Textos Em Representações Sociais - Pedrinho a. Guareschi, Sandra Jovchelovitch

January 29, 2018 | Author: Heber Freitas Silva | Category: Sociology, Émile Durkheim, Science, Thought, Communication
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Adaptado de Burrell e Morgan, 1982

O rigor, no paradigma científico dominante, oblitera freqüentemente a visão de continuum que desde sempre marcou a reflexão sobre as possibilidades do conhecimento e cujos polos extremos, segundo Burrell e Morgan (1982) seriam o subjetivismo e o objetivismo (fig. 2). Estes polos são constituídos a partir de pressupostos em quatro arenas distintas:

- a arena ontológica que concerne o estatuto do real, contrapondo duas posturas opostas: o pressuposto de uma realidade externa objetiva e acessível aos sentidos e o pressuposto da realidade como produto último de nossa consciência; - a arena epistemológica que concerne as bases do conhecimento e contrapõe o positivismo, enquanto ênfase na busca de regularidades e na explicitação de explicações causais, com as perspectivas centradas na compreensão dos significados socialmente construídos; - os pressupostos sobre a natureza humana, que opõem o determinismo absoluto (o homem como produto das determinações estruturais) com o voluntarismo absoluto (o homem como criador absoluto da realidade social); - a arena metodológica, que postula as regras de condução de investigação onde emergem, como pólos opostos, a postura nomotética - a busca de leis gerais que permitam fazer previsões - e a ideográfica - o estudo descritivo das singularidades. A era moderna entroniza o objetivismo - a chamada retórica da verdade na terminologia empregada por Ibanez (1991). A busca de leis gerais passa a ser o alvo prioritário das ciências e a demonstração experimental de teses através do teste de hipóteses passa a ser o paradigma do método científico. Sendo a matemática e a física as expres­ sões máximas desta forma de proceder, a mensuração passou a ser automaticamente o caminho exclusivo do rigor. É aqui que se situa, então, a contraposição entre ciências sociais e naturais. Não chega a ser um debate pois, desde que as disciplinas do social emergiram no cenário das ciências no final do século XIX, o consenso sempre foi de que elas eram ciências menores: ciências soft, em contraposição às ciências hard. Uma primeira tentativa de mudança de estatuto passa pela criação de uma epistemologia da diferença: se não dá

para ser igual, pontuemos a diferença. Emerge então uma importante distinção, sistematizada por Dilthey (Von Wright, 1979), entre explicação e compreensão. Caberia às ciências sociais compreender os fenômenos, o que exigiria um outro tipo de metodologia recuperando a tradição hermenêutica. Uma metodologia que abrisse espaço à interpretação, possibilitando a emergência dos significa­ dos, da esfera simbólica, do desvelamento das intencionalidades. Com este aval os métodos qualitativos emergentes nas novas disciplinas recebem o seu primeiro impulso e vão buscar seus modelos nas duas tradições empíricas então existentes: a antropologia e a psicologia clínica. Da antro­ pologia e sua prima próxima, a sociologia urbana, entram para o arsenal de métodos a observação participante e seus derivados modernos mais voltados à transformação social: a pesquisa ação e a pesquisa participante. Deriva daí, também, uma nova postura face ao fenômeno observado: a imersão no fenômeno para compreensão da diferença; postura esta que abre os flancos da subjetividade e, con­ seqüentemente, possibilita o questionamento do pressu­ posto da neutralidade científica. Da voltada grupos, dologia

psicologia clínica emerge toda uma tecnologia ao uso da entrevista, assim como o trabalho com primo distante dos grupos focais atuais, e a meto­ de estudo de caso.

Mas a diferença e a inovação metodológica é ainda regida pelo debate sobre a objetividade; debate este que será por muito tempo ainda pautado pela aplicabilidade, ou não, dos conceitos de validade e fidedignidade. Ou seja, o que está em discussão é ainda o questionamento da possibilidade de apreensão do real, apreensão esta ainda subsumida pela mensuração. Mas, sutilmente, o debate sobre o rigor nas ciências sociais é desviado deste seu eixo central para uma esfera menos compromissada com a questão epistemológica: a

validade, o grau em que um fenômeno é interpretado corretamente. É neste sentido que muitos, entre eles Denzing (1978), passam a advocar o uso da triangulação metodológica como estratégia de validação. Ou seja, com­ binar técnicas múltiplas, ou múltiplos pesquisadores, de forma a fortalecer a confiança nas interpretações. Neste ínterim, acontecimentos em arenas diversas vieram contribuir para o questionamento do paradigma de objetividade, dentre eles: a constatação, na física quântica, de que a consciência do observador está implicada na observação; o fortalecimento da visão sistêmica na área da cibernética; na história das mentalidades, a constatação de que muitas das nossas verdades sobre o mundo social são historicamente datadas; o relativismo decorrente das reinterpretações geradas pelas reflexões a partir de movi­ mentos políticos de minorias (negros, mulheres, gays etc.) que passam a reescrever a história a partir de sua própria ótica; os movimentos artísticos que destacam o fantástico, o efêmero, a construção; e a moderna filosofia da lingua­ gem que, como em Wittgenstein, destacam o papel da linguagem na construção da realidade social. Em suma, toda uma série de movimentos que conver­ gem para uma epistemologia construtivista que, sem du­ vidar da objetividade do mundo, coloca-a no rol das probabilidades uma vez que os instrumentos que dispomos para acessá-la são, estes sim, socialmente construídos. Desta forma, não é a verdade intrínseca de nossos instru­ mentos que define o rigor e sim a compreensão dos limites de suas possibilidades: em suma, cada método constitui o objeto de estudo de uma maneira particular. A triangulação metodológica, neste sentido, deixa de ser uma estratégia de validação para ser um fator de enriquecimento: um reconhecimento de que a realidade é caleidoscópica e que a multiplicidade de métodos pode enriquecer a compreen­ são do fenômeno (Flick, 1992). A objetividade num mundo socialmente construído passa a ter uma conotação muito diferente. Como aponta

Morin (1983), na epistemologia da complexidade, que sucede a epistemologia do realismo ingênuo, a objetivida­ de é produto do consenso sócio-cultural e histórico da comunidade científica, regida portanto pelo signo da intersubjetividade.

Desvendando as teorias implícitas: técnicas qualitativas para o estudo da associação de idéias nas representações sociais São estes os pressupostos téoricos e metodológicos que vêm norteando as pesquisas que vimos realizando e que, conseqüentemente, embasam a técnica de associação de idéias que vem sendo por nós utilizada, com pequenas modificações, em estudos centrados no processo de elabo­ ração das representações sociais assim como em estudos visando entender as representações socialmente compar­ tilhadas. Os estudos centrados no processo de elaboração das representações tiveram por objetivo entender a construção de teorias na interface entre explicações cognitivas, inves­ timentos afetivos e demandas concretas derivadas das ações no cotidiano. Tendo em vista também a necessidade de compreensão, nesses estudos, dos conteúdos que cir­ culam nos diferentes tempos anteriormente definidos - o tempo da interação, o habitus e o imaginário social - a coleta de dados exige longas entrevistas semi-estruturadas aclopadas a levantamentos paralelos sobre o contexto social e sobre os conteúdos históricos que informam os indivíduos enquanto sujeitos sociais. A análise, centrada na totalidade do discurso, é demorada e conseqüentemen­ te estes estudos têm utilizado poucos sujeitos. Trata-se, assim, de um exemplo do que chamamos acima de "sujei­ tos genéricos” que, se devidamente contextualizados, tem o poder de representar o grupo no indivíduo.

Trata-se, neste caso, de efetuar uma análise do discur­ so onde o trabalho de interpretação segue os seguintes passos: 1. transcrição da entrevista. 2. leitura flutuante do material, intercalando a escuta do material gravado com a leitura do material transcrito de modo a afinar a escuta deixando aflorar os temas, atentan­ do para a construção, para a retórica, permitindo que os investimentos afetivos emerjam. Nesta leitura/escuta é preciso ficar atento às caracte­ rísticas do discurso que podem dar pistas valiosas quanto à natureza da construção ou à sua funcionalidade. Potter e Whetherell (1987) sugerem incluir entre estas caracterís­ ticas: - a variação, ou seja, as versões contraditórias que emergem no discurso e que são indicadores valiosos sobre a forma como o discurso se orienta para a ação; - os detalhes sutis - como silêncios, hesitações, lapsos - pistas importantes quanto ao investimento afetivo pre­ sente; - a retórica, ou a organização do discurso de modo a argumentar contra ou a favor de uma versão dos fatos. Ao mapear os temas emergentes é preciso, também, ficar atento para a relação artificial criada pelo roteiro ou, na ausência de um roteiro explícito, pelas perguntas do entrevistador. Ou seja, são seus os temas ou são eles elementos intrínsecos de uma representação que aflora no discurso? 3. Tendo apreendido os aspectos mais gerais da cons­ trução do discurso, é preciso, num terceiro momento, retornar aos objetivos da pesquisa e, especialmente, definir claramente o objeto da representação. Os discursos são complexos, mesmo quando pensamos estar entrevistando sobre um tema único, e muitas vezes estão presentes

teorias sobre múltiplos aspectos relacionados. Isto fica claro nos estudos que vimos realizando sobre a AIDS, onde representações da AIDS, de doença/saúde e de sexualida­ de estão entrelaçadas. Definir o que é figura e o que é fundo é essencial, mesmo que o fundo esteja presente nas cons­ truções em pauta. É neste afã que emergirão as dimensões principais do discurso e, neste momento, dois caminhos têm se revelado possíveis nas experiências analíticas de­ senvolvidas no Núcleo de Estudos sobre Representação de Saúde e Doença por nós coordenado na PUC de São Paulo. O primeiro caminho, factível quando se trata de uma entrevista centrada num tema mais circunscrito - por exemplo hipertensão - é de mapear o discurso a partir das dimensões internas da representação: seus elementos cog­ nitivos, a prática do cotidiano e o investimento afetivo. No estudo sobre as representações de um clínico geral sobre a hipertensão (Spink, 1993c), utilizamos como dimensões analíticas: as teorias sobre hipertensão e sobre o hipertenso (dimensão cognitiva); a prática da Medicina no que diz respeito ao tratamento da hipertensão assim como os encaminhamentos específicos no cotidiano do consultório; e os investimentos afetivos. O segundo caminho, mais apropriado no caso de representações complexas, é mapear o discurso a partir dos temas emergentes definidos a partir da leitura flutuante e guiados pelos objetivos do pesquisador. Como exemplo, num estudo sobre a violência agrária no Pará, Pimentel (pesquisa ainda em andamento) utilizou três temas - a função da terra, a posse da terra e a violência - de modo a entender a construção que representantes de diferentes grupos (posseiros, fazendeiros, sindicatos rurais, judiciário etc.) fazem do conflito agrário.

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7. A POPULARIZAÇÃO DA CIÊNCIA COMO “IMUNIZAÇÃO CULTURAL”: A FUNÇÃO DE RESISTÊNCIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Martin Bauer Neste trabalho eu me proponho discutir uma das questões que deu origem à noção de Representações Sociais: as RS são a produção cultural de uma comunidade, que tem como um de seus objetivos resistir a conceitos, conhecimentos e atividades que ameaçam destruir sua identidade. A resistência é uma parte essencial da prag­ mática das Representações Socias. Sob esta luz, a resis­ tência é um fator criativo, que introduz e mantém heterogeneidade no mundo simbólico de contextos inter-grupais. A função de resistência pressupõe uma segmentação so­ cial em diferentes subculturas, que mantêm sua autonomia resistindo às inovações simbólicas que elas não produzi­ ram. Esta defesa toma a forma de re-(a)presentações. Essas representações podem ser consideradas como a ação de um "sistema imunológico" cultural: novas idéias são assi­ miladas às já existentes, que neutralizam a ameaça que elas apresentam e tanto a nova idéia, como o sistema que a hospeda, sofrem modificações nesse processo. Uma breve revisão da resistência, enquanto elemento constitutivo das RS, permite-me (a) situar parte de nosso trabalho sobre a popularização da ciência no Museu de Ciências de Londres, e (b) ir além disso, em uma tentativa ambiciosa de orientar pesquisas futuras. A análise das representações pertence a uma tradição que pesquisa a

popularização da ciência desde os anos 60. Sua fronteira inovadora é o reconhecimento claro de que o conhecimen­ to se transforma quando circula para além de seu próprio contexto de produção. Nesse processo de circulação, o fator de resistência merece atenção renovada tanto teórica, como empiricamente. A recente retomada de interesse em noções populares de ciência e tecnologia nos países euro­ peus apresenta-nos a oportunidade de estudar os efeitos da resistência cultural na análise dos meios de comunica­ ção, na pesquisa sobre opinião pública ou nos estudos de caso. Uma questão ainda em aberto refere-se às dimensões relevantes da segmentação cultural.

1. Recuperando a função de resistência: ponto de referência Barber (1961) e Kuhn (1962) discutiram o problema de como novos conhecimentos sofrem resistência dentro de um círculo fechado de especialistas. Geralmente o conhe­ cimento científico se organiza em torno de paradigmas, que constituem o foco teórico e metodológico para a maioria das pessoas envolvidas. Periodicamente, esses paradigmas são questionados, tanto pelo acúmulo crescen­ te de evidência contrária, como por teorias que resistem em ajustar-se a eles. Em conseqüência disso, o progresso do conhecimento científico não é cumulativo; ele se mo­ vimenta através de erupções periódicas. A normalidade temporária é quebrada por transformações nos pressupos­ tos e métodos básicos. Na ciência normal, a instituciona­ lização de paradigmas conduz ao mesmo tempo à crista­ lização de idéias e ao refinamento e precisão, de tal forma que estes se tornam mais vulneráveis à anomalias; a rigidez e a vulnerabilidade estão correlacionados. A resistência da ciência normal se presta a duas funções aparentemente paradoxais: (a) ela restringe internamente a atenção dos cientistas para que estes não se desviem de seu trabalho, e (b) ela presta atenção à crítica externa sobre os pontos

centrais do paradigma, apenas para questioná-lo de ma­ neira melhor e mais fundamental (Kuhn, 1962: 64). Quando definimos as representações sociais, nós mui­ tas vezes nos referimos às suas conseqüências quanto à cognição e à ação; isto é, referimo-nos às suas funções simbólicas e pragmáticas (Cranach, 1992). A função sim­ bólica se refere ao fato de que em RS lidamos com imagens variáveis da realidade, através das quais as pessoas esta­ belecem um sentido de ordem, transformam o não-familiar em familiar através da ancoragem de novos conhecimentos em antigos esquemas, criam uma estabilidade temporária através da objetificação, e localizam a si próprios entre os demais através de um senso de identidade social. Esta conquista de ordem é problemática e periodicamente sofre ameaças. A função pragmática das RS refere-se ao fato de que nossas ações são motivadas, guiadas, planejadas e justificadas em prejuízo de nossas estruturas simbólicas. Nesse sentido, as RS se constituem tanto em percepção, como em ação ou, para usar termos mais antigos, tanto em estímulo como em resposta (Wagner, neste volume). Para fins de investigação, nós procuramos enfocar o elemento pragmático das representações sociais, e toma­ mos a capacidade de resistência como ponto de referência para nossa análise. É minha opinião que esse modelo de análise contém potencial suficiente para a análise dos problemas atuais que envolvem a compreensão popular de noções científicas. Estudos anteriores realizados na França investigaram a compreensão popular do raio laser, a diver­ sidade das imagens corporais, as noções de saúde e doença, a doença mental, a compreensão da inflação, noções de peso e levitação fora do espaço, etc. (Barbichon & Moscovici, 1965; Ackermann & Dulong, 1971; Barbi­ chon, 1973; Schiele & Jacobi, 1989). Uma inovação evidente dessa tradição é que ela nos leva a perceber que o objeto de difusão se transforma nesse processo. A re-(a)presentação é tanto uma atividade, como um resultado, que conduz a múltiplas identidades de um

mesmo objeto em contextos de pluralidade cultural. Se quisermos reconhecer tal fato, é necessário que nos dis­ tanciemos temporariamente para observar os observadores e suas ações. Isso contradiz uma noção de difusão que vê o objeto de difusão como constante e impõe homogenei­ dade à tarefa de incentivar tal difusão. A transição do conhecimento proveniente de um círculo científico restrito de especialistas para territórios públicos mais amplos é, muitas vezes, a mesma transição entre o pensar com conceitos para o pensar com imagens e mitos (Moscovici, 1992). O estudo original de Moscovici sobre psicanálise na França, realizado durante a década de 50, oferece-nos uma compreensão exata da resistência e de seus efeitos nesse processo. O grau de resistência às idéias da psicanálise em uma comunidade cultural é o fator distintivo que produz uma heterogeneidade de imagens. As representações so­ ciais da psicanálise são instrumentos para defender a integridade da comunidade contra idéias ameaçadoras. Lemos ali que “...as RS emergem onde existe perigo para a identidade coletiva; quando a comunicação subestima as regras que um grupo social se colocou" (Moscovici, 1976: 171). O estudo desenvolve-se distinguindo três segmentos culturais da sociedade francesa dos anos 50, os processos de comunicação que lhes eram característicos e seu con­ teúdo estrutural. A Tabela 1 compara a difusão, a propa­ gação e a propaganda, e processos característicos, de acordo com diversos critérios para a cultura urbano-liberal, a cultura do meio católico e a cultura ligada aos comunis­ tas: como é apresentada a ordem entre conceitos e idéias; como são apresentados os vários temas da psicanálise; qual a suposta relação entre a fonte e a audiência da comunicação; quais as intenções e os componentes de ação da comunicação; a estrutura da mensagem; os graus de resistência; o grupo social; e o grau de identidade desse grupo social. É uma característica desse enfoque associar

os processos de comunicação com a estrutura do conteú­ do. Sensales (1990) usa essas distinções a fim de estudar a cobertura sobre computadores na imprensa italiana de 1976 a 1984. Tabela 1: A Comunicação da psicanálise em função da resistência Difusão

Propagação

Propaganda

ordem

não-sistemática

sistemática multifacetada

sistemática dicotômica

temas

aleatório, móvel, implícito

definido explícito

definido e sempre reafirmado

relações entre os participantes

distância não-engajamento transmissão dirigida pela audiência

instrutiva independente da audiência concessão à facção

instrutiva independente da audiência

intenção

oportunidade ação não necessária

mudança na significação construção de norma integrativa

intervenção imperativo à ação incompatibilidade conflitual

estrutura da mensagem (resultado)

opinião

atitude

estereótipo

resistência

baixa

média

alta

grupo social

urbano-liberal

católico

partido comunista

identidade

difusa

definida

definida

Fonte: adaptado de Moscovici, 1976, 474 f.; e Sensales, 1990, 25 f. O processo de difusão envolve um grupo social com uma identidade difusa, que oferece fraca, ou nenhuma, resistência à psicanálise. Os processos de comunicação são controlados pela audiência, orientados para informar sobre novas oportunidades; os temas são ordenados sem sistematização, apresentados aleatoriamente e móveis. A mensagem se apresenta em forma de opinião, sem nenhu­ ma implicação para ações específicas. Isso não surpreende,

pois as atividades psicanalíticas estão sociologicamente inseridas nesse meio. A propagação é a forma de comunicação do meio católico, um grupo social bem definido, com um nível médio de resistência à psicanálise. O processo de comuni­ cação é relativamente independente de sua audiência e se pressupõe que seja educativo. Os temas são sistematica­ mente ordenados e bem definidos. A intenção é fazer concessões e acomodar uma facção interna de pessoas que têm afinidades com a psicanálise mas, ao mesmo tempo, colocar limites que têm sua referência na tradição. O processo mantém controle sobre o significado das novas práticas e suas experiências correlatas através da formação de atitudes. A propagação tenta uma assimilação parcial e uma acomodação à psicanálise, ancorando-a em concei­ tos e práticas tradicionais. A propaganda é o processo de comunicação do meio comunista. Os temas são ordenados sistematicamente, bem definidos em dicotomias de amigo/inimigo, a fim de enfatizar incompatibilidade e conflito. A intenção é estri­ tamente educativa no que se refere à ação necessária dentro do conflito social. A estrutura da mensagem é estereotipada. Esse é o meio mais resistente à psicanálise. A propaganda manifesta rejeição clara, ancorando a psica­ nálise a imagens do inimigo. Essas associações entre a estrutura da mensagem, processo de comunicação e a comunidade social indicam diferentes efeitos de resistência. O objeto de difusão, a psicanálise, adquire uma identidade múltipla: a do meio urbano-liberal, a do meio católico e a do meio comunista. O objeto de difusão se transforma durante o processo e se multiplica. A resistência cultural das três comunidades francesas para a aceitação da psicanálise como tal resulta na proliferação de três imagens que, espera-se, retro-alimentam o próprio movimento psicanalítico. O efeito da resistência é a diversidade no domínio público, à medida em que novas idéias são acomodadas de forma específica.

Em relação ao processo histórico, os efeitos da resistência constituem-se em um processo de re-alimentação para o contexto da produção de conhecimento.

2. As condições sociais das Representações Sociais As RS são representações de alguma coisa sustentadas por alguém. É essencial identificar o grupo que as veicula, situar seu conteúdo simbólico no espaço e no tempo, e relacioná-lo funcionalmente a um contexto intergrupal específico. Uma representação particular pode, contudo, mudar de grupo hospedeiro e vagar por entre grupos sociais, assumindo vida própria. Uma sociedade se estrutura de acordo com diferentes clivagens. O estudo das representações da psicanálise apóia-se no que os cientistas políticos chamam de segmen­ tação cultural. Aqui, a unidade de análise diferencia-se de acordo com alguns critérios culturais "objetivos", tais como religião, língua ou grupo étnico, como é de fato o caso em certo número de países europeus. Na Holanda, essa seg­ mentação cultural é chamada de “Zuilen" (colunas); na Bélgica e França "famille spirítuelle" (famílias espirituais); na Áustria “Lagers" (territórios); na Alemanha "Weltanschauungen" (concepções de mundo); na Suíça, "ghettos" (Lorwin, 1971; Altermatt, 1978). A segmentação cultural tem as características de uma estrutura social que se justapõe às divisões sócio-econômicas; os limites culturais podem se correlacionar, mas não correspondem exatamente à estratificação sócio-econômica. Em uma hierarquia social esquematizada, a divisão sócio-econômica seria indicada por uma linha horizontal, enquanto que a distinção cultural é feita por linhas mais ou menos verticais. Imagens como as de colunas, territó­ rios ou guetos referem-se a tais diferenciações verticais, que se justapõem à divisão sócio-econômica; cada subcultura pode recrutar sua própria elite dentro dela mesma, em

outras subculturas e nas suas bases; o processo total resulta em um sistema em que elites representativas e suas respectivas bases competem umas com as outras. As disparidades econômicas não são irrelevantes, mas seu poder é limitado na explicação da experiência e dos com­ portamentos das pessoas. Uma conseqüência dessas estratificações sociais multidimensionais tem sido, tradicio­ nalmente, uma pluralidade de organizações sindicais ba­ seadas em diferenças culturais, nos países capitalistas (Beyme, 1977). O pluralismo sindical é um indicador para localizar os países que são adequados a estudos históricos sobre RS. Para a França dos anos 50, Moscovici estabeleceu o meio liberal urbano, o meio católico e a subcultura do partido comunista como relevantes em relação à psicaná­ lise. Na Suíça, poder-se-iam distinguir três meios culturais com importância constante para as culturas políticas até o século 20: o liberal-protestante, o católico e o socialista (Altermatt, 1978). Igualmente na Holanda, a segmentação de diferenciações religiosas como a liberal-reformada, a calvinista-ortodoxa, a católica e a socialista, mostrou-se relevante no que se relaciona a reações simbólicas a novas tecnologias (Van Lente, 1992). Na Bélgica a divisão lingüís­ tica entre comunidades de fala flamenga e francesa atra­ vessa dimensões político-partidárias. Uma representação simbólica de um tema científico expressa a relação entre esses meios e as relações desse meio com respeito à fonte de onde provém esse conheci­ mento. O conhecimento que provém de um desses meios será aceito com mais ou menos reservas pelos outros meios. Poder-se-ia dizer que o estudo de Moscovici revela a importância da disparidade cultural na França dos anos 50, mas que ele não situa a fonte, isto é, a psicanálise, dentro dessa estrutura. A fonte do novo conhecimento se situa, supostamente, fora. É mais provável que ela se situe dentro do meio urbano-liberal, onde a distância social entre a fonte e a audiência é pequena, e a comunicação toma a

forma de humor e informação sobre novas oportunidades; para os outros meios, esse conhecimento implica uma ameaça potencial, e por isso uma variedade de repre­ sentações emergem. Essa visão dá origem a três questões para a pesquisa sobre a popularização da ciência. Em primeiro lugar, estu­ dos comparativos sobre a maneira como a psicanálise foi divulgada em países marcados por segmentação cultural tais como a Holanda, Bélgica e Suíça, e países com segmentação predominantemente econômica, tais como a Inglaterra ou os Países Escandinavos, podem ser surpreen­ dentes. Em segundo lugar, temos um problema empírico que é demonstrar se os meios culturais tradicionais ainda são relevantes para as representações de temas científicos e tecnológicos nos dias atuais - ou não. Em terceiro lugar, velhas imposições culturais ainda podem produzir impor­ tantes efeitos em sociedades modernas. Estudos sobre movimentos sociais e comportamento eleitoral indicam que fatores econômicos, tais como a flutuação comercial e a classe social, se tornam menos importantes na explicação da mobilização na Europa do após-guerra, enquanto que as diferenças culturais e de valor assumem mais importân­ cia (Inglehart, 1990; Touraine, 1995). No que se refere ao estudo das representações sociais, tal fato nos deixa a tarefa de identificar quais são as distinções significativas para comparar representações de problemas científicos e tecnológicos no espaço e no tempo. Sondagens podem ajudar-nos a identificar aquelas variáveis culturais que melhor explicam a variância social.

3. Implicações para o estudo da popularização da ciência 3.1. O modelo dominante, mas irreal, de popularização A pesquisa sobre a difusão do conhecimento técnicocientífico em ambientes especializados e em um público

mais amplo coloca-se na origem dos interesses pela “re­ presentação social" (Barbichon e Moscovici, 1965). A difu­ são interna discute a dinâmica de um novo conhecimento dentro de círculos de especialistas de vários graus. A difusão externa discute a circulação do conhecimento especializado em um domínio público mais amplo. A fim de incrementar a eficiência desses processos, os pesquisa­ dores identificam e tentam controlar os obstáculos que encontram no caminho. Tais tentativas, muitas vezes, deixam transparecer uma noção de despreparo atribuída ao público, aos comunicadores, ou à comunidade científi­ ca. A resistência por parte do público é associada a hábitos, rigidez, condicionamentos, falta de motivação para apren­ der, e limitações institucionais no trabalho ou na escola (Barbichon, 1973). Hilgartner (1990) denominou tais noções como a "visão dominante da popularização” , que serve, com certa flexi­ bilidade, para avançar os interesses das comunidades científicas. A idéia de popularização pressupõe uma dis­ tinção entre "conhecimento científico genuíno" e sua “cir­ culação popular” ; a última varia em graus de distorção, degradação e poluição conforme os padrões do "conheci­ mento científico” . O conhecimento científico genuíno, des­ de este ponto de vista, é santuário exclusivo de cientistas, definido para e pela autoridade científica. Tal procedimen­ to constitui um discurso político flexível. Ele fornece um vocabulário para demarcar o que é ciência e o que não é, e orienta a distribuição de prestígio, verbas e status numa única direção (distribuição de recursos). A noção de co­ nhecimento poluído implica a idéia de contaminação por fontes externas, tais como “ideologia” , "religião” ou in­ fluências semelhantes (demarcação); a idéia de contami­ nação implica “pureza" e estabelece uma hierarquia entre as atividades do próprio grupo e as de grupos externos. Esses mecanismos asseguram à autoridade científica o direito de decidir sobre simplificações adequadas ou im­ próprias a fim de controlar sua própria imagem (controle da imagem). Tem-se a impressão que se um traço particu­

lar da popularização favorece a causa do(a) cientista, ele é "adequado"; se não favorecer o ponto de vista dele, ou dela, ele é inadequado. As duas distinções, popularização genuína ou vulgarizada e adequada ou distorcida, são instrumentos discursivos para preservar autonomias e pri­ vilégios, quando em concorrência com outros grupos pro­ fissionais e sistemas de comunicação. Esse modelo dominante de popularização está ligado a um interesse dominante de comunicação, que foi muito bem sintetizado por Doman: “ o projeto de com unicação da ciência, ao menos nos Estados Unidos, esteve indissoluvelmente aliado aos esforços das organizações científicas para fabricar uma cobertura dócil e para criar um público que irá aceitar a proposta científica de uma autoridade racional” (Doman, 1990:64)

O interesse dominante segue o modelo de alta fideli­ dade (hi-fi model): a transmissão de uma mensagem é controlada através da supressão do nível de ruído no canal, e preserva com o máximo de qualidade o sinal original da autoridade científica. A pesquisa, dentro desse enfoque, mede o volume de cobertura científica através de análises de conteúdo, investiga as características dos produtores (organizações da mídia, jornalistas, e cientistas “visíveis") e de audiências através de sondagens sociais, e avalia a exatidão da cobertura com análises de conteúdo normati­ vas. Tudo isso é feito para reiterar periodicamente as queixas estereotipadas sobre coberturas deficientes e in­ terpretações distorcidas da ciência por parte dos meios de comunicação, especialmente no que se refere ao sensacionalismo e à falta de exatidão (Cronholm e Sandell, 1981). O esforço é crítico num sentido pragmático; ele se refere, porém, à autoridade científica e o esforço de comunicação é subserviente àqueles interesses científicos que compe­ tem com outros interesses sociais. Os pressupostos sobre a audiência, na maior parte das vezes, seguem o modelo de "despreparo": a comunidade científica se defronta com um público ignorante, que é alheio à ciência no que concerne a decisões políticas sobre seu próprio futuro.

Para um observador, contudo, não fica claro onde traçar a linha divisória entre idéias e conhecimento "popu­ lar'' e idéias e conhecimento “genuíno” . A análise das práticas comunicativas demonstra que todas as formas de escrita e comunicação são gêneros estilizados, adequadas a certas audiências e propósitos, em contextos que vão de relatórios de experiências feitas em laboratório, revistas, conferências, livros-texto, artigos de jornal, até livros po­ pulares, etc. (Whitley, 1985). Seria uma atitude mais realista pressupor um continuum de contextos comunicativos den­ tro dos pólos ciência pura e circulação popular. Hilgartner (1990: 528) chamou esses pólos de contextos de comuni­ cação que tem “fluxo ascendente", quando crescem em cientificidade, e "fluxo descendente” , quando crescem em popularização. Este continuum permite tanto a transforma­ ção de tópicos que pertencem ao senso comum em tópicos científicos (fluxo ascendente), como a transformação do conhecimento científico em senso comum (fluxo descen­ dente). A difusão de idéias na direção descendente cons­ titui uma forma de "popularização"; a difusão em direção ascendente constitui uma forma de “cientificização” . Para fins de pesquisa, as idéias ou tópicos podem ser observa­ dos através de vários canais. Uma idéia específica pode ser primeiramente formulada como um projeto de financia­ mento para um comitê misto (ponto de entrada); uma vez obtido o financiamento, a pesquisa prossegue na linha de se produzir resultados escritos, de uma forma especializada e formalizada (fluxo ascendente). A partir daí, as idéias circulam em várias apresentações em conferências, publi­ cação em jornais, livros-texto para os jornais ou televisão (fluxo descendente). Canais ascendentes parecem instigar o pensamento teórico; os canais descendentes parecem estimular o pensamento mitológico e a formação de ima­ gens. No que se refere à pesquisa, este continuum apre­ senta uma classificação ordinal de contextos de comuni­ cação por graus de popularização. Permanece a idéia de uma demarcação entre conhecimento genuíno e popular, porém mais como um continuum, do que como uma dicotomia.

3.2. Resistência e canais de comunicação Que importância tem a idéia de "representação social" em tudo isso? A relação é dupla. Em primeiro lugar, na origem mesma da idéia de representações sociais está a difusão do conhecimento e um projeto de comunicação da ciência, ainda que apenas no contexto francófono dos anos 60 (Barbichon & Moscovici, 1965; Ackermann & Dulong, 1971; Schiele 8c Jacobi, 1989). Podemos assim reconhecer uma afinidade que tem sua base em uma origem comum. Em segundo lugar, a idéia de RS desenvolve uma noção da ciência popularizada para além da simples concepção de "despreparo". Quatro pontos merecem ser destacados: (a) As representações sociais têm um caráter de signo referencial duplo: elas re-presentam algo diferente e são usadas por alguma comunidade. Uma representação tem um conteúdo estrutural. Nós aqui estamos interessados nas associações distintivas entre usuários particulares e conteúdos estruturais específicos. (b) A análise é funcional: com a ajuda das RS nós nos orientamos no mundo e sabemos o que fazer; elas são recursos de que dispomos. Entretanto, ao influenciar o modo como pensamos e aquilo que fazemos, elas tornamse também nossos limites. Como recursos e como limita­ ções, elas estruturam a cognição e o comportamento (Thommen et al.,1992). Essa função tem, como ponto de referência, o sistema que representa. Sob este enfoque, parece inadequado ver a representação como deficiente; ela age do jeito que age. (c) Para fins de pesquisa, nós dirigimos nossa atenção para duas formas básicas de codificação: a ancoragem, com a ajuda de metáforas, e a objetificação, com imagens e ícones. Em nossa pesquisa, portanto, identificamos ân­ coras e imagens, e as classificamos em relação a grupos sociais. (d) Para isso, não nos confinamos a um cânone meto­ dológico: análise de conteúdo, sondagens, observação,

sejam eles de tipo qualitativo ou quantitativo, são igual­ mente úteis para identificar âncoras e imagens, sua preva­ lência, e sua associação com grupos sociais (Farr, 1993). Operacionalmente falando, a pesquisa da repre­ sentação social é uma relação entre quatro conjuntos de variáveis. A o caracterizar um "objeto" como a psicanálise, o raio laser, o peso, o dinheiro, a inflação, a AIDS, o corpo ou o genoma humano nós analisamos a estrutura do conteúdo, associamos esses tópicos aos seus usuários, construímos hipóteses sobre suas funções, e para fazer tudo isso nós empregamos certos métodos de investigação: RS (método [conteúdo, usuário, função]) O pressuposto da funcionalidade nos força a observar com mais cuidado como diferentes representações do “mesmo” objeto se relacionam com as atividades do grupo e com sua segmentação cultural. Possibilitar a um grupo social resistir a investidas hegemônicas é uma função interna das representações sociais e sinalizar a necessida­ de de mudanças para o grupo inovador é uma função externa. Pode até acontecer que a persistência do modelo dominante de popularização - apesar de sua evidente irrealidade e crítica que se seguiu nos últimos 30 anos seja ela própria uma visão mítica da comunicação, que tem necessidade de ser entendida em termos de resistência e autonomia, numa relação ciência-ciência. Ao enfatizar que a resistência tem um papel a desem­ penhar no desenvolvimento das representações sociais, outra distinção toma-se importante. No modelo de “alta fidelidade", a resistência é um ruído no processo comuni­ cativo; ela distorce e impede que a mensagem seja comu­ nicada adequadamente. O desvio entre a intenção da fonte e o efeito sobre a audiência é pensado como sendo ou resistência da audiência, ou incompetência do emissor. A resistência da audiência é algo que deve ser superado eficientemente, através do manejo competente de mensa­ gens e contextos; ela implica uma noção de despreparo, tanto da parte do emissor, como do receptor.

