SVENDSEN, LARS _ FILOSOFIA DO TÉDIO

July 27, 2017 | Author: Débora Gomes | Category: Time, Information, Homo Sapiens, Existentialism, Life
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Lars Svendsen

Filosofia do tédio

Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges

Jorge ZAHAR Editor Rio de Janeiro

Título original: Kjedsomhetens filosofi Esta obra foi originalmente publicada em 1999 por Universitesforlaget, de Oslo, Noruega Copyright © 1999, Universitesforlaget Copyright da edição brasileira © 2006: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 e-mail: [email protected] site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Esta tradução foi publicada com apoio financeiro de NORLA Capa: Dupla Design

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

S974f

Svendsen, Lars, 1970Filosofia do tédio / Lars Svendsen; tradução, Maria Luiza X. de A. Borges. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006 Tradução de: Kjedsomhetens filosofi ISBN 85-7110-962-1 1. Tédio. 2. Tédio na literatura. I. Título.

06-3956

CDD 152.4 CDU 159.942

Sumário

Prefácio

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1. O problema do tédio

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O tédio como problema filosófico, 11 | Tédio e modernidade, 21 | Tédio e significado, 27 | Tédio, trabalho e lazer, 35 | Tédio e morte, 39 | Tipologias do tédio, 43 | Tédio e novidade, 47 2. Histórias do tédio

52

Acédia: Tédio pré-moderno, 52 | De Pascal a Nietzsche, 55 | Tédio romântico, de William Lovell a O psicopata americano, 64 | Sobre tédio, corpo, tecnologia e transgressão: Crash, 87 | Samuel Beckett e a impossibilidade do significado pessoal, 102 | Andy Warhol: A renúncia ao significado pessoal, 110 3. A fenomenologia do tédio

118

Sobre os humores, 118 | Ontologia: A hermenêutica do tédio, 128 4. A ética do tédio

146

Que é um eu?, 146 | Tédio e história humana, 148 | A experiência do tédio, 152 | Tédio e maturidade, 162 Posfácio Notas

167 170

Índice onomástico

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O PROBLEMA DO TÉDIO

O TÉDIO COMO PROBLEMA FILOSÓFICO Na condição de filósofos, temos de tentar, de vez em quando, tratar de grandes questões. Se não o fazemos, perdemos de vista o que, para começar, nos levou a estudar filosofia. Em minha opinião, o problema do tédio é uma dessas grandes questões, e sua análise deveria revelar algo importante sobre as condições em que vivemos. Não deveríamos – e, de fato, não podemos – evitar considerar de quando em quando nossa atitude em relação à questão do que significa ser. Pode haver muitas razões iniciais para refletirmos sobre nossa vida, mas o que há de especial nas experiências existenciais fundamentais é que elas nos levam, inevitavelmente, a questionar nossa própria existência. O tédio profundo é uma experiência existencial fundamental. Como Jon Hellesnes perguntou: “O que pode ser mais existencialmente perturbador que o tédio?”1 As grandes questões não são necessariamente as questões eternas; o tédio, por exemplo, só passou a ser um fenômeno cultural central há cerca de dois séculos. É impossível, claro, deter} 11 {

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minar quando ele surgiu. Ademais, naturalmente teve precursores. Mas ele se destaca como um fenômeno típico da modernidade. Em geral, os precursores ficaram restritos a grupos pequenos, como a nobreza e o clero, ao passo que o tédio da modernidade tem amplo efeito e pode hoje ser encarado como um fenômeno relevante para praticamente todos no mundo ocidental. Em geral, o tédio é considerado aleatório em relação à natureza do homem, mas isto se baseia em suposições no mínimo duvidosas com respeito ao que seja esta última. Seria igualmente possível afirmar que o tédio está incorporado à natureza humana, mas, para isso, é preciso pressupor que existe algo que pode ser chamado de “natureza humana” – o que me parece problemático. A postulação de uma dada natureza tende a encerrar qualquer discussão adicional. Pois, como mostra Aristóteles, dirigimos nossa atenção, em primeiro lugar, ao que é passível de mudança.2 Ao postular uma natureza, estamos sustentando que ela não pode ser mudada. É também tentador afirmar a existência de uma natureza humana completamente neutra e atribuir ao homem um potencial igualmente grande para experimentar tanto tristeza quanto felicidade, tanto entusiasmo quanto tédio. Nesse caso, a explicação para este último deverá ser encontrada exclusivamente no ambiente social do indivíduo. Não acredito, contudo, que se possa fazer uma distinção clara entre aspectos psicológicos e sociais quando se lida com um fenômeno como o tédio, e um sociologismo redutivo é tão insustentável quanto um psicologismo. Por isso, escolho abordar o assunto de um ângulo diferente, adotando uma perspectiva baseada, em parte, na história das idéias e, em parte, na fenomenologia. Nietzsche salientou que “o erro hereditário de todos os filósofos” é basear-se no homem de uma época particular e depois transformar isso numa verdade eterna.3 Assim, vou me contentar em declarar que o tédio é um fenômeno

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muito sério que afeta muita gente. Aristóteles insistiu em que a virtude não é natural, mas tampouco é antinatural.4 O mesmo se aplica ao tédio. Além disso, pode-se levar a cabo uma investigação sobre esse tema sem pressupor nenhuma constante antropológica, isto é, qualquer coisa dada independentemente de um espaço especificamente social e histórico. Estamos lidando aqui com uma investigação do homem numa situação histórica particular. É sobre nós que estou escrevendo, nós que vivemos à sombra do Romantismo, como românticos inveterados, sem a fé hiperbólica do Romantismo no poder da imaginação para transformar o mundo. Embora toda boa filosofia deva conter um elemento importante de autoconhecimento, ela não precisa necessariamente tomar a forma de uma confissão inspirada nas Confissões de santo Agostinho. Muitos me perguntaram se me envolvi com este projeto porque sofria de tédio, mas o que sinto pessoalmente não deveria ser de nenhum interesse para os leitores.5 Não concebo a filosofia como uma atividade confessional, vejoa antes como uma atividade que trabalha para obter clareza – uma clareza que, reconhecidamente, nunca é mais que temporária –, na esperança de que a pequena área sobre a qual temos a impressão de ter lançado luz venha a ser também relevante para outros. De um ponto de vista filosófico, minha condição particular é irrelevante, ainda que, naturalmente, seja importante para mim. Fiz um pequeno levantamento, não científico, entre colegas, alunos, amigos e conhecidos, e revelou-se que, em geral, eles eram incapazes de dizer se estavam entediados ou não – embora alguns tenham respondido na afirmativa ou na negativa e uma pessoa tenha até sustentado que nunca se sentira entediada. Aos leitores que, por ventura, nunca tenham se sentido entediados, posso dizer, à guisa de comparação, que o tédio profundo está relacionado, fenomenologicamente falando, à insô-

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nia, em que o “eu” perde sua identidade na escuridão, preso num vazio aparentemente infinito. Tentamos adormecer, damos talvez alguns passos hesitantes, mas não alcançamos o sono, e acabamos numa terra de ninguém, entre o estado de vigília e o sono. No Livro do desassossego, Fernando Pessoa escreveu: Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem. 6

O tédio de Pessoa é óbvio – é distinto em toda a sua falta de forma. No entanto, é da natureza das coisas que poucos sejam capazes de dar uma resposta inequívoca quando perguntados se estão entediados ou não. Em primeiro lugar, estados de espírito, de maneira geral, raramente são objetos intencionais para nós – são precisamente algo em que nos encontramos, não algo para que olhamos conscientemente. Em segundo lugar, o tédio é um estado de espírito tipificado pela falta de qualidade, o que o torna mais elusivo que outros. O pároco de aldeia de George Bernanos fornece uma excelente descrição da natureza imperceptível do tédio em Diário de um cura de aldeia: Eu me dizia, assim, que os homens são consumidos pelo tédio. Naturalmente, temos que refletir um pouco para perceber isto – não é coisa que se veja de imediato. É uma espécie de poeira. Vamos para cá e para lá sem vê-la, a aspiramos, a comemos, a bebemos, e ela é tão fina que nem

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sequer range entre nossos dentes. Mas basta pararmos por um momento, e ela assenta como um manto sobre nosso rosto e nossas mãos. Temos de estar a sacudir constantemente de nós essa chuva de cinzas. É por isso que as pessoas são tão agitadas.7

É perfeitamente possível estar entediado sem ter consciência disso. E é possível estar entediado sem ser capaz de apontar qualquer razão ou causa. Os que afirmaram, em meu pequeno levantamento, estar profundamente entediados foram, muitas vezes, incapazes de expor com precisão o motivo; não era isso ou aquilo que os afligia, tratava-se antes de um tédio sem nome, sem forma, sem objeto. Isso lembra o que Freud disse acerca da melancolia, enfatizando uma semelhança entre esta e a tristeza, já que ambas contêm uma consciência de perda. Mas enquanto a pessoa triste tem sempre um objeto de perda específico, o melancólico não sabe exatamente o que perdeu.8 Como a introspecção é um método com limitações óbvias quando se trata de investigar o tédio, decidi examinar criticamente certo número de textos de natureza filosófica e literária. Vejo a literatura como uma excelente fonte de material para estudos filosóficos, e para a filosofia da cultura ela é tão indispensável quanto os trabalhos científicos para o filósofo da ciência. Via de regra, a literatura é muito mais iluminadora que estudos sociológicos ou psicológicos quantitativos. Isto não se aplica menos ao nosso assunto: muitas pesquisas focalizaram de que maneira a deficiência ou o excesso de estímulos sensoriais causa tédio, sem que isso seja sempre particularmente esclarecedor em se tratando de fenômeno tão complexo.9 Como o psicanalista Adam Phillips expressou: “Claramente, deveríamos falar não de tédio, mas de tédios, porque a própria noção inclui uma multiplicidade de humores e sensações que resistem à análise.”10

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Afirma-se muitas vezes que cerca de 10% das pessoas sofrem de depressão no curso da vida. Qual é a diferença entre tédio profundo e depressão? Meu palpite é que há considerável superposição. Eu diria também que quase 100% da população sofre de tédio alguma vez ao longo da vida. O tédio não pode ser compreendido simplesmente como idiossincrasia pessoal. É um fenômeno amplo demais para ser satisfatoriamente explicado dessa maneira. Não é apenas um estado mental interior; é também uma característica do mundo, pois participamos de práticas sociais que estão saturadas de tédio. Por vezes, tem-se quase a impressão de que o mundo ocidental inteiro tornou-se Berghof, o sanatório em que Hans Castorp permaneceu durante sete anos no romance A montanha mágica, de Thomas Mann. Matamos tempo e nos entediamos mortalmente. Assim, pode ser tentador concordar com Lord Byron: “Não sobrou muito senão ser entediado ou entediar.”11 Em minha pequena pesquisa, mais homens do que mulheres declararam ter sentido tédio. Investigações psicológicas indicam também que os homens sofrem mais com isso que as mulheres.12 (Essas investigações corroboram ainda a afirmação de Schopenhauer de que a sensação de tédio diminui com a idade.13) Não tenho nenhuma boa explicação para isso. Pode ser que as mulheres expressem verbalmente o tédio em menor medida que os homens, mas sejam igualmente afetadas por ele. É possível que elas tenham necessidades e fontes de significado diferentes das dos homens e sejam, por isso, menos afetadas pelas várias mudanças culturais que dão origem a esse sentimento. Como mencionado, fui incapaz de encontrar qualquer explicação satisfatória para essa diferença de gênero. Nietzsche também afirma que as mulheres sofrem menos tédio que os homens, e justifica dizendo que elas nunca aprenderam a trabalhar propriamente14 – uma explicação mais do que duvidosa.

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Acho que Kierkegaard exagerou quando disse que “o tédio é a raiz de todo mal”,15 mas, certamente, contribui para muito mal. Não acredito que um número assim tão grande de homicídios seja gerado por ele, pois é sabido que os assassinatos costumam ser atos de paixão. No entanto, ele é freqüentemente citado como a razão para muitos crimes cometidos – inclusive o homicídio. Tampouco podemos dizer que as guerras começam por causa do tédio, embora seja fato que a deflagração de algumas delas foi acompanhada por uma alegria manifesta, com multidões eufóricas enchendo as ruas, como se celebrando o fato de que alguma coisa finalmente quebrara a monotonia da vida cotidiana. Jon Hellesnes escreveu com sensibilidade a esse respeito.16 O problema com a guerra, no entanto, é que ela não só é mortal como se torna também, em pouco tempo, mortalmente entediante. “Guerras sem interesse, o tédio de guerras de cem anos”,17 escreveu Pound. Em A montanha mágica, é a deflagração da guerra que finalmente desperta Hans Castorp de sua modorra de sete anos, mas temos todas as razões para acreditar que o tédio logo voltaria a afligi-lo. Numa tentativa de dizer pelo menos alguma coisa de positivo acerca do tédio, o sociólogo Robert Nisbet afirmou que ele não só é a raiz de muitos males, mas também pôs fim a muitos males, pela simples razão de que eles se tornam, pouco a pouco, entediantes demais. Toma como exemplo a prática de queimar feiticeiras, afirmando que tal costume não se extinguiu por razões legais, morais ou religiosas, mas simplesmente porque se tornara entediante demais, e as pessoas pensaram: “Quando você viu uma pessoa sendo queimada, viu todas.”18 Nisbet provavelmente tem razão nisso, embora dificilmente se possa dizer que o tédio é uma força redentora, pois, em seu argumento, está implícita a idéia de que o tédio foi também a causa da queima das bruxas.

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O tédio veio a ser associado a coisas como abuso de drogas, abuso de álcool, fumo, distúrbios alimentares, promiscuidade, vandalismo, depressão, agressão, animosidade, violência, suicídio, comportamento de risco etc. Há fundamentos estatísticos para estabelecer essas conexões.19 Isso não deveria surpreender ninguém, pois os antigos patriarcas da Igreja já tinham plena ciência dessas ligações, considerando a acédia, o precursor prémoderno do tédio, o pior dos pecados, já que todos os outros derivavam dele. Não pode haver dúvida alguma de que o tédio tem sérias conseqüências não só para os indivíduos como para a sociedade. Para os primeiros, o tédio envolve perda de significado, e isso é grave para a pessoa afligida. Não acredito que possamos saber se o mundo parece sem sentido porque estamos entediados, ou se ficamos entediados porque o mundo parece sem sentido. Há aqui uma relação de causa e efeito provavelmente nada simples. Mas tédio e perda de sentido estão conectados de alguma maneira. Em A anatomia da melancolia, de 1621, Robert Burton afirmou que “podemos falar sobre 88 estados de melancolia, uma vez que diferentes pessoas são atacadas diferentemente e mergulham ou são mergulhadas a profundidades maiores ou menores no abismo infernal”. Pessoalmente, sou incapaz de distinguir precisamente entre tantos estados de tédio, mas ele abrange tudo, desde um ligeiro desconforto a uma profunda perda de significado. Para a maioria de nós, é uma sensação suportável – mas não para todos. Obviamente, é sempre tentador pedir a quem se queixa de tédio ou de melancolia que se “reanime”, mas, como mostra Ludvig Holberg, essa é uma ordem que não é possível cumprir, “é como ordenar a um anão que fique um cúbito mais alto do que é”.20 Quase todos os que falam sobre tédio o consideram um mal, embora haja certas exceções. Johann Georg Hamann descreveu-se como um “Liebhaber der Langen Weile” (um “apaixonado pelo momento demorado”), e quando seus amigos o cri-

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ticavam por ser um inútil, respondia que trabalhar é fácil, ao passo que a ociosidade genuína realmente exige muito de um homem.21 E.M. Cioran tem uma visão semelhante: “Ao amigo que me diz estar entediado porque não consegue trabalhar, respondo que o tédio é um estado superior e que associá-lo à noção de trabalho é degradá-lo.”22 Não há cursos de tédio oferecidos nas universidades, embora, muitas vezes, nos entediemos durante nossos estudos. Tampouco é óbvio que o tédio ainda possa ser considerado um assunto filosófico relevante, embora outrora o tenha sido. Na filosofia contemporânea, quase tudo se tornou variação em torno do tema da epistemologia, e o tédio parece ser um fenômeno que escapa à estrutura da filosofia como disciplina. Ocupar-se com semelhante assunto será, aos olhos de alguns, clara indicação de imaturidade intelectual. É possível. Mas caso o tédio não possa ser considerado um assunto filosófico relevante hoje em dia, talvez tenhamos boas razões para nos preocupar com o estado da filosofia. Uma filosofia que se escusa de tratar da questão do significado da vida dificilmente merece que nos envolvamos nela. Que “significado” seja algo que possamos perder escapa à estrutura da semântica filosófica, mas não deveria ficar de fora da estrutura da filosofia como um todo. Por que deveria o tédio ser um problema filosófico e não apenas um problema psicológico ou sociológico? Tenho de admitir aqui que sou incapaz de propor qualquer critério geral para o que distingue um problema filosófico de um não filosófico. Segundo Wittgenstein, um problema filosófico tem a forma: “Não sei por onde ir.”23 De maneira semelhante, Martin Heidegger descreve a “necessidade” que impele alguém à reflexão filosófica como “um conhecimento não completo”.24 O que caracteriza uma questão filosófica, portanto, é alguma espécie de desorientação. Não é isso também típico do tédio profundo, em que não somos mais capazes de nos situar no mundo

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porque nossa própria relação com ele foi praticamente perdida? Samuel Beckett descreve esse estado existencial de Belacqua, o herói de seu primeiro romance, da seguinte maneira: Ele estava atolado na indolência, sem identidade. ... As cidades e florestas e os seres também não tinham identidade, eram sombras, não exerciam influência nem estímulo ... Seu ser estava sem eixo ou perfil, seu centro em toda parte e a periferia em parte alguma, um pântano não mapeado de preguiça.25

O tédio normalmente surge quando não podemos fazer o que queremos, ou temos de fazer o que não queremos. Mas, e quando não temos nenhuma idéia do que queremos fazer, quando perdemos a capacidade de nos orientar na vida? Então podemos nos encontrar num tédio profundo, que lembra a falta de força de vontade, porque a vontade não consegue se agarrar a coisa alguma. Fernando Pessoa descreveu isso como “sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio”.26 E, como veremos na análise da fenomenologia do tédio de Heidegger, essa experiência pode nos conduzir à filosofia. O tédio carece do encanto da melancolia – um encanto associado ao vínculo tradicional desta com a sabedoria, a sensibilidade e a beleza. Por essa razão, é menos atraente para os estetas. Falta-lhe também a óbvia gravidade da depressão, o que o torna menos interessante para psicólogos e psiquiatras. Comparado à depressão e à melancolia, parece simplesmente trivial ou comum demais para merecer investigação aprofundada. É surpreendente, por exemplo, que o estudo de 600 páginas de Peter Wessel Zapffe, Om det tragiske (Sobre o trágico), de 1941, não contenha uma só discussão sobre o tédio.27 Zapffe menciona claramente o fenômeno em vários pontos, mas não lhe dá seu nome usual. Encontramos, contudo, discussões

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sobre o tédio desenvolvidas por filósofos importantes como Pascal, Rousseau, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Benjamin e Adorno. E, na literatura, temos Goethe, Flaubert, Stendhal, Mann, Beckett, Büchner, Dostoievski, Tchekhov, Baudelaire, Leopardi, Proust, Byron, Eliot, Ibsen, Valéry, Bernanos, Pessoa... A lista está incompleta; o tema é descrito de maneira tão ampla que qualquer relação que se faça é arbitrária. Devemos notar, no entanto, que todos esses escritores e filósofos pertencem ao período moderno.

TÉDIO E MODERNIDADE Disse Kierkegaard: “Os deuses estavam entediados; por isso criaram o homem. Adão ficou entediado por estar só; por isso Eva foi criada. Desde então, o tédio penetrou no mundo e cresceu em proporção exata ao crescimento da população.”28 A idéia de Nietzsche era de que Deus sentira-se entediado no sétimo dia da Criação;29 segundo ele, até os deuses lutavam em vão contra o tédio.30 De minha parte, posso assegurar que Adão não se sentiu entediado. O tédio é um fenômeno muito mais recente. Nesse caso, a questão de por que Adão e Eva resolveram provar da árvore do conhecimento continua sem solução. No Paraíso, o tédio não teria tido lugar, pois o espaço estava preenchido por Deus, cuja presença era tal que tornava supérflua qualquer necessidade de busca por sentido. Ainda assim, Henry David Thoreau corroborou a idéia de Kierkegaard (“Sem dúvida, a forma de tédio e lassidão que se imagina ter esgotado toda a felicidade e a variedade da vida é tão antiga quanto Adão.”31) e Alberto Moravia afirmou que Adão e Eva estavam entediados,32 ao passo que Kant declarou que Adão e Eva teriam se entediado se tivessem permanecido no Paraíso.33 Para Robert Nisbet, Deus baniu Adão e Eva do Paraíso para salvá-los do tédio que, com o tempo, os afligiria.34

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É razoável supor que certas formas de tédio existiram desde o início dos tempos, entre as quais a que será discutida mais tarde como “tédio situacional”, decorrente de algo específico a uma situação. Mas o tédio existencial ressalta-se como um fenômeno da modernidade. Há exceções aqui também. Tomemos, por exemplo, o capítulo de abertura do Eclesiastes, que contém a afirmação “Tudo é vaidade...” e também “O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada de novo sob o sol.”35 Não é despropositado, contudo, dizer que Salomão está fazendo aqui mais uma profecia que um diagnóstico de seu tempo. E o Pastor Løchen em Trette menn (Homens saturados), de Arne Garborg, parece estar certo ao afirmar que esse livro do Antigo Testamento foi escrito para as pessoas da época atual.36 Há também escritos de Sêneca em que, através do conceito de tedium vitae (cansaço da vida), ele descreve algo que lembra muito o tédio moderno.37 É praticamente impossível encontrar textos anteriores que pareçam antecipar o fenômeno. Não afirmo que haja alguma ruptura clara e nítida em algum ponto da história, mas insisto em que o tédio não era objeto de reflexão em extensão considerável antes da fase romântica. Com o advento do Romantismo, ele é, por assim dizer, democratizado e encontra amplas formas de expressão. O tédio é “privilégio” do homem moderno. Embora tenhamos razões para acreditar que a alegria e a ira permaneceram razoavelmente constantes ao longo da história, o volume de tédio parece ter crescido de maneira espetacular. Aparentemente, o mundo se tornou mais entediante. Antes do Romantismo, o tédio parece ter sido um fenômeno marginal, reservado aos monges e à nobreza. Durante muito tempo, foi um símbolo de status, como prerrogativa dos escalões superiores da sociedade, uma vez que estes eram os únicos que possuíam a base material necessária para ele. À medida que se espalhou por todos os estratos sociais, o fenômeno perdeu sua exclusividade. Há ainda outras razões para acreditarmos que ele se encontra razoavelmente bem distribuído por todo o mundo ocidental.

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O tédio sempre contém um elemento crítico,38 porque expressa a idéia de que dada situação ou a existência como um todo são profundamente insatisfatórios. Como François de la Rochefoucauld já assinalou em suas Máximas – que são, sobretudo, descrições argutas da vida na corte francesa – , “quase sempre somos entediados por pessoas para as quais nós mesmos somos entediantes”.39 Na corte francesa, o tédio era privilégio exclusivo do monarca, pois, se alguma outra pessoa ali o expressasse, isso provavelmente seria interpretado de uma única maneira: a de que o monarca a entediava. De maneira semelhante, a acédia anterior, em que os monges caíam num vazio insondável em seu encontro com a Escritura Sagrada, era necessariamente considerada um insulto sem precedentes a Deus. Como podia Deus, em Sua perfeição, ser alguma vez considerado entediante? Estar entediado de Deus é afirmar implicitamente que falta alguma coisa a Ele. Se o tédio aumenta, isso significa que há uma falha grave na sociedade ou na cultura como transmissores de significado. É preciso compreender o significado como um todo. Somos socializados dentro de um significado global (não importa que forma ele assuma) que dá sentido aos elementos individuais de nossas vidas. Outra expressão tradicional para designar isso é “cultura”. Muitos teóricos da modernidade concluíram que a cultura desapareceu e foi substituída, por exemplo, pela “civilização”.40 Se o tédio aumenta, é presumivelmente porque o significado global desapareceu. Naturalmente, há uma relação mútua entre o significado global e os subsignificados, isto é, entre cultura, por um lado, e produtos culturais, por outro – e podemos também nos perguntar em que medida as coisas ainda são portadoras de cultura. Citando Heidegger: as coisas ainda coisam? Em outras palavras: as coisas ainda têm influência coesiva sobre a cultura? Não há estudos completamente confiáveis sobre que porcentagem da população se sente entediada. Os números variam consideravelmente segundo os diferentes estudos, pois

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se trata de um fenômeno difícil de diagnosticar de maneira objetiva.41 Assim, não podemos, com base em dados “concretos”, decidir se o tédio está diminuindo, aumentando ou é estável na população. Mas será que a extensão da indústria do entretenimento e o consumo de tóxicos, por exemplo, não seriam claros indícios da prevalência do tédio? As pessoas que vêem televisão quatro horas por dia não se sentem nem se confessam necessariamente entediadas, mas por que outra razão despenderiam dessa maneira 25% das horas que passam acordadas? O lazer, naturalmente, apresenta-se como uma explicação: dispomos de muito tempo de sobra, que tem de ser consumido de alguma maneira – e poucos tipos de aparelho destroem o tempo com mais eficiência que uma televisão. Em última análise, dificilmente haverá qualquer outra razão para se assistir à televisão durante muitas horas, à noite, que se livrar de um tempo supérfluo ou desagradável. Ao mesmo tempo, muitos de nós nos tornamos, pouco a pouco, incrivelmente competentes em nos livrarmos do tempo. Os mais hiperativos são precisamente os que têm os mais baixos limiares de tédio. Eles possuem uma falta quase completa de tempo ocioso, correndo de uma atividade para outra, pois não são capazes de enfrentar um tempo “vazio”. Muito paradoxalmente, esse tempo repleto parece muitas vezes assustadoramente vazio quando visto em retrospecto. O tédio está associado a uma maneira de passar o tempo, em que o tempo, em vez de ser um horizonte para oportunidades, é algo que precisa ser consumido. Ou, como coloca Hans-Georg Gadamer: “O que realmente passa quando o tempo passa? Certamente não é o tempo que passa. E, no entanto, é tempo que se quer dizer, em sua persistência vazia, mas que, como algo que perdura, é longo demais e assume a forma de penoso tédio.”42 Não sabemos o que fazer com o tempo quando estamos entediados, pois é precisamente então que nossas capacidades ficam inertes e nenhuma oportunidade real se apresenta.

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É revelador observar a freqüência do uso da palavra tédio. Não há ocorrência do substantivo boredom, na língua inglesa, antes da década de 1760, e, desde então, seu uso aumentou progressivamente.43 A versão alemã Langeweile entrou em cena cerca de duas décadas antes, e tem reconhecidamente precursores no alemão antigo, que, entretanto, denotam apenas um longo período de tempo, não uma experiência do tempo. Os dinamarqueses foram rápidos, com kedsomhed, verbete registrado pela primeira vez num dicionário manuscrito e sem data de Matthias Moth (c.1647-1719);44 é concebível que o dinamarquês ked seja etimologicamente relacionado ao latim acedia. Normalmente, as palavras que denotam tédio em várias línguas têm etimologias incertas. O francês ennui e o italiano noia, ambos através do provençal enojo, têm raízes no latim inodiare (odiar ou detestar) e remontam ao século XIII. Mas essas palavras são menos usáveis para nosso propósito, porque são estreitamente emaranhadas com o conceito de acédia (acedia), melancolia e tristeza geral. O mesmo se aplica ao inglês spleen, que remonta ao século XVI. O dicionário padrão da língua norueguesa não menciona nenhuma ocorrência de kjedsomhet anterior às obras de Ibsen e Amalie Skram, embora seja muito improvável que não tenha havido usos mais antigos.45 O primeiro “romance do tédio” norueguês foi provavelmente Trette Menn (1891), de Arne Garborg, que trata da vida de Gabriel Gram, constantemente fugindo do tédio, e de sua ânsia por libertação, seja proporcionada por uma mulher ou por Deus. No fim das contas, decidi restringir-me a boredom, Langeweile e kjedsomhet, porque aparecem aproximadamente no mesmo momento e são mais ou menos sinônimos. É óbvio, no entanto, que pertencem a um grande complexo conceitual com longas raízes históricas. A palavra entediante é usada com incrível freqüência para denotar uma variedade de limitações emocionais e falta de sentido em várias situações. Muitas descrições do tédio na literatura são extremamente semelhantes, consistindo, sobretudo, numa afirmação de que não há nada capaz de gerar qual-

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quer interesse, juntamente com uma queixa sobre o quanto isso torna a vida intolerável. Kierkegaard o descreve assim: Como o tédio é terrível – terrivelmente entediante; não conheço expressão mais forte, expressão mais verdadeira, pois somente o semelhante conhece o semelhante. Se pelo menos houvesse uma expressão mais elevada, mais forte; isso pelo menos indicaria uma mudança. Deito-me esticado, inativo; a única coisa que vejo é: vazio; a única coisa que assimilo: vazio; a única coisa em que me movo: vazio. Nem sequer sinto dor.46

Posso mencionar também, aqui, a canção de Iggy Pop, “I’m bored”, que inclui o seguinte trecho: I’m bored I’m bored I’m the chairman of the bored I’m sick I’m sick of all my kicks I’m sick of all the stiffs I’m sick of all the dips I’m bored I bore myself to sleep at night I bore myself in broad daylight ‘Cause I’m bored I’m bored Just another dirty bore…∗



“Estou entediado/ Estou entediado/ Sou o presidente dos entediados/ Estou enjoado/ Estou enjoado de todas as minhas queixas/ Estou enjoado de todos os bêbados/ Estou enjoado de todos os idiotas/ Estou entediado/ À noite, me entedio até conseguir dormir/ Entedio-me à luz do dia/ Porque estou entediado/ Estou entediado/ Apenas a porcaria de um tédio a mais...”

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Ao que parece, o conceito de tédio pode ser usado para explicar ou mesmo desculpar muita coisa. O homem subterrâneo de Dostoievski, por exemplo, afirma que “tudo teve origem no tédio”.47 É comum usá-lo como desculpa para quase tudo. Uma formulação típica pode ser encontrada no conto de Georg Büchner, Leonce und Lena: “O que as pessoas não inventam por tédio! Elas estudam por tédio, jogam por tédio e finalmente morrem de tédio.”48 Uma versão ainda mais forte é encontrada no mais trágico Lenz, de Büchner: “A maioria das pessoas faz coisas por puro tédio, algumas se apaixonam por tédio, outras são virtuosas, outras ainda dissolutas. Quanto a mim, absolutamente nada – não tenho vontade sequer de levar minha própria vida, é entediante demais.”49 De maneira semelhante, Sthendal escreve em Sobre o amor: “O tédio nos tira tudo, até o desejo de tirar nossa própria vida.”50 Para Fernando Pessoa, ele é tão radical que não pode ser superado sequer pelo suicídio, mas apenas por uma coisa completamente impossível: simplesmente não ter existido.51 O tédio é usado como explicação para todo tipo de ação e para a total incapacidade de ação. Está subjacente à vasta maioria das ações humanas, de natureza tanto positiva quanto negativa. Para Bertrand Russell, “o tédio é um fator no comportamento humano que recebeu, em minha opinião, muito menos atenção do que merece. Foi, acredito, uma das maiores forças motrizes ao longo de toda a época histórica e, até hoje, continua sendo, mais do que nunca.”52

TÉDIO E SIGNIFICADO Podemos verificar que o tédio está provavelmente mais disseminado que nunca observando que o número de “placebos sociais” também é o maior de todos os tempos.53 Se há mais substitutos para o significado, deve haver mais significado que

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precisa ser substituído.54 Onde há falta de significado pessoal, todas as espécies de diversão têm de criar um significado substituto, artificial. Outra solução é o culto às celebridades, em que ficamos completamente envolvidos nas vidas dos outros, porque a nossa própria carece de significado. Será que nossa fascinação pelo estranho, alimentada diariamente pelos meios de comunicação de massa, não é resultado de nossa percepção do entediante? A corrida desordenada às diversões, ao lazer, indica precisamente o medo do vazio que nos cerca. Essa corrida, a necessidade de satisfação e a falta de satisfação estão inextricavelmente entrelaçadas. Quanto mais a vida individual se torna o centro do foco, mais forte se torna a insistência no significado em meio às trivialidades da vida cotidiana. Uma vez que o homem, há cerca de dois séculos, começou a se ver como um ser individual que deve se realizar, a vida cotidiana parece agora uma prisão. O tédio não está associado a necessidades reais, mas a desejo. E esse é um desejo de estímulos sensoriais. Estímulos são a única coisa “interessante”. A enorme ênfase que damos à originalidade e à inovação revela que a vida, em grande medida, é entediante.55 Hoje parece-nos mais relevante algo ser “interessante” do que ter algum “valor”. Considerar alguma coisa exclusivamente do ponto de vista do “interesse” que gera é considerá-la a partir de uma perspectiva puramente estética. O olhar estético registra apenas a superfície, e esta é julgada segundo o interesse ou o tédio que desperta. Em que medida uma coisa recai em uma ou outra categoria será, muitas vezes, uma questão de potência do efeito: se uma música parece entediante, às vezes aumentar o volume ajuda. O olhar estético tem de ser despertado pela intensidade aumentada ou, preferivelmente, por algo novo, e sua ideologia é o superlativismo. Vale a pena notar, contudo, que esse olhar tem uma tendência a recair no tédio – um tédio que define todo o conteúdo da vida de maneira negativa, porque é o

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que precisa ser evitado a qualquer preço. Isso talvez tenha ficado particularmente evidente na teoria pós-moderna, em que vimos uma série de estetas da jouissance, com mantras como “intensidade”, “delírio” e “euforia”. O problema foi que o estado pós-moderno não se manteve tão eufórico e deleitoso por muito tempo. Logo se tornou entediante. Não podemos adotar uma atitude em relação a algo sem que haja um interesse subjacente, pois é o interesse que fornece a direção.56 Mas, como enfatizou Heidegger, o interesse atual é dirigido apenas para o interessante, e o interessante é aquilo que, um momento depois, nos parece indiferente ou entediante.57 A palavra “entediante” está inseparavelmente ligada à palavra “interessante”; os dois termos se disseminaram mais ou menos ao mesmo tempo e sua freqüência cresce aproximadamente na mesma proporção.58 Foi só a partir do advento do Romantismo, perto do final do século XVIII, que surgiu a necessidade de que a vida fosse interessante, com a pretensão geral de que o eu deveria se realizar. Karl Philipp Moritz, cuja importância para o Romantismo alemão só há pouco foi verdadeiramente reconhecida, afirmou, em 1787, que existia uma ligação entre interesse e tédio, e que a vida devia ser interessante para se evitar “o tédio insuportável”.59 O “interessante” tem sempre um prazo de validade curto, e realmente nenhuma outra função senão ser consumido para que o tédio possa ser mantido à distância. A principal mercadoria da mídia é a “informação interessante” – signos que são puros bens de consumo, nada mais. Em seu ensaio “The storyteller” [O contador de histórias], Walter Benjamin insistiu que a “experiência decaiu em valor”.60 Isso está ligado à emergência de uma nova forma de comunicação no capitalismo avançado: a informação. “A informação ... reivindica uma verificabilidade imediata. O principal requisito é que ela pareça ‘compreensível em si mesma’ ...; nenhum evento

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chega mais até nós sem já ter sido instilado com uma explicação.”61 Embora a experiência forneça significado pessoal, este é solapado pela informação.62 Mais ou menos na mesma época em que Benjamin fez sua observação, T.S. Eliot escreveu: 63 Where is the Life we have lost in living? Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?∗

Sabemos que informação e significado não são a mesma coisa. Em geral, significado consiste em inserir pequenas partes num contexto maior e integrado, ao passo que informação é o oposto. A informação é idealmente comunicada como um código binário, enquanto o significado é comunicado mais simbolicamente. A informação é manipulada ou “processada”, ao passo que o significado é interpretado.64 Ora, é óbvio que não podemos simplesmente escolher dispensar a informação em favor do significado, pois, para sermos razoavelmente funcionais no mundo de hoje, precisamos ser capazes de lidar criticamente com uma abundância de informação transmitida através de muitos meios diferentes. Alguém que insistisse em compilar pessoalmente todas as experiências se tornaria, sem sombra de dúvida, um fracasso. O problema é que, cada vez mais, a tecnologia moderna nos torna consumidores e observadores passivos, e cada vez menos participantes ativos. Isso nos dá um déficit de significado. Não é lá muito fácil explicar o que entendo por “significado”. Numa semântica filosófica, há um sem-número de teorias sobre o significado que – especialmente após os trabalhos de Gottlob Frege – procuram fornecer uma explicação em ter∗ “Onde está a Vida que perdemos vivendo?/ Onde está a sabedoria que per-

demos no conhecimento?/ Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”

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mos de expressão lingüística. Mas o conceito a que estou me referindo tem uma perspectiva adicional, porque estamos falando sobre um significado que é, inextricavelmente, um significado para alguém. Peter Wessel Zapffe tentou expressar esse conceito da seguinte forma: Que uma ação ou algum outro fragmento da vida tenha significado quer dizer que nos dá uma sensação muito específica, que não é fácil traduzir em pensamento. Seria talvez algo como uma boa intenção que animaria essa ou aquela ação: uma vez atingido o objetivo, a ação seria “justificada”, equilibrada, confirmada – e o sujeito recobraria a calma.65

Esse é um estranho tipo de definição, mas contém o elemento vital – que o significado está ligado à relação que uma pessoa motivada mantém com o mundo. Neste ponto, vale mencionar que uma importante diferença entre o conceito de significado de Zapffe e o meu é que ele justifica o seu biologicamente, ao passo que eu o faço mais historicamente. Como Zapffe também indica, essas ações apontam igualmente para algo mais – para a vida como um todo. Não pretendo retraçar aqui suas considerações; vou me contentar em declarar que o significado que estamos procurando – ou mesmo exigindo – é, em última instância, um significado existencial ou metafísico.66 Este pode ser procurado de várias maneiras e existe sob várias formas. Pode ser concebido como algo já dado, do qual podemos participar (numa comunidade religiosa, por exemplo), ou como algo que precisa ser construído (como uma sociedade sem classes). É concebido como algo coletivo ou algo individual. Eu afirmaria também que a concepção de significado particularmente prevalente no Ocidente, do Romantismo em diante, é a de um significado individual que tem de ser realizado. É a esse sentido que me refiro quando falo de sig-

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nificado pessoal, mas poderia chamá-lo também significado romântico. O homem é viciado em significado. Todos nós temos um grande problema: nossas vidas têm de ter alguma espécie de conteúdo. Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo que possamos ver como constituidor de significado. A falta de sentido é entediante. E o tédio pode ser descrito metaforicamente como uma perda do significado. O tédio pode ser compreendido como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita. Para eliminar esse desconforto, atacamos os sintomas, em vez de atacar a própria doença, e procuramos todas as espécies de significados substitutos. Uma sociedade que funcione bem promove a capacidade do homem de encontrar significado no mundo; uma que funcione mal não o faz. Nas sociedades pré-modernas, há, em geral, um significado coletivo que é suficiente.67 Para nós, “românticos”, as coisas são mais problemáticas, pois mesmo que abracemos modos coletivistas de pensamento, como o nacionalismo, eles sempre acabam por parecer lamentavelmente insuficientes. Continua havendo significado, é claro, mas parece haver menos. Informação, por outro lado, existe em abundância. A mídia moderna tornou possível uma enorme busca por conhecimento – isso tem aspectos positivos inegáveis, mas a maior parte desse conhecimento é ruído irrelevante. Por outro lado, se escolhermos usar a palavra “significado” em sentido amplo, não há falta de significado no mundo – há superabundância. Estamos positivamente imersos em significado. Mas este não é aquele que procuramos. O vazio do tempo no tédio não é um vazio de ação, pois há sempre alguma coisa nesse tempo, ainda que seja apenas a visão de tinta secando. O vazio do tempo é um vazio de significado.

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Horkheimer e Adorno defenderam uma idéia próxima à asserção de Benjamin com respeito ao crescimento da informação. Em continuação à teoria da interpretação de Kant, o esquematismo, eles escreveram: A contribuição que o esquematismo kantiano ainda esperava dos sujeitos – relacionando antecipadamente a diversidade sensorial aos conceitos subjacentes – lhe foi tomada pela indústria. Ela realiza o esquematismo como um serviço para o freguês ... Para o consumidor, não resta nada a classificar que já não tenha sido antecipado no esquematismo da própria produção.68

Acredito que o tédio é resultado de uma falta de significado pessoal, e que isso se deve, em grande medida, precisamente ao fato de que todos os objetos e ações chegam a nós inteiramente codificados, enquanto nós – como descendentes do Romantismo – insistimos num significado pessoal. Como Rilke escreveu na primeira de suas Elegias de Duíno, é óbvio “... que não estamos completamente à vontade no mundo interpretado”. O homem é um ser formador de mundo, um ser que constitui ativamente seu próprio mundo; assim, quando todas as coisas já estão inteiramente codificadas, a constituição ativa do mundo torna-se supérflua, e perdemos atrito na relação com o mundo. Nós, românticos, precisamos de um significado construído por nós mesmos – e a pessoa preocupada com auto-realização tem inevitavelmente um problema de significado. Esse não é mais um significado coletivo na vida, um significado de que cabe ao indivíduo participar. Também não é fácil encontrar um significado próprio na vida. O significado que a maioria das pessoas abraça é a auto-realização como tal, mas não é óbvio que tipo de eu deve ser realizado, nem qual poderia ser o resultado disso. A pessoa segura com relação a si

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mesma não perguntará quem ela é. Só um eu problemático sente necessidade de realização. O tédio pressupõe subjetividade, isto é, consciência de si. A subjetividade é uma condição necessária mas não suficiente para o tédio. Para ser capaz de se entediar, o sujeito deve ser capaz de se perceber como um indivíduo apto a se inserir em vários contextos de significado, e esse sujeito reclama significado do mundo e de si mesmo. Sem tal demanda, não haveria tédio. Animais podem carecer de estímulos, mas quase certamente não podem se entediar.69 Como Robert Nisbet afirmou: O homem, ao que parece, é único em sua capacidade de tédio. Partilhamos com todas as formas de vida a apatia periódica, mas apatia e tédio são diferentes ... O tédio está muito acima da apatia na escala das aflições, e provavelmente só um sistema nervoso tão desenvolvido quanto o do homem é sequer capaz de senti-lo. E dentro da espécie humana, um nível de mentalidade pelo menos “normal” parece ser um requisito. O idiota pode conhecer a apatia, não o tédio.70

Goethe observou em algum lugar que os macacos mereceriam ser considerados humanos se fossem capazes de se entediar – e é bem possível que tivesse razão. Ao mesmo tempo, o tédio é inumano porque rouba significado da vida humana ou, possivelmente, é uma expressão da ausência de tal significado. Com o Romantismo, todos os olhares se voltaram para esse déficit de significado que nos ameaça constantemente. A expansão do tédio está ligada ao crescimento do niilismo, mas a história e o problema do niilismo, e possivelmente seu fim, é uma questão imensamente complexa em si mesma e não trataremos dela em nenhuma profundidade. O tédio e o niilismo convergem na morte de Deus. O primeiro uso importante do

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conceito de niilismo na filosofia está em “Brief an Fichte” (Carta a Fichte), de F.H. Jacobi, escrito em 1799.71 Uma das principais idéias defendidas por Jacobi é que o homem escolheu entre Deus e o nada, e ao escolher o nada fez de si mesmo um deus. Essa lógica é mais tarde reiterada, mas, dessa vez, no afirmativo, por Kirilov em Os possessos, de Dostoievski: “Se Deus não existe, eu me torno Deus.”72 Como sabemos, escolhemos o nada, embora a palavra “escolher” seja provavelmente enganosa aqui – isso aconteceu. Mas o homem não desempenhou o papel de um deus assim com tanto sucesso. Kirilov afirma também que na ausência de Deus “sou obrigado a expressar minha própria obstinação”. Na ausência de Deus, o homem assumiu o papel de centro gravitacional para o significado – mas só conseguiu desempenhá-lo em pequena medida.

TÉDIO, TRABALHO E LAZER O tédio está associado à reflexão, e, em toda reflexão, há a tendência a uma perda do mundo. As distrações perturbam a reflexão, que, no entanto, será sempre um fenômeno passageiro. O trabalho é, muitas vezes, menos entediante que o lazer, mas quem defende o trabalho como tratamento contra o tédio está confundindo a supressão temporária de um sintoma com a cura de uma doença. E não há como escapar do fato de que muitas formas de trabalho são mortalmente entediantes. O trabalho é, com freqüência, opressivo, muitas vezes sem potencial para promover qualquer significado na vida. A resposta à pergunta de por que as pessoas se entediam não reside no trabalho ou no ócio. Uma pessoa pode ter muito ócio sem se sentir notavelmente entediada e pode ter muito pouco ócio e morrer de tédio. O aumento da lucratividade na indústria moderna e a conse-

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qüente redução das horas de trabalho e prolongamento do ócio não levaram necessariamente a nenhuma melhora da qualidade de vida. O tédio não é uma questão de ócio, mas de significado. Em seu Livro do desassossego, Fernando Pessoa expressou isso da seguinte maneira: Dizem que o tédio é uma doença dos inertes, ou que ataca só os que nada têm que fazer. Essa moléstia da alma é, porém, mais sutil: ataca os que têm disposição para ela, e poupa menos os que trabalham ou fingem que trabalham (o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras. Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural da vida interna, com as suas Índias naturais e os seus países incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sórdida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa mais quando não tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos. Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer, mais tédio há que sentir. Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo, e que trabalho, a cabeça vazia de todo o mundo! Mais me custara estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada, porque esse tédio, ainda que real, ao menos o gozaria. No meu tédio presente não há repouso, nem nobreza, nem bem-estar em que haja mal-estar: há um apagamento enorme de todos os gestos feitos, não um cansaço virtual dos gestos por não fazer.73

Pessoa está certo ao dizer que o trabalho árduo é muitas vezes tão entediante quanto a ociosidade. Pessoalmente, nunca me senti tão entediado como quando estava no processo de com-

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pletar uma grande dissertação após vários anos de trabalho. O trabalho entediava-me tanto que tive de mobilizar toda a minha força de vontade para continuar, e o que senti, graças a isso, foi apenas um cansaço extraordinário. O trabalho me parecia completamente sem sentido e eu o concluí quase como um autômato. Quando entreguei a dissertação, senti um enorme alívio, e pensei que a vida voltaria a me parecer cheia de significado, agora que podia ter ócio. E foi o que aconteceu durante algumas semanas; depois as coisas voltaram a ser como antes. O ócio em si mesmo não é mais cheio de significado que o trabalho, e a questão mais básica é como uma pessoa escolhe ficar ociosa. De fato, poucos de nós temos qualquer razão para viver em total ociosidade, e nos revezamos entre trabalho e folga. Começamos trabalhando durante o dia todo, depois vemos televisão durante as primeiras horas da noite para dormir nas horas restantes. Este é um padrão de vida bastante comum. Adorno associou o tédio à alienação no trabalho, em que o tempo livre corresponde à ausência de autodeterminação no processo de produção.74 Tempo livre é um tempo em que a pessoa está livre, ou pode estar livre. De que tipo de liberdade estamos falando? Uma liberdade do trabalho? Nesse caso, é o trabalho que fornece uma definição negativa de liberdade. Somos mais livres durante nosso tempo livre do que enquanto trabalhamos? É inegável que temos um papel ligeiramente diferente, pois enquanto somos produtores em nossas horas de trabalho, somos sobretudo consumidores em nosso tempo livre. No entanto, não somos necessariamente mais livres ao desempenhar um papel ou outro, e um não é necessariamente mais significativo que o outro. Como já foi mencionado, o tédio não é uma questão de trabalho ou de liberdade, mas de significado. O trabalho que não confere muito significado à vida é seguido por tempo livre do mesmo tipo. Por que o trabalho não fornece nenhum significado real? Naturalmente, seria tentador

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simplesmente nos referirmos à alienação, mas prefiro falar sobre indiferença, pois não acredito que o conceito de alienação ainda seja muito aplicável. Retornarei a isso na última parte do livro. Em A identidade, de Milan Kundera, o personagem JeanMarc diz: Eu diria que a quantidade de tédio, se o tédio for mensurável, é muito maior hoje do que no passado. Porque as profissões antigas, pelo menos a maioria delas, eram impensáveis sem um envolvimento apaixonado: os camponeses apaixonados por sua terra; meu avô, o mágico de belas mesas; sapateiros que conheciam de cor os pés de cada aldeão; os madeireiros; os jardineiros; provavelmente até os soldados matavam com paixão naquela época. O significado da vida não era uma questão; estava lá com eles, muito naturalmente, em suas oficinas, em seus campos. Cada profissão havia criado sua própria mentalidade, sua própria maneira de ser. Um médico pensava de maneira diferente de um camponês, um soldado comportava-se diferente de um professor. Hoje somos todos semelhantes, todos unidos por nossa apatia compartilhada em relação a nosso trabalho. Essa mesma apatia tornou-se uma paixão. A única grande paixão coletiva de nosso tempo.75

Nesse trecho, Kundera romantiza o passado consideravelmente, mas, apesar disso, acredito que captou algo de essencial ao chamar atenção para o nivelamento das diferenças e a indiferença resultante. Isso indica também por que o trabalho em si mesmo não pode mais ser considerado uma espécie de lista de respostas. Ele deixou de ser parte de um contexto mais amplo que lhe conferia significado. Se o trabalho pode ser considerado uma cura para o tédio hoje, é na mesma medida que uma inje-

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ção de narcótico ou uma garrafa de bebida alcoólica – como uma tentativa de escapar do próprio tempo.

TÉDIO E MORTE Seria a vida moderna acima de tudo uma tentativa de escapar do tédio? O tédio nos impele a transcender barreiras – que em Baudelaire são identificadas, sobretudo, com perversidades e com o novo. As flores do mal termina em “A viagem”, em que a morte é a única coisa nova que resta: 76 Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre! Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons! Si le ciel et la mer sont noirs comme de l’encre, Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons! Verse-nous ton poison pour qu’il nous réconforte! Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau, Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe? Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!∗

Como disse Walter Benjamin em Zentralpark: “Para as pessoas de hoje só há uma coisa radicalmente nova – e é sempre a mesma: a morte.”77 Os eventos, seja qual for sua importância, são cercados por lentes de câmeras e microfones, e podem ser ampliados a ∗ “Ó Morte, velho capitão, é hora! Levantemos âncora!/ Este país nos enfada,

ó Morte! Desfraldemos as velas!/ Se o céu e o mar são negros como tinta,/ Nossos corações que tu conheces estão repletos de luz!/ Entorna sobre nós teu veneno para que ele nos console!/ Queremos, de tal modo este fogo nos queima o cérebro,/ Mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?/ No fundo do Desconhecido para encontrar o novo!”

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proporções enormes. Tudo é potencialmente visível – nada está escondido. Podemos falar de uma pantransparência, pois tudo é transparente. A transparência e as interpretações empacotadas do mundo estão inter-relacionadas. A transparência é precisamente não imediata, sempre mediada, na medida em que o mundo é visto através de alguma coisa, isto é, uma interpretação já existente que o esvazia de segredos. O mundo se torna entediante quando tudo é transparente. É por isso que algumas pessoas anseiam pelo perigoso e pelo chocante. Elas substituíram o não-transparente pelo extremo. Provavelmente é por isso que muitas são tão obcecadas pela “violência das ruas” e a “violência cega” que a imprensa sensacionalista não se cansa de noticiar. Como a vida seria entediante sem violência! Isso está bem expresso em um poema escrito por um exskinhead: 78 Everywhere they are waiting. In silence. In boredom. Staring into space. Reflecting on nothing, or on violence. . . Then suddenly it happens. A motor-cycle Explodes outside, a cup smashes. They are on their feet, identified At last as living creatures, The universal silence is shattered, The law is overthrown, chaos Has come again.∗



“Eles esperam em toda parte. Em silêncio./ No tédio. Fitando o espaço./ Pensando em nada, ou na violência.../ Então, de repente, ela acontece. Uma motocicleta/ Explode lá fora, uma xícara se quebra./ Eles estão de pé, identificados/ Por fim, como criaturas vivas,/ O silêncio universal é estilhaçado,/ A lei é derrubada, o caos/ Chegou novamente.”

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O caos e a violência representam o motor que nos impele do tédio para a vida, acordando-nos, conferindo à vida alguma espécie de significado. Temos uma atitude estética em relação à violência, e essa estética era claramente visível na antiestética do modernismo, com seu foco no chocante e no medonho. Além disso, temos uma atitude moral em relação à violência, que queremos ver reduzida – mas não sei se o olhar moral sobrepuja necessariamente o estético. O conflito de valores nas sociedades modernas não ocorre somente entre grupos sociais dissimilares – talvez haja conflitos igualmente no interior dos sujeitos individuais, que participam de diferentes esferas de valores, como, por exemplo, a moral e a estética. Tal como os conflitos entre os vários grupos, os conflitos no interior dos sujeitos individuais não podem ser resolvidos por referência a uma instância neutra, mais elevada. A violência é “interessante”, não importa o que esteja envolvido. Quase no final de seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin observou que “a humanidade ... que no tempo de Homero era um objeto de contemplação para os deuses do Olimpo, agora o é para si mesma. Sua auto-alienação atingiu um grau em que ela é capaz de experimentar sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem.”79 O tédio faz tudo, ou quase tudo, parecer uma alternativa tentadora, e tem-se a impressão de que o que realmente precisamos é de uma nova guerra, em decorrência de uma grande catástrofe. “O tédio pode se tornar a principal fonte de infelicidade do homem ocidental. Somente a catástrofe parece ser a liberação mais segura do tédio, e, no mundo de hoje, a mais provável.”80 O problema é que não há nenhuma razão particular para se acreditar que aqueles que sobreviverem a uma catástrofe serão poupados do tédio. Para quem está fora dela, porém, o mundo atingido parecerá uma alternativa interessante. Em Diário de um cura de aldeia, Geor-

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ges Bernanos profetiza que o tédio será a causa mais óbvia da destruição da humanidade: Pois se a raça humana desaparecer, será por enfado, tédio. A humanidade será lentamente devorada como uma viga por um fungo invisível. ... Veja estas guerras mundiais, por exemplo, que aparentemente atestam uma vitalidade violenta ao homem, mas, na verdade, provam sua crescente letargia. Isso terminará com multidões inteiras sendo conduzidas ao cadafalso em certas épocas.81

O tédio proporciona uma espécie de antecipação pálida da morte, e poderíamos imaginar que a morte real violenta seria preferível, que gostaríamos mais que o mundo acabasse com uma explosão que com uma mísera lamúria. Nietzsche mencionou também o prazer e a sublimidade associados a um mundo que desaparece.82 Uma propriedade do tédio é fornecer uma espécie de perspectiva da existência, permitindo-nos compreender que somos completamente insignificantes em tão vasto contexto. Joseph Brodsky conclui que “o tédio fala a linguagem de hoje, e ele nos ensinará a mais importante lição de nossa vida ... que somos completamente insignificantes”.83 Como seres finitos, estamos cercados por uma infinidade de tempo desprovido de conteúdo. A experiência do tempo muda, com o passado e o futuro desaparecendo e tudo se tornando um implacável agora. O grupo Talking Heads canta: “Heaven is a place where nothing ever happens.”∗ Sob esse aspecto, o tédio parece celeste. É como se a infinidade tivesse se transferido para este mundo vinda do além. Mas essa infinidade, ou monotonia, é diferente daquela

∗ “O céu é um lugar onde nada jamais acontece.”

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descrita por místicos. Simone Weil estende-se sobre a diferença entre as duas: A uniformidade é, ao mesmo tempo, a mais bela e a mais repulsiva coisa que existe. A mais bela se refletir a eternidade. A mais feia se for um sinal de algo interminável e imutável. Tempo conquistado ou tempo infértil. O símbolo da uniformidade bela é o círculo. O símbolo da uniformidade cruel é o tique-taque de um pêndulo.84

O tempo no tédio não é fruto de uma conquista: é aprisionador. O tédio está relacionado à morte, mas essa é uma relação paradoxal, porque o tédio profundo assemelha-se a uma espécie de morte, ao passo que a morte assume a forma do único estado possível – uma ruptura com o tédio. O tédio tem a ver com finitude e com o nada. É a morte em vida, uma não-vida. Na inumanidade do tédio ganhamos uma perspectiva de nossa própria humanidade.

TIPOLOGIAS DO TÉDIO Muito tédio deriva da repetição. Fico muitas vezes entediado, por exemplo, quando vou a museus e galerias e só encontro pálidas imitações de obras que já vi muitas vezes. Entedio-me quando ouço um conferencista pela quarta vez, e entedio-me quando eu dou uma conferência pela quarta vez. Pode acontecer de aceitarmos incumbências para as quais não estamos realmente qualificados, simplesmente porque vamos certamente aprender algo de novo no processo. Visto assim, o tédio é uma fonte positiva de desenvolvimento humano, embora não necessariamente de progresso. Podemos nos entediar de muitas maneiras. Podemos nos entediar com

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objetos e pessoas, podemos nos entediar com nós mesmos. Mas existe também uma forma anônima de tédio, em que nada em particular nos entedia. Sente-se tédio, porque ele não tem nenhum conteúdo que o torne meu. Neste último caso, talvez fosse correto dizer, num verdadeiro estilo heideggeriano, que o tédio se entedia. Há muitas diferentes tipologias do tédio. Milan Kundera, por exemplo, arrola três: o tédio passivo, como quando alguém boceja, sem interesse; o tédio ativo, como quando alguém se dedica a um hobby; e o tédio rebelde, como quando alguém – digamos, um jovem – quebra vitrines de lojas.85 Essa tipologia não me parece particularmente iluminadora. Nada faz além de enfatizar que se pode reagir passiva ou ativamente, e não é capaz de distinguir qualitativamente entre várias formas de tédio. Prefiro a tipologia de Martin Doehlemann, que distingue quatro tipos de tédio: o tédio situacional, que sentimos ao esperar alguém, ao ouvir uma conferência ou ao tomar o trem; o tédio da saciedade, quando obtemos demais da mesma coisa e tudo se torna banal; o tédio existencial, em que a alma está sem conteúdo e o mundo em ponto morto; e o tédio criativo, que é caracterizado menos por seu conteúdo que por seu resultado: sentimo-nos forçados a fazer algo de novo.86 Esses quatro tipos se superpõem, mas há distinções claras. Flaubert diferenciou o “tédio comum” (ennui commun) do “tédio moderno” (ennui moderne),87 que correspondem grosso modo a nossa distinção entre tédio situacional e existencial. Não é muito fácil, no entanto, determinar qual desses dois tipos de tédio aflige os personagens de seus romances. Será o tédio que aflige Bouvard e Pécuchet “comum” ou “moderno”? É comum no sentido de que eles se entediam quando impedidos de fazer algo concreto, como, por exemplo, devotarse a seus estudos insanos de tudo que existe entre o céu e a terra; mas é mais “moderno” no sentido de que afeta a existên-

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cia deles como um todo.88 Apesar disso, inclino-me a dizer que ambos sofrem de tédio “comum”. O tédio experimentado por Emma Bovary, por outro lado, parece ser mais do tipo “moderno”, ainda que também tenha relação com um objeto, no caso a sexualidade. Uma maneira de distinguir entre tédio situacional e existencial seria dizer que, enquanto o primeiro contém um desejo por algo específico, o segundo contém um anseio por todo e qualquer desejo. Podemos observar que o tédio situacional e o existencial têm diferentes modos simbólicos de expressão, ou melhor: enquanto expressamos o tédio situacional através de um bocejo, remexendo-nos na cadeira, esticando os braços e as pernas, o tédio existencial profundo é mais ou menos desprovido de expressão. Enquanto a linguagem corporal do tédio situacional parece indicar que podemos abandonar a submissão, nos desvencilhar e seguir adiante, no tédio existencial é como se a falta de expressão contivesse a intuição implícita de que ele não pode ser superado por nenhum ato de vontade. Se há alguma forma clara de expressão para o tédio profundo é por via de algum comportamento radical e inovador, indicando negativamente o tédio como seu pré-requisito. Realmente ajuda remexer-se na cadeira durante uma conferência ou uma reunião; viajar também funciona. Ganha-se um alívio temporário. Como diz o narrador no romance La noia, de Alberto Moravia, comparando seu próprio tédio com o que flagelava seu pai: Meu pai havia realmente sofrido de tédio, também ele, mas, em seu caso, esse sofrimento havia se expressado numa feliz existência de vagabundagem por várias regiões. Seu tédio, em outras palavras, era um tédio vulgar, como normalmente entendemos o termo, um tédio que, para ser mitigado, nada exige além de experiências novas, incomuns.89

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O próprio narrador, por outro lado, sofre de um tédio muito mais profundo, e uma forma mais profunda de tédio requer obviamente um remédio mais forte, isto é, um comportamento mais radical, que transponha fronteiras. Georges Bataille comentou: “Não há sensação mais estimulante que a consciência do vazio que nos cerca. Isto não significa em absoluto que não experimentamos um vazio dentro de nós mesmos, ao contrário, mas superamos essa sensação e ingressamos numa consciência da transgressão.”90 A consciência de um vazio é o prérequisito para a transposição de fronteiras, mas, como veremos, cruzar fronteiras não ajuda a longo prazo, pois como podemos escapar de um mundo entediante?91 Schopenhauer descreveu seu tédio como um “anseio insípido sem nenhum objeto particular”.92 No tédio profundo, perdemos a capacidade de encontrar qualquer objeto que desejemos. O mundo murchou e morreu. Kafka queixou-se, em seu diário, de que experimentava algo que era “como se tudo que eu possuísse tivesse me deixado, e como se tudo isso dificilmente pudesse ser o bastante caso retornasse”.93 Em La noia, Moravia diz que o tédio é “como uma doença das próprias coisas, uma doença que faz toda vitalidade murchar e morrer, desaparecendo quase de repente”.94 Ele é como um “nevoeiro”.95 Encontramos essa expressão também em Heidegger, que se refere a um tédio profundo como um “nevoeiro silencioso”, que mistura todas as coisas e pessoas, inclusive a si mesmo, numa estranha indiferença.96 Garborg faz outra descrição perspicaz: “Não consigo encontrar nenhuma maneira melhor de me referir a ele do que como um frio mental – um frio que atingiu minha mente.”97 As descrições variam, atribuindo torpor e vazio ora ao ego, ora ao mundo, presumivelmente porque ele pertence a ambas as esferas. Freud afirma que “no luto, é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”.98 Adam Phillips assinala ao comentar essa passagem: “E no tédio, pode-

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ríamos acrescentar, são ambos.”99 É impossível determinar se as coisas nos parecem entediantes porque por acaso estamos entediados ou se nos sentimos entediados porque o mundo é entediante. É impossível estabelecer qualquer distinção entre a contribuição feita pelo sujeito e pelo objeto ao tédio, uma vez que o vazio do sujeito e o do objeto estão interligados. Segundo Fernando Pessoa, entediar-se é como ter a ponte levadiça sobre o fosso que cerca o castelo de nossa alma subitamente erguida, de modo que deixa de haver qualquer conexão entre o castelo e os terrenos circundantes. Diz ainda: Assisto a mim. Presencio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.100

A certa altura, Dostoievski fala sobre o tédio como uma “aflição bestial e indefinível”.101 Esta descrição aparentemente vaga é, na realidade, muito precisa. O tédio é praticamente indefinível porque carece da positividade típica da maioria dos demais fenômenos. Deve ser entendido basicamente como uma ausência – uma ausência de significado pessoal. E, como direi mais tarde na discussão da análise de Heidegger, essa perda de significado reduz a vida humana a algo análogo a uma existência puramente animal.

TÉDIO E NOVIDADE Martin Doehlemann afirmou que o tédio se caracteriza por uma carência de experiências.102 Isso se aplica ao tédio situacional, no qual algo específico, ou a falta de algo específico, nos entedia (embora deva ser esclarecido que tanto um excesso quanto

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um déficit de experiências podem levar ao tédio).103 O tédio existencial, por outro lado, deve ser entendido fundamentalmente com base num conceito de falta de experiência acumulada. O problema é que tentamos superar esse tédio acumulando sensações e impressões cada vez mais novas e mais fortes, em vez de nos darmos tempo para acumular experiência. É como se achássemos que somos capazes de estabelecer um eu substancial, livre de tédio, bastando para isso que conseguíssemos enchê-lo com um número suficiente de impulsos. Quando nos jogamos sobre tudo que é novo, é na esperança de que o novo seja capaz de ter uma função individualizante e de dotar a vida de um significado pessoal; mas tudo que é novo logo se torna velho, e a promessa de significado pessoal nem sempre é cumprida – pelo menos, não mais que apenas no momento presente. O novo sempre se transforma rapidamente em rotina, e, então, também o novo entedia, pois é sempre o mesmo; entedia quando se descobre que tudo é intoleravelmente idêntico “sob as falsas diferenças das coisas e das idéias”,104 como acredita Pessoa, porque o que está na moda sempre se revela como “a mesma velha coisa numa carroça nova em folha”, como canta David Bowie em “Teenage Wildlife”. A modernidade teve a moda como um princípio, e a moda, como disse Benjamim, é “a eterna recorrência do novo”.105 É um fenômeno imensamente importante.106 Num mundo que a tem como princípio, recebemos mais estímulos, mas também mais tédio, mais emancipação e correspondente escravidão, mais individualidade e mais impessoalidade abstrata. A única individualidade na moda é aquela que consiste em fazer um lance mais alto que o dos outros, mas, precisamente por essa razão, terminase sendo completamente controlado por ela. Como Georg Simmel salientou um século atrás, é realmente verdade que o líder acaba por ser liderado.107 E aquele que decide adotar uma atitude negativa em relação à moda, desviando-se deliberada-

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mente dela – por exemplo, recusando-se a ser moderno – está sendo igualmente regido pela moda, porque seu estilo pessoal é definido simplesmente como negação. Um objeto em moda não precisa, estritamente falando, ter nenhuma qualidade exceto ser novo. Qualidade vem do latim qualitas, que talvez possa ser traduzido como natureza ou caráter.108 A qualidade de um objeto está relacionada à espécie de coisa que ele é, e um objeto sem qualidade não tem identidade. Para sociedades mais antigas, as coisas eram portadoras de continuidade e estabilidade, mas isso é o oposto diametral do princípio da moda: criar um ritmo cada vez mais rápido, tornar um objeto supérfluo tão logo quanto possível, de modo a poder adotar um novo. Kant provavelmente estava certo ao dizer que é melhor ser um idiota que está na moda do que ser apenas um idiota,109 mas todo idiota na moda mais cedo ou mais tarde será abandonado. E, sendo impessoal por natureza, a moda não pode nos fornecer o significado pessoal pelo qual lutamos. Quando tudo se torna intercambiável e, em termos de valor, não-diferente (leia-se: indiferente), preferências genuínas tornam-se impossíveis, e terminamos em total aleatoriedade, ou em total paralisia da ação. Lembra-se do asno de Buridan, que morre de fome porque não é capaz de escolher entre dois montes idênticos de comida? Decisões racionais pressupõem diferenças, e preferências pressupõem diferenças. O romance que mais bem apresenta essa mania decadente de distinção é provavelmente À Rebours (1884), de J.-K. Huysmans. Nele, o conde de Esseintes, doente de tédio, só consegue dar conteúdo a sua vida através de distinções hipersutis e da montagem de elaborados ambientes artificiais.110 Em O psicopata americano, de Bret Easton Ellis, a diferença entre, por exemplo, dois tipos de água mineral ou duas produções de Os miseráveis torna-se mais importante que qualquer outra coisa. Distingui-

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mos uma marca de roupa de outra, um uísque de outro, uma prática sexual de outra. Ficamos desatinados em nossa procura por diferenças. Felizmente, ou lamentavelmente, a indústria da propaganda está aí para nos salvar, com novas distinções. Fazer publicidade, em essência, nada mais é que criar diferenças qualitativas ali onde não existe nenhuma. Os produtos de certo tipo (roupas, carros) são, em sua maioria, quase completamente idênticos e, portanto, sem qualitas, sem natureza própria. Por isso mesmo, torna-se ainda mais importante criar uma diferença que possa distingui-los uns dos outros. O importante é a distinção em si, não o conteúdo, pois ao estabelecer tais diferenças esperamos manter a crença de que o mundo ainda tem qualidades. Tornamo-nos grandes consumidores de coisas novas e pessoas novas para quebrar a monotonia da mesmice. De maneira um tanto enigmática, Roland Barthes escreveu: “O tédio não está muito distante do desejo: é desejo visto do território do prazer.”111 Acho que o prazer deveria ser entendido aqui com o significado de o “mesmo”, enquanto o desejo devia ser entendido como o que vai além do “mesmo”, aquilo que está “fora” – transcendência. O tédio é imanência em sua forma mais pura. O antídoto deve aparentemente ser transcendência. Mas como é a transcendência possível dentro de uma imanência – e imanência que consiste em nada? Pois uma transcendência tem que ser alguma coisa. Como escapar de nada para alguma coisa? E o que caracteriza o tédio em sua forma mais profunda não é nossa crescente indiferença à existência de alguma coisa?112 Jean Baudrillard afirma que enquanto a pergunta filosófica tradicional costumava ser “por que há alguma coisa em vez de nada?”, a pergunta real hoje é “por que há apenas nada em vez de alguma coisa?”113 Essas indagações brotam de um tédio profundo. E nesse tédio a realidade inteira está em jogo. Fernando Pessoa descreve esse vazio belamente:

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Tudo isso está vazio, até na idéia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas. Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, idéias – está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma – como única realidade deste momento – há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.114

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