Teoria Da Historia I

April 24, 2019 | Author: GustavoRosario | Category: Historiography, Higher Education, Sociology, Distance Education, Time
Share Embed Donate


Short Description

TEORIA DA HISTORIAI...

Description

EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

História LICENCIATURA EM

TEORIA DA HISTÓRIA 1 MARCO AURÉLIO MONTEIRO PEREIRA  JANAÍNA DE PAULA DO ESPÍRITO SANTO SANTO RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

PONTA GROSSA - PARANÁ 2009

CRÉDITOS Universidade Estadual de Ponta Grossa  João Carlos Gomes Reitor

Carlos Luciano Sant’ana Vargas  Vice-Reitor Pró-Reitoria de Assuntos Administrativos

Ariangelo Hauer Dias – Pró-Reitor Pró-Reitoria de Graduação

Graciete Tozetto Góes – Pró-Reitor Divisão de Programas Especiais

Maria Etelvina Madalozzo Ramos – Chefe Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância

Leide Mara Schmidt – Coordenadora Geral Cleide Aparecida Faria R odrigues – Coordenadora Pedagógica Sistema Universidade Aberta do Brasil

Hermínia Regina Bugeste Marinho – Coordenadora Geral Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Adjunta Curso de História – Modalidade a Distância

Myriam Janet Sacchelli – Coordenador Colaborador Financeiro

Luiz Antonio Martins Wosiak

Colaboradores em Informática

Carlos Alberto Volpi Carmen Silvia Simão Carneiro Adilson de Oliveira Pimenta Júnior  Juscelino Izidoro de Oliveira Júnior Osvaldo Reis Júnior Kin Henrique Kurek Thiago Luiz Dimbarre Thiago Nobuaki Sugahara Colaboradores em EAD

Dênia Falcão de Bittencourt  Jucimara Roesler Colaboradores de Publicação

Anselmo Rodrigues de Andrade Júnior – Diagramação Denise Galdino de Oliveira – Revisão  Janete Aparecida Luft Luft – Revisão Colaboradores Operacionais

Edson Luis Marchinski  Joanice de Jesus Küster de de Azevedo  João Márcio Duran Inglêz Inglêz Maria Clareth Siqueira Mariná Holzmann Ribas

Colaborador de Planejamento

Silviane Buss Tupich Todos os direitos reservados ao NUTEAD - Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, Para Paraná, ná, Brasil. Ficha catalográca elaborada pelo Setor de Processos Técnicos BICEN/UEPG.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância - NUTEAD Av. Gal. Carlos Cavalcanti, Cavalcanti, 4748 - CEP 84030-900 - Ponta Grossa - PR Tel.: (42) 3220 3163 www.nutead.uepg.br 2009

APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL Prezado estudante Inicialmente queremos dar-lhe as boas-vindas à nossa instituição e ao curso que escolheu.  Agora, você é um acadêmico da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), uma renomada instituição de ensino superior que tem mais de cinqüenta anos de história no Estado do Paraná, e participa de um amplo sistema de formação superior criado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2005, denominado Universidade Aberta do Brasil (UAB). O Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) não propõe a criação de uma nova instituição de ensino superior, mas sim, a articulação das instituições públicas já existentes, possibilitando levar ensino superior público de qualidade aos municípios brasileiros que não possuem cursos de formação superior ou cujos cursos ofertados não são suficientes para atender a todos os cidadãos. Sensível à necessidade de democratizar, com qualidade, os cursos superiores em nosso país, a Universidade Estadual de Ponta Grossa participou do Edital de Seleção UAB nº 01/2006-SEED/MEC/2006/2007 e foi contempladas contempladas para desenvolver seis cursos de graduação e quatro cursos de pós-graduação pós-graduação na modalidade a distância. Isso se tornou possível graças à parceria estabelecida entre o MEC, a CAPES e as universidades brasileiras, bem como porque a UEPG, ao longo de sua trajetória, vem acumulando uma rica tradição de ensino, pesquisa e extensão e se destacando também na educação a distância,  A UEPG é credenciada pelo MEC, conforme Portaria nº 652, de 16 de março de 2004, para ministrar cursos superiores (de graduação, seqüenciais, extensão e pósgraduação lato sensu) na modalidade a distância. Os nossos programas e cursos de EaD, apresentam elevado padrão de qualidade e têm contribuído, efetivamente, para a democratização do saber universitário, destacandose o trabalho que desenvolvemos na formação inicial e continuada de professores. Este curso não será diferente dos demais, pois a qualidade é um compromisso da Instituição em todas as suas iniciativas. Os cursos que ofertamos, no Sistema UAB, utilizam metodologias, materiais e mídias próprios da educação a distância que, além de facilitarem o aprendizado, permitirão constante interação entre alunos, tutores, professores e coordenação. Este curso foi elaborado pensando na formação de um professor competente, no seu saber , no seu saber  saber fazer  fazer  e  e no seu fazer saber . Também Também foram contemplados aspectos éticos e políticos essenciais à formação dos profissionais da educação. Esperamos que você aproveite todos os recursos que oferecemos para facilitar o seu processo de aprendizagem e que tenha muito sucesso na trajetória que ora inicia. Mas, lembre-se: você não está sozinho   nessa jornada, pois fará parte de uma ampla rede colaborativa  e poderá interagir   conosco sempre que desejar, acessando nossa Plataforma Virtual de Aprendizagem (MOODLE) ou utilizando as demais mídias disponíveis para nossos alunos e professores. Nossa equipe terá o maior prazer em atendê-lo, pois a sua aprendizagem é o nosso principal objetivo. EQUIPE DA UAB/ UEPG

SUMÁRIO ■

PALAVRAS DO PROFESSOR 9



OBJETIVOS &  EMENTA 9

O CONCEITO DE HISTÓRIA ■ ■ ■

SEÇÃO 1- HISTÓRIA SEÇÃO 2 - HISTORICIDADE SEÇÃO 3 - HISTORIOGRAFIA

11 12 14 17

A HISTORIOGRAFIA NOS PRIMÓRDIOS E NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 21 ■ ■ ■

SEÇÃO 1-  AS SOCIEDADES SEM ESCRITA: UM DIÁLOGO CRÍTICO SEÇÃO 2 - MITOS DE ORIGEM E CRÔNICAS REAIS SEÇÃO 3 - O EXTREMO ORIENTE: O CASO DA CHINA

A HISTORIOGRAFIA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA ■ ■ ■

SEÇÃO 1 -  A HISTORIOGRAFIA NA GRÉCIA ANTIGA SEÇÃO 2 -  A HISTORIOGRAFIA EM ROMA SEÇÃO 3 -  A HISTORIOGRAFIA CRISTÃ ANTIGA

A HISTORIOGRAFIA MEDIEVAL E RENASCENTISTA ■ ■ ■ ■

SEÇÃO 1 - POSSIBILIDADE DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA NA IDADE MÉDIA SEÇÃO 2 -  A HISTORIOGRAFIA CRISTÃ MEDIEVAL SEÇÃO 3 -  A HISTORIOGRAFIA LAICA SEÇÃO 4 -  A HISTORIOGRAFIA RENASCENTISTA

A HISTORIA ENTRE A FILOSOFIA E A CIÊNCIA ■ ■ ■

■ ■ ■

SEÇÃO 1 -  A CRISE DA HISTÓRIA NO SÉCULO XVII SEÇÃO 2 - HISTÓRIA E ERUDIÇÃO SEÇÃO 3 - HISTÓRIA E FILOSOFIA PALAVRAS FINAIS 101 REFERÊNCIAS 103 NOTAS SOBRE OS AUTORE S 105

22 27 30

37 39 47 52

65 66 68 72 77

87 88 91 95

PALAVRAS DO PROFESSOR  A disciplina que você iniciará agora, Teoria da História I, faz parte dos componentes teórico-historiográficos do nosso curso de Licenciatura em História. Ela é a primeira parte de um núcleo que é formado pelas disciplinas de Teoria da História I, II, III, e IV, onde são tratados temas pertinentes às concepções históricas e à escrita da História desde os primórdios até a contemporaneidade. Este conjunto de disciplinas se propõe a um olhar sobre a história da  história, ou, melhor dizendo a  história da produção histórica nas diversas culturas humanas, com ênfase para as componentes da tradição judaicocristã ocidental. Nesta primeira disciplina, Teoria da História I, você vai analisar um longo percurso das concepções históricas e da escrita da História. Esse percurso se inicia com apanhado semântico-conceitual dos termos  história, historicidade e historiografia. Em seguida, você verá a análise e a crítica das posturas tradicionais sobre as concepções históricas das sociedades sem escrita presentes na historiografia contemporânea.  A seguir, irá para as primeiras formas de concepção da escrita da história nos povos antigos, com destaque para a primeira construção de identidade histórica, com o estudo de caso do antigo povo de Israel. Depois, terá uma breve passagem pela historiografia do Antigo Extremo Oriente, especificamente da China, para analisar os seus rudimentos. O percurso de análise historiográfica irá levá-lo, depois, para os fundamentos da historiografia ocidental, com a análise das concepções historiográficas na cultura grega, helenística, berços das concepções históricas e historiográficas do Ocidente. Partindo da Grécia e da expansão helenística, você passará a analisar a influência helenística sobre a historiografia da Roma Antiga e as características originais do pensamento historiográfico romano. O advento do cristianismo, com sua origem nas matrizes judaica, helenística e romana e sua concepção finalista de História, será analisado a seguir, em sua constituição e formas de expressão historiográfica na  Antigüidade Tardia. A consolidação da hegemonia e o início da crise da historiografia cristã na Idade Média e no Renascimento serão abordados na seqüência. O curso conclui-se com a análise da crise da História no século XVII, com o advento do racionalismo cientificista cartesiano e o processo de redirecionamento da escrita da História para uma vertente filosófica e outra metódico-científica.  A proposta de abordagem do conteúdo do curso não é factualizante, mas centrada nas possibilidades de compreensão crítica das concepções históricas e da escrita da história nas diferentes culturas e sociedades estudadas. É um curso que se funda em concepções de história e de historiografia centradas em sua dimensão cultural e social, expressão de projetos identitários tanto externa quanto internamente a cada sociedade analisada.

OBJETIVOS & EMENTA A presente disciplina tem por objetivo construir o campo conceitual-semântico da história para compreender suas formas de escrita e funcionalidades sociais nas sociedades antigas, medieval, renascentista e moderna, como subsídio para a compreensão das diferentes dimensões do conhecimento histórico na contemporaneidade.

OBJETIVOS Construir, a partir da análise dos termos história, historicidade e historiografia, o campo conceitual da história enquanto prática social. Analisar as diferentes formas de expressão e de função social da escrita da ■ história nas sociedades antigas, medieval, renascentista e moderna. Construir conceitualmente a concepção de história como produto social, cultural ■ e ideológico, com formas e sentidos diversos nas diferentes sociedades, culturas e relações de poder. Fornecer subsídios para a compreensão das formas de expressão e funções ■ sociais da história na contemporaneidade pela análise das expressões da historiografia em outras sociedades, ao longo do tempo. ■

EMENTA Conceitos de história, historiografia e historicidade. A historiografia nas sociedades sem escrita. Mitos de origem e crônicas reais. A historiografia grega antiga. A historiografia em Roma. A historiografia cristã antiga. Historiografia medieval. Historiografia no Renascimento. A ruptura cartesiana e o nascimento da erudição. ■

O Conceito de História

MARCO AURÉLIO MONTEIRO PEREIRA  JANAÍNA DE PAULA DO ESPÍRITO SANTO RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ■

Compreender o significado semântico e historiográfico dos termos

fundamentais para a Teoria da História: História, Historicidade e Historiografia. ■

Entender e analisar a aplicação correta das diversas dimensões do termo

História. ■

Construir as dimensões distintas de emprego do termo Historicidade e sua

aplicação na escrita da História. ■

Compreender o conceito de Historiografia e dominar a distinção entre esse

conceito e os de História e Historicidade. ■

Elaborar, a partir do estudo da Unidade, definições de História e da prática

da escrita da História.

ROTEIRO DE ESTUDOS ■

SEÇÃO 1 – História



SEÇÃO 2 – Historicidade



SEÇÃO 3 – Historiografia

   I    E    D    A    D    I    N    U

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

PARA INÍCIO DE CONVERSA Olá!!! Bem-vindo(a) ao curso de Teoria da História I. Aqui você terá um apanhado conceitual e historiográfico sobre a escrita da História ao longo de vários séculos em diversas culturas e sociedades. Tratar as dimensões conceituais que dizem respeito à história é sempre um desafio. Esse desafio é respondido por mais de uma disciplina deste curso. Aqui, em Teoria da História I , nós vamos discutir as possibilidades de uma definição dos termos centrais do campo histórico a partir de uma análise dos próprios termos.  As palavras carregam significados, não apenas em relação àquilo que designam, mas em si próprias. A tentativa de compreensão destes significados intrínsecos ajuda muito a compreender aquilo que as palavras pretendem significar. Compreender a formação etimológica e semântica dos termos principais do campo do conhecimento histórico é um ótimo ponto de partida para a análise das formas de concepção e escrita da história nas diversas culturas e sociedades humanas ao longo do tempo. Assim, vamos iniciar nossa jornada tentando construir propostas de denições, não para os campos, mas para as palavras que signicam os principais campos do conhecimento histórico e que sintetizam as concepções e fazeres históricos: história, historicidade e historiografa.

SEÇÃO 1 HISTÓRIA

Nesta seção, você tomará contato com as diferentes significações e acepções da palavra História, e também conhecerá uma proposta de conceituação de História a partir de suas dimensões semânticas.O conceito de História é uma coisa bastante complexa e difícil de ser trabalhada. Complexa porque o termo História é polissêmico, isto é, tem mais que um significado. A palavra História tem, pelo menos, três significados principais: História como o processo de vida dos homens em sociedade no tempo. É o que poderíamos chamar de “História vivida”.

12 UNIDADE 1

História como as representações do processo de vida dos homens

em sociedade no tempo. É o que poderíamos chamar de “História representada”. É o campo da História como produto de uma “elaboração científica”. História como a designação de uma “narração ordenada” qualquer. É o espaço, quer de uma narração baseada na “realidade histórica”, quer dos contos de fadas, dos “romances históricos”. Seu caráter é essencialmente narrativo, e a questão da verdade acontecimental não se coloca aí como fundamental. E para complicar um pouco mais a coisa, estes três significados se misturam, se interpenetram numa relação de amálgama que torna bastante difícil sua separação em definições específicas e estanques.  Alguns idiomas tentam escapar desta ambigüidade. O inglês, com History e Story ; o italiano, que usa a palavra storigrafia para designar a ciência histórica e sua produção; e o alemão, que designa a ciência histórica como Geschichtwissenschaft e a atividade “científica” em geral como Geschichtschreibung. Mas, de toda forma, sempre há uma zona de sombra, um espaço ambíguo e indefinível que constitui a própria essência da história. Como diz Jacques Le Goff: “Falar de História não é fácil, mas estas dificuldades de linguagem introduzem-nos no próprio âmago das ambigüidades da história” (LE GOFF, 1985, p. 158).

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Mas, enm, o que signica a palavra História? Uma das saídas possíveis para uma proposta de conceituação, mesmo que aproximada, é um panorama etimológico e semântico da palavra História.  A palavra história vem do grego jônico historie. Esta forma, por sua vez, se origina da raiz indo-européia wid - weid, que se refere a “ver”. Desta raiz se originam o sânscrito vettas “testemunha” e o grego  histor , também significando “testemunha”, no sentido de “aquele que vê”. “Esta concepção da visão como fonte essencial do conhecimento leva-nos à idéia que  histor ‘aquele que vê’ é também aquele que sabe;  historien em grego antigo é ‘procurar saber’, ‘informar-se’. Historie significa pois ‘procurar’”. E é este o sentido da palavra história em suas origens na tradição ocidental. Para Heródoto, suas Histórias são “investigações”,

13 UNIDADE 1

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

“procuras” (LE GOFF, 1985, p.158). História pode se definir, assim, como o espaço do conhecimento não apenas visto e elaborado, mas também transmitido, testemunhado. O testemunho é um “ato de fé”, uma ação social. Ver , saber e testemunhar se configuram, assim, na essência conceitual da palavra História. Isto nos coloca diante da segunda assertiva do início do texto. Por ser ambígua, a conceituação de História é difícil. E fica ainda mais difícil porque a ambigüidade do termo não é apenas semântica, é também de caráter epistemológico. Como visão, testemunho e conhecimento, a História assume formas diferentes em sociedades diversas e mesmo em espaços sociais distintos numa mesma sociedade. Estas formas respondem a uma questão fundamental comum a todas as expressões do campo: como definir o que é e o que não é histórico? A resposta para isto está no conceito de  historicidade, que você irá estudar a seguir.

SEÇÃO 2

HISTORICIDADE O fato de a palavra História ser polissêmica deve levá-lo a refletir sobre o que é histórico e o que não é. Esta reflexão será auxiliada pelo estudo de um segundo termo fundamental para o seu estudo, o conceito de historicidade. Grosso modo, pode-se dizer que historicidade é o atributo daquilo que é histórico. Porém esta definição simples não satisfaz, pois não especifica os parâmetros de definição daquilo que é histórico e aquilo que não é.Le Goff, ao discutir a questão em seu artigo História na Enciclopédia Einaudi , coloca dois momentos de constituição do conceito de historicidade. O termo historicidade surge no francês em 1872 (LE GOFF, 1985, p. 159). Num primeiro momento, durante o século XIX, historicidade é vista como “uma função, ou melhor, uma categoria do real”. Na definição de Charles Morazé: Devemos procurar para além da geopolítica, do comércio, das artes e da própria ciência, aquilo que justifica a atitude de obscura certeza dos homens que se unem, arrastados pelo enorme fluxo do progresso que os especifica, opondoos. Sente-se que esta solidariedade está ligada à

14 UNIDADE 1

existência implícita que cada um experimenta em si, duma certa função comum a todos. Chamamos a esta função historicidade (MORAZÉ, 1967, p. 59, apud LE GOFF, 1985, p. 159).

O segundo momento ocorre mais tarde, contemporaneamente, na segunda metade do século XX, onde o conceito de historicidade desligase de suas origens do século XIX e passa a assumir um papel de ponta na escrita da história como produção cultural e social intrinsecamente ligada à prática do historiador.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Ela obriga a inserir a própria história numa  perspectiva histórica: “Há uma historicidade da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social”

[CERTEAU 1970, p. 484]. (...) Paul Veyne tira uma dupla lição do fundamento do conceito de historicidade. A historicidade permite a inclusão no campo da ciência histórica de novos objetos da história: o non-événementiel; trata-se de acontecimentos ainda não reconhecidos como tais: história rural, das mentalidades, da loucura ou da procura de segurança através das épocas. Chamaremos non-événementiel à historicidade de que não temos consciência enquanto tal. Por outro lado, a historicidade exclui a idealização da  história, a existência da História com H maiúsculo: “Tudo é histórico, logo a história não existe” (LE GOFF, 1985, p. 159).

- Mas como a historicidade dene limites para o trabalho do historiador?  A partir do conceito de historicidade como definidor de limites para a prática do historiador, as ambigüidades da história encontram um espaço onde se constituem num discurso coerente e rigoroso, embora centrado na narrativa e que contém uma carga indissociável de componentes sócioculturais e ideológicos. Para Paul Veyne, a história é um “conhecimento mutilado”, imperfeito: “A história não comporta o limite de conhecimento nem o mínimo de inteligibilidade e nada do que foi, desde que o foi, é inadmissível. A história não é, portanto, uma ciência; ela não tem por isso menos rigor, mas esse rigor coloca-se ao nível da crítica.” (VEYNE, 1983, p. 25)

15 UNIDADE 1

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Le Goff, neste contexto, aborda a história a partir de uma definição dura e pessimista de Paul Ricoeur:  A história só é história na medida em que não consente nem no discurso absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida em que o seu sentido se mantém confuso, misturado (...)  A história é essencialmente equívoca, no sentido que é virtualmente événementielle e virtualmente estrutural. A história é na verdade o reino do inexacto. Esta descoberta não é inútil; justifica o historiador. Justifica todas suas incertezas. O método histórico só pode ser um método inexacto... A história quer ser objectiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstituir a distância e a profundidade da lonjura histórica. Finalmente, esta reflexão procura justificar todas as aporias do ofício de historiador, as que Marc Bloch tinha assinalado na sua apologia da história e do ofício de historiador. Estas dificuldades não são vícios do método, são equívocos bem fundamentados. (RICOEUR 1961, p.226, apud LE GOFF, 1985, p. 161)

 Assim, a atribuição de historicidade possui, inicialmente, uma dimensão ideológica nacionalista que se ressignifica, até pelo próprio triunfo do Estado Nacional no Ocidente, em uma dimensão de delimitação de objetos de estudo e,em última análise, de campo de conhecimento. Porém, fica claro, a partir da análise dos termos história e historicidade, o caráter definidor da prática concreta do historiador, daquele que escreve a história, para o campo do conhecimento histórico. No entanto, esta prática de escrita da história não é nem individual nem difusa. É construída cultural e socialmente e tem objetivos, propósitos de diversos matizes (políticos, ideológicos, religiosos, econômicos, etc.), que não são excludentes, mas se articulam no fazer a si mesmas das culturas e sociedades. É este conjunto de concepções e práticas que especificam as formas pelas quais as diferentes sociedades concebem e praticam a escrita da história que você verá a seguir na análise do termo historiografia.

16 UNIDADE 1

SEÇÃO 3

HISTORIOGRAFIA Os conceitos de História e Historiografia que você trabalhou até aqui devem, naturalmente, encaminhá-lo para uma terceira dimensão conceitual no campo da História. É o estudo do termo Historiografia, que você verá a seguir. É no espaço do “equívoco bem fundamentado” posto anteriormente por Paul Veyne, que se desenrola a prática do historiador, enquanto construtor e narrador de fatos, ações, pensamentos, conjunturas e estruturas dos homens no tempo e no seu tempo. É nesse momento que deve ser considerado, ao lado dos termos História e Historicidade, o terceiro elemento da tríade básica do conhecimento histórico: o conceito de Historiografia. Pode-se conceituar historiografia utilizando a definição do Dicionário  Aurélio, onde historiografia é o “estudo histórico e crítico acerca da história ou dos historiadores” (FERREIRA, s/d, verbete Historiografia, p. 729). O conhecimento histórico se produz social e historicamente. Mas as sociedades possuem idéias e concepções diversas sobre a natureza e a dimensão da produção desse conhecimento. A recuperação e a análise das diferentes formas de concepção e escrita da história, nas diferentes sociedades, definem o âmbito da historiografia. Ela é uma produção cultural, um processo social e ideológico dotado de intencionalidades e objetivos explícitos e também implícitos em suas formulações e práticas. Historiografia não é conceito universal, “nomotético”, isto é, que é relativo a lei ou a legislação. E aqui diz respeito a um conhecimento que se formula explicitando leis de validade universal.  É, sim, um conjunto de concepções históricas e práticas de escrita da história que atende às demandas de seu espaço e tempo cultural e social. Ela é, por definição, plural e multiforme, posto que fundamental para a construção de identidades sociais fundadas na especificação e diferenciação de uma cultura, sociedade, nação ou Estado dos demais.  Assim, a partir da constatação dessa pluralidade característica e intrínseca à historiografia, é que você vai, ao longo de nosso curso, fazer um estudo crítico, percorrendo as matrizes relevantes para a compreensão

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

17 UNIDADE 1

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

18 UNIDADE 1

de nossa contemporaneidade, dos processos de construção, representação e finalidades das concepções de história e práticas de escrita da história em seus diversos espaços, geográficos e sociais, e tempos, cronológicos e culturais, que especificam as diferentes culturas e sociedades. Neste “estudo crítico” vai ser adotada uma perspectiva histórica, na descrição das relações que diversas culturas e sociedades mantiveram com seu passado e o lugar nelas ocupado pela história. É usada uma perspectiva cronológica, evidentemente descartada a idéia de progresso, e privilegiada, até por conta da bibliografia disponível, a tradição ocidental.

Um texto fundamental para a compreensão das nuances conceituais envolvidas no fazer histórico pode ser encontrado em: LE GOFF, Jacques. História. In. Enciclopédia Einaudi, vol.1. Lisboa:

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

LE GOFF, Jacques (coord.). Memória-História. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

É uma leitura imprescindível para que você domine de forma segura o campo conceitual da História.

1.

Construa três narrativas curtas, cada uma delas a partir de uma das dimensões do termo História.

2.

Quais são os limites dos objetos que podem ser tratados pela História? Construa sua reexão a

3.

partir da citação de Paul Veyne feita por Jacques Le Goff. Se Historiografa é , conforme você já viu, o “estudo histórico e crítico acerca da história ou dos historiadores”, com qual dimensão da palavra História ela se relaciona?

4. 5.

O texto nos fala de um passado construído culturalmente e de forma diversa pela Historiograa. Reita e construa um texto, com sua opinião sobre a questão da verdade na escrita da História. Elabore, a partir dos conceitos de História, Historicidade e Historiografa, uma denição pessoal, sua, sobre o que é aquilo que Marc Bloch chama de “ofício de Historiador”.

Nesta Unidade I: O Conceito de História , você conheceu as denições dos três termos fundamentais para o campo do conhecimento histórico e para a prática do historiador. Na Seção 1 – História, você pôde perceber que a conceituação do termo História é complexa e difícil,

pela polissemia da palavra história e porque os seus três signicados principais são usados de forma livre. Aprendeu, também, a genealogia da palavra História, desde suas origens remotas no sânscrito até sua concepção grega, que se traduzem na tríade “ver, saber, testemunhar”. Na seção seguinte, que trata da historicidade, você viu que a palavra diz respeito à denição daquilo que é histórico e aquilo que não é. Viu também as complexidades e ambigüidades presentes no fazer histórico.

Já a Seção 3 – Historiograa, apresentou-lhe as possibilidades de visões diferenciadas na escrita da História, e anunciou o rumo de seu estudo daqui pra frente.

Siga em frente, sempre pensando na História como o espaço do passado vivido e construído, presenciado e representado, mas, principalmente, vivo para você e para aqueles que o cercam. Bom estudo!!!

19 UNIDADE 1

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

20 UNIDADE 1

A Historiografia

nos primórdios e na antiguidade oriental MARCO AURÉLIO MONTEIRO PEREIRA  JANAÍNA DE PAULA DO ESPÍRITO SANTO RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ■

Apreender as dimensões essenciais da historiografia dos povos sem

escrita e as leituras etnocêntricas de que são objeto pela historiografia européia tradicional. ■

   I    I    E    D    A    D    I    N    U    1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Conhecer as dimensões de uma incipiente historiografia postas nos

mitos de origem e nas crônicas reais do Antigo Oriente Próximo. ■

Tomar contato com as dimensões da história na cultura chinesa

antiga, com suas especificidades e idiossincrasias que a distinguem das concepções historiográficas ocidentais.

ROTEIRO DE ESTUDOS ■

SEÇÃO 1 - As Sociedades sem Escrita: um Diálogo Crítico



SEÇÃO 2 - Mitos de Origem e Crônicas Reais



SEÇÃO 3 - O Extremo Oriente: o Caso da China 21 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

PARA INÍCIO DE CONVERSA Olá!!! Bem-vindo à segunda unidade do curso de Teoria da História I. Nesta unidade, você irá tratar das primeiras formas de expressão de concepções históricas e das origens remotas da historiografia. É um percurso que o levará à interpretação das concepções históricas dos povos sem escrita e sua possibilidade, num diálogo crítico com um dos maiores expoentes da análise historiográfica do século XX, Charles-Olivier Carbonell. Este diálogo se estabelece principalmente com as assertivas de Carbonell no seu livro Historiografia, no capítulo I: “Pré-História, a memória antes da escrita” (CARBONELL, 1987, p. 9-13). Em seguida, você analisará as primeiras manifestações escritas de concepções e relatos históricos nos anais e crônicas reais do Antigo Oriente Próximo, com a análise de um caso clássico de construção de identidade étnica, cultural e social fundada na história: o Israel Antigo. Outro estudo de caso, até para a percepção da extrema variedade de concepções históricas e práticas historiográficas virá do Antigo Extremo Oriente: a China, com suas dimensões ideológicas, moralizantes e augurais da escrita da história.

SEÇÃO 1

AS SOCIEDADES SEM ESCRITA: UM DIÁLOGO CRÍTICO Nesta seção você irá tomar contato com as formas de expressão histórica das sociedades sem escrita, a leitura de cunho etnocêntrico que é feita destas expressões por uma historiografia européia tradicional, além da crítica a estas leituras.  As primeiras manifestações de algo similar a uma consciência histórica e da elaboração de concepções e práticas de narrativa histórica estão nas genealogias preservadas pela tradição oral, recorrentes nas sociedades tribais africanas e da Oceania.

22 UNIDADE 2

Mas como isso é representado na produção dos historiadores? São manifestações sem a sofisticação metodológica e conceitual das sociedades mais complexas, consideradas por expressivos contingentes dos historiógrafos modernos como a pré-história da historiografia, fundados numa concepção de historiografia definida pela presença da escrita. É o caso de Charles-Olivier Carbonell, que define como “pré-história da historiografia” as sociedades que fundam suas práticas historiográficas na tradição oral. Apesar disso, o autor reconhece nessas sociedades a busca do conhecimento de seu passado, de sua memória coletiva.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Foram muito numerosas [...] as sociedades sem historiografia. Mas não se conhece nenhuma, por mais rude que sejam a sua linguagem, a sua organização, as suas técnicas e os seus modos de pensar, que não possua um conhecimento do seu passado. Nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo, recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer. (CARBONELL, 1987, p. 9)

Porém, esta preservação da memória coletiva não configura para Carbonell uma atitude historiográfica concreta, por ser essa forma de preservação da memória “pobre, confusa e frágil”: - Pobre, porque depende unicamente das capacidades do cérebro e, qual depósito sagrado, está confiada a um grupo restrito: quimbandas da África ocidental, biru do Ruanda, haérè-po da Polinésia... Pobre, principalmente, porque há pouco a conservar nas sociedades cristalizadas, muitas vezes isoladas, em que as técnicas estagnam e os géneros de vida se perpetuam. O tempo cíclico do eterno retorno das estações e o tempo imutável de um mundo em equilíbrio decretam o vazio da história. [...] - Confusa porque a memória veicula o que está fora do tempo. Ela não diz a evolução do grupo, mas as suas origens. Não ensina o que foi vivido, mas a fábula; não revela uma direção , mas uma mensagem ontológica: De onde vem o homem? O que é morrer? Que laços se podem urdir com Deus? No essencial, a memória mobiliza-se para a transmissão impecável dos mitos fundadores.

23 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

[...] - Frágil é a memória histórica, sem dúvida ainda mais do que a mítica. As vicissitudes políticas comandam por vezes prudentes amnésias – primeira forma do revisionismo histórico! – ou acrobáticas fusões de listas. A falha pode também ser involuntária. Tomam-se certamente precauções para preservar a pureza das tradições : as recitações são públicas e solenes, os depositários podem formar uma espécie de colégio (quatro biru em Ruanda, o conjunto dos príncipes do reino dos Mossi, por exemplo). Apesar disso, o fio pode quebrar-se e a litania salmodiada interromper-se [...].(CARBONELL, 1987, p. 10-12)

 A esta tripla dimensão de pobreza, confusão e fragilidade, Carbonell acrescenta a ausência de concepções temporais definidas e organizadas em padrões contemporâneos de linearidade e universalidade.  A memória gasta-se. Por isso, quando se trata de acontecimentos humanos, a profundidade do olhar raramente atinge três séculos. É o caso das tradições merina escolhidas por volta de 1870 pelo P.e Callet. Mas quando Ibn Batuta, «o viajante do Islão», visita em 1352 as grandes cidades do Mali, não consegue aprender lá nada que seja anterior ao ano de 1150 de nossa era. Quanto aos Fang do Gabão, se alguma de suas genealogias têm a riqueza de uma dezena de gerações, é porque chegam até Deus! (CARBONELL, 1987, p. 12-13)

Veja agora como essa questão pode ser vista com um olhar diferente. Essa demonstração de Carbonell, da aparente fragilidade e inconsistência das formas de preservação da memória coletiva e concepções temporais das sociedades fundadas na tradição oral, merece uma análise mais detida, por representar o senso comum da visão, de cunho etnocêntrico, européia em relação às formas de concepção de história, memória e tempo das sociedades não inseridas na tradição ocidental. Fica evidente a influência de uma herança de mentalidade colonialista e etnocêntrica na análise do historiador francês, numa postura inspirada de forma clara pela historiografia metódica do século XIX na França, onde o científico, e portanto verdadeiro, em História é apenas o

24 UNIDADE 2

que é provado documentalmente. O modelo da escola metódica reduz à pobreza, confusão e fragilidade, isto é, à barbárie e à selvageria, as concepções e fazeres históricos das sociedades não européias, notadamente as de cunho tribal.  As objeções de “pobreza, confusão e fragilidade” apenas se sustentam a partir de um enfoque definido pelas concepções européias de história e historiografia como nomotéticas e universalizantes. Considerar pobre uma tradição histórica oral, por ser a oralidade dependente das capacidades do cérebro, denota não consideração pelas formas não escritas de construção da memória coletiva. O fato de sua difusão ser monopolizada por um grupo restrito de indivíduos no grupo, mostra de forma clara a resistência contra a inclusão, por exemplo, dos acima citados biru de Ruanda na tradicional e acadêmica “tribo dos historiadores” europeus, expressão cunhada por François Simiand, colaborador da Révue de Synthése no início do século XX.  A afirmação da imobilidade social nestas sociedades “cristalizadas”, como se isso fosse possível, revela a não aceitação das dinâmicas sociais diferentes da velocidade capitalista da sociedade européia. Enfim, a afirmação de que a adoção pelas sociedades menos complexas do tempo cíclico da natureza gera um mundo em equilíbrio e decreta o vazio da história, reflete de forma atroz a dificuldade que possui uma moderna linhagem dos historiadores europeus de perceber dinâmicas sociais diversas da velocidade factual política de suas análises da história e a conseqüente condenação das sociedades regidas pela dinâmica natural dos ciclos naturais ao “vazio da história”. Em relação à alegada confusão da tradição oral, Carbonell a acusa de ser causada por sua atemporalidade e sua ênfase nas origens do grupo. Mas por que deveriam estes grupos, cuja identidade se constrói pela certeza de uma mesma origem e não pela mudança das dinâmicas políticas, agir de forma diferente? Por que deveria ser o mito de origem do outro desclassificado a fábula, enquanto que os análogos da tradição européia são vistos como fruto da revelação divina? Por que a preocupação com a origem, o destino e as relações do homem com Deus são confusas enquanto praticadas pelos  haérè-po da

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

25 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

26 UNIDADE 2

Polinésia, mas se constituem na respeitadíssima Escola Providencialista de historiografia européia quando elaboradas dentro da tradição cristã dogmática por Agostinho de Hipona? E o que faz a historiografia tradicional européia além de constituir e transmitir mitos e mitologias políticas fundadoras das sociedades ocidentais modernas, tais como os de Nação, Estado, Bem Comum, Trabalho, Justiça e outros? Finalmente, no tocante à alegada fragilidade da memória histórica, creio que nem é necessário discutir o fato de que a prática de suprimir, selecionar, adicionar, criar ou fundir tradições em um relato politicamente conveniente não é apanágio das sociedades primevas, mas elemento constitutivo da própria natureza do conhecimento histórico ocidental, desde a Doação de Constantino até a supressão da figura de Trotsky da iconografia da Revolução Russa promovida por Stálin, ou da desqualificação dos indígenas como agentes históricos promovida pela quase totalidade da historiografia brasileira, principalmente nos livros didáticos, bem exemplificados nas considerações de Marc Ferro em  A  manipulação da História História no ensino e nos meios de comunicação comunicação (FERRO, 1983)e em A História vigiada vigiada (FERRO, [s.d.]).  A partir dessa visão, como é possível ver as formas de expressão histórica nos povos sem escrita? Uma abordagem temporalmente definida das manifestações historiográficas, mesmo que delimitada à tradição ocidental na sua maior parte, deve considerar as manifestações historiográficas das diversas sociedades analisadas dentro de seu espírito, mais que pela sua forma. Desse modo, é necessário evitar o simplismo de atribuir a Heródoto a paternidade da História, hegemônica entre nós desde o século XIX. Da mesma forma, embora a História surja como gênero específico de escrita entre os gregos, seu nascimento não deve ser considerado como sendo na Grécia Antiga. É necessário considerar o surgimento da historiografia nas primeiras manifestações intencionais de preservação da identidade cultural das sociedades mais antigas, mesmo que estas manifestações não sejam frutos da construção metódica m etódica e cientificista da escrita da História. Mas a complexização das sociedades humanas levou à gradativa complexização da produção histórica, resultando numa historiografia que

refletia as novas relações sociais dos grupos sedentários e já organizados em sociedades-estado de natureza centralizada e hierarquizada. Na próxima seção você irá conhecer um caso tipo dessa historiografia de crônicas reais e mitos de origem muito importante para a tradição ocidental: o Antigo Israel.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

SEÇÃO 2

MITOS DE ORIGEM E CRÔNICAS REAIS  As consolidações das tradições orais das sociedades primevas manifestam de forma clara a intenção de preservação de uma dada construção da memória coletiva que dota aquelas sociedades de uma identidade própria e única. Estas construções, na Antigüidade, se efetivaram principalmente através das genealogias preservadas pela tradição oral, dos “mitos de origem”, e das crônicas e anais reais e dinásticos.  Assim, para uma rápida abordagem dos mitos de origem e das crônicas e anais reais, é exemplar ater-se a um dos mitos e tradições mais conhecidos da tradição ocidental: o mito de origem e as crônicas judaicas, integrantes fundamentais da tradição judaico-cristã. Butterfield, citado em Le Goff, analisa o caso hebraico: Nenhuma nação – nem mesmo a Inglaterra com a Magna Carta – esteve alguma vez tão obsecada (sic!) pela história, e não é estranho que os  Antigos Judeus tenham tenham revelado poderosos dotes narrativos e tenham sido os primeiros a produzir uma espécie de história nacional, os primeiros a fazer um esboço da história da humanidade desde a Criação. Atingiram uma grande qualidade na construção da pura narrativa, especialmente na de acontecimentos recentes, como no caso da morte de David e da sucessão ao seu trono. Depois do Exílio concentraram-se mais no Direito que na história e voltaram a atenção para a especulação sobre o futuro, em especial sobre o fim da ordem terrestre. Em certo sentido, perderam contacto com a terra. (BUTTERFIELD, 1973, p. 466, apud LE GOFF, 1985, p. 186)

27 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Essa obsessão dos antigos hebreus pela história os torna ideais para a análise dos mitos de origem e crônicas reais. Os hebreus fundam sua “identidade social e cultural” numa perspectiva introvertida, de legitimação do ordenamento teocrático da sociedade por meio de um mito de origem centrado na revelação e na escolha do povo como eleito de Deus. (OBS: Não se usam aqui os termos nação e nacional para a análise dos tempos primitivos das sociedades antigas, para não provocar confusão entre as sociedades antigas e os modernos estados nacionais, que tão pouco têm em comum.)

Mas onde tudo isso está registrado? Este mito de origem se funda numa cosmogonia que identifica a criação do Universo como o primeiro passo no processo da eleição dos hebreus a povo escolhido de Deus. Fruto de uma consolidação escrita posterior das tradições orais eloísta e javista, além das fontes deuteronômica e sacerdotal, mais recentes, a cosmogonia hebraica se encontra no Pentateuco, conjunto dos primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Nesse processo, cada um dos livros contém uma faceta específica no processo de constituição da identidade hebraica. No Gênesis, se constrói a criação do universo e do homem; a vida paradisíaca dos primórdios e a posterior queda do gênero humano; a escolha por Deus do clã de Abraão para ser tronco e linhagem do povo eleito para religar os laços rompidos quando da queda do Paraíso: os hebreus. No livro do Êxodo, se elabora a criação da identidade cultural deste povo eleito, quando das provações no Egito e no êxodo propriamente dito, período em que se dá toda a ordenação social, moral e ética da sociedade hebraica em meio à migração pelo deserto do Sinai rumo à Terra Prometida. O livro do Levítico estrutura a dimensão religiosa e teocrática da sociedade hebraica, consagrando ao mesmo tempo a especificidade hebraica e as relações de dominação teocrática dentro da sociedade dos hebreus, com a hegemonia sacerdotal e política da tribo de Levi. O livro de Números traz a explicitação demográfica da eleição divina dos hebreus através da descrição de linhagens genealógicas

28 UNIDADE 2

remontando a Adão, primeiro homem e fundador do povo eleito e a fase final da jornada do povo pelo deserto até a chegada à terra prometida na Palestina. No Deuteronômio, se faz a reelaboração consolidada do processo descrito nos quatro primeiros livros do Pentateuco, já sob o olhar da consolidação das hegemonias internas na sociedade hebraica posterior. Habilmente inserida numa dinâmica historicamente definida, essa tradição, fundada numa mítica de criação e eleição, se prolonga com a ocupação da terra prometida, narrada nos livros de Josué, Juízes, Rute, I e II Samuel. Os livros de I e II Reis narram a consolidação da estrutura monárquica e a crise do modelo teocrático em Israel. São livros que marcam a transição da tradição mítica cosmogônica para a legitimação dessa tradição nas camadas superiores da sociedade judaica através da enumeração das linhagens monárquicas e crônicas reais, com um olhar claro do Reino de Israel. Os livros de I e II Crônicas, retomam a narração de I e II Reis numa perspectiva de restauração religiosa, mas sob o olhar do núcleo sacerdotal do Templo de Jerusalém, no Reino de Judá. Os livros de II Reis e II Crônicas terminam na mesma conjuntura: a deportação de Israel e  Judá para a Babilônia. Os livros de Esdras e Neemias tratam do retorno da Babilônia e da restauração do Templo. Os livros de I e II Macabeus, deuterocanônicos, narram as lutas dos judeus contra os helenistas selêucidas. É nessa perspectiva histórica que se funda a identidade cultural hebraica e, mais tarde, a identidade política judaica, num processo de transição do tribal ao político exemplar da tradição da escrita da história na Antigüidade Oriental.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Mas será que foi só no Israel antigo que as coisas aconteciam assim? Outras sociedades podem ser vistas no Oriente a partir do IV milênio antes de Cristo, na mesma perspectiva. Le Goff enuncia que No Médio Oriente, esta preocupação com acontecimentos datados parece sobretudo ligada às estruturas políticas: à existência dum estado e, mais especificamente, de um estado monárquico.

29 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Inscrições que descrevem as campanhas militares e as vitórias dos soberanos, lista real suméria (cerca de 2000 a.C.), anais dos reis assírios, gestas dos reis do Irão antigo que se reencontram nas lendas reais da tradição medo-persa antiga, arquivos reais de Mari (século XIX a.C.), de Ugarit e de Rãs Samra, de Hattusa a Bogarkzöy (século XV a XIII a.C). (LE GOFF, 1985, p. 185)

Todas essas formas de escrita da história no Antigo Oriente Próximo são voltadas para dentro da sociedade, introvertidas, com função principal de legitimação interna do poder político ou teocrático-político. É uma forma de historiografia voltada para o interior da sociedade, constituinte de identidades sociais através dos mitos de origem e da inserção das linhagens e/ou dinastias governantes como expressão da continuidade desses mitos. Porém, a diversidade de concepções históricas no Antigo Oriente Próximo vai muito além da lógica da eleição presente no Antigo Israel e dos povos da Mesopotâmia. No Extremo Oriente você verá agora o caso da cultura chinesa clássica, onde a função da escrita da história era algo completamente distinto do que foi visto até aqui e também de praticamente tudo o que você conhece como função do conhecimento histórico.

SEÇÃO 3

O Extremo Oriente: o Caso da China No Antigo Extremo Oriente, a função da escrita da História era radicalmente diferente daquelas existentes na tradição ocidental. Para exemplificar essa questão você vai tomar contato agora com a as concepções de história em uma das sociedades exemplares do Antigo Extremo Oriente: A China Clássica. Os primórdios da historiografia chinesa se prendem, como os demais inícios historiográficos, ao duplo de mitos de origem e anais e/ou crônicas reais. A tradição faz de Confúcio o pai da história da China, quando lhe atribui a autoria dos cinco Clássicos ( Whu King), que são a base da cultura chinesa. Dentre estes, destacam-se o  Livro dos Documentos (Chu King),

30 UNIDADE 2

que abarca os tempos primitivos e lendários da China (±2357 a 1122 a.C., pela cronologia ocidental cristã) e a Crônica das Primaveras e dos Outonos (Tch’chuen Ts’ieu), que narra os fatos notáveis do reino de Lu, pátria de Confúcio, de ±722 a 481 a.C. Embora a crítica moderna ponha em questão a autoria confuciana destas obras, elas são importantes como expressões das formas de escrita da história na China arcaica.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

E como essa visão mítica e moralista se transforma?  A partir do século VIII a.C., a historiografia chinesa abandona, paulatinamente, os “mitos como relato dos nascimentos maravilhosos de soberanos imaginários, exaltação da idade de ouro original, fábula das grandes invenções e canto das proezas sobre-humanas” (CARBONELL, 1987, p. 44). Ela se torna documental e rigorosamente analítica. O encargo da escrita da história passa a ser atribuído aos áugures, “homens encarregados de dizer o futuro, de o ordenar nos seus calendários benéficos, distinguindo-lhe os dias fastos dos nefastos. (CARBONELL, 1987, p. 45)”. São eles que dão à China a sua primeira memória fiel, anotando os acontecimentos que testemunhavam e que serviam de matéria-prima para a confecção de anais que continham trechos extraídos das chancelarias reais e indicações augurais. Desta forma, surgiram, do século V ao III a.C. os  Anais do país de Tsin, do país de Wei e do país de Lu (CARBONELL, 1987, p. 45). Com a unificação da China em 221 a.C. e a destruição da ordem feudal pelos imperadores Han, a história muda de estatuto, sendo-lhe atribuída, na classificação bibliográfica elaborada por Tcheng Mo no século III a.C., uma das quatro maiores categorias, junto com os clássicos, as obras literárias e os escritos filosóficos. Neste processo, porém, consolida seu caráter augural e burocrático. Sob os Han, Foi criado o cargo de arquivista da corte; seguiuse o de historiógrafo. Não tardou a surgir um ofício dos historiógrafos e foram criadas comissões historiográficas para compor biografias imperiais e histórias dinásticas. Foi assim que os historiadores entraram na burocracia celeste. (CARBONELL, 1987, p. 46)

31 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Mas como é que ca o historiador chinês nesse período?  A figura do historiador passa a ser a de um “funcionário do tempo”, em todas as suas dimensões. Isto se exemplifica de forma clara na natureza da condição dos autores das primeiras Memórias históricas (Che-Ki) da China, Sseu-Ma T’na, que foi Grande Astrólogo da Corte, e seu filho Sseu-Ma Ts’ien, que depois de ser governador da Província de Se-Chuan, foi incumbido da reforma do calendário chinês. O historiador chinês sob os Han era um funcionário, um burocrata com funções definidas: Medidor da duração que percorre em todos os sentidos, pode, se o imperador o exige, ser ao mesmo tempo, ou consecutivamente, aquele que conhece a sucessão dos eventos passados (cronologista), aquele que consigna o presente (cronista), aquele que interroga o futuro (áugure, astrólogo). Aquele que o torna propício (fazedor de calendário) e, por via de conseqüência, aquele que auxilia na acção política (administrador, conselheiro). (CARBONELL, 1987, p. 46-47)

Como conseqüência disso a história escrita na China nesse período é híbrida e enciclopédica. Nela se misturam histórias oficiais, anais, biografias imperiais, genealogias, tabelas cronológicas, listas de dignitários, notícias augurais, astronômicas e relativas ao calendário e aos presságios. Para Carbonell, como «Ciência» do tempo reencontrado e do tempo adivinhado, a história mandarínica é também «ciência» da administração. As histórias oficiais enriquecem-se assim de outras monografias, consagradas às estradas, à hidrografia, às insígnias e uniformes, à justiça, às leis, à música, aos ritos, etc. Semienciclopédia, semivade-mécum do letrado funcionário, a obra histórica reflete, pela sua própria diversidade, a extensão dos poderes duma burocracia que detém o monopólio do saber e cuja cultura, por mais aberta que fosse, nem por isso deixa de ser essencialmente passadista. (CARBONELL, 1987, p. 47)

Essa concepção funcional e burocrática da história como instrumento de ação governamental coloca na compilação documental sua principal

32 UNIDADE 2

ação metódica. Compilação seletiva e fragmentada, sem critério ou indicação das fontes. “A história chinesa é um mosaico de documentos. [...] Só há história, no sentido chinês da palavra, daquilo que está escrito” (GERNET, 1959, apud LE GOFF, 1985, p. 187).

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

E o que motiva a rigorosa compilação documental na China? Porém, esta função de recolha documental não é movida por rigor metódico, mas por uma concepção mágica, ritual e sagrada da abordagem do passado. Os documentos que consignam o passado são um meio de comunicação com as divindades. São anotados para que os deuses os observem e assim se tornem eficazes num eterno presente. O documento não é feito para servir de prova, mas para ser um objeto mágico, um talismã. Não é produzido para ser dedicado aos homens, mas aos deuses. A data tem apenas como finalidade indicar o caráter fasto ou nefasto do tempo em que foi produzido o documento: «Não assinala um momento, mas um aspecto do tempo». Os anais não são documentos históricos mas escritos rituais que, «ao contrário de implicarem a noção de um devir humano, assinalam correspondências válidas para sempre» [ibid.]. O Grande Escriba que as conserva não é um arquivista, mas um padre do tempo simbólico, que está também encarregado do calendário. Na época dos Han, o historiador da corte é um mágico, um astrólogo, que estabelece com precisão o calendário. (LE GOFF, 1985, p. 187)

O historiador e o cenário social são ausentes da obra histórica mandarínica. O calendário tem uma concepção diversa da continuidade linear ocidental. Os chineses Ignoraram a cronologia contínua em que, a partir duma data originária, se podem medir as durações nos dois sentidos. Utilizaram uma cronologia compartimentada em pequenos receptáculos cada vez menores: período dinástico, reinado, nien hao (quatro anos e meio), ano, estação, etc. Com efeito, os Chineses tiveram do tempo, como do espaço, uma visão concreta e analítica, filha duma escrita rebelde à abstração. (CARBONELL, 1987, p.51)

33 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Enfim, embora haja uma rica cultura histórica, pelos padrões ocidentais a China mandarínica, “civilização da duração, da tradição, da memória é, de todas as culturas que alastraram pelo mundo, uma das menos historiográficas” (CARBONELL, 1987, p.51).

1. 2. 3.

Sintetize a postura de Carbonell em relação à possibilidade de existência de uma dimensão historiográca nas sociedades sem escrita. Posicione-se em relação à possibilidade de existência de dimensões históricas signicativas no pensamento dos povos sem escrita, justicando. Elabore um breve texto sobre os pressupostos da eleição divina na sociedade israelita antiga e suas relações com a história.

4. 5.

Quais eram as funções da história no antigo Israel? Como você vê as similaridades e diferenças da escrita da história na China Antiga e a historiograa ocidental contemporânea?

Parabéns!! Você chegou ao nal da Unidade II - A Historiograa nos Primórdios e na Antigüidade Oriental.  Aqui você pôde fazer um longo e exótico passeio por concepções de História e práticas historiográcas bastante distantes daquilo com o que você habitualmente estudou em sala de aula no Ensino Básico, não pôde? Percorreu um caminho que foi desde as primeiras possibilidades de consciência histórica, em povos

tribais, sem o conhecimento de escrita. Viu também como essas possibilidades foram desqualicadas por setores da historiograa moderna como pobres, confusas e frágeis e as inuências etnocêntricas dessa desqualicação. Foi, depois, para o antigo Israel, cujo povo fundou sua identidade social e cultural na eleição divina, manifesta na ação de Deus em sua história e para quem a história, por ser a história da aliança com

Deus, era fundamental e ocupava parte substancial de seus escritos sagrados. De Israel, seu caminho o levou à China, onde a História, que começa moralizante com Confúcio, passa a ser documental e augural, usada para prever o futuro, na China Mandarínica.  Agora, na próxima unidade, você vai dar um outro salto espacial e irá da China para a Grécia Antiga, berço da maneira ocidental de fazer História. Continue animado nesse percurso e com certeza você o terminará com muito mais clareza sobre as suas próprias concepções de história como ser humano do mundo contemporâneo. Anal, para que serve o passado, se não for para nos fazer compreender o presente? Bom estudo!!!

34 UNIDADE 2

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

35 UNIDADE 2

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

36 UNIDADE 2

A Historiografia na antiguidade clássica

MARCO AURÉLIO MONTEIRO PEREIRA  JANAÍNA DE PAULA DO ESPÍRITO SANTO RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ■

Conhecer a natureza da escrita da história na Antiga Grécia.



Ter contato com as formas de concepções e representações da

   I    I    I    E    D    A    D    I    N    U    1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

escrita da História na Roma Antiga. ■

Estudar as dimensões específicas da História e da Historiografia no

cristianismo antigo.

ROTEIRO DE ESTUDOS ■

SEÇÃO 1 - A Historiografia na Grécia Antiga



SEÇÃO 2 - A Historiografia em Roma



SEÇÃO 3 - A Historiografia Cristã Antiga 37 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

38 UNIDADE 3

PARA INÍCIO DE CONVERSA Olá!!! Nesta unidade você irá analisar o surgimento das primeiras matrizes fundantes da historiografia ocidental: a historiografia clássica grega, romana e cristã antiga.  Verá inicialmente, na Seção 1, a natureza da escrita da História na Grécia Antiga em sua dimensão antropocêntrica e autoral e, a seguir, fará um estudo das concepções de História em Heródoto e Tucídides, concluindo com uma apreciação da historiografia helenística. Na Seção 2 você estudará as dimensões pertinentes às concepções de História e formas de expressão da historiografia na cultura latina, da Roma Antiga. É um caminho que iniciará com o estudo das origens da historiografia de Roma, com a fortíssima influência das concepções e formas de escrever História helenísticas. Verá, a seguir, que Roma consolida uma ênfase muito forte na História como gênero literário, com todas as questões envolvidas nisso, como, por exemplo, a maior liberdade dos autores em relação à exatidão da narrativa. Você conhecerá, também, o conteúdo moralizante e retórico da historiografia romana, que lhe confere um caráter menos descritivo e mais propositivo moralmente. Na Seção 3 - A Historiografia Cristã Antiga, você irá estudar as diferentes dimensões e vertentes motivadoras e as formas de expressão da historiografia cristã da Antigüidade, no período patrístico.  Aqui, você estudará as dimensões específicas da História como campo da revelação de Deus e espaço constituinte da identidade cristã. Conhecerá as influências judaicas presentes na concepção de História dos primeiros cristãos e os fatores que os levam a priorizar a História como forma de expressão identitária.  Adiante, você estudará as necessidades que levaram os cristãos a escrever História e conhecerá os principais gêneros, autores e obras da historiografia cristã antiga. E, finalmente, conhecerá o pensamento de Agostinho de Hipona, considerado o principal elaborador da historiografia cristã. Terá contanto com sua obra, que articula Devoção, Teologia, Filosofia e História num sistema de pensamento histórico totalizante, conhecido posteriormente como Escola Providencialista, e que influenciou, por mais de um milênio a produção histórica européia.

SEÇÃO 1

A HISTORIOGRAFIA NA GRÉCIA ANTIGA

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

 A Grécia Antiga é considerada pela maioria dos historiógrafos como o berço da forma ocidental de fazer história. A escrita da história, para os gregos, está subordinada a duas motivações principais: Uma, de ordem étnica, que consiste em distinguir os Gregos dos bárbaros. À concepção de história está ligada a idéia de civilização. Heródoto considera os Líbios, os Egípcios e principalmente os Citas e os Persas. Lança sobre eles um olhar de etnólogo. [...] O outro estímulo é a política ligada às estruturas sociais. Finley nota que não há história na Grécia antes do século V a.C. Nem anais comparáveis aos reis da Assíria, nem interesse por parte dos poetas e filósofos, nem arquivos. É a época dos mitos fora do tempo, transmitidos oralmente. No século V a memória nasce do interesse das famílias nobres (e reais), e de padres como os de Delfos, Eleusis ou Delos. (LE GOFF, 1985, p. 188)

Dessa forma a escrita da história entre os gregos afirma, externamente, a supremacia da cultura e civilização helênicas, ao mesmo tempo em que internamente possui uma função de legitimar as classes dominantes política e religiosamente. Há uma vertente que vê o nascimento da história em Atenas originado no meio órfico, como reação democrática contra a velha dominação aristocrática: “A historiografia nasce no interior de uma seita religiosa, em Atenas, e não entre os livre pensadores da Jónia” (MOMIGLIANO, 1969, p. 63, apud LE GOFF, 1985, p. 188). O orfismo tinha [...] exaltado, através da figura de Filos, o ghénos por excelência contrário aos  Alcmeônidas: o ghénos donde nasceu Temístocles, o homem da armada ateniense. [...] A revolução ateniense contra a parte conservadora da velha aristocracia terratenente, teve certamente origem,  já em 630 a.C., nas novas exigências do mundo comercial e marítimo que dominava a cidade. [...] A “profecia do passado” era a principal arma

39 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

dessa política (MAZZARINO, 1966, p. 32-33, apud LE GOFF, 1985, p. 188-189).

Essa dimensão política da escrita da história acaba sendo a determinante entre os gregos, visto que a oposição da civilização grega aos bárbaros é uma forma de exaltação da polis. A esta exaltação da cidade se agrega a idéia do progresso técnico: O orfismo, que tinha dado o primeiro impulso ao pensamento histórico, tinha também “descoberto” a própria idéia do progresso técnico, do modo que os Gregos a conceberam. Dos Anões do Ida, descobridores da metalurgia ou “arte (téchne) de Efesto”, tinha já falado a poesia épica de espírito mais ou menos órfico, (la Foronide) (MAZZARINO, 1966, p. 32-33, apud LE GOFF, 1985, p. 188-189).

 A história como exaltação da cidade e da “democracia” de Atenas! “O homem fez-se historiador porque se tornou cidadão” (CHÂTELET,  in CARBONELL, 1987, p. 21). Para Le Goff, cidadania e historicidade estão indissociadas para os gregos: Por isso, quando desapareceu a idéia de cidade, desapareceu a consciência da historicidade. Os sofistas, mantendo a idéia de progresso técnico, rejeitam toda noção de progresso moral, reduzem o devir histórico à violência individual, desfazemno numa colecção de «anedotas escabrosas» (LE GOFF, 1985, p. 189).

Para Carbonell, no entanto, não é a dimensão política da historiografia a hegemônica entre os gregos, mas sim, a cultural. Em sua visão, a partir das figuras de Heródoto e Tucídides, a escrita da história é motivada pela consciência mais geral de uma cultura helênica, essencialmente antropomórfica. Poderia sustentar-se, ao invés, que a curiosidade e a inteligência retrospectiva de um e outro desabrocharam porque eles tinham ambos ultrapassado o particularismo da cidade, o egoísmo do cidadão, e que se sentiam membros duma comunidade sem corpo político, a Hélade, ameaçada do exterior (Guerras Médicas) e, depois, do interior (Guerra do Peloponeso) (CARBONELL, 1987, p. 22).

40 UNIDADE 3

Mas qual era, para os gregos, o lugar da História? O lugar da história era o espaço cultural helênico. Espaço dentro do qual se moviam e se balizavam identidades e concepções temporais e culturais sobre o outro, o não pertencente à Hélade. “O espaço oferece as imagens de um tempo desigualmente desenrolado, por menor que seja a consciência daquele que o percorre de ser «o civilizado», transcrevendo em termos de antes e depois o que é encarado respectivamente como inferior e superior” (CARBONELL, 1987, p. 22).  A emergência da história é posta por Carbonell como favorecida pela característica antropomórfica da cultura grega:

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Coisa impossível em outras civilizações em que os deuses souberam guardar as suas distâncias, construiu-se uma espécie de história imprecisa, lançada como uma ponte entre o presente de homens e o passado dos deuses. Que o homem se torne a medida de todas as coisas, e as histórias converter-se-ão em história (CARBONELL, 1987, p. 22-23).

 Você pôde ver como a formação da historiografia grega foi finalista, visando preservar e afirmar a superioridade cultural dos gregos sobre as outras culturas com as quais mantinham contato. No período clássico da historiografia da Antiga Grécia, isso vai ficar cada vez mais evidente, como você irá aferir no estudo que será feito em seguida das concepções e da obra de Heródoto, considerado o “pai da História”.

- E quando começa a historiograa “clássica” na Grécia Antiga?  Ao contrário das tradições míticas e dos anais e crônicas reais, a historiografia na Grécia é obra de autores. Seu precursor, e definidor do gênero, é Heródoto (±485-425 a.C.), natural de Halicarnasso, cidade costeira da Ásia Menor, de população grega e cária. Expulso de sua cidade natal por motivos políticos, Heródoto viaja pela Mesopotâmia, Egito, Síria, Atenas e Delfos, instalando-se, finalmente, em Thourioi, colônia ateniense na Itália do Sul. Sua principal obra, Histórias  (HERÓDOTO, [s.d.]), é composta

41 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

de nove livros, que podem ser divididos em dois grandes blocos: os quatro primeiros, que tratam dos Lídios, dos Persas, dos Babilônios, dos Massagetas, dos Egípcios, dos Citas e dos Líbios; e os cinco restantes, que tratam, dentre outros assuntos, das guerras dos Medos, indo desde a revolta da Jônia contra os Persas até o recuo dos persas para a Ásia e o processo de libertação das cidades gregas. Escritas para serem recitadas em lugares públicos como forma de sustento do autor, as Histórias de Heródoto se constituem ainda com resquícios de uma formulação fundada na oralidade, e têm mais afinidades com a etnologia do que com a moderna concepção de história. Seu método é hierarquizado: O percurso das «Histórias» baseia-se em quatro processos, na intersecção dos quais se desenha a figura do narrador: ver e ouvir, dizer e escrever.  Ver: trata-se da autópsia (ver com os seus próprios olhos) cuja superioridade sobre os outros processos de inquérito é indiscutível; na falta deste processo, temos então o ouvir (akouein) e há vários tipos de audição; dizer (légein): o que «eu», fulano ou cicrano (sic!), uns e outros viram ou ouviram; escrever (gráphein) o que eu vi ou ouvi ou o que alguém disse ter visto ou ouvido...  A estes elementos fundamentais de uma retórica da persuasão, há que acrescentar muitos outros e, nomeadamente, a exigência da agrimensura. Se é rapsódia, Heródoto é também agrimensor: rapsódia e agrimensor do oikoumené; dizer o espaço, mas também medi-lo, fixar-lhe os limites e dizer que o estádio é a medida comum a todo o espaço; neste ponto se articulam sem dúvida o saber e o poder do viajante (HARTOG F. Heródoto, in LE GOFF, CHARTIER & REVEL, 1990, p. 251-252).

O que os outros historiadores achavam de Heródoto? Heródoto é considerado desde o romano Cícero como o “Pai da História”. A crítica a Heródoto, porém, é anterior à Roma Antiga. Tucídides o qualifica de “contador de histórias” ( logográphos). Além dele, Heródoto é criticado também por Aristóteles e Plutarco, dentre outros, que nele vêem, “segundo as palavras de Aulo Gélio, um « homo fabulator ». Esta figura de mentiroso persistiu para além da Antigüidade, até o século XVI” (HARTOG, F. Heródoto,  in LE GOFF, CHARTIER & REVEL, 1990,

42 UNIDADE 3

p. 250). Embora Heródoto fosse o inaugurador de um gênero muito próximo do que hoje se poderia chamar de histórico, sua narrativa ainda é etnográfica, descritiva e etnocêntrica, sem rigor documental e impressionista. Essas limitações seriam, em boa parte, sanadas na escrita histórica do outro grande expoente da historiografia grega clássica, Tucídides, que você irá conhecer a seguir. Para Carbonell, “com a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides (aprox. 460-395), nascem simultaneamente o método e a inteligência do historiador” (CARBONELL, 1987, p. 17). Tucídides é natural de Atenas, parente do tronco aristocrático de Milcíades. Viveu na época de Péricles e era proprietário de minas de ouro na Trácia. Foi eleito estratego em 424 a.C. exercendo o comando na costa trácia. Sua derrota para os espartanos em Anfípolis causou seu exílio para a Trácia, de onde empreendeu uma série de viagens. Tucídides está separado de Heródoto por pouco mais de uma geração, mas rompe de forma enfática com os pressupostos de seu predecessor:

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Nunca retomou o conceito jônio de historiê (pesquisa) e liquidou a maneira herodotiana de escrever a história como coisa de logógrafos, de pessoas que transcrevem logoi (relatos) e que acreditam demonstrar seu saber pelo número de versões que conhecem do mesmo acontecimento. Mas, na realidade, o discurso deles, procurando agradar o auditório, cedendo inelutavelmente ao prazer da orelha, é fundamentalmente viciado: ele pertence a uma categoria que Tucídides denomina, pejorativamente, muthôdes, algo que nem é, francamente, muthos, como o fazem os poetas, nem, obviamente, outra coisa (HARTOG, F. Tucídides, in BOURGUIÈRE, 1993, p. 757).

Para Tucídides, Heródoto estava muito perto de ser um mentiroso, um “contador de história” no sentido fabular do termo. Tucídides vê na história um atributo específico e inelutável: a verdade. Para ele, a história deve ser simplesmente verdadeira: ela é “a procura da verdade”, a um tempo busca e investigação judiciária. Pela

43 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

primeira vez ela foi colocada como discurso da verdade, tendo como razão de ser a exigência de dizer o verdadeiro dos rerum gestarum. Dos dois meios de conhecimento histórico, o olho (opsis) e a orelha (akoê), só o primeiro pode levar (desde que dele se faça bom uso) a um conhecimento claro e distinto. Quanto à orelha, nunca é segura. Saber de modo histórico consiste em “ver com clareza”. Por conseguinte, só há história científica do tempo atual: Tucídides pôs-se ao trabalho ao mesmo tempo que a guerra começava. Recusando os prazeres da orelha, a história, que apenas quer ser “útil”, se apresenta como “uma aquisição para sempre”. Porque a natureza humana sendo o que é, tal relato verídico permitiria não predizer, mas sim “ver claro” quando, no futuro, se produzissem outras crises semelhantes (HARTOG, F. Tucídides, in BOURGUIÈRE, 1993, p. 757).

Sua obra fundamental é a História da Guerra do Peloponeso (TUCÍDIDES, [s.d.]). Começada ao início da guerra, a obra ficou inacabada, sendo interrompida em 411 a.C. Mais tarde, foi dividida em oito livros. Depois de ter esboçado uma história dos primeiros tempos da Grécia, exposto seu método e indicado as origens da guerra, tem início o relato propriamente dito, escondido pelos anos da guerra ao ritmo dos bons e maus tempos. O relato dos acontecimentos é cortado por discursos (não verdadeiros, mas verossímeis): as relações dos discursos entre si (principalmente no modo da antilogia) e sobretudo entre os discursos (logoi) e os acontecimentos (erga) constituem a própria armação dessa obra difícil e composta com exatidão (HARTOG, F. Tucídides, in BOURGUIÈRE, 1993, p. 757).

Tucídides antecipa o modelo do historiador metódico do século XIX, um homem de ciência, da escola de Hipócrates. Foi, grosso modo, esse Tucídides racionalista e “positivista” que conservamos na memória.

E como ca a historiograa na cultura grega após Heródoto e Tucídides?  A racionalidade e objetividade de Tucídides se esvaem com a vulgarização da cultura grega no período helenístico. A erudição e a base documental gradativamente são relegadas a um segundo plano

44 UNIDADE 3

e a historiografia passa a ser formada principalmente por recolhas e compilações. Durante o período helenístico, pouca coisa restou da produção historiográfica grega. A maior parte das obras se perdeu, o que permaneceu está disperso em citações fragmentadas e compilações posteriores. No século IV a.C., os principais historiadores foram meros copiadores dos estilos de Heródoto e Tucídides.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

É o caso de Xenofonte (aprox. 426-355) cujas Helénicas pretendem prosseguir a história de Tucídides até 362; é também o caso de Teopompo (aprox. 378-315), que, depois de ter condensado as Inquirições de Heródoto, compôs, sob o mesmo título de Helénicas, uma outra continuação da Guerra do Peloponeso.  A aventura oriental continua a ser fonte de inspiração dos cronistas. Xenofonte relata a  Anábase dos Dez Mil (...). Calístenes (aprox. 370-327) acompanhou Alexandre nas suas campanhas e foi encarregado pelo conquistador macedónio de escrever um relato da expedição, a que deu os títulos de Helénica e Pérsica (CARBONELL, 1987, p. 24).

 Além destes relatos mais arcaicos, várias obras históricas tentam recuperar o passado de diversas regiões do “vasto mundo helenizado”: Primeiro em Atenas, onde, à imitação de Helanikos, o primeiro dos «atidógrafos», Kleidemos,  Androtion e Phanademos escrevem cada um uma  Atthis – História da Ática; em seguida na Sicília, onde Antíoco de Siracusa, Philistros e Timeu se interessam pela história da sua ilha ou pela Grande Grécia; nos reinos helenísticos, por fim, onde, na articulação dos séculos IV e III, o caldeu Beroso compõe em grego as suas Babyloniaca e um sacerdote de Heliópolis, Manéton, uma história do Egito – aquele Egito de que o primeiro rei macedónio, Ptolomeu I, redigiu, coligindo suas memórias, uma História de Alexandre (CARBONELL, 1987, p. 24-25).

Mas, efetivamente, quais são os fatores especícos da historiograa helenística? São de três ordens distintas os fatores que afastam a historiografia helenística da visão “metódica” posta por Tucídides. O primeiro viés é a influência da retórica. A história, principalmente

45 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

por influência dos sofistas, tende a se confundir com a oratória. O segundo viés é o da “adaptação” política da história. “Os atidógrafos fornecem, em provas contraditórias, os clãs que se enfrentam na Ágora; Xenofonte idealiza o jovem Ciro na sua Ciropédia; Teopompo exalta Felipe em sua História Filípica; Calístenes canta o génio de  Alexandre...” (CARBONELL, 1987, p. 25). O terceiro fator diz respeito à transformação “ética” do discurso histórico. A história torna-se uma coletânea de ditos morais e discursos exemplares proferidos por personagens ilustres, em lições de uma pequena ética cotidiana.  A partir do século IV, a história passa por um processo de transformação que, se por um lado regride em relação ao rigor crítico de Tucídides, por outro amplia seus horizontes e objetos. Isto pode ser visto nas obras de Éforo e Políbio. Discípulo de Isócrates, autor de uma compilação de Factos maravilhosos, Éforo de Cime (363-300) é daqueles historiadores para quem a preocupação do belo e do bem dito prevalece sobre a do verdadeiro e do bem compreendido. Todavia, a ele devemos a primeira “história universal” – trinta livros de Histórias que iam da conquista do Peloponeso pelos Dórios até 340. Políbio (208?-122?) estuda a expansão romana de 221 a 146 num quadro alargado às dimensões «mundiais» da conquista. (...) A sua História é a última obra da inteligência historiográfica grega e a primeira da historiografia romana que se compraz em narrar tanto as conquistas como as virtudes (CARBONELL, 1987, p. 26-27).

 A historiografia grega marca o início da tradição ocidental de escrita da história, quando fixa os Traços de uma historiografia «clássica» que vai permanecer, tomar a feição e o valor de modelo, com algumas fraquezas ou compromissos que as exigências mais modernas tornaram sensíveis:  A insistência e a amplificação retóricas, acentuadas pelo gosto dos «discursos» fabricados e atribuídos aos principais actores (onde podemos ver um processo, «ingénuo», para analisar um caráter, uma situação, uma decisão; ainda hoje existe este tipo de método, menos abertamente artificial, mas de uma «psicologia» freqüentemente tão

46 UNIDADE 3

aproximativa; O pragmatismo, demasiado confiante nas virtudes educativas ou exemplares da história, porque pressupõe facilmente a possibilidade de repetição dos factos (donde, em Tucídides, este programa, cujo segundo artigo é evidentemente mais frágil que o primeiro: «ver claro nos acontecimentos passados e nos que, de futuro, em virtude de seu caráter humano, apresentarão semelhanças e analogias»); Uma visão demasiado estreita do campo da história, assente numa selecção dos «objectos» de estudo segundo critérios de conveniência ou de dignidade, eles próprios inspirados pela escala dos valores dominantes (visão que será ratificada, em 1694, pelo primeiro Dictionnaire da Academia Francesa, que definia a história como «o relato das coisas dignas de memória»; a questão é saber quais) (PALMADE, G., in VEYNE, VILAR et al., 1988, p. 39).

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

 A influência da historiografia grega sobre as tendências e/ou escolas historiográficas posteriores no Ocidente é sensível já nos séculos imediatamente seguintes, com a adoção, pelos primeiros historiadores de Roma a modelos e estilos da historiografia grega e helenística, como você verá na próxima seção

SEÇÃO 2

A HISTORIOGRAFIA EM ROMA  A escrita da História se consolida tardiamente em Roma, sendo fortemente marcada pela influência grega e derivada da poesia épica. Seus vestígios mais antigos remetem a citações ou referências em obras posteriores, remontando ao fim da Segunda Guerra Púnica. Apenas por volta de 200 a.C. é que, com Fabius Pictor e Cincius Alimentus e seus  Anais, surgem as primeiras expressões historiográficas consistentes em Roma. Carbonell explica este relativo atraso da emergência historiográfica em Roma por quatro fatores convergentes: - Caráter durante muito tempo secreto dos únicos arquivos oficiais, os Comentários dos Pontífices (Commentarii pontifici), em que os padres

47 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

misturavam aos processos verbais das suas deliberações as informações augurais (eclipses, inundações, aparecimento de monstros...) que lhes permitiam estabelecer o calendário dos dias fastos e dos dias nefastos; - a pobreza dos ensinamentos que, a partir de 300 a.C., só os pontífices consentiram em afixar à porta de sua residência, a Regia, num painel de madeira coberto de greda, o album: nome dos cônsules, preço do trigo e presságios; - um sentimento familiar persistente que, por um lado, retardou a emergência de um patriotismo capaz de inspirar uma história nacional, e, por outro, fornece aos futuros historiadores fontes contestáveis – as inscrições encomiásticas gravadas ao lado das imagines dos grandes antepassados – e modelos perigosos: os elogios fúnebres em que o desejo da bela retórica rivaliza com a preocupação de edificação moral; - a mediocridade da vida cultural numa sociedade mais guerreira do que especulativa, e a atracção, por um momento paralisante, da civilização helénica, que fez ter em pouco apreço a língua latina, justamente por aqueles que a falavam. (CARBONELL, 1987, p. 30-31)

E é a influência grega a principal responsável pelo surgimento e consolidação da historiografia romana. Políbio, o mestre grego que iniciou os romanos no pensamento da história, vê no imperialismo romano a dilatação do espírito da cidade e, perante os bárbaros, os romanos exaltarão a civilização encarnada por Roma que Salústio exalta perante Jugurta, o africano que aprendeu em Roma os meios de a combater, a mesma que Tito Lívio ilustra perante os selvagens de Itália e os Cartagineses, esses estrangeiros que tentaram reduzir os romanos à escravatura, como os Persas tinham tentando com os Gregos. (LE GOFF, 1985, p. 189)

Historiadores das colônias gregas, como Philistos e Timeu de Tauromenion ou da própria Grécia continental como Éforo e Teopompo foram os primeiros a trabalhar Roma como objeto de escrita histórica. Callias é quem levanta a hipótese da origem troiana de Roma, inserindo o mundo latino no caudal da mítica helênica.

48 UNIDADE 3

Mas quais foram as principais formas de expressão da historiograa romana? Por causa da influência helenística, e até da inserção de Roma no contexto mítico grego, com a história de Enéias e a Guerra de Tróia, é compreensível que a expressão privilegiada da primeira historiografia latina seja poética e épica. Ela encontra sua mais antiga expressão na epopéia de Névio (?-212 a.C.), Bellum Punicum e na obra de Ênio, Annales, que pretendiam narrar a história de Roma desde suas origens. Em Roma, a história se afirma literária, sendo praticada pelos seus maiores escritores: Suetônio, Tito Lívio, Tácito, Salústio e Julio César.  A diversidade de escritores, porém, nos põe diante de uma possível diversidade de gênero.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Roma não só fez História, mas também a escreveu. São latinos, no entanto, os primeiros a pôr-nos de sobreaviso: Cícero e Quintiliano utilizaram tantas palavras para designar e classificar as obras que nós qualificamos de históricas – antiquitas, rerum gestarum, monumenta, commentarii, historiae, vitae, annales, epitome... – que nos é permitido interrogarmo-nos sobre a própria existência de um gênero histórico em Roma. (CARBONELL, p. 35)

Essa diversidade de gêneros alarga, porém, o objeto da escrita da história de forma bastante interessante.  Júlio César (101-44 a.C.) desenvolve uma abordagem histórica de cronista monográfico. Sua obra é comumente dividida em dois blocos: o militar (De bello gallico) e o civil (De bello civili). Neles, César pretende uma exposição precisa ( commentarius) de fatos vividos dignos de memória. São escritos em linguagem impessoal, técnica, com a presença de poucos discursos e pouco apreço pela retórica. Salústio (87-35 a.C.) se define como escritor. Seu interesse é por espaços e objetos delimitados (a Guerra de Jugurta e a Conjuração de Catilina , por exemplo). Sua ambição de reconhecimento é literária e não política, de caráter mais pessoal: O que ele pretende acima de tudo é que não caia no esquecimento o seu nome, não tanto os

49 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

acontecimentos que relata. (...) Com Salústio, os seus discursos eloqüentes, as suas descrições pitorescas, os seus retratos cinzelados, a história entra na literatura. (CARBONELL, p. 34-35)

Outro gênero bastante difundido na historiografia romana foi o das biografias. São escritos de fundo moral, visando, mais que a recuperação e o conhecimento do passado, a edificação daqueles que as lêem através dos exempla. Obras como o De virus illustribus , de Cornélio Nepos (100?-25? a.C.) e a Vida de Agricola, de Tácito. Essas obras, derivadas das  laudationes  fúnebres não têm como objetivo narrar com exatidão os acontecimentos e os personagens relatados, mas sim ressaltar seu caráter moral. Talvez a única exceção no campo das v itae romanas seja a obra de Suetônio, as Vidas dos Doze Césares. Ela é exceção não apenas por seu caráter essencialmente amoralista: “Nunca o autor manifesta a intenção de extrair lições éticas ou filosóficas, dos acontecimentos e comportamentos que relata” (CARBONELL , p. 35), mas também pelo método. Suetônio utiliza de maneira crítica fontes primárias: inscrições, arquivos imperiais, Acta Senatus, Acta diurna – o jornal de Roma -, recolhas de prodígios, documentos genealógicos privados, panfletos... (CARBONELL, p. 36)

Mas, sem dúvida, as grandes obras historiográficas analíticas de Roma foram os Ab urbe condita libri , em 142 livros, de Tito Lívio (64?-12? a.C.), que compreendiam a história de Roma de 759 a 9 a.C., e os Annales e Histórias, de Tácito (55?-130?) que dão seqüência à obra de Tito Lívio desde o reinado de Tibério até o de Vespasiano.  Assim, a historiografia romana, mesmo épica e literária, ganha contornos particulares e específicos, distintos das maneiras gregas e helenísticas de se escrever a História. Como crônicas em Júlio César, descrição impressionista em Salústio, biografias em Cornélio Nepos, e anais, como em Tito Lívio e Tácito, a historiografia de Roma teve uma ênfase de conteúdo diferente de suas influências gregas originais: a moral.  A história, para os romanos é considerada um gênero literário, um ramo menor da eloqüência:

50 UNIDADE 3

O historiador deve agradar, cativar e comover os seus leitores e ouvintes - eram freqüentes as leituras públicas. A história usa, por conseguinte, um método. Não é de modo algum um método crítico. Quando se trata de distinguir o verdadeiro do falso, os Antigos confiam na probidade do historiador; trata-se de um método retórico. Pintar quadros e episódios comoventes e pitorescos, assegurar a continuidade da narrativa - o que autoriza a invenção -, multiplicar os belos discursos - o que obriga a recompor os originais -, condensar para melhor dramatizar - o que exige certas liberdades com a cronologia -, assegurar o crescendo ou decrescendo rítmico dos períodos e das frases - eis algumas das regras, das receitas a que voluntariamente se submetem Tito Lívio, Tácito e seus continuadores. (CARBONELL, p. 36-37)

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Como a sociedade e a língua se modificam no tempo, os gostos também mudam, e é preciso um trabalho periódico de reelaboração do já dito e escrito. “Sendo uma escrita, a história é também, por conseguinte, uma reescrita, sobretudo quando é analítica” (CARBONELL, p. 37). Como decorrência de sua dimensão retórica, a história, para os romanos, é também uma obra de moral. Cícero reclama padrões morais de conduta no Pro Archia; Tito Lívio exalta as qualidades dos costumes antigos; Tácito afirma que a principal tarefa do historiador é não calar as virtudes e patentear a infâmia. Este discurso moral se fundamenta numa visão pessimista sobre a decadência dos costumes e impõe “um orgulhoso discurso retrospectivo sobre a grandeza do «primeiro povo da terra» (Tito Lívio), do «povo rei» (Floro)” (CARBONELL, p. 38).  A historiografia romana identificava, de modo geral, a História com a História de Roma. A cidade era o referencial de sua escrita histórica. As sociedades não romanas apenas são objeto de estudo por causa de sua conquista por Roma. “Com César, Salústio e Tácito, Clio descobre a Gália, a Numídia e a Germânia no rastro das legiões em marcha” (CARBONELL, p. 39).  A crise estrutural do Império Romano, aliada às invasões dos povos “bárbaros” e à cristianização do Império são os fatores básicos para a gradativa implementação de uma nova visão de mundo e de conhecimento em Roma, encerrando a especificidade romana da escrita da história.

51 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Reflita agora um pouco mais sobre as dimensões éticas e políticas da historiografia romana, como você verá a seguir na Seção 3.

SEÇÃO 3

A HISTORIOGRAFIA CRISTÃ ANTIGA  Ao contrário da maioria das religiões, a matriz judaico-cristã é um tronco religioso que se constitui essencialmente em sua historicidade. Sua escritura sagrada, a Bíblia, apesar de possuir dimensões múltiplas, é, com certeza, um livro histórico. Com a redacção, cerca do século VIII antes de nossa era, dos primeiros livros do Antigo Testamento, nasce, destacando-se dos antigos discursos sobre a criação e os antepassados, a historiografia. A esta história santa acrescentaram os cristãos a do Homem, Filho de Deus, e depois, muito rapidamente, a duma instituição, a Igreja. Os Evangelhos e os Actos dos Apóstolos dizem que o cristianismo é uma história e a encarnação, o Acontecimento. (CARBONELL, 1987, p. 40)

Esta construção historiográfica justifica, no Antigo Testamento, a escolha de Israel como povo eleito de Deus dentro de uma cosmogonia universal gerada por um Deus pessoal e nacional, como pode ser visto de maneira clara, por exemplo, no Livro de Gênesis, 1:1 : “No princípio, Deus criou o Céu e a terra [...]” e no Livro de Êxodo 19:3-6: E da montanha Iahweh o chamou e lhe disse: ‘Assim dirás à casa de Jacó e declararás aos filhos de Israel: ‘Vós mesmos vistes o que eu fiz aos egípcios, e como vos carreguei sobre asas de águia e vos trouxe a mim. Agora, se ouvirdes minha voz e guardardes minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.’ Estas são palavras que dirás aos filhos de Israel’.

E é nessa eleição divina que o povo de Israel descobre sua identidade nacional, numa perspectiva histórica.

52 UNIDADE 3

 Ao contrário das religiões que oferecem um credo de proposições intemporais, a religião judaicocristã anuncia a Boa Nova da ação redentora de Deus, totalmente transcendente (as religiões abraâmica, judaísmo, cristianismo, islamismo são as únicas que compartilham a afirmação da total Transcendência de Deus) na História humana. O cristianismo é a História da Encarnação da Palavra de Deus preparada desde os Patriarcas, realizada sob Pôncio Pilatos, continuada pela presença do Espírito Santo, até o regresso, em Glória, do Senhor, que porá fim a uma História não cíclica, como a imaginada, em outros lugares, pelos homens, a uma História perfeitamente linear, vetorial, que é a História da Redenção, ligada à Transcendência do Deus Eterno, que chama, da Eternidade, fora do tempo, os homens que Ele foi buscar no seio do tempo para fazê-los tombar no Fim do tempo, com Ele, na Eternidade que dá seu sentido à História (CHAUNU, 1976, p.43-44).

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Mas como o cristianismo se apropria desta visão judaica? O cristianismo apropria a noção de eleição histórica presente em Israel, ampliando-a, porém, para uma perspectiva universal, sem, contudo, negar suas origens judaicas. Esta transição se opera principalmente na brilhante construção teológica efetuada pelo apóstolo Paulo nas suas epístolas aos Hebreus e aos Romanos.  A transição do nacional ao universal se efetiva numa perspectiva histórica de identidade seqüencial entre os tempos da Lei e os da Graça, que se revela na precisão cronológica de construção de balizas temporais para o anúncio dos tempos da Graça, como, por exemplo, no Evangelho de Lucas 3:1-2: No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da  Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Felipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, Lisânias tetrarca de Abilene, sendo Sumo Sacerdote Anás, e Caifás, a palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto.

 A abrangência universal do cristianismo, por outro lado, se afirma numa radical desnacionalização da perspectiva monoteísta judaica, inserindo-a numa dimensão universalizante e excludente, como se

53 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

patenteia no Evangelho de João 14:6: “Diz-lhe Jesus: ‘Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim’”. Essa construção possui uma dimensão intrinsecamente histórica, pois era necessário que se afirmasse historicamente Jesus como Messias, como aquele que coroaria a época da Lei através do cumprimento das profecias, para a instauração do tempo da Graça.  A afirmação cristã após os tempos bíblicos, portanto, comporta uma construção epistemológica onde teologia e história se interpenetram e se interconstituem.

E quais são os fatores que levam os cristãos a terem interesse pela História? CARBONELL (1987, p. 40-41) afirma que o interesse cristão pela história se deve aos seguintes fatores: Pela redação da sua própria história. Eusébio de Cesaréia (265?-340) inaugura com uma História Eclesiástica um género ainda hoje florescente.

Pela sincronização das cronologias bíblica e pagã. [...] Eusébio, nos seus Cânones Cronológicos, que Rufus traduzirá para o latim sob o título de Chronica, traça uma cronologia universal de Nino, rei dos Assírios, sob cujo reinado faz nascer  Abraão, em Pompeia, isto é, de 2133 a 61 a.C.

Por um aprofundamento do conhecimento do passado, tornado necessário pelas disputas com os filósofos pagãos (Celso, Porfírio...). Para  ripostar aos seus adversários, que tornavam os cristãos responsáveis pelos infortúnios do tempo e em particular pelo saque de Roma pelos Visigodos em 410, o bispo de Hipona, Agostinho, solicita a Orósio que arranje documentação para provar que as catástrofes tinham afectado o mundo muito antes do triunfo do cristianismo.

Pelo recurso a uma interpretação global da história. Deve-se a Santo Agostinho a invenção da filosofia da história, na ocorrência de uma teologia da história. (negritos meus)

 Agora, você verá como essa concepção universalista cristã esteve presente em toda a produção histórica construída pelos cristãos da Antigüidade, dando ao cristianismo um caráter intrínseco de historicidade.

54 UNIDADE 3

Que necessidades levaram ao surgimento de uma historiograa cristã?  A história cristã surge da necessidade de inserir a cronologia da história da promessa e da salvação, de origem judaica, em parâmetros de compatibilidade com a história pagã, romana.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Foi a questão dos tempos que levou os cristãos a situar-se e a inserir-se nas durações até então pouco coordenadas da história romana e da história judia. Depois da efervescência pagã, espera do fim do mundo, quando dos Jogos seculares de 204 da era cristã, Julius Africanus, cristão que dirigia para o imperador a biblioteca do Panteão, escreveu uma crônica universal que inseria o cristianismo na história que se desenrolara desde a criação até o ano de 227 (ou 221), procurando calcular a data do advento do Milênio. Pouco depois, Hipólito de Roma escrevia uma outra crônica que ia até o ano de 234, na mesma perspectiva de cálculo (BOURGUIÈRE, 1993, p. 197).

Da mesma forma que a eleição de Israel se afirmava nas derrotas do povo judeu, o martírio e a perseguição eram a tônica da constituição de processo de afirmação da Igreja. Indicam a direção tomada por uma história que não é a história do cristianismo mas história cristã, história santa, ela própria universal: o desenrolar da história tem como objetivo o nascimento do cristianismo. [...] Os cristãos, não obstante, só podiam divisar êxito em seu número, e, do lado dos acontecimentos, só podiam consignar derrotas: as perseguições. Supondo que os cristão se tivessem mantido sob o signo da derrota política, o modelo de sua história teria misturado os princípios da história judia e a análise do fracasso que fora uma contribuição de Tucídides, a diplomacia dos bispos e a apologética (BOURGUIÈRE, 1993, p. 197).

E de que forma os cristãos antigos escreviam História? Esta visão da história levou naturalmente à composição de histórias da Igreja como primeira manifestação concreta de uma historiografia cristã.

55 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

 A primeira obra neste sentido é a História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia, ainda durante o período pagão e antes da perseguição de Diocleciano em 304, que se constituía de um cotejo e apresentação de documentos referentes aos cristãos, em ordem cronológica. O mesmo Eusébio de Cesaréia é o autor de uma Crônica Universal, que dá a dimensão cronológica da história cristã. Sua obra foi continuada por Jerônimo (340-420). O trabalho de Jerônimo como tradutor das escrituras para o latim, que originou a Vulgata, levou-o a ter uma percepção acurada da dimensão histórica da fé cristã. Não foram menores também seus méritos de historiador. Continuou a Crônica de Eusébio. Seu De Viris Illustribus é um dicionário biográfico de escritores cristãos que haviam vivido até os seus dias, incluindo o seu próprio nome (WALKER, 1967, p. 230).

Mas, anal quem, de fato, sistematizou e ordenou os princípios da historiograa cristã antiga?  A fundamentação e a ordenação sistêmica de uma filosofia e teologia universais da história seria formulada por Santo Agostinho, Bispo de Hipona. Agostinho é, junto com Tertuliano e Cipriano, um dos três maiores expoentes africanos do catolicismo latino. Nascido em Tagaste, na Numídia, hoje Suk Ahras, na província de Constantino, na Argélia, em 13 de novembro de 354, filho de pai pagão e mãe cristã, Agostinho teve passagem pelo maniqueísmo, o neoplatonismo e o monaquismo, até ingressar, em 391, na hierarquia católica. Foi ordenado Bispo coadjutor de Hipona em 395 e faleceu em 28 de agosto de 430, durante o cerco de Hipona pelos vândalos.

E sobre o que Agostinho escreveu? Sua contribuição doutrinária é fundamental para a consolidação institucional da Igreja Católica, e sua trajetória pessoal, exposta nas Confissões, é material fundamental para a dinâmica devocional cristã. Sua grande obra, porém, foi  A Cidade de Deus, escrita por volta de 420. Nela, Agostinho constrói os parâmetros para uma filosofia e uma teologia da história que geram o primeiro sistema histórico ordenado e

56 UNIDADE 3

finalista da tradição ocidental. O pano de fundo para  A Cidade de Deus  é o cerco de Roma por  Alarico, concluído em 410 com a destruição parcial da cidade pela primeira vez desde o advento do Império.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Era inevitável que os últimos defensores da ideologia pagã e os numerosos estratos de cristãos vissem neste desastre uma demonstração da cólera das velhas divindades, sob cuja protecção Roma se tornara grande, e que atribuíssem a responsabilidade à nova religião, fundada no culto de um Deus estranho às suas tradições (DONINI, 1980, p. 252).  A Cidade de Deus  é uma obra extensa, com vinte e dois livros que

podem ser divididos em duas partes bem distintas. Nos primeiros dez livros, Agostinho tenta traçar uma história racional do nascimento e do desenvolvimento do poder romano, em relação ao qual não esconde a sua própria admiração. [...] A estes dados sobrepõe-se, nos doze livros seguintes, uma concepção de história, que prescinde da existência de Roma e do seu império, para assumir o aspecto de um dualismo cosmogónico e moral abstracto, fruto da interpretação da natureza e da vida, que Agostinho fizera no longo decénio de sua experiência maniqueísta (DONINI, 1980, p. 252-253).

 Agostinho constitui, em A Cidade de Deus, mais que uma apreensão histórica da fé cristã, um arcabouço teológico-filosófico onde se conjugam de forma brilhante os pressupostos históricos da eleição de Israel, os postulados morais do cristianismo em seu embate com o paganismo romano e o determinismo messiânico-escatológico, que impõe um sentido à história. Construindo uma paráfrase livre da trajetória humana conforme proposta por Agostinho, poderíamos definir a história da humanidade em grandes etapas: a queda do homem e o início da historicidade; a era da aliança e da promessa; o cumprimento da promessa e o anúncio da redenção; o tempo da espera na graça rumo à redenção; e o cumprimento escatológico e final da redenção. O início da historicidade se dá pela queda do homem no Jardim do

57 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

58 UNIDADE 3

Éden, que gera a separação de Deus e o início da trajetória da humanidade rumo à redenção. É quando o ser humano é expulso da presença de Deus e tem como castigo a dor e o sofrimento na produção e reprodução de sua vida. É o momento da ruptura, da quebra da ordem original, paradisíaca, perfeita, e o conseqüente ingresso na ordem humana, marcada pela separação, pela dor, pelo conflito e, principalmente, por uma dimensão temporal e, portanto, histórica. Sua raiz encontra-se na tradição judaica da queda do homem do Paraíso, conforme narrada no livro de Gênesis 3:1-24.  A essa separação sucede o momento da escolha e da aliança de Israel com Deus (Iaweh). Esta promessa e a aliança são anunciadas a  Abraão em Gênesis 17:1-27 e aos Patriarcas, e formalizadas na fuga do Egito em Êxodo 19:1 a 20:17; e com Moisés no Monte Sinai, conforme exposto nos capítulos 21 a 31 do livro de Êxodo.  A aliança se afirma não apenas na escolha de Israel como eleito de Deus, mas também na promessa da vinda de um Messias, que destruiria as barreiras que separam os homens de Deus. Esse anúncio é recorrente na tradição profética de Israel e, segundo a tradição cristã, se realizou com a vinda de Jesus Cristo. Cristo chega como aquele que cumpre o prometido pela aliança e pelos profetas. Sua vinda é o cumprimento da promessa embutida no “tempo da lei” que, a partir de sua chegada, perde o sentido, pois que inaugura o “tempo da graça”, superior à Lei pelo sacrifício perfeito de Cristo. A vinda de Jesus realiza a reconciliação espiritual entre a humanidade e Deus, dando, finalmente, sentido pleno à palavra  religião (religar, restabelecer laços). Ao mesmo tempo em que a humanidade, através de Cristo se reconcilia espiritualmente com Deus, se anuncia uma nova promessa, a da redenção histórica do ser humano, que se consubstanciaria na segunda vinda de Cristo. O tempo da espera na graça, e não mais na Lei, é fundado na nova promessa escatológico-messiânica da segunda vinda de Cristo. Esse tempo, da espera do cumprimento da Nova Aliança da graça, se define historicamente pela trajetória dos homens, remidos em Cristo, do mal posto pela cidade dos homens, a Roma pagã, para a cidade de Deus, formada pelo rebanho daqueles que se reconhecem como escolhidos por Deus, sob o abrigo da Igreja, que conduzirá os eleitos no rumo à redenção.

O cumprimento da nova aliança da redenção na graça dar-se-á nos últimos dias, quando Cristo retornar à terra para conduzir os eleitos ao seio de Deus. É o momento do cumprimento do sentido escatológico da história e, ao mesmo tempo, o fim da história, posto que histórica é a separação do homem de Deus e sua redenção se reveste dos atributos divinos, dentre os quais a eternidade, que é “ahistórica” por definição.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Como A Cidade de Deus fundamenta a visão agostiniana de História?  A visão das duas cidades,  que se constitui como herança da experiência maniqueísta de Agostinho, tem como palco de sua disputa o mundo inteiro, e denota uma característica determinista, porém histórica, ao seu embate. As duas cidades  têm uma dimensão universal em sua inserção nos desígnios da providência divina. Não existem aí países e regimes diferentes, nações e impérios que se opõem, reduzidos à unidade sob Roma. No desdobrar da vida associada, coexistem duas cidades, a cidade do bem e a cidade do mal, de Deus e de Satanás, da graça e da perdição (DONINI, 1980, p. 253).

 A explicação do devir da humanidade como efeito das disposições insondáveis da providência divina é conjugada, na visão agostiniana, aos postulados eternos de uma teoria de predestinação determinista e excludente, onde a livre escolha não depende da vontade de cada ser humano, mas sim das disposições da providência divina, manobrada por leis às quais ninguém pode escapar.  A visão das duas cidades  elabora uma “atmosfera de inatacável determinismo teológico: a doutrina da graça e da predestinação é a resposta irracional do momento ao problema da origem e do destino do homem” (DONINI, 1980, p. 253). Esse determinismo irracional se prende a uma dimensão historicamente definida da relação “intervencionista” de Deus em suas relações com a humanidade, definidas pelos insondáveis desígnios da providência divina.  Ao pôr nas mãos da providência a predestinação na escolha dos habitantes da cidade de Deus, e ao identificar esta cidade com a Igreja,

59 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

 Agostinho abriu as portas às estruturas fechadas, rigidamente classistas , que dominarão ao longo de toda a Idade Média e que, nas páginas da Cidade de Deus, encontraram sempre a sua legitimação ideológica.[...] Mal e Bem sobrevivem até no além. Incapaz de atingir, com as suas próprias forças, um destino melhor, o homem de Agostinho projecta na eternidade todas suas exigências de felicidade e justiça. A cidade celeste continuará a confundir-se, na terra, com um grupo dirigente, com um sistema de poder sobre as massas, diluindo no mito todas as veleidades de resgate e todas as esperanças de libertação (DONINI, 1980, p. 253-254).

Este dualismo determinista e institucionalista é adotado por praticamente toda a historiografia pós-agostiniana e marcará de forma indelével a feição da tradição cristã ocidental de aí para a frente, com permanências até a contemporaneidade. Como exemplo, basta vermos a divisão do calendário ocidental atual, que traduz a essência da dinâmica temporal da trajetória humana na concepção providencialista agostiniana.

60 UNIDADE 3

1. 2. 3.

 Analise os quatro processos presentes nas escrita da História em Heródoto.

Qual é o principal atributo e fundamento da escrita da História para Tucídides? Por quê?  A partir da escrita das vitae (biograas) romanas, reita e sistematize uma postura sobre a utilidade do uso de biograas para a compreensão do processo histórico. 4.  A historiograa romana primava por uma dimensão moral em seus conteúdos. Como você vê esta

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

questão em relação ao ensino da História hoje? 5.

Desenvolva uma construção textual sobre o papel das “duas cidades” no pensamento agostiniano.

Nesta terceira unidade de seu estudo: a Historiograa na Antiguidade Clássica, você analisou as diferentes concepções históricas e dimensões historiográcas presentes na antiga Grécia e Roma e o pensamento histórico cristão na Antiguidade. Em relação à Grécia Antiga, você pôde acompanhar o surgimento do pensamento historiográco grego, desde suas origens até o período helenístico. Pôde ver que, em suas origens, a historiograa grega motivava fazer a distinção entre os gregos e os bárbaros e ser a expressão política de legitimar as classes política e religiosamente dominantes. Viu também a relação, nos primórdios, entre história e os cultos de mistério gregos, principalmente o orsmo, com sua exaltação do progresso e da cidadania. Conheceu, o pensamento histórico da escola historiográca cujo principal representante foi Heródoto de Halicarnasso, que contava suas viagens e descrevia os povos não gregos como forma de sustento nas cidades gregas. Tomou contato com os quatro fundamentos de sua escrita da História: ver e ouvir, dizer e escrever. E também viu as críticas de vários lósofos e historiadores de sua época sobre o caráter quase ccional de suas narrativas.  A seguir, viu que Tucídides colocou o surgimento de uma historiograa na Grécia Antiga, que  já trazia os fundamentos que sustentam a historiograa documental moderna. Sua principal obra,  A Guerra do Peloponeso , considerava ser o principal atributo e objetivo da História

a busca da verdade, o que gerou uma produção que poderia ser chamada de “cientíca”. Na sequência, você trabalhou com a historiograa helenística, e pôde perceber o arrefecimento na originalidade da produção historiográca grega, além do uso abusivo de repetições de fórmulas e formas derivadas dos historiadores da Grécia clássica. Viu que as bases de uma historiograa metódica, postas por Tucídides, foram sendo substituídas por preocupações retóricas, pela adaptação política da “verdade” histórica e pela “moralização” do discurso histórico, que reduziu a história helenística, em seu nal, a uma coletânea de ditos morais e discursos exemplares. Depois de passar por tudo isso, você percebeu que, com os gregos, a escrita da História passa a ter uma função social bem clara, de legitimação cultural, dos gregos sobre os outros povos, e política, das classes proprietárias e sacerdotais sobre o restante da população.

Na Seção 2 – A Historiograa em Roma, você pôde ver, inicialmente, que a inuência determinante da concepção grega de mundo, centrada na cidade e na superioridade cultural dos outros povos, foi determinante num primeiro momento da escrita da História em Roma.

 A seguir, você teve contato com o rumo literário que a historiograa grega constituiu como um dos fundamentos centrais de sua escrita da História. Conheceu a obra histórica de Julio César, Salústio, Cornélio Nepos e Tácito. Viu que os gêneros de escrita da História predominantes no período foram a crônica, a biograa e os anais, forma que gerou o monumental Ab urbe condita libri , de Tito Lívio, com 142 volumes.  A seguir, você conheceu a correlação entre a ênfase de gênero, literária, com a ênfase de conteúdo,

61 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

moralizante. Tomou contato com a exigência romana de uma história de agradável leitura, com episódios comoventes e pitorescos e uma forte inuência da arte oratória. Pôde ver que o conteúdo das construções históricas romanas, no período clássico da historiograa latina era fortemente marcado por um caráter moral e moralizante. A História era vista como espaço de denúncia e de construção de padrões morais de conduta. No dizer de Tácito, a tarefa do historiador seria a de não calar as virtudes e patentear a infâmia. Isso se construía em Roma pela denúncia da decadência dos costumes morais e sociais no período imperial, numa espécie de visão de progresso às avessas, onde a sociedade moralmente correta seria a sociedade dos primitivos romanos.

E pôde concluir que os romanos herdaram dos gregos, com permanência em todos os momentos de sua historiograa, a visão etnocêntrica de História com a história de Roma. Quando falavam de outras culturas e sociedades, os historiadores romanos o faziam apenas em função de sua ligação com Roma.

Esta exaltação da cultura e da moral latina, porém, teria, logo a seguir, uma inuência poderosa, que transformaria a escrita da História, não apenas em Roma, mas também em toda a tradição ocidental:

o advento e o processo de hegemonia do cristianismo na Europa. Na Seção 3 – A Historiograa Cristã antiga, você estudou o papel fundamental representado pela história no pensamento cristão antigo. Pôde estudar a forma pela qual os cristãos construíram sua identidade histórica a partir de uma ressignicação universalizante e excludente do conceito de eleição oriundo do Antigo Israel. Viu, também, como isso inuenciou sua escrita da História e os fatores que levaram os cristãos a priorizar uma dimensão histórica para sua fé.  A seguir você conheceu as motivações apologéticas da escrita da História entre os cristãos primitivos, postas nas questões de cronologia e compatibilização de calendário com os povos não cristãos e no papel testemunhal do martírio, inicialmente sob os judeus e mais tarde pelas mãos do Império Romano e pelos bárbaros.

Seu estudo encerrou-se com a análise do pensamento de Agostinho de Hipona, o levou a um painel biográco de Agostinho, seguido de uma apreciação bibliográca, com ênfase na obra A Cidade de Deus, e suas repercussões para uma visão sistêmica de mundo e de História pelos Cristãos, posta exemplarmente na questão das duas cidades , e suas inuências nas concepções temporais do Ocidente até a contemporaneidade.

Na próxima unidade, você estudará o momento de armação, hegemonia e crise da visão de mundo e de História providencialista agostiniana, um longo período, cerca de mil anos, conhecido por Idade Média, e a crise do Providencialismo, que toma formas concretas no Rensacimento Humanista do século XIV. Será um momento de transição para o estudo da produção histórica ocidental em seu processo de dessacralização, e o início de sua orientação para a lógica do Estado em substituição à da Igreja. Bom estudo!!!

62 UNIDADE 3

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

63 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

64 UNIDADE 3

A Historiografia medieval e renascentista

MARCO AURÉLIO MONTEIRO PEREIRA  JANAÍNA DE PAULA DO ESPÍRITO SANTO RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ■

Analisar as questões pertinentes às possibilidades de consciência

histórica na Idade Média ■

Estudar a historiografia cristã medieval



Estudar o surgimento e as formas de uma escrita laica da História na

   V    I    E    D    A    D    I    N    U    1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Baixa Idade Média ■

Compreender os processos de mudança e permanência de modelos

historiográficos presentes na historiografia renascentista.

ROTEIRO DE ESTUDOS ■

SEÇÃO 1 - Possibilidade de Consciência Histórica na Idade Média.



SEÇÃO 2 - A Historiografia Cristã Medieval



SEÇÃO 3 - A Historiografia Laica



SEÇÃO 4 - A Historiografia Renascentista 65 UNIDADE 3

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

PARA INÍCIO DE CONVERSA Olá!!! Você está iniciando uma nova unidade do curso de Teoria da História I. Nesta Unidade VI você irá trabalhar os conteúdos relativos à escrita da História no período medieval. Esta unidade é composta de três seções, que lhe possibilitarão tomar contato com as diversas expressões da historiografia na Europa da Idade Média. Na primeira seção, você será introduzido na discussão que travam os historiógrafos sobre as possibilidades de consciência histórica na Idade Média.  A Seção 2 é mais longa um pouco; nela você verá a historiografia cristã medieval em suas diversas formas de expressão escrita e diversos objetos de abordagem. A terceira seção apresentará um novo fenômeno, ocorrido durante a Baixa Idade Média: o surgimento de uma historiografia laica, que irrompe acompanhando a crise do sistema feudal e o fortalecimento e centralização do Estado.  A seguir, você realizará uma reflexão sobre as permanências de formas e concepções antigas e medievais no processo inovador da escrita da História na Europa Renascentista. Em seguida você irá descortinar o efetivo início de uma escrita da História analítica, documental e crítica no período do Renascimento. Logo depois, você verá que a escrita da História começa a ter por função principal a resposta a questões de Estado, e que os historiadores vão abandonando os mosteiros e passam a ter sua área de atuação mais ampla na burocracia das cidades-estado e na corte dos reis renascentistas. Seu trajeto pela historiografia do Renascimento irá se encerrar com um apanhado das relações entre o pensamento da Reforma Protestante do século XVI e a escrita da História.

SEÇÃO 1

Possibilidade de Consciência Histórica na Idade Média  A primeira questão que se coloca, para a discussão da produção da história na Idade Média, principalmente no Alto Medievo, é a da existência de uma “consciência histórica” medieval.

66 UNIDADE 4

 Vários medievalistas e historiógrafos contemporâneos ressaltam a “vasta indiferença ao tempo” do homem medieval. Philippe Ariès faz-se eco da mesma idéia quando afirma: «O homem da Idade Média jamais considera o passado como morto, e daí a sua dificuldade em fazer dele objeto de conhecimento.» (CARBONELL, 1987, p. 59)

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Isso ocorre por serem as concepções de vida, sociedade e tempo subordinadas aos desígnios da providência divina sobre a humanidade.  Assim, não caberia ao homem explicar e conhecer as causas e efeitos, quer no que diz respeito ao material, quer no que reputa ao histórico. Na afirmação deste ponto de vista, BOURDÉ & MARTIN (1990, p. 16), citam as idéias do historiador americano W. J. Brandt, em seu livro The shape of medieval history:

Os homens da Idade Média participavam de uma mentalidade radicalmente rebelde à história. Segundo este autor, percebiam a natureza sobre o modo da descontinuidade. Qualquer objeto era a seu ver único, dotado de uma essência própria e de uma virtude particular, porque referido a uma idéia divina. Daí o difícil estabelecimento de relações de causalidade dentro da ordem da física. Ter-se-ia passado o mesmo na ordem da história, sendo os acontecimentos percebidos como isolados uns dos outros, todos produzidos pela arbitrariedade divina.

Nessa concepção, a escrita da história não iria muito além de uma limitada intenção de revelação dos fatos, como mostra a fala de Orderic  Vital, monge inglês do século XII, em sua História Eclesiástica:  A pedido de meus companheiros, escrevo uma simples história onde relato os fatos ano a ano... Não posso esclarecer a vontade divina pela qual tudo acontece. Não quero divulgar as causas das coisas (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 16).

Essa aparente ausência de uma concepção temporal que fosse fundada em relações de causalidade e que ultrapassasse os desígnios da providência divina não impediu a emergência da escrita de produções de cunho histórico na Alta Idade Média.

67 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Essas produções tiveram forte influência eclesiástica e foram calcadas na concepção providencialista agostiniana, mas demonstram a necessidade de uma escrita de caráter histórico, mesmo que vassala da teologia e da moral, e definem um lugar específico para esta escrita na produção do conhecimento na medievalidade. Na Idade Média, o pensar histórico era fundado essencialmente no providencialismo agostiniano. É válido recordar aqui suas linhas mestras. Existem duas cidades, a dos homens e a de Deus. A cidade dos homens, terrestre, é habitada por cristãos e pagãos, e identificada com o Império Romano. Esta cidade está em marcha para a Cidade de Deus. No seio da cidade terrestre, a Cidade de Deus está presente, para guiá-la, sob a forma da Igreja. Dessa forma, Resulta um estatuto político e histórico particular dos cristãos: membros da cidade de Deus são peregrinos neste mundo, usando a paz relativa da Cidade Terrestre para atingir a paz celeste (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 18).

 Assim, a história possui possui um sentido e passa a depender diretamente diretamente dos desígnios da providência divina em seu processo do desenrolar dos acontecimentos. Pode-se falar, se bem que com maior ênfase a partir do século XII, de progresso e de uma temporalidade linear na realização da Graça, em substituição ao tempo cíclico-natural das sociedades pagãs. Na próxima seção, você irá conhecer as diversas formas e objetos da escrita da História conforme pensada e feita pelos cristãos medievais. Perceberá a influência das concepções historiográficas gregas, romanas e, principalmente, da historiografia cristã antiga no fazer histórico medieval

SEÇÃO 2

 A HISTORIOGRAFIA CRISTÃ MEDIEVAL Na Alta Idade Média a produção de história é aparentemente calcada sobre modelos greco-romanos. É desta forma que CARBONELL (1987, p. 59-60) vê a primeira historiografia medieval.

68 UNIDADE 4

No seu scriptorium, o monge começa por ser um copista que quer transmitir e de modo nenhum inovar; compila, traduz, resume, imita, quando muito prolonga as obras provenientes da Antigüidade. Eginhardo decalca a sua Vida de Carlos Magno sobre a de Augusto, tal como Suetónio a escreve sete séculos antes. Para compor uma parte de seus Anais, Lamperte, um monge de Hersfeld, plagia Tito Lívio (aprox. 1070). A Crónica de Réginon de Prüm (906) retoma e prolonga a de Beda (700), que retoma e prolonga a de Isidoro (626), ela própria inspirada na História do Mundo de Orósio (417). Podemos classificar de historiográfico um método de criação contínua em que o empréstimo sempre prevalece sobre a contribuição pessoal, em que à lenta sedimentação dos Anais se acrescenta a compilação?

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Porém, este relativo “abastardamento” não tem como ocultar uma mudança de perspectiva bastante definida.

Qual foi, anal, o gênero de escrita da História mais abundante na Idade Média? O gênero de escrita histórica mais abundante na Alta Medievalidade é a hagiografia. Suas principais formas de manifestação são as vidas de santos, os relatos de milagres ou de translações de relíquias e as listas episcopais. As narrativas de vida de santos, embora possuam um componente devocional e de edificação espiritual, também se constituem fundadas em motivações bem mais terrenas. Exemplo disso, no primeiro caso, é a Lenda Dourada, do frade dominicano Jacopo de Varazze (1230-1298). O livro em alguns momentos sacrifica “o amor da verdade à preocupação de edificação moral e espiritual”. Porém, é uma obra de um conteúdo que extrapola em muito o fabular. «Lenda dourada» não significa «conto fantasioso» fa ntasioso» mas, mais prosaicamente, a história que é necessário ler - no refeitório do convento, por exemplo - no dia da festa do santo, a fim de embelezar a alma dos ouvintes (CARBONELL, 1987, p. 59).

No segundo caso, um bom exemplo é a Vida de São Sansão de Dol.  A intenção maior da obra é legitimar historicamente a reivindicação dos

69 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

bispos de Dol serem reconhecidos como metropolitanos da Bretanha, em vez dos bispos de Tours. Esta necessidade leva à construção da Vida de São Sansão de Dol, obra tradicionalmente datada do final do século VI ou início do século VII, mas que se constitui efetivamente no final do século IX, e que consiste numa biografia heróica de São Sansão, rigorosamente decalcada sobre a vida de São Martim por Sulpice Sévère. Embora as vidas dos santos não se constituam em obras exclusivamente históricas, sua própria dimensão particular coloca em questão a especificidade da produção do conhecimento histórico nos primórdios da civilização cristã medieval. Outro aspecto específico da hagiografia diz respeito à translação de relíquias. No período carolíngio são comuns as invasões dos Vikings, que obrigavam as comunidades monásticas a fugir com suas relíquias sacras.

Há outras formas de escrita da História ligadas à Igreja? É também no período carolíngio que se dá a redação das primeiras listas episcopais. Estas Gesta episcoporum possuíam uma dupla função em sua confecção. Por um lado, pretendiam a criação de linhagens episcopais e por outro, construir os bispos em sua dimensão de pais dos fiéis. “Um modelo familiar, o do pai que alimenta, encarregado de zelar pelo patrimônio” (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 14).  A produção produção hagiográfica hagiográfica medieval possui possui uma dimensão dimensão específica, específica, onde a construção de modelos arquetípicos é privilegiada sobre a observação e cujas funções quer devocionais, quer legitimantes, se interconstituem na construção da especificidade do gênero. Outras dimensões específicas da historiografia cristã medieval são as histórias eclesiásticas e nacionais. Produção de padres, a história medieval, porém, não ignora a dimensão política e militar da história, numa perspectiva no princípio nacional, como no caso da formação dos reinos germânicos, e em seguida dinástica, quando dos renascimentos imperiais. Entre os VI e VIII, foi produzida uma vasta literatura histórica com essa dimensão: Jordanes, Bispo de Ravena, escreve a história dos Ostrogodos; Gregório, Bispo de Tours, a história dos Francos; Isidoro,

70 UNIDADE 4

Bispo de Sevilha, compõe a história dos Visigodos; o monge Beda, o  Venerável, escreve sua história dos Anglo-Saxões; e Paulo Diácono, monge de Monte Casino, constrói sua história dos Lombardos. Porém, a função das histórias nacionais era, na maioria das vezes, constituir a história de dioceses e/ou de ações evangelizadoras da Igreja.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

No entanto, mesmo quando movidos por um sentimento patriótico, como Isidoro e Paulo Diácono, ou por um espírito cortesão, monges e bispos escrevem como cristãos. Gregório de Tours (539-593) compõe a sua Historia Francorum com o intuito principal de fazer a história da sede episcopal de que é titular; a Historia Anglorum de Beda, o Venerável (673-735), é, na verdade, o relato da evangelização da Grã-Bretanha. Uma e outra são histórias eclesiásticas (CARBONELL, 1987, p. 56).

Mas o essencial da produção histórica da Igreja diz respeito à história eclesiástica propriamente dita. Por história eclesiástica compreende-se as histórias de sedes episcopais e de mosteiros ou comunidades eclesiais específicas. Não se trata, de modo nenhum, de histórias gerais da Igreja - contentam-se com recopiar a de Eusébio, traduzida em latim por Rufino no dealbar do século V, prolongada por Sócrates, Sozomeno e Teodoreto, e harmonizada por Cassiodoro em 570 (CARBONELL, 1987, p. 56-57).

 A emergência da história eclesiástica é favorecida pela existência, no final do milênio, de Anais, que registravam anualmente os acontecimentos memoráveis. Com o passar do tempo, estes Anais, junto com as cartas de doação e de privilégio, se constituem em fontes privilegiadas para a construção de histórias das igrejas dioceses, mosteiros e comunidades.  As histórias eclesiásticas são assim, a partir do século X, obras documentadas, tais como a História da Igreja de Reims, do cónego Flodoard (894-966), a História do Mosteiro de Saint-Bertin, do abade Folcuin (morto em 990), e a Crónica do Mosteiro de Farfa, redigida nos anos 1200, na qual o beneditino Gregório de Catina cita mais de 1324 textos oficiais (CARBONELL, 1987, p. 57).

Outra forma de manifestação histórica de importância está nas

71 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

chamadas “cronografias universais”. Embora, em sua maioria, desconexas e impressionistas, estas cronografias, inspiradas em Eusébio e Orósio, foram um gênero de escrita histórica muito popular durante todo o medievo. Elas traçavam a trajetória da humanidade desde Adão ou, com menos freqüência, desde Cristo.  As [cronografias] de Beda (700), de Réginon de Prum (906), de Hermann, o Curto - ou o Contrafeito - um monge da abadia de Reichenau, de que As seis idades do mundo retomavam explicitamente a divisão agostiniana em seis épocas adaptadas pela maior parte dos cronógrafos, as do beneditino Sigebert de Gembloux (1113), do bispo Otão de Freisingem - que termina com o anúncio do fim dos tempos - contam-se entre as mais lidas e copiadas no Ocidente; as de Cédrénus (1057), de Scylitzes (1079) e de Zonaras (1117), as mais reputadas no Império Bizantino. Todas decorrem dentro da cronologia «sagrada» ab Adam - desde  Adão (CARBONELL, 1987, p. 58).

E a escrita da História não ligada à Igreja, como ca?  A partir de cerca de 1200, a concepção da escrita da história vai gradualmente se modificando. Sem perder seu caráter eclesial, os espaços leigos, notadamente bélicos e políticos, vão se impondo como dimensões privilegiadas para a escrita da história.  As vidas dos santos vão dando lugar às biografias reais, cujo principal exemplo é a obra do Senescal de Champagne, Jean, sire de Joinville, O  livro das santas palavras e boas ações do nosso santo rei Luís, biografia de Luís IX. Porém, com a centralização do Estado e o fortalecimento do poder real em relação aos senhores feudais, começa a surgir na Europa uma escrita da História que passa a ter foco nas instâncias do Estado, como você verá a seguir.

SEÇÃO 3

A HISTORIOGRAFIA LAICA  A partir do século XII, vai começar, no início ainda de forma lenta, a transição do espaço da escrita da História da Igreja para a cidade.

72 UNIDADE 4

Segundo CARBONELL (1987, p. 62), “a historiografia ocidental muda de características, seculariza-se duplamente, estando, ao mesmo tempo, no século e sendo do seu século”. É uma dinâmica que se justifica pela dilatação da dimensão do espaço medieval ocorrida com as cruzadas e a decadência do modelo feudal, com a constituição de estados nacionais que vão se solidificando cada vez mais e chamando a si até a administração de sua própria memória. Como conseqüência a Igreja, com o latim e os monges copistas e historiadores, perde seu monopólio para burgueses e habitantes das cidades, que passam a escrever em línguas vulgares. Esta saída da história do mosteiro para a cidade opera a transição da escrita teológica da história para seu ingresso na literatura.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Por singular paradoxo, é no momento em que humildemente se rebaixa à condição de crónica do tempo vivido e renuncia, mais ou menos, a uma perspectivação profunda desde o α original, que a história adquire um estatuto definido: distinta da canção da gesta e da poesia épica, torna-se o relato em prosa das acções fulgurantes de que o historiador dá testemunho (CARBONELL, 1987, p. 63).

Embora, no início desse processo a escrita da história ainda estivesse sob a responsabilidade de monges, paulatinamente, as crônicas laicas nacionais vão assumindo a hegemonia do espaço historiográfico. Nessa transição destacam-se as cronografias universais dos clérigos Siegbert de Chambloux, Honorius de Autun, Ekkehard d’Aura e Otto de Freisingen, além, é claro, da produção coletiva dos monges de SaintDenis, encarregados pelos reis de França da primeira grande história nacional, a Grande Crônica de França, em 1274.

Mas qual foi a importância das Crônicas medievais?  A crônica passa a ser a forma privilegiada e fundamental de escrita da história. Nesse momento, a palavra “crônica” designa dois gêneros de escrita diferentes entre si e também diferentes das antigas cronologias universais.

73 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Por um lado, a crônica aborda os acontecimentos testemunhados pelo seu autor nos quais ele se viu envolvido e, por outro, designa um trabalho de síntese do passado e da trajetória dos estados nacionais que estão em processo de criação ou de afirmação na Baixa Idade Média. Suas origens são militares, fruto de narrativas das Cruzadas, que tiveram sua origem quando o monge beneditino Guibert de Nogent escreveu a única História da Primeira Cruzada, e Jacques de Vitry, Bispo de Ptolemais escreveu a Historia Orientalis, primeira descrição da Palestina novamente cristã (CARBONELL, 1987, p. 62-64); do início das explorações européias, como na obra de Ramon Mautaner, escritor catalão, que descreve, em sua Crônica, as explorações de Jaime I de  Aragão na Itália, Bizâncio, Grécia e Marrocos, e das grandes guerras dos séculos XIII e XIV, como, por exemplo, Jean le Bel e, principalmente Jean Froissart, que escrevem sobre a Guerra dos Cem Anos. Paulatinamente, porém, vão assumindo uma dimensão política, principalmente com o desenvolvimento das cidades-estado mercantis na Itália.

Mas será que isso não leva a escrita da História a um distanciamento da Igreja? Começa a tornar-se hegemônica na Europa uma escrita da história de dimensão essencialmente burguesa, de conteúdo não mais teológico, mas social e principalmente político. Um dos marcos da transição do teológico para o político é a Nuova Cronica, de Giovanni Villani (1280?-1348), mercador de Florença. Esta nova vertente historiográfica articula um discurso dessacralizado, realista e, de certa maneira, nacional, sobre o passado próximo, que anuncia o Humanismo e a Renascença. Análoga pelas suas curiosidades mas diferentes pelos seus fins, é a historiografia oficial dos jovens Estados (CARBONELL, 1987, P. 65).

É no espaço do Estado que o historiador vai passar a ter seu campo de ação e de ofício privilegiado. “Filha da desgraça, a história é também a serva do poder, e isso mais que nunca nos dois últimos séculos da Idade Média” (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 28). A nobreza mercantil italiana e a realeza européia sustentam historiadores encarregados de narrar seus

74 UNIDADE 4

“grandes” feitos. Mas a função destes novos historiadores públicos abrange um campo de trabalho mais amplo do que o mero elogio do rei. Passam a ser arquivistas, compiladores de documentos, estruturadores e harmonizadores de corpus  documentais diversos e elaboradores de sínteses de memórias. A credibilidade dessa história se originava numa concepção primeva de rigor e embasamento documental. Porém, isto não dava ao historiador do fim do medievo a autonomia para a construção de sua escrita. O servilismo, a bajulação e a apologia política são constantes nessa produção.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Da dependência da história em relação ao poder derivam várias servidões para o memorialista; a estreiteza de seu campo de visão (que se limita aos factos militares, à vida da corte e às grandes cerimônias religiosas ou civis, numa soberba ignorância do povo), o uso do estilo nobre (ou a escrita empolada da Borgonha, ou a imitação de autores antigos em Thomas Basin) e finalmente a obrigação de tomar a defesa do príncipe comanditário da obra, ou mecenas pelo menos (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 33).

No final do medievo, o historiador passa a assumir funções diferenciadas. A preocupação com o esplendor da corte e suas celebrações cede lugar à necessidade de se pensar as coisas do Estado com prioridade. Enquanto que a crônica tradicional da Borgonha centra-se no lúdico e no cerimonial, narrados detalhadamente, com Thomas Basin, bispoconde de Lisieux, e Philippe de Commynes, a narrativa prende-se mais aos aspectos militares, diplomáticos e políticos da corte. Do lado da Borgonha [...] são apenas torneios, festas banquetes e entradas principescas no simbolismo hermético, tudo relatado com muitos detalhes. Olivier de La Marche consagra deste modo metade de seu relato do reinado do Temerário, que se estende por duzentas e cinqüenta páginas, ao casamento do Duque com Margarida de York. Precisou de sessenta páginas para relatar o famoso banquete de faisão que se realizou em Lille em 1454! Em Commynes, em contrapartida, não resta grande coisa deste cerimonial aristocrático. [...] As paradas principescas são máscaras que escondem

75 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

sórdidas maquinações; os belos casamentos não passam de negociatas interesseiras. Para mais, estas festividades são ruinosas para o Estado e debilitantes para os príncipes, cujo caráter e inteligência degradam (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 37).

É o início de uma preocupação do historiador com a figura do príncipe, sua proteção e sua necessidade de conselhos para a boa gestão do Estado. O historiador passa a ser um analista no complexo jogo da política entre os Estados, apto a dar lições aos governantes. Conforme Michel de Certeau (apud BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 38), o historiador passa a desempenhar “o seu papel de técnico-substituto do príncipe”. Esse processo se desenrola de forma concomitante à centralização do Estado e ao surgimento das nacionalidades, durante os séculos XIV e XV. A função da escrita da história começa, então a se direcionar para a exaltação patriótica, quando não chauvinista: Assim, o Brevis Tratactus de Étienne de Conty (  1413), estudado por Philippe Contamine, que dá um quadro da Cristandade latina cerca de 1400. No coração desta Cristandade, a França, partilhada em três idiomas (o amengo, o bretão e o francês), rica de cento e uma cidades e mais de mil vilas muradas. Cidades como Barcelona e Cracóvia têm direito a curtas notícias,  baseadas nos «dizeres de vários nobres e também de mercadores» que lá foram. Os recursos dos diferentes  países são sumariamente enumerados, como a cera e as  peles polacas. Elogios e censuras são distribuídos aos diferentes povos. E surge já o chauvinismo francês: «É  preciso saber que entre todos os reis cristãos, o rei de França é considerado como o maior, o mais poderoso, o mais nobre o mais santo e o mais sensato» (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 38).

E, no nal da Idade Média, para onde vai a História? O século XV se constitui num marco de transição e de mudanças profundas nas práticas historiográficas. O eixo da escrita da história deslocou-se de forma nítida das manifestações eclesiais para centrar-se nas atividades políticas, diplomáticas e militares. A dimensão do relato histórico tende cada vez mais a se constituir literária e retoricamente.  A dimensão factual-cronológica e causal começa a se constituir em fundamento da prática do historiador. Isto fica claramente expresso na fala

76 UNIDADE 4

de Robert Gauguin, em 1478: “Aquele que escrever estes acontecimentos não satisfará a história se não conhecer os factos, as datas os projetos e os “resultados” ·(apud BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 39). Esse processo irá se acelerando de forma cada vez mais intensa e as coisas do Príncipe e do Estado passam a ser centrais na historiografia européia já no século XV. Mas isso é assunto para a próxima Seção, que vai tratar da Historiografia na Renascimento

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

SEÇÃO 4

A HISTORIOGRAFIA RENASCENTISTA  A historiografia renascentista se constitui em espaço de transição da hegemonia da historiografia cristã para uma nova historiografia de cunho laico e político. Este espaço de transição se configura, primordialmente, em seu aspecto epistêmico, em direção a uma “Nova História”. Pierre CHAUNU (1976, p. 45) define esta nova dimensão da escrita da história: O humanismo crítico é uma mudança fundamental do conhecimento. Depois de quinze séculos de abandono dos referentes naturais em favor apenas dos referentes escritos e a sedimentação dos comentários, o humanismo é, em primeiro lugar, corta-circuito dos comentários, um regresso ao texto, uma nova leitura crítica.

E Jacques LE GOFF (1985, p. 193) também define esta nova dimensão da escrita da História: O Renascimento é a grande época da mentalidade histórica. É assinalado pela idéia de uma história nova, global, a história perfeita, e por progressos importantes de método e de crítica históricas. De suas relações ambíguas com a Antigüidade (ao mesmo tempo modelo paralisante e pretexto inspirador), a história humanista e renascentista assume uma atitude dupla e contraditória perante a história. Por um lado, o sentido das diferenças e do passado, da relatividade das civilizações, mas também da procura do homem, dum humanismo e duma ética em que a história, paradoxalmente,

77 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

se torna magistra vitae, negando-se a si própria, fornecendo exemplos e lições atemporalmente válidos.

Esta “história nova” tem relação, em sua origem, com alguns acontecimentos aparentemente sem ligação entre si: a invenção da imprensa por Gutenberg por volta de 1440; a demonstração, também por volta de 1440, por Lorenzo Valla, da falsidade da Doação de Constantino; e a ocupação, em 1453, de Bizâncio pelos turcos otomanos, com a conseqüente dispersão dos copistas e gramáticos gregos por toda a Europa. Para CARBONELL (1987, p.77), estes acontecimentos geram “novas técnicas de difusão, novo método de análise, novas fontes...”.  Aparentemente, é o momento de ruptura da escrita da história com mais de mil anos de submissão à teologia e à Igreja para retornar aos primórdios da Antigüidade Clássica e anunciar uma “idade da razão”. Essa “nova história”, porém, não pode ser vista apenas pela dimensão de seu progresso. A Europa permanece cristã, e esta permanência ainda possui um grau de influência bastante alto na produção historiográfica dos humanistas e do Renascimento. Há uma frase de Georges Gusdorf que define de forma precisa a relação do Renascimento com a Antigüidade greco-romana. Para ele, os homens da Renascença foram os “embalsamadores do cadáver esquisito da Antigüidade perdida e reencontrada, mas reencontrada como definitivamente perdida”. Essa dimensão do retorno à Antigüidade é elemento de relativização e até negação dos fundamentos escolásticos da fé e das referências artísticas e culturais construídas na Idade Média, gerando aquilo que poderia ser chamado de “retro-história”. Houve todo um encanto e um deslumbramento com os historiadores gregos e romanos redescobertos. Foi um momento de idealização de Grécia e Roma como as sociedades ideais, que gerava a necessidade de conhecê-las em seus diferentes aspectos. Do seu conhecimento decorrem novas maneiras de conceber o tempo, o passado e a historiografia. - O tempo já não é oriundo de Deus nem destinado a tornar a ele; imanente, indefinido, humanizase. Significativamente, o historiador sucede ao

78 UNIDADE 4

teólogo. - O passo já não é decifrado através do sonho de Daniel e das profecias da Águia de Patmos. Ponto final nas interpretações até então ensinadas: a interpretação moral da irremediável decadência, bem como a interpretação política da translatio imperii, graças à qual se assegurava a continuidade entre o Império Romano e os impérios cristãos. [...] - A consciência histórica afina-se, então: consciência da morte e da impossível ressurreição.  A renascença historiográfica primeiro e depois as Grandes Descobertas cavam no tempo, e logo no espaço, o abismo para além do qual permanece o Outro. [...] - A historiografia manifesta a contradição que faz do retorno ao antigo a via da modernidade. O historiador humanista imita Tucídides ou Plutarco, Tito Lívio ou Suetónio. Como eles, emprega um estilo oratório, elegante e cheio de efeitos. Segue os conselhos retóricos de um Quintiliano, dramatiza, multiplica os discursos fictícios, os pormenores pitorescos e romanescos, os lugares comuns morais ou políticos (CARBONELL, 1987, p. 79-81).

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Este  revival da Antigüidade Clássica, porém, não foi impedimento para que, a par da redescoberta das antigas formas de se escrever História, novas concepções teóricas e historiográficas se fizessem presentes na corporação dos historiadores renascentistas.

- E onde esse encantamento todo com a Antiguidade Clássica vai desaguar? O “encantamento” com o passado renascentista, no campo da escrita da História, não foi passivo nem estéril. É o momento onde surgem vários dos saberes que seriam fundamentais para o desenvolvimento do aparato crítico da historiografia.  A busca das obras de arte deu origem à  Arqueologia. [...] A filologia – latina, depois grega , depois hebraica, constitui-se em ciência auxiliar da História. [...] A numismática sai da idade estética e mercantil quando Guillerme Budé publica, em 1514, sob o título De asse – Do asse – um estudo sobre a moeda romana. A arquivística nasce em 1571 com o tratado que lhe consagra  Jakob von Rammingen. O De emendatione

79 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

temporum, de J.-J. Scaliger fornece, em 1583, o método de estabelecimento das cronologias. Em 1608, o cónego espanhol Chacon, ou Ciacconius, funda a metrologia com o seu De ponderis, mensuris et nummis Graecorum et Romanorum (CARBONELL, 1987, p. 82-83).

Inicia-se, concomitantemente, o processo de organização dos arquivos de Estado. É quando começa a ganhar consistência cada vez maior a escrita de “uma história, documental e positiva”. Seus precursores foram italianos, como Bruni, Biondo, Maquiavel e Guichardin. Essa nova história, essencialmente política, traz em sua elaboração, contudo, algumas das características da forma anterior, como a ênfase nos discursos dos personagens principais e a estrutura analítica. Mesmo as Cronologias, tão famosas na Idade Média, prosseguem sendo produzidas e possuindo ampla aceitação.

Uma História “Total”? Na França, principalmente com Jean Bodin e Lancelot de la Popelinière, surgem os primeiros “teóricos” de uma visão de História perfeita, completa.  Jean Bodin constitui a História como ciência, separando suas leis de funcionamento histórico, dentre as quais o determinismo climático, a deriva sudeste-noroeste das civilizações em torno do Mediterrâneo são as principais; promovendo a construção do saber histórico como universal e definindo seu caráter de ciência humana. Bodin distingue a história “narração exata das ações passadas” da história natural e da história sagrada. La Popelinière afirma, já em 1599, a relatividade cultural dos conhecimentos históricos e aspira, principalmente em sua História das Histórias, de 1599, à construção de uma “história completa”. Essas concepções sofrem uma decisiva influência do processo de burocratização e racionalização burocrática do Estado no período renascentista. A profissionalização da burocracia estatal levou à profissionalização de historiadores e arquivistas como responsáveis por processos técnicos de narração e guarda de fontes da memória do Estado

80 UNIDADE 4

E a quem servia esta classe de historiadores prossionais Para G. Gunsdorf (apud CARBONELL, 1987, p. 87) “o advento da historiografia renascentista está associado à consciência cívica dos intelectuais enfronhados na vida da cidade”. Quem são estes intelectuais? Não são acadêmicos, pesquisadores de gabinete, mas sim funcionários da burocracia das cidades-estado, embaixadores, juristas, parlamentares que são os maiores responsáveis pela produção historiográfica deste período. Para LE GOFF (1985, p. 194-195):

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

 A história do Renascimento está estritamente dependente dos interesses sociais e políticos dominantes, nesse caso do Estado. Dos séculos XII ao XIV, o protagonista da produção historiográfica tinha sido, no meio senhorial e monárquico, o protegido dos grandes (um Gudofredo de Monmouth ou um Guilherme de Malmesbury dedicam a sua obra a Roberto de Gloucester, os monges de Saint-Denis trabalham para a glória do Rei de França, protector de sua abadia, Froisart escreve para Filipa de Hainaut, rainha da Inglaterra, etc.) enquanto que, no meio urbano, aparece o notário cronista. No meio urbano, o historiador é um membro da alta burguesia no poder, como Leonardo Bruni, chanceler de Florença, de 1427 a 1444, ou são altos funcionários do Estado, dos quais, os dois mais célebres exemplos foram, em Florença, Maquiavel, da chancelaria florentina (embora tenha escrito as suas maiores obras depois de 1512, data em que foi expulso da chancelaria, quando do regresso dos Médicis) e Guicciardini, embaixador da república florentina e depois servidor, sucessivamente, do papa Leão X e de  Alexandre, Duque da Toscana.

Esta inserção dos historiadores na vida urbana e nas instâncias de governo acaba direcionando a definição dos objetos e a forma do discurso.  A história fraciona-se e estreita sua abrangência espaço-temporal. Há uma busca generalizada das “raízes” ancestrais que, iniciando-se nas cidades italianas, rapidamente atinge as cidades alemãs e a França.  A escrita da História passa, a partir desta conjuntura, a ser cada vez mais determinada pelo seu caráter político-governamental e nacionalista. E esta dimensão político-governamental e racionalista vai estar no pano de fundo de uma nova historiografia cristã surgida no século XVI: a historiografia filha da Reforma protestante.

81 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

Uma historiograa protestante?  A Reforma trouxe a necessidade, quer para protestantes, quer para católicos, de legitimarem suas posturas teológicas historicamente. Os cristãos reformados, no rastro da dimensão teológica do livre exame das Escrituras, e ansiando construir laços com o cristianismo primitivo seguem a vertente humanista em seu retorno ao passado e na releitura dos antigos textos gregos e latinos.  Já os católicos redimensionam a escrita da História da Igreja, para uma dimensão extrovertida, voltada ao público leigo, mais erudita e demonstrativa, enfim com um caráter apologético de reafirmação da ligação direta entre Cristo e a Igreja. Paralelamente a isto, se inicia uma nova historiografia voltada para o conhecimento e a denúncia das heresias, e para a inserção dos movimentos reformistas numa linhagem de movimentos heréticos e de contestação da autoridade divina da Igreja Católica. Os historiadores protestantes têm uma visão maniqueísta do passado: à Igreja primitiva e santa opõem uma Igreja «medieval» onde tudo que existe não passa de «barbárie e horrível desordem» (Teodoro de Beze). Se os historiadores católicos se interessam pelas heresias de outros tempos, é para melhor confundirem com elas as do presente e as condenarem de forma análoga. A polémica historiográfica não é mais esclarecedora do que a disputa teológica (CARBONELL, 1987, p. 91-92).

Esta disputa historiográfica, embora acrescente enriquecimento de informação, exploração de novos territórios, abertura de recursos coletivos à produção historiográfica, também promove sua “contaminação” pelo espírito da polêmica. Mas a historiografia protestante derivada desse processo surge num patamar de maior afinação com a lógica racionalista e burocrática da historiografia renascentista, apontando para a possibilidade de uma história e uma historiografia cristãs não definidas pela apologética institucional católica e para o triunfo do racionalismo, como você verá na próxima Unidade

82 UNIDADE 4

1. 2. 3.

Faça uma síntese esquemática da produção histórica hagiográca na Idade Média. Construa, a partir do texto estudado, um texto-síntese sobre os reexos na escrita da História da passagem do espaço da Igreja para o espaço do Estado como campo de hegemonia social. Elabore uma reexão sintetizando as semelhanças e apontando as diferenças entre os

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

pensamentos de Chaunu e Le Goff sobre a escrita da História no Renascimento citados no início 4.

do texto estudado na Seção 4.  A partir da denição das “ciências auxiliares” da História, faça uma reexão sobre sua utilidade no processo de escrita e ensino da História na contemporaneidade.

5.

Há hoje, na prática da escrita e do ensino da História, espaço para uma construção historiográca religiosamente denida? Por quê?

Nesta Unidade IV: A Historiograa Medieval e Renascentista, você estudou as principais formas de escrita histórica durante a Idade Média.

Seu percurso iniciou com a discussão, até hoje acesa entre os historiógrafos, sobre a possibilidade de consciência histórica na Idade Média.

 A seguir, na Seção 2, você pôde constatar a força da historiograa cristã providencialista na produção da história medieval, em suas diversas temáticas e variadas formas de expressão, como a hagiograa, as histórias eclesiásticas e as cronologias.  A terceira seção mostrou o início da transição da hegemonia social e política na Europa da Igreja para o Estado, e as inuências que isso teve na historiograa européia, com a criação de novos espaços e objetos não mais necessariamente ligados à Igreja. É o campo fértil para o surgimento das cronologias reais, de uma história política e de uma prática mais diversicada do historiador, que de narrador do passado passa a ser, também, um analista da sociedade, um conselheiro do Príncipe.

Na Seção 4, você viu a importância do período do Renascimento para a constituição de uma nova forma de escrever a História na Europa. Ali, foi possível perceber que a proposta historiográca de uma Nova História não foi absolutamente original, por esta carregar em si permanências de formas e concepções da Antigüidade Clássica e da Idade Média. Você também pôde acompanhar a contribuição original do Renascimento para a historiograa moderna, efetivada na construção de um corpo de saberes auxiliares da História; na preocupação com a recolha, organização e guarda de documentos e formação de arquivos, principalmente arquivos públicos; e com a elaboração de construções teóricas totalizantes sobre a natureza e as possibilidades de escrita da História, como as de Jean Bodin e Lancelot de la Popelinière. Pôde conhecer a mudança de espaço e campo de trabalho dos historiadores dos mosteiros e

palácios episcopais para as instâncias burocráticas do Estado. Viu como essa mudança inuenciou decididamente os objetos de escrita da História, que se deslocaram, de forma cada vez mais intensa, dos assuntos religiosos para os políticos. E, nalmente, você conheceu o surgimento de uma nova concepção de escrita da História no campo do cristianismo, a história protestante, e as relações de disputa de hegemonia no campo cristão estabelecidas entre católicos e protestantes. O Renascimento é um período fundamental para a compreensão das características e dimensões

83 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

84 UNIDADE 4

metódicas e mesmo epistemológicas da escrita da História contemporânea. Ali, estão lançadas as bases de uma escrita da História crítico documental, centrada nas questões de Estado e suas áreas conexas, que acabam dando o perl a uma historiograa ainda bastante importante na contemporaneidade. Mas a dimensão incipiente dessa forma mais “metódica” de escrita da História e a permanência

bastante forte das formas historiográcas medievais tornaram a História um dos alvos preferidos da “revolução” epistemológica ocorrida na Europa do século XVII. Mas isto você verá na Unidade V a seguir. Bom Estudo!!!

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

85 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

86 UNIDADE 4

A Historia entre a

Filosofia e a Ciência MARCO AURÉLIO MONTEIRO PEREIRA  JANAÍNA DE PAULA DO ESPÍRITO SANTO RODRIGO CARNEIRO DOS SANTOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ■

Conhecer a crise epistemológica do século XVII e seus efeitos sobre

as concepções processos de escrita da História. ■

Tomar contato com o processo de cientifização do processo de

   V    E    D    A    D    I    N    U    1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

escrita da História nos séculos XVII e XVIII, pela vertente da erudição e da crítica. ■

Estudar o processo de articulação dos saberes históricos com os

filosóficos, elaborado no século XVIII como possibilidade de saída da crise do século XVII.

ROTEIRO DE ESTUDOS ■

SEÇÃO 1 - A Crise da História no Século XVII



SEÇÃO 2 - História e Erudição



SEÇÃO 3 - História e Filosofia 87 UNIDADE 4

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

PARA INÍCIO DE CONVERSA Os séculos XVII e XVIII representam um momento crucial no tocante à escrita da História na cultura ocidental. É um momento paradoxal, de rupturas, permanências e avanços que se interconstituem e acabam por dar à historiografia ocidental sua fisionomia própria e seu aparato crítico na modernidade. É possível, nessa conjuntura, a detecção de pelo menos três grandes tendências historiográficas. A história humanista persiste, com seus propósitos e fundamentos moralizantes, retóricos e políticos. Consolidase o surgimento de uma historiografia erudita, com sua ênfase na recolha de acervos documentais, com a consolidação de seus métodos críticos e com a produção de suas enormes e exaustivas obras. Surge uma nova dimensão da escrita da história, permeada por suas relações com a filosofia.

SEÇÃO 1

A CRISE DA HISTÓRIA NO SÉCULO XVII O século XVII é marcado pela construção de um novo paradigma epistemológico marcado pela racionalidade e pelo “método científico”. As principais expressões desta nova tendência estão em Francis Bacon, com o Novum Organum, de 1620 e no Discurso do Método, de René Descartes, de 1637. Os historiadores, porém, oscilam, segundo Carbonell (1987, p. 96-97), entre três atitudes que têm muito pouco de racionalidade e cientificidade. - a credulidade, não só continuam a ser aceites certas fábulas da Antigüidade, como também certos mitos medievais ressuscitam, tal como o de Francião, filho de Heitor, pai dos Francos...; - a dúvida pirrónica, manifestada por Montaigne, céptico mas ávido de cultura, suspendendo o seu juízo - «Que sei eu?» -, não acreditando nos prodígios relatados por Tácito mas felicitando-o por os ter relatado, uma vez que a tarefa dos

88 UNIDADE 5

historiadores é «reproduzirem a história mais de acordo com o que recebem do que com o que estimam»; - o hipercriticismo, o do jesuíta Papenbroeck, por exemplo, que, à força de expurgar e corrigir as Vidas de santos, acaba por duvidar da autenticidade de todas as cartas merovíngias.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

E o que ocorre com a História no racionalismo cienticista?  A hegemonia do racionalismo cientificista relegou o passado, e o conhecimento histórico, a um plano inferior. Descartes rejeita a experiência; Descartes e a corrente cartesiana alimentam a ilusão de uma ruptura no plano da herança. 1628-1636, com alguns anos de intervalo, a afirmação genial e reiterada de Galileu e de Descartes de que “a natureza se escreve em linguagem matemática”. O que importa é a natureza, o que conta é o cosmos: uma nova inteligibilidade do mundo. Que poderia a História fazer em tudo isso? (CHAUNU, 1976, p. 58)

Esta postura é bem explicitada nas atitudes de Descartes, Pascal, Malenbranche e La Fontaine: O espírito do século não só se desvia do estudo do passado, mas também zomba dele. Confessando sua vontade de escrever um tratado de erudição, Descartes esclarece o seu correspondente: «contra a erudição, bem entendido». Pascal considera a história «incapaz de progresso» porque «não revela nem do raciocínio nem da experiência, mas somente do princípio da autoridade». Em Recherche de la Vérité (1674), onde tenta constituir uma teodicéia cartesiana, Malenbranche considera os conhecimentos históricos como «vãos e infrutíferos». E La Fontaine dirá com bonomia: Se eu aprendesse hebreu, as ciências, a história, Tudo isso era um bicho-de-sete-cabeças. (CARBONELL, 1987, p. 96-97)

Chaunu vê na construção anti-historicista do Discurso do Método de Descartes não apenas a negação da dimensão histórica na matematização da escrita do Universo. Duma forma mais sutil o discurso cartesiano nega

89 UNIDADE 5

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

a história “por meio daquilo que chamamos a colocação entre parênteses da política e da religião”. A dimensão modificadora da história se contrapõe frontalmente à necessidade cartesiana de uma dimensão social única que poderia “conservar num bloco toda ordem humana tradicional” (CHAUNU, 1976, p. 58).

E essa negação da História ocorria apenas nos lósofos racionalistas? Esta negação da história no século XVII, porém, não se limitava apenas ao racionalismo cientificista. Ela se construía também na esfera da Teologia, principalmente em Malenbranche, cujo pensamento, em essência pregava que “Não se encontra Deus na História; o tempo e a História afastam-se de Deus” (CHAUNU, 1976, p. 59). Isto fica sobremaneira evidente na citação abaixo, extraída de La Recherche de la Vérité, de Malenbranche:  A principal causa que engaja os homens em falsos estudos é o fato de eles terem relacionado a idéia de sábio com conhecimentos vãos e infrutuosos, em vez de só a relacionarem com as ciências sólidas e necessárias [...]  As línguas e principalmente aquelas que já não estão em uso nos seus países, como o árabe e a rabinagem ou algumas outras semelhantes, parecem-lhes dignas de sua aplicação e de seu estudo. Se eles lêem a Sagrada Escritura, isso não se deve a quererem aprender a religião e a misericórdia; os pontos de cronologia, de geografia e as dificuldades da gramática ocupam toda sua atenção; eles desejam com mais ardor, o conhecimento dessas coisas que as verdades salutares do Evangelho. (MALENBRANCHE, apud CHAUNU, 1976, p. 59-60)

Um teólogo menor do século XVII, como o padre Bernard Lamy, tem uma postura ainda mais radical contra a história em seus Entretiens sur les Sciences, de 1684, obra de grande sucesso na época:  A História é um amontoado de asneiras tanto dos homens quanto de suas virtudes. Que acontece a uma pessoa que se enche dela, sem digerir todas essas coisas, por meio de uma solidez de  julgamento...? ... Elas causam no seu espírito como

90 UNIDADE 5

que uma indigestão...(LAMY, apud CHAUNU, 1976, p. 60)

 Assim, ao final do século XVII, a história está relegada ao plano mais inferior de toda sua trajetória na tradição ocidental desde os gregos antigos. Porém este quadro tende a se transformar com uma nova perspectiva para a história no século XVIII, fundada na erudição e na filosofia.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

SEÇÃO 2

HISTÓRIA E ERUDIÇÃO O final do século XVII e, principalmente, o século XVIII, trazem consigo uma mudança de atitude diante da história.  A rejeição racionalista e do liberalismo religioso se dilui na afirmação de duas novas dimensões do conhecimento histórico: a dimensão filosófica da historiografia e da erudição. Para Chaunu, estas duas dimensões definem a historiografia do século XVIII: “As coisas, no século XVIII, passaram-se como no século XVI. O novo impulso do historicismo é precedido por um aprofundamento do aparelho crítico.” (CHAUNU, 1976, p. 60)  Apesar da existência de restrições ao desenvolvimento de uma atitude crítica, o final do século XVII e o século XVIII antecipam as bases fundantes da Escola Metódica francesa da segunda metade do século XIX.  As principais restrições podem ser vistas, pontualmente, nas seguintes dimensões, conforme Bourdé & Martin, (1990, p. 62):  As amarras da Escola Providencialista, de base medieval, fundada no “funcionamento circular do pensamento simbólico”;  A mudança da noção clássica de similitude pela moderna noção de ordem, operada pelo racionalismo cartesiano;  A subordinação do conhecimento histórico à Teologia e, mais recentemente, à Filosofia;  A ênfase literária e oratória da construção histórica.  Apesar disso, principalmente a partir da segunda metade do século •







91 UNIDADE 5

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

XVII, surge de forma consistente uma atitude crítica, que antecipa o método, na historiografia européia.

Criticar? Mas criticar o que? Influenciados pelo racionalismo cartesiano, uma série de historiadores e eruditos começa a analisar o processo histórico a partir de uma atitude crítica, de ruptura com os moldes tradicionais de construção histórica. Uma palavra-chave classifica a sua atitude, a de crítica; designa essa atitude do espírito que «consiste em não acreditar levianamente e em saber duvidar em várias ocasiões». Esta crítica estende-se a todos os domínios da atividade intelectual; fazendo «tábua rasa de crédito», tentando apoiar-se nas autoridades tradicionais, procura «chegar assim a novas certezas (ou a grandes probabilidades), a partir daí devidamente provadas». Toma como alvo, por exemplo, a tradicional crença no milagre, que a razão não pode admitir na medida em que vai contra as leis da natureza. (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 63)

 Além dos milagres, as Sagradas Escrituras são alvo de uma ação intensa dessa atitude crítica: Do lado protestante, um professor de Oxford chega a assimilar as Sagradas Escrituras às fabulas do Oriente (em 1695); do lado judeu, Spinoza sugere interpretar a Bíblia como a natureza e interrogarse sobre «os diversos destinos que puderam sofrer os livros dos Profetas... a vida, os estudos do autor de cada livro»; do lado católico, Mabillon e o abade Fleury arruinam um certo número de lendas. (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 63-64)

E quem foi o pioneiro da ruptura crítica? Porém, o autor efetivo da  ruptura crítica, foi padre da Congregação do Oratório, Richard Simon (1638-1712). Com uma formação erudita, principalmente no tocante ao Antigo Testamento, Simon faz uma leitura crítica das Escrituras, tirando daí os princípios básicos da crítica: Esta deve em primeiro lugar estabelecer o grau de segurança de autenticidade dos textos

92 UNIDADE 5

estudados: «Primeiramente, é impossível entender perfeitamente os livros sagrados, a menos que se saibam antes os diferentes estados em que o texto destes livros se encontrou segundo os diferentes tempos e os diferentes lugares.» Em seguida, exclui as considerações estéticas e morais, tal como os a priori teológicos, afirmando-se plenamente senhora das suas próprias operações. Finalmente, a crítica apóia-se antes de tudo na filologia, que vê ser-lhe conferido o estatuto de ciência rainha. (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 64)

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Simon elabora visões críticas do Pentateuco, negando a autoria de Moisés aos livros da Lei e descobrindo incongruências no relato da criação e critica, também, o Novo Testamento. Para ele, a compreensão do Novo Testamento deve partir do estabelecimento de seu sentido literal e priorizar a gramática sobre a teologia. Esta postura lhe acarreta ataques das autoridades eclesiásticas e de historiadores católicos, como Bossuet. Simon é, sucessivamente, expulso da ordem oratoriana em 1678; tem sua obra apreendida por ordem real; e é posto no Index  em 1683.

Mas, anal quando e com quem a crítica se arma como prática historiográca? No âmbito estrito da história, porém, o grande personagem da renovação historiográfica é, sem dúvida, Dom Mabillon (1632-1701), monge beneditino da Congregação de São Mauro em Sain-Germain-desPrès. É com a publicação do seu De Re Diplomatica, em 1681, que se funda “a ciência da diplomacia fornecendo os meios de distinguir os diplomas autênticos daqueles que foram forjados totalmente, remanipulados ou interpolados” (BOURDÉ & MARTIN, 1990, p. 64-65). Mabillon escreve o De Re Diplomatica  como resposta ao hipercriticismo do jesuíta alemão Daniel von Papenbroeck (1629-1714), que continuou o empreendimento “bolandista”, isto é, pertencente ao movimento de crítica historiográfica à hagiografia medieval iniciado em 1607 por Héribert Rosweyde e que tem por principal expoente Jean Bolland (1596-1665), que publicou os primeiros volumes dos  Acta em 1643, de crítica e publicação dos  Acta Sanctorum e  publicou em 1675 uma dissertação sobre a crítica de cartas antigas, Sobre o discernimento

93 UNIDADE 5

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

do verdadeiro e do falso nos velhos pergaminhos.

Confrontado com a difícil edição dos Acta Sanctorum, o Pe. Daniel von Papenbroeck consulta os diplomas lavrados em nome dos soberanos merovíngios e carolíngios, no termo de uma longa análise comparativa, e deduziu que os papiros merovíngios não mereciam crédito. (CARBONELL, 1987, p. 102-103)

 A polêmica se coloca porque os beneditinos, a cuja ordem pertencia Dom Mabillon, eram os depositários, em Saint-Denis, da maior parte dos documentos considerados falsos por Papenbroeck.  Assim, Dom Mabillon responde a Papenbroeck com a obra que marca a surgimento sistemático da crítica histórica, o De Re Diplomatica. Utilizando um método exaustivo (exame de 200 peças), analítico (exame pericial da tinta, da escrita, da língua, das fórmulas, etc.) e comparativo, provou a autenticidade dos documentos rejeitados por Papenbroeck, O bolandista inclinou-se perante o maurista.  Acabava de nascer um método histórico: a crítica textual. (CARBONELL, 1987, p. 103)

Pode-se dizer que, na metade do século XVIII, estavam dadas as bases para a consolidação da crítica textual como método privilegiado na produção historiográfica. Estas bases possuem uma dimensão teórica, é certo, mas também uma dimensão quantitativa, expressa no trabalho gigantesco de busca, catalogação e conservação de documentos.  Assim, de 1678 a 1750, forma-se um gigantesco substratum de documentos, de técnicas, uma acumulação de peças reunidas minuciosamente e estabelecidas cientificamente que dão ao passado uma dimensão sem precedentes. Arrisquemos uma ordem de grandeza, para os dois milênios da civilidade, para o conhecimento histórico da “civilização”, como se disse a partir de 1760-1770, dispunha-se no horizonte 1760-1770 de quinze a vinte vezes mais elementos do que se havia disposto ao nível dos anos 1660-1670. No início das Luzes, verificou-se um multiplicador da duração que é comparável, levando tudo em consideração, ao multiplicador do espaço no século XVI. (CHAUNU, 1976, p. 63)

94 UNIDADE 5

 Ao mesmo tempo, apesar de suas raízes remontarem à Antigüidade, uma dimensão filosófica começa a construir seu espaço próprio na produção historiográfica européia do século XVIII.

SEÇÃO 3

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

HISTÓRIA E FILOSOFIA O século XVIII marca a consolidação de uma dimensão filosófica da história. Desta dimensão são exemplares as falas do historiador Edward Gibbon de que “nem sempre sendo os filósofos historiadores, pelo menos os historiadores fossem filósofos”; e do filósofo D’Alembert, para quem “a ciência da história, quando não é esclarecida pela filosofia, é o último dos conhecimentos humanos” (CARBONELL, 1987, p. 104).  As relações entre filosofia e história se constituem, assim, no século XVIII, de forma tão estreita que, em alguns momentos é quase impossível delimitar seus campos específicos. Filósofos se tornaram historiadores, como David Hume, e historiadores se tornaram filósofos, como Montesquieu. Porém, o caso mais exemplar do espírito dessa época é o de Voltaire, que foi, de forma alternada, historiador e filósofo. É dele a criação do termo “filosofia da História”, em 1765.

E como a História se relacionava com a Filosoa no século XVIII? Carbonell vê nas relações entre a história e a filosofia no século XVIII algumas dimensões específicas: - A história filosófica é a praticada, por exemplo, por Montesquieu e Gibbon. Confrontados com uma questão importante, procuram explicá-la e hierarquizar-lhe as causas, destacando das causas particulares a causa geral. Para Montesquieu, (em relação ao Império Romano) «o aspecto principal que arrasta todos os acidentes» é a própria imensidade do Império que o torna ingovernável; para Gibbon, é o cristianismo, que o desgasta e o desnatura - «Descrevi p triunfo da barbárie e da religião», proclama, provocante, este agnóstico. - A filosofia sobre a história é uma reflexão sobre o objeto da historiografia (como as Novas considerações de Voltaire e a Idéia duma história universal dum ponto de vista cosmopolita, de Kant), sobre a sua utilidade a maneira de a

95 UNIDADE 5

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

escrever. O século XVIII abunda nestes tratados, desde a aurora - Langlet-Dufresnoy, Método para estudar a história (1713) - até o crepúsculo  Voney, Lições de história (1795). - A história da filosofia torna-se, desde a Historia critica philosophiae, de Jacob Brückner, publicada em 1742, um género ao mesmo tempo misto e autónomo. Traduz o triunfo do historicismo, esse olhar do espírito que situa sistematicamente o seu objeto no passado e não chega à sua inteligência senão através do estudo da sua evolução. - A filosofia da história interroga-se de maneira global sobre o percurso das civilizações humanas. Descreverão círculos, como civilizações sucessivas que nascem, se desenvolvem e morrem depois de terem percorrido as mesmas fases (Vico, A ciência nova, 1725)? Seguirão uma via retilínea e ascende como afirma Condorcet no seu Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano (1794)? Devemos pensar, com Hume, que a História é o lugar onde a imutável natureza dos homens se cruzam com a poeira dos acontecimentos contingentes, de tal forma que, para aquele que a interroga, não passa duma recolha de analogias? Com Christian Wolff, o vulgarizador de Leibniz, que há correspondência entre teologia e História mas nenhuma interferência? Com Rousseau, que a História é um discurso sobre a decadência de um homem desnaturado Passa-se assim, insensivelmente, duma história evocada - de um passado conhecido ao qual o filósofo se refere muitas vezes e com precisão - a uma História invocada - a de um passado indefinido, espécie de deserto encerrado em si mesmo, onde a acrobacia conceptual substitui as razões pela Razão. (CARBONELL, 1987, p. 106-107)

Transcende ao escopo deste estudo a análise dos filósofos da história, mas não se pode deixar de ressaltar a influência das relações entre filosofia e história na historiografia do final do século XVIII e na primeira metade do século XIX. Não apenas porque estas relações influenciaram, por aceitação ou por rejeição, as principais correntes historiográficas do século XIX, que são a base da historiografia contemporânea: o materialismo histórico de Marx e, em outra perspectiva, a Escola Metódica francesa.

Essas relações entre História e Filosoa não traziam riscos para a História?  A questão que se coloca, porém, nas relações entre a História e a Filosofia é o risco de anulação da primeira sob a última. A história

96 UNIDADE 5

explicativa do mundo, determinista e racionalista da maioria dos filósofos tende a sufocar a História conhecimento e narrativa do passado. Bons exemplos dessa postura são as falas de Rousseau: “Afastemos todos os fatos”, e de Krause: “Sei muito bem como devia ser o mundo; portanto não vale a pena conhecê-lo tal como ele é na realidade” ( apud CARBONELL, 1987, p. 111). Porém, ao lado da construção filosófica do conhecimento histórico, vão se alicerçando as dimensões erudita e científica da História.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

Se a segunda metade do século XVIII propõe sínteses, será necessário esperar a primeira metade do século XIX para voltar a encontrar na busca, pura, do passado, um período de fecundidade comparável à dos anos benditos da erudição que foram o último quarto do século XVII. (CHAUNU, 1976, p. 63-64)

Fruto da consolidação burguesa na Europa e das conseqüências da Revolução Industrial, a escrita da História no início do século XIX, sob forte influência do Romantismo, começa a definir seus campos e sua base para a transição para uma visão científica. É preciso uma firme certeza intuitiva da superioridade de seu tempo para que apareça o gosto do passado por si próprio. A deleitação do passado pelo passado, assim, apareceu no início do século XIX, na Alemanha e na Inglaterra, um pouco antes da França; essa deleitação está ligada ao Romantismo, um Romantismo que durou muito mais que o Romantismo. Já se terá notado que o gosto do passado pelo passado apareceu com a revolução industrial? Ele é uma compensação bastante anódina para um ritmo de mudança e de crescimento que deixou de ser tão uniformemente benéfico quanto o fora no século XVIII, para um ritmo que abalou o limiar em que a mudança é vista como uma melhoria, antes de ser sentida como uma perturbação. O historicismo e a deleitação no passado são um luxo de rico e talvez sejam, também, condições do progresso. (CHAUNU, 1976, p. 64)

Desta forma o século XIX se inicia sob os signos da mudança e do romantismo, da erudição e do historicismo para a historiografia na Europa.

97 UNIDADE 5

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

1. 2. 3. 4.

Qual era a postura de Descartes em relação à História? Por quê? Comente as principais restrições existentes nal do século XVII e no século XVIII ao desenvolvimento de uma atitude crítica em História. Quais são os princípios básicos da crítica enunciados por Richard Simon?

 Analise as quatro formas de relação entre a História e a Filosoa enunciadas por Carbonell no texto estudado e as correlacione com a sua prática docente. 5. Qual é o principal risco para a História em suas relações com a Filosoa?

Nesta unidade você trabalhou com a grande encruzilhada do conhecimento histórico na modernidade, e com os rumos tomados pela historiograa européia para superar esse impasse. Na primeira seção do texto, você viu a crise do conhecimento histórico no século XVII, sob o impacto do racionalismo cartesiano. Pôde acompanhar as duras críticas de Descartes, no campo

epistemológico e de Malenbranche no campo teológico em relação ao conhecimento histórico de sua época.

Na segunda seção você viu a tentativa dos historiadores de sair dessa crise pela “cientização” do conhecimento histórico, no século XVIII. Foi o momento da denição dos princípios da crítica documental e de um ainda incipiente “método” histórico, com Richard Simon e, principalmente Dom Mabillon.

 A terceira seção o levou a analisar as relações de proximidade e anidade, com suas vantagens e riscos, da História com a Filosoa. Você viu as quatro formas de relação entre os dois conh ecimentos, e também estudou os riscos de anulação que essa proximidade entre a Filosoa e a História traz para o conhecimento histórico.

 Aqui você encerrou seu curso de Teoria da História I. No próximo semestre, você irá continuar essa  jornada na disciplina Teoria da História II, que abordará a historiograa do século XIX, nas vertentes metódica e do materialismo histórico.  Até lá e bom estudo!!!

98 UNIDADE 5

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

99 UNIDADE 5

PALAVRAS FINAIS Parabéns!!! Você concluiu o estudo da disciplina Teoria da História I. Foi uma longa caminhada, nos tempos e nos espaços das concepções e formas da escrita da História em diferentes culturas, desde a Antigüidade mais remota até o século XVIII de nossa era.  Você percorreu um longo trajeto, que lhe permitiu conhecer desde as concepções históricas dos povos sem escrita até a crise da escrita histórica sob o racionalismo e o início da construção “científica” da História.  Viu concepções históricas que passaram por espaços de legitimação religiosa com os hebreus e de uso do passado para prever o futuro com os chineses. Do uso da História para legitimar a superioridade cultural entre os gregos e para narrar conteúdos moralizantes de virtudes cívicas entre os romanos. Conheceu a historiografia cristã, com o providencialismo predestinacionista e determinista de Agostinho de Hipona e sua concepção das duas cidades. Estudou o apogeu da historiografia providencialista na Idade Média, mas viu também que, na mesma época medieval, foram lançadas as bases para uma historiografia laica a serviço do Estado. Quando estudou o Renascimento, você pôde tomar contato com a gradativa hegemonia dessa historiografia laica, e dos inícios da crítica e da história documental. Viu ali, também, o surgimento de uma historiografia protestante em confronto com a escrita católica de História.  Já no final de sua caminhada, você foi apresentado à grande crise do conhecimento histórico na tradição ocidental: a crise provocada pelo racionalismo cartesiano e pelo iluminismo no século XVII, onde a História era não apenas desconsiderada, mas acerbamente criticada. Mas também acompanhou as reações do éculo XVIII para resgatar o valor social do conhecimento histórico. Pôde conhecer a sistematização dos procedimentos críticos, cientificizantes, por Richard Simon e, principalmente, por Dom Mabillon, que pretendiam dar à História o estatuto de saber científico. Acompanhou as relações, nem sempre pacíficas, entre a História e a Filosofia no século XVIII, com suas quatro formas de expressão, enunciadas por Carbonell. Viu os riscos de anulação do conhecimento histórico pelas generalizações filosóficas.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

101 PALAVRAS FINAIS

Mas, no total de sua caminhada nesta disciplina, você deve ter percebido que a escrita da História é um produto social, determinado não apenas pelo passado, mas pelo uso do passado como legitimador de posturas culturais, sociais, políticas e religiosas. Deve ter sentido o alerta implícito ao longo do curso da necessidade de não se deixar instrumentalizar pelos usos ideológicos do conhecimento histórico em sua prática docente. Mas o que se espera, mesmo, é que você possa ter alargado seus horizontes e construído um olhar crítico sobre a escrita da História como produção instrumental e dotada de intencionalidade, mas que isso não totalmente ruim. Humaniza a História, a coloca como saber humano, feita por seres humanos para outros seres humanos, nessa luta constante que é o construir cotidiano de identidades pessoais, culturais, políticas, religiosas ou nacionais. Humano, irredutivelmente humano. No próximo semestre você terá um novo encontro com a Teoria da História, no curso de Teoria da História II. Até lá, e continue perseverando nesse caminho, às vezes árduo, às vezes cansativo, às vezes desanimador, mas que ao seu final certamente lhe trará a recompensa de um aperfeiçoamento profissional e, o que é muito mais importante, um crescimento pessoal qualitativamente superior em sua maneira de ver ensinar a História. Deus o(a) abençoe!!!

REFERÊNCIAS  APPLEBY, Janet, HUNT, Lynn e JACOB, Margaret. La verdad sobre la historia. Barcelona: Editorial Andres Bello Española, 1994.

   1   a    i   r    ó    t   s    i    H   a    d   a    i   r   o   e    T

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1980. BLOCH, Marc.Introdução à História. 4 ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. BOURDÉ, G. & MARTIN, H. As Escolas Históricas.  Lisboa: Europa-América, 1990.

BOURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das ciências históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993. BOUTIER, Jean & JULIA, Dominique. Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Ed. da FGV; Ed. da UFRJ, 1998. BURKE, Peter. (org.). A escrita da história: novas perspectivas.  2 ed. São Paulo: Ed. da Unesp, 1982. CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987. CARDOSO, Ciro F. Uma introdução à história.   2 ed. São Paulo: Beasiliense, 1982. Col. Primeiros vôos, 2. CARDOSO, Ciro F. & BRIGNOLI, Héctor P. Os métodos da história. 3 ed. Rio de  Janeiro: Graal, 1983. CARR, Edward Hallet. Que é história? 3 ed. 7ª reipressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. CHARTIER, Roger. À beira da falésia; a História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002. CHAUNU, Pierre. A História como ciência social:  a duração, o espaço e o homem na época moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. COLLINGWOOD, R. G. A idéia de história. Lisboa: Presença, 1981 DONINI, Ambrogio. História do Cristianismo : das origens a Justiniano. Lisboa: Edições 70, 1980. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s.d.]. FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social.  Bauru: EDUSC, 1998.

103 REFERÊNCIAS

   l    i   s   a   r    B   o    d   a    t   r   e    b    A   e    d   a    d    i   s   r   e   v    i   n    U

GARDINER, Patrick. Teorias da história.  3 ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. HARTOG, François (org.). A História de Homero a Santo Agostinho.   Belo Horizonte: UFMG, 2001. HERÓDOTO. História. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., s/d. 2. Vol. Clássicos  Jackson, vols. XXIII e XXIV. HOBSBAWN, Eric J. Sobre história. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. HUNT, Lynn (org.). A nova história cultural . São Paulo: Martins Fontes, 1992. EFORT, Claude. As formas da história. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de idade média: tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa: Estampa, 1980. LE GOFF, Jacques. (coord.)Enciclopédia Einaudi, vol.1. – Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. LE GOFF, Jacques. (dir.). A história nova.  São Paulo: Martins Fontes, 1990. LE GOFF, Jacques. & NORA, P. (comp.). História: novas abordagens.  Rio de  Janeiro: Francisco Alves, 1976. LE GOFF, Jacques. & NORA, P. (comp.). História: novos problemas.  Rio de  Janeiro: Francisco Alves, 1976. LE GOFF, Jacques. & NORA, P. (comp.). História: novos objetos. 2 ed. Rio de  Janeiro: Francisco Alves, 1979. NOVAK, Maria da Glória; NERI, Maria Luiza; PETERLINI, Ariovaldo Augusto (orgs.). Historiadores Latinos.  Antologia bilíngüe. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SILVA, Rogério Forastieri da. História da Historiografia.  Bauru: Edusc, 2001. TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru: Edusc, 2000. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Brasília: Ed. da UNB, s/d.  VEYNE, Paul. Historie,  in Encyclopaedia Universalis, vol. VIII. Paris: Encyclopaedia Universalis France, 1968.  VEYNE, Paul.. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70, 1983.  VEYNE, Paul. O inventário das diferenças. Lisboa: GRADIVA, 1989.  WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1967. 2 vols.

104 REFERÊNCIAS

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF