SPINDLER- Realismo mágico
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Realismo mágico: uma tipologia Tradução de Fábio Lucas Pierini do original inglês “Magic realism: a typology”, de William Spindler, Fórum for modern language studies, Oxford, 1993, v. 39, p. 75-85. Revisão: Fernanda Cristina de Freitas Sales.
Realismo mágico é comumente associado aos romancistas latino-americanos tais como como Gabrie Gabriell Garcí Garcíaa Márqu Márquez ez,, Alejo Alejo Carpen Carpenti tier, er, Isabe Isabell All Allen ende de e Miguel Miguel Angel Angel Asturias. O termo, contudo, originou-se na Europa nos anos 1920 quando era aplicado não à literatura, mas à pintura. Desde então, os críticos fizeram uso do termo ao tratarem de várias formas de arte incluindo, mais recentemente, o cinema. A falta de uma definição que não seja controversa e a proliferação de seu uso em vários contextos resultou em confusão. Isso, por sua vez, levou ao uso indiscriminado do termo para descrever quase todo trabalho de literatura ou arte que de alguma maneira provêm dos estabelecidos cânones do realismo. A despeito de problemas terminológicos e conceituais, conceituais, os quais persuadiram um número de críticos a abandoná-lo, o termo continua a ter, nas palavras de Frederic Jameson, “uma estranha sedução”. Além disso, é possível argüir, como é o meu caso, que o Realismo Mágico, propriamente definido, é um termo que descreve obras de arte e ficção que compartilham uma certa temática identificável, características formais e estruturais, e que essas características justificam que seja considerado uma categoria estética e literária própria, independente de outras como o Fantástico e o Surrealismo, com o qual é freqüentemente confundido. Este artigo tem como finalidade apresentar uma estrutura que incorporará as diferentes manifestações do Realismo Mágico num só molde, mol de, e ness nessee senti sentido, do, ajuda ajudarr a escl esclare arece cerr a atual atual confu confusão são pela pela disti distinç nção ão entre entre diferentes tipos de Realismo Mágico, ao mesmo tempo mantendo os elos e pontos de contato entre eles. O primeiro a usar o termo foi o crítico de arte alemão Franz Roh. Ele o aplicou a um grupo de pintores que viviam e trabalhavam na Alemanha nos anos 1920 que, depois da Primeira Guerra Mundial, rejeitaram o que viam como a intensidade e o emocionalismo do Expressionismo, tendência que dominou a arte alemã depois da Guerra. Esses artistas, inclusive pintores tais como Carl Grossberg, Christian Schad, Alexander Kanoldt, Georg Schrimpf, Carlo Mense e Franz Radziwill, prescreveram um
Tradução de Magic realism: a typology, de William Spindler, por Fábio Lucas Pierini
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retorno à representação da realidade, porém sob uma nova luz. O mundo dos objetos devia ser abordado de uma nova maneira, como se o artista o estivesse descobrindo pela primeira vez. O Realismo Mágico, como foi entendido então, não era uma mistura de realidade e fantasia, mas uma maneira de revelar o mistério oculto nos objetos ordinários e na realidade do dia a dia. Em 1927, o escritor e filósofo espanhol José Ortega y Gasset traduziu e publicou o livro de Roh em seu influente jornal Revista de Occidente. O termo Realismo Mágico logo se tornou amplamente usado por críticos latino-americanos no contexto da literatura. O escritor e crítico argentino Enrique Anderson Imbert, por exemplo, escreve que o termo foi utilizado nos círculos culturais de Buenos Aires nos anos 1930 para se referir a escritores europeus como Kafka, Bontempelli, Cocteau e Chersterton. O primeiro a aplicar o termo à literatura latino-americana foi o escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri. Naquela época, o significado geralmente aceito de Realismo Mágico era ainda baseado na definição de Roh. Em 1949, Alejo Carpentier publicou seu romance O reino deste mundo . Em seu prólogo, o romancista cubano apresentou seu conceito de “o real maravilhoso americano”, pelo qual ele se referia não às fantasias ou invenções de um autor em particular, mas ao número de objetos e acontecimentos reais que fazem o continente americano ser tão diferente do europeu. Na visão de Carpentier, os prodígios naturais, culturais e históricos da América são uma inesgotável fonte de verdadeiras maravilhas: “o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?” Além disso, supunha-se ser essa realidade maravilhosa quantitativamente superior à “malfadada pretensão de suscitar o maravilhoso que caracterizou certas literaturas européias desses últimos trinta anos” (p. 95). Nesse sentido, Carpentier manifestou sua desilusão com o Surrealismo, um movimento que integrou enquanto vivia em Paris. O Surrealismo era, grosso modo, uma reação contra a excessiva ênfase de um ponto de vista racional requerido pelas tradições ocidentais de empiricismo e positivismo científico. Tinha como objetivo liberar as forças criativas do inconsciente e da imaginação, e era profundamente influenciado pela obra de Freud. Era o produto de uma sociedade industrial altamente desenvolvida, na qual a habilidade de se espantar e de se encantar com o mistério se perdera. O “real maravilhoso” de Carpentier, por outro lado, enquanto toma a fascinação dos surrealistas pelo “merveilleux” como um ponto de partida, apresenta duas contrastantes visões de mundo (uma racional, moderna e discursiva; a outra magica, tradicional e intuitiva) como se elas não fossem contraditórias. Na América Latina por exemplo, a mentalidade racional que acompanha
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a modernidade freqüentemente coexiste com as formas populares de religião amplamente baseadas nas crenças de grupos etno-culturais de origem não ocidental tais como a nativa e as afro-americanas. Ao invés de procurar por uma “realidade separada”, simplesmente oculta sob a realidade existente da vida do dia a dia, como o Surrealismo pretendia, “o real maravilhoso” assinala a representação da realidade modificada e transformada pelo mito e pela lenda. Nisso, se aproxima das idéias de Jung, especialmente seu conceito de “inconsciente coletivo”, que se refere tanto à fabricação do mito quanto à psicanálise freudiana com sua ênfase ao inconsciente individual, à neurose e ao erótico, o que atraiu os surrealistas. O sentido de espanto com a “maravilhosa” realidade da América, de Carpentier, contudo pode ser visto como uma reflexão sobre o mito europeu do “Novo Mundo” como um lugar de maravilhas, baseada na constante referência à experiência européia como medida de comparação. Isso é claramente visto nas crônicas de descobrimento e conquista, do diário de Colombo à história da conquista do México, de Bernal Diaz del Castillo, que de acordo com Carpentier é “o único livro de cavalaria real e fidedigno já escrito”. Também nos anos 1940, o escritor guatemalteco Miguel Angel Asturias estava se afastando do Surrealismo rumo a idéias e preocupações semelhantes às de Carpentier. Asturias estava interessado em como Maya de Guatemala concebe a realidade colorida por crenças mágicas: As alucinações, as impressões que o homem obtém de seu meio tendem a se transformar em realidades, sobre todo o lugar onde existe uma determinada base religiosa e de culto, como no caso dos índios. Não se trata de uma realidade palpável, mas sim de uma realidade que surge de uma determinada imaginação mágica. Por isso, ao expressá-lo, chamamo-lo “realismo mágico”.
Poucos anos depois da formulação de “o real maravilhoso”, de Carpentier, Angel Flores fez uma palestra sobre “Realismo Mágico na Ficção Hispano-Americana” no Congresso da Associação de Línguas Modernas em 1954, em Nova Iorque. Publicado em artigo subseqüente, contribuiu para popularizar o termo Realismo Mágico entre os críticos na medida em que este veio a sobrepujar “o real maravilhoso”. Flores partiu da formulação original de Roh como ele considerava Realismo Mágico um “amálgama de realismo e fantasia” (p. 189). Ele incluiu nessa categoria todas aquelas narrativas que alcançavam uma “transformação do comum e do dia a dia no assustador
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e no irreal” (p. 190) e onde “o tempo existe numa espécie de fluidez atemporal e o irreal acontece como parte da realidade” (p. 191). Isso incluía, segundo ele, as obras de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Maria Luisa Bombal, Juan José Arreola, e outros. Baseado na definição de Flores, o Realismo Mágico começou a ser associado a um certo tipo de narrativa que emprega com aparente segurança, descrições realistas de acontecimentos fantásticos ou impossíveis (o exato oposto, de fato, do que o termo original significava). Os termos Realismo Mágico e “realismo maravilhoso” tornaramse mais ou menos intercambiáveis e foram aplicados a um crescente número de escritores latino-americanos associados ao “Romance Novo” pós-Segunda Guerra Mundial. Em 1967, o crítico mexicano Luís Leal tentou retornar à fórmula original de Roh de fazer o comum parecer sobrenatural. Segundo Leal, o escritor de textos realistas mágicos compactua com a realidade objetiva e tenta descobrir o mistério que existe nos objetos, na vida e nos atos humanos, sem lançar mão de elementos fantásticos: “o principal (no realismo mágico) não é a criação de seres ou mundos imaginados, mas o descobrimento da misteriosa relação que existe entre o homem e sua circunstância”. Semelhantemente, o argentino Enrique Anderson Imbert rejeitou a presença do sobrenatural no Realismo Mágico. Este último, para Anderson Imbert, é protonatural ao invés de sobrenatural, em outras palavras, excede de alguma maneira o que é normal, ordinário ou explicável, sem transcender os limites do natural. Ao invés de criar um texto em que os princípios da lógica são rejeitados e as leis da natureza revertidas, as narrativas mágico-realistas, em sua visão, dão aos acontecimentos reais uma ilusão de irrealidade. Neste ponto, terá se tornado evidente que o debate entre críticos tem sido provocado, numa esfera maior, pela existência de duas diferentes, e sempre aparentemente contraditórias, depreensões do termo: (1) o original, que se refere a um tipo de obra literária ou artística que apresenta a realidade a partir de uma perspectiva incomum sem transcender os limites do natural, mas que induz no leitor ou observador um senso de irrealidade; e (2) o uso atual, que descreve textos em que duas contrastantes visões de mundo (uma “racional” e outra “mágica”) são apresentadas como se não fossem contraditórias, lançando mão de mitos e crenças de grupos etnoculturais para os quais essa contradição não se manifesta. O uso (1) inclui a definição proposta por Roh, Leal, Anderson Imbert e o crítico estadunidense Seymour Menton. Como um estilo, apresenta o natural e o comum como sobrenaturais, enquanto estruturalmente exclui o sobrenatural como uma interpretação
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válida. O uso (2), que é o mais comumente empregado pelos críticos de ficção latinoamericana e que agora substituiu amplamente o primeiro, é baseado, numa considerável extensão, em “o real maravilhoso”. De fato, no contexto latino-americano, Realismo Mágico e “o real maravilhoso” se tornaram agora sinônimos e tem sido mencionados não apenas em conexão com os romances de Carpentier e Astúrias, mas também com a obra de autores tais como Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Rosario Castellanos, Juan José Arreola, Manuel Scorza, Isabel Allende e José Maria Arguedas. O uso (2) se refere, estilisticamente, a textos em que o sobrenatural é apresentado como normal e comum, de um modo que flui naturalmente. Estruturalmente, considera a presença do sobrenatural no texto como essencial para a existência do Realismo Mágico. A. B. Chanady, por exemplo, propõe três critérios para determinar se um texto pertence ao Realismo Mágico ou não: em primeiro lugar, a presença no texto de duas conflitantes visões de realidade, representando o natural e o sobrenatural, o racional e o irracional, ou o “esclarecido” e o “primitivo”. Em segundo, a resolução dessa antinomia pela aceitação do narrador de ambas as visões como igualmente válidas. Em terceiro, reticência do autor na falta de óbvios julgamentos sobre a veracidade ou autenticidade dos acontecimentos sobrenaturais. Nem o uso (1), nem o uso (2) por si só é suficiente para dar conta de todos os diferentes exemplos de obras mágico-realistas. O uso (1), por exemplo, deixa de fora romances-chave tais como Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez e Homens de milho
(1949), de Miguel Angel Asturias, devido a suas descrições de
acontecimentos impossíveis ou fantásticos; enquanto o uso (2) exclui romances igualmente importantes tais como Crônica de uma morte anunciada (1981), também de García Márquez, e Os passos perdidos (1953), de Alejo Carpentier, por eles não incluírem ocorrências fantásticas ou sobrenaturais. Dada a existência dessas duas diferentes interpretações do Realismo Mágico correspondentes a duas diferentes tradições, uma pictorial e principalmente européia e outra literária e principalmente latino-americana, proponho a seguinte tipologia que unificará as definições apresentadas pelos críticos em ambos os continentes. Ao invés de duas concepções completamente diferentes de Realismo Mágico, as duas depreensões deveriam ser vistas como os dois lados de uma mesma moeda. Há, na verdade, a possibilidade de um terceiro tipo de Realismo Mágico, que discutirei mais adiante. É preciso ser ressaltado que há mais pontos de coincidência entre os três tipos propostos e que eles não são de maneira alguma mutuamente exclusivos. Obras de um mesmo autor podem, além disso,
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muito bem cair em diferentes categorias. Essas categorias correspondem, além disso, a três diferentes significados da palavra “mágico”. O Realismo Mágico Metafísico
Essa forma de Realismo Mágico corresponde às idéias de Roh e à definição original do termo. Exemplos desse tipo de Realismo Mágico, conseqüentemente, são comuns na pintura, na qual perspectivas deslocadas, ângulos incomuns, ou inocentes retratos de objetos reais como se fossem de brinquedo produzem um efeito “mágico”. “Mágico” aqui é tomado no sentido de conjurar, produzir efeitos surpreendentes pelo arranjo dos objetos naturais por meio de truques, instrumentos ou ilusão ótica. Essa abordagem pode ser observada em algumas das obras de Giorgio de Chirico, um pintor que teve a mais importante, direta e reconhecida influência sobre os pintores alemães estudados por Roh. Junto com Carlo Carrà, que fundaria mais tarde na Itália um movimento chamado Realismo Mágico , De Chirico estabeleceu um estilo conhecido como Pintura Metafísica , que era caracterizado por suas linhas agudas e contornos, pela qualidade estática e abafada e pela atmosfera sinistra das cenas retratadas. De Chirico explicou o uso do termo “metafísico” para sua obra: é a beleza tranqüila da questão que parece metafísica para mim, e coisas se aparentam metafísicas para mim quando através de sua claridade de cores, a precisão de suas dimensões, formam contrastes com cada “sombra”.
Em literatura, Realismo Mágico Metafísico é encontrado em textos que induzem a um senso de irrealidade no leitor pela técnica do Verfremdung (estranhamento), por meio do qual uma cena familiar é descrita como se ela fosse algo novo e desconhecido, mas sem lidar explicitamente com o sobrenatural, como por exemplo em O processo, de Franz Kafka (1925) e O castelo (1926); O deserto dos tártaros , de Dino Buzzati (1940) e as histórias Tema do traidor e do herói , A seita do Fênix e O sul , de Jorge Luis Borges. O resultado é freqüentemente uma atmosfera estranha e a criação, dentro do texto, de uma perturbadora presença impessoal, que permanece implícita, muito mais do que em A peste de Albert Camus (1947), Coração das trevas , de Joseph Conrad (1902) ou A volta do parafuso, de Henry James (1898). Também pertencendo a esse tipo de Realismo Mágico estão aquelas obras que apresentam fenômenos de natureza
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protonatural, na caracterização de Anderson Imbert. Exemplos disso são Funes, o memorável , de Borges, sobre um homem que podia se lembrar de literalmente tudo; e O perfume , de Patrick Süskind (1985), no qual o personagem é dotado de um monstruosamente desenvolvido sentido de olfato. O romance de Dino Buzzati, O deserto dos tártaros tem sido freqüentemente comparado com O castelo, de Kafka. É a história de Giovanni Drogo, um jovem tenente que é encarregado do Forte Bastiani, uma fortaleza que guarda a fronteira do norte contra um mítico inimigo do qual não se ouve falar há séculos. Buzzati descreve o regime monástico do forte, onde soldados e oficiais permanecem em estrita prontidão para a batalha, constantemente esperando o inimigo invisível que justificaria a existência deles e a do forte. Tal como Kafka, Buzzati apresenta um mundo reconhecível como dentro dos limites do real. A despeito de suas semelhanças superficiais com o mundo do leitor, contudo, esse último não pode evitar considerá-lo estranho e desconcertante. O tempo e a geografia dos acontecimentos são incertos. Uma atmosfera serena e melancólica semelhante àquela das pinturas de De Chirico contribui para produzir um efeito de mistério que é conseguido sem lançar mão da irrupção do sobrenatural na narrativa. O romance de Buzzati, assim como o de Kafka, abre na mente do leitor a impressão de ser confrontado com uma alegoria ou uma metáfora de algo que permanece quase ao alcance e ainda, desconhecido. Realismo Mágico Antropológico
Neste tipo de Realismo Mágico o narrador normalmente tem “duas vozes”. Às vezes ele/ela retrata acontecimentos de um ponto de vista racional (o componente “realista”) e às vezes do ponto de vista do crente em magia (elemento mágico). Essa antinomia é resolvida pelo autor quando adota ou se refere aos mitos e histórico cultural (o “inconsciente coletivo”) de um grupo étnico ou social: o Maya de Guatemala, no caso de Astúrias; a população negra haitiana, em Carpentier; e as pequenas comunidades rurais no México e na Colômbia, em Rulfo e García Márquez. A palavra “mágico” nesse caso é tomada no sentido antropológico de um processo usado para influenciar o curso dos acontecimentos fazendo funcionar os princípios secretos ou ocultos controladores da Natureza. Essa é a definição mais atual e específica de Realismo Mágico e é fortemente associada com a ficção latino-americana. Críticos europeus tais como Jean Weisgerber guardam o termo “realismo maravilhoso” exclusivamente para a variedade latino-americana, especificamente para distingui-lo do
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Realismo Mágico europeu, que geralmente se aproxima do tipo metafísico. Embora esse tipo de Realismo Mágico seja, a meu ver, sinônimo de “o real maravilhoso”, Realismo Mágico Antropológico é um termo mais exato e prático, pois o coloca dentro de uma categoria maior (Realismo Mágico) do qual é parte e não simplesmente confinando-o a América Latina, como “o real maravilhoso (americano)” faz. Na literatura latino-americana, o Realismo Mágico Antropológico participa de uma tendência mais geral, que reflete uma preocupação temática e formal com o estranho, o inexplicável e o grotesco, e também com violência, deformidade e exagero. Essa tendência aparente em escritores tão diversos como Andrade, Arreola, Asturias, Borges, Cabrera Infante, Carpentier, Cortázar, Fuentes, García Márquez, Lezama Lima, Marechal, Onetti, Puig, Roa Bastos, Rulfo, Sábato e Vargas Llosa foi nomeada por alguns críticos para enfatizar suas raízes na tradição latinoamericana da arte e literatura barrocas. Interesses semelhantes, contudo, deviam ser encontrados no movimento “modernista” e especialmente nos contos do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937). O “Modernismo” teve um profundo impacto sobre neobarroquismo
escritores tais como Borges, Paz, Cortázar e Lezama Lima. O Realismo Mágico latinoamericano se aplica a essas duas tradições literárias, mas também àquela representada por outros escritores tais como Willian Faulkner e Jorge Amado que, em seus escritos, mostram o contraste entre a claustrofóbica e estagnante atmosfera das comunidades rurais ou provincianas e a vívida imaginação dos que vivem nelas. Em ambos, Faulkner e Amado, as vidas dos personagens são subitamente, mas constantemente obscurecidas pelo passado fortemente escravagista de suas sociedades (o sul dos Estados Unidos e o nordeste do Brasil, respectivamente). Na cultura de descendentes de escravos e outros grupos que vivem em contato em eles, há ecos de crenças mágicas, quase esquecidas, mas ainda poderosas o bastante para influenciar as ações e o comportamento. Pedro Páramo, de Juan Rulfo (1955) e A má hora, de Gabriel García Márquez (1962) também retratam a asfixiante atmosfera da vida provinciana. Aqui, contudo, eles partem de anteriores romances realistas latino-americanos tais como Dona Bárbara, de Rómulo Gallegos (1929), Huasipungo, de Jorge Icaza (1934) e Vidas secas, de Graciliano Ramos (1938). Uma importante diferença é a existência de uma “consciência mágica” nos personagens, que é observada pelo autor como igual ou superior ao racionalismo ocidental. Essa característica liga o Realismo Mágico Antropológico à cultura popular. A sobrevivência na cultura popular de uma Weltanschauung (cosmovisão) mágica e mítica, que coexiste com a mentalidade racional gerada pela modernidade, não
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é um fenômeno exclusivamente hispano-americano. Pode ser encontrado também em áreas do Caribe, Ásia e África onde escritores tais como Wilson Harris (Guiana), Simone Schwartz-Bart (Guadalupe) e Jacques Stephen Alexis (Haiti) no Caribe, o indiano Salman Rushdie, e Amos Tutuola e Olympe Bhêly-Quénum na África, lançaram mão do Realismo Mágico ao compactuarem, em inglês ou francês, com preocupações semelhantes aos dos escritores hispano-americanos. A literatura mais contemporânea das Antilhas e da América Latina, ao que parece, chegam a fixar-se ao mesmo tempo em um contexto nacional e em um contexto universal, ao apelar por arquétipos herdados da cultura tradicional, mas também ao descobrir outros no coração da realidade moderna.
De fato, a força do Realismo Mágico na “periferia” (América Latina, África, Caribe) e sua comparativa fraqueza no “centro” (Europa ocidental, Estados Unidos), poderia ser explicado pelo fato de que mitos coletivos adquirem maior importância na criação de novas identidades nacionais, bem como o fato mais óbvio de que crenças pré-industriais ainda representam uma parte importante na vida cultural e sociopolítica dos países em desenvolvimento. O Realismo Mágico dá o mesmo grau de importância à cultura popular e às crenças mágicas que os ocidentais dão à ciência e à racionalidade. Ao fazer isso, são favorecidas as reivindicações de igualdade daqueles que mantém essas crenças com as elites modernizadoras que os governam. Realismo Mágico Ontológico
Diferentemente do Realismo Mágico Antropológico, o Realismo Mágico Ontológico resolve a antinomia sem recorrer a nenhuma perspectiva cultural em particular. Nessa forma “individual” do Realismo Mágico, o sobrenatural é apresentado de um modo realista como se não contradissesse a razão e não são oferecidas explicações para os acontecimentos irreais no texto. Não há referência à imaginação mítica de comunidades pré-industriais. Ao contrário, a liberdade total e as criativas possibilidades de escrever são exercidas pelo autor, que não está preocupado em convencer o leitor. A palavra “mágico” aqui se refere às ocorrências inexplicáveis, prodigiosas ou fantásticas que contradizem as leis do mundo natural e não possuem explicação convincente.
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O narrador do Realismo Mágico Ontológico não está intrigado, perturbado ou cético ao sobrenatural, como na Literatura Fantástica; ele ou ela o descreve como se fosse uma parte normal do dia a dia da vida comum. Formalmente, o verdadeiro estilo empregado no Realismo Mágico Ontológico, no qual situações impossíveis são descritas de uma forma muito realista, representa o exato oposto da técnica de Verfremdung (estranhamento) usado no Realismo Mágico Metafísico. Exemplos do tipo ontológico são A metamorfose, de Kafka (1916), Viagem à semente , de Carpentier e algumas das histórias de Julio Cortázar, tais como Axolotes e Carta a uma senhorita em Paris . Esse tipo de texto pode ser interpretado às vezes no nível psicológico e os acontecimentos descritos vistos como o produto da mente de um indivíduo “perturbado”, como em Diário de um louco, de Gógol. Entretanto, eles deveriam ser vistos como mágico-realistas, por essas visões “subjetivas” serem endossadas pelo narrador “objetivo” impessoal, por outros personagens ou pela descrição realista dos eventos que acontecem numa estrutura normal e plausível. Ao invés de ter apenas uma realidade subjetiva, o irreal possui então, uma presença objetiva, ontológica no texto. Os contos de Julio Cortázar freqüentemente compactuam com ocorrências estranhas, inesperadas ou inexplicáveis. A antinomia, na maioria delas, é deixada irresoluta em seguida para produzir um efeito perturbador no leitor, como em A noite de barriga para cima acima , O ídolo das Cíclades , Continuidade dos parques e A ilha do meio-dia .
Essas histórias pertencem não ao Realismo Mágico, mas a um modo
específico relacionado à Literatura Fantástica. Em algumas histórias de Cortázar, contudo, a antinomia é forçada a apresentar o acontecimento sobrenatural como se não contradissesse a razão. Em Axolotes , por exemplo, o narrador explica no começo da história que ele é um axolote, uma criatura anfíbia do México, e então se põe a contar como ele se tornou um. Ele era um homem que se tornou obsedado pelos axolote quando visitou o aquário. Após estudá-los intensamente por muitos dias, ele realmente foi transformado num axolote. Nenhuma surpresa é expressa pelo narrador em face da ocorrência incomum: [...] não houve nada de estranho no que aconteceu. Minha cara estava grudada no vidro do aquário, meus olhos tratavam uma vez mais de penetrar no mistério desses olhos de ouro sem íris e sem pupila. Via de muito perto a cara de um axolote imóvel junto ao vidro. Sem transição, sem surpresa, vi minha cara contra o
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vidro, em vez do axolote vi minha cara contra o vidro, eu a vi fora do aquário, do outro lado do vidro. Então minha cara se afastou e eu compreendi.
Como em A metamorfose, de Kafka, em que no primeiro parágrafo o protagonista Gregor Samsa, acorda para se encontrar transformado num inseto gigante, a horripilante transformação é descrita quase acidentalmente. Não há antinomia aparente entre o natural e o sobrenatural. A afirmação de que o narrador é um axolote (“Agora sou um axolote”) é declarado no mesmo tom usado para descrever uma ação corriqueira (“Deixei minha bicicleta encostada nas grades e fui ver as tulipas”, p. 426). O corriqueiro e o extraordinário são retratados exatamente no mesmo nível de realidade. Cortázar não quer excitar seu leitor com mistério ou suspense. Nenhuma explicação é pedida, ou apresentada, para a incrível ocorrência. O leitor é simplesmente convidado a aceitar a realidade ontológica do acontecimento. Conclusões
Realismo Mágico é um rótulo que tem sido aplicado a um número de obras de arte e literatura de diferentes momentos no tempo. Inicialmente, parece que aqueles que usaram o termo, ou continuam a usá-lo, tem em mente conceitos completamente diferentes. Numa inspeção mais apurada, contudo, é possível detectar semelhanças e ligações entre os diferentes usos. Isso se faz necessário para fins de clareza, para diferenciar entre os vários tipos de obra que são caracterizadas como mágico-realistas. O fato de haver um grau de coincidência entre os três tipos de Realismo Mágico sugeridos aqui, e o fato de que obras de um mesmo autor podem pertencer a diferentes tipos, demonstra que eles estão todos relacionados de diferentes maneiras. Os romances realistas mágicos pertencentes à trilogia I nostri antenati , de Italo Calvino, por exemplo, são difíceis de classificar. Duas delas, O visconde partido ao meio (1951), na qual um homem é dividido por uma bala de canhão e continua a viver em duas metades separadas, e O cavaleiro inexistente (1959) sobre um conjunto vazio de armadura que se move como resultado de sua própria força de vontade, aproximamse da variedade ontológica porque partem de uma situação absurda inicial e prosseguem metodicamente a explorar os problemas práticos causados por ela seguindo na direção de um final imprevisto (como em A metamorfose, de Kafka). Elas, contudo, tomam emprestados elementos de fontes populares, tais como os contos de fadas, o teatro de bonecos Siciliano e as novelas de cavalaria medievais e, assim, aproximam-se também
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do tipo antropológico. O outro romance, O barão das árvores (1957), conta a estranha, mas não completamente impossível história, de que um garoto que sobe em árvores e se recusa a descer pelo resto de sua vida. Apesar desse incomum ponto de partida, o romance não narra qualquer acontecimento sobrenatural. Por essa única razão, deveria ser incluído no tipo metafísico, apesar de o seu tom evocar o humor brincalhão das histórias de aventura (a que Stevenson freqüentemente alude), ao invés da sinistra e melancólica atmosfera da maioria dos romances e pinturas mágico-realistas metafísicos. Crônica de uma morte anunciada de García Márquez, novamente, é caracterizada pela ausência de sobrenatural. A inevitabilidade de sua trama tem alguma das qualidades das tragédias gregas clássicas. Embora isso aponte para o metafísico, também se adapta bem ao antropológico, porque assume a visão de que a realidade é uma construção coletiva. Alguns críticos chamam a atenção para a semelhança estrutural entre o Realismo Mágico e a história de detetive, e embora tenham tipicamente em mente escritores argentinos como Borges, Bioy Casares e Anderson Imbert, a trama concisa, perfeita e bem trabalhada de Crônica fornece um bom exemplo dessa relação, sendo de fato uma história de detetive, embora às avessas. Finalmente, o fato de que os romances mágico-realistas antropológicos como Cem anos de solidão e Filhos da meia-noite,
de Salman Rushdie (1981) também fazem uso do instrumento estilístico do Verfremdung (estranhamento), característico do Realismo Mágico Metafísico, aponta para uma relação formal entre os dois tipos. O mais memorável exemplo é a cena em Cem anos de solidão , na qual Aureliano é levado por seu pai para ver o gelo pela primeira vez. Algo muito corriqueiro é apresentado como se fosse um verdadeiro prodígio, pois é descrito através dos olhos de um personagem para quem é esse o caso. William Spindler Universidade de Essex, Inglaterra, 1993.
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