TEMAS DE REDAÇÃO EFOMM
April 12, 2017 | Author: MateusHenriquef | Category: N/A
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TEMAS DE REDAÇÃO EFOMM
SUMÁRIO Pág.3 ---------- 2010-2011 Pág.5 ---------- 2009-2010 Pág.7 ---------- 2008-2009 Pág.9 ---------- 2007-2008 Pág.11--------- 2006-2007 Pág.13 ---------2005-2006
Pág.15 ---------- 2004-2005 Pág.17 ---------- 2003-2004 Pág.19 ---------- 2002-2003 Pág.21 ---------- 2001-2002 Pág.23 --------- 2000-2001
COMO TREINAR Este documento traz os textos das provas de português da EFOMM, do ano 2000 até o ano 2011. As provas de redação da EFOMM são conhecidas por seus temas abstratos, geralmente baseados nos textos das provas de português. Então minha sugestão é a seguinte: que você interprete cada texto das provas e delas crie um tema, depois faça uma redação baseada nesse tema. Afirmo que essa é apenas uma sugestão, cada um tem seu modo de treinar redação. Espero tê-los ajudado, Henrique Audi Morokawa
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2010-2011 A Última Crônica - Fernando Sabino "A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, largao no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, 3
cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
Crônica publicada no livro "A Companheira de viagem" (Editora Record, 1965)
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2009-2010 Bruno Lichtenstein Foi preso o menino Bruno Lichtenstein, que arrombou a Faculdade de Medicina. O menino Bruno Lichtenstein não é arrombador profissional. Apenas acontece que o menino Bruno Lichtenstein tem um amigo, e esse amigo é um cachorro, e esse cachorro ia ser trucidado cientificamente, para estudos, na Faculdade de Medicina. O poeta mineiro Djalma Andrade tem um soneto que acaba mais ou menos assim: "se entre os amigos encontrei cachorros, entre os cachorros encontrei-te, amigo". Mas com toda a certeza o menino Bruno Lichtenstein jamais leu esses versos. Também com certeza nunca lhe explicaram o que é vivissecção, nem lhe disseram que seu cão ia ser vivisseccionado. Tudo o que ele sabia é que lhe haviam carregado o cachorro e que iam matá-lo. Se fosse pedi-lo, naturalmente, não o dariam. Quem, neste mundo, haveria de se preocupar com o pobre menino Bruno Lichtenstein e o seu pobre cão? Mas o cachorro era seu amigo — e estava lá, metido em um porão, esperando a hora de morrer. E só uma pessoa no mundo podia salvá-lo: um menino pobre chamado Bruno Lichtenstein. Com esse sobrenome de principado, Bruno Lichtenstein é um garoto sem dinheiro. Não pagará a licença de seu amigo. Mas Bruno Lichtenstein havia de salvar a vida de seu amigo — de qualquer jeito. E jeito só havia um: ir lá e tirar o cachorro. De longe, Bruno Lichtenstein chorava, pensando ouvir o ganido triste de um condenado à morte. Via homens cruéis metendo o bisturi na carne quente de seu amigo: via sangue derramado. Horrível, horrível. Bruno Lichtenstein sentiu que seria o último dos infames se não agisse imediatamente. Agiu. Escalou uma janela, arrebentou um vidro, saltou. Estava dentro do edifício. Andando pelas salas desertas, foi até onde estava o seu amigo. Sentiu que o seu coração batia mais depressa. Deu um assovio, um velho assovio de amizade. Um vulto se destacou em um salto - e um focinho quente e úmido lambeu a mão de Bruno Lichtenstein. Agora era fugir para a rua, para a liberdade, para a vida... Bruno Lichtenstein, da cabeça aos pés, tremia de susto e de alegria. Foi aí que ele ouviu uma voz áspera e espantada de homem. Era o dr. Loforte. O dr. Loforte surpreendeu o menino. Um menino pobre, que tremia, que havia arrombado a Faculdade. Só podia ser um ladrão! Bruno Lichtenstein não explicou nada — e fez bem. Para o dr. Loforte um cachorro não é um cachorro — é um material de estudo como outro qualquer. Na polícia apareceu o pai do menino. O pai, o professor e o delegado conversaram longamente — e Bruno Lichtenstein não ouvia nada. Só ouvia, lá longe, o ganir de um condenado à morte. Já te entregaram o cachorro, Bruno Lichtenstein. Tu o mereceste, porque tu foste amigo. Não te deram nem te darão medalha nenhuma — porque não há medalha
nenhuma para distinguir a amizade. Mas te entregaram o teu cachorro, o cachorro que reivindicaste como um pequeno herói. Tu és um homem, Bruno Lichtenstein — um homem no sentido decente da palavra, muito mais homem que muito homem. Um aperto de mão, Bruno Lichtenstein.
O texto acima foi extraído do livro "1939 - Um episódio em Porto Alegre (Uma fada no front)", Ed. Record - Rio de Janeiro, 2002 - pág. 37.
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2008-2009 Encontro na praça José Luís da Cunha Fernandes, morador no Saco de São Francisco, uma tarde dessas, teve um encontro singular. Ia voltar de barca para Niterói e portava sua máquina fotográfica. Sua intenção era pegar o pôr-do-sol no Rio de dentro da barca. Mas ali na Praça 15 de Novembro, em frente à estação de embarque, deu-se o encontro de José Luís com uma rara personalidade. Ninguém reparava nela, no insólito de sua presença, no inesperado de sua postura, em tudo que era de chamar atenção. Mas José Luís, que sabe ver, e não apenas olhar, maravilhou-se. Maravilhou-se e voltou imediatamente à infância, pois o ser que ali se encontrava parado em meio à multidão, ele o conhecera em menino, e desde então nunca mais o vira. Nunca. E de tanto não o ver, por assim dizer se esquecera dele. As conversas, as leituras, as atividades de todo dia não costumam referir-se à existência dessa figura de repente desaparecida. Então, ela ficara encaixotada num desvão da memória, mas tão escondido estava o caixote que era como se não existisse. E assim se passaram anos. O que José Luís encontrou na Praça 15 foi uma esperança. E estava pousada no alto da caixa de correio. Estava pousada. Quantas crianças de hoje conhecem a esperança? Quantas ligam esse nome a um organismo vivo, que habita o folclore pela cor, que é promessa de felicidade? Menino do interior ainda pode ver, um dia ou outro, a esperança. Menino da cidade, terá muita sorte se a encontrar no Alto da Boa Vista ou no Parque da Cidade. Mas no cotidiano dos bairros superpovoados, nas ruas inteiramente plantadas de edifícios secos e agrestes, quem já viu esse bichinho? Quem sabe de sua esperteza em imitar folhas de arbusto, iludindo não só os outros insetos, que ele deseja papar, mas até a gente? Pois em contrário a todas as possibilidades, a esperança postara-se naquele trecho febril do Rio de Janeiro, não ligando para o tumulto, a pressa, o barulho, a poeira, o fumo de descarga dos veículos. Ele elegera o cocuruto da caixa da ECT para a habitação provisória. Ali estava, quieta, verde, ortóptera, saltadora mas imóvel, mimética mas em sua cor natural, estridulante mas silenciosa, guardando todas as potencialidades: simplesmente esperança, esperança para servi-los. E em que servia a esperança ao povo que ia quase correndo e não lhe dava a mínima confiança? Só José Luís era capaz de sabê-lo, por ser o único a tomar conhecimento do inseto em cima da caixa. Percebeu logo que a esperança cumpria delicada tarefa. Em primeiro lugar, oferecia ou tentava oferecer boas notícias nas cartas colocadas no interior da caixa. Palavras de carinho, promessas de emprego, reconciliações, doente que ficou bom, dívida que se conseguir pagar, beijos. Talvez as cartas dissessem o contrário disso, mas a esperança concentrava seu princípio influente nas próximas correspondências, as definitivas. Bem que a ECT podia designar a esperança para seu logotipo. Inseto ágil, pulando como ele só: imagem de velocidade, que se vem conseguindo implantar no tráfego postal. Em seguida, a esperança dirigia-se a todos, que voltavam a Niterói ou vinham de lá; e ainda aos avulsos, que ficam por aqui mesmo, e transitam na Praça. ―Ó vós todos que passais, aqui estou (dizia a esperança em seu falar tetigonídeo, que o vulgo infelizmente não capisca) para que repareis o meu verde e o guardeis na rotina pelo que ele vale. Vale o melhor. Vale a capacidade de transformar o real em transreal e usufruir
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as coisas deleitáveis que esse pode distribuir em forma de paz de espírito e coração sensível. Nem tudo é sujo na vida. Há claridades. Mas a claridade começa dentro de você, de vós mesmos... Depois é que ela se espalha pela cidade e pela vida dos outros. Eu, a esperança, à maneira dos reis antigos, vos envio saudar.‖ Ninguém ouviu, ninguém traduziu. Só José Luís, que documentou a presença da esperança, fotografando-a. Ia fotografar o crepúsculo, mas antes teve a sorte de fotografar nada menos que uma virtude teologal em minúscula forma vivente. Carlos Drummond de Andrade
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2007-2008 São Bernardo (Graciliano Ramos) Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever. Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel. Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração. Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão. Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras. – Casimiro! Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, vigiando. – Casimiro! A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz. O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho: – Madalena! A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca. –Madalena... A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião! A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos. Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente
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piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo. Agora seu Ribeiro está conversando com d. Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram e que esta casa está quase deserta. – Casimiro! Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com o chapéu de couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota. Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar. São Bernardo, Rio de Janeiro, Record, 1983.
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2006-2007 Seca Era hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro de mais um mês estaria virada de lama. Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos. O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava: − Cidadão, vim lhe vender este couro de bode. Aquele ―cidadão‖, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em terreno alheio sem dar bomdia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira ¾ e foi-se pondo de pé. − O quê? Que é que você quer? O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio pelo cal da parede: − Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto − não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a carne para comer. Agora, o couro − o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá farinha. − E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar? O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha: − Ninguém perguntou a ela o nome do dono... Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara: − Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor? Nesse meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. Aí o velho se vendo garantido, começou a gritar: − Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem é o sinal dessa criação. O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando graça para um dos companheiros: era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal... O Augusto veio olhar também e ficou danado: − Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava cheia de cabrito novo! Mas o olho do homem escuro era feio e, se ele se assustara vendo-se cercado pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão.
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Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom coração; e gritou para o corredor: − Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha! Depois, retornando ao homem: − Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças! Leve essa farinha, comam e tratem de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem ir! O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo do companheiro. O velho reclamava em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marchavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta ali no terreiro. Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para trás da casa. Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga. MORALIDADE: Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito. QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras. São Paulo: Ática, 1997, p. 14-17. (Para gostar de ler).
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2005-2006 Texto 1:
O Outro Na redação, o secretário fazia sua cozinha, quando a senhora, não primaveril, mas ainda não invernosa, dele se aproximou timidamente. E sacando da bolsa um recorte de jornal, perguntou-lhe se sabia o endereço de Emílio Moura, autor dos versos ali estampados. O secretário explicou-lhe que o assunto era de competência do Silva, encarregado do suplemento literário. O Silva não ia demorar, estava na hora dele. Não queria sentarse, esperar? Ela recolheu cuidadosamente o fragmento e dispôs-se a aguardar o Silva, que, como acontece nessas ocasiões, tardou um pouquinho. Mas que tardasse dois anos, não fazia diferença, a julgar pelo semblante da senhora, de paciente determinação. Diante do Silva, exibiu novamente o papelzinho e fez-lhe a pergunta. — Endereço do Emílio Moura? Pois não, minha senhora. Com licença, deixe ver aqui no caderninho: rua tal, número tantos, em Belo Horizonte ... O rosto da senhora se transfigurou: — Belo Horizonte? O senhor tem certeza de que ele está em Belo Horizonte? — Se está, no momento, não sei, minha senhora. Mas sempre morou lá, isso eu posso lhe garantir. Nova mutação se operou na fisionomia da visitante, onde o desaponto parecia querer instalar-se, mas era combatido pela dúvida: — O senhor ... o senhor conhece pessoalmente Emílio Moura? — Conheço, sim. Há muitos anos. — Muitos? Que idade tem ele, mais ou menos? — Fez cinqüenta há pouco tempo, a senhora não leu nos jornais a comemoração? — Tem certeza de que não está enganado? Perdoe a insistência, mas podia me fazer o retrato físico de Emílio Moura? — Perfeitamente. Trata-se de um senhor alto, magro, cabelos ainda pretos, pequena costeleta, bigodinho, usa piteira e fuma cigarro de palha. Que mais? Meio calado, extremamente simpático, muito querido por todos. Completo a ficha: professor da Universidade, casado, com filhos. A senhora olhava para o papel, dobrava-o, esboçava o gesto de jogá-lo fora, depois o desdobrava e alisava com carinho. E, na ponta de longo silêncio: — Senhor Silva, este pedacinho de jornal me trouxe uma grande esperança e agora uma profunda decepção. Muito obrigada. Desculpe. Ia retirar-se, sem que o Silva compreendesse níquel, mas voltou-se, e rapidamente desfolhou esta confidência: — Há quatro anos ando à procura de Emílio Moura. Éramos muito amigos, ele fazia versos lindos, que eu, na qualidade de sua melhor amiga, lia em primeira mão. Um dia, contou-me que ia viajar para Montevidéu, onde ficaria algum tempo. Escreveu-me de lá duas vezes, e da segunda anunciava que seguiria para o Canadá. Nunca mais recebi a menor notícia. Ninguém sabe informar nada. Quando li no jornal esta poesia com o nome dele, fiquei cheia de esperança, mas agora não sei o que pensar. O senhor me diz que Emílio Moura tem cinqüenta anos e é professor em Belo Horizonte. O que 13
eu conheço tem trinta e dois anos e nunca morou em Minas, que eu saiba, mas como os versos dele são parecidos com estes que o seu jornal publicou! A mesma doçura, uma sensação de fim de tarde, meio triste, o senhor não imagine ... Enganei-me. Desculpe mais uma vez, e passe bem, Sr. Silva. Saiu, levando nas mãos o papelzinho, como uma flor. Carlos Drummond de Andrade
Texto 2: Me responda, sargento Dez anos, sargento, apartada do João. Uma tarde, sem se despedir, montou no cavalinho pampa, em dez anos de espera nunca deu notícia. Com a morte do meu velho, que me deixou o sítio, quinze dias atrás lá estava eu, bem quieta, cuidando da casa e da criação, ajudada pelo meu afilhado José, esse anjo de oito aninhos. Quem vai entrando sem bater palma nem pedir licença? Chegou maltrapilho, chapéu na mão me rogou para fazer vida comigo. Mais de espanto que de saudade aceitei, bom ou mau, eu disse, é o meu João. Nos primeiros dias foi bonzinho, quem não gosta de uma cabeça de homem no travesseiro? Logo começou a beber, não me valia em nada no sítio. Eu saía bem cedo com o menino a lidar na roça, o bichão ficava dormindo. Bocejando de chinelo e desfrutando as regalias, não quer castigar o corpinho, não joga um punhado de milho para as galinhas. Só então, sargento, burra de mim, descobri o mistério: ele voltou por amor da herança. Na primeira semana vendeu o leitão mais gordo do chiqueiro, não me deu satisfação, o sargento viu algum dinheiro? Nem eu. Ontem chegou bêbado e de óculos escuro, espantou o menino para o terreiro e, fechados no quarto, bradou que eu tinha um amante, o meu afilhado bem que era filho e, antes de contar até três, eu dissesse o nome do pai. Por mais que, de joelho e mão posta, negasse que havia outro homem, por mim o testemunho dos vizinhos, ele me cobriu de palavrão, murro, pontapé. Pegou da espingarda, me bateu com a coronha na cabeça. Obrigou a rezar na hora da morte e pedir louvado. Que eu abrisse a boca, encostou o cano, fez que apertava o gatilho. Não satisfeito, sacou da garrucha, apagou o lampião a bala. Disparou dois tiros na minha direção, só não acertou porque me desviei. Uma bala se enterrou na porta, a outra furou a cortina, em três pedaços a cabeça do São Jorge. Cansado de reinar, deitou-se vestido e de sapato, que a escrava servisse a janta na cama. Provou uma garfada e atirou o prato, manchando de feijão toda a parede: ―Quero outra, esta não prestou‖. Deus me acudiu, ao voltar com a bandeja ele roncava espumando pelo dente de ouro. Agarrei meu filho, chorando e rezando corri a noite inteira, ficasse lá no sítio era dona morta. E agora, sargento, que vai ser da minha vida, que é que eu faço? Dalton Trevisan. O pássaro de cinco asas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.
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2004-2005 Texto 1: Memórias da Casa Velha Vou subindo a ladeira calçada de pedras velhas irregulares e escorregadias, ladeada de casas velhas, de paredes desbotadas. Tudo é silêncio e, não fosse aquela mulher, também velha e desbotada, que me espia triste do alto de uma janela, diria que ninguém mora mais aqui, que todos se foram, que muitos morreram e que outros se mudaram. Quando chego à última curva, a respiração se faz difícil pelo esforço da subida, mas sintome recompensado ao avistar o grande portão aberto em arco. Reconheço-o facilmente, embora suas grades estejam enferrujadas e não brancas, como antigamente. Até há pouco chovia. Agora um sol alegre ilumina a copa das árvores, vence a folhagem e espeta seus raios na relva. Mesmo assim, quando entro, sinto a terra úmida debaixo dos meus sapatos. Há quantos anos entrei por esta mesma alameda? Vinte, vinte e cinco? Talvez. Lembro-me que ficara impressionado com a majestade do jardim. Seria ele mais belo então? Mais tratado era, por certo. Agora, abandonado, tudo aquilo que perdeu em simetria, em colorido, ganhou em placidez, em santidade. Sim, penso que estou a entrar numa catedral vazia, enquanto caminho devagar, olhando em torno. Antes havia marrecos neste laguinho: agora, folhas mortas bóiam, sem pressa de chegar à outra margem. Aliás, não eram somente marrecos. Lembro-me de dois cisnes a me olharem espantados, sem compreenderem que aquele menino também os via pela primeira vez. ―Um dia um cisne morrerá, por certo‖ quando li o soneto de Salusse, numa antologia de parnasianos, lembrei-me imediatamente do casal de cisnes que vivia neste lago. Se o cisne vivo nunca mais nadou, não sei. Sei que os bichos se foram todos. Apenas os pássaros continuam a usufruir deste jardim. Oiço o chilrear de centenas deles sobre a minha cabeça e, sem me importar com isso, vou subindo na direção da casa. Foi o vento na minha nuca ou foi de pura saudade que me veio este tremor? Lá está a varanda grande, cingida de trepadeiras. Minha mãe me segurava pela mão e falava, mas o alvoroço das moças era mais alto que a sua voz. Uma delas (quem seria?) apaixonou-se por meus cabelos louros e, naquela tarde em que aqui estive, penteou-me tantas vezes! Quando minha mãe abaixou-se para me beijar e partir, quase chorei na frente das moças. Depois esqueci. Elas brincaram comigo, me deram lanche, me deixaram correr no gramado. Olho a casa e penso que a gente que mora lá embaixo, na ladeira, deve andar a inventar coisas, a dizer que ela é mal-assombrada. Triste, coitada. Triste é o que ela é. Sei que ninguém mais vem cá e esta roseira deve saber também, mas, sem qualquer vaidade, continua a expor as suas rosas. Quanto àquele canteiro, que as rolinhas estão ciscando, era de crisântemos, mas não se usa mais essa flor. O casarão está em ruínas. Nada mais dá idéia de abandono do que esta janela de vidros quebrados ou aquela fonte sem repuxo. Já não há os crisântemos de outrora, a fonte , as moças na varanda, seu riso. Tudo é silêncio, tudo é quietude. Somente os pássaros. Os pássaros e as lembranças.
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Pela tarde, à hora do crepúsculo (hoje todos os crepúsculos terminam aqui) minha mãe veio me buscar. Quase a vejo caminhando, a sorrir para mim. Tão moça e tão linda (conta-se que, no seu tempo, foi a mais bonita aluna do Colégio Sion), ela me acenava com um embrulho na mão; o presente que prometera, caso me comportasse bem. A alegria que senti ao revê-la! Lembro-me que corri em sua direção e tão afoito, que caí de peito na relva, como um mergulho. O pão com geléia que uma das moças me dera caiu também e lá ficou esquecido. Não chorei. Contive as lágrimas como contenho agora, enquanto vou descendo pelo mesmo caminho. Vou devagar, porém. Já não há nem a pressa, nem a alegria de então. (Sérgio Porto, in Antologia Escolar de Crônicas)
Texto 2: De volta à casa paterna Como a ave que volta ao ninho antigo, depois de um longo e tenebroso inverno, eu quis também rever o lar paterno, o meu primeiro e virginal abrigo. Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, o fantasma, talvez, do amor materno tomou-me as mãos, olhou-me grave, terno, e passo a passo caminhou comigo. Era esta a sala! Oh, se me lembro! E quanto! Em que, da luz noturna à claridade, minhas irmãs e minha mãe... o pranto jorrou-me em ondas. Resistir, quem há-de? Uma ilusão gemia em cada canto, chorava em cada canto uma saudade. (Luís Guimarães Júnior, in Antologia de Poetas Brasileiros)
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2003-2004 O canarinho Atacado de senso de responsabilidade, num momento de descrença de si mesmo, Rubem Braga liquidou entre amigos, há um ano, a sua passarinhada. Às crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro não agüentou a crise da puberdade, morrendo logo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade dos passarinhos: não morrera, afirmou-nos, com um fanatismo que impunha respeito ou piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme com a sua fé. A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, chamados ―chapinhas‖ ou da terra, e que mais cantam por boa vontade que vocação. Não importa, conseguiu depressa um lugar em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido neste apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é quase de todo virado para o Sul. Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um pássaro comum, um cachorro vira-lata , o gato popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça, há uma afetação que envenena um pouco o sentimento; com os bichos comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem. Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia; mas que havia de fazer! Como nas fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é verdade, perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a posição do edifício não deixa o sol bater aqui, principalmente nesta época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro de casa e sentir logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do canarinho, relegado agora à área, onde pelo menos ficava ao abrigo da viração marinha? Às vezes, quando sinto frio, vou à esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol, ao mesmo tempo que compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos, mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas. E o canarinho, pois? Levá-lo comigo dentro da gaiola, isso não, eu não tinha coragem. Não devo ter reputação de muito sensato, e lá se iria (como diz Mário Quintana) o resto do prestígio que no meu bairro eu ainda possa ter. Assim, vendo o passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo comum, nosso e dos passarinhos, dono de um sítio. A comunicação foi feita às crianças depois do café. Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o canarinho. A empregada viu e veio contar-nos. Mas, cadê o menino! Voara? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois não o achávamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, atrás da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá estava ele, quieto e encolhido no escuro como no útero materno, com uma cara de expressão tão dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas. O canário também tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua impossibilidade de ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca mais.
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Mas voltou. Na hora do almoço, a empregada veio dizer-nos que ele estava na janela do edifício que se constrói ao lado, muito triste. É verdade. Lá está o canarinho, sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, arrepiado e com fome. Um ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso canário-da-terra, a doer em nossos olhos. Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de corvo, dizendo ―never more‖. Este refrão ―never more‖ me deixa meio esquisito. Estou triste. Todo mundo aqui de casa está triste, ridiculamente triste, nesta manhã luminosa de junho. Paulo Mendes Campos
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2002-2003 Texto 1: Árvores, mais árvores Conta-se que o velho Beethoven, já surdo e misantropo, numa das múltiplas ocasiões em que mudou de domicílio em Viena, perguntou ao novo senhorio logo ao transpor a porta de entrada: — ―O senhor tem árvores no seu quintal?‖ E como o homenzinho respondesse com a negativa, resolveu logo: — ―Então não me serve, gosto mais de uma árvore do que de um homem‖. Mas não é preciso ser surdo, nem misantropo, nem gênio, para pensar assim. Talvez que para tanto baste ser civilizado. É o eterno ciclo que se repete. O homem transformou de tal modo a crosta do planeta com os cinco dedos da sua técnica que já se aborrece da sua obra fria e acabada. E volta-se então para a velha Natureza em busca de vida, de emoção, de saúde. A gente começa com vasinhos de flores. Os holandeses, encurralados nos seus istmos, havia muito que não os dispensavam. Os americanos, encarrapitados nas gaiolas dos arranha-céus, tratam-nas até com harmônios e ultravioletas. Nós já vamos ficando um pouco assim. Entre nós há até quem goste de ―cactus‖, esses ―cactus‖ que nos fazem tremer de calor à distância. Mas é tão pouco ainda! Como se haveria de trepar numa árvore, esse mais salutar dos esportes, na opinião do entendido professor Carrel? É verdade que os ricos inventaram o ―sítio‖, pedacinho bem educado da fazenda, com geladeira e rádio, aonde se vai de automóvel, levando sempre muita comida, porque com a terra não se pode contar. E os que podem lá vão, todos os sábados, no gozo requintado de uma natureza quase sintética. Os menos ricos, que não têm ―sítio‖ próprio, já resolveram o problema a seu modo: fogem de quando em quando para um retiro qualquer improvisado em hotel. De qualquer forma é um retorno salutar à árvore. Só os pobres das grandes cidades ainda não a compreendem, ainda não a estimam: passam 2 de 11 todos os dias por ela nas ruas, nos parques, no subúrbio distante, e não lhe sabem sequer o nome, porque ignoram o consolo que há no seu aconchego e na sua sombra. Como é triste uma criança que cresceu longe das árvores! Desconhece o encanto de folhear um livro de figuras sob a proteção matizada e fresca de uma fronde, não suspeita das vantagens que há em procurar um fruto reçumante escondido no meio da ramaria, perde a melhor oportunidade de tonificar o olfato no convívio dos odores resinosos. É preciso que a criança viva junto à árvore, no campo, no jardim e sobretudo na cidade, cada vez mais monstruosa e implacável. A árvore irá desenvolver nela uma sucessão de emoções, cada qual mais nobre; no princípio é o respeito quase religioso ligado também à idéia de proteção; aos poucos se cria a noção de confiança e amizade; e donde vem os frutos, é onde se pendura o balanço; finalmente o amor verdadeiro, produto de tudo isso e muito mais ainda do germe do gozo estético que existe nos mais brutos. O apartamento não mata a árvore, valoriza-a. O indispensável é que a infância urbana não se escravize ao cimento armado. O arranha-céu, ganhando a altura, abre lugar aos parques. E para lá é que é necessário mandar as crianças, como obrigação quotidiana, para que sintam as árvores como coisa sua. Não esquecer então que as árvores devem ter nome. A nossa indiferença neste ponto é tão grande, que muitas delas, aclimatadas de longa data entre nós, são mais conhecidas por denominações científicas ou estrangeiras: ―eucalyptus, bougainvilleas, flamboyants‖.
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Já se disse que o poeta é um homem para o qual o mundo exterior existe. Nesse mundo exterior o que há de mais belo é a árvore. Nós temos cada vez mais urgência de poesia neste mundo mecânico e desarticulado. Deixai que a árvore reconduza a criança às fontes da poesia perene e insubstituível! REBELO, Marques , Árvores, mais árvores. In: Antologia Escolar de Crônicas, organizada por Herberto Sales. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint. S.A.
Texto 2: Súplica por uma árvore Um dia, um professor comovido falava-me de árvores. Seu avô conhecera Andersen, um pequeno deus que encantou para sempre sua infância, todas as infâncias, com suas maravilhosas histórias. Mas, além de conhecer Andersen, o avô desse comovido professor legara a seus descendentes uma recordação extremamente terna: ao sentir que se aproximava o fim de sua vida, pediu que o transportassem aos lugares amados, onde brincava em menino, para abraçar e beijar as árvores daquele mundo antigo – mundo de sonho, pureza, poesia – povoado de crianças, ramos flores, pássaros ... O professor comovido transportava-se a esse tempo de ternura, pensava nesse avô tão sensível, e continuava a participar, com ele, dessa cordialidade geral, desse agradecido amor à Natureza que, em silêncio, nos rodeia com a sua proteção, mesmo obscura e enigmática. Lembrei-me de tudo isso ao contemplar uma árvore que não conheço, e cujo tronco há quinze dias se encontra ferido, lascado pelo choque de um táxi desgovernado. Segundo os técnicos, se não for socorrida, essa árvore deverá morrer dentro em breve: pois a pancada que a atingiu afetou-a na profundidade da sua vida. MEIRELES, Cecília, ―Súplica por uma árvore‖. In: O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 63).
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2001-2002 Uma galinha Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornouse mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre. Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por um asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a
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menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos: — Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem! Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão: — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida! — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros. Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: ―E dizer que a obriguei a correr naquele estado!‖ A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado à fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos. Fonte: Os Cem Melhores Contos do Século.
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2000-2001 Quem é carioca Claro que não é preciso nascer no Rio para ser genuinamente carioca, ainda que haja nisto um absurdo etimológico. É notório que há cariocas vindos de toda parte, do Brasil e até de fora do Brasil. Ainda há pouco tempo chamei Armando Nogueira de carioca do Acre, nascido na remota e florestal cidade de Chapuri. Armando conserva, de resto, a marca acriana num resíduo de sotaque nortista, cuja aspereza nada tem a ver com a fala carioca, que não cospe as palavras, mas antes as agasalha carinhosamente na boca. Mas não é a maneira de falar, ou apenas ela, que caracteriza o carioca. Há sujeitos nascidos, criados e vividos no Rio — poucos, é verdade — que falam cariocamente e não têm, no entanto, nem uma pequena parcela de alma carioca. Agora mesmo estou me lembrando de um sujeito ranheta, que em tudo que faz ou diz põe aquela eructação subjacente que advém de sua azia espiritual. Este, ainda que o prove com certidão de nascimento, não é carioca nem aqui nem na China. E assim, sem querer, já me comprometi com uma certa definição do carioca, que começa por ser não propriamente, ou não apenas um ser bem-humorado, mas essencialmente um ser de paz com a vida. Por isso mesmo, o carioca, pouco importa sua condição social, é um coração sem ressentimento. Nisto, como noutras dominantes da biotipologia do carioca, há de influir fundamentalmente a paisagem, ou melhor, a natureza desta mui leal cidade do Rio de Janeiro. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, é impossível a gente não sofrer um certo afeiçoamento imposto pela natureza. A paisagem, de qualquer lado que o olhar se vire, se oferece com a exuberância e a falta de modos de um camelô. O carioca sabe que não é preciso subir ao Corcovado ou ao Pão de Açúcar para ser atropelado por um belo panorama (belo panorama, aliás, é um troço horrível). Por isso mesmo, nunca um só carioca foi assaltado no Mirante Dona Marta, que está armadinho lá em cima à espera dos otários, isto é, dos turistas. Pois o que o carioca não é, o que ele menos é — é turista. O que caracteriza o carioca é exatamente uma intimidade com a paisagem, que o dispensa de encarar, por exemplo, a Praia de Copacabana com um olhar que não seja o rigorosamente familiar. O carioca não visita coisa nenhuma, muito menos a sua cidade, entendida aqui como entidade global e abstratamente concreta. Ele convive com o Rio de igual para igual e nesta relação só uma lei existe, que é a da cordialidade. O carioca está na sua cidade como o peixe no mar. Por tudo isso, qualquer sujeito que não esteja perfeita e estritamente casado com a paisagem ou, mais do que isto, com a cidade, não é carioca — é um intruso, um corpo estranho. E é isto o que transparece à primeira vista, não adianta disfarçar. O carioca autêntico, o genuíno mesmo, esse que chegou ao extremo de nascer no Rio, esse não engana ninguém e nunca dá um único fora — sua conduta é cem por cento carioca sem o menor esforço. O carioca é um ser espontâneo, cuja virtude máxima é a naturalidade. Não tem dobras na alma, nem bolor, nem reservas. Também pudera, sua formação, desde o primeiro vagido, foi feita sob o signo desta cidade superlativa, onde o mar e a mata — verde e azul — são um permanente convite para que todo mundo saia de si mesmo, evite a própria má companhia — comunique-se. Sobre esse verde e esse azul, imagine-se ainda o esplendor de um sol que entra pela noite adentro — um sol que se apaga, mas não se ausenta. Diante disto e de mais tudo aquilo que faz a singularidade da beleza do Rio, como não ser carioca?
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Apesar de tudo, há gente que consegue viver no Rio anos a fio sem assimilar a cidade e sem ser por ela assimilada. Gente que nunca será carioca, como são, por exemplo, Dom Pedro II e Vinícius de Morais, autênticos cariocas de todos os tempos, segundo Afonso Arinos. A verdade é que nem todo mundo consegue a taxa máxima de ―cariocidade‖, que tem, por exemplo, um Aloysio Salles. No extremo oposto, está aquele homem público eminente que vi passeando outro dia em Copacabana. Ia de braço com a mulher e, da cabeça aos sapatos, como dizia Eça de Queiroz, proclamava a sua falta de identificação com o que se pode chamar ―carioca way of living‖. Sapatos, aliás, que não eram esporte, ao contrário da camisa desfraldada. Esse é um que não precisa abrir a boca, já se viu que está no Rio como uma barata está numa sopa de batata, no mínimo por simples erro de revisão. Fonte: Antologia Escolar de Crônicas,.organizada por Herberto Sales.
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