Souza, Raquel Cristina Souza. a (Des)Construção Irônica Da Pornografia Na Trilogia Obscena de Hilda Hilst
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A (DES) CONSTRUÇÃO IRÔNICA DA PORNOGRAFIA NA TRILOGIA OBSCENA DE HILDA HILST
Raquel Cristina de Souza e Souza
Rio de Janeiro Agosto de 2008
A (DES) CONSTRUÇÃO IRÔNICA DA PORNOGRAFIA NA TRILOGIA OBSCENA DE HILDA HILST
Raquel Cristina de Souza e Souza
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos
Rio de Janeiro Agosto de 2008
A (des) construção irônica da pornografia na trilogia obscena de d e Hilda Hilst Raquel Cristina de Souza e Souza Orientador: Professor Doutor Wellington de Almeida Santos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Examinada por: _______________________________________________ __________________________ _______________________ __ Presidente, Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos _______________________________________________ __________________________ _______________________ __ Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ _______________________________________________ __________________________ _______________________ __ Profa. Doutora Ana Cristina de Rezende Chiara – UERJ _______________________________________________ __________________________ _______________________ __ Prof. Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ, Suplente _______________________________________________ __________________________ _______________________ __ Prof. Doutor Francisco Venceslau dos Santos – UERJ, Suplente
Rio de Janeiro Agosto de 2008
Para meus pais, Sérgio e Josefa.
AGRADECIMENTOS À CAPES, pela concessão da bolsa de pesquisa. Ao professor Wellington de Almeida Santos, pela orientação tão rigorosa quanto afetuosa. A Adauri Bastos, Elódia Xavier, Eucanaã Ferraz e Ronaldes de Melo e Souza, professores da pós-graduação, pela significativa contribuição na minha jornada acadêmica. Aos professores Cristiane Grando, Deneval Siqueira de Azevedo Filho e Eliane Robert Moraes, pela pronta e cordial resposta aos meus pedidos de bibliografia. Ao CEDAE/ IEL/ UNICAMP, pela disponibilização de material de pesquisa. À professora Adriana Maria Almeida de Freitas, pelo estímulo inicial e imprescindível para minha formação em Letras. Ao Vitor, pela paciência e amor infindáveis. A todos os amigos e familiares que não se cansam de me apoiar no que quer que eu faça.
O escritor e seus múltiplos vêm vos dizer adeus. Tentou na palavra o extremo-tudo E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura. A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito Tempo-Nada na página. Depois, transgressor metalescente de percursos Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra. Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar. A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo. O Caderno Rosa é apenas resíduo de um Potlatch. E hoje, repetindo Bataille: “Sinto-me livre para fracassar”. Hilda Hilst – 1989
RESUMO A (des) construção irônica da pornografia na trilogia obscena de Hilda Hilst Raquel Cristina de Souza e Souza Orientador: Professor Doutor Wellington de Almeida Santos
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). A tentativa de Hilda Hilst de inserir-se no mercado editorial culminou na trilogia pornográfica da qual fazem parte O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio. Textos grotescos (1990) e Cartas de um sedutor (1991). Entretanto, contrariando seus supostos objetivos de ganhar visibilidade e lucro, uma leitura cuidadosa dos textos – que reaquecem a polêmica em torno da representação do sexo em literatura – nos permite afirmar que a trilogia é na verdade o resultado de um projeto irônico que serve duplamente a uma postura crítica. Primeiro, porque questiona a realidade empírica, ou seja, a relação de subserviência da produção literária às leis do mercado, interpretada em termos de promiscuidade; segundo, porque empreende uma reflexão sobre o próprio fazer literário, sendo a quebra da ilusão ficcional a atitude irônica por excelência em literatura. O procedimento que articula os dois alvos da crítica hilstiana é a ficcionalização do escritor contemporâneo, dividido entre o clichê para conformar-se ao mercado e o experimentalismo para satisfazer seus anseios criativos. Nosso objetivo é demonstrar que na fusão de códigos conflitantes – o “culto” e o “de massa” –, que caracterizaria a produção cultural de nossa época, está o rendimento literário da trilogia, embora a apropriação consciente dos estilemas da pornografia comercial vise a problematizar as relações cada vez mais estreitas entre arte e capital. Assim, tomando o processo de construção de narrativas pornográficas como tema, a trilogia se configura como uma metapornografia de alto rendimento estético, cuja tessitura assinala por si só a opção de Hilda Hilst na contramão do mercado. Palavras-chave: Narrativa de ficção contemporânea. Pornografia. Mercado editorial. Realismo. Ironia.
Rio de Janeiro Agosto de 2008
ABSTRACT
The ironical (de) construction of pornography in Hilda Hilst’s obscene trilogy Raquel Cristina de Souza e Souza Orientador: Professor Doutor Wellington de Almeida Santos
da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Abstract
Hilda Hilst’s attempt to find a space in editorial market resulted in a pornographic trilogy – O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio. Textos grotescos (1990) and Cartas de um sedutor (1991) – which contradicts her assumed objectives of becoming famous and obtaining financial profit. A careful reading of the texts – which refocus the controversy around the representation of sex in literature – shows us that the trilogy is in fact the outcome of an ironical project that serves to criticism in two different ways: firstly, because it questions the empirical reality, that is, the subservient relationship between literary production and market laws, interpreted in terms of promiscuity; secondly, because it puts the literary construction under reflection – and the break of the fictional illusion is the ironical attitude par excellence in literature. The device that articulates the two targets of Hilst’s irony is the fictional thematization of the contemporary writer, who is divided between cliché and experimentalism. Our objective is to demonstrate that, like most of the cultural products of our times, the literary productivity of the trilogy is based on the conflict between the code of “high” culture and the code of “mass” culture. The features of the commercial pornography, however, are used critically by the author in order to question the increasingly close relationship between art and money. Thus, by making the process of elaboration of pornographic narratives a theme, Hilda Hilst elaborates a metapornographic trilogy of high literary productivity which places her work in the wrong way in relation to the market. Keywords: Contemporary narrative fiction. Pornography. Editorial market. Realism. Irony.
Rio de Janeiro Agosto de 2008
SIGLAS DAS OBRAS QUE COMPÕEM O CORPUS
CRLL – O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Globo, 2005. CETG – Contos de escárnio. Textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002. CS – Cartas de um sedutor . São Paulo: Globo, 2002.
SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO
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2. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A PORNOGRAFIA
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2.1. O conflito conceitual
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2.2. O imperativo realista
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2.2.1. Pornografia e indústria cultural
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2.2.2. Pornografia e literatura
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2.2.3. A ficção posta a nu
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3. O CADERNO ROSA DE LORI LAMBY
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3.1. A doce imoralidade infantil
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3.2. O caderno negro
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3.3. De como Lori aprendeu a usar a língua
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4. CONTOS DE ESCÁRNIO. TEXTOS GROTESCOS.
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4.1. Um irônico na terra dos pornógrafos, pulhas, velhacos, vis
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4.2. Entre a metafísica e a putaria das grossas
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5. CARTAS DE UM SEDUTOR
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5.1. Por trás da máscara do libertino
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5.2. Outra história pornéia a quatro mãos
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5.3. A palavra final
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6. CONCLUSÃO
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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1. INTRODUÇÃO (...) e um dos editores mais amável me disse: você escreve bem, minha querida, mas por que, hein, você não escreve uma novela Erótica? (Hilda Hilst)
O percurso da obra de Hilda Hilst confirma a regra do reconhecimento público apenas quando a morte do artista se aproxima – ou mesmo depois desta. Octavio Paz (1993) atribui tal fenômeno ao fato de a obra moderna (não no sentido cronológico do termo, mas na acepção de inovação, transgressão do estabelecido) requisitar do leitor um tempo de maturação para que este “desaprenda” o conhecido e possa assimilar o novo. No caso da autora em questão, esse tempo de maturação levou cerca de cinqüenta anos, durante os quais sua produção se avolumou e se diversificou: foram vinte livros de poesia e onze de ficção narrativa publicados. Também escreveu oito peças de teatro – tendo sido publicadas somente quatro delas – e crônicas para o Correio Popular de Campinas , reunidas posteriormente em livro. Parte da lentidão para que seu nome fosse arrolado como um expoente importante da literatura brasileira contemporânea e pudesse ganhar espaço considerável na mídia e na academia se deve a um histórico de sucessivas recusas por parte das grandes editoras em reeditar seus textos sob a alegação de que seu hermetismo formal e conteudístico dificultava a difusão da sua obra entre os leitores. A outra via possível eram as edições artesanais feitas por amigos ou em editoras menores, as quais contavam com tiragem igualmente pequena e distribuição deficiente, o que não permitia que seus livros tivessem fôlego para alcançar um público significativo em termos numéricos. Apesar disso, a obra da escritora foi contemplada inúmeras vezes com os prêmios literários mais importantes do país, o que nunca a satisfez de todo. Seu desejo manifesto, em entrevistas e em seus próprios escritos – desde Fluxo-floema (1970), sua primeira narrativa de ficção, já podíamos entrever a tematização de seu conflito com o mercado editorial – era que seu público fosse composto por leitores outros e mais numerosos que os do círculo restrito de especialistas que lhe concedia prêmios:
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Antes de morrer eu queria ser consumida, queria ver as pessoas lerem, porque não tem cabimento escrever a vida inteira para ninguém ler (...). De uma forma ou de outra, eu quero ficar no coração do outro. Escrevo porque tenho a intenção de permanecer, mas sei que sou transitória, efêmera, hóspede das coisas, de tudo. (O Globo, 1990, p.4)
Hilda Hilst chamou de “Maldição do potlatch” – “o poder da perda” – o estigma que a cercava e a impedia de ser reconhecida como escritora de valor. O termo faz referência a um ritual, primeiramente identificado no início do século XX entre os índios da costa oeste americana, que consistia na dissipação de suas riquezas como forma de acumular outro tipo de poder, a glória (CASTELLO, 1999, p. 93). A autora, sem modéstia alguma (como era de praxe em suas declarações), costumava dizer que insistia em escrever obras que eram uma riqueza da literatura brasileira, mesmo sabendo que o país faria questão de destruí-las gratuitamente. Uma dessas declarações ficou registrada em um poema na quarta capa do livro de poemas Amavisse (1989) e serviu de prenúncio para sua reação à indiferença devotada a seus livros. Descartando-se o que pode haver de excesso de vitimização, é fato que a vendagem de seus livros sempre foi ínfima devido à falta de divulgação e má distribuição. A situação só começou a mudar em 2001 (a escritora morreu em 2004), quando a editora Globo passou a reeditar sua obra completa. Até então, Hilda Hilst não tinha podido viver integralmente da literatura. Isso explica sua cólera, na década de noventa, ao ter a notícia de que o best-seller de Régine Dèforges, A bicicleta azul , tinha rendido dez milhões de dólares à sua autora: Falei: ‘Não acredito’. Como é que eu, com essa minha cabeça esplendorosa, não ganho dinheiro nem para meu sustento? Quer saber, Hilda Hilst, quer saber? Você agora vai escrever textos que todo mundo compreenda e vai colocar a problemática do sexo de uma maneira diferente, nova, chula. Foi o que eu fiz. ( Marie Claire, 1991, p. 22)
O best-seller em questão nada tem de pornográfico stricto sensu, pelo contrário: é um romance açucarado e clichê. Assim, podemos perceber que o que subjaz à opção deliberada e amplamente divulgada da autora pela literatura “não séria” como forma de ganhar visibilidade e lucro – atitude que culmina na trilogia pornográfica composta por O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio. Textos grotescos
(1990) e Cartas
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de um sedutor
(1991) – é a visão, compartilhada por um dos interlocutores que aparece
mais freqüentemente em sua obra, o romancista D. H. Lawrence, de que à pornografia pertenceriam os produtos da indústria cultural (de que o mercado editorial é parte importante). O que está em jogo nesse alargamento do significado da pornografia é a questão financeira como imperativa na sociedade contemporânea. Tal associação semântica emerge da própria etimologia grega do termo, oriundo de pornos (prostituta) e graphein (escrever),
a partir dos quais temos “escritos sobre prostitutas” (MORAES e
LAPEIZ, 1984, p. 7). O termo pornos advém do verbo permeni, vender, o que remete finalmente ao comércio do sexo que caracteriza a profissão milenar e, por extensão, ao fenômeno moderno da compra e venda de produtos que visam a fins afrodisíacos (CASTELLO BRANCO, 1987, p. 22). Como podemos verificar, não é nova a ligação sexo-dinheiro, mas na sociedade contemporânea, pós-industrial e tecnicista, também o corpo virou produto e foi tragado pela técnica da reprodução em massa. Está não só nas publicações de tarja preta proibidas para menores como também é instrumento sutil da publicidade e da propaganda: o apelo erótico se associa a qualquer tipo de produto como recurso retórico para convencer o consumidor a experimentar o prazer de comprar. O corpo deixou de ser o lugar da transgressão para ser cada vez mais banalizado e domesticado pelas forças produtivas. Não é por acaso, então, que as relações atuais entre cultura e mercado têm sido definidas em termos de promiscuidade pelos críticos da sociedade de consumo, aproximando-as do conceito de pornografia e, assim, atestando na teoria o que Hilda Hilst propôs ficcionalmente. Adorno, por exemplo, defende que o comércio cultural contemporâneo é pornográfico e puritano, já que estimula a todo preço o prazer do consumidor ao mesmo tempo em que o priva de satisfazer seus anseios: “É justamente porque nunca deve ter lugar, que tudo gira em torno do coito.” (1997, p.132) O que a “indústria do erotismo” faz, segundo o autor, é abrir brechas controladas de diversão para manter o indivíduo sempre pronto a produzir para o sistema sem objetar. É similar a opinião de Baudrillard, o qual coaduna o modo de produção e de circulação dos corpos característico da pornografia com o modo de produção e circulação do dinheiro na sociedade capitalista: Essa obrigação de liquidez, de fluxo, de circulação acelerada do psíquico, do sexual e dos corpos é a réplica exata da que rege o valor mercantil: é preciso que o capital circule, que não haja ponto fixo, que a cadeia dos
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investimentos e reinvestimentos seja incessante, que o valor se propague sem trégua – essa é a forma da realização atual do valor e da sexualidade, o modelo sexual é o seu modo de aparecimento no nível dos corpos. (1992, p. 47)
É claro que não há nada de surpreendente na comercialização de bens culturais, nem nas concessões que o artista sempre teve de fazer em favor de interesses outros que não os meramente pessoais e estéticos, como os do clero e os da nobreza. O ostracismo a que artistas inovadores são relegados em vida, para terem suas obras reconhecidas só postumamente, é inclusive lugar-comum no imaginário geral. Mas a questão ganha conotação apocalíptica no mundo contemporâneo devido a uma mudança de grau e de natureza no comércio das artes acarretada pelo advento da indústria cultural e de seu alicerce indispensável, a sociedade de consumo. Segundo Fontius (1983), na segunda metade do século XVIII, a dependência do artista ao mecenas começa a dar lugar a uma relativa independência artística e financeira, em virtude da formação de um mercado literário para os livros que começavam a ser produzidos e comercializados segundo a nova lógica industrial. Essa independência, porém, logo foi revertida em uma forma ainda mais cruel de subjugação: as comunicações de massa do século XX possibilitaram o surgimento de um público gigantesco e anônimo que aos poucos substituiu a proteção do antigo mecenas na tarefa de julgar a obra e garantir a sobrevivência financeira do escritor. Já no próprio século XVIII o novo relacionamento do artista com o mercado era visto com desconfiança e gerava grande alarma em relação à subordinação da literatura às leis econômicas do laissez-faire (WATT, 1965), tendo em vista a exigência dos incipientes editores de que os escritores escrevessem romances tautológicos para atender à população recém-alfabetizada. É interessante, a este respeito, a menção que Fontius faz de uma declaração feita por Schiller em 1791: Sei por fim que em nosso mundo literário é incompatível satisfazer ao mesmo tempo os reclamos exigentes da arte e proporcionar à sua atividade letrada a sustentação necessária. Há dez anos que me esforço em fundi-los, mas, para consegui-lo apenas em certa medida, sacrifiquei a minha saúde. (1983, p. 150-151)
Além do alargamento do público receptor, as obras literárias passaram a assumir-se abertamente como bens de consumo, mudando a lógica da produção cultural, que começou a organizar-se quase que exclusivamente de acordo com os ditames do mercado,
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suplantando cada vez mais considerações artísticas. O autor, tendo se profissionalizado, tornou-se o produtor de mercadoria; os leitores, de receptores da obra de arte, passaram a simples consumidores. A cadeia produtiva se completa com a presença do editor, aquele que representa os interesses da empresa capitalista famélica por lucro e conseqüentemente é o responsável, juntamente com a equipe de marketing , por manter as engrenagens da grande indústria editorial funcionando. A ele o autor-produtor deve se render – nem sempre sem dor, como vimos na citação anterior – se quiser disputar um lugar nas prateleiras das livrarias. Ao fazer parte da indústria cultural, o comércio literário acaba por assimilar suas características: “a qualidade média, a pouca duração e o rápido consumo.” (PAZ, 1993, p.104) As fórmulas pré-fabricadas travestidas de novidade fazem parte da receita básica de qualquer best-seller comercial – o grande pilar da indústria editorial –, de modo que cada vez mais se produz em quantidades maiores para atender a uma massa aparentemente informe de leitores-consumidores sedentos por novidades descartáveis. O critério avaliativo do livro é agora sua rentabilidade, como no restante das relações capitalistas: quanto mais compradores, melhor a obra. Não é difícil percebermos que os valores caros à arte têm sido substituídos pelos meramente econômicos. Tende-se a julgar a mercadoria livro como qualquer outra mercadoria, como se não houvesse distinções qualitativas entre aquele e o restante das produções em série que visam ao consumo direto e à satisfação imediata de necessidades. Tal deslocamento axiológico tende a descaracterizar o fenômeno literário e a acarretar a perda de sua autonomia enquanto objeto artístico, já que a condição para assim assumir-se reside justamente na negação de sua finalidade social em termos utilitários. Hoje, a obra é definida pelo seu valor de troca, como qualquer outra mercadoria: “O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor.” (ADORNO, 1997, p. 148) É nesse contexto que se instala preocupação do escritor contemporâneo: como diferenciar sua produção do restante dos livros, raramente preocupados com a qualidade literária, de que a indústria editorial em larga medida se sustenta? Nesta perspectiva, podemos dizer que a decisão de Hilda Hilst de enveredar pelas “bandalheiras” para reverter o quadro desfavorável em que se encontrava e ser reconhecida ainda em vida se insere num contexto maior de crítica ao mercado editorial e à posição do
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escritor na contemporaneidade. Nossa reflexão neste trabalho partirá, então, do que as próprias obras a serem analisadas sugeriram como caminho interpretativo a seguir: a relação entre literatura e mercado, já que nelas a questão é ficcionalizada e problematizada. Outros estudiosos abriram os precedentes para que a produção contemporânea, tão heterogênea, pudesse ser lida também à luz dos questionamentos suscitados pelo desenvolvimento desenfreado da indústria cultural. Seguimos os passos de Tânia Pellegrini (1993) e Therezinha Barbieri (2003). A perspectiva adotada será a literária, tendo em vista o fato de os textos serem estudados em sua tessitura, estando excluídos, desta forma, os elementos biográficos e sócio-históricos. O único elemento extraliterário a ser considerado são as entrevistas concedidas por Hilda Hilst nas quais anunciou sua incursão pela literatura pornográfica ou comentou sobre a publicação desta. Não temos dúvidas de que as declarações da autora à impressa na época da publicação da trilogia (e mesmo depois disso) de que estaria enfim cedendo às pressões do mercado ao escrever livros fáceis e palatáveis ao gosto médio devem ser vistas como parte de um projeto irônico que se completa com sua narrativa 1. Cotejando as várias entrevistas que concedeu, podemos perceber contradições patentes que revelam ser insustentável sua intenção de fazer literatura puramente comercial. Em entrevista à revista Elle de junho de 1994, frente ao comentário do jornalista de que ela “falava muito em dinheiro”, a autora retruca: “Acho dinheiro delicioso. Fico alegríssima com dinheiro. Ele muda completamente a minha vida.” (p. 48) Nos Cadernos de Literatura Brasileira, publicados em 1999, Hilda Hilst assume que a motivação para escrever a trilogia foi financeira: “Eu estava muito atrapalhada, só recebia dinheiro da Universidade de Campinas. Não ganhava praticamente nada. De repente, leio sobre aquela mulher ganhando todo aquele dinheirão” [Régine Dèforges, autora do best-seller A bicicleta azul ]. Outros depoimentos, porém, são incoerentes com seu afã declarado por lucro. Em 1990, no auge das controvérsias causadas pelo recém-lançado Contos de escárnio/ Textos grotescos, a autora declara peremptoriamente ao jornal O Globo: “Nenhum escritor verdadeiro escreve por fama ou dinheiro. Ele quer ser lido. Não adianta fazer uma obra-prima se ninguém lê”. E mais adiante: “De início, tudo aconteceu com a cólera. Começou quando eu percebi o que me pagavam. Não é questão de querer dinheiro, mas de sentir que você não vai ganhar coisa 1
O livro de poemas publicado em 1992, Bufólicas, também faz parte de seu projeto irônico. Porém, por pertencer a gênero diverso e trabalhar a questão da pornografia de forma diferenciada em muitos aspectos, não será contemplado neste trabalho.
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alguma com sua cabeça, mesmo tendo escrito livros de primeiríssima qualidade”. Em 1997, em entrevista para o mesmo jornal, a autora reitera o desmentido do que já tinha virado lugar-comum: “Muitos acham que com a fase erótica eu vendi barbaridades. Que nada! Houve muito barulho, muita crítica boba, disseram que eu estava fazendo pornografia para ganhar dinheiro. Bobagem, todos sabem que nunca liguei para dinheiro”. A ironia de suas declarações controversas se materializa em sua ficção, já que a elaboração desta nega em aspectos fundamentais seu intuito confesso de atingir o grande público, seja pelo reconhecimento puro e simples ou pelo lucro. O rebuscamento formal de sua escrita necessariamente vai de encontro às expectativas do gosto médio que caracteriza o público de massa, de forma que sua tentativa aparentemente obstinada de inserir-se no mercado termina em fracasso – de vendas. Pois que, assumindo-se “livre para fracassar”, como assinala em seu poema-prenúncio, Hilda Hilst se arrisca em uma pesquisa formal de resultado exemplar nas Letras Brasileiras, contrariando – conscientemente – a cartilha da literatura de mercado. A tessitura mesma das narrativas nos mostra que a autora não fez literatura palatável não por não ter conseguido, mas porque não quis. Preferiu a via do deboche e da reflexão. A trilogia desconstrói o discurso pró-leitor senso comum 2 também por ter a ironia como seu princípio de composição. Em primeiro lugar, por questionar a realidade empírica – a relação de subserviência da produção literária às leis do mercado, interpretada em termos de promiscuidade. Em segundo lugar, porque empreende uma reflexão aguda sobre o próprio fazer literário, sendo a quebra da ilusão ficcional a atitude irônica por excelência em literatura. O deboche é marca indelével das três narrativas e somente ao lê-las em profundidade nos damos conta de que o discurso hilstiano de despedida da literatura “séria” era na verdade uma mise en scéne. O rebuliço que causou – apesar de ter sido tão efêmero quanto os best-sellers que lhe serviram de inspiração para tal empreitada – e os amigos que perdeu quando da publicação da trilogia atestam uma intenção pornográfica indiscutível, a qual não pode ser categoricamente negada em favor de uma visão enaltecedora da escritura hilstiana de que esta estaria imune ao rebaixamento pornográfico. O escândalo excessivo em torno da imagem de pornógrafa sexagenária obliterou o significado latente das três narrativas, qual seja, o da reflexão crítica, e acabou contribuindo para a reafirmação do estereótipo 2
Expressões como “leitor ingênuo”, “leitor (senso) comum” e “leitor médio”, utilizadas ao longo deste trabalho, referem-se àquele leitor que “se sente mais à vontade no explicado do que no enigma”. (SANTIAGO, 1983, p. 96)
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reducionista da excentricidade que já rodeava a autora, em virtude de seu isolamento desde jovem em um sítio em Campinas (a “Casa do sol”) para dedicar-se à literatura e de suas experiências para contatar espíritos. Só o sentido da superfície se consolidou e a ironia foi percebida por poucos. Mesmo os que notaram a excelência dos textos que se apresentavam tematicamente chulos insistiram no fato de a trilogia não ser pornográfica, devido ao refinamento das estratégias literárias que elidiriam o pressuposto básico desse tipo de narrativa, a excitação física do leitor. Ou seja: também ignoraram a leitura dupla que as obras suscitavam ao se pautarem em um conceito estrito de pornografia, aquele que a vincula à indústria cultural. Dessa maneira, o segundo capítulo desta dissertação visa a discutir certas questões teóricas acerca da pornografia como categoria estética para assim esclarecer a pertinência do rótulo de “pornográfica” para a trilogia hilstiana. A primeira parte do capítulo se atém às diferenças entre a pornografia comercial e a esteticamente trabalhada, enquanto que a segunda parte se pauta em considerações a respeito da ironia como estratégia antiilusionista em literatura, uma vez que o traço mais ressaltado como definidor do gênero pornográfico é justamente a utilização de técnicas miméticas com vistas à construção de um efeito de real, que se concretiza na função afrodisíaca que se diz ser definidor desse gênero literário. O uso da pornografia por Hilda Hilst é extremamente funcional para seus propósitos irônicos, pois que se configura como metáfora, tal qual insinuamos mais acima, para a situação da literatura na sociedade contemporânea. Isso porque o estreitamento das relações entre o produtor da obra e o responsável por sua divulgação e circulação não raro é interpretado em termos de promiscuidade, já que o escritor muitas vezes deve abrir mão de seus princípios em favor das exigências do mercado. A analogia fica patente no procedimento de ficcionalização de elementos do contexto extraliterário que se quer criticar, ou seja, os representantes da cadeia produção-circulação-consumo (leia-se escritor-editor-consumidor). O elemento que estrutura as três narrativas é justamente a ficcionalização do escritor contemporâneo – a própria Hilda. É essa mise en abyme que acaba por articular os dois propósitos irônicos da autora, pois a tematização narrativa do contexto extraliterário, além de chamar a atenção para as condições insatisfatórias de produção externas ao texto, joga certa luz para o livro enquanto objeto físico e, conseqüentemente, para as condições de produção internas do texto, ou seja, para a narrativa enquanto artifício.
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Tal procedimento, porém, se complexifica na medida em que a projeção especular do escritor no texto se dá de forma dupla: a cada uma das três narrativas são atribuídos dois autores ficcionais, os quais objetivam dar forma à crise do autor contemporâneo, dividido entre o clichê (para garantir espaço no mercado) e o experimentalismo (para satisfazer seus anseios criativos). A autoria ficcional e dupla estiliza esse aspecto da consciência cindida do escritor na medida em que o autor ficcional que representa a metade clichê (Lori Lamby, Crasso e Karl, respectivamente) tem como elemento característico ser mais afeito à matéria obscena, manipulando sem remorso as regras da pornografia comercial. Todos estão escrevendo seu primeiro livro e a motivação para tal não é de forma alguma literária: Lori escreve para ajudar o pai financeiramente; Crasso é um mero oportunista e Karl virou escritor por acaso. Além disso, todos três também têm em comum o contato com o dinheiro facilitado de alguma forma: Lori supostamente se prostitui, Crasso ficou rico com negócios escusos e Karl nasceu em berço de ouro. A metade experimental, por sua vez (o pai de Lori, Hans Haeckel e Stamatius), é composta por autores gênios sem perspectivas de sucesso editorial por não conseguirem escrever de acordo com a lei da oferta e da procura. A penúria financeira desses escritores-personagens é enfatizada como contraponto importante em relação aos autores não-experimentais. Desta forma, identificamos a segunda característica funcional que a escolha pela narrativa pornográfica oferece ao projeto irônico hilstiano. Além de metaforizar a teia de conexões duvidosas que está por trás das novas regras às quais a produção literária está submetida, a pornografia, por ser um gênero exemplar da literatura de mercado, apresenta o traço estrutural básico de um produto da indústria cultural: as fórmulas de composição. Assim é que a autora se apropria dos procedimentos caros ao gênero com o intuito evidente de problematizá-los no contexto geral da narrativa, o que acaba por tornar a questão da consciência cindida do escritor um falso problema, pois que a própria utilização do clichê é elemento indispensável ao percurso experimental da narrativa. A co-existência da convenção com a pesquisa estética presente na narrativa hilstiana pode ser lida segundo o conceito de double coding cunhado por Charles Jenks e referido por Umberto Eco em texto sobre as características da narrativa dita pós-moderna. Tal conceito, inicialmente aplicado à arquitetura, diz respeito à dupla possibilidade de interpretação suscitada pela mescla de elementos díspares: “O edifício ou obra de arte pósmoderna dirigem-se simultaneamente a um público minoritário de elite, usando códigos ‘altos’, e a um público de massa, usando códigos populares.” (JENKS apud ECO, 2003, p.
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200-201) O apagamento das fronteiras entre a alta cultura e a cultura de massa é ainda explorado por Jameson (2007) como sendo o traço distintivo da produção cultural pósmoderna em contraposição à moderna, que procurava salientar o fosso existente entre ambos os tipos de produção. Outros autores, como Edoardo Sanguineti (1969) e Eduardo Subirats (1991), também abordam a questão da apropriação das conquistas formais das vanguardas artísticas pela cultura de massa, embora o façam enfatizando os aspectos negativos do fenômeno. Ambos referem-se ao fato de o princípio de choque e ruptura que definia as vanguardas ter sido integrado ao que antes era alvo de crítica: o gosto conservador e a lógica mercantil 3. Umberto Eco, mais imparcial, acredita ser possível que os estilemas experimentais transpostos para a literatura de consumo não se tornem necessariamente banalizados. Embora ele afirme que seja o que comumente acontece, não é raro suceder que tal recontextualização se apresente de forma produtiva, tanto se considerarmos narrativas de consumo que se apropriam das conquistas das vanguardas de forma original quanto se pensarmos em obras de arte que utilizam estilemas populares. Ao abordar o caso específico da literatura, o autor destaca certos procedimentos narrativos de ruptura e inovação que vieram a ser incorporados pela literatura de mercado, como a polifonia e o monólogo interior, e enceta uma discussão sobre a natureza do best-seller de qualidade: seria este um romance de vocação popular que se utiliza de estratégias “cultas” ou um romance “culto” que passa a ser amplamente aceito por uma transformação das tendências do público leitor? A indagação torna-se ainda mais pertinente porque Umberto Eco é autor do bestseller O nome da rosa (1980), que teve no double coding de sua estrutura a garantia do sucesso de vendas. A trama policial, combinada ao refinamento das estratégias literárias (romance histórico, prenhe de referências eruditas, estruturado sob a forma de narrativas encaixadas e conseqüente complexidade das instâncias mediadoras do relato), atraiu tanto os leitores mais exigentes quanto os menos sofisticados. É esse também o caso do brasileiro Rubem Fonseca, que com igual preferência pelo romance policial, consegue 3
Há de se salientar, no entanto, o descompasso que sempre identificamos entre a obra de arte à frente de seu tempo e a crítica que a acolhe, o que problematiza a questão. É possível que, em muitos casos, a absorção do experimentalismo pelo gosto dominante signifique apenas que o aparato da crítica se modernizou com certo atraso. Silviano Santiago (1989) nos lembra que, no início da década de vinte do último século, ninguém ousava chamar Memórias sentimentais de João Miramar de romance, por exemplo. Esse fenômeno é responsável também por um processo de institucionalização da vanguarda que resultou no chamado alto modernismo, ou seja, a canonização do que surgiu como transgressão do estabelecido. (Jameson, 2007; Barth, 1997; Paz, 1993)
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reunir apuro estético aos ingredientes do gosto popular e assim garantir freqüentemente um espaço nas listas dos mais vendidos. O fato de a trilogia não ter se tornado um best-seller apesar do double coding característico desse tipo de obra se explica, mais uma vez, pelo recurso à ironia. Os códigos populares da pornografia encontrados nas narrativas da trilogia não desempenham o mesmo papel que os empregados no double coding da arquitetura ou da literatura de mercado. Isso porque sua utilização é uma brincadeira consciente com as convenções para atacar o clichê, configurando-se desta forma recurso paródico que garante aos textos a espessura de narrativas metapornográficas, altamente elaboradas esteticamente e, portanto, de difícil penetração no mercado editorial. Dessa forma, a satisfação concomitante do gosto esteticamente refinado e do gosto popular a que almejam as obras que empregam o double coding é
algo rechaçado pela leitura da trilogia obscena de Hilda Hilst. Ao leitor
ingênuo – ou “semântico” (ECO, 2003), ou seja, aquele leitor que se prende ao enredo – a narrativa hilstiana se torna simplesmente impenetrável. Ao leitor mais arguto – ou “estético” (Ibidem), ou seja, aquele que vai além do enredo e busca fruição estética no rendimento literário – restam três alternativas: 1) reconhecer a mistura de estilemas cultos e populares e ignorar sua validade estética; 2) reconhecer tal mistura e supervalorizar os estilemas cultos; 3) comprazer-se no reconhecimento mesmo do rendimento literário suscitado por tal mistura. Nossa opção, claro está, é pela terceira via. Cada capítulo dedicado a uma das narrativas da trilogia terá por escopo expor de que forma o projeto irônico de Hilda Hilst se configura na tessitura de cada uma das obras. O foco principal será o elemento estrutural comum aos três livros, o qual articula os dois objetivos irônicos da autora: a autoria ficcional dupla, que comparece às narrativas num continuum que vai da sobreposição das falas Lamby,
dos dois escritores em O caderno rosa de Lori
provocando uma confusão de autoria, até a divisão de diferentes livros (dentro do
mesmo livro) para cada um dos dois diferentes autores ficcionais de Cartas de um sedutor. Não se perderá de vista, para tal, a distinção autor/ narrador, imprescindível para a interpretação de qualquer narrativa de ficção. Além disso, serão contemplados os traços característicos, formais e conteudísticos, que individualizam cada uma das três narrativas. Nossa perspectiva será, portanto, comparativa. Pretendemos deixar claro ao final de nosso trabalho que a trilogia obscena de Hilda Hilst tem dupla leitura, ambas interdependentes, impossíveis de serem dissociadas, sob pena de prejuízo à compreensão do projeto irônico da autora. Elementos previsíveis da
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pornografia comercial combinam-se com o experimentalismo desde sempre presente na prosa hilstiana como forma de reafirmar a força da imaginação criativa frente ao conformismo. Sendo metapornografia, a trilogia não deixa de ser pornográfica, mas filtrada pelo crivo crítico da ironia.
CAPÍTULO 2: ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A PORNOGRAFIA 2.1 O conflito conceitual There is no such thing as a moral or an immoral book. Books are well written, or badly written. That is all. (Oscar Wilde)
Para além da polêmica causada pela publicação trilogia obscena, responsável por estereótipos reducionistas que só fizeram acentuar a conotação marginal da “escritora maldita”, a crítica especializada não hesitou em estudá-la mais criteriosamente. Esta parece unânime em afirmar que Hilda Hilst na conseguiu, como queria, escrever pornografia. O motivo seria o alto grau de manipulação estética atingido pela autora, o que iria de encontro aos pressupostos básicos desse tipo de narrativa, tão afeito à linearidade e ao clichê. Além disso, o hermetismo do texto comprometeria o efeito físico que se pretende provocar no leitor e que definiria o gênero. O que está por trás desse tipo de julgamento, balizado por críticos renomados como Alcir Pécora (1991, 2005) e Deneval Siqueira de Azevedo Filho (2002), é a conceituação de pornografia como gênero comercial, produto da cultura de massa. Claro que a deixa para que a trilogia hilstiana fosse interpretada à luz de tal conceito foi dada pela própria autora, já que, como vimos anteriormente, esta fez questão de divulgar abertamente seu intento de escrever coisas “porcas” para adequar-se ao mercado. De fato, Hilda Hilst não fez pornografia comercial, mas não porque sua imaginação criativa superior a tenha afastado de seu intento inicial tão bem delimitado. A crítica especializada não considerou como irônicas as declarações da autora e levaram demasiado a sério o pressuposto de que seu objetivo maior era ver seus livros nas prateleiras dos best-sellers comerciais. Ignoraram, por exemplo, o fato de que, se almejasse verdadeiramente agradar os editores, estes não estariam tão expostos ao ridículo como acontece nas três narrativas. Imaginamos que nenhum deles assumiria a própria torpeza e aceitaria de bom grado divulgá-las, a não ser que se justificasse como uma estratégia absurda de marketing. A manipulação hábil das convenções da pornografia comercial presente na trilogia demonstra que Hilda
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Hilst conhecia muito bem o funcionamento do gênero, de forma que, se seu texto não ficou palatável, foi por decisão consciente. Talvez o fato de a pornografia e a literatura se definirem constantemente por categorias mutuamente excludentes possa ter influenciado no juízo de valor da trilogia, já que, sendo esta literatura de alta qualidade, chamá-la pornográfica seria necessariamente negar a primeira afirmação. Por medo de macular a obra hilstiana, preferiu-se negar cabalmente seu estatuto pornográfico. Alcir Pécora, porém, insinua uma brecha para que seja revista a atribuição de tal rótulo à trilogia em seu artigo publicado na revista virtual de literatura e arte Germina em 2005: A sugestão de literatura pornográfica aplicada ao conjunto dos 4 textos, a rigor, também deve ser afastada como imprópria, a menos que os seus termos sejam redefinidos. Isto porque a crueza desses escritos não tem jamais como efeito ou propósito a excitação do leitor, a não ser que o leitor se trate (como me esforcei para imaginar certa vez) de um tarado lexical, de um onanista literário – tipo de excentricidade que, não duvido, deva existir no mundo.
O autor não chega a insistir na questão da pertinência do rótulo, embora toda a sua esmiuçada análise dos procedimentos estilísticos que fazem dos textos hilstianos em questão obra de arte contribua para ratificar o outro conceito com o qual, na esteira de Susan Sontag (1987), trabalharemos: o de pornografia estetizada. As controvérsias que envolvem a obra a esse respeito inserem-se em um contexto mais abrangente do qual faz parte a questão antiga e nebulosa da relação entre arte e pornografia. Definir esta última é empresa na qual todos os estudiosos do tema se arriscam, embora concordem quanto à imprecisão de qualquer delimitação. Primeiramente, porque a questão moral impede uma apreciação isenta de preconceitos, de modo que freqüentemente se coaduna imoralidade com má literatura. A história da pornografia moderna, como bem demonstram Loth (1961) e Hyde (1966), se confunde com a história de livros censurados sob a alegação de ofensa à decência e aos bons costumes 4. A conceituação do termo acaba por ficar sujeita à apreciação subjetiva de quem julga sem a isenção devida, o que contribui para a disseminação da idéia de que tais livros considerados imorais necessariamente corrompem quem os lê. Foi a confusão de critérios éticos e estéticos a responsável pela censura de obras como Madame Bovary, de Flaubert, e As flores do mal , de Baudelaire 4
Veremos em breve que esta não era a única razão para a censura dos livros ditos obscenos.
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(ambas em 1857), O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (em 1890), além de Ulisses, de James Joyce (proibida nos Estados Unidos até 1933) – nenhuma delas tendo como imperativo a exibição de corpos desnudos e a excitação do leitor. No Brasil, é exemplar o caso de Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, censurado quando de sua publicação em 1975 sob a mesma alegação: conduz o indivíduo que o lê à degradação moral. A defesa da obra feita por Afrânio Coutinho , perito do caso, é um verdadeiro tratado sobre independência da esfera artística em relação à esfera ética, no que tange ao trabalho do crítico de arte: (...) na luta entre a arte e a censura, a vitória tem sido sempre, dentro ou fora dos tribunais, a favor da arte: Wilde, Lawrence, Joyce... Todas as obras literárias ditas obscenas foram afinal liberadas. A censura é que foi condenada. E a vitória coube à arte universal, grande, de todos os tempos e lugares. (1979, p. 39)
Acrescentemos que os parâmetros que regulam o que deva ou não ser mostrado em relação à sexualidade são fluidos e variáveis de acordo com o tempo, o lugar e a cultura. A concepção do que seja pornográfico, assim, também dependerá de fatores contextuais. Exemplo disso é a peça de teatro Lisístrata, escrita por Aristófanes no século IV a. C. e proibida nos Estados Unidos até a década de cinqüenta por ter sido acusada de obscena – fato inconcebível na cultura grega em que foi produzida, cujas normas sociais de regulamentação da atividade sexual dos indivíduos diferiam sobremaneira das nossas. Uma ilustração mais atual seria o caso dos “lolicoms” (nome derivado de lolita complex) no Japão: revistas que contemplam meninas em poses provocantes, seja no estilo mangá (desenhadas) ou em fotografias. Desde que essas meninas não apareçam nuas, a publicação e o consumo desse material indubitavelmente pornográfico para o ocidente não é crime, e há quem diga que as estatísticas de violência sexual contra menores despencaram depois de sua liberação. O problema da conceituação da pornografia se complica ainda mais quando vêm à tona os conceitos afins de obscenidade e erotismo. A fronteira entre os três termos é precariamente demarcada, a ponto de muitas vezes serem utilizados intercambiavelmente. Importa para nós certa sistematização não por mero gosto pela rotulação, mas antes porque é necessária como instrumento de análise crítica. A etimologia de “obsceno”, apesar de obscura, é referida quase que invariavelmente pelos estudiosos do tema, como Hyde (1966) e Arango (1991), como sendo uma corruptela do latim scena, significando literalmente “fora de cena”. Isso quer dizer que pode ser considerado obsceno o que é exibido às vistas
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de todos mas deveria ser mantido em segredo. Tal concepção nos remete não só às questões ligadas à sexualidade humana, tabu por excelência. Hyde (1966) faz questão de nos lembrar que, se toda pornografia é obscena, nem toda obscenidade é pornográfica. Também é tabu e, portanto, deveria manter-se na esfera do não dito, a referência aos atos excrementícios. O tabu lingüístico está estritamente ligado ao social, de modo que a interdição da palavra obscena é uma forma de negar a natureza em nós, homens racionais e civilizados. As duas esferas, a sexual e a escatológica, não por acaso aparecem comumente associadas. Ambas, por um processo de deslocamento semântico bastante sutil, estão associadas à noção de nojo. São práticas sujas porque ligadas ao corpo e não à abstração da razão e da alma e tal repugnância – aprendida, e não natural – é estratégia eficaz para manter a sexualidade no campo da restrição, do segredo e da culpa. Santo Agostinho foi quem melhor traduziu a negação do corpo pela associação com a impureza em seu famoso “Nascemos entre o excremento e a urina”. (apud BATAILLE, 2004) Tanto o erótico quanto o pornográfico podem ser considerados como obscenos, na medida em que pretendem, cada um a seu modo, transgredir o interdito imposto à sexualidade. Fazem-no, porém, de forma diferenciada. Podemos nos apropriar das palavras de José Paulo Paes (1990), adequando-as à nossa reflexão: o erotismo trata a obscenidade de forma sublimada, visando a atiçar a curiosidade pelo que sugere por metáforas e outros artifícios alusivos. A pornografia, por sua vez, está atrelada ao escândalo da revelação sem meandros da sexualidade. A definição de pornografia feita por Peter Wagner como sendo “a representação realista, escrita ou visual, de órgãos genitais ou condutas sexuais, que implica a transgressão deliberada da moral e dos tabus sociais existentes e amplamente aceitos” (apud HUNT, 1999, p. 30) corrobora a visão de José Paulo Paes e se presta à nossa interpretação. Não temos dúvida de que a obscena senhora Hilst, na trilogia, tendo em vista a recepção da crítica e dos amigos, optou por este segundo viés. Tal diferenciação, embora não pretenda ser cabal, serve de guia para nossa interpretação e almeja romper com a dicotomia não raro encontrada no meio acadêmico quanto aos dois conceitos acima referidos. Erotismo e pornografia, segundo a concepção mais difundida, diferenciam-se no tocante à definição de literatura. Desta forma, na primeira categoria estariam inscritas obras de tema elevado e forma elaborada, portanto, de valor artístico incontestável. Dignificariam o homem e o amor, opondo-se à existência meramente mecânica do corpo. À segunda categoria pertenceriam obras sem valor artístico, que rebaixam o homem por um processo de vulgarização e dessacralização do
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corpo. Ofendem gratuitamente o pudor pela utilização de temas e palavras grosseiros. Além de certo tom moralista, a distinção se mostra frágil e por vezes paradoxal quando da argumentação de seus defensores. Aos Sonetos Luxuriosos, de Pietro Aretino, por exemplo, produzidos no século XVI, não é negado valor artístico, vide sua menção obrigatória em antologias/ histórias de literatura erótica. Ninguém duvida, no entanto, que a representação das relações sexuais em tais poemas não é nem de longe pudica, alusiva ou sublime. Outro aspecto importante a salientar é que essa dicotomização muitas vezes oculta outra: a oposição entre a cultura superior, reservada aos poucos letrados iniciados em estética, e a cultura de massa, destinada a atender um público numeroso porém inferior porque inculto e educado pelo audiovisual. Inerente a tal julgamento está a idéia, para muitos obsoleta e ingênua, de que a arte baseada em princípios econômicos é necessariamente arte ruim. Assim é que o caráter meramente comercial de boa parte da pornografia produzida as inclui no rol das mercadorias promiscuamente anunciadas e vendidas pela indústria do entretenimento e, por isso, desprovidas de qualidade propriamente literária para atender à massa uniforme e alienada de consumidores. Assim como o binômio erótico/ pornográfico, a polarização cultura superior/ cultura de massa é problemática e igualmente questionável, porque oblitera o conceito de cultura popular ao qual a literatura erudita se opunha inicialmente, antes do advento da revolução industrial. Foi o avanço tecnológico que promoveu um processo de urbanização acelerado e estreitou o contato entre os indivíduos de diferentes classes sociais, bem com facilitou o acesso das classes subalternas à aquisição de bens materiais. Desta forma, o conceito de massa, em primeira instância, reporta ao grande contingente de indivíduos que passaram a dividir o espaço urbano e representavam um número significativo de consumidores em potencial para a enxurrada de produtos manufaturados pela indústria em franca expansão. Nesse contexto, também as manifestações culturais também começaram a ser cooptadas pela lógica mercantil e tiveram sua produção organizada segundo o modelo da indústria: produção em série, visando ao consumo imediato em larga escala. É nesse sentido que a chamada cultura de massa polemiza a distinção antes pacificamente assente entre a produção cultural dos indivíduos da camada letrada e economicamente mais abastada e a produção cultural dos estratos populares desfavorecidos, baseada na oralidade e nas manifestações coletivas. Sendo o procedimento fabril calcado na reprodutibilidade
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seriada e maciça, a indústria cultural teve de elaborar o protótipo de um consumidor médio – que só existe abstratamente – a quem pudesse destinar seus produtos padronizados. Dessa forma, a cultura de massa se configura não como uma cultura que emerge das “massas”, como manifestação de sua vivência e visão de mundo, mas como algo totalmente artificial, literalmente fabricado por quem detém os meios para produção e divulgação em larga escala. Mas essa produção perpetrada pela indústria cultural não acontece ex nihilo. As fontes utilizadas para fabricarem-se seus produtos são justamente o imaginário das tradições populares e as idéias e formas consagradas pela tradição culta. Assim, é possível nos depararmos com a pintura antiacadêmica de Klimt decorando xícaras e pratos vendidos na banca de jornal ao mesmo tempo em que as festas carnavalescas têm sua espontaneidade cada vez mais limada em nome do poder exercido pelo capital e pela indústria do entretenimento. Para alguns – os “integrados” (Eco, 1970) –, os meios de comunicação de massa promovem a democratização da informação e permitem, pela possibilidade de reprodução técnica, que as classes mais desfavorecidas tenham acesso aos bens culturais que antes ficavam restritos ao conhecimento das elites financeiras e intelectuais. Na opinião dos “apocalípticos” (Ibidem), no entanto, tal pretensa democratização se traduz na maioria das vezes em vulgarização e depauperamento, tanto da cultura letrada e humanista quanto das tradições populares. Na produção literária contemporânea o hibridismo formado pela mescla de elementos cultos e populares (o double coding referido na introdução deste trabalho) também comparece de forma evidente. De um lado, a literatura comercial faz uso dos estilemas já consagrados pela tradição culta e, portanto, esvaziados de seu conteúdo transgressor, como as referências metatextuais e a falta de ordenamento cronológico da narrativa (ECO, 1970, 1985, 2003 e SODRÉ, 1978, 1985); por outro lado, a literatura feita por autores compromissados com o trabalho com a linguagem se nutre dos códigos não só da literatura de mercado como também de outros sistemas semióticos difundidos pela mídia e propaganda. Esse procedimento tem sido identificado por muitos teóricos como um traço constante da produção atual, muito embora o intercâmbio semiótico operado entre a literatura e outros meios visuais não seja característico da contemporaneidade – este apenas se intensificou com o afluxo das novas tecnologias. Hauser (2000) já assinalara a influência que o cinema exerceu de forma cabal, no início do século XX, nas
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manifestações literárias das vanguardas européias 5. A diferença que há, segundo Flávio Carneiro (2005), entre os diálogos com os meios visuais empreendidos por modernos e pós-modernos diz respeito ao fato de os primeiros, apesar de fascinados com as novas tecnologias, insistirem em manterem-se apartados, pelo hermetismo, da produção cultural massificada. Esse posicionamento perdurou século XX adentro, como demonstra Umberto Eco (1985), tendo como critério de validade estética o escândalo causado no grande público. O consenso e o sucesso significavam, de antemão, a desvalorização do artista e de sua obra. A literatura atual, por sua vez, principalmente em virtude do fenômeno do bestseller de qualidade, teve de repensar tal conceito e abrir-se às inovações no campo da linguagem. O discurso destinado às massas deixa de ser considerado inferior e a preocupação em não parecer massa se esfumaça, até porque estar inserido no mercado destinado ao grande público torna-se imprescindível para a sobrevivência financeira do escritor. Silviano Santiago (1983) corrobora esse ponto de vista ao afirmar que a narrativa atual pode se valer da redundância e de outros recursos populares – em contraposição à estética moderna da elipse e do hermetismo – para agilizar a prosa de ficção e aproximá-la de um público maior de leitores, podendo competir, desse modo, com o monopólio dos meios de comunicação de massa. Tal idéia se repete em Jameson (2007), ao tratar a produção cultural atual em termos de “populismo estético” e em Barth (1997), ao afirmar que o ficcionista dos novos tempos deve aspirar a uma narrativa mais “democrática” e mais prazerosa do que a ficção modernista, marcada por uma geração de exegetas especializados em jogar luz sobre a obscuridade dessa produção. Conclui-se a respeito que, diante do atual estágio de desenvolvimento da sociedade, o posicionamento apocalíptico em relação aos caminhos que a literatura atual traça torna-se inviável. É praticamente impossível o alheamento total do indivíduo frente à dinâmica dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, com bem nos informa Jameson (2007), cujos estudos apontam para uma integração cada vez maior entre produção cultural e a produção das mercadorias em geral em virtude da expansão prodigiosa do capital por todas as esferas da existência, inclusive o Inconsciente e a Natureza. Segundo o autor, esta é substituída pelo simulacro produzido pelos mass media e aquele é cooptado pela 5
Outro exemplo de contaminação entre diferentes linguagens é trazido por Stanzel (1971), o qual enfatiza os empréstimos que James Joyce fez da estrutura jornalística em seu romance Ulisses (1922), explorando as potencialidades da página impressa. Antes dele, Sterne, no século XVIII, e Machado de Assis, no século XIX, já haviam experimentado inovações formais em suas narrativas baseados nas novas possibilidades trazidas pela expansão da imprensa.
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indústria da propaganda, que consegue transformar sonhos e desejos em bens comercializáveis. A pureza e o caráter não corruptível da arte há muito passaram a ser contestadas na medida em que se verificava a inevitabilidade da dependência da criação artística a instâncias exteriores a ela, instâncias estas regidas pela lógica da rentabilidade capitalista e que enformam nosso cotidiano. Assim, o fato de não estar imune às regras do jogo do capital não faz do escritor um artista menor. Maria de Lourdes Lima dos Santos (1994) sugere a respeito que é perfeitamente possível pensarmos em criação na repetição, ou em raridade na reprodutibilidade, salvaguardando assim a independência criativa do artista. É este o princípio subjacente às leituras da produção literária atual feitas por Tânia Pellegrini (1993) e Therezinha Barbieri (2003). A primeira parte da hipótese de que o texto literário teria transformado a imagem – a responsável pela mudança no modo de percepção do indivíduo contemporâneo – em técnica narrativa, por conta da expansão da influência midiática. Além disso, enfatiza a larga influência da lógica mercantil na produção cultural, atestando inclusive a tematização dos mecanismos de compra e venda nas próprias obras. Nesse sentido, é significativa a escolha de seu corpus, baseada nas listas dos livros mais vendidos das revistas semanais. A segunda autora parte de premissa semelhante: a ficção atual seria impura por permitir a entrada de elementos pertencentes a outros contextos semióticos que saturam a sociedade contemporânea, como o cinema, a televisão, o jornal e a propaganda. Sua leitura, assim como a de Pellegrini, contempla a relação do escritor com o mercado, e ambas concluirão que a originalidade é possível em meio à reprodução em série de temas e formas que caracteriza o ramo mais lucrativo da indústria editorial. Insistamos, então, no aspecto de experimentação formal que deve ser valorizado para a compreensão de todo fenômeno literário. A controvérsia acerca do estatuto pornográfico do texto pode começar a ser sanado se levarmos em conta que grande parte do julgamento de valor dispensado às produções artísticas através dos tempos tem sido feito segundo critérios não estéticos, mas, além de morais, sociais ou psicológicos. Quanto aos dois últimos critérios, têm sua importância no tratamento da pornografia enquanto documento,
e não como arte. É preciso, assim, que distingamos a pornografia enquanto
patologia (individual ou social) de sua expressão artístico-literária. É elucidativo o fato de a pornografia, definida pela representação explícita de órgãos e práticas sexuais com propósitos afrodisíacos, ser fenômeno moderno, de estreita ligação com o advento da imprensa. Claro que o corpo e o sexo sempre foram motivos
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privilegiados da arte; o nosso olhar sobre eles é que tende a mudar ao sabor das circunstâncias. Até o início do século XIX, os escritos obscenos eram perseguidos por razões outras que não a ofensa ao pudor. Essas razões eram mormente políticas ou religiosas, visto que a exploração da temática sexual era arma crítica para ridicularizar a hipocrisia da nobreza e do clero. Bem conhecidos são os romances libertinos do século das Luzes, escritos inclusive por filósofos, que faziam da licenciosidade um expediente de divulgação dos ideais iluministas antiabsolutistas e anticlericais. A pornografia perseguida em nome da decência e da proteção da sociedade só surgiu como resposta à democratização da cultura possibilitada pela imprensa, a qual facilitou em grande medida o acesso das massas a escritos e ilustrações. Assim, “os esforços das autoridades religiosas e políticas para regulamentar, censurar e proibir os trabalhos [pornográficos] contribuíram, por um lado, para sua definição e, por outro, para a existência de um público leitor para tais obras e de autores empenhados em produzi-la”. (HUNT, 1999, p. 20) Está aí a origem da pornografia enquanto fenômeno social tal qual o conhecemos: a descoberta de seu potencial financeiro suplantou as preocupações políticas e transformou-a em mera mercadoria. A indústria cultural, desdobramento atual da invenção de Gutenberg, deu novos contornos ao já lucrativo comércio da pornografia. Sendo inviável o controle institucional total e irrestrito sobre o material obsceno produzido e reproduzido incessantemente em escala maciça, o mecanismo mais eficaz encontrado pelo sistema social para manter em ordem a organização da sexualidade dos indivíduos é aquele a que Marilena Chauí (1985) se refere como “duplo nó” e Romano Giachetti (1978) como double standard : a mesma sociedade que condena a pornografia é aquela que a produz. Isso porque a pornografia comercial – se nos restringirmos à sua vertente mais popularizada e, portanto, reconhecível como modelo –, embora deva ser consumida como se fosse interdita, na verdade se presta à normatização da sexualidade dos indivíduos na medida em que reforça todos os padrões do status quo:
relação mormente heterossexual; homem viril; mulher objeto 6. A presença de
qualquer elemento diferente, como o lesbianismo ou sado-masoquismo, são tratados
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Não podemos esquecer que as chamadas minorias sexuais têm ganhado cada vez mais espaço no cenário público, e por isso mesmo foram descobertas pelo mercado pornográfico. Sua aceitação social, porém, ainda é restrita. A pornografia feita por e para homens heterossexuais permanece como referência para esse tipo de produção em larga escala, e é com esta pornografia que a trilogia hilstiana flertará de forma mais incisiva quando do aproveitamento das fórmulas de composição do gênero.
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apenas como “temperos” para a relação heterossexual e nunca como verdadeiras potencialidades da sexualidade polimorfa do homem. Desta forma, é possível fazer eco às proposições de Susan Sontag (1987) e afirmar que a pornografia, no sentido descrito acima, é sintoma da contaminação da saúde sexual da sociedade e não vai deixar de existir enquanto o homem não reabilitar sua vida erótica. E essa patologia social, claro está, é conseqüência de um fator psíquico que pode gerar deformações no desenvolvimento normal e sadio da sexualidade do homem adulto, dependendo da forma como as restrições sociais lhe foram impostas. É fato que os impulsos naturais do homem tiveram de ser domados para que fosse possível a civilização7, e a manutenção da ordem social depende da regulamentação das práticas sexuais dos indivíduos – até a Grécia antiga, conhecida pela liberalidade de seus costumes em relação ao sexo, tinha regras claras para assegurar a estabilidade da sociedade. No entanto, também é fato que, embora cerceada, a sexualidade se mantém como potencial avassalador na consciência do homem, mesmo naquele assolado pela culpa, nossa herança judaico-cristã. É possível, então, pensarmos a pornografia – desde que não cooptada pelas leis do consumo – como o espaço psíquico no qual é possível fugir à repressão e realizar-se plenamente. Assim é que os elementos que compõem a “psicologia da pornografia” (GIACHETTI, 1978, p. 21), apesar de serem utilizados para negar a representação explícita dos órgãos e atos sexuais enquanto literatura, se configuram na verdade como traços imprescindíveis para que a mesma seja considerada arte fundada em um modo diverso, extremo e freqüentemente negligenciado da consciência humana: a imaginação pornográfica. Só uns poucos eleitos a experimentam a nível perturbador: aqueles que se apropriam criativamente desse espaço recôndito da mente e o transfiguram em arte. Desta forma, as características intrínsecas a essa visão de mundo específica nada têm de anômalas, pois que fazem parte de todo e qualquer ser humano o potencial transgressor da sexualidade. Nada impede que a originalidade dessa “consciência insana” possa ser aproveitada artisticamente e, assim, possibilitar o acesso a uma verdade individual. Susan Sontag desmonta um a um os argumentos utilizados para desqualificar esses traços característicos da pornografia como sendo antiestéticos. Em primeiro lugar, a autora se atém à crítica que comumente se faz em relação à intenção única da pornografia 7
Esta é a tese defendida pela maioria dos estudiosos, como FREUD (1996); BATAILLE (2004); WINCKLER (1983). Somente FOUCAULT (1979) discorda da hipótese repressiva.
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de excitar o leitor, pois a obra literária “verdadeira” teria intenções mais nobres e plurívocas. Sontag alega que só uma noção empobrecida e mecanicista do sexo pode ignorar as inúmeras ressonâncias que a provocação de sensações físicas em uma obra de arte pode apresentar. É possível excitar-se com passagens de livros considerados respeitáveis pela crítica mais moralista, assim como não é descabido pensar no prazer que certos textos suscitam em alguns ao mesmo tempo em que repugna a outros. A questão da excitação é muito mais complexa e atravessa campos obscuros da psique humana. Atribuir-lhe valor negativo por atiçar o físico e não o psíquico talvez denuncie certo ranço da visão dicotômica ocidental-cristã que nos assombra desde sempre: o corpo é necessariamente vil, e só à alma é garantida salvação. O romancista D. H. Lawrence, em texto crítico anterior ao de Sontag, já refletia sobre a questão em virtude das várias censuras a que seus livros foram submetidos sob a alegação de obscenidade. Em ensaio publicado primeiramente em 1929, denominado “Pornography and obscenity”, o autor defende que a discussão deva privilegiar outro ângulo que não o da excitação física. Não há problema algum, afirma ele, no fato de a literatura provocar prazer físico nos leitores, já que os apetites sexuais no homem são legítimos e saudáveis, mas sim no aspecto de ultraje ao corpo e ao sexo perpetrado principalmente pelos produtos da incipiente indústria cultural. O segundo ponto de exclusão da pornografia do campo literário diz respeito à alegação de que nas narrativas desse gênero não há enredo, pois tudo é pretexto para que as relações sexuais sejam focalizadas exclusivamente. Sontag argumenta que essa característica faz parte do princípio econômico que rege a pornografia, segundo o qual tudo deve apontar para a situação obscena. O universo proposto pela imaginação pornográfica é o universo total, que “tem o poder de ingerir, metamorfosear e traduzir todas as preocupações com que é alimentado, convertendo tudo à única moeda negociável do imperativo erótico.” (SONTAG, 1987, p. 70) Essa mesma característica é denominada por Kendrick (apud ABREU, 1996 e HUNT,1999) de “pornotopia”, um lugar do qual se encontra excluída qualquer referência que não seja acidental à realidade social exterior, pois que se caracteriza por apresentar uma incessante recombinação de corpos entregues ao prazer e que é alheia ao tempo e à história. Assim, a pornografia converte todos os indivíduos em escravos do poder da sexualidade. Isso explica a série de intercâmbios de parceiros e a presença de elementos como incesto e bissexualidade para aumentar as possibilidades de troca. Acrescentemos que a falta de enredo no sentido tradicional há
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muito é privilegiada pelas produções literárias do século XX, de forma que, por si só, não poderia desqualificar a pornografia. Outro ponto questionado por Sontag é a afirmação de que a pornografia trabalharia com órgãos despersonalizados em vez de indivíduos psicologicamente complexos. Também este é elemento básico de sua composição, pois, assim como na comédia, seus personagens devem ser vistos somente do exterior, através de seus comportamentos. Não podem ser considerados em profundidade porque a insipidez emocional advinda da falta de problematização interior é necessária para que o leitor esteja liberado de qualquer responsabilidade psicológica durante a fruição da obra. Finalmente, a ausência de preocupação em trabalhar expressivamente a linguagem é ponto nodal da argumentação de Sontag, a qual defende, a partir da leitura de História de O (publicado sob o pseudônimo de Pauline Réage em 1954), A imagem (também publicado
sob pseudônimo: Jean de Berg, em 1956), História do olho (1928) e Madame Edwarda (1941; estes dois últimos de Georges Bataille), que é possível o aproveitamento literário da exploração de zonas desprezadas da consciência humana. Sendo a imaginação elemento imprescindível para a elaboração ficcional, será no trabalho estético levado a cabo em torno desse tipo específico de imaginação, a pornográfica, que residirá o traço diferenciador primordial entre a pornografia pertencente à indústria do entretenimento fácil e a artística, já que as outras características elencadas por Sontag podem ser encontradas em ambas. Jean-Marie Goulemot (2000), ao estudar as narrativas licenciosas do século XVIII, embora chegue à conclusão contrária à de Sontag, aborda questões interessantes para nossa reflexão. Toda a sua argumentação baseia-se na reação física que estas devem suscitar no leitor. Assim, tudo quanto possa interromper a descrição realista dos atos sexuais e desviar esse leitor do curso contínuo em direção ao efeito catártico esperado é considerado “defeito” de construção pornográfica ao mesmo tempo em que se configura como “qualidade de escritura”. Assim, segundo o autor, quanto mais artisticamente trabalhado for o texto, menos pornográfico este será. Os defeitos abordados por Goulemot são: o excesso metafórico, empregado para evitar a monotonia causada pela pobreza vocabular “das coisas do amor”; o distanciamento irônico regendo a composição narrativa; a presença de pausas e digressões dedicadas principalmente à reflexão e o excesso de “perversidade específica”, ou seja, de comportamentos sexuais excêntricos. É interessante notar que Susan Sontag considera a mesma “perversidade específica” sintoma do alto potencial
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criativo da imaginação pornográfica (por isso Sade é o expoente mais significativo desse tipo de consciência para a autora, enquanto que Goulemot não tem dúvidas acerca do fato de Sade não ser pornográfico...). Somente se pensarmos na pornografia estritamente comercial poderemos considerar a caracterização de Goulemot válida. As imperfeições elencadas e analisadas por ele, todas presentes na trilogia de Hilda Hilst, como teremos a oportunidade de verificar na interpretação dos textos, servirão para que, em consonância com Susan Sontag, seu estatuto de obra de arte seja ainda mais uma vez reforçado sem que se negue seu caráter pornográfico. 2.2
O imperativo realista Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética. (Machado de Assis)
2.2.1 Pornografia e indústria cultural Enquanto produto da indústria cultural, a narrativa pornográfica deve obedecer às exigências da literatura de massa, como a perfeição das técnicas de duplicação dos objetos empíricos para criar a ilusão de realidade (ADORNO, 1997, p.118), como se o mundo exterior fosse um prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme, no romance ou na telenovela. Tal reprodução técnica do real perpetrada pelos meios de comunicação de massa que se interpõem entre nós e o mundo não raro atrofia a imaginação e espontaneidade do consumidor, proporcionando-lhe diversão garantida para evitar o questionamento desta mesma realidade. Para que esta relação entre consumidor e produto cultural seja eficaz é preciso que esteja baseada no binômio identificação-projeção (MORIN, 1967; ECO, 1970). Por esse mecanismo podemos explicar a confusão de realismo e fantasia que caracteriza todo produto da indústria cultural, especialmente o filme blockbuster e o best-seller comercial, além de certos jornais que aliam o espetáculo à informação e romanceiam os fatos. O excesso de fantasia poderia gerar objeção à posição largamente difundida quanto ao realismo da representação pornográfica: o exagero das performances descritas não seria verossímil, já que o desempenho e anatomia de um indivíduo “normal” dificilmente seriam
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os mesmos que os dos personagens que ativam sua imaginação. Além disso, as situações enfocadas são as mais inusitadas possíveis: basta haver um casal para que haja cópula, não importa onde esteja. Esta falta de motivação para a narração de proezas sexuais pode ser explicada em parte pela lei da “pornotopia”, o mundo fabuloso da pornografia, já descrita anteriormente. É nesta aparente contradição, salientada por Nuno César Abreu, que se funda todo relato pornográfico: embora esteja situado no domínio da fantasia, indo ao encontro do imaginário do leitor, não está carregado com as marcas do ficcional, tendo sua fruição apoiada no realismo, “na evidência material da verdade do que está acontecendo”. (1996, p. 115) Nesse sentido, o funcionamento comercial da pornografia se iguala ao dos outros produtos da indústria cultural, tais como são descritos por Verlaine Freitas: É exatamente pelo fato de exercitar-se na representação minuciosamente realista, não apenas da realidade empírica, mas também de idéias fantasísticas como as de super-heróis, em que cada salto imaginativo é seguido do desejo obstinado de ser convincente nos mínimos detalhes (como o da capa esvoaçante em pleno vôo ou do transporte por ondas eletromagnéticas), que a indústria cultural pode proporcionar uma distração sob medida para aqueles que têm que retornar ao trabalho repetitivo. (2005, p.337)
A questão principal que o comentário acima suscita diz respeito ao caráter hiper-real das produções da indústria cultural, ou seja, a imagem, mero signo produzido pelos mass media, quer-se mais real que o próprio
real experimentado, a ponto de aniquilar o referente
e substituí-lo. As imagens proliferadas pelos meios de comunicação, dessa forma, tomam o lugar privilegiado da verdade em detrimento do mundo real (SCHOLLHAMMER, 2001). Também é em termos de hiper-realismo que Baudrillard (1992) tece suas considerações sobre a pornografia contemporânea e sua relação com a sociedade de consumo. Consistindo em fazer tudo passar para a evidência absoluta do real, o zoom anatômico que beira o grotesco pela desproporção acaba por comprometer o imaginário dos indivíduos. A cultura pornô, segundo o autor, faz parte de uma operação mais ampla de simulação da realidade por vias tecnológicas que rouba ao indivíduo a possibilidade de experimentar efetivamente o real. Tudo está dado; não há mais nada a acrescentar, nenhuma troca a efetuar com a alta precisão e fidelidade mimética ostentada pela mídia. A pornografia veiculada por esses meios degrada o sexo pelo acúmulo de signos que simulam corpos inexistentes e inacessíveis.
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A torrente de imagens que nos cerca não tem outro objetivo além de seduzir o indivíduo ao consumo permanente – material ou psíquico –, alicerce da lógica cultural dos nossos tempos de capitalismo tardio e do qual é praticamente impossível fugir. Esse consumo psíquico se caracteriza justamente pelo mecanismo da identificação-projeção. O consumidor desse tipo de produto identifica-se com a “fatia da vida” cotidiana que lhe é apresentada ao mesmo tempo em que projeta suas aspirações e desejos nos personagens, vivendo por procuração. Isso é possível porque a cultura de massa, como qualquer outra cultura, é um complexo de símbolos e mitos que penetram o indivíduo e servem de apoio imaginário à vida prática. O consumo psíquico de bens culturais funciona segundo arquétipos do espírito humano que encarnam valores e simbolizam aspirações da coletividade. São, portanto, figuras-modelo condutoras da ideologia capitalista. O funcionamento da pornografia comercial evidentemente não escapa a esse mecanismo. Tem sua mitologia própria, da qual faz parte ainda o super-homem e a ninfomaníaca, cujos desejos se encontram sempre, sem empecilhos ou resistência. Seu consumidor alvo, o homem heterossexual, se identifica na orientação sexual idêntica e no cotidiano banal que serve de pano de fundo às aventuras orgiásticas, ao mesmo tempo em que se projeta na potência sexual indefinida do super-homem. A ideologia subjacente a esse mecanismo legitima valores patriarcais e machistas que ainda fundamentam as relações sociais 8. Levando para dentro do texto as entidades extraliterárias responsáveis pela inserção do livro no circuito comercial, Hilda Hilst coloca às claras a rede de tensões que está por trás da produção literária contemporânea e que tende a ser neutralizada quando a obra vem a público. Além disso, ao se apropriar crítica e criativamente do estoque de temas e formas pré-fabricados por essa indústria, a autora transforma aquilo que seria impedimento em impulso criador.
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É interessante notar que as dicotomias masculino/ feminino; ativo/ passivo; sujeito/ objeto permanecem mesmo em certas comunidades homossexuais masculinas, corroborando nossa visão de que, apesar dos avanços inegáveis no nível das mentalidades, não é possível fecharmos os olhos para os ranços preconceituosos ainda presentes na sociedade. A esse respeito, ver dissertação de mestrado de Leandro de Oliveira intitulada Gestos que pesam: performance de gênero e práticas homossexuais em contexto de camadas populares (2006).
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2.2.2 Pornografia e literatura O traço que comumente define a pornografia – a capacidade de provocar efeitos físicos em quem a consome – está estritamente conectado ao caráter realista da representação dos corpos em movimento, seja por imagens ou palavras. Tal imperativo acarreta implicações importantes para o estudo do gênero enquanto narrativa ficcional, já que traz à baila a velha questão da relação entre mundo e literatura. Narrativamente, o gênero pornográfico é constantemente caracterizado pela descrição explícita e pormenorizada dos órgãos e práticas sexuais, caracterização esta tanto mais eficaz para seus propósitos afrodisíacos, acredita-se, quanto mais denotativa for a linguagem empregada. O efeito pornográfico seria justamente conseqüência desse uso denotativo da palavra obscena, pois, nomeando sem eufemismos o que deveria permanecer não-dito, aproxima mais a linguagem utilizada de seu referente. Lucienne Frappier-Mazur (1999) chega a propor que, no texto pornográfico, a palavra obscena não só representa seu referente, mas o substitui. A relação entre nome e coisa nomeada é de tal forma transparente e unívoca que aquele atua como substituto desta. A narrativa pornográfica pode então estimular o prazer físico de seu leitor porque, ao mimetizar verbalmente os atos sexuais por meio da palavra obscena, evoca os atos reais na sua mente e promove a satisfação alucinatória de seu desejo. A alucinação é um mecanismo psíquico que consiste em um erro de juízo: percebe-se o inexistente como parte do real (ARANGO, 1991). Não podemos esquecer, entretanto, que o discurso pornográfico permanece discurso e, por isso, por mais denotativo que almeje ser, não deixará de ser construção verbal, pois que o signo lingüístico nunca é a representação fiel do objeto a que se refere. Promovendo o apagamento do signo por detrás do referente, a denotação apenas cria a ilusão da presença do objeto e dissimula o estatuto de artifício do discurso apresentado. Não é por acaso então que Compagnon (2006) insista na interpretação do “efeito de real” barthesiano em termos de alucinação. Tal expressão foi largamente difundida a partir do final da década de sessenta para dar conta dos estudos relativos à auto-referencialidade do texto literário. Barthes, na posição diametralmente oposta daqueles que acreditam ser possível uma correspondência perfeita entre literatura e real, desqualifica a referencialidade extraliterária como parâmetro para avaliação/ interpretação da obra por acreditar que a pretensão do projeto literário realista stricto sensu de dissimular sua qualidade de construção lingüística levaria o leitor a tomar o ficcional pelo real, tornando-
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se vítima de uma “ilusão referencial” (BARTHES, 1984) – ou, como enfatiza Compagnon, de uma alucinação. Sendo o resultado de um jogo com as convenções lingüístico-literárias, o efeito de real conseguido pelo artifício é o ponto fulcral para que Frappier-Mazur (1999) tenha considerado a narrativa pornográfica um ramo da literatura realista e para que Goulemot (2000) tenha defendido a tese um tanto conservadora de que os romances pornográficos seriam representativos do funcionamento de toda narrativa de ficção na sua ânsia de ser confundida com o real. Segundo ele, a narrativa pornográfica, obrigando o leitor a sair do mundo da imaginação para passar da leitura ao ato, se configura como uma afirmação brutal do mundo físico. Tal mecanismo seria exemplar de toda leitura de ficção porque alcançaria como nenhuma outra o efeito de realidade da representação artística. A hipótese alucinatória de Barthes, criticada por Compagnon por ser excessiva (afinal, o autor nos adverte, tal hipótese só se aplicaria aos raríssimos exemplos de indivíduos não iniciados no mundo ficcional), contribui ainda assim para colocar em evidência um problema filosófico antigo: o da correspondência entre realidade e linguagem. A proposta realista mais difundida acredita ser possível tomar a palavra pela coisa. A relação de transparência entre os fenômenos externos e o texto literário é de tal forma assumida que a seus partidários parece factível encontrar por trás de cada palavra o objeto designado que o corresponde. A concepção de real que os orienta parte do princípio que este é unívoco e necessariamente preexistente ao texto, o que significa dizer que a literatura deve, como um espelho, duplicar esse real. Os estruturalistas e pós-estruturalistas, por sua vez, excluíram o mundo da literatura e fizeram-na falar de nada além dela mesma. Contrariando a velha acepção subjacente à proposta realista de que a língua pode copiar o real, tal qual “etiquetas em frascos”, estes estudiosos, a partir da interpretação da lingüística de Saussure e Jakobson, encararam a língua como totalmente arbitrária em relação àquilo que nomeia.
A referência
extraliterária, portanto, se mostra uma ilusão, pois que ao próprio sistema lingüístico, no qual se baseia o sistema literário, é negado o papel de reprodutor do real. O texto literário torna-se então auto-referencial, uma estrutura fechada em si mesma. A hipótese de uma referência que o extrapole só é admitida no caso da referência a outros textos: a intertextualidade, assim, substitui o mundo como referente do texto literário, e o realismo passa a ser concebido não mais como cópia da realidade, mas como um conjunto de convenções formais que são empregadas para fazer o leitor acreditar que está diante da realidade e não da linguagem. Os críticos partidários dessas idéias contribuíram
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enormemente para que os estudos da literatura como objeto autônomo avançassem. Hoje, é assente o fato de que a literatura não pode, enfim, copiar o real, mas apenas promover a ilusão de um discurso verdadeiro sobre o real, tendo em vista que este não passa de um código que pode ser manipulado justamente em função da arbitrariedade que funda seus elementos. Não mais se admite o real como unívoco e preexistente ao homem, mas como uma construção da consciência, seja individual ou coletiva. As
técnicas
empregadas
para
promover
esse
“efeito
de
real”
tão criticado no século XX são inúmeras e bastante conhecidas: a onisciência narrativa em proveito de uma espécie de autonomização do texto enquanto história; o esforço informativo e a descrição exaustiva de pessoas, lugares, objetos e assim por diante, com vias à individualização desses elementos e à verossimilhança de sua existência no plano empírico; a referência a cidades, pessoas e eventos da realidade extraliterária para tornar o texto crível; a utilização de recursos como o do transcriptor (aquele que encontra manuscritos ou organiza cartas dos quais nega ser o autor) como forma de fazer passar a ficção por documento; a dissimulação das regras de composição do texto e o uso privilegiado da linguagem referencial (denotativa) para não evidenciar o relacionamento precário entre signo e referente. Quem melhor utilizou esses preceitos na composição romanesca foram os escritores do Realismo do século XVIII inglês (WATT, 1965) e do século XIX francês (AUERBACH, 2001). Foi de tal forma um projeto bem acabado que passou a denominar todo um estilo de época, embora o espectro de atuação do realismo em literatura não se esgote nessa acepção. A polissemia que o termo envolve nos estudos literários deve ser esclarecida para que se evitem posições dogmáticas. O desejo de confundir-se com o real, por exemplo, não pode ser atribuído a toda narrativa de ficção, assim como o “realismo formal”, tal qual definido por Ian Watt (1965), não pode ser visto como uma característica definidora do romance, mas do romance realista especificamente. Da mesma forma, ao romance realista francês do século XIX não cabe o título de único e verdadeiro realismo, já que o real permanece como objeto de investigação artística para todo escritor, em todos os tempos e lugares. Assim, além de nomear um estilo literário, outra acepção do realismo é a que o aproxima do conceito de mímesis, conceito este basilar para a compreensão do fenômeno literário por definir a operação que se estabelece na criação artística a partir da realidade como matéria-prima. Sua interpretação secular como imitação do real foi a responsável
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pelo estabelecimento do projeto literário do Realismo como norma e parâmetro de avaliação para o restante da produção literária, fazendo com que a tradição não-mimética (no sentido de não imitativa) fosse incompreendida e depreciada – o que explica as críticas negativas a Machado de Assis em seu tempo. De acordo com esta perspectiva, a série literária deve ser lida à luz da série extraliterária, refletindo as circunstâncias sóciohistóricas que lhe servem de contexto. Sua validade só pode ser aferida, então, a partir de critérios mormente não estéticos. A compreensão do conceito de mímesis como mero reflexo da realidade empíricohistórica é fruto da concepção platônica da poesia como imitação duas vezes afastada do real. Sendo Platão o representante da nova ordem racional que se instaura da Grécia, contrapondo-se à cultura de base mítica até então reinante, sua preocupação é muito mais com uma pedagogia do que com uma teoria da arte. A poesia importa ao filósofo enquanto causa da desvirtuação do indivíduo na sua caminhada rumo à verdade suprema, tendo em vista que o poeta trata eminentemente de paixões e estas estão excluídas do ideal asséptico e racional de Platão. Essa verdade suprema é para ele aquela que corresponde ao mundo inteligível, possível de ser atingido somente para uns poucos iniciados – os filósofos. O poeta, segundo a lógica platônica, só pode ser um disseminador do que é falso e indigno de contemplação, já que copia o que já é cópia, passando uma impressão de verdade ao que é apenas ilusório: o mundo sensível, reflexo imperfeito do mundo das idéias a que se deve alcançar. É igualmente chamada de mímesis para Platão, em contraposição a diegésis, a imitação da fala do personagem pelo autor como se este não fosse o responsável pelo relato, tal qual acontece no drama. Nessa concepção também pode ser identificada uma menção implícita à ilusão que o poeta pretende causar, quando da utilização do discurso direto, de que quem fala é um outro. Aristóteles, outro expoente para o estudo da mímesis, negou seu sentido mecânico de cópia e liberou-a do peso da verdade. No lugar desta, o autor prefere a idéia de verossimilhança, ou seja, a aparência de verdade. Aí temos um esboço de defesa da ficção enquanto fingimento: “Pelo que atrás fica dito, é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.” (ARISTÓTELES, s/d, p. 252) O real – o código de que partilham autor e leitor – permanece como lastro imprescindível para a orientação tanto da produção quanto da recepção da obra; no entanto, Aristóteles não deixa dúvida de que à obra de arte cabe a apresentação do que é falso, ou seja, é seu papel a invenção de um
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microcosmo que, embora semelhante ao real, não o é de fato. O falso, aqui, diferentemente do discurso platônico, é carregado de conotação positiva. O autor, primeiro a fazer uma reflexão autônoma sobre a arte, estendeu o conceito de mímesis para toda arte poética (inclusive para a diegésis platônica) e, por influência da repercussão das idéias de seu mestre, teve a sua máxima “a arte imita a natureza” mal interpretada. Entendeu-se que a realidade (ou certa concepção de realidade, objetiva, unívoca e preexistente ao indivíduo) está sempre dada de antemão à representação literária, quando o que o estagirita pretendia evidenciar é que a arte imita o poder incessantemente criador da natureza, partilhando das leis de funcionamento da physis, a brotação incessante das coisas. Assim, a partir de Aristóteles, a mímesis pode ser equiparada a poiesis, quer dizer, ao trabalho criativo de elaboração de um artefato, tal qual a atividade de um criador originário. E essa elaboração não exclui de seu escopo a realidade empírica, até porque, se o fizesse, tornar-se-ia incompreensível e, portanto, perderia sua função, já que os significados de uma obra de arte precisam ser acionados por um receptor. O real é matéria prima para a poiesis; é a partir dos dados da realidade exterior que se constrói o microcosmo literário. A mímesis, modus operandi da criação literária, não se estabelece então segundo uma ação reprodutora do real, mas a partir de uma ação produtora que tem como ponto de partida esse mesmo real. A obra de arte capta o real por semelhança, representando-o sem reproduzi-lo especularmente. Nessa perspectiva, o realismo literário, se entendido como essa relação dinâmica entre o real e sua representação, será identificado com a mímesis e terá expandido o seu raio de alcance. O Realismo, enquanto estilo de época, se utilizou de uma perspectiva possível de apreensão do real em literatura. Muitos outros realismos podem entretanto existir, a depender de como o relacionamento do homem com o mundo é encarado por cada estilo de época, cada movimento, cada autor, cada obra. Linda Hutcheon dedica um capítulo de seu Narcissistic narrative (1991) à diferenciação entre a mímesis de produto (mimesis of product ) e a de processo (mimesis of process) para evitar a
conceituação restritiva do mimético como simples imitação, assim
como Costa Lima (1980), como o mesmo intuito, recorre aos termos mímesis de
representação e de produção. A mímesis de produto/ representação é aquela privilegiada pelo Realismo do século XIX francês, tido durante muito tempo como modelo de realismo. As regras de composição do romance que tem como pressuposto teórico esse tipo de
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mímesis são dissimuladas para que o leitor reconheça no texto sua realidade empírica para assim validá-lo esteticamente. A mímesis de processo/ produção, por sua vez, não tem como fim o reconhecimento por parte do leitor de um mundo análogo ao seu, nem quer fazer-se passar por real. Pelo contrário, faz questão de expor as bases teóricas de sua elaboração para afirmar-se artefato e não dado da realidade. Embora o século XX tenha visto ao boom das narrativas auto-referenciais, a mímesis de processo não é fenômeno recente9. Desde sempre foi a opção dos escritores de consciência crítica aguda e comprometimento irônico com a realidade. 2.2.3 A ficção posta a nu A trilogia obscena de Hilda Hilst encenará, na sua elaboração, a desconstrução crítica do imperativo realista que rege a lógica de elaboração dos produtos da indústria cultural, assim como submeterá o processo de engendramento do microcosmo ficcional à reflexão, rejeitando portanto a ilusão referencial. É a ironia como princípio estrutural que regerá ambas as desconstruções. Muecke (1969) afirma que o objetivo da arte irônica consiste em fazer a obra significar mais do que aparenta a superfície de sua representação. É a velha estratégia retórica do “dizer algo pretendendo significar o contrário”, sendo que, no caso do emprego da ironia como elemento de construção formal, o significado da superfície não necessariamente nega o significado que a ele subjaz, e a leitura dupla admitida faz parte do desmonte crítico que a ironia opera na desconstrução de concepções monológicas de real e no desmascaramento das aparências de verdade. Nesse sentido, a ironia no âmbito literário se aproxima da mímesis de processo, anteriormente aludida. Foi o Romantismo alemão do século XVIII o responsável pela teorização da “ironia romântica”, estritamente artística e não mais retórica, a qual pode ser considerada o germe de toda a poética transgressora do século XX, e por isso é categoria fundamental para o estudo da modernidade. A ironia como princípio artístico introduz a reflexão poética no mecanismo da criação literária e enfatiza a lucidez da prática do artista, consciente das contradições do real e da própria arte, sem abdicar dos poderes da imaginação criadora. Além de autor, ele é agora crítico de sua própria criação. O real, na perspectiva irônica, não é mais visto como exterioridade objetiva e unívoca; ao contrário, a subjetividade pensante 9
Ver Robert Alter (1975), Linda Hutcheon (1991), Ronaldes de Melo e Souza (2000) e Marlene de Castro Correia (2002).
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pode transfigurá-lo e mesmo interferir na constituição do que seja a realidade. Admite-se a compreensão finita do homem – e conseqüentemente o caráter igualmente limitado da arte – na apreensão da multiplicidade do real. A ironia é desorientadora por rejeitar o dogmatismo e as verdades instituídas que camuflam a diversidade fundadora da existência humana. Sua opção é pela pluralidade de verdades em trânsito. Sendo assim, a empreitada pornográfica de Hilda Hilst esconde, além da crítica à mercantilização sem peios da arte, uma teorização sobre o próprio fazer ficcional. Segundo Compagnon (2006), ficção é um dos termos pelos quais a mímesis grega foi traduzida; para Costa Lima (1980), a interpretação platônica da mímesis alimentada pelas formas ilusórias do mundo sensível é a via capital para o conhecimento da mímesis como ficção. Se remete a si mesma, a ficção se coaduna à mímesis de processo; se visa ao logro, a mímesis de produto entra em ação. Em certa medida, a fictio latina equivale a poiesis grega. Diz-nos Silva e Montagner (2005) que o verbo latino fingere, que deu origem a “fingir” em português, significa, além de dissimular, modelar em barro; moldar, esculpir; construir, compor; transformar, mudar; converter em; tornar-se; supor; inventar; ordenar . A literatura é fingimento porque constrói mundos de palavras: ela cria – faz passar do não ser ao ser; inventa – dá forma ao imaginário. A tensão entre fingere como forma e fingere como engodo perpassa toda a história do desenvolvimento etimológico do termo, como nos informa Karlheinz Stierle (2006). Quando a ênfase recai sobre a segunda acepção, a literatura é perseguida por faltar à verdade. O surgimento do Cristianismo é um marco importante do controle do imaginário liberado pela ficção. Faz-se necessário negar o mundo mentiroso das ficções para dar lugar à única verdade possível, a fixada pelos evangelhos. O romance realista do século XVIII e XIX atesta seu receio de ser tomado por invenção nos prefácios e notas do editor que abundam nesse tipo de narrativa para evitar o descrédito que é devotado às obras que são fruto da imaginação. É por esse mesmo motivo que tanto se discute à época os efeitos nefastos que a ficção (na acepção de pura invencionice) pode trazer às moçoilas de família com uma reputação a zelar. Assim como no caso da ficção condenada pelo Cristianismo, o temor geral é o de a ficção levar ao devaneio e por conseguinte afastar o indivíduo das obrigações morais e incitá-lo ao pecado e ao comportamento anti-social. A via mais profícua para a compreensão da ficção como cerne do fenômeno literário alia forma e engodo à capacidade operadora do imaginário ao mesmo tempo em
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que foge à dicotomia verdadeiro/ falso. A teoria Wolfgang Iser (1983, 1999) traz uma contribuição importante para o estudo da ficção sob esse aspecto triádico: o real e o ficcional em literatura são vistos não como categorias opostas, mas complementares, em cuja dinâmica de intersecção atua o imaginário. De acordo com o autor, o que caracteriza a literatura é o fato de ela falar do que não existe como se existisse, utilizando para tal três “atos de fingir”: a seleção – espécie de “recorte” da realidade extraliterária ou de outros textos –, a combinação – a qual ordenará os elementos selecionados de acordo com as intenções criativas do produtor, diferentemente de como estão dispostos no mundo empírico –, e o autodesnudamento – mecanismo através do qual a literatura se dá a conhecer como tal e, por meio do como se, “transforma o mundo resultante da seleção e da combinação em pura possibilidade” (1999, p.74). 10Através dos atos de fingir, a obra literária excede o mundo real que incorpora. Essa “ultrapassagem” do real operada pela ficção só é possível por conta da imaginação, sem a qual a literatura desemboca em mero formalismo. A presença desse terceiro elemento se mostra imprescindível para a caracterização do fenômeno em questão porque a mera oposição ficção/ realidade está aquém de sua essência: a ficção não é a negação do real, mas sua transcriação. A relação, pois, entre ficção e imaginação é de dependência. Enquanto a imaginação serve de meio para a manifestação da ficção, esta dá forma àquela. A teoria iseriana sobre a ficção vai ao encontro das reflexões de Compagnon (2006) e Villanueva (2004) na busca por uma caracterização do ficcional que fuja aos extremos das teorias do reflexo e da autonomia do literário em relação ao real. Iser assinala a importância da realidade empírica na operação de criação ficcional a partir do ato de fingir que ele chamou de “recorte”; Compagnon e Villanueva, por seu turno, recorreram à teoria de J. L. Austin e J. R. Searle sobre os atos de linguagem para caracterizar o discurso literário como sendo um tipo de discurso que carece de força ilocutória real, ou seja, ele mimetiza atos de fala reais, simulando as propriedades referenciais da linguagem comum. Dessa forma, o emissor age como se estivesse falando sobre um referente concreto, que não existe, e como se estivesse realizando um ato de fala particular. O fingimento em literatura deve ser então perpetrado não só pelo criador como também pelo receptor da obra. Ambos assinam um acordo tácito que prevê momentaneamente a “suspensão da incredulidade” (COLERIDGE apud COMPAGNON, 2006) e a aceitação da ficção como 10
É o autodesnudamento que singulariza a ficção literária de outras ficções, como a filosófica e a jurídica, que dissimulam sua existência enquanto discurso para não terem abalada a verdade do que afirmam.
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possibilidade, e não engodo. Enquanto dura o acordo, o leitor encara o mundo ficcional como se
fosse real e só no reconhecimento desse lastro de sua experiência é possível haver
fruição estética. A trilogia pornográfica de Hilda Hilst é um dos exemplos de radicalização desse pacto. Sendo pornografia e “outra coisa” – literatura autoconsciente de sua ficcionalidade – a obra recusa o leitor de atividade intelectual atrofiada pelo entretenimento fácil e exige a participação ativa e crítica de um leitor capaz de ultrapassar a leitura que se lhe apresenta no nível da representação para, assim, reconhecer e reconstruir os significados irônicos presentes na estrutura profunda do texto.
CAPÍTULO 3: O CADERNO ROSA DE LORI LAMBY 3.1 A doce imoralidade infantil Our ignorant assumption that sex behaviour cannot occur until a certain stage in physiologic maturity has been attained was somewhat responsible for our silly philosophy of innocence. (Samuel D. Schmalhausen)
Atravessar incólume as páginas de abertura de O caderno rosa de Lori Lamby (1990) não é tarefa fácil de ser alcançada por todo e qualquer leitor que se aventure a lêlas. Aberrações sexuais e sociais – pedofilia e prostituição infantil – nos são apresentadas de forma tão natural e ingênua pela menina protagonista que o choque causado pelo contato inicial com o livro acaba por suplantar, na maioria dos leitores, qualquer possibilidade de investigação atenta ou fruição estética. O enredo da narrativa é simples. Uma menininha de apenas oito anos de idade, supostamente prostituída pelos próprios pais, escreve suas memórias lúbricas em seu diário cor-de-rosa sem laivo algum de trauma ou qualquer outro dano psicológico. Pelo contrário, Lori Lamby “gosta de fazer sexo, não é uma vítima, ela acha muito bom.” (CRLL, p.28) A cena de abertura, da qual reproduziremos apenas uma parte, pode dar uma idéia da desenvoltura com que a menina narra suas “brincadeiras” com os vários clientes que recebe em seu quarto cor-de-rosa: Eu deitei com a minha boneca e o homem que não é tão moço pediu pra eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu para eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele começou a passar a mão na minha coxa que é muito fofinha e gorda, e pediu que eu abrisse as minhas perninhas. Eu gosto muito quando passam a mão na minha coxinha. Daí o homem disse para eu ficar bem quietinha que ele ia dar um beijo na minha coisinha. Ele começou a me lamber como meu gato me lambe, bem devagarinho, e apertava gostoso o meu bumbum. (...). (CRLL, p.13-14)
Lori Lamby não parece nem um pouco abalada emocionalmente com o que lhe acontece. Nesse e em outros trechos, é patente o prazer que experimenta. A descrição do ato sexual, que avança ainda páginas afora, apesar da dicção infantil, não deixa margem para dúvidas sobre o que está acontecendo entre a criança e o adulto. Não é cabível, como podemos observar no trecho, falarmos apenas de sugestão: o ato sexual é
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explícito, mesmo sem o recurso a qualquer palavra de baixo calão. Poderíamos incluir os inúmeros termos que Lori utiliza para nomear os órgãos sexuais no rol dos excessos metafóricos de que fala Goulemot (2000) quando aborda os inúmeros defeitos (na verdade qualidades de escritura) que, segundo ele, afastam a narrativa pornográfica de seu propósito final (a excitação física), descaracterizando-a. Na narrativa em questão, é extensa a lista de palavras e expressões utilizadas para fazer referência aos órgãos sexuais: “coisinha”, “piupiu”, “coisona”, “aquela coisa tão dura”, “coninha”, “xixoquinha”, “xixiquinha”, “abelzinho”, “coisa-pau” e assim por diante. Desta forma, a conhecida crueza do léxico pornográfico é amenizada pela escolha da autora por uma protagonistamirim, embora isso não prejudique em nada a visualização da cena pelo leitor. Contando apenas oito anos, o repertório lingüístico de Lori é reduzido exatamente porque seu conhecimento de mundo é restrito. Outros aspectos, ainda, colaboram na estilização da linguagem infantil: além dos diminutivos, podemos observar as frases curtas separadas por vírgulas, a preferência pela coordenação em vez da subordinação, a repetição de vocábulos e a utilização de marcadores discursivos da oralidade, oralidade esta que remete, como bem lembra Eliane Robert Moraes (1990), ao campo erótico privilegiado em O caderno rosa de Lori Lamby .
A presença do dicionário é marcante e sintomática das limitações do discurso infantil – “O que é escroto, hein, tio? São tantas palavras que tenho que procurar no dicionário, que quase sempre não dá tempo de procurar uma por uma.” (CRLL, p.74) –, e as conclusões que Lori tira de sua observação do mundo adulto no qual foi precocemente inserida são as mais espirituosas – e irônicas – possíveis: “Eu pedi pra ele me escrever essa palavra pra eu pôr aqui no caderno, ele escreveu, mas a coisa de predestinada é mais ou menos assim: uns nascem para ser lambidos e outros para lamberem e pagarem.” (CRLL, p.35) É comum que a menina peça para adultos escreverem certas palavras mais difíceis em seu caderno, como o exemplo supracitado também ilustra, o que se mostra um recurso hábil da autora para justificar a inserção de qualquer vocábulo mais elaborado para uma criança. Na maioria das vezes, porém, a protagonista é obrigada, por conta da defasagem entre sua pouca idade e suas experiências adultas, a recorrer a subterfúgios para descrever seus atos libidinosos, como já vimos na sua escolha vocabular. Certos usos onomásticos também podem ser arrolados na categoria dos excessos metafóricos apontada por Goulemot. Segundo o autor francês, ao fazer jogos de palavras entre o nome dos personagens e o que pretende expressar, o escritor acaba por denunciar
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sua intenção isenta de realismo, chamando a atenção para o texto enquanto construção e assim comprometendo o efeito esperado da narrativa pornográfica. O nome do editor para quem o pai de Lori trabalha, Tio Lalau, por exemplo, ilustra esse recurso onomásticometafórico, além de ser um índice da ironia que é princípio construtor do texto. “Lalau” é termo popular – dicionarizado –que se refere a ladrão. Nada mais adequado para descrever a figura do editor contemporâneo, cada vez mais instruído pelas leis do mercado e que “vomita só de ouvir a palavra poesia”. (CRLL, p.73) A essa altura, já é óbvia a relação entre o nome da protagonista e os propósitos estilísticos da autora. O sobrenome “Lamby” também faz às vezes de epíteto, qualificando a personagem por seus atos: “Quem será que inventou isso da gente ser lambida, e por que será que é tão gostoso?” (CRLL, p.18); “É mais gostoso ser lambido que lamber” (CRLL, p. 22); “Depois eu entendi só um pedaço, que o sexo é uma coisa simples, então acho que sexo deve ser bem isso de lamber, porque lamber é simples mesmo.” (CRLL, p. 28) O verbo “lamber” não por acaso aparece exaustivamente na narrativa. Lori Lamby, como a maioria dos personagens de narrativas pornográficas, é vista somente pelo seu exterior. Nada sabemos sobre ela a não ser que gosta de sexo. Totalmente despersonalizada, o verbo lamber basta para defini-la e para delimitar o raio de ações da narrativa, que deve se concentrar unicamente em episódios sexuais se pretende ser eficaz. Na obra em questão, os episódios que estruturam a narrativa do diário de Lori estão relacionados aos vários clientes que a menina recebe em seu quarto cor-de-rosa. Para cada “tio”, novo quadro detalhado das ações realizadas é pintado: Ontem veio aquele homem aqui (...). Ele também quis que eu beijasse ele, e eu beijei um pouquinho e ele me virou ao contrário e enquanto eu beijava o pau fininho dele, ele me lambia, ele lambia e enfiava a língua no buraquinho de trás (...). Depois ele mordeu com força a minha bundinha, e eu gemi um pouco mas gostei muito, é aquela dor sem dor, e ele me deu umas palmadinhas e esfregou minha bundinha nos pêlos dele. (CRLL, p. 78)
A mímesis verbal do ato sexual é feita da forma mais detalhada possível a fim de evocar na mente do leitor a cena descrita. Sendo esta imposição realista imprescindível para promover o efeito de real específico da literatura pornográfica – a excitação do leitor –, é compreensível que o impacto causado nos leitores, mesmo nos menos desavisados, fosse negativo. Hilda Hilst trata com bom humor e despudor (além de certo exagero) a sexualidade infantil, tema que permanece tabu mesmo depois de Freud, além de ignorar a
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reprovação social incontestável que cerca a exploração sexual de crianças. Aliás, não é tratada como exploração a relação entre os pais mercenários e a garotinha sedenta por diversão – e dinheiro, podemos acrescentar. Sendo assim, sua falta de conflito psicológico e a naturalidade (e satisfação) com que encara as “brincadeiras” com os “moços” deveria liberar o leitor do peso da culpa por se entregar a um prazer tão “antinatural”. As aspas aqui visam a problematizar o caráter anormal de que são dotadas certas práticas sexuais consideradas socialmente inaceitáveis, as chamadas perversões. Apesar de estas, na linguagem corrente, terem conotação necessariamente negativa, Freud, no início do século XX, procurou argumentar a favor de uma perversidade que seria absolutamente normal na vida sexual do adulto saudável. Perversão, para Freud, é o “desvio em relação ao acto sexual ‘normal’, definido este como coito que visa a obtenção do orgasmo por penetração genital, com uma pessoa do sexo oposto.” (apud LAPLANCHE E PONTALIS, 1997, p. 432) Portanto, há perversão se o prazer sexual é obtido por qualquer outro meio, seja através de outros objetos sexuais (homossexualidade, pedofilia, bestialidade) ou através de outros alvos sexuais (outras partes do corpo que não as genitálias). Também há perversão se o orgasmo estiver subordinado a certas condições extrínsecas (fetichismo, sadomasoquismo). O estabelecimento de uma norma – organização genital da pulsão sexual – não importa para Freud no sentido do consenso social, mas como parâmetro teórico para estudar o desenvolvimento psicossexual dos indivíduos. O autor faz questão de enfatizar que a chamada sexualidade normal não é um dado da natureza humana, de modo que seria imprópria a reprovação cabal da perversão: “A maioria das transgressões são um componente que raramente falta na vida sexual das pessoas sadias.” (FREUD, 1996, p. 152) O autor ainda aborda a dificuldade de estabelecer com precisão as diferenças entre as várias manifestações possíveis de satisfação da pulsão sexual no indivíduo sadio e os sintomas patológicos daqueles que acabam por interferir na ordem social. A exclusividade e a fixação parecem ser os sinais de um desvio que comprometa a sanidade do indivíduo. No caso específico da pedofilia, tema central de O caderno rosa de Lori Lamby, Freud, embora a condene, admite que esta seja uma prática que ocorre “com a mais insólita freqüência”, o que revela muito sobre a mente humana: (...) em geral; [as crianças] passam a desempenhar esse papel [de objetos sexuais] quando um indivíduo covarde ou impotente presta-se a usá-las como substituto, ou quando uma pulsão urgente (impreterível) não pode apropriar-se, no momento, de nenhum objeto mais adequado. Ainda assim, é esclarecedor sobre a natureza da pulsão sexual o fato de ela
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admitir tão ampla variação e tamanho rebaixamento de seu objeto, coisa que a fome, muito mais energicamente agarrada ao seu objeto, só permitiria nos casos mais extremos. (...) Eu opinaria que este fato, ainda por esclarecer, seria uma indicação de que as moções da vida sexual, mesmo normalmente, encontram-se entre as menos dominadas pelas atividades anímicas superiores. (Ibidem, p. 140-141)
A idéia contida no fragmento acima de que a pulsão sexual no homem é da ordem do precariamente controlável reaparece em texto de Susan Sontag. A autora de “A imaginação pornográfica” afirma: Por domesticada que possa ser, a sexualidade permanece como uma das forças demoníacas na consciência do homem – impelindo-nos, de quando em quando, para perto de proibições e desejos perigosos, que abrangem do impulso de cometer uma súbita violência arbitrária contra outra pessoa ao anseio voluptuoso de extinção da consciência, à ânsia da própria morte. (...) Todo indivíduo sentiu (no mínimo na imaginação) o fascínio erótico da crueldade física e uma atração erótica em coisas vis e repulsivas. Tais fenômenos fazem parte do espectro genuíno da sexualidade, e, se não devem ser descritos como meras aberrações neuróticas, o retrato parece diferente do que é incentivado pela opinião pública esclarecida, bem como menos simples. (...) O homem, animal doentio, traz consigo um apetite que pode levá-lo à loucura. (1987, p. 6162)
A certa altura do texto, a menção da autora às perversões – definida como “elementos naturais do apetite sexual” (Ibidem, p. 61) – aparece entre aspas, a sugerir seu desacordo com a acepção negativa do termo. Assim, embora o caráter afrodisíaco da narrativa possa estar comprometido pela consciência moral de quem o lê, já que as perversões devem ser mantidas ou entre quatro paredes ou no limbo da consciência, seu efeito físico de excitação não pode ser categoricamente rechaçado. Excluí-lo totalmente é fechar os olhos para seqüências narrativas de extrema acuidade descritiva, como as anteriormente citadas, as quais descrevem uma experiência comum à imaginação pornográfica, presente em maior ou menor grau em todo ser humano e por isso passível de ser trabalhada para fins estéticos. Goulemot (2000) chama de “perversidade específica” o “defeito” que pretensas narrativas pornográficas apresentam quando decidem explorar as zonas sombrias da psique humana. Para o autor, o excesso de perversidades, quer dizer, de comportamentos sexuais desviantes, não são de modo algum os meios mais eficazes de despertar o desejo do leitor.
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Podemos observar que, por detrás dessa concepção, está a noção, contrária a Freud e Sontag, de que a perversão pertenceria a um comportamento de exceção no ser humano. Goulemot não considera a complexidade dos mecanismos psíquicos que podem levar o indivíduo a participar sensualmente do texto que lê. O caderno rosa de Lori Lamby está repleto dessas “excentricidades” que para o autor deveriam ser rechaçadas. Além da pedofilia patente, há a menção a fetiches – as “meias furadinhas pretas” com que um dos clientes quer presentear Lori –, descrições de fantasias secretas – como o homem que pede para a menina imitar um gatinho – e até simulações de incesto e atos de coprofilia. A variedade de parceiros e de comportamentos visa a demonstrar justamente a normalidade e recorrência dos pequenos segredos acerca dos apetites sexuais que todo indivíduo carrega. Se pensarmos somente na pornografia comercial, pertencente à indústria do entretenimento e portanto co-atuante na manutenção do status quo, torna-se claro o porquê dela estarem excluídas as manifestações mais heterodoxas de expressão do desejo. Se encararmos a pornografia, no entanto, de forma menos pejorativa, concordaremos com Susan Sontag em que as mesmas perversões específicas, literariamente, se configuram como sintomas do alto potencial criativo da imaginação pornográfica. Não temos dúvida de que extraliterariamente a prostituição infantil é altamente condenável, assim como o abuso sexual de crianças. O que não podemos negar é o aproveitamento estético que pode ser feito a partir da pedofilia enquanto elemento dessa zona desprezada da consciência humana. No caso da obra analisada, a exploração do tema da sexualidade infantil tem uma função bastante específica no texto. A imagem corrente da criança angélica e assexuada é categoricamente negada em favor de uma representação hiperbólica da presença da pulsão sexual na infância. Freud deve ser novamente invocado a esse respeito. Foi ele o responsável por macular a concepção (ainda não totalmente desconstruída) de infância como recanto da ingenuidade e inocência ao afirmar que desde o nascimento o indivíduo traz consigo germes de moções sexuais que serão domadas ao longo do tempo durante seu processo de inserção social. É bastante conhecida sua idéia de que a sexualidade latente nas crianças se caracteriza por uma perversidade polimórfica que pode induzi-las a todo tipo de transgressões, visto que os dispositivos instauradores do interdito – a vergonha, o asco e a moral – ainda estão em processo de construção. Essa disposição polimorfa infantil, segundo Freud, é uma tendência universalmente humana e originária, portanto natural, que
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deve ser domesticada em favor da civilização (FREUD, 1996, p. 180-181). Daí a permanência da perversão na fase adulta: Poderíamos mesmo ir mais longe neste sentido e definir a sexualidade humana como sendo, no fundo ‘perversa’, na medida em que não se desliga nunca inteiramente das suas origens, que lhe fazem procurar a sua satisfação, não numa actividade específica, mas no ‘lucro do prazer’. (apud LAPLANCHE e PONTALIS, 1997, p. 434)
O que diferencia o adulto da criança é o estabelecimento de uma consciência moral que põe fim ao período despreocupado e prazeroso da “imoralidade infantil” (ARANGO, 1991, p. 106). Dessa forma, a escolha por uma ninfetinha sem complexo de culpa para desempenhar as mais lúbricas ações em troca de dinheiro está estritamente relacionada à intenção de criticar a indústria editorial e conseqüentemente a sociedade de consumo que lhe serve de suporte. A relação com a posição do escritor contemporâneo frente a essa realidade se faz na medida em que Lori Lamby também é uma escritora e pretende publicar suas memórias sexuais para assim ajudar seu pai financeiramente. A força da comparação reside inegavelmente na escolha acertada e extremada da consensual ingenuidade infantil corrompida pelo dinheiro, apontando para a similar prostituição do escritor em tempos de profissionalização e submissão ao mercado: Quem será que inventou isso da gente ser lambida, e porque será que é tão gostoso? Eu quero muito que o moço volte. Tudo isso que eu estou escrevendo não é pra contar pra ninguém porque se eu conto pra outra gente, todas as meninas vão querer ser lambidas e tem umas meninas mais bonitas do que eu, aí os moços vão dar dinheiro pra todas e não vai sobrar dinheiro pra mim, pra eu comprar as coisas que eu vejo na televisão e na escola. Aquelas bolsinhas, blusinhas aqueles tênis e a boneca da Xoxa. (CRLL, p. 18)
A metáfora sinaliza para uma preocupante tendência à naturalização do processo de elaboração do livro como mera mercadoria da indústria cultural, cujas leis devem ser obedecidas cegamente, como Lorinha ingenuamente obedece aos pais – embora goste de fazê-lo, não só pelo prazer físico que experimenta, mas principalmente pelo dinheiro que recebe. Alguns escritores contemporâneos, frente à sedução que possibilidade de lucro alto promove, lutam para não se renderem à mercantilização fácil de seu ofício. A cena abaixo toma ao pé da letra a máxima de que o dinheiro pode proporcionar prazer:
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Ai, tio, eu não quero que você fique pobre, é tão gostoso ter dinheiro, tão gostoso que ontem de noite na minha caminha, eu peguei uma nota de dinheiro que a mamãe me deu e passei a nota na minha xixiquinha, e sabe que eu fiquei tão molhadinha como na hora que o senhor me lambe? Sabe por que eu fiz assim? Eu pensei assim: se o dinheiro é tão bonzinho que a gente dando ele pra alguém a outra gente dá tanta coisa bonita, então o dinheiro é muito bonzinho. E eu quis dar um presente pro dinheiro. E um bonito presente pro dinheiro é fazer ele se encostar na minha xixiquinha, porque se você, o homem peludo, e o outro, e o Juca também gosta, ele, dinheiro, também gosta, né tio? (CRLL, p. 89)
A excelência da escrita parece não valer mais nada nesse mundo de valores invertidos: “Por que será que não dão dinheiro pro papi que é tão gênio, e pra mim eles dão só dizendo que sou uma cachorrinha?” (CRLL, p.23-25), indaga a perplexa Lori. Em outras palavras, enquanto a mediocridade da produção é não raro coroada financeiramente, os escritores de projeto artístico em conflito com o mercado penam para sobreviver: “Gênio é a minha pica, gênios são aqueles merdas que o filho da puta do Lalau gosta, e vende, VENDE! Aqueles que falam da noite estrelada do meu caralho, e do barulho das ondas da tua boceta, e do cu das lolitas.” (CRLL, p. 85) O critério de qualidade é agora baseado em números de venda, e o grande público, definido como “anarfa” (analfabeto) pelo pai de Lori, é o responsável pelo destino dos escritores. À falta de alternativas, a saída é integrar-se ao sistema – não sem embate consigo e com os outros: Papi hoje teve uma crse grande, quero dizer crise grande. Ele falou pra mami que quer morar no quintal, que não agüenta mais cadeiras, mesas, livros, camas, e que nunca ele vai conseguir escrever o merdaço que o salafra do lalau quer, que está tudo um cu fedido. (CRLL, p. 84)
Nada mais exemplar desse choque ético que a noção de pacto com o demônio: “Eu sou um escritor, meu Deus! UM ESCRITOR! UM ES CRI TOR!!!, vou fazer um pato ( o que será, hein tio?) com o demônio, vou vender a alma pro cornudo do imundo!” (CRLL, p.84) O humor das várias tiradas pretensamente inocentes da personagem nada mais é que conseqüência da ironia hilstiana que descortina os bastidores da realidade opressora descrita acima: Por que será que ninguém descobriu pra todo mundo ser lambido e todo mundo ia ficar com dinheiro pra comprar tudo o que eu vejo, e todos também iam comprar tudo, porque todo mundo só pensa em comprar
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tudo. Os meus amiguinhos lá da escola falam sempre dos papi e das mami deles que foram fazer compras, e então eu acho que eles são lambidos todos os dias. (CRLL, p. 22)
Outro exemplo da crítica ferina e debochada de Hilda Hilst pode ser visto nas instruções de Lalau, o editor, levadas a cabo na própria feitura do livro: Porque eu ouvi também o Lalau dizer pro papai que não era pra ele escrever um calhamaço de putaria (desculpe, mas foi o lalau que disse), que tinha que ser médio, nem muito nem pouco demais, que era preciso ter o que ele chamou de critério, aí o papai mandou ele a puta que o pariu (desculpe de novo, gente, mas foi o papi que falou), então deve ser nem muito grosso nem muito fino, mas mais pro fino, e por isso, eu também, se quiser ver meu caderno na máquina do tio Lalau, não posso escrever dois cadernos, senão ele não põe na máquina dele de fazer livro. (CRLL, p.35-36)
O riso da reflexão também vai aparecer nas referências aos nomes de vários outros ficcionistas, propositalmente de narrativas obscenas, como D.H. Lawrence, Henry Miller e Georges Bataille. Este último é chamado pelos personagens de Batalha (tradução do seu sobrenome francês), radicalizando o aspecto de duplo registro da menção desses nomes – assim como acontece com as citações, outro aspecto apontado por Goulemot como sendo uma falha de construção do romance licencioso. O autor argumenta que tanto a citação quanto a paródia orientam o leitor para o discurso de outrem, ou seja, o desviam da focalização nas situações lúbricas, incitando-o a tomar parte ativa no processo de recepção/ elaboração do texto. Sem a decodificação desses nomes, não é possível perceber que o que Hilda Hilst quer mostrar é exatamente seu conhecimento da tradição literária obscena, de forma a aproximar seu texto de um conjunto de obras que fizeram da imaginação pornográfica sua matéria-prima. A única referência que deve ser problematizada é a Flaubert, que embora não tenha sido um escritor obsceno, foi a julgamento sob acusação de ofensa à moral e aos bons costumes devido à publicação de Madame Bovary, como tivemos oportunidade de mencionar anteriormente. Não por acaso Goulemot também chama de defeito de construção o distanciamento irônico do autor, pois é justamente esse distanciamento o responsável pela tomada de posição crítica quanto ao objeto de composição e de onde emerge o humor devastador daquele que, situado em posição superior, porque não ludibriado pela aparência das coisas,
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pode identificar as distorções da realidade e se diferenciar, pelo poder da reflexão, da maioria. Todos os defeitos elencados por Goulemot e abordados até o momento serão propositalmente evitados na feitura de outro caderno, elaborado mais ao gosto do público adulto e, portanto, em tese, mais palatável ao gosto médio. Na narrativa encaixada (porém não em abismo, porque não especular) “O caderno negro”, o funcionamento da narrativa pornográfica comercial vem à tona.
3.2 O caderno negro Tais textos [os que fracassam] não são, no entanto, desprovidos de interesse; (...) porque eles revelam, graças ao fracasso mesmo, o modo de funcionamento dos textos pornográficos bem sucedidos. (Jean-Marie Goulemot)
Se as peripécias descritas por Lori em seu caderno rosa, eivadas, apesar de tudo, da ingenuidade infantil que mal compreende o mundo adulto, pode ainda suscitar alguma dúvida quanto ao pretenso objetivo de excitar quem as lê – evidentemente em virtude do caráter patológico que envolve a pedofilia –, o mesmo não pode ser dito em relação à história criada por seu pai e caprichosamente reproduzida por ela em seu diário. O escritor personagem adulto apresenta, na composição de uma nova narrativa, todos os contrapontos do mundo ficcional cor-de-rosa da personagem-mirim. Não faltam nomes, em “O caderno negro”, para o que Lori sugeriu com diminutivos e definições inocentes (“coisinha”, “piupiu”, “água de leite”). Tal contraste não é gratuito e a autora faz questão de explicitar, através de seu duplo, o pai de Lori, seu processo de composição: Mami – Que história é essa de cacetinha piupiu bumbum, que droga, não é você que diz que as coisas têm nome? Papi – Você é mesmo burra, Cora, isso é o começo, depois vai ter ou pau ou pênis ou caralho, e boceta ou vagina e bunda traseiro e cu, depois, Cora, eu já te disse que é a história de uma menininha, eu tô no começo, sua imbecil. (CRLL, p. 69-70)
Se o ato sexual já era explícito no diário da menina, a ficção criada pela personagem hilstiana se mostra coerente com os preceitos básicos da pornografia:
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“privilegiar os órgãos em detrimento dos corpos, e os corpos em detrimento dos seres” (MORAES, 1984, p. 52). Além disso, “O caderno negro” não deixa nada a desejar em matéria de voyeurismo, o qual se configura como um dos pontos nodais da narrativa pornográfica. A exibição dos corpos e a encenação do ato são componentes de um espetáculo a ser visto e apreciado: “Aí temos a chave da narrativa erótica [sinônimo de pornográfica]: a composição em quadro, uma solicitação do olhar, um chamado insistente ao amador para que ele se ponha suficientemente à distância para enxergar bem, admirar e escrutar.” (GOULEMOT, 2000, p. 71) No entanto, esse voyeurismo não é passivo. “O quadro percebido [pela testemunha indiscreta] é um convite insistente a participar dos jogos eróticos, a tomar sua parte no gozo entrevisto. Esta testemunha, inscrita na narração, é a figura por meio da qual se encena o desejo do próprio leitor.” (Ibidem, p. 72) Hilda Hilst se mostra consciente desse recurso ao ficcionalizar o leitor- voyeur em Edernir, personagem criado pelo pai de Lori, que lentamente passa de observador a participante do ato libidinoso observado: Só não pensei no Dedé. E foi ele mesmo quem vi assim que cheguei. Dedé – O Falado, o delicado, o maneiroso, com a cabeça em baixo da cadeirinha e Corina pelada, sentada em cima. Aquela fenda na cadeira era para Corina se sentar com a vagina no buraco (acertei!) mas não pra refrescar a dita cuja, mas para ser lambida. O Dedé enquanto fazia isso de masturbava e arreganhava os dedos do pé se esticando todo. Quando eu cheguei ele estava esporrando. Ela, ainda se mexendo pra frente e pra trás, rindo gostoso. Não houve o menor sinal de constrangimento ou surpresa. Corina disse: “Vem também Ed, ta de lascar”. Dedé, largado em baixo da cadeirinha, falou molenguento, “Tá demais de bom, Ed, tá danado de bom”. (...) Continuei encostado na soleira da porta. E pueril e inocente comecei a dar tratos à bola: então é isso a vida. (CRLL, p.61)
O trecho acima é um dos muitos que nos mostram outro aspecto importante da narrativa pornográfica: a composição de cenas concentradas em episódios lúbricos, sem qualquer enquadramento mais abrangente de enredo. Cada episódio procura ao máximo se concentrar, como exige o gênero, na descrição detalhada de um ato sexual completo, sem interrupções que possam desviar o leitor- voyeur do fluxo narrativo contínuo e gradativo rumo à liberação da energia sexual estimulada – do personagem e do leitor. A descrição realista de episódios sexuais sucessivos tem por objetivo claro fazer o leitor seguir os movimentos dos personagens até o orgasmo. Depois de descrever longamente uma cena erótica entrevista por uma janela, Edernir, o narrador-personagem criado pelo pai de Lori,
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declara: “Claro que esporrei vendo e ouvindo toda aquela putaria.” (CRLL, p.59) Goulemot chama a atenção para a estrutura em abismo que se apresenta na maioria dos romances licenciosos e que fica bastante evidente no exemplo citado: Edernir duplica especularmente o leitor de sua narrativa obscena. É como se este, assim como o próprio protagonista, tivesse observado a cena descrita por uma fresta indiscreta e, assim como ele, reagisse fisicamente. Muitos outros elementos da narrativa pornográfica comercial comparecem a “O caderno negro” e fazem dele o exemplo mais acabado de aproveitamento consciente dos traços específicos desse tipo de narrativa. A começar pela epígrafe atribuída a D. H. Lawrence, tudo na narrativa aponta para outro porta-voz que não uma criança, como já vimos pela mudança de tom de ambos os discursos. Além da exposição exagerada de órgãos, a descrição de atos sexuais prodigiosos e a crueza de vocabulário, não faltam à história outros elementos básicos do gênero, como veremos a seguir. Em primeiro lugar, a caracterização de Corina em tudo corresponde à mitologia da mulher propagada por esse ramo específico da indústria do entretenimento em sua versão mais popularizada. Seu papel é o de mero objeto sexual, e só se apresenta como sujeito para agir segundo o desejo do homem: iguala-se a este em potência e em desejo, apresentando os mesmos impulsos sexuais. A inverossimilhança da preferência pela sodomia reclamada ardentemente por Corina é um exemplo dessa mulher moldada pelo apetite masculino, sempre disponível e insaciável. Além disso, o ato de sodomia é um sinal de masculinidade, mesmo nas relações homossexuais, que pretende provar a superioridade do “ativo” em relação ao “passivo”. A mulher da narrativa pornográfica nunca enuncia seu próprio desejo, pois está a serviço do prazer masculino. Sua fome por sexo é demonstrada pelos gritos e contorcionismos que pontuam a narrativa e não por acaso o adjetivo mais utilizado para qualificá-la é “puta”. A prostituta é a encarnação perfeita da ninfomaníaca desejada pelo homem, pois age como protagonista do romance pornô – não impõe resistência e elimina os preâmbulos da sedução e da conquista. A caracterização do homem está subentendida na da mulher. Super-homem, representante da cultura fálica, tem potência sexual ilimitada e órgãos sexuais descomunais. É modelo de solução para o medo da ineficácia que assola o consumidor de pornografia, pois não falha nunca. Edernir, moço inexperiente, narra em um episódio estranho à pornografia comercial um momento de disfunção sexual. A reação negativa de Corina, no entanto, confirma a regra da infalibilidade do macho e encena uma preocupação
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mais masculina que propriamente feminina. Conectado a esse aspecto está outro, o da homofobia, que caracteriza a pornografia comercial mais popular. Sendo produto mormente produzido por homens heterossexuais para homens heterossexuais, a homossexualidade tolerada é somente a feminina, e evidentemente como afrodisíaco e convite à participação do homem. A homossexualidade masculina é rechaçada e só aparece em “O caderno negro” como mero acidente de percurso e, ainda assim, de forma a menosprezar o indivíduo passivo: Dedé chegou bem perto de mim e falou: “Você é lindo, Edernir, eu gosto mesmo é de você”. Dei-lhe um tapona na boca, ele rodopiou, ficou de bunda para minha pica, enterrei com vontade minha linda e majestosa caceta naquele ridículo cu do Dedé. Ridículo é o que eu pensava de tudo àquela hora. Ele gritava: “Ai ai ai que delícia a tua cacetona, Edernizinho. Assim que esporrei (apesar de ridículo), dei-lhe uma vastíssima surra de cinta e quando ele já ia desmaiando a Corina tentando fugir, agarrei-a, forçando para que continuasse a masturbar o bicho. (CRLL, p. 62-63)
O bicho a que o personagem se refere é um jumento que entra cena para aumentar as possibilidades de troca entre os casais. A intercambialidade é outra regra da pornografia comercial. Na “pornotopia”, todos os corpos se equivalem; todos são escravos do prazer. Mesmo a presença da zoofilia não é elemento aberrante no contexto geral dessa pornografia. Segundo Nuno César Abreu (1996), esse é um elemento característico da produção nacional voltada para o cinema na tentativa de competir com a indústria estrangeira. Ainda segundo o autor, os filmes pornográficos brasileiros, principalmente os pertencentes à chamada pornochanchada, por excelência exploradores de bizarrices como a zoofilia, primam pelo deboche e pela comicidade, traços que parecem ser condizentes com o espírito crítico hilstiano. A oscilação entre “a exaltação da beleza do corpo e a pintura de sua decadência ou de sua patologia” (GOULEMOT, 2000, p. 110) – presente no texto no contraste entre a beleza de Corina e a falta de dentes de seu parceiro Dedé - O Falado – também estão de acordo com os preceitos pornográficos comerciais. Nem mesmo o padre lúbrico deixou de comparecer ao enredo, no melhor estilo romance libertino do século XVIII. Completa a obra a linearidade da narrativa, para não dificultar o trabalho do leitor, linearidade que está completamente ausente de O caderno rosa de Lori Lamby como um todo. Apesar de “O caderno negro” reunir em sua composição traços essenciais da literatura pornográfica comercial, é importante salientar que estão dispersos pelo texto
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vários índices que demonstram a presença de um autor frustrado com o que escreve e que tem dificuldade de assumir inteiramente sua adesão às convenções do gênero. Esse autor frustrado é o pai de Lori, projeção de Hilda Hilst no texto, pressionado pelo editor a escrever “bandalheiras” para continuar empregado. Um desses índices é a digressão temática que desvia a atenção do foco sexual em alguns trechos, como o que se segue: No caminho de volta senti o meu pau duro dentro das calças, cada vez que eu pensava nos peitos e nos bicos pontudos da Corina o meu pau levantava um pouco mais. Eu tinha que ter passado pela capelinha mas do jeito que eu estava não podia. A capelinha era uma construção caindo aos pedaços, cheia de bancos duros, e onde o padre Mel falava sempre aos domingos. Ele se chamava padre Mel porque as beatas diziam que ele falava tão doce que as palavras pareciam mel. O nome verdadeiro dele era Tonhão. Padre Tonhão. Bem, voltando ao meu pau. Eu estava tão perturbado que precisei pôr as mãos dentro das calças, e segurei o caralho com força pra ver se ele se acalmava mas o efeito foi instantâneo. Esporrei. (CRLL, p.47)
O personagem-escritor tenta ater-se às regras ao máximo, mas nem sempre é bem sucedido. Mesmo nos trechos em que a descrição do ato sexual está de acordo com os preceitos realistas da pornografia, certas interferências do autor ficcional denunciam que este não está à vontade com sua criação e por isso quer demarcar seu distanciamento em relação à matéria de sua ficção: E por uma bela fresta da janela toda carcomida vi: padre Tonhão arfava. A batina levantada mostrava as coxas brancas como deveriam ser as coxas de uma rainha celta. (Rainha celta... meu Deus, de onde é que veio isso?) (...) Corina chorava, implorando, segurava os peitos com as mãos, fazia carinha de criança espancada (coitadas das crianças). (CRLL, p. 57 – grifos nossos)
Esse olhar de fora é o que constitui por excelência a postura do ironista, que se coloca acima do desenrolar dos eventos para julgar sua criação (BÉGUIN apud BOURGEOIS, 1994, p. 55). Não é à toa que “O caderno negro”, por causa do posicionamento crítico de seu autor, vai parar em uma prateleira intitulada “bosta” e lá permanece sem que o pai de Lori tenha coragem de mostrá-lo ao editor, embora fosse exatamente o que este esperava publicar. Podemos dizer então que a função dessa narrativa encaixada, que ocupa boa parte de O caderno rosa de Lori Lamby , é estilizar as tentativas desse escritor contemporâneo
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que se aventura na literatura de entretenimento pressionado pelo editor. Tal estilização aponta para uma intenção metapornográfica, portanto crítica, que irá fundamentar-se em outros aspectos da narrativa.
3.3 De como Lori aprendeu a usar a língua A escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra. (Roland Barthes)
A ironia hilstiana terá como alvo não só a realidade extraliterária. Na verdade, podemos dizer que é duplo o movimento da crítica da autora: da reflexão sobre a literatura e o mercado, emerge a reflexão sobre o próprio fazer ficcional, fundindo conteúdo e forma. O que permite esse movimento é o distanciamento irônico depreciado por Goulemot e que rege a composição narrativa. Dizer que O caderno rosa de Lori Lamby tem como princípio de construção a ironia significa dizer que o enredo – enunciado primeiro – está subordinado ao processo crítico da reflexão que imprime um segundo significado ao texto. Esse significado segundo se complexifica na medida em que desconstrói não só verdades instituídas da realidade empírica como também, e principalmente, as da realidade ficcional. Sendo assim, o significado superficial da narrativa está bem expresso em uma primeira leitura do sobrenome da protagonista: Lori Lamby é individualizada pelo ato que mais pratica ao longo da narrativa, lamber. No entanto, o uso da língua por Lori não se restringe à expressão lúbrica. Mais que a simples menção ao seu ato preferido, o verbo remete à questão do trabalho meticuloso com a palavra literária, já que a língua é pressuposto básico para a realização de ambos os atos, o sexual e o da escrita. Sendo assim, a dedicatória da autora à memória da língua guarda a ambigüidade primordial do texto: o significado subjacente ao enunciado pornográfico da obra é a afirmação da literatura enquanto arte da palavra e não como mero produto da indústria cultural: “Sabe que eu estou fazendo uma confusão com as línguas? Não sei mais se a língua do Juca foi antes ou depois da língua daquele jumento do sonho. Mas será que essa é a língua trabalhada que o papi fala quando ele fala que trabalhou tanto a língua?” (CRLL, p.83) Implodindo a monossemia que Goulemot acredita ser condição primordial para garantir o
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realismo da representação pornográfica, o que Lori faz com a língua, além de lamber, é manipulá-la ao sabor de sua imaginação. Afinal de contas, assim como seu pai, ela também está escrevendo sua história para ser colocada na máquina de fazer livro do tio Lalau. A essa altura, torna-se necessário fazermos algumas observações sobre o processo narrativo de O caderno rosa de Lori Lamby , pois embora a menina seja a narradora protagonista, a questão é muito mais complexa do que parece a uma primeira leitura. Isso porque a presença de seu pai no texto enquanto personagem-escritor personagem-escritor torna a narrativa problemática do ponto de vista da relação por si só tensa entre o autor e o narrador. A narrativa se estrutura a partir do procedimento da mise en abyme – espécie de espelho interno que reflete o conjunto da obra por duplicação. Uma das formas mais comuns de mise en abyme é
o resumo intratextual, quer dizer, “a obra dentro da obra”, condensando
ou citando a matéria da narrativa. É o caso da famosa cena da peça de teatro a que os personagens personagens da peça de teatro Hamlet, de Shakespeare, assistem e na qual é encenado o próprio drama que os personagens vivem. É, pois, um procedimento de reflexão, em duplo sentido: reflete especularmente a obra, duplicando-a, ao mesmo tempo em que torna sua construção visível, refletindo criticamente sobre seu processo de elaboração. No caso da narrativa em questão, a mise en abyme que encontramos é a do processo criativo do escritor, quer dizer, aquela que se caracteriza pela “presentificação diegética” do produtor do texto, colocando em evidência a produção textual como tal e revelando o contexto que condicionou tal produção (DÄLLENBACH, 1977, p. 100). Dessa forma, a construção em abismo, tematizando o papel do escritor e refletindo no texto a realidade empírica, conjuga os dois propósitos irônicos de Hilda Hilst na medida em que evidencia os alvos extra e intraliterários da autora: o mercado editorial que condiciona o trabalho do escritor e o texto como artifício. Assim é que podemos afirmar que o pai de Lori é o desdobramento claro da escritora empírica Hilda Hilst, cuja vasta obra, premiada inúmeras vezes por críticos especializados, especializados, não alcançou sucesso de público e grandes vendagens: vendagens: Eu já vi papi triste porque ninguém compra o que ele escreve. Ele estudou muito e ainda estuda muito, e outro dia ele brigou com o Lalau que é quem faz na máquina o livro dele, os livros dele, porque papai escreveu muitos livros mesmo, esses homens que fazem os livros na máquina têm o nome de editor, mas quando o Lalau não está aqui o papai chama o Lalau de cada nome que eu não posso falar. O Lalau falou pro papi: por que você não começa a escrever umas bananeiras pra variar? Acho que não é bananeira, é bandalheira, agora eu sei. (CRLL, p. 19)
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A caracterização do duplo da autora fica ainda mais evidente pelo fato de o pai da personagem personagem principal ser um escritor que recorre à pornografia para tentar ser lido e lucrar finalmente com sua atividade. Mas essa duplicação vai ainda mais adiante. A complexidade do recurso está em que a própria personagem-mirim é também um duplo do personagem personagem identificado como seu pai, já que também está escrevendo a sua história – igualmente um relato pornográfico, embora não tenha consciência disso – para ser publicado e ganhar dinheiro. Por extensão, Lori é também duplo de Hilda: o duplo que se arrisca sem remorsos a exercícios de lubricidade e experimentação. Na primeira edição de O caderno rosa de Lori Lamby , a foto da autora ainda criança em uma das capas reforça os
laços de identificação e intensifica a ironia ironi a mordaz que subjaz à narrativa. Infelizmente, tal paratexto foi abolido abolido na edição mais recente da obra feita feita pela editora Globo. Globo. Em resumo, temos, no mundo empírico, a autora Hilda Hilst que, almejando inserirse no mercado, resolve escrever “umas coisas porcas”. Esta se projeta no texto que cria via pai de Lori, um autor pressionado pelo editor para escrever “bandalheiras” “bandalheiras” comercializáveis. O pai de Lori, por sua vez, cria a personagem ninfetinha Lori Lamby, que também é a autora de aventuras sexuais que pretende publicar. A mise en abyme que se instala é a do tipo paradoxal, pois estamos lendo um livro cujo tema é a sua própria criação. Ou melhor, estamos lendo um livro no ato de sua elaboração. O caderno rosa de Lori Lamby é
a narrativa de Hilda Hilst, mas também é o livro que o pai de Lori está
escrevendo e é também o diário de Lori-escritora... Esse jogo de espelhos instaura uma confusão de níveis textuais que irrompem uns nos outros, provocando um verdadeiro curto-circuito para o leitor menos atento. A associação desse contexto à teoria genettiana dos níveis narrativos (GENETTE, 1979) emerge naturalmente, embora deva ser problematizada porque sabemos que quem fala no texto (narrador – entidade intratextual) não é quem escreve (autor – entidade extratextual). A ficcionalização deste último traz implicações que não podem deixar de ser consideradas. Em vez de níveis narrativos, devemos falar então em níveis de produção textual, já que a rigor, em O caderno rosa de Lori Lamby , só há a narração da própria Lori, que também é autora ficcional. Hilda, autora empírica (nível primeiro de produção textual), se metamorfoseou em pai de Lori, personagem-escritor personagem-escritor (nível segundo de produção textual) e delegou a ele a responsabilidade pelo relato. Este, no entanto, não narra coisa alguma porque criou a personagem-escritora personagem-escritora Lori Lamby (nível terceiro de produção textual) para o papel de narradora. narradora. Mesmo “O caderno negro”, que descobrimos descobrimos depois ser ser de autoria
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do pai de Lori, é narrado por outro personagem, Edernir. Temos assim apenas uma narradora, embora tenhamos dois autores (excluindo-se aí a autora empírica): a menina, totalmente desenvolta no trato com a matéria obscena, e seu pai, insatisfeito com a opção pela literatura de mercado, mercado, o que faz com com que “O caderno caderno negro”, apesar apesar das características características da pornografia comercial, apresente elementos que lhe são estranhos. É só através de Lori, única mediadora do relato, que podemos notar algumas fraturas que vão sendo expostas ao longo do texto para que entrevejamos o nível superposto ao nível terceiro da autora-mirim. Tais fraturas pretendem justamente denunciar a presença da entidade responsável pela criação da personagem Lori, o que caracteriza mais uma vez a espessura irônica do autor ficcional. Segundo Ronaldes de Melo e Souza (2000), a ironia especificamente literária, no texto narrativo, se define pela instalação da consciência crítica do autor na obra para questioná-la, o que faz com que o enunciado seja sustado para que se assinale o caráter de artificialidade do texto literário. A conseqüência de tal atitude é o desdobramento irônico desse autor naquele que narra (Lori Lamby) e naquele que comenta o narrado (o pai de Lori Lamby), tornando-se um crítico de seu próprio texto. Três exemplos significativos podem dar conta desse ponto de formas variadas. O primeiro deles é um dos diálogos entre a mãe e o pai de Lori, reproduzida por esta em seu caderno, e que manifesta o nível imediatamente superior à narrativa que Lori produz: Cacetinha? (mami) Mas é a história de uma ninfetinha, você não entende? (papi) Ah, isso vai ficar uma bosta mesmo. (mami) Mas depois melhora, gente, a coisa tem que ter começo, meio e fim. (papi para mami e outros amigos) Vamos ver, eu ainda não dou uma tusta pra essa história. (Lalau) (CRLL, p. 26)
“Cacetinha” se refere a um trecho em que Lori descreve uma de suas proezas sexuais. Claramente percebemos que a menção da personagem se refere a um aspecto do relato ficcional criado por seu marido, ou seja, temos personagens do segundo nível comentando a elaboração do terceiro nível narrativo. Outro exemplo da desconstrução ilusionista segue abaixo: “Corno da pica do Lalau, eu não vou conseguir ir até o fim!” Mamãe diz: “Fica frio, amor, vai sim”. Papi diz: “Então esquenta a tua cona na porca da minha cadeira e vê se inventa qualquer coisa” (...).
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Mami diz: “E quem sabe, meu amor, se você puser um menininho, um mocinho...” (CRLL, p. 75-77)
Sugestão aceita, o “mocinho” aparece mais adiante no terceiro nível, a narrativa de Lori: “Olha, tio, não sei se o senhor vai achar gostoso, mas o menino preto, quando eu fui falar com ele lá perto da estrada, disse que a gente podia namorar um pouco. Eu fui, e você não sabe como é bonito pau preto. Ele se chama José, mas chamam ele de Juca”. (CRLL, p.83) O terceiro exemplo é o da criação de um personagem por Lori, atestando seu papel de ficcionista. A certa altura lemos: Hoje foi um dia maravilhoso e diferente. Apareceu um homem tão bonito aqui e conversou muito com mamãe e papai. Eu ouvi um pouco atrás da porta do escritório e ele disse que precisava de cenário, de mais cenário, e se podia me levar para a praia, que precisava de um cenário de saúde. (CRLL, p. 27)
As páginas que se seguem descrevem a ida de Lori para a praia com o moço – tio Abel, seu parceiro favorito – e toda a sorte de peripécias sexuais entre os dois. Páginas depois, o indício de que tio Abel é personagem de Lorinha, criado a partir de outro personagem, pertencente ao segundo nível: Papi diz: E onde é que está aquele puto que foi viajar e me mandou escrever com cenários, sol, mar, ostras e óleos nas bocetas, a menina já está torrada de sol e varada de pica, ó meu deus, onde é que está aquele merda do Laíto que pensa que programa de saúde com ninfetas dá ibope, hein? (CRLL, p.77)
Estamos diante de um curioso processo de ficcionalização da ficção. Mais adiante, a confirmação: Bom, papai, eu só copiei de você as cartas que você escreveu pra mocinha, mas inventei o tio Abel. Porque Caim e Abel é um nome do catecismo que eu gostei. Mas eu copiei só de lembrança as tuas cartinhas, eu ia inventar outras cartinhas do tio Abel quando eu aprendesse palavras bonitas. E as folhas da moça e do jumento eu devolvi lá no mesmo lugar, essa história eu também copiei como lembrança, porque você não ia me dar pra ler quando saísse na máquina de fazer livro do tio Lalau. É a primeira história do teu Caderno Negro, né papi? (CRLL, p. 95)
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O trecho acima conjuga informações valiosas. A primeira delas é sobre a autoria de “O caderno negro”. O leitor só sabe que este foi escrito pelo pai de Lori perto do desfecho da narrativa, pois até então fora induzido a pensar que o tal caderno era um presente de tio Abel para a menina. A outra grande revelação de Lori é a de que as cartas que tio Abel mandou para ela foram na verdade igualmente escritas por seu pai. Esse é um índice importante da desconstrução ficcional que se quer operar, pois a autora está esclarecendo a fonte de sua criação – embora isso possa causar certa confusão na mente do leitor, pois a matéria de sua ficção é também ficção. Essa declaração inesperada explica o porquê de as cartas de Abel serem escritas em tom tão grandiloqüente: Minha pomba rosa, minha avezinha sem penas, minha boneca de carne e de rosada cera, os cabelos castanhos de seda roçando a cintura, meu cuzinho de amora, a boca de pitanga mordiscando o rosa brilhante da minha pica sempre gotejando por você, princesinha persa. (CRLL, p.95)
A mistura de termos elevados e chulos também faz parte da estratégia geral de ironia, pois tentam demonstrar novamente as tentativas frustradas do pai de Lori – reconhecidamente um “gênio” para seus amigos e familiares – em sua incursão pela pornografia. O fato de Lori confessar ter copiado as cartas ipsis litteris contribui para o estabelecimento das relações de verossimilhança interna do texto, já que, mesmo sem desgrudar do dicionário a narrativa inteira, a garotinha de oito anos não poderia inventar tal discurso para seu personagem. A mesma mistura de estilos pode ser observada em outras passagens do livro. Poemas de dicção elevada, como o que fecha a narrativa, são igualmente introduzidos ao fluxo narrativo e desempenham a função de servir como uma espécie de válvula de escape para o escritor-gênio que está sendo obrigado a dedicar-se a escritos menos dignos de louvor. O caráter irônico dessa estratégia é evidente, assim como o das supostas cartas de tio Abel, pois a mistura de linguagem elevada e chã evidencia a falta de talento do escritor para escrever best-sellers – inclusive porque poesia é o gênero menos adequado para quem quer inserir-se no mercado, como o próprio Lalau advertiu em outro momento. Outro aspecto que merece destaque na elaboração da narrativa e que aponta para o experimentalismo de sua composição é o mosaico de gêneros que a constitui. A narrativa começa como um diário de memórias lúbricas o qual é constantemente interrompido pela narradora ora para chamar a atenção para o fato de que esse diário será publicado como
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ficção, ora para deixar o leitor entrever o nível estrutural que o sobrepõe, ou seja, o do escritor que inventou a menina que escreve o diário. Cartas pessoais são mescladas a essa narrativa principal, que contém ainda a inserção de uma outra narrativa, “O caderno negro”, copiado no diário pela menina. Tanto o diário quanto o romance epistolar foram estratégias largamente empregadas pela tradição mimética (em sentido estrito) da ficção para dar aparência de realidade a esses textos, ou seja, para fazê-los passar por documentos. Hilda Hilst utiliza esses modelos parodicamente, fazendo ruir o ilusionismo ficcional. Mini-contos “infantis” de autoria de Lori Lamby também são encaixados à narrativa maior, cada qual com estrutura autônoma. Apesar das características semelhantes às fábulas destinadas às crianças, as historinhas estão cheias de obscenidades e humor cáustico, como é o tom geral do livro. O hibridismo de gêneros afeta necessariamente a linearidade da narrativa, atestando o caráter inventivo da obra e contrariando, assim, mais uma vez, as regras mais estritas da literatura de mercado. Está clara a essa altura a importância da confissão de Lori Lamby de que tudo o que escreveu não passou de invenção. Sua matéria-prima foram os escritos desprezados pelo pai e seu aprendizado mais valioso adveio da leitura dos grandes clássicos da literatura obscena – e também das revistas e vídeos de homens e mulheres fazendo “coisas engraçadas”. Tudo operacionalizado pela imaginação sem freios de uma criança que prega uma peça dupla no leitor, já que, embora admita que tenha inventado todos os relatos obscenos e confesse o estatuto de ficção do seu caderno rosa, Lori mantém a ilusão de realidade de seus pais, tio Lalau, tio Laíto e a sua própria: Eu só queria muito te ajudar a ganhar dinheirinho, porque dinheirinho é bom, né, papi? Eu via muito papi brigando com tio Lalau, e tio Lalau dava aqueles conselhos das bananeiras, quero dizer bandalheiras, e tio Laíto também dizia para o senhor deixar de ser idiota, que escrever um pouco de bananeiras não ia manchar a alma do senhor, lembra? (CRLL, p. 92)
A reação dos pais da menina corrobora a construção da ilusão porque é verossímil e vai ao encontro das expectativas do leitor mais “politicamente correto” que sobreviveu às primeiras páginas: “Parece mesmo que vocês não gostaram, mas eu não escrevi pra vocês, eu escrevi pro tio Lalau. (...) Então vou parar, e vou sim, mami, no sicólogo que você queria chamar um pouco antes de desmaiar na minha segunda página.” (CRLL, p. 96)
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O final da narrativa parece querer amenizar o efeito de choque advindo tanto da temática da ninfetinha lúbrica prostituída pelos próprios pais quanto da desestabilização das verdades que o leitor viu desconstruídas ao longo da narrativa, embora seu propósito essencial seja problematizar a relação entre realidade e ficção. A tensão entre as esferas permanece no fim, já que agora criador e criatura, antes em níveis ficcionais diferentes, se encontram no mesmo nível, causando certa instabilidade na recepção da narrativa e embaralhando consideravelmente as relações entre autor e narrador. Ao proceder à estruturação em abismo de diferentes níveis de produção textual, o que acarreta uma confusão acerca da autoria da obra, Hilda Hilst coloca necessariamente em evidência a problemática da criação literária, sempre às voltas com os limites entre mundo real e mundo possível. O recurso dá relevo ao autor empírico como o responsável material pelo texto, sendo este produto da imaginação do artista. Além disso, localiza a obra em um processo de comunicação de que faz parte o produtor criativo do texto e aquele que o recebe por meio do narrador, aceitando-o como verdade ficcional – expressão que só aparentemente encerra um paradoxo. Sendo um mundo de faz-de-conta, ou do como se, a literatura não pode nunca ser julgada por
parâmetros estritamente externos à obra.
O recurso em questão se mostra imprescindível ao intuito hilstiano de discutir o processo de elaboração ficcional, pois, fazendo o texto dobrar-se sobre si mesmo, torna visíveis os dois níveis de construção literária, o texto como representação (produto) e o texto como reflexão (processo). O primeiro nível insere a obra no mundo real e visa à fruição da obra enquanto objeto estético. O segundo nível é obliterado pela prática literária não irônica, que faz passar a representação, que é artificial, resultado de convenções formais, por natural. A prática irônica, por outro lado, fará emergir à superfície do nível representativo as bases de sua estruturação, destruindo qualquer pretensão ilusionista. É nessa insistência na criticidade, aliada ao poder criador e ilimitado da mente do artista no manipular da linguagem, que se firmam as bases de toda obra de arte que ultrapassa os limites do seu tempo.
CAPÍTULO 4: CONTOS DE ESCÁRNIO. TEXTOS GROTESCOS 4.1 Um irônico na terra dos pornógrafos, pulhas, velhacos, vis O riso é uma arma de destruição: ele destrói a falsa autoridade e a falsa grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio. (Vladimir Propp)
Contos de escárnio. Textos grotescos (1990), Lori Lamby,
à semelhança de O caderno rosa de
inicia-se com um narrador em primeira pessoa que tematiza o ato da escrita
logo no início da trama, neste caso para justificar sua inserção tardia no mundo das letras. Assim como a protagonista Lori Lamby, Crasso, o autor ficcional do “roteiro de fornicações” com que tem início a narrativa, é um escritor de primeira viagem que se compraz com exercícios de textos lúbricos baseados em sua atribulada vida sexual. Também como Lori, sua intimidade com a matéria obscena é total: não demonstra qualquer sinal de remorso quanto ao fato de estar escrevendo uma “história pornéia”, principalmente porque seu compromisso com a literatura até então se bastava na sua função de leitor. A decisão de escrever seu primeiro livro não passou de um afã meramente circunstancial, aparentemente sem maiores comprometimentos em relação ao ofício artístico envolvendo a palavra: Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? (CETG, p. 14)
Ciente da inversão de valores a que a arte, inserida na dinâmica da indústria cultural, está submetida, Crasso, por mero oportunismo, decide igualmente aventurar-se na literatura, já que para tal – segundo ele – a qualidade da escritura não mais importa. Seu diferencial, porém, reside no fato de ter consciência de estar escrevendo “lixo”, ou seja, ele sabe que sua inserção no rol dos escritores contemporâneos não se dará por mérito artístico, mas por sua conformação às normas ditadas por quem está no mainstream. Mais uma vez a pornografia comparece como metáfora, já que Crasso admite
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ironicamente que suas memórias sexuais podem ser qualificadas como “putarias bem menos imundas” que aquelas que regem os jogos de poder que marcam as relações sociais. É esta consciência que permite que Crasso se posicione de forma privilegiada em relação à sua matéria de composição, pois o distanciamento crítico o faz questionar a própria legitimidade de seu ato de escrita. Sendo um duplo de Hilda Hilst no ofício e na ironia, esse sexagenário lúbrico encenará na trama textual o tecer e o destecer da narrativa pornográfica comercial, apropriando-se de forma lúcida de todos os estilemas do gênero. Até a entrada na trama de Hans Haeckel – o segundo autor ficcional, cujo aparecimento acarreta implicações importantes que serão consideradas mais adiante –, o texto de Crasso pode ser considerado um verdadeiro inventário das fórmulas que compõem o código da pornografia comercial. A própria estrutura da narrativa denuncia certo aspecto já mencionado anteriormente, aquele que Goulemot (2000) chamou de “composição em quadro” e que Nuno César Abreu (1996), analisando a elaboração de filmes pornô hardcore,
chamou de “estrutura episódica”. Tal técnica requer cenas que enquadram um
ato sexual específico e obedecem a uma lógica própria de elaboração. São seqüências narrativas independentes que suspendem o fluxo diegético e têm a única função de se autoexibirem. A narrativa que Crasso se propõe a escrever, inicialmente, obedece claramente a esse preceito, pois que se baseia no relato das façanhas sexuais do protagonista com diferentes mulheres, cada qual com uma peculiaridade que remete a outros lugares-comuns pornográficos: Lina, a virgem deflorada; Otávia, a afeita a práticas masoquistas; Flora, a advogada insaciável e culta; e Josete, a de “gosto exótico na comida e no sexo.” (CETG , p. 19) O relato desses episódios independentes não tem outro objetivo a não ser enfatizar o caráter repetitivo dos temas diletos do gênero pornográfico, no qual tudo deve apontar para a situação lúbrica. É sintomático que em Contos d’escárnio. Textos grotescos o “roteiro de fornicações” seja narrado por um personagem do sexo masculino, já que, como vimos acontecer em “O caderno negro” inserido em O caderno rosa de Lori Lamby , a regra geral da pornografia comercial, pelo menos a mais difundida, é ser escrita pela ótica não só heterossexual como machista, segundo a qual a subjugação da mulher à vontade do homem é condição sine qua non. O
super-homem, dotado de um órgão de proporções insólitas e de potência sexual
ilimitada, pode estar sutilmente sugerido no nome do narrador Crasso (“grosso”, que também pode remeter a “grosseiro”, “bruto”), de quem parte a reveladora afirmação: “O que eu podia fazer com as mulheres além de foder?” (CETG, p.18) A este modelo de
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virilidade corresponde um modelo de mulher que é a contrapartida natural desse superhomem. Seus traços fundamentais são a insaciabilidade, a postura de vítima frente à possessão masculina e o aparato fisiológico descomunal que permite orgasmos longos e múltiplos acompanhados de uma torrente de fluido vaginal – além da mise en scéne de que fazem parte sons vários e contorcionismos. Quase todos os elementos dessa mitologia da mulher já referida anteriormente para qualificar Corina reaparecem em Contos d’escárnio. Textos grotescos.
Crasso se diz louco pelos “ruídos extravagantes durante o prolongado
orgasmo” (CETG, p.17) de Otávia, a qual é descrita da seguinte forma pelo narrador: “Mas nenhuma outra mulher era dona desse gorgolejo na garganta. Era mais do que uma rosnada langorosa. Vinha do fundo de águas negras, mas era também pungente e langoroso.” (CETG, p.17) Da mesma forma, Flora se destaca por possuir “uma pomba molhada e faminta” (CETG, p.19) e Josete, um órgão capaz de abraçar e quase engolir, literalmente, o de Crasso. Também é ilustrativo desse caráter machista a homofobia, que já estava presente em “O caderno negro”: “Acho lindo vagina. Deus me livre de gostar de outra coisa.” (CETG, p.35) A preferência suspeita pela sodomia por parte da mulher também reaparece e é signo das relações de dominação masculina que se espraiam pela sociedade e são camufladas na pornografia comercial heterossexual. Ainda faz parte desse catálogo de fórmulas inventariado por Crasso a resistência à noção de casal, sendo esta rechaçada em nome do imperativo da intercambialidade dos corpos entregues à volúpia: Vocês devem estranhar a singularidade da minha relação com Clódia. Afinal ela era minha amante. Era sim. É verdade. Eu era o fixo. Mas a alminha de Clódia era brejeira, velhaca e sensual. Quando fizemos o trato do amor livre ela explicou: a rotina, a mesma paisagem das genitálias, faz apodrecer a sensualidade. (CETG, p. 42)
Em conseqüência da repugnância à unidade do casal, a pornografia rechaça também qualquer laivo de sentimentalismo: “Será que ando sentindo amor? Meu Deus, isso vai me brochar para sempre”. (CETG, p. 87) A insipidez emocional característica dos personagens de narrativas pornográficas pode ser encontrada igualmente no relato da sucessão de infortúnios que é a história de vida de Crasso. Contados da forma mais desinteressada possível, os episódios tendem a provocar o riso dos leitores pelo inusitado: seu pai teve um ataque fulminante num bordel, enquanto tinha relações sexuais com uma prostituta, um mês depois da morte da esposa; seu tio Vlad por sua vez, morreu enquanto fazia sexo com
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um jovenzinho, coroinha de uma igreja. O desprendimento emocional do narrador faz com que o leitor não experimente o sentimento de compaixão para com o personagem, podendo assim se isentar igualmente de qualquer conflito psicológico que possa advir do prazer experimentado pela leitura das situações lúbricas arroladas. Completa o inventário a presença da raça negra como tempero exótico nas relações sexuais, em virtude do mito que a envolve quanto à fisiologia avantajada e à sensualidade exacerbada. Claro está que a presença de indivíduos de raças/ etnias consideradas minoritárias na pornografia comercial é mais um caso de preconceito – além do dispensado à mulher – disfarçada de elogio, pois a idéia subjacente é a de que tais indivíduos seriam mais primitivos que os brancos e por isso estariam próximos dos instintos animalescos e indomáveis. Clódia, que tem obsessão por dedos de negros – e até encontra um indivíduo que aceita satisfazer sua tara – é descrita por Crasso como tendo muito de negra: “rebolado, dentes alvos, carnação, bunda perfeita, candura. E adorava negros.” (CETG, p.37) O realismo da representação, embora problematizado em amplo sentido pela narrativa de Hilda Hilst, como veremos em breve, também é aproveitado como um estilema que não pode ser menosprezado quando se trata do gênero pornográfico. Assim, da mesma forma que O caderno rosa de Lori Lamby apresenta um trabalho estético baseado em seqüências de alto teor de acuidade descritiva, também Contos d’escárnio. Textos grotescos apresenta
uma cena de valor pornográfico inegável, na qual Crasso, o
porta-voz ficcional de Hilda Hilst, tão irônico quanto ela, pode brincar conscientemente com os recursos colhidos da indústria cultural voltada para maiores. A cena em questão diz respeito ao relato que o escritor-personagem faz de uma prática comum em um bordel que freqüentava. Liló, o cliente mais assíduo, gostava de fazer uma performance que agradava a todos os presentes: praticar sexo oral com uma prostituta em público. Como manda o protocolo, a carga sexual descrita no episódio é progressiva e constante e o vocabulário o mais denotativo possível. Cada um dos gestos do showman é descrito com vagar, no ritmo em que são executados. O final do relato, que não tem outra função na economia geral da narrativa a não ser expor a perícia de Crasso em manejar mais esta regra da pornografia, não por acaso corresponde ao fim do ato sexual. Mais uma vez o aspecto do voyeurismo , essencial para a estruturação da narrativa licenciosa, é tematizado. Como vimos, a narrativa pornográfica, segundo Goulemot, é uma narrativa de voyeur . Nela, tudo se funda no olhar, porque é preciso “mostrar” pela escrita: “O livro só pode engendrar o desejo de
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gozo descrevendo os corpos oferecidos ao desejo e estimulando-o, ou encenando o quadro de gestos e as atitudes do próprio gozo”. (2000, p. 66) Liló “adorava que o vissem” (CETG, p. 27), e os freqüentadores do bordel ejaculavam só ao assistir à exibição. A estruturação em abismo está aqui presente mais uma vez. Crasso, assim como os outros freqüentadores do bordel, é o expectador da cena que reproduz verbalmente. O leitor – espera-se – deve também comportar-se como voyeur em relação à descrição minuciosa do narrador e ter a mesma reação experimentada pelo personagem saciado. Podemos afirmar, baseados na extensa lista de estilemas da pornografia comercial acima exposta, que Crasso está melhor ambientado na pornografia do que a pervertidainfante Lori, o que permite que Contos d’escárnio. Textos grotescos acabe por amenizar um possível efeito de choque no leitor e pode por isso ser considerado por Deneval Siqueira de Azevedo Filho “a mais consumível das três obras da ‘trilogia’.” (2002, p. 75) Ainda assim, a tentativa inicial desse escritor oportunista de transformar em livro suas memórias lúbricas não está isenta de ironia. Como todo personagem irônico, Crasso define-se, antes de tudo, pela lucidez. Segundo Bourgeois, esse tipo de personagem é nãosério porque tende a se tornar observador do mundo julgado como absurdo; é um “olho vivo”. (1994, p. 79) Assim, esse ironista faz questão de deixar claro que o livro que escreve é mais um exemplar do lixo que circula pela indústria cultural, por isso o aproveitamento que faz das fórmulas da literatura pornográfica de mercado é submetido ao filtro de sua auto-reflexão. O narrador submete sua “história pornéia” ao questionamento, demonstrando ao longo do texto inúmeros sinais do distanciamento irônico com que manipula a matéria de sua ficção. Esses sinais, ao contrário daqueles evidenciados pelo autor ficcional de “O caderno negro”, denotam uma veia debochada e cínica de um escritor lúcido quanto ao lugar de sua bandalheira no mercado das letras. Em “O caderno negro”, todos os elementos estranhos à narrativa jeca-pornô elaborada pelo pai de Lori revelavam certo remorso, e mesmo certa resistência, em relação ao fato de ele estar sacrificando seus ideais artísticos em nome da segurança financeira. Os poemas que esse escritor-personagem criou também apresentavam, na mistura de palavras eruditas e chãs, uma falta de traquejo com o conteúdo obsceno e comercial. No caso de Crasso – que não é um “escritor gênio” como o pai de Lori –, a mesma mistura vocabular empreendida tem uma função bastante diferente, qual seja a de zombar deliberadamente de seu papel de pornógrafo e por extensão de todos os “pornógrafos, pulhas, velhacos e vis” que povoam a indústria editorial acreditando-se
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escritores de mérito. O riso de zombaria, tal qual definido por Vladimir Propp (1992), é uma arma de destruição: sua função é a crítica do que se crê definitivo. É por esse mesmo motivo que Ronaldes de Melo e Souza afirma que “a ironia submete ao efeito catártico do riso toda e qualquer proposição supostamente verdadeira, seja real ou ideal.” (2000, p. 34) No caso em questão, o alvo da zombaria é a indústria editorial e seu discurso que constantemente naturaliza a mediocridade. Um dos “hiatos de Crasso no relato”, que ainda coloca em xeque a linearidade da narrativa, é o poema transcrito abaixo: Posso dobrar joelhos e catar pentelhos? Posso ver o caralho do emir E a “boceta de mula” (atenção: é uma planta da família das esterculácias) Que acaba de nascer no jardim do grão-vizir? Devo comprimir junto ao meu palato O teu régio talo? Ou oscular tua genitália dulçurosa Vestália? (CETG, p. 36)
O choque de estilos observado acima e em outros poemetos similares aparece constantemente ao longo da narração dos feitos lúbricos de Crasso, choque este que sugere que o narrador não deve ser levado totalmente a sério, pois seu ingresso no mundo da literatura de mercado foi uma atitude desde o início motivada pela provocação. Wayne Booth (1994) considera o conflito de estilos uma das pistas para que a ironia seja identificada em um texto literário. O contraste mais evidente está no fato de a exigência da pornografia de mercado pelo emprego de termos chulos ser colocada em questão a partir do uso concomitante de termos obscenos menos populares e criativos empregados por Crasso: cona, pomba, perseguida, crica, caverna são alguns exemplos dos termos que esse “tarado lexical” (PÉCORA, 1991) usa para nomear o órgão sexual feminino. O excesso metafórico aí presente, condenado por Goulemot (2000) como um defeito de composição a ser evitado na pornografia, atesta uma preocupação desse autor ficcional com os meios expressivos que se verificará em outros momentos. O contraste de estilos também pode ser verificado quanto ao trabalho crítico com as convenções
temáticas
da
pornografia.
O
tratamento
dispensado
a
órgãos
despersonalizados, quase autômatos, é levado ao extremo da paródia em Contos d’escárnio. Textos grotescos.
A personagem Clódia ganha a vida pintando quadros de
vaginas e posteriormente pênis gigantes, o que sugere o caráter protagônico que esses
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órgãos devem ter na narrativa pornográfica. A descrição feita de suas pinturas enfatiza a autonomia desses órgãos e lhes confere certo ar de humanização: Pintou paus de todos os tamanhos e expressões. Havia os tão solitários, tão exangues que chegavam a causar compaixão. Outros afetados, pedantes. Havia os desgarrados de si mesmos como se suplicassem pela própria existência. Alguns ostensivos, caralhudos vaidosos. Alguns muito, muito alegrinhos. (CETG, p.46).
O trecho acima traz à tona o motivo privilegiado da fragmentação de corpos, fragmentação esta responsável por um dos ataques mais comuns feitos contra a valorização da pornografia enquanto motivo artístico: os corpos que se tocam no ato sexual explícito estão destituídos de integridade social e psicológica. O narrador de Contos d’escárnio. Textos grotescos brinca com essa convenção ao personalizar os órgãos sexuais e torná-los
independentes em relação ao corpo do indivíduo. A apropriação do motivo da fragmentação dos corpos foi ainda parodicamente invertida nos termos pomposos escolhidos para nomear o que tradicionalmente é considerado tema baixo e indigno de representação artística: “pomba-ladina, pomba-aquosa, pomba-dementada, columba trevosa, columba vivace, pomba carnívora, pomba-luz, pomba-geena, molto trepidante, molto dormideira etc.” (CETG, p.41) A ironia se revela, mais uma vez, pela incompatibilidade de estilo. Outro exemplo de códigos conflitantes aparece no tocante à representação das seqüências de eventos que estruturam a narrativa pornográfica. A carga sexual progressiva rumo ao êxtase, fruto de uma descrição realista acurada, é característica imprescindível para a pornografia comercial e pudemos verificá-la no episódio de Liló. Como contrapartida ao seu emprego, temos mais um dos “defeitos” apontados por Goulemot sendo utilizado por esse narrador autoconsciente: as pausas e digressões que interrompem o fluxo narrativo linear. Além dos “hiatos de Crasso no relato” (os exercícios poéticos desse autor ficcional que emergem em meio à narração de suas memórias lúbricas), as digressões temáticas também são uma constante. Uma delas é a que ocupa um parêntese de pouco mais de uma página, no qual Crasso divaga sobre as injustiças cometidas pela igreja católica. O personagem começava a narrar o episódio em que conheceu Clódia, sua “putíssima amada”, em uma igreja, o que despertou nele, por associação semântica, a longa reflexão sobre a religião. Outras digressões significativas dizem respeito a metacomentários que Crasso faz sobre a própria elaboração textual, o que confere à sua
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narrativa a noção de escrita em processo: “A primeira vez que ‘a fodi’ (ou que ‘fodi-a’ ou que ‘fui fudê-la’, é melhor?)” (CETG, p. 16-17) Outra digressão nesse sentido, que traz à baila ainda a questão da intertextualidade, é a que interrompe a narração de seu primeiro encontro com Clódia: Meu pau fremiu (essa frase aí é uma seqüela minha por ter lido antanho o D. H. Lawrence). Digo talvez meu pau estremeceu? Meu pau agitouse?Meu pau levantou a cabeça? Esse negócio de escrever é penoso. É preciso definir com clareza, movimento e emoção. E o estremecer do pau é indefinível. Dizer um arrepio do pau não é bom. Fremir é pedantesco. Eu devo ter lido uma má tradução do Lawrence, porque está aqui no dicionário: fremir (do latim fremere) ter rumor surdo e áspero. Dão um exemplo: “Os velozes vagões fremiam”. Nada a ver com pau. Depois, sinônimos: bramir, rugir, gemer, bramar. Cré, como diria o padre tutor de Tavim, nada mesmo a ver com o pau. Meu pau vibrou, meu pau teve contrações espasmódicas? Nem pensar. Então, meu pau aquilo. O leitor entendeu. (CETG, p. 32)
A percepção da dificuldade que o trabalho com a linguagem suscita é mais um índice a apontar para o trabalho crítico desse escritor ficcional que avalia sua criação com o olhar distanciado e lúcido. A referência a D. H. Lawrence, autor de romances obscenos perseguidos pela censura, também é parte desse projeto irônico. A menção ao autor, assim como a escolha do nome da personagem Clódia, 11 é significativa das intenções isentas de realismo de Crasso, já que evidencia um conhecimento acerca do fato de a literatura – assim como qualquer outro discurso – se fundar no jogo dialógico entre diferentes textos. Nenhum texto é uma criação ex nihilo, nenhum texto existe independentemente da influência de textos pré-existentes. Mesmo que os escritores de todas as épocas tenham sempre intuído essa condição de legibilidade do texto literário, o fato é que a produção recente faz questão de explicitar seu estatuto de artifício, de “mosaico de textos” (KRISTEVA, 1974, p.64). A intertextualidade, termo utilizado por Julia Kristeva no final da década de sessenta para remeter aos estudos bakhtinianos sobre o caráter dialógico da linguagem, tomou o lugar da realidade empírica no que tange ao referente do discurso literário. Para a autora, e todos os demais críticos responsáveis pela divulgação das idéias sobre a auto-referencialidade do texto literário (Barthes, Riffaterre, Genette):
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Clódia, de vida considerada libertina, foi amante do poeta latino Catulo e musa de suas criações amorosas e obscenas.
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A referência não tem realidade: o que se chama real não é senão um código. A finalidade da mimèsis não é mais a de produzir uma ilusão do mundo real, mas uma ilusão do discurso verdadeiro sobre o mundo real. O realismo é, pois, a ilusão produzida pela intertextualidade. (COMPAGNON, 2006, p. 110)
Segundo esta concepção, intensamente alimentada principalmente durante a década de setenta, o intertexto é a única referência que importa ao texto literário, o qual deve falar única e exclusivamente de si mesmo. Hoje, passada a euforia da desreferencialização, tal proclamada auto-suficiência passou a ser relativizada em virtude do papel essencial da realidade empírica como material para a construção ficcional (ver a terceira seção do segundo capítulo deste trabalho). Ainda é flagrante o fato de a produção contemporânea levar a cabo sistematicamente o ideal moderno de evidenciação do texto como construção ficcional que refuta o “efeito de real”, mas a realidade empírica voltou de outras formas à cena. Comunga desta opinião Karl Erik Schollhammer (2001), que, assim como Tânia Pellegrini (1993) e Therezinha Barbieri (2003), acredita que o impacto da proliferação das imagens simuladas pelos meios de comunicação abre um novo caminho para a recuperação do real pela literatura sem que se resvale pelo realismo reprodutor. A apropriação da imagem, ou da idéia de simulacro (reprodução em segundo grau cujo rastro referencial se perdeu), é agora recurso de composição do texto literário. O mesmo autor, em artigo posterior (2002), defende a idéia de que a contemporaneidade presencia a superação da crise da perda da referencialidade a partir de uma busca pelo real não mais através do cânone mimético do século XIX, mas pela provocação de efeitos sensuais e afetivos no receptor, tal qual o mecanismo de funcionamento da maioria dos mass media, que se regulam pela simultaneidade entre exibição e recepção. O retorno do real também é abordado por Linda Hutcheon (1988), cuja opinião é de que a ficção atual – sua análise parte da metaficção histórica 12 – não nega o referente, mas trabalha para problematizá-lo em sua relação com a construção do texto literário. O que a metaficção historiográfica teria a dizer sobre a literatura do nosso tempo é que o referente não é definido por sua existência empírica, mas por sua existência discursiva, ou seja, o real só nos é acessível por meio dos diferentes discursos que lhe dão forma – o histórico, o científico, o psicanalítico, o filosófico, o religioso etc. Assim, o texto literário, antes fechado em si mesmo ou na intertextualidade, se abre para um real que é por si só construído discursivamente. 12
Vale lembrar que também Therezinha Barbieri (2003) estuda a metaficção historiográfica como uma das vertentes seguidas pela narrativa de ficção contemporânea brasileira.
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O texto hilstiano, como a grande maioria dos textos atuais, beneficia-se do direito permanente à investigação formal conquistado pelos modernos, partilhando assim dos preceitos antiilusionistas que lhes são caros. No entanto, não ignora que o real circundante seja a fonte da criação ficcional, superando, portanto, as aporias da auto-referencialidade (a folha em branco, a tela vazia, o concerto silencioso), o que fica evidente na ficcionalização do contexto social do escritor contemporâneo como elemento estruturante da narrativa. O papel do intertexto em Contos d’escárnio. Textos grotescos tem ainda outra função na narrativa. O diálogo com a tradição obscena revela o tipo de influência literária que norteia a criação de Crasso, o que também é uma forma de problematizar a criação pornográfica de vínculo estritamente mercadológico pela filiação implícita de Crasso aos grandes nomes da literatura obscena ocidental. A intertextualidade aparecerá igualmente em alusões inusitadas. A epígrafe de Contos d’escárnio. Textos grotescos ,
por exemplo, retirada da bíblia – “Mais vale um cão
vivo do que um leão morto” (Eclesiastes – 9,4) – é uma mensagem cifrada acerca do que se vai ler. Alijada de seu contexto original, a citação ganha um significado inaudito quando relacionado à narrativa hilstiana: a conformação com certas exigências do mercado para dele fazer parte e assim garantir sua sobrevivência financeira torna-se mais importante do que ter sua produção artística hermética fadada ao silêncio e ao fracasso de vendas. O trabalho intertextual com as epígrafes já estava presente em O caderno rosa de Lori Lamby. À citação de Oscar Wilde “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham
para as estrelas”, Lori Lamby retruca: “E quem olha se fode” – anunciando a roupagem irônica da narrativa. Todas as epígrafes apontam para os motivos da incursão da autora na pornografia: o trabalho sério do escritor é inútil em uma sociedade que o ignora por completo e só valoriza o que não ultrapassa a linha do que se considera adequado ao gosto médio. Uma questão importante levantada pelas referências intertextuais é a relativa à dupla orientação de leitura que elas exigem, tendo em vista que promovem o estalar da linearidade do texto: “Basta uma alusão para introduzir no texto centralizador um sentido, uma representação, uma história, um conjunto ideológico, sem ser preciso falá-los.” (JENNY, 1979, p. 22) A referência a algo que aponta para fora do aqui-e-agora da leitura exige que o leitor desvie sua atenção do episódio narrado para validar um significado que não se encontra no texto que se lê, mas nas relações por ele sugeridas e que devem ser ativadas pelo leitor. Não por acaso a dupla orientação exigida por esse tipo de recurso é
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recriminada por Goulemot como sendo mais um defeito a ser rechaçado na construção de romances pornográficos, pois que nestes, segundo o autor, o foco não deve ser nunca retirado do episódio lúbrico. Sendo cada referência intertextual o lugar de uma alternativa (prosseguir a leitura ou recuperar a remissão), ela incita o leitor a tomar parte do processo de construção de significados do texto, o que nega categoricamente o leitor evocado por Goulemot, cuja ação se resume à resposta física, e não intelectual. A alusão a D. H. Lawrence e Clódia não são as únicas. Na verdade, há uma profusão de referências a intelectuais e artistas de toda sorte (Lucrécio, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Bertrand Russell são alguns deles), referências estas que demonstram uma erudição pouco condizente com o “lixo” que Crasso pretende escrever. Sua formação, o narrador garante, é a de um douto: “Eu que na mocidade havia lido Spinoza, Kierkegaard, e amado Keats, Yeats, Dante, alguns tão raros, mas deixem pra lá, enfim que bela droga o que eu vinha fazendo da minha vida”. (CETG, p. 31) A função de uma lista tão vasta de nomes importantes (além de outras referências cultas, como a filmes e músicas) não é outra senão demarcar a superioridade intelectual do narrador e, conseqüentemente, debochar do leitor ingênuo que lê Contos d’escárnio. Textos grotescos pensando somente na bandalheira. Participa também desse recurso a utilização de palavras estrangeiras (latim, francês, inglês, alemão) em meio ao relato desse escritor que não esconde seu pedantismo: “O discreto decote da blusa deixava à mostra a textura reluzente da pele. E que pescoço! Não desses muito longos. Para ser exato, o mesmo pescoço da Vênus de Praxíteles. Também estive lá. Em Roma”. (CETG, p. 33) Tantas referências às vezes podem parecer desnecessárias: “Eu havia lido Catulo aos 18 quando fodi aquela poetisa magrela e Clódia foi o grande amor de Catulo. Não é o da Paixão Cearense, é o outro.” (CETG, p. 34) Mas tal esnobismo condiz perfeitamente com a máscara irônica assumida por Crasso. De acordo com Muecke (1969), o ironista vê o mundo de sua vítima – no caso o leitor ingênuo – como ilusório e absurdo. A assunção de sua superioridade faz com que este tenda a rir porque se crê livre da “mistificação ideológica” (SOUZA, 2000, p. 47) à qual está submetida a vítima de seu escárnio. Cadance Lang (1988) confirma esse ponto de vista. Segundo a autora, é próprio do ironista elevar-se a uma posição de superioridade intelectual, mistificando seu público. Ao mesmo tempo, porém, ele requer um grupo de iniciados que reconheça seu valor, pois só assim seu discurso irônico pode fazer sentido. Explicam-se dessa forma as várias passagens em que o narrador irônico zomba da ignorância presumida do leitor: “para mim o homem foi feito
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pelo demo. Na História aprendi que os cátaros, os albigenses, que naturalmente vocês não sabem quem são e devem procurar saber, também pensavam assim (...).” (CETG, p. 30) Crasso ridiculariza não só os leitores considerados por ele ignorantes, mas também os que ele julga serem “letrados pedantescos”, pseudo-intelectuais: “Pingue três gotas de néctar (informe-se), três fiapos de casquinha de nectarina, uma gota mínima de algália (informese, isto aqui não é cartilha para esse pessoalzinho que está fazendo mestrado)”. (CETG, p. 51) Contos d’escárnio. Textos grotescos se configura, assim, como um texto classista, que privilegia certo tipo de leitores. A decifração das menções indiretas a Lênin e a João Cabral de Melo Neto, por exemplo, só importam na medida em que selecionam os felizardos com maiores chances de perceber a ironia geral que rege o texto, fazendo-os escapar da condição de vítimas do ataque ferino do narrador. O recurso mais sarcástico utilizado para debochar do público da cultura de massa está na elaboração das “Pequenas sugestões e receitas de espanto-antitédio para senhores e donas de casa” e nos “teatrinhos nota 0”. Embora Crasso credite a autoria dessas longas páginas de nonsense e humor aos loucos de um hospício, a dica para que as compreendamos como mais um ataque do narrador à indústria editorial está dada pela sugestão de sua personagem: “tatuzinho, não gostaria de escrever um tratado sobre genitálias? Ou um exercício de textos lúbricos? Ou teatro repulsivo, quem sabe, hen?” (CETG, p. 47) Proposta aceita, Crasso então nos diverte com quinze receitas absurdas e três peças de teatro que contrariam em tudo o senso comum apregoado pela indústria cultural. As primeiras se caracterizam por uma estrutura injuntiva que sugere ao leitor ações irrealizáveis ou simplesmente despropositadas, temperadas com cáustica ironia: (Se você for PhD, leia até o fim. Se não, pule esta.) Faça um buquê de orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o buquê para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase do discurso de Marco Antonio para o povão, era na “tua” tradução “Emprestem-me tuas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda mais porque todo mundo sabe que “ Lend me your ears” quer dizer isso mesmo”. (CETG, p. 51-52)
As peças de teatro, de forma semelhante, combinam certa dose de exibicionismo intelectual com puro nonsense. A primeira peça reúne personagens da tradição literária –
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Banquo (Bãocu), Macbeth (Malbed), Clódia, Jocasta, Ofélia – e outros não tão ilustres – como Heidi (personagem piegas da literatura infantil) e um grupo de duendes. A segunda peça tem como enredo um triângulo amoroso entre um pai, um filho e uma ursa. A terceira, finalmente, apresenta dois personagens discutindo a melhor forma de encenar uma imagem “poética” segundo eles indispensável para a execução da peça: “cagar pétalas”. O desfile de bizarrices, aos quais falta nexo semântico apesar da conectividade sintática, tem como objetivo negar a ordem da razão oficial. Essa razão oficial por vezes é o próprio contexto brasileiro, este “verde-amarelo paupérrimo e inflacionário”, que agrava ainda mais a situação do escritor. Na primeira peça, Heidi aparece em transe, rodeada por duendes tarados e predizendo um futuro promissor em uma terra chamada Brasil, onde “só vai ter picas bolas/ cachaças e cricas” que “hão de escorraçar os letrados e o monstro das letras!” (CETG, p. 66) Outras vezes, a razão oficial é a literatura de mercado, pautada prioritariamente na linearidade e previsibilidade. Assim, os fragmentos absurdos das receitas antitédio podem ser lidos na verdade como anti-receitas comerciais, como fica sugerido em uma delas: “Recolha num vidro de boca larga um pouco do ar de Cubatão e um traque do seu nenê. Compre uma ‘Bicicleta azul’ e adentre-se algum tempo nas ‘Brumas de Avalon’. É uma boa receita se você quiser ser um escritor vendável.” (CETG, p. 54) A falha na comunicação suscitada pelo absurdo sugere, pelo exagero, a incapacidade do leitor senso comum de compreender uma obra que fuja aos ditames da indústria cultural. O prazer em escarnecer dos leitores advém da percepção que Hilda Hilst, na voz de Crasso, tem de seu valor literário. É na percepção de sua superioridade que reside a caracterização do que Vladimir Propp (1992) chamou de riso de zombaria: a projeção ficcional da autora empírica ri desses leitores porque sabe que não compartilha de sua ignorância, porque eles são tudo o que ele, narrador, não é. Mas o verdadeiro ironista é aquele que é capaz de rir de si e não simplesmente dos outros. Crasso dispõe de liberdade interior para brincar inclusive consigo mesmo e assim questionar seu próprio ato de escrita. Ao simular com irreverência a elaboração de um produto da literatura de mercado, Crasso faz questão de dar a conhecer elementos que, filtrados pelo riso, acusam a presença de uma consciência instalada no texto para criticá-lo.
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4.2 Entre a metafísica e a putaria das grossas (...) Stendhal has thus formulated the quintessential ironic project: to split oneself in two, to be at once oneself and another, to know oneself through dispassionate, impassive observation. (Candace Lang)
Logo após sua decisão de divertir-se escrevendo “lixo” para o mercado editorial, Crasso conhece Clódia e seu amigo Hans Haeckel, “um escritor sério, o infeliz” (CETG , p. 40). Diferentemente do narrador, esse escritor tem uma visão diferenciada do que seja a literatura e recusa-se a jogar o jogo do capital, o que inclusive o leva ao suicídio: Morreu porque pensava. Editor só pensa com a cabeça do pau, eh gente escrota! Quando o Hans Haeckel pensou em escrever uma estorinha meninil muito da ingenuazinha pornô para ganhar algum dinheiro porque ele passava fome àquela época, o editor falou: escabroso, Hans, nojentinho, Hans, isso com menininhas!Mas que monturos de nomes estrangeiros ele publicava às pampas. Que grandes porcarias! (CETG, p. 104-105)
Os índices de que Hans Haeckel é uma nova projeção de Hilda Hilst no texto são bastante claros. Além das iniciais idênticas, a referência à autoria de O caderno rosa de Lori Lamby é
explícita, bem como a caracterização do contexto de recepção da obra em
termos similares ao ocorrido de fato, já que a empreitada pornográfica anterior da autora foi mal compreendida. A ironia ácida de Hilda ainda denuncia as dificuldades econômicas a que estão sujeitos os que não se encaixam nos moldes da indústria editorial. A riqueza de Crasso, conseguida à custa de negociatas escusas, ajuda a complementar o contraste entre as duas máscaras de Hilda. A identificação de Hans com a autora empírica é expressa também na alusão a outra obra sua: “Havia escrito uma belíssima novela, uma nova história de Lázaro. A crítica o ignorava, os resenhistas de literatura teimavam que ele não existia, os coleguinhas sorriam invejosos quando uma vez ou outra alguém o mencionava”. (CETG, p. 40-41) Aqui ficam fixadas de forma mais clara as diferenças entre as duas prolongações de Hilda no texto: Hans é a versão gênio, incompreendida e sem espaço de divulgação por não ser vendável. Outras referências a O caderno rosa de Lori Lamby aparecem dispersas pela narrativa: há menção a “O caderno negro” e ao retrato de Hilda menina publicado em uma
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das capas da primeira edição. Tal relação intertextual não só estreita os laços entre as duas obras da trilogia, demarcando seu caráter de projeto comum, como também descortina o real e a própria ficção, ao sinalizar para o fato de Contos d’escárnio. Textos grotescos , assim como O caderno rosa de Lori Lamby , ser uma elaboração ficcional. O discurso que se refere a outro discurso, a forte coloração de metalinguagem, como diria Jenny (1979), presente na narrativa são sinais de uma percepção irônica da arte: a percepção do jogo entre representação e estruturação que está na origem de toda criação artística. O olhar intertextual se define assim como um olhar crítico, que coloca sob a mira da investigação o trabalho com a palavra. A intrusão do escritor na obra, assumindo uma dimensão composiocional, como já vimos, confere espessura crítica ao texto ao colocar às claras o processo de elaboração ficcional. No caso de Contos d’escárnio. Textos grotescos, como temos anunciado desde o início, a tematização narrativa do autor, ou a mise en abyme do processo criativo, acontece de forma duplicada: Hans, vamos escrever a quatro mãos uma história pornéia, vamos inventar uma pornocracia, Brasil meu caro, vamos pombear os passos de Clódia e exaltar a terra dos pornógrafos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis. Não posso. Literatura para mim é paixão. Verdade. Conhecimento. (CETG, p. 41)
Focalizando o processo de escrita do texto que se está lendo, a mise en abyme contém a crítica do próprio texto engendrado. Sendo uma mise en abyme dupla, a reflexão sobre a obra se dá ainda na relação entre os dois autores ficcionais de características opostas que indiretamente colocam-se sob investigação mútua e são, claro está, versões ficcionais da mesma autora empírica. Assim, ao projetar-se em sua narrativa ora enquanto escritor que trata a literatura com irreverência, ora como escritor que a trata com deferência, Hilda Hilst é ao mesmo tempo um e outro; ator e expectador do texto que produz, portanto crítica de sua própria obra. É por isso que o experimentalismo de Crasso contradiz sua disposição mercadológica, enquanto que os contos existenciais de Hans se arranjam mal e parecem até cômicos no conjunto da narrativa de Crasso. As duas posições antagônicas em relação à literatura vêm corroborar o estatuto irônico na narrativa, já que:
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Na obra de arte regida pelo princípio da ironia, o que fundamentalmente importa é a capacidade de um eu se desdobrar em eu-sujeito e eu-objeto, de tal modo, e com tamanha intensidade dramática, que o eu-sujeito assiste criticamente como espectador às experiências passionais de seu outro eu, que é o eu-objeto. (SOUZA, 2000, p. 35)
A coexistência desses dois “eus” no mesmo plano ficcional, apresentadas como entidades ficcionais distintas, é que permite que Crasso tome a atitude de Hans Haeckel como a de um outro que precisa ser rechaçada; da mesma forma, Hans Haeckel se recusa a participar do projeto pornográfico de Crasso como se fosse algo que não lhe dissesse respeito. É marca peculiar da ironia, enquanto discurso bivocal orientado para o contraste, a concomitância de valores opostos. Contos d’escárnio. Textos grotescos apresenta-se, assim, como “palco de luta entre duas vozes” (BAKHTIN, 1981, p. 168), o que no caso em questão serve ao propósito de estilizar a atitude ambivalente do escritor contemporâneo perante o mercado. A forma como essa autoria dupla comparece ao texto é inusitada, pois, diferentemente da confusão de autoria promovida pela estrutura estratificada de O caderno rosa de Lori Lamby ,
Crasso e Hans existem ficcionalmente no mesmo nível. O que
acontece é que a entrada deste personagem na trama abala consideravelmente o plano inicial de Crasso, que depois de ter se comprazido com a narração episódica de suas aventuras sexuais, passa a sentir-se perturbado pela influência literária de Hans. A leitura dos contos desse “escritor sério” acaba afetando a própria escrita do narrador, de modo que, à medida que a narrativa de Contos d’escárnio. Textos grotescos vai avançando, a estrutura episódica de seus feitos lúbricos vai sendo abandonada. A narrativa se volta então para sua viagem em busca dos originais do amigo morto com vias à publicação, acarretando mudanças formais no texto. Além da reprodução dos contos de Hans e das experimentações literárias que Crasso faz baseado nesses contos, temos uma estrutura epistolar que corresponde às cartas enviadas a Clódia durante o “voluntário exílio” desse narrador. Após a leitura que Crasso faz do primeiro conto de Hans, “Lisa”, que o motivará a seguir em busca de outros escritos do autor, já podemos perceber os sinais dos transtornos operados em sua personalidade, muito embora o protagonista permaneça submerso em sua realidade impregnada de luxúria:
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Enfio minha cabeça-abóbora candente entre as venosas virilhas de Clódia. Esquecido de mim, amargado, só tu, cona de Clódia, me olha o olho. Enquanto te chupo me vêm resíduos do Partido, não aquele, o Partido de mim estilhaçado. Lúcido antes, agora derrotado mas ainda vivo, derrotado mas ejaculando, o caralho nas tuas mãos, a cabeça abóbora nas tuas coxas, o grosso leitoso entupindo os poros das tuas lamas. Arquejo. Vejo Deus e toda a trupe, potestades, arcanjos. Estou cego de santidade. De velhacaria. (CETG, p. 46)
O motivo para perturbação tão intensa está no tom grotesco-absurdo que caracteriza todos os textos de Hans transcritos por Crasso. Tais contos não comungam do deboche e da obscenidade peculiares ao narrador de Contos d’escárnio. Textos grotescos; neles encontramos “agonias sem fim, homens e mulheres debruçando-se sobre o Nada, o Fim, o ódio, a desesperança.” (CETG , p. 81) Antes de transcrever o primeiro conto de Hans, o narrador nos adverte: “Se quiser continuar vivo, pule este trecho.” (CETG, p. 43) Não só este primeiro texto como os restantes que se encontram dispersos pela narrativa apresentam características temáticas comuns que contrastam com o tom geral do livro e nos ajudam a compor o perfil desse segundo autor ficcional. O que encontramos em todos os seus escritos é passível de ser remetido ao que Barasch (1971) e Kayser (1986) nos dizem sobre o que o grotesco expressa artisticamente: uma visão do homem enquanto ser alienado do mundo, mundo este cujo ordenamento sólido e confiável é abalado ante a irrupção de poderes abismais abismais que o tornam estranho e incompreensível. incompreensível. O grotesco grotesco então emerge como manifestação da falta de uma orientação segura com relação à vida, configurando-se como a expressão de uma angústia. Nesse sentido, aproxima-se da noção de absurdo que o termo adquiriu com o Existencialismo francês, significando o sentimento de falta de propósito na existência, a sensação de desarmonia entre o homem e seu entorno. É sintomático a esse respeito o mini-conto abaixo, que traduz t raduz esse sentimento de auto-isolamento: Esticou o barbante entre as duas árvores. Pendurou seus trapos. Depois pôs as mãos na cintura c intura e disse: “Bem. Agora tenho t enho uma casa”. Não havia telhado nem cachorro nem mulher nem panelas. Crianças muito menos. Havia apenas (logo mais) o céu negro e estrelas. Dias mais tarde demorou-se algum tempo (talvez tempo excessivo) olhando as árvores e enforcou-se. (CETG, p. 77)
A temática da morte reaparece no conto em que Hans é o próprio protagonista e depara-se com uma menina vestida de negro que lhe anuncia o fim da vida. A perspectiva que se abre frente à desestabilização da ordem vivenciada é de absoluto horror: “O espelho
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do quarto refletiu um menino vestido de negro, calças curtas e camisa comum, os cabelos loiros escorridos. Olhei-me assombrado. Depois disso, nunca mais me vi.” (CETG , p. 95) Pela visão grotesco-absurda o mundo se mostra distorcido e a experiência humana é percebida como algo além do ordenamento lógico visível. Em “Lisa”, o protagonista passa por uma transformação profunda ao se deparar com uma cena de sexo entre um homem e uma macaca: “Nunca o mundo me pareceu tão triste, tão aterrador, tão sem Deus.” (CETG , p. 45) A perplexidade experimentada pelo protagonista não diz respeito só ao insólito do evento, isso porque a cena entrevista não se parece nem um pouco com a zoofilia orgiástica de “O caderno negro”. Há ternura entre o homem e a macaca – “Minha amada, minha adorada Lisa, temos apenas um ao outro, somos apenas nós dois neste sórdido mundo de agonia e de treva.” (Ibidem) – e é esse fato que torna tor na o episódio sinistro e faz da existência algo insuportável. A revelação do animalesco no homem, outro aspecto caro ao grotesco, também comparece a outro conto, no qual uma velha “triste e disforme” e seu cachorro magro são mortos e têm os olhos comidos por um bando de meninos. O sinistro não está somente no episódio por si aberrante, mas no tom insípido em que é narrado. A violência do ato não causa compaixão de fato, pois a falta de sensibilidade para com o drama da velha por parte do narrador confere certa aparência de normalidade a algo absurdo: Um dos meninos disse que queria comer os olhos da velha. /O outro perguntou por quê./ Porque dizem que é parecido com ostra./ Quem disse isso?/ Gente que já comeu, ué./ Olho ou ostra?/ Eh, bobo, tanto faz. / Então arrancaram os dois olhos da velha. Gostaram tanto que resolveram comer também os olhos do cachorro. / Supimpa, disse um deles. / Legal, disse o outro./ E foram dormir. Arrotando olhos. (CETG, p. 89)
O riso que escapa ante tal episódio não é totalmente despreocupado. Na verdade, é contraditório o efeito sobre o leitor: ri-se do inusitado, mas no fundo resta um incômodo diante do horripilante e monstruoso. É próprio da natureza ambivalente do grotesco que haja uma confusão do cômico com algo que lhe seja incompatível (KAYSER, 1986). A mesma ambivalência se apresenta na transferência do elevado, espiritual, ideal e abstrato ao plano material e corporal (BAKHTIN, 1974). É o caso do conto em que o protagonista tocou, em sonho, “o desmesurado de Deus” e este “jorrava sangue e sêmen negro.” (CETG , p. 83) Assim como em “Lisa”, a alusão obscena tem contornos diferenciados em relação à bandalheira de Crasso. Se antes o sexo era sinônimo de diversão e deboche deliberado,
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com Hans ele aparece carregado de conotações sinistras. Neste conto, Deus se dá a conhecer pelo toque e fala com o personagem através de sua mãe dementada: “Não se questione mais, não procure mais.” (CETG , p. 84) Não por acaso seu fim é a loucura, l oucura, pois não pode suportar o peso da revelação divina. A reação de Crasso aos contos de Hans vai sendo relatada nas cartas enviadas a Clódia, a partir das quais podemos perceber as transformações operadas em sua personalidade. personalidade. Crasso começa a refletir sobre seu estar no mundo, sobre a morte, e conclui com pesar que “a vida é viável enquanto se fica na superfície” (CETG , p.85), como Clódia e seus quadros de vaginas e picas: “Não há muita transcendência por aí.” (Ibidem) Hans e seus temas profundos e nada vendáveis acabam levando Crasso à depressão e à temida impotência sexual: Ando deprimido, Clódia. Clódia. Como se caralhos e perseguidas não existissem existissem mais. Ler o nosso Hans Haeckel é como se o pensar tomasse efetiva concretude e aparecesse à tua frente: uma sólida e imponente colina de granito. (...) O pau é uma tripa engruvinhada, o pensar nas cricas me dá ânsias. (CETG, p. 86)
As investidas do narrador para com Líria, PhD que ele conheceu em Muiabé, terra de Hans, terminam em fracasso. A impotência de Crasso é proporcional ao seu envolvimento com a obra de seu amigo escritor e acentua a diferença entre os dois tipos de autores. Sendo a pornografia metáfora para a corrupção moral, quanto mais Crasso se interessa pela “metafísica” de Hans, mais afastado da “putaria das grossas”, como diria o personagem personagem Rubito, ele automaticamente automaticamente se torna. O efeito da leitura dos textos de Hans em Crasso se traduz também nos dois contos que este escreve sob a influência do falecido autor e tentam recriar sua atmosfera angustiante, mas acabam desembocando desembocando em uma mistura híbrida e cômica que desautoriza seus ensaios de autor sério: O dragão espichou a fina língua na cona da adolescente, lento de início, como quem rabisca. Um hipotético poente de azuladas tintas cresceu arredondado nas pálpebras descidas. Minhas pálpebras frias. Foi assim o teu sonho, é? Um dragão de verdade? Sim. Um dragão de sonho. Espicha mais a tua língua. Lambe aqui. Ele tinha escamas?Lindas, purpúreas. Tinha bigode? Ai ai ai. Não. Ai ai. Aí ela começou a gozar. O homem enterrou-lhe a verga na vagina. (Ó! Ai! Ó) Em seguida abriu olhos. Olhou o rosto fino, anguloso e agônico da mulher adolescente. Sussurrou para si mesmo: a morte deve ter o mesmo rosto. (CETG, p.76-77)
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Clódia deduz imediatamente que Crasso anda lendo os escritos de Hans e o incentiva a voltar à bandalheira, dando-lhe uma receita imbatível: “Crassinho, por favor, faz aparecer uma mulher ou uma adolescente meio puta, transviada, gostosinha” (CETG , p. 77-78), ao que Crasso retruca: “mas o Hans só queria contar aquilo lá de cima.” (CETG , p. 78) Apesar da reação de Crasso, a verdade é que sua tentativa passa ao largo da densidade de Hans. Primeiro, porque não consegue abandonar a temática sexual explícita e banalizada; segundo, porque a linguagem rebuscada que se esforça por utilizar leva a uma deformação cômica do estilo elevado que inclusive trunca a mensagem a ser passada. No seu segundo conto, permanece o tema do sexo sem conotações reflexivas. Sua narrativa da experiência sadomasoquista de um casal que culmina na morte de um dos parceiros tem o horror do episódio amenizado pela ironia do narrador. O diálogo em que os amantes combinam o ato extremo de realização de suas respectivas perversões é interrompido pela reflexão do parceiro, que, ao pegar uma faca para pôr em prática o acordo, começa a divagar sobre “um poeta que adora facas” (referência a João Cabral de Melo Neto). Sobrepondo-se ao horror, o riso triunfa e afasta-se da inflexão soturna de Hans. Seu último conto já está livre da influência do amigo morto e não por acaso coincide com a esperada realização de seu ato sexual com Líria. O texto, que parece ter sido inspirado em Ma mère (1955), de Georges Bataille, narra a iniciação sexual de um jovem por arte de sua própria mãe. Com a ironia e o humor característicos de Crasso antes de seu encontro com Hans Haeckel, o conto apresenta obscenidades suficientes para preencher as “devassas e solitárias noites do editor” (CETG , p. 104). Esse conto, sem laivo da sombra de Hans, ilustra o tom do livro que Crasso publica e com o qual consegue sucesso editorial internacional. A narrativa termina com uma festa bizarra ambientada no século XVIII, época conhecida pela libertinagem de costumes. Os anfitriões são nobres e Crasso é convidado em virtude da fama obtida com seu livro. Este comparece ao palácio de mil e novecentos quartos com uma peruca feita de pêlos pubianos e se diverte à exaustão nesse antro de luxúria. As cenas denotam um desperdício total de dinheiro e têm por objetivo criticar o mundo de ostentação que cerca o meio editorial voltado para o sucesso circunstancial: Naturalmente os príncipes Cul de Cul imaginaram que os homens defecariam na pequena floresta logo além do jardim. Logo além do jardim é um bom título para best-sellers. E como se cagou naquela festa.
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E que qualidade que finura de dejetos! Caviares codornas faisões recheados de cerejas, cus de canários com amêndoas alcaparras e uvas, xerecas de gazelas, os tais tordos de Josete, enfim tordos. (CETG, p.113)
O cenário que se pinta de quem logra êxito no afunilado mercado editorial é cômico-absurdo. O cardápio excêntrico enfatiza a excepcionalidade desses felizardos e o status
que o dinheiro pode promover mesmo quando não há qualidade literária – o que fica
sugerido pela “finura de dejetos”. Abandonando o projeto literário-existencial de Hans, um mundo de prazeres se abre diante de Crasso, que resolve então voltar ao seu plano inicial e escrever bandalheiras. O deslumbramento do sucesso seduz o narrador, que termina sua narrativa mais viril e rico do que nunca, porque liberto do peso da influência de Hans: “Ó céus! Ó divinos europeus! Ó, a riqueza! E eu que estava lá em Muiabé defecando tristeza!” (CETG, p.114) Não é difícil perceber que a vitória final do capital é ironicamente negada pelo restante do texto, de alta voltagem experimental. Assim, embora tematicamente, no nível do enredo, a obra séria de Hans seja recusada em favor do êxito meteórico de um escritor inexperiente, formalmente é possível dizer que prevalece a pesquisa estética. Os ensaios literários de Crasso acabam costurando um mosaico de gêneros que em conjunto formam uma narrativa em dissonância com os preceitos tradicionais de romance. O percurso de Crasso, arriscando-se na escrita, cria uma antinarrativa, ou seja, uma narrativa de fragmentos: estrutura dramática, memórias, cartas, poemas, odes, devaneios, contos, tudo é disposto no espaço textual segundo uma lógica que é a lógica da própria narrativa. A aparente desordem de Contos d’escárnio. Textos grotescos recria o processo criativo caótico desse narrador que anuncia logo de início que não gosta de colocar os fatos numa seqüência ortodoxa. Os nexos de sentido entre os fragmentos deverão ser, dessa forma, estabelecidos pelo leitor. Aberração de estrutura, distorção formal, estilo amorfo são expressões comumente aludidas quando da abordagem do grotesco enquanto categoria estética. Por ser o contraponto imediato do belo, seu raio de alcance abarca todas as iniciativas que negam a normatividade das noções tradicionais de harmonia e forma. Por isso é enaltecido por Victor Hugo (19--) como categoria das mais profícuas para a criação artística, sendo por isso identificado à arte romântica em contraposição à arte clássica, marcada pelas regras e modelos a serem imitados. Pelo mesmo motivo, Anatol Rosenfeld (1973) reconheceu no grotesco o princípio que se impõe para a apreciação da arte moderna, por esta ser
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eminentemente antiacadêmica e contrária às normas estéticas clássicas que começaram a ser minadas pelo Romantismo. O grotesco anunciado no título da obra abre um horizonte de expectativas díspares que se confirmam na leitura da obra. Pelo fato de o grotesco ter como traço primordial afrontar nosso senso de ordem estabelecida, seu domínio abarca a dissolução da lógica, a reunião do heterogêneo, a abolição da ordem temporal espacial e o jogo com o absurdo (KAYSER, 1986). Todos esses elementos comparecem a Contos d’escárnio. Textos grotescos:
grotesco é o estilo aparentemente amorfo que toma o texto; é a atmosfera dos
contos existenciais de Hans Haeckel; é a proliferação de eventos absurdos que permeiam a narrativa; é a mistura de estilemas populares e cultos e o choque de estilos daí advindo. O grotesco na narrativa em questão é tomado como tema e como forma, e seu propósito é ridicularizar as verdades da literatura de mercado e contrariá-las como tais pelo humor; mostra-se, assim, uma arma agressiva a serviço da crítica em virtude do impacto e do efeito desorientador que tem por objetivo causar. Portanto, tal categoria estética é utilizada para se contrapor àquilo que se quer colocar sob a mira da reflexão no best-seller estritamente comercial: o arsenal de temas padronizados e idealizados; a linearidade e previsibilidade da estrutura narrativa; a atitude passiva do leitor; a conformação com o status quo.
O grotesco e o escárnio hilstianos são a afirmação da ousadia da transgressão
como condição necessária à autonomia intelectual e à renovação estética.
CAPÍTULO 5: CARTAS DE UM SEDUTOR 5.1 Por trás da máscara do libertino (…) irony [can be] defined as the distance between selves: both between self and other and between the essential and phenomenal selves of a single individual. (Cadance Lang)
O livro que fecha a trilogia pornográfica de Hilda Hilst anuncia, em muitos aspectos, o retorno da autora aos temas existenciais de sua prosa anterior. Isso não significa que os elementos que dele fazem um texto metapornográfico não estejam presentes, bem como aqueles traços que, igualmente encontrados nas outras duas obras da trilogia, constituem um projeto irônico de crítica à profissionalização do escritor contemporâneo e de investigação formal. A diferença que salta aos olhos à primeira vista com relação a O caderno rosa de Lori Lamby e Contos d’escárnio. Textos grotescos
é o fato de a voz narrativa que assume o
relato ser a do escritor ficcional preterido pelo mercado. As palavras com que o narrador abre o texto divergem bastante da dicção ao mesmo tempo infantil e lúbrica de Lori Lamby e do tom irônico e debochado de Crasso: Como pensar o gozo envolto nessas tralhas? Nas minhas. Este desconforto de me saber lanoso e ulcerado, longos pêlos te crescem nas virilhas se tu ousas pensar, e depois ao redor dos pêlos estufadas feridas, ouso pensar me digo, a boca desdentada por tensões e vícios, ouso pensar me digo e isso não perdoam. (CS, p. 15)
Podemos perceber por este trecho a preocupação que acomete o escritor quanto ao objeto do texto que deve elaborar para obedecer às demandas de quem o contrata. Pensar em sexo para satisfazer as “devassas e solitárias noites do editor”, como diria Crasso, não é tarefa fácil para quem tem o “defeito” de ousar pensar em um contexto que exige a acriticidade. Sua abordagem da sexualidade, como ficará claro em outros trechos da narrativa, diverge radicalmente da que lhe é exigida para que se conforme às leis do mercado. É justamente a incompatibilidade entre seu projeto artístico e as exigências extraliterárias que o cercam a causa de sua marginalização social, caracterizada hiperbolicamente através de sua situação de mendicância, partilhada com sua parceira:
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“Olho Eulália. É miúda e roliça. Há um ano me acompanha pelas ruas. – Pedimos tudo o que os senhores vão jogar no lixo, tudo o que não presta mais, e se houver resto de comida a gente também quer”. (CS, p. 16) A descrição dos livros que o casal encontra no lixo também é um índice importante da crítica à desvalorização não só da literatura como do saber intelectual como um todo: “O que jogaram de Tolstoi e Filosofia não dá para acreditar! Tenho meia dúzia daquela obra-prima A morte de Ivan Ilitch e a obra completa de Kierkegaard”. (CS, p. 16) Que tal desvalorização é resultado da expansão das relações capitalistas na produção cultural não há dúvidas. Stamatius (ou simplesmente Tiu), esse escritor gênio que perdeu os dentes para pagar sua hipoteca, recolheu do lixo duzentas e dez edições de O capital . E conclui ironicamente a respeito: “Jogaram fora muito esse último, parece que saiu de moda, creio eu”. (CS, p. 17) Assim, diferentemente das obras anteriores, em que o escritor-personagem comprometido com a literatura comparece de forma inusitada e à sombra do escritor que se adapta facilmente ao mercado, em Cartas de um sedutor (1991) há não só a encenação de uma autoria dupla como também a presença de uma narração dupla que privilegia a voz do autor ficcional marginalizado. O segundo autor-narrador, aquele que fará as vezes do escritor oportunista e descomprometido com o trabalho artístico com a palavra, não passa de uma máscara ficcional do escritor gênio que almeja um espaço no afunilado mercado editorial. Dessa forma, a tematização do ato da escrita acontece por procedimento semelhante ao encontrado em O caderno rosa de Lori Lamby , pois Lori Lamby, como vimos, é fruto da imaginação de um escritor às turras com o editor e sua ganância financeira. O que diferencia as duas obras é que, em Cartas de um sedutor , tanto o ato que inaugura como o que dá o desfecho à ficção engendrada por Stamatius estão devidamente demarcados no texto, de forma que a confusão de autoria observada em O caderno rosa de Lori Lamby não se verifica no caso em
questão.
À decisão de finalmente tentar superar a crise criativa anunciada nas primeiras páginas da narrativa (“sou um escritor brasileiro, coisa de macho negona. Vamos lá.” – CS, p.19) sucede a obra encaixada que dá nome ao terceiro livro da trilogia e é narrada pela máscara libertina assumida por Stamatius, o devasso Karl. A ficção que se segue é anunciada não só pelo “Vamos lá” como pela alusão à pena de papagaio que Stamatius utiliza com sua parceira Eulália como utensílio afrodisíaco na relação sexual. A pena, remetendo ao ato de escrita, o inspira à redação de um romance libertino epistolar no estilo século XVIII, o gênero sobre o qual o autor ficcional trabalhará intertextualmente. O
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estatuto ficcional de Karl e, conseqüentemente, das cartas, fica ainda confirmado no fim da seqüência epistolar, quando Stamatius retoma o fio textual como narrador ao despir-se da máscara narrativa que assumira até em então: “Eu, Stamatius, digo: vou engolindo, Eulália, vou me demitindo desse Karl nojoso”. (CS, p. 89) O adjetivo “nojoso”, claro está, remete a esse autor ficcional cujo projeto de escrita – e de vida – difere radicalmente do de Stamatius. Este personagem é caracterizado todo o tempo na via oposta à dos escritores que produzem para as massas, embora tente a todo custo conquistar um público leitor significativo para sair da miséria anunciada nas primeiras páginas de Cartas de um sedutor . Portanto, o conflito entre suas demandas artísticas e as demandas do mercado, que o motiva à criação do personagem-escritor Karl, fará com que a narrativa epistolar encaixada no texto maior que Hilda Hilst chamou de C artas de um sedutor apresente de forma bem acabada a mescla de estilemas populares e cultos que caracteriza o projeto crítico da trilogia. Tiu é ao mesmo tempo Stamatius e Karl, escritor elitista e escritor popular. O que podemos observar nas vinte cartas ficcionais atribuídas a Karl é, então, uma tensão constante entre as duas projeções hilstianas, de modo que, quando uma máscara cai, outra se põe no lugar num interminável jogo de velamento/ desvelamento. É possível assim que duas leituras possam advir das cartas: uma, centrada no personagem Karl como autor, põe em relevo as situações lúbricas e a imoralidade do narrador, de modo que os empréstimos tomados do romance libertino, originalmente dotado de força política contestatória e densidade filosófica, nada mais são que estratégia comercial para dar roupagem nova à velha pornografia vendável. Os estilemas em questão apresentam-se esvaziados de sua funcionalidade original, servindo apenas para mascarar com uma ilusória originalidade a mesmice da literatura de mercado. Tal esvaziamento pode ser equiparado ao próprio processo que engendrou o fenômeno pornográfico comercial tal qual o conhecemos. Como Lynn Hunt (1999) fez questão de demonstrar, a pornografia moderna é filha direta das narrativas e ilustrações libertinas tão em voga no século XVIII. Foi o desenvolvimento da imprensa e o conseqüente processo de alfabetização das massas que permitiram um alargamento do público consumidor de ilustrações e romances até então proibidos por heresia e subversão política. É só no século XIX que surgirão as primeiras leis contra a obscenidade com vias a proteger a sociedade da imoralidade. A pornografia moderna se constituiu, então, a partir de sua regulamentação e da existência de um mercado para as obras impressas, mercado este mais interessado em afrodisíacos que em política: “Paradoxalmente, logo que a
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pornografia política se democratizou, deixou de ser política”. (HUNT, 1999, p. 334) Antes de tornar-se um negócio lucrativo, a pornografia da época das Luzes era mais restrita ao círculo de poucos letrados e servia de veículo para a contestação ao antigo regime e ao clero. Não era incomum que filósofos iluministas como Diderot e líderes revolucionários como Mirabeau escrevessem romances pornográficos, como também não era raro que escritores pornográficos como Sade se prestassem à divulgação dos ideais materialistas e libertários do Iluminismo. A relação entre filósofo e literato, como bem salientado por Sergio Paulo Rouanet (1998), era de complementaridade: a este cabia a tarefa de minar os alicerces morais do antigo regime e àquele competia abalar seus alicerces políticos. Libertino, aliás, antes da acepção que o coaduna à imoralidade e ao desregramento sexual, significava simplesmente livre-pensador. Perdida a conotação crítica do romance libertino e descoberto o potencial mercadológico da exposição do sexo, a pornografia acabou sendo reduzida ao aspecto afrodisíaco e aliciada pelas forças do poder em nome da manutenção da ordem social. Além da leitura centrada no autor ficcional venal e acrítico há outra que se atém ao fato de Karl ser um disfarce do narrador/ autor Stamatius. Tal perspectiva privilegiará os sinais deixados ao longo do texto por esse escritor sério e que evidenciam um trabalho escrupuloso com a linguagem e com as estratégias literárias. Nesse caso, os estilemas do romance libertino, bem como o tratamento dialógico dispensado à ficção filosófica de Kierkegaard intitulada Diário de um sedutor , publicada primeiramente em 1843, configuram-se como fontes para as rebuscadas relações intertextuais que enformam a narrativa hilstiana. A máscara assumida por Stamatius permite que este, ao desdobrar-se em um outro, possa analisar com distanciamento crítico suas atitudes. A capacidade de rir de si próprio é inerente a quem é dotado da qualidade de auto-reflexão, ou seja, aquele que é capaz de ironia. Nas cartas atribuídas a Karl, a ficcionalização que Stamatius empreende de si mesmo é o veio através do qual essa auto-ironia se mostra. Vale a pena reproduzir o longo trecho a seguir para que percebamos o tom pouco respeitável devotado à descrição das mazelas de Tiu feita por ele mesmo na pele de Karl: Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eu só o chamava de Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá) que perdeu tudo, casa e outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebes? Vive num cubículo sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido do esgoto. Muitos o procuram
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para ajudá-lo. Não quer nem saber. O Tiu só quer escrever, só pensa nisso, pirou, sai correndo de pânico quando vê alguém que o conheceu. Carrega no peito uma medalha de Santa Apolônia, protetora dos dentes. Ah, não tem mais dentes. Bonito o Stamatius. Elegante, esguio. A última coisa que fez antes de sumir por aí foi torcer as bolotas de um editor, fazê-lo ajoelhar-se até o cara gritar: edito sim! Edito o seu livro! Com capa dura e papel bíblia! Só então largou as bolotas e balbuciou feroz: vai editar sim, mas a biografia da tua mãe, aquela findinga, aquela léia, aquela moruxaba, aquela rabaceira escrachada que fodeu com o jumento do teu pai. – e quebrou-lhe os dentes com a muqueta mais acertada que já vi. Quebrou a mão também. (CS, p. 67-68)
O deboche para consigo é patente no trecho acima, a começar pelo desprezo pelo seu próprio nome. O ofício de escritor também não é levado a sério: Tiu tinha mania de ser escritor e pirou por ter feito da literatura uma obsessão. A aversão de Karl abarca os escritores em geral e é tema recorrente em suas cartas: “Tenho horror de escritor. A lista de tarados é enorme.” (CS, p. 74) Seguem várias referências a autores famosos (Rimbaud, Verlaine, Proust, Genet, Foucault) e suas excentricidades comportamentais, o que serve de argumentação grosseira para justificar seu ódio pela classe. (Tal raciocínio remete, de forma crítica, à própria Hilda, que viu sua trilogia obscena ser denegrida por toda sorte de comentários esdrúxulos a seu respeito). À sugestão de sua interlocutora de que suas cartas assemelham-se à escrita literária, Karl responde: “Queres sem dúvida me ofender, Cordélia.” (CS, p. 56) A caracterização que Karl empreende do ofício do escritor reforça seu desprezo por tal ocupação e funciona assim para realçar o contraste entre seu oportunismo que alcança sucesso editorial e o esforço vão de um artista como Tiu. A narração do episódio de desavença entre este e o editor, por exemplo, citada anteriormente, é risível do ponto de vista de Karl, ao passo que a visão que Tiu expressa em outro momento é de ressentimento e raiva: “Prefiro isso, o não ser ninguém, a conviver com aqueles pulhas. Que nojo todos. Se tu não lambes o rabo dos canalhas estás frito.” (CS, p. 124) Ele mesmo se refere, findas as cartas, ao episódio ficcionalizado (até o vocabulário é semelhante): “A mão direita ainda ressente da muqueta certeira no maxilar jumentoso do editor.” (CS, p. 121 – grifos nossos) A questão da máscara assumida por Tiu começa a ser problematizada a partir do momento em que, despido de seu disfarce de escritor oportunista, ele começa a referir-se a Karl como um amigo de infância. O encontro no mesmo plano ficcional de duas entidades antes identificadas como criador e criatura só pode ser explicado por meio do procedimento da ficcionalização da ficção, já referido em relação a O caderno rosa de Lori
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Lamby.
Em dois trechos significativos, Tiu faz menção a episódios que se repetem nas
cartas, como verificaremos em breve, deixando claro que deles se serviu com propósitos literários. São eles: E que amigos! Aquele idiota do Karl só pensava em meter. Sabe-se que, menininho, pôs a bimba na boca da mãe. A mãe não suportava o menino Karl. Era um enfiar o dedo no oiti o dia inteiro. E gostar. E pendurar-se entre as pernas da irmã, agarrar-se a elas como um bicho viscoso. Entrar nos meios da mãe. Queria ser escritor aquele cara! Aquele fuleraço! Vivia catando e cantando moçoilos pelas ruas... e as mulheres o amavam. Tolas. Por que pensar nele agora? Porque o que há de cinismo e mistificação entre as gentes não é fácil de esquecer não. E ele é um dos primeiros, quando se pensa em vazio e bandalheira. (CS, p. 124) Depois o retrato do pai sobre a cômoda de mogno madrepérola e marfim... beleza sim o pai, mas que sorriso enganoso! Deve ter jantado filho e filha. Bermudas, raquetes Prince e aquele ar de vitória que ostentava em todos os retratos. Que família! E tua mãe, como era? Respondeu-me: a cara desta. E mostrou-me uma mulher tão bela que à noite quase desmaiei vomitando a lagosta mas pensando na dita (não suporto contrastes). Também eu, menino, teria posto minha bimba naquela boca. (CS, p. 127)
Os trechos demonstram que a vida desregrada do amigo Karl serviu de inspiração para que Tiu elaborasse uma narrativa pornográfica que satisfizesse o editor. No entanto, as cartas podem em certo momento parecer uma produção do próprio Karl enquanto entidade eqüipolente – e não subordinada – a Tiu: E não é que esse pulha cínico está lançando um livro? É capaz de tudo. De dar a rodela, de meter no aro de algum editor velhusco, chupar-lhe a pica até fazê-la sangrar, sacripanta bicudo! Queria porque queria ser escritor. Ponderava: Tiu, não tem essa não de ascese e abstração. Escritor não é santo, negão. O negócio é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume. Continua: Tiu, com a tua mania de infinitude quem é que vai te ler? Aposto que serei o primeiro da vitrina e tu lá nos confins da livraria. (CS, p. 138)
O contraste entre os dois autores ficcionais fica patente: “ascese”, “abstração”, “infinitude” e os confins das livrarias de um lado, “escroteria”, “tesudices”, “xotas na mão” e as vitrines das livrarias de outro. A pornografia como metáfora emerge com toda força nesse trecho. O fato de Karl dedicar-se a escrever sobre o sexo de forma chula para ter
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visibilidade comercial está estritamente ligado à comparação que Tiu faz entre esta atitude de Karl e sua submissão ao mercado. É em termos sexuais que tal sujeição é mostrada, de modo a salientar o aspecto negativo da prostituição intelectual. A menção ao sucesso editorial de Karl pode fazer o leitor esquecer que este, nas cartas, é personagem de Tiu. Entretanto, partindo do pressuposto que a descrição de Karl como alguém ávido por publicação contradiz o que este revela em suas cartas, podemos continuar entendendo a narrativa epistolar em questão (com base em outras evidências já salientadas) como uma tentativa de Tiu de ingressar no mundo de seu amigo devasso. Mais uma comprovação desta ficcionalização em segundo grau pode ser observada no trecho abaixo: Karl me dizendo: jamais te colocaria nos meus textos. Tu és exíguo, Tiu (e às gargalhadas), tu és uma semi-ótica, olha, e colocava a mão direita sobre o olho direito e fingia ler um texto, te olhamos (me olhava), e é como se só víssemos o teu lado esquerdo. E pensar que aquele frescalhão do Karl anda lançando livros, encontrou editores! (CS, p. 132)
Diferentemente de Karl, Tiu coloca seu amigo em seu texto, ficcionalizando-o e assumindo sua voz. Assim, acaba por encenar o papel do escritor comercial e, por isso mesmo, em sua opinião, execrável. O sucesso alcançado com a pornografia é de tal forma incômodo que a ele Tiu só pode referir-se como conquista de um outro. Mas esse outro, como bem ressaltou Alcir Pécora, é o mesmo: “(...) mais correto seria pensá-los [escritor perdedor e escritor-vendido] como uma mesma personagem, em fases distintas de desenvolvimento de si e dos outros”. (2005, sem página.) Dessa maneira, a ironia dá forma à narrativa a partir do desdobrar-se de Tiu em observador e observado, o que coloca em perspectiva crítica sua atitude ambivalente em relação ao mercado (ora refratária, ora conivente, a depender da máscara que veste ou despe). Enquanto discurso bivocal, a ironia tem como objetivo confrontar sentidos e desfazer verdades instituídas ao voltar-se simultaneamente para discursos antagônicos (BAKHTIN, 1981). Assim, o paradoxo não lhe é estranho. Tiu identifica-se com o objeto do ataque irônico, ao mesmo tempo em que enceta uma relação de oposição a esse mesmo objeto. A crítica mútua entre suas duas versões textuais, a experimental, que corresponde ao seu projeto artístico pessoal, e a comercial, que corresponde a um projeto meramente circunstancial, estabelece uma tensão no interior do texto epistolar que só se resolverá fora dele, quando Tiu recuperar o fio narrativo e assumir seus relatos.
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5.2 Outra história pornéia a quatro mãos A segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. (Mikhail Bakhtin)
Os estilemas cultos que denunciam a fala de Tiu por detrás do discurso de Karl correspondem, em uma primeira análise, às relações de transformação operadas no trabalho intertextual com a ficção filosófica Diário de um sedutor , de Kierkegaard (relação assumida pela própria Hilda Hilst em entrevista ao jornal O Globo, 1990), e com a série literária libertina em voga no século XVIII. O que possibilitou que essas duas fontes pudessem ser conjugadas na elaboração das cartas foi o fato de a narrativa criada por Kierkegaard no final do século XIX para expor suas idéias filosóficas ter elementos que a aproximam da estrutura do romance libertino. Em primeiro lugar, a questão do editor que encontra manuscritos por acaso e decide publicá-los. Esses manuscritos compreendem a cartas, como no romance de Laclos, Ligações perigosas (1782), mas em sua maior parte pertencem a um diário cujo caráter memorialístico remete aos abundantes relatos em primeira pessoa em que se narram as recordações lúbricas de seus protagonistas ( Teresa filósofa,1748; Justine,1791; Fanny Hill,
1748, 1749). É flagrante também a caracterização
do autor do diário em consonância com o personagem-tipo libertino conhecido como roué e que tem no visconde de Valmont, de Ligações perigosas, seu exemplar mais aludido. O roué tem
a sedução como ofício: é um estrategista que tem como objetivo conquistar e
destruir suas “presas”. Seu prazer está justamente no processo longo e meticuloso de sedução que avança por etapas: a escolha da vítima, sua conquista, seu abandono e seu declínio moral. A ação desse libertino é extremamente calculada e refletida, e nisto está seu prazer, que vai muito além da satisfação física. Uma vez seduzida, a vítima é conduzida para sua autodestruição e deixa de interessar ao sedutor. O roué despreza qualquer laço estável de relacionamento e tem na intercambialidade de seus parceiros sua lei. Caracteriza-se, ainda, pela dissimulação: mantém uma máscara social respeitável que esconde sua conduta devassa nos bastidores dos salões aristocráticos. O esquema do libertino tal qual descrito acima foi utilizado de forma implícita por Kierkegaard para ilustrar o que ele chamava de componente estética da vida (as outras componentes seriam a ética e a religiosa). Iohanes é o sedutor em questão, autor do diário,
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sempre reflexivo e racional. Assim como o roué, é cerebral e domina argutamente a linguagem verbal com fins à persuasão. Seu trajeto rumo à sedução de Cordélia é longo e a descrição minuciosa do processo de conquista se espraia por páginas e páginas até a derrocada final da vítima que, depois de conquistada, é abandonada como todas as outras. Diário de um sedutor
representa apenas uma pequena porção do intrincado pensamento
kierkegaardiano sobre as três esferas da existência exposto na obra Ou/ ou (1843). Temos, além do recurso ao editor e às estruturas caras ao romance oitocentista, a questão dos vários pseudônimos com que Kierkegaard assina as diversas seções do livro e que problematiza a relação autor empírico/ autor ficcional, tal qual em Cartas de um sedutor . O motivo do livro dentro do livro também é utilizado pelo filósofo assim como por Hilda Hilst. Os personagens criados por Tiu para encenarem os episódios relatados na sua narrativa epistolar carregam os nomes da ficção filosófica de Kierkegaard, porém representam papéis diversos. O sedutor é Karl, e Cordélia, a destinatária das cartas, é sua irmã, com quem viveu relação tórrida durante a juventude. Iohanes se transformou no fruto da relação incestuosa entre Cordélia e seu pai e só é mencionado nas cartas finais. Podemos dizer então que Tiu inspirou-se livremente na leitura de Diário de um sedutor , acentuando, na narrativa epistolar que criou, as potencialidades libertinas sugeridas na obra filosófica. O romance libertino vai fornecer a esse escritor um arsenal de temas a trabalhar de modo a tornar seu texto pornográfico e vendável. Para tanto, é necessário que a conotação crítica do romance libertino seja elidida em nome da exposição gratuita do sexo com fins afrodisíacos e comerciais. O trabalho textual que Tiu faz em busca de uma obra que seduza o editor e permitalhe sair da penúria é justamente o de esvaziamento do conteúdo filosófico e político peculiar aos textos que lhe serviram de inspiração, fazendo de Karl um personagem alienado e venal, para quem o sexo está destituído de qualquer potencial reflexivo, seja na esfera existencial, política ou filosófica. A lista dos temas diletos da libertinagem de costumes do século XVIII que foram reapropriados por Tiu em sua empreitada pornográfica começa com o incesto, do qual fizeram uso abundante os escritores obscenos do século em questão para desmoralizar as instituições do poder. O mundo libertino abole o tabu do incesto por considerá-lo uma regra antinatural, equiparando-a ao conjunto de regras impostas despoticamente pela nobreza e pelo clero. A família é vista como um microcosmo repressor da sociedade, de modo que a abordagem do incesto nos textos
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libertinos aponta para o desejo de subversão da ordem estabelecida artificialmente pelo poder aristocrático. Em Cartas de um sedutor , o incesto apresenta-se destituído de seu poder subversivo e não passa de uma atração extra para fazer variar os intercâmbios sexuais. Estes, a propósito, se apresentam sob variadas formas. A relação sexual entre irmão e irmã é a mais referida, já que são os correspondentes das cartas: Eu chegava nos meus lindos 14, tu nos teus 24, suspendia-te a camisola de cetim e enrabava-te em pé ali mesmo atrás da estátua (a de antes escultura), enquanto tu me masturbavas gemente, balbuciando coisas pueris que sempre terminavam em ós ais, e ias te agachando, te agachando terminando estatelada bem em cima da minha gaita, gemias, gemias, e aquilo não acabava nunca. Depois eu te lambia, tu deitada ao lado das floreiras de pedra, e as samambaias encobriam tua visão do pai (...). (CS, p. 34)
Ambos, no entanto, nutrem desejos secretos pelos pais: Poríamos a fotografia de papai na nossa frente (tenho algumas lindas! Posso mandar ampliá-las...), e nos chuparíamos, de cada lado uma fotografia de papai. Depois eu derramaria champanha na tua cona, que deve estar tão sequinha, coitada... ou não? Ou o tal de Iohanis... não, não quero nem pensar... e chuparia teus dedinhos do pé, um por um, os buraquinhos das tuas orelhas (ainda usa Calèche?) e o buraquinho da frente e o buracão de trás... vem, irmã (...) prometo te fazer muito feliz como sempre foste quando estavas comigo, prometo também me vestir de papai, com as tais raquetes Prince e a fita lustrosa na testa, e tu de madame Grand se quiseres (...). (CS, p. 85-86)
Madame Grand é mãe dos dois, como esclarece Karl: Aquele retrato que o pai recortou da revista dizendo que era a princesa de Lamballe não era verdade. Tu sabias? Não é a princesa. Idêntica à mamãe sim, só que descobri que a retratada chamava-se madame Grand. (...) Penso que papai me queria afastado de mamãe. Sabia que eu a amava mais do devia. E como toda a história de Lamballe é horrível (além de degolarem-na, retalharam-lhe a vulva e dela fizeram bigodes! Franceses... meu Deus... tão finos...), e eu, sabendo desta história, jamais teria tesão (no entender do pai) por mamãe Lamballe. Tinha ciúmes de mim o espertalhão! Que família! Que mentiras E todos tão collet-monté e elegantes! (CS, p. 77)
O desejo dos irmãos pelos pais não fica só no plano da fantasia, pelo menos para a relação entre pai e filha. Karl tem notícia, pelas cartas de Cordélia, que esta embriagou o
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pai e dele engravidou. Karl conclui, desapontado: “E enfim confessas que Iohanis é louro, tem coxas douradas, 15 aninhos, adora tênis e é a cara do pai. Sou irmão e tio. És mãe, irmã e amásia. Quantas mentiras. Marafona”. (CS, p. 87) Que o leitor não se engane: seu pesar é resultado apenas da decepção decepção e inveja por ter sido excluído do prazer gozado somente pela irmã. Podemos perceber que a consangüinidade não altera em nada o esquema da insaciabilidade e rotatividade entre os atores das performances sexuais; antes as enfatizam, pois os núcleos familiares se configuram, nesses casos, como veículos poderosos de carga sexual pela convivência demasiado próxima entre seus membros. Os vínculos de parentesco, no entanto, se apagam completamente completamente ante a dança dos corpos que, destituídos de sua identidade, transformam-se em autômatos. O incesto, tendo assim esgotadas suas potencialidades potencialidades transgressoras, não provoca nenhum tipo de conflito emotivo. A culpa e a vergonha estão completamente ausentes ausentes do cenário montado por Karl: Escute Cordélia, a sério: disseste-me na tua última carta que bagos e caceta e o cuzinho de Albert não te dizem respeito. Que não te interessas mais por todas essas imundícies do sexo. Sinto que mentes. Mas, enfim, disseste ‘imundícies’. E depois falaste em ‘sentimentos’. Mas por favor, irmanita, nunca os tiveste! Chamas ‘sentimento’ o que tresudavas pelo pai? Ficar no terraço do quarto, atrás daquela escultura do B. Giorgi, massageando a cona enquanto papai jogava as duplas, a isso chamas de sentimento? (...) Muito me admira que na tua idade chames de sentimentos a essas arruaças, essa quizumba como diz meu amigo Piva, essa desordem esse banzé, esse arregaço esse esparramo de corpo, sentimenteias picas, jamais sentimentaste coisa alguma (...). (CS, p. 3435)
A insipidez emocional defendida por Karl é a que caracteriza toda pornografia, já que esta tem por objetivo liberar o leitor de inibições de toda sorte para assim cumprir sua função afrodisíaca: “Imaginas mesmo, Cordélia, que um Deus ia se ocupar de alguém que estivesse comendo uma maçã lá na Mesopotâmia? Sentes culpa de quê? A que pecados te referes? Aquelas siriricas inocentes pensando em papai?” (CS, p. 38) Vale ressaltar uma passagem em que se anuncia o desfecho das cartas e na qual podemos perceber a questão do incesto tomada criticamente, denunciando dessa forma o distanciamento irônico desse autor ficcional que se apropria lucidamente dos estilemas pornográficos:
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E agora me lembrei de Mirra que embriagou e seduziu o rei Ciniras, seu pai, e teve um filho do próprio. Mirra, sim, é que ilustra com perfeição perfeiç ão o chamado complexo de Édipo. Pobre Édipo! Pois nem sabia que a outra era a mãe. Nem Freud nem Jung leram Ovídio ( Metamorfoses Metamorfoses). (CS, p. 59)
A narrativa cristã também conta com uma versão do mesmo evento: as filhas de Ló o embriagam para que possam ter relações com ele e assim conservar em vida a semente do pai (Gênesis, cap. 19, vers. 32). Percebemos assim a força arquetípica dessa interdição fundamental que certa pornografia (como a libertina) faz questão de trazer à tona para liberar a sexualidade das injunções sociais. Outro tema recorrente da literatura libertina é a sodomia, cuja reapropriação também é carregada de ironia e comentários explicativos: Nunca me importei de dar o rabo ou penso que não me importo. Tu também não, não é, Cordélia? Lembro-me muito bem dos teus ganidos de prazer com o meu rombudo enfiado lá dentro. Mas dizem os doutos que, para o homem, dar o pretinho pre tinho é tutta un’altra cosa, massageia a próstata, dizem (é verdade, eu já uivei algumas vezes quando a caceta foi punho). As explicações são maçantes, técnicas em demasia e não as quero comentar neste momento. Se tu tiveres algum interesse, posso mandar-te um livro do João Silvério, Devassos no paraíso, magistral tratado sobre tudo isso do of e ligado a ele. (CS, p.32-33)
Quando se trata do caso específico da prática homossexual masculina, Karl se assemelha em larga medida aos celerados que povoam a tradição libertina, especialmente Dolmancé, personagem sadiano de Filosofia na alcova (1795). Nesse sentido, o texto de Cartas de um sedutor se
afasta da pornografia comercial mais popular pela dose de
misoginia presente no texto, embora tal aversão pela mulher se dissipe em circunstâncias bem específicas (como quando se trata de sua mãe ou irmã, por exemplo), o que faz com que Karl mereça o epíteto de “nojoso” tão utilizado por Tiu para caracterizá-lo. A descrição de suas preferências é bastante elucidativa de sua personalidade “pervertida”: Mas falemos agora de uma evidência perturbadora para a caterva e tão genuína e transparente para mim: como os machos se amam uns aos outros! Por que fazem desse fato tamanho mistério e sofrimento?Perdoame, Cordélia, mas a não ser tu, minha irmã e tão bela, não tive um nítido e premente desejo por mulher alguma. Mas sempre gosto de ser chupado. Então às vezes seduzo algumas de beiçolinha revirada. Mas o falo na rosa, nas mulheres, só in extremis. (...) Gosto de cu de homem, cus viris, uns pêlos negros ou aloirados em volta, um contrair-se, um fechar-se
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cheio de opinião. E as mulheres com seus gemidos e suas falações e grandes cus vermelhuscos não me atraem. (CS, p. 24-25)
A iniciação do ingênuo é mais um dos clichês empregados por Tiu em sua narrativa pornográfica. O romance libertino freqüentemente tomou a feição de um romance de formação em que a libertinagem, como qualquer outro o utro código de conduta social, deveria se aprendida. Essa aprendizagem se dá primordialmente por vias práticas: o ingênuo experimenta aquilo que seu mestre, exímio praticante da arte da libertinagem, lhe ensina prontamente. Em Cartas de um sedutor , o iniciado é Albert, um mecânico de apenas dezesseis anos que sustenta oito irmãozinhos. Temos aí duas tentações caras ao libertino: a atração pelo jovem e o prazer pela corrupção do virtuoso. A narração que Karl faz de sua investida sobre o rapaz é carregada de detalhes das artimanhas empreendidas para seduzilo. Primeiro, Karl finge-se de “macho” para conquistar-lhe a confiança; durante a conversa, faz questão de descrever com detalhes posições incomuns para excitar-lhe, certificando-se de encostar aqui e ali nele de forma a simular naturalidade; em seguida, enceta uma discussão sobre os poderes da masturbação até convencer o rapaz a fazê-lo. O encontro termina com a rendição final de Albert: “Então vi: o malho rosado, lustroso, orvalhado. Caí de boca. Foi se largando todo. Depenei meu sabiá enquanto chupava aquele magnífico bastão. Ele suava e gemia abandonado.” abandonado.” (CS, p. 44) A princípio, depois da experiência inaugural, o jovem tem uma crise de consciência: “E ele estava (imagina, Cordélia!) chorando. Coitadinho! Como são adoráveis essas crianças! Que alminhas ingênuas! Chorandinho, Cordélia! Que corpinhos famintos! Que modestos neurônios!” (CS, p. 45) No entanto, ao fim das cartas, Albert demonstra ter aprendido muito bem as lições de seu mestre: Soltou-se. Fizemos todas as posições ontem à noite, depois de receber a tua carta: torno, macaco, alicate, burrinho. Não vou contar como são, vire-se. Fizemos “carro alegórico” também: eu deitado, ele em cima do envernizado, de braços abertos e cantando “Não me digas adeus”. Já não chora. (CS, p. 89)
Vale ressaltar a brincadeira feita com a expectativa do leitor, já que Karl se recusa a fazer o lhe compete enquanto narrador pornográfico, ou seja, descrever os atos sexuais. Os próprios nomes inventados para as posições obscenas denunciam em tom jocoso as tentativas da pornografia de inovar sobre a mesmice do enredo no qual se baseia. Nesse sentido, a presença da personagem Petite na narrativa se configura como mais uma chance
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de fazer variar as experiências sexuais de Karl – apesar de seu declarado “mal-estar contínuo em relação às mulheres”. Tiu não perde a oportunidade, mais uma vez, de ironizar o caráter descritivo da pornografia: Comi-a [Petite] na posição que chamo “A Degolada”. É assim: a cabeça totalmente fora da cama (lembra-te de nossas camas aqui de casa, altíssimas), a perna direita lá no alto. É preciso ser delicado para não destroncar o pescoço do parceiro ou parceira. Fui Grosso. Além dos gemidos restou-lhe um suave torcicolo. (CS, p. 53)
É possível identificarmos várias outras microestruturas realistas ao longo das cartas mesmo quando não retomadas criticamente enquanto tema com propósitos de zombaria, como os dois exemplos acima. Se nos voltarmos para trechos anteriormente citados com finalidades distintas, perceberemos que neles a exposição dos órgãos e práticas sexuais não é de forma alguma apenas sugestiva, mas sim explícita. Além disso, a exploração do potencial voyeurismo do leitor é feita de forma engenhosa. A estrutura epistolar da narrativa, organizada a partir das cartas de apenas um interlocutor – que é justamente o devasso que narra suas experiências sexuais –, faz com que o leitor acabe por se identificar com o papel de destinatário possível dessas correspondências lúbricas: Se tu o visses, teus grandes e pequenos lábios intumesceriam de prazer, assim como intumesciam sob os meus dedos quando eu os tocava fingindo esmigalhar as polpinhas rosadas. Estás molhada? Não desejarias o pau de Albert indo e vindo no teu abiu-nêspera buraco? (CS, p. 26)
Ainda que os termos chulos, mais denotativos, estejam combinados com um vocabulário culto e com neologismos, a exposição da sexualidade não fica prejudicada. A imaginação do leitor não encontra nesses vocábulos mais rebuscados nenhum empecilho para reproduzir mentalmente as cenas descritas. Uma rápida retomada dos vários trechos da obra aqui transcritos podem facilmente atestar esse fato. É clara a apropriação dos estilemas realistas por esse autor que conhece muito bem o funcionamento interno do gênero, tanto que pode brincar com sua reapropriação. A certa altura, justifica seu vocabulário vasto para referir às coisas do sexo: “Se eu tenho um dicionário de obscenidades? E eu lá preciso de dicionário dessa espécie, eu que andei pelos bordéis da vida no país inteiro?” (CS, p. 71) O texto hilstiano remete assim a um dos elementos que Goulemot (2000) elencou como sendo defeitos do texto pornográfico – embora,
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lembremos, o autor os considere qualidades de escritura: o excesso metafórico. Ainda nesse sentido, em outro momento, o duplo da autora alude ao dito poder alucinatório e transgressor da palavra obscena, fazendo-o migrar para outros vocábulos, assim relativizando a onipotência da palavra interdita como garantia do efeito pornográfico: Diz que me ama mas não suporta quando nos meus arroubos digo a palavra boceta. Pergunto-lhe se é um problema de ordem moral ou de semântica. (...) é apenas disgusting, meu bem, nada a ver com a moral, há outras palavras que me soam também desagradáveis. (...) não suporto a palavra efusão nem a palavra fartura... fico até fria... (CS, p. 83)
Além deste, Cartas de um sedutor apresenta ainda outro “defeito”: o acúmulo de perversidade específica. Afora o incesto e a sodomia denunciados nas passagens transcritas ao longo deste trabalho, ainda comparece ao relato de Karl a pedofilia, no episódio em que este comenta a confissão de Cordélia de que era molestada sexualmente pela governanta da casa. No entanto, diferentemente do romance libertino, em que a presença da perversão insere uma nota de rebeldia e crítica por lidar com a quebra de protocolos sociais, em Cartas de um sedutor
o esvaziamento da qualidade revolucionária das perversões é
intentado a todo custo, chegando mesmo à criação de episódios antiafrodisíacos. Uma das estratégias utilizadas para conseguir tal efeito é a exploração de situações que beiram o ridículo. O riso que delas emerge tende a desmoralizar o projeto comercial de Karl, embora elementos da pornografia permaneçam patentes. A narrativa está povoada desses pequenos absurdos, mas aludiremos a uma situação narrada mais detidamente e que pode dar conta deste aspecto, a que corresponde ao episódio da personagem referida como Cuzinho, porque é “viciada em lamber pregas”. (CS, p. 49) Karl conta que um conhecido seu, Kraus, morreu literalmente de tanto rir porque não suportava a insistência doentia de Cuzinho para “lamber-lhe o aro”. (Ibidem) Com sua morte, os amigos de Kraus organizaram uma vingança para a moça, que segundo Karl, seria mais prêmio que castigo: “lamber o roxinho” (CS, p. 72) de duas equipes masculinas de pólo. De fato, Cuzinho, terminada a punição, saiu sorrindo. Tal episódio também é significativo de outro aspecto importante da pornografia que serve de guia para a composição de Tiu: a pornotopia. É possível percebermos que todas as cartas se desenvolvem em torno de episódios sexuais, como o acima citado, os quais remetem a um mundo fabuloso em que absolutamente todos são escravos do prazer sexual. Cada um dos personagens que comparecem à narrativa são citados unicamente para terem
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reveladas pequenas indecências a seu respeito. Karl parece habitar uma realidade em que só o sexo é lei e nada parece perturbar o reinado da volúpia. É significativo a esse respeito que tanto indivíduos de classes subalternas quanto os de classes abastadas mereçam espaço no relato lúbrico de Karl. O narrador passeia então por todos os espaços e pode ter relações sexuais seja com um mecânico bronco, seja com uma “doninha” casada e rica. Seus empregados também mantêm relação entre si: Frau Lotte e Franz; Gretchen e Zé Piolho. Certas digressões (outro defeito da lista de Goulemot) interrompem esse falar incessante em sexo e sua função no texto nada mais é que ironizar o fato de a pornografia comercial ser avessa a qualquer interrupção de sua minuciosa descrição do ato obsceno. Às excentricidades sexuais dos personagens que povoam a pornotopia de Karl acrescentam-se elucubrações intelectualizadas e cheias de humor sobre o sexo: Na verdade o que queremos é dilacerar o outro. Dão o nome de desejo a essa comilança toda. Na natureza tudo come. Do leão à formiga. Até as estrelas se engolem umas às outras. Tenho cagaço do cosmos. O Criador deve ter um enorme intestino. Alguns doutos em ciências descobriram que quanto maior o intestino, mais místico o indivíduo. E quem mais místico do que Deus? Grande Intestino, orai por nós. (CS, p. 78-79)
Outras, bastante insólitas e despudoradas, versam sobre temas mais áridos, como a morte: Estou doente por tudo isso e porque não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem da barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus baixos meios. Se pudesse seduzir a madama, lamberlhe as axilas, os pêlos pretos, babar no seu umbigo, entupir-lhe as narinas de hálitos melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa vida na olorosa quirica do planeta. (CS, p. 68-69)
Ainda cabem digressões sobre as relações hierárquicas, sobre suas opiniões sobre o psicanalista Otto Rank e sobre certa língua fundamental descrita por Daniel Schreber (um juiz esquizofrênico que teve suas memórias publicadas e interpretadas por Freud). Podemos notar facilmente que todas essas divagações acabam por desembocar em um excesso de cerebralismo que, juntamente como uma avalanche de referências mais pontuais a escritores e intelectuais, à semelhança de Contos d’escárnio. Textos grotescos,
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produz no texto obstáculos ao leitor comum. Esses recursos acusam a presença de um escritor sofisticado que faz questão de se insinuar através dos estilemas populares para assim buscar a identificação de possíveis pares entre os leitores. Tiu, o escritor sofisticado em questão, justamente por isso, escreve para o mercado com distanciamento crítico – mais um “defeito” apontado por Goulemot. Sua pornografia é irônica, ambígua; ao passo que se esforça para criar um discurso vazio para o “idiota”, “crápula,” “nojento” do Karl, caminha em direção contrária ao hermetismo e à metapornografia.
5.3 A palavra final A lógica do mercado não é a da literatura. (Octavio Paz)
Não é mero acaso que a obra hilstiana se chame Cartas de um sedutor. O título de um livro é chamariz e marketing para seu conteúdo e o título em questão indubitavelmente coloca em relevo apelos caros ao grande público: se não necessariamente o sexo, pelo menos a conquista e o desejo. Qual não é a surpresa desse leitor ao notar que o conjunto das tais cartas é apenas um livro dentro do livro chamado Cartas de um sedutor. Além desta, temos outras duas obras encaixadas: De outros ocos, uma espécie de monólogo do artista em crise, e Novos antropofágicos, uma reunião de contos desse mesmo artista. A costura entre as três obras se dá pelas intervenções do autor ficcional preterido pelo mercado e seus diálogos com Eulália, sua amante. O título da obra de Hilda Hilst, assim, não só brinca com a possibilidade de frustração do leitor como também, em leitura profunda, revela ser as cartas ficcionais de Karl o tema de Cartas de um sedutor. Assim, Cartas de um sedutor é uma narrativa sobre o processo de feitura de Cartas de um sedutor ,
quer dizer, é a narrativa dos sucessos e fracassos de Tiu em sua tentativa de escrever uma obra pornográfica cujo título é Cartas de um sedutor. Indicamos no início deste trabalho as marcas que denunciavam serem as cartas de Karl criação ficcional de Tiu: a elas antecede um “Vamos lá” que dá início à narrativa epistolar e a elas sucede um “Vou me demitindo desse Karl nojoso” que delimitam a extensão do produto da imaginação desse autor que faz questão de se insinuar como nítida
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projeção textual de Hilda Hilst. É a partir de uma referência a um poema do livro de poesia Bufólicas,
publicado no ano seguinte (1992), no qual a autora mantém o espírito de
deboche iniciado com O caderno rosa de Lori Lamby , que a relação se explicita: tá bem. Vou escrever “Filó, a fadinha lésbica”. / não. Escreve do menino que virou cachorro. / mas só virou cachorro, só isso?/ uai. E não é coisa pra burro?/ é. É coisa pra editor sim, mas tem que ser um cachorro sacana, fodedor. / ah, isso não era não, era um cachorro simpres, quietoso./ então não dá, tem que ser assim ó (e lambo os beiços lentamente e reviro a língua), um cachorrão sacana. (CS, p. 91)
O interlocutor de Tiu no diálogo acima é a personagem Eulália, aludida anteriormente, que a princípio personifica o público leitor senso comum. A caracterização desse tipo de leitor é marcada inclusive, hiperbólica e debochadamente, pelos deslizes gramaticais socialmente estigmatizados da personagem, como o rotacismo, acima transcrito, e a falta de concordância verbal e nominal. Eulália tenta ajudar seu parceiro a escrever “um continho reles” para vendê-lo a um “reles suplemento” (CS, p. 92), dando-lhe sugestões de temas lugares-comuns do mercado para que Tiu desenvolva. Ao tentar seguir os apelos desse grande público representado por Eulália, o escritor acaba por desembocar em contos anticomerciais, na contramão absoluta do que fora proposto por sua amante. A primeira sugestão de Eulália é por uma narrativa de terror: “qué sabê, Tiu? Escreve um conto horrível, todo mundo gosta de pavor, a gente sente umas coisa nos meio... um arrepião” (Ibidem). Stamatius começa então um conto intitulado “Horrível”, mas que nada tem a ver com o horrível tipo thriller ao qual Eulália certamente se referia. O horror em questão é de atmosfera sombria e de apelo reflexivo-existencial, regado com certa dose de humor negro. O narrador mata sua amante por não suportar sua ternura e devoção e a enterra com a ajuda de um velho triste e entediado. Todos continuam a viver estranhamente bem, apesar da “desconfortável impressão” de que haviam enterrado alguém. (CS, p. 99) A reação de Eulália ao conto é sintomática: “Tiu, que coisa horrível, por que o home fez isso? Num era desse pavor que eu te falava!” (CS, p. 99) O trecho sugere a existência de regras bem claras e conhecidas para provocar efeitos pré-estabelecidos, experimentados ad infinitum e por isso portadores do selo de eficácia garantida – um pavor prêt-à-porter esvaziado de reflexão.
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O jogo fica ainda mais cômico quando Tiu começa a utilizar qualquer palavra dita por Eulália como motivação para seus textos. O conto seguinte é elaborado a partir de novo mote gerado por Eulália: “Num me pergunta mais nada, escreve qualqué bestera.” (Ibidem) O texto que se segue chama-se “Bestera” e versa sobre uma velha rica que resolve “beber e berimbar antes de desaparecer da terra.” (CS, p. 100) Para tanto, contratou uma secretária para servir de intermediária na contratação de parceiros sexuais. Um deles lhe indica um amigo chamado Bestera, “supimpa de caceta” (CS, p. 106), que tem esse apelido porque “um cara quis dar o roxinho e muita grana pra ele, e ele respondeu: cu de mancebo só espio e não meto. Todo mundo achou uma bestera, porque com grana a gente mete em qualquer buraco.” (CS, p. 106) A justificativa para o apelido do personagem é tão inusitada quanto o título do conto é imotivado em relação ao enredo, o que remete às exigências muita vezes descabidas dos editores às quais o escritor tem de se esforçar por cumprir, mesmo sob pena de descaracterizar seu texto. Ao comentário da parceira “tadinha da véia... mas ela se divertiu né? Agora se achegue... pára de escrevê, descansa, vem vá... hoje é sábado.” (CS, p. 107), Tiu escreve o conto intitulado “Sábado”.
Construído com vocabulário mais elaborado e técnicas
narrativas mais complexas, como mudança de ponto de vista e refletorização, o texto, curto mas denso, acompanha, durante um sábado qualquer, o conflito interior de um homem desconfiado da traição da mulher. Um pequeno trecho pode dar conta de sua maior complexidade em relação aos outros contos: Uma explosão de invisíveis, um som de vidros e trincas, e depois gotejante um langor, uma para que a vida, sim, estou preso à mulher como o meu corpo está preso à sua própria medida, fisgado como dizem os jocosos, e de repente me sei aquele peixe desamparado, aquele corpo morto. (CS, p. 110)
A reação de Eulália vem quebrar o tom grave do texto e inserir nova nota de ironia à narrativa: “num entendi nada. cê não vai pará, Tiu? tô triste.” (CS, p. 112) O senso comum é ridicularizado e a questão da mediocridade da produção literária que parte das demandas do gosto médio emerge com toda força, principalmente porque, apesar de mais elaborado, o conto não é ininteligível. O último conto chama-se “Triste”, novamente desenvolvendo o comentário de Eulália. Trata de um homem que só dizia coisas estranhas a quem encontrasse. Falava principalmente da dificuldade de ser compreendido (qualquer semelhança com Hilda não é
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mera coincidência) e sua frase preferida era “Nem tudo pode ser arrumado”. Quando sua ladainha muda para “quero fudê”, o homem é morto a pauladas em praça pública. No bolso do morto, encontraram a fotografia de um menino segurando um porco. Atrás da foto, os dizeres: “meu primeiro amor”. O homem, conclui o narrador, foi enterrado com fotografia e tudo. Apesar da apatia com que se narram esses eventos horrendos, o conto leva Eulália às lágrimas e faz Tiu desistir de suas tentativas frustradas de agradá-la. O escritor agora utilizará suas próprias palavras como mote para uma narrativa longa, com direito a título e epígrafes, na qual estará exposta sua personalidade em contraste com a de sua máscara ficcional apresentada na primeira parte de Cartas de um sedutor . De outros ocos trata
de um vazio bem diferente do intentado com a construção do
venal e raso Karl. Seu objeto de atenção é a relação angustiada que Tiu estabelece com o mundo, relação esta agravada pelas pressões do mercado interferindo em sua criação. A obra encaixada revela explicitamente, ao contrário de O caderno rosa de Lori Lamby e Contos d’escárnio. Textos grotescos,
as inquietações do escritor preterido pelo mercado:
“Retomo meu oco. Mas desta vez buscando nada. Só espiando.” (CS, p. 121) A narrativa pretende ser a estilização de uma fala interior que se desenvolve durante o ato da escrita ficcional, ou seja, procura representar o que passa na mente do escritor no momento em que tenta escrever para o mercado. Como esta opção lhe é imposta, a recriação dos movimentos de sua consciência revelará ao leitor a crise desse autor que segue demandas que lhe são totalmente exteriores e não condizem em absoluto com seu projeto artístico. O objetivo principal da recriação literária do espaço mental desse autor é opor o trabalho intelectual de Tiu à utilização de fórmulas semi-prontas de seu personagem Karl. Enquanto este se dedica a fazer os leitores esquecerem que são “mortais e estrume” (CS, p. 138), o texto de Tiu se aprofunda em reflexões existenciais e em preciosismo lingüístico – justamente o que a produção pautada no mercado execra. Sua abordagem do sexo, por exemplo, no lugar do esvaziamento da pornografia comercial, é motivo para pensar a existência: “Quando gozo espio a amplidão. A minha amplidão aqui de dentro.” (CS, p. 17) Embora ambos se valham da explicitação do sexo, inclusive com o uso de vocábulos obscenos, a diferença entre suas concepções é bem marcada no texto: “Eu comia as lagostas, olhava a aquarela e pensava: e pensar que tudo vai ser esfrangalhado pela minha rodela. Enquanto isso ele, Karl, dissertava a respeito do lindo anel cheiroso de sua irmã Cordélia. Crápula”. (CS, p. 127)
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A menção à irmã de Karl, como a vários outros episódios da vida do devasso, é constante no relato de Tiu e revela, como já anunciado anteriormente, a matéria da ficção desse escritor. O processo de ficcionalização em segundo grau pode ser aferido nos trechos em que Tiu comenta episódios da vida de Karl que são explicitamente retrabalhados nas cartas da primeira parte de Cartas de um sedutor , como suas relações sexuais com sua irmã, seu desejo pelos pais – cujas fotos foram mostradas a Tiu –, sua preferência homossexual e a conquista esporádica de mulheres (tematizados nas cartas a partir do mecânico Albert e da burguesa Petite). A elaboração desse livro pornográfico – as cartas do sedutor – para inserir-se no mercado editorial é objeto de reflexão constante de Tiu: Sempre devo pensar no pau. Ou nos ovos. Ou na manjuba. É assim que quer o editor. ‘Pode pensamentear um pouco, negão, mas sempre contornando a sacanagem’. Estou preocupado porque fora as 1.500 posições do Kama Sutra devo inventar novas. E novos enfoques. Tô até suando.” (CS, p. 142)
A crise o faz muitas vezes, durante o processo, repensar a “inutilidade” de seu ofício na sociedade contemporânea: “E por que continuo a sujar os papéis tentando projetar meu hálito, meus sons, no corpo das palavras?” (CS, p.139) A hipótese do silêncio absoluto o ronda vez por outra, mas a necessidade de sobrevivência é premente. O embate move o texto, que vai sendo tecido ao sabor dessas divagações. Embora se queira passar a impressão de que o leitor acessa a mente do autor no momento da criação, essa ilusão é quebrada pela própria natureza do recurso à fala interior de um escritor. Sendo um expediente autoconsciente, é antes artifício assumindo-se artifício. Tiu explora, na verdade, as possibilidades da estilização da escrita em processo: “E deveria ter procurado os cocos e os palmitos. Mas fico a escrever com este único toco e quando acabar o toco troco um coco por outro toco de lápis lá na venda do Boi.” (CS, p. 125) O autor brinca, ainda, com a impossibilidade física da escrita simultânea ao pensamento: “Quero dormir um pouco. Mas penso que não é correto Eulália nos mariscos e eu abestado aqui pensando se devo ou não apanhar os cocos e os palmitos. Mas olho o toco do lápis e quando muito por isso devo apanhar os cocos. Levanto-me. Ponho as mãos na cintura”. (CS, p. 128) Stamatius demonstra consciência de que escreve para ser lido, o que contribui ainda mais para que percebamos o seu texto como uma construção verbal que reinventa artisticamente o fluxo de consciência do narrador: “Fui pra pensão. Aquela. Ah, acho que ainda não lhes falei da pensão”. (CS, p. 130)
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Os movimentos de sua consciência, fazendo oscilar presente e passado, resgatam a memória do escritor e permitem que conheçamos os antecedentes de sua condição de mendicância, aludida por ele mesmo na abertura do livro e por Karl em suas cartas: “Películas antigas: barbeado cheiroso, abotoaduras de platina. De repente no meio da rua arranquei-as e ao primeiro que passava: quer?” (CS, p. 128-129) A miséria desse escritor, que contrasta hiperbolicamente com a fartura financeira de Karl, é fruto de uma resolução consciente que o fez largar a vida de futilidade que lhe encharcava a carne e os ossos (CS, p. 141) para se dedicar plenamente à escrita. Mais uma vez, a semelhança com a autora empírica não é mera coincidência. Tal opção, ademais, estava anunciada nas epígrafes de De outros ocos.
A de Bataille é uma referência ao potlatch 13: “... um esplendor
infinitamente arruinado/ ... o esplendor dos farrapos/ e o obscuro desafio da indiferença”. A de Cioran, na mesma esteira, adverte sobre a falta de visibilidade de Hilda/ Tiu: “Existir é um hábito que não perco as esperanças de adquirir.” (CS, p. 119) Com exceção dos trechos em que a memória interfere na torrente de pensamentos do personagem, sua narrativa se pauta basicamente no presente do indicativo, como a sugerir que sua mente registra em tempo real o que acontece ao redor e lhe serve de pretexto para divagações que o demovem de seu projeto de texto original (o texto para o mercado): “Tu não qué nadá não, benzinho?/Tem uma linda barriga, Eulália. De criança. Estufada. Tem coxas vivas. Estremecem um pouco, um quase nada, mas comunicam-se, as coxas de Eulália”. (CS, p. 122) As interferências de Eulália, como a citada acima, se por um lado interrompem o fluxo dos pensamentos de Tiu, por outro tentam passar a idéia de compasso perfeito entre o tempo da narração e o tempo do evento narrado. Nesse sentido, Tiu parece concretizar a afirmativa de Waugh (1996) de que, na ficção, a descrição dos objetos corresponde simultaneamente à sua criação. Tais objetos, na verdade, são palavras e não seres, e só existem porque são enunciados. Assim, as falas de Eulália interrompendo todo o tempo a narrativa, além de representarem as próprias demandas do mundo real, que não se apagam só porque o artista está imbuído da tarefa de criar ficções, visam a reforçar a impressão de que o texto é escrito no momento mesmo em que é lido: tu qué comê macarrão com manjerona e um prato de marisco?/ onde foi que tu arranjou macarrão?/ Ah, benzinho. Fiz um olho molhado pro dono do Bar do Boi. Só um olho, benzinho./ Fui traído, pensei. Mas continuo: 13
Ver a introdução deste trabalho.
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A quem estenderei as mãos quando a dona chegar? Haverá luz no quarto? Perfulgência ou sombra? Terei ainda um instante para me tornar perfectível, talvez um santo? (CS, p. 139)
Não é incomum que aconteçam certos curtos-circuitos entre os planos da imaginação e o da realidade circundante que a inspira – planos que se alimentam mutuamente durante o processo criativo. Na passagem transcrita logo abaixo, Tiu está tão concentrado em divagações sobre a morte que a realidade empírica lhe escapa por um instante: Que palavras devo dizer à Dona quando chegar? E se não for uma mulher e for um menino? Esguiozinho, dolente, maneiroso... A morte: uma bichinha triste, delgada. (...) / boa noite dona Eulália, o seo Pedro do Bar do Boi mandou entregar essa lata de massa para sua macarronada./ô menino, brigada, não carecia tanto./Ensopado de susto, eu é que repito sem parar obrigado meu Deus, é apenas um menino magro entregando uma lata de massa para macarronada. / que olho esbugalhado, Tiu, assustou, é? (CS, p.139-140)
Em outro trecho, uma nova intromissão de Eulália reforça explicitamente o efeito de escrita em processo que Tiu tenta imprimir à narrativa: que foi hem, Tiu? /por quê?/ suspirou fundo, bem?/ foi nada não. Foi alguém aqui que desmaiou./ tô com vontadinha, benzinho./ é?/ num vai pará de escrevê não?/ logo mais, Eulália./ lê pra mim, vá, é bonito? É coisa que faz bem pro sprito?/ não, Eulália, é coisa porca./ ué, Tiu, tu não disse que ia pará com tudo isso?/ só mais um pouquinho, depois só vou falar do pau-barbado de Deus. (CS, p. 136-137)
O advérbio “aqui”, está claro, refere-se ao texto que Tiu escreve às vistas do leitor. A tentativa de representar a dinâmica da invenção literária na mente do escritor leva inclusive à descrição de um momento de inspiração de Stamatius, que deve ser tolhido porque não se adapta às exigências comerciais: E luzes rosadas, luzes violetas se chocam nos bastões de prata. Cometas de ouro sobre as arcas. Algumas se abrem e lá dentro arabescos, letras, sons vindos de tanto que se esbatem, e um rio de bizarrias encontra um mar de langorosas serpentes, leio algumas palavras entre escamas e águas... mas silêncio! Devo guardá-las, porque devem ser ditas apenas quando chegar a minha hora. Repito em voz alta: a minha hora./ cê quer saber que hora amorzinho? (CS, p. 131-132)
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Mais uma vez é possível notarmos uma intervenção de Eulália imprimindo a noção de texto em progresso. No entanto, é preciso salientar que a sincronia pretendida entre o processamento dos elementos do real na mente do escritor e sua reprodução verbal é muitas vezes implodida pela instalação de um visível paradoxo no texto, como no trecho que se segue: Deita-se, amasso os papéis, jogo tudo fora, me atiro em cima de Eulália, a xota engole o meu pau, agora ela senta sobre a minha cintura, toda esticada Eulália, é fina quando fode, já lhes disse (...). Eulália me beija os olhos. Como se eu estivesse morto. Ainda não, o outro me diz. E nem vai ser assim esfolando a piaba. Como é que vai ser? Alguém me segurando as mãos. Alguém dizendo calma, tudo vai passar, é só um desconforto. (CS, p. 137)
Ao mesmo tempo em que o narrador supostamente pára de escrever e joga seus manuscritos fora, permanece a consciência de um público que lê o que está sendo escrito. Contraditoriamente, a narração de sua destruição permanece narração. Justamente por ser metaficção, De outros ocos pode simular a simultaneidade entre pensamento e escrita. Somente por ser uma construção verbal – ficção – é que se faz possível a existência desses seres de papel, como faz questão de sugerir Stamatius num repente, no meio da narrativa: “Eulália não é real. Está ali à minha frente mas não é real. Move-se e ainda assim não existe. Talvez tenha alguma materialidade porque suspeito algumas vezes de lhe ouvir a fala”. (CS, p. 133) Mais adiante, quando o demônio aparece 14, inicia um diálogo com Tiu nestes termos: É contigo mesmo Stamatius ou Karl ou Cordélia ou senhora Grand ou madame Lamballe, Princesa corrijo, tudo bem então presente, tá escrