Søren Kierkegaard - Ou-Ou - Um Fragmento de Vida (Segunda Parte) (Ed. Relógio D'Água, Portugal) (1) - Organized

April 8, 2024 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Ou-Ou Um Fragmento de Vida Segunda Parte

Relógio D' Água Editores Rua Sylvio Rebelo, n.º 15 1000-282 Lisboa tel.: 218 474 450 fax: 218 470 775 [email protected] www.re logiodagu a .pt

Título: Ou-Ou. Um Fragmento de Vida - Segunda Parte Título original: Enten-Eller. Et Livs-fragment. Anden Deel (1843) De acordo com a edição Srpren Kierkegaards Skrifter, vols. 3 e K2-3 ©Sl')ren Kierkegaard Forskningscenteret, Copenhaga, 1994. O Sl')ren Kierkegaard Forskningscenter é apoiado pela Fundação Nacional Dinamarquesa para a Investigação Autor: Sl')ren Kierkegaard Tradução do dinamarquês, posfácio e notas: Elisabete M. de Sousa Coordenação editorial: Joakim Garff, António Pedro Mesquita, José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Responsabilidade científica: José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Revisão de texto: Madalena Fragoso Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com) sobre fragmento de Interior de Amaliegade , ca. 1829, de Wilhelm Bendz ©Relógio D'Água Editores, Outubro de 2017 Edição feita com o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e com Sl')ren Kierkegaard Forskningscenteret da Universidade de Copenhaga. Por protocolo assina­ do entre as duas instituições, o SKFC cedeu ao CFUL os direitos sobre a utilização da edição dos Srpren Kierkegaards Skrifter e dos respectivos aparatos críticos. O Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa é apoiado no âmbito do Programa de Financiamento Plurianual das Unidades de I&D da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que se enquadra no Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação (POCTI). Este Programa insere-se no III Quadro Comunitário de Apoio e é co-financiado pelo Governo Português e a União Europeia, através do Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (FEDER). A presente tradução foi financiada pela DanishArts Foundation (Statens Kunstfond). DANISH ARTS FOUNDATION

Encomende os seus livros em:

www.relogiodagua.pt ISBN

978-989-641-791-8

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores Impressão: Guide Artes Gráficas, Lda. Depósito Legal n."

432725/17

S0ren Kierkegaard

Ou-Ou Um Fragmento de Vida Segunda Parte Tradução do dinamarquês, Posfácio e Notas de Elisabete M. de Sousa

Filosofia

Índice Geral Nota Editorial

Ou - Ou. Um Fragmento de Vida - Segunda Parte Posfácio

9 13 349

NOTA EDITORIAL

Referências bibliográficas, enquadramento institucional da presente tradução e agradecimentos

A presente tradução segue o texto constante da quarta edição das obras,

S!?lren Kierkegaards Skrifter (Escritos de S.K.; abreviatura: SKS, com inclu­ são do número do volume em árabes e da página em árabes), organizada por Niels ]f/Jrgen Cappelf/Jrn, Joakim Gar.ff, Johnny Kondrup, Anne Mette Hansen, Tonny Aagaard Olesen e Steen Tullberg . A publicação desta edição teve início em 1997, na editora G. E. C. Gads Forlag de Copenhaga, e.ficou concluída em 2013, ano do bicentenário do nascimento do autor. Reúne as obras em 16 volumes, numerados de 1 a 16, e os diários, cadernos e cartas em li volumes, numerados de 17 a 27, e inclui ainda um volume com cartas e dedicatórias. O aparato crítico de cada volume é publicado em separado com o título de «Kommentarbind», seguido do número do volume respectivo (abreviatura: SKS, com a identificação do volume pela letra K seguida do nú­ mero do volume em árabes e da página em árabes). Enten-Eller. Anden Deel é o volume 3, e o aparato crítico está incluído no volume K2 -3, pp . 2 43-3 47. Nas notas e comentários, é referenciada em primeiro lugar a primeira edição das obras, S!?lren Kierkegaards Samlede Vrerker (Obras comple­ tas de S.K.; abreviatura: SV, seguida do número do volume em romanos e da página em árabes), edição em 14 volumes, organizada por A . B. Dra­ chman, J. L. Heiberg e H. O. Lange, publicada pela primeira vez em Cope­ nhaga pela casa editora Gyldendal, entre 190 1 e 1906. Nas notas e comentários à presente tradução, as referências aos diá­ rios e cadernos de Kierkegaard são feitas de acordo com a classificação e numeração adaptada em SKS, indicando-se a referência do diário ou caderno, seguida da numeração do fragmento adaptada em SKS, seguida do número do volume em árabes e da página em árabes. Procedeu-se ao confronto com as seguintes traduções: - duas traduções alemãs: a de Emanuel Hirsch, Entweder-Oder - Teil 2, publicada em S.K., Gesammelte Werke, org . de E. Hirsch e Hayo Ger -

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Nota Editorial

des, 195 7, e reeditada em Gütersloh: Gütersloher Verlag, 198 6; e a de Heinrich Fautek, Entweder-Oder. Teil 1 und II, inicialmente publicada em 1960, e reeditada em München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 2005. - a tradução inglesa, Either-Or II, de Howard V. Hong e Edna H. Hong, KW, vol. Vll, Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 198 7. - a tradução italiana de Alessandro Cortese, Enten-Eller. Un Fram­ mento di Vita, Milão: Adelphi, 197 6- 1989, em cinco vols. , designadamen­ te, os dois últimos: IV, 1981: « Validità estetica del matrimonio»; V, 1989: «L'equilíbrio tra l 'estetico e l 'etico nell 'elaborazione delta personalità» e « Ultimatum». - a tradução francesa de Odette Prior, Ferdinand Prior e Marie-Henriette Guignot, Ou bien. . . Ou bien . . . , Paris: Gallimard, 2008, publicada originalmente em 19 43. - a tradução espanhola de Darío González, O lo uno o lo otro. Un frag­ mento de vida II, vol . 3 de Escritos de S.K., Madrid: Editorial Trotta, 200 7. O vol. 2, referente à Parte 1, com tradução de Begonya Saez Tajajuerce e do mesmo D. González (2006), já fora consultado durante a tradução da primeira parte para português publicada em 20 13. Para referenciar, com citação integral, os versículos da Bíblia, aludidos ou citados indirecta ou parcialmente, utilizau-se a tradução de João Fer­ reira d'Almeida, Lisboa: Sociedade Bíblica de Portugal, 200 1. Em alguns livros das escrituras, em falta nesta edição, recorreu-se à Bíblia Sagrada para o Terceiro Milénio, Difusora Bíblica, sob a direcção de Herculano Alves, 5. ªedição, Março de 2006. As notas incluídas fornecem as elucidações necessárias para que o pú­ blico se possa situar dentro do contexto da obra e do autor, procurando-se todavia incluir outra informação julgada pertinente que possa auxiliar o leitor em futuras leituras do autor ou sobre o autor. Utilizou-se a infor­ mação reunida em SKS, volume K2- 3, fruto do trabalho da actual equipa editorial, e do saber acumulado nas anteriores edições dinamarquesas; recorreu-se igualmente ao aparato crítico das traduções acima menciona­ das; e completou-se com informação adicional recolhida pela tradutora durante a sua própria investigação. A presente tradução constitui a tarefa principal do pós-doutoramento da tradutora, que decorreu em paralelo com o projecto de tradução das obras do filósofo, que decorreram sob a égide do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, e coordenação de José Miranda Justo. Tanto as tarefas deste pós-doutoramento, como o projecto no seu todo.foram desenvolvidos em estreita colaboração com os dois mais importantes centros de investigação de Kierkegaard, Srj>ren Kierkegaards Fr/>rsknings Centeret da Universidade de Copenhaga, que cedeu os direitos de tradução para a língua portugue-

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Ou-Ou. Um Fragmento de Vida - Segunda Parte

sa, e a Hong Kierkegaard Library no St. Ola/ College em Northfield (MN, EUA). A tradução que agora se publica foi financiada pelo Danish Arts Council (Statens Kunstrad og Statens Kunstfond). Quero deixar aqui expresso o meu agradecimento aos Directores do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa que durante o meu pós­ -doutoramento dirigiram esta unidade de investigação, designadamente, Professor Manuel José Carmo Ferreira e Professor Leonel Ribeiro dos Santos, Professor Pedro Calafate e Professor António Pedro Mesquita. Agradeço o grande apoio, estímulo e acompanhamento com que sempre acompanharam este trabalho. Resta-me uma palavra final de agradeci­ mento particular ao Fernando M. Ferreira da Silva pelo cuidado e tempo dedicado à leitura final do manuscrito e de agradecimento e reconheci­ mento ao José Miranda Justo pela supervisão científica deste trabalho. E.S.

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Ou-Ou Um Fragmento de Vida publicado por VICTOR EREMITA*

Segunda Parte

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Vd. nota 1 de Ou-Ou . Um Fragmento de Vida. Primeira Parte , p. 24. Doravante esta

primeira parte é referida abreviadamente como Ou-Ou!.

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Ou-Ou Um Fragmento de Vida publicado por VICTOR EREMITA Segunda Parte Contendo os Papéis de B, Cartas dirigidas a A.

Les grandes passions sont solitaires, et les transporter au désert, c'est les rendre à leur empire. 1 Chateaubriand

Copenhaga 1843

À venda na Livraria Universitária C. A. Reitzel Impresso na Tipografia de Bianco Luno

1 Em francês no original: «As grandes paixões são solitárias, e transportá-las para o deserto é devolvê-las ao seu império.». Frase retirada de Ata/a, ou les amours de deux savages dans le désert (1801), romance de François René, Vimconte de Chateaubriand (1768-1848), originalmente publicado no periódico Mercure de France, n.º 20, Paris, 1801, pp. 97-1 07. Vd. Ata/a, in CEuvres Completes de M. le Vimconte de Chateaubriand, ed. Pierre-François Ladvocat, Paris, 1826-1831; vol. XVIII, p. 41. Para um comentário sobre as implicações da epígrafe de Chateaubriand para a interpretação da Ou-Ou . Segunda Parte, vd. Ingrid Basso, «Chateaubriand: The Eloquent Society of 2:uµnagavEXQWµEVot», in Kierkegaard and the Renaissance and Modem Traditions, vol. 5, tomo III: Literature, Drama and Music, edição de Jon Stewart, Aldershot: Ashgate, 2009, pp. 31 -62; e Ronald Grimsley, «Romantic Melancholy in Kierkegaard and Chateaubriand», in Sçren Kierkegaard and French Literature, Cardiff: University ofWales Press, 1966, pp. 45-63.

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Índice 1 A Validade Estética do Casamento .

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2 . O Equilíbrio entre o Estético e o Ético na Elaboração

da Personalidade 3 . Ultimato

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A Validade Estética do Casamento2

2 O título inicial deste capítulo era «Et Forsl,)g til a:sthetisk at redde k:gteskabet» , i.e. « Um Ensaio para salvar esteticamente o Casamento». Cf. Pap. III B 41, in SKS, vol. K2-3, p. 12.

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Meu amigo! As linhas que o teu olhar primeiramente capta foram as últimas a serem escritas. A acompanhá-las, fica o intento de ainda proceder, uma vez mais, a um ensaio que visa impor a forma de carta à pesquisa mais pormenori­ zada que ora te é enviada. Estas linhas entram então em correspondência com as últimas3 e no seu conjunto formam um sobrescrito, desta forma sugerindo exteriormente aquilo de que provas interiores te quiseram per­ suadir de tantas maneiras; o que estás a ler é uma carta. Não quis abdicar do pensamento de que te escrevia uma carta, em parte, porque o tempo de que dispunha não me permitiu a elaboração mais aprimorada exigida por um opúsculo, e, em parte, porque só contrafeito deixaria eu passar a oportunidade de, com maior exortação e empenho, te dirigir um apelo decorrente da forma epistolar. Aliás, tens demasiada prática na arte de saber falar de tudo de uma maneira bastante geral sem deixares que isso te atinja pessoalmente, para que houvesse eu de te tentar por via de pôr em movimento a tua força dialéctica. Bem sabes como o profeta Natan se comportou diante do rei David, quando entendeu bem a parábola exposta pelo profeta, mas não quis entender que a parábola a ele se aplicava4. 3As últimas linhas são a saudação de despedida deste capítulo e, concomitantemente, o derradeiro apelo com que se encerra o terceiro capítulo deste volume, « Ultimato». 4 2 Samuel, 12: 1-7: «E o Senhor enviou Natan a David; e entrando ele a David, disse-lhe: Havia, numa cidade, dois homens, um rico e o outro pobre. / O rico tinha muitíssimas ovelhas e vacas; / Mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma pequena cordeira que comprara e criara; e ela tinha crescido com ele e com os seus filhos, igualmente; do seu bocado comia, e do seu copo bebia, e dormia em seu regaço, e ele a tinha como filha. / E, vindo ao homem rico um viajante, deixou este de tomar das suas ovelhas e das suas vacas, para guisar para o viajante que viera a ele; e tomou a cordeira do homem pobre, e a preparou para o homem que viera a ele./ Então o furor de David se acendeu, em grande maneira, contra aquele homem, e disse a Natan: Vive o Senhor, que digno de morte é o homem que fez isso./ E pela cordeira tornará a dar o quadruplicado, porque fez tal coisa, e porque não se compadeceu./ Então disse Natan a David: Tu és este homem.Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Eu te ungi sobre Israel, e eu te livrei das mãos de Saul.»

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Natan acrescentou então como medida de precaução: Tu és este homem, Rei e Senhor. Foi também assim que sempre procurei lembrar-te de que se está a falar de ti, e de que se está a falar para ti. Por isso, de modo algum duvido que durante a leitura terás sempre a impressão de que aquilo que lês é uma carta, mesmo se vier a perturbar-te a circunstância de o forma­ to do papel não ser o adequado . Dado ser funcionário do Estado, é meu hábito escrever sobre a folha inteira; talvez isto tenha o seu lado bom, se puder contribuir para que a minha missiva ganhe aos teus olhos um certo carácter oficial. A carta que ora recebes é bastante grande; se houvesse de ser submetida à balança postal, tornar-se-ia uma carta dispendiosa; sub­ metida à balança de ourives de uma crítica fina, talvez se mostrasse até deveras insignificante. Por isso mesmo, peço-te que não utilizes nenhuma destas balanças; não utilizes a balança postal, pois não recebes a carta para reenvio, mas como depositário; não utilizes a balança da crítica, já que só contrafeito 1161 desejaria eu tornar-te culpado de um mau-entendimento tão grosseiro e tão pouco simpatético. *

* *

Se mais alguém que não a tua pessoa chegasse a ver esta pesquisa, então, achá-la-ia seguramente muitíssimo estranha e superficial; se fosse homem casado, talvez exclamasse com uma certa bonomia de pai de família: sim, o casamento é a estética da vida; se se tratasse de alguém jovem, talvez entoasse algo pouco claro e irreflectido: sim, amor5, és a estética da vida; mas nenhum deles seria capaz de conceber como me pôde ocorrer falar da reputação estética do casamento. Muito presumivelmente, em vez de ser merecedor dos esposos, os já casados e os que estão para casar, eu acabaria antes por me tornar suspeito, pois aquele que defende acusa6. E teria de agradecê-lo a ti, pois nunca duvidei disso; tu, a quem amo como um filho, como um irmão, como um amigo, apesar de todas as tuas bizar­ rias; amo-te com um amor estético, porque porventura conseguirás alguma vez encontrar um centro para os teus movimentos excêntricos; amo-te por causa da tua impetuosidade, por causa das tuas paixões, por causa das tuas

5 Aqui, «K}cerlighed» . Doravante serão referenciadas as ocorrências de «Elskov» . Vd. adiante nota 66. 6 Alusão ao dito romano «Dum excusare credis , accusas» , i.e. «Ao pensares que desculpas, acusas», consagrado na fórmula « Tel s'excuse: qui s'accuse» por Gabriel Meurier (1530-1601) em Recuei/ de sentences notables, dicts et dictons communs, adages, proverbes et refrains, traduits la plupart de latin, italien et espagnol et réduits selon l'ordre alphabétique, 1568, p. 121, verso.

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fraquezas, amo-te com um temor e tremor de amor religioso7, porque vejo os maus caminhos e porque és para mim algo completamente diferente de um fenómeno. Com efeito, quando assim te vejo escoicear para o lado, quando te vejo desencabrestado como um cavalo selvagem que se empina irrompendo de novo para a frente, então, com efeito, abdico logo de toda a mesquinhez da pedagogia; penso, porém, num cavalo que ainda não foi adestrado e também vejo a mão que segura as rédeas, vejo o chicote do destino erguendo-se sobre a tua cabeça. E contudo, quando finalmente esta pesquisa te chegar às mãos, então, dirás talvez: sim, é inegável que se trata de uma tarefa desmedida aquela a que ele se propôs, mas por ora vejamos, portanto, como se irá ele desenvencilhar. Estarei porventura a falar-te de uma maneira excessivamente branda, sou porventura demasiado tolerante para contigo; apesar do teu orgulho, talvez devesse ter feito maior uso da autoridade que tenho sobre ti, ou talvez nem sequer me devesse ter envolvi­ do contigo nesta matéria, já que és afinal um homem corrupto, e de muitos modos, e quanto mais alguém se envolver contigo, pior fica. Não é que tu sejas desta forma um qualquer inimigo do casamento, mas fazes mau uso do teu olhar irónico e do sarcasmo 1171 do teu escárnio para troçar dele. A este respeito, apraz-me admitir que não bates no ar8, que acertas no alvo, e que tens muito poder de observação, mas quero ao mesmo tempo dizer que talvez seja esse o teu erro. A tua vida resumir-se-á a uma mera corrida para viver. Responder-me-ás presumivelmente, dizendo que é todavia me­ lhor do que viajar sobre os carris da trivialidade e acabar atomisticamente perdido no formigueiro da vida social. Já ficou dito que não se pode dizer que detestes o casamento, pois certo é que o teu pensamento nunca a tal propriamente chegou, pelo menos, sem com isso se escandalizar; e assim possas tu perdoar-me, e também eu assumo que não pensaste profundamen­ te no assunto. Do que gostas mesmo é do primeiro enamoramento. Sabes como submergir e ficar oculto numa sonhadora clarividência, inebriada de amor9. Enleias-te na mais fina teia de aranha, assim de uma ponta à outra, e pões-te agora de vigia. Mas não és uma criança, não és uma consciência que desperta10 e, por isso, o teu olhar traz algo de diferente a sugerir; mas contentas-te com isso. Amas o casual. Um sorriso de uma menina bonita 7 2 Filipenses, 2:12: « De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim, também, operai a vossa salvação, com temor e tremor.» 8 1Coríntios, 9:26: «Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar.» 9Aqui, «Elskovsdrukken». 1OA consciência que desperta para o desejo é a disposição atribuída ao primeiro estádio do erótico-musical, protagonizado por Cherubino, o pajem da ópera de W. A. Mozart, Le Nozze di Figaro. Vd. Ou-Ou /, pp. 111-115.

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S! [A Autonomia da Razão pura. Terceiro Conflito da Ideia transcendental] ; edição do autor: Critik der reinen Vernunft ( 1 7 8 1 ) , 4.ª edição , Riga, 1 794, pp. 470-477; doravante , a edição é designada por CRP; (AA, 3:308-3 1 3). Na tradução portuguesa: Crítica Da Razão Pura , trad . Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Fundação Calouste Gulbenkian , 200 1 , pp. 406-4 1 1 ). Vd. igualmente Hegel , Encyclopiidie der philosophischen Wissenschaften [Enciclopédia das Ciências fi losóficas] , «Die Logik» , § 1 58: «Diese Wahrheit der Nothwendigkeit ist somit die Freiheit», in Werke , vol. VI, p . 3 10 , Jubiliiums, vol. VIII , p. 348 , Suhrkamp , vol. 8, p. 303); e também Wissenschaft der Logik, in Werke , vols. III-V; vol. IV, pp. 239-243 , Jubiliiums, vol. IV, pp. 7 1 7-72 1 , e Suhrkamp , vol . 6, pp. 237-240 . Vd. comentários de J. L. Heiberg em Om den menneskelige Frihed [Sobre a Liberdade do Homem] , Copenhaga, 1 824 , p. 64, e em Ledetraad ved Forelcesningerne over Philosophiens Philosophie eller den speculative Logik ved den kongelige militaire Hv>iskole [Guia para as Conferências na Escola Real Militar Guia sobre a Filosofia da Filosofia ou a Lógica especulativa] , Copenhaga, 1 83 1 -32, § 1 83 , p . 1 2 1 , doravante referenciada como Ledetraad. 93 Vd. Hegel, Wissenschaft der Logik [Ciência da Lógica] , in Werke , vol. V, p. 3 5 , Jubiliiums , vol. V , p . 3 5 , e Suhrkamp , vol. 6, p . 273 ; e também Encyclopiidie der philosophischen Wissenschaften [Enciclopédia das Ciências filosóficas] , «Die Logik» , § 1 63 , in Werke , vol . VI , p . 320 , Jubiliiums , vol . 8 , p. 3 5 8 , Suhrkamp , vol. 8 , p. 3 1 1 . Vd comentários de Heiberg in Ledetraad, § 1 37- 1 39 , pp. 85-87 .

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universal como o particular, e até atinge os limites do casual . Mas tudo isto é tido não por força da reflexão , é tido de uma maneira imediata. Quanto mais determinado neste aspecto estiver o primeiro amor tanto mais salutar, tanto maior é a probabilidade de se tratar realmente de um primeiro amor. Um poder irresistível leva a que se sintam atraídos um pelo outro , e contudo , desfrutam com isso de toda a liberdade . Não tendo eu agora à mão nem pais de coração empedernido , nem esfinges94 que tenham de ser primeiramente vencidas , disponho de fortuna suficiente para os equipar (também não me dei ao trabalho , como fazem os romancistas e os dramaturgos , de esticar o tempo para tormento do mundo inteiro , para tormento dos amantes , dos leitores e dos espectadores) , pois que juntos fiquem, em nome de Deus . Vês como eu dou um pai nobre e, em si e para si , é este um papel muitíssimo belo , se não tivéssemos sido simplesmente nós mesmos a tomá-lo muitas vezes ridículo. Porventura notaste que acrescentei umas breves palavras ao jeito do que fazem os pais: em nome de Deus. Ora, ao ancião que talvez nunca tenha sabido o que é o primeiro amor, ou que há muito tenha esque­ cido o que isso é, serás decerto capaz de perdoar tal coisa; mas quando um homem mais jovem entusiasmado ainda pelo primeiro amor consente a si mesmo colocar aqui a ênfase , então , talvez fiques surpreendido. Por conseguinte , o primeiro amor tem em si a segurança imediata e ge­ nial , não teme perigo algum, desafia o mundo inteiro , e limitar-me-ei a desejar que lhe seja sempre tão fácil quanto in cas u , já que 1 5 3 1 nem sequer coloco quaisquer obstáculos no seu caminho . Talvez não esteja a prestar­ -lhe serviço algum com isso e , se formos a ver, certamente que ainda caio em desgraça por esse motivo. No primeiro amor, o indivíduo está na posse de um poder desmedido e, por conseguinte , é tão desagradável não se en­ contrar oposição quanto seria desagradável para o valente cavaleiro que tendo recebido a espada com a qual seria capaz de rachar pedra95 se visse em seguida numa região de areias onde nem sequer houvesse um ramo no qual pudesse dar-lhe uso . Portanto , o primeiro amor sente-se bastante segu­ ro , não necessita de apoio algum, houvesse ele de necessitar de um apoio , então , diria o cavaleiro , já não é o primeiro amor. Ora, também isto pare­ ce ser bastante claro , mas mostra ao mesmo tempo que acabei por entrar num círculo. No precedente , vimos bem como o erro do amor romântico consistia em parar diante do amor como se fosse um Ansich96 abstracto , e

94 Édipo deslindou o enigma da esfinge de Tebas , obtendo assim o reino de Tebas e a possibilidade de desposar Jocasta. 95 Como a espada «Qva:rnbider», literalmente , «moinho que corta» , em Hakon Jarl de Adam Oehlenschliiger, in Nordiske Digte [Poemas nórdicos] , Copenhaga, 1 807, p. 267. 96 Em alemão no original: «em si» . Vd. I. Kant, Crítica da Razão Pura , AA, 3 : 332; na tradução portuguesa, pp . 430 e seg .

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vimos como todos os perigos que visse e desejasse eram meramente exte­ riores, não visando de todo o amor. Recordámos ao mesmo tempo como o assunto se tornava então mais difícil , se os perigos viessem de um outro lado , do interior. Mas o cavaleiro retorquiria obviamente o seguinte: pois sim , mas como haveria tal coisa de ser possível e sendo isso possível , en­ tão , não seria mais o primeiro amor. Estás a ver, nisto do primeiro amor, o assunto não é assim tão fáci l . Ora , eu poderia recordar que se trata de um mal-entendido aceitar que a reflexão pudesse apenas limitar-se a aniquilar, ela também salva e muito . Como entretanto aquilo que me propus mostrar com maior pormenor é poder o primeiro amor subsistir no casamento , en­ tão , destacarei mais de perto o que antes sugeri : pode ser acolhido numa concentricidade mais elevada e, para a atingir, nem sequer é necessária a dúvida . Posteriormente , mostrarei então que é por essência próprio do primeiro amor tornar-se histórico e que a condição para que assim seja é o casamento , em paralelo com o facto de o primeiro amor romântico ser não-histórico , por mais que se seja capaz de encher fólios com os feitos do cavaleiro . O primeiro amor está pois seguro de si mesmo e de um modo imediato; porém , os indivíduos estão ao mesmo tempo desenvolvidos do ponto de vista religioso . Estou até no direito de pressupor tal coisa, sim , é isso mes­ mo que vou pressupor, já que mostrarei como o primeiro amor e o casa­ mento podem subsistir um com o outro . Obviamente que se trata de um assunto diferente , quando um primeiro amor infeliz ensina os indivíduos a refugiarem-se em Deus e a procurarem segurança no casamento . Nessa altura, o primeiro amor altera-se , se bem que possa ser estabelecido 1541 outra vez . Eles estão , por conseguinte , habituados a entregar tudo a Deu s . Mas entregar tudo a Deus contém naturalmente uma multiplicidade d e mo­ dos diferentes . Ora , não é no dia da aflição que procuram Deus , também não são o temor e a angústia aquilo que os leva a rezar, o seu coração , todo o seu ser, está cheio de alegria, o que será então mais natural do que agra­ decerem isso a Deus . Nada temem, já que perigos exteriores não teriam poder sobre eles, e quanto a perigos interiores , esses , o primeiro amor nem sequer os conhece deveras . Mas o primeiro amor não se modifica por via deste dar graças , não entrou nele qualquer reflexão perturbadora, é acolhi­ do numa concentricidade mais elevada . Dar graças desta maneira, porém , tal como todas a s orações, está unido a o momento d a obra, não e m sentido extrínseco , mas em sentido intrínseco , aqui , querer apegar-se a este amor. Não se muda a essência do primeiro amor por essa via, não entra aí qual­ quer reflexão , não perde firmeza nas sólidas juntas , mantém ainda toda a abençoada convicção em si mesmo , é simplesmente acolhido numa con­ centricidade mais elevada. Nem sequer talvez saiba o que tem a temer nes­ ta concentricidade mais elevada , talvez nem sequer imagine perigo algum,

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e contudo , o bom propósito , também ele uma espécie de primeiro amor, empurra-o para o ético. Não venhas todavia levantar-me a objeção de , por estar sempre a empregar a palavra concentricidade , incorrer na culpa de petitio principii97 , já que , com efeito , eu deveria assumir à partida que estas regiões eram excêntricas . Tenho a retorquir que , se eu partisse da excentri­ cidade , então , de certeza que nunca alcançaria a concentricidade; mas peço-te ao mesmo tempo que recordes que , tendo em conta que parto desta, ao mesmo tempo , também a demonstro. Desta forma, colocámos agora o primeiro amor em relação com o ético e o religioso , e ficou mostrado como não é necessário alterar a essência desse amor por via disso; mas o ético e o religioso eram justamente o que aparentemente dificultava a união e , por­ tanto , tudo parece estar em ordem . No entanto , conheço-te demasiado bem para ousar ter esperança em «fazer-te engolir coisas destas» . Em geral , conheces todas as dificuldades do mundo . Graças a essa tua cabeça veloz que em tudo penetra , pensaste a toda a pressa numa multitude de tarefas científicas , de circunstâncias de vida, etc . , mas por toda a parte acabaste por parar diante das dificuldades; e quase sou levado a crer não te ser pos­ sível superá-las num único caso que seja. Em certo sentido , és parecido com um piloto , e contudo , é como se fosses o oposto dele . O piloto conhe­ ce os perigos e dirige o navio em segurança até ao porto . Tu conheces 1 5 5 1 os baixios , mas levas sempre o navio ao fundo . Fazes o melhor que podes , bem entendido , e tem de ser concedido que o fazes com grande prontidão e conhecimento . Tens o olhar tão exercitado em relação a pessoas e mares que sabes desde logo até que ponto podes seguir com elas para as fazer ir ao fundo . E também não és impensado; não te voltas a esquecer de que ele está ao largo; com uma maldade infantil , és capaz de te lembrar disso quan­ do o encontras na vez seguinte e, com toda a solicitude , perguntas-lhe en­ tão como vai e como foi que veio ao de cima. Aqui , também se presume que não te visses em embaraços diante das dificuldades . Certamente que te recordarias de como deixei completamente indeterminado e em suspenso qual o Deus de que se estava a falar, que não se estava a falar de um Eros pagão , o qual se aprazeria em testemunhar os segredos do amor98 , um Deus cuja existência, em última instância, se limitaria a ser um reflexo da própria disposição dos amantes; mas que se estava a falar do Deus dos cristãos , do Deus do espírito , o qual zela contra tudo o que não é espírito . Querias re­ cordar que a beleza e a sensualidade são negadas no Cristianismo , de pas­ sagem , farias notar como também assim para o cristão era indiferente que Cristo tivesse sido feio ou belo , pedir-me-ias para me manter afastado dos secretos encontros de amor juntamente com a minha ortodoxia, e, em par97 Em latim no original: «petição de princípio» . 98 Aqui , bem como na ocorrência seguinte de «amor>> , lê-se «Elskov» no original .

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S( A tua grande alegri a consiste em «consolar» as pessoas quando a ti se dirigem com casos críticos4 ; escutas a sua exposição , dizendo-lhes en-

l Em francês no origi nal: «golpe de mãos» . 2 Adaptação do alemão Popantz. , «papão» , mas também «espantalho» . 3 Cf. diapsalma «Ou - O u . Uma prelecção extática» no capítulo «Diapsalmata» de Ou-Ou /, pp . 73-75 . 4 Na realidade , é Johannes, o Sedutor, quem apresenta este traço característico no modo como interage com jovens apai xonados , designadamente com Edvard .

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tão: sim, agora intelijo perfeitamente , h á dois casos possíveis , pode fazer­ -se isto ou aquilo , a minha opinião sincera e o meu conselho amigo são os seguintes: quer faças isso , quer não faças , arrepender-te-ás de ambas as coisas 5 . Porém, quem dos outros faz zombaria 1 1 57 1 de si mesmo zomba; e isto não acontece por nada - é antes zombar profundamente de ti mes­ mo , é uma lamentável prova do desacerto da tua alma que a tua intuição de vida se concentre numa única frase: «digo tão-somente ou-ou .» Ora, a haver realmente seriedade da tua parte , então , nada havia a fazer contigo , teria antes de se deixar que continuasses a ser o que eras , lastimando que a melancolia e a frivolidade te houvessem debilitado o espírito . Ao invés, sabendo agora bem que não é isso aquilo que se passa, não se fica tentado a lastimar-te , mas antes a desejar que oxalá as circunstâncias da tua vida te prendam nas suas amarras , obrigando-te a deixares sair aquilo que em ti habita , oxalá se dê início a uma examinação mais rigorosa que não se contente com conversas ou com espirituosidades . A vida é uma mascara­ da , esclareces tu , constitui para ti matéria inesgotável de diversão , e ainda ninguém foi capaz de te conhecer, porque toda e qualquer manifestação é sempre um embuste; só dessa maneira consegues respirar, e impedir que as pessoas te acossem e te dificultem a respiração . A tua actividade consiste em manter o teu esconderijo, e nisso és bem-sucedido , pois a tua máscara é a mais enigmática de todas ; és designadamente nada, e continuas a ser me­ ramente na relação com os outros; o que tu és é aquilo que és por via dessa relação . Estendes languidamente a mão a uma amorável pastora, e nesse mesmo agora mascaras-te com todo o sentimentalismo bucólico que é pos­ sível ; enganas um venerável pastor da igreja com um beijo fratemal6 , etc . Tu próprio és nada, és uma figura enigmática, cuja testa ostenta ou-ou7 ; «pois esta é a minha divisa; e estas palavras não constituem, como crêem os gramáticos , conjunções disjuntivas ; não, elas são parte indissociável uma da outra, devendo por isso ser escritas numa só palavra, e dado que nessa união formam uma interjeição , grito-a à humanidade tal como a um judeu se grita "xô" ! » . Ora, apesar de qualquer dessas tuas expressões não produzirem em mim efeito , ou conquanto possam produzir algum, o efeito máximo alcançado é o de apelarem a uma justificada indignação , então , por tua própria causa, responder-te-ei afinal o seguinte : Não sabes que ha­ verá de soar uma meia-noite em que todos hão-de retirar a máscara? Crês que a vida pode ser sempre alvo de troça, crês ser possível escapulires-te 5 Vd. nota 9 1 no capítulo «Diapsalmata» de Ou-Ou !, p 73 6 Tal como o beijo de Judas a Jesus , Mateus , 27:48-49 , ou o de Joab a Amasa, 2 Samuel , 20: 9 . 7 Nos livros d o Pentateuco são várias a s referências a marcas gravadas na testa com a palavra de Deus. Por exemplo , Êxodo , 1 3 :9 e 2 8 : 36-3 8 , e Deuteronómio , 6: 8 . .

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antes da meia-noite para não passares por isso? Ou isto não te deixa apa­ vorado? Vi homens nesta vida que , de tanto enganarem os outros , o seu verdadeiro ser, por essa via, acabou por não conseguir manifestar-se 8 . Vi homens que , de tanto jogarem às escondidas , a loucura que os percorreu acabou por fazer com que impusessem aos outros os seus pensamentos secretos da mesma abominável maneira 1 1 5 8 1 com que até aí os haviam escondido . Ou não consegues imaginar algo mais pavoroso do que vires a terminar com o teu ser dissolv ido numa multitude , passares realmente a ser vários , uma legião , como aqueles infel izes demónios 9 , e haveres assim perd ido o que há de mais íntimo e de mai s sagrado no homem , o poder aglutinador da personalidade? Na verdade , não haverias de zombar daqui­ lo que não se li mita a ser sério , mas é antes medonho . Há algo em cada um dos homens que , até certo ponto , os impede de se tornarem completamen­ te transparentes para si mesmos; mas há casos em que isso pode atingir um grau tão elevado , casos em que um homem se encontra tão inexplicavel­ mente encalacrado por circunstâncias da vida que o ultrapassam , que mal consegue manifestar-se ; mas quem não puder manifestar-se não é capaz de amar, e quem não puder amar é o mais infeliz de todos os homens . E tu usas facéc ia para fazer o mesmo , exercitas-te n a arte de te tornares enigmático para todos . Meu jovem amigo ! Supõe que não havia ninguém que cu idasse de decifrar o teu enigma, que alegria retirarias disso? Mas , acima de tudo , por tua própria causa, por causa da tua salvação , porque eu não conheço nenhum outro estado de alma que melhor possa ser descrito como perdição , pára essa fuga selvática, essa paixão pela aniquilação que em ti lavra , pois o que pretendes é aniquilar tudo; queres saciar a fome da dúvida sobre a existência que há em ti . É para esse fim que te formas , é para esse fim que endureces a tua mente , já que estás disposto a admitir que não serves para nada, que apenas uma coisa te diverte , andares sete vezes à volta da existência fazendo soar a trompeta 1 0 e deixar em segui­ da que tudo se desmorone , para que a tua alma possa ficar tranquila, até mesmo nostálgica , para que possas fazer surgir um eco , pois o eco apenas ressoa no vazio . 8 Para um tratamento alargado deste tema , vd. O Conceito de Angústia , SV 1 , vol . IV, pp. 39 1 -398 : SKS , vol . 4. pp. 425 -432 ; na tradução brasi leira, pp. 1 3 1 - 1 3 8 . 9 Marcos . 5 : 1 -20 . e m particular 7- 1 0 : « E clamando com grande voz , disse : Que tenho eu contigo , Jesus , Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te , por Deus, que não me atormentes. / (Porque lhe dizia: Sai deste homem, espírito imundo .) / E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E lhe respondeu dizendo: Legião é o meu nome , porque somos muitos .» 10 Como os sacerdotes que soaram trompetas à volta de Jericó durante seis dias até ao cumprimento da profecia divina sobre a queda das muralhas da cidade ao sétimo dia. Vd . Josué . 6 : 1 -20 .

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No entanto , por esse caminho , decerto que não avanço mais contigo; além disso , a minha cabeça, se assim quiseres, é demasiado fraca para conseguir aguentar a vertigem que continuamente tenho diante dos meus olhos , ou , tal como eu quero , demasiado forte para nela encontrar prazer. Por isso , começarei o assunto partindo de uma outra vertente . Imagina um homem na idade em que a vida começa deveras a ter significação para ele; é são , puro , alegre , dotado espiritualmente , ele próprio é rico em es­ perança , é a esperança de todos os que o conhecem; imagina que ele se enganou a teu respeito , é de facto duro ter de ser eu a dizê-lo , acreditou que tu eras um homem sério, experimentado , experiente , junto de quem se poderia seguramente procurar esclarecimento acerca dos enigmas da vida; imagina que se dirigia a ti com a adorável confiança que é apanágio dos jovens , com a exigência inegável que constitui direito da juventude - que resposta lhe darias? Responder-lhe-ias : sim , eu digo tão-somente ou-ou ; certamente que não te ficarias por aí! 1 1 59 1 Será que pronunciarias a tua habitual expressão , quando queres denotar a aversão que sentes pelos ou­ tros quando te maçam com assuntos do coração, e espreitarias à janela com a cabeça para lhe dizer: passe à casa seguinte 1 1 ? Ou lidarias com ele como fazes com os outros que querem aconselhar-se contigo ou que pro­ curam o teu esclarecimento , e que rechaças tal como os que reclamam da côngrua com as seguintes palavras : sou apenas um inquilino da vida, não sou proprietário e pai de família? Decerto que também não te ficarias por aqui . Um homem jovem , dotado espiritualmente , algo a que tu só dás um preço excessivamente alto . Mas não fora um encontro casual ter-vos posto em contacto , e a tua relação com ele não seria de todo como aliás deseja­ rias , não teria tentado a tua ironia. Embora fosse mais jovem e tu fosses mais velho , também assim tornara sério o instante por via da sua nobre juvenilidade . Não é verdade que tu próprio ficarias jovem , que sentirias como reside algo de belo em ser jovem , mas também algo de muitíssimo sério , que o modo como se utiliza a juventude não é de todo um assunto indiferente , e como para um indivíduo reside aí um real ou-ou? Sentirias que aquilo que todavia está em causa não é tanto formar o espírito dele, mas antes amadurecer-lhe a personalidade . Tendo posto em movimento a tua bonomia e a tua simpatia, falarias com ele nesse tom; robustecer-lhe-ias a alma, fortalecer-lhe-ias a confiança que ele tinha no mundo; dar-lhe-ias a certeza de que , num homem, há um poder capaz de desafiar o mundo inteiro; inculcar-lhe-ias bem fundo , no coração , que fizesse uso do tempo . Sabes fazer tudo isso e , quando queres, até sabes fazê-lo muito bem . Mas agora toma bem atenção ao que eu te vou dizer, ó jovem , pois apesar de não 1 1 Tal como no jogo Gnavspil. Vd. nota 2 1 8 da tradução portuguesa de Temor e Tremor, p. 1 63 .

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seres novo , um indivíduo vê-se sempre , afinal , obrigado a chamar-te assim. O que fizeste agora nesta situação? Reconheceste o que noutras circunstân­ cias não queres reconhecer: a significação do ou-ou ; e porquê? Porque o amor por esse jovem comovera a tua alma; e contudo , de certo modo , até o enganaste , já que ele talvez qui sesse encontrar-se contigo noutras alturas em que não fosse teu ensejo reconhecer isso . Vês aqui uma consequência lamentável do facto de o ser de um homem não se poder manifestar har­ moniosamente . Acreditavas ter feito o melhor; e contudo , talvez o tivesses prejudicado ; talvez ele tivesse preferido conseguir manter-se à margem da desconfiança que tens da vida a encontrar repouso na fraudulenta confiança subjectiva que lhe transmitiras . Imagina que voltavas a encontrar-te com esse homem jovem alguns anos mais tarde ; tinha vivacidade , era engraça­ do , espirituoso , tinha pensamentos audazes e expressões atrevidas , mas o teu ouv ido apurado descobria 1 1 601 facilmente a dúvida que lhe ia na alma , nascia-te a suspeita de que também ele tinha chegado à equívoca sabedoria: digo tão-somente ou-ou . E não é verdade que sentirias pena dele , sentirias que ele perdera algo , e algo muitíssimo essencial? Mas de ti não queres tu lastimar-te , estás sati sfeito , estás até orgulhoso da tua equívoca sabedoria, d e facto , tens tanto orgulho nela q u e nem podes consentir e m partilhá-la com outra pessoa, pois queres ser o único a ficar com ela. E contudo , nou­ tro sentido , achas isto lamentável e na tua sincera opinião é lamentável que aquele homem jovem tenha alcançado a mesma sabedoria . Que desmedida contradição ! Todo o teu ser se contradiz. Mas só consegues sair dessa con­ tradição através de um ou-ou ; e eu , que te amo com mais sinceridade do que tu amavas esse jovem homem , eu, que na minha vida experimentei a significação da escolha, felicito-te por seres ainda tão jovem que , embora nunca queiras deixar escapar nada, se tiveres , ou melhor, se quiseres ter energia para tal , poderás todavia obter o que na vida é o principal , obter-te a ti mesmo , ganhar-te a ti mesmo . Ora , se um homem pudesse manter-se sempre no pináculo do instante da escolha , se pudesse cessar de ser homem, se no mais recôndito do seu ser ele fosse apenas um pensamento etéreo , se a personalidade nada mais tivesse a signi ficar do que ser um duende , o qual , por mais que participasse nos mov imentos, permanecia todavia inalterado 1 2 , se as coisas assim se passassem , então , seria uma tolice dizer-se que poderia ser demasiado tarde para um homem escolher, porque em sentido mais profundo nem sequer se poderia falar de escolha. A escolha, ela própria, é decisiva para o conteúdo da personal idade ; através da escolha , ela fica imersa no que é escolhido , e quando não escolhe , atrofia e definha. É , então , por um instante , pode en­ tão parecer por um instante que a coisa que de entre duas é escolhida está 1 2 Alusão não identificada .

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para além de quem escolhe , que este não estabelece qualquer relação com aquela, podendo conservar-se indiferente diante dela. É este o instante da ponderação , porém, tal como o instante platónico nem sequer propriamente o é 1 3 , e ainda menos no sentido abstracto em que queres guardá-lo; e quan­ to mais fixamente para ele se olha tanto menor é . O que vier a ser escolhido estabelece uma relação mais profunda com quem escolhe e, quando se fala de uma escolha que gira em tomo de uma questão vital , então , o indivíduo há-de com efeito viver nesse mesmo tempo , e acontece que quanto mais ele adiar a escolha tanto mais fácil será alterá-la, apesar de ponderar cada vez mais, crendo dessa forma que mantém as oposições da escolha afasta­ das uma da outra . 1 1 6 1 1 Quando se observa o ou-ou da vida dessa maneira, não é fácil cair na tentação de zombar à custa dele . Vê-se então como o impulso interior da personalidade não tem tempo para experimentos do pensamento , como se apressa constantemente para diante e como , de um ou de outro modo , ou põe um ou o outro , e como por essa via a escolha se toma então mais difícil no instante seguinte , pois o que fora posto fica reti­ do . Se imaginares um piloto ao comando do navio no instante em que deve fazer uma manobra , então , talvez ele possa vir dizer: ou faço isto , ou faço aquilo; porém, se não for fraco piloto , então , estará ao mesmo tempo ciente de que o barco prossegue a toda a velocidade enquanto tudo isso acontece , e de que dessa forma há só um instante durante o qual é indiferente que ele faça isto ou aquilo . Também assim acontece com o homem; se ele se esquecer de contar com a velocidade , então, acaba por chegar o instante em que já não há lugar para falar de um ou-ou , não porque ele tenha escolhido , mas porque deixou de o fazer, o que também se pode exprimir do seguinte modo: porque outros escolheram por ele , porque ele se perdeu a si mesmo . A partir daquilo que foi aqui desenvolvido , verás também como a ob­ servação que faço acerca de uma escolha é essencialmente diferente da tua, caso eu possa, aliás , falar assim disso , pois a tua é diferente justamen­ te pelo facto de impedir uma escolha . O instante da escolha é para mim muitíssimo sério, não tanto por se fundamentar no pensar forte e profundo que na escolha se mostra separado , não por se fundamentar na multitude de pensamentos que se associam à parte singular, mas antes porque há o perigo de , dessa forma, no instante seguinte eu já não ter disponibilidade de escolha, de já se ter então vivido algo que tenha de ser vivido novamente;

1 3 O instante enquanto fronteira entre o antes e o depois . Cf. Platão , Parménides, 1 56 . Na tradução portuguesa de José Trindade dos Santos e Maria José Figueiredo , Lisboa, Instituto Piaget, 200 1 , pp . 95-97 . Edições do autor: Platons Werke [Obras de P.] , tradução de Fr. Schleiermacher, vols. I-VI , Berlim, 1 804- 1 828; vol . I-II , 1 805 , p . 1 5 8 e ss.; e Platonis opera quae exstant [Obras d e P. e m existência] , edição d e F . Ast , vols. 1-XI , Leipzig, 1 8 1 9- 1 832; vol . III , 1 82 1 , pp . 76-79 .

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pois quando se crê que é possível manter a personalidade nua e crua, ou que , em sentido estrito , é possível parar e interromper a vida pessoal , então , cai-se numa ilusão crassa. Antes de se escolher, já a personalidade está in­ teressada na escolha e , quando se adia a escolha, então , a personalidade , ou os obscuros poderes dentro dela, escolhe inconscientemente . Quando por fim se faz então a escolha, desde que , como anteriormente comente i , não se fique completamente volatilizado , então , descobre-se que há algo que , por seu turno , tem de ser refeito , que tem de ficar retido , o que amiúde se torna mu ito , muito difícil . Nos contos de fadas , fala-se de homens que , arreba­ tados pela música demoníaca de sereias e de tritões , caem em seu poder 1 4 • Para quebrar o encantamento , reza a história, era necessário que quem ti­ vesse sido encantado tocasse a mesma peça do fim para o princípio , sem cometer um erro uma vez que fosse 1 5 . Trata-se de um pensamento muitís­ simo penetrante , mas é muito , muito difícil de realizar; e contudo , passa-se 1 1 621 assi m; o que falhou e estiver inculcado dentro de cada um tem de ser extirpado desta maneira e, de cada vez que se cometer um erro , terá de se começar do princípio . Vê, por conseguinte , como tem importância esco­ lher e escolher a tempo . Ao invés , tu tens outro método , pois sei bem que o lado polémico que viras contra o mundo não é a tua verdadeira essência. De facto , se ponderar fosse tarefa para uma vida humana, então , estarias perto da perfeição . Vou dar um exemplo . É óbvio que terá de se tratar de contrastes arrojados para conseguir estar à tua medida: ou pastor ou actor. Eis o dilema . Desperta agora toda a tua energia apaixonada; a reflexão e as suas centenas de braços agarram-se ao pensamento de ser pastor. Não tens sossego , pensas dia e noite no assunto; lês todos os escritos a que podes lançar mão; ao domingo , vais três vezes à igreja 1 6 ; travas conhecimento 1 4 frische Elfenmiirchen lContos de Elfos da Irlanda] , tradução dos irmãos Grimm, Leipzig , 1 826, da obra de Thomas Crofton Croker ( 1 798- 1 854) , Fairy Legends and Traditions of the South of Ireland [ Lendas de Fadas e Tradições do Sul da Irlanda] , Londres, 1 825; aqui p. 82 e ss. O tema surge em «E/vehrpj» , uma balada inspirada na lenda popular; vd. Udval[?te Danske Viser fra Middelalderen [Baladas dinamarquesas escolhidas em Dinamarquês da I dade Média] , edição de W. H. F. Abrahamson , K . Nyerup e K . L . Rahbck, vols . 1-V, Copenhaga , 1 8 1 2- 1 8 1 4; vol . 1 , p p . 234-236. A lenda foi utilizada por J . L. Hei bcrg num drama musicado com o mesmo nome em 1 828 . O epi sód io de Agnete e o Tritão , em Temor e Tremor (SV 1 , vol . III , pp . 1 40- 1 48 ; S K S , vol . 4 , p p . 1 83 - 1 90; Temor e Tremor, p p . 1 57- 1 62) , inspira-se nessa mesma lenda . A referência próxima é neste caso o poema dramático de H . C . Andersen , Agnete og Havmanden [ Agnete e o Tritão] de 1 834 , levado à cena exactamente em 1 843 , o ano de publ icação de Temor e Tremor. 1 5 Vd. Irische Elfenmiirchen , p. 8 3 . Vd . igualmente Mythologien der Feen und Elfen vom Ursprunf?e dieses G/auhens bis auf die neuesten Zeiten [A Mitologia das Fadas e dos Elfos da Origem desta Crença até aos Tempos mais recentes] , tradução de O . L . B . Wolff, vol s . 1-11, We imar, 1 82 8 ; vol . 1 , p . 1 53 . 1 6 O u seja, assiste a todos o s hab ituais serviços religiosos de domingo .

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com o pastor, e até escreves sermões para pregar a ti próprio; durante seis meses morres para o mundo inteiro . Agora estás pronto; és agora capaz de falar sobre o que é ser pastor com mais perspiciência dando a parecer que tens mais experiência do que é ser pastor do que muitos que há vinte anos o são . O que atiça a tua irritação , quando encontras tais indivíduos , é não saberem eles expectorar 1 7 com uma eloquência completamente diferente ; isso é entusiasmo , perguntas tu , eu , que não sou pastor, que a tal não me consagrei , comparado com eles , falo com a voz dos anjos . Ora, talvez isso também seja uma grande verdade , no entanto, não chegaste todavia a ser pastor. Segues agora a mesma conduta em relação ao segundo problema, e o teu entusiasmo pela arte quase ultrapassa a tua eloquência eclesial . Estás então pronto para escolher. No entanto , podemos ter a certeza de que , no afã de pensamento em que tens vivido , muito se perdeu , inúmeras anota­ ções breves e contemplações . Por isso , no instante em que hás-de escolher, todo esse desperdício regressa à vida e se agita, mostrando-se um novo ou-ou : jurista , talvez advogado , há algo de comum entre ambos . Sentes-te agora perdido . No mesmo momento , designadamente , tens desde logo bas­ tante de advogado para poder demonstrar que o que está certo é incluir um terceiro . Assim vai passando a tua vida. Depois de teres gasto seis meses nestas ponderações , depois de teres esforçado toda a força da tua alma com uma energia digna de admiração , nem sequer avançaste um passo . Rompe­ -se então o fio do pensamento . Ficas impaciente , apaixonado , pões tudo a ferro e fogo ; e continuas nesse agora: ou cabeleireiro , ou contador bancá­ rio , tudo o que digo é tão-somente ou-ou . 1 1 63 1 Que admiração ter-se esta expressão tornado para ti um escândalo ou uma loucura 1 8 e «que te pareça que estavas como que a ser abraçado pela virgem de ferro , cujo abraço era uma sentença de morte» 1 9 • Menosprezas as pessoas , descarregas sobre elas a tua troça , e o que mais abominas é aquilo em que te tornaste - crítico , um crítico universal de todas as faculdades . Por veze s , não posso deixar de sorrir de ti; e contudo , é lastimável que as tuas aptidões espirituais , na ver­ dade notáveis, fiquem dispersas desta maneira . No entanto , eis novamente a mesma contradição no teu ser, pois vês muito bem o que é ridículo e Deus cuide de quem cair nas tuas mãos , se ele passar por essa mesma situação; e contudo , toda a diferença está no facto de ele porventura ser rebaixado e derrubado , ao passo que tu , ao invés , logo te ergues mais divertido e ligeiro 1 7 Dizer o que lhes vai no peito . Vd . nota 56 de «Expectoração preliminar» em Temor e Tremor, p. 79. 18 1 Coríntios , 1 :23: «Mas nós pregamos a Cristo crucificado , que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.» 19 Instrumento de tortura medieval de configuração anatómica, cujo exterior imitava o corpo de uma mulher. Uma vez fechado , as lanças que revestiam o seu i nterior dilaceravam o prisioneiro .

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do que nunca, alcançando a suprema fortuna para ti e para os outros com este evangelho: vanitas vanitatum vanitas20 , hip, hip , hurra ! Mas isso não é escolha nenhuma; é como se diz em dinamarquês: deixa andar, ou uma mediação , tal como achar que tanto faz ser uma coisa como outra . Sentes-te agora livre e dizes adeus ao mundo 2 1 : So zieh ' ich hin in alie Ferne Ueber meiner Mütze nur die Sterne . 22 Vês , com isso não terás seguramente escolhido a parte melhor - coisa que não quererás decerto admitir; mas tu nem sequer propriamente esco­ lheste , ou escolheste em sentido figurado . A tua escolha é uma escolha estética, mas uma escolha estética não é escolha nenhuma. Acima de tudo , escolher é uma expressão genuína e rigorosa do ético . Em geral , quando em sentido estrito se fala de um ou-ou , pode sempre ter-se a certeza de que , em jogo , está conjuntamente o ético . O único ou-ou absoluto que existe é a escolha entre o bem e o mal , o que também é absolutamente ético . A escolha estética ou é inteiramente imediata e , por conseguinte , não é esco­ lha nenhuma , ou perde-se na multitude . Quando uma menina jovem segue assim a escolha do seu coração , então , essa escolha, por mais bela que aliás ela seja, não é em sentido estrito escolha nenhuma, porque é inteiramente imediata. Quando um homem pondera uma quantidade de tarefas para a vida do ponto de vista estético , tal como tu fizeste no que atrás ficou dito , então , não chega simplesmente a um ou-ou , mas a uma completa multitu­ de , porque aquilo que na escolha é gerador de autodeterminação não está aqui acentuado eticamente , e porque , quando não se escolhe de um modo absoluto , escolhe-se então apenas para o momento e, por esse motivo, pode escolher-se outra coisa no instante seguinte . Por isso , a escolha ética é em certo sentido mai s fácil , muito mais simples , mas noutro 1 1 641 sentido é

20 Eclesiastes , 1 : 2 : «Vaidade de vaidades ! Diz o pregador, vaidade de vaidades ! É tudo vaidade .» Cf. o poema goethiano «Vanitas ! vanitatum ! vanitas ! » , em Johann Wolfgang v. Goethe , Goethes Werke . Vollstdndige Ausgabe letzter Hand [Obras de G . , Edição Completa na Ú ltima Revi são] , vols . I-LV, Estugarda e Tübingen, 1 828- 1 842; vol . I , pp. 1 45- 1 47 , e Goethe.1· Werke . Weimarer Ausgabe [Obras de G., edição de Weimar] , 1 43 vols . , Munique , DTV, 1 997; vol . 1 , p. 1 32- 1 33 . 2 1 Vd . o salmo de Th . Kingo «Farvel , Verden , Farvel ! » [Adeus , Mundo , Adeus] inspirado nos versículos do l ivro do Eclesiastes citados na nota anterior, n .º 429 do l ivro de salmos Evangelisk-kristelig Psalmebog , e n .º 525 do livro de salmos Den Danske Salmebog , 1 98 8 . Adiante mencionado pelo nome do autor. 22 Em alemão no original : «Assim vou eu para distantes terras , / Por cima da minha boina só há estrelas.» Citação livre de versos do poema de Goethe «Freisinn» [Sentido livre] , in West-ostlicher Divan, Goethe �· Werke , vol . V, p. 7; Hamburger Ausgabe , vol . I I , p. 9 .

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infinitamente mais difícil . Aquele que quiser determinar eticamente as suas tarefas de vida , na generalidade , não dispõe de uma escolha tão significati­ va; ao invés , para ele , o acto de escolher comporta muito mais significado . Se me quiseres entender correctamente , então , posso de bom grado dizer que , quando se escolhe , não se trata tanto de escolher o que é correcto , mas antes da energia, da seriedade e do pathos com que se escolhe . É nisso que a personalidade se faz anunciar na sua infinitude interior e é por seu intermédio que , por seu turno , a personalidade se consolida. Por isso , até quando um homem escolhe o que não está certo , então , justamente por cau­ sa da energia com que escolheu , descobrirá no entanto que escolheu o que não estava certo . Na medida em que a escolha for empreendida designada­ mente com a interioridade de toda a personalidade , o seu ser é purificado , e ele próprio é levado no seio de uma relação imediata até ao poder eterno , o qual , sendo omnipresente , penetra profundamente toda a existência. Esta transfiguração , esta suprema unção , nunca é alcançada por aquele que se limita a escolher esteticamente . Apesar de toda a sua paixão , o ritmo da sua alma, contudo , é apenas um spiritus lenis . 2 3 Qual Catão24 , grito-te então o meu ou-ou , e contudo, não o faço como Catão , pois a minha alma ainda não ganhou a resignada frieza que ele tinha em sua posse . Mas eu sei ; só este encantamento , se para tal eu tiver a força necessária, reunirá condições para te despertar não para uma actividade do pensamento , pois disso não tens tu falta, mas para a seriedade do espírito . Porventura , mesmo sem ela, executarás com êxito muita coisa, porventura deixarás ainda o mundo maravilhado Uá que não sou avarento) ; e contudo , acabarás por deixar passar o que é mais elevado , a única coisa que na ver­ dade dá significação à vida , porventura obterás o mundo inteiro e perder­ -te-ás a ti próprio 25 . Que separo eu então com o meu ou-ou? Será o bem e o mal? Não , quero apenas levar-te até ao ponto em que esta escolha faça na verdade sentido para ti . É em tomo disto que tudo gira . Só quando se consegue levar um homem a parar na encruzilhada de tal modo que não lhe resta outra saída senão escolher, então , escolhe ele o que está certo . Por isso , se houvesse de acontecer que , antes de acabares de ler esta pesquisa um pouco mais esmiuçada que novamente te envio sob a forma de carta, tu sentisses que o instante da escolha já se deu , então , deita fora o restante , que nunca isso te preocupe , nada perdeste ; mas escolhe , e haverás de ver quanta valida23 Em latim no original: «espírito fraco» , uma das possibilidades de acentuação para o espírito áspero em grego antigo . 24 Vd . nota 8 no capítulo «Ü mais Infeliz» de Ou-Ou /, p . 255 . 25 Lucas , 9:25: «Porque , que aproveita ao homem granjear o mundo todo , perdendo-se ou prejudicando-se a si mesmo?»

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de aí se encerra , com efeito , não haverá menina que possa ficar tão feliz com a escolha do seu coração em comparação com um homem que soube escolher. Portanto , ou se há-de viver esteticamente , ou se há-de viver eti­ camente . Como ficou dito , em sentido mais rigoroso , 1 1 65 1 não se está a falar aqui de uma escolha , pois aquele que vive esteticamente não escolhe , e aquele que escolher o estético depois de lhe ter sido mostrado o ético não vive esteticamente , porque peca, encontrando-se sob determinações éticas , se bem que a sua vida tenha de ser designada como não-ética. Vês , diga­ mos que este é o character indelehilis 26 do ético , e que , apesar de se situar modestamente no mesmo patamar do estético , o ético é afinal aquilo que propriamente faz da escolha uma escolha . E quando se observa a vida dos homens , o que traz pesar é haver tantos que vivem toda a sua vida numa tranquila perdição; entregam-se a isso , não com a significação de o conteú­ do da vida se desdobrar progressivamente , e de agora se ser possuído nesse desdobramento , mas vivendo antes a vida como se estivessem fora de si mesmos , desaparecendo como sombras ; a sua alma imortal dissipa-se , não se angustiam a questionar a sua imortalidade , pois até já se haviam desin­ tegrado antes de morrerem . Não vivem esteticamente , mas o ético também não se mostrou diante deles em toda a sua integral idade ; também não o repudiaram propriamente , por i sso , também não estão em pecado , excepto se for pecado o facto de não serem nem uma coisa nem outra; também não duv idam da sua imortal idade , pois quem duvidar íntima e profundamente , por sua própria conta, acaba por encontrar o que está certo . Por sua própria conta , digo eu , e é bem chegada a hora de alertar contra a magnânima e heróica objectiv idade com que muitos pensadores pensam por conta de todos, e não por sua própria conta . Se àquilo que eu exijo alguém quiser chamar amor a si mesmo , então , responder-lhe-ei: resulta do facto de não terem qualquer ideia do que é este «si mesmo» , e de que serviu muito , mui­ to pouco a um homem ter obtido o mundo inteiro , tendo-se , porém, perdido a si mesmo , conjuntamente com o facto de ter necessariamente de ser má uma demonstração que em primeiríssimo lugar não convença aquele que a expõe . O meu ou-ou não está mais perto de designar a escolha entre o bem e o mal , ele designa a escolha por meio da qual se escolhe o bem e o mal , ou se os exclui . Aqui , a questão é saber sob que determinações se quer observar toda a exi stênc ia e ser ele próprio a vivê-la. É decerto verdade que quem escolher o bem e o mal escolhe o bem , mas isso mostra-se apenas mais tarde . já que o estético não é o mal , mas a indiferença, e foi por isso que eu di sse que o ético constitui a escolha. Não se está de todo a falar tanto de es26 No sentido de permanente , tal como nos sacramentos do Baptismo e da Ordem na re ligião católica.

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colher entre querer o bem ou querer o mal como de escolher o querer, mas por esta via o bem e o mal , por seu turno , são postos . Aquele que escolher o ético escolhe o bem , mas o bem é aqui completamente 1 1 661 abstracto , por essa via, o respectivo existir é meramente posto , e de modo nenhum daí resulta que quem escolhe não possa , por seu turno , escolher o mal apesar de ter escolhido o bem . Vês aqui novamente quanto é importante que se escolha, e vês como o que realmente interessa não é tanto a ponderação quanto o baptismo da vontade que acolhe esta no ético . Quanto mais tempo decorrer, mais difícil se tornará escolher, pois a alma permanece numa das partes do dilema e, por isso , é-lhe cada vez mais difícil soltar-se . E contudo , tal é necessário , se se deve escolher e , portanto , da máxima importância, se uma escolha comportar algum significado; que é este o caso, mostrarei eu adiante . Sabes que nunca me fiz passar por filósofo , muito menos quando estou a conversar contigo . Em parte para te provocar um pouco , em parte porque esta posição na vida é aquela que realmente me é mais cara e mais pre­ ciosa, e em certo sentido a mais significativa, costumo apresentar-me na qualidade de homem casado . Não tenho dedicado a minha vida à arte e à ciência; comparado com isto , aquilo a que me tenho sacrificado são insig­ nificâncias; sacrifico-me pela minha obra, pela minha mulher, pelos meus filhos , melhor dizendo , não me sacrifico por eles , antes encontro neles a minha satisfação e alegria. Comparado com aquilo para que tu vives , são insignificâncias , e contudo , meu jovem amigo , toma bem atenção para que a grandeza pela qual realmente te sacrificas não te engane . Ora, apesar de ' eu não ser filósofo , então , sinto-me todavia compelido a ter o atrevimento de enveredar por uma pequena ponderação filosófica; mais do que criticá­ -la, pedir-te-ei que a tomes ad notam . O polémico resultado que ressoa de todos os teus hinos vitoriosos sobre a existência tem uma estranha pa­ recença com a teoria favorita da moderna filosofia, designadamente , a de que o princípio da contradição é anulado27 • Sei bem que , para a filosofia, a 27 Sobre o princípio da contradição em Hegel , vd. Wissenschaft der Logik [Ciência da Lógica] , in Werke , vols. III-V; vol . IV, pp. 57-7 3 , Jubiliiums , vol . IV, pp. 535-55 1 , e Suhrkamp , vol . 6, pp. 64-80 . Sobre o debate decorrente da proposta hegeliana entre os hegelianos dinamarqueses, cf. F.C . Sibbem , « Om den Maade, hvorpaa Contradictions­ principet behandles i den hegelske Skole» [Sobre o Modo como o Princípio da Contra­ dição é tratado na Escola hegeliana] , Maanedsskrift for Litteratur [Revista mensal de Literatura] , n ." 1 9 , Copenhaga , 1 83 8 , pp. 424-460; J .P. Mynster, «Rationalisme . Supra­ naturalisme» , Tidsskriftfor Litteratur og Kritik [Revista contemporânea de Literatura e Crítica] , n .º 1 , Copenhaga, 1 839, pp. 249-268; J . L . Heiberg , «En logisk Bema:rkning i Anledning af h . h . Hr. B iskop Dr. Mynsters Afhandling om Rationalisme og Suprana­ turalisme» [Um Comentário lógico no Ensaio de Sua Reverência o Senhor Bispo Dr. Mynster sobre o Racionalismo e o Supranaturalismo] , Tidsskriftfor Litteratur og Kritik,

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posição que adoptas constitui uma abominação; e contudo , ocorreu-me que ela própria incorre na culpa do mesmo erro ; com efeito , o motivo pelo qual não se nota logo tal coisa reside no facto de ela não assumir uma posição tão correcta como a tua. Tu situas-te no domínio da obra, a fi losofia, no da contemplação . Por isso , assim que se pretende levá-la para o domínio do prático , terá de se chegar ao mesmo resultado a que tu chegaste , se bem que não se exprima dessa maneira. Tu fazes a mediação entre os contrários numa loucura superior, e a filosofia, numa unidade superior. Tu diriges-te ao tempo futuro , pois o agir é essencialmente do futuro ; dizes que pos­ so fazer isto ou fazer aquilo, mas qualquer das duas coisas que eu faça é igualmente louca, 1 1 67 1 ergo nem sequer faço nada. A fi losofia dirige-se ao tempo passado , a toda a história do mundo que foi vivida, mostrando como os momentos discursivos se reúnem numa unidade superior, faz mediação atrás de mediação28 . Ao invés , parece-me que a filosofia nem sequer res­ ponde ao que eu pergunto , já que a minha pergunta é sobre o tempo futuro . Contudo , de alguma maneira tu respondes a isto , se bem que a tua resposta seja nonsens . Assumo agora que a fi losofia tem razão , que o princípio fun­ damental da contradição é realmente anulado , ou então que os filósofos a cada instante o relevam numa unidade superior que há para o pensamento . No entanto , não é de todo possível aplicar isto ao tempo futuro , visto que os contrários terão primeiramente de já ter existido , antes de eu os poder mediar. Mas se o contrário estiver presente , então , há um ou-ou . Diz o filó­ sofo : assim aconteceu até agora; pergunto eu : que terei eu que fazer se não quiser ser filósofo , pois se qu iser ser, então , bem vejo eu que acabarei por mediar o tempo passado tal como os outros fi lósofos. Em parte , esta não n ." 1 , Copenhaga , 1 83 9 , pp. 44 1 -456; H. L. Martensen , «Rationalisme , Supranaturalis­ me og principium exclusi medii i Anledning af h .h . B iskop Mynsters Afhandl ing» [Ra­ cional ismo , Supranaturalismo e principium exclusi medii no Ensaio de Sua Reverência o Sr. Bispo Mynster] , Tidsskrift for Litteratur og Kritik, n .º 1 , Copenhaga , 1 839, pp. 456-473; A. F. Schi�dte , «Et Par Ord til nrermere Overveielse angaaende de tre saakal­ dte logiske Pri nciper» [Algumas Palavras para uma Ponderação mais pormenorizada em torno dos chamados três Princípios lógicos ] , Tidsskrift for Litteratur og Kritik, n .º 2 . Copenhaga, 1 83 9 , pp. 1 20- 1 28 ; e J . P. Mynster, «Üm de logiske Principper» [Sobre os Princípios lógicos] , Tidsskrift for Litteratur og Kritik, n .º 1 , Copenhaga , 1 842 , pp. 325-352. Cf. nota 272 e p . 1 74 de Migalhas Filosóficas; e Postscriptum Conclusivo Não-Científico às Migalhas Filoscíficas , SV I , vol . VII, pp. 256 , 265 , 266 , 280 , 298 , 362-363 ; e SKS , vol . 8 , pp . 272 , 275 , 282 , 296 , 3 1 5 , 3 80-3 8 1 ; na tradução brasileira, vol . 1 , p . 3 1 3 ; vol . II, pp. 2 1 -24 , 40 , 6 1 , 1 34 e 1 36 . 28 Para designar o conceito hegeliano d e « Vermittlung» , o s hegelianos dinamarqueses uti lizaram o termo «Mediation>> . Vd . Hege l , Wissenschaft der Logik [Ciência da Lógica] , in Werke , vol . III , pp . 1 00 , 1 05 , 1 1 0 e vol . IV, p. 75; Jubiliiums , vol . IV, pp. 1 1 0 , 1 1 5 , 1 20 , 5 5 3 ; e Suhrkamp , vol . 5 , pp . 1 93 , 1 9 5 , 1 98 , 445 . Vd . igualmente A Repetição , pp. 50-5 1 , e O Conceito de Angústia , pp. 1 4- 1 5 .

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é resposta nenhuma à minha pergunta sobre o que hei-de fazer; pois nem que eu fosse a cabeça mais dotada para a filosofia que alguma vez tivesse surgido neste mundo , então , tem de haver uma coisa que eu possa fazer para além de me sentar a observar o passado ; e em parte , sou um homem casado , e sem cabeça nenhuma para a filosofia , porém, dirijo-me com todo o respeito a esses cultivadores da ciência para chegar a saber o que terei eu que fazer. Entretanto , não obtenho resposta alguma , pois os filósofos me­ deiam o passado e estão no passado; os filósofos precipitam-se tanto para o passado que no presente , tal como diz o poeta acerca de um antiquário , só ficaram as abas da casaca29 . Vês , neste ponto unes-te aos filósofos. Aquilo que vos une é a vida estar parada. Para o fi lósofo , a história universal está encerrada, e ele faz a mediação . Por isso , no nosso tempo está na ordem do dia essa visão desaprazível de ver homens jovens poderem mediar entre o Cristianismo e o paganismo 30 , conseguindo brincar com as forças titânicas da história, mas não sendo capazes de dizer a um único e só homem o que ele teria que fazer na vida, e não sabendo também o que eles próprios ti­ nham para fazer. Tens variadíssimas expressões para o teu resultado favori­ to , quero aqui sublinhar uma, porque nela se vê como tens uma assinalável parecença com o filósofo , se bem que a seriedade dele , real ou assumida, o proíba de participar na obrigatória recrudescência que a ti te diverte . Se te perguntarem se queres subscrever uma petição ao Rei , ou se era desejo teu haver uma constituição , ou uma lei sobre o lançamento de impostos , ou se te querias unir a 1 1 68 1 esta ou aquela causa de beneficência, respondes assim: «Veneráveis contemporâneos ! Estais confundidos comigo , eu nem sequer estou por dentro das coisas , estou de fora , estou de fora tal como um pequeno "s" espanhol.» 3 1 O mesmo se passa com o filósofo; está de fora, não está lá dentro , vai-se fazendo velho por via de ouvir os cânticos do pas­ sado e escutar as harmonias da mediação . Homenageio a ciência, honro os seus cultivadores, mas a vida também tem as suas exigências e, se bem que eu possa ficar perplexo quando vejo uma única cabeça invulgarmente dota­ da a perder-se com parcialidade pelo passado , que haveria eu de julgar, que outra opinião haveria eu de ter, que outra opinião poderia nutrir pela sua competência intelectual para além de respeito; no nosso tempo , não fico perplexo ao ver uma horda de homens jovens; e contudo , seria impossível que todos eles pudessem ser filósofos , perdidos na filosofia favorita desta 29 Provável alusão à figura do antiquário Strauss na peça de A. Oehlenschliiger De italienske R(Jvere [Os Ladrões italianos] , Copenhaga, 1 835 , 2 ." edição . 30 Cf. Not . 4:9 e 4:9a, SKS , vol . 1 9 , p. 1 35 . Trata-se de um resumo de Kierkegaard da aula de H. L. Martensen sobre «Dogmática Especulativa» , proferida na Universidade de Copenhaga em 1 83 8 - 1 839. 31 A lusão à letra «ceda» do espanhol antigo, apontada como origem do uso do «C» cedilhado que se mantém em português, catalão e francês.

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época, ou , como me sinto por ora tentado a chamar-lhe , na juvenil fi losofia desta época. Diante da filosofi a , tenho uma exigência válida, tal como tam­ bém tem a sua cada um dos que não ousam repudiá-la devido a uma total falta de capacidade . Sou casado e tenho filhos . E se agora , em nome deles , eu perguntasse à filosofia o que um homem tem que fazer na vida? Talvez sorrias ; em qualquer dos casos a mocidade filosófica sorrirá diante de um pai de família; e contudo , em minha opinião , trata-se na verdade de um argumento medonho contra aquele que nada tem para responder. O curso da vida parou , talvez a geração de agora possa viver de observar; de que irá viver a geração seguinte? De observar o mesmo? De facto , a geração ante­ rior nada executou , nada legou que venha a ser mediado . Vês , nisto posso novamente incorporar-te nos fi lósofos , dizendo-vos: deixais afinal passar o que é mais elevado . A minha posição como marido vem aqui em meu auxí­ lio para se poder esclarecer melhor a minha opinião . Se um homem casado dissesse que o casamento perfeito é aquele que não tem filhos , então , cairia no mesmo mal-entendido tal como os fi lósofos . Faz de si mesmo o absolu­ to e, no entanto , qualquer homem casado sente que isso nem é verdadeiro nem é belo , e que tornar-se ele próprio momento , tal como ele se torna por meio de um filho , é muito mais verdadeiro . Entretanto , talvez já tenha ido demasiado longe , dediquei-me a pesqui­ sas que talvez nem sequer devesse , em parte , porque não sou fi lósofo e , e m parte , porque não é d e todo intento meu estar à conversa contigo sobre um outro fenómeno da época, mas antes dirigir-me a ti , deixando por to­ dos os modos que sintas como o meu interlocutor és tu . Já que entretanto acabei por chegar tão longe , então , 1 1 69 1 quero todavia ponderar com mais pormenor o modo como isto se relaciona com a mediação filosófica dos contrários . Se o que tenho a dizer tiver falta de rigor, talvez tenha, então , um pouco mais de seriedade , e tal fica também a dever-se unicamente ao que aqui está exposto , pois eu não tenciono fazer concorrência a qualquer dignitário da filosofia, porém, já que tenho a pena na mão , tenciono usá-la igualmente para defender o que eu prefiro defender de outros , e melhores , modos . Por conseguinte , é tão certo e verdadeiro haver u m tempo futuro quão certo e verdadeiro é haver um ou-ou . O tempo em que os filósofos vi­ vem não é então o tempo absoluto , é ele próprio um momento , e constitui sempre uma circunstância preocupante quando uma filosofi a é estéril ; com efeito , tem de ser visto como desonra, tal como no Oriente a esteril idade é tida por vexame . Portanto , o tempo passa a ser ele próprio momento e o filósofo passa a ser ele próprio momento no tempo . Por sua vez , a nossa época mostrar-se-á numa época ulterior como um momento discursivo 32 32 Ou seja, um factor no processo histórico.

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e , por seu turno , um filósofo de uma época ulterior mediará a nossa épo­ ca, e assim por diante . Nesta medida, a filosofia está então no seu direito, e passaria a ser de considerar como sendo um erro casual da filosofia da nossa época o facto de esta confundir o nosso tempo com o tempo abso­ luto . No entanto , é afinal fácil de inteligir que , por essa via, a categoria de mediação sofreu um significativo golpe e que a mediação absoluta só se toma possível quando a história acaba; por outras palavras , que o sistema está num constante devir. Ao invés , o que a filosofia reteve foi o reconhe­ cimento de que há uma mediação absoluta. Isto é obviamente de extrema importância, pois que abdicando-se da mediação , então , abdica-se da es­ peculação . Por outro lado , admiti-lo é assunto preocupante , pois que ao admitir-se a mediação , então , não há nenhuma escolha absoluta e , se não houver uma escolha deste tipo , então , não há nenhum ou-ou absoluto . Eis a dificuldade; no entanto , creio que ela reside , em parte , no facto de con­ fundir as duas esferas uma com a outra, a do pensamento e a da liberdade . Para o pensamento , a oposição33 não subsiste , passa para uma outra e , em seguida, passam em conjunto para uma unidade superior. Para a liberda­ de , a oposição subsiste , visto que a exclui . Não confundo de modo algum liberum arbitrium com a verdadeira liberdade positiva34 , pois mesmo esta tem o mal fora dela por toda a eternidade , se bem que a possibilidade seja ténue , e não se toma perfeita por via de cada vez mais acolher em si o mal , mas antes por via de cada vez mais o excluir; 1 1 70 1 mas a exclusão é precisamente o oposto da mediação . Mostrarei adiante que por esta via não chego a aceitar o mal radical 35 . As esferas que a filosofia tem propriamente de abordar, as esferas que para o pensamento propriamente existem, são a lógica, a natureza e a histó­ ria36 . Nelas impera a necessidade e, por isso , a mediação tem a sua valida­ de . Que é este o caso da lógica e da natureza, ninguém o negará; ao invés , 33 Kierkegaard utiliza aqui o termo «Modst:etning» , ou seja, «contraste» , «oposição» , quando seria expectável a ocorrência de «Modsigelse » , «Contradição», seguindo provavelmente o uso corrente de F. R. Sibbern , seu professor. V d. F. R. Sibbern , Logik som Tankelt:ere [A Lógica como Doutrina do Pensamento] , Copenhaga, 1 835 , p. 302. Vd . igualmente Johannes Climacus eller De omnibus dubitandum est. En Fortt:elling , SKS , vol . 1 5 , p . 55; tradução brasileira, p . 1 1 8 . 3 4 Vd . O Conceito de Angústia, SV 1 , vol . IV, p p . 3 1 9-320; SKS , vol . 4 , p . 354-355; na tradução brasileira, p . 5 3 . 35 V d . 1 . Kant, Religion innerhalb die Grenzen der bosen Vernunft [A Religião nos Limites da mera Razão] , Kõnigsberg , 1 793 , pp. 3-5 8 , AA 6: 1 -202 . Vd. igualmente O Conceito de Ironia , SV 1 , vol . IV, pp. 355-356; SKS , vol . 4, p. 388-389; na tradução brasileira, p. 93 . 36 Estruturação habitual das disciplinas fi losóficas no idealismo alemão . Cf. a designação dos três volumes da Enciclopédia das Ciências Filosóficas: vol . 1 , A Lógica , vol . II, A Filosofia da Natureza , vol . III , A Filosofia do Espírito .

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na história tem as suas dificu ldades, pois diz-se que nela reina a liberda­ de 37 . Creio , no entanto , que se observa incorrectamente a história, e as dificuldades advêm desse facto . A história é designadamente mais do que um produto das acções livres de indivíduos livres. O indivíduo age , mas a sua acção entra na ordem das coisas que sustém toda a existência. O agen­ te não sabe propriamente o que resultará disso . Mas esta superior ordem das coisas , a qual , por assim dizer, digere as acções livres , trabalhando-as conjuntamente segundo as suas leis eternas , é a necessidade , e essa neces­ sidade é o movimento na história do mundo , sendo , por isso , inteiramente correcto que a filosofia aplique a mediação , ou seja, a mediação relativa. Se eu observar uma individualidade da história universal 38 , então , sou ca­ paz de diferenciar entre as obras sobre as quais as Escrituras afirmam que a seguem 39 , e as obras através das quais essa individualidade pertence à história. A filosofia nem sequer tem nada que ver com aquilo a que se po­ deria chamar a obra interior; a obra interior, porém, é a verdadeira vida da liberdade . A filosofia observa a obra exterior, e, por seu turno , não a vê iso­ ladamente , mas sim incorporada e metamorfoseada no processo da história universal . Este processo constitui o objecto da filosofia propriamente dito , e esta observa-o sob a determinação da necessidade . Por isso , mantém afas­ tada a reflexão que pretende chamar a atenção para o facto de tudo poder vir a ser de outro modo , observando a história universal de tal forma que nem se coloca qualquer questão sobre um ou-ou . Que nesta sua observação se mistura muita conversa to la e inepta, é o que pelo menos a mim parece ; não nego que me parecem especialmente ridículos os jovens feiticeiros , os que querem esconjurar os espíritos da história, mas também faço uma vénia profunda diante das grandiosas prestações que a nossa época tem para exibir. Como ficou dito , a filosofia vê a história sob a determinação da necessidade e não sob a determinação da liberdade , pois , se bem que digam que o processo da história universal é livre , então , isso é dito todavia no mesmo sentido em que se fala de um processo organizativo na natureza40 . 37 Cf. pp. 62-63 no capítulo anterior. 38 V d. Hegel , Philosophie der Geschichte [Filosofia da História] , in Werke , vol . IX, pp. 59-60 ; Jubiliiums , vol . X I , pp. 38-39; e Suhrkamp , vol . 12, pp. 45-46 . 39 Apocalipse , 1 4: 1 3 : «E ouvi uma voz do céu , que me dizia: Escreve: Bem­ -aventurados os mortos que , desde agora , morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito , para que descansem dos seus trabalho , e as suas obras os sigam .» . 40 Cf. a proposta da ética como um processo organizativo e formativo em Friedrich Daniel Ernst Schleierrnacher ( , Grundlinien einer Kritik der bisherigen Sittenlehre ( 1 803) [Linhasjimdamentai.1· de uma Crítica da anterior Doutrina dos Costumes] , Entwurf einer System der Sittenlehre [Projecto de um Sistema da Doutrina dos Costumes] , edição de Schweizer, 1 835 . Cf. «O processo organizativo da natureza» em Hegel , Encyclopiidie der philosophischen Wissenschajien [ Enciclopédia das Ciências Filosóficas] , in Werke , vol . VII , p. 1 ; Jubiliiwns , vol . IX , p. 527-528 ; Suhrkamp , vol . 9, pp. 394-395 .

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Para o processo histórico 1 1 7 1 1 não há qualquer questão acerca de um ou­ -ou ; mas , no entanto , pode até acontecer que não ocorra a um qualquer fi ­ lósofo negar que , para o indivíduo que age , assim fosse . Daí, por seu turno, a despreocupação , a conciliação , com que a filosofia observa a história e os seus heróis , dado que os vê sob a determinação da necessidade . E daí, por sua vez , a incapacidade que tem para levar um homem a agir, a inclinação que tem para deixar que tudo fique parado , pois o que propriamente exige é que se venha a agir por necessidade , o que constitui uma contradição . Até mesmo o indivíduo mais modesto tem assim uma existência dupla. Também tem uma história, e esta não se limita a ser um produto das suas próprias acções livres. Ao invés, a obra interior é pertença dele mesmo , e há-de pertencer-lhe por toda a eternidade ; nem a história nem a história universal poderão tirar-lha; há-de segui-lo seja na alegria seja na desola­ ção . Neste mundo reina um ou-ou absoluto; mas a filosofia não tem nada que ver com ele . Se eu imaginar um ancião que olha retrospectivamente para uma vida movimentada, então , em pensamento , ele faz igualmente uma mediação dessa vida, pois a sua história estava entretecida na do seu tempo ; porém, no mais íntimo de si, não faz qualquer mediação . Continua ainda a haver aí um ou-ou que fora separado quando ele escolhera . A haver de se falar aqui de mediação , então , poder-se-ia dizer que é o arrepen­ dimento . Mas o arrependimento não é mediação nenhuma, não se sente atraído a olhar para o que há-de ser mediado , é a ira dele que o consome ; mas , à semelhança da exclusão , esta é o contrário da mediação . Com isto se mostra, ao mesmo tempo , como não aceito o mal radical4 1 quando estipulo a realidade42 do arrependimento; mas o arrependimento é bem uma expres­ são da reconciliação , mas é ao mesmo tempo uma expressão absolutamente irreconciliável . No entanto , diante de mim, talvez até admitas tudo isto; tu , que de tan­ ' tos modos fazes causa comum com os filósofos , excepto na medida em que decides fazer deles parvos num acerto de contas privado , porventura opinarás que sendo eu um homem casado me deveria contentar em fazer uso disso na minha casa. Para falar sinceramente , mais não exijo; mas fa­ zia gosto em saber qual das vidas é superior, se a do filósofo ou se a do homem livre . Se o fi lósofo se limitar a ser fi lósofo , perdendo-se nisso sem conhecer a bem-aventurada vida da liberdade , faltar-lhe-á então um ponto muitíssimo importante; ganha o mundo inteiro e perde-se a si mesmo43 , o que nunca poderá suceder a quem vive para a liberdade , por muito que até tenha perdido . 4 1 Vd. acima nota 3 5 . 4 2 Aqui , «Realitet» . 43 Vd. acima nota 25 .

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1 1 721 Eu luto , portanto , pela liberdade (em parte , aqui nesta carta e , em parte , particularmente em mim mesmo) , pelo tempo futuro , pelo ou-ou . Eis o tesouro que tenciono legar aos que amo no mundo . Sim, se neste instante o meu filhinho já tivesse atingido a idade em que me pudesse realmente entender, e tivesse chegado a minha derradeira hora , dir-Ihe-ia então: não te deixo uma fortuna, nem títulos , nem honrarias ; mas sei onde está enterrado um tesouro que pode tornar-te mais rico do que o mundo inteiro , e esse tesouro é teu , e não terás de mo agradecer, não vá a tua alma manchar­ -se44 por ficares a dever tudo a um homem; este tesouro está depositado no teu próprio íntimo: há um ou-ou que faz um homem ser maior do que os anjos45 . Interromperei aqui estas observações . Porventura não estarás satisfeito , porventura os teus olhos ávidos devoram-nas sem que fiques saciado46 ; mas isso deve-se ao facto de os olhos serem os últimos a ficar saciados , em especial , tal como acontece contigo , quando não se tem fome , mas se sofre tão-somente de uma avidez do olhar que não pode ser saciada. Aquilo que então emerge por intermédio do meu ou-ou é o ético . Por isso , ainda não se está a falar da escolha de algo , não se fala da realidade do que é escolhido , mas da realidade47 do que é escolher. No entanto , é isto que con stitui o decisivo , e é para isto que me esforçarei por te des­ pertar. Um homem pode aj udar outro homem a atingir este ponto ; uma vez aqui chegado , fica então mais subordinada a significação que um homem pode ter para o outro . Na carta anterior48 , fiz notar que o facto de ter amado dá à essência do homem uma harmonia que nunca se perde por completo ; dir-te-ei agora que escolher dá ao ser humano uma solenidade , uma dignidade tranquila , que nunca se perde completamente . Há muita gente que põe um valor extraordinário no facto de ter conseguido ver cara a cara uma qualquer ilustre individualidade da história universal . Nunca se esquecem da impressão que lhes deixou na alma uma imagem ideal que lhes enobrece o ser; e contudo , esse mesmo instante , por mais signi­ ficativo que possa ser, nada é face ao instante da escolha. Quando tudo em redor de um indivíduo se aquieta , solene como uma noite estrelada , quando a alma fica só no mundo inteiro , o que surge então diante dela Mateus , 1 6 :26: «Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro , se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?» 45 Hebreus , 1 :4: «Feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles .» ; e também 2 : 7 : «Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos , de glória e de honra o coroaste , e o constituíste sobre as obras das tuas mãos» . 46 Vd. secção final do diapsalma «Falta-me ac ima de tudo paciência para viver» no capítulo «Diapsalmata» de Ou-Ou /, p . 53 . 47 As duas ocorrências de «real idade» correspondem no original a usos de «Realitet» . 48 Cf. p . 60 no capítulo anterior.

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não é um homem notável , mas sim o próprio poder eterno; é então como se o céu se abrisse49 , e o eu se escolhesse a si próprio , melhor dito , se acolhesse a si mesmo . A alma viu então o que é supremo , o que nenhum olhar mortal pode ver, e que nunca poderá esquecer50 , recebendo então a personalidade a investidura que a enobrece por uma 1 1 7 3 1 eternidade . Não se torna diferente do que era anteriormente , antes passa a ser ele mesmo . Reúne-se a consciência, e ele é ele próprio. Tal como um her­ deiro , mesmo que fosse herdeiro dos tesouros do mundo inteiro , todavia não os possui antes de atingir a maioridade 5 1 , também assim a mais rica das personalidades nada será antes de se ter escolhido a si própria , e, por outro lado , até a personalidade que nos sej a possível designar como a mais pobre entre todas é tudo quando se escolheu a si própria . Pois o que é grande não é ser isto ou aquilo; mas antes ser si mesmo , e isto pode cada um dos homens ser, se tal quiser. Que em certo sentido não se está a falar de uma escolha de algo irás tu ver através do seguinte: o que se mostra do outro lado do estético é a indiferença . E contudo , fala-se aqui de uma escolha, sim , de uma escolha absoluta , pois só por via de se escolher absolutamente se pode escolher o ético . Portanto , é na escolha absoluta que o ético é posto; mas daí não de­ corre de modo algum que o estético seja excluído . No ético a personalidade está centrada em si mesma; o estético é portanto excluído absolutamente ou é excluído como sendo o absoluto , mas permanece sempre relativamente remanescente . Na medida em que a personalidade se escolhe a si mesma, escolhe-se a si mesma eticamente , excluindo de modo absoluto o estético; mas como afinal se escolhe a si mesma, e não passa a ter uma outra essên­ cia por se escolher a si mesma , mas antes se torna em si mesma, então , todo o estético regressa à sua relatividade . Por conseguinte , o ou-ou que eu estabeleci é num certo sentido abso­ luto , já que é entre escolher ou não escolher. Mas como a escolha é uma escolha absoluta , então , o ou-ou é absoluto ; num outro sentido , o ou-ou absoluto só surge afinal com a escolha, pois a escolha entre o bem e o mal mostra-se agora . Não me ocuparei aqui disto e da escolha que é posta com 49 Marcos , 1 :9- 1 1 : «E aconteceu , naqueles dias , que Jesu s , tendo ido de Nazaré , da Galileia , foi baptizado por João , no Jordão . / E, logo que saiu da água, viu os céus abertos , e o Espírito , que , como pomba, descia sobre ele . / E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu filho amado , em quem me comprazo .» 50 1 Coríntios , 2:9: «Mas , como está escrito: As coisas que o olho não viu , e o ouvido não ouviu , e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam .» 51 Gálatas , 4: 1 -2 : «Digo , pois , que todo o tempo que o herdeiro é menino , em nada difere do servo , ainda que seja senhor de tudo; / Mas está debaixo de tutores e curadores, até ao tempo determinado pelo pai .»

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a primeira escolha, limitar-me-ei a obrigar-te a chegar ao ponto em que a necess idade da escolha se mostra , e a observar seguidamente a existência sob determinações éticas . Não sou um qualquer rigorista ético , entusias­ mado por uma liberdade formalmente abstracta; quando meramente se põe a escolha, então , todo o estético regressa , e hás-de ver como só por essa via a existência se torna bela, e que só por esse caminho conseguirá um homem salvar a alma e obter o mundo inteiro , fazendo uso do mundo sem dele abusar. Mas o que é viver esteticamente , e o que é viver eticamente? O que é o estético num homem e o que é o ético? A isto , responderia eu: o estético é no homem aqu ilo através do qual ele é o que é imediatamente; o ético é aqu ilo através do qual ele se torna aquilo 1 1 74 1 em que se torna. Aquele que vive no estético , por via dele , que vive dele , e para o que nele há, vive esteticamente . Não é meu intento enveredar por uma observação mais pormenoriza­ da do muito que se encontra nesta dada determinação do estético . Parece igualmente constituir matéria supérflua querer esclarecer-te sobre o que é vi ver esteticamente , logo tu , que tens praticado o estético com tanto vir­ tuosismo que antes poderia ser eu a rogar a tua aj uda . Esboçarei no entanto alguns estádios para abrirmos caminho até ao ponto no qual a tua vida se sente propriamente em casa, o que para mim é de importância, não vás tu usar uma das tuas graciosas reviravoltas para me escapares demasiado ce­ do . Além disso , não duvido de que em muitas coisas estarei em condições de te esclarecer sobre o que é viver esteticamente . Enquanto eu , designa­ damente , recomendaria a qualquer um que quisesse viver esteticamente que te seguisse como o mais competente dos mentores, por outro lado , também não te recomendaria , se a pessoa desejasse inteligir o que é viver esteticamente num sentido mai s elevado , pois não poderias esclarecê-lo sobre isso , justamente por tu próprio seres tendencioso; isso só lhe pode­ rá afinal ser expl icado por quem se encontrar num nível mais elevado ou por quem viva eticamente . Por um instante , talvez pudesses ficar tentado a fazer-me passar por esse vexame , para que assim também eu não pudesse sequer dar uma expl icação fiável sobre o que é viver eticamente , visto ser eu próprio igualmente tendencioso quanto a esse ponto . Contudo , tal ape­ nas me proporc ionaria ocasião para um esclarecimento adicional . A razão pela qual aquele que vive esteticamente nada pode esclarecer em sentido mais elevado reside no facto de viver sempre no momento , continuando todavia a estar apenas sabedor dentro de uma certa relatividade , dentro de um certo limite . Não é de modo algum intento meu negar que viver este­ ticamente , quando uma vida desse tipo atinge o seu ponto mais alto , pode exigir uma multitude de dotes espirituai s , e que estes dotes devam até estar intensamente desenvolvidos a um nível fora do comum; mas vivem afinal

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e m escravatura e carecem da transparência52 . Assim, encontramos muitas vezes espécies de animais que possuem sentidos muito mais apurados e muito mais intensos do que os do homem, mas estão ligados ao instinto animal . Gostaria de recorrer a ti próprio como exemplo. Nunca te neguei notáveis dons espirituais , como também podes verificar, pois já te censurei bastantes vezes por abusares desses dons . É s espirituoso , irónico , obser­ vador, dialéctico , experimentado no desfrute , sabes contar com o instante , és sentimental , insensível , tudo se passa de acordo com as circunstâncias ; mas dentro de tudo isto , continuas a estar apenas no momento e , por isso , a tua vida dissolve-se e , para ti , é impossível de explicar. 1 1 75 1 Se alguém quiser aprender a arte de desfrutar, então , está perfeitamente certo que vá ter contigo; mas se desejar entender a tua vida, então , está a dirigir-se à pessoa errada. Talvez encontrasse antes em mim o que procura, e isto ape­ sar de eu não estar de modo algum na posse dos teus dons espirituai s . É s tendencioso , e é como se não tivesses tempo para te soltares; eu não sou tendencioso , nem no meu juízo sobre o estético nem no meu juízo sobre o ético, visto que , no ético , sou justamente elevado acima do instante , estou em liberdade ; mas é uma contradição haver alguém de se tomar tendencio­ so por via de estar em liberdade . Qualquer homem , por muito pobres que sejam os seus dons , por mais subalterna que seja a sua posição na vida, tem uma necessidade natural de formar para si uma intuição de vida, uma representação da significação da vida e da respectiva finalidade . Aquele que vive esteticamente também faz isso , e a expressão comum que se tem ouvido em todas as épocas e em diferentes estádios é a seguinte : há que desfrutar da vida. É óbvio que esta expressão varia mesmo muito , em tudo conforme a diferença na represen­ tação do desfrute , mas nesta expressão - há que desfrutar da vida - todos se unem . Mas aquele que diz que quer desfrutar da vida põe sempre uma condição que se encontra ou fora do indivíduo ou no indivíduo de molde a não ser posta por intermédio do próprio indivíduo . No que a este último ponto diz respeito , rogar-te-ei que retenhas um pouco estas expressões por­ que foram escolhidas com esmero . Percorramos agora muito sumariamente estes estádios para chegarmos onde tu estás . Talvez já estejas um pouco irritado com a expressão comum que eu propus para viver esteticamente; e contudo , não serias capaz de lhe negar o acerto . Acontece bastantes vezes ouvir-te troçar de gente por não saberem desfrutar da vida, ao passo que tu , ao invé s , crês ter estudado o assunto a fundo . É bem possível que não o entendam; porém, quanto à 52 A ideia de que o indivíduo , para não desesperar, tem de ser transparente em Deus e diante de Deus é desenvolvida em Doença para a Morte . Vd. em particular, SV 1 , vol . XI , p. 233; e SKS , vol . 1 1 , p. 235 .

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própria expressão , concordam todavia contigo . Talvez pressintas agora que nesta ponderação acabarás por ficar acoplado a pessoas que habitualmen­ te constituem para ti uma abominação . Talvez opinasses que eu deveria ter galanteria bastante para lidar contigo na qualidade de artista, deixando passar em si lêncio os trafulhas que te possam estorvar o suficiente na vida, com os quais não desejas de todo ter alguma coisa em comum. Não posso todavia ajudar-te , porque , afinal , tens algo em comum com eles , algo que é mu ito essencial - a intuição de vida, designadamente; e , aos meus olhos , aquilo que te distingue deles é algo não essencial . Não posso deixar de me rir de ti ; vês , 1 1 761 meu jovem amigo , é uma maldição que te persegue: os muitos companheiros de ofíc io que arranjas , os quais de modo algum ten­ cionas reconhecer para ti enq uanto tal . Corres o perigo de ficar em pobre e má companhia, tu , que és tão requintado . Não nego que deva ser descon­ fortável ter uma intuição de vida em comum com um estroina qualquer ou com um Jagtliebhaber53 , pois em certo grau estás acima do domínio do estético , como adiante mostrarei . Ora , por maiores que pudessem ser as diferenças dentro do estético , todos os estádios têm todav ia uma semelhança essencial : o espírito não está determinado como espírito , mas sim determinado imediatamente . As diferenças podem ser extraordinárias , desde a perfeita ausência de espírito ao mais elevado grau de espiritualidade; mas mesmo no estádio no qual se mostra a espiritualidade , o espírito não está todavia determinado como espírito , mas como dom . Destacarei apenas muito sumariamente cada um desses estádios , detendo-me simplesmente naqueles que de um ou de outro modo são para ti adequados , ou que , como até seria meu desejo, naqueles que houvesses de fazer uso em teu próprio proveito . A personalidade não é imediatamen­ te determinada espiritualmente , mas sim fisicamente . Eis uma intuição de vida que nos ensina ser a saúde o bem mais precioso , em torno do qual tudo gira54 . Uma expressão mais poética cumpre a mesma intuição quan­ do afirma: a beleza é o mais elevado 55 . Ora , a beleza é um bem frági l e , 5 3 Em alemão no original : «amante da caça» , aqui no sentido de «ir e m busca de aventuras galantes» . 54 Cf. L . Holberg , Den Pantsatte Bonde-Dreng [O jovem Campónio afiançado] , 1 73 1 , Acto I I , cena 8 : «Sundheden er det kostbareste Klenodie man har i Verden» [A saúde é a jóia mais preciosa que se tem no mundo] , in Den Danske Skue-Plads [O Teatro dinamarquês] , vol . 4, [p. 1 62] . 55 A beleza é tratada neste capítulo de acordo com os atributos que lhe são conferidos por Schiller nas Cartas sobre a educação estética do homem, designadamente como elemento fundamental do caminho para a l iberdade (Segunda Carta) , fundamento da humanidade (Décima Carta) , fulcro do impulso lúdico e «forma viva» (Décima qui nta Carta) , e da formação estética do homem (Décima sexta Carta) . Vd . adiante ,

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por isso , é cada vez mais raro ver esta intuição de vida posta em execução . Ainda se encontra com bastante frequência uma jovem menina, ou um homem jovem, que durante algum tempo se fi a na beleza que tem, mas em breve se vê enganado por ela. Recordo , no entanto , que certa vez ainda vi esta intuição de vida posta em execução com raro êxito . Nos meus tempos de estudante passava por vezes as férias no solar de uns condes numa região da província. Em tempos antigos , o conde tivera um posto diplo­ mático , era agora mais velho e vivia na tranquilidade campestre dos seus domínios . Quando era jovem , a condessa havia sido extraordinariamente formosa; apesar de vir envelhecendo , era ainda a mais bela dama que eu havia visto . Na juventude , graças à sua beleza viril , o conde granjeara muito sucesso junto do belo sexo; na corte , o formoso camarista ainda era recordado . A idade não o vergara , e uma dignidade nobre e de genuíno requinte tornavam-no ainda mais belo . Quem os conhecera no tempo em que eram mais jovens assegurava terem sido o mais belo par que haviam visto , e eu , que tive a fortuna de os conhecer numa idade mais tardia, acha­ va isso perfeitamente natural , pois ainda formavam o mais belo casal pos­ sível de ser contemplado . Tanto o conde 1 1 77 1 como a condessa possuíam vasta cultura; e contudo , a intuição de vida da condessa concentrava-se no pensamento de serem eles o mais belo casal de todo o país . Lembro-me ainda com toda a vividez de um acontecimento que me deixou convicto disso . Foi numa manhã de domingo; havia uma pequena festividade na igreja mais próxima da casa senhorial . A condessa não se tinha sentido muito bem e não arriscou estar presente; ao invés , o conde dirigiu-se para lá logo pela manhã, vestido com todo o brilho , no seu traje de camarista , ostentando as condecorações . As janelas do grande salão davam para uma alameda que conduzia até à igreja. A condessa sentou-se junto de uma dessas janelas; envergara uma matinée muito elegante , verdadeiramente encantadora. Eu informara-me do seu estado de saúde , e tinha entabulado uma animada conversa com ela sobre uma regata de recreio que haveria de se desenrolar no dia seguinte , quando o conde então se fez mostrar, ca­ minhando ao longo da alameda. Ela calou-se , ficando ainda mais bela do que alguma vez eu a vira, o rosto quase ganhou um pouco de nostalgia; o conde aproximara-se tanto que conseguia vê-la à janela; com graça e res­ peito , mandou-lhe um beijo; virando-se agora para mim , disse-me: «Meu pequeno Wilhelm , não é verdade que o meu Ditlev é ainda o homem mais belo de todo o reino? Sim, vejo bem que se inclina um bocadinho para um dos lados , mas ninguém repara nisso quando vou com ele e , quando vamos os dois juntos, não é que continuamos a ser o mais belo par de todo em particular, pp . 273-277 , passo onde é mais evidente o papel da beleza no desenvolvimento ético do homem.

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o país ! » Uma jovenzinha de dezasseis anos não poderia sentir-se mais sumamente afortunada pelo seu apaixonado , o belo camarista, do que Sua Graça pelo fidalgo já caduco . Ambas as intuições da vida se unem nisto - há que desfrutar a vida; a condição para tal encontra-se no próprio indivíduo , mas de tal forma que não tenha sido posta pelo próprio indivíduo . Avancemos . Encontramos intuições da vida que ensinam que há que desfrutar da vida, mas colocam a condição para tal fora do indivíduo . É este o caso de toda e qualquer intuição de vida na qual se faça da rique­ za, das honrarias , da nobreza. etc . , a tarefa da vida e o respectivo conteú­ do . Quero também falar aqui de uma certa espécie de enamoramento . Se eu imaginasse uma jovem menina apaixonada com toda a sua alma, cujos olhos nenhuma outra volúpia sentiam para além de ver o seu amado , cuja alma pensamento não tinha que não fosse nele , cujo coração nenhum outro desejo tinha que não fosse pertencer-lhe , uma jovem para quem nada, nada, no céu ou na terra , tinha significação excepto ele , então , encontra-se aqui novamente uma intuição de vida estética, cuja condição está colocada fora do indivíduo . 1 1 7 8 1 Achas obviamente que é uma tolice amar desta maneira; opinas ser algo que só pode suceder em romances . No entanto , é passível de ser imaginado e uma coisa é certa: aos olhos de muitos, um amor deste tipo é vi sto como algo extraordinário . Explicar-te-ei mais tarde o porquê de eu não poder sancionar este amor. Av ancemos . Encontramos intuições de vida que nos ensinam que há que desfrutar da vida , mas a condição para tal reside no próprio indiví­ duo , porém , de tal forma que não é posta por ele próprio . Geralmente , a personalidade está aqui determinada como talento . É um talento prático , um talento mercantil , um talento matemático , um talento poético, um talento artístico , um talento filosófico . A sati sfação na vida e o desfrute buscam-se no desdobramento deste talento . Talvez um indivíduo não se fique só por este talento na respectiva imediaticidade , e o cultive de to­ das as maneiras , mas a condição para ter satisfação na vida é o próprio talento , o qual é uma condição que não é posta pelo próprio indivíduo . Os homens nos quais encontramos esta intuição de vida fazem parte da­ queles que costumam ser objecto da tua constante troça, por conta da sua incansável actividade . Em tua opinião , és tu que vives esteticamente e , e m relação a eles , não queres d e modo algum admiti-lo . É i negável que tens uma outra intu ição do que é desfrutar a vida , mas não é isso que é o essencial , o essenc ial é um indi víduo querer desfrutar da vida. A tua vida é mu ito mais requintada do que a deles , mas a deles também é muito mais inocente do que a tua. Ora , como todas estas intuições de vida têm em comum serem estéticas , então , também se assemelham entre si pelo facto de terem uma certa uni-

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dade , uma certa coerência, uma única e determinada coisa em tomo da qual tudo gira. Aquilo sobre o qual constroem as suas vidas é em si algo singular e , por isso , não se fragmenta , o que não acontece aos que constroem a sua vida sobre aquilo que em si mesmo é multíplice . É este o caso de intuições de vida, nas quais me alongarei agora um pouco mais. Ensinam-nos: des­ fruta da vida, e explicam-no assim: vive para o teu desejo. No entanto , o desejo é em si mesmo uma multiplicidade e , desta forma, é fácil ver como essa vida se fragmenta numa multiplicidade ilimitada, a não ser que , num indivíduo singular, o desejo estivesse determinado desde a infância para um único desejo, o qual teria antes de ser designado como uma inclinação , uma propensão , por exemplo , para a pesca, ou para a caça, ou para montar a cavalo , etc . Tendo em conta que esta intuição de vida se fragmenta numa multiplicidade , é fácil ver que se situa na esfera da reflexão; no entanto , esta reflexão continua afinal a ser apenas uma reflexão finita e a personali­ dade 1 1 79 1 permanece na sua imediaticidade . No próprio desejo o indivíduo é imediato , e por mais apurado e refinado que ele seja, por mais matreiro que ele seja, no desejo, o indivíduo está todavia na qualidade de imediato , no desfrute ele está no momento e , por mais multíplice que a esse respeito ele seja, o indivíduo é afinal imediato porque está no momento . Ora, viver para satisfazer o seu desejo é uma ocupação de vida muito requintada e , graças a Deus , raramente s e v ê alguém que a ponha e m execução , devido às dificuldades da vida que dão mais que pensar às pessoas . Se não fos­ se este o caso , então , não tenho dúvidas de que seríamos frequentemente testemunhas deste medonho espectáculo , visto que é bem certo ouvirmos vezes suficientes pessoas que se queixam de se sentirem incomodadas com a vida prosaica, o que lamentavelmente mais não quer muitas vezes dizer do que estarem ansiosas por se entregarem alegremente a toda a selvageria na qual o desejo é capaz de deixar um homem em torvelinho . Para que essa intuição possa designadamente ser posta em execução , o indivíduo tem de estar na posse de uma multiplicidade de condições externas e essa fortuna, melhor dito , esse infortúnio , raras vezes lhe caberá em sorte , e é infortúnio , já que não é seguramente dos deuses misericordiosos , mas dos deuses en­ furecidos que essa fortuna chegará . É mais raro ver-se estas intuições de vida serem executadas em qualquer escala significativa; ao invés , já não é tão raro ver-se gente que aldraba um pouco e, quando a dada altura as condições cessam , então , opina que bastava terem tido as condições em seu poder, que , sendo assim , haveria certamente de ter alcançado a felicidade e a alegria que na vida as atraía. Na História, encontra-se todavia um ou outro exemplo e , como creio que pode ser proveitoso inteligir até onde esta intuição de vida conduz, princi­ palmente quando tem tudo a seu favor, então , apresentarei uma figura desse tipo; para o efeito , escolho esse homem todo-poderoso , diante do qual todo

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o mundo se inclinava, o imperador Nero 56 , que se achava sempre rodeado de uma incontável turba de servis mensageiros do desejo. Certa vez , usaste a tua habitual temeridade para expressar que não se poderia culpar Nero de ter mandando incendiar Roma para conseguir ter uma representação do in­ cêndio de Tróia, mas que se teria antes de questionar se nesse agora ele te­ ria arte suficiente para entender como desfrutar do facto . Ora , um dos teus prazeres imperiais consiste em nunca te desviares de pensamento algum, em nunca deixares que te apavore . Para tal , não é preciso ter um corpo de guarda imperial , nem ouro ou prata , nem todos os tesouros do mundo , é possível estar completamente sozinho e decidir com toda a tranquilidade , o que é , por conseguinte , mais prudente , mas não menos medonho . O teu intento 1 1 80 1 não era certamente tomar a defesa de Nero ; e contudo , há uma espécie de defesa no facto de se fixar o olhar não no que ele fez , mas no modo como ele o fez . No entanto , sei muito bem que essa temeridade nos pensamentos é algo que se encontra amiúde nas pessoas mais jovens , as quais , por assim dizer, os en saiam no mundo em tais instantes , quando caem fac ilmente na tentação de se exaltarem , em especial quando há outros a ouvi-los . Sei mu ito bem que tanto tu como eu e qualquer outra pessoa , até mesmo o próprio Nero , recuaria horrorizado diante de uma tal selvage­ ria; e contudo , em sentido mais estrito , nunca aconselharia homem algum a afiançar que não teria força suficiente para se tomar um Nero . Quando agora , designadamente para descrever a essência de Nero , eu descrever aquilo que em minha opinião a constitui, então , talvez a palavra te pareça demasiado branda e, no entanto , não sou seguramente um juiz compla­ cente , se bem que , num outro sentido , nunca julgue homem nenhum . Mas podes acreditar em mi m , a palavra não é demasiado branda, é verdadeira, mas consegue ao mesmo tempo mostrar como um homem pode estar perto de uma tal aberração; com efeito , pode até dizer-se que a qualquer pessoa que não passe infantilmente pela vida fora acontece haver um instante em que se tem um pressentimento , embora di stante , de semelhante perdição . A essência de Nero era a melancolia . Na nossa época, ser melancólico tornou-se algo de grande ; nesta medida , posso conceber perfeitamente que cons ideres esta palavra demasiado branda; uso-a em ligação com uma anti­ ga doutrina da Igreja que incluía a melancolia entre os pecados cardeais 57 . Se eu tiver razão , seguramente que ficas muito desagradado com este escla­ rec imento , pois inverte completamente toda a tua vi são da vida. Por uma questão de cautela, desde logo faço aqui todavia notar que um homem pode 56 Cf. primeira menção de Nero no capítu lo «Rotação de Culturas» de Ou-Ou /, p . 3 24 , e nota 2 1 . 57 No elenco dos pecados capitais , a Igreja Católica substitu iu a acídia pela preguiça no século x v 1 1 1 .

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ter pesar e preocupação , com efeito , eles podem ser até tão infinitos que .talvez o persigam pela vida fora, o que pode aliás ser belo e verdadeiro , mas um homem torna-se melancólico apenas por sua própria culpa. Imagino então o voluptuoso imperial . Não é tão-somente quando sobe ao trono ou quando se dirige para a reunião de conselho que está rodeado de lictores, mas também , em particular, quando partia em busca da satis­ fação dos seus desejos , para que eles abrissem caminho à sua ronda de assaltos . Imagino-o agora um tanto mais envelhecido , passada a juventude , a natureza frívola decaiu, qualquer prazer que se possa imaginar é-lhe fa­ miliar, cansou-se deles . Mas essa vida, por mais corrupta que possa ser, no entanto , amadureceu-lhe a alma; e contudo , apesar de todo o entendimen­ to que tem do mundo , apesar de toda a sua experiência, permanece uma criança, ou então um homem jovem. A imediaticidade do espírito 1 1 8 1 1 não consegue irromper e todavia exige desabrochar, exige uma forma mais ele­ vada da existência. Mas se tal vier a acontecer, chegará então um instante no qual o brilho do trono , o seu poder e dominação empalidecem; e não tem coragem para tal . Agarra-se agora aos prazere s , que toda a argúcia do mundo lhe invente novos prazeres , pois só no instante do prazer encon­ tra repouso e, quando esse instante passa, suspira de languidez. O espírito continua a querer irromper, mas não consegue desabrochar, continua a ser enganado , e ele quer oferecer-lhe a saciedade do prazer. O espírito adensa­ -se então nele como uma nuvem escura58 , cresce-lhe a ira na alma, e esta torna-se uma angústia que nem sequer cessa no instante do desfrute . Vês , é por isso que os seus olhos são tão sombrios que ninguém ousa mirá-lo , . o seu olhar é tão fulminante que angustia, pois atrás dos olhos , como tre­ vas , está a alma . Chamam imperial a esse olhar e todo o mundo estremece diante dele; e contudo , o mais íntimo do seu ser é angústia. Uma criança que para ele olhe de uma maneira diferente do que ele está habituado , um relance de olhos casual , deixa-o apavorado; é como se essa pessoa o pos­ suísse , pois o espírito quer surgir nele , quer que ele se tenha a si próprio em sua consciência, mas disso não é ele capaz e, amarfanhado por dentro , o espírito reúne nova ira. Não está em si; só se tranquiliza quando o mun­ do estremece diante dele , pois nessa altura não há ninguém que todavia se atreva a segurá-lo . Daí essa angústia diante dos homens que Nero tem em comum com qualquer personalidade deste tipo . É como se estivesse sitiado , dentro de si não é livre e, por isso , é como se cada um dos olhares o quisesse prender. Ele , o imperador de Roma, é capaz de temer um olhar 58 Mateus, 6:22-23: «A candeia do corpo são os olhos ; de sorte que , se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; / Se , porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso . Se , portanto , a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas ! »

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vindo do mais miserável dos escravos . Se um tal olhar se cruza com ele , os seus olhos devoram o homem que se atreveu a mirá-lo daquele modo . Um ignóbil , junto do imperador, entende aquele olhar selvático , e esse homem deixa de exi stir. Mas não lhe pesa qualquer assassínio na consciência, mas o espírito tem uma nova angústia. Só no i nstante do prazer encontra diver­ são . Manda incendiar metade de Roma, mas o seu tormento é o mesmo . Em breve , nem isso o diverte . Há ainda um prazer superior; quer angustiar os homens . É um enigma para si mesmo e o seu ser é angústia; quer agora ser um enigma para todos e deleitar-se com a angústia dos outros . Daí esse sorri so imperial que ni nguém consegue apreender. Ao aproximarem-se do trono , ele sorri-lhes afavelmente; e contudo , apodera-se deles uma angús­ tia medonha , talvez aquele sorriso seja a sentença de morte deles , talvez o chão se abra precipitando-os no abismo . Uma mulher aproxima-se do seu trono , ele sorri para ela graciosamente ; e contudo , ela quase desfalece de 1 1 8 21 angústia, talvez aquele sorriso já a tenha destinado a ser vítima da sua volúpia. E esta angústia diverte-o . Não quer impor-se , quer angustiar. Não surge orgulhoso na sua dignidade imperial ; i nsinua uma aparência fraca e impotente , pois essa debilidade é ainda mais inquietante . Parece um mori­ bundo , a respiração é fraca; e contudo , é imperador de Roma e tem a vida das pessoas na mão . A alma está extenuada, apenas ditos espirituosos e trocadilhos reúnem condições de , por um instante , lhe restituir o espírito . Mas esgotou-se o que o mundo tem; e contudo , não pode respirar se aquele emudecer. Era capaz de mandar cortar uma criança aos bocados diante dos olhos da mãe para ver se o desespero dela podia oferecer à paixão uma no­ va expressão capaz de o di vertir. Se não fosse imperador de Roma, talvez pusesse termo à v ida suic idando-se ; pois , na verdade , há uma outra expres­ são para o mesmo assunto: quando Calígula desejou que todas as pessoas tivessem a cabeça assente num único pescoço para poder aniquilar todo o mundo de um só golpe59 ; e quando um homem põe termo à vida. Não se i se foi este o caso de Nero , mas neste tipo de personalidades encontra-se por vezes uma certa bonomia e, se Nero a teve , não duv ido que aqueles que estavam à sua volta estivessem prontos a chamar-lhe benigni­ dade . Há ni sto uma estranha coerência, porém, ao mesmo tempo , fornece uma nova prova da imediaticidade , a qual , nesse seu refreamento , consti­ tu i a melancolia propriamente dita . Acontece então que , naquele mesmo tempo em que todos os tesouros e magnificências do mundo mal chegam para o divertir, uma única palavra , uma pequena curiosidade , o aspecto exterior de uma pessoa , ou uma coisa parecida, em si e para si insignifi­ cante , pode produzir nele uma alegria extraordinária. Um Nero pode ter alegria com coisas dessas como se fosse uma criança. Como uma criança; 59 Vd. nota 1 85 no capítulo anterior.

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é precisamente esta a expressão adequada, pois é toda a imediaticidade da criança que se mostra inalterada, não transfigurada. Uma personalidade consequente não se alegra desta forma, dado que até pode ter conservado a infância dentro de si, porém, já não é mais criança. Por isso , no trato diário , Nero é um velho e , esporadicamente , uma criança . Interromperei aqui esta pequena descrição , a qual , pelo menos e m mim , causou uma impressão seriíssima. Até mesmo depois de morrer, Nero an­ gustia, pois, por mais depravado que ele seja, é carne da nossa carne e osso dos nossos ossos 60 , e até no inumano há afinal algo de humano . Não a apresentei para manter ocupada a tua fantasia; não sou autor que corra atrás dos favores do leitor, ainda menos dos teus, e , como tu bem sabes, 1 1 8 3 1 nem sou de modo algum autor, estou a escrever apenas por tua causa. Também não a apresentei para proporcionar, a mim ou a ti , ocasião de dar graças a Deus por ser eu uma pessoa completamente diferente , como fez aquele fariseu6 1 ; desperta em mim outros pensamentos , se bem que eu dê graças a Deus por a minha vida ter sido tão pouco agitada que só de longe pressenti esse horror e por ser agora um marido feliz ; no que te diz respeito , alegra-me então que sejas ainda suficientemente jovem para aprenderes al­ guma coisa com isto . Que cada um aprenda agora o que puder; poderíamos ambos aprender que a infelicidade de um homem nunca reside no facto de não ter em seu poder as condições externas , pois estas só o tomariam completamente infeliz . O que é a melancolia? É a histeria do espírito . Na vida de um homem, chega um instante em que é possível dizer que a imediaticidade está ama­ durecida, e em que o espírito reclama uma forma superior na qual se quer captar a si mesmo enquanto espírito . Enquanto espírito imediato , o homem mantém-se em articulação com toda a vida terrena e, agora, como que o espírito se quer congregar e sair dessa dispersão , transfigurando-se dentro de si mesmo; a personalidade quer ter consciência de si na sua validade eterna. Se tal não acontecer, o movimento interrompe-se , retrai-se , emer­ gindo , então , a melancolia. Pode arranjar-se muita coisa para a fazer cair no esquecimento; é possível trabalhar, é possível agarrarmo-nos a meios mais inocentes do que os de um Nero , mas a melancolia permanece . Há algo de inexplicável na melancolia. Quem sentir pesar ou preocupação sa­ be o porquê do seu pesar e da sua preocupação . Se perguntarmos a um melancólico qual o fundamento dessa sua melancolia, que coisa se abate 60 Génesis, 2:23: «E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos , e carne da minha carne: esta será chamada varoa, porque do varão foi tomada.» 61 Lucas , 1 8 : 1 1 : «Ü fariseu , estando em pé , orava consigo , desta maneira: Ó Deus, graças te dou , porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano .»

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sobre ele , então , responderá: não sei o que é , não sei explicar. Nisto se encontra a infinitude da melancolia. Esta resposta está inteiramente cor­ recta, pois assim que ele souber o porquê , então , a melancolia é anulada, ao passo que , em quem sente pesar, ao invés , ele não é anulado pelo facto de o indivíduo saber o porquê desse seu pesar. Mas a melancolia é pecado , é propriamente um pecado instar omnium , já que é pecado não querer de uma maneira profunda e íntima, e isto é a mãe de todos os pecados . Esta doença , melhor dito , este pecado , é tão comum na nossa época quanto o que faz gemer toda a jovem Alemanha e a França62 . Não quero irritar-te , lido contigo de bom grado e com toda a indulgência possível . Estou pronto a admitir que , em certo sentido , ser melancólico não é mau sinal , pois em geral atinge apenas as naturezas mais dotadas . Também não te maçarei aceitando que qualquer um que sofra de indigestão tenha por isso direito a designar-se como melancólico , algo que é frequente ver-se na nossa épo­ ca, 1 1 841 porque ser melancólico quase se tornou uma honraria pretendida por todos . Mas aquele que quiser ser excepcionalmente dotado tem de se dispor a aceitar que eu lhe atribua a responsabilidade de também ele poder ser mais culpado do que os outros homens . Se olhar devidamente para este assunto , também não verá nisso um apoucamento da sua personalidade , se bem que tal acabe por lhe ensinar a inclinar-se diante do poder eterno com verdadeira humildade . Assim que o movimento aconteceu , então , a melan­ colia é no essencial anulada , conquanto possa muito bem suceder que ao mesmo indivíduo a vida lhe traga pesares e preocupações e, quanto a isso , sabes bem que serei eu o último a proclamar a prudente baixeza de que de nada serve alguém sentir pesar, de que se deve deitar fora as tristezas . Que a vergonha de mim mesmo me cobrisse , se diante de um homem pesaroso eu me atrevesse a aparecer com estas palavras . Mas até a pessoa na qual o movimento da vida decorre da maneira mais tranquila, mais calma e mais oportuna, sempre conservará todavia alguma melancolia, o que , porém, se articula com algo mu ito mais profundo , o pecado original , prendendo-se com o facto de nenhum homem poder tornar-se transparente para si mes­ mo . Ao invés , os homens cuja alma nem sequer sabe o que é a melancolia são aqueles cuja alma nenhuma metamorfose pressente . Não tenho nada a ver com eles , já que escrevo apenas acerca de ti e para ti ; e creio que esta pequena explicação te satisfará , poi s , com efeito , tu nem sequer aceitas como mu itos médicos que a melancolia seja do domínio do corpóreo e, o 62 Referência aos mov imentos literários contemporâneos de Kierkegaard , os quais

ambicionavam tanto uma revolução nas letras e nas artes como uma revolução pol ítico­ -social . liderados por figuras maiores como Lord Byron ( 1 788- 1 824) , H. Heine ( 1 797- 1 856) , L. Borne ( 1 776- 1 826) , G. Sand ( 1 804- 1 876) , L. Saint-Simon ( 1 675- 1 75 5 ) , T . Gautier ( 1 8 1 1 - 1 872) e A . d e Musset ( 1 8 1 0- 1 857 ) .

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que ainda é mais curioso , que os médicos , apesar disso , não sejam capazes de a anular; só o espírito a pode anular já que se encontra no espírito e , quando este está disposto a aceitar-se a s i mesmo , desaparecem então todos os pequenos pesares , as razões , que na opinião deles provocam em certas pessoas melancolia: o não se ajustar ao mundo , chegar ou demasiado cedo ou demasiado tarde ao mundo , não encontrar o seu lugar no mundo; pois quem se possui a si mesmo eternamente , nem chega ao mundo demasiado cedo nem demasiado tarde , e quem está na posse de si mesmo na sua eterna validade decerto que encontra a sua significação nesta vida. No entanto, este foi um excurso episódico; espero eu que mo venhas a perdoar porque veio à existência por tua causa. Regresso à intuição de vida na qual se opina que se há-de viver para satisfazer o desejo. Um senso co­ mum arguto intelige facilmente que isso não é passível de execução , e que nem sequer vale de todo a pena começar por aí; um egoísmo refinado inteli­ ge que deixa escapar o cerne do desfrute . Reside aqui então uma intuição de vida que ensina o seguinte: desfruta a vida, exprimindo isto novamente des­ ta forma: desfruta 1 1 85 1 de ti mesmo; no desfrute , haverás de desfrutar de ti mesmo . Esta é uma reflexão superior; entretanto , não penetra obviamente na personalidade ela mesma, permanecendo esta na sua imediaticidade casual . Também aqui a condição do desfrute é afinal externa, não está em poder do indivíduo , pois, apesar de se dizer que desfruta de si mesmo , então , só des­ fruta todavia de si mesmo no desfrute , mas o próprio desfrute está associado a uma condição externa . Por conseguinte , toda a diferença consiste no facto de ele desfrutar reflectidamente e não imediatamente . Nesta medida, este epicurismo está ele próprio dependente de uma condição que ele não tem em seu poder. Uma espécie de endurecimento da razão aponta agora para uma saída que ensina o seguinte: desfruta de ti enquanto descartas continua­ mente as condições63 . Mas daqui resulta que quem desfruta de si mesmo nesse descartar das condições depende tanto delas como aquele que delas desfruta. A sua reflexão regressa sempre a ele mesmo e como o seu desfrute consiste em ter o desfrute tão pouco conteúdo quanto for possível , então , o indivíduo , por assim dizer, escava-se a si mesmo , porque obviamente uma reflexão finita deste tipo não é capaz de abrir a personalidade . Através destas observações creio , pelo menos , ter agora esboçado o ter­ ritório da intuição de vida estética de uma maneira para ti bastante reco­ nhecível ; todos os estádios têm o seguinte em comum: aquilo para que se vive é aquilo com o qual se é imediatamente aquilo que se é, pois a reflexão 63 Provável alusão a Antístenes (445 a.C .-365 a.C.) , fundador da filosofia cínica, tal como descrito por Diógenes Laércio em Vidas de Grandes Filósofos, Livro VI , § § 23 , 1 1 , 1 3 , 1 5 . Nas edições consultadas pelo autor: Vidas A , vol . 1 , pp . 25 1 , 254 , e 255 ; Vidas D, vol . I , pp . 23 1 , 234 , 235 , 236; e Vidas P , pp . 1 5 3 , 1 5 5 , e 1 56 .

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nunca chega tão alto que vá para além disto . Procedi a uma indicação muito passage ira, mas também mais não desejava oferecer; para mim , não são os diferentes estádios que são importante s , mas apenas o movimento que é inexoravelmente necessário , tal como agora mostrarei , e pedir-te-ei que fixes a tua atenção nisso . Bem, como então eu aceito que aquele homem que vivia para a sua saúde , para usar uma das tuas expressões , estava mai s são do que nunca quando morreu; que o conde e a condessa dançaram no dia das suas bodas de ouro e que , tal como no dia do seu casamento , um murmúrio percorreu a sala; aceito que as minas de ouro do homem rico eram inesgotáveis , que a honra e a dign idade assinalaram a peregrinação desse afortunado pela vida fora; aceito que a jovem menina ficou com quem amava, que esse talento mercantil aglutinou os cinco cantos da terra através das suas ligações e teve no bolso todas as bolsas do mundo , que esse talento mecânico ligou o céu e a terra; - aceito que Nero nunca suspirou , e que , a cada novo desfrute , a cada instante , se surpreendeu; que aquele epicuri sta engenhoso 1 1 861 con­ seguia a cada instante ter deleite consigo mesmo; que o cínico tinha sempre condições para afastar de si , para se sentir contente por via dessa sua ligei­ reza - aceito-o , e que toda essa gente assim possa ser deveras feliz . Não será isto o que certamente dirás , mas explicarei adiante a razão para tal ; mas decerto admitirás de bom grado que muita gente pensaria deste modo , de facto , uma ou outra pessoa ficaria em crer que dissera algo muitíssimo perspicaz ao acrescentar que o que lhes faltou foi não lhe terem dado apre­ ço . Vou fazer agora o movimento contrário . Nada disto acontece . E então? Então , desesperam . Também é certo que não desesperarias , talvez dissesses que não valia a pena . Explicarei adiante a razão pela qual não admites o desespero ; por ora , limito-me a reclamar junto de ti que reconheças que uma grande parte das pessoas certamente acharia normal desesperar. Ora , vamos lá ver por que motivo desesperam elas ; porque descobriram que aquilo sobre o qual haviam construído as suas vidas era vão; mas será então motivo para desesperar ter ocorrido uma mudança essencial em tudo aquilo sobre o qual construíram as suas vidas? Será que uma mudança essencial no que é vão consiste em este mostrar-se como vão , ou não está antes algo de casual e de inessencial contido no facto de não se mostrar dessa manei­ ra? Não chegou então a acontecer nada de novo que pudesse fundamentar uma mudança. Por consegui nte , quando a dada altura desesperam , então , isso terá de residir no facto de previamente estarem desesperados . A dife­ rença é tão-somente não o terem sabido; mas trata-se , com efeito , de uma diferença inteiramente casual . Por conseguinte , fica mostrado que qualquer intuição de vida estética é desespero , e todo aquele que viva esteticamente está desesperado , quer saiba disso ou não . Mas quando sabe , e tu sabe-lo bem , então , uma forma superior de existência é uma exigência irrecusáve l .

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Bastam-me algumas palavras para me poder explicar melhor acerca do meu juízo sobre a jovem menina e o seu amor64 . Sabes como é meu hábito , na minha qualidade de marido , aproveitar qualquer oportunidade para me opor a ti , oralmente e por escrito , reivindicando a realidade65 do amor e, por isso , também quero aqui pronunciar-me para prevenir um mal­ -entendido . Uma pessoa sabedora , em sentido finito , talvez se sentisse um pouco inquieta diante de um amor como aquele , talvez perscrutasse a fra­ gilidade dele e , por contraste , exprimisse a sua sabedoria mesquinha acer­ ca do assunto desta forma: ama-me brevemente ou ama-me longamente66 . Como se toda a sabedoria de vida dessa pessoa não fosse ainda mais frágil e, no mínimo , muito mais mesquinha do que o amor dela. Como 1 1 87 1 facilmente então inteligirás , desse modo , eu não poderia reprová-lo . No campo do amor67 , é-me muito difícil proceder a experimentos em pensa­ mento , só amei uma vez e continuo ainda a ser indescritivelmente feliz neste amor, e tenho dificuldade em imaginar ser amado por outra pessoa que não aquela a quem estou ligado , e de uma outra maneira que não seja esta com que ela me deixa tão feliz, mas atrever-me-ei aqui a fazê-lo . Suponhamos , seja qual for o modo como isso aconteceu , que me tomei objecto de um amor dessa espécie . Não me faria feliz , e nunca eu o acei­ taria, não porque o desdenhasse , meu Deu s , preferia ter um homicídio a pesar-me na consciência do que ter desdenhado do amor de uma menina, mas não o consentiria por causa dela . Se fosse por mim , desejaria ser ama­ do por cada uma das pessoas; pela minha esposa, desejo ser amado tanto quanto pode uma pessoa ser amada por outra , e seria para mim doloroso se não fosse eu a ser amado; mas também não desejo mais , e não consentiria que alguém causasse mal à sua alma68 pelo facto de me amar; amá-la-ia demasiado para permitir que fosse ela a rebaixar-se . Para mentes altivas , há algo de sedutor em ser-se amado desta forma, e há homens tão enten­ didos na arte de encantar uma menina que , por eles , ela tudo esquece; mas que vejam bem como se vão defender ! Na maioria das vezes , uma menina assim já recebe castigo bastante duro , mas mais vil é permitir que tal aconteça. Vês , por isso dizia eu , e continuo a dizer, que uma jovem estava igualmente desesperada quer ficasse ou não com o amado , pois seria de facto uma circunstância casual ser aquele que ela amava homem 64 Aqu i , «Elskov» . 65 Aqui , «Realitet» . 66 O provérbio conhece variantes. Cf. N . F. S . Grundtvig, Danske Ordsprog og Mundheld [Provérbios e Adágios dinamarqueses] , Copenhaga, 1 845 , n .º 5 1 3 , p. 1 9 . Doravante esta obra é mencionada pelo nome d o autor. 67 Aqui, «Elskov» . 68 Mateus , 1 6: 26: «Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro , se perder a sua alma? Ou o que dará o homem em recompensa da sua alma?»

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tão honesto que a ajudasse a sair da crassa ilusão do seu coração e , mes­ mo que os meios por ele utilizados fossem igualmente da mesma dureza , então , ainda assim , continuaria eu a dizer que ele agira para com ela com honestidade e sinceridade , com lealdade e cavalheirismo . Estando então mostrado como qualquer intuição de vida estética é de­ sespero , por conseguinte , poderia parecer estar certo empreender o mo­ vimento através do qual surge o ético . Entretanto , há ainda um estádio , uma intuição de vida estética, a mais fina e a mais requintada entre todas , que discutirei com maior cuidado , pois chegou agora a tua vez . É s capaz de conv iver tranquilamente com tudo aquilo que acima desenvolvi , e, de certa maneira, não é para ti que estive a falar; e também de pouco serviria falar desse modo contigo ou esclarecer-te acerca de como a vida é vaidade . Sabes isso muito bem e até tens tentado desenvencilhar-te 1 1 8 8 1 ao jeito que te é próprio . A razão pela qual eu fiz esta proposta deve-se ao facto de eu me querer salvaguardar - quero impedir-te de dares repentinamente um salto para trás . Esta última intuição de vida é o próprio desespero . É uma intu ição de vida estética, visto que a personalidade permanece dentro da sua imediaticidade; é a derradeira intuição de vida estética, pois em certo grau acolheu em si a consciência da nulidade de semelhante intui­ ção . Entretanto , há diferença entre desespero e desespero . Se eu imaginar um artista, por exemplo , um pintor que fica cego , então , talvez venha a desesperar, se nele não houver nada mais profundo . Como ele desespera por esse lado singular, se a vista lhe fosse restituída, então , o desespero cessaria. Não é este o teu caso , espiritualmente és demasiado dotado , e em certo sentido há excessiva profundidade na tua alma para que isso pudesse ocorrer contigo . E de um ponto de vista exterior, também não te aconteceu tal coisa. Continuas ainda a ter em teu poder todos os momentos de uma intuição de vida estética, tens fortuna, independência, uma saúde inaba­ lável , o espírito ainda exuberante , e também ainda não ficaste infeliz por via de uma menina não te amar. E contudo , estás desesperado . Não é um desespero que seja actual , é antes um desespero no pensamento . O teu pen­ samento precipitou-se para a frente , entreviste a vaidade que há em tudo , mas não avançaste mai s . Em certas alturas , ficaste imerso nele e , quando num momento particular te entregas ao desfrute , aceitas ao mesmo tempo em tua consciência que se trata de vaidade . Assim , estás sempre fora de ti mesmo , designadamente em desespero , o que faz a tua vida ficar entre dois desmedidos contrários; umas vezes tens uma energia incomensurável , e outras vezes tens uma insolência igualmente grande . Tenho observado cada vez com maior frequência que quanto mais caro for o fluido com que um homem se embriaga mais dificilmente ele ressa­ ca, a embriaguez é mais bela e as consequências , aparentemente , não são tão perniciosas . Quem se embriaga com aguardente em breve dará conta

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das perniciosas consequências , e podemos ter esperança na sua salvação . Quem recorrer ao champanhe tem maior dificuldade em ressacar. E tu foste escolher do mais fino; pois que embriaguez será tão bela, tão lisonjeadora, tão graciosa, como o desespero , em particular aos olhos de uma menina (desta matéria sabes tu muito) , particularmente quando se tem aptidão ar­ tística para ser capaz de conter as exteriorizações mais agrestes , deixando que o desespero , como um incêndio à distância, seja pressentido apenas do exterior? Dá uma ligeira inclinação ao chapéu e a 1 1 891 todo o corpo , confe­ re um olhar altivo e desafiador. Os lábios abrem-se num sorriso sobrancei­ ro . Dá uma leveza indescritível à vida e uma majestática visão global sobre o todo . Ora, quando uma figura destas se aproxima de uma menina, quando esta fronte altiva se inclina apenas na sua direcção , exclusivamente para ela em todo o mundo , então , ela sente-se adulada, podendo muito bem aconte­ cer, lamentavelmente , que seja tão inocente que acredite nessa falsa vénia . E não é uma vergonha haver alguém - não , não farei todavia um qual­ quer discurso retumbante , é só para te acicatar, tenho outros meios mais poderosos , tenho alguém jovem e esperançoso , talvez esteja enamorado , aproxima-se de ti , está enganado a teu respeito , crê que és um homem leal e honesto , quer aconselhar-se contigo . Na realidade , podes fechar a porta a qualquer jovem destes, assim tão fatal , mas não consegues fechar o teu co­ ração ; mesmo que não desejes que ele seja testemunha da tua humilhação , não é por isso que deixará de aparecer, pois não és assim tão depravado; e , quando estás sozinho contigo próprio, talvez a tua bonomia seja maior do que alguém possa crer. Eis-me então na posse da tua intuição de vida e podes acreditar em mim , na tua vida há muita coisa que para ti passará a ser explicável , se me acom­ panhares e a observares como desespero de pensamento. Nutres ódio pela actividade da vida, está certo , pois para que haja sentido na vida tem de ha­ ver nela continuidade , e a tua vida carece dela. Ocupas-te dos teus estudos , é verdade , és deveras aplicado, mas é apenas por tua própria causa, e isso acontece da maneira menos teleológica possível . De resto , és um ocioso, à semelhança desses trabalhadores no evangelho69 , estás ocioso na praça, enfias as mãos nos bolsos e observas a vida. Agora, repousas em desespero , nada tens com que te ocupar, não abandonas o teu rumo por nada, «nem que fizessem tombar telhas , não mudaria eu de rumo» . É como se estives­ ses moribundo , morres todos os dias 70 , não na profunda e séria significação 69 Tal como na parábola dos trabalhadores e das diversas horas de trabalho . Cf. Mateus , 20 : 1 - 1 6 , em particular v. 3: «E saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam ociosos na praça» . 70 1 Coríntios , 1 5 : 3 1 : «Eu protesto que cada dia morro , gloriando-me e m vós , irmãos , por Cristo Jesus, nosso Senhor.»

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com que aliás se emprega esta palavra, mas a vida perdeu a sua realidade 7 1 e «tu contas o teu tempo de vida de prazo em prazo .» Deixas que tudo te passe ao lado , sem causar qualquer impressão , mas eis que repentinamente chega agora algo que te agarra, uma ideia, uma situação , o sorriso de uma jovem menina, e agora «juntas-te a eles» , pois tal como em certas alturas não o fazes , há outras em que sim e ao seu serviço de todos os modos . Em geral , onde quer que haja um acontecimento , juntas-te a ele. Na vida, comportas-te como costumas fazer no meio da multidão , «enfias-te por entre a mais densa mole , se possível vês se consegues que te 1 1 901 apertem até acabares por ficar por cima dos outros , e uma vez lá em cima, tratas de ficar o mais confortável possível , e é também assim que te comportas pela vida fora .» Mas quando a multidão dispersou , quando o acontecimento já passou , então , ficas de novo à esquina a olhar para o mundo . É sabido como um moribundo tem uma energia sobrenatural , e também assim se passa contigo . Se houver uma ideia para ser pensada de fio a pavio, uma obra para ser lida de uma ponta à outra , um plano para ser executado , uma peq uena aventura para ser vivida - até mesmo um chapéu para comprar, então , agarras no assunto com uma força desmedida. Diante das circuns­ tâncias , trabalhas sem parar um dia, um mês , sentes uma alegria quando te asseguras de que ainda tens a mesma plenitude de força que antes tinhas , sem fazer pausas , «não há diabo que te consiga acompanhar» . Quando tra­ balhas em associação com outros, então , acabas por deixá-los esfalfados . Mas quando então s e esgota o mês , o u o s seis meses, o que sempre consi­ deras ser o máx imo , nessa altura interrompes , dizendo então que agora a história acabou; retiras-te , e deixas tudo ao outro , se eras apenas tu quem estava envolvido nisso , não falas a ninguém sobre o assunto . Crias para ti e para os outros a imagem de que perdeste a vontade e l isonjeias-te com o pensamento vão de que poderias ter continuado a trabalhar com a mesma intensidade , se tivesses tido vontade para tal . Mas este é um embuste co­ lossal . Terias então finalizado com êxito o teu trabalho , tal como a maioria das pessoas , se o tivesses querido pacientemente ; mas ao mesmo tempo também terias então experienc iado que , para fazer isso , é necessário pos­ suir um tipo de perseverança completamente diferente daquela que tu tens. Em breve te desenganas então , nada aprendendo para o resto da vida. Pode ser que este meu pequeno esclarecimento te possa servir. Não desconheço quão traiçoeiro é o nosso próprio coração , e quão fácil é enganarmo-nos a nós próprios , mais ainda quando se está na posse do poder resolutivo da di aléctica em grau idêntico ao teu , que não se limita a conceder dispensa a tudo , mas que tudo dissolve e dissipa. Quando a dada altura , algo na vida vinha ao meu encontro , quando eu hav ia decidido algo que eu temia que 7 1 Aqu i , «Realitet» .

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no decurso do tempo houvesse de assumir para mim uma outra aparência, quando eu havia feito algo que eu temia que no decurso do tempo houvesse de me oferecer uma outra interpretação , nessas alturas , escrevia amiúde em breves e claras palavras aquilo que eu queria , ou o que eu havia feito e por que motivo . Quando então me parecia sentir que me era necessário , quando a minha decisão ou a minha acção já não se me configuravam tão vívidas , pegava então nas minhas normas e 1 1 9 1 1 julgava-me a mim mesmo . Talvez isto te pareça pedantaria, que é ser demasiado prolixo , que não merece a pena levantar tantas objecções . Quanto a isto , nada mais tenho a responder que não seja o seguinte: se não sentires necessidade , se a tua consciência for sempre tão inabalável e a tua memória tão fiel , então , pois que assim seja. Mas não creio realmente que assim seja, pois a capacidade anímica de que propriamente careces é memória, ou seja, não a memória para isto ou para aquilo , não para ideias , espirituosidades ou contorcionismo dialécti­ co, longe de mim afirmar tal coisa , mas sim de memória em relação à tua própria vida e ao que nela foi experienciado . Se a tivesse s , então o mesmo fenómeno não se repetiria na tua vida com tanta frequência, a tua vida não exibiria então tantas ocorrências daquilo que eu chamo trabalhos de meia hora, dado ser desta forma que gosto de os denominar, e nem que tivesses gasto meio ano teriam então sido dados por concluídos. Mas do que gostas mesmo é de te desenganar, a ti próprio e aos outros . Se fosses sempre tão forte quanto és no instante da paixão , não negarei de todo que eras o mais forte dos homens entre os que conheci . Mas não és, tu próprio sabe-lo mui­ to bem . Por isso te retrais , quase te escondes de ti próprio, voltando a re­ pousar na indolência. Aos meus olhos , e nem sempre és capaz de te subtrair à atenção deles, quase te tomas risível com o teu momentâneo zelo e a legi­ timação que nele encontras para procurar troçar dos outros . Certa vez , dois ingleses viajaram até à Arábia para comprar cavalos . Até levaram consigo alguns cavalos de corrida por desejarem agora testar a sua envergadura em comparação com os cavalos árabes . Propuseram uma corrida e os árabes assentiram , deixando que os ingleses escolhessem quais os cavalos que queriam entre os cavalos árabes que eles tinham . No entanto , eles não qui­ seram logo fazer a corrida , tendo explicado que necessitavam de quarenta dias para treinar. Esperados os quarenta dias , determinou-se o montante do prémio , e selaram-se os cavalos; e agora, perguntaram os árabes , quanto tempo haveriam eles de montar os cavalos? Uma hora foi a resposta, o que surpreendeu o árabe que respondeu laconicamente: estava em crer que haveria de ser durante três dias . Estás a ver, também assim se passa con­ tigo . Se alguém quer fazer contigo uma corrida de uma hora, então , « não há diabo que te apanhe»; se for de três dias , ficas para trás . Recordo-me de te ter contado uma vez esta história e recordo-me também da tua resposta: que uma corrida de três dias era assunto para dar que pensar; numa corrida

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dessas um indivíduo arriscava atingir tal velocidade que nunca conseguiria parar e, por isso , abstinhas-te sabiamente de todo esse tipo de violência;
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