Thomas Szasz-Ideologia e doença mental

May 2, 2017 | Author: Ariane Ewald | Category: N/A
Share Embed Donate


Short Description

Introdução e dois capítulos do livro de Thomas S. Szazs, Ideologia e Doença Mental....

Description

S. SZASZ

THOMAS

professor de psiquiatria da Universidade de Nova York, em Syracuse

PSYCHE

. ideologia e doenca mental ENSAIOS SOBRE A DESUMANIZACÃO PSIQUIÁTRICA DO HOMEM

Tradução JosÉ

SANZ

Segunda

Z.AHAR RIO

de

edição

EDITORES DE

JANEIRO

1. INTRODUÇÃO Dentre os vanos absurdos ditos por Rousseau, um dos mais insensatos. e também o mais famoso. diz: "O homem nasce livre e, no entanto, está sempre aprisionado". Essa frase presunçosa obscurece a natureza da liberdade. Porque, se a liberdade é a capacidade de escolha livre de coerções, então o homem nasce aprisionado. E o desafio da vida é a libertação. A capacidade do indivíduo de fazer escolhas livre de coerções depende de suas condições internas e externas. Suas condições internas, isto é, seu caráter, personalidade ou mentalidade - compreendendo suas aspirações e desejos, bem como suas aversões e autodisciplina - o impulsionam a agir de várias maneiras. ou o impedem. Suas condi ões externas, isto é, sua cons-~ tituição biológica e seu ambiente físico e social - comprendendo àS potencialidades de seu corRo, e õ clima, cultura, leis e tecnologta e sua sociedade - o estimulam a agir de determinadas m eiras e ümrbem-a agtr e outras. Essas condições configuram definem a extensão e qualidade das opções de um indivi.diÍo- Em geral, quanto mais controle o homem adquire sobre suas condições internas e externas, tanto mais livre se torna, enquanto que o fracasso na aquisição de tal controle, ou a perda do mesmo, o escraviza. Há, contudo, uma limitação importante à liberdade do homem: a liberdade dos outros homens. As condições externas que o homem procura controlar incluem outras pessoas e 'instituições sociais, formando uma rede complexa de interações e interdependências. Com freqüência, a única maneira de uma pessoa aumentar suas possibilidades de livre opção é pela redução das de seus semelhantes. Isso é verdadeiro, mesmo que o indivíduo aspire somente ao autocontrole e deixe os outros em paz: sua autodisciplina tornará mais difícil aos outros, se não impossível, controlá-Ia e dominá-lo. Pior ainda, se o indivíduo aspira contro-

e

26

IDEOLOGIA

E DOENÇA

MENTAL

se refere a ocorrências físico-químicas que não são afetadas ao torn.ar-se. pÚ,bl~cas,o te:mo "doença mental" refere-se a eventos Só',~ ClO-P~ICO,logICOS, crucialmente afetados quando tornados públicos. • '§t O psiquíatra desse modo não pode, e não consegue, ficar alheio à ~. pe~soa que, observa, con;o pode fazer e o faz o patologista. O psi. ~ qUlatr~ esta comprometido com um quadro daquilo que considera \) ~ a realidade e com o que pensa que a sociedade considera real' ~ observa e julga o comportamento do paciente à luz dessas cren~ ça~~ A simples n~ção. de "sintoma mental" ou de "doença menta.!: , desse modo, .ImplIca uma comparação dissimulada e freqíientem.ente em conflito, en~re observador e observado, psiquiatra e paciente, Apesar de ÓbVlO,esse fato precisa ser reenfatizado como no caso de alguém que, como eu, deseja contra-atacar a tendência prevalente de negar os aspectos morais da Psiquiatria e substituílos por conceitos. e intervenções médicas pretensamente isentas. . A Psicoterapia é, pois, praticada como se não acarretasse nada além de restaurar o paciente de um estado de enfermidade mental .para um estado de sanidade mental. Enquanto for geralmente aceI~o que a d?ença mental tem algo a ver com as relações sociais ..ou interpessoais do homem, paradoxalmente se sustentará que os problemas de v~lor;s - isto é! da Ética - não aparecem nesse processo. O propno Freud fOI longe o suficiente para afirmar' "Considero. a. ~tic:'l ~Jo:n0já si~tematizada. Na realidade não fi; nada de .ngn~f~catwo . 6 Essa e uma afirmação assombrosa em particular, para alguém que estudou o homem como um se; social tão profundamente quanto Freud. Menciono-a aqui para mostrar como a noção 'de "doença" - no caso da Psicanálise "Psicopat?lo.gia", ou "doen~a mental" - foi usada por Freud, e pela maioria de seus seguidores, como meio de classificar certos tipos d; comportamento humano, como que dentro do âmbito da Medicma e, desse modo, por decreto, fora do domínio da Ética, No enta~to, de ~ato. permanece que, em certo sentido, grande parte da Psicoterapia gIra. em torno d.a elucidação e avaliação de objetivos e valores - muitos dos quais podem ser mutuamente contraditórios -, e os meios pelos quais podem ser melhor harmonizados concretizados ou abandonados. ' , . Devido à longa ~éri.e de valores humanos e de métodos pelos quais podem ser atingidos - e porque muitos dos fins e meios são persistentemente desconhecidos -, os confitos de valores são a principal fonte de conflitos nas reia ões humanas. De fato dizer que as re ações l1ümanas a to os os níveis - da mãe à criança, 16 I consider ethics to be taken for granted. Actually I have never dane a mean thing. (N. do T.)

o

MITO

DA DOENÇA

MENTAL

27

do marido à es )osa, de nação a na ão - são carre adas de depressão, tensão e desarmonia e, maIS uma vez, tornar o o VIOex ~E no- entanto, que po e ser o VIOpo e também ser parcamente compreendido. . E isso é, creio, o que ocorre nesse caso, pois a mim parece que, em nossas teorias científicas de com ortal}1ento,falhamos em aceitar o simples fato de que as relações manas são inerentemente carregadas de dificuldades e que torná-Ias, mesmo relativamente, harmoniosas re uer muita aciência e' traba ho ár uo. uglro que a I era e oença mental esteja ago'ra sendo trabalhada para obscurecer certas dificuldades que no presente possam ser inerentes - não que sejam irremovíveis - às relações sociais das pessoas. Se isso é verdade, o conceito funciona como um disfarce: em vez de chamar atenção para necessidades, aspirações e valores humanos conflitantes, o conceito de doença mental produz uma "coisa" moral e impessoal --: uma "doença" - como uma explicação para problemas existenciais, Com relação a isto podemos nos lembrar que, não faz muito tempo, os diabos e as feiticeiras eram responsáveis' pelos problemas na vida elo homem. A crença na doença mental, como algo diferente do problema do homem em conviver com seus semelhantes, é a própria herdeira da crença em demônios e feitiçaria. Assim, a doença mental existe ou é "real" exatamente no mesmo sentido no qual as feiticeiras existiam ou eram "reais",

o

hU-/

VI Enquanto sustento que as doenças mentais não existem, obviamente não sugiro ou quero dizer que as ocorrências sociais e psicológicas às quais este rótulo é fixado também não existam. Tan~ to quanto os problemas pessoais e sociais que se tinha na Idade . Média, os problemas humanos contemporâneos são suficientemente reais. O que me preocupa são os rótulos que lhes damos e, tendo-lhes rotulado, o que fazer a respeito. O conceito demonológico dos problemas existenciais deram lugar à terapia baseada em linhas teológicas. Hoje, a crença em doença mental implica _ ou melhor, requer - uma terapia baseada em linhas médicas ou psicoterápicas. Não me proponho aqui a oferecer uma nova concepção de "doença psiquiátrica" ou uma nova forma de "terapia". Meu objetivo é mais modesto e, no entanto, ao mesmo tempo mais arnbicioso; ~ ~erir gue o fenômeno atualmente chamado ~e doenças mentai e revisto e mais sim lesmente ue fosse removido da cate or" de doen as, e que fosse considerado como expressões do esfor m com o ro e'lna e como e 'ãeVeria

o 28

IDEOLOGIA

E DOENÇA

MITO

DA DOENÇA

MENTAL

~~. Esse problema é, sem dúvida vasto, sua enormidade refletindo não somente a inabilidade do homem em fazer frente ao seu ambiente, como também, e até mais, seu crescente grau de auto-reflexão. Por problemas existenciais, pois, refiro-me àquela explosiva reação em cadeia que começou com a perda pelo homem da graça divina ao tomar do fruto da árvore do conhecimento. A conscientizacão do homem de si mesmo e do mundo que o cerca parece estar numa constante expansão, trazendo em seu despertar uma sempre maior carga de conhecimentoF' Esta carga é esperada e não deve ser mal interpretada. Nosso único meio racional para amenizá-Ia é adquirir mais conhecimento e agir de forma apropriada, baseando a ação neste conhecimento. A principal alternativa consiste em agir como se a carga não fosse o que percebemos que é. e refugiarmo-nos na antiga visão teológica do homem. Nessa perspectiva o homem não modela sua vida nem muito "do mundo que o cerca, mas meramente vive seu destino num mundo criado por seres superiores. Isso pode, logicamente, levá-Io a pleitear a não-responsabilidade em lugar de dificuldades intransponíveis e problemas insondáveis. No entanto, se o homem não se fizer cada vez mais responsável por suas ações, tanto individual quanto coletivamente, parece improvável que algum poder ou ser superior assuma esta tarefa e lhe carregue o fardo. Além disso. este parece ser um momento propício da História ao obscurecimento da questão da responsabilidade do homem por suas ações, escondendo-se por trás de um concepção forjada de doença mental. VII

hado em E. Jones: The Liie and Work 01 Sigmund Freud (Nova York: Bnsic Books, 1957), vol. 111, p. 247. Zahar Editores, Vida e Obr« de Slgm und Freud.

j

lí ~:;®

algum outro significado ou valor. Uma vez satisfdtas as necessi: dades de eservação do corpo, e .talvez da, raçª",.Q homem se fron a com? ,PEo ema o ,Jpgm icado pessoal: o ~ue deve~la Ia- (If zef e i mesmo? .Por q11e deveria VIVg? a esao ao mito a doe~ça mental permife às pessoas evitar confrontar-se com este problema, acreditando que a saúde mental, concebida como a ausência de doença mental, automaticamente assegura a escolha certa e segura na condução da vida. Mas os fatos são contr~rios a isto. N a vida, são as escolhas sensatas que as pessoas consideram, retrospectivamente, como evidência de saúde ~ental.. _ Quando afirmo que a doença mental e um mito, na? quero dizer que a infelicidade pessoal e o comportamento soclalm~nte desviado não existam; o que estou dizendo é que os categonzamos como doenças por nossa própria conta e risco. A expressão "doença mental" é uma metáfora que erradamente consideramos como fato. Chamamos as pessoas de doenteS! fisicamente guando o funcionamento de seu cor o VIOla certas nl!!"mas anatômicas e fisiológicas; de form,a ~ga, c~amamos 'de mentalmente msanas as pessoas cu' a conduta essoal VIOla certas normas éticas, políticas e sociai " Isso explica porque mui~as figuras históricas, de Jesus a Castro, e de Jó a Hitler,. tê!;! ~Ido diagnosticadas como sofrendo desta ou daquela doença. pSlqUlatn~a. Finalmente b mito da doença mental nos encoraja a acreditar em seu corolário ló ico: ue a interação social seria harmoniosa, satisfatóna e a se se ra ara uma VI a sau ave, não fosse pelas influências desa re, adoras a oen a menta ou SICOato o Ia. ontu o a felicidade humana universal, pelo menos nessa forma, não é senão um outro exemplo de desejos utópicos. Creio na possibilidade da felicidade humana, ou do bem-estar - não somente para uns poucos, mas numa escala anteriormente inimaginável. Contudo, isso pode ser atingido somente se muitos homens, não só' uns poucos estiverem desejosos e forem capazes de confrontar francamente e atacar com coragem seus conflitos éticos, pessoais e sociais. Isso significa ter a coragem e integridade de renunciar a batalhas empreendidas em frentes falsas, à procura de soluções para pro.blemas substitutivos - por exemplo, lutar na batalha contra a aClde.z estomacal e fadiga crônica, em vez de enfrentar' um conflito conjugal. N ossos adversários não são demônios, feiticeiras, o destino ou a doença mental. Não temos inimigos contra os quais pos~amos lutar exorcizar, ou dissipar' pela "cura". O que temos, Sim, são problemas existenciais - que podem ser bio~ógicos! econômicos políticos, ou sócio-psicológicos, Neste ensaio detive-me somente nos problemas .pertinentes à última categoria apresentada,

(1/ IJ

A

17

29

MENTAL



..,



30

IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

e dentro deste grupo, com ênf~se naqueles 'pertinente,s valores m,.?r~is O campo abrangido pela Psiquiatria moderna e ,:,a~to e na? fiz .esforço para abrange-• 1o t od o. .M eu ar mento . limitou-se a . ~ de ue a doença mental e um mito cu a unçao e 1~-E,ro OSI ao '1 1 d co 1r e assim tornar mais aceitavel, a amarga pl u a os tos morais nas relaçoes umanas.

3.

A ÉTICA DA SAúDE MENTAL

; mecemos com algumas definições. De acordo com o W ebsier' s Dictionary, (edição integral), Ética é "a ape1 social do psiquiatra: "Não há dúVIda de que o desafio do papel da PSlqUlatna está conosco todo o tempo. O aspecto interessante é como seremos no futuro. Não os estereótipos e os homens de palha dos velhos empreendedores privados da AMA.n38 35 J, F. Kennedy: "Message frorn The President of The United States Relative to Mental I1Iness and Mental Retardation" (5 de fevereiro de 1963), 88. Cong., Primeira Sess, , "House of Representatives" Documento n." 58; reimpresso no Amer. J, Psychiatry ; 120:729-37 (fev.), i964, p. 730, 36 G. Caplan: "Principies of Preventive Psychiatry" (Nova York: Basic 13ooks, 1964), p. 3. :37 lbid. :38 Citado em M. Gorman: "Psychiatry and public policy", Amer. J Psychiatry, 122:55-60 (jan.)' , 1965, p. 56. 0

A

MENTAL

ÉTICA

DA SAÚDE

MENTAL

39

'i os pontos de vista de alguns dos propagandistas da PsiComunitária. Mas, e sobre o trabalho em si? Seu objeI " pdncipal parece ser a disseminação de uma Ética. de saúde 111 111 11 orno um tipo de religião secular. Sustentarei este ponI" di' vista por citações do principal livro-texto de Psiquiatria Co1111111 I 'iria, Princípios de Psiquiatria Preventiva. de Gerald Caplan. () que Caplan descreve é um sistema de Psiquiatria burocrátil 11 qual mais e mais psiquiatras realizam cada vez menos II 111.11110 real com os assim chamados pacientes. O papel principal .111 p i [uiatra comunitário é o de ser um "consultor de saúde ment ti"; isso significa conversar com as pessoas, que conversam com 111111 1 pessoas e, finalmente, alguém conversa ou tem algum tipo li I outato com alguém que é considerado, real ou potencialmente, dllt III mental". Este esquema funciona em conformidade com a I 1 11 Parkinson :39 o perito, no topo da pirâmide, é tão imporI 11111 'tão ocupado que necessita de um enorme exército de sut,,"dinados para ajudá-lo, e seus subordinados precisam de um vas111" ircito de subordinados de segunda ordem, e assim por dianI1 Numa sociedade confrontada com uma larga escala de desern1"/ pu devido à automatização e grandes avanços tecnológicos, o 1'111 p cto de uma indústria de saúde mental "preventiva", pront" apaz de absorver uma grande quantidade de mão-de-obra, ti, Into, deveria ser politicamente atraente. E o é. Olhemos mais ""Iltamente para o trabalho real do si uiatra comunitário. , gunâo-Cãpfan, uIi1atarefa fundamental do psiquiatra co11 11I uitário é prover mais e melhores "condições sócio-culturais" ~ 1',11 as pessoas. Não está claro quais sejam estas condições. Por I' "lIlplo, "o especialista em saúde mental" é descrito como alguém '11'" "oferece .con:ulta a l~gislado:es e adr;:in~stradores e cola~ora 111111 utros cidadãos em influenciar as agencias governamentais a 1IIIIIIifi ar as lei e regularnentos'l.s" Em português claro, um opinqIltlt~1 para a burocracia da saúde mental.] . psiqUIatra comunitário tambem auxilia "os legisladores e urlnridades do Bem-Estar Social a melhorar o clima moral nos( 1111' onde crianças (ilegítimas) estão sendo educadas, e a influenI ,,. fluas mães a casar, dando-lhes, assim, pais estáveis".~ ApeI," de -ºQençª-.J11~tal é usada para identificar ou descrever algum ~s ecto ~a assim ~mada personalidade de um 111 IVI uo. Doença mental - .sgmo deformação da ersonalidade, or assim diZer - é, então, vista como a causa a desarmonia humana. Está implícito nessa explicação que a interação social. entre pessoas, é vista como algo inerentemente harmonioso, sendo o seu distúrbio devido somente à presença da "doença mental" em várias pessoas. Está claro que esse Il Ver T. S. Szasz: Pain and Pleasure: A Study of Bodily Peelings, (Nova York: Basic Books, 1957), especialmente pp. 70-81; "O problema. da nosologia psiquiátrica". Amer. J. Psychiatry, 114:405-13 (novembro). 1957. (Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título Dor e Prazer. m Estudo das Sensações Corpôreas; Rio, 1976.)

\

22

O MITO DA DOENÇA MENTAL

IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

raciocínio é falho, porque faz da abstração "doença mental" a causa de certos tipos de comportamento humano, apesar desta abstração ter sido originalmente criada para servir somente como expressão. taquigráfica para aqueles. Torna-se, aqui, necessário perguntar: que tipos de comportamento são considerados como indicativos de doença mental, e comportamento de quem? .O conceito de enfermidade, seja física ou mental, implica desvio de alguma norma claramente definida. No caso de enfermidade física, a norma é a integridade estrutural e funcional do corpo humano. Assim, apesar da conveniência da saúde física como tal ser um valor ético, a questão o que é a saúde pode ser respondida em termos anatõmicos e fisiológicos. Qual é a norma da qual o desvio é considerado doença mental? Essa questão não pode ser respondida facilmente, mas, qualquer que seja a norma, podemos estar certos de uma coisa: essa deve ser est.abelecida em termas de CQllceitos_psico~is, ~ticos e legais. Por exemplo, noções tais como "repressão excessiva" e "agindo de acordo com um impulso inconsciente" ilustram o uso de conceitos psicológicos para julgar a assim chamada "saúde" e "doença mental". A idéia de que a hostilidade crônica, vingatividade, ou o divórcio são indicativos de doença mental ilustra o uso de normas éticas (isto é, anelo por amor, delicadeza, um relacionamento conjugal estável). Finalmente, a opinião psiquiátrica difundida de que somente uma pessoa mentalmente perturbada cometeria um homicídio ilustra o uso de um conceito legal como uma norma de saúde mental. Em reSMmo,quando arém fala de doença mental, a norma à ual o deSVIOe com ara o. e um. adrâo Sl.cossocial e ético. Contudo, o medicamento é rocurado em mos ·de medidas mé zcas que - se espera e se supõe - são livres da. vasta gama de valores éticos. Desse modo, a definição e os termos ns quais se pesquisa a cura da perturbação diferem bastante. O significado prático desse dissimulado conflito entre a alegada natureza da falha e a cura real só dificilmente poderia ser exagerado. Tendo identificado as normas usadas para medir os desvios nos casos de perturbação mental, voltemo-nos para a questão: quem define as normas e os conseqüentes desvios? Duas respostas básicas podem ser oferecidas: primeiro, pode ser a própria pessoa - isto é, o paciente - quem decide se se desvia de uma norma.; por exemplo, um artista pode acreditar que sofre de uma inibição para o trabalho e pode corroborar essa conclusão procurando, ele .próprio, a . ajuda de um psicoterapeuta. Ou pode ser outra pessoa, que não o "paciente", quem decide se este é perturbado - por exemplo, os parentes, médicos,. autoridades

23

ser rocura a numa esr utura medica. Isso cria uma situaao na qua se a Irma ue os esvlos SICOs ci' ., .s ~ ,QQill'm ser corrigidos pela ação médica. Já que as intervenções ~~ médicas são designadas- para curar somente problemas médicos, ~ ~ t

12 Ver T. S. Szasz: The Ethics of Psychoanalysis: The Theory and Method of Autonomous Psychotherapy, (Nova York: Basic Books, 1965). (Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título A Ética da Psicanálise; Rio, 1975.) . 18 Ver T. S. Szasz: Law, Liberty, and Psychiatry: An Inquiry into lhe Social Uses of Mental Health Practices, (Nova York: Macrnillan, 1963).

i

~ ~

24

IDEOLOGIA

E DOENÇA

o

MENTAL

logicamente é absurdo esperar que resolvam problemas cuja existência tem sido definida e estabelecida em bases não médicas.

IV Qualquer coisa que as pessoas façam - em contraste com o que Ihes aconteça'» tem lugar num contexto de valores. Assi~, nenhuma atividade humana é desprovida de implicações morais. Quando os valores que sustentam certas atividades são largamente compartilhados, quem deles participam não raro os perde de vista. A discipina da Medicina tanto como ciência pura (por exemplo, a pesquisa), como enquanto ciência aolicada ou tecnológica (por exemplo, terapia) - contém muitas considerações e julgamentos éticos. Infelizmente, esses são freqüentement~ ~egad?s.' minimizados ou obscurecidos, porque o ideal da profissão médica, bem .•como das pessoas a quem serve, é ter um sistema de atenção médica ostensivamente isento desses valores. Essa noção sentimental é expressa por fatores tais como o desejo do médico de tratar todos os pacientes a despeito de sua religião ou credo político. Mas tais afirmações só servem para obscurecer o fato de que as considerações éticas enzlobam uma vasta série de questões humanas. Tornar a prática m~dica neutra com respeito a algumas questões específicas de valor moral (tais como raça ou sexo) não deve querer dizer, e sem dúvida não significa, que isso possa ocorrer quanto a outras questões morais (tais como controle da natalidade ou regulamentação de relações sexuais). Assim, controle da natalidade, aborto, homossexualismo, suicídio e eutanásia continuam a representar problemas importantes para a ética médica. A Psiquiatria está muito mais intimamente relacionada aos problemas éticos que a Medicina em geral. Utilizo aqui a palavra "Psiquiatria" para me referir à disciplina contemporânea concernente aos problemas existenciais, e não às doenças cerebrais, pertencentes à ~ eurolo~a. f\s dificuldades nas rela ões humanas 01 dem ser. analisadas terpr.etad o das de slgmÍica o somente dentro de contextos sociai _éticos nalogamente, as orienta ões sócio-" s do iguiatra influenciarão suas opiniões so re o que há de errado o aciente, o ue merece comentário ou 111 er retação, em ue dire ões a mudan a serra des~jáv 1, e assim por iante. Mesmo na própria Medicina esses fatores têm um pape, ilustrados pelas orientações divergentes que os

~§pedfu:n.s...

14

K

R. . Peters: The Concept 01 Motivation, un Paul, 1958), especialmente pp. 12-15.

(London:

Routledge

&

MITO

DA DOENÇA

MENTAL

25

médicos, dependendo de sua filiação religiosa, têm com relação a coisas tais como o controle da natalidade e o aborto terapêutico. Alguém poderá realmente acreditar que as idéias do psícoterapeuta sobre religião, política e questões correlatas não exercem um papel em seu trabalho prático? Se, por outro lado, têm importância, que devemos inferir disto? Não parece razoável que talvez devêssemos ter diferentes terapias psiquiátricas - cada uma delas reconhecida pelas posições éticas que incorpora - para, por exemplo, católicos e judeus, religiosos e ateus, democratas e comunistas, racistas e negros, e assim por diante? De fato, se olharmos para o modo como a Psiquiatria é praticada atualmente, sobretudo nos Estados Unidos, veremos que as intervenções psiquiátricas que as pessoas procuram e recebem dependem mais de seu status sócio-econômico e credos morais do que das "perturbações mentais" de que ostensivamente sofrern.P Esse fato não deveria causar surpresa maior do que o fato de católicos praticantes raramente freqüentarem clínicas de controle da natalidade, ou cientistas cristãos pouco consultarem psicanalistas.

v A posiçao delineada acima os psicoterapeutas contemporâneos lidam com problemas existenciais, não com doenças mentais e suas curas - está em agudo contraste com a posição hoje prevalente - os psiquiatras tratam de doenças mentais, que são tão "reais" e "obj etivas" como as doenças físicas. Suponho que os defensores da última hipótese não têm qualquer evidência para justificar sua afirmação, que é na realidade uma espécie de ro a anda psiquiátrica: seu objetivo é criar na mentalidade popu ar uma convicção de que a doença m~ntal é um tipo de entidade patológi_ca, como uma infec.Ção ou moléstia. Se fosse verdade oder-se-ia .f!:P..anhar ou contrair uma doença mental, poder-se-ia ter ou ac~.llU'r oder-se-ia transmiti-Ia para outros, finalmente, po er-se-ta lLVrar dela. Não somente não FiáUrI.1 miríimo e-êViUênclas para sustentar essa idéia. como pelo contrário, todas as evidências apontam o ponto de vista contrário: ue o ue 110' e as essoas chamam de doen as mentais são em ran e arte C0111,Umcações, expressando jdéias inaceitáveis fre üentemente or anizadas. entro de uma linguagem incomum. Esse não e o lugar iTIãís adequado para considerar em detalhes as semelhanças e diferenças entre as doenças mentais e fisias. É suficiente enfatizar que. enquanto o termo "doença física" A. B. Hollingshead e F. C. Redlich: (Nova York: Wiley, 1958).

15

Social Class and Mental

Illness,

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF