Susan Sontag O cap de Sobre a Fotografia

April 12, 2018 | Author: katiamazzi | Category: Honoré De Balzac, Reality, Image, Time, Mind
Share Embed Donate


Short Description

Download Susan Sontag O cap de Sobre a Fotografia...

Description

SUSIffl X-?1 "^ensaios sobre a r

otogratia Tradução de Joaquim Paiva

/

^ t

*

§

r*^^X

"*^ ""

B í r,.s L í O ! E ;v H: í u25i líSCUS iE

T

Y

^\

-^

3TADUAL D£ CAMPINA»

editora aroor Ibck

SUMÁRIO: Na Caverna de Platão Os Estados Unidos, Através da Fotografia, em uma Visão Sombria

27

Objetos Melancólicos

51

O Heroísmo da Visão

83

Evangelhos Fotográficos O Mundo-lmagem Breve Antologia de Citações

Para N/cole Stéphane

3

111 4^.147, 175

O Mundo-lmagem

147

A realidade sempre foi interpretada através de registro fornecido pelas imagens; e os filósofos, desde Platão, têm procurado aliviar nossa dependência das imagens invocando um modelo de forma de apreensão do r^al em que a imagem não esteja presente. Masquando, em meados do século XIX, o modelo parecia finalmente concretizável, a retirada de velhas ilusões religiosas e políticas diante do avanço do pensamento humam'stico e científico não provocou como se previa — fugas em massa em direção ao real. Ao contrário, a nova idade da descrença fortaleceu a fidelidade à imagem. O crédito que já não se podia mais dar â realidade compreendida na forma de imagens dava-se agora à realidade entendida como imagens, ilusões. No prefácio à segunda edição (1843) de The Essence of Christianity, Feuerbach observa, com relação "à nossa era", que essa "prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparên cia ao ser" - ao mesmo tempo em que tem consciência de estar fazendo apenas isso. E a queixa premonitória de Feuerbach transformou-se, no século XX, num diagnóstico amplamente aceito: uma sociedade torna-se "moderna" quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens, quando as imagens, que possuem poderes extraordinários para determinar nossas exigências com respeito à realidade e são elas mesmas substitutas cobiçadas da experiência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde

148

da economia, à estabilidade política e à busca da fetici dade individual. As palavras de Feuerbach — escreveu alguns anos de pois da invenção da câmara — parecem, mais especifica mente, um pressentimento do impacto que viria a ter a fotografia. E isso porque as imagens que possuem um peso praticamente ilimitado na sociedade moderna são principalmente as imagens fotográficas; e a razão de tal autoridade advém das qualidades peculiares às imagens que obtemos através da câmara. Essas imagens são verdadeiramente capazes de usurpar a realidade porque, antes de mais nada, uma fotografia é não só uma imagem (como o é a pintura), uma interpre tacão do real — mas também um vestígio, diretamente calcado sobre o real, como uma pegada ou uma máscara fúnebre. Enquanto um quadro, mesmo aquele que está conforme os padrões fotográficos da verossimilhança, nunca é mais que uma forma de interpretação, a fotografia nunca é menos que o registro de uma emanação (ondas de luz refletídas por objetos) — vestígio material do tema fotografado, a tal ponto que quadro algum.se lhe pode comparar. Entre duas alternativas imaginárias, a de que Holbein, o Jovem, tivesse vivido tempo bastante para poder pintar Shakespeare ou a de que um protótipo da câmara tivesse sido inventado a tempo de fotografar o grande dramaturgo inglês, a maioria dos admiradores de Shakespeare teria escolhido a fotografia. E isso não apenas porque presumivelmente veríamos como era Shakespeare, pois mesmo que a fotografia hipotética dele estivesse desgastada pelo tempo, dificilmente legível, com sombras amarronzadas, ainda a preferiríamos provavelmente a qualquer outro glorioso Holbein. Possuir um retrato de Shakeepeare seria como possuir um dos pregos da Verdadeira Cruz. Grande parte das manifestações contemporâneas de preocupação de que o mundo das imagens esteja substi tuindo o mundo real continua a refletir, como em Feuerbach, o desprezo platónico pela imagem: verdadeira na medida em que se assemelha ao real, postiça por não ser mais do que mera semelhança. Esse realismo vulnerável e ingénuo, entretanto, está um tanto deslocado

na era das imagens fotogiáf iças, pois ccontréste brusco entre a imagem ("cópia') e a coisa pintada ("o original") — que Platão repeticamente ilustra com ) exemplo da pintura — não se aplica assim de modo tão simples à fotografia. E nem esse mesmo contraste comribui para que compreendamos o p"ocesso de elaboracío da imagem desde suas origens, quando era urna atividade prática e mágica, um meio de nos apoderarmos de alguma coisa ou exercermos cortrole sobre ela. Quanto mais atrás buscamos na história, como observou E, H. Gombrich, menos evidente é adistinção entre irnagím e realidade; nas sociedades primitivas, o objeto e sia imagem constituíam simplesmente duas manifestações diferentes, isto é, fisicamente distintas, da mesma energia de espírito. Daí, a suposta eficácia da imagem em propiciar e exercer o controle sobre presenças vigorosas. Tais poderes, tais presenças estavam presentes nela. Para os defensores do real, de Platão a Feuerbach, comparar a imagem com a mera aparência — eu seja, supor que a imagem é absolutamente distinta do objeto representado — faz parte daquele processo dedessacralização que nos separa indefectivelmente do mundo dos tempos e lugares sagrados, no qual se obtinha uma ima1 gem com o objetivo de que essa participasse da realidade do objeto representado. O que define a originalidade da fotografia é, rio momento mesmo em que o secularismo triunfa completamente na longa e cada vez mais secular história da pintura, sua capacidade de reviver — em termos inteiramente seculares — algo parecido com o status primitivo das imagens. Nossa sensação irreprimível de que o processo fotográfico é algo mágico assentase em bases verdadeiras. Ninguém considera de modo algum que uma pintura de cavalete se consubstancie no motivo pintado; ela apenas o representa, ou a ele se refere. Ainda assim, a fotografia não retrata apenas determinado tema, é também uma homenagem a ele. É parte do terna e um prolongamento dele; como também um meio potente de possuí-lo e controlá-lo. A fotografia é, sob vários aspectos, sinónimo de aquisição. Em sua forma mais simples, temos numa fotografia a posse vicária de uma pessoa ou objeto queridos,

149

150

posse essa que confere à fotografia algo da qualidade dos objetos únicos. Através da fotografia, encontramo-nos também numa posição de consumidores de aconteci mentos, seja os acontecimentos que formam parte de nossa experiência, seja os que não - distinção entre ti pôs de experiência que esse consumismo dependente torna vaga. Uma terceira forma de aquisição é a que, através das máquinas de elaboração e duplicação de ima gens, nos possibilita adquirir algo comoa informação (de preferência à experiência). Com efeito, a importância da imagem fotográfica como o meio através do qual um número cada vez maior de eventos penetra nossa experiência é, finalmente, apenas um produto paralelo da sua capacidade de propiciar-nos conhecimentos dissociados da experiência e independentes dela. Essa é a forma mais inclusiva da aquisição fotográfica. Ao ser fotografada, determinada coisa torna-se parte de um sistema de informações amoldado a esquemas de classificação e armazenamento que vão desde as sequências de instantâneos colados, em ordem, nos álbuns de família, até a acumulação pertinaz e o arquivamento meticuloso necessários para a utilização da fotografia nas previsões do tempo, na astronomia, na microbiologia, na geologia, nas atividades policiais, no treinamento e diagnóstico dos médicos, no reconhecimento militar e na história da arte. A fotografia faz mais do que redefinir o conteúdo da experiência cotidiana (pessoas, coisas, eventos, o que quer que vejamos — ainda que diferentemente e muitas vezes com desatenção - com a visão natural) e acrescenta vastas quantidades de material que jamais chegamos a ver. A realidade como tal é redefinida — co mo objeto para exposições, registro de escrutínios, alvo de inspeção. A exploração e duplicação fotográfica do mundo fragmenta a continuidade e alimenta as peças de um interminável dossiê, possibilitando assim um controle com o qual nem se poderia sonhar sob o sistema anterior de registro da informação: a escrita. O fato de que o registro fotográfico é sempre, poten cialmente, uma forma de controle já havia sido reconhecido quando tais poderes estavam em sua infância. Em 1850, Delacroix anotou em seu diário o êxito de algu

mas "experiências na fotocrafia" que estavamsendo feitas em Cambridge, onde os astrônomosvinham fotografando o Sol e a Lua e haviím logrado obter uma impressão da estrela Vega do tamínho de uma cabecade alfinete. Ele acrescentou a seguinte observação "curiosa": Como a luz da estrela que toi daguerreotipada levou 20 anos para atravessar o espaço quea separa da Terra, o raio que ficou fixado na chapa havia, por conseguinte, deixado a esfera celeste muito tempo antes de Daguerre ter descoberto o processo por meio do qual acabamos cê adquirir o controle dessa luz.

Deixando para trás noções de controle tão débeis como as de Delacroix, o progresso da fotografia tornou ainda mais literal o significado do controle que a fotografia exer cê sobre a coisa fotografada. A tecnologia que já minimizou o grau em que a distância que separa o fotógrafo do motivo fotográfico afeta a precisão e a magnitude da imagem; que possibilitou formas de fotografar coisas que são inimaginavelmente pequenas e também que, como as estrelas, estão inimaginavelmente distantes; que tornou o ato de fotografar independente da própria luz (fotografia infravermelha) e libertou o objeto-retrato de seu confinamento a duas dimensões (holografia); que encurtou o intervalo entre o instante em que se vê o objeto a fotografar e aquele em que já se tem a fotografia nas mãos (desde a primeira Kodak, quando um rolo de filmes revelado levava semanas para ser devolvido ao fotógrafo amador, até a Polaroid, que exibe a imagem em poucos segundos); que não apenas conseguiu imagens que se movessem (cinema) como também logrou a captação e transmissão simultânea (vídeo) — essa mesma tecnologia fez da fotografia um instrumento incomparável para a decifração do comportamento, para a sua previsão e para que nele se possa interferir. A fotografia tem poderes que nenhum outro sistema de imagens jamais possuiu, pois, ao contrário dos anteriores, ela não depende do fotógrafo. Por mais cuidadoso que seja o fotógrafo ao intervir na organização e orientação do processo fotográfico, o processo em si mesmo permanecerá sempre óptico-mecânico (ou eletrônico),

151

152

com funcionamento automático, com uma maquinar 1.1 que será indubitavelmente adaptada para fornecer ma pus da realidade cada vez mais detalhados e, em conseqúên cia, mais úteis. A génese mecânica de tais imagens e a exatidão da força que conferem configuram nova rela cão entre imagem e realidade. E se é possível dizer que u fotografia restaura o relacionamento mais primitivo — a identidade parcial da imagem e do cbjeto —, a força du imagem é sentida hoje em dia de modo muito diferente. A noção primitiva acerca da eficácia da imagem pressu põe que essa possua a qualidade das coisas verdadeiras, mas nossa tendência é atribuir às coisas reais as qualidades de uma imagem. Como todos sabem, as pessoas primitivas têm medo de que a câmara lhes roube parte de seu ser. Nas me mórias que publicou em 1900, ao final de sua longa vi da. Nadar declara que Balzac também tinha um "vago pavor" de ser fotografado. A explicação de Balzac, segundo Nadar, era que todo corpo em seu estado natural foi composto de uma série de imagens fantasmagóricas superimpostas em camadas^a não ter mais fim, acondicionadas em infinttésimos filmes í. . .1. Não tendo sido o homem jamais capaz de criar, isto é, tornar realidade o que era uma aparição impalpável, ou fazer do nada um objeto — cada operação daguerriana ia por conseguinte tomando para si, separando e usando, até acabar-se, uma das camadas do corpo sobre a qual se focalizava.

Para Balzac, essa marca específica da trepidação parece ter sido conveniente — "Era o temor de Balzac com respeito ao daguerreótipo verdadeiro ou falso?" — pergunta Nadar. "Era verdadeiro. . ." já que o processo fotográfico é a concretização, digamos assim, de tudo que é mais original na sua técnica como novetista. A operação balzaquiana consistia em ampliar detalhes insignificantes, como numa ampliação fotográfica, em justapor traços ou coisas incongruentes, como numa mostra fotográfica: tornada expressiva desse modo, qualquer coisa pode ser vinculada a todas as outras. Para Balzac, o espírito de todo um ambiente poderia ser revelado através de um úni-

co detalhe material, por mais mesquinho GJ arbitrário que pudesse parecer. Toda uma vida pode sr resumida numa aparência momentânea*. E umamudaiça nas aparências é uma mudança na pessoa, pôs ele s recusou a colocar qualquer pessoa "de verdade' escodida atrás daquela aparência. A teoria imaginosa de Bazac, a qual deu a conhecer a Nadar, de que um corpo i composto de uma série infinita de "imagens assombrtsas", pode ser sinistramente comparada à teoria supost;mente realista que expressa em suas novelas, segundo i qual uma pessoa é um agregado de aparências que poa retratada simplesmente existe; por isso, nunca pod«mos ter muitos registros. O temor de que a singularidade de uma pessoa pudesse ser reforçada pela fotografia jamais foi expresso com tanta frequência como na década de 1850, quardo o retrato fotográfico forneceu o primeiro exemplo de como a câmara podia criar modas passageiras e indústras duradouras. Em Pierre, de Melville, publicado no início da década, o herói, outro campeão fervoroso do isoamento voluntário. considerava como, então, corr infinita rapidez, o ret"ato mais fiel de uma pessoa podia ser trado pelo daguerreótii», ao passo que, em tempos passados, um retrato fiel só estaria ao alcance dos endinheirados ou dos aristocratas mentais do mundo. Muito natural, portanto, parecia a conclusão de que, em vez de imortalizar génios, como antigamente, o retrato naquela época visasse a apenas trazer à luz ignorantes. Além disso, cuando se publicam retratos de tantas pessoas, a verdadeira distinção consiste em não termos o nosso publicado.

Contudo, se a fotografia se rebaixa, a pintura distorce de modo oposto: fazendo-se de grandiosa. A intuição de Melville é de que toda forma de retrato na civilização dos grandes negócios é um compromisso; pelo menos assim parece a Pierre, modelo da sensibilidade alienada. Assim como uma fotografia significa tão pouco numa sociedade de massa, uma pintura significa demasiado. A natureza da pintura, Pierre observa, torna-a mais afeita à reverência do que o homem o é; porquanto não podemos conceber um quadro que possua algo de depreciativo, ao passo que podemos imaginar muitas coisas inevitavelmente depreciativas capazes de emocionar o homem.

Mesmo se tais ironias podem ser consideradas como tendo sido dissolvidas pela totalidade do triunfo da fotografia, a principal,diferença entre pintura e fotografia, no que concerne ao retrato, permanece válida. A pintura resume invariavelmente; a fotografia, geralmente, não. As imagens fotográficas são parte do testemu nho numa bio-

159

160

grafia ou história que fluem. E uma fotografia, ao con trário da pintura, traz em si a promessa de que outras mais virão. "Sempre ~- o Documento Humano destinado a man ter o presente e o futuro em contato com o passado", disse Lewis Hine. Mas o que a fotografia fornece não é apenas um registro do passado, senão urn novo modo de lidar com o presente, como comprovam os efeitos dos bilhões de documentos fotográficos contemporâneos. Enquanto velhas fotografias preenchem a imagem mental que temos do passado, as fotografias que tiramos agora transformam o presente em imagem mental, como o passado. A câmara estabelece uma relação conclusiva com o presente (a realidade se conhece por seus vestígios) e fornece uma visão da experiência instantaneamente retroativa. A fotografia oferece formas de posse marcadas pelo escárnio: do passado, do presente, até do futuro. Em Invitation to a Beheading (1938), o prisioneiro Cincinnatus vê o "foto-horóscopo" de uma criança tirado pelo sinistro M'sieur Pierre: um álbum de "fotografias da pequena Emmie quando menina, na época uma criança pequena, logo depois pré-adolescente, como ela é agora, depois — ao retocar e utilizar fotografias de sua mãe — de Emmie adolescente, noiva, moca de 30 anos, concluindo com uma fotografia na idade de 40 anos, Emmie no leito de morte. Uma "paródia do trabalho do tempo", é como Nabokov denomina esse artefato exemplar; é também uma paródia da obra que é a fotografia. A fotografia, que pode ser utilizada de tantos modos narcisísticos, é também instrumento poderoso no sentido de despersonalizar a relação que mantemos com o mundo; e essas utilizações são complementares. Como um par de binóculos sem lado direito, a câmara faz com que coisas exóticas e íntimas pareçam próximas; e coisas familiares pareçam pequenas, abstraías, estranhas, muito mais distantes. Ela oferece, numa atividade fácil e que nos leva ao hábito, participação e alienação a uma só vez, em nossas próprias vidas e na dos outros — permitindo-nos participar, ao mesmo tempo em que reafirma

a alienação. Guerra e fotografia parecem hoje nseparáveis; e desastres de avião eoutros acidentes rcrrorosos sempre atraem pessoas que astão com câmaras, Uma sociedade que faz da aspiração a jamais experimentar privações, insucessos, miséria, dores, doenças terríveis uma norma, e na qual a própria norte é vista não como natural e inevitável, mas como um desastre criei e imerecido, cria uma curiosidade enorme em torno de taisacontecimentos — curiosidade que é satisfeita em parte através do ato de fotografar. A sensação de estar isento da calamidade estimula nosso interesse em ver fotografias dolorosas e o fato de vê-las sugere e fortalece a sensação de que estamos isentos. Em parte porque estamos "aqui", e não "lá", e em parte por causa do caráter de inevitabilidade que todo acontecimento adquire ao ser transformado em imagem. No mundo real, algo está ocorrendo e ninguém sabe o que vai acontecer. No mundo das imagens, aquilo já aconteceu, e acontecerá sempre da mesma forma. O conhecimento abrangente do que existe no mundo (a arte, a catástrofe, as belezas da natureza) através das imagens fotográficas desaponta frequentemente as pessoas, surpreende-as e paralisa-as quando vêem a coisa verdadeira. Pois a imagem tende a subtrair sentimentos daquelas coisas que experimentamos em primeira mão, e os sentimentos que nos desperta não são, em grande parte, aqueles que realmente experimentamos na vida real. Muitas vezes uma coisa nos perturba mais na forma de fotografia do que quando efetivamente a conhecemos. Num hospital de Xangai, em 1973, ao observar retirarem de um trabalhador de fábrica, que tinha uma úlcera em estado adiantado, nove décimos do estômago, com anestesia por acupuntura, procurei acompanhar a operação, que durou três horas (foi a primeira operação que jamais presenciei, sem perturbar-me, nunca sentindo, mesmo que por um só momento, a necessidade de desviar o olhar. Num cinema em Paris, um ano mais tarde, a operação menos sangrenta que aparece no documentário Chung Kuo. de Antonioni, sobre a China, fez-rne recuar ao primeiro corte do bisturi e desviar o olhar várias vezes durante a sequência. Somos muito

161

162

mais vulneráveis aos acontecimentos que nos inquiut.nn sob a forma de imagens fotográficas do que sob a foi m.i de fatos reais. Essa vulnerabilidade é parte da passividd de característica de alguém que é espectador mats de uma vez, espectador de acontecimentos já configurados, primeiro pelos participantes e depois pelo fotógrafo ou cineasta. Para a operação verdadeira, tive de esterilizar as mãos vesti uma bata de operação e depois permaneci de pé ao lado dos médicos e enfermeiras atarefados, e eu os papéis que devia desempenhar: de adulto desinibido, de visitante bem-educado, de testemunha digna de rés peito. A operação no filme impede não somente essa modesta participação, mas toda capacidade de reação do espectador. Na sala de operações, sou eu quem controla o foco, toma os c/ose-ups e faz as tomadas. No cinema, Antonioni já selecionou quais as partes da operação que posso olhar; a câmara me procura — e me obriga a olhar, deixando-me como única opção não olhar. Além disso, o filme condensa em poucos minutos algo que leva horas, deixando apenas partes interessantes que são apresentadas de maneira interessante, ou seja, com a intenção de provocar ou de chocar. O dramático é dramatizado, pela didática do cenário e da montagem. Viramos a página de uma revista de fotografias, uma nova sequência tem início num filme, produzindo um contraste qut- é mais agudo do que o contraste existente entre acontecimentos sucessivos no tempo real. Nada para nós poderia ser mais instrutivo com respeito ao significado da fotografia — como, entre outras coisas, método de promover o real — do que os ataques ao filme de Antonioni que foram publicados pela imprensa chinesa no í n feio de 1974. Tais ataques conformam um catálogo negativo de todos os inventos da fotografia moderna, seja a própria fotografia ou o filme". Se para nós a fotografia está intimamente ligada a maneiras de ver desprovidas de continuidade (trata-se precisamente de ver o todo através das partes — um detalhe que nos capta a atenção, ou uma forma muito diferente de cortar a fotografia), na China ela está vinculada unicamente à continuidade. Não somente há temas apropriados para a câmara, temas positivos, inspiradores (atividades exem-

plares, gente sorridente, tenpo bom} e organizados, como também há modos adequados de fotografar que próvêm de noções sobre a ordem moral do espaço, as quais impedem a própria ideia d3 visão fotográfica, Assim é que Antonioni foi criticado por fotografar coisas velhas ou fora de moda — "procurou e fotografou paredes e jornais murais abandonados há muito tempo";não prestando "atenção alguma aostratores grandes epequenos que trabalhavam nos campos, [ele] escolheu apenas um burro que puxava um cilindro de pedra" - e por mostrar momentos indecorosos— "com desgosto,filmou as pessoas assoando o nariz e indo ao vaso sanitário" — e movimentos indisciplinados — "em vez de filmar estudantes nas salas de aula das escolas primárias de nossas fábricas, filmou as crianças saindo às carreiras das salas ao término das aulas". E acusaram-no de denegrir as pessoas e coisas certas pelo modo como as fotografou: por ter utilizado "cores sombrias e lúgubres" e esconder as pessoas em "sombras escuras"; por ter focalizado as mesmas pessoas e coisas em muitas tomadas — "há às vezes tomadas longas, às vezes c/ose-ups, algumas vezes de frente, outras por detrás" —, isto é, por não ter mostrado as coisas sob o ponto de vista de um único observador, colocado em posição ideal; utilizado ângulos altos e baixos - "A câmara era focalizada intencionalmente naquela ponte magnífica e moderna desde ângulos muito ruins, a fim de fazê-la parecer arqueada e cambaleante"; e por não ter um número suficiente de boas toma'Ver A Vicious Motive, Despicable Tricks — A Criticism of Antonionfs Anti-Chma Film "China" (Pequim: Foreign Languages Press, 1974), panfleto de 18 paginas (sem assinatura} que reproduz um artigo publicado no jornal Renmmh Ribao em 30 de janeiro de 1974; e " Repudiai i ng Antonioni's Anti-China Film", Peking Revtew, n° 8 (22 de fevereiro de 1974), que fornece veisões condensadas de três outros artigos publicados naquele mês. O ob|etivo de tais artigos não é, obviamente, expressar uma visão sobre a fotografia — o interesse deles a esse respeito passa despercebido —, mas construir um inimigo ideológico modelo, como em outras campanhas de educação de massa levadas a cabo durante aquele período. Considerando tal propósito, não se faz necessário que dezenas de milhões de pessoas mobilizadas em grandes encontros que se realizavam em escolas, fábricas, unidades do Exército e comunas em Todo o país para "Criticar o Filme Antichinés de Antonioni" tivessem realmente visto Chung Kuo, nem que os participantes da ríimpanha "Critique Lin Pião e Confúcio" de 1976 tivessem lido um texto sequer de Confúcio.

163

.164

das — "Ele martelou o cérebro para conseguii i c/ose-ups num esforço de distorcer a imagem do povo r deformar-lhe a perspectiva espiritual". Além da iconografia fotográfica de l íderes adorados, do kitsch revolucionário, de tesouros culturais, produ/i dos em massa, frequentemente vemos na China fotogra fías de caráter privado. Muitas pessoas possuem retratos dos entes queridos pregados à parede ou postos por de baixo do vidro da penteadeira ou da mesa de escritório. Muitas dessas fotografias são do tipo de retratos instan tâneos que no Ocidente tiramos em reuniões familiares e em viagens; nenhuma delas, porém, é uma fotografia cândida, nem mesmo a do tipo que o amador que usa a câmara mais simples, em nossa sociedade, considera nor mal — um bebé engatinhando no chão, uma pessoa esbo çando um gesto. Fotografias de esportes mostram o time em grupo, ou apenas os instantes mais estilizados do jo go como bale: em geral, o que as pessoas fazem quando vêem a câmara é reunir-se e formar uma ou duas filas. Não há interesse algum em captar ninguém em movimento. E isso se explica em parte, supõe se, por certas velhas convenções de decoro na conduta e na imagística. E é o critério visual característico daquelas pessoas que se encontram no primeiro estágio da cultura da câmara, quando a imagem é definida como algo que pode ser roubado de seu possuidor; por isso, Antonioni foi críti cado por "ter forçado a situação e feito tomadas contra a vontade das pessoas", como "um ladrão". A posse de uma câmara não justifica a intromissão, como ocorre em nossa sociedade, queiram ou não as pessoas. (As boas maneiras da cultura da câmara aconselham que devemos fingir não estar vendo que um estranho nos está fotografando num local público, contanto que o fotógrafo permaneça a uma discreta distância — ou seja, não devemos nem proibir a tomada da fotografia e nem posar.) Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde posamos onde podemos e paramos quando nos parece ne cessário, na China o ato de fotografar é sempre um ritual — o qual implica sempre a pose e, necessariamente, o consentimento. Uma pessoa que "seguiu deliberadamen te outras que não sabiam de sua intenção de filma Ias"

estava privando essas mesmat pessoas e coisas do direito que lhes cabe de posar para iparecer damelhomaneira possível. Antonioni dedicou quase toda a sequência de Chung Kuo sobre a Praça Tien An ii/len, em Pequim -a maior rneta da peregrinação política no país - aos pregrinos que esperavam ser fotografados. O interesse de António ni em mostrar os chineses enquanto executavam aquele rito elementar, e documentar sua viagem com acamara, é evidente: a fotografia e o aro de ser fotografado são os temas contemporâneos preferidos pela câmara. Para os críticos, o desejo das pessoas que visitam a Praça Tien An Men de ter uma fotografia sua de souvenir é um reflexo de seus profundos sentimentos revolucionários. Entretanto, com más intenções, Antonioni, em ve2 de mós trar essa realidade, apenas filmou as roupas das pessoas, seus movimentos e expressões: ora, os cabelos desordenados de uma pessoa, ora outra espreitando com o olhar ofuscado pelo sol; numa tomadas, as mangas da camisa de um homem; em outra, suas calças. . .

Os chineses resistem ao desmembramento fotográfico da realidade. Não se fazem c/ose-ups. Nem os cartões postais de antiguidades e obras de arte vendidas em museus revelam parte de alguma coisa; o objeto é sempre fotografado diretamente, centralizado, uniformemente iluminado, em sua totalidade. Achamos os chineses inocentes por não perceberem^ beleza que pode haver numa porta que estala ou se descasca, o pitoresco que existe na desordem, a força do ângulo incomum e o detalhe significativo, a poesia da pessoa fotografada de costas. Temos uma noção moderna de embelezamento — a beleza não é inerente a coisa alguma; ela deverá ser encontrada através de outro modo de ver — e de uma noção mais ampla do significado, que as muitas modalidades da fotografia ilustra..! e reforçam poderosamente. Quanto mais numerosas as variações de uma coisa, mais ricas suas possibilidades de significado: por isso é possível dizer muito mais com fotografias do Oeste americano do que da China atual. Independente

165

166

mente do que quer que seja verdadeiro com" relaç.To .u> Chung Kuo como item de mercadoria ideológica (e os chineses não estão errados quando i dizem «•' A outra atitude trata todas as coisas cono o'Je gum uso, presente ou futuro, como matéria 'a tívas, decisões e predições. De acordo com uiia dacl atitudes, nada existe que ião deva ser rito;-0™0™ outra, nada há que não ceva ser registrado * concretiza uma visão estética da realidade nam que é uma máquina de brinquedo que coloc. a° de qualquer um a possibilidade de emitir ligamentos * . *CP P f\p Pdesinteressados sobre a importância, o rntere>bt= e "" za. ("Aquilo ali daria uma boa fotografia/' A c [ ara concretiza a visão instrumental da realidade na ' em que reúne informações que nos habilitar*.3 modo muito mais exato e rápido aos acontar1." reação pode, naturalmente, ser tanto repres"va benevolente: fotografias de reconhecimento™1 tribuem para a extinção de vidas, e os raios*, pá vá-l as. Embora essas duas atitudes, a estética e a \™ Bn; tal, pareçam produzir sentimentos contradí>orios e ate * "lím P SITUfímesmo incompatíveis com respeito a pesst^ t coes, é essa a contradição nitidamente caracter atitude que membros de uma sociedade que1 dlx público do privado devem compartilhar e cor" vem conviver. E talvez não haja atívidade Alguma qu€ nos prepare tão bem para conviver com t a 'j contraditórias quanto a fotografia, que se cd™ brilhantemente a ambas. De um lado, a câm^r| visão a serviço do poder -- do Estado, da inddstria' da ència. De outro, a câmara torna expressiva a1 visão dentro do espaço mítico conhecido como vida Flva( China, onde política e moralismo não deixan" espaço gum para as expressões da sensibil idade estét:ica- S( te algumas coisas podem ser fotografadas, e plorar os recursos naturais de modo eficiente, aumentara produtividade, manter a ordem, fazer a guerra eoroporcionar empregos aos burocratas. A dupla capacidade da câmara de tornar subjetiva e objetiva a realidade satisfaz essas necessidades de forma ideal, e reforça-as A câmara define a realidade de dois modos indispensáveis ao funcionamento de uma sociedade industrial avançada: como seus óculos (para as massas) e como objeto de vigilância (para os dirigentes). A produção de imagens fornece também uma ideologia dominante. A transformação social é substituída por uma transformação das imagens. A liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e bens equivale à própria liberdade. A contração da liberdade de opção política em liberdade de consumo económico exige a produção ilimitada e o consumo de imagens.

:

A razão final que justifica a necessidade de fotografar todas as coisas encontra-se na própria lógica do consumo. Consumir é sinónimo de queimar, gastar — e, portanto, da necessidade de reabastecer-se. À proporção que fabricamos imagens e as consumimos, passamos a necessitar de mais imagens ainda, e assim por diante. As imagens, porém, nâb constituem um tesouro em busca do qual o mundo deva ser esquadrinhado; são precisamente o que está à mão onde quer que o olho bata. A posse da câmara pode inspirar em nós algo parecido com a luxúria. E, como toda expressão da luxúria digna de crédito, essa também não pode ser satisfeita: em primeiro lugar porque as possibilidades da fotografia são infinitas; e em segundo porque tal projeto é, afinal de contas, autodestrutível. As tentativas empreendidas por fotógrafos no sentido de apoiar certa percepção da realidade já exaurida contribuem para essa mesma exaustão. A sensa-

171

172

cão sufocante que experimentamos quanto à transitorie dade de todas as coisas torna-se mais intensa desde o momento em que a câmara nos permitiu "fixar" o instante fugaz. Consumimos imagens a um ritmo cada vez mais acelerado, e assím como Balzac suspeitava que a câmara consumia partes do corpo, as imagens consomem a realidade. A câmara é o antídoto e a doença, um meio de apoderar-se da realidade e de torná-la obsoleta. Os poderes da fotografia, na verdade, desplatonizaram nossa percepção da realidade, tornando cada vez menos aceitável seu reflexo sobre nossa experiência nos termos da distinção entre imagens e coisas, cópias e originais. Comparar imagens com sombras convinha perfeitamente à atitude depreciativa de Platão com respeito às imagens — transitórias, quase totalmente desprovidas de conteúdo informativo, imateriais, co presenças impotentes das coisas reais que as projetam. Mas a força da imagem fotográfica origina-se no fato de serem elas realidades materiais por direito próprio, depósitos ricos em informação deixados no rastro da coisa que as emitiu, meio vigoroso de virar o feitiço contra o feiticeiro, no caso a realidade — de transformá-la em sombras. As imagens são muito mais reais do que se poderia supor. E exatamente porque significam um recurso ilimitado, que não pode ser esgotado pelo desperdício consumista, há muito mais razão para aplicar-se a elas o recurso conservacionista. Se o mundo real quiser dispor de um meio mais adequado de incluir o das imagens, necessitará de uma ecologia não somente das coisas reais, mas das imagens também.

Breve Antologia de Citações (Em homenagem a W.B.)

'

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF