa de loucos pintada por Goya é excessivamente rica em símbolos. O que o pintor mostra não são fatos, mas fantasias representadas segundo sua estética. Os rostos não são individualizados, ao passo que as mímicas e os gestos são eloquentes; as formas singulares e o fundo que as rodeia se interpenetram. A vertigem da imaginação domina tudo. As visões de Goya deixaram não somente o espaço real, mas também toda referência da representação, não podemos situar essas imagens em nenhum lugar. Se Deus está morto, se os ideais da razão, da justiça e da verdade podem trair, então, realmente, “tudo é permitido”, inclusive no mundo da pintura. Quanto aos desenhos, estes ficam todos reservados ao próprio Goya, e se multiplicam: com toda probabilidade, datam desses anos os três álbuns F, E e D. Certos desenhos mantêm as tradições satíricas ilustradas pelos Caprichos, caricaturam as badernas entre homens ou entre mulheres, ou ainda a punição corporal das crianças (por exemplo E 13, GW 1389). Mas, na maioria dos casos, eles mostram os representantes do povo simples sem ridicularizá-los. É o caso dos velhos e das velhas que sonham em casar-se de novo, esquecendo o estado no qual se encontram, ou que não querem admitir sua fraqueza e sua inabilidade, e a quem Goya prodigaliza conselhos amigáveis: Não enchas tanto o cesto! (E 8, GW 1387). A impressão é de que, para compensar sua incapacidade de comunicar-se com pessoas de verdade, ele começou a apostrofar seus personagens… Goya também retoma motivos familiares aos quadros de gênero, os homens no trabalho, ou na caça, ou envolvidos em duelos; ou ainda a mãe que cata piolhos no filho, a mulher caridosa que dá de beber a um ancião (F 93, GW 1508), ou as mulheres — sensuais — que penduram a roupa lavada (E 37, GW 1406, fig. 27). Os mendigos são igualmente representados sem ser caricaturados, comendo (Ek, GW 1428) ou cantando nas ruas (E 50, GW 1415). Também se veem famílias laboriosas, o pai cego que segura nos braços um bebê enquanto conserta seu sapato (Ed, GW 1421), um outro pai, encarapitado no lombo de um jumento, fitando amorosamente o filho (E 21, GW 1394), os camponeses carregados de fardos que se dirigem ao mercado, ladeando sua filha (F 17, GW 1445).
Fig. 27. Trabalhos úteis.
Outro tipo de personagem retorna frequentemente nesses álbuns, o da jovem de traços puros, semelhante às figuras alegóricas que aparecem nos ciclos de Goya: a Verdade, a Razão, a Justiça ou a Liberdade. As legendas que as acompanham indicam tratar-se, também aqui, de encarnações da Virtude. Uma mulher sentada se debruça sobre seu tricô, a legenda comenta: O trabalho sempre recompensa (Ea, GW 1417). Outra se apoia no tronco de uma árvore, olhos fechados, numa pose que parece evocar uma escultura: é A resignação (E 33, GW 1402). Uma mulher elegante está sentada no campo, diretamente no solo, com o olhar mergulhado num livro; o pintor lhe dá um conselho: Pensa bem (E 48, GW 1412). Ele se dirige da mesma maneira a esta outra jovem, figura solitária numa
paisagem, absorta num devaneio que não deve ser jubiloso: Deixa tudo com a Providência , recomenda (E 40, GW 1409). A camponesa de E 28 (fig. 1) pertence à mesma série. Um Goya sereno e pacificado parece haver traçado essas imagens. Encontra-se no rosto de algumas mulheres vítimas da violência masculina, ou dos poderes públicos, aquele ar de pureza e de inocência que Yves Bonnefoy considera possível unicamente “na medida em que a perseguição tivesse livrado a vítima da fatalidade de ser o carrasco…”.1 Numerosos outros desenhos ilustram os temas habituais da corrente “noturna” da obra goyesca — o que não significa que eles tragam um julgamento sobre seu assunto. Assim, o interesse de Goya pelos temas de bruxaria se mantém. Dois velhos bruxos (D 4, GW 1370, fig. 28) dançam flutuantes num espaço indeterminado: um deles toca castanholas, o outro se pendura no primeiro, e o rosto de ambos exprime uma espécie de júbilo; aliás, o desenho se chama Regozijo . O voo, o arrancamento à terra e ao mesmo tempo às leis que regem o espaço humano parecem encarnar-se no mundo das bruxas, assim como fazem as fantasias sexuais do pintor. Também reencontramos suas angústias, como nos desenhos que mostram feiticeiras roubando bebês recém-nascidos. Uma velha bruxa, que lembra aquela que vemos em Exorcismo (il. 9), encheu seu alforje com criancinhas nuas, atadas a um bastão (D 15, GW 1374); este, nos diz Goya, é o Sonho de uma bruxa boa — boa sobretudo para ela mesma.
Fig. 28. Regozijo.
Os súcubos dão palmadas num homem indefeso — mas talvez se trate apenas de um sonho do personagem (Da, GW 1378); eles revelam uma força extraordinária, caso dessa velha que carrega nos ombros dois homens nus, imbricados numa pose acrobática (D 20, GW 1376): Goya dá ao desenho o título Pesadelo. Outras vezes, esses demônios fêmeas parecem menos ameaçadores. O desenho E 2 (GW 1393, fig. 29), outro Pesadelo, mostra uma bruxa de idade avançada cujos traços traduzem o puro terror; ela é carregada, já não por um bode, mas por um touro voador. A atração de Goya pelo voo parece inclusive mais geral e ligada ao questionamento que ele faz da representação espacial. As formas humanas mostradas em seus desenhos parecem ter deixado o espaço comum e flutuar num
lugar indeterminado. É o caso desses homens que esvoaçam alegremente (fig. 28): todos escaparam ao mundo que conhecemos, aquele no qual a terra atrai para si as criaturas. Será que eles habitam o reino dos sonhos? Já não são retidos por nenhum obstáculo; Goya também não. Essa liberdade em relação às regras da mecânica clássica torna-se ao mesmo tempo o emblema das liberdades que Goya toma doravante com as leis tradicionais da representação. Certos desenhos reatam com a temática sexual explorada anteriormente, caso de F 71 ( GW 1490, fig. 30), ao qual se dá hoje o título de Despertar ao ar livre.
Fig. 29. Pesadelo.
Outros mostram duas mulheres ternamente enlaçadas (Eh, GW 1426), tema que reencontramos em outras obras (por exemplo, GW 366, GW 383, GW 656 ou GW 1751; a homossexualidade masculina é representada mais raramente); ou um homem exibindo seu sexo diante de uma jovem (Eb, GW 1419). Mais trágicas são as cenas que anunciam um estupro, como E 41 ( GW 1410), que representa um salteador arrastando para uma gruta uma jovem à qual se agarra seu filho; a legenda diz: Deus nos livre de uma sorte tão penosa (já vimos esse tema tratado em pintura, ils. 12, 13 e 14). Outro bandido despiu sua vítima, que, ajoelhada, mãos atadas, espera com angústia o cumprimento de sua sorte (F 16, GW 1444). Ao lado, as badernas de mulheres, mais raras, parecem quase cômicas, caso de F 74 ( GW 1493), em que uma das combatentes dá uma pancada com seu sapato na nádega nua da outra… Como as gravuras dos Desastres , os desenhos dessa época se caracterizam em geral pela simplificação dos traços e pela omissão dos detalhes, o que torna tais figuras mais gerais e ao mesmo tempo mais expressivas. A prática do duplo regime durará trinta anos, desde os primeiros álbuns de desenhos até a morte do pintor. É um evento de primeiríssima ordem: embora exerça uma intensa atividade de pintor oficial e mundano, Goya alimenta ao mesmo tempo aquilo que Gassier denominará um “imenso rio subterrâneo, cheio do mistério tenebroso das profundezas”, 2 feito com cerca de mil desenhos, de mais de uma centena de gravuras e de bom número de quadros de cavalete, destinados a permanecer no ateliê do pintor ou a circular somente entre os seus próximos. Portanto, mais da metade de sua produção total não foi feita para o público de seu tempo, mas para ele mesmo e para seu destinatário imaginário, esse “espectador imparcial e bem informado”, que se situa fora do tempo.
Fig. 30. Despertar ao ar livre.
Segunda doença, Pinturas Negras, Loucuras
Em fevereiro de 1819, Goya adquire nos arredores de Madri uma casa de campo que por acaso é conhecida por um nome bem apropriado, a Quinta del Sordo , a Quinta do Surdo. Não se sabe por que ele deseja deixar a cidade onde mora há tanto tempo; uma hipótese provável — mas que nenhum documento vem apoiar — é a de que prefere manter-se afastado para não exibir aos olhos de todos, e particularmente aos da Inquisição, sua vida em concubinato com Leocadia Weiss. Seja como for, empreende obras de reforma dessa casa durante o verão; mas, antes de poder habitá-la, adoece de novo gravemente. Assim como em 1792, não se conhece a natureza exata de sua doença. A única informação sobre ela nos vem do comovente autorretrato que ele pintou em 1820, no qual está acompanhado por seu médico Arrieta ( GW 1629, il. 19), que é ao mesmo tempo o destinatário do quadro. A legenda diz: “Goya agradecido ao seu amigo Arrieta, pelo cuidado e pela atenção com os quais lhe salvou a vida por ocasião da grave e perigosa doença da qual ele sofreu no fim do ano de 1819, à idade de 73 anos”. O quadro mostra um Goya esgotado, e mesmo próximo da morte, cuja mão esquerda aperta convulsivamente o lençol; ele se abandona entre os braços do médico, homem de olhar inteligente e preocupado, o qual lhe estende um copo que sem dúvida contém um medicamento. Atrás dos dois, vislumbram-se imprecisamente três figuras bastante inquietantes, que às vezes são identificadas como um sacerdote e dois criados, mas que mais provavelmente são, considerando-se seus contornos incertos, seres que só existem na mente febril do enfermo, os demônios que o acompanham há tanto tempo e que espreitam seu desfalecimento, como faziam os fantasmas ao redor do moribundo, pintados trinta anos antes ( GW 243), ou em torno do Goya autor de gravuras, como em Capricho 43, ou em Desastres 1. No ano anterior, ele havia pintado um quadro que apresentava os últimos momentos da vida de outro personagem ( GW 1638), mas a cena era inteiramente diferente: mostrava José de Calasanz tomando a última comunhão. Goya, em situação semelhante, aparentemente só confia nos remédios humanos e naturais; escolhe o médico, em vez do sacerdote, e prefere o copo ao cálice. Resultado: Calasanz morre, ao passo que Goya sobrevive… Seu autorretrato com Arrieta pertence ao gênero exvoto, uma imagem oferecida à igreja, representando a vítima de um acidente qualquer, acompanhada de um santo ou da Virgem, que a teria livrado dessa desgraça. Só que, aqui, quem aparece no papel do santo e traz a salvação é um personagem totalmente profano, o médico. Consequentemente, o quadro será destinado à casa deste, e não à igreja.
Goya se viu à beira da morte, e foi o gesto de socorro de outro homem que o reconduziu à vida. Seu quadro se torna um hino à compaixão, ao cuidado desinteressado por outrem. Esse tema não estava inteiramente ausente de sua obra anterior, tanto dos Desastres da guerra quanto dos desenhos que lhes são contemporâneos. O nome que ele empregava era “caridade”, virtude cristã de primordial importância, que recomenda o amor universal pelo próximo. Mas, até então, o pintor observara de fora esse gesto e o representara motivado pelo cuidado de transmitir uma imagem justa das paixões humanas. Agora, ele era pessoalmente o objeto dessa virtude. As consolações da Igreja, as promessas das Luzes, as paixões patrióticas revelaram-se todas decepcionantes; dessa vez, Goya foi confrontado a um bem puro: portanto, tal coisa, embora seja raríssima, existe. Como em 1792, a gravidade da doença transformará a atividade pictórica de Goya. Vinte e sete anos antes, a surdez resultante da enfermidade o fizera descobrir, ou ao menos valorizar, seu mundo interior. Agora, o sentimento de haver beirado a morte lhe dará uma liberdade nova, como se ele percebesse que, nos poucos anos de vida que lhe restavam, já não precisava levar em conta nenhuma convenção, conformar-se a nenhuma regra: pode e deve dar livre curso à busca da verdade na qual se comprometera. Mais ou menos no mesmo momento, Goya faz um de seus últimos quadros de tema religioso. Paralelamente encomenda dos padres das Escuelas Pías de San Antón em Madri para que executasse o grande painel consagrado ao patrono da comunidade, José de Calasanz, ele pinta — mais uma vez, por sua própria iniciativa — um quadrinho que oferecerá a esses mesmos padres (il. 20). Nele, representa esse episódio que o persegue há muito tempo, Cristo no jardim de Getsêmani, confrontado com o seu destino trágico. Mas, enquanto o personagem colocado na mesma posição no início dos Desastres parecia esperar que aquele cálice fosse afastado dele, aqui o Cristo, curvado diante das duas taças que o anjo lhe apresenta, abre os braços em cruz como para acolhê-los melhor. Esse ser descarnado, evanescente, fantasmático, figura ao mesmo tempo a aflição e a aceitação de sua sorte. O resultado dessas últimas transformações na mente de Goya serão as pinturas, gravuras e desenhos de seus últimos anos, em particular aqueles chamados as Pinturas Negras. Estas foram feitas nas paredes da casa onde ele se instalou logo após sua doença, em 1819. A criação delas, portanto, é imediatamente contígua à experiência que o artista acaba de atravessar e sobre a qual seu autorretrato com Arrieta dá testemunho. Essa obra constitui, se não o prólogo, ao menos a prévia das Pinturas Negras. Ora, em aparência, nada poderia ser de espírito mais diferente. Uma revela, quem sabe pela primeira vez na obra de Goya, uma encarnação da virtude suprema, a pura benevolência com outrem. As outras representam um desfile de demônios e monstros. Logo após ter explorado os cumes da humanidade, o pintor se empenha em trazer à superfície os habitantes de seus abismos. Mas talvez convenha ignorar essa aparente contradição. Também é possível que o simples contato com o terreno sólido da compaixão tenha dado a Goya a coragem de partir para essa viagem perigosa que devia lhe permitir livrar-se de seus demônios colando-os nas paredes de sua casa. A criação das Pinturas Negras se desenvolve ao longo do intervalo liberal em que a Espanha vive entre 1820 e 1823 — entre o golpe de Estado de Riego e sua prisão. De fato, em setembro de 1823,
portanto logo após a vitória dos conservadores, Goya doa essa casa ao seu neto Mariano e parece não mais habitá-la; passa os primeiros meses do ano de 1824 hospedado com um amigo. No mesmo momento, decide deixar a Espanha e começa a organizar seu futuro exílio. As razões dessa partida, que podemos apenas supor, não parecem ser diretamente políticas. Goya não tem nenhuma atividade pública nessa época, suas imagens subversivas não circulam e, aliás, ele tem amigos influentes em todos os campos políticos; contudo, está claro que suas simpatias se inclinam para o lado liberal. Se a relação ilegal com Leocadia já era uma razão para sair de Madri, nas novas circunstâncias ela pode ter motivado a partida da Espanha: Leocadia não esconde suas convicções liberais; deseja claramente deixar o país. Portanto, as Pinturas Negras foram criadas ao longo de um período marcado simultaneamente por uma nova liberdade interior, consecutiva à doença, e por uma relativa liberalização política. O primeiro traço característico das pinturas que decoram as paredes da Quinta del Sordo, chamadas “negras” por causa da presença insistente dessa cor, é que elas não foram destinadas a ser vistas por outras pessoas além do próprio pintor e seus íntimos. Goya percorreu um longo caminho desde a carta de 1794 a Iriarte, na qual anunciava que queria escapar à pintura feita sob encomenda e produzir, de preferência, imagens que lhe eram impostas por um sentimento de necessidade interior. Mesmo assim, seus primeiros quadros livres, assim como outros que se seguiriam, pintados paralelamente às encomendas oficiais, eram destinados a ser vistos por um público, ainda que restrito: Goya os enviou à Academia junto com sua carta. A evolução atinge em seguida o estatuto das gravuras: enquanto os Caprichos são postos à venda, os Desastres da guerra , que custaram a Goya muito trabalho e até mesmo despesas, não o serão nunca. Deles serão tiradas somente duas séries de provas, uma das quais será entregue a um amigo próximo. Assim, por seu estatuto, essas gravuras aproximam-se dos desenhos, atividade estritamente privada, tornando-se puro meio de expressão e de busca da verdade, em vez de servir para a comunicação imediata. Os estilos das pinturas destinadas a um ou a outro uso, público ou privado, divergem, como vimos, cada vez mais. Com as Pinturas Negras, um novo passo é dado. Ao pintar imagens nas paredes de sua casa, e já não sobre uma tela transportável, Goya marca sua renúncia a toda difusão dessas obras. Aliás, é impressionante constatar que não existe nenhuma menção a elas durante sua vida, nem em sua correspondência nem nos escritos de seus próximos: é como se não existissem. Ele as pinta porque elas o habitam, e não porque deseja agradar, ou espera ganhar dinheiro, ou — mais nobremente — porque quer se dirigir aos seus contemporâneos e participar-lhes as revelações que acaba de ter. Suas imagens são destinadas a ele mesmo. Para apreciar a singularidade dessa situação, lembremos que se trata de um dos mais importantes ciclos de quadros pintados por um artista moderno, e imaginemos por um instante que, em vez de cobrir com seus afrescos as paredes de uma capela no Vaticano, Michelangelo tivesse pintado as imagens da Sistina nas paredes de sua água-furtada, pouco antes de deixá-la para sempre! Desde então, as coisas mudaram muito. As pinturas foram transpostas para tela e depositadas no Prado, o museu nacional da Espanha; tornaram-se objeto de admiração universal e de inúmeros
comentários. Estes giram em torno de duas questões complementares: por que foram feitas? E qual é o sentido delas? Para tentarmos identificar as razões que levaram Goya a cobrir de pinturas as paredes de dois grandes aposentos em sua casa, lembremos primeiro as circunstâncias de que temos conhecimento. Já evoquei a proximidade imediata do autorretrato com o doutor Arrieta, assim como a ausência de toda menção contemporânea a essas pinturas, por parte tanto do pintor quanto de seus próximos. Convém nos determos um pouco mais sobre a maneira como ele se separa delas, no fim de 1823. Goya, bem sabemos hoje, não tem nada de um artista puramente intuitivo, presa de pulsões irresistíveis; não é homem de agir impensadamente e tampouco de deixar de refletir sobre sua criação. Não pode ignorar que essas imagens, pintadas sem dúvida durante boa parte dos anos 1821 e 1822, representam, tanto em quantidade quanto em qualidade, o resultado ou mesmo o cume de toda uma vertente de sua obra. Não produziu nada tão ambicioso nos anos precedentes, nem o fará nos que lhe restam a viver. Ora, não somente ele oferece sua casa ao neto (isso podia ser motivado por considerações de comodidade) como também a abandona, aparentemente sem desgosto, em seguida sai do país e, durante suas breves visitas seguintes a Madri, não dá a ela nenhuma atenção especial. Como explicar a ausência, por parte dele, de qualquer interesse por suas próprias obras-primas? Certos espectadores um tanto ingênuos puderam se perguntar, ao ver as Pinturas Negras, se elas não seriam a prova tangível da loucura do pintor. Mas, evidentemente, um louco não poderia pintar essas imagens, que não têm nada de arte bruta. Pode-se, em vez disso, sugerir que elas são uma prova do contrário. Havia décadas que Goya suspendera as barreiras que retinham seus demônios na inconsciência e os deixara invadir suas imagens. Ele havia compreendido: o que a Igreja ou as superstições populares chamam de súcubos e de demônios são apenas desejos e pulsões, medos e angústias profundamente enterrados em cada um de nós. Então ele os mostra, dando-lhes forma — mas sem lhes dar livre curso, por medo de que o dominem. Será preciso que ele viva a dupla experiência da doença quase mortal e da compaixão desinteressada por parte de seu amigo para que se sinta enfim instalado sobre uma base suficientemente estável, a partir da qual pode, sem temor, trazer à luz suas fantasias. Werner Hofmann tem razão ao sugerir que, por suas Pinturas Negras mas também por tudo o que em sua obra as prepara, Goya se tornou seu próprio exorcista. No lugar do padre munido de uma cruz, a proferir imprecações, vem o pintor armado unicamente com seus pincéis e lápis; em vez de exorcizar os outros, ele cura a si mesmo. O pintor “inventa e convoca os monstros e os demônios, transformando suas sombrias obsessões em imagens”; agora sabe que esses seres vêm das “profundezas ocultas do psiquismo individual”.1 É justamente porque a criação das Pinturas Negras participa de um trabalho de autocura que Goya não busca em absoluto compartilhá-las, nem sequer com seus amigos: ele pinta essas imagens para livrar-se delas, e não para ser admirado, o que talvez explique também a maneira um pouco negligente desse trabalho, comparado, por exemplo, com O enterro da sardinha (il. 18). E podemos nos perguntar se, longe de constituir para ele uma razão de apego àquela casa, elas não se tornaram uma das causas de sua partida: uma vez que conseguiu pintar
seus demônios, Goya não precisa mais olhá-los, e tampouco tem vontade disso. Mais vale começar uma nova vida em outro lugar. Tal interpretação permite apreender a coerência dos diferentes fatos que rodeiam a criação das Pinturas Negras. Mas o que elas nos dizem exatamente? Essa pergunta corre o risco de nunca receber uma resposta definitiva. E não se trata unicamente, aqui, da margem de incerteza, própria de toda exegese: no caso presente, Goya não nos deixou nenhum indício, e não é certo que tenha querido possibilitar o processo de decifração. Vimos como ele se empenhava, desde os Caprichos, em embaralhar as pistas; dali em diante, a impossibilidade de fixar o sentido tornou-se uma das características de seu universo. Por outro lado, as pinturas foram deslocadas e restauradas, às vezes com vigor. Não existe certeza absoluta sobre a localização original de todos os quadros — mas sabe-se que Goya atenta particularmente para a ordem na qual aparecem os elementos de uma série. Sabe-se também, pelas fotografias antigas (datadas dos anos 1860-80), que certos quadros foram amputados de boa parte de sua superfície e que alguns detalhes considerados inoportunos foram apagados. Segundo outras informações, uma escada, igualmente decorada, ligava os dois aposentos; ela desapareceu. Por fim, é possível que o filho de Goya ou outros artistas tenham retocado as pinturas enquanto elas ainda estavam no local. Nada disso impede que alguns dados possam ser estabelecidos com certeza e facilitem a compreensão do conjunto. Se olharmos essas imagens no contexto das obras anteriores de Goya, e mais particularmente daquelas que não se destinavam a ser vistas por todos, o caráter enigmático delas se atenua. Desde 1793 — e mesmo desde 1788, ano em que ele pinta o São Francisco Borgia —, sua obra é balizada por quadros que mostram seres sobrenaturais, bruxas que festejam o sabá, loucos e doentes grotescos, violências físicas, multidões em transe. O choque produzido pelas Pinturas Negras vem da concentração de suas características. Em vez de quadrinhos de gabinete, estamos lidando aqui com catorze painéis de grande formato, pintados sem preocupação de perspectiva ou de escala, e cujo tema central, aliás, não passava de um detalhe marginal entre outros. Eles transpõem para a pintura aquilo que os desenhos esboçavam, dizem claramente aquilo que antes era apenas sugerido. Depois de viver a guerra, com seu cortejo de horrores, Goya se sentira encarregado de um dever, o de transmitir ao resto da humanidade aquilo que havia aprendido: o resultado eram os Desastres da uerra e os quadros que os acompanhavam. Da mesma maneira, dez anos mais tarde, ele sente como que a obrigação de deixar uma marca dessa outra experiência apavorante, sua visita ao fundo do inferno, no meio dos demônios — isto é, ao interior dele mesmo, e já não ao mundo exterior. As Pinturas Negras são a narrativa dessa viagem ao fim da noite; pela segunda vez, a testemunha cumpre seu dever. Não parece que esses quadros obedeçam a um projeto iconográfico sistemático, o que, aliás, não corresponderia às práticas habituais de Goya; tampouco é necessário procurar traduzi-los como comentário de eventos políticos contemporâneos. Mais uma vez, o pintor representou os temas recorrentes de sua imaginação, mas acentuando-os e mergulhando em vários registros diferentes. Pode-se observar que, assim como em toda a parte “noturna” de sua obra, Goya revela aqui uma
visão desiludida da humanidade, quer nas cenas de multidão, quer nas figuras oriundas das superstições correntes ou na evocação dos personagens mitológicos. Executadas perto do fim de sua carreira, as Pinturas Negras formam, desse ponto de vista, um polo oposto àquele pelo qual ele havia iniciado sua atividade artística: os cartões que mostravam os jogos e os prazeres das pessoas comuns. Ao mesmo tempo, o fato de Goya ter passado vários anos ao lado dessas imagens sugere que a impressão que ele extraía delas não era puramente trágica (o que ocorre muitas vezes aos espectadores de hoje). Pode-se supor que os seres grotescos que povoavam as paredes de sua casa faziam-no rir, em vez de tremer de medo; que vê-los assim figurados lhe trazia um alívio, mais do que um acabrunhamento. A dimensão satírica e mesmo cômica das imagens devia aparecer-lhe bem mais claramente do que a nós. Eis o que sabemos da disposição original dessas imagens e que é útil para interpretá-las. Elas ficavam em dois aposentos de dimensões idênticas, um em cima do outro. Na sala do térreo havia seis quadros. À direita da entrada: um ancião, acompanhado de outro personagem; à esquerda, uma mulher apoiada numa espécie de rocha, e que foi identificada como Leocadia pelo pintor Brugada, primeiro observador da Quinta, o qual conhecia pessoalmente a companheira de Goya ( GW 1622). Na parede oposta, à esquerda, Saturno devorando um ser em miniatura; à direita, uma mulher, na qual se reconhece Judite, erguendo seu gládio sobre Holofernes ( GW 1625). Entre essas paredes que se defrontam, dois grandes painéis de personagens múltiplos, descritos no inventário póstumo como O rande bode (ou O sabá das bruxas, GW 1623) e A peregrinação a San Isidro ( GW 1626). Convém lembrar, porém, que nenhum desses títulos é atestado por Goya, e que não é possível provar essas identificações tradicionais, nem mesmo a de Saturno. Um sétimo painel, menor, representando dois velhos (homens? mulheres?), ficava talvez nesse mesmo aposento, acima de uma porta, mas também é possível que provenha da outra sala. Portanto, dispõe-se aqui de três pares de painéis. O primeiro reúne as imagens próximas da entrada, uma das quais é Leocadia, provável habitante dessa morada. Do outro lado da porta, seria lógico encontrar uma representação do dono da casa, o próprio pintor; mas, em vez disso, veem-se dois personagens ( GW 1627, il. 21), muito diferentes entre si. O da direita, recuado, assemelha-se a outras cabeças grotescas de Goya e parece estar gritando alguma coisa no ouvido do personagem da esquerda, o qual, ao contrário, parece um ancião digno e plácido, que aperta entre as mãos uma bengala comprida. O grito do primeiro não seria um indício da surdez do segundo? Também se pode pensar que o personagem da direita, de traços deformados, não é um ser humano como os outros, mas um demônio — aquele que, habitando a mente de Goya, lhe sopra suas visões negras. Se for esse o caso, poderíamos ver no ancião uma representação alegórica do próprio Goya, nada caricatural. Tal interpretação encontraria confirmação num desenho provavelmente posterior (G 54, GW 1758, fig. 31), que representa um velho bastante parecido, agora apoiado em duas bengalas; a legenda do desenho anuncia: Continuo aprendendo . Voltaremos ao sentido dessa frase; o que importa aqui é o emprego da primeira pessoa do singular para uma imagem que não revela nenhuma semelhança física com o pintor. Sabe-se que Goya tem o hábito de figurar-se no início de seus ciclos: um retrato na
abertura dos Caprichos, uma imagem puramente simbólica na dos Desastres , a de um homem ajoelhado abrindo os braços num gesto crístico. É provável que ele tenha feito o mesmo na entrada das Pinturas Negras. Se tal suposição for correta, pode-se concluir que essas duas imagens, situadas ao lado da porta, não fazem parte do universo que se desdobrará no restante desse espaço. No fundo do mesmo aposento encontram-se de novo um homem e uma mulher; mas, em vez de seres humanos comuns, trata-se agora de dois personagens lendários, um tirado do Antigo Testamento, o outro da mitologia grega ou romana. As ações às quais eles se entregam não deixam de relacionar-se. Uma jovem (Judite) corta a cabeça de um homem (Holofernes), motivo que Goya já desenhara na época dos Caprichos (GW 636); quanto à imagem do homem, Cronos ou Saturno, este é representado como gigante monstruoso, de idade incerta, ocupado em devorar um ser humano ( GW 1624, il. 22). À diferença do desenho que Goya havia consagrado ao mesmo tema 25 anos antes ( GW 635, fig. 32), no qual o titã engole vários homenzinhos, e contrariamente, também, ao quadro de Rubens sobre esse tema, que Goya poderia ter visto em Madri, o ser que ele consome não é nem uma criança nem um homem: tem o corpo de uma jovem. Aliás, essa associação de Saturno com a sexualidade masculina é sugerida por outro fato: a antiga fotografia desse painel mostra, ao que parece, o personagem com o sexo em ereção; tal detalhe pode ter desaparecido (ou ter sido dissimulado) no momento da transferência das pinturas murais para a tela. Lembremos também que o mito grego (ou romano), embora não faça uma filha ser consumida pelo pai, tem fortes conotações sexuais (e não somente associações com a melancolia ou a passagem do tempo): num primeiro momento, Cronos havia cortado o pênis de seu pai Urano; ele sofrerá a mesma sorte pela mão de Zeus, seu filho. Portanto, as duas imagens representam, uma e outra, o assassínio de um ser do sexo oposto; elas oferecem uma interpretação extrema das relações entre os dois sexos — mas que tem numerosos antecedentes na obra do pintor, ao longo de todos os anos que separam as Pinturas Negras dos Caprichos. Goya raramente figurou versões idílicas ou mesmo simplesmente pacíficas das relações entre homens e mulheres. Desde antes de sua doença, ele oferece uma visão satírica do casal humano no quadro de 1792 intitulado O casamento (GW 302), cartão para a série de tapeçarias “rústicas e cômicas”; nele, os parceiros são particularmente desarmônicos. Frustradas as esperanças que ele pode ter alimentado na relação com a duquesa de Alba, Goya parece ter-se tornado ainda mais desconfiado a esse respeito: nos Caprichos, ora são as mulheres que depenam os homens, ora estes que procuram se aproveitar delas; Goya não mostra neles nenhum amor feliz e sereno. O ideal seria a separação — mas esta nem sempre parece possível, como testemunha o Capricho 75, no qual se veem um homem e uma mulher presos um ao outro, capturados nas garras de uma ave noturna (o demônio). A legenda é um grito de desalento: “Não há ninguém que nos desate?”. Separação ainda mais difícil porque o divórcio não existe na Espanha…
Fig. 31. Continuo aprendendo.
Fig. 32. Saturno.
Fig. 33. “Loucura desordenada”, Disparate 7 .
Numerosos desenhos mais tardios amplificam esse tema: a vida em casal é um jugo; se pelo menos fosse possível fugir dela! O Disparate 7 , “Loucura desordenada”, às vezes dito “Disparate matrimonial” ( GW 1581, fig. 33), mais ou menos contemporâneo das Pinturas Negras, figura um ser monstruoso, espécie de par siamês dotado de uma cabeça com duas faces, quatro braços, quatro pernas e ainda oito pés, dirigindo-se a um grupo de espectadores semelhantes às criaturas que povoam as paredes da Quinta del Sordo. Esse ser duplo não parece feliz!
Fig. 34. Briga conjugal .
Com frequência, as relações entre os sexos são impregnadas de violência, segundo demonstram os numerosos estupros que Goya mostra em seus quadros ou nos Desastres da guerra . Essa violência não parte unicamente dos salteadores ou dos soldados: ela impregna a vida dos casais. Aqui está um rapaz que espanca sua companheira com um bastão (B 34, GW 402): aparentemente, é a reação espontânea de um homem cujo ciúme foi despertado! Outro desenho (F 18, GW 1446, fig. 34) mostra uma cena de violência conjugal: ao lado de uma cama desfeita, o homem agarrou a mulher pelos cabelos e lhe dá golpes, enquanto ela tenta se defender; o urinol virado comprova a brutalidade dos gestos. Embora a violência masculina ultrapasse de longe a das mulheres, esta última não é
inexistente, ainda que na mente de Goya esteja ligada a outras situações. Caso dessa mulher que se apresta a massacrar um açougueiro adormecido com o próprio machado dele (F 87, GW 1503)… para apoderar-se de seus magros bens? Um desenho ligado ao álbum D ( GW 1379, fig. 35) mostra uma mulher na atitude de Saturno: essa espécie de bruxa, mascarada por uma caveira, devora uma criancinha, é uma canibal, uma ogra: Mulher má, diz a legenda, em tom de lítotes. As imagens de Saturno e de Judite podem ser interpretadas como o paroxismo dessa guerra dos sexos — os quais revelam assim o que lhes é comum. Elas são simétricas às imagens da parede oposta, que mostram igualmente uma jovem e um ancião, mas em poses bem mais meditativas: de um lado reina a violência, de outro, a paz.
Fig. 35. Mulher má.
Os dois grandes painéis do mesmo aposento, O grande bode e A peregrinação a San Isidro , são bastante parecidos entre si: ambos mostram uma multidão em transe. O painel da direita retoma um assunto já tratado em A pradaria de San Isidro (GW 272), tela que pertenceu ao duque de Osuna; contudo, é total o contraste entre o ambiente alegre do antigo quadro e o delírio expresso pelo rosto assustador dos peregrinos nesse painel da Quinta del Sordo. O que fica em frente a ele, à esquerda da entrada, representa — também aqui, como num dos primeiros quadros “de bruxas” de Goya ( Aquelarre ) — o grande bode (o diabo) rodeado por seus adoradores. Contudo, aqui o tratamento é
muito diferente e lembra mais O enterro da sardinha (il. 18); as figuras não são desenhadas nem separadas claramente umas das outras, os rostos se reduzem a ríctus grotescos. Além disso, o grande bode já não é o personagem central: é visto de costas e reduzido a uma silhueta situada no lado esquerdo — efeito ainda mais impressionante na origem, uma vez que esse painel se prolongava à direita por um metro. Agora, o centro da atenção é a multidão embrutecida e grotesca, que substituiu as poucas bruxas quase elegantes do antigo quadro. Se compararmos essa imagem ao quadro pintado 25 anos antes, perceberemos que em Goya o próprio lugar do sobrenatural mudou. Telas como Aquelarre ou como Exorcismo (il. 9) se aparentavam com o gênero fantástico. O conteúdo da visão era representado com verossimilhança, mas seu estatuto permanecia incerto: seria o efeito de um sonho, um acesso de loucura, uma superstição popular? Subsistia a dúvida quanto à realidade do que era mostrado. Nada semelhante pode ser dito de O grande bode nas paredes da Quinta del Sordo. A comparação das Pinturas Negras com os quadros de bruxaria ou com os Caprichos permite calcular o caminho percorrido por Goya. Já não restam vestígios do caráter lúdico ou satírico das antigas imagens; as figuras pintadas um quarto de século mais tarde devem ser tomadas ao pé da letra, como relato fiel daquilo que o pintor viu. A nova imagem já não é fantástica, é fantasmática. Uma apresenta, em tom dubitativo, seres reais; a outra, de maneira totalmente franca, as visões do pintor. Tais imagens habitam de fato sua mente; quanto a isso nenhuma hesitação é sugerida, nem mesmo permitida. Dessa maneira, o pintor antecipa a evolução do fantástico no século XX, quando esse gênero deixará de opor o real ao imaginário para revelar a estranheza do próprio real. Goya já não pinta senão suas fantasias — mas é que estas conduzem à verdade do real. As duas imagens que se defrontam fornecem, portanto, uma representação caricatural do populacho, crédulo e potencialmente violento. Aqui, o pretexto para a aglomeração é uma cerimônia religiosa católica, a peregrinação de San Isidro; lá, ao contrário, trata-se de um ritual presidido pelo diabo em pessoa. As cabeças de fiéis são igualmente inquietantes nos dois cultos; Goya não parece preferir uma crença à outra, nem alimentar ilusões sobre a inteligência e a lucidez dessa multidão. Os painéis do primeiro andar se referem, por sua vez, a temas familiares do universo de Goya, mas de maneira menos sistemática; são sensivelmente mais luminosos do que os do térreo e supõe-se que foram pintados primeiro. No fundo da sala encontram-se dois painéis que quase poderiam ser pinturas de gênero, A masturbação (GW 1618) e A leitura (GW 1617), sobre os quais também se pode pensar que ilustram, um, o embrutecimento do povo, e o outro, uma atividade recomendada pelos “esclarecidos”. São atividades cotidianas, reprováveis ou louváveis, mas o conteúdo anedótico importa pouco, os detalhes materiais são eliminados em proveito dos gestos e das atitudes. Seus vizinhos são outros dois quadros: um, O passeio do Santo Ofício (GW 1619), lembra as multidões nas procissões do térreo; são, portanto, os rituais da Inquisição a serem assimilados às cerimônias diabólicas agora. O outro representa duas figuras perfeitamente simétricas, dois camponeses que, metidos na terra até os joelhos, trocam bordoadas ( GW 1616). Ele pode ser percebido como uma imagem das lutas fratricidas que balizam a história da humanidade, desde Caim e Abel até os
confrontos entre conservadores e liberais na Espanha, lutas que se revelam trágicas para os dois participantes e ameaçam provocar sua destruição mútua — caso desses camponeses que se arriscam a ser tragados pelo solo. Os dois quadros seguintes mostram personagens sobrenaturais — As Parcas (GW 1615) à esquerda, Asmodeia (GW 1620) à direita — e lembram outras figuras imaginárias da época dos Caprichos. Os dois velhos que comem gulosamente ( GW 1627a) ficavam certamente à esquerda da porta de entrada, completando o cruel inventário feito por Goya do mundo ao seu redor; as cabeças deles são ainda mais grotescas do que as das Velhas. Bem se vê, por essa enumeração, que Goya extrai livremente seus motivos de tradições muito diversas — mitologia antiga, personagens bíblicos, superstições populares, cenas de gênero —, em vez de colocar-se a serviço de uma delas; a unidade do conjunto provém do fato de pertencerem ao seu universo pessoal. Para realizar seu desígnio, o pintor utiliza todas as possibilidades. Todos esses personagens apavorantes são emanações de sua própria pessoa, e Goya sabe disso; ao mesmo tempo, a projeção de tais personagens sobre as paredes da casa lhe permite tomar distância em relação a eles. Nas Pinturas Negras, num gesto ao mesmo tempo de chamada e de expulsão, Goya exteriorizou pela última vez essas forças, vindas de dentro, que ameaçam a humanidade. Em um movimento semelhante, Romain Gary, no início de sua autobiografia Promessa ao amanhecer , convoca o que ele denomina “a coorte inimiga que se debruça sobre mim”, a série de demônios que nunca o deixam. “Há primeiro Totoche, o deus da estupidez […]. Há Merzavka, o deus das verdades absolutas, uma espécie de cossaco de pé sobre montes de cadáveres, com a chibata na mão […]. Há também Filoche, o deus da pequenez, dos preconceitos, do desprezo, do ódio… É um maravilhoso organizador de movimentos de massa, de guerras, de linchamentos, de perseguições […]. Há outros deuses, mais misteriosos e mais obscuros, mais insidiosos e mascarados, difíceis de identificar; suas coortes são numerosas, e numerosos seus cúmplices entre nós…” 2 Foram eles que Goya pintou nas paredes de sua casa e gravou em suas últimas placas de cobre. As Pinturas Negras representam a expressão pictórica adequada das revelações que Goya queria trazer sobre a violência que habita o mundo exterior, mas também sobre os demônios que se instalaram em sua mente. Operam a síntese entre dois momentos precedentes em sua evolução; nelas, as visões consignadas nos Caprichos vão ao encontro das constatações acabrunhadas que o levaram aos Desastres da guerra . Ao mesmo tempo, a posição do pintor em relação às suas imagens se modifica: suas pinturas murais agora lhe permitem uma expulsão, a figuração assume uma função de exorcismo. Conscientizando-se de suas obsessões, exteriorizando-as numa obra, Goya pode livrar-se delas, ou pelo menos domá-las; também pode permitir que o espectador realize esse mesmo trabalho. Tal mutação foi facilitada, pode-se supor, pelo encontro com a compaixão de que ele foi objeto. É como se, graças a essa descoberta, Goya tivesse conseguido destacar de si essas visões que até então o possuíam demais e realizar aquele ideal do qual ele iria falar em seus últimos anos, mostrar os planos e as coisas “tais como te aparecem à distância, a não ser que sejas míope”… O último painel, à direita da porta no primeiro andar, é o mais estranho e sem equivalente no resto
da obra do pintor: é O cão ( GW 1621, il. 23). Ele é tão singular que houve quem se perguntasse se não se tratava do fragmento de uma imagem maior, mas o exame minucioso do quadro não revelou nenhum outro traço. Não somente o cão está reduzido à cabeça, como também ocupa uma parte mínima da superfície, a qual está coberta de tinta, mas não representa nada. O cão olha alguém ou alguma coisa, mas não podemos saber o quê, e essa impossibilidade de dar um sentido à imagem torna-se o símbolo de sua vacuidade. Toda ideia de espaço pictórico é abolida aqui, assim como toda ideia de humanidade. É o ponto extremo atingido por Goya em sua exploração das possibilidades da pintura; é também a última imagem que se vê em sua casa (se postularmos que a de Leocadia é a primeira). Cerca de vinte anos mais tarde, Turner pinta por sua vez um célebre cão solitário, mas, apesar da ausência de qualquer objeto visível em torno do animal, mantém a ideia de um espaço no qual este se encontra. Já Goya nos faz deixar o mundo familiar para mostrar unicamente o vazio. Do mesmo período que as Pinturas Negras datam provavelmente os Disparates , termo que, em espanhol, tem o sentido de extravagância, de incoerência, de loucura. A interpretação dessa quarta série de gravuras é ainda mais difícil visto que a série é inacabada e a ordem das imagens, incerta; várias não têm legenda. Mas, se nos basearmos na ordem observada nas outras séries, podemos supor que uma dessas gravuras ( GW 1600, fig. 36) estava destinada a figurar no início. Ela representa um homem idoso que se levanta a partir de um corpo adormecido: portanto, na condição de imagem inaugural, este seria, mais uma vez, um retrato simbólico do autor, que, um pouco como na figura 6 ou em outros desenhos, está simultaneamente presente no mundo real (deitado) e no sonho (de pé). Ele está confrontado com suas visões, que serão detalhadas nos Disparates seguintes. Ao seu redor, distinguem-se alguns animais familiares: aves noturnas, tartarugas, um cão; no centro, uma harpia, meio mulher meio pássaro, e, em volta, as silhuetas de seres humanos careteantes e ameaçadores, os fantasmas habitantes do mundo noturno que Goya explora há décadas: paixões incontroláveis, violência, estupidez, ignorância. As outras 21 gravuras desenvolvem essas alucinações de pesadelo: um imenso fantasma que semeia o medo; um gigante de Carnaval, rindo e dançando, mas que também provoca pavor; corpos despedaçados e maltratados, seres sobrenaturais, uma multidão caótica.
Fig. 36. “Loucura fúnebre”, Disparate 18.
É como se Goya reatasse com o projeto dos Sonhos , que havia precedido os Caprichos; aliás,
afloram aqui reminiscências dos cartões de tapeçaria, dos Caprichos, dos Desastres da guerra , dos desenhos. A série inteira ilustra a ruptura com a representação do mundo visível, em cujo lugar Goya figura os habitantes de seu mundo interior; o espaço é mais radicalmente desestruturado do que nunca, as referências de orientação estão ausentes. Por que Goya não se contentou com os desenhos pelos quais, no entanto, havia começado, e decidiu passar à gravura? Esta última facilita a reprodução e a ampla difusão das imagens, ao passo que essas imagens, particularmente enigmáticas, amais deixarão seu ateliê. Talvez, porém, ele contasse, mais uma vez, com os espectadores e aficionados do futuro, aqueles a quem seria dada a compreensão integral.
Fig. 37. O caminho do inferno .
Atinge-se uma espécie de paroxismo em outro desenho datado da mesma época ( GW 1647, fig. 37), provavelmente destinado à preparação de uma litografia — embora não se disponha de nenhum vestígio dela. Nele vemos alguns seres humanos nus, impelidos para a direita por um diabo igualmente nu; a cena é observada com deleite por um grupo de animais monstruosos. As vítimas humanas se grudam umas às outras, uma mulher agarrou os cabelos do homem atrás dela. Costuma-se chamar esse desenho de O caminho do inferno ; quanto a mim (mas não sou o primeiro), eu vejo ali a imagem premonitória daquilo que podemos imaginar dos campos da morte: Himmelweg era o nome atribuído ao caminho que, em Treblinka, conduzia ao extermínio. Talvez essa seja a imagem mais apavorante pintada por Goya.
Uma nova partida
Como pintor do rei, Goya, que faz muita questão de preservar sua renda, precisa obter uma autorização para todos os seus deslocamentos. Então, usa como pretexto a necessidade de “ir a uma estação de águas” para cuidar da saúde e obtém os documentos necessários. Em junho de 1824, ele chega à França, onde passará os últimos anos de vida. Dirige-se primeiro a Bordeaux, onde estão instalados numerosos emigrados espanhóis e especialmente seu amigo Moratín, de quem se manteve próximo. Logo após a chegada dele, Moratín envia a um amigo uma carta na qual descreve os primeiros passos de Goya em Bordeaux: aparentemente, o pintor dá provas de uma vitalidade surpreendente. Está, lê-se na carta, “surdo, velho, alquebrado e débil, não fala uma palavra de francês, não tem doméstica (logo ele, que precisaria disso mais do que ninguém)”, e no entanto, ao mesmo tempo, mostra-se “muito feliz e muito desejoso de conhecer o mundo”. Seu apetite se estende ao físico: “durante dois dias, comeu conosco como um jovem estudante” (27 de junho de 1824). Esse novo desejo de viver o impele de imediato à ação: poucos dias após sua chegada a Bordeaux, empreende nova viagem, dessa vez rumo a Paris, onde passará os meses de verão. Na capital, reencontra outros amigos espanhóis; segundo os relatórios da polícia francesa (pois seus movimentos são acompanhados), “só sai para visitar os monumentos e passear nos espaços públicos” (15 de julho de 1824). Isso nos vale uma série de desenhos nos quais ele registra suas observações, acompanhando-as de legendas como “Eu vi isso em Paris”. Tendo retornado a Bordeaux em outubro, instala-se numa casa confortável, onde Leocadia, vinda da Espanha em companhia do filho mais novo e da filha, vai ao seu encontro. Goya retornará duas vezes a Madri para resolver seus assuntos financeiros, o que demonstra que ele pode circular livremente, não sendo em absoluto considerado pelas autoridades espanholas um exilado indesejável. Ainda tem problemas de saúde (Moratín relata que ele quase morreu em maio de 1825), mas sua fome de viver, de conhecer e de criar não diminui. Numa carta do fim desse mesmo ano, escreve: “Não tenho nem visão, nem força, nem pena, nem tinteiro, tudo me falta, exceto a vontade” (20 de dezembro de 1825). No ano anterior, havia declarado ao filho que se preparava para “viver como Ticiano, até os 99 anos” (24 de dezembro de 1824). Contudo, não se contenta com o que já fez. O mesmo filho relata, em sua nota biográfica: “Ele duvidava de si mesmo e de suas próprias obras, e às vezes, quando não conseguia fazer alguma coisa, dizia: ‘Esqueci como pintar’”. Além de suas técnicas já bem aperfeiçoadas, Goya desenvolvia outra, muito mais inovadora. Ela lhe permite pintar miniaturas sobre marfim, das quais uma dezena sobreviveu até hoje. Eis como o
evoca seu amigo dos últimos anos, o jovem pintor Antonio Brugada: “Ele enegrecia a placa de marfim e deixava cair nela uma gota d’água, que, ao se espalhar, removia uma parte do fundo e traçava claros caprichosos. Goya tirava partido desses sulcos e sempre obtinha deles algo de original e de inesperado”. 1 O desenho que Goya acrescenta a essas manchas caprichosas exerce, portanto, um papel auxiliar; o capricho já não é o do pintor, mas o dos instrumentos de que ele se serve (outra inovação que anuncia o futuro). Essa maneira de submeter-se ao acaso não o impede de reencontrar seus temas e seu estilo habituais, como testemunha, por exemplo, o Frade falando com uma velha (GW 1685), que parece ter saído das Pinturas Negras. Goya tem consciência da originalidade de sua iniciativa. Escreve a um amigo: “No inverno passado, pintei sobre marfim e tenho uma coleção de aproximadamente quarenta ensaios; é um novo tipo de miniatura que nunca vi antes, pois é feita em pontilhado…” (20 de dezembro de 1825). No mesmo momento, lança-se ao aperfeiçoamento de uma nova forma de estampa, a litografia, a qual experimentara, mas com menos sucesso, antes de instalar-se na Quinta del Sordo. Agora faz progressos rápidos, como testemunham as imagens que realiza e das quais se orgulha. Ao mesmo tempo, e talvez sob a influência de seu novo domínio da litografia, renova inteiramente a técnica de seus desenhos: em vez do nanquim e da sépia, utiliza pedra negra e lápis litográfico. Também faz pintura com espátula, em vez de utilizar pincéis. Um correspondente lhe pergunta se não seria possível providenciar uma nova tiragem dos Caprichos: ele responde que já não tem as pranchas e acrescenta uma razão suplementar à sua recusa: “Também não os copiarei, pois tenho hoje ideias melhores que poderão ser vendidas com mais proveito”. 2 Ao longo de toda a vida, Goya se mantém apaixonado pelo domínio técnico de seu ofício. De maneira mais geral, ele aceita as mudanças que a passagem do tempo lhe impõe. Não é por acaso que encontramos em seus desenhos, várias vezes, a imagem do ancião de curiosidade incansável, como em E 15 ( GW 1390), desenho que o mostra, de cabelos brancos e barbudo, debruçado sobre um livro; a legenda diz: Sabes muito e ainda aprendes. Ou no desenho já comentado (GW 1758, fig. 31) em que o ancião tenta caminhar, apoiado em duas bengalas, e nos anuncia: Continuo aprendendo . Sabe-se, pelas lembranças de Brugada, que Goya de fato se via assim: é um autorretrato alegórico. “Que humilhação! Aos oitenta anos”, gritava, “me levam a passear como a uma criança! Preciso aprender a caminhar!”3 O velho resmungão não sente nenhum prazer nessa aprendizagem, mas reconhece a necessidade dela. Sua atividade de pintor se mantém e continua de alto nível. Os quadros pintados ao longo de seus últimos anos, como não dependem de encomendas e não se destinam a circular pelo público, nem sempre são fáceis de datar. O mesmo Moratín descreve assim a atividade do pintor: “É bastante arrogante e pinta como um alucinado, sem jamais querer corrigir nada do que pintou” (28 de junho de 1825). Foram recenseados quinze retratos, essencialmente de amigos, e uma tauromaquia; outros quadros desapareceram (um baile de máscaras) ou são de atribuição duvidosa. Em seus últimos anos, ele pintará também um quadro destinado a ficar célebre, A leiteira ( GW 1667, il. 24), retrato de uma ovem que revela um estilo novo. Por certas características, assemelha-se a Leocadia, a imagem da
companheira de Goya que faz parte das Pinturas Negras: mesmo fundo indeterminado, feito de uma interpenetração de cores, mesma atitude da personagem, em escuta pensativa; contudo, vista de perfil, a mulher de A leiteira é mais nova. É comovente pensar que esse quadro, talvez o último que Goya terminou, não representa nenhum demônio, não revela nenhuma atração pelos abismos nem caricatura nenhuma fraqueza da humanidade, mas sim comprova a benevolência do pintor por sua personagem, essa mulher ao mesmo tempo bela e reservada. A isso acrescentam-se os desenhos, esse diário de bordo mantido sem interrupção. Ao longo desse período, Goya preenche dois novos álbuns. O primeiro, dito G, comporta sessenta desenhos legendados; o segundo, dito H, traz 63, a maioria sem legenda. Assim como nos anteriores, neles se encontra uma mistura de observações, de lembranças e de fantasias. Goya registra, por exemplo, os singulares meios de locomoção de que se servem certos habitantes das grandes cidades francesas (uma charrete puxada por um cão, vista em Paris); ou ainda os artigos incomuns vendidos no mercado de Bordeaux: uma cobra, um crocodilo! Ao lado dessas cenas captadas ao vivo aparecem os personagens habituais da vida popular na Espanha ou dos rituais coletivos desse país. As bruxas continuam voando pelos ares, assim como os frades ou um cão gigante (G 5, GW 1715), estranho animal adaptado tanto ao voo quanto à natação, levando um livro sobre o dorso; ou ainda esses touros, flutuando num espaço impreciso, que aparecem num Disparate não numerado e intitulado Loucura de bestas , ou de touros , também chamado às vezes Chuva de touros (GW 1604). Os animais, portanto, também estão liberados das leis da gravidade. Goya mostra ainda suas visões de sonho ou de pesadelo, como em Grande disparate (G 9, GW 1718, fig. 38). Essa estranha cena inclui um homem que, com uma das mãos, retirou a própria cabeça e, com a outra, mete uma colherzinha em sua boca; um segundo homem derrama um líquido por um funil enfiado diretamente no tronco do primeiro; um terceiro se contenta em observar calmamente a cena. Vários desenhos mostram o sonhador confrontado com os monstros noturnos; um deles (Ga, GW 1720) o representa duplicado: desperto, ele se vê de fora em seu sonho, no qual é atacado pelas aves noturnas maléficas. A vida conjugal continua inspirando desconfiança a Goya. Um desenho legendado como Marido mau (G 13, GW 1721) mostra um homem duplamente violento: montado nos ombros de sua esposa, ele se deixa carregar por ela e, além disso, a chicoteia, furioso, como se ela fosse uma mula. Outro propõe uma solução irônica para os problemas dos casais. Representa um ser dotado de duas cabeças, uma masculina e outra feminina, que sorriem amavelmente; a legenda diz: União natural e segura. Metade homem, metade mulher (G 15, GW 1723). Um outro desenho, ainda, poderia ser interpretado como uma alusão à situação pessoal de Goya (H 57, GW 1815). Nele vemos um velho seminu, interrompido em seus movimentos por uma mulher mais jovem e mais forte. Os dois são mantidos juntos por um homem-pássaro noturno, encarnação do diabo e, sem dúvida, dos prazeres da carne. O tema da violência continua ocupando um grande espaço. É impressionante constatar que, recémchegado à França, Goya procurou representar a técnica de execução capital específica desse país, a
guilhotina. Eis então, após o garrote espanhol, a máquina francesa. Os dois desenhos que se referem a ela parecem ter sido realizados a partir de observações pessoais. Um (G 49, GW 1754) mostra a guilhotina escancarada; ao lado está a futura vítima, cuja camisa foi baixada para que o pescoço se exponha melhor à lâmina. O carrasco segura firmemente o homem, a quem o padre apresenta a cruz. O olhar abatido do futuro decapitado fita esse objeto religioso, que supostamente lhe traz um consolo. O outro desenho (G 48, GW 1753), igualmente intitulado Castigo francês, representa a cena alguns minutos depois, e alguns segundos antes de a lâmina cair: o carrasco já agarrou a corda que a desbloqueará. O aparelho está agora parado sobre a cabeça do supliciado, de quem já não vemos mais do que os cabelos. O traço de Goya é de grande precisão, tão sóbrio quanto a legenda do desenho; consegue nos colocar em contato imediato com essa forma de barbárie de Estado que consiste em matar homens alegando proteger seus semelhantes de outras matanças.
Fig. 38. Grande disparate.
Nos desenhos de Goya, a violência dita legítima ladeia aquela que não o é, que vem dos particulares, salteadores ou simples homens encolerizados. Veem-se as vítimas amarradas, feridas, mutiladas, apunhaladas, fuziladas ou enforcadas. Os matadores se parecem fisicamente com elas, só que a desgraça de umas é substituída, nos outros, pela expressão de triunfo (como em G 47, GW 1752) ou de loucura (H 34, GW 1796). Um desenho perturbador (H 38, GW 1800, fig. 39), hoje intitulado Vitória fácil , mostra o combate mortal entre dois homens: um ganhou e se apresta a matar o outro. A estranheza resulta de que os dois homens se parecem como gêmeos: mesmas roupas, mesma corpulência, mesmo rosto, e até a identidade do sorriso satisfeito que ambos exibem! A violência
humana seria sempre aquela dos inimigos complementares, dos irmãos intercambiáveis? Um tema que Goya jamais havia abordado tão de perto é o da loucura: uns bons quinze desenhos ilustram as diferentes manifestações dela. O olhar captado pelo pintor não é o de um homem normal, mas expressa sentimentos comuns: ora raiva, ora resignação, às vezes até satisfação (os loucos não se assemelham). Goya parece não fazer nenhum julgamento, contenta-se em mostrar: eles também são nossos irmãos. Um Louco furioso (G 33, GW 1738) está encerrado numa cela; passou a cabeça, um braço e uma mão através das barras da janela, seu olhar se perde ao longe. Sua cabeça ficou imobilizada na grade, e assim ele está duplamente preso. O espectador se encontra no exterior da cela; mas com o outro Louco furioso (G 40, GW 1745), impressionante imagem do desalento, está no interior. O louco tem as mãos atadas às costas, sua cela lembra uma prisão. O demente mais inquietante talvez seja aquele que é chamado O idiota (H 60, GW 1822, fig. 40), visão derradeira da loucura humana. Nada prova que Goya tenha visitado um manicômio em Bordeaux; há muito tempo as manifestações da loucura são familiares à sua mente.
Fig. 39. Vitória f ácil.
Estaríamos errados se, dessas imagens apavorantes, deduzíssemos que Goya levava uma existência torturada, sem conseguir dominar seus fantasmas. Muito pelo contrário, a presença de tais espectros nos desenhos parece tê-lo livrado deles na vida cotidiana. Os testemunhos de que dispomos sobre seus últimos anos vividos em Bordeaux, longe de sua terra, mostram-no apaixonado pelo seu ofício e afetuoso com seus próximos, tendo inclusive alcançado uma espécie de serenidade que antes lhe faltava. Ele se apegou fortemente a Rosario, a filha de Leocadia, que tinha dez anos quando chegou a Bordeaux. Seja ou não o pai biológico de Rosario, Goya nutre por essa menina sentimentos paternais; está convencido de que ela tem grande talento para a pintura e passa algum
tempo ocupando-se de sua educação artística. Até declara a um amigo que ela representa “o maior fenômeno que pode existir no mundo, considerando-se sua idade” (28 de outubro de 1824). Suas relações com a mãe da criança são aparentemente menos tranquilas, mas prosseguem até sua morte, e ele lhe oferecerá A leiteira . Uma litografia de Bordeaux, A leitura (GW 1699), mostra, supõe-se, Leocadia lendo para os dois filhos. A única carta de Goya dirigida à companheira revela momentos de ternura que eles podiam viver juntos. “Acabo de ler tua carta magnífica e ela me deixou tão feliz que, se eu te disser que me deixou bem melhor, não estou exagerando em absoluto.” E conclui: “Mil beijos e mil coisas de teu afeiçoado Goya” (13 de agosto de 1827). 4 Goya também se preocupa com os membros de sua família legítima, cuidando de garantir-lhes rendas confortáveis. Sente um vivo apego pelo neto Mariano — já amava muito o filho Javier, desde sua infância: “Tenho um filho de quatro anos que é o que se vê de mais bonito em Madri inteira, e sinto muito medo de que ele não consiga viver todo este tempo”, escrevia então a Zapater (23 de maio de 1789). Lega a Mariano sua casa com as Pinturas Negras e faz dele vários retratos enternecidos. O rapaz, aos 22 anos, vai visitá-lo em Bordeaux em 1828; Goya fica tão comovido que isso o enfraquece. Em carta ao filho, escreve: “Não posso te dizer mais nada, de tanto que a alegria me adoentou, e estou de cama”. Se Javier também puder vir, acrescenta, “minha felicidade será completa” (início de abril de 1828). Essa será sua última carta: Javier irá, mas tarde demais para ver o pai vivo. Mariano chegou em 28 de março, Goya adoece em 2 de abril e morre em 16 de abril de 1828, aos 82 anos.
Fig. 40. O idiota.
Fig. 41. Fantasma dançando.
Fig. 42. Velho no balanço .
Entre os últimos desenhos de Goya encontram-se vários que mostram personagens idosos, mas ativos e jubilosos. Ele já não os ridiculariza, como em certos desenhos das décadas precedentes: a idade avançada tornou-o mais tolerante com a inabilidade dos velhos. É o caso de um irmão converso que patina (H 28, GW 1790), um frade a flutuar nos ares (H 32, GW 1794), duas velhas comadres dançantes (H 35, GW 1797). Encontra-se até um fantasma dançando com castanholas (H 61, GW 1818, fig. 41), que parece ter-se tornado um companheiro bem-intencionado, nem um pouco assustador. Um dos últimos desenhos de Goya pode ainda ser interpretado como um autorretrato
alegórico: é a imagem de um ancião num balanço, descalço, e soltando uma grande gargalhada (H 58, GW 1816, fig. 42). Tendo cumprido seu destino, é na alegria que Goya se despede do mundo, e de nós.
herança de Goya
O acontecimento decisivo na evolução de Goya é a decisão de dividir em duas sua criação, de aceitar a cisão entre arte pública e arte privada — um desdobramento totalmente inédito antes dele. Em um de seus caminhos, ele continua a pintar segundo o cânone admitido em sua sociedade e a ganhar dinheiro graças às suas obras; em outro, prossegue uma busca sem a menor preocupação com a opinião pública. A razão inicial dessa partilha é a doença de 1792 e a surdez subsequente, mas esse encadeamento não era nem um pouco previsível: outro homem, outro pintor poderia ter reagido de modo totalmente diferente. A enfermidade leva Goya a não mais se preocupar unicamente com as demandas que a sociedade lhe dirige, mas a expressar, nos anos de vida que lhe restam, as sensações, as visões e as emoções que lhe são próprias, a agir sob a pressão não das circunstâncias externas, mas das necessidades internas. Ao longo dos anos, a essa razão inicial vêm acrescentar-se outras. Durante a Guerra de Independência e os anos de Restauração que se seguem, os gostos e as opiniões de Goya divergem demais daquilo que os poderes vigentes podem aceitar; seu desdobramento lhe permite refugiar-se numa espécie de exílio interior. Em seguida, durante a última década de vida, após uma nova doença que reforça sua resolução de não mais se consagrar senão ao essencial, ele mergulha a tal ponto no mundo de suas fantasias que considera inútil propor imediatamente aos contemporâneos os resultados de tais explorações. Assim se constitui um conjunto único na história da pintura: único no sentido de que obedece apenas às exigências do pintor, sem nenhum compromisso com o gosto comum. Progressivamente, uma parte cada vez mais importante da obra de Goya se subtrai ao julgamento público: primeiro os desenhos (que ele produz em abundância e reúne em álbuns), em seguida as gravuras e por fim as pinturas. Convém antes de mais nada medir a coragem dessa decisão (que Goya não tomou de um dia para outro). É verdade que ele jamais compromete inteiramente seus interesses materiais. No momento da primeira enfermidade, já é um homem maduro que goza do reconhecimento de seus pares, do público e de seus mecenas na corte da Espanha; como não tem nada de asceta nem de cabeça quente, continuará, até o fim da vida, a garantir para si rendas regulares, fazendo o necessário para que não se interrompam seus emolumentos provenientes do palácio, executando — cada vez menos frequentemente, é verdade — as encomendas que recebe, retratos, quadros alegóricos ou religiosos. No entanto, o que ele sacrifica não é pouco; a prova disso é que não se conhece nenhum outro exemplo de tal gesto — nem antes nem depois dele. Lembremos apenas um episódio ligado aos
Desastres da guerra : Goya considera que haveria uma espécie de covardia, ou pelo menos de insuficiente submissão à exigência de verdade e de sinceridade integrais, em mostrar unicamente as gravuras que refletem a guerra patriótica, omitindo as outras “consequências fatais” dos transtornos políticos, a saber, o desencadeamento das medidas repressivas; então, abandona a publicação da coletânea à qual consagrou anos de trabalho, e que sabe representar um dos cumes de sua obra. Renuncia às satisfações de amor-próprio, sem falar dos benefícios materiais, que a difusão parcial das gravuras poderia lhe trazer. Uma honestidade tão radical, uma tal bravura interior são excepcionais. As obras pertencentes a essa vertente privada da atividade de Goya, àquilo que também podemos denominar o regime noturno de sua criação, são as únicas a ter sido objeto da presente investigação. Como traduzir em palavras os avanços intelectuais que se encontram nelas? De saída, pode-se constatar que elas concernem não a um, mas a vários domínios de reflexão e nos levam a direções diferentes.
O primeiro desses domínios é aquele mais diretamente ligado à sua maneira de pintar. Uma vez que, para Goya, a pintura é, fundamentalmente, criação de imagens fiéis do mundo (“representar tudo o que Deus criou”, “ter êxito na imitação da verdade”), podemos dizer que se trata de uma reflexão relativa ao conhecimento e, ao mesmo tempo, à representação. Aqui, sua contribuição encontra seu ponto de partida no espírito das Luzes. Essa corrente de ideias subverteu a antiga hierarquia de valores; exalta a liberdade individual e o julgamento racional em detrimento do respeito às tradições. Em vez de se manterem submissos à sabedoria ancestral, às normas e convenções da sociedade em que nasceram, os homens escolhem exercer seu espírito crítico, contestar as instituições, fugir ao conformismo. Nós entramos, dizia Benjamin Constant no início do século XIX, na “época dos indivíduos”. As consequências desse deslocamento são incontáveis e referem-se tanto à estrutura política dos Estados quanto à prática das artes. A contestação das hierarquias, o direito à igualdade, a liberdade perante os cânones estabelecidos tornaram-se uma evidência para os europeus do século XXI, e nós esquecemos a transformação que essas atitudes constituíam na época de Goya, quando elas só podiam nascer de um grito de revolta. Até mesmo a decisão de adotar uma maneira pessoal de pintar, ao lado daquela que corresponde às normas comuns, pressupõe uma revolução das mentalidades. Ele, portanto, escolhe seu modo de expressão, ao qual se manterá fiel, sem pedir ao consenso coletivo que legitime suas visões. A busca pessoal de verdade tem primazia sobre a comunicação social. Goya atinge, assim, um grau suplementar na promoção do indivíduo que já não espera o reconhecimento, ou nem mesmo a simples resposta dos outros. A partir do momento em que o indivíduo se apodera desse novo lugar, o sistema de valores no qual vivia a sociedade anterior fica privado de sua base. Provavelmente, Goya não se vê como um ateu, mas, além do fato de dirigir críticas acerbas aos representantes da Igreja, ele nunca evoca a
perspectiva de uma salvação concebida em termos cristãos, nem a de uma promessa de vida eterna. Tendo retornado do outro mundo para nos dizer o que encontrou lá, o cadáver gravado por Goya em Desastres 69 condensa sua mensagem numa palavra: “Nada” (fig. 22). Ao mesmo tempo, desapareceram as referências a uma ordem cósmica assegurada por Deus, a qual permitiria organizar e tornar inteligíveis as experiências de cada um. Goya renunciou aos ciclos que ele mesmo ilustrava durante seus primeiros anos, aquele das quatro estações ou das quatro grandes formas de trabalho útil; não recorre a agrupamentos convencionais como as quatro partes da jornada, os quatro elementos, os cinco sentidos ou os sete pecados capitais. Os atos e os objetos deixaram de pertencer a uma rede de correspondências e de ritmos e, por conseguinte, perderam qualquer sentido que apontaria para além deles mesmos. Doravante, devem ser percebidos em sua literalidade, por aquilo que são, e não por aquilo que designam. A retirada de Deus provocou uma crise do sentido. O sofrimento experimentado já não é uma provação enviada por Deus, mas apenas uma dor, um escândalo, um absurdo. A promoção do indivíduo transforma as maneiras de conhecer e, por conseguinte, de representar, o que por sua vez produz efeitos imediatos sobre a prática do pintor. Goya toma consciência de um fato: esse conhecimento depende necessariamente de uma subjetividade; apreende-se o mundo sempre refratado através de uma mente, a de um indivíduo. Desse ponto de vista, tal revolução é simétrica e inversa àquela que, dois séculos antes, fizera a humanidade passar da visão geocêntrica à concepção heliocêntrica do mundo; desta vez, assiste-se à passagem do teocentrismo, fiador da objetividade do mundo e do seu conhecimento, ao antropocentrismo. Goya é mais do que um contemporâneo de Kant: nesse sentido, é seu cúmplice. De fato, foi Kant que soube colocar no centro de sua atenção a finitude irredutível de todo conhecimento humano. A descoberta kantiana consiste em estabelecer que para nós, indivíduos pertencentes a um espaço e um tempo, e portanto seres finitos, o mundo (em si) e sua representação (por nós, para nós) formam duas entidades distintas. Não se pode conhecer a essência das coisas sem passar pela subjetividade; o acesso aos objetos em si mesmos nos é impedido. Nossa mente só conhece imagens das coisas, nunca as próprias coisas. Hegel, no início do século seguinte, projetará essa descoberta na história da arte: no início, afirma, os homens aceitavam as formas do mundo como um dado objetivo; na época moderna, tudo deve passar pelo filtro da subjetividade. Os filósofos precisam de espessos volumes para expor essas novas ideias. A Goya bastam algumas pinceladas que tocam uma tela, e está feito: não existem linhas na natureza, nós só temos acesso aos objetos por meio de nossa percepção, sempre e unicamente parcial, e devemos assumir nossos partis pris. Todos os pintores do passado, que representaram o mundo tal como pensavam que ele era, e não tal como o viam, participaram de uma petição de princípio que é também a de todos os etnocentristas: estabeleceram ingenuamente que sua visão não era uma visão entre outras, mas a coisa em si. É verdade que a introdução da perspectiva abalou essa ilusão. Contudo, esse reconhecimento da subjetividade continuava limitado: a presença daquele que olha era admitida, e, ainda assim, nada nos objetos representados indicava que aquilo que víamos no quadro não era o objeto em si, mas a
visão subjetiva dele. A prudência desses pintores é compreensível: duvidar da possibilidade de um conhecimento objetivo, feito fora de toda perspectiva, pertencente ao infinito, e não mais aos seres finitos que nós somos, descrer de um conhecimento absoluto e não apenas relativo, significaria que renunciamos a pensar o universo numa relação necessária com Deus. De fato, a divindade é tida como depositária da onisciência; porém, ao contrário, a partir da revolução humanista, o relativo é que permite fabricar o absoluto; o finito, imaginar o infinito; o subjetivo, postular o objetivo. Nesse sentido, quaisquer que tenham sido suas crenças e convicções íntimas, Goya situa-se de saída num mundo sem Deus, pois visivelmente já não crê na possibilidade de acessar a identidade das coisas sem passar por uma percepção humana particular — uma possibilidade da qual Deus, em sua onisciência, era o fiador. Se ele já não pinta senão sua visão subjetiva do mundo, é porque já não pode repousar sobre essa certeza: agora, é como se Deus estivesse ausente. Além disso, Goya não se preocupa mais com a perspectiva em seus quadros; sua presença subjetiva se faz sentir de maneira bem mais forte: ele renunciou a figurar cada objeto em si mesmo, assim como a reproduzir as cores (a cor não existe, tanto quanto a linha!). A luz — instável, fugidia — determina tudo, e Goya pinta aquilo que vê, e não aquilo que existe. Não é o primeiro a fazer isso, mas é com ele que esse movimento se torna irreversível. Não devemos nos equivocar quanto ao sentido desse reconhecimento do olhar subjetivo. A obra de Goya não contribui em absoluto para uma promoção do eu em detrimento do resto do mundo. O pintor se representou várias vezes, mas seus autorretratos não sugerem uma complacência narcísica; emblematicamente, em seu último autorretrato, ele está acompanhado por outro indivíduo, o doutor Arrieta (e por alguns fantasmas). Goya não substitui a realidade objetiva por sua pessoa; simplesmente não conhece outro acesso, diverso do subjetivo, a essa realidade. De igual modo, não procura imprimir a todas as suas obras o mesmo estilo, para que o espectador se diga, situado diante delas: “É seguramente um Goya!”. Tal reação seria um contrassenso. O pintor deseja de fato que não se veja nelas nem uma aspiração à beleza, nem uma lição de moral, nem a expressão de sua singularidade; o que ele busca é nos revelar a identidade do mundo. Não é culpa dele se nós constatamos de saída: “É um Goya” — nem nossa, aliás. É que, em sua busca da verdade, ele foi tão longe que se viu totalmente só; portanto, nós o reconhecemos sem dificuldade. A impulsão dada por Goya à evolução da pintura consiste em legitimar as visões individuais do mundo e em permitir a interpenetração dos elementos objetivo e subjetivo no conhecimento ao qual essa arte aspira. Mas a rejeição a toda regra geral, a toda exigência da tradição não é acompanhada, nele, pela renúncia à linguagem comum e à comunicação: esta é suspensa, e não recusada. Sua mensagem é de origem individual, mas de intenção geral. Essa linguagem comum são as formas que a percepção humana reconhece. Goya já não pretende que ela represente o mundo tal como é; mas sua interpretação singular desse mundo, inclusive em seus Disparates mais loucos, se expressa através de formas reconhecíveis por todos. Ele questiona as convenções da perspectiva, as regras de construção do espaço, mas não cessa de praticar uma pintura figurativa. A obra de Goya contém o embrião de numerosíssimos desenvolvimentos que se produzirão na arte visual ao longo dos dois
séculos seguintes, mas se detém no limiar da abstração, mesmo em suas imagens mais livres, como O cão das Pinturas Negras. Compartilhar uma linguagem comum, propor uma visão que pode se tornar coletiva é, portanto, seu horizonte derradeiro; nisso, ele se mantém estranho ao hiperindividualismo que se imporá no século XX. Para Goya, a subjetividade não existe em si mesma (como tampouco o mundo objetivo); é sempre e somente a relação de um sujeito com um objeto que lhe é exterior e que existe independente dela. Assim, contrariamente a muitos artistas do século XX, ele sustentará sempre que suas visões, por mais pessoais e “deformadas” que sejam, são as visões de alguma coisa, e não as simples manifestações de sua singularidade, as puras expressões de seu eu. O universo de Goya está longe de ilustrar um reinado do arbítrio ou uma recusa total à comunicação. Aquilo a que ele renuncia é o desejo de mostrar imediatamente suas imagens aos contemporâneos para agir sobre suas mentes ou para acolher sua admiração. O que ele mantém é a necessidade de dirigir-se a uma comunidade humana ideal, ainda que ela só deva encarnar-se nas gerações futuras. Goya reúne, portanto, duas características que estamos habituados a pensar como incompatíveis: o reconhecimento de uma pluralidade de indivíduos e da subjetividade da visão deles, por um lado, e, por outro, a busca de uma verdade compartilhável, a criação de formas visuais identificáveis por todos, a manutenção de um mundo comum. É essa ideia do conhecimento e da representação que permite inscrever Goya na esteira do Iluminismo, ainda que ele se mantenha estranho às preocupações propriamente estéticas que dominam o pensamento de seu tempo. A estética das Luzes, de Shaftesbury a Kant, subtrai a arte às suas funções didáticas e a vê principalmente como uma encarnação do belo, que conduz a uma contemplação e a um prazer desinteressados. A autonomia da arte passa ao primeiro plano. A estética romântica, no início do século XIX, prosseguirá esse movimento e venerará a arte em vez da religião; pregará, ao menos em seus manifestos, a arte pela arte. Mas essas ideias e essa linguagem são estranhas a Goya, que, desse ponto de vista, é um artista anacrônico. Ele não tem certeza de que o próprio termo “arte” tenha um sentido pertinente para seu trabalho. O que Goya cria são imagens e, portanto, figurações do mundo — tanto visível quanto invisível. Elas são diferentes das palavras, mas assumem uma função paralela — o que explica, entre outras coisas, a facilidade com a qual ele lhes dá legendas. Suas imagens se submetem a uma exigência fundamental, a de verdade, e demonstram a emoção do pintor que as cria — emoção que o espectador é convidado a compartilhar. Toda ideia quanto à sua autonomia, ou ao prazer desinteressado que elas deveriam provocar, seria um novo mal-entendido. Nós todos participamos disso, contudo, no momento em que descobrimos essas obras e nos extasiamos diante de sua qualidade estética: “Como é bonito!”. Se as imagens de Goya nos tocam tanto hoje, se nelas encontramos o eco ou mesmo a explicação de acontecimentos recentes, sobrevindos muito tempo após a morte do pintor, é porque ele tentou, com todas as suas forças, compreender os comportamentos, as atitudes, os gestos humanos, e representá-los da maneira mais verídica possível. A verdade à qual Goya aspira não é a das formas que se oferecem ao seu olhar, ele não procura restituir exatamente os objetos que o rodeiam. A
verdade que ele busca é a das paixões, do amor, da violência, da guerra, da loucura: e, para alcançála, dispõe-se a romper com aquilo que os dados imediatos dos sentidos lhe mostram. Em suas imagens, encontramos não tanto um relato factual sobre os eventos ocorridos na Espanha ao longo de sua vida quanto uma reflexão antropológica. Ao representar os personagens mais variados — salteadores, soldados, canibais, alienados mentais, multidões em transe —, ele não busca o pitoresco deles, o anedótico, mas as facetas desconhecidas do ser humano. Ao mesmo tempo que mostra as circunstâncias particulares dos confrontos de seu tempo, Goya consegue apreender uma característica profunda das condutas humanas, o que permite explicar as reações dos espectadores de hoje diante de suas imagens. Posso dar meu testemunho quanto a isso: ao olhar seus quadros, suas gravuras, seus desenhos, sou tentado a ver neles uma representação de acontecimentos de minha própria vida, Segunda Guerra Mundial, Guerra do Vietnã, invasão do Iraque, estupros no Congo! Estou longe de ser o único, como atestam numerosos trabalhos atuais sobre Goya. “Quem quer que tenha olhado, mesmo apressadamente, os jornais do último meio século constatará que as notícias mais significativas tinham sido ilustradas por Goya há mais de 150 anos”, escreveu Fred Licht em 1979.1 E eu acrescento um testemunho recente. Em abril de 2010, um detento da prisão La Santé, em Paris, toma como refém seu psiquiatra durante cinco horas, após as quais o libera e se rende. Em seguida perguntam a esse médico, o doutor Cyrille Canetti, como ele explica o que aconteceu. Em vez de falar de sua experiência, Canetti evoca a do prisioneiro, e é o nome de Goya que lhe vem de imediato aos lábios. A prisão lhe recorda uma das Pinturas Negras, aquela que representa Saturno devorando sua cria. “É a sociedade eliminando seus excluídos”, diz. “A prisão é uma máquina de triturar o humano.” 2 Quando se leem ou se escutam tais depoimentos, calcula-se toda a metamorfose que a pintura sofreu de dois séculos para cá: à parte alguns grandes artistas nos quais podemos reconhecer, de certa forma, “os filhos de Goya”, a própria ideia de buscar na arte contemporânea uma chave para a decifração de nosso mundo seria um tanto estapafúrdia. Hoje, as principais correntes da arte visual quase não se preocupam em formular uma interpretação do real; e muito menos, talvez, em transmitir e provocar no espectador a emoção experimentada pelo artista: sentido e emoção são considerados objetos fora de moda. O impressionismo já os havia substituído pela busca da simples sensação. Não podemos culpar por essa evolução da arte os contemporâneos de Kant ou de Baudelaire: as ideias em que eles acreditavam tiveram uma posteridade na qual eles teriam dificuldade de se reconhecer. No entanto, o fato aí está: as grandes correntes da arte contemporânea romperam com as exigências que eram as de Goya. É sobretudo a fotografia que assume, esporadicamente, o papel que a pintura exercia outrora, e é por isso que imagens de guerra no Vietnã ou no Iraque me vinham à mente enquanto eu observava certas obras de Goya. Não que Goya se comporte, convém repetir, como repórter fotográfico, misturando-se aos combatentes, às vítimas ou aos internos dos manicômios; são antes certos fotógrafos que conseguem dar um valor emblemático às suas imagens, captar o invisível por trás do visível. São as fotos que, no melhor dos casos, se assemelham às gravuras de Goya, mais do que o
contrário. Seja como for, o cotejo só pode ser muito parcial: que foto seria suscetível de captar Saturno?
O segundo domínio no qual avança a reflexão de Goya já não é o da percepção e da representação, mas o do psiquismo humano. Suas ideias sobre esse assunto não correspondem à imagem que se costuma fazer do pensamento iluminista. Para ele, o homem não é um ser puramente racional, no sentido de que seu comportamento seria sempre dirigido pela razão e pela consciência: é interiormente múltiplo, incoerente, disputado por pulsões e desejos contraditórios. O homem obedece às vezes à sua consciência, é certo; mais frequentemente, porém, segue forças inconscientes que escapam ao seu controle. Muitas vezes essa vertente obscura da mente humana é negligenciada pelos pensadores liberais e pelos “filósofos”. Goya descobre nela o gosto que o ser humano tem, e particularmente o gênero masculino, pela violência, a qual aflora nas circunstâncias mais variadas, como se não dependesse delas; e também a força das pulsões sexuais, que assumem igualmente as mais diversas formas. Dissimuladas na vida cotidiana pública, tais manifestações das profundezas humanas deixam-se observar em situações mais marginais, como no teatro ou através das máscaras, do Carnaval ou das festas exuberantes: esses exageros mostram um mundo mais verdadeiro do que aquele dito normal. Também podemos observá-las através de diversos preconceitos e superstições, relativos às bruxas, aos demônios ou aos fantasmas, nos quais Goya não acredita, mas nos quais vê indícios reveladores da vida interior. E também nos estados psíquicos que se produzem durante o “sono” ou a “doença” da razão: sonhos e pesadelos, fantasias diurnas, delírios e loucura. Enfim, e pelos mesmos motivos, retêm a atenção de Goya os estados e momentos extremos: brutalidades de todo tipo, enfermidades, guerras, assassínios; eles também permitem observar e compreender melhor nossa singular espécie humana. Todos esses aspectos estão abundantemente presentes na obra de Goya. Nem mesmo a razão está acima de qualquer suspeita. Não só porque, como vimos, os pesadelos e a loucura são produzidos por ela, nascem de seus sonhos mais do que de sua ausência; mas também porque a razão, por sua própria natureza, é um instrumento que permite encontrar justificativas para as mais contestáveis ações. Nada pode desculpar o homicídio, o estupro, a tortura, desde que ulgados em si mesmos. Mas, graças à razão, podemos vincular esses crimes a objetivos longínquos: nós os cometemos para defender o verdadeiro Deus, para proteger a pátria, para levar a felicidade ao povo, para libertar os oprimidos da Terra. A conexão entre essas entidades distantes, que só a razão pode estabelecer, permite desculpar o indesculpável. Goya sabe disso e no entanto não se limita à simples revelação dos perigos que a razão comporta. Ele alerta contra um dos regimes dela, mas ao mesmo tempo a invoca: é ainda a “divina razão” que permite a liberação de cada um e de todos. A concepção do psiquismo humano ilustrada por Goya não corresponde à vulgata racionalista das Luzes, mas não chocaria seus representantes mais judiciosos, Hume, Rousseau ou Kant, sem falar dos
autores um pouco mais periféricos, que na mesma época elaboram teorias artísticas ou criam uma arte bastante próxima, por suas preocupações, daquela de Goya. É o caso do romance gótico na Inglaterra, praticado por Ann Radcliffe ou M. G. Lewis, ou da narrativa fantástica na França, com romancistas como Cazotte ou Potocki. A mesma utilização de motivos sobrenaturais ou diabólicos prosseguirá entre os autores românticos europeus, ao longo de toda a primeira metade do século XIX e além. A equivalência desses temas com as profundezas inconscientes do psiquismo humano irá tornar-se, no início do século XX, um dos dogmas da teoria psicanalítica. Sabe-se que Freud se interessou especificamente pelas imagens ou narrativas sobre demônios e fantasmas, desde a Idade Média até o século XVIII; nelas, vê a expressão de desejos proibidos ou os sintomas da doença mental. “Não nos espantemos se as neuroses desses tempos longínquos se apresentam sob uma vestimenta demonológica”, escreve, ou ainda: “Para nós, os demônios são os desejos maus, reprovados, decorrentes de impulsos repelidos, recalcados”. 3 Ele consagra um estudo específico à “possessão demoníaca” de um pintor, cem anos anterior a Goya, que representa cenas nas quais os seres humanos encontram o diabo… Goya não estaria em desacordo, mas sua interpretação do mundo dos demônios é mais aberta do que a de Freud. Ao decidir representar os recônditos da alma humana, e não só os corpos visíveis, Goya dá outro passo no caminho da subjetividade: como ninguém sabe exatamente a que se assemelham nossos demônios interiores, a liberdade individual daquele que os mostra aumenta em proporção. Todo conhecimento do mundo é colorido de subjetividade (nós só conhecemos as percepções das coisas, e não as coisas em si). Mas, agora que o cognoscível se ampliou para aquilo que é invisível, isto é, para nossa interioridade, podemos tornar visíveis as imagens que atravessam nossa mente, ainda que elas escapem ao controle da razão ou da opinião comum; pouco importa que provenham dos sonhos e das fantasias, ou ainda que assumam formas sobrenaturais. Mais do que uma possibilidade, essa é até uma necessidade: para melhor acessar a verdade dos seres, é preciso dispor-se a renunciar ao testemunho dos sentidos, a aceitar transformar ou deformar aquilo que se vê, para revelá-lo melhor. Em sua busca de verdade, a observação deve aliar-se à invenção. Desse modo, Goya rompe com a grande tradição da pintura europeia, aquela que dominou a história desta desde o início do século XV até o fim do século XVIII, e que a coloca a serviço da representação do mundo visível . Ele assume como tarefa — somente numa parte de sua obra, o que o leva a exercer doravante duas atividades paralelas — pôr em imagens precisamente a parte invisível do mundo, aquela que habita a imaginação dos homens. Nem por isso renuncia à razão: aspira ao entrelaçamento dessas duas vertentes do espírito, e não à hegemonia exclusiva de uma ou de outra.
O conjunto desses avanços do pensamento se esboça desde a grande enfermidade de Goya, no fim do século XVIII, quando vêm à luz os Caprichos. Os anos seguintes, em particular os da Guerra de Independência (1808-13), verão o aparecimento de um terceiro tema de meditação, ligado à vida em
sociedade, sobretudo em seus momentos críticos. Esse tema já não concerne ao conhecimento e à representação, nem à psicologia do indivíduo; trata-se agora de uma verdadeira antropologia, na qual irá enxertar-se uma visão política e moral — expressa, como antes, não por palavras, mas por alguns quadros, pelas gravuras dos Desastres , por várias séries de desenhos. Confrontado com a guerra contra um invasor estrangeiro, mas também entre compatriotas de convicções opostas, Goya faz uma descoberta: embora seja apresentada como destinada a levar a um objetivo desejável — a ordem, a liberdade —, a guerra logo atinge tal intensidade que os fins em cujo nome é conduzida se tornam fúteis, e até indiferentes. Quer as pessoas matem e torturem em nome de Deus, quer dos direitos humanos, da monarquia autoritária ou da democracia, o que importa é que matam e torturam. Ao longo do caminho, Goya evidenciou a violência de que os homens são capazes quando se acreditam numa situação de exceção. Dessa violência, ele repertoria as formas sem estabelecer hierarquia: a dos salteadores ladeia a dos representantes da Justiça, a da paz não difere muito daquela da guerra. O que Goya compreendeu ao mesmo tempo é que o valor dos ideais que as pessoas defendem não prejulga em nada os crimes que podem ser cometidos em nome deles. Ao longo dos anos precedentes, na época dos Caprichos, Goya, em concordância com seus amigos liberais e “esclarecidos”, fustiga os preconceitos e as superstições da população, a ignorância e a corrupção do clero, a avidez e o parasitismo dos ricos. Através dessa crítica da ordem existente, desenham-se por contraste os valores trazidos pelas Luzes: liberdade individual, igual dignidade de todos. Mas ocorre que esses são também os ideais invocados pelo invasor francês, e a prática da ocupação não é muito preferível à do regime que ela pretende corrigir. Nem por isso Goya se torna um defensor da ordem antiga. Sua sensibilidade às trevas que nos rodeiam nunca o faz pender para o lado dos obscurantistas: ele se dirige a outra parte. Não apenas constata, com decepção, que as práticas não estão à altura das teorias; mais profundamente, descobre que as duas ideologias, tradicional e moderna, que invocam a ordem divina ou a dos homens, se revelam igualmente insatisfatórias. É significativo que, ao longo das últimas décadas de sua vida criativa, Goya multiplique as imagens de duelos nos quais os dois adversários são perfeitamente semelhantes — por exemplo, a série de combates singulares no álbum F ( GW 1438 a 1443) ou o Duelo a bordoadas nas Pinturas Negras, ou ainda Vitória fácil , o espantoso desenho de seu último álbum, no qual os combatentes parecem gêmeos (H 38, fig. 39). Os inimigos formam imagens em espelho, as causas pelas quais eles acreditam lutar não bastam para distingui-los. Essa nova contribuição de Goya ao pensamento de seu tempo não se aparenta nem com o espírito de seus amigos liberais e “esclarecidos”, que combatem a ignorância e os preconceitos, nem mesmo com o dos pensadores mais profundos das Luzes, desiludidos quanto à possibilidade de curar definitivamente a sociedade de seus males. Tais reflexões não contradizem o pensamento iluminista, mas não procedem dele, pois encontram seu ponto de partida nesta constatação amarga: sejam quais forem os ideais professados, eles não impedem que as pessoas matem e torturem, os partidários dos valores republicanos não são muito melhores do que os defensores fanáticos da pátria e das tradições. Se quiséssemos procurar precursores de Goya nesse domínio, seria antes entre os grandes
dramaturgos e romancistas do passado, que foram sensíveis a essa dimensão trágica da condição humana. No entanto, é de fato Goya que coloca esse tema no centro de sua atenção, e vê-se que esse avanço do pensamento não podia se produzir mais cedo, pois corresponde àquele momento decisivo da modernidade que se seguiu à Revolução Francesa, com as guerras napoleônicas conduzidas sob o pretexto de combate pela liberdade e pela igualdade. Se Goya não teve muitos precursores nesse caminho, em contraposição conhecem-se numerosos sucessores dele, embora estes últimos nem sempre tenham consciência de tal filiação. Nesse sentido, suas revelações são proféticas. As guerras fratricidas que ensanguentaram a Europa durante os dois últimos séculos poderiam, no entanto, ter conduzido os autores dessas épocas a reconhecer-se no pensamento que os Desastres da guerra exprimem. Em particular, depois da Segunda Guerra Mundial e das revelações sobre as atrocidades cometidas nesse território, antigos deportados e antigos soldados quiseram por sua vez formular os princípios de um novo humanismo, um humanismo pós-Auschwitz e pós-Kolyma. “Eu temperei minha fé no inferno”, declara um personagem portador desse pensamento em Vida e destino, do escritor-soldado Vassili Grossman, romance que descreve a simetria desses inimigos mortais que são a Alemanha nazista e a Rússia comunista. É o mesmo personagem que alerta contra a promoção violenta do bem, tornado “um flagelo, um mal maior do que o mal”, ele que também já não conta senão com essas “pessoas simples que trazem no coração o amor por tudo o que é vivo”. 4 É descobrindo as angústias da resistência clandestina e o envilecimento sofrido pelos homens nos campos de concentração que, no outro lado da Europa, a etnóloga Germaine Tillion dá suas verdadeiras “aulas humanistas”. Reconhecendo-se nos dois adversários envolvidos na Guerra da Argélia, ela compreende a natureza dos “inimigos complementares”, diante dos quais se sente “fraternalmente solidária e responsável por todos os culpados dos dois lados”. E, como Goya, conclui que “as pátrias, os partidos, as causas sagradas não são eternos. O que é eterno (ou quase) é a pobre carne sofredora da humanidade”.5 Como ninguém antes dele, Goya soube mostrar e analisar a natureza da violência humana. Contudo, não se deve concluir daí que para ele os homens não passam de crimes e vícios. Existe toda uma vertente positiva do pensamento pictórico de Goya, que chamou menos a atenção geral, mas que nem por isso está menos presente ao longo de toda a sua obra, mesmo que deixemos de lado as imagens alegóricas que também se encontram nela, as da Verdade e da Justiça, da Liberdade e da Razão. Essa alternativa à violência assume duas grandes formas. Numa série de imagens, Goya mostra o crescimento do indivíduo na prática de seu ofício, seja o do camponês, seja o do artesão, o do ferreiro ou o da aguadeira. E a atitude do próprio Goya ante a profissão que exerce, a de pintor, confirma isso: ele encontra sua dignidade no próprio trabalho. Uma vida consagrada à interpretação e à representação do mundo merece respeito. Não podemos evitar nos impressionar com a abundância dessa criação que prossegue durante mais de sessenta anos e da qual nos chegaram quase 2 mil obras: pinturas murais, quadros, gravuras, litografias, desenhos… O desenho com a legenda Continuo aprendendo (fig. 31), realizado quando o pintor tem oitenta anos, assume aqui o valor de
manifesto: esse autorretrato simbólico afirma a obstinação do criador, mas também sua fé no caminho que ele escolheu e do qual nada pode desviá-lo. A outra fonte de alegria se encontra no simples fato da relação humana. Goya sabe (e mostra) que muitas vezes o vínculo entre indivíduos se torna o espaço onde se manifestam brutalidade, cupidez, hipocrisia; mas em nenhum caso pode-se deduzir de suas imagens que “o inferno são os outros”, ou que a interação com os outros deveria ser suspensa. Goya é um observador impiedoso do mundo humano, mas não um professor de desespero nem um niilista. Sabe captar as manifestações da sociabilidade feliz em todos os domínios — como no amor, que o desenho C 84, intitulado Nada nos importa, ilustra ao mostrar um casal trocando olhares ternos; ou no prazer sexual, evocado, por exemplo, pelas poses langorosas do homem e da mulher em Despertar ao ar livre (fig. 30); mas também em situações menos previsíveis, como a do feliz ancião num balanço, cujo impulso nada pode deter (fig. 42). O pensamento antropológico que vemos em ação nas imagens de Goya serve de fundamento às suas opções em matéria de política e de moral. Como o ser humano é em si mesmo plural, e até dilacerado entre aspirações contraditórias, nenhuma política dogmática pode lhe servir de maneira adequada. Os próprios fatos são sempre ambivalentes e as mudanças de perspectiva, frequentes. Os bons se tornam maus e, inversamente, as vítimas de ontem são os carrascos de hoje. Os diferentes valores aos quais os homens aspiram são forçosamente incompatíveis entre si; e mesmo os melhores ideais são traídos, quando se tenta impô-los pela força. Os projetos políticos ganham ao se manterem modestos e prudentes. Mais do que servir aos grandes ideais — pode-se pensar ao ver as imagens de Goya —, convém preocupar-se com os indivíduos, agora reconhecidos já não apenas como fonte do saber de tais projetos, mas também como objetivo de toda ação. Ao longo de seus anos de maturidade, o pintor decide viver no exílio — de início interior, em seguida exterior —, o que indica claramente que ele prefere a liberdade individual ao conforto que se pode sentir aderindo à opinião dominante e majoritária. Seus favores, portanto, dirigem-se aos regimes políticos liberais que permitem alcançar essa liberdade. Ao mesmo tempo, a relação de pessoa para pessoa se sobrepõe, em Goya, àquela que liga o indivíduo ao poder político. A amizade, o amor, a ajuda mútua, o cuidado com o outro são valores aos quais ele nunca renunciará. Não é por acaso que mostra com grande simpatia as vítimas, tanto as das forças naturais — doenças, incêndios, naufrágios — quanto as da avidez humana, do fanatismo, da estupidez, da violência. Entre elas figuram as mulheres estupradas por salteadores, as crianças privadas dos pais, os homens despedaçados por seus inimigos, os alvos da Inquisição, os executados, os torturados, os aprisionados: “por casar-se com quem ela quis”, “por não ter escrito para os imbecis”, “foi porque ela era liberal?” (fig. 19). A reação que essas vítimas suscitam, seja qual for a causa de seu sofrimento, é a compaixão. Esta última é exemplarmente encarnada pelo bom doutor Arrieta (il. 19), mas o pintor também a propõe aos seus espectadores sob esta forma rara: uma compaixão sem sentimentalismo, a qual, por sua vez, só pode provir dos indivíduos. Pouco importa o nome que lhe derem, amor de caridade, misericórdia, simpatia, pouco importa a moldura religiosa ou
filosófica que se invoque, essa “bondade sem pensamento”, como a denomina Grossman, bondade ao mesmo tempo impotente e invencível, é o que os seres humanos têm de mais precioso. Para conter os excessos da razão, nada melhor do que o amor dedicado a um indivíduo...
Mais uma vez, assim como em sua concepção da pintura, Goya inova, mas sem renunciar à moldura da qual partiu. Seu pensamento encontra o ponto de partida no espírito das Luzes que ele descobre ao seu redor; bem rapidamente, porém, ele lhe amplia os limites e descobre seus pontos cegos. No fundo, pouco importa a etiqueta que lhe aplicarão, dentro ou fora das Luzes: é uma visão do mundo da qual ele se impregnou, mas que não hesitou em transformar. Educado no espírito das Luzes, Goya soube explorar e revelar o que elas deixavam na sombra, as potências noturnas que dirigem a conduta dos homens, não menos do que a vontade e a razão destes. Contudo, ele não tem nada de um ideólogo, nem de um profeta. Não procura nos dar uma lição, e tampouco se pretende pregador ou educador. Assim como o sábio, o artista só deve deixar-se guiar por uma exigência — única, mas impiedosa: tender para o verdadeiro, tanto quanto isso lhe for humanamente possível. Goya não nos propõe remédios, limita-se a explorar a condição humana — o que já é suficientemente difícil! Artista, não busca impor , contenta-se com propor . Seus valores permanecem familiares: verdade, justiça, razão, liberdade. No entanto, ele sabe melhor do que seus contemporâneos quais armadilhas nos esperam nesse caminho. A “verdade viverá”, sim — mas desde que não esqueçamos os “monstros cruéis”!
Il. 1. O pedreiro ferido, 1786, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 266.
Il. 2. O conde de Floridablanca , 1783, MADRI, BANCO DE ESPAÑA, GW 203
Il. 3. Os cômicos ambulantes, 1793, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 325.
Il. 4. O assalto à diligência, 1793, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, BANCO INVERSIÓN-AGEPASSA), GW 327.
Il. 5. Interior de prisão , 1793, BARNARD CASTLE, BOWES MUSEUM, GW 929.
Il. 6. O pátio dos loucos, 1793, DALLAS, TEXAS, MEADOWS MUSEUM, GW 330.
Il. 7. O incêndio, 1793, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, BANCO INVERSIÓN-AGEPASSA), GW 329.
Il. 8. A lâmpada monstruosa, 1797-8, LONDRES, NATIONAL GALLERY, GW 663.
Il. 9. Exorcismo, 1797-8, MADRI, MUSEU LÁZARO GALDIANO, GW 661.
Il. 10. Hospital de pestíferos , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROMANA), GW 919.
Il. 11. Bandidos fuzilando seus prisioneiros , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROMANA), GW 918.
Il. 12. Bandido despindo uma mulher , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROMANA), GW 916.
Il. 13. Bandido assassinando uma mulher , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROMANA), GW 917.
Il. 14. Cena de rapto e assassinato , 1800-10, FRANKFURT, KUNST-INSTITUT, GW 930.
Il. 15. Fuzilamento num acampamento militar , 1800-10, COLEÇÃO PARTICULAR (MADRI, MARQUÊS DE LA ROMANA), GW 921.
Il. 16. Martírio, 1800-10, BESANÇON, MUSÉE DES BEAUX-ARTS, GW 923.
Il. 17. Casa dos loucos, 1814-6, MADRI, ACADEMIA SAN FERNANDO, GW 968.
Il. 18. O enterro da sardinha , 1814-6, MADRI, ACADEMIA SAN FERNANDO, GW 970.
Il. 19. Autorretrato com Arrieta, 1820, MINNEAPOLIS, MINN., FINE ARTS MUSEUM, GW 1629.
Il. 20. Cristo no jardim de Getsêmani, 1819, MADRI, ESCUELAS PÍAS, GW 1640.
Il. 21. Velho e demônio, 1820-3, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1627.
Il. 22. Saturno, 1820-3, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1624.
Il. 23. O cão, 1820-3, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1621.
Il. 24. A leiteira, 1826-7, MADRI, MUSEU DO PRADO, GW 1667.
Notas
GOYA PENSADOR 1. Matheron, p. 9; Yriarte, . 2. Ortega y Gasset, .
A ENTRADA NO MUNDO
os textos de Goya foram recolhidos em Diplomatorio. As cartas são identificadas pela data, que está entre colchetes quando é acrescida pelos editores. 1.Todos
UMA TEORIA DA ARTE 1.Matheron, pp. 29-30, 59-60; Yriarte, p. 5.
A DOENÇA E SUAS CONSEQUÊNCIAS 1.Reproduzido em Tomlinson, p. 307.
M ÁSCARAS, CARICATURAS E BRUXAS 1.Malraux, p. 110. 2. Potocki, pp. 117, 72, 124. 3. Baudelaire, pp. 567-70. 4. Hofmann, “Bosco y Goya”; Shakespeare, All’s well that ends well , II, 3. 5. Hegel, pp. 9, 24, 149.
A INTERPRETAÇÃO DOS CAPRICHOS 1.Goya, Les Caprices, pp. 31-2. 2. Tomás de Kempis, p. 42. 3. Correspondance, t. II, pp. 401-3.
another. TORNAR VISÍVEL O INVISÍVEL 1.Baudelaire, pp. 568-9. 2. Ortega y Gasset, p. 281. 3. Tsvetáieva, t. V, p. 284.
Esse trecho é citado por Werner Hofmann em seu livro sobre Goya, To every story there belongs
A INVASÃO NAPOLEÔNICA 1.Carr, p. 107. 2. Apud Hughes, pp. 263-4. 3. Xénie apprivoisée , apud J. Le Rider, “Préface”. In: Goethe, Écrits autobiographiques , p. LXXII. 4. Matheron, p. 83. 5. Montaigne, III, 8. 6. Goethe, Hermann et Dorothée , pp. 124, 127. 7. Malraux, p. 110. 8. Goethe, Conversations avec Eckermann , pp. 550-1.
OS ESTRAGOS DA GUERRA 1.Lafuente Ferrari, Goya, pp. XIV-XV. 2. Apud Perez Sanchez, p. 201. 3. Tsvetáieva, t. I, p. 576.
HOMICÍDIOS, ESTUPROS, SALTEADORES, SOLDADOS [pp. 144-53] 1.Rousseau, p. 175. 2. Erasmo, Éloge de la f olie, LIX. In: Œuvres
choisies, pp. 203-4.
OS DESASTRES DA PAZ 1.Smith, III, 2, p. 130. 2. Potocki, pp. 124-5. 3. Matheron, p. 6.
ESPERANÇAS E ALERTAS 1.Apud Hughes, p. 324. 2. Balzac, pp. 646-52.
OS DOIS REGIMES DE PINTURA 1.Bonnefoy, p. 70. 2. Gassier, Les Dessins de Goya, t. II, p. 54.
SEGUNDA DOENÇA, PINTU RAS NEGRAS, LOUCURAS 1.Hofmann, To every 2. Gary, pp. 17-9.
story there belongs another , pp. 133, 318.
UMA NOVA PARTIDA 1. Apud Matheron, p. 93. 2. Id., ibid. 3. Id., ibid., pp. 97-8. 4. Carta publicada por E. Young.
A HERANÇA DE GO YA
1.Licht, p. 105. 2. Le Monde, 14 de abril de 2010. 3. Freud, “Une névrose démoniaque au XVIIe siècle”. In: Essais de psychanalyse appliquée, pp. 211-2. 4. Grossman, pp. 346, 341, 344. 5. Tillion, pp. 424, 210.
Bibliografia
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Goya, 1867. As obras de Fred Licht e Werner Hofmann me foram particularmente úteis. YRIARTE, Charles.
Outras obras BALZAC, Honoré de. “Lettre à M. Hippolyte de Castille”, Œuvres complètes, t. XL (Œuvres diverses, t. III). Paris: Conard, 1940. BAUDELAIRE, Charles. “Quelques caricaturistes étrangers”, Œuvres complètes . Paris: Gallimard, col. Bibliothèque de la Pléiade, t. II, 1976. BELL, David A. La Première Guerre totale. Seyssel: Champ Vallon, 2010. [ Primeira guerra total . Rio de Janeiro: Record, 2012.] CARR , Raymond. Spain 1808-1975. Oxford: Clarendon Press, 1982. ERASMO. Éloge de la folie, LIX. In: Œuvres choisies. Paris: LGF, 1991. [ Elogio da loucura . Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1999.] FREUD, Sigmund. Essais de psychanalyse appliquée . Paris: Gallimard, 1971 (1 a ed., 1933). GARY, Romain. La Promesse de l’aube . Paris: Gallimard, 1960, reed. 1992. [ Promessa ao amanhecer . São Paulo: Estação Liberdade, 2008.] GOETHE, Johann Wolfgang von. Conversations avec Eckermann. Paris: Gallimard, 1988. ______. Écrits autobiographiques 1789-1815. Paris: Bartillat, 2001. ______. Hermann et Dorothée . Paris: Aubier, 1991. GOETHE-SCHILLER . Correspondance 1794-1805. Paris: Gallimard, 1994, 2 vols. GROSSMAN, Vassili. Œuvres. Paris: Robert Laffont, 2006. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Esthétique, l’art romantique . Paris: Aubier-Montaigne, 1964. HERR , Richard. The eighteenth-century Revolution in Spain . Princeton: Princeton University Press, 1958. HOFMANN, Werner. Une Époque en rupture, 1750-1830 . Paris: Gallimard, 1995. KEMPIS, Tomás de. L’Imitation de Jésus-Christ . Paris: Le Cerf, 1989. [ Imitação de Cristo. São Paulo: Ed. Hedra, 2008.] MONTAIGNE, Michel de. Essais. Paris: Arléa, 1992. [ Os ensaios. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Penguin-Companhia, 2010.] POTOCKI, Jean. Manuscrit trouvé à Saragosse (versão de 1810). Paris: Flammarion, 2008. ROUSSEAU , Jean-Jacques. Discours sur l’origine de l’inégalité, Œuvres complètes , t. III. Paris: Gallimard, col. Bibliothèque de la Pléiade, 1964. [ Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens . Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.] SHAKESPEARE, William. The Norton Shak espeare. Nova York, Londres: W.W. Norton & Company, 1997. SMITH, Adam. The theory of moral sentiments. Oxford: Oxford University Press, 1976. [ Teoria dos sentimentos morais . Tradução Lya Luft. São Paulo: Martins Fontes, 1999.] STAROBINSKI, Jean. L’Invention de la liberté. Les emblèmes de la raison . Paris: Gallimard, 2006. [ A invenção da liberdade . Tradução Fulvia Maria Luiza Moretto. São Paulo: Editora Unesp, 1994.] TILLION , Germaine. Combats de guerre et de paix . Paris: Ed. du Seuil, 2007. TSVETÁIEVA , Marina. Sobranie sochinenij . Moscou: Ellis Luck, 1994-5, 7 vols.
Créditos das imagens
IMAGENS DE MIOLO
Os títulos que não foram dados por Goya estão entre colchetes. A sigla G corresponde a “gravura”. Fig. 1: Pobre e nua vai a filosofia, E 28, GW 1398, New York, Collection Michael and Judy Steinhardt, New York/ G&K Framing Fig. 2: Sonho. Da mentira e da inconstância , GW 619, G/ Photoaisa/ Keystone Brasil Fig. 3: Caricatura alegre, B 63, GW 423, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 4: Bruxas prestes a voar , B 56, GW 416, New York, Ian Woodner Family Collection Fig. 5: Proclamação de bruxas , GW 626, Madri, Nacional do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 6: O sonho da razão, GW 538, Madri, Museu do Prado / Album/ Oronoz Fig. 7: Michelangelo, O sonho, Londres, The Courtauld Gallery/ © Samuel Courtauld Trust/ The Bridgeman Art Library Fig. 8: “Aonde vai a mamãe?”, Capricho 65, GW 581, G Fig. 9: “Boa viagem”, Capricho 64, GW 579, G/ Album/ Oronoz Fig. 10: Visão burlesca. A mesma noite 4 , C 42, GW 1280, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 11: “Enterrá-los e calar-se”, Desastres 18 , GW 1020, G, Washington D.C., National Gallery of Art, Coleção Rosenwald, Conselho de Curadores Fig. 12: “Com ou sem razão”, Desastres 2 , GW 995, G/ Album/ Oronoz Fig. 13: “A mesma coisa”, Desastres 3 , GW 996, G, Madri, DR/ Museu do Prado Fig. 14: “Também não”, Desastres 10, GW 1006, G, Madri, DR/ Museu do Prado Fig. 15: “Mãe infeliz!”, Desastres 50, GW 1074, G/ Oronoz Fig. 16: “Aqui tampouco”, Desastres 36 , GW 1051, G/ Album/ akg-images Fig. 17: “Os estragos da guerra”, Desastres 30, GW 1044, G Fig. 18: Será a mesma coisa, GW 1028, Madri, Museu do Prado / Album/ akg-images Fig. 19: Foi porque ela era liberal? , C 98, GW 1334, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 20: Que crueldade!, C 108, GW 1344, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 21: Muitos acabaram assim, C 91. GW 1327, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 22: “Nada. Isto o dirá”, Desastres 69 , GW 1112, G, Washington D.C., National Gallery of Art, Coleção Rosenwald, Conselho de Curadores Fig. 23: “Que loucura!”, Desastres 68, GW 1110, G Fig. 24: Tomara que dure a alegria , C 116, GW 1351, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 25: O que deseja este grande f antasma? , C 123, GW 1358, Madri, Museu do Prado Fig. 26: “Monstro cruel!”, Desastres 81, GW 1136, G Fig. 27: Trabalhos úteis, E 37, GW 1406, coleção particular/ © Collection archives GB Fig. 28: Regozijo, D 4, GW 1370, Nova York, Hispanic Society/ © The Hispanic Society of America Fig. 29: Pesadelo, E 20, GW 1393, Nova York, The Pierpont Morgan Library. Gift of Mr. & Mrs. Richard J. Bernhard, 1959/ © The Pierpoint Morgan Library/ Art Resource, NY Fig. 30: [ Despertar ao ar livre], F 71, GW 1490, Nova York, The Metropolitan Museum of Art/ © The Metropolitan Museum of Art/ Art Resource, NY Fig. 31: Continuo aprendendo, G 54, GW 1758, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 32: [Saturno], GW 635, Madri, Museu do Prado/ © AISA/ The Bridgeman Art Library Fig. 33: [“Loucura desordenada”], Disparate 7 , GW 1581, G, Madri, Museu do Prado Fig. 34: [ Briga conjugal ], F 18, GW 1446, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 35: Mulher má, Db, GW 1379, Paris, Museu do Louvre/ © Photo12.com/ Oronoz Fig. 36: [“Loucura fúnebre”], Disparate 18 GW 1600, G
Fig. 37: [O caminho do inferno ], GW 1647, Madri, Biblioteca Nacional Fig. 38: Grande disparate, G 9, GW 1718, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 39: Vitória fácil , H 38, GW 1800, Madri, Museu do Prado/ Album/ Oronoz Fig. 40: [O idiota], H 60, GW 1822, São Petersburgo, Museu do Ermitage/ © Superstock Fineart / Other Images Fig. 41: [ Fantasma dançando], H 61, GW 1818, Madri, Museu do Prado/ © Photo12.com/ Oronoz Fig. 42: [Velho no balanço ], H 58, GW 1816, Nova York, Hispanic Society/ © The Hispanic Society of America, Nova York CADERNO DE FOTOS
Il. 1 O pedreiro ferido/ © Photo12.com/ Oronoz Il. 2 O conde de Floridablanca / Album/ Joseph Martin/ Banco Urquijo, Madri Il. 3 Os cômicos ambulantes/ Album/ akg-images Il. 4 O assalto à diligência/ Album/ Oronoz Il. 5 Interior de prisão / The Bridgeman Art Library Il. 6 O pátio dos loucos/ Oronoz Il. 7 O incêndio/ Album/ Oronoz Il. 8 A lâmpada monstruosa/ National Gallery, Londres Il. 9 Exorcismo/ Album/ Oronoz Il. 10 Hospital de pestíferos / © Photo12.com/ Oronoz Il. 11 Bandidos fuzilando seus prisioneiros / Album/ Oronoz Il. 12 Bandido despindo uma mulher / Album/ Oronoz Il. 13 Bandido assassinando uma mulher / Album/ Oronoz Il. 14 Cena de rapto e assassinato (detalhe)/ The Bridgeman Art Library Il. 15 Fuzilamento num acampamento militar / Album/ Oronoz Il. 16 Martírio/ Charles Choffet Il. 17 Casa dos loucos/ Madri, Academia San Fernando Il. 18 O enterro da sardinha / Album/ Oronoz Il. 19 Autorretrato com Arrieta/ The Ethel Morrison Van Derlip Fund Il. 20 Cristo no jardim de Getsêmani/ Album/ Oronoz Il. 21 Velho e demônio/ Album/ Erich Lessing Il. 22 Saturno/ Album/ Joseph Martin Il. 23 O cão/ Madri, DR/ Museu do Prado Il. 24 A leiteira/ Madri, DR/ Museu do Prado
Índice das obras de Goya
O número que figura no início de cada item é o do catálogo Gassier-Wilson. Os títulos das gravuras e dos desenhos são de Goya, à exceção daqueles que figuram entre colchetes, ao passo que nenhum dos títulos dos quadros é de autoria de Goya. O número em negrito remete à reprodução da imagem ao longo do texto. A ENTRADA NO MUNDO, 1776-92
122. [O garroteado] (1778-80): 163 152. Bandidos assaltando uma diligência (1776-8): 44 176. Cristo na cruz (1780): 21 203. O conde de Floridablanca e Goya (1783): il. 2, 20 243. São Francisco Borgia e o moribundo impenitente (1788): 68, 197, 204 244. São Francisco Borgia e o moribundo impenitente , esboço (1788): 68 251. O assalto à diligência (1786-7): 45 260. O pedreiro bêbado (1786): 19 265. O inverno (1786-7): 19 266. O pedreiro ferido (1786-7): il. 1, 19, 50, 104 267. Os pobres na fonte (1786-7): 19 272. A pradaria de San Isidro (1788): 214 301. O fantoche (1791-2): 20 302. O casamento (1791-2): 207 304. Os pequenos gigantes (1791-2): 20 OS QUADROS DE 1793-4
317. A escolha dos touros : 42 322. A morte do picador : 42 323. A morte do touro : 42, 185 324. O touro removido pelas mulas: 42, 185 325. Os cômicos ambulantes: il. 3, 42-3 326. O vendedor de marionetes: 42-3 327. O assalto à diligência: il. 4, 42, 46, 145-6 328. O naufrágio: 42, 47 329. O incêndio: il. 7, 42, 47 330. O pátio dos loucos: il. 6, 41, 45, 65, 145, 185 COM A FAMÍLIA DE ALBA
350. O duque de Alba (1795): 52 351. A duquesa de Alba (1795): 52 352. A duquesa de Alba e sua camareira (1795): 52 355. A duquesa de Alba (1797): 54, 55-7
ÁLBUM A, 1796-7
358. [ A duquesa de Alba recolhendo seus cabelos ]: 53 360. [ A duquesa de Alba com María de la Luz no colo ]: 53 366. [ Duas jovens nuas numa cama ]: 194 374. [ A duquesa de Alba escrevendo ]: 53 383. [ Duas mulheres enlaçando-se]: 194 ÁLBUM B, 1796-7
402. [ Rapaz espancando…]: 212 415. Máscaras cruéis: 61 416. Bruxas prestes a voar : 63, 66 417. A mãe “Fole” atiça o fogo : 64 418. Ela pede explicações ao marido : 62 423. Caricatura alegre: 58 , 62, 90 425. Cantam para aquele que a compôs : 62 427. Embriagam-se: 62 428. Cada palavra é uma mentira: 62 432. Mascaradas de jumentos : 61 443. É verão, eles tomam a fresca…: 60 CAPRICHOS, 1797-8
451. Capricho 1: 87, 92 454. Capricho 2: 93, 95 455. Capricho 3: 95 461. Capricho 6 : 87, 93 476. Capricho 13: 90, 95 477. Sonho 25, desenho para Capricho 13: 90, 95 489. Capricho 19: 54 499. Capricho 24: 93 536. Capricho 43: 76, 80, 87, 92, 178, 197 537. Sonho 1, desenho para Capricho 43: 82 538. Desenho para Capricho 43: 83 , 84, 219 549. Capricho 49: 95 551. Capricho 50: 81 555. Capricho 52: 95 561. Capricho 55: 103 573. Capricho 61: 54-5 575. Capricho 62: 95 579. Capricho 64: 60, 96, 97 581. Capricho 65: 91 , 96, 108, 149 589. Capricho 69: 64 591. Capricho 70: 63 602. Capricho 75: 95, 210 613. Capricho 80: 88, 95 619. Sonho. Da mentira e da inconstância : 55, 56 620. Desenho para 619: 55 NA ÉPOCA DOS CAPRICHO S, 1797-8
623. A enfermidade da razão: 81, 88 626. Proclamação de bruxas : 64, 67
635. [Saturno devorando suas crias ]: 207, 209 636. [ Judite moderna]: 207 641. [Voo de bruxas]: 108 648. [ A mulher-serpente]: 55 656. A conf iança : 194 QUADROS DE BRUXARIA, 1797-8
659. Voo de bruxos: 65 660. Aquelarre (ou O sabá das bruxas): 65, 214 661. Exorcismo: il. 9, 68, 70, 72, 192, 214 662. A cozinha dos bruxos: 68 663. A lâmpada monstruosa (ou O enfeitiçado): il. 8, 65, 70 664. O convidado de pedra : 65 QUADROS DOS ANOS 1798-1812
675. Gaspar Melchior de Jovellanos (1798): 102 692. O comércio (1797-1800): 102 696. Esboço para A Verdade, o Tempo e a História (1797-1800): 82 717-35. Afrescos de San Antonio de la Florida (1798): 101 737. Esboço para A detenção de Cristo (1798): 101-2, 156 743. La maja desnuda (1798-1800): 102, 157 744. La maja vestida (1800-5): 103 759. Projeto de mausoléu para a duquesa de Alba (1802-3): 57 783. A família de Carlos IX (1800): 101 796. Manuel Godoy (1801): 101 864-9. A captura do bandido El Maragato (1806-7): 145 871. Os bêbados (1806-10): 103 874. Alegoria da cidade de Madri (1810): 118 903-13. Naturezas-mortas (1808-12): 104 915. Interior de prisão : 145 916. Bandido despindo uma mulher : il. 12, 146 917. Bandido assassinando uma mulher : il. 13, 146 918. Bandidos fuzilando seus prisioneiros : il. 11, 146 919. Hospital de pestíferos: il. 10, 145, 185 921. Fuzilamento num acampamento militar : il. 15, 148, 155 922. Martírio I : 149 923. Martírio II : il. 16, 149 924. Selvagens assassinando uma mulher : 149 929. Interior de prisão (data, na realidade, de 1793-4): il. 5, 42, 45-6, 145 930. Cena de rapto e assassinato: il. 14, 147 931. Mulheres atacadas por soldados : 146-7 932. O frade enforcado: 147 933. Cena de prisão: 145 946. O colosso: 150, 178 948. Cena de guerra: 147 958. Maja e Celestina na sacada : 103 960. Majas na sacada: 103 961. As velhas, ou O tempo (1808-12): 103, 216 963. A aguadeira (1808-12): 104 964. O amolador (1808-12): 104 IMAGENS DO PERÍODO 1812-20
965. A forja (1812-6): 184 966. Cena de Inquisição: 184 967. Procissão de flagelantes: 184 968. Casa dos loucos: il. 17, 185 969. Corrida de touros numa aldeia : 185 970. O enterro da sardinha : il. 18, 186, 203, 214 971. Desenho preparatório para O enterro da sardinha : 186 982. Dois de maio de 1808 (1814): 155-6 984. Três de maio de 1808 (1814): 147, 155-6 985. O colosso (1810-8): 150 986. A detenção é tão bárbara quanto o crime (1810-20): 166 988. É possível controlar um prisioneiro… (1810-20): 166 990. Que não o executem imediatamente… (1810-20): 166 DESASTRES DA GUERRA, 1810-20
993. Desastres 1: 126-7, 173, 197 995. Desastres 2: 129, 130 , 134, 139, 155-6 996. Desastres 3: 129, 131 997. Desastres 4: 132 998. Desastres 5: 132 999. Desastres 6 : 132-3 1000. Desastres 7 : 131, 133 1005. Desastres 9 : 133 1006. Desastres 10: 133, 135 1007. Desastres 11: 133, 147 1009. Desastres 12: 134 1011. Desastres 13: 133 1017. Desastres 16 : 130,134 1020. Desastres 18: 124 , 134 1022. Desastres 19: 133 1028. Desenho para Desastres 21: 141, 143 1033. Desastres 24: 134 1035. Desastres 25: 134 1037. Desastres 26 : 137, 148, 163 1038. Desastres 27 : 140 1040. Desastres 28: 132 1042. Desastres 29: 132 1044. Desastres 30: 141, 142 1047. Desastres 32: 129 1048. Desastres 33: 135 1049. Desastres 34: 163 1050. Desastres 35: 129, 163 1051. Desastres 36 : 130, 137, 138 1052. Desastres 37 : 136 1055. Desastres 39: 135, 149 1056. Desastres 40: 178 1058. Desastres 41: 134, 148 1060. Desastres 42: 134 1062. Desastres 43: 134 1064. Desastres 44: 128, 134, 148 1066. Desastres 45: 128, 134 1074. Desastres 50: 135, 136 1094. Desastres 60: 134 1104. Desastres 65: 164 1106. Desastres 66 : 164
1108. Desastres 67 : 164 1110. Desastres 68: 168, 169 1111. Desenho para Desastres 68: 168 1112. Desastres 69: 108, 166, 167 , 238 1114. Desastres 70: 164 1116. Desastres 71: 164 1122. Desastres 74: 164 1124. Desastres 75: 164 1128. Desastres 77 : 178 1132. Desastres 79: 176 1134. Desastres 80: 176 1136. Desastres 81: 178, 181 1138. Desastres 82: 176 1148. Cena de guerra, 1810-2: 141 1149-1218. Tauromaquia, 1815-6: 185 ÁLBUM C, 1808-14
1251. Boa mulher, ao que parece : 94 1252. Abraço paterno: 94 1270. Que vingança horrível!: 106 1277-85. Visões burlescas: 108 1280. Quarta visão da mesma noite: 107 , 108 1304. Há muitas dessas coisas…: 106 1307. Elas não dizem nada : 108 1320. Nada nos importa: 106, 253 1323. Colocaram-lhe uma mordaça…: 158 1326. Porque ele não tinha pernas : 158 1327. Muitos acabaram assim: 163, 165 1329. Por casar-se com quem ela quis: 159, 254 1332. Por não ter escrito para os imbecis : 160, 254 1334. Foi porque ela era liberal? : 153 , 159, 254 1337. Não se consegue olhar : 160 1339. É melhor morrer : 159 1344. Que crueldade!: 160, 162 1346-9. Álbum C, 111-4, 173 1350. Divina Liberdade: 173 1351. Tomara que dure a alegria : 170 , 174 1352. A luz nasce das trevas: 173 1353. O triunfo da Justiça: 174 1357. Divina razão…: 175-6 1358. O que desej a este grande f antasma? : 175, 177 1360. Quantas alnas?: 175 1361. Sem camisão eles são felizes: 175 ÁLBUM D, 1816-20
1370. Regozijo: 190, 191 , 192 1374. Sonho de uma bruxa boa : 192 1376. Pesadelo: 192 1378. Sonho de palmada : 192 1379. Mulher má: 212, 213 ÁLBUM E, 1816-20
1387. Não enchas tanto o cesto!: 188 1389. A severidade nem sempre é boa : 188 1390. Sabes muito…: 224 1393. Pesadelo: 192, 193 1398. Pobre e nua vai a filosofia: 10 , 12, 190 1402. A resignação: 190 1406. Trabalhos úteis: 188, 189 1410. Deus nos livre de uma sorte tão penosa : 194 1412. Pensa bem: 190 1415. Acordo completo: 188 1417. O trabalho sempre recompensa: 190 1419. Atenção aos conselhos: 194 1421. O cego laborioso: 188 1426. [ Duas mulheres se enlaçam]: 194 1428. [O mingau]: 188 ÁLBUM F, 1816-20
1438-43. [ Duelos]: 250 1444. O miserável de Ybides: 194 1445. [ No mercado]: 190 1446. Briga conjugal : 211 , 212 1470. A Verdade assediada pelas forças do mal : 176 1477. [Suplício da polé]: 161 1490. [ Despertar ao ar livre ]: 192, 195 , 253 1493. [ A palmada]: 194 1503. [ Mulher assassinando um homem adormecido ]: 212 1508. [ Mulher estendendo um copo ]: 188 PINTURAS DOS ANOS 1814-8
1534. Assembleia da junta das Filipinas (1815): 183 1540. Fernando VII com manto real (1814): 182 1551. Autorretrato (1815): 182 1569. Santas Justina e Rufina (1817): 184 DISPARATES, 1818-3
1581. Loucura desordenada : fig. 33, 210 1600. Loucura f únebre : 218, 219 1604. Loucura de bestas: 225 PINTURAS NEGRAS, 1820-3
1615. As Parcas: 216 1616. Duelo a bordoadas: 216, 250 1617. A leitura: 215 1618. A masturbação (?): 215 1619. O passeio do Santo Ofício : 215 1620. Asmodeia: 216 1621. O cão: il. 23 , 217, 242 1622. Leocadia: 205, 218, 224 1623. O grande bode (ou O sabá das bruxas): 205, 212, 214 1624. Saturno: il. 22, 207 1625. Judite e Holofernes: 205
1626. A peregrinação a San Isidro : 205, 212 1627. Velho e demônio: il. 21, 206 1627a. Dois velhos comendo : 216 IMAGENS DOS ANOS 1818-27
1629. Autorretrato com Arrieta (1820): il. 19, 196, 197, 199, 201, 241, 254 1638. A última comunhão de são José de Calasanz (1819): 197 1640. Cristo no jardim de Getsêmani (1819): il. 20, 156, 198 1647. [O caminho do inferno ] (1818-23): Fig. 37, 220 1667. A leiteira (1825-7): il. 24, 224, 230 1685. Frade falando com uma velha (1824-5): 223 1699. A leitura (1819-25): 230 ÁLBUM G, 1824-8
1715. O cão voador : 225 1718. Grande disparate: 225, 227 1720. Sonho mau: 225 1721. Marido mau: 225 1723. União natural e segura…: 226 1738. Louco furioso: 228 1745. Louco furioso: 228 1751. Intrigas de suas vidas: 194 1752. Crônica do campo: 228 1753. Castigo francês: 226 1754. Castigo francês: 226 1758. Continuo aprendendo: 206, 208 , 224, 252 ÁLBUM H, 1824-8
1790. [ Irmão converso patinando ]: 234 1794. [ Frade flutuando nos ares ]: 234 1796. [ Homem assassinando um frade]: 228 1797. [ Duas velhas comadres dançantes ]: 234 1800. [Vitória fácil ]: 228, 229 , 250 1815. [O diabo os une]: 226 1816. [Velho no balanço ]: 233 , 234, 253 1818. [ Fantasma dançando com castanholas ]: 232 , 234 1822. [O idiota]: 228, 231
TZVETAN TODOROV nasceu
em Sofia, Bulgária, em 1939. Estudou filologia na Universidade de Sofia. Em 1963, emigrou para Paris. Em sua tese de doutorado, Literatura e significação (1967), foi orientado por Roland Barthes. É pesquisador do Centre national de la recherche scientifique (CNRS) desde 1968. Foi professor visitante das universidades Yale, Harvard, Columbia e Berkeley. Publicou, entre muitos outros, A gramática do Decameron (1969), A conquista da América (1982) e Os inimigos íntimos da democracia (2012), este último pela Companhia das Letras.
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