Esta noção de resistência como despreparo difere da que discutimos aqui. Para nós a resistência se constitui em uma qualidade do canal de comunicação, isto é, um atributo da relação entre fonte e audiência; mas ela é, também, uma forma de criatividade que introduz e garante a diversidade do sistema a médio e longo prazo. Para fins de descrição, nós atribuímos resistência à audiência, mas bloqueamos a implicação pragmática; em vez de tomar uma posição partidária e procurar reduzir a resistência, nós nos limitamos, ao menos temporariamente, a observar os observadores em uma atitude mais descompromissada, que nos permite prazer e estimula a diversidade. Isso acarreta implicações evidentes para o estudo da popularização da ciência. A teoria de Hilgartner implica uma classificação dos canais dos meios de comunicação por graus de popularização. Eu sugiro que acrescentemos uma segunda dimensão, também ordinal: resistência a um tipo específico de conhecimento. Folhetos especiais, jor­ nais, estações de rádio, canais de televisão, revistas, con­ textos de entrevistas, locais de observação, são assim também classificados de acordo com o grau de resistência a um conhecimento novo. Para isso, é necessário distinguir padrões de consumo dos meios de comunicação de massa e associá-los a grupos sociais de modo a formar conjuntos culturais. Contudo, não seria realista satisfazermo-nos com esse esquema de pesquisa bidimensional. Os sistemas de comunicação são sistemas de ação no tempo. De maneira ideal, portanto, nós representamos esses sistemas simul­ taneamente, pelas suas ações mais ou menos populares, e mais ou menos resistentes à fonte de conhecimento. Esta atividade é descrita tanto por um indicador quantitativo da cobertura total, como por uma análise qualitativa desta cobertura. Com isso nós atingimos um quinto procedimen­ to operacional no estudo da representação social. (e) Para propósitos de pesquisa, nós classificamos vários canais de comunicação de acordo com as duas dimensões de popularização e resistência do ponto de vista

da fonte, e analisamos o conteúdo (ancoragem e figuração) nesses diversos canais, ao longo do tempo. 3.3. A diferenciação da comunicação através da resistência Através do agrupamento de conteúdos, de leitores e canais de popularização e resistência nós chegamos a um modelo tridimensional de comunicação da ciência, que tanto possui um nível de complexidade que nos parece mais realista, como possibilita uma abertura para a diver­ sidade. Em se tratando dos dados, poderíamos descrever tal sistema através de diversos grupos de diagramas que mostram a intensidade da cobertura de certo tópico em cada canal ao longo do tempo. Cada grupo de diagramas é complementado com uma descrição dos elementos sim­ bólicos usados, que vão mudando no processo. As carac­ terísticas de uma representação podem passar de um canal a outro. Os canais são autônomos na maneira como pro­ cessam a informação, mas criam uma dependência mútua como resultado de seus atritos. Talvez tome-se óbvio aqui que essa perspectiva é mais um projeto ambicioso, do que algo que possa ser realizado através de um único estudo. Na ciência da comunicação, a atividade de múltiplos canais tem sido foco de vários estudos. O tempo relativo da atividade pode ser um indicador da função dos canais. O modelo dominante de comunicação da ciência nutre expectativas que a função de definir a pauta de prioridades provenha do canal especialista: quando se trata de deter­ minados assuntos, a comunicação aparece primeiro no canal especializado, e somente num estágio posterior ela será tomada em consideração por canais populares, tais como jornais ou-televisão. Strodthoff, Hawkins & Schoenfeld (1985) mostraram que foi isso que aconteceu com a informação ambiental nos Estados Unidos entre 1959 e 1979: a grande mídia reage à agenda da mídia especializada. Em outros casos a história é diferente. Lewenstein (1995) mostra como a "saga da fusão a frio” começou com

uma conferência à imprensa na Universidade de Utah, dali passou para a televisão e jornais, para tornar-se um tópico na comunicação científica especializada apenas em um estágio posterior. Esse padrão de comunicação é chamado de "ciência por conferências à imprensa", e viola uma norma implícita da atividade científica: as teorias científi­ cas devem ser validadas dentro dos círculos especializa­ dos, antes de chegarem até ao público. Eu mesmo discuti um caso similar de definição de agenda por parte do público (Bauer, 1994) relacionado à “ciberfobia” . Construída como uma ansiedade patológica a computadores, tanto no trabalho, como na escola e em casa, a ciberfobia foi assunto da mídia popular no início da década de 80, antes de tornar-se um fenômeno clínico de pesquisa depois de 1985, e isso principalmente nos Estados Unidos. Em uma veia semelhante, Gregory (1994), ao discutir cientistas britânicos não ortodoxos, mostra como uma idéia transmitida primeiramente através de ficção científica pode tornar-se uma preocupação para especia­ listas muitos anos depois. Gamson & Modigliani (1989) definiram uma amostra da cobertura dada por notícias de televisão, revistas, edi­ toriais e charges a acontecimentos relacionados ao poder nuclear, entre 1945 e 1980 nos Estados Unidos. Para cada canal eles delimitaram a freqüência relativa de um número restrito de controvérsias e metáforas centrais que eles chamaram de "pacotes significativos", tais como "o pro­ gresso", "solução amigável” ou "negociação com o diabo". O debate público dos Estados Unidos sobre energia nuclear é caracterizado pela relativa preponderância desses “paco­ tes” num determinado período. Em um estudo histórico Weart (1988) analisa a mudan­ ça das imagens relacionadas ao "átomo" em jornais norteamericanos de 1905 até os dias de hoje. Em termos quantitativos, ele demonstra que a intensidade dos tópicos referentes ao átomo chega ao cume em 1945/46,1955,1963 e 1979, e a conotação geral se toma crescentemente

negativa depois de 1975. Qualitativamente falando, ele mostra uma sucessão de imagens do “átomo" e seus poderes: de “elixir" e "veneno” nos anos 20, passando pela “autonomia nacional” , pela "paz e sobrevivência” nos anos 40 e 50, até “poluição” , "escolha" e "guerra” nos anos 70. O estudo mostra a ida e vinda de imagens e os agentes sociais a elas relacionados, dentro do sistema de comuni­ cação de uma única nação. Em um outro projeto que desenvolvemos atualmente no Museu de Ciência em Londres, nós estamos analisando uma larga amostra de jornais britânicos entre 1946 e 1985, para caracterizar a forma como se deu a cobertura científica e tecnológica na Inglaterra do período do após-guerra (Bauer, 1994). Alguns milhares de artigos de jornal foram codificados em 59 variáveis que cobrem aspectos formais, como tipo de jornal, secção do jornal onde está a notícia, tamanho, o tom geral do artigo, citações, ilustrações, e elementos narrativos, tais como autor, acontecimento, localidade, horizonte de tempo, efeitos, moral da história. Os resultados indicam as flutuações da cultura científica e tecnológica na Inglaterra e nos permitem agrupar assuntos, autores e jornais para caracterizar a atividade e o conteúdo dos vários canais no espaço de 40 anos. Eles também nos possibilitam avaliar transformações nas imagens mobiliza­ das por assuntos científicos e tecnológicos, em diferentes canais, nesse período. Jacobi & Schiele (1993) enfatizam a simultaneidade de vários níveis de compreensão em um único artigo de revista; existem várias leituras e várias audiências possí­ veis implicadas em um só artigo. Sua análise revela a complexidade das mensagens de popularização. A multi­ plicação de significados ocorre em vários canais paralelos, através da organização das imagens e metáforas. Todos esses exemplos podem demonstrar como o padrão de atividade em um sistema de canais paralelos é uma ques­ tão empírica quantitativa - quanto à cobertura ao longo do tempo - e qualitativa - pelas características mutáveis de seu conteúdo.

3.4. A diversidade simbólica do conteúdo Caracterizar a atividade ao longo do tempo é apenas parte da história. Em última instância, o que nós preten­ demos é caracterizar variedade cultural em um sistema de comunicação. Com a classificação bidimensional dos meios de comunicação por graus de popularização e resis­ tência à fonte, nós temos uma heurística à mão. Um simples exemplo pode mostrar como isso funciona. Na Figura 1, nós assumimos um padrão de 12 canais; distinguimos dois níveis especializados (a e b) e dois níveis populares (c e d); distinguimos, em seguida, três “culturas" (I,II,III), das quais “I” é a menos resistente e "111” é a mais resistente a uma idéia específica. Uma análise de conteúdo dessas 12 atividades irá revelar padrões de ancoragem e metáforas ligados às três culturas, que diferem de acordo com seu grau de resistência.

FIGURA 1: MÍDIA CIENTÍFICA CLASSIFICADA POR RESISTÊNCIA E POPULARIZAÇÃO

Níveis de Resistência Grau de Popularização

I (baixo)

n

ffl (alto)

Científico Médio (baixo)

1

2

3

Elite Médio

4

5

6

Popular Médio (alto)

7

8

9

Uma estrutura hipotética de um sistema de comunicação com duas dimensões: resistência e popularização. Horizontalmente os canais de comunicação são classificados de acordo com o seu grau de resistência para com a fonte da informação, e verticalmente os canais são classifi­ cados de acordo com o grau de popularização, segundo o conceito de Hilgartner de continuum de popularização. Os números 1 a 9 repre­ sentam canais específicos de comunicação (revistas científicas, jornais, revistas, programas de televisão). As colunas verticais são diferentes representações sociais variando em forma e conteúdo.

Em 1950, era possível distinguir três meios culturais com diferentes representações da psicanálise na França. Hoje, precisamos identificar novamente quais as divisões culturais relevantes. O meio católico se desintegrou, na maioria dos países europeus, depois do processo de aber­ tura da Igreja e o mesmo aconteceu com o meio ligado ao partido comunista, muito antes da queda do muro que separava a Europa Oriental da Ocidental. A crise e declínio dos movimentos políticos ligados a esses movimentos na França, Itália, Espanha e outros países europeus mostra essas mudanças subjacentes. Dada essa situação, os estu­ dos sobre a popularização da ciência necessitam questio­ nar o que se constitui como diferencial nas representações de um tópico científico particular. Novos movimentos sociais, tais como o movimento antinuclear, pela paz, de libertação das mulheres e outros, podem ser candidatos para caracterizar uma segmentação cultural. Parece, con­ tudo, que esses movimentos sociais têm um período de vida muito curto, para sedimentar uma cultura coerente. Devemos, por isso, recorrer a dados estatísticos para iden­ tificar alguma associação estável entre as representações de um tópico e um grupo social definido (Doise et al., 1992). Ainda estamos longe de ter claro que tipo de clivagens culturais estão emergindo. O critério último seria encontrar alguma característica "objetiva", como língua, religião, região geográfica, renda, ou educação, que seja significante para as representações. Cientistas sociais depositam suas esperanças na identificação de padrões de valor ou padrões de consumo como formas emergentes de segmentação. Em um de nossos estudos sobre representações da hereditariedade humana, nós analisamos a cobertura de jornais sobre o Projeto Genoma, entre 1988 e 1992, e conduzimos 12 grupos focais - a maior parte na Grande Londres - sobre assuntos relacionados à genética (Durant et al., no prelo). O Projeto Genoma é um enorme projeto científico, cujo objetivo é mapear completamente a base genética da espécie humana. Naturalmente, isso dá origem a questões morais, legais e comerciais.

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