Terror e miséria no Terceiro Reich

August 19, 2017 | Author: Diego Pinheiro | Category: Woman, Nazi Germany, Marriage, Time, Youth
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Terror e miséria no Terceiro Reich.

Por Bertold Brecht Readaptação por Ananda Quintas PERSONAGENS: - MULHER - MARIDO - GAROTO - CRIADA

Colónia, 1935. Tarde chuvosa de domingo. Marido, mulher e filho acabaram de almoçar. Entra a criada.

CRIADA: O senhor e a senhora Pires perguntam se os senhores estão. MARIDO (resmungando): Não. A criada sai. MULHER: Era melhor você ter ido atender ao telefone. Eles sabem muito bem que não sairíamos a esta hora. MARIDO: Por que não sairíamos? MULHER: Porque está chovendo. MARIDO: Mas isso não é motivo. MULHER: Mas aonde iríamos? É a primeira coisa que pensariam. MARIDO: Há muito sítios onde poderíamos ir. MULHER: Então por que não vamos? MARIDO: Vamos onde? MULHER: Se não estivesse chovendo, pelo menos. MARIDO: E aonde iríamos se não estivesse chovendo? MULHER: Antigamente se podia ir à casa de alguém. Pausa. MULHER: Fez errado de não atender ao telefone, agora percebem que não os queremos aqui. MARIDO: E daí?

MULHER: É desagradável rejeitarmos a companhia deles, já que todos fazem o mesmo. MARIDO: Não estamos rejeitando a companhia deles. MULHER: Então porque falou que não estava? MARIDO: Porque o Pires é um tipo terrivelmente chato! MULHER: Mas antigamente não era. MARIDO: Antigamente! Não me irrite! Antigamente é antigamente! MULHER: De qualquer forma, você há um tempo não se afastaria dele só porque a Inspeção Escolar lhe moveu um inquérito. MARIDO: Tá me chamando de covarde? MULHER: Então liga pra lá e diz que acabamos de voltar por causa da chuva. A mulher não se mexe. MULHER: Digo a eles que venham aqui então? MARIDO: Para nos virem dar outra vez lições de entusiasmo pela Defesa Civil do Território? MULHER (para o garoto): Então, Henrique, deixe o telefone quieto. O garoto volta a ler o jornal. MARIDO: Justamente hoje chove! Não dá pra viver num lugar onde os dias de chuva são catástrofes! MULHER: Acha sensato fazer um comentário desses? MARIDO: Não posso dizer o que quero dentro da minha própria casa? Não admito que me limitem a... Interrompe-se. Entra a criada com as xícaras para o café. Na presença da criada se mantém o silêncio. MARIDO: É absolutamente necessário ter uma criada cujo pai é guarda? MULHER: Lembro que já falamos disso e você mesmo disse que tem suas vantagens. MARIDO: Disse isso e muito mais! E se falar pra sua mãe, vai ver só! MULHER: Falar o que pra minha mãe? A criada entra com o café. MULHER: Deixe lá, Erna. Pode sair. Eu cuido disso. CRIADA: Muito obrigada, minha senhora. Sai. GAROTO (levantando os olhos do jornal): Os padres são todos assim?

MARIDO: Assim como? GAROTO: Como diz aqui. MARIDO: Mas o que você está lendo? Arranca o jornal da mão. GAROTO: O nosso chefe de grupo disse que podemos ler tudo neste jornal. MARIDO: Mas o que o seu chefe de grupo diz não é lei para mim. Eu quem decide o que você pode ou não ler! MULHER: Pega dez reais e vai lá comprar alguma coisa na rua. GAROTO: Mas tá chovendo. Fica indeciso, olhando pela janela. MARIDO: Se essas notícias sobre os processos dos padres continuarem, não compro mais este jornal. MULHER: E qual mais vai comprar? Só tem esse! MARIDO: Então não compro nenhum! Não é isso que vai me desligar do mundo! MULHER: Até que uma limpeza faz bem. MARIDO: Limpeza! É tudo questão de política! MULHER: Política não importa para nós. Somos evangelistas. MARIDO: Mas importa ao povo! Não é o mesmo pensar numa sacristia com tias horrorosas à frente dos olhos. MULHER: Mas se essas coisas acontecem, o que eles vão fazer? MARIDO: O que vão fazer? Ao menos que olhassem também que o Estado tem a casa deles. Parece que nem tudo é asseio na sua Casa Escura. MULHER: Mas isso só mostra que estão tomando medidas para o saneamento do nosso povo, Carlos! MARIDO: Saneamento! Bela saúde! Se for assim, prefiro a doença! MULHER: Está muito nervoso hoje. Aconteceu algo na escola? MARIDO: Mas o que poderia acontecer na escola? E pare de dizer que sempre estou nervoso... Você falando me deixa mais! MULHER: Estamos sempre discutindo, Carlos. Antigamente... MARIDO: Já me faltava. Antigamente! Nem antigamente e nem agora consinto que envenenem o espírito do meu filho!

MULHER: Onde ele foi? MARIDO: E eu lá vou saber? MULHER: Você o viu sair? MARIDO: Não. MULHER: Não sei onde ele possa ter ido. MULHER (gritando): Henrique! Vai para fora da sala. Chama de novo. Sem resposta, volta. MULHER: Saiu mesmo! MARIDO: E porque não sairia? MULHER: Está chovendo muito! MARIDO: Mas porque está tão nervosa por ele ter saído? MULHER: De quem estávamos falando? MARIDO: O que isso tem a ver com o assunto? MULHER: Você anda tão descontrolado. MARIDO: Não me sinto descontrolado, mas se estivesse, o que isso teria a ver com a saída do garoto? MULHER: Você sabe que as crianças gostam de espiar. MARIDO: E daí? MULHER: E daí? E se ele sair contando tudo por aí? Sabe muito bem as coisas que falam para ele lá na Mocidade Hitleriana. Exigem que contem tudo. É estranho que tenha saído sem fazer qualquer barulho. MARIDO: Calma. MULHER: Não reparou quando ele saiu? MARIDO: Estava o tempo todo olhando pra janela! MULHER: Queria saber se ainda ouviu algo. MARIDO: Ele sabe muito bem o que acontece com as pessoas que são denunciadas. MULHER: E a história daquele rapazinho que os Silvas nos contaram? O pai ainda está no Campo. Se ao menos soubéssemos ao certo quanto tempo esteve aqui na sala. MARIDO: É um perfeito escândalo, isso sim! Percorre a casa chamando o garoto.

MULHER: Não acredito que saiu sem falar uma palavra. Não é normal. MARIDO: Só se foi na casa de algum amigo da escola. MULHER: Nesse caso só pode ter ido à casa dos Martins. Vou ligar para lá. MARIDO: Acho que tudo isso é um alarme falso. MULHER (ao telefone): Aqui é Ana Freitas. Bom dia, senhora dona Helena. O Henrique está aí? Não? Então não sei onde ele está mais. Diga-me uma coisa: a Mocidade está aberta aos domingos? Está? Muito obrigada, vou lá ver. Desliga. Marido e mulher ficam sentados em silêncio. MARIDO: Mas o que ele poderia ter ouvido? MULHER: Estava falando do jornal. Não devia ter falado aqui da Casa Escura! Ele já está feito um nacionalista! MARIDO: Mas o que eu disse sobre a Casa Escura? MULHER: Com certeza você se lembra. Que nem tudo por lá era asseio. MARIDO: Mas isso não pode ser interpretado como um ataque. Que lá não tem asseio ou, como eu disse que lá não tem muito asseio é diferente, muito diferente. É só um dito popular que não quer dizer mais do que isto: que mesmo lá, às vezes, com certeza as coisas não correm sem direitas, em todas as circunstâncias, como deseja nossa Führer. MULHER: Não precisa falar comigo assim. MARIDO: Gostaria que fosse preciso! Não tenho mais confiança no que você possa sair contando por aí. É claro que não estou acusando, mas você seria capaz. A verdade é que entre o mal e a consciência do mal há uma grande diferença. MULHER: Já chega! É melhor você colocar a sua própria língua de penitência! Estive aqui esse tempo todo tentando lembrar se você disse que não se podia viver na Alemanha de Hitler antes ou depois de ter falado na Casa Escura. MARIDO: Isso eu não disse. MULHER: Está agindo como se eu fosse a polícia! A única coisa que me preocupa é o que o garoto pode ter ouvido. MARIDO: A expressão “a Alemanha de Hitler” nem faz parte do meu vocabulário! MULHER: E o que você disse sobre o pai da criada ser guarda, e que nos jornais vinham mentiras, e depois disse sobre a Defesa Civil. O garoto não ouviu a mínima coisa positiva! Nada disso é bom para a formação da mentalidade de um jovem, só serve para pervertê-lo. E olha que o Führer sempre diz que “a juventude da Alemanha é o seu futuro”. O garoto não é de sair nos denunciando por aí. Estou indisposta. MARIDO: Mas vingativo é.

MULHER: E porque ele se vingaria? MARIDO: Sei lá. Sempre há motivo. Por eu ter tirado a rã dele, por exemplo. MULHER: Mas isso já foi há uma semana. MARIDO: Mas ele ainda não esqueceu. MULHER: E porque você tirou a rã dele? MARIDO: Porque ele nunca pegava moscas pra ela comer. Deixava morrer de fome. MULHER: Mas ele já tem tanta coisa pra se manter ocupado. MARIDO: A rã não tinha culpa disso. MULHER: Mas ele nunca mais falou da rã e eu ainda dei dez reais para ele. Vamos dar tudo o que ele quiser. MARIDO: Pois é, vamos suborná-lo. MULHER: O que você está dizendo? MARIDO: Logo vão dizer que estamos tentando suborná-lo para que ele fique quieto. MULHER: E o que podem fazer? MARIDO: Podem fazer tudo! Não há limites! Meu Deus! E ainda ser professor nessas condições! Educador da juventude! Temo por eles. MULHER: Mas eles não têm nada contra você. MARIDO: Todos têm coisas contra todos. Todos são suspeitos. MULHER: Mas uma criança não é uma testemunha confiável. Crianças não sabem o que falam. MARIDO: É a sua opinião. E desde quando precisam de testemunhas para fazer o que quiserem? MULHER: Não é melhor justificarmos as suas observações? Assim ele pode ter ouvido mal. MARIDO: Nem lembro mais o que falei! Essa chuva horrível é responsável por tudo isso! Nos deixa de mau humor. MULHER: Olha Carlos, não temos tempos para falar isso. Temos que preparar tudo cuidadosamente. Não podemos perder tempo. MARIDO: Não creio que o Henrique seria capaz de uma coisa dessas. MULHER: Primeiro foi a história da Casa Escura e da porcaria.

MARIDO: Eu não falei em porcaria. MULHER: Disse que o jornal só trazia porcaria e que ia desistir da assinatura. MARIDO: Do jornal, sim. Mas não falei isso da Casa Escura! MULHER: Pense bem! Não disse que desaprovava que nas sacristias se passassem porcarias como essa? E não disse que deviam ter espalhado essas histórias monstruosas a respeito da Casa Escura e que eles é que diziam que lá havia pouco asseio? E disse ao garoto para deixar o telefone e ler o jornal porque, na sua opinião, a juventude do Terceiro Reich tem que ter os olhos bem abertos para o que se passa à sua volta? MARIDO: Isso não serve pra nada. MULHER: Não desanime. Tem que ser forte. MARIDO: Mas eu não posso achar que vão me sentar no banco dos réus e pôr a minha própria carne e o meu sangue na barra da justiça. MULHER: Mas a ele ainda não fizeram nada. MARIDO: Não, mas há um inquérito a caminho. MULHER: Se todos os que têm um inquérito se desesperassem! MARIDO: Acha que o guarda terá algo contra nós? MULHER: Já pensou no caso de nos interrogarmos? Até agora já levou uma caixa de charutos e uma bela gorjeta no final do ano da gente. MARIDO: Os vizinhos já deram quinze reais! MULHER: Mas esses ainda leram o “Avante” no dia trinta e dois do mês de Maio de 1933 e içaram à janela a bandeira branca, preta e vermelha. Toca o telefone. MARIDO: O telefone! MULHER: Atendo? MARIDO: Não sei. MULHER: Quem pode ser? MARIDO: Espera um pouco. Se tocar de novo, atende. Esperam. O telefone pára de tocar. MARIDO: Se isto é vida! MULHER: Carlos!

MARIDO: Gerou um Judas no seu ventre! À nossa mesa, come a sopa que lhe damos e escuta. Dá conta de tudo o que nós dizemos, nós que o criamos. O canalha! MULHER: Não diga uma coisa dessas! Pausa. MULHER: Acha que é melhor fazermos qualquer coisa? MARIDO: Quer dizer que eles podem aparecer logo? MULHER: Acha que sim? MARIDO: É melhor eu colocar minha cruz de ferro. MULHER: Isso nem se pergunta, Carlos! Vai buscar a cruz e a põe com as mãos tremendo. MULHER: Mas na escola ainda não tomaram nenhuma medida contra você, né? MARIDO: Como posso saber? Estou perfeitamente disposto a ensinar o que eles quiserem que eu ensine, mas o que eles querem? Se eu soubesse, ao menos! Como saberei se querem que eu diga que foi o Bismarck, se os novos livros não aparecem mais?! Não será melhor dar dez reais à criada? Ela também espiona! MULHER (assentindo com a cabeça): E se puséssemos a foto de Hitler na parede? Dava melhor aspecto. MARIDO: Põe. A mulher menciona tirar a foto do sítio que estava pendurada. MULHER: E se o garoto disser que mudamos de repente? É estranho! A mulher volta a pendurar a foto do sítio no lugar onde estava. MARIDO: Não abriram agora a porta? MULHER: Não ouvi nada. MARIDO: Abriram! MULHER: Carlos! Abraça o marido. MARIDO: Não fique nervosa! Arranje uma mala com roupas! A porta de entrada abre ruidosamente. Marido e mulher, juntos, tensos, imóveis num dos cantos da sala. A porta da sala abre e entra o garoto com um saco de bombons na mão. GAROTO: Mas o que aconteceu? MULHER: Onde esteve? O garoto exibe o saco dos bombons. MULHER: Foi comprar isso? GAROTO: O que poderia ter feito? Fui! Sai comendo os chocolates. Os pais o seguem com um olhar desconfiante.

MARIDO: Acha que ele disse a verdade? A mulher encolhe os ombros.

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