Te Vendo Um Cachorro - Juan Pablo Villalobos

July 2, 2019 | Author: Deividy Corrêa | Category: Cães, Romances, Museu, Cerveja, Roupas
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terceiro livro sobre o méxico...

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Table of Contents Teoria estética  Notas de literatura *

 Para Andreia

Seu vestido rosa me transtorna. Não me deixa morrer. Juan O’Gorman

Talvez eu entenda na outra vida, nesta apenas imagino. Daniel Sada Que de estômagos poderiam latir se ressuscitassem os cães que lhes fizestes comer. Francisco de Quevedo

Sumário

Teoria estética  Notas de literatura

TEORIA ESTÉTICA

 Naquele tempo, todas as manhãs, ao sair do meu apartamento, o 3-C, eu topava no corredor com a vizinha do 3-D, que tinha enfiado na cabeça que eu estava escrevendo um romance. A vizinha se chamava Francesca, e eu, era só o que me faltava, não estava escrevendo romance nenhum. O nome dela devia ser pronunciado  Frantchesca, para que soasse mais malandro. Depois de nos cumprimentarmos com um movimento de sobrancelhas, ficávamos esperando na frente do elevador, que dividia o prédio em dois e subia e descia como o zíper de uma braguilha. Por causa de comparações como essa, Francesca vivia dizendo a todos os vizinhos que eu andava me insinuando para ela. E também por chamá-la de Francesca, que não era seu nome verdadeiro, mas o nome que eu tinha lhe dado no meu suposto romance. Às vezes o elevador levava horas para chegar, como se não soubesse que os usuários eram velhos e achasse que tínhamos todo o tempo do mundo à frente, e não atrás. Ou como se soubesse e estivesse pouco se lixando. Quando as portas afinal se abriam, nós dois entrávamos, começávamos a descer devagarinho, ao mesmo tempo que as cores começavam a subir ao rosto de Francesca, por puro efeito metafórico. O aparelho seguia tão lentamente que parecia acionado  por mãos maliciosas que demorassem de propósito, para aumentar os calores e adiar a consumação, a descida do zíper. As baratas, que infestavam o prédio, aproveitavam a viagem e iam visitar as colegas do hall. Eu usava esse tempo livre no elevador para esmagar umas tantas. Era mais fácil caçar as baratas ali do que em casa, nos corredores ou no hall, se bem que mais  perigoso. Eu tinha que pisar firme mas sem exagero, para não corrermos o risco do elevador desabar. Pedia a Francesca que ficasse quieta. Uma vez pisei no seu dedão, e ela me obrigou a lhe pagar o táxi até o podólogo.  No hall, Francesca era aguardada pelos seus capachos da tertúlia literária, coitados: ela os obrigava a ler um romance atrás do outro. Passavam horas no hall, de segunda a domingo. Tinham comprado no camelô umas miniluminárias a pilha com um prendedor e uma lente de aumento, que eles punham na capa do livro. Feitas na China. Cuidavam daquela bugiganga com um carinho tão indecente que parecia a invenção mais importante depois da pólvora e do maoismo. Eu me esgueirava por entre as cadeiras, dispostas em círculo, como numa terapia de reabilitação ou numa seita satânica, e quando chegava ao portão e pressentia a iminência da rua, com seus buracos e seu cheiro de fritura, gritava como despedida:

 — Quando acabarem de ler o livro, me deem! Tenho uma mesa capenga! E Francesca respondia, invariavelmente:

 —  Frantchesca é nome de puta italiana! Velho safado!

Eram dez tertulianos, mais a líder. De vez em quando um deles morria ou era declarado incapaz de continuar vivendo sem assistência e despachado para um asilo, mas Francesca sempre dava um jeito de engambelar o novo inquilino. O prédio tinha doze apartamentos, distribuídos em três andares, quatro por andar. Todos os moradores eram viúvos e solteirões, ou melhor, viúvas e solteironas, porque a maioria eram mulheres. O prédio ficava no número 78 da rua Basilia Franco, uma rua como outra qualquer da Cidade do México, tão arrebentada e imunda como outra qualquer, quero dizer. Sua única anomalia era exatamente essa, o gueto da terceira idade: o prédio dos velhinhos, como era chamado pelos outros moradores do quarteirão, um  prédio tão velho e decrépito como seus habitantes. O número do edifício era o mesmo da minha idade, com a diferença de que a numeração da rua não aumentava a cada ano. A prova de que a tertúlia na verdade era uma seita estava no fato de seus membros aguentarem tanto tempo sentados naquelas cadeiras. Eram cadeiras dobráveis, de alumínio, com o logotipo da cerveja Modelo. Estou falando de fundamentalistas literários, gente capaz de convencer o gerente de marketing da cervejaria a lhes doar as cadeiras como parte do seu  programa de incentivo à cultura. Mais rebuscado impossível, mas a propaganda subliminar funcionava: eu saía do prédio e ia direto para o boteco beber a primeira cerveja do dia. A tertúlia não era a única desgraça na rotina do edifício. Hipólita, do 2-C, dava aulas de modelagem em miolo de pão às terças, quintas e aos sábados. Havia também um instrutor que vinha às segundas e sextas para eles fazerem ginástica aeróbica ali perto, no Jardim de Epicuro, um parque cheio de mato e arbustos, onde, mais do que oxigênio, o que se respirava era dióxido e monóxido de carbono, óxidos de nitrogênio e de enxofre. Francesca, que tinha sido professora de línguas, dava aulas particulares de inglês. E ainda tinha ioga, informática e macramê. Tudo organizado pelos próprios moradores, convencidos de que a aposentadoria era um segundo  jardim de infância. Eu era obrigado a aguentar tudo isso, além do estado lamentável em que o  prédio se encontrava, mas, em compensação, o preço do aluguel estava congelado desde o  princípio dos tempos. Também organizavam excursões a museus e locais de interesse histórico. Cada vez que  pregavam, no hall, o aviso de visita a uma exposição, eu perguntava:

 — Alguém aí sabe quanto cobram pela cerveja nesse antro?  Não era uma pergunta à toa, eu tinha chegado a pagar cinquenta pesos por uma cerveja no café de um museu. Um mês de aluguel! Não podia me permitir esse tipo de luxo, tinha que sobreviver com minhas economias, que, segundo meus cálculos, dariam, neste ritmo, para mais oito anos. O bastante, eu pensava, para que a parca viesse me pegar antes de eu ficar liso. Neste ritmo, aliás, é o que as pessoas normalmente chamam, com mais elegância, de vida estoica, e que eu chamo simplesmente de vida ruim. Eu tinha que ir contando meus tragos ao longo do dia para não sair do orçamento! E sempre os contava, metodicamente; o problema é que de noite eu  perdia a conta. Portanto os oito anos talvez estivessem mal calculados, e fossem sete ou seis. Ou cinco. E ver que a soma do que eu bebia todos os dias virava uma contagem regressiva me deixava bastante nervoso. E quanto mais nervoso eu ficava, mais difícil era não perder a conta. Em outras ocasiões, durante a descida do elevador, Francesca se dedicava a me dar conselhos  para a elaboração do romance, que, como já falei, eu não estava escrevendo. Descer três andares naquela velocidade bastava para percorrer dois séculos de teoria literária. Ela dizia que meus

 personagens careciam de profundidade, como se fossem buracos. E que meu estilo precisava de mais textura, como se estivesse comprando tecido para cortinas. Ela falava com uma clareza impressionante, articulando as sílabas com tanto rigor que as ideias que transmitia, por mais escalafobéticas que fossem, pareciam evidências. Como se ela fosse capaz de atingir a verdade absoluta através da dicção e, de quebra, aplicasse técnicas de hipnose. E funcionava! Era assim que ela havia se tornado ditadora da tertúlia, síndica do prédio, autoridade máxima em matéria de futricas e calúnias. Eu parava de prestar atenção nela e fechava os olhos para me concentrar na descida do meu zíper. Até que sentia o tranco do elevador ao chegar no hall, e Francesca fiava uma última frase, que eu pegava desfiada por ter perdido o fio da sua cantilena:

 —  Vai acabar como o povo de Yucatán, que quando não acha alguma coisa diz que

não

 procurou. E eu respondia:

 — Quem não procura não acha. Era uma frase de Schönberg que me lembrava o que minha mãe me dizia setenta anos atrás, quando eu perdia uma meia. Eu procurava e procurava, até que no fim descobria que a tal meia tinha sido comida pelo cachorro. Minha mãe morreu em 1985, no terremoto. O cachorro se adiantou em mais de quarenta anos e, por esganado, nem soube do desenlace da Segunda Guerra Mundial: engoliu umas meias de náilon longuíssimas, tão longas como as pernas da secretária do meu pai.

Eu tinha me mudado para o prédio numa tarde de verão, fazia um ano e meio, carregando uma mala de roupas, duas caixas de pertences, um quadro e um cavalete. Os móveis e alguns  poucos aparelhos tinham chegado de manhã, num carreto. Ao atravessar o hall, fui me esquivando dos vultos da tertúlia e repetindo:

 —  Não se incomodem, não se incomodem. Claro que ninguém se incomodava, todo mundo fingia que continuava sua leitura, mas o que estavam fazendo na verdade era me espiar com o rabo do olho. Quando afinal consegui chegar à  porta do elevador, escutei o rumor que nascia da boca de Francesca e se espalhava de boca a orelha como telefone sem fio:

 — É um artista!  — É uma pista!  — É um taxista!  — É um nazista! Subi no elevador com as coisas que couberam nele e, dez minutos mais tarde, quando voltei ao hall para pegar o restante, como um Sísifo lentíssimo, vi que os tertulianos tinham organizado um coquetel de boas-vindas, com champanhe de Zacatecas e biscoitos untados com patê de atum e maionese.

 —  Bem-vindo!  —  gritou Hipólita, ao mesmo tempo que me estendia um tubo de inseticida. —  É só uma lembrancinha, mas vai precisar dela.  —  O senhor nos desculpe  —  disse Francesca  — , não sabíamos que era artista! Se soubéssemos, teríamos posto o champanhe para gelar. Peguei o copo descartável que me ofereciam, com champanhe quente até a borda, e estiquei o  braço para brindar, quando Francesca exclamou:

 — À arte! Meu braço ficou estendido muito horizontal, dando a entender que, em vez de brindar, o que eu pretendia era devolver o copo, o que, no fundo, era mesmo o que eu queria. Então me pediram que eu falasse, que dissesse algumas palavras em nome da arte, e o que eu disse, olhando desconsoladamente para a furiosa erupção de bolhas no copo de plástico, foi:

 — Preferia uma cerveja. Francesca sacou uma nota amarrotada de vinte pesos do seu porta-níqueis e ordenou a um dos tertulianos:

 — Vá até a vendinha da esquina e traga uma cerveja para o artista. Meio atordoado pela confusão, cheguei a escutar o tropel de perguntas que avançavam contra mim para derrotar meu anonimato:

 — Qual a sua idade?  — É viúvo?  — Isso aí é o seu nariz?  — Onde o senhor morava?  — É solteirão?  — Por que não penteia o cabelo? Eu sorria, imóvel, com o copo de champanhe intacto na mão direita e o tubo de inseticida na esquerda, até que se fez um silêncio para que eu respondesse.

 — E então? — disse Francesca.  —  Parece que houve um mal-entendido —  declarei, infelizmente antes que o sujeito que ia comprar minha cerveja deixasse o prédio — , eu não sou artista.  —  Eu falei! É taxista!  —  gritou Hipólita, triunfante, e descobri que sua boca era coroada  por uma penugem escura.

 —  Na verdade, sou aposentado — continuei.  —  Um artista aposentado!  —  festejou Francesca.  —  Não se desculpe, todos

aqui

somos aposentados. Todos exceto os que nunca fizeram nada.  —  Eu também me aposentei da família —  apontou Hipólita.  —   Não, não, eu não fui artista  —   assegurei com uma veemência que até a mim pareceu suspeita. Um tertuliano, que vinha chegando para me oferecer um prato cheio de biscoitos, deu meiavolta e o depositou numa das cadeiras.  —  E então, compro ou não compro a cerveja? —  perguntou o outro, do portão.  —  Espere —  ordenou Francesca, e em seguida me perguntou: —  E o cavalete e o quadro?  —  São coisas do meu pai —  respondi — , ele gostava de pintar. Eu também gostava de pintar, mas isso foi há muito tempo.  —  Que ótimo, um artista frustrado! —   exclamou Francesca. —  E de família! E pode-se saber a que o senhor se dedicava?  —  Eu era taqueiro.  —   Taqueiro?!  —  Isso mesmo, tinha uma banquinha de tacos em La Candelaria de los Patos.

Os tertulianos começaram a devolver o champanhe à garrafa, mas, como todos tinham as mãos trêmulas, metade do líquido escorreu fora do gargalo. Francesca olhou para o tertuliano que continuava no portão do prédio à espera do desenlace e ordenou:

 — Devolva meus vinte pesos. Senti que o peso do copo de champanhe sumia da minha mão direita, que Hipólita me arrancava o tubo de inseticida da esquerda, vi o tertuliano devolver a nota amarrotada para Francesca e a tertúlia toda pôs fim ao coquetel, dividindo os biscoitos e encaixando a rolha de volta na garrafa, antes de retomar a leitura. Francesca ainda me varreu com os olhos dos pés à cabeça e da cabeça aos pés, gravando bem minha desmazelada figura, e sentenciou:

 — Impostor! Eu também a olhei com atenção, percorrendo sua silhueta, seu corpo de vassoura empertigado e esbelto, reparei que tinha soltado o cabelo e aberto um pouco o decote do vestido enquanto eu subia ao meu apartamento e descia, senti a insólita tensão entre as pernas e, já tendo entendido qual era seu número, gritei pela primeira vez o grito que, daquele dia em diante, seria a contrassenha da nossa rotina:

 — Me desculpe por ter sido taqueiro,  Madame!

Minha mãe exigiu que fizessem uma autópsia no cachorro, e meu pai tentava impedi-la, em vão:

 — Que diferença faz saber do que o cachorro morreu? —  perguntava.  —  Precisamos saber o que aconteceu  —  respondia minha mãe  — , tudo na vida

tem

uma explicação. O cachorro tinha passado a noite anterior tentando vomitar, sem sucesso. Minha mãe recontou as meias: todos os pares estavam completos. Daí nasceu sua suspeita, porque toda noite, depois do jantar, meu pai levava o cachorro para passear. Ela então pagou o açougueiro para que abrisse o totó ao meio. Levaram o cadáver até os fundos da casa, no quintalzinho de estender roupa, que minha mãe tinha forrado com jornal. Enquanto faziam os preparativos, meu pai continuava atrás da minha mãe, repetindo:

 —  É necessário? É realmente necessário? Coitadinho do bicho, que crueldade. Eu

tentava

acalmá-lo:

 —  Não se preocupe, papai, ele já não sente dor.  Na época eu não tinha nem oito anos. Os preparativos da operação prosseguiam e, em troca do seu cancelamento, meu pai prometia pintar um retrato do cachorro, que pendurariam na sala,  para que minha mãe nunca o esquecesse.

 — Um retrato figurativo — esclarecia ele — , nada de vanguardismos. Minha mãe nem respondia a semelhante proposta. Havia um litígio pendente, quer dizer, eterno, sobre um retrato cubista que meu pai tinha pintado na época do noivado e dado a ela como presente de casamento. Ela detestava aquele retrato porque, dependendo do humor do dia, dizia que nele parecia um palhaço, um monstro ou uma gorda disforme.

 — É realmente necessário? — voltava a perguntar meu pai.  —  Não quero que isso aconteça de novo, e pra que não aconteça de novo temos que saber o que aconteceu —  explicava minha mãe. Até uma criança de oito anos era capaz de desconfiar desse raciocínio, porque o cachorro não  podia morrer de novo. Minha irmã, que era um ano mais velha do que eu, mas amadurecia na velocidade dos mamões, me chamou a um canto e disse:

 — Olha a cara do papai, parece que é a barriga dele que vão abrir. Meu pai estava da cor dos lençóis da minha cama, que apesar de encardidos eram bem pálidos graças aos litros de água sanitária que minha mãe empregava na sua lavagem. O açougueiro  perguntou se meu pai ia desmaiar, se não podia ver sangue. Era uma tarde de verão abafadíssima,  portanto deviam apressar a operação antes que o cachorro começasse a feder. Minha mãe respondeu, de maneira cerimoniosa e com o sangue-frio que a caracterizava na solução das disputas familiares:

 — Prossiga. O açougueiro fez um corte do queixo até a barriga. O sangue escorreu sobre uma foto do  presidente Ávila Camacho, com as mãos para o alto, como se estivesse sendo assaltado, mas na verdade devia estar sendo ovacionado. Minha mãe se agachou para esquadrinhar as vísceras do cachorro, como uma pitonisa etrusca sondando o futuro, e ela o viu, literalmente, porque o futuro sempre é uma consequência fatídica do passado: uma meia de náilon, eterna, tinha se enroscado ao longo dos intestinos do cachorro. Era como a frase de Schönberg, mas ao contrário, o que acabava tendo o mesmo sentido: minha mãe tinha encontrado sua explicação. Meu pai se defendeu dizendo que o cachorro tinha fuçado o lixo na Alameda. A casa dos meus pais ficava num cortiço do centro.

 — Essa eu não engulo — disse minha mãe. Eu dei risada e meu pai me deu um bofetão. Minha irmã deu risada e minha mãe lhe deu um  beliscão. Nós dois abrimos o berreiro. Na hora do jantar, meu pai não aguentou mais: sem um  pretexto para sair, simplesmente foi embora e nunca mais voltou. O açougueiro levou o cadáver e prometeu dar-lhe sepultura. Minha irmã o seguiu e depois me disse que o viu negociar com o taqueiro da esquina. Também disse que eu não contasse para a mamãe, porque ela era muito apegada ao cachorro. Era a isso que ela se dedicava na vida, a se apegar aos cachorros.  No dia seguinte, minha mãe não preparou o jantar, de tão triste que estava. Tentando disfarçar, nos levou para comer tacos. Disse que era o início de uma nova vida. Minha irmã disse que, nesse caso, preferia  pozole. Eu, enchiladas. Não conseguimos convencê-la a mudar o cardápio, os tacos eram mais baratos. Quando o taqueiro nos viu chegar à sua banca, balançou a cabeça como se fôssemos uns pervertidos. Mas não era tão estranho assim. Por acaso não tinha gente que se apegava às suas galinhas e depois as comia com mole, pior ainda, no dia do seu aniversário?

Eu tinha concebido várias teorias sobre a origem do meu romance. Quer dizer, várias teorias sobre como Francesca tinha enfiado na cabeça que eu estava escrevendo um romance. O mais lógico seria atribuir tudo à espessura ridícula das paredes do prédio, quase imaginárias, o que fazia da espionagem uma atividade recreativa das mais populares. Mas também era preciso ter vocação de fabulador e ocultar intenções secretas: senão, que vantagem ela teria em espalhar que eu estava escrevendo um romance quando não estava? Eu tinha, sim, uns cadernos onde desenhava, principalmente de madrugada, enquanto entornava a última do dia, que às vezes era a penúltima. Ou a antepenúltima. Desenhava e escrevia coisas que me passavam pela cabeça. Desenhava, escrevia e ia cochilando, até que o lápis escorregava da minha mão e eu escorregava para os lençóis. Mas daí a escrever um romance havia um longo caminho, um abismo que só poderia ser atravessado com muita vontade e inocência. De onde Francesca tinha tirado que o que eu anotava no meu caderno era um romance? O que mais me intrigava era como Francesca fazia para conhecer o conteúdo do meu caderno,  porque o conhecia com um grau espantoso de detalhes e o contava na tertúlia como se fosse o novo capítulo de um folhetim. Eu aproveitava o caderno para lhe mandar recados e, embaixo do desenho de um cachorro cobrindo uma cadelinha, escrevia com minha letra trêmula de aranha  patuda: Francesca, te espero amanhã à noite no meu apartamento, às nove horas. Vou tomar o remedinho às oito e meia, vamos ter bastante tempo para as preliminares e para uma ou duas cervejinhas. Me avisa se você quiser algo mais forte. Uma tequila? Um mescal? Ou prefere uísque? Tenho um muito bom, de Tlalnepantla. Vem com uma roupa bem bonita, uma minissaia de couro, ou aquele vestido vermelho que você usou quando nos levaram para visitar o pátio do Colégio de San Ildefonso.  No dia seguinte, a tertúlia em peso me esperava no hall em pé de guerra, para me atirar tomates podres da quitanda ao lado, enquanto bradavam:

 —  Não é assim que se escreve um romance!  — Velho safado!  — Isso não é um romance! E eu respondia:

 — Eu falei! Um dia, só para enlouquecer aquele bando, transcrevi no caderno parágrafos inteiros da Teoria estética de Adorno: A exigência da completa responsabilidade das obras de arte aumenta

o peso da sua culpa; eis por que importa pô-la em contraponto com a exigência antitética da irresponsabilidade. Esta faz lembrar o ingrediente do jogo, sem o qual a arte, tal como a teoria, não pode ser concebida. O tom solene condenaria igualmente as obras de arte ao ridículo tal como o comportamento de poder e de majestade. O abandono sem reserva da dignidade pode tornar-se na obra de arte o órganon da sua força. Ardeu Troia: compraram um quilo de tomates  por cabeça. Eu tinha adquirido o mau hábito de tentar resolver todas as minhas desavenças recitando  parágrafos da Teoria estética. Com isso tinha me livrado de mais de um operador de telemarketing, vários vendedores ambulantes, dezenas de corretores de seguros e um sujeito que queria me vender um jazigo em seis parcelas. Encontrei esse exemplar na biblioteca que a fundação de um banco havia instalado a quatro quadras do prédio. Escondi o livro enfiado na calça, por baixo da camisa, e fiz cara de diálise ambulatória. Ladrão que rouba ladrão. A primeira  página, uma página em branco, ostentava um carimbo da Faculdade de Filosofia da Unam. Ladrão que rouba ladrão que rouba ladrão. Na página 37, encontrei, sem procurar, a frase de Schönberg que me lembrava minha mãe: quem não procura não acha. A Teoria estética estava embutida entre as memórias de Salvador Novo e as de Fray Servando, na seção de história. Schönberg não teria gostado disso, nem Adorno, nem minha mãe: quem não procura também acha.

Três dias depois, quando a conveniência já havia aplacado sua decepção, Francesca bateu à  porta do meu apartamento. Apesar do imenso calor, o decote do seu vestido me fez embalar insólitas esperanças: como se fosse possível ganhar a batalha de Puebla sem ir a Puebla. Ela estava com o cabelo solto e tinha pendurado no pescoço um cordão dourado bem fininho do qual, por sua vez, pendia um anel também fininho, pelo jeito uma aliança.

 — Posso entrar? —  perguntou. Eu me pus de lado para lhe dar passagem e recorri ao automatismo cortês de dizer que se sentisse em casa. Pensei que devia ter ido à farmácia. Fiz uma anotação mental: ir à farmácia.

 — Aceita uma cervejinha? — ofereci.  — Prefiro outra coisa — respondeu. — Um anis. Ou um licor de amêndoas.  — Só tenho cerveja. E água.  — Então água.  — Sente-se, por favor. Fui pegar seu copo d’água enquanto ela se acomodava na poltroninha, minha única poltrona,

que eu tinha instalado na frente da tevê. Com o rabo do olho vi como ela inspecionava meu apartamento nos mínimos detalhes, detendo-se no quadro pendurado na parede em frente e na  prateleira ao lado da porta de entrada, onde se amontoavam meus cadernos e alguns livros, entre eles nenhum romance. Havia pouco mais para ver: a mesinha de jantar, duas caixas da mudança ainda sem abrir e, claro, baratas. Depois de lhe entregar o copo d’água, fiquei em pé diante dela, encostado na mesinha por não ter onde sentar, observando o golinho microscópico que ela dava. Na verdade, para além das minhas intenções, o único lugar onde poderíamos ficar com um mínimo de conforto era a cama. Cruzei os braços para deixar claro que estava esperando. Ela demorou mais alguns segundos para falar, como se verificasse, dentro da cabeça, a construção da frase que iria pronunciar. Por fim abriu a boca, e o que disse foi:

 — Venho convidá-lo formalmente para juntar-se à tertúlia literária. A melodia ficou ecoando na minha cabeça, enquanto Francesca tomava mais um golinho de água: ve-nho con-vi-dá-lo for-mal-men-te pa-ra jun-tar-se à ter-tú-lia li-te-rá-ria. A pausa  parecia estudada para que a frase surtisse efeito, para que eutivesse tempo de concluir que aquilo

era uma honra. Uma honra imerecida, claro, e nisso residia o poder que Francesca teria sobre mim a partir daquele instante, se eu aceitasse.

 — Muito obrigado — respondi — , mas não estou interessado. Eu não leio romances. O copo tremeu na sua mão direita, ela havia bebido tão pouca água que quase a derramou no regaço. Dirigiu os olhos para a prateleira ao lado da porta.

 —  Nenhum desses livros é romance —  completei, para desfazer qualquer mal-entendido que a visão à distância pudesse ter provocado. Francesca voltou os olhos para mim e tomou fôlego para retomar a investida, agora com uma estratégia inusitada.

 —  Mas o senhor está escrevendo um romance. E se quer escrever um romance, a

melhor

coisa que tem a fazer é ler, ler muito.

 — Como?! — respondi e perguntei.  — Isso mesmo, é preciso conhecer muito bem a tradição literária, do contr…  — Eu não estou escrevendo um romance, de onde a senhora tirou isso?  —  Não minta, no prédio todos ficamos sabendo de tudo, somos uma comunidade

muito

unida.

 — Muito enxerida, seria melhor dizer. Ela se aprumou, melindrada, e me estendeu o copo para que eu o colocasse sobre a mesinha.

 —  Já me perdoou por ter sido taqueiro?  —  perguntei, destilando sarcasmo.  —  Um taqueiro lhe parece digno de escrever um romance?

 — 

Se tiver um bom ouvido, sim. O senhor deve ter escutado muitas conversas interessantes. Mas do ouvido à página escrita há um longo caminho. Se quiser, posso ajudá-lo, a tertúlia pode ser muito útil.

 — Agradeço, mas não leio nem escrevo romances.  — Todos participam da tertúlia.  — Todos menos eu.  — O inquilino anterior participava.  — E acabou como acabou! A senhora acha que eu não sei o que aconteceu com ele? O inquilino anterior tinha sofrido um ataque cardíaco em plena leitura do último romance de Carlos Fuentes e esticado as canelas ali mesmo, no hall, onde pregaram, em sua homenagem, embaixo das caixas de correio, uma cruz de madeira, como se ele tivesse sido atropelado pelo  próprio Carlos Fuentes a bordo de um conversível.

 —  Sei que começamos com o pé esquerdo  —  disse Francesca, e inclinou o corpo  para a frente, de modo que o anel ficou pendurando no ar e o decote do vestido se abriu mais um centímetro. —  A tertúlia é nossa chance de consertar esse mau começo.

Tive a impressão de que o anel estava girando na correntinha e temi que ela pretendesse me hipnotizar.

 —  Não há nada que consertar  —  respondi, desviando os olhos para um retalho de céu que eu podia observar pela sacada — , não estamos enguiçados.  — Como?  —  Não sou rancoroso, não se preocupe.  —  Então o esperamos amanhã? Começamos às dez. Já reservei para o senhor um exemplar do romance que estamos lendo. Ainda estamos no segundo capítulo, logo vai nos alcançar. Posso  presenteá-lo com a lampadinha do inquilino anterior, se não tiver preconceitos macabros.

 —  Não insista, não vou participar. Ela se levantou e espanou umas migalhas imaginárias do vestido.

 —  O que não quer dizer que não possamos ser amigos —  continuei.  —  Como  prova disso, agora mesmo a convido pra uma bebida no boteco da esquina, e, de passagem, dou um  pulinho na farmácia pra comprar um remedinho que estou precisando. Vamos lá?

 — O senhor não pode escrever um romance sem ler romances! — ela sentenciou.  — Que bom! Dois coelhos de uma cajadada só! Ela saiu sem responder ao meu convite. Depois, investigando o interesse que se escondia por trás da sua insistência, além das estratégias políticas de controle do edifício, acabei descobrindo uma razão um pouco mais pueril, porém, sem a menor dúvida, mais decisiva: na livraria onde ela encomendava os livros lhe davam um desconto especial na compra de uma dúzia.

Toda vez que havia um bate-boca em casa, minha mãe ganhava a discussão dizendo que meu  pai tinha temperamento artístico. No tom de voz que ela empregava e no contexto em que o dizia, parecia um defeito físico. Na realidade, tratava-se de uma injúria que meu pai nunca conseguiu rebater: tentava com palavras, mas seus atos o traíam, repetidas vezes, e os exemplos que minha mãe armazenava para confirmar seu diagnóstico se multiplicavam. Poucos meses antes de nos abandonar, meu pai teve a ideia de pintar o apodrecimento de um mamão. Trouxe do mercado um exemplar pequeno e um tanto murcho e o colocou, partido ao meio e acompanhado de um copo d’água com um cravo branco, sobre uma mesa ao lado do seu

cavalete. Mudou várias vezes a posição da fruta e a inclinação da flor e, quando ficou satisfeito com a composição, nos ameaçou:

 —  Não mexam nisso. E nem pensem em comer o mamão. Minha pintura será um

estudo

sobre o ocaso, sobre a decadência, o declive, a finitude da vida. É claro que, no dia seguinte, antes que o mamão apodrecesse e para evitar a proliferação de um enxame de mosquinhas fascinadas com a cena, minha mãe cortou o mamão em cubinhos e os distribuiu entre minha irmã e eu, quando meu pai não estava em casa. Fui incapaz de comer a fruta, escondi os cubinhos e os entreguei a meu pai quando ele voltou do trabalho. Quando ele foi se queixar com minha mãe por sua traição, ela respondeu:

 —  Se você quer desperdiçar um mamão, tem que ter dinheiro pra comprar dois. Isso foi antes do meu pai arranjar aquele emprego como gerente de vendas, onde ele tinha até uma secretária, o que acabou se revelando uma ascensão de funestas consequências para a família. Meu pai  pousou o prato com os pedacinhos de mamão na palma da mão direita e, coroado por uma uréola de mosquinhas, lamentou:

 —  A única pessoa que me entende é o garoto. Minha mãe respondeu:

 —  Você está dando um péssimo exemplo pra ele, só falta ele virar artista! Por que

você não desenha os cubinhos de mamão? Pode fazer um quadro cubista. Seria um estudo do incompleto, do fragmentário, da finitude dos recursos de uma família cujo arrimo vive nas nuvens, deleitando-se com as frustrações do seu temperamento artístico. Meu pai me devolveu o mamão:

 — Pode comer  — disse.

Mas eu continuei sem conseguir comê-lo: escondi o pratinho embaixo da cama e só o joguei fora quando as mosquinhas tentaram botar seus ovos nos meus ouvidos.

Eu fugia como podia das tomatadas e ia direto para a quitanda, onde a quitandeira me recebia às gargalhadas.

 — Estavam bons?! —  perguntava. — Reservei os melhores pra você, eram do Hyatt!  — Você não devia abastecer os caretas! — eu protestava.  — Todo mundo tem direito à insurreição, até eles! A quitandeira tinha feito da insurgência seu meio de vida e seu sustento: nunca a vi vender um único legume ou verdura minimamente comestível. Em compensação, era a fornecedora oficial de todas as revoltas. Seus tomates fétidos eram famosos no Paseo de la Reforma, no Zócalo, em Bucareli, e ela havia abastecido até os camponeses de San Mateo Atenco quando se revoltaram contra a desapropriação de suas terras para a construção do aeroporto. O melhor da quitandeira era ser cinco anos mais nova do que Francesca e onze mais nova do que eu. A esta altura da vida, o efeito da diferença de idade deve ser multiplicado por três, no mínimo. É verdade que, por outro lado, Francesca estava mais conservada do que a quitandeira, o que era lógico, considerando-se o desgaste de uma vida intelectual comparado ao de uma vida de ação. Mas o estado de conservação não importava, porque não éramos litros de leite na geladeira, nem carros dos anos 30 ou 40. O que de fato importava eram os desejos e apetites que Francesca atribuía à quitandeira, mais intensos do que os dela, e muito mais, até, na cabeça de Francesca do que na realidade. Como a realidade era outra coisa que também não importava, e sim as coisas que Francesca imaginava, eu calculava que minha paquerinha com a quitandeira  poderia aumentar minhas chances com Francesca. Isso sem falar na dimensão rimbombante dos  peitos da quitandeira! Era uma batalha psicológica e sexual que teria arrepiado a barba do  próprio Freud.  Numa das paredes da quitanda havia uma folhinha indicando as datas comemorativas e os  produtos da temporada. Março era tempo de nacionalização do petróleo, nascimento de Benito Juárez, abobrinha e chuchu. Maio era alta temporada: Dia do Trabalho, de Santa Cruz, Batalha de Puebla, Dia do Professor, Dia do Estudante, chuchu, alface e tomate. Em setembro: chili  poblano, prestação de contas presidencial, Meninos Heróis e Independência. Em outubro e novembro havia poucas datas, mas se vendia mais tomate do que nunca: Massacre de Tlatelolco, Dia da Raça e Revolução Mexicana. A quitandeira estendia seu braço roliço e me passava um rolo de papel higiênico para que eu limpasse os restos de tomate do rosto, do cabelo, do pescoço e dos braços, e me emprestava uma camiseta amarela da campanha de 2006, para eu me trocar. Eu lhe devolvia a camiseta mais

tarde, apenas para voltar a pegá-la emprestada na tomatada seguinte. Eram tantas que, com o  passar dos dias, na rua começaram a achar que eu era do PRD. Depois, aos gritos, ela mandava comprar um litrão de Superior no mercadinho da esquina, um garoto trazia a cerveja, a quitandeira servia dois copos e começava:

 — Onde você deixou os intelectuais?  — Ficaram lá. Os tomates acabaram, e eles voltaram pros seus livrinhos.  — Com a falta que eles fazem na rua… como bucha de canhão! As caminhonetes interrompiam nossas conversas, chegavam para descarregar legumes  passados: dos restaurantes e hotéis de Polanco, do hipermercado Superama da rua Horacio, do Hipódromo de las Américas, até de uma quitanda chique de Las Lomas. Para não jogar fora os legumes, e principalmente para evitar que os indigentes se acumulassem nas redondezas para catá-los, os donos desses locais tinham concordado em doá-los para a quitandeira, que os venderia a preços sociais para os mais necessitados. Era o que ela tinha dito para convencê-los e, de certo modo, não tinha mentido. Na sua quitanda, o preço do quilo de tomate era um por cento do preço de mercado. Com o preço de um quilo, os revoltosos levavam cem. Era uma verdadeira ação social, mas não a que os doadores imaginavam: os legumes que seu paladar exigente recusava acabavam esborrachados na cabeça deles mesmos. Bebíamos cerveja e, no segundo copo, sem falta, chegava a vez de Madero, sempre Madero: o destino da pátria tinha desandado por culpa do Madero. Outro galo cantaria, dizia a quitandeira, se Flores Magón tivesse liderado a Revolução.

 —  Sabe

o que devíamos fazer? Devíamos é meter bala no Madero.

 —   perguntava,

e imediatamente respondia:

 — 

 — Já meteram, aí mesmo, ao lado do Palácio de Lecumberri — eu informava.  — Então de novo! Você sabe onde ele está enterrado? Fazíamos planos para profanar o túmulo de Madero no Monumento à Revolução. Ficava  perto, a três estações de metrô. Com Madero estavam enterrados Pancho Villa e Venustiano Carranza, Plutarco Elías Calles e Lázaro Cárdenas, todos inimigos. A única coisa que eles tinham em comum eram os bigodes. A quitandeira gritava:

 — É pra isso que serve a dialética: pra erguer monumentos! Madero tinha sido executado havia exatos cem anos, em fevereiro de 1913, mas na cabeça da quitandeira era como se tivesse sido anteontem. Ela vivia num tempo em que todas as desgraças da pátria, desde o assassinato de Zapata até a fraude contra López Obrador, aconteciam de forma simultânea, ou eram postas juntinhas uma ao lado da outra, como uma fileira de pedras que dava uma volta no planeta e chegava até Plutão. A quitandeira tinha outra teoria sobre meu romance, ou melhor, sobre como Francesca fazia  para saber do conteúdo dos meus cadernos. Segundo sua hipótese, Francesca era agente da CIA. Eu a contestava, porque a experiência tinha me mostrado que a realidade não se rende a ideologias.

 —  Pensa bem  —  ela dizia  — , você sabe alguma coisa dessa mulher? Se é viúva divorciada, se tem filhos, se é solteirona, ao que se dedicava?

ou

 — Sei que era professora de línguas — eu respondia.  —  Está vendo?! Os professores de inglês trabalham pra

CIA,

todo mundo sabe disso. Até

apareceu num filme. Como você acha que ela entrou no prédio?

 — Por sorteio, como todos.  —   Ninguém entra por sorteio.

Você por acaso entrou por sorteio? Nesse prédio todo mundo entra com pistolão. Fuleiro, mas pistolão. Embora digam que quem cala consente, eu ficava de boca fechada, pois não gostava de espalhar por aí como tinha conseguido meu apartamento. Supostamente eu devia ter preenchido um monte de papéis e ter rezado para todos os santos, primeiro, para que um dos inquilinos morresse, ou para que fosse declarado incapaz de viver sem assistência, e depois, para que os  burocratas despertassem da sua letargia milenar e encaminhassem o processo. Depois, como se não bastasse, teria que ser sorteado, e as probabilidades eram de uma em milhares. Era esse o  procedimento que, a não ser pela parte em que o inquilino morria para liberar o apartamento, nunca ninguém respeitava.

 — Ela entrou no prédio porque está numa missão — dizia a quitandeira.  — Mas ela é aposentada.  —  Os agentes da CIA nunca se aposentam!  —  repetia.  —  Você acha que se ela

fosse aposentada ia viver nesse prédio vagabundo? Do jeito que ela é metida, se fosse aposentada, estaria morando em Tepoztlán ou em Chapala. Escuta o que eu digo, ela está numa missão, por isso vive te espiando e, de quebra, doutrina os tertulianos. Pensa bem, ela só precisa de um copo, encostar o copo na parede e apoiar a orelha no fundo.

 — Mas eu não escrevo em voz alta!  —  E precisa?! Essa gente é capaz de decifrar a escrita escutando o barulhinho da caneta no  papel. Então me sugeriu que, ao usar o caderno, eu ligasse algum aparelho bem barulhento para sabotar a espionagem. Quando eu me cansava de desenhar, ligava o liquidificador, que nunca usava, e escrevia no caderno coisas que me vinham à mente:  Enviaram quinhentos soldados para capturar Jodorowsky porque ele tinha crucificado uma  galinha. José Luis Cuevas pintou um mural efêmero e inventou a Zona Rosa. Os ossos de José Clemente Orozco, Diego Rivera, dr. Atl e Siqueiros acabaram na Rotatória dos Homens Ilustres.  Juan O’Gorman tomou cianureto, passou uma corda no pescoço e em seguida meteu um tiro na

cabeça. Seus ossos foram parar no mesmo lugar. Transferiram La Esmeralda para Colonia Guerrero. Leiloaram um quadro de Rufino Tamayo por sete milhões de dólares, um da Frida  por cinco, outro do Diego por três. Mudaram o nome da Rotatória: onde dizia “Homens”  puseram “Pessoas”. Transferiram os restos de María Izquierdo para a Rotatória das Pessoas

 Ilustres. Na manhã seguinte, Francesca estava à espreita no corredor e, quando eu ia saindo do apartamento, começou a me perseguir e a me provocar:

 — Era só o que nos faltava! Um taqueiro com pretensões de historiador da arte.

 —  Sabe o que um cliente meu costumava dizer? —  repliquei.  —  Que era

exatamente isso que nos faltava: taqueiros que entendessem de arte, taqueiros que se interessassem pela arte.

 — Quem era seu cliente? Vasconcelos?  —  Se o Vasconcelos fosse vivo, estaria horrorizado com o preço da cerveja no

café dos

museus. Fui direto jogar na cara da quitandeira o fiasco de suas teorias:

 — A única coisa que eu consegui foi queimar o liquidificador.  — Então é telepatia.  — Eu sabia! Você está louca.  —  Mas é justamente essa a estratégia da CIA, não percebe? Usar técnicas malucas  pra que ninguém acredite nelas quando as descobre.

 — E o que ela ganha me espionando? —  perguntei.  — Aí é com você. Talvez seja perigoso pro sistema.  — Jura?!  —  Se quer mesmo saber, sempre achei você bem suspeito. Tanta palhaçada em

cima de  palhaçada só pode ser uma manobra diversionista. Vai saber que segredos você esconde. Ou numa dessas o futuro da humanidade depende do teu caderno. Já pensou? Ela chegou ao extremo de conseguir, com a ajuda de um camarada que estava na clandestinidade, uma lista com o nome dos supostos agentes da CIA no México. Não encontramos o de Francesca.

 — Mas esse não é seu nome verdadeiro! — disse a quitandeira. Aí procuramos seu nome real, ou pelo menos o nome pelo qual era chamada na tertúlia, o mesmo que constava na sua correspondência e que ela assinava nas atas das reuniões de moradores. Também não estava na lista.

 — Está vendo? — eu disse.  —  Isso só prova uma coisa: que esse nome também é falso. Só você pra achar que

ela usaria o nome verdadeiro. Escuta o que estou te dizendo, ela está numa missão! Aliás, pensando  bem, nós também não devíamos usar nossos nomes verdadeiros.

 — E como você gostaria de ser chamada? —  perguntei.  —  Não sei. Alguma sugestão? Pensa num nome bem bonito.  — Que tal Juliette?  — Juliette?  — Isso, mas tem que pronunciar  Djuliét , pra que soe mais sedutor.

 — Gostei! E você?  — Eu quero me chamar Teo.  — Mateo?  — Imagina!  — Então?  — Teodoro, mas pode me chamar de Teo. O nome devia ser pronunciado Djuliét  para fazer ciúme em Francesca. Juliette me desafiava a irromper no 3-D, o apartamento de Francesca, para confirmar suas teorias. Ela geralmente chegava a esse ponto por volta da terceira cerveja, e aí eu achava melhor me despedir. Precisava descansar um pouco para aguentar a jornada. Quando ia atravessando o hall, de volta da quitanda, e observava os tertulianos hipnotizados pela leitura, perfeitamente apaziguados, eu disparava:

 —  E aí? Como é que vão as hemorroidas? E Francesca gritava:

 —  Djuliét  é nome de puta francesa!

Um dia a tertúlia foi suspensa porque um poeta tinha morrido, e todos foram correndo chorar o morto. Todos menos Hipólita, cujas varizes lhe impediam esse tipo de esforço. Eu ia saindo feito um foguete destrambelhado rumo ao boteco da esquina quando topei com ela, enfiando a mão nas caixas de correio para depositar um papel: haveria uma exposição de passarinhos de miolo de pão no hall do prédio. Guardei meu convite para o vernissage dobrado no bolso de trás da calça e já ia chegando no portão, quando Hipólita me deteve:

 — O senhor é um ingrato. Eu me virei para encará-la. Ela estava tão perto da soleira que a luz matinal destacou seu  buço. Não dissimulado pela penumbra do hall, era um senhor bigode.

 —  Nunca fala de mim no seu romance — explicou.  — A senhora sabe muito bem que não se trata de um romance.  — Deve me achar muito insignificante.  — A senhora fala como um quadro da Frida Kahlo, pura lamentação. Ei, o que é isso? Apontei para uma parede do hall coberta de manchas de umidade e escapei na máxima velocidade que os joanetes me permitiam. À noite, anotei no caderno uma lembrança da infância: o irmão da minha mãe, um solteirão que foi o primeiro taqueiro da família, tinha um bigode tão estrondoso que os restos de comida ficavam presos nos seus fios.

 — Coisas do norte —  justificava minha mãe. Sua família era de San Luis Potosí, que, tecnicamente, nem sequer era o norte. Era, quando muito, o sul do norte. Eu tinha visto meu tio passar uma tarde inteira de domingo com a ponta de um chili jalapenho presa no bigodão.  No dia seguinte, o hall ostentava cadeiras novas. Eram cadeiras de madeira, com assento e encosto estofados, reclináveis, superconfortáveis. Todas roubadas do funeral do poeta. Essa gente era muito perigosa: tinham carregado seu butim desde o Bellas Artes, ao longo de seis estações de metrô. As cadeiras novas não cabiam no quarto de despejo do prédio, onde costumavam guardar, dobradas, as cadeiras da Modelo. Começaram a deixar as cadeiras novas alinhadas junto às paredes do hall, como numa sala de espera. Os tertulianos achavam aquilo o cúmulo da elegância. As baratas também adoraram. A posteridade decidiu que o poeta morto não passava de mediano: não tinha estatura para estátua, nem sequer para avenida, muito menos para a Rotatória das Pessoas Ilustres. Virou nome

de uma rua de terra em Irapuato, onde ele tinha nascido. Pouco depois morreu outro poeta (sempre estavam morrendo poetas). Os tertulianos aproveitaram para roubar uma cadeira para Hipólita. Esse poeta, sim, virou estátua de praça. As pombas, felizes.

Dedetizaram o prédio, e tivemos que passar o dia inteiro fora. Começaram a cortar a água todos os dias, por causa da estiagem. Os canapés do vernissage da exposição de passarinhos de miolo de pão estavam estragados, o que causou uma diarreia generalizada. Trocaram o entregador do supermercado, acusaram o novo de roubar uma lata de chilis jalapenhos. A lâmpada do terceiro andar queimou. Alguém deixou o portão aberto e entraram os mórmons, que foram batendo de porta em porta. A tertúlia começou a ler Em busca do tempo perdido na edição comemorativa da Aliança Francesa, que reunia os sete livros num único volume. Quatro mil duzentas e trinta páginas, capa dura, papel-bíblia, três quilos e meio (quem sofria de artrite estava dispensado). Fizeram um abaixo-assinado para que o antigo entregador fosse readmitido. A lâmpada do primeiro andar queimou. As baratas, muito pimponas.

Minha mãe levou menos de uma semana para achar um substituto para o cachorro morto: um vira-lata insuportável que ela chamou Solovino, porque um dia “ solo vino”: simplesmente apareceu na porta de casa, sozinho, e começou a arranhá-la. Solovino comia qualquer coisa que estivesse ao alcance do focinho, e não apenas meias, mas minha mãe achava que ele era a reencarnação daquele outro cachorro tão querido. Claro que ela nunca dizia isso, mas nem  precisava: volta e meia se distraía e chamava Solovino pelo nome do falecido. Ao longo dos dez anos de vida desse cachorro, ele conseguiu comer todos os objetos da casa, incluindo pregadores de roupa, a borracha da porta da geladeira e um monte de tubos de pasta de dente, que eram seu fraco: quando alguém deixava a porta do banheiro aberta, ele pulava e derrubava com o focinho o copo onde deixávamos as escovas e a pasta. Mesmo assim, não engordava: permaneceu esquelético até o fim dos seus dias. Minha mãe perdoava tudo o que ele aprontava, mas, em compensação, castigava qualquer mínima travessura que eu ou minha irmã fizéssemos. Nós dois  juramos aquele cachorro de morte. Qualquer bobagem era motivo para ficarmos uma semana de castigo, trancados dentro de casa. Era assim que minha mãe resolvia tudo na vida, prendendo os filhos. Isso nos condenava a tardes inteiras de tédio, dedicadas a implorar para minha mãe que suspendesse o castigo. Olhando retrospectivamente, vê-se a espantosa fé que aquelas gerações tinham no castigo como forma de fortalecer o caráter. Minha mãe trabalhava nos Correios de manhã e à tarde lavava roupa para fora. Quando estávamos de castigo, minha irmã e eu ficávamos atrás dela perguntando como um par de matracas:

 — Que é que a gente vai fazer trancado em casa?  — Que é que a gente vai fazer trancado em casa? Dizíamos tudo em duplicata, como se fosse um trâmite copiado em carbono, e de certo modo era mesmo: um trâmite fadado ao fracasso, porque o burocrata de plantão, minha mãe, tinha uma  paciência infinita.

 — Façam o dever de casa — ordenava.

Rabiscávamos as tarefas da escola e voltávamos para outra tarefa: infernizar minha mãe até que nos deixasse ir para a rua.

 — E agora, que é que a gente faz?  — E agora, que é que a gente faz?  — Estudar.  — Já estudamos.  — Já estudamos — mentíamos.  — Vão brincar.  — De quê?  — De quê?  — Sei lá, do que vocês quiserem. Zanzávamos pela casa inteira, mexíamos em tudo, eu me punha a chutar uma bola que  passava raspando pelo guarda-louça, minha irmã arrancava a cabeça da boneca e dizia que  precisava ir até a papelaria comprar cola. Voltávamos à carga:

 — E agora, que é que a gente faz?  — E agora, que é que a gente faz? Aí minha mãe pegava uns papéis em branco que trazia dos Correios, um estojo de lápis de cor que tinha sido do meu pai, que ela guardava no alto de um armário, e pronunciava a sentença inapelável:

 — Desenhem. Desenhar era uma atividade que nunca se esgotava, podia ser feita por horas a fio, e minha mãe tratava de ter sempre um estoque estratégico de papel. Ficávamos tantas vezes de castigo que acabamos pegando o hábito, até que um dia ela teve que comprar outro estojo de lápis, e depois passamos a desenhar mesmo sem estar de castigo. Íamos para a rua e nos púnhamos a desenhar ao ar livre, como lembrávamos de ter visto nosso pai fazer. Castigo vai, castigo vem, acabei exigindo que minha mãe, pelo menos, me comprasse um caderno. Comecei a andar para cima e para baixo carregando o bendito caderno, que me rendeu fama de artista e de esquisito na vizinhança. Por algum tempo foi até uma atividade lucrativa: eu fazia retratos de namoradas por encomenda, trocava desenhos por bolinhas de gude, no início, e mais tarde pelos primeiros cigarros. Até que um dia os vizinhos enjoaram do artista, meu caderno perdeu sua aura e acabou se transformando numa carga funesta.

Fazia quase dois meses que não chovia, o rio Lerma ia se reduzindo a um córrego e a falta de água fazia o encanamento do prédio gemer. No hall diziam que as tubulações chiavam e, alegando que era impossível se concentrar na leitura, os tertulianos deram  para se reunir no Jardim de Epicuro. Pagavam um garoto para que carregasse os exemplares do Tempo perdido num carrinho de mão, ida e volta. Quando, da sacada do meu apartamento, eu via a procissão  percorrer duas quadras da rua Basilia Franco, cada tertuliano carregando uma cadeira dobrável da Modelo, virar à esquerda na Teodoro Flores, onde ainda teriam que andar mais três quarteirões, com o menino já com a língua de fora, parando para recuperar o fôlego a cada cinco  passos, eu gritava:

 — É o peso da tradição literária! Vocês vão matar o coitado do moleque! Logo a tertúlia foi obrigada a abandonar o Jardim de Epicuro porque apareceu por lá um cachorro que não os deixava em paz. O totó corria entre as pernas dos tertulianos, arranhava seus tornozelos, tentava afiar os dentes na capa do Tempo perdido. A gota d’água foi quando o cão resolveu se engraçar com Francesca, esfregando a genitália numa perna dela e não querendo saber de largar sua eleita de jeito nenhum: foi preciso recorrer a um rapaz que ia passando pelo  parque para livrá-la do abraço canino. Só para mantê-los longe do prédio, aconselhei aos tertulianos que dessem uma meia para o tal cachorro. Voltaram pouco depois, porque o bicho não quis saber de engolir o quitute. Pedi que me mostrassem a meia: era de Hipólita, uma meia especial antivarizes. Recomendei que lhe oferecessem uma meia comum, de náilon, e lá foram eles comprá-la no armarinho. Voltaram, e o cachorro continuou ignorando a oferta. Sugeri que recheassem a meia com carne e que a enrolassem até formar uma bolinha, sem amarrá-la, para que depois se desenrolasse nos intestinos do totó. O açougueiro lhes deu um monte de pelancas. Tiro e queda. Morto o cachorro, os tertulianos voltaram ao Jardim de Epicuro para decretar, durante uma  pausa na leitura do Tempo perdido, que um dos defeitos do meu romance inexistente era que eu evitava o tema das doenças. Ouvi a sentença da boca de Francesca, no elevador, enquanto subíamos para o terceiro andar depois de voltarmos das nossas respectivas atividades: ela, da tertúlia; eu, de tomar a quarta e a quinta do dia na quitanda. Antes de chegarmos ao primeiro andar eu já tinha sido obrigado a aturar um discurso sobre a decrepitude como tema fundamental do romance europeu do século XX.

 —  Não se mexa — interrompi. E esmaguei duas baratas, uma com o pé direito, outra com o esquerdo.

 — Viu? — disse Francesca. — O senhor não me escuta, está fugindo do assunto.  — As baratas é que fogem, eu não fujo de nada. Entre o primeiro e o segundo andar, ela pretendeu me instruir sobre uma tal “literatura da experiência”, que, resumindo, obriga a pessoa a só escrever sobre coisas que viveu na pele, sobre

aquilo que se conhece em primeira mão. Fiquei pensando que isso era como dizer que ninguém  pode explicar o sabor de um taco de cachorro se nunca comeu um. Ou se pensa que nunca comeu nenhum. Ou se não sabe que já comeu mais de um. A questão é que todo mundo já comeu um taco de cachorro e, mesmo sem saber, todo mundo sabe o sabor de um taco de cachorro, ainda que, de fato, ninguém pense saber. Este era o verdadeiro paradoxo: a pessoa não poder escrever sobre alguma coisa não porque não a viveu, mas porque não sabe que a viveu. Para variar, eu tinha me distraído e ao chegar ao terceiro andar apanhei um fiapo solto de frase:

 — A experiência da doença é tão boa como qualquer outra — disse Francesca.  —  Não diga! Tão boa como o amor, a aventura, a viagem ou a liberdade?  — Estou falando de literatura.  —  Ah, bom! Então me diga em que meu suposto romance melhoraria se eu resolvesse detalhar sintomas de joanetes, refluxo estomacal, rinite ou fígado gorduroso? Pra que serviria esse romance, pra causar pena? Disso já temos bastante, todos nós, não precisamos de literatura!

 —  A doença é a metáfora perfeita do ocaso, da decadência, da finitude de tudo que é humano.

 — Quer dizer que, em vez de ir ao médico, a gente devia ir ao retórico?  —  O senhor parece uma criança. Por que sempre banca o menino terrível? Está fugindo da realidade. Olhe um pouco para o seu estado, acha que não noto seus achaques?

 —  E desde quando a realidade importa? Eu me sinto mais forte do que um cavalo.

As cores subiram ao seu rosto, embora o zíper tivesse acabado de completar a subida: o elevador abriu as  portas. Aproveitando que a lâmpada do corredor estava queimada, na hora da despedida passei a mão na sua bunda. Era firme e suave, foi uma revelação agradabilíssima. A bofetada ficou ecoando nas paredes do corredor até o fim dos tempos.

Uma das batalhas cotidianas no prédio era manter o portão fechado, para evitar a infiltração da chusma. Quando alguém cometia essa distração, Francesca imediatamente convocava uma reunião extraordinária, que ninguém podia abandonar enquanto não se descobrisse o culpado, e tomava medidas disciplinares que iam de uma simples advertência até multas pecuniárias, todas depositadas num frasco onde ela guardava o dinheiro para as despesas extraordinárias do edifício. Breton e Stálin, juntos, não chegavam nem aos pés de Francesca. Houve um famoso episódio que fez os moradores chegarem ao extremo de debater a contratação de um porteiro. Todos se referiam a esse evento do mesmo modo: o dia que os mórmons entraram. Tornou-se até uma referência temporal. No prédio se dizia: uma semana antes do dia que os mórmons entraram. Ou: dois dias depois do dia que os mórmons entraram. As coisas aconteciam antes ou depois do dia que os mórmons entraram. Aconteceu numa quarta-feira à tarde, enquanto eu tomava uma cerveja e me dedicava com afinco a apertar um botão do controle remoto da tevê, até que topei com a juba de cientista maluco e o olhar safado de Serguei Eisenstein. Nesse momento chamaram à porta. Quer dizer, chamaram à porta do meu apartamento, não pelo interfone, o que só podia significar uma coisa.  Na verdade, uma de muitas coisas, que no fundo eram a mesma coisa: vendedoras da Avon, crianças famintas, drogados pedindo um trocado, propagandistas de companhias telefônicas, mudos que falavam, cegos que enxergavam, sequestradores a domicílio e pedintes descarados que nem sequer se davam ao trabalho de inventar uma história para causar pena. Os únicos que tinham desaparecido, como prova do progresso da humanidade, eram os vendedores de enciclopédias. Sabendo perfeitamente disso, eu não pretendia abrir, portanto ignorei os chamados e continuei assistindo ao programa. Não paravam de bater, e eu não parava de ignorar as batidas. Veio o intervalo, e continuaram esmurrando a porta. Quem quer que fosse, demonstrava uma determinação de fanático. Abri a porta e vi o alemãozinho, alto, branco feito um bicho de goiaba. Vestia camisa branca de mangas curtas, calça preta e na altura do coração tinha uma plaquinha com seu nome, um nome que parecia de pintor flamenco de naturezas-mortas. Willem Heda. Muito coerente: como a lâmpada do corredor não funcionava, ele surgia em claro-escuro. Calculei que não devia ter nem vinte anos, e que, portanto, estaria cumprindo a missão de levar portas na cara num país pobre antes de ir à universidade. Isso na remota hipótese de que frequentar a universidade não fosse  pecado.

 — Trago a mensagem do Senhor  — disse.

 — Legal — respondi. — Quanto custa a dose? Ergueu suas loiras sobrancelhas de surpresa até quase tocar a raiz dos cabelos. Depois baixou os olhos e os cravou na Bíblia que carregava na mão direita. Eu estendi a minha esquerda e puxei a Teoria estética da prateleira ao lado da porta, onde a mantinha guardada como uma espingarda,  para qualquer eventualidade. Ele olhou o exemplar que palpitava na minha mão e suas sobrancelhas chegaram até a nuca.

 — O senhor é professor? —  perguntou.  — Imagina — respondi.  — Digo por causa do livro.  Nós dois dirigimos o olhar para minha mão esquerda. Ele fitava o livro como se fosse um cachorro sem coleira, como se fosse crime andar com um livro solto.

 — O livro? É da biblioteca, mas pode ficar tranquilo: não morde.  —  Trago a mensagem do Senhor  —  repetiu  — , não me

deixarrria entrar cinco

minutos? Ouvi que o intervalo tinha acabado e que o programa já ia recomeçando. Ergui a Teoria estética, abri numa página ao acaso e comecei a ler:

 —  Para subsistir em meio aos aspectos mais extremos e sombrios da realidade, as

obras de

arte que não querem vender-se como consolação deviam tornar-se semelhantes a eles. Ele ergueu a Bíblia, abriu numa página qualquer e começou:

 —  Atentei  parrra

todas as obras que se fazem debaixo do sol; e eis que tudo errra vaidade e desejo vão, e proveito nenhum havia debaixo do sol. Voltei a ler:

 —  A arte avançada escreve a comédia do trágico; o sublime e o jogo convergem. As obras importantes aspiram a incorporar em si esse estrato antiartístico. Onde ela, suspeita de infantilismo, falta, a arte capitulou. E ele leu:

 —  E apliquei o

corrração a conhecer a  sabedorrria e a conhecer os desvarrrios e as loucurrras; e vim a saber que também isso errra  desejo vão. Porque na muita sabedorrria há muito enfado; e o que aumenta o conhecimento aumenta a tristeza. Olhei alternadamente para os dois livros: o dele era maior. Na tevê o programa não parava, e eu tinha perdido algumas cenas. Recuei para deixar o moço passar.

 — Entra logo. O que você vai beber, Güílen?  — Pronuncia-se Vílem.  — Ah, obrigado pelo esclarecimento! Uma cervejinha, Güílen?  — Um copo d’água, cerveja é pecado.

 — Jura?! Senta aí, estão passando um programa muito bom.  — Sobre o quê?  — Intrigas e chifradas e como fazer pra vender rapadura a preço de ouro. Ele tirou a mochila das costas e se sentou numa cadeira dobrável, de alumínio, da cerveja Modelo. Ladrão que rouba ladrão. Eu me sentei na poltroninha na frente da tevê.

 — Qual o seu nome? —  perguntou.  — Teo.  — Mateo?  — Imagina.  — Só Teo?  — Teodoro.  —  Como o autor do livro?  —  Não, o do livro se chama Theodor.  — É a mesma coisa.  —  Não é a mesma coisa, o nome dele tem um agá a mais e um ó a menos.  — O senhor  morrra sozinho?  — Shhh, deixa eu ver o programa. Resignou-se a olhar a tela, onde mostravam uma série de fotografias em preto e branco tiradas na Casa Azul.

 — Quem é essa aí de bigode? —  perguntou.  —  Como assim, quem é? Essa aí é a Frida Kahlo, não me diga que você não sabe quem é, se até os índios da Amazônia a conhecem. É uma pintora tão famosa que ergueram uma estátua  pra ela no parque de um vilarejo de cem habitantes no Uzbequistão e inventaram o Dia Internacional Frida Kahlo na Bulgária, ou na Dinamarca. Está vendo esse aí com a cintura da calça nos sovacos? Esse é Diego Rivera, o homem da casa.

 —  Gostarrria

de lhe falar da palavra do Senhor. A palavra do Senhor é um consolo muito  poderrroso pras pessoas de idade. Fuzilei-o com os olhos.

 — Shhh, presta atenção. A televisão disse: … tentou improvisar sua própria liberdade para superar  elegantemente

uma vida de dor .

 — Como eles gostam do sofrimento, Güílen, que é que a elegância tem a ver com a dor?

 — A dor conduz ao Senhor.  —  E a elegância ao inferno. Aliás, você está muito elegante, muito engomadinho.

Ficou vermelho: a pigmentação da vergonha o transformou de bicho de goiaba em camarão, ou de camarão cru em camarão cozido.

 — Calma — disse para aliviá-lo — , era brincadeira.  Na tela foram se sucedendo imagens de Frida e Diego, de Eisenstein, Dolores del Río, Arcady Boytler, Miguel Covarrubias, María Izquierdo, Xavier Villaurrutia, Adolfo Best Maugard, Lola e Manuel Álvarez Bravo, Trótski, Juan O’Gorman e Pita Amor. Willem olhava para a tevê e desviava os olhos, inspecionando o apartamento em busca de alguma coisa que lhe  permitisse puxar conversa, e pensou encontrá-la ao reparar no quadro pendurado na parede em frente.

 — É um palhaço? —  perguntou.  — É um retrato da minha mãe — respondi.  — Sinto muito — disse, de novo vermelho.  —  O que você sente muito? Ter dito que minha mãe é um palhaço ou não ter  sensibilidade  pra apreciar a arte? Ele ficou pensando, confuso.

 — O senhor  preferrre que eu volte outro dia? —  perguntou.  — Você não quer ver o programa?  — Querrria falar da palavra do Senhor.  — Então volta outro dia. Se você der sorte, posso até abrir a porta! Deu para vir duas vezes por semana, às quartas e sábados, e eu dei para deixá-lo entrar, para matar o tempo. Quando eu estava de crista baixa ou quando, simplesmente, tinha tomado umas a mais, ele resolvia me passar sermão:

 — Ainda está em tempo de se arrrrepender .  — Você está insinuando que vou morrer? — eu retrucava.  —  Nunca é tarde pra se arrrrepender .  — De ter deixado você entrar da primeira vez? Quem me dera! Seguindo um manual de catequese, imagino, vivia repetindo que eu era sua missão, que ele tinha vindo ao México para me trazer a palavra do Senhor. Eu respondia:

 —  Pois

você chegou bem tarde, Güílen, já tivemos uma porção desses por aqui: os franciscanos, os dominicanos, Humboldt, Rugendas, Artaud, Breton, Burroughs, Kerouac. A concorrência é forte! Um dia resolveu me fotografar com o celular e mandar a foto para a família, que morava num vilarejo em Utah.

 — Você não está entendendo — cortei. —  Não sou um cachorrinho vira-lata.

Meu pai nos mandou uma carta: tinha se mudado para o litoral, como o presidente Ruiz Cortines queria que todo mundo fizesse. Estava morando em Manzanillo e trabalhava fazendo trâmites no porto. A carta estava endereçada à minha irmã e a mim, escrita com tinta azul e uma letra minúscula e muito apertadinha, inclinada para a direita, como se as letras estivessem se deitando para dormir. Tinha só uma página, mas levamos uma tarde inteira para decifrá-la. Meu  pai contava que no porto entravam navios dos Estados Unidos e da China e que na semana anterior tinha soprado o vento do norte e ele tinha visto ondas de dez metros. Não conhecíamos o mar, mas calculamos que aquilo devia ser impressionante. Contava que o prefeito de Manzanillo tinha sido pintor e motorista de táxi, prova de que qualquer pessoa podia chegar longe na vida se tivesse um objetivo e não desistisse. Também contava que ele tinha voltado a pintar, que depois do expediente se reunia com um grupo de artistas no cais para pintar paisagens marinhas e que tinha vendido um quadro impressionista de um barco de pescadores para um turista de Guadalajara. Depois vinha o trecho final, que era o motivo da carta e que levamos mais tempo  para entender, porque, além da letra difícil, ainda não tínhamos idade para interpretar aspirações ultraterrenas. Meu pai nos pedia que, quando ele morresse, cremássemos seu corpo e espalhássemos as cinzas em algum museu de arte, o lugar ao qual pertenciam. Queria que o pó dos seus ossos pairasse entre obras de arte e fosse inalado por gente sensível, que grudasse na roupa e viajasse na gola dos casacos puídos dos novos artistas. No mesmo envelope, meu pai nos mandava três pesos: o preço de dois quilos de feijão. Minha mãe se negou a ler a carta, mas quando fomos dormir a deixamos em cima da mesa da cozinha, como que esquecida. Mais tarde fiquei sabendo que o prefeito de Manzanillo tinha sido pintor de paredes, não de quadros, como  pensei por algum tempo. E que tinha sido presidente do sindicato dos taxistas, o que contradizia as teorias motivacionais do meu pai. Tese. Antítese. Assim ia passando a vida.

Fui procurar o cadáver do cachorro que tanto perturbara os tertulianos e o encontrei no Jardim de Epicuro, embaixo de uns arbustos, até onde devia ter se arrastado para tentar vomitar a meia. Eu não podia acreditar: era um labrador, preto, enorme. Ou podia acreditar, sim, já sabia que estava diante de fundamentalistas literários, gente capaz de matar um cachorro de família, e ainda por cima abandonar o cadáver sem uso nem proveito, só para reconquistar a sacrossanta  paz que precisavam para se concentrar na leitura e no seu diletantismo. Cobri o cadáver com folhas e gravetos e me dirigi ao açougue da esquina, aquele mesmo onde os assassinos tinham conseguido as pelancas mortíferas. Eu não conhecia o açougueiro, até então nunca tinha precisado dos seus serviços. Almoçava de segunda a sábado num quilo, onde eu me servia duas folhas de alface e escondia o bife no  bolso da calça, e aos domingos me virava com os petiscos do boteco da esquina. Fiquei esperando na calçada em frente até não haver clientes que pudessem atrapalhar a operação. Tive que esperar por quinze, vinte minutos. Finalmente consegui entrar e não perdi tempo, não podia correr o risco de que alguém entrasse e nos pegasse em plena negociação.

 — Te vendo um cachorro — disparei.  — O quê? — respondeu o açougueiro. Estava trinchando uma carne que não tinha pinta nem de boi, nem de porco, nem de nada do que estava anunciado nos cartazes coloridos pregados nas paredes.

 — Eu disse que te vendo um cachorro — repeti. Largou o facão, ergueu os olhos e se sacudiu atrás do avental manchado de sangue como se sua caixa torácica fosse uma lata cheia de tachinhas num terremoto.

 — De que porra você está falando? —  perguntou.  —  Tenho um cachorro aqui na esquina, no Jardim de Epicuro. Acabou de morrer,

estava

 perfeitamente saudável, engasgou com uma meia.

 — Um cachorro?  — É um labrador, deve pesar entre trinta e quarenta quilos. Dá pra aproveitar  tudinho. O açougueiro pegou a faca de volta, mas não retomou suas tarefas. Temi que a faca interpretasse os sinais enviados pelo açougueiro e resolvesse mudar de função: de instrumento de trabalho a arma homicida.

 — Que brincadeira é essa? — disse.  —  Deixa disso, eu fui taqueiro a vida inteira, tinha uma banca em La Candelaria

de los

Patos. Sei muito bem como a coisa funciona.

 — Você é fiscal sanitário?  —  Na minha idade? Se adiassem a idade da aposentadoria a esse ponto, os mortos  já estariam trabalhando.

 — Tira tudo o que você tem nos bolsos e me mostra a identidade. Obedeci, fazendo o possível para deixar claro que não representava nenhum órgão ou instituição preocupada com o comércio clandestino de carne de cachorro ou com o respeito às normas de higiene nos açougues. Foi fácil, porque, além de não ser nada disso, eu também não  parecia nada disso.

 — Viu? — falei. — Pode confiar em mim.  —  Vou lhe dar um conselho: procure um geriatra, diga que está perdendo a noção

da

realidade.

 —  Vai continuar se fazendo de bobo? Do que é essa carne aí que você está

cortando? Uma

coisa eu sei: não é de boi nem de porco. Deixa de tanta história.

 — Isto aqui? — dirigiu a ponta do facão para as postas de carne. — É cavalo, vovô.  —  Se não está interessado em comprar o cachorro, então eu pago pra você destrinchar pra mim. Quanto me cobra? Depois vendo pra algum taqueiro. Ele ergueu a faca e a apontou para a frente, sem nenhuma ameaça, apenas indicando a saída do açougue. É uma das vantagens inegáveis de chegar a esta idade: a maioria das pessoas acaba ficando com pena dos velhinhos, mesmo quando não merecem. Dá vontade de virar serial killer .

 —  O senhor está bem mais bêbado do que parece  —  disse.  —  Se não sair agora mesmo, chamo a polícia. Saí e percorri na memória meus trajetos cotidianos para ver se me lembrava de algum outro açougue. Nada. Sentei num banco do Jardim de Epicuro para pensar, achando que devia tirar alguma conclusão do que acabara de acontecer. Como era possível que um exemplar de pelo menos trinta quilos, forte, saudável, bem alimentado, acabasse no lixão ou, pior ainda, enterrado? De repente me senti imensamente velho, da idade do mundo. O país tinha mudado, era outro, um lugar que eu não reconhecia: por isso os tacos tinham piorado tanto. Quando já ia me levantando para me arrastar de volta ao prédio, ouvi o grito:

 — Está aqui, patroa! Uma empregada de uniforme se agachou perto do arbusto onde jazia o cadáver do cachorro. Atrás de mim chegou uma caminhonete, cantando os pneus, uma dessas caminhonetes fabricadas  pelos gringos para alguma de suas infinitas guerras. As ruas estavam cheias de buracos do tamanho de trincheiras, mas mesmo assim era um exagero: o Iraque ficava muito longe. Um

 jovem casal desceu e correu para o parque, seguido por três crianças. A empregada voltou a gritar:

 —  Não! As crianças não! A mãe, ou aquela que eu imaginava ser a mãe, deu meia-volta e abraçou os filhos para impedir que avançassem. O homem foi até o cadáver do cachorro.

 —  Merda!  —  disse. E depois gritou:

 — Leva as crianças, leva pra longe daqui! De repente, rejuvenesci sessenta anos. Levantei e avancei com passo vigoroso, quase marcial, rumo à quitanda. Quase escutava dentro da cabeça os compassos do Hino à alegria e, sem dúvida, quebrei o recorde mundial de caminhada urbana para maiores de setenta anos. Encontrei Juliette borrifando os tomates e cobrindo-os com um plástico, para acelerar e aperfeiçoar sua putrefação. Gritei ainda na entrada:

 — Preciso te contar! Uma grande vitória pra Revolução!  — Calma, Bakunin. Vai uma cervejinha?  — Melhor uma tequila. Três tequilas depois, e graças ao relato da minha façanha, estive a um triz de convencê-la a subir para o meu apartamento. Falhei no último instante:

 — Vou só dar um pulinho na farmácia e depois venho te buscar. Eu a olhava fixo na boca, no lábio superior, grosso, que ao sorrir formava uma dobra abaixo do nariz: um segundo sorriso.

 — Por que você está me olhando desse jeito? —  perguntou.  — Por que seria? — respondi. O lábio se tensionou e o duplo sorriso desapareceu.

 — Melhor paramos por aqui — devolveu, com a suavidade que costumam ter as negativas sinceras. —   Missões mais importantes estão reservadas pra nós. Não vamos pôr a  perder a Revolução por causa de uma trepada.

 —  Não era o contrário,  Djuliét ?  — Como assim, o contrário?  — Que não vale a pena pôr a perder uma trepada por causa da Revolução.  — Você é mesmo bem palhaço. Voltei ao prédio e tive que me conformar com a companhia de Willem, que estava me esperando no hall, sentado no chão na frente da porta do elevador, atrás da roda da tertúlia.

 — O que você está fazendo aqui? Quem abriu o portão?  —  Forrram eles que abriram. Entramos no elevador e esperei que as portas se fechassem e que o aparelho começasse a subir para lhe perguntar:

 — O que eles te disseram?  — Me  fizerrram muitas perguntas.  — Quem? A Francesca?  — Sim, falou comigo em inglês.  — O que ela queria saber?  — Por que venho te ver.  — O que você disse?  — Que venho falar. Falar da palavra do Senhor. Que às vezes vemos televisão.  — Muito bem. Mas me conta, como ela fala?  — Hein?  — Como a Francesca fala o inglês?  — Como se estivesse ensinando uma criança.  — Igualzinho a quando ela fala em espanhol!  — Por que eles querrrem tanto saber o motivo de eu vir aqui?  — Devem achar que você é veado. Suas sobrancelhas chegaram às omoplatas.

 — É que eles leem romances demais — expliquei.

Todo mundo compareceu à reunião de moradores, como de praxe: eram realizadas no hall, e todos, exceto eu, passavam a vida ali mesmo. Dependendo da pauta, eu às vezes aparecia e às vezes não. Para dizer a verdade, ficava apenas o tempo exato para não incorrer numa falta que  permitisse a Francesca apresentar uma queixa à administração do edifício. Dessa vez resolvi comparecer porque o problema me afetava diretamente: o supermercado tinha trocado o entregador, que fazia mais ou menos um ano nos ajudava a carregar as compras, e o edifício em  peso considerava essa troca um desrespeito. Diziam que o novo funcionário se negava a fazer qualquer coisa além de deixar as sacolas da compra na porta dos apartamentos. Que o anterior sempre estava disposto a trocar uma lâmpada, a matar uma barata especialmente insidiosa, a mudar um móvel de lugar, a subir numa cadeira para pegar alguma coisa no alto de um armário. O novo entregador era arrogante e, em vez de ajudar, costumava soltar discursos do sindicato de entregadores da Cidade do México e alegar que nada daquilo que lhe pediam estava contemplado na descrição da sua função segundo o convênio coletivo de trabalho. Levava sempre uma cópia dobrada no bolso da calça, que volta e meia sacava para nos arengar. Também ficava ofendido porque não lhe dávamos gorjeta, ou porque a considerava insuficiente. Como se não bastasse, seu antecessor também era um comerciante clandestino de primeira categoria. Eu tinha comprado dele um forno de micro-ondas, um aparelho de DVD, uma cafeteira elétrica, um radinho com fones de ouvido e um telefone sem fio. E o mais importante: ele me abastecia de um uísque destilado em Tlalnepantla que custava trinta pesos o litro. Quando perguntei ao novo se  podia me arranjar daquele uísque, respondeu ofendido que ele era de Iztapalapa. Às furiosas queixas dos moradores, que comparavam o novo entregador com o antigo, o gerente do supermercado respondeu dizendo que logo nos acostumaríamos com a troca, como se a capacidade de adaptação tivesse se transformado, no modelo econômico vigente, numa forma empresarial da resignação. Então um morador do primeiro andar acusou o novo entregador de lhe roubar uma lata de chilis jalapenhos, e o copo da paciência transbordou. Os moradores redigiram um abaixo-assinado exigindo  a demissão do novo entregador e a imediata readmissão do antigo. A discussão sobre se a carta devia “exigir” ou “solicitar” levou

duas tardes inteiras, que eu, para falar a verdade, passei indo e vindo entre o hall e o boteco, entre o boteco e a quitanda, entre a quitanda e o hall, e depois tudo de novo. Juliette me dizia:

 —  Típico de intelectuais, querer consertar o mundo com cartinhas. Se

sequestrassem uma

das caixas, em meia hora recontratavam o entregador! O gerente do supermercado respondeu, no mesmo instante que lhe entregaram a carta, que não podia atender às nossas demandas, por mais que ele quisesse, porque o antigo entregador um dia simplesmente tinha abandonado o emprego. Como prova de sua boa-fé, deu o endereço do

antigo entregador e prometeu que, se o convencêssemos a voltar, desde que apresentasse algum atestado que justificasse sua ausência, ele o readmitiria na sua antiga função. Organizou-se uma expedição para visitá-lo: Francesca, na qualidade de síndica, e eu, na qualidade de cliente com urgência de ser reabastecido. Atravessamos a cidade de metrô, táxi, trem suburbano, ônibus, táxi de novo. Três horas e meia de viagem durante as quais Francesca me deu uma aula de hypokrisis aristotélica, depois de eu cair na besteira de lhe perguntar onde ela tinha aprendido a falar com aquela dicção; classificou cinquenta romances mexicanos dividindo-os entre urbanos e rurais; discorreu sobre o que chamou de “falhas do estruturalismo”, o que me deixou de péssimo humor lembrando de prédios que desabavam em terremotos, e terminou explicando, quando eu, para variar, já tinha me distraído, um modo de narrar denominado “estilo indireto livre”, momento esse em que eu já não soube mais se estávamos

falando de literatura ou de natação. Até que por fim chegamos à porta de um apartamento num conjunto habitacional de Tlalnepantla, que eu me pus a esmurrar desesperado. Quem abriu foi a mãe do entregador, enxugando as mãos num avental xadrez, embora  parecessem já estar secas. O apartamento era muito parecido com os nossos, inclusive nas  baratas: um quarto, uma pequena cozinha, um banheiro, um cômodo que servia de sala de estar e de jantar. Só que ali moravam quatro pessoas e não uma. Agora três: o pai, a mãe e o irmão mais novo do entregador. Agora três, porque o entregador tinha desaparecido. A mãe nos contou o que sabia, que um dia simplesmente não tinha voltado do trabalho. Uma barata apontou as antenas na cozinha: eu seria capaz de jurar que a conhecia do meu apartamento. Perguntamos à mulher se tinham dado queixa, o que a polícia disse. A mãe ficou olhando para uma folhinha na parede, de 2009, com fotos de cachorros e o logotipo vermelho da fábrica de ração onde minha irmã tinha trabalhado fazia mais de cinquenta anos. Tornou a enxugar as mãos no avental, embora estivessem secas, e disse, olhando para o cachorro no calendário:

 — Disseram que ele andava metido com drogas, que vendia droga. E desatou a chorar como se o filho tivesse sido acusado de assassinar mil cachorrinhos a  punhaladas. Francesca tentou consolá-la: disse que aquilo era o que a polícia sempre dizia quando uma pessoa desaparecia, para não ter que procurá-la. Que o entregador era um bom rapaz e que a prova disso era que nós tínhamos ido até lá para procurá-lo. Que no prédio todo mundo sentia sua falta, que tínhamos nos afeiçoado a ele. Parecia que estava falando de um cachorro. Fez uma pausa para que eu confirmasse o que ela dizia.

 — Muito — eu disse.  —  Quantos anos seu filho tinha?  —  perguntou Francesca. E imediatamente se corrigiu, piorando as coisas:

 — Quer dizer, quantos anos ele tem?  — Dezessete — respondeu a mãe.  — Parecia mais velho — disse Francesca.  — É,  parece mais velho — eu disse.  — A vida por aqui não é fácil — disse a mãe.

Estava pedindo desculpas por seu filho ter amadurecido mais rápido que o desejado, dando a entender, de passagem, que acreditava na versão da polícia e, ao mesmo tempo, justificando seus atos como inevitáveis. O irmão mais novo do entregador saiu do quarto, onde até então estava fechado. A mãe o apresentou, disse que tinha quinze anos, que estava cursando o ensino médio, que era estudioso, que sem dúvida iria para a universidade. Nessa hora vi minha chance, e não a deixaria escapar: pedi à mãe que me deixasse falar com ele a sós. Pisquei o olho esquerdo, para ver se a mãe e Francesca entendiam quais eram as minhas intenções. As supostas, evidentemente, não as verdadeiras.

 — Claro, claro — disse a mãe. Levantei e fui até a porta. O garoto me seguiu, obediente. Saímos do apartamento e nos afastamos alguns metros pelo corredor do prédio.

 — Você pode me vender? —  perguntei.  — Quanto? —  perguntou.  — Três litros.  — Litros? Quantos gramas, vovô?  — O que eu quero é uísque, garoto, e não me chame de vovô. Você pode me arranjar?  — Peraí — ele disse. Foi até o fim do corredor e bateu na última porta. Vi que ficou do lado de fora, esperando, depois voltou carregando uma sacola. Dei-lhe uma nota de cem pesos e ele me entregou as três garrafas.

 — Faltam vinte pesos — alegou.  — Teu irmão me vendia a trinta por garrafa.  — Eu vendo a quarenta. Dei os vinte pesos.

 — Você sabe o que aconteceu com teu irmão? —  perguntei.  — Estão dizendo que ele dançou.  — Quem está dizendo?  — O pessoal aqui da quebrada. Guardei as garrafas na mochila que tinha levado para isso.

 — Escute, não conte pra minha mãe —  pediu.  Não conte o quê?, pensei, que você sabe que teu irmão está morto ou que você vai pelo mesmo caminho?

 — Você poderia me abastecer no meu apartamento? —  perguntei.

 —  Imagine,

eu não vou até lá só pra ganhar dez pesos. Meu irmão tinha coração de

galinha. O gerente do supermercado demitiu o novo entregador por causa da acusação de ter roubado a lata de chili jalapenho e contratou um novo-novo entregador. Informado do que tinha acontecido com o anterior, o novo-novo entregador nos evitava e, quando conseguíamos catá-lo, só nos acompanhava depois de muito implorarmos. Acabou impondo uma condição: aproveitando-se das letras miúdas do convênio coletivo, que o entregador anterior não tinha lido, negou-se a cruzar o portão do prédio.

Willem estava determinado a exterminar as baratas. Um dia apareceu com um giz e traçou o contorno do apartamento e de cada um dos cômodos como se estivesse desenhando uma planta  por cima da realidade. A ideia era que as baratas não poderiam atravessar a linha, e assim ficariam do lado de fora.

 — E as que já estão dentro não vão poder sair? —  perguntei. Prometeu trazer outro veneno para aquelas que ficassem presas. As baratas, lógico, atravessavam a linha como se nada houvesse: desde quando elas reconheciam as fronteiras? Outro dia Willem borrifou a casa inteira com um tubo de inseticida. Nesse dia, enquanto o veneno agia, fomos tomar um café no restaurante chinês do outro lado da rua. Eu, uma cerveja,  para falar a verdade. Ganhamos biscoitinhos da sorte. O de Willem dizia: Você será recompensado por suas boas ações. ações. O meu: Quem procura acha acha..

 — Eu sabia! — disse Willem. Tanto estudar a Bíblia, para acabar interpretando tudo ao pé da letra. Então percebi que no chinês não havia baratas. Tentamos falar com o dono, com aquele que parecia ser o dono, e com os garçons. Impossível, só falavam chinês. Tentei levar um deles até o prédio para lhe mostrar uma barata e ver se assim me entendiam, mas como o agarrei pelo braço se assustaram e correram a se trancar na cozinha. Willem me disse:

 — Talvez se o senhor não bebesse tanto…  — Se eu não bebesse tanto, entenderia chinês? Jura?! assustarrria.  — Se o senhor não bebesse tanto, não os assustarrria. Güílen.  —  Não me venha com sermões, Güílen. Quando voltamos para o apartamento, as baratas passeavam felizes pelo teto. Um terceiro dia, Willem instalou armadilhas em todos os cantos da casa, umas caixinhas de plástico preto. Nunca entendi o método: as baratas iam levantar a caixinha e entrar embaixo? Também não funcionou, mas pelo menos foi intrigante. Bastou para me manter com a cabeça ocupada durante uma semana inteira. Igualmente misteriosa foi a história das tomadas que supostamente emanavam uma substância que espantaria os insetos. Igualmente ineficaz. Um pó amarelo para passar no rejunte do piso se revelou o pior dos fiascos: as baratas comiam o pó e saíam voando feito  bólidos. Sugeri a Willem que também experimentássemos o tal pó. Até que, fracasso vai, fracasso vem, numa quarta-feira à tarde Willem apareceu cabisbaixo:

 —  Acabarrram as ideias, Teodorrro — disse. Eu tinha uma: começamos a matar os bichos a livradas. estética. Ele, com a Bíblia. Eu, com a Teoria estética.

 Nossa vizinha da direita tinha arrumado um emprego e o horário de trabalho a impedia de  pegar a filha na saída do colégio, por isso pediu ajuda à minha mãe para trazê-la sã e salva até a  porta de casa. A vizinha v izinha era viúva, v iúva, e a garota, sua única filha, estudava estudav a à tarde. tar de. Eu ia à escola de manhã. A filha tinha catorze anos, quase quinze.

 — Mas ela não pode voltar pra casa sozinha? —  perguntou minha mãe.  — A senhora não sabe o calvário que é — explicou a vizinha. Eu sabia: pela rua se formavam filas para perseguir seu andar de longas pernas. A rua estava cheia de perigos, bastava abrir os olhos ao espetáculo canino para imaginar o que poderia acontecer com a garota. Filas de cachorros esperando pacientemente sua vez de cobrir uma cadelinha no cio. Ou não tão pacientemente assim, às vezes rebentavam ferozes arranca-rabos na fila. Grunhidos. Dentes. Lombos ensanguentados. Gravidez indesejada. Minha mãe disse a ela que podia contar conosco, ou melhor, comigo, e que eu aproveitaria  para levar Solovino para passear. A vizinha, radiante: não sabia que até então e ntão eu tinha sido um dos perseguidores mais contumazes. O nome da garota era Hilaria, apesar das muitas provas em contrário; por exemplo:

 — Por que te deram o nome de Hilaria? — eu perguntava.  — Adivinha — ela respondia. — Olha aqui como eu dou risada. E rosnava. Toda tarde eu esperava por ela na calçada em frente à escola, Hilaria atravessava a rua e a  primeira coisa que fazia era ir se olhar no espelho de uma loja de roupas, onde se maquiava, soltava o cabelo e arregaçava a saia até os joelhos. A mudança foi imediata: se ela provocava tumultos quando andava com a mãe, disfarçada de freira, agora parecia a procissão da Virgem de Guadalupe. O percurso tinha nove quadras, e levávamos vinte minutos para fazê-lo ao passo lento de Solovino, que ia urinando aqui e ali, fuçando o lixo nas sarjetas, vendo o que podia meter goela adentro. Minha mãe tinha enfiado na cabeça que, cansando o cachorro, ele causaria menos estragos. Quando a fórmula falhava, ela dizia que o cachorro estava histérico de cansaço. Mas o fato é que, pelo menos, enquanto o bicho ficava na rua, os estragos atingiam a propriedade alheia. Às vezes demorávamos mais, quando tínhamos que parar no caminho porque ele topava com uma cadela no cio. Não havia escapatória: das primeiras vezes ainda tentamos evitar a situação, e Solovino reagiu distribuindo dentadas. Conhecendo bem sua insensatez, éramos obrigados a esperar ao lado da fila. Eu olhava atrás de Hilaria, para a outra fila, a dos seus perseguidores. Até

que finalmente chegava a vez do nosso cachorro. Solovino tinha porte médio, alto para os  padrões da rua. Cobria as cadelinhas sem dificuldade, com eficácia. Hilaria assistia à exibição e me perguntava:

 — Ficou com tesão, Teo? Eu tentava disfarçar pondo a mão sobre a braguilha, para que não pudesse ver o que estava acontecendo embaixo, mas ela me dava um tapa no dorso e sorria mal-humorada, enquanto dizia:

 — Seu depravado. Dia vai, dia vem, eu aproveitava a rotina para realizar minha própria perseguição, armado do meu caderno:

 — Deixa eu te desenhar?  — Como?  — Quero fazer o teu retrato, sou artista.  —  Eu sei, todo mundo sabe. Dizem que você se saiu um inútil, coitada da tua mãe,

que  precisa tanto de você. Eu estava perguntando como você quer me desenhar, como me desenharia.

 — Um retrato bonito, nada de vanguardas.  —  Nua? Eu sentia a súbita ereção embaixo da braguilha, subindo, subindo, e me deixando sem resposta.

 — Ficou com tesão, Teo? Eu engolia em seco e me punha a imaginar suas longas pernas nuas e todo o resto que, na verdade, nem sequer podia imaginar, por falta de experiência.

 — Amanhã — ela prometia — , antes da minha mãe voltar.  — Um retrato leva vários dias pra ser feito.  — Eu sabia! Seu degenerado.  No dia seguinte, eu anunciava:

 — Tenho um caderno novo.  — E como você vai me desenhar? Eu ia perdendo a timidez, encorajado por suas provocações, ia me acostumando a raciocinar com muito sangue entre as pernas e pouco na cabeça.

 —  Primeiro vou ter que ficar olhando pra você por um bom tempo, pra me  preciso encontrar um estilo, não é só copiar tua figura.

 — Vai ficar me olhando por um bom tempo, é? De pernas abertas?  — Pode ser  — eu respondia, melando a calça.

concentrar,

 —  Eu sabia! Seu tarado. Hoje não posso, minha mãe volta mais cedo. Amanhã. Horas vão, horas vêm, longas como anos, chegava o dia seguinte.

 — Você tem gelo? — ela perguntava.  — Gelo? Pra quê?  — Sem gelo, não tem retrato.  — Por quê?  —  Como assim, por quê? Preciso do gelo pra passar no bico dos peitos, pra que

eles

fiquem bem durinhos. Embaixo da braguilha, minha ereção uivava.

 — Consegue o gelo. Amanhã. E amanhã, claro, nunca chegava. O que chegou, sim, foi o dia em que um dos perseguidores saiu do anonimato. Não era um dos perseguidores habituais, mas me pareceu vagamente conhecido, tinha certeza de ter visto a cara dele em algum lugar. Já estávamos em frente à porta de casa quando o sujeito gritou pedindo que o esperássemos. Era um homem maduro, gordo, que usava a calça na altura do peito. Literalmente: parecia que precisava apertar os sovacos para manter a calça no lugar. Demorou para chegar aonde estávamos, bufando. Tinha uma mancha de tinta no sapato esquerdo. Agachou-se com muito esforço para acariciar Solovino, que aproveitou  para roubar um pincel que ele levava no bolso do casaco e devorá-lo no ato. Quando o homem se levantou, embora a coleira do cachorro terminasse na minha mão, fez como se eu não existisse.

 — Qual o seu nome? —  perguntou para Hilaria.  — Marilín — respondeu ela, pondo o acento no último i. O sujeito perguntou se ela morava ali, apontando com o queixo para a entrada do cortiço. Ela disse que sim.

 — Quero falar com sua mãe — disse o homem. Ela disse que a mãe estava trabalhando, que ia chegar mais tarde.

 — Quanto ela vai demorar? —  perguntou.  — Uma hora, mais ou menos — respondeu Hilaria. Ele olhou em volta até descobrir um bar do outro lado da rua. Disse que iria tomar um café ali, apontando para o bar, de novo com o queixo, que quando a mãe dela chegasse lhe pedisse que o procurasse lá, que não esquecesse. Em seguida acrescentou:

 — Diga para sua mãe que Diego Rivera quer falar com ela.

Um pessoal da Sociedade Protetora dos Animais apareceu no prédio e ficou batendo de porta em porta, de baixo para cima e da esquerda para a direita, até chegar na minha, a penúltima. A essa altura, interrogatório vai, interrogatório vem, eu já era o autor intelectual de um crime. Eram dois inspetores: uma garota baixinha com o cabelo pela cintura e seios rotundos, e o chefe dela, que tinha a cabeça em forma de mamão. Isso não é invenção minha, foi coisa da Hipólita, que era de Veracruz e estava bem familiarizada com a fruta. Chegou até a precisar que se tratava de um mamão formosa, e Juliette, que por ali era o que havia de mais parecido com um botânico, confirmou o parecer: bastava colocar a fruta com a parte do cabo para baixo, fazendo as vezes de queixo. Tentei me defender argumentando que, se a morte do cachorro estava relacionada com a tertúlia, eu não participava dela. E mais: eu nem sequer lia romances.

 —  Não minta — disse o Cabeça de Mamão — , sei que até está escrevendo um.  — Eu não estou escrevendo um romance, quem foi que disse?  —  Todos os moradores, do 1-A até o 3-B. É assim que o identificam, não sabe?

Todo

mundo chama o senhor de “aquele que está escrevendo um romance”.

Eu já ia refletir sobre a transformação da mania de Francesca numa psicose coletiva, mas tive que desistir porque o Cabeça de Mamão não me dava trégua. Dizia que tinha conversado com um açougueiro do bairro e que a descrição que ele fez de um idoso que tentou lhe vender um cachorro coincidia com minha aparência. A mesma aparência, caso não bastasse, que foi descrita  pelo denunciante, o qual afirmava ter visto um idoso assobiando euforicamente o Hino à alegria no Jardim de Epicuro enquanto ele e sua família choravam a morte do cachorro. Tirou um papel de uma pasta abarrotada e anunciou:

 — Eis a denúncia. E procedeu à leitura:  —  Cito:  Moreno, mais de oitenta anos, mestiço, cabelos brancos desgrenhados,

estatura mediana, nariz tuberculoso, olhos castanhos, orelhas de camundongo, boca de nojo, gesto cínico, sem cicatrizes nem outros sinais característicos. Fez uma pausa e pronunciou com mais ênfase, como se a palavra estivesse sublinhada em vermelho:

 —  Bêbado.

 — Eu tenho setenta e oito anos! — aleguei em minha defesa.  —  Isso não importa  —  respondeu o Cabeça de Mamão.  —  O pessoal é meio

grosso

 pra calcular a idade. E não é por nada, mas o senhor está bem acabadão.

 — Além do mais, que história é essa de “nariz tuberculoso”? —  perguntei.  — De batata — disse o Cabeça de Mamão.  — Parece mais um nabo — disse a mocinha.  — “Tuberculoso” vem de tuberculose — corrigi.  —  Neste caso, vem de tubérculo — disse o Cabeça de Mamão.  —  Pois está errado. Como podem confiar na descrição feita por alguém que nem sabe usar os adjetivos direito? E a propósito, o nabo não é um tubérculo. O Cabeça de Mamão se virou para a mocinha e lhe dirigiu um olhar condescendente, desculpando seu erro. Era evidente que se considerava seu mestre, o responsável por ensiná-la a importunar.

 — Escritores — disse.  — Eu não sou escritor! —  protestei.  — Então como explica esses cadernos? Apontou com um dedo acusador para a prateleira ao lado da porta e continuou:

 —  Se não está escrevendo um romance, como alega, não terá inconveniente em

que eu

examine o conteúdo dos cadernos.

 — O senhor tem um mandado de busca? — devolvi.  — Eu sabia! — exclamou, ao mesmo tempo que se dava uma palmada de felicidade.  —  Pode-se saber do que estou sendo acusado? De ser escritor? Pois eu me declaro inocente! Então ele disse ter colhido um depoimento que me incriminava: Hipólita tinha dado com a língua nos dentes. Tirou outra folha de papel da pasta e a colocou diante da sua cabeça de mamão:

 —  Cito a senhora Hipólita, do 2-C, dois-pontos:

aquele que está escrevendo um romance  sugeriu que déssemos uma meia para o cachorro comer . Fim da citação. O método homicida coincide com o resultado da autópsia realizada no animal.

 —  Não sou eu, quantas vezes vou ter que repetir que não estou escrevendo um romance?  —  Cito a senhora Hipólita, do 2-C, dois-pontos: aquele que está escrevendo um romance mora no 3-C . Fim da citação. Pensei que sua declaração era uma vingança por não incluí-la no meu suposto romance ou por ter escrito falando do seu bigode. Depois fiquei sabendo que não era nem uma coisa nem outra:

Hipólita tinha fraturado o pulso direito ao virar uma página do Tempo perdido e estava tomando um analgésico que lhe soltava a língua (além de provocar alucinações, como ver mamões em lugar de cabeças).

 —  O senhor conhece a lei de maus-tratos a animais da Cidade do México?  —  ameaçoume o Cabeça de Mamão. Eu não disse nem sim nem não, calculando que devia existir uma lei de proteção ao idoso capaz de me livrar dessa. Se tinha uma coisa que a prefeitura da cidade adorava era justamente isto: bichos e velhinhos. Supus que os segundos ainda teríamos prioridade. Nessa hora tocaram o interfone. Era quarta-feira, era Willem. Falei para ele subir e anunciei:

 — Gostaria de convocar uma testemunha.  — Isto não é um julgamento — disse o Cabeça de Mamão.  — A testemunha invalidará a acusação — respondi. Esperamos. Willem demorou uma eternidade, para variar. Uma barata saiu da cozinha, suas antenas captaram a tensão do ambiente e ela voltou para o seu esconderijo. A mocinha se aproximou do quadro na parede e ficou um bom tempo contemplando a imagem, até dizer:

 — Foi o senhor que pintou?  —  Não, foi meu pai.  — É sua mãe? A esposa do seu pai, quero dizer.  — É, sim.  — Ela deve ter sido muito bonita. Olhei para a baixinha com atenção, dos pés à cabeça e da cabeça aos pés.

 — Como é mesmo seu nome? —  perguntei.  — Dorotea. Bem na hora em que o Cabeça de Mamão se preparava para repreender a garota por sua diplomacia de coração de manteiga, bateram à porta. Abri. Willem entrou, e o Cabeça de Mamão me olhou com ironia:

 — Que brincadeira é essa? Willem estava com seu uniforme de mórmon encharcado de suor, com a mochila preta nas costas, a eterna Bíblia na mão direita. Dorotea se aproximou para ler o crachá no peito dele: era tão baixinha, e ele tão alto, que os olhos dela batiam no coração do rapaz.

 — Muito prazer, Güílen — disse.  — O senhor é holandês? —  perguntou o Cabeça de Mamão.  — Sou de Utah — respondeu Willem.  — Gringo — resumiu o Cabeça de Mamão.

 — Atualmente, minha família…  —  Não é hora pra genealogias, Güílen — interrompi. Imediatamente, pedi que confirmasse que no dia da morte do cachorro ele estava comigo e que eu não tinha dado ordens, nem ideias, para sua eliminação.

 — Que dia errra? —  perguntou. A mocinha informou a data: o dia e o mês.

 —  Não, desculpe. Querrro dizer que dia da semana errra — explicou. A informação não constava na denúncia. Fomos consultar a folhinha que eu tinha na cozinha. A barata, deliciando-se com um grãozinho de açúcar. O calendário era de 2012, portanto devíamos acrescentar um dia. Localizamos a data: tinha caído numa segunda, portanto foi numa terça.

 — Então não estava — disse Willem. — Eu só venho aqui às quartas-feiras.  — Tem certeza? —  perguntei. — Certeza absoluta?  — E aos sábados — completou. O Cabeça de Mamão saiu da cozinha e se encaminhou para a porta do apartamento, com ar triunfante, como se, no fim, aquilo fosse mesmo um julgamento.

 — Calma lá! — gritei. — 2012 não foi ano bissexto? Voltamos ao calendário: de fato, fevereiro tinha vinte e nove dias. Isso não alterava em nada o cálculo, mas pelo menos semeava a confusão. A moça pegou seu celular e já ia começar a  procurar a data. Toquei seu antebraço com a mão trêmula (sou muito bom nisso). Ela ficou com dó de mim e guardou o aparelho. O Cabeça de Mamão me estendeu uma cópia da denúncia e uma intimação, para dali a duas semanas. Retirou-se arrastando atrás dele a angústia de Dorotea, que me olhava como se os maus-tratos a animais fossem castigados com apedrejamento, castração química e enforcamento, nessa ordem.

 — Que merda, Vílem! Por que você fez isso? — gritei assim que eles fecharam a  porta.  — Mentir é contra os mandamentos de Deus — respondeu.  — Deus não existe, rapaz. Você não está entendendo nada. Fui até a estante e peguei a Teoria estética. Por pouco não lhe atirei o livro na cabeça, mas o que eu ganharia com isso? O que eu devia ter feito era pedir emprestado um Tempo perdido. Aí sim o alemãozinho não ia viver para contar.

 —  Não quero te ver nunca mais  —  declarei, enquanto voltava a abrir a porta.  pegou a mochila e começou sua lenta peregrinação até a saída.

 — Escuta, antes de você sair, me diz uma coisa.  — Sim?

Ele

 — Eu tenho nariz de quê?  — Como?  —  Isso mesmo que você ouviu, com o que meu nariz se parece? Ficou me olhando fixamente sem se atrever a abrir a boca.

 — Fala logo.  — Com uma batata?  — Xô, fora daqui, chispa — ordenei. Saiu sem se queixar: nós dois sabíamos que no sábado ele estaria de volta. Abri uma cerveja e, quando me acalmei, comecei a ler a denúncia, e só então reparei no nome do denunciante. Desci feito um foguete destrambelhado para a quitanda, atropelei as cadeiras do hall e cheguei lá gritando:

 — Você não sabe quem quer me meter em cana! Juliette interrompeu o que estava fazendo, que era bater papo com Dorotea.

 —  Entra,

Teo  —  disse Juliette.  —  Deixa eu te apresentar minha neta. Esta é a

Dorotea.

 —  Já conheço —  respondi.  —  Trabalha pra polícia canina. Como é que foi te sair uma neta contrarrevolucionária?

 —  Isto não tem nada de contrarrevolucionário, é justamente o contrário  —  defendeu-se Dorotea.

 — Ah, jura?! A Revolução vai ser feita por cachorros?  —  Olha que é uma ideia, hein?  —  disse Juliette.  —  A cachorrada já tomou conta

da rua. Mas calma, Teo. A Dorotea é uma boa moça, só idealista demais. Afinal, é neta da sua avó.

 — Melhor eu ir embora, vó — disse Dorotea. — Volto outro dia.  — Mas se você nunca vem!  — Agora vou começar a vir. Pode acreditar. Abraçou Juliette com tanta ternura que até a perdoei por me perseguir.

 —  Mas escuta, filha  —  disse Juliette  — , não me manda mais esses teus amigos,

eles

só compram fiado.

 — Ah, vó, colabora com a causa, vai.  —  Eu não tenho tomates suficientes pra tantas causas. E aqui é preciso pagar, que é que vou viver? Terminaram o abraço, e, antes de ir embora, Dorotea me perguntou:

senão, do

 — Aquele rapaz é seu amigo?  — O mórmon?  — Ahã.  — Gostou dele? Quer que eu arme um encontro pra vocês? Sua longa cabeleira se eletrizou.

 —  Não, não, era só curiosidade, sempre tive curiosidade pelos missionários. Além do mais, fiquei impressionada com sua integridade.

 — Integridade?  — Por não concordar em mentir pra lhe dar um álibi.  —  Olha, pensando bem, vocês dariam mesmo

um bom casal: o traidor e a

contrarrevolucionária. Vou armar um encontro pra vocês.

 — Eu tenho namorado.  —  Como assim, tem namorado?!  —  interrompeu Juliette aos berros.  —  Foi pra

isso

que fizemos a Revolução Sexual?!

 — Agora eu vou mesmo, vó — disse Dorotea.  —  Escuta  —  eu lhe disse  — , não vá abusar do rapaz. Ele é dez anos mais novo do que aparenta, viu? Em idade mental, quero dizer. Saiu da quitanda, e Juliette foi para os fundos, de onde voltou com dois copos de cerveja.

 —  Você continua vendo o mórmon?  —  perguntou.  —  Desse jeito, ele vai acabar  te convertendo.

 —  Não se preocupe, estou vacinado.  — Então?  — Sou eu quem está convertendo o rapaz. Ele tem pouca experiência.  — Está com pena dele?  —  Nem que fosse um cachorrinho. Bebemos. Como a cerveja não estava lá muito gelada, a espuma deixou um bigode efêmero em Juliette.

 —  Não sabia que você tinha uma neta — comentei.  — Você nunca me perguntou. A gente leva a vida só na palhaçada. E você, tem netos?  —  Não.

 — Filhos?  — Também não.  — Você não disse que era viúvo?  — Ahã.  — Era mentira!  — Que diferença faz? A família é uma instituição burguesa!  — Vai me dizer que é veado.  — Imagina!  —  Não teria nada de errado, nesta quitanda respeitamos todas as crenças, até as anais. Está  pegando o mormonzinho?

 —  Não abusa,  Djuliét .  — Então?  — Então o quê?  — É viúvo imaginário?  —  Escuta, eu não vim aqui pra falar disso. Você quer que te conte o que não? Não sabe quem anda me denunciando!

aconteceu, ou

Morreu mais um poeta, e a tertúlia em peso atravessou a cidade para lhe dar o último adeus numa funerária (o poeta não tinha conseguido abrir as portas do palácio de Bellas Artes). Lá se foram todos, menos Hipólita, que encontrei sozinha no hall, sentada numa das cadeiras da tertúlia e acariciando com a mão esquerda um surradíssmo poemário do poeta, apoiado em seu regaço. A mão direita estava engessada.

 — Hoje sim eu retia tosgado de ir  — disse, suspirando. — Ele era da minha reta. O analgésico, além de lhe soltar a língua, a enrolava, fazendo com que trocasse a posição das letras.

 — Ele era de Veracruz?  — Era sim, de Córboda, como eu. Hipólita tinha três filhos que continuavam morando em Veracruz, de onde ela tinha fugido depois que o marido morreu e sobre seu cadáver brotaram bastardos feito cogumelos. Fui até ela e vi a capa do livro, tão fino que não serviria nem para matar pulgas: o desenho de três cachorros, furiosos; dois deles brigando, rolando pelo chão, e o terceiro latindo para um horizonte imaginário, que ficaria na lombada do livro. Hipólita os afagava como se tentasse acalmá-los, como se disso dependesse que a alma do poeta descansasse em paz.

 — As aulas de miolo de pão foram suspensas? —  perguntei.  —  Não, qor pê?  — Sua mão — disse.  — Ah, por isso. Estou tralhabando assim, com a mão serqueda. Quer ver?  Não esperou minha resposta e foi até o quarto de despejo. Voltou com uma caixa de sabão em  pó, de onde foi tirando as figurinhas com uma destreza desastrosa. Eram uns troços coloridos e disformes, pássaros abortados com violência, expulsos do ovo e atirados na frigideira quente antes de dar um pio. Eu sabia que eram passarinhos porque Hipólita e seus pupilos eram monotemáticos, do contrário nunca poderia nem imaginar que eram alguma coisa, ou que não eram nada.

 —  Faltam os lhaguinhos  —  desculpou-se.  —  Vou zafer quando tirar o sejo. Examinei uma maçaroca azul à luz da lâmpada do hall.

 —  Esse aí é um aluzãozinho  —  explicou.  —  É um saparinho muito comum em Veracruz. A arte do miolo de pão, que ao longo da história sempre foi furiosamente ingênua e figurativa, acabava de irromper atropeladamente no abstracionismo. É verdade que Hipólita havia pulado todas as etapas anteriores, e por isso sua contribuição, com toda certeza, seria totalmente incompreendida. Nem mesmo a arte, tida como o território da liberdade, está pronta  para aceitar a anomalia: o miolo de pão teria que passar, no mínimo, pelo impressionismo e pelo cubismo para que as figuras de Hipólita pudessem ser entendidas como uma evolução.

 —  O que são esses vermelhinhos?  —  perguntei, ao notar que todas as figuras

estavam

salpicadas de manchas vermelhas.

 — Isso? — disse, apontando para a barriga do suposto azulãozinho.  — Ahã.  — É sangue.  — Eles estão mortos? —  perguntei.  — Como vão estar tormos, se são de liomo de pão? — disse. — O que acha ledes? Com o maior cuidado, fui recolocando as figuras dentro da caixa de sabão, enquanto  procurava as palavras certas.

 — Acho que a senhora não deve parar de tomar seu analgésico.

Eu me matriculei em La Esmeralda às escondidas, para ter aulas de pintura. Minha irmã, que sempre foi mais prática e comia os mamões em vez de contemplá-los, foi fazer um curso de técnico comercial. De um jeito bem cruel, que só agora, quase sessenta anos depois, posso reconhecer, quem passaria a ser castigada daí em diante era minha mãe. Tudo indicava que minha irmã ia virar secretária. Isso e o comprimento de suas pernas horrorizavam minha mãe. Eu estava a caminho de repetir o erro do meu pai, que tanto a tirava do sério: confundir gosto com vocação. Como se fosse uma questão genética, um defeito físico ou uma doença incurável, eu estava convencido de ter herdado seu temperamento artístico. Frequentando La Esmeralda, logo descobri que o que realmente me interessava acontecia fora da escola, na vida boêmia. A turma se reunia nos arredores e, quando o contingente estava completo, partíamos para os bares do centro. Eu estava feliz da vida, tinha encontrado minha vocação, até que numa madrugada Solovino enfiou o focinho no bolso da calça que eu tinha largado ao lado da cama. No dia seguinte, o cachorro não queria saber de acordar, quase não respirava e, por mais que minha mãe o sacudisse, não reagia. À tarde ela o levou ao veterinário, que diagnosticou intoxicação por maconha. Foi um exame muito simples, bastava cheirar a boca do bicho, e minha mãe só não tinha descoberto do que se tratava porque não conhecia o cheiro da erva do diabo. Naquela noite, quando voltei para casa depois de assistir às aulas em La Esmeralda, minha mãe estava me esperando acordada, sentada na sala, para me comunicar o diagnóstico do veterinário. Era uma acusação direta, mas como eu vinha alegre, já bem alto, e como não pensava assumir a culpa, tentei reduzir o dramatismo do episódio:

 —  Impressionante  —  eu

disse.  —  Como será que o cachorro fez pra acender a

 bagana? Minha mãe só disse uma coisa:

 — Você me desacorçoa. Imagino que, em vez dessa frase rebuscada, ela poderia ter dito simplesmente que eu lhe  partia o coração, mas isso teria denotado uma debilidade do seu músculo torácico, como se ela tivesse um defeito que lhe impedisse suportar as desilusões e, portanto, o vazio no seu peito fosse em parte culpa dela. Em vez disso, foi desencavar um verbo que dava lugar a reverberações précolombianas: desacorçoar no sentido de arrancar o coração. Com isso, deixava claro que a culpa era toda minha. Minha mãe acabaria morrendo por causa do coração, que não é a mesma coisa que morrer do coração. Ela estava no Centro Médico Nacional quando uma parte do Hospital de Cardiologia desabou, em 19 de setembro de 1985. A essa altura estava com setenta e três anos, e na véspera o cardiologista de outro hospital lhe garantira que sua saúde era ótima, mas ela estava

convencida de que ia morrer. Dizia que ainda não estava pronta, que a possibilidade de reencontrar meu pai a apavorava (ele ainda não tinha morrido, mas ela não sabia). Quis porque quis ir ao Hospital de Cardiologia no dia seguinte para pedir uma segunda opinião. Como não tinha hora marcada, foi bem cedo para poder ser atendida: chegou antes das sete e dezenove. Teria se salvado e teria vivido mais alguns anos se tivesse dado ouvidos a Schönberg, que, claro, ela nunca leu: quem não procura não acha. Mas a morte é uma coisa que se procura, ou simplesmente se acha? Solovino acordou mais tarde e durante algumas horas se dedicou a observar as sombras que os objetos projetavam sobre as superfícies do mundo. Passou a tarde inteira seguindo uma formiga e estudando seus hábitos. Já eu passei a ser seguido por um enviado da minha mãe, um colega dos Correios que lhe devia um favor, porque minha mãe lhe dava cobertura quando ele faltava. O espião acabou descobrindo que eu ia a La Esmeralda e, para valorizar o favor e saldar suas dívidas, forneceu todo tipo de detalhes escandalosos, especialmente que meus colegas eram um bando de maltrapilhos, maconheiros, veados e comunistas. E que os professores eram seus mestres em tudo. Minha mãe me proibiu de voltar à escola e seus arredores, sob a ameaça de ficar órfão, com ela em vida. Em casa, voltamos a escutar as acusações que tantas vezes ela havia  jogado na cara do meu pai:  A arte não serve pra nada. Você vai morrer de fome. Nós não  podemos nos dar a esse luxo. Eu pensava: o luxo de ser artista, o luxo de morrer de fome ou o luxo de fazer algo inútil? E para coroar, a chantagem das chantagens: A arte é coisa pra filhinhos de papai. Eu lhe falava da minha suposta vocação e tentava rebater com exemplos, casos inventados de  pintores imaginários que tinham superado a miséria e gravado seu nome na posteridade com letras de ouro.

 —  Não me venha com histórias de artistas franceses — me interrompia. — Você Aí, quando ameacei sair de casa, mesmo que fosse para morar na rua, deixando claro que estava decidido a ser artista por mais que ela fosse contra, minha mãe convocou minha irmã e anunciou, com a solenidade das mentiras definitivas, aquelas que não têm volta e obrigam o mentiroso a ser fiel a elas até morrer, que sofria de artrite e que o médico a proibira de continuar trabalhando.

 —  Até aqui cheguei  —  disse, como se suas pilhas tivessem acabado  — , agora é

a vez

de vocês. A partir desse dia, minha mãe se dedicou a duas coisas: ir ao médico e cuidar dos seus cachorros. Minha irmã arranjou seu primeiro emprego como secretária, e eu não voltei a La Esmeralda. Minha aventura não durou nem um ano, mas pelo menos eu tinha aproveitado as aulas de figura humana para ver mulheres nuas. Com a desculpa de captar sua essência, eu tinha olhado para elas com tanta concentração, retendo na memória cada uma de suas dobras, e tinha me masturbado tanto e com tanto afinco que, nos momentos de esgotamento visual e carnal, me deparei com uma triste intuição: a suspeita de que talvez as mulheres não fossem um mistério tão maravilhoso assim, a ponto de subjugar a vida a elas. Já com as asas cortadas, fiz a coisa mais simples que podia fazer: pedi emprego para o meu tio na sua banca de tacos. Já que eu devia desistir da minha suposta autêntica vocação, aquele me  pareceu um emprego tão bom como qualquer outro, até melhor do que muitos, cujos sistemas de escravidão eram muito mal disfarçados. Se bem que, talvez, para ser bem honesto, eu achava

melhor ser taqueiro por causa da bronca que tinha pegado dos cachorros. A banca do meu tio ficava em La Candelaria de los Patos e abria à noite, portanto começávamos a trabalhar às cinco e meia. Eu picava cebola e coentro, assava as tortilhas, servia água de jamaica e orchata e dava o troco com uma bala de hortelã. Nos dias de semana, a banca fechava à meia-noite; nos finais de semana, à uma e meia. Fui me acostumando a passar horas e horas em pé, na lida, participando das brincadeiras com os fregueses. A única coisa que me incomodava, e nunca me conformei com ela, era o fedor nas mãos, nas minhas mãos de artista que agora fediam a uma mistura de cebola, coentro, hortelã e moedas e notas sujas. Taco vai, taco vem, fui levando a vida com paciência, até que numa madrugada fiz o numerinho da meia de náilon. As meias eram da minha irmã, que, de manhã, ao perceber que tinham mexido nas suas gavetas, ficou me olhando de um jeito estranho, até ver que Solovino tinha esticado as canelinhas. Então se aproximou e me disse:

 — Você até que demorou. Surpreendentemente, minha mãe não pediu a autópsia. Saiu para dar um passeio e voltou com um vira-lata que achou rondando perto do mercado. Ela o chamou assim mesmo, Mercado, que nem sequer era nome de cachorro. Quando minha irmã lhe disse isso, minha mãe se negou a  procurar outro, fazendo-se de desentendida. É outra coisa que ela começou a fazer nessa época, além de parar de trabalhar: fingir que não entendia e, às vezes, simplesmente, bancar a louca. Parecia ter descoberto que, agora que minha irmã e eu éramos adultos, ela podia mudar o jeito de nos manipular, trocando sua habitual intransigência, que era muito cansativa, por uma atitude avoada que lhe permitia ir transferindo o peso das responsabilidades, como quem não quer nada. Prometi à minha mãe que enterraria Solovino e levei o cadáver até uma banca de tacos que abria de manhã, ali perto de casa. Recebi cinco pesos pelo cachorro: o preço de quatro cervejas.  No dia seguinte, convidei minha mãe para comer tacos no café da manhã, para espantar a tristeza. Quando o taqueiro me viu chegar e pedir dois tacos de carne completos, ficou de cabelo em pé, de susto, talvez imaginando que eu o envolveria num ritual de bruxaria.

 —  Estão bons?  —  perguntei para minha mãe enquanto ela mastigava com afinco.

Fez que mais ou menos balançando a mão esquerda e, depois de engolir o bocado, cochichou ao meu ouvido, para não ofender o taqueiro:

 — A carne está meio borrachenta.

Eu ia ao restaurante chinês dia sim e o outro também, para tomar uma cerveja. Sempre levava o jornal e, às vezes, o caderno. Mas o que eu fazia na verdade era analisar a movimentação dos chineses, tentando descobrir seu segredo. Um dia os via salpicar água nos cantos do restaurante. Eu voltava para o apartamento e os imitava. As baratas aplaudiam com as antenas: hidratadas. Outro dia anotava no caderno as marcas dos produtos de limpeza que eles usavam, comprava os mesmos e os dava à moça que vinha duas vezes por semana para fazer a faxina, ditando uma série de rigorosas instruções: este aqui você aplica direto, este outro, diluído em água. Os cheiros mudavam, também mudava um pouco o brilho das superfícies. As baratas, como se nada. Coloquei plantas de plástico: as baratas as adotaram como resort. Cobri todas as lâmpadas com lanternas de papel, e tive que retirá-las na primeira noite: o barulho das patinhas passeando ali  por cima não me deixava dormir. Fui juntando os biscoitinhos da sorte numa caixa que eu guardava embaixo da cama. Achava que receber um vaticínio por dia seria excessivo, perigoso até. Às vezes, especialmente quando me desesperava e me sentia a ponto de entregar os pontos, partia um deles em busca de alguma  pista, que costumava funcionar como um afago na cabeça. Certas quartas-feiras, ou sábados, eu também levava o Willem, que imaginava as teorias mais estapafúrdias. Que era o cheiro dos chineses que espantava as baratas. Que eles as comiam fritas. Que a decoração era tão horrorosa que nem as baratas tinham coragem de entrar lá. Essa afirmação não era de todo absurda: o restaurante estava sempre vazio. Ele chegou até a me dar um daqueles gatos que não param de balançar a patinha. Um gato de louça, quero dizer. A estatueta acabou transformada em parque de diversões das baratas. Juliette ficou com pena de mim e disse que conhecia um camarada que sabia chinês, um maoista que tinha aprendido o mandarim no Peru.

 —  Vou pedir pra ele te ajudar  —  disse  — , mas você tem que me prometer que não vai lhe perguntar nada nem vai falar sobre ele com ninguém. Está na clandestinidade. Juliette organizou o encontro uma tarde na quitanda, para que eu explicasse a situação. O tal camarada era um rapazinho de vinte e três anos que apareceu com uma camiseta vermelha do Sendero Luminoso, imunda. Tinha o cabelo rasta e as pontas dos dedos manchadas de algo que  podia ser tinta, tabaco ou pólvora. Sua clandestinidade consistia em viver há quatro anos num acampamento do CAG  na Faculdade de Filosofia da UNAM. CAG  era a sigla do Conselho Alternativo de Greve. Eu compareci à reunião prevenido, munido da Teoria estética, por via das dúvidas, caso a coisa ficasse feia. Os olhos do rapaz foram direto para o meu livro:

 — Tsss, o vovô é chegado numa parada hardcore — disse. Depois que o pus a par das minhas necessidades, atravessamos a rua e ele foi sozinho até o fundo do restaurante para falar com os chineses. Eu fiquei esperando do lado de fora. Ele disse que era melhor assim: que os chineses adoram uma conspiração. Voltou em menos de dois minutos, trazendo estampada no rosto sua melhor imitação de indulgência, que era péssima.

 — Impossível — disse — , esses chineses são coreanos. Quis me cobrar duzentos pesos, e acabei lhe dando vinte. Voltou a olhar para a Teoria estética que latia na minha mão direita.

 —  Se o que pega é isso aí, posso lhe arranjar mais  —  garantiu.  —  Eu forneço  pra uma  biblioteca aqui perto, a biblioteca de um banco, o senhor conhece?

 — Você faz negócios com um banco?  —  São formas pós-modernas da extorsão, o que importa é botar o capital pra

funcionar a

favor da Revolução.

 — Roubando a universidade?  —  A verba da universidade vem do governo. É um crime moralmente bom ao

quadrado.

Interessa ou não? Baratinho, vinte pesos o livro.

 — Pra mim saem de graça, eu roubo dessa biblioteca.  —  Opa! Ladrão que rouba ladrão que rouba ladrão que rouba ladrão. Garantiu o  perdão infinito. Mas na biblioteca só tem o que tem, não dá pra escolher, eu lhe ofereço serviço exclusivo.

 — Então me arranja as  Notas de literatura.  — Tsss, mais hard que isso, só filmes  snuff .  — É pra dar de presente.  — Opa, se passar veneno no canto das páginas, é um presente perfeito. Eu consigo, sim. Apertou minha mão de um jeito estranho, e ficamos com os dedos enroscados. Perguntei como ele se chamava.

 — Mao — disse.  — Teu nome de verdade.  — Mao é meu nome de verdade. Como dizem por aí, vovô, nome é destino.  —  Não me chama de vovô. Eu não sou avô de ninguém, não tenho netos.  —  E quem disse que precisa ter netos pra ser avô? Não leia tanto Adorno, vai queimar os fusíveis.

Era aquela hora da tarde em que as pessoas se apressam antes do comércio fechar e que na rua Basilia Franco se caracterizava pela fila na padaria e pelas súplicas de Hipólita mendigando miolo de pão entre os clientes. Mao tinha se afastado caminhando de um jeito preguiçoso, ao ritmo de uma canção imaginária, tomando cuidado para não esbarrar nos afobados. Na esquina, Dorotea estava esperando por ele. Vi os dois se beijarem longamente e depois entrarem, abraçados, na sorveteria.

Willem reapareceu trazendo um DVD de presente, para pedir desculpas. Era um documentário sobre a vida e a obra de Juan O’Gorman.

 —  Por que você está me pedindo desculpas?  —  perguntei.  —  Por não ter sido

leal

comigo ou porque suas convicções são mais importantes que nossa amizade? Ficou pensando, confuso.

 —  Você não tinha do que me pedir desculpas  —  confortei-o  — , mas agradeço o  presente. Onde você comprou?

 —  No camelô.  —  Estão pirateando documentários de Juan O’Gorman? Aí está uma prova do  progresso do  país. O’Gorman é meu favorito.

 — Eu sei.  — Como é que você sabe?  —  Prestando atenção no que diz. Pra chegar ao Senhor é preciso aprender a

escutar o

 próximo. Tirei o disco da embalagem e fui até o aparelho que estava em cima da televisão.

 —  Escuta  —  eu disse  — , a garota da polícia canina me perguntou de você. Quer  que eu arranje um encontro? Se quiser, posso te emprestar o apartamento, só que você traz os lençóis. Ficou vermelho.

 — Sexo antes do casamento é pecado — disse.  — Jura?! Então casa com ela!  Na tela da tevê apareceu uma foto em branco e preto congelada: Juan O’Gorman com as duas

mãos apoiadas no peitoril do segundo andar do que parecia ser a Casa Azul. Na mão esquerda segurava um canudo; na direita, um charuto. Vestia uma jaqueta de camurça e calças de lã, o cabelo com brilhantina penteado para trás e no fundo dos óculos aquele olhar atormentado que já  prenunciava a tristeza que logo o invadiria, se é que já não a carregava. Willem percebeu meu fascínio:

 — Por que o senhor gosta tanto desses programas? —  perguntou.  —  Já te falei várias vezes, eu conheci todos eles, quer dizer, a maioria. Uns de  perto, outros de longe, mas os conheci, e podia ter sido um deles.

 — E o que aconteceu?  —  Ora, Güílen, o óbvio: não existe posteridade pra todos, a memória do mundo

não seria suficiente pra lembrar de todos nós, não haveria ruas suficientes pra nos homenagear, nem  parques pras nossas estátuas, nem cineastas pra filmar documentários, nem espaço pra túmulos na Rotatória das Pessoas Ilustres. A vida precisa selecionar. E nisso ela é implacável.

 — Deus sabe o que faz. A tevê começou a falar em arquitetura funcionalista.

 —  Deus

não existe, rapaz, é muito mais complicado do que isso: uma mistura de circunstâncias, talentos, acasos, contatos, e até genética! Se você não tem a combinação  premiada, acaba como taqueiro. E eu não fui exceção, ao contrário, fui a regra: quantos de nós que frequentávamos La Esmeralda chegamos a ser alguma coisa na vida? A minoria!

 — O que é La  Esmerrralda?  —  Uma escola de pintura. Por ela passaram todos os gênios da arte mexicana do

século XX, como professores ou como alunos. E também passamos os outros: bucha de canhão, recheio, figurantes, penetras, que não tínhamos a combinação certa para entrar na história da arte. Nós, que um dia teríamos que desistir das nossas aspirações, empurrados pelas circunstâncias ou pela aceitação dos nossos limites. Também havia aqueles que teimaram na mediocridade, que fizeram da arte uma profissão e se condenaram a uma vida de ridículos. E ainda havia os que não podiam fazer outra coisa senão continuar pintando, acontecesse o que acontecesse, e acabaram loucos, doentes, mortos na juventude, os mártires da arte. Desses eu conheci vários, desses as valas comuns estão cheias. Um deles assistiu a algumas aulas em La Esmeralda nos anos 30 e, quando eu estudava lá, em 1953, ainda aparecia de vez em quando nos arredores pra procurar os companheiros de farra. Como eu também gostava da boemia, acabamos fazendo amizade e viramos o terror dos botecos do centro. Uma vez ele me mostrou seus quadros, que eram assustadores, dilacerantes, muito bons. Talento não lhe faltava, tinha tanto ou mais do que qualquer um dos consagrados. E sabe o que aconteceu com ele? Acabou na indigência. Eu o reencontrei em 1960, na minha banca de tacos, em La Candelaria de los Patos, conhece?, ali no centro. Ele nem se lembrava de mim, estava totalmente fora do ar, ia lá pra pedir comida, e eu lhe dava tacos pra que não espantasse a freguesia. Um dia o acharam jogado na rua onde eu tinha a banca. Devia ter uns quarenta anos. Morreu na sarjeta feito um vira-lata.

 — Como ele se chamava?  —  Nem sei, todo mundo o conhecia por Feiticeiro. Nunca perguntei o nome dele e agora é impossível descobrir, foi tragado pela história. Ou melhor, pelo esquecimento.

 — Deus tem piedade dos esquecidos.  —  Não vai me deixar ver o filme?

Depois, quando afinal Willem foi embora, voltei o filme até localizar uma foto que eu tinha visto de relance, enquanto Willem se empenhava em desviar minha atenção com sua conversa mole. Era um retrato de Juan O’Gorman abraçado a uma mulher chamada Nina Masarov. Pausei

na foto e fiquei olhando para ela enquanto bebia uma cerveja, e mais uma, e mais outra. Embora se tratasse de um retrato de noivos, um postal que O’Gorman tin ha mandado da Europa para Frida Kahlo, era sem dúvida o retrato mais triste que eu já tinha visto na vida: ao tradicional olhar atormentado de O’Gorman se somava o ar resignado e ausente de sua noiva, que parecia

saber perfeitamente que aquilo não tinha futuro. Ou pior: que nada tinha futuro. Imaginei que ela devia ser de alguma superpotência da tristeza: de algum país centro-europeu, ou da Alemanha, da Polônia, da mãe Rússia. Eu olhava para aquele retrato pensando em Marilín e em todas as mulheres que podiam ter sido e nunca, nunca, foram. O’Gorman tinha razão: às vezes a vida é tão triste que a gente devia se matar três vezes. Eu tinha passado da conta na bebida. Abri o caderno e me pus a escrever tudo o que eu me lembrava da Marilín, o jeito como ela rosnava  para mim, o comprimento de suas pernas, seus cabelos, que ela não me deixava tocar, como nunca me deixou tocar em nada.  Naquela noite eu tive um sonho: estava dançando um bolero com Marilín e, justo quando ia lhe dizer alguma coisa, uma das besteiras que costumam dizer os apaixonados, sentia dois cutucões nas costas e quando me virava via o Feiticeiro com um sapato na mão direita, um sapatão enorme que ele levantava e me acertava na cabeça. Aí tudo ficava escuro e eu nem sentia o baque do meu corpo se estatelando no chão. Ao acordar, dentro do sonho, eu olhava para o Feiticeiro de baixo, ainda estirado no chão, mas já não estávamos no salão do baile, e sim num quarto. As paredes estavam cobertas de pinturas de pombas, de pombas mortas, de pombas amarradas, depenadas, ensanguentadas. Havia uma cama desarrumada, os lençóis enredados formando um bolo no meio, e pinturas e pincéis por toda parte. Era o Feiticeiro dos primeiros tempos, com a vitalidade exacerbada dos que não podem controlar o zigue-zague entre a euforia e a angústia, muito diferente do Feiticeiro raquítico e lunático do fim dos seus dias. Ele se aproximava, levantava um pé, ameaçando me pisar, abria a boca e dizia:

 — Que é que há, compadre? Este romance está ficando piegas demais.  — Isto não é um romance — eu retrucava.  —  Não diga! Pois parece.  — Como chegamos aqui?  — Isso importa?  — Estávamos no baile.  —  Estávamos, agora estamos aqui.  — Cadê a Marilín?  —  Marilín, Marilín… EU SOFRI MAIS DO QUE CRISTO! OUVIU? EU SOFRI MAIS DO QUE CRISTO! SE VOCÊ PENSA QUE VOU DEIXAR QUE VOCÊ ME META NUM LIVRECO ROMÂNTICO E DE AUTOAJUDA, ESTÁ MUITO, MAS MUITO ENGANADO MESMO!

 Nessa hora acordei, porque, po rque, além dos gritos gr itos do Feiticeiro dentro do sonho, sonho , fora, na vida real, senti uma pontada no fígado. Demorei tanto para voltar a dormir que memorizei o sonho. De manhã, silêncio tenso durante a descida do elevador. Na hora que o aparelho deu o tranco de chegada no térreo, Francesca começou a me corrigir:

 —  Marilyn não tem acento no “i”. E se escreve com ípsilon.

Apareceu um fiscal do departamento do Distrito Federal, junto com o líder dos ambulantes do centro. Eram seis horas da tarde, e meu tio ainda não tinha chegado. Eu estava plantado na esquina, esperando por ele. O fiscal me mostrou uma credencial, avisando, conforme entendi, que isso o autorizava a cometer abusos de diversa natureza. O outro tirou de uma capinha de  plástico um cartão imundo da Confederação Confeder ação Nacional de Organizações Populares, que qu e pelo jeito era um passaporte para qualquer lugar aonde ele resolvesse ir. Esse eu já tinha visto antes, era o sujeito que vinha cobrar a comissão. Era assim que meu tio o chamava: o cara da comissão. Os dois carregavam pastas abarrotadas de papéis, canetas atrás da orelha, clipes entre os botões da camisa: a fantasia completa de rábulas ambulantes.

 —  Você é o ajudante do Bigotes, não?  —  disse o cara da comissão, enquanto

enfiava o

cartão na capinha com uma delicadeza de antiquário. Bigotes era o apelido de taqueiro do meu tio, e também o nome da sua banca: Tacos  Don  Bigotes.  Bigotes. Eu disse que sim e que ele estava atrasado, que a essa hora a banca já devia estar montada e eu, picando cebola e coentro.

 — Você não ficou sabendo do que aconteceu? —  perguntou o fiscal. Balancei a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

 — O Bigotes bateu as botas — disse o cara da comissão. qu eria saber  como tinha  —  Como?  —  perguntei, de susto, mas eles interpretaram que eu queria sido.

 —  Acharam o corpo em La Alameda, com cinco facadas, duas delas fatais —  explicou o fiscal.

 —  Como?  —  voltei a dizer, outra vez de susto, e agora acharam que eu queria saber por quê.

 —  Parece que foi por causa de um “rabo de saia”  —  disse o fiscal, pondo as

aspas com

um tom de sarcasmo burocrático.

 — Um caso de rabo sem saia, melhor dizendo — disse o cara da comissão, rindo. Ergui as sobrancelhas o máximo que pude: meu instinto me dizia que era melhor fingir que eu não sabia de nada.

 — Você não sabia que o Bigotes era veado? —  perguntou o fiscal. Eu disse que não. Na verdade, voltei a dizer:

 — Como?  — E você? —  perguntou o cara da comissão.  — Eu o quê?  — Você também é veado? Eu disse que não. Que tinha namorada.

 —  Pois todo mundo acha que você é veado  —  continuou.  —  Todos os ajudantes

do Bigotes eram veados. Ele os pegava num cortiço da rua Luis Moya. Sabe do que estou falando?  Não está tentando nos enrolar? Expliquei que, no meu caso, o Bigotes só tinha me arranjado aquele emprego porque era meu tio. Os dois se olharam como que se consultando para saber se os pêsames cabiam nesse tipo de situação, e tratando-se de gente da nossa laia. Concluíram que não.

 — Mas você é veado ou não é? — insistiu o cara da comissão.  — Já falei que não, o Bigotes era meu tio.  — Quem sabe é genético — disse o fiscal.  — É ou não é? — voltou a perguntar o das comissões. Voltei a dizer que não.

 — Melhor  —   — disse o fiscal. — Assim você dura mais.  — Está interessado no negócio, rapaz? —  perguntou o cara da comissão.  —  Como?  —  eu disse, porque não entendi, mas eles acharam que eu queria saber como funcionava.

 —  A gente te deixa a esquina, e você nos dá dez por cento do que tirar  —   —  disse o comissão. —   Dez pra mim e dez pro compadre aqui.  —  Dez  — Dez pra Confederação e dez pro Departamento — corrigiu o fiscal.  — Mas eu não tenho banca — falei.

cara da

Então me explicaram que eles a alugavam, que fazia parte do acordo, que a banca já estava incluída nos dez por cento.

 —  Nos vinte — disse o cara da comissão.  — E então? —  perguntou o fiscal.  —  Não sei, preciso falar com a minha mãe.

Voltaram a se olhar, como se por um instante pensassem que tinham se enganado de pessoa, que tudo era um mal-entendido. Então me perguntaram quantos anos eu tinha. Eu disse que vinte e um.

 —  E vai perguntar pra tua mãe, rapaz?  —  disse o fiscal.  —  Você tem é que

ajudar tua

mãe, e a banca é um ótimo negócio, você vai ver.

 — O Bigotes era irmão dela, e ela ainda não sabe de nada — expliquei.  —  Pois então, mais um motivo  —  disse o fiscal.  —  Diz pra tua mãe que ele deixou de herança pra você, ela vai ficar contente.

 —  Tem que decidir agora  —  disse o cara da comissão.  —  Estamos te dando

uma

chance, a fila é grande pra pegar essa esquina. Eu sabia que era mesmo um bom negócio, pois uma das coisas que fazia quando ajudava meu tio era contar o dinheiro depois de fechar a banca. Acabei dizendo que sim, pensando que, se dissesse que não, ficaria sem nada, enquanto, se aceitasse e me arrependesse, depois poderia largar. O fiscal me entregou um cartão: no verso estava escrito um código de letras e números.

 —  Se aparecer algum colega do Departamento, você mostra esse cartão. Guarda  bem na tua carteira. Se você perder, não é ninguém, entendeu? Respondi que sim.

 —  De noite eu passo pra fazer as contas  —  disse o cara da comissão.  —  E é bom que estejam certas, não vá bancar o esperto. E não vá nos sair veado.

 — Mais uma coisa — disse o fiscal. Virou-se para a calçada em frente e acenou para um sujeito que estava encostado no muro. O tipo atravessou a rua sem olhar e um carro teve que frear bruscamente para não atropelá-lo. Quando o motorista pôs a cabeça pela janela para xingar o sujeito, este lhe mostrou uma pistola escondida embaixo da camisa, com o cano enfiado na calça. Ajeitou a camisa de volta e chegou do nosso lado. Tinha uma cicatriz que lhe atravessava o rosto e um palito de dentes no canto da  boca. Era estrondosamente feio, como a caricatura de um tirano desenhada por um artista atormentado pelos horrores da guerra, tão feio que chegava a ser deprimente, pois sugeria que a  beleza era um atributo moral.

 — Salve — disse.  — Salve — repeti. O cara da comissão apoiou a mão direita no ombro do sujeito e me informou:

 — O compadre aqui é quem vai te vender a carne.

Tocaram o interfone, e não era quarta nem sábado. A voz cantarolante de Mao anunciou:

 — Trouxe seu pedido.  — Pizza? Errou de apartamento.  — Venho do FID: Filósofos Ininteligíveis a Domicílio. Falei para ele subir, apertei o botão que libera a entrada e fiquei imaginando, durante os cinco minutos de praxe que o rapaz levaria para chegar, que acabaram sendo quase dez, o alvoroço que causaria no hall a combinação do seu cabelo rasta, seu andar dançarino e seu fedor. Por fim, Mao esmurrou a porta do meu apartamento como se estivesse teclando um telegrama: primeiro uma  batida isolada, seguida de várias batidinhas espaçadas e finalmente uma espécie de batucada. Quando abri com sobrancelhas de surpresa, ele se desculpou:

 — É o hábito. Mudei a posição das minhas sobrancelhas, para a interrogação.

 — São muitos anos na clandestinidade.  — Mas que demora! Você veio de joelhos da China?  —  Culpa do elevador, levou uma eternidade pra chegar, pensei até que eu ia  perder a queda do império ianque enquanto esperava. Mandei que entrasse, e ele começou a inspecionar o apartamento como se temesse que eu tivesse preparado uma cilada. Depois de constatar que ninguém além das baratas nos ouviria,  parou na frente do quadro pendurado na parede.

 — Da hora o monstro — afirmou.  — É minha mãe — eu disse.  — Ela era assim gordona? Estava de novo com a camiseta do Sendero Luminoso, e de longe exalava um fedor que confirmava ser a mesma peça. A clandestinidade sempre foi uma boa desculpa para os porcos. Fiquei lá pensando que eu só recebia a visita de militantes: rapazes de uniforme e mochila nas costas.

 —  Me diga uma coisa  —  disse ele  — , qual que é a desse bando aí embaixo? É

uma

seita?

 — Algo parecido, uma tertúlia literária.  — Caraca. E o senhor não participa?  — Imagina, eu não leio romances.  — O romance é uma invenção burguesa.  — Jura?! Tirou a mochila das costas e abriu o zíper para tirar dois livros, que me entregou. Fiquei desapontado ao ver que a edição de Notas de literatura estava organizada em vários volumes e que o que ele tinha trazido, o terceiro, era um livro muito fino, provavelmente nem me serviria.

 — E os outros volumes? —  perguntei.  — Os outros já rodaram, o único que sobrou foi esse aí. Depois fiquei observando a capa azul e vermelha do outro livro que ele me entregou: O sonho e o inframundo, de James Hillman.

 — E este aqui? —  perguntei.  — É um presente. O senhor anda meio desatualizado em hermetismos. Peguei a carteira e lhe dei os vinte pesos combinados, antes que, por causa de alguma reviravolta da história, incluindo o misterioso presente, eu tivesse que pagar mais.

 — Escuta, a Dorotea é tua namorada? —  perguntei.  — O senhor a conhece?  —  A Juliette nos apresentou. Além disso, tivemos um contratempo. Você sabe que tua namoradinha trabalha pro sistema?

 — Está fazendo confusão, vovô.  —  Não estou fazendo confusão, coisa nenhuma, eu te vi com ela outro dia. E já falei pra você não me chamar de vovô.

 — Mas a Dorotea não é isso que o senhor está imaginando.  — Ah, não? Vai me dizer que está infiltrada? Deu uma fungada, como se fungar significasse dizer que sim na linguagem cifrada da insurgência. Deu mais uma fungada, e deduzi que minha interpretação estava correta.

 — Para de inventar, estou falando sério.  —  Olhe, a única coisa que o senhor tem que saber é que a Dorotea já arquivou a denúncia.  Não precisa mais se preocupar com a parada.

 —  Ah, é? E quanto vai me custar essa brincadeira? Se estão pensando que eu vou  pagar,  podem tirar o cavalinho da chuva.

 —  Sussa, vovô, isso foi coisa da Dorotea, que é sangue-bom até demais. Foi um

favor

especial pro senhor, por ser amigo da vó dela.

 —  E pode-se saber que merda vocês ganham se infiltrando na Sociedade Protetora

dos

Animais?

 —  Aquilo lá é uma mina de informação. Já parou pra pensar em quem faz as denúncias? Só madame de nariz empinado que não tem mais o que fazer, mulher de empresário e de político, quem mais vai se preocupar com os bichinhos neste país? Pode rir, vovô, mas a Dorotea acaba de conseguir todos os dados de um dos filhos do homem mais rico do mundo.

 — Jura?!  — Tudo: endereço, telefones, e-mail.  — E pra que serve tudo isso?  —  Não posso dar detalhes, comprometeria a operação. Então foi minha vez de inspecionar em redor, como se temesse que no meu próprio apartamento uma terceira pessoa pudesse escutar aquela conversa e eu me visse envolvido numa  presepada qualquer, sem nem saber do que se tratava. Mudei de assunto atropeladamente:

 — O pessoal da tertúlia te perguntou alguma coisa?  — Tsss, eu não passava por um interrogatório desses desde a Cúpula do G-20.  — E o que eles te perguntaram?  — Pra quê que eu vinha aqui.  — E você, falou o quê?  — Que era um fornecedor.  — Ótimo. Devem estar imaginando que você é meu dealer .  — Ou que vim trazer o seu Viagra.  — Escuta, talvez você possa mesmo me ajudar.  — Quer que eu lhe arranje o azulzinho mágico?  —  Quero que você me ajude a conseguir um uísque que destilam em Tlalnepantla. Acabei lhe oferecendo uma cerveja e, mais tarde, três ou quatro cervejas depois, pedi que me esperasse e fui até o quarto, para tirar de baixo da cama a caixa com os biscoitos chineses.

 — Pega um — mandei.  — A superstição é uma invenção burguesa pra manipul…

 — Relaxa, Mao, é uma tradição do teu povo. Pegou um. Depois de abri-lo, comeu o biscoito e guardou o papelzinho no bolso da calça.

 — E então? —  perguntei.  — E então o quê?  — O que dizia?  —  Não vou falar. Se é pra seguir a tradição, que seja direito.  — Como é?  — Se eu falar, não vai se realizar.  —  Nem que fosse um desejo de aniversário. O que o papelzinho dizia? Enfiou a mão de volta no bolso da calça e, antes de pescar o papelzinho, puxou dois cabos e um carregador de celular. Finalmente, leu:

 — Só o futuro dá sentido ao passado.  — E era isso que não ia se realizar?  —  Não sabia que os chineses eram revisionistas. Tornou a guardar a profecia no bolso e, como se tivesse que me retribuir com uma dose de condescendência pelas cervejas e pelo biscoito, olhou nos cantos do meu apartamento e afirmou:

 — Tenho um remédio infalível contra as baratas. Quer que eu traga?  —  Nem vale a pena você se dar ao trabalho. Elas são invencíveis, mais poderosas do que o exército ianque.

 — Justamente. O senhor tem aí um aparelho de CD?

Marilín continuava no mesmo lugar onde eu a tinha visto da última vez, sentada num canto da minha memória, na beirada da minha cama das fantasias adolescentes; ela continuava com quinze anos e eu era um velho: as mulheres conhecem truques incríveis para combater os estragos do tempo. Eu me sentava ao lado dela, com suavidade, tentando disfarçar o que estava acontecendo embaixo da minha braguilha.

 — Você está igualzinha — eu dizia.  — Você não.  — Eu sei, estou velho.  — De que ano você vem?  — 2013.  —  Nossa! Mas e aí? No fim, você conseguiu ser artista?  — Você sabe que não.  — Eu sei? Como é que vou saber?  — Fomos vizinhos até 85.  — Sério?  — Você não sabia?  — Como é que eu podia saber, se estou em 1953? Olhei para ela pensando em repreendê-la e exigir que, uma vez na vida, parasse de caçoar de mim, mas aí eu percebia que ela estava com o uniforme do colégio.

 — Quer dizer, então, que não nos casamos — ela dizia, suspirando aliviada.  — Claro que não.  — E por que não?  — Pra mim você pergunta?!

Minha reação furiosa provocava suas gargalhadas, feliz em saber que seu eu futuro teria o desplante de me rejeitar como já fazia no passado.

 —  E o que foi que aconteceu em 85?  —  perguntava.  —  Você levou mais de

trinta

anos pra desistir de mim?

 —  Minha mãe e minha irmã morreram, e o senhorio aproveitou que o contrato de

aluguel estava no nome da minha mãe pra me botar no olho da rua. Tive que procurar outro lugar pra morar.

 — Sinto muito, não sabia que elas tinham falecido.  — Sabia, sim, falei com você naquele dia.  — Ou seja, que era tudo punheta mental.  — O quê?  — Casar comigo, ser artista.  — Qual o problema com a punheta?  — Tem razão, tinha me esquecido que você é um pervertido. Olha aí, já melou a calça.  Nessa hora, como se suas palavras produzissem a realidade, eu sentia a umidade se espalhar entre minhas pernas e, ao baixar os olhos para confirmar a evidência da ejaculação, de repente uma sombra surgia entre nós, uma sombra gigantesca que cobria tudo. Eu erguia os olhos e via o Feiticeiro levantando-se ameaçador. Quanto o Feiticeiro media? Vinte metros? Oitenta? Abria a  boca para falar, ou melhor, para gritar, e era como se estivesse se preparando para cuspir fogo.

 —  QUE FOI QUE EU TE DISSE? QUE FOI QUE EU TE DISSE? OLHA AÍ PRA ONDE VAI ESSE ROMANCE. EU SOFRI MAIS DO QUE CRISTO. EU SOFRI MAIS DO QUE CRISTO. EU SOFRI…

Acordei no meio da gritaria e abandonei imediatamente o calor da cama, tratando de não cair de novo no sonho. Estava tão alterado que tive até a impressão de escutar barulho na sala. Saí do quarto e acendi as luzes: as baratas, concentradas em suas ocupações. Servi um uísque para me acalmar e, como se se tratasse de um exorcismo, abri o caderno e me pus a escrever freneticamente: Diziam que María Izquierdo tinha medo dele. Que Juan O’Gorman gostava dos  seus quadros. Que Diego o olhava das alturas, montado na arrogância das escadas e andaimes dos seus murais. Que Lola Álvarez Bravo tinha tirado umas fotos dele que, misteriosamente,  saíram veladas. Que Frida não se lembrava dele. Ou fingia muito bem não se lembrar. Que José  Luis Cuevas não entendia se estava do lado dele ou contra ele. Diziam que era de um povoado onde as famílias ricas tinham praticado a endogamia com afinco até conquistar a deformidade, a imbecilidade e a loucura. Que tinha se casado duas vezes. Que era como um seminarista com o diabo no corpo. Diziam que tinha pegado varíola, sífilis, gonorreia, tuberculose, sarna,  parvovirose. Que repetia o tempo todo: eu sofri mais do que Cristo, eu sofri mais do que Cristo. Que se gabava de ser de uma família endinheirada que tinha perdido tudo na guerra dos Cristeros. Diziam que Agustín Lazo lhe disse que a cota de atormentados da história da arte já estava completa. Que depois disso nunca mais apareceu numa aula de La Esmeralda. Diziam que era esquizofrênico, que tinha passado por todos os manicômios da Cidade do México, que

tinha levado eletrochoques e sofrido uma lobotomia. Que ia aos vernissages para assustar as madames, como quem assusta crianças no parque. Diziam que seus quadros se pareciam com os de Giorgio de Chirico. Que pintava a paisagem do Apocalipse e que em suas naturezas-mortas as frutas faziam pensar em necrofilia. Diziam que não tinha viajado, que era um provinciano. Que tinha nascido em Lagos de Moreno.  Na manhã seguinte, ao sair do meu apartamento, mais sonado e ressaquento que de costume, Francesca, que espreitava o corredor pela sua porta entreaberta, gritou:

 — Até que enfim o protagonista apareceu!

Recebemos um telegrama: meu pai tinha sido tragado por uma onda do Pacífico. Minha mãe não quis saber de nada, foi se trancar no quarto, com Mercado. Entre os milhares de coisas que enlouqueciam aquele cachorro, uma eram as portas fechadas. Não parava de ganir, parecia até que minha mãe o tinha contratado como carpideira. Minha irmã e eu entramos num ônibus e, dezesseis horas depois, chegamos a Manzanillo. Na rodoviária, meu pai estava nos esperando. Para um morto, sua aparência era boa. Para um vivo, péssima. Ele nos levou para comer frutos do mar numa barraquinha na praia. O mar cheirava mal. Meu  pai pediu desculpas, como se isso também fosse culpa dele. Minha irmã e eu nos atracamos com o ceviche e os camarões, fazendo de conta que ele nunca tinha estado morto. Nem na realidade, nem no nosso pensamento. Enquanto isso, meu pai nos interrogava. Se estávamos estudando. Se trabalhávamos. As respostas o desapontaram.

 — Eu pensei que você fosse virar pintor  — me disse.  — Eu também — respondi — , cheguei a ter aulas em La Esmeralda.  — E o que aconteceu?  — Mamãe está com artrite. Tive que começar a trabalhar.  — Teus tacos são bons?  — Muito bons, sou famoso em todo o centro.  — Fico feliz em saber  — disse, com a frágil determinação das mentiras  piedosas. Depois me perguntou se eu tinha namorada, e eu lhe disse que dali a alguns meses ia me casar. Era a época do meu suposto noivado. Ele quis ver uma foto da minha noiva. Eu não tinha nenhuma comigo. Quis saber como ela se chamava. Eu disse que se chamava Marilín, mas minha irmã se intrometeu e disse que, na verdade, se chamava Hilaria. Meu pai também tentou interrogar a minha irmã, mas ela ficou calada, fingindo que estava muito ocupada contemplando o horizonte: ela tinha um caso com um homem casado. Na hora da sobremesa nos recomendou mangas em calda e por fim perguntou como nossa mãe estava. Fiz uma lista dos seus achaques. Acabamos a sobremesa e começou a entardecer, e todo o sangue foi trabalhar na barriga.  Nessa hora tive a impressão de que tínhamos mesmo passado a tarde comendo com um fantasma. Que nosso pai já tinha morrido e estávamos dentro de um sonho. Restava saber quem estava sonhando: minha mãe, eu ou minha irmã.

 — Você está doente? —  perguntei.  — Estou com câncer  — respondeu. —  Não contem pra sua mãe.  — Que você está vivo e com câncer, ou que não está morto? —  perguntou minha irmã. Meu pai bufou, como se ter câncer o autorizasse a responder às recriminações com suspiros e a desconversar.

 —  Quero pedir uma coisa pros dois  —  disse  — , foi por isso que os chamei aqui. Posso contar com vocês?

 —  Não — disse minha irmã.  — Depende — disse eu. Olhou para minha irmã pela última vez, antes de se concentrar em mim: eu sabia muito bem que usava o plural só para que seu pedido de ajuda tivesse um ar de carga compartilhada e eu não me abatesse sob o peso da responsabilidade.

 —  Quando eu morrer  —  disse  — , quero que vocês me cremem e misturem

minhas

cinzas com tinta, pra depois entregar a um artista. Definitivamente, não era um sonho nem meu pai estava morto: esse tipo de coisa, tão sem pé nem cabeça, só acontece na vida real.

 —  Ficou louco?  —  disse minha irmã.  —  Você não queria que a gente espalhasse tuas cinzas num museu? Isso já não era absurdo o bastante? Que foi, perdeu o último parafuso?

 — Ele não está louco — observei. — Só mudou de opinião. Meu pai desviou o olhar para os restos da sobremesa no prato, cansado de antemão por ter que dar uma explicação que era, ao mesmo tempo, uma confissão do seu fracasso.

 —  Tudo

o que queria fazer na vida  —  começou  —  era criar uma obra de arte avançada, e não consegui. Por falta de talento, por falta de imaginação e de técnica, e até de dinheiro. Dinheiro quer dizer tempo pra pintar, sossego, ninguém consegue ser artista tendo que trabalhar. Mas se eu não pude criar uma obra de arte realmente boa, o que posso fazer, sim, é virar uma, virar cinzas grudadas numa tela, em pó de tinta, em textura artística.

 — Vou ligar pro manicômio — disse minha irmã.  —  Filho  —  disse meu pai, excluindo minha irmã da conversa  — , quero ser  cremado e que minhas cinzas sejam entregues a Gunther Gerzso. Enfiou a mão direita no bolso da calça e tirou um papelzinho onde havia rabiscado o nome do  pintor.

 —  Não precisa — falei — , eu já conheço.  — Conhece? —  perguntou meu pai, pela primeira vez animado.  —  Quero dizer que eu sei quem ele é, não o conheço pessoalmente, mas talvez um

dos meus ex-colegas de La Esmeralda tenha contato com ele. E se não der com ele, também posso  pedir pro José Luis Cuevas.

 —  Não, não, não. O José Luis Cuevas é figurativo, tem que ser um pintor abstrato.

A ruptura era necessária para acabar de uma vez com a Escola, entende? Mas isso era só um passo intermediário. A tendência é o abstracionismo.

 — Serve o Vicente Rojo?  —  Serve, sim, o Vicente serve. Também pode ser o Felguérez. Mas tenta primeiro

com o

Gerzso.

 —  Tal pai, tal filho  —  interrompeu minha irmã.  —  Mamãe tem razão: são um  par de frustrados.  Na rodoviária, na hora de nos despedirmos, meu pai perguntou se tínhamos cachorro. Respondi que tínhamos um, sim.

 — Olho vivo — recomendou. — Todo cuidado é pouco.

E então, quando parecia impossível que acontecesse mais alguma coisa, tudo virou de pontacabeça, como se um engraçadinho tivesse mudado as coisas de lugar e de repente houvesse meias de náilon na geladeira, lâmpadas queimadas embaixo do travesseiro, as baratas lessem o Tempo  perdido, os mortos se cansassem de estar mortos e o passado já não fosse como antigamente.

 NOTAS DE LITERATURA

A notícia estava na primeira página de todos os jornais, o rádio não parava de repeti-la e era a reportagem principal dos telejornais daquele dia: o chão da esplanada do Monumento à Revolução estava rachando. Na internet circulavam milhares de piadas a respeito, fotomontagens

*

em que um dinossauro irrompia do subsolo. Juliette me mostrou as imagens no seu celular. Tínhamos demorado demais em profanar o túmulo de Madero, chegamos a pensar em ir agora, mas a área estava interditada. Dali a dois dias, os peritos convocados para encontrar uma explicação deram seu veredicto, e a história do dinossauro foi fichinha perto do que eles disseram: eram os bigodes dos revolucionários que não tinham parado de crescer e se enredaram na rede de esgoto. A perícia chegava à minúcia de apontar responsabilidades: a culpa era de Villa e de Cárdenas. Madero, Calles e Carranza, absolvidos. Transcrevi no caderno todas as conversas que tive com Juliette durante aqueles dias, todas as nossas especulações, só para fazer ciúmes em Francesca.

 —  Agora sim é que vem a Revolução  —  anunciava Juliette, radiante. —  Igualzinho ao que aconteceu em 85! Esse povo só acorda quando a terra se abre embaixo dos seus pés.

 —  Não delira,  Djuliét  —  eu rebatia  — , o máximo que vai acontecer é mudarem

o nome de algumas ruas, retirarem algumas estátuas. É só ver em quem estão botando a culpa! Se o Monumento cair, vão dizer que Pancho Villa e Lázaro Cárdenas eram terroristas.

 —  Desta vez o povo não vai se deixar manipular, Teo, você vai ver. Quando se

trata do subsolo, brotam nossos deuses da morte e da destruição, os monstros da terra. Pensa no que aconteceu em 85. Precisou um terremoto engolir uma parte da Cidade do

México e milhares de pessoas morrerem pra que o povo acordasse. É como agora. Estão acordando a Coatlicue, nossa mãe do subsolo! Você sabe de quem estou falando?

 — Claro que sei, é a mãe de Huitzilopochtli.  —  A mãe varredora, milagrosamente grávida, como a Virgem Maria, só que por  uma  bolinha de pena em vez de uma pomba inteira, e que forma com seu filho uma dualidade: a escuridão e a luz, o lixo e a fertilidade, a morte e a vida. Você sabe o que aconteceu da primeira vez que acharam a imagem da Coatlicue que agora está no Museu de Antropologia? Voltaram a enterrar! E não foi só porque se assustaram pensando que era uma imagem dos infernos. Isso foi em 1790, e a Igreja mandou que voltassem a esconder a estátua por medo da influência que ela  poderia ter sobre os jovens. Se não a enterrassem, pode ter certeza que a Coatlicue teria adiantado o início da Independência em vinte anos!

 — Que Coatlicue, que nada! Os jovens já não sabem nada de mitologia pré-colombiana.  —  Não faz mal, não precisam saber, a gente traz isso no sangue. Além do mais, quem disse que são os jovens que têm que fazer a Revolução? E se formos nós que temos que fazer a Revolução? Não temos nada a perder, já quase nem temos futuro.

 —  Mas temos muito passado. Não se iluda,  Djuliét , os únicos que não têm nada a  perder são os mortos.

 — Ou os mortos-vivos.  No elevador, não me lembro se subindo ou descendo, Francesca, furiosa, me acusava:

 —  Isso é plágio! Se não me engano, já apareceu num romance do García Márquez,

só que

lá não são os bigodes que não param de crescer, e sim uma cabeleira de mulher.

 —  Jura?! E também se considera plágio que a realidade comece a imitar um

romance? Então vá correndo avisar os peritos que soltaram esse relatório. Se forem processados por um  Nobel, a fatura vai ser alta!

* Apelido jocoso do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que domina a po lítica mexicana mexicana desde o final da década de 1920. (N. T.)

O Cabeça de Mamão apontou sua cabeça de mamão no boteco da esquina, onde eu estava tomando a sexta do dia. Mal passava das duas da tarde, mas, como era domingo, eu estava trabalhando de forma séria e compenetrada para ganhar o pão nosso de cada semana: a  petisqueira grátis. Ele caminhou até a mesa que eu ocupava sozinho, e quase pude vê-lo cuspir aquelas sementes pretas e gelatinosas dos mamões, embora fossem só perdigotos:

 — Disseram que eu podia encontrar o senhor aqui.  —  Disseram certo, você me acha aqui das nove às duas e das quatro às oito, de segunda a sexta, e nos fins de semana dou plantão. Você também trabalha aos domingos?

 —  Não vim a trabalho. Posso me sentar?  —  Posso dizer que não? O que vai beber? Uma tequila, um mescal? Ou prefere

algo mais

forte?

 — Mais forte?  — Soda cáustica, água sanitária, aguarrás…  — Uma cerveja. Gritei pedindo um litrão de Corona e me concentrei em entender o motivo pelo qual o Cabeça de Mamão andava por aí ostentando aquela exuberante combinação de cores, camiseta amarelolimão e bermudas laranja, um traje tropical, todo o oposto do terno cinza que ele usava ao me visitar como representante da polícia canina. Seria porque ele tinha consciência de que sua cabeça parecia um mamão?

 —  Você se perdeu da praia?  —  comentei.  —  Bonita a camiseta, ideal pra não ser notado por um franco-atirador.

 — Foi um presente. Achei que tinha entendido tudo: era sua mulher que, consciente ou inconscientemente, escolhia para ele uma roupa afim à natureza do seu cabeção.

 — Você ganhou da sua mulher? —  perguntei.  — Mais ou menos — respondeu.  —  Mais ou menos é uma namorada, uma amante?

 —  Mais ou menos é mais ou menos. Trouxeram a cerveja, servi dois copos, e o Cabeça de Mamão bebeu ruidosa e apressadamente, sem brindar, ansioso para ir logo ao assunto. Sem a formalidade do trabalho, que mascarava sua inépcia social, o que restava era um atropelamento gentil, a quarenta quilômetros por hora, nada mortal, mas bem desagradável.

 — Queria lhe pedir ajuda — disse.  — É mesmo?! Antes vamos brindar. Ergui meu copo de cerveja no centro da mesa.

 — Pelos cachorros! — exclamei.  — Escute, a denúncia foi arquivada — devolveu, acusando o golpe.  — Eu sei, mas foi coisa da Dorotea.  —  E foi um trâmite absolutamente ilegal, que viola todos os procedimentos da

Sociedade

Protetora dos Animais e que, se eu quiser, posso reverter a qualquer momento.

 — Está me ameaçando?  —  Não, estou lhe pedindo ajuda. Temi que o Cabeça de Mamão tivesse descoberto que Dorotea estava infiltrada na Sociedade Protetora dos Animais e que agora fosse me pedir, aproveitando-se da minha amizade com Juliette, que eu me infiltrasse no grupo que havia organizado a infiltração. Esse temor, que aflorou veloz como uma pontada paranoica no fígado, foi substituído pelo horror com a mesma rapidez, quando o Cabeça de Mamão anunciou:

 — Quero escrever um romance.  —  Jura?!  Jura?!

Olhei nos seus olhos, para as pupilas castanhas e foscas como as manchas de um mamão que começa a apodrecer, para constatar que, infelizmente, não havia neles o brilho da mentira ou da ironia.

 — É mais grave do que eu pensava — repliquei — , vamos precisar de algo mais forte. Levantei o braço direito para chamar a atenção do dono do boteco, como se faz na escola quando se pede permissão para ir ao banheiro, a vinte graus de inclinação de uma saudação fascista, e pedi com um grito:

 — Duas tequilas! Urgente! Tentei deixar de ver o mamão na cabeça de mamão do Cabeça de Mamão e me pus a analisar a lisura da casca do seu rosto, o cansaço no olhar, a natureza do gesto que ele formava com os cantos dos lábios, mais próximo da melancolia do que do sarcasmo, e muito longe do cinismo,  para calcular sua idade. Beirava os quarenta. Talvez tivesse trinta e nove, e essa história de escrever um romance não era mais do que uma manifestação, bastante folclórica, da crise da idade madura, particularmente grave no caso dos mamões.

 — Quantos anos você tem? —  perguntei.  — Trinta e nove. Bingo! Lembrei que, em meados dos 70, a tal crise tinha me pegado de jeito: aluguei um apartamento para onde nunca me mudei, pedi em casamento uma puta da rua Madero, achei que estava com câncer, comprei um monte de telas que depois ficaram abandonadas em cima de um guarda-roupa na casa da minha mãe, de onde acabei não me mudando, porque o rompante não teve o ímpeto suficiente para que eu chegasse a comprar as tintas e os pincéis, muito menos para que me pusesse a pintar ou parasse de acreditar que era o substituto do meu pai. Ou para acreditar de verdade e fazer o mesmo que ele tinha feito tantos anos antes: abandonar a família. A ebulição interior, pelo menos, foi o caldo de cultivo necessário para eu ter a inspiração da receita do “cachorro gringo”, o taco que me tornaria famoso nos anos 80. Mas uma coisa era inventar um taco e outra escrever um romance, portanto tratei logo de desencorajar o Cabeça de Mamão. Era melhor aniquilar um romance antes que virasse o delírio de um autor chinfrim do que nos condenar à tortura que seria, para ele, tentar escrever o livro, e para mim, ter que ler o que saísse.

 —  Escuta bem o que eu vou te dizer  —  comecei, usando meu melhor tom

didático, uma mistura de pena, condescendência e cansaço, além da superioridade inútil que os mais velhos teimamos em achar que temos sobre os jovens — , já te disse que não estou escrevendo romance nenhum, não ligue pro pessoal do prédio, é gente desocupada, que leva a vida na fofoca, e ainda por cima lê romances demais. Você ainda não pode entender porque é jovem, mas nós velhos inventamos coisas não por necessidade nem por estratégia, inventamos à toa, por pura diversão, inventamos pra enredar as coisas e depois ter que desenredar. Desenredar os enredos é muito divertido, e assim vamos passando a vida.

 —  Eu sei que o senhor está escrevendo um romance  —  replicou, como se os mamões não tivessem ouvidos. —  Está esquecendo que descobri a evidência no seu apartamento. Arqueei as sobrancelhas até o meio do batidíssimo caminho que vai da incompreensão ao mal-entendido. Como ele não se deu por achado, tive que traduzir o gesto numa pergunta:

 — Do que você está falando?  — Dos cadernos! Do que mais? Suspirei, ou soprei, ou bufei, ou um pouco disso tudo junto, antes de desmenti-lo.

 —  Aquilo não é um romance, são desenhos, anotações, coisas que me passam pela cabeça, que escrevo por puro tédio. Você é jovem, não tem por que escrever, a vida está aí fora, o mundo é teu.

 —  Se não fosse um romance, teria me deixado olhar o caderno  —  concluiu.

Virou a tequila que lhe restava no fundo do copo, ignorando meu discursinho de terapia e dando como certo o que já havia concluído de antemão: que eu estava mentindo.

 —  Deixe eu lhe contar a história que estou pensando em escrever  —  disse  — , é

um romance policial. Trata-se de um serial killer   de cachorros, na verdade, um exterminador que ganha dinheiro abastecendo todas as bancas de tacos do DF. É inspirado num caso real que acompanhei no trabalho, de um açougue que fornecia carne de cachorro pras taquerias.

 — Jura?!  —  O negócio funcionou por anos e anos, até que nós o descobrimos, mandamos o chefe do esquema pra cadeia e endurecemos a fiscalização sanitária dos açougues.

 — Agora entendo.  — O quê?  — Por que os tacos pioraram tanto nos últimos tempos. Ergueu o copo de cerveja e bebeu com força, fazendo barulho, tentando deixar claro que começava a perder a paciência.

 —  Por que o senhor insiste em bancar o engraçadinho?  —  disse.  —  Parece uma criança.

 — É só pra convencer você que não posso te ajudar a escrever um romance.  —  O senhor é a pessoa perfeita, não só porque sabe como se escreve um romance,

mas

também porque foi taqueiro.

 — E o que isso tem a ver?  — É que eu vou escrever o romance do ponto de vista de um taqueiro.  — Eu não fui taqueiro.  —  O senhor mesmo falou pro açougueiro! Está tudo registrado na

denúncia! Ou já esqueceu que tentou vender um cachorro pro açougueiro aqui da esquina? Por que acha que me  passaram sua denúncia? Eu sou especialista em tráfico de carne de cachorro. Era esse o tipo de coisa que me fazia sentir que eu tinha nascido no século passado, um século XX que cada vez mais ia adquirindo o aspecto de um século XIX; era essa a perplexidade que me fazia levantar a mão nos bares a intervalos cada vez mais curtos, que fazia com que meu uísque acabasse antes do previsto, o desconcerto que minava minhas economias e, dia após dia, ia encurtando minha vida.

 —  O que custa me ajudar a escrever o romance?  —  insistiu o Cabeça de Mamão em tom conciliador, notando minha confusão. —   Se o senhor me ajudar, prometo que a denúncia não vai lhe trazer nenhum problema. Se insistir em se recusar, vou apagar do sistema o atestado médico que Dorotea conseguiu, onde consta que o senhor é alcoólatra e sofre de senilidade. Se eu fizer isso, a denúncia volta a caminhar. A propósito, o senhor tem ideia da sanção que poderia sofrer?

 — A cadeira elétrica?

 — Uma multa bem alta. Então pronunciou uma cifra astronômica, uma quantidade de dinheiro com que eu viveria por três anos, se me contivesse, ou dois, se continuasse no ritmo atual. Dois ou três anos de vida a menos!

 —  Isso por baixo  —  acrescentou  — , e garanto que desta vez o senhor não se

safaria.

Por acaso reparou no nome do denunciante? É gente muito influente.

 —  Influente

a ponto de saber que a denúncia está arquivada e conseguir que seja

desarquivada?

 —  O segredo é lhes dar trela até se cansarem, e essa gente cansa logo. Mas se a denúncia reviver e voltar a avançar, não tenha dúvida: vão condená-lo sem piedade. Bebi a tequila de um gole para tentar esquecer a possibilidade de que vinte e cinco por cento das minhas economias fossem parar no bolso da família do homem mais rico do mundo. E o  pior: para ressarcir sua tristeza.

 — Por onde começamos? — disse o Cabeça de Mamão. Fiz um último esforço, desesperado:

 — Você não tem vergonha de extorquir um velho?  —  Quer que eu fique com pena? Sei muito bem que o senhor não quer a piedade

de

ninguém.

 —  Não me passe a mão na cabeça. Você pelo menos sabe escrever? É formado em quê?  — Veterinária.  — E quer escrever um romance?  — Já disse que não sei como se escreve um romance, mas tenho o mais importante. Arqueei as sobrancelhas num óbvio sinal de interrogação, sem abertura para o mal-entendido.

 — A experiência — disse.  — E por que não uma oficina literária? — sugeri.  —  Todas se reúnem em horários impossíveis pra mim. Eu só posso aos domingos, a esta hora.

 — E aos domingos você não tem que dar atenção à sua mulher e seus filhos?  — Já disse que não tenho família.  —  Você não disse coisa nenhuma, só soltou um misterioso mais ou menos. Vai me

dizer que é veado? Não teria nada de mau, poderia até ser um ponto a seu favor, o que mais tem hoje em dia é escritor veado.

 — Isso é preconceito.

 — Engano seu, escritor , é estatística. Ficou calado, como se dissesse: quem cala consente. Depois voltou ao único assunto que lhe interessava:

 — Começamos no próximo domingo?  — Que remédio?  — Preciso trazer alguma coisa?  — É uma oficina literária, não uma aula de artesanato.  — Mas alguma coisa eu preciso trazer, não? Sei lá, material pra trabalhar.  — Traz o fio da meada.  — Como?  — Traz o esboço do teu romance. Antes dele ir embora, três cervejas e duas tequilas depois, com a língua e a atitude mais soltas, a impertinência desatada e animado porque o Cabeça de Mamão ia pagando as rodadas, resolvi lhe perguntar:

 — Escuta, não me leva a mal, mas alguém já te disse que tua cabeça parece um mamão?  —  Está me confundindo com outra pessoa  —  respondeu divertido, com a camaradagem falsa e traiçoeira que só a tequila produz. —  Esse é meu irmão.  — Seu irmão?  — É, meu irmão mais velho, todo mundo chama ele de Mamãozão.

Minha irmã anunciou que tinha arranjado um novo emprego: agora seria secretária de uma fábrica de alimento para mascotes. Não era uma ironia da vida, apenas seu chefe que tinha mudado de empresa e a levava com ele, em reconhecimento de sua suposta eficiência. Minha mãe estava a ponto de dizer: essa eu não engulo. Antes que ela pudesse abrir a boca, minha irmã anunciou que teríamos um bom desconto na compra de ração. Minha mãe perguntou de quanto. Minha irmã respondeu que de cinquenta por cento. Minha mãe disse que continuava sendo muito caro, já que Mercado comia sobras, que eram de graça, segundo a filosofia de que, onde comem três, comem quatro e, com mais razão, onde comiam três, comiam três e um cachorro. Naquela época, final dos anos 50, a ração era uma novidade que causava espanto, de tão moderna: se um  punhado de croquetinhos podia suprir todas as necessidades do animal, era como se os cachorros, de repente, fossem mais evoluídos do que os humanos, que continuavam tendo que recorrer a diversos tipos de receitas complicadas. Minha irmã disse que o focinho do Mercado cheirava mal (era verdade) e que o fedor ia passar quando ele começasse a se alimentar de ração. Minha mãe não disse nada, porque aquele bafo pestilento realmente a impedira, até então, de se afeiçoar ao totó. Na verdade, ela disse alguma coisa, sim:

 — Vamos ver. O que queria dizer que ela aceitava o novo emprego da minha irmã, e que faria caso omisso de suas suspeitas para comprovar quais seriam os efeitos da ração sobre o cachorro. Minha irmã começou a trazer os sacos de alimento, um a cada duas semanas. Dito e feito: Mercado não apenas disse adeus a seu bafo de onça como ficou com o pelo sedoso e brilhante. Todos os vizinhos queriam acariciar o cachorro, que se tornou o exemplar mais bonito de toda a vizinhança. Minha mãe, eufórica. Até que um dia Mercado engasgou na hora do jantar. Não morreu por milagre. Por milagre e  porque minha mãe lhe enfiou os dedos até a traqueia, de onde puxou um papel, muito bem dobradinho. Era um bilhete obsceno para minha irmã, deixado dentro do saco de ração. Dizia, ainda me lembro, em meio a declarações de amor secreto: tuas pernas são mais longas que a estrada para Cuernavaca. E: tuas curvas mais sinuosas que a estrada para Puerto Vallarta. A firma onde minha irmã e seu chefe trabalhavam antes prestava serviços para o Ministério dos Transportes. Podia ter sido pior: se o condicionamento da imaginação pelo trabalho o levasse a usar metáforas do seu emprego atual. Tudo isso estava escrito com tinta vermelha num papel timbrado com o endereço da firma. Os cachorros eram agentes secretos da minha mãe. Ela se trancou no quarto com Mercado, que não parava de ganir, como se pressentisse a volta ao arroz, às omeletes endurecidas, ao feijão e aos ossinhos de costela. Depois ela saiu, como se

nada tivesse acontecido, e ninguém voltou a tocar no assunto. Não houve castigos, nem exigências, nem proibições, apenas o silêncio e uma novidade da vida adulta: a dissimulação. Já havia sofrimento demais na família para ainda por cima estragar o pelo do cachorro.

Andei folheando o livro de Hillman, lendo trechos aqui e ali, como uma galinha que bica ao acaso, e acabei encontrando, sem procurar, uma minhoca longa, longa, gorda, gorda, suculenta. Copiei a frase no caderno com toda a má intenção do mundo: Se as verdades são as ficções do racional, as ficções são as verdades do imaginal . A refrega hermenêutica tomou conta da tertúlia por uma semana. Quando estavam a ponto de chegar a um acordo sobre o que todos pensavam ter entendido, passei pelo hall, como por acaso, e soltei uma  bomba:

 —  Estão

confundindo o imaginal com o imaginário. São duas coisas diferentes. O imaginário é meramente reprodutivo, enquanto o imaginal tem uma função produtiva, como órgão de conhecimento. Eu tinha decorado esse trecho, que estava na página 59. Ficaram tão perplexos que voltaram ao seu Tempo perdido  e suspenderam a discussão por alguns dias, enquanto o estômago deles digeria a mixórdia. Depois voltaram à carga. Francesca foi a primeira a chegar a uma conclusão, que me jogou na cara dentro do elevador, uma manhã, enquanto descíamos:

 — Começo a desconfiar de que o senhor sofre de delirium tremens.  — Jura?!  — As ficções produtivas só ocorrem na alucinação. Talvez se o senhor não bebesse tanto…  —  Ah,  Frantchesca, como a senhora viveu pouco. Seu problema é esse. Talvez se não lesse tanto…

Acabei dando o livro de Hillman para Juliette, achando que afinava com suas teorias revolucionárias sobre o subsolo. Quando lhe entreguei o mimo, cerveja vai, cerveja vem, para combater sua cisma com meu presente, li uma frase que me fizera pensar nela: o inframundo é o estilo mitológico de descrever um cosmos psicológico.

 —  Ah, Teo, muito obrigada  —  disse ela  — , mas da próxima vez pelo menos me dá um livro escrito em cristão.

 — É a mesma coisa que você disse outro dia — repliquei.  — Ah, meu filho, mas quantas eu tinha bebido?

 —  Isto aqui explica o que aconteceu no terremoto de 85, e a rachadura no

Monumento à

Revolução.

 — Pois explica tão mal que você vai ter que me explicar a explicação.  —  O que diz é que existe uma conexão entre a mitologia e a psicologia das

massas. Que quando a terra se abre, os deuses mitológicos despertam dentro das pessoas e elas se revoltam. Exatamente a mesma coisa que você me falou outro dia!

 — Está me acusando de ser intelectual?  — Estou te acusando de ser inteligente. Em contrapartida, amolecida pelo meu gesto, mais que pelo presente ou pelo elogio, Juliette anunciou que me mostraria seus tesouros. Me convidou para que a acompanhasse ao seu quarto, nos fundos da quitanda. Eu lhe disse que antes daria um pulo na farmácia e que teríamos que esperar um tempinho para que a mágica fizesse efeito.

 — Você é mesmo um palhaço, Teo — soltou.  Nos fundos da quitanda havia um quintalzinho e no fundo do quintal ficava seu quarto, sem  janelas nem ventilação, como uma gruta. Dentro dele, a cama e todos os cacarecos que pudessem caber na imaginação e em nove metros quadrados. Juliette acendeu uma lâmpada de luz branca que ofuscou as baratas, e todas correram para se esconder atrás ou embaixo da tralha. De dentro de um baú ela tirou duas caixinhas de vidro, levíssimas. Dentro da primeira que ela me estendeu havia uma lâmina transparente, meio alaranjada, grudada no que deduzi que era a parte de baixo. Fiquei observando aquilo pelos quatro lados. Pelos seis: também por cima e por baixo. Não fazia a menor ideia do que era nem do que podia ser, se é que ainda era alguma coisa. Ou do que  poderia ter sido, se é que tinha deixado de ser. Nem mesmo do que poderia chegar a ser, caso estivesse crescendo, em evolução, mudando. E muito menos suspeitava por que estava dentro de uma caixinha de vidro e Juliette o considerava um tesouro. Eu disse que sairia para o quintal para examiná-la à luz do dia.

 —  Não precisa  —  disse ela  — , eu sei que você não sabe o que é. Não é uma

charada. É um tomate, um tomate de 1988. Esse tomate foi tocado pelo engenheiro Cárdenas em 16 de  julho de 1988. Lembra desse dia? O terremoto de 85 ia ter uma resposta mortífera: um terremoto social. Nesse dia ia começar a Revolução. Ia começar, mas o engenheiro mandou parar. Estávamos a um triz de tomar o Palácio Nacional, mas o engenheiro nos segurou. Falou que não, que não e que não. Será que o engenheiro foi prudente, como conta a história, ou será que ele tinha se acertado com o governo? Que é que você acha? Então me estendeu a outra caixinha, onde era mais fácil adivinhar que aquilo tinha sido um tomate, não só pela comparação com o anterior, mas também porque ainda não estava reduzido a uma lâmina: tinha sido um tomate num tempo mais recente.

 —  Este aqui é de 2006  —  disse.  —  Sabe quantos éramos no Zócalo nesse dia? Dizem que mais de um milhão. Você imagina que rumo as coisas teriam tomado se López Obrador dissesse as palavras certas? Faltou ele completar a frase “pro inferno as instituições”. As

multidões não podem ficar interpretando, as multidões, como os exércitos, precisam de ordens. Mais uma oportunidade perdida.

Devolvi as caixinhas de vidro a Juliette, e ela as devolveu ao baú, onde continuariam seu  processo de volatilização. Por um momento pensei que ela agora ia me mostrar seu verdadeiro tesouro: um arsenal.

 — Sabe por que eu guardo esses tomates? —  perguntou.  — Pra lembrar  — respondi.  — Pra não esquecer  — corrigiu. Descobri, pendurada na parede, uma foto numa moldurinha de madeira, velha mas lustrada. Era um recorte de jornal com uma foto de quatro rapazes: um deles falava com um microfone fininho na mão direita, dois o ladeavam com o olhar perdido e, atrás, um sujeito moreno, de  bigode, com uma mão no queixo e observando com atenção aquele que falava. A julgar pelo comprimento dos cabelos e das costeletas, pela armação dos óculos daquele que empunhava o microfone, pelo colarinho das camisas e pela gola de um paletó, calculei que devia ser uma foto dos anos 60.

 —  Agora você deve estar pensando que sou doida varrida —  disse Juliette.

Respondi que, na verdade, estava pensando que ela era uma sentimental. Fui até a parede para ler a legenda da foto: “Entrevista coletiva convocada na noite de ontem na Faculdade de Filosofia e Letras da Unam pelo Conselho Nacional de Greve”.

 —  O bigodudo é meu irmão  —  disse Juliette.  —  Sabe onde ele está agora? Adivinhei que ela diria que estava na clandestinidade. Ou tentei adivinhar, mas, claro, não formulei minha suposição em voz alta. Em vez disso, arqueei as sobrancelhas formando uma interrogação.

 — Adoraria saber  — explicou. — Faz trinta e cinco anos que ele está desaparecido. Voltei a olhar a foto com atenção. O irmão de Juliette era o único que parecia ter certeza de querer estar ali, os outros três já estavam saltando fora, pelo menos em espírito.

 — Você tem irmãos? —  perguntou.  — Tinha uma irmã, já morreu.  — Era mais velha que você?  — Um ano mais velha.  — Como foi que ela morreu?  —  No terremoto de 85. Com a minha mãe.  — Sério? Por que você nunca me contou?  — Eu não gosto de lembrar disso. Você também não tinha me falado do seu irmão.  — Onde foi que o tremor pegou as duas?  —  No Hospital de Cardiologia.

 — Você não está inventando, não é? —  perguntou.  — Imagina.  — Sei lá, como estamos tão perto da cama…  — A pena é uma péssima estratégia de sedução.  — Engano seu, costuma funcionar.  — Sério?  — Mas não comigo. Tomamos um mescal?  — Melhor dois. Deixamos o quarto rumo à quitanda, enquanto eu pensava que essa era a verdadeira clandestinidade: a dos mortos insepultos, a dos mortos-vivos, a dos que estão vivos só por um erro, uma falha da memória.

 Na tarde de certo dia que podia ser qualquer um daqueles dias que se sucediam sem compaixão, menos quarta-feira ou sábado, pois Willem não tinha vindo antes nem viria depois, um estrondo metálico à distância anunciou que dois carros tinham trombado na esquina. Saí para a sacada e, misturada à multidão bisbilhoteira, vi a tertúlia em peso dirigindo-se às pressas para o local do acidente. Virei a cerveja que me restava no copo e, carregando a Teoria estética  para criar mais confusão, desci com a intenção de me juntar ao mexerico.  No hall, os exemplares do Tempo perdido jaziam de barriga para cima, abandonados sobre as cadeiras, de pernas abertas. Abri a Teoria estética e a montei sobre um dos Tempos perdidos, de  bruços. Por ideias como essa é que eu às vezes me pegava pensando que talvez fosse mesmo  bom parar de beber, ou pelo menos reduzir a dose. Fui até o trono de Francesca, a cadeira que  presidia a roda, posicionada num ângulo que lhe permitia vigiar ao mesmo tempo o elevador e o  portão. Ergui o tijolo até colocá-lo ao alcance da minha vista castigada, acendi a miniluminária, olhei através da lupa e li: “Por mais fartos que estejamos das mulheres, por mais que a posse das

mais diversas nos pareça uma mesma coisa sabida de antemão, a conquista de uma mulher difícil

 —   ou

que assim pareça  —  será sempre um renovado prazer”. Os tertulianos eram uns  promíscuos hipócritas. Olhei em volta e achei uma caneta vermelha, com a qual sublinhei a  passagem. Na margem esquerda da página, e virando pela superior, escrevi: É isso mesmo! Vai me dar esse prazer, ou vai continuar bancando a difícil? Isto feito, alterei meus planos. Subi para o meu apartamento, servi um copo de cerveja e me instalei na sacada, repimpado na cadeira da Modelo, para aguardar o regresso dos tertulianos. Demoraram mais uns vinte minutos, o tempo que a ambulância levou para vir e recolher um dos motoristas, que tinha quebrado uma perna (isso eu soube mais tarde, da boca de Juliette). Quando eles iam passando justo embaixo da minha sacada, gritei:

 — Foram dar uma esticadinha nas hemorroidas? Assim que desapareceram do meu campo de visão, ao entrar no prédio, comecei a contar os segundos e não cheguei nem a trinta. Francesca reapareceu na calçada e, com a cara vermelha e iracunda virada para cima, gritou:

 — Safado!  — Esqueceu os mariachis!  — Pervertido!

 — Eu?! Não sou eu quem anda lendo livros indecentes!  — Isso é literatura!  — Ah, por que não me avisou?!  — Desça aqui para ler, se é tão macho!  —  Por que a senhora não sobe aqui?! Esqueça a literatura

e vamos nos dedicar à

experiência! Pôs a língua para fora, fez uma pernacchia e entrou de volta no prédio. Eu fui até a geladeira  para me servir mais uma cerveja, ufano e exultante, assobiando o Hino à alegria, quando me dei conta da catástrofe: tinha esquecido a  Teoria estética lá embaixo. Desci como um foguete histérico, retido pela lentidão exasperante do elevador, e irrompi no hall gritando:

 — Mãos ao alto! Ninguém se mexa! A obediência e passividade de Francesca, que, contrariando seu temperamento, ficou de boca fechada, não pressagiava nada de bom. Já era quase de noite, e a tertúlia, no escuro, com suas lampadinhas, parecia um grupo de mineiros explorando galerias subterrâneas. Localizei a cadeira onde eu lembrava, ou pensava lembrar, que tinha deixado a Teoria estética escarrapachada: era o lugar de Hipólita. Fui até lá, enquanto ela tirava os óculos timidamente, o gesso na mão direita acentuando sua habitual descoordenação, e os depositava no regaço com exagerada suavidade, como se fosse um passarinho que ela não quisesse machucar.

 — Boa tarde, Hipólita — eu disse.  —  Noite — respondeu — , soba noite. O efeito do analgésico estava evoluindo para transtornos linguísticos de maior criatividade.

 — Poderia me fazer o favor de devolver o livro que esqueci em cima do seu Tempo perdido? Dirigiu os olhos a Francesca, pedindo socorro, e com a mão esquerda espremeu os óculos nervosamente: quase matou o passarinho. Francesca permaneceu impávida, mas ordenou a Hipólita que resistisse, com um imperceptível movimento das sobrancelhas, imperceptível, quero dizer, para quem não é especialista em semiótica superciliar.

 —  Não sei do que está lafando — respondeu. A ditadora exercia um controle admirável sobre a tertúlia, capaz até de impor sua vontade por sobre a influência de uma droga poderosíssima. Observei em redor, o resto de carneiros da tertúlia, todos fingindo que não tinham nada com isso, e eles tinham razão: nunca tinham nada com nada. Só de marra, corri os olhos por baixo das cadeiras, por cima das caixas de correio,  pelos cantos do hall, sabendo de antemão que não encontraria nada.

 — Então é assim? — exclamei. — Se é guerra que vocês querem, então se  preparem. Francesca, que até esse momento se contivera, preparando seu plano satânico, respondeu:

 —  Hipólita já disse que não sabemos do que está falando. Se o senhor perdeu seu livro, não é problema nosso. Talvez se não bebesse tanto…

 — Se eu não bebesse tanto, vocês não seriam um bando de ladrões?  —  Se o senhor não bebesse tanto, não teria perdido seu livro. Procure, mas  procure bem. Quem não procura não acha.

Por não saber o que era o amor, eu o confundia com um elevador que subia e descia no meio das minhas pernas, acionado por controle remoto pela voz de Marilín nas nossas conversas. O longo trajeto de bonde, de Coyoacán até nosso cortiço, me condenava a uma de duas desgraças, uma mais humilhante que a outra: a dor testicular ou melar a calça.

 — O que você fez lá? — eu perguntava.  — Posei — ela respondia.  —  Nua?  — Que é que você acha? Vocês homens são todos iguais.  — Só isso? Não fez mais nada?  — Que mais eu poderia fazer? Que é que você anda imaginando?  — E ele, o que está fazendo? Uma pintura?  — Esboços, diz que são estudos pra um mural. O que acontecia dentro daquela casa, no ateliê, era um mistério para mim, embora a mãe de Marilín tivesse condicionado sua permissão a que eu acompanhasse a filha o tempo todo. Quando chegávamos, a porta da casa se abria e, invariavelmente, a mão genial de Diego Rivera, a mesma mão com que ele comandava a história da arte mexicana, me entregava um peso e me mandava voltar duas horas mais tarde. Eu ia zanzar por aí, mas dali a pouco voltava e me instalava na calçada em frente, tentando ver alguma coisa através de uma janela entreaberta, olhando o entra e sai de gente, um rio de personalidades que me levava a imaginar todo tipo de conspirações. Mais de uma vez minha presença estranha chamou a atenção da polícia, com a suspeita de que eu estivesse planejando alguma traquinagem. Até que finalmente, duas horas e meia mais tarde, três horas, nunca as duas horas prometidas, a porta se abria e Marilín cruzava a soleira que a devolvia à rua, ao bonde e às minhas perguntas:

 — O que você fez?  — Você sabe. Posei.  —  Nua?

 — Que é que você acha? Isso te dá tesão, Teo?  — Preferia que você não viesse.  —  Não diga! Olha só que machão! Se a Frida te ouvisse, capaz que te capava.  — Frida? Quem é Frida?  — Como assim, quem é Frida? É a mulher do Diego. Fazíamos o trajeto de volta, e quando afinal chegávamos à entrada do cortiço, eu lhe  perguntava:

 — Vai deixar que eu te desenhe?  — Amanhã. Comecei a levar comigo meu caderno de desenho, com a ilusão de um dia mostrá-lo a Diego e lhe pedir conselhos, mas também para matar o tempo desenhando, enquanto esperava. Quando a porta se abria, eu estendia o caderno a Diego, e a porta se fechava no meu nariz, no meu ridículo nariz de batata, quero dizer. Dia vai, dia vem, um dos frequentadores da casa, um que usava óculos tristes, uma tarde atravessou a rua e veio até onde eu estava.

 —  Não é a primeira vez que te vejo rondando a casa —  ele disse.  —  Pode-se

saber o

que faz aqui?

 — Desenho — respondi.  — Parado na esquina?  — Estou esperando uma amiga que está aí dentro.  — A Marilín é sua amiga?  — É, sim.  — Amiga ou namorada?  — Amiga. O senhor também é pintor? Seu rosto se contraiu num gesto que não queria dizer nem sim nem não, só que a pergunta era impertinente.

 — Sou o arquiteto da casa — respondeu.  — Mas também é pintor, não é? — insisti. Fez que sim com um movimento afirmativo dos seus óculos tristes.

 — O senhor poderia, por favor, olhar os meus desenhos e me dar algum conselho?  — Implorei. Entreguei-lhe o caderno, onde havia um croqui da casa e um monte de esboços do rosto de  perfil de Marilín, que eu desenhava no bonde, enquanto ela posava involuntariamente e sussurrava ao meu ouvido:

 — Você fica com tesão quando me desenha, Teo? E eu me melava. Talvez o homem de óculos tristes percebesse o que havia por trás daqueles retratos, minha triste perseguição sem fim nem esperança. Depois de folhear com atenção, ergueu a tristeza dos seus óculos, fechou o caderno e o devolveu.

 — Qual a sua idade? —  perguntou. Disse que ia fazer dezoito, mas na realidade acabava de completar dezessete.

 —  Já

teve aulas de desenho? Respondi que não.

 — Gosta da moça, hein? — comentou.  — Dá pra perceber nos desenhos? —  perguntei.  — Dá, sim, na quantidade de vezes que a desenhou.  — Mas o que acha deles?  — Acho que te falta técnica, mas isso se aprende. Vá a La Esmeralda.  — Que é isso?  — Uma escola de arte. Arrancou o caderno das minhas mãos, escolheu ao acaso uma página em branco e, apoiandoo contra a parede, escreveu com uma caneta que levava no bolso do casaco, um casaco muito grosso para o calor que fazia.

 — Onde fica a escola? —  perguntei.  —  No beco de La Esmeralda. Então me devolveu o caderno e se despediu, dizendo:

 —  Não fique por aqui, a polícia vai pensar que se trata de um ladrão, e alguns

amigos do Diego e da Frida vão ficar nervosos. Vá dar uma volta, senão, com esse seu nariz, ainda é capaz de também acabar como modelo, mas de uma natureza-morta. Fiquei olhando para ele enquanto se afastava com seu passo melancólico e, quando chegou a uma distância suficiente para que não pudesse ver como eu reagiria à sua anotação, li o que havia escrito em meu caderno: À administração da Escola Nacional de Pintura, Escultura e Gravura  La Esmeralda: Solicito por meio desta que matriculem o rapaz portador desta carta nas aulas de figura humana. Vamos ver se ele aprende a pegar o lápis ou pelo menos vê uma moça nua.  Atenciosamente: Juan O’Gorman.

Eu tinha ficado no apartamento, espiando pela sacada, até que finalmente vi a procissão de tertulianos, encabeçada por Francesca, sair do prédio a caminho do Jardim de Epicuro. Então deflagrei a operação para recuperar a Teoria estética. Atravessei os quatro metros de corredor que separavam a minha porta da de Francesca e introduzi na fresta meu cartão do Instituto Nacional da Senectude —   que desde o ano passado se chamava Instituto Nacional das Pessoas Adultas Maduras, mas eu não tinha trocado o documento. Levou só dois segundos para se ouvir o clique que anunciava a abertura da  porta: eu já tinha feito isso várias vezes, quando esquecia as chaves dentro de casa. Nessas ocasiões, ao me pegar mexendo assim na minha própria porta, Francesca me acusava:

 — Talvez se o senhor não bebesse tanto…  — Se eu não bebesse tanto, as fechaduras seriam invioláveis? Empurrei a porta, e no mesmo instante rebentou o estrondo do alarme, que, além de me  provocar uma taquicardia que duraria algumas horas, me obrigaria a pingar umas gotas de analgésico no ouvido. Fechei a porta e voltei ao meu apartamento a toda pressa. O alarme parou dois minutos depois, por conta própria. A única coisa que cheguei a ver, através da porta entreaberta, foi um cartaz do Octavio Paz pendurado na parede da sala.

Eu estava debatendo com Willem sobre a aparência dos mortos quando ressuscitassem no dia do Juízo Final: será que iam brotar do subsolo, cobertos de terra, meio podres, ou iam se materializar imaculados, translúcidos, imateriais, como presenças espirituais?

 —  Já pensou,

Güílen?  —  eu dizia.  —  Todas as pessoas que já morreram na história da humanidade, quantas você acha que são? Bilhões e bilhões, não é? Então imagina esse mundo de gente aparecendo sobre a terra, uns já puro esqueleto, outros com pedaços de carne podre  pendurados, cheios de vermes e, como se não bastasse, toda a nuvem de cinzas dos que foram cremados. A Bíblia é um livro muito truculento!

 —  Não é assim — replicava Willem — , não se deve ler a Bíblia ao pé da letra.  —  Olha o roto falando do rasgado! Claro que vai ser assim, é assim que aparece

nos

filmes, e, quando se trata de mortos-vivos, o cinema sempre se baseou na Bíblia.

 — O cinema muitas vezes é pecado.  — Jura?! Estávamos nisso, quando o interfone interrompeu nosso debate. Atendi e ouvi a voz de Mao:

 — Venho da DTB.  — A Delegação dos Tontos Baderneiros?  — A Dedetizadora Trotskista de Baratas.  — Pode começar pelo hall, está infestado de pragas literárias.  — Caraca.  — Sobe aí. Willem pegou sua mochila e guardou a Bíblia, que estava folheando para consultar passagens do Apocalipse, e me perguntou:

 — Quer que eu vá emborrra?  —  Não, fica aí — respondi. — É um amigo, você vai gostar dele. Ficamos a postos esperando a chegada de Mao, mas como, para variar, ele estava demorando demais, Willem voltou a pegar sua Bíblia e se pôs a caçar baratas. Desde o sequestro da Teoria

estética, as baratas vinham proliferando a olhos vistos: eu até tentava combatê-las com as Notas de literatura, mas o volume tinha apenas cento e vinte páginas e, por mais forte que eu batesse, só as atordoava. Finalmente Mao executou o código de acesso com seu punho contra a porta. Abri e vi que estava acompanhado de Dorotea. Arqueei as sobrancelhas com picardia:

 —  Quando vocês quiserem usar o meu apartamento —  informei  — , têm que me

avisar com antecedência e trazer seus próprios lençóis. Além disso, estou acompanhado. Mas entrem, acho que tua namorada queria mesmo ver meu amigo. Cruzaram a soleira e, assim que Mao detectou a presença de Willem, recuou em direção à  porta.

 — É uma cilada? —  perguntou.  — Exatamente — respondi. — Armada por Jesus Cristo.  —  Estou falando sério  —  insistiu Mao  — , todo mundo

sabe que os mórmons

trabalham pra CIA.

 —  Relaxa, Mao  —  devolvi.  —  Meu amigo aqui, o

Güílen, acha que espionar é

 pecado. Willem olhou para ele enquanto estatelava a Bíblia contra a parede para esmagar uma barata.  No rosto de Mao a expressão de sarcasmo se apagou, ao interpretar, erroneamente, que usar a  palavra de Deus como mata-bichos era um traço de heterodoxia que merecia, no mínimo, o  benefício da dúvida.

 —  Sim, espionar é pecado  —  confirmou Willem, enquanto limpava a capa da

Bíblia

com um pedaço de papel higiênico.

 —  E não é pecado usar a Bíblia pra esmagar baratas?  —  Mao perguntou.  —  Não é  pecado matar bichinhos?

 —  As

barrratas são insetos do demônio  —  disse Willem  — , e a palavra do Senhor é muito forte contra o demônio. Dorotea se aproximou dele e lhe estendeu a mão, sem saber se devia cumprimentá-lo com um  beijo. Willem se atrapalhou com as mãos ocupadas e acabou enfiando o papel higiênico com os restos da barata no bolso da calça.

 — Oi, Güílen, tudo bem? — disse Dorotea.  — Vocês se conhecem? — interrompeu Mao.  —  Já se encontraram outro dia  —  me intrometi  — , quando tua namorada veio

me

enquadrar e o meu amigo aqui aproveitou a deixa pra me trair. Em vez de se cumprimentarem com um beijo, ela titubeante e ele atrapalhado, ficaram com as mãos entrelaçadas, agitando-as ligeiramente para cima e para baixo.

 — Ei, amigou, não vai mais largar a mão dela, não? —  perguntou Mao.

 —  Calma, camarada  —  eu lhe disse  — , tanta Revolução e tanta clandestinidade  pra acabar se comportando como num filme do Pedro Infante? O que você tem aí pra mim? Vou avisando que o Güílen já tentou de tudo, e olha só o panorama: as baratas, felizes da vida.

 — Isto aqui é infalível, vovô.  —  Quantas vezes vou ter que repetir que não é pra você me chamar de vovô?

Tirou a mochila das costas, e só então Willem reparou na mensagem da eterna camiseta encardida de Mao.

 — Senderrro Luminoso é uma religião? —  perguntou.  — Uma seita — respondi. — Você nunca ouviu falar dos Illuminati?  — Cadê o aparelho de som? —  perguntou Mao. Estava com um CD pendurado no indicador da mão direita.

 — Que é isso? —  perguntei. — Sempre ouvi dizer que as baratas são surdas.  —  Este veneno é arquiconhecido pelos universitários dos anos 60 —  anunciou Mao — , foi descoberto por acaso. Sabe como é, os acampamentos de greve não são os lugares mais limpos do mundo. É o único remédio eficiente pra manter as baratas longe.

 — Mas o que é? Ruído branco?  — Muito pior. Trova cubana. Colocou o disco no aparelho, pôs o volume no máximo e, depois dos acordes de um violão, entrou a voz do cantor desafinando: Al final de este viaje en la vida quedarán nuestros cuerpos hinchados de ir a la muerte, al odio, al borde del mar .

 —  Ei, isso vai dar certo, mesmo!  —  gritei, tentando que minha voz superasse o estrondo da música. —  Eu vou me suicidar, e aí não vai ter mais quem se incomode com as baratas!  Na segunda estrofe da canção, as baratas da cozinha apontaram suas antenas e saíram em disparada, trombando contra as paredes. Em seguida, as baratas do quarto e as do banheiro se uniram a elas.

 —  Abre a porta!  —  Mao gritou para Dorotea, que estava mais perto da saída.

Dorotea obedeceu enquanto a canção continuava com a tortura: Somos prehistoria que tendrá el futuro,  somos los anales remotos del hombre. Centenas de baratas foram saindo de todos os cantos do apartamento, passavam zumbindo, esbarrando nos nossos sapatos para em seguida nos contornar à procura da saída. Dorotea montou seu minúsculo corpo na cadeira da Modelo, a longuíssima cabeleira eletrizada pelo nojo e pelas vibrações da música; Willem, mais lívido do que de costume, fantasmagórico, pôs-se a rezar de olhos fechados.

 —  Não falei?! — gabou-se Mao.  —  Como é que isso funciona?!  —  perguntei.  —  É alguma coisa no tom de voz cantor?! Ou um ruído de fundo nas gravações?!

do

 —  As baratas são contrarrevolucionárias!  —  respondeu Mao.  —  Todo mundo

sabe

que são armas biológicas da CIA!

 — E quem trabalha pra CIA?! — gritei. — Deus ou a evolução?!  — É verdade! — insistiu. — São usadas pra espalhar epidemias! Quando a música acabou, o apartamento estava livre dos insetos, Dorotea estava de novo com os pés no chão e Willen estava enxergando de novo.

 — Louvado seja Deus — disse Willem.  — Esse aí não foi Deus — esclareceu Mao — , foi Silvio Rodríguez. Fui até o aparelho e apertei o stop antes que a faixa seguinte começasse.

 — O que está fazendo?! — gritou Mao. — Quer que as baratas voltem?  —  Não me diga que, pra elas ficarem longe, essa música tem que tocar sem parar?  —  perguntei.  —  As baratas não têm memória  —  explicou.  —  Se a música parar, elas voltam

na

hora.

 —  Quer dizer que vou ter que deixar o disco tocando o dia inteiro nesse volume?  Nem que fosse Guantánamo.

 —  Em Guantánamo tocam

death metal , vovô. Deixe o disco tocar algum tempo, um pouco

 por dia. Apertei o play, voltou o som do violão e da voz, e nós voltamos à gritaria.

 —  Então vou precisar de algo mais forte!  —  gritei.  —  O que vocês vão beber?!

Willem

mugiu:

 — Melhor eu ir  emborrra! Ia lhe oferecer um copo d’água para que ficasse, mas Dorotea se adiantou, e mudei de ideia:

 — Vou aproveitar pra bater um papo com a minha vó! — disse.  Na porta, ao me despedir deles, pisquei um olho para Willem, que respondeu tingindo de vermelho sua cara de bicho de goiaba.

 —  Só queria lhe dizer que sinto muito  —  Dorotea me disse  — , não pensei que

as

coisas fossem se complicar.

 — Você diz por causa do Mamãozão? Sorriu, e vi que seu lábio superior, grosso, formava uma dobra embaixo do nariz: um segundo sorriso.

 — E você não pode fazer nada? —  perguntei.  —  Não trabalho mais lá, fui mandada embora — respondeu, condoída.

 —  Não se preocupe, está tudo sob controle.  —  Não reativaram a denúncia?  —  Não, mas estão exigindo uma compensação.  — Trabalho social?  — Mais ou menos isso. Atrás dos dois, na penumbra do corredor, as baratas se amontoavam nos cantos, formando morros.

 — Posso fazer alguma coisa pelo senhor? —  perguntou Dorotea.  — O quê, por exemplo? — respondi.  —  Não sei, ajudar com as compras, acompanhá-lo ao médico, o que o senhor  precisar. Não quer que troque a lâmpada aqui do corredor? Essa escuridão é um perigo, o senhor pode tropeçar. Olhei alternadamente para a altura a que chegava o cocuruto de Dorotea e para a posição da lâmpada, enternecido pela ousadia da sua oferta: nem subindo em duas cadeiras empilhadas a mocinha conseguiria a proeza.

 —  Eu já lhe

oferrreci várrrias vezes  —  intrometeu-se Willem, a quem bastaria esticar o

 braço para espalmar as mãos no teto — , mas ele não quer.

 — Isso é obrigação da administração do edifício — respondi aos dois. Era verdade: tão verdade como o fato de que a administração não ligava a mínima para as queixas de Francesca e que, no fundo, eu não me importava, pois achava que a penumbra era  propícia aos enredos e que me dava mais chances de me safar das importunações dos meus vizinhos.

 —  Melhor vocês irem de uma vez  —  disse a eles.  —  Estão deixando as baratas nervosas.

 —  Precisando qualquer coisa, é só avisar minha avó, que eu venho —  insistiu

Dorotea, antes de dar meia-volta e enfrentar o mar de baratas, protegida por Willem, que empunhava a Bíblia ameaçadora na mão direita. Fechei a porta e me dirigi a Mao, que já estava instalado na poltroninha, os dreadlocks vibrando ao ritmo dos acordes do violão.

 — O que você vai beber?! —  perguntei.  — Uma breja! — respondeu.  — Por falar nisso! Notícias de Tlalnepantla?!

 — Ainda não, mas os camaradas do CAT  já estão investigando o assunto!  — Do Centro de Analfabetos Terminais?!  — Do Coletivo Anarquista de Tlalnepantla! Abri um litrão de marca genérica, reservado para ocasiões como essa, e servi um copo. Em seguida peguei a última garrafa de uísque: dos três litros que eu tinha conseguido na minha heroica excursão, restava apenas um, pouco menos de um litro, para dizer a verdade. Estendi o copo para Mao e, quando ia me sentar na cadeira da Modelo, o interfone tocou. Olhei em volta  para ver se Willem ou Dorotea tinham esquecido alguma coisa. Não vi nada. A canção chegou ao fim e aproveitei os segundos entre uma faixa e outra para atender e escutar os gritos de Francesca:

 — Baixe o volume! Desliguei e fui até a sacada. Francesca, histérica, já estava plantada no meio da calçada.

 —  Não podemos nos concentrar com esse barulho! Faça o favor de baixar o volume!  — Faça o favor de me devolver o livro!  — Baixe o volume ou vou denunciá-lo à administração do edifício!  — Devolva meu livro ou vou denunciá-la ao Ministério Público!  Nesse momento, vi que Willem e Dorotea iam saindo do prédio, esperavam um carro passar, atravessavam a rua e entravam, juntos, no restaurante chinês. Abandonei a sacada antes que Mao se aproximasse. O interfone voltou a tocar uma, duas, infinitas vezes.

 — Cada vez estou gostando mais do teu remédio! — comentei com Mao.  — Que história é essa do livro?! Roubaram um livro do senhor?! —  perguntou.  —  Perdi uma pequena batalha com os xaropes da tertúlia, e agora eles têm minha Teoria estética como refém! A música persistia, néscia em sua versificação descompassada. Das baratas, nem as antenas. Então tive uma ideia.

 — Quer ganhar uma grana, Mao?!  — Quer que lhe arranje outra Teoria estética?! Baratinho, vinte pesos!  — Pra um maoista, você é bem capitalista, hein?!  — É preciso pôr o capital pra trabalhar a favor da Revolução! Eu lhe arranjo o livro, sim!  —  Não! Meu exemplar já estava sublinhado!  — Então?!  — Tenho um plano pra pegar o livro de volta!  — Às ordens, vovô!

Comecei a explicar a ideia à medida que ia surgindo na minha cabeça, sem parar para pensar, e Mao a aperfeiçoou demonstrando assombrosos dotes de estrategista militar. Eu lhe ofereci mais uma cerveja, e mais uma, e quando o plano ficou totalmente definido, combinamos a data e os honorários e desliguei o som para convocar as baratas de volta. Mao virou a cerveja que lhe restava no copo e disse que era melhor procurar por Dorotea. A caminho da saída, viu o exemplar de Notas de literatura na prateleira ao lado da porta.

 —  Não era pra dar de presente? —  perguntou.  —  Houve uma mudança de planos  —  respondi.  —  Por falar nisso, você pode

me

arranjar uns livros da biblioteca de Letras?

 — Demorou. O que o senhor precisa?  — Traz tudo o que você conseguir de teoria literária.  — Estruturalismo, hermenêutica, semiótica, teoria da recepção?  — O que tiver. Quanto mais louco, melhor.  Nesse momento esmurraram a porta e me preparei para enfrentar Francesca, mas era um rapaz que tinha sido assaltado e estava pedindo dinheiro para completar a passagem de ônibus até Pachuca. Pelo menos era isso que ele dizia, sua estratégia de marketing. Tinha se infiltrado no prédio enquanto Francesca esbravejava contra mim do meio da calçada. Era um tesouro vivo: se Francesca resolvesse mesmo convocar uma assembleia extraordinária para me advertir pelo volume da música, eu teria uma acusação para contra-atacar.

 — Mao, teu celular tem câmera?  — Todos os celulares têm câmera, vovô.  — Então tira uma foto do compadre aqui. Sorria, garoto.

É fato comprovado que o ser humano é capaz de se acostumar a qualquer coisa, até ao ultraje de dar uma oficina literária num boteco vagabundo. Domingo vai, domingo vem, acabei conseguindo que o Cabeça de Mamão pagasse a conta, o que, se eu pudesse esticar a oficina eternamente, me renderia cinquenta e dois dias de vida adicional por ano, um ano inteiro se conseguisse arrastar a oficina durante sete! Isso é o que se podia chamar, literalmente, ganhar a vida literariamente. Começávamos por volta do meio-dia e acabávamos, no mínimo, às cinco e meia. A cada semana eu preparava um arsenal suficiente para reavivar a polêmica e encompridar a sessão quanto quisesse, e assim usufruir da consequente bebida grátis. A falta de civismo dos estudantes de Letras me prestava uma enorme ajuda: todos os livros estavam pertinentemente sublinhados. Enquanto o Cabeça de Mamão lia em voz alta o esboço do seu romance, onde descrevia, com detalhes exasperantes, a cor do pelo, o tipo de olhar, o peso e a textura  dos grunhidos, entre outras minúcias, de cada um dos cachorros caçados por seu protagonista, que eram centenas, eu folheava os livros de teoria literária em busca de algum trecho que me servisse para interromper sua leitura e provocar uma discussão bizantina capaz de elevar o tom e exigir a passagem da cerveja para a tequila.

 —  Espera  —  eu dizia  — , a essa altura todos os leitores já pegaram no sono. Ou  pior, teus leitores já morreram, no século XIX! Deixa eu te dar uma má notícia: os mortos não compram livros. Presta atenção. E então eu lia: Uma análise da história literária mostra a intercalação de vazios como elementos da economia narrativa ou como produtores de tensão e suspense —  caracterizados na figura da elipse  —  moderna, de natureza fragmentária, na qual, com papel central na literatura segundo Wolfgang Iser, as formas narrativas de caráter segmentado permitem aumentar a inserção de vazios, de modo que os encaixes deixados em branco se transformem em uma irritação permanente da atividade representadora do leitor .

 —  Entendeu?  —  eu perguntava.  —  Você não precisa contar tudo, pode deixar  muitos vazios no seu romance.

 — Mas eu não quero irritar o leitor! — ele se queixava.  —  Por isso mesmo! Deixe bastantes vazios! Se dermos sorte, quem sabe o teu desaparece!

romance

Um dia, uma única frase das Notas de literatura serviu para empurrar o bate-boca até a hora do boteco fechar: Não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração.

 —  Ah, claro!  —  reagia o Cabeça de Mamão.  —  Desse jeito ninguém consegue

fazer nada! Se o senhor está querendo me desanimar, fazer com que eu desista de escrever o romance, então desfazemos o trato. Suspendemos a oficina, eu reativo a denúncia, e um abraço.

 —  Você não está entendendo  —  eu replicava.  —  O que essa frase quer dizer é

que se deve escrever, por mais que isso na realidade seja impossível. Ficou mais claro? O importante é tentar, como no esporte: o importante não é vencer, mas competir, entende? Vou precisar de algo mais forte. Dois mescais! —  eu gritava para o dono do  boteco, que se esfalfava atrás do balcão. À medida que a tarde avançava, os fregueses iam se juntando perto da nossa mesa para se divertir com as nossas discussões, a cada rodada mais virulentas:

 — O que o senhor está querendo é que eu fracasse — me acusava o Cabeça de Mamão — , que eu não escreva meu romance! Esta deve ser a pior oficina literária da história!  — Eu avisei que não sabia escrever romances!  — Então por que aceitou me ensinar?!  — Porque você me ameaçou!  — Sabotador!  — Chantagista!  — Velho caquético!  — Mamãozão! Apesar de tudo, no domingo seguinte, lá estávamos os dois na hora combinada: eu, para que ele me pagasse a bebida; ele, para que eu lesse algum fragmento teórico confuso que mantivesse sua cabeça ocupada ao longo da semana inteira e disfarçasse sua incapacidade de escrever um romance.

Ele apareceu uma noite na esquina, ficou algum tempo lá entre as sombras, me espiando, observando minha trabalheira de cortar a carne, esquentar as tortilhas, montar os pratos. Apesar do estado em que se encontrava, raquítico até o esqueleto, transtornado, eu o reconheci no ato. Tínhamos passado muitas noites juntos, intermináveis madrugadas de bagunça e esbórnia. Pelo  jeito estava morando na rua, sempre rodeado de uma deplorável matilha de vira-latas. Eram cachorros desnutridos, sarnentos, pulguentos. Cachorros com parvovirose, com chagas. Cachorros que tinham perdido qualquer chance de ser adotados, ou que nunca a tiveram. Cachorros que nem mesmo minha mãe, com todo o seu infinito amor pelos cães, teria coragem de levar para casa. Vendo aquele conjunto, era difícil saber quem estava em pior companhia, se ele ou os vira-latas. Fui até onde ele estava e lhe estendi um prato de tacos, antes que viesse espantar meus fregueses. Pelo jeito como me olhou, pude ver que não se lembrava de mim. Engoliu dois tacos vorazmente e dividiu o restante entre os cachorros, provocando um breve arranca-rabo cheio de grunhidos. Depois veio até a banca com o prato na mão, e eu pensei que ele queria mais tacos. A caridade é um prato sem fundo, está aí uma coisa que eu logo aprendi.

 — Te vendo um cachorro — disparou. Os comensais interromperam as mordidas por um instante para lhe dedicar um olhar de curiosidade e desprezo. Um dos clientes habituais me disse:

 — Que é isso? Recebendo fornecedores nesse horário? Os outros riram às gargalhadas da piada, e os cachorros responderam com grunhidos. Estendi o prato de volta para o Feiticeiro, com mais tacos, que ele ignorou.

 — Te vendo um cachorro — repetiu.  —  Você errou de banca, compadre  —  devolvi.  —  Onde

posso garantir que te compram o cachorro é logo ali, virando na esquina, na banca de pozole. De novo a freguesia riu da piada, era um público fácil, e o Feiticeiro se recolheu às sombras, onde ficou esperando, até que se cansou e foi embora. A cena começou a se repetir quase diariamente, com temporadas de recesso, em que ele sumia por completo. Quando não havia clientes por perto, eu batia papo com ele, tentando entender o fio do seu delírio. Falava como se o Apocalipse tivesse acontecido na semana passada. Dizia que queria me mostrar seus quadros, mas que tinham sido roubados. Outras vezes dizia que ele é que tinha penhorado as telas e me  pedia dinheiro para resgatá-las. Eu pensava que naquele estado não era possível que ele

continuasse pintando, que tudo devia fazer parte do seu delírio, a menos que tivesse abandonado a pintura figurativa e passado à abstrata. Continuava não se lembrando de mim, por mais que eu insistisse:

 —  Não lembra de mim? A gente se conheceu em La Esmeralda.  — Em La Esmeralda eu assisti três aulas, e não me ensinaram nada — ele respondia.  —  A gente se conheceu fora da escola, não lembra? Na esquina onde a turma se reunia pra cair na farra.

 — E o que você fazia em La Esmeralda? —  perguntava.  — Assistia às aulas.  — Do quê?  — De figura humana.  — Impossível, não existem taqueiros artistas. E uma vez após outra, e mais outra, ele voltava à carga:

 — Te vendo um cachorro. Quando estávamos sozinhos, eu lhe explicava:

 — Esses cachorros não servem, compadre.  — Que cachorros? — ele perguntava.  — Esses aí! — eu respondia, apontando para a triste matilha que o rodeava.  — Está louco? Estes são meus amigos. Eu te vendo outro cachorro.  — Outro? Qual?  — Ainda vou caçar, você compra? Pagamento adiantado.  Nossos encontros seguiam nessa linha, até que, noite vai, noite vem, um dos meus fregueses, que morava na mesma rua onde eu tinha a banca, lançou a triste piada:

 — Como é que você vai fazer agora que o teu fornecedor favorito morreu? —  perguntou.  — Como? —  perguntei, ainda sem entender.  —  Aquele maluco que queria te vender um cachorro. Ele morreu, você não ficou sabendo? Acharam o corpo dele largado na rua, a duas quadras daqui, rodeado de cachorros.

Os efeitos do sequestro da minha Teoria estética estavam sendo devastadores: as ligações dos operadores de telemarketing se estendiam torturantemente sem que eu conseguisse interrompêlas com outro recurso que não fosse desligar, o que só servia para que o telefone voltasse a tocar em seguida, e tudo recomeçasse do zero. Tentei usar os livros de teoria literária como sucedâneos, mas não dava certo. Não pelo conteúdo, que estava à altura em sua qualidade hermética, mas decerto porque, no fundo, eu desconfiava do seu poder: o fetichismo não admite substitutos. A crise chegou a tal nível que acabei recebendo pelo correio o cartão de fidelidade de uma loja de ferragens e uma caixa de amostras de xampu para participar de uma pesquisa de mercado. Juliette me dizia:

 —  Essas coisas só te acontecem porque você tem telefone. Pode-se saber pra quê que você quer uma linha telefônica? Isso só serve pra enriquecer o homem mais rico do mundo!

 — É pra qualquer emergência — respondi.  —  Que emergência, que nada! Na nossa idade, qualquer emergência é uma

fatalidade, e

que eu saiba os mortos não telefonam.

 —  Não abusa,  Djuliét .  —  Estou brincando! Que sensível… Mas então por que você não deixa o telefone

fora do

gancho?

 — E se me ligarem pra pedir o resgate da minha Teoria estética?  —  Não delira, Teo. Tanta bebedeira está te deixando de miolo mole.  — Agora você também vai me passar sermão?  — Imagina! Quer mais uma cerveja? Eu passava os dias num estado de ansiedade que me deixava completamente descontrolado:  perdia a conta dos tragos, gritava por qualquer besteira, brincava de matar baratas atirando objetos à distância, entrava e saía do apartamento e do prédio sem motivo nem destino. Willem notou a mudança e achou que por trás dela se ocultavam males de outra natureza:

 —  O senhor não anda usando drogas? —  perguntava. Eu o fuzilava com os olhos, mas ele insistia:

 — Se estiver usando drogas, precisa de ajuda.  — Você quer mesmo me ajudar? Então resgata a minha Teoria estética!  — É apenas um livro.  — Engano seu, Güílen, é muito mais do que um livro.  — Deus castiga o apego pelas coisas materrriais.  —  Jura?! E se as coisas materiais não forem materiais? Desde quando um livro é

uma coisa

material? E se fosse tua Bíblia que tivesse desaparecido, você estaria nessa calma?

 —  Se minha Bíblia

desaparrrecesse é porque devia ir pra mãos mais necessitadas. Eu arrranjarrria outra. Por que o senhor não compra outro livro igual?

 —  Porque isso seria uma rendição, e eu não vou me render. A Francesca tem que devolver

minha Teoria estética.

 — Por que vocês brigam?  —  Não estamos brigando.  —  Não?  —  Não.  — Então?  — É só um ritual de acasalamento. Willem ficou vermelho.

 —  Por

falar em acasalamento

 —  acrescentei  — ,

a Dorotea te mandou

.

lembranças

 — O senhor viu a  Dorrrotea?  —  Não, mas ela deixou um recado com a  Djuliét , e aqui estou eu bancando o

correio

elegante entre os dois pombinhos. Ele guardou a Bíblia na mochila como se fosse manchá-la só por pensar numa mulher enquanto a segurava. Olhou para o relógio de pulso enquanto a plaquinha com seu nome tremia sobre o bolso da camisa, do lado do coração.

 — Vocês se viram muitas vezes? —  perguntei.  — Algumas.  —  No chinês? Que lugar mais romântico.  — Também perto da universidade.

 — E aí?  — E aí o quê?  —  Como assim, o quê? Não me vai dizer que você atravessa a cidade pra lhe falar  da  palavra de Deus.

 — Falamos de muitas coisas, somos muito  parrrecidos.  — Os dois são igualmente ingênuos?  — Ela também é uma missionárrria, à sua maneirrra.  — Bom, pelo menos vocês vão se entender na posição coital.  — Como?  —  Nada, deixa pra lá. Mas cuidado com o namorado dela, hein? Tem treinamento

de

guerrilha. Como havia alguma coisa nessa história que não fechava, procurei Juliette na quitanda para  juntos analisarmos o estado do idílio.

 — Quero que você me prometa uma coisa,  Djuliét  —  pedi.  — Que nós dois sejamos os padrinhos do casamento? —  perguntou.  —  Que, se ficar sabendo que tudo isso é mais uma das operações

do Mao e seus

camaradas, você vai me avisar.

 — Uma operação? Imagina! Nem que a minha Dorotea fosse a Mata Hari.  —  O Mao é um poço de teorias da conspiração, só espero que ele não tenha inventado de usar a Dorotea pra se infiltrar entre os mórmons.

 — Mas por que essa preocupação toda? Nem que o Güílen fosse teu filho.  — Eu vou com a cara do rapaz, e ele precisa de um pouco de experiência.  — Você fica com tesão, Teo?  — O quê?!  —  Não se faça de bobo, você fica com tesão só de imaginar que o teu garoto vai comer a minha Dorotea. Seu pervertido.

Já eram quase três horas da tarde, e só tinham nos servido amendoim, batata frita e dois míseros taquinhos de feijão. O Cabeça de Mamão insistia em ler o rascunho do seu romance e  bebia numa lentidão absurda, atrapalhando o fluxo da petisqueira. Eu estava desmaiando de fome, por isso o interrompi quando ele respirou para marcar um ponto final e a passagem a outro  parágrafo.

 — Anda logo, que a petisqueira vai acabar  — ordenei.  — Como é? —  perguntou.  —  Termina logo essa cerveja pra pedirmos mais uma e reforçarem os petiscos.

Virou de

um gole o que restava no copo, e eu pedi mais um litrão, que veio acompanhado de dois sopes do tamanho de moedas de dez pesos.

 — Só isso? —  perguntei para o dono do boteco.  — Querem mais, é? — respondeu. — Hoje vocês estão muito devagar. Vinte minutos depois, continuávamos na mesma: eu, morrendo de fome; o Cabeça de Mamão, absorto nos meandros do seu romance.

 — Escuta, o que você comeu no café da manhã? — interrompi.  — Uma barbacoa — respondeu.  — Agora entendi.  — Entendeu o quê?  — Você está me sabotando. Vê se bebe mais rápido.  — Olhe o sabotador falando do rasgado. O senhor nem está me escutando.  — Claro que estou te escutando, que remédio?

 — Mas não me diz nada pra eu melhorar o romance.  — Porque está tudo errado!  — Tudo?! Me diga uma coisa que esteja errada, uminha!  —  Olha pro teu protagonista, pensa nas coisas que você diz dele pra justificar o fato dele matar cachorros. Que é solitário, alcoólatra e drogado, mulherengo, que tem uma cicatriz no rosto e anda com um palito de dentes no canto da boca, como um vilão de cinema. Você o descreve tão feio que parece querer provar que a maldade é um atributo físico.

 —  É baseado numa história real  —  alegou em sua defesa.  —  É um retrato do

dono do açougue que pegamos vendendo carne de cachorro. Tenho as fotos que tiraram dele quando o  prenderam.

 — E você acha que isso explica seu comportamento?  —  O que explica seu comportamento é que ele era um frustrado que nem queria

ser

açougueiro.

 —  Jura?! Deixa eu te contar um segredo: ninguém é açougueiro por vocação nem  por gosto, só que alguém tem que ser açougueiro, não é? Senão o mundo estaria cheio de poetas, artistas, atores de cinema e viajantes intrépidos, e os parques estariam cheios de estátuas em sua homenagem, mas não restaria ninguém pra fazer as coisas funcionarem. Alguém tem que caçar os bisontes, cuidar da lavoura, apertar os parafusos do mundo. Além disso, você está julgando seu personagem sem considerar um detalhe elementar.

 — Qual? —  perguntou.  —  Primeiro acaba com essa cerveja  —  ordenei, e me recostei na cadeira para

que ele

entendesse que eu só continuaria depois de terminada a garrafa. Obedeceu, pedi aos gritos outro litrão, e finalmente nos mandaram dois pratos de pozole.

 —  Você está se esquecendo do lugar onde o protagonista vive  —  expliquei  — , da cidade em que ele nasceu e cresceu. Você é do DF?

 —  Não, sou do interior  — respondeu.  —  Eu sabia! Você não entende este lugar. Lá na tua cidadezinha, quem mata um

cachorro é chamado de mata-cachorros, não é? Pois fique sabendo que aqui os mata-cachorros são chamados de sobreviventes.

 —  Na verdade, lá na minha cidade são chamados de cínicos.  —  E aqui os tipos como você são chamados de provincianos. Será que você não

entende? Os cachorros não importam. Não importa que os cachorros sejam cachorros. São cachorros  porque sim, mas poderiam ser qualquer outra coisa que servisse como símbolo da crueldade da vida. Se não houvesse cachorros, seriam ratos ou coelhos.

 —  Os cachorros são cachorros porque foi isso que aconteceu. Os cachorros

importam

 porque essa é a realidade.

 — A realidade não importa.  — E pode-se saber o que importa, então?  —  Não sei, mas vou te dizer uma coisa que eu tenho certeza que não importa: que

você

escreva um romance.

 — O senhor só quer me sabotar.  — Eu só quero comer o  pozole, que está esfriando. Dá licença? Levantou fazendo muito barulho ao arrastar a cadeira.

 — Assuma as consequências — ameaçou. E aí aconteceu uma coisa realmente importante: o Cabeça de Mamão atravessou o boteco como uma bala e saiu sem pagar.

A voz ao telefone, uma voz feminina atravessada de interferências, que tinha pedido para falar comigo, se identificou dizendo que estava ligando da clínica do Instituto Mexicano de Seguridade Social de Manzanillo. Meu pai acabava de falecer de câncer, e era preciso que alguém retirasse o corpo. Disfarcei como pude, e minha mãe não fez perguntas, até sorriu, imaginando que aquele telefonema misterioso significasse que eu finalmente ia parar de me arrastar pela vida e que me preparava para superar, muitos anos depois, a história do meu casamento malogrado com Marilín. Quando ela foi levar o cachorro para passear, contei à minha irmã o que tinha acontecido.

 — Eu não vou — disse ela.  — A gente prometeu — respondi.  —  Você prometeu, eu já o enterrei

num cemitério de Manzanillo, como falamos  pra mamãe e como fazem as pessoas normais, ou você já se esqueceu? Disse à minha mãe que ia viajar por alguns dias, e ela não me perguntou nem para onde nem com quem, mas sorriu de novo, até mais. Minha irmã e eu tínhamos virado adultos, mas nossa mãe não tinha deixado de ser a mamãe, e só deixaria de sê-lo quando a fizéssemos vovó, coisa que nunca aconteceu. Entrei num ônibus e, catorze horas depois, cheguei a Manzanillo. Na rodoviária, meu pai estava esperando por mim. Para um morto, tinha péssima aparência (podiam pelo menos maquiálo). Para um vivo, parecia um espectro. Estreitei seus ossos decrépitos entre meus braços e reclamei bem alto junto à sua orelha, para ter certeza de que me ouvia:

 —  Você tem que parar com isso! E se, no dia que você morrer de verdade, eu não acreditar e teu corpo acabar numa fossa comum ou na faculdade de medicina?

 — Isso acontece numa historinha pra crianças, e você é um adulto — respondeu.  — Cadê tua irmã?  — Ela não quis vir, disse que já te enterrou.  — Mas ela prometeu!  —  Quem prometeu vir fui eu, e aqui estou. Não me diga que você quer que eu te vivo pro crematório!

mande

Sugeriu que fôssemos comer frutos do mar numa barraquinha da praia, mas me recusei, pois não queria que aquilo virasse uma tradição familiar. Almoçamos num restaurante do centro, insuportavelmente quente apesar dos ventiladores ligados a toda a sua barulhenta velocidade. Quando meu pai viu que eu me abanava com o cardápio, falou:

 — Eu te falei. Aqui não tem brisa, não tinha por que sofrer à toa. Você parece sua mãe.  — Você não estava com câncer?  — Estava, me curei.  — Jura?! Então, pra que me fez vir até aqui?  — Calma, tudo no seu devido tempo. Como está sua mulher? Você tem filhos?  —  Não sou casado.  — Você não ia se casar?  — Você não ia morrer?  —  Quer dizer, então, que nos deixaram plantados, os dois já vestidos e excitados. Espero que tua noiva fosse mais bonita que a minha. A minha era horrorosa. O pior não era o calor, mas eu não conseguir fixar a vista no rosto do meu pai. Pelo menos, não sem ter a sensação fugaz de que a qualquer momento seus olhos iam saltar fora das órbitas. Comemos um coquetel de camarão e polvo em silêncio, e depois tentei abreviar o encontro:

 — Pra que você me fez vir até aqui?  —  Acontece que eu mudei de ideia. Ou melhor, não mudei de ideia, o que mudou foi a arte, a arte nunca para. A pintura é coisa do passado, já não quero ser cremado e que misturem minhas cinzas nas tintas. Não quero entrar pra posteridade numa manifestação anacrônica. Quero que usem meu corpo numa performance. Entrega meu cadáver pro Jodorowsky, que ele vai inventar alguma.

 — O Jodorowsky não mora mais no México, foi viver em Paris.  — Então entrega pro Felipe Ehrenberg.  —  Esse eu não conheço, já não conheço mais ninguém desse mundo, pai, você

demorou

demais pra morrer, ou melhor, está demorando demais.

 —  Se

não pode ser o Felipe, então entrega pra um dos grupos que estão fazendo  performances, happenings, que isso é o que não falta. Mas antes pesquisa bem, não quero acabar numa rodinha frívola de maconheiros. Usando seus dedos finos de caveira, tirou um papel dobrado de dentro do bolso da camisa e o estendeu. Era uma autorização por meio da qual, “em pleno uso de suas faculdades mentais”, ele doava seu corpo para usos artísticos. Era uma carta-modelo: onde dizia “usos científicos” meu  pai tinha riscado a segunda  palavra e escrito acima “artísticos”. Ao pé, além da sua própria

assinatura, tinha a de duas testemunhas e o carimbo e a rubrica de um tabelião.

 — Quando você vier retirar meu corpo — disse — , não esquece de trazer esta carta.

A operação durou menos de dez minutos e foi executada com tamanha eficácia que cheguei a admirar o treinamento de guerrilha do Mao. Viva o Peru, caralho! Assim que Mao tocou o interfone e eu abri o portão, pus o CD para tocar no aparelho portátil que ele tinha me emprestado na véspera. As baratas tomaram o rumo da saída e eu fui atrás, expulsando-as, qual flautista de Hamelin às avessas, em direção ao elevador, que já estava devidamente travado com a cadeira dobrável da Modelo. As baratas foram se amontoando no elevador, umas por cima das outras, formando uma montanha, enquanto pelos alto-falantes do aparelhinho se escutava: Mi unicornio azul ayer se me perdió, pastando lo dejé y desapareció, cualquier información bien la voy a  pagar . Quando a cabine ficou cheia até o teto, puxei a cadeira, e as portas se fecharam: Mao tinha chamado o elevador do térreo. Depois de completar a descida desde o terceiro andar, o vagalhão de baratas irrompeu triunfante no hall. Os tertulianos, apavorados, fugiram para a rua como puderam. Mao enfiou o  butim no elevador e subiu para o terceiro andar, transportando onze lampadinhas e onze exemplares do Tempo perdido. Travamos a porta do elevador de novo com a cadeira dobrável, e Mao foi descarregando, de três em três, os Tempos perdidos no meu apartamento. Tempo perdido vai, Tempo perdido vem, finalmente liberamos o elevador e nos fechamos no apartamento: Mao, resfolegando; eu, assobiando o Hino à alegria.

 — Uma grande vitória pra Revolução! — exclamei. — Vai uma cervejinha?!  —  Claro, vovô! Eu não carregava tanto peso desde uma vez que feriram um camarada bem fortinho numa cúpula Ibero-Americana e tivemos que arrastar o gordão por dois quilômetros, pra que a polícia não o pegasse. Fui até a geladeira e tirei um litrão de Victoria que eu tinha reservado para a ocasião. Mao desabou na poltroninha e começou a dobrar os braços como quem faz ginástica calistênica.

 — E agora? —  perguntou.  —  Agora é só esperar  —  respondi.  —  Agora começam as negociações. Eles te

viram

 pegando a carga?

 —  Não, saíram correndo pra rua, com as baratas atrás. O senhor não viu pela sacada?  —  Vi, sim. Viraram na Teodoro Flores, em direção ao Jardim de Epicuro. Enquanto eu enchia os dois copos de cerveja, as baratas começaram a entrar por

 baixo da porta, primeiro timidamente, só a vanguarda integrada por quatro ou cinco insetos, e depois, de forma descarada, o restante: os carneiros, as baratas-carneiro.

 — Caceta! — disse Mao. — De onde elas saem?  —  As baratas  —  respondi  —  são um exército com reservas inesgotáveis, como

um

 país infinito de autômatos.

 — Ligamos a música?  —  Não, deixa elas.  —  Escute, o que vai fazer com os tijolos?  —  perguntou, apontando para a torre

de

Tempos perdidos.

 — Já te falei, vou negociar o resgate.  — Posso pegar emprestado?  —  Que foi? Arrumou uma tertúlia? Você não me disse outro dia que o romance era

uma

invenção burguesa?

 —  Não é pra ler. É que acabei de ter uma ideia.  —  Pode levar. Na verdade, eu não posso correr o risco de ficar com eles aqui por  muito tempo. Voltei a encher seu copo e ergui o meu:

 — À Revolução!  — Melhor: à Literatura Revolucionária.  — Que seja.

Já se passara um bom tempo desde que eu tinha aberto o portão para Willem, e nada dele chegar ao apartamento. Duplamente intrigado, porque além do mais não era quarta nem sábado, saí na sacada: nem sinal dele. Logo em seguida, o interfone voltou

 — Que foi? Por que você não sobe? —  perguntei.  — Estamos com ele — disse Francesca.  — Como é?! — exclamei.  —  Estamos com seu amiguinho. Só vamos soltá-lo quando nos devolver nossos Tempos  perdidos.

 — Eu não tenho os Tempos perdidos.  —  Não minta. O senhor organizou tudo, com a ajuda do maltrapilho.  —  Não sei do que a senhora está falando.  — Do rapazinho que deixa o hall fedendo a chulé.  — Eu não tenho os Tempos perdidos. Quantas vezes vou ter que repetir?  — O senhor já escutou: ou nos devolve os livros, ou não soltamos seu amigo.  — Tem certeza? Sabe o que pode lhes custar o sequestro de um gringo? A pausa do outro lado confirmou que a ameaça estava surtindo efeito.

 — Vou desligar,  Frantchesca. Preciso telefonar pra embaixada dos Estados Unidos.  — Assuma as consequências — ameaçou. Desliguei e fiquei ao lado da porta, esperando a chegada de Willem, que demorou apenas os cinco minutos de praxe, até surgir na soleira com cara de mártir em plena tortura.

 — Meus pais querrrem que eu volte — disse.  — Entra aí. Avançou com a mochila carregada de angústia, pelo menos era o que parecia: que a mochila  puxava seus ombros para baixo para reforçar seu abatimento.

 — Uma tequila, Güílen?  — Um copo d’água.  — Você não ficou assustado?  — Com quê?  — Com aqueles malucos querendo te sequestrar.  — Como?  — O que você ficou fazendo lá embaixo? Por que demorou tanto?  —  Querrriam que eu lhes falasse da palavra do Senhor. Fiquei lendo um pouco da

Bíblia

com eles. Coloquei o copo embaixo do garrafão e, enquanto o enchia, vi que Willem, contrariando seu hábito, largava a mochila ao lado da porta e se sentava na poltroninha, sem sua Bíblia.

 — Que foi? —  perguntei. — Problemas na família?  —  Meus pais estão com medo  —  respondeu.  —  Dizem que vai haver um grande

terrrremoto.

 — E como é que eles sabem? Jesus Cristo lhes avisou?  — Virrram as notícias.  — Que notícias?  —  A rachadura que está se abrindo no chão. Dizem que é um aviso, que vai haver  um grande terrrremoto a qualquer momento. Dei-lhe o copo d’água e puxei a cadeira da Modelo para me sentar na sua frente.

 — Isso não tem nada a ver  — comecei. —  Como? —  perguntou.  —  É impossível prever os terremotos. Além disso, já explicaram a causa da

rachadura.

Você não ficou sabendo da história dos bigodes dos revolucionários? Deu dois golinhos de água e deixou o copo sobre a poltrona, entre as pernas, apertando-o o suficiente para que não virasse.

 —  Isso é uma

mentirrra idiota que ninguém leva a  sérrrio  —  disse, alterado, perdendo

a paz do Senhor. —   Dizem que essa histórrria  foi tirrrada  de um livro. A  Dorrrotea também me disse que isso não é verdade.

 —  A

Dorotea é namorada do Mao  —  respondi  — , que é o rei das teorias da conspiração. Não acredite nela. Quanto tempo você ia ficar aqui?

 — Dois anos.  — E aí?

 — E aí o quê?  — O que você vai fazer?  —  Não querrro ir  emborrra. Esperei que ele continuasse, de olho no equilíbrio do copo que segurava entre as pernas.

 — A  Dorrrotea não é mais namorrrada do Mao — revelou.  —  Jura?! Deixa ver se eu adivinho… é por isso que você não quer ir embora.

Ergueu a cabeça e me olhou nos olhos, e por pouco não fiquei orgulhoso de ver que ele tinha amadurecido a ponto de, pelo menos, não ficar mais vermelho.

 —  Se você vai ficar  —  eu disse  — , que seja pelos motivos certos. Fique porque

você

quer, não por causa da Dorotea.

 — Eu querrro ficar porque querrro, e se querrro ficar é por causa da  Dorrrotea.  — Já foi pra cama com ela?  — Sexo antes do casa…  —  Tudo bem, eu sei, eu sei  —  interrompi.  —  Então, você vai ficar pra comer a Dorotea ou pra se casar com ela? Desviou os olhos para a entrada, para sua mochila, dentro da qual repousava a Bíblia, onde, imaginei que ele estaria pensando, em alguma de suas centenas de páginas, talvez estivesse a resposta.

 — Melhor eu ir embora — disse. Levantou-se decidido e derramou a água na virilha. Apanhou o copo antes que caísse no chão e ficou sacudindo a calça com a mão. Fui pegar um rolo de papel para que se enxugasse. Sobre o  preto do tecido se marcava a mancha do líquido, agora enfeitada com pontinhos brancos, o rastro do papel higiênico.

 — Espera aí — eu disse, e fui até o quarto. Agachei para pegar a caixa dos biscoitos chineses e voltei para a sala. Willem já estava de novo com a angústia pendurada nos ombros, que pareciam ainda mais carregados.

 — Escolhe um — ordenei. Enfiou a mão sem convicção, mas sem reclamar, porque não estava programado para desobedecer a ninguém em nenhuma circunstância. Pescou um pacotinho, abriu-o e partiu o  biscoito.

 — E aí? —  perguntei.  — O lugar onde você deve procurar uma mão aberta é o fim do seu braço.  — Bingo! Guardou o papelzinho no bolso da camisa, atrás da plaquinha com seu nome, do lado do coração.

 — Se você for embora, me avisa —  pedi.  —  Não vou — respondeu.  — Muito bem. Então o vi sair carregando uma determinação que o enchia de culpa. Fechei a porta e me pus a imaginar o escândalo no hall quando o vissem passar com a calça naquele estado.

Taqueiros não ganham medalhas nem são homenageados com estátuas, mas um bom taqueiro, principalmente um que estivesse no centro da Cidade do México, também podia obter reconhecimento. Eu cheguei aos píncaros da glória na década de 80, quando minha banca de tacos em La Candelaria de los Patos era frequentada pela nata da nata, pelo creme e pelo soro da

*

sociedade da capital. Um dos habitués era o regente: vinha sempre escoltado pelos seus capangas, que também jantavam lá, revezando-se para não descuidar da vigilância. Sua tarefa  principal era evitar que os outros clientes se aproximassem do regente  com pedidos que  pudessem atrapalhar sua digestão. Outro que aparecia pelo menos uma vez por semana era o  Negro Durazo, que na época era o chefe da polícia do DF, antes da mudança na presidência e que descobrissem, milagrosamente, que ele era o embaixador do diabo na Cidade do México. Não era um cliente do qual eu me orgulhasse, mas era dos mais assíduos. Só deixou de aparecer quando tentaram botá-lo na cadeia e ele fugiu. Outro que apareceu uma vez foi José Luis Cuevas, que já era um artista consagrado e andava  pelo centro, com Fernando Gamboa, procurando um prédio para seu museu. Fiquei com vergonha de lhe dizer que já nos conhecíamos e perguntar se ele se lembrava de mim. Outro cliente habitual era Alberto Raurell, então diretor do Museu Tamayo, onde tinha organizado uma exposição do Picasso. Apesar de ser meio gringo, ou por isso mesmo, adorava tacos. Quando ia  jantar na minha banca, eu o perturbava tanto com minha conversa que seus tacos esfriavam no  prato, e eu tinha que ir trocando por outros. A rodinha de comensais cotidianos, um sortido de vizinhos, burocratas e notívagos de toda índole, caçoava de mim:

 —  Nosso taqueiro se saiu crítico de arte! E Raurell, rindo mas sério, sempre me defendia:

 — É disso mesmo que precisamos, de taqueiros que se interrressem  pela arte. Eu lhe falava das minhas aspirações sepultadas de ser artista, da minha passagem fugaz por La Esmeralda, e lhe dizia que continuava indo aos museus, às galerias, mas que achava que já não havia nada de interessante, que a grandeza da arte da primeira metade do século ofuscava completamente a da segunda, que já não se fazia nada de realmente novo. Raurell discordava das minhas opiniões. Segurava o taco com os dedos da mão direita enroscados, daquele jeito esquisito dos que não aprenderam a coisa na infância, e me dava aulas de teoria estética entre uma mordida e outra, com muita paciência.

 —  Clarrro

que se faz arte nova  —  repetia.  —  Tem arte nova o tempo todo. Sabe o que dizia um teórrrico alemão? Que o novo é o desejo do novo. Entende? Imagine uma criança na frente de um piano  procurrrando  uma melodia nova, que nunca tenha sido tocada. Essa criança está condenada ao fracasso, à frustração, porque essa melodia não existe, todas as melodias possíveis já estão previstas no teclado, pelo simples fato de que existe um teclado com uma determinada combinação de notas. Entende? Mas o novo é isso que a criança faz, querrrer  fazer algo de novo. O novo é o desejo do novo. O novo é essa ingenuidade teimosa da criança. Esse é o parrradoxo da arte. É preciso procurrrar o novo. Quem não procurrra não acha.

 — Qual o nome dele? — eu perguntava.  — De quem?  — Do alemão que falou isso.  — Theodor Adorno. Leia Adorno, sei que vai gostar. Antes que a chusma caísse em cima, eu me desculpava:

 — A que horas o senhor quer que eu leia, chefe? Preciso dar duro, não sabe como Raurell me piscava um olho, levantava a mão esquerda, a direita ocupada em equilibrar o taco que se desmilinguia, e agitava o dedo indicador no ar enquanto falava alto, para todo mundo ouvir:

 —  Tive

melhorrres conversas sobre arte nesta banca do que em Harvard!  Jurrro  parrra

vocês! Depois mataram o Raurell. Estava jantando num restaurante do centro, não muito longe da minha banca, quando aconteceu um assalto, ele resistiu e atiraram nele. Saiu em todos os  jornais. Tinha trinta e quatro anos. No Museu Tamayo havia uma exposição de Matisse que ele tinha organizado, tão alegre e colorida que parecia uma piada macabra. No ano seguinte  pegaram o Negro Durazo. Foi acusado de extorsão, tráfico de armas, contrabando e abuso de autoridade e acabou no xilindró. Foi um freguês que não lamentei perder.

* Até 1985, denominava-se regente o funcionário que chefiava o departamento do Distrito Federal mexicano, nomeado pelo  presidente da República e a ele subordinado. A partir de 1993, com a reforma constitucional, criou-se a figura do chefe de governo do DF, eleito por meio de votação direta. (N. T.)

O interfone tocou quando eu estava mergulhado no meu caderno e ia entornando aquela que, até aquele momento, pensava que seria a última do dia.

 — Venho do BDD — disse a voz de Mao através do fone.  — Você tem ideia de que horas são? —  perguntei.  — É uma emergência.  — Bêbados Despeitados a Domicílio?  — Como adivinhou?  — Foi só ouvir tua voz. Conseguiu o uísque?  — Ainda não.  — Trouxe alguma coisa?  — Duas cervejas e um saquinho de amendoim.  — Só isso?  — E um baseado.  — Falasse logo. Sobe aí. Demorou os três minutos de praxe que o elevador levava para completar a subida, tempo que aproveitei para pôr em funcionamento o suplício cubano.

 —  Nesse volume não vai espantar as baratas — disse Mao ao entrar.  —   Não faz mal  —  respondi.  —  A Francesca já está no apartamento, dormindo, e não quero que ela nos escute.

 —  Não está exagerando?

diz que

 — Você já viu a grossura dessas paredes? Me entregou as latas de cerveja, quentes, para que eu pusesse para gelar, e tirou do bolso da calça um pacotinho com três amendoins japoneses, literalmente.

 — Me deu fome no caminho — disse como desculpa.  — E o baseado? —  perguntei. Abriu o zíper da mochila e depois outro zíper interior, até que finalmente extraiu metade de um cigarrinho disforme e amassado. Quando o peguei, percebi que estava morno.

 —  Também te deu vontade no caminho?  —  perguntei.  —  Você tem isqueiro? Faz muito tempo que não fumo.

 — Dá pra notar.  — É mesmo?  —  Claro, é só ver como o senhor segura o baseado. Eu só tinha visto isso num

filme dos

Doors. Peguei o isqueiro que ele me estendia e fui até a geladeira. Às minhas costas, Mao reparou no caderno que eu tinha deixado aberto, por distração, em cima da poltroninha. Com o rabo do olho, vi que começava a folheá-lo, detendo-se nos desenhos.

 —  Da hora os desenhos  —  comentou.  —  O senhor só desenha cachorros e mulheres? Se desenhar os dois juntos, aí vai ser a perversão perfeita. Mas fique esperto. O último que descobriram com essas manias foi acusado de matar o Colosio. Não lembra do Caballero Águila? Tinha um caderno igualzinho a esse.

 —  Os

maoistas também te ensinaram essas técnicas de bisbilhotice ou é só falta de educação mesmo?

 —  Tsss, não fique mordido, vovô, que sensível… Mas escute, nem pense em

escrever

sobre mim, hein?

 — Imagina, nem que você fosse interessante.  — Falando sério. Isso poria em risco a minha vida e a sua vida. Desencavei do fundo da geladeira uma lata de Tecate que eu tinha reservado desde um dia que fiquei várias horas sem luz. Depois tirei do seu esconderijo secreto o meio litro de uísque que me restava.

 —  Quer dizer que a Dorotea te deixou, bonitão?  —  soltei, para mudar de assunto.

Como era de esperar, ele se desinteressou pelo caderno, que largou em cima da mesinha, e passou a se concentrar em sua dor de cotovelo.

 — O senhor já estava sabendo? —  perguntou. — Foi o mormonzinho que lhe contou?  — E eu que pensei que você estava querendo se infiltrar nos mórmons.

 — Esse era o plano.  — Mas te saiu pela culatra! Você não contava com os encantos do bom Güílen.  — Vou quebrar a cara desse gringo filho de uma puta.  — Calma, Mao. Pensei que você tivesse outro tipo de educação.  — Se ofendeu com os palavrões, vovô? Que novidade.  — Estou falando da sua educação sentimental. Eu achava que você era feito de outro metal. Passei a lata de cerveja para ele e me estatelei na poltroninha com o copo de uísque numa mão e o cigarrinho, já aceso, na outra. Ergui o copo para brindar.

 — Ao Jorge Negrete —  propus.  — Se vai me zoar, eu vazo — disse em tom lamuriento.  —  Relaxa, rapaz, senta aí. O mundo não vai acabar por causa de uma mulher, nem

mesmo  por causa de uma como a Dorotea. Os maoistas não te ensinaram nada sobre o amor? Desse jeito ainda é capaz de você pôr a perder a Revolução por culpa do amor.

 —  Que porra o amor tem a ver com a Revolução?  —  perguntou, puxando a

cadeira da

Modelo para se sentar ao meu lado.

 —  Tem tudo a ver. O verdadeiro combatente não pode se amarrar. Você já viu, em

toda a história da humanidade, algum verdadeiro revolucionário com mulher e filhos? Pode imaginar um terrorista apaixonado? O amor te deixa vulnerável, faz você sentir que tem muito a perder, muda tuas prioridades, tira tua liberdade. Continuo? Deu um longo gole de cerveja.

 — Está choca — disse.  — Jura?! Que azar.  — E o senhor, que Revolução fez? A de 68? Que eu saiba, não teve família. Ou teve?  —  Em 68 eu tinha trinta e três anos, rapaz. A única Revolução que eu fiz foi dar  tacos de graça pros estudantes que apareciam na minha banca.

 — Sério?  —  Só por uns dias. Logo espalharam, e eu tive que parar. Sabe aquele ditado?, a

caridade é

um prato sem fundo.

 — Mas e aí?  — E aí o quê?  —  Por que o senhor ficou sozinho? Alguma razão deve ter tido, ninguém fica assim porque sim.

sozinho

 —  Pergunta pras pessoas por que elas se casaram, por que tiveram filhos. O

mundo está cheio de gente que se casa porque sim, que tem filhos porque sim, que se divorcia e volta a se casar porque sim. O que tem de tão estranho ficar sozinho porque sim?

 —  Não vai passar a bola, não? Entreguei-lhe a ponta, minúscula, e por falta de prática o queimei.

 — Desculpa — falei. — Mata a beata.  — O senhor fala como um personagem do José Agustín.  — Você leu o José Agustín? Não era você que não lia romances?  — Li obrigado, no colégio. Tirou da mochila uma pinça de depilar sobrancelhas e pegou com ela a pontinha do baseado,  para conseguir fumar o pouco que restava.

 —  Não vai me contar? —  perguntou.  — O quê?  — Por que não se casou?  — Já falei.  — Vai ver que é veado.  — Acertou, e agora que você está bem chumbado vou te estuprar.  — Que sensível. Está vendo? Aposto que por trás disso tem uma história.  —  Por que precisa ter uma história por trás de tudo? Por que sempre precisa ter  uma história pra explicar as coisas? Desde quando a vida precisa de um narrador que vá justificando a ação das pessoas? Eu sou uma pessoa, rapaz, não um personagem.

 —  Se não quer contar, não conte, mas não me venha com esse papo mole. Eu ia

mais com a sua cara antigamente, quando só lia Adorno. Esses livros de teoria literária estão derretendo seus miolos.

 —  Eu também ia mais com a tua cara antigamente, quando você andava gingando

como se

dançasse uma música animada, e não como agora, que se arrasta a trancos de rancheira. A pontinha sumiu da pinça, literalmente, e Mao se recostou na cadeira para exalar, numa  baforada, a última tragada que tinha conseguido puxar.

 — Por falar nisso, como vão as negociações? —  perguntou.  — Estamos definindo a data e o local da primeira rodada — respondi.  — Caraca.  — Escuta, não vai perder os Tempos perdidos, hein?

 — Imagine.  — Pra quê que você vai usar os tijolos?  —  Não posso contar, comprometeria a operação. Virou o resto da cerveja, fez cara de nojo e se levantou. A camiseta do Sendero Luminoso estava mais molambenta que de costume, com milhares de manchas de diversa procedência, um  buraquinho esquisito perto do umbigo, a costura da manga esquerda desfiada, se bem que talvez  já estivesse assim desde o primeiro dia e eu só reparasse nesses detalhes agora, por causa do fumo.

 —  Você é o maoista clandestino menos discreto que conheço  —  falei  — , parece

até que você quer que te peguem. É isso que você quer? Que te reprimam pra depois ter do que se queixar?

 — O senhor diz por causa da camiseta? — devolveu. — É só pra despistar.  — Você não é maoista?  — Imagine.  — Então por que falou que era maoista?  — Eu não falei, foi o senhor que concluiu por conta própria.  — A  Djuliét  que me falou.  — Tem certeza?  — Você não é maoista?  — Claro que não.  — O que você é, então?  —  Isso já não importa, vovô, os tempos mudaram. Vivemos numa época pós-ideologias, se é que não sabe.

 — Pós-ideologias? Você não vive repetindo que o romance é uma invenção  burguesa?  — Isso não é ideologia, vovô, é história.  — Então por que teu nome é  Mao?  — Isso também não importa. Além do mais, seu nome também não é Teo.  — Quer dizer, então, que você não foi pro Peru.  —  O mais perto que eu já estive do Peru foi num restaurante em La Condesa, onde fazem umas batatas à huancaína muito boas. Por falar nisso, alguém já lhe falou que o senhor tem nariz de batata?

 —  Não abusa,  Mao. E pode-se saber, já que imagino que você também não sabe

chinês, como fez pra descobrir que os chineses aí da frente são coreanos? Ou você inventou tudo?

 — Usei um tradutor do celular, vovô. Recuperou sua mochila e a pendurou nas costas, dando a conversa por encerrada e se  preparando para sair.

 — Me deu fome — disse.  — Bom sinal — respondi.  — Do quê? —  perguntou.  — De que você não vai morrer de amor.  — Ou de que a erva era boa.  — Aí na esquina tem uma banquinha de tacos que fecha bem tarde.  — Pfff, muito da fuleira. Devem servir tacos de cachorro.  — Jura?!

A primeira rodada de negociações foi celebrada num sábado à tarde em território neutro, escolhido por Francesca: um Sanborn’s que ficava em frente ao Jardim de Epicuro. A mediação seria conduzida por Juliette, que garantia ser especialista nesse tipo de conflitos.

 —  Não será a primeira nem a última vez que vou fazer isso  —  disse ao postular  sua candidatura. Quando Francesca, ciumenta, alegou um suposto favorecimento meu, por causa da nossa amizade, Juliette a interrompeu para se defender:

 —  A senhora me ofende  —  disse  —  se está insinuando que repetirei os vícios

do

Estado corrupto. Sobre a mesa de negociações havia uma xícara de chá, para Francesca, e duas cervejas. Antes de começarmos, avisei que eu não estava disposto a estender a negociação por muito tempo:

 — É melhor irmos direto ao assunto — falei — , cada cerveja aqui custa trinta  pesos.  —  A negociação é muito simples  —  respondeu Francesca  — , vamos acabar  muito rápido. O senhor nos devolve os Tempos perdidos e as luminárias, do contrário o denunciarei à administração do edifício.

 —  Eu já disse mil vezes  —  repliquei  —  que não tenho seus

Tempos perdidos. Se vocês os perderam, procurem direito. Como diz o outro: quem não procura não acha. Ah, as luminárias também não estão comigo.

 —  Pois então não entendo o que estamos fazendo aqui —  disse Francesca,

olhando para

Juliette.

 —  Deixe eu lhe explicar qual é a negociação  —  eu disse.  —  A senhora me

devolve

minha Teoria estética, e eu dou sumiço numa foto sua muito comprometedora, do contrário…

 — Do que o senhor está falando? — interrompeu.  —  Da fotografia de um rapazinho que a senhora deixou entrar no prédio, por  negligência. Eu adoraria saber qual será a reação dos moradores quando souberem que sua ditadora infringe as próprias regras. Estou pensando em sugerir sua demissão.

 — Eu não deixei ninguém entrar!

 — Eu não tenho os Tempos perdidos!  — Eu não tenho a Teoria estética!  —  Senhores  —  interveio Juliette  — , procuremos nos acalmar. Sugiro que construamos  juntos um cenário hipotético pra iniciarmos o diálogo. É só um exercício da imaginação, certo?  Não precisam se apressar em desmenti-lo. Francesca concordou, e eu dei um golinho minúsculo na cerveja, só para molhar os lábios.

 —  Imaginemos  —  continuou Juliette  —  que a senhora tem em seu poder o

exemplar

da Teoria estética que pertence a este senhor.

 — Mas não tenho — disse Francesca.  —  Já disse que é apenas uma hipótese  —  explicou Juliette.  —  Deixe-me

completar. Imaginemos também que o senhor tem os Tempos perdidos e as luminárias que pertencem aos membros da tertúlia. E mais: imaginemos outra coisa. Vamos imaginar que nenhum dos dois tem esses objetos, como ambos afirmam, mas que poderiam vir a tê-los, entenderam? Vocês não os têm, mas, se chegarem a um acordo amigável, talvez possam consegui-los. Partindo dessa hipótese, não se sentiriam à vontade pra realizar uma troca?

 —  Não posso entregar o que não tenho — eu disse.  —  Nem eu — disse Francesca.  —  Mas quem sabe possam, sim, indicar ao outro

onde poderá encontrar aquilo que

 procura. Seria uma troca de informações.

 — Pois eu vou lhe dizer o que posso entregar a esse senhor  — assegurou Francesca. Enfiou a mão na bolsa e puxou um papel dobrado, que me estendeu.

 — Que é isso? —  perguntei.  — Leia — respondeu. Era uma xerox de um atestado médico assegurando que eu não tinha “capacidade legal” e não era “passível de julgamento” porque sofria de alcoolismo e senilidade.

 — Este documento é falso! — gritei.  —  É um documento oficial  —  disse Francesca.  —  Foi solicitado pela

Sociedade Protetora dos Animais, e graças a este atestado o senhor se livrou de uma multa. Sabe o que acontecerá se eu entregar este documento à administração do edifício? O senhor conhece muito  bem as regras, com este papelzinho aqui, posso mandá-lo pra um asilo. Vi dentro da minha cabeça a cabeça de mamão do Cabeça de Mamão e me imaginei reduzindo-a a papinha aos murros, ou cortando-a em pedacinhos com um enorme facão de açougueiro.

 — Isso é uma injúria! — gritei. — Abandono a mesa de negociações.

Em seguida, sem esperar a réplica, me retirei do recinto, principalmente porque não estava disposto a, ainda por cima, ter que pagar a conta. No dia seguinte, como era de esperar, o Cabeça de Mamão não compareceu à oficina literária do boteco. Na segunda-feira, com a ajuda de Juliette, que ligou para Dorotea, consegui o telefone do Cabeça de Mamão. Depois de virar duas tequilas, telefonei para ele com a fúria abrasando minhas veias:

 — Traidor! — gritei assim que ele atendeu.  — Sabotador!  — Como você é capaz de tanta baixeza?!  —  É a mesma pergunta que eu lhe faço. O senhor só queria atrapalhar a escritura

do meu romance. Sabe que depois de uma única sessão com a Francesca eu já tenho meu primeiro capítulo?

 — Você me vendeu por um romance!  — Procure outro trouxa pra pagar sua bebida!  — Mamãozão! Bateu o telefone, e a simples perspectiva de acabar num asilo me fez beber até a inconsciência.

 — Deixa eu te desenhar?  — Amanhã.  — Posso pegar na tua mão?  — Amanhã. Você não foi procurar emprego?  — Amanhã. Posso te dar um beijo?  —  Amanhã. Você não disse que o trabalho na banca de tacos era temporário?

Quando vai

deixar de ser taqueiro?

 — Amanhã. Quer casar comigo?  — Amanhã. Por que você não se inscreve na universidade pra estudar alguma coisa de útil?  — Amanhã. Deixa eu entrar lá pra te ver posando?  — Ficou com tesão, Teo? Punheta vai, punheta vem, assim foi passando a vida.

 Nossos corpos pairavam num deserto, adornado aqui e ali por árvores secas que pareciam  prestes a ganhar vida por artes de um feiticeiro, árvores secas que em vez de verdejar, de se encher de folhas, ameaçavam puxar as raízes da terra e sair caminhando, árvores secas com galhos como braços, monstros saídos de um pesadelo infantil, árvores mortas-vivas. No horizonte se viam morros pedregosos, e acima, no céu, umas nuvens insólitas, nuvens cujos desígnios nem um meteorologista nem um crítico de arte seriam capazes de decifrar. Eu apertava as mãos para acalmar Marilín, pois tinha o pressentimento de que ela me acompanhava, mas apertava o nada, Marilín não estava comigo. Em compensação, via o Feiticeiro de costas, movendo delicadamente o braço direito, do qual brotava, em pinceladas angustiosas, a paisagem em redor. Acabava de pintar uma árvore e flutuava até onde eu estava com a paleta e o pincel nas mãos. Então se punha a olhar a paisagem como se olhar a paisagem fosse uma ordem, olha a paisagem!, ordenava com o olhar, olha a paisagem!  Eu olhava a  paisagem e desejava não estar lá, naquele apocalipse pré-humano, era como se a vida na terra tivesse acabado antes de começar, como se alguma coisa tivesse falhado na evolução e a vida estivesse se extinguindo sem ter chegado a produzir nem um mísero girino. O mundo ia se acabar, e o único vestígio eram aquelas árvores torturadas. O Feiticeiro respirava fundo e eu respirava fundo, e nada naquele mundo cheirava a qualquer coisa que não fosse o cheiro oleoso da tinta.

 — Cadê a Marilín? — eu perguntava.  — Marilín, Marilín… — ele respondia. Então esticava o pescoço para a frente, atravessando a superfície da tela com a cabeça e, ao imitá-lo, eu podia ver o quarto dele. Na cama, enroscada entre os lençóis molhados de suor, jazia Marilín, com os pés e as mãos amarradas, emudecida por um opressivo esparadrapo sobre a  boca. Nas paredes havia quadros de naturezas-mortas com frutas, pêssegos que eram nádegas, melancias e pitaias que eram vaginas, e na cabeceira um mamão partido ao meio exibindo obscenamente seu ventre gelatinoso. Eu encolhia a cabeça de volta para a tela impelido por uma fúria vertiginosa que meu corpo vetusto não podia acompanhar. Meu punho balançava lentamente na atmosfera estática da  paisagem apocalíptica.

 — Calma, compadre, não fica assim — ele dizia.  — Solta ela! — eu gritava.

 —  Só depende de você. É só cumprir com a tua parte que não vai acontecer nada com ela,  prometo. Não queria ter chegado a esse extremo, mas é que você não entende.

 — O que você quer que eu faça?  — Ainda não entendeu?  — Como é que eu vou entender, se você não me pediu nada?  —  E preciso pedir? Você vai estragar a carga simbólica de um sonho pra se

conformar com

a literalidade?

 — Podemos brincar de adivinhas.  — Você é meio lento. Lento demais, pra falar a verdade.  — E aí?  — E aí o quê?  — O que você quer?  — Você não entende, mesmo? Quero que você escreva um romance sobre mim!  — Eu não escrevo romances!  — Lá vem você de novo com essa ladainha!  — O que eu queria era ser pintor, artista plástico, nunca me interessei por  literatura.  — Você queria ser pintor, queria ser artista, mas não foi.  — Também não sou escritor!  —  Mas tem temperamento artístico, que é o que importa. Quando a pessoa

tem temperamento artístico, tanto faz se o usa pra música, ou pra pintura, ou pra literatura. Deixa eu te mostrar uma coisa. Então o Feiticeiro deixava a paleta e o pincel num galho de árvore, que os recebia como se tivesse dedos, e enfiava as mãos nos bolsos da calça, de onde ia tirar um biscoito chinês da sorte. Estranhamente, eu sabia que era um biscoito antes de vê-lo, como se estivesse no meu próprio  bolso, e sentia os dedos cadavéricos do Feiticeiro mexendo na minha virilha, não na dele, e o susto e as cócegas me fizeram acordar. Eu ainda estava tão bêbado que achei melhor não me levantar, embora fosse o que minha cabeça pedia: ir ao banheiro, lavar o rosto, beber um copo d’água. Em vez disso fiquei deitado de

olhos abertos, vendo a escuridão rodar, até que uma hora, antes de voltar a pegar no sono, ouvi claramente a porta de entrada do meu apartamento se abrir, sorrateiramente, e pouco depois se fechar. Tirei o braço de baixo dos lençóis e o estendi para acender a luz. Segurei a respiração  para detectar qualquer som que viesse da sala: nada, só o trânsito habitual das baratas. Influenciado pelo estado de semivigília, me abaixei e puxei a caixa dos biscoitos chineses, para completar o sonho. Rasguei o pacotinho, parti o biscoito ao meio, abri o papelzinho diante dos

olhos: O futuro já não é como antigamente. Apaguei a luz e voltei ao meu sono inquieto, piorado  pelo desconforto das migalhas dos biscoitos que tinham se espalhado pelo lençol. De manhã, ao me lembrar do barulho da porta, eu me pus a examinar o apartamento, até onde a dor de cabeça me permitia, para ver se faltava alguma coisa. Não descobri nada. Tomei os comprimidos de praxe e saí do apartamento com a intenção de arejar as ideias, e a ressaca, na quitanda.  No hall, o ambiente era tenebroso: os tertulianos olhavam para as próprias mãos e comentavam, entre suspiros, alguns episódios do Tempo perdido  de que tinham gostado especialmente.

 — E agora, quem foi que morreu? —  perguntei.  —  Não se esqueça — respondeu Francesca — : o senhor tem vinte e quatro horas. Entrei na quitanda sem poder evitar que o sol me provocasse umas pontadas na testa que quase me fizeram vomitar. Nunca a penumbra do local e sua atmosfera fresca foram tão agradáveis. Juliette ergueu os olhos do jornal ao ouvir o barulho dos meus passos tropicantes.

 —  Você viu isso?  —  disse, referindo-se ao que acabava de ler.  —  Evacuaram

dois

quilômetros em volta do Monumento, dizem que a rachadura está aumentando.

 — Me oferece alguma coisa pra beber? — supliquei.  — Você já está bem encharcado, Teo. Dá pra sentir o bafo de longe.  — Vai me oferecer uma cerveja ou não?  —  Calma, cavalheiro. Vou lhe oferecer uminha, sim, como sempre, mas acho que o senhor também precisa comer alguma coisa. Peço pra nos trazerem uns tacos de barbacoa? Minha  barriga já está roncando. Respondi que sim, dei-lhe uma nota de vinte pesos e me estatelei numa cadeira, ao lado de onde estava sentada Juliette, que agora caminhava até a porta da quitanda para fazer o pedido, tacos e cerveja, aos gritos. Voltou, colocou o jornal aberto em cima de uma mesa e se sentou de novo.

 — Só de respirar essa aragem já estou ficando meio alta —  brincou.  — A Francesca entrou no meu apartamento de madrugada.  — Queria te violentar?  — Escuta, é sério.  — Está tão forte assim a ressaca, que te cortou a veia palhaçal?  —  Não estou pra palhaçadas.  — Espera, vou te dar um comprimido.  — Já tomei.

 — Como é que você sabe que a Francesca entrou lá? Você viu?  —  Não, mas ouvi o barulho da porta abrindo e fechando. Eu estava meio

dormindo, não

consegui me levantar.

 — Talvez se você não bebesse tanto…  — Se eu não bebesse tanto, a Francesca não entraria no meu apartamento?  —  Se não bebesse tanto, você teria se levantado e pegado sua vizinha com a boca

na botija. Isso se ela entrou mesmo. Você está paranoico, pra quê que ela ia se enfiar no teu apartamento?

 — Pra procurar os Tempos perdidos.  — Agora que ela não precisa mais? Tem você bem preso pelos colhões.  —  Não abusa,  Djuliét .  —  Não estou abusando, é a pura verdade, você sabe muito bem.  — A propósito, você falou com a Dorotea?  — Ela me prometeu que ia lhe passar o recado.  — Era pra você pedir o celular do Mao!  — Ela não quis me dar. Disse que era pela nossa segurança.  — Como eles gostam de brincar de espionagem!  — E você não? Um moleque entrou na quitanda trazendo dois pratos descartáveis cheios de tacos e um litrão de cerveja.

 —  Espera aí  —  disse Juliette  — , não come ainda. Vou te dar um chili serrano

que vai

limpar teu corpo. Serviu dois copos de cerveja e me estendeu o chili depois de esfregá-lo entre as mãos, para que ficasse mais picante. Depois comemos em silêncio. Ela mastigava e mastigava, e eu mastigava e suava, ensopado da cabeça aos pés. A cerveja operou o milagre de me devolver a um estado mais confortável que o da ressaca: a bebedeira. Juliette me deu um rolo de papel higiênico  para que eu enxugasse o suor do rosto e limpasse a meleca que começava a escorrer do meu nariz de batata. Quando me assoei, lembrei que nunca tinha consultado Juliette, que afinal de contas era especialista no assunto, para saber se era verdade que meu o nariz tinha o formato de um tubérculo.

 — Escuta, eu tenho nariz de quê, hein? —  perguntei.  — Quer mesmo que eu diga? Você está com um humorzinho…  — De batata?

 — É, sim. Mas de batata peruana, sabe? Daquelas vermelhas. Passei-lhe meu copo para que o enchesse, e ao pegá-lo ela ficou me olhando, como se calculasse o tamanho e a natureza da minha urgência.

 — Por que você não vai se deitar de novo? — sugeriu. — Um soninho ia te fazer bem.  —  A última coisa que eu quero agora é dormir  —  respondi.  —  Ando tendo sonhos muito esquisitos.

 — Sonhos eróticos?  — Estou falando sério, caralho! Por que tudo tem que virar palhaçada?  —  Porque a gente sempre levou tudo na palhaçada e, cá entre nós,

você é o rei dos  palhaços. Agora, se você quer falar sério, à vontade. Anda, me conta esses sonhos.

 —  Não quero te contar meus sonhos, que ainda é capaz de você se meter a interpretar.  — Seria culpa tua.  — Ah, é?  — Claro, por me dar aquele livro louco.  — Você está lendo?  —  Aos pouquinhos, antes de dormir, é como um filme de terror. Espera aí. Atravessou o quintalzinho e entrou no seu quarto para, dali a pouco, voltar folheando o livro, à procura de uma passagem. Postou-se na minha frente, virou várias páginas e  por fim disse:

 — Aqui está. Escuta só. E leu: Também existe em nós um anjo obscuro, uma consciência que brilha na escuridão e que guarda um vínculo a priori com o inframundo por meio dos cães vadios e da bruxaria, das luas negras, dos fantasmas, do lixo e dos venenos. Virou a página e ficou passando várias, tentando localizar outro fragmento.

 — E não te dá pesadelos? —  perguntei.  — Imagina: toda noite eu sonho com a Coatlicue.

Mao entrou no boteco arrastando a mala de rodinhas onde tinha levado os Tempos perdidos. Eram quase oito horas da noite e já fazia um bom tempo que eu tinha perdido a conta da bebida, de tão angustiado que estava: tão longe da minha Teoria estética e tão perto do asilo. Sentou na minha frente e ficou flexionando o braço direito, que tinha usado para puxar a carga.

 — Caralho, Mao — reclamei — , era urgente. A Dorotea não te passou meu recado?  —  Só ontem executamos a operação  —  respondeu.  —  Tivemos que adiantá-la  por causa das suas pressões.

 — E aí?  — Sucesso total.  —  Estou falando dos

Tempos perdidos, não quero nem saber das tuas operações. Estão aí

com você?

 — Dentro da mala. Não me oferece uma breja?  — Trate de pagar suas cervejas, rapaz. Gritou para o dono do boteco pedindo uma Victoria e me fitou intensamente, com tanta vontade de me contar o que tinha acontecido que parecia que as palavras iam começar a sair da sua boca feito bolhas de sabão.

 —  Não quer mesmo que eu conte? —  perguntou.  —  Não era uma operação secreta? — respondi.  — O senhor colaborou com a causa, merece saber.  —  Não confunda as coisas, eu não tenho causas, só problemas. Desde a última vez que nos vimos, as coisas se complicaram um bocado. Deve ter me achado tão abatido que tive até a impressão de que ficou com pena de mim, e seus dreadlocks se aquietaram, deprimidos.

 — Tem algo em que eu possa ajudar? —  perguntou.

 —  Por enquanto  —  respondi  — , esperar aqui comigo até que os tertulianos

subam  para dormir e levar os Tempos perdidos ao meu apartamento. Depois vai me ajudar a entregar os livros.

 — O senhor é que manda, vovô. Bebemos mais duas ou três cervejas, e enquanto isso me dediquei a conter a verborragia de Mao, que continuava empenhado em me tornar cúmplice verbal de suas travessuras, e depois o mandei dar uma olhada no hall do prédio. Voltou e disse:

 — Barra limpa. Já no apartamento, abri a mala para verificar seu conteúdo, e lá estavam os Tempos perdidos, todos estragados: os cantos estavam amassados; a encadernação, entortada, com algumas páginas soltas, e na capa de um deles se via, bem estampada, a pegada de um sapato.

 — Caralho, Mao. Que é que você fez com eles?  —  Não era que não queria que eu lhe contasse?  —  Não quero que você me conte coisa nenhuma, mas por que os livros estão assim, todos fodidos?

 — Foram nossas armas na operação, vovô.  — Que operação? Guerrinha de Tempo perdido?  — Conto ou não conto?  — Conta só o mínimo, já tenho bastante confusão.  — O mínimo é que sequestramos um cachorro.  — Um cachorro?  — Mas não um cachorro qualquer: o cachorro do filho do homem mais rico do mundo.  — Mas esse cachorro já não morreu?  — Eles tinham mais um: o parzinho do labrador. Vamos esperar uns dias e pedir o resgate.  —  Já te falei que não quero saber de nada. Agora vamos pro Jardim de Epicuro.  No dia seguinte, Juliette comunicou a Francesca as condições da entrega. O bilhetinho que encontrei na minha caixa de correio informava que a Teoria estética  estava no meu apartamento, embaixo da cama. Encontrei o livro no fundo da caixa onde eu guardava os biscoitos chineses. Os tertulianos, por seu turno, resgataram os Tempos perdidos entre os arbustos do Jardim de Epicuro. Como sua crise de abstinência estava em nível crítico, na mesma hora se instalaram nos bancos e começaram a ler. Pouco depois, foram detidos: usando os Tempos perdidos estragados como prova, a polícia os acusou de posse de arma utilizada em tentativa de homicídio e de privação ilegal de liberdade canina.

O cachorro não parava de arranhar a porta do meu quarto, o que significava que minha mãe tinha saído de casa sem ele. Eu odiava aquele cachorro como nunca tinha odiado qualquer outro, mais até do que o cachorro que fez meu pai sair de casa, mais até do que Solovino, e isso antes que o desgraçado se transformasse no símbolo acabado da desgraça. Era um vira-lata neurastênico, que parecia prestes a ter um ataque do coração até quando estava dormindo: esticava as patas, tremia, latia e rosnava para inimigos oníricos. Minha mãe tinha lhe dado o nome de Ochentaytrés, registrando o ano em que o adotara, porque, quando ela apareceu em casa com mais aquele cachorro, poucas semanas depois da morte do anterior, minha irmã disse que as épocas da nossa vida eram marcadas pelos vira-latas da mamãe. Era verdade, quando lembrávamos algum episódio da nossa história, não dizíamos: tal coisa aconteceu nos 60, ou nos 40, muito menos antes ou depois do papai sair de casa, que era o verdadeiro divisor de águas da história familiar. Dizíamos, talvez por escapismo: isso foi na época do Solovino. Ou na época do Mercado, aquele cachorro de pelo sedoso que acabou morrendo, esclareço em minha defesa, de uma infecção urinária que se espalhou pelo corpo e o deixou inchado feito uma bexiga (e imprestável para fins culinários). Ochentaytrés ficou anacrônico no ano seguinte, 84, e naquela hora em que estava arranhando a porta do meu quarto, já bem entrados em 85, era uma calamidade que punha minha paciência à  prova e me fazia duvidar, seriamente, de que o cachorro chegaria vivo a 86.  Naquela época eu dormia, ou tentava dormir, até o meio-dia, porque me deitava no mínimo às três da madrugada, depois de fechar a banca à meia-noite, à uma nos fins de semana, depois de limpar tudo e jogar o lixo fora, depois de empurrar a banca até uma garagem que eu pagava para que a guardassem, e depois de beber duas ou três, que às vezes chegavam a quatro ou cinco, em algum boteco dali perto. Minha irmã saía para trabalhar de manhã cedo, e minha mãe ia e vinha fazendo compras para tentar preencher as horas do dia, como faz qualquer pessoa desocupada. Cachorro vai, cachorro vem, passou-se a vida: eu estava com cinquenta anos e minha irmã com cinquenta e um. Depois do meu pai, ninguém tinha tido coragem de sair de casa. Deixei a cama quando a ressaca me permitiu lembrar que naquela manhã minha mãe iria a um dos poucos lugares aonde não podia levar o cachorro: ao médico. O vira-lata não me deixaria em  paz enquanto eu não o levasse para urinar. Fui beber um copo d’água na cozinha e achei sobre a mesa o resultado dos exames que minha mãe tinha recebido no dia anterior, o diagnóstico atestando que, ao contrário do que ela pensava, não sofria de nenhuma doença cardíaca. Tinha deixado o resultado em casa de propósito, para, segundo ela, não influenciar a segunda opinião

que pediria naquele dia. Quer dizer, para que não lhe dissessem que era uma hipocondríaca e a mandassem de volta para casa sem submetê-la a novos exames. Eram quase onze horas, vesti a roupa do dia anterior e, perseguido por Ochentaytrés, saí para o corredor do cortiço, onde encontrei todos os vizinhos, absolutamente todos, reunidos em rodas que se faziam e desfaziam, os rádios a todo volume, as portas das casas abertas, os televisores ligados. Minha perplexidade durou um segundo e se transformou em estupor quando vi que Marilín vinha falar comigo. Rancor vai, rancor vem, fazia vinte e cinco anos que não nos dirigíamos a palavra. Considerando sua legendária vaidade, devia ter acontecido algo de muito grave: estava de cara lavada e com um conjunto de blusa e calça que podia muito bem ser um pijama. Desprovida de maquiagem, as rugas em seu rosto eram a evidência de tudo aquilo que eu não quisera ver até então e que, na verdade, continuava sem querer ver.

 — Cadê tua mãe? — me perguntou.  —  No médico — respondi. — Que foi que aconteceu?  — Você não ficou sabendo? Um terremoto!  — Eu estava dormindo.  — Passei a manhã inteira batendo na tua porta.  —  Não escutei. Tenho sono pesado.  — Talvez se você não bebesse tanto…  — Se eu não bebesse tanto, não teria acontecido o terremoto? Jura?!  — Aonde tua mãe foi?  — Ao médico.  — Onde?  —  Não sei, acho que no Hospital de Cardiologia.  — Tem certeza?  —  Não sei, não sei, acho que sim.  — Dizem que o Centro Médico desabou.  — Quem disse?  — Sei lá, no rádio ou na televisão.  — Vou ligar pra minha irmã.  — Onde?  —  No trabalho dela.

 — Os telefones estão mudos. Abandonei Marilín e entrei de volta em casa sem me preocupar com Ochentaytrés, que mesmo assim veio atrás de mim, histérico, agora com razão, contagiado pela histeria coletiva. Liguei a televisão e só então vi o papelzinho em cima do aparelho, com o recado: Lembra que hoje vou no Hospital de Cardiologia. Não sei quanto vou demorar, leva o Ochentaytrés pra  fazer suas necessidades. Se eu tiver alguma coisa grave e tiverem que me internar, não esquece de pôr comida pra ele à noite. Tua irmã vai me acompanhar .

Fui até a delegacia, acompanhado de Dorotea e Willem, e declaramos que os Tempos  perdidos estavam desaparecidos no dia do sequestro e que os tertulianos tinham acabado de recuperá-los quando foram detidos. Levei o dinheiro para pagar a fiança, uma quantia equivalente a dois anos de vida. Não lamentei fazer isso, não naquela altura: cinco ou seis anos a mais, em vez de sete ou oito, ou três ou quatro, em vez de cinco ou seis, me pareciam a mesma coisa. Além do mais, ainda restava a possibilidade de recuperar a fiança, se os tertulianos fossem inocentados. Menos provável era que um dia eles pudessem recuperar seus Tempos perdidos,  pois tinham passado a ser as evidências de um crime. Esperamos até que os liberassem, e quando eles saíram não houve abraços nem cenas de alívio, só um entrecruzar de olhares a meio caminho entre o ódio e a gratidão, se é que existe um caminho ligando os dois sentimentos. Tínhamos ido de táxi, mas, como agora éramos uma  pequena multidão, sugerimos voltar de metrô. Um dos tertulianos, entre aqueles que ao longo de toda esta história não tinham dito nem feito nada para se diferenciar, disse que já havia trabalhado por lá e que podia nos guiar até a estação do metrô. Fomos caminhando, em silêncio, Dorotea e Willem de mãozinhas dadas, eu calculando a hora em que poderia dizer alguma  besteira para que deixássemos de parecer um cortejo fúnebre. Esperei dois quarteirões e soltei:

 — Sentimos muita saudade de vocês.  — Por que fez isso? —  perguntou Francesca. Por que fiz o quê?, pensei. Emprestar os Tempos perdidos para executar um crime e depois devolvê-los cheios de evidências que os incriminavam ou fazer de conta que eu não sabia de nada e dizer que tudo tinha sido uma confusão?

 — Por que fiz o quê? —  perguntei em voz alta.  —  Pagar a fiança —  respondeu.  —  Não precisava fazer isso, nós já estávamos reunindo o dinheiro. Eu vou lhe pagar minha par…

 —  Não se engane,  Frantchesca, não fiz isso por causa do que está imaginando.  — Que é que eu estou imaginando?  — Que amoleci, que me sinto culpado, que acho que estou em dívida com vocês.  — E não está?

 — Claro que não.  — Então?  —  É uma negociação. A verdadeira negociação. A senhora some com o atestado

médico, e eu não denuncio pra administração do edifício que a síndica está sendo investigada por um crime.

 — Um crime do qual sou inocente.  — Por isso mesmo que eu paguei a fiança.  — Porque se sente culpado.  — Porque, se os Tempos perdidos não tivessem desaparecido, nada disso teria acontecido.  —  Não sabia que o senhor tinha algum senso de justiça.  —  Venha tomar um uísque comigo hoje à noite que eu lhe explico tudo o que sei sobre  justiça e justiçamentos, começando pelas catacumbas do Império Romano.

 — Seu pervertido.  — Assim que eu gosto. Continuamos a caminhada em silêncio. Era aquela hora da tarde em que o único resquício do sol era o calor que subia do asfalto, olhei para o horizonte, por entre os prédios, e então avistei o autorretrato estampado numa lona de plástico pendurada na fachada de um antigo palácio colonial.

 — ESPEREM! — gritei. Todo mundo estacou, imaginando que eu alertava para algum perigo, um carro desgovernado, um cachorro louco.

 — Que foi? —  perguntou Willem.  — Que foi? —  perguntou Francesca.  — Que foi? —  perguntou Dorotea.  — Que foi? —  perguntou o coro dos tertulianos. Li o anúncio da exposição: A natureza ferida. Manuel González Serrano. 1917-1960.

 — É ele — respondi.  — Quem? —  perguntou Willem.  — O Feiticeiro. Puxei pelo braço o tertuliano anônimo que nos guiara até lá e, dando-lhe um beliscão para ver se eu não estava sonhando, perguntei:

 — E você, qual o teu nome?  — Virgilio.

Até que um dia, como era de esperar, como era normal, meu pai morreu de verdade. Quem me avisou, por telefone, foi uma mulher do Instituto Médico-Legal de Manzanillo, e por mais que, calculando a idade do meu pai, fosse bem provável que ela estivesse dizendo a verdade, eu não estava disposto a cair naquela cilada mais uma vez. Inventei que precisava do atestado de óbito para tomar umas providências antes de viajar, e me mandaram uma cópia do documento  por fax, para a papelaria que ficava na frente do prédio para onde eu tinha me mudado e onde morava naquela época, sozinho. Ironias da vida: antes da verdadeira morte do meu pai, eu tinha vivido o desaparecimento da minha mãe e da minha irmã. O fax chegou meio borrado, todo tremido, mas dava para ver o timbre do governo de Colima e metade do nome do meu pai. Uma meia verdade que, de imediato, me obrigava a confirmá-la. Entrei num ônibus e doze horas depois cheguei a Manzanillo. Ninguém estava me esperando na rodoviária. Fui até o necrotério, e lá me informaram que meu pai estava morto de verdade, que tinha se suicidado tomando cianureto, além de uma suposta fórmula conservante que retardaria a putrefação do seu cadáver. Isso eu soube numa carta que ele me deixou, a carta do suicida. Nela meu pai tinha escrito, com tinta vermelha e letra trêmula e apertadinha, tão inclinada para a direita que as frases pareciam querer se adiantar em cair duras, um bilhete que levei horas para decifrar, sentado na sala de espera do necrotério, enquanto esperava a liberação do corpo: Chegou a hora, a hora perfeita. Me leve com você de volta ao DF e me entregue ao Semefo. O coletivo de arte, hein?, não o Serviço Médico Forense de verdade. Vi uma exposição impressionante que eles fizeram em Colima na semana passada: baldes de sangue humano e  fotos de cadáveres. Procure por Teresa Margolles, ela vai ter alguma ideia Consegui cremar o corpo nessa mesma noite e no dia seguinte paguei um pescador para que me levasse mar adentro. Quando achei que estávamos bastante longe da costa, entreguei as cinzas do meu pai ao oceano Pacífico.

 — Quem era? —  perguntou o pescador.  — Meu pai — respondi. O homem se movia no ritmo do balanço do barco, homem e barco sincronizados pela rotina da solidão da pesca. Fechei os olhos para tentar recordar meu pai quando era jovem, mas tudo que me veio à mente foi a imagem de um copo com o logotipo de uma marca de cerveja onde ele costumava enxaguar seus pincéis, a água eternamente turva. O pescador interrompeu meu devaneio:

 — Melhor o senhor não olhar  — disse. Claro que abri os olhos e os dirigi para a superfície do mar: um cardume de peixes estava devorando os restos de meu pai.

 —   Não

se importa?  —   perguntou o  pescador. Estava desenrolando uma rede. Respondi que não. E aproveitou para pescar.

Postado diante dos muros da exposição, ladeado por Dorotea e Willem, que tinham ficado  para me acompanhar, comecei a ler os textos que acompanhavam os quadros, beliscões que, no entanto, não conseguiam me acordar: Nascido em Lagos de Moreno, Jalisco, em 1917, Manuel González Serrano pertenceu à Outra face da Escola Mexicana de Pintura , também chamada Contracorrente. Teve sua etapa mais produtiva na década de 40 e durante a primeira metade dos 50 do século passado e, ao fim de uma vida marcada por numerosos episódios de reclusão em hospitais psiquiátricos, faleceu na qualidade de indigente, em plena rua, no centro da Cidade do  México. O museu zumbia agitado porque estava quase na hora de fechar, com todas as salas cheias dos frequentadores habituais: madames sem critério que não perdiam uma exposição, garotos que copiavam os títulos das obras nos seus cadernos para provar a assistência a seus professores, grupos de aposentados cumprindo a agenda semanal, turistas estrangeiros ávidos de sua dose de exotismo e predispostos a interpretar tudo errado, casais jovens que ao sair iriam tomar um sorvete. Eu ia me esquivando da multidão que se amontoava na frente dos quadros, mais  preocupado em chegar ao texto seguinte, como se esses textos fossem o capítulo final de um livro que explicaria o significado da história, o sentido da minha vida: O Feiticeiro continua  sendo em  grande medida um artista desconhecido, devido à escassa ou nula inclusão de sua  produção nos acervos museográficos públicos, nos roteiros curatoriais das exposições temporárias e na bibliografia que versa sobre a pintura mexicana da primeira metade do século  XX. Dorotea e Willem notavam minha agitação e me perseguiam perguntando a cada instante:

 — O senhor está bem?  —  Quer que lhe arrranje

um copo

d’água? Até que eu lhe disse:

 — Olha só, Güílen, dá uma lida nisto aqui. E ele leu: depois de se estabelecer na capital do país, durante a primeira metade da década de 30, logo abandonou os estudos que iniciara como ouvinte esporádico em San Carlos e La  Esmeralda.

 — O que isso quer dizer? — Willem me perguntou.  — Esporádico quer dizer de vez em quando — respondi.

 —  Não estou falando disso.

Querrro dizer o que quer dizer tudo isto aqui, a exposição. Quer dizer que existe memórrria parrra todos? Que a histórrria corrrige seus errros?

 —  Não sei, Güílen, isto não é um romance, é a vida, e não é tão simples de explicar. Deixamos o museu enxotados pelos guardas e fomos caminhando, eu cambaleando, seguindo as indicações que Virgilio tinha nos dado, rumo à estação de metrô. Durante o trajeto, eu apalpava com ambas as mãos o folheto da exposição, que tinha pegado para confirmar, no dia seguinte, e no seguinte e no seguinte, que aquilo havia acontecido de verdade. Caminhávamos em silêncio, quebrado a trechos pelo estalo dos beijos que os pombinhos se propinavam. A dois quarteirões do metrô já se avistava a aglomeração: a estação parecia estar fechada. No meio da multidão, achamos os tertulianos debatendo como voltariam para casa.

 — O que aconteceu? —  perguntamos.  — O metrô está fechado — informou Hipólita.  — O metrô inteiro —  precisou Francesca — , dizem que a cidade inteira está um caos. Fomos nos intrometendo nas conversas em volta, aqui e ali, até montar um compêndio de  boatos. Diziam que a terra tinha rangido e que a rachadura do Monumento à Revolução estava crescendo e já atravessava a avenida Insurgentes e o Paseo de la Reforma inteirinhos. Diziam que a multidão se reunira em torno do monumento, no começo apenas por curiosidade, mas que a coisa estava virando um levante. Diziam que o Monumento à Revolução estava prestes a desabar. Que o metrô estava fechado por medida de segurança e que não abriria tão cedo.

 — Eu sei como voltar a pé — assegurou Virgilio, e passamos a segui-lo. Foi quase uma hora de caminhada, no ritmo pesaroso imposto pelas varizes de umas, pelos  joanetes de outros, pela arritmia de vários, pelo fôlego curto de todos. Presenciamos um engarrafamento que abarcava a cidade inteira e do qual não havia jeito de escapar, a não ser abandonando os carros. Fomos vendo como as pessoas se lançavam na rua e ouvimos o clamor subterrâneo de algo que estava acordando. Chegando ao prédio, já perto das oito da noite, vimos três caminhonetes carregando tomates  podres da quitanda. Juliette apareceu na porta para gritar:

 — Chegou o dia, Teo! Chegou o dia! Willem me chamou à parte e me pediu muito discretamente, a plaquinha com seu nome tremendo sobre o coração:

 — Pode me emprestar seu apartamento? Eu lhe entreguei as chaves e o vi atravessar o hall, de mãos dadas com Dorotea, e não consegui evitar uma comoção: a história escreveria uma página gloriosa. O portão se fechou e fiquei postado na calçada.

 — Você não vem? —  perguntou Juliette, que se preparava para fechar a quitanda.  — Aonde? — respondi.  — Todo mundo está indo pra Plaza de la Ciudadela.

 —  Não estou pra essas brincadeiras,  Djuliét , vou tomar uma cerveja no boteco.

Deu uma gargalhada feliz, e por um instante achei que para ela a Revolução era um Carnaval e ela sua rainha, mas estava rindo de outra coisa.

 — Você é mesmo um pervertido, Teo — disse.  — Por quê? —  perguntei.  —  Como assim por quê?  —  disse, dirigindo os olhos para minha virilha.  —  Olha isso, você melou a calça. Caminhei até o boteco da esquina, entrei e fui direto ao banheiro para esfregar a roupa com um pedaço de papel molhado. Quando consegui o efeito de parecer que eu tinha urinado na calça, saí e pedi uma cerveja e uma tequila e me sentei para ver Mao entrar, arrastando a mala onde tinham ido e vindo os Tempos perdidos, como um bólido descontrolado em direção à minha mesa.

 — Cadê a Dorotea?! — gritou.  — Você está perdendo a Revolução, rapaz — devolvi.  — Cadê?!  — Você sabe, está com o Güílen.  — Vou quebrar a cara desse mormonzinho!  — Relaxa, Mao, lembra da nossa conversa do outro dia. Estatelou-se na cadeira à minha frente, derrotado, mas começando a se enganar, pensando que essa derrota não era mesmo a mais importante. Dava vontade de lhe passar a mão na cabeça.

 —  Não me oferece uma breja? —  perguntou. Gritei para o dono do boteco que lhe trouxesse uma cerveja e uma tequila. Esperamos em silêncio. Trouxeram as bebidas, e ele deu um longo gole de cerveja.

 — Soltamos o cachorro — disse.  —  Já te falei que não quero saber de nada, quanto menos eu souber, melhor. Agora que os tertulianos estão livres, não vamos complicar as coisas.

 — Só queria que o senhor soubesse que abortamos a operação.  — Está bom — respondi. Apontei com o queixo para a mala que usávamos para o tráfico de Tempos perdidos.

 — Conseguiu os livros? —  perguntei.  —  Tive que comprar. Pra pegar da biblioteca, só se ficassem invisíveis. Além do mais, pra  juntar esse monte, eu ia ter que peregrinar por todas as faculdades de letras do país. Da próxima vez, me avise com tempo.

 — Quanto foi?

 — Mil e cem pesos.  — O quê?!  — Cem cada um. Mas não se preocupe, vovô, tirei o dinheiro do orçamento da operação.  — Acho bom! Porque eu não ia te pagar. Abaixou-se para a mala e foi abrindo o zíper enquanto dizia:

 — Também lhe trouxe outra coisa.  — As obras completas de Adorno?  — O elixir de Tlalnepantla — disse, colocando uma garrafa de uísque sobre a mesa.  — Quanto?  — Cinquenta pesos.  — Ei, eu comprava por trinta.  — Vinte pesos de imposto anarquista. Continuou bebendo a cerveja e a tequila em silêncio, preparando-se para virar a página, ou  para voltar atrás, como ainda é possível fazer na juventude, a um momento anterior a Dorotea a  partir do qual pudesse desviar a história em outra direção. Saiu do seu ensimesmamento com expressão sonhadora.

 — O senhor viu o que aconteceu com o avião? —  perguntou. Respondi que não, e ele me passou o celular para que eu lesse uma notícia de jornal: um comando terrorista tinha sequestrado um avião cheio de corretores da bolsa, na ponte aérea Londres-Nova York, usando cinco exemplares da edição crítica, de capa dura e mil e quarenta  páginas, do Ulysses de James Joyce.

 — Estamos fazendo escola — disse. Terminou as bebidas e se despediu, dizendo que seus camaradas o esperavam em La Ciudadela. Apertamos as mãos e, antes que ele fosse embora, perguntei:

 —  Como eu faço pra te avisar quando o uísque acabar? Anotou um número de celular num guardanapo.

 — Quando ligar  — disse — , pergunte pelo Juan.  — Teu nome é Juan?  —  Não, esse é o código. Pedi outra cerveja e outra tequila, e mais outra, e outra, até que, quase na hora do boteco fechar, Willem apareceu com um sorriso tão grande que me fez perceber que eu nunca tinha reparado no tamanhão dos seus dentes.

 — E aí? —  perguntei.

 — Estou apaixonado — respondeu.  — Espero que você tenha usado camisinha.  — Camisinha é pecado.  —  Me ajuda a levar essa mala até o apartamento. Além disso, você vai ter que lençóis.

lavar os

Tiveram que passar o trator nos escombros do Hospital de Cardiologia: não tinham resgatado minha mãe, não tinham resgatado minha irmã. Também não encontraram seus corpos, assim como os de outros milhares por toda a cidade. Começaram a ser organizados funerais simbólicos, sem corpos, sem mortos. O que se enterrava, quando muito, e às vezes nem isso, era apenas a lembrança. Poucas semanas antes, durante um dos seus costumeiros acessos de hipocondria, minha mãe nos dera instruções para enterrá-la no jazigo da família, no Panteão Civil de Dolores, a um quilômetro da Rotatória das Pessoas Ilustres. Mortos seus pais, mortos seus irmãos, tive apenas que conseguir uma autorização de uns primos distantes, que nunca víamos e que nem sequer se incomodaram em ir ao enterro. Para preparar a cerimônia, dei uma meia de náilon a Ochentaytrés, uma meia longuíssima, tão longa como as pernas da minha irmã, uma meia que ela nunca mais voltaria a usar, e os ossos do cachorro foram parar, dentro de um caixão de pinho com uma plaquinha de ouro com os nomes gravados da minha mãe e da minha irmã, em cima dos ossos do meu avô, que tinha morrido durante a Revolução, atingido por uma bala perdida.

A tertúlia acabou de ler o primeiro livro do Tempo perdido e, para comemorar, organizaram um coquetel com champanhe de Zacatecas e biscoitos salgados untados de patê de atum com maionese. Quando atravessei o hall rumo ao boteco e me convidaram a ficar, gritei como resposta:

 — Tanta finesse me ataca a gastrite! E justo quando parecia que não podia acontecer mais nada, depois de acontecerem tantas coisas, descobriram que o novo entregador estava dizendo a verdade. Só soubemos disso quando Hipólita, naquela noite, tropeçou na lata desaparecida de chilis jalapenhos no corredor do  primeiro andar. Os moradores declararam o rapaz inocente de furto e culpado de homicídio multiplamente qualificado: Hipólita não sobreviveu à queda. Os tertulianos sentenciaram:

 — A culpa é do supermercado, por contratar esse entregador negligente.  — A culpa é do novo entregador, que não viu a lata abandonada no corredor.  — A culpa é da administração do edifício, que não cuida da manutenção.  — A culpa é do médico, por ter receitado esse analgésico que a deixava tonta.  — A culpa é do gesso; se ela pudesse se segurar não teria batido a cabeça.  —  A culpa é do marido; se o marido não a tivesse enganado, ela não precisaria ir  embora de Veracruz e não teria acabado neste prédio.

 — A culpa é do champanhe, que era muito forte.  — A culpa é da Hipólita, por ter bebido três copos de champanhe. Eu tratei de dar minha contribuição:

 — A culpa é do Proust, por não ter feito o Tempo perdido mais curto!  No pronto-socorro, disseram que ela estava entupida de analgésicos. Pelo menos não sentiu dor. Não houve funeral nem enterro, porque os filhos cremaram o corpo e levaram as cinzas para Veracruz. Disseram que iam espalhá-las ao pé do Pico de Orizaba. Em vez de cortejo fúnebre, a tertúlia em peso organizou uma passeata de protesto até o supermercado. Juliette, que era uma sentimental, doou cinquenta quilos de tomate. Quando, da minha sacada, vi o contingente tomar seu rumo, gritei:

 — Tem uma livraria da Aliança Francesa na rua Sócrates! Tentando entender tudo o que tinha acontecido, escrevi no caderno: Como entender  tudo o que aconteceu? Qual seria o sentido dos acontecimentos? Seria um resgate dos esquecidos, dos desaparecidos, dos malditos, dos marginais, dos vira-latas? Seria um jeito arrevesado de dizer que os historiadores da arte são revisionistas? Seria uma piada de mau gosto da vida para se livrar de Hipólita? Ou tudo havia sido orquestrado pelo destino para unir Willem e Dorotea? E  se eles tivessem um filho? E se uma criança acabasse sendo o resultado de toda essa história? Seria então a vida abrindo caminho a qualquer preço? Ou, pior, haveria em tudo uma lição moralista e eu teria que parar de beber e dirigir minhas compulsões para outra atividade, por exemplo, escrever um romance? A necessidade de entender tudo, de tentar resumir tudo num ensinamento, me provocou um sono intranquilo. A certa altura da madrugada, no fundo de uma longa sala de exposições, reconheci o vulto inconfundível do Feiticeiro. Caminhei até ele e vi aproximar-se de mim, rodeado da habitual matilha de vira-latas melancólicos.

 — Agora sim você está pronto pra escrever o meu romance — ele me dizia.  — Parabéns — eu respondia.  — Por quê?  — Pela exposição.  — Você acha que me interessa o reconhecimento da posteridade?  —  Não?  — Eu sofri mais do que Cristo, nada pode remediar isso.  —  Nem um romance.  — Tem razão, mas o romance que você vai escrever é  sobre mim, não  para mim.  — E pra quem é, então?  — Pra quem seria? Olha. Aí levantava a camisa e tirava de dentro da calça, onde o levava enfiado, um exemplar da Teoria estética. estética. Abria o livro sem vacilar, na página 36, e me ordenava:

 — Lê isto aqui. E eu lia uma frase que se destacava em letras douradas: O novo é irmão da morte. morte.

 — Eu vou morrer? —  perguntava.  —  Ainda não  —  ele respondia  — , primeiro você vai escrever um romance. acorda.

 — Como?  — QUE É PRA VOCÊ ACORDAR, CARALHO!

Agora

Acordei suando frio, com uma dor aguda no fígado, e me levantei para beber um copo d’água

e procurar um remédio para me acalmar. Ao atravessar a sala no escuro vi uma luzinha acesa. Procurei o interruptor às apalpadelas. Quando o encontrei, a lâmpada iluminou Francesca, vestida com um longo roupão de seda vermelha, sentada na minha poltroninha, usando a luminária chinesa para ler meu caderno.

 —  Me dê aqui a chave  —  ordenei. Mostrou-me um molho repleto delas.

 — A minha — insisti.  —  Não posso  —  respondeu  — , é minha responsabilidade, a responsabilidade

do

síndico. Quem o senhor pensa que abre a porta quando alguém morre?

 —  A senhora ficou esse tempo todo entrando no meu apartamento de madrugada?  Não respondeu, dando a entender que era isso mesmo que ela tinha feito.

 —  Mas como é possível que eu só tenha percebido agora?!  —  perguntei em voz

alta, embora mais parecesse uma expressão de surpresa que ricocheteasse dentro da minha cabeça.

 — O senhor tem o sono pesado. Talvez se não bebesse tanto… entrado pra xeretar  — Se eu não bebesse tanto, a senhora não teria entrado

no meu caderno? Levantou-se e deixou o caderno onde tinha apoiado seu macio, firme e longamente desejado traseiro.

 — Agora sim o senhor está pronto para escrever o romance — afirmou.  — Como?!  — Eu disse que já pode começar a escrever o romance.  — Tem uma coisa que eu não entendo — devolvi.  — O quê?  — Por que tanta insistência? Pra quê? O que a senhora ganha com isso?  — Ainda não entendeu? Eu trabalho para a literatura.  —  Não diga! E recebe uma bolsa pra isso?  — Mais ou menos. menos? Como assim, mais ou menos? menos? A senhora não pode entrar no  —  Mais ou menos?

meu

apartamento pra brincar de adivinhas!

 — O que eu ganho é um romance.  —  Não vai me dizer agora que a senhora é uma musa. Ficou de novo calada para confirmar minha suspeita, e eu ergui as sobrancelhas o necessário  para exigir uma explicação.

 —  O que esperava?  —  respondeu.  —  Uma ninfa voejando à beira de um regato? Uma moçoila translúcida de longos cabelos loiros e olhos azuis sentada num café de Paris? Uma morena de seios enormes amamentando os filhos da terra?

 — Pra uma musa, a senhora age de um jeito bem tortuoso.  —  E não se esqueça de que eu tenho o atestado médico. Se continuar rebelde, eu o mando  para o asilo.

 — Eu pensava que as musas inspiravam, não que chantageavam.  —  Isto aqui é a vida real, não é literatura. E não se faça de bobo, que a única

coisa que o

senhor queria era me levar para a cama.

 — E então?  — E então o quê?  — Tenho alguma chance? Levou as mãos à cintura, até a faixa de seda que fazia as vezes de cinto do roupão, e apertou o nó suavemente, tão suavemente que, em vez de uma negativa, o gesto teve o ar de uma vaga  promessa.

 —  Veremos  —  respondeu.  —  Primeiro escreva o livro. Escreva sobre nós. Sobre tudo o que aconteceu conosco. Escreva nossa história. Indiquei-lhe a saída com gesto de toureiro e a vi partir, empurrada por sua petulância ordinária, deixando atrás um leve rastro de fragrância cítrica. Quer dizer, então, que devia começar a escrever um romance. Francesca não sabia com quem estava se metendo. No dia seguinte convoquei Mao com a máxima urgência e, usando as técnicas que ele tinha aprendido na tomada de prédios públicos, instalamos um sistema para trancar a porta do apartamento. De noite me servi a última do dia, que depois acabou sendo a terceira antes da penúltima, e comecei a pensar num romance que o autor não quer escrever, um romance sobre o que não se sabe que se viveu, um romance sobre o que não se viveu e, no entanto, se sabe, um romance que seria como um prato de tacos de cachorro. Fiquei folheando a Teoria estética  estética  ao acaso, relendo os fragmentos sublinhados, tomando-os como inspiração, depois abri o caderno, empunhei a caneta e comecei a escrever: Naquele escrever:  Naquele tempo, toda as manhãs, ao sair do meu apartamento, o 3-C, eu topava no corredor com a vizinha do 3-D, que tinha enfiado na cabeça que eu estava escrevendo um romance. A vizinha se chamava Francesca, e eu, era só o que me faltava, não estava escrevendo romance nenhum.

Dívidas e agradecimentos

Aos membros do CIL, o Comitê Íntimo de Leitores, que melhoraram significativamente o manuscrito deste romance com suas apreciações: Andreia Moroni, Teresa García Díaz, Cristina Bartolomé, Rosalind Harvey, Iván Díaz Sancho, Javier Villa e Luis Alfonso Villalobos. Em algum momento impreciso da adolescência, entre goles de tequila, Óscar Serrano me falou pela primeira vez do seu tio-avô, Manuel González Serrano. Patrick Charpenel teve a generosidade de me ministrar uma aula magna de arte mexicana do século XX,  via Skype. As imprecisões que pode haver nestas páginas são responsabilidade da cabeça de romancista do romancista. Entre goles de vinho tinto e gols do Barça, Manuel Silva não se cansou de me repetir que ninguém pode escrever, refletir sobre a arte nem sequer respirar sem ter lido a Teoria estética de Adorno. Carmen Cáliz, em seu curso de mitologia da Universitat Autònoma de Barcelona, me apresentou a inquietante e magnífica (e também louquíssima) obra de James Hillman. Este romance é uma homenagem ao Fondo de Cultura Económica, cujos livros me acompanharam ao longo da vida e escoraram mais de uma mesa capenga, especialmente as do coração e da cabeça. Os textos da exposição de Manuel González Serrano provêm, ligeiramente editados, das reportagens publicadas em La Jornada por Argelia Castillo e Alondra Flores Soto. María Elena González Noval foi curadora da exposição  La naturaleza herida, exibida originalmente no Museu Mural Diego Rivera da Cidade do México, em 2013. Alguns personagens deste romance são reais, a grande maioria é fictícia. Alguns fatos narrados são reais, a grande maioria, fictícia. Os cachorros são todos fictícios: nenhum deles morreu assassinado.

RENATO PARADA

JUAN PABLO VILLALOBOS nasceu em 1973, no México, e atualmente vive em Barcelona. Te vendo um cachorro completa a sua trilogia sobre o México, que começou com o aclamado  Festa no covil  e foi seguido por Se vivêssemos em um lugar normal , ambos publicados pela Companhia das Letras.

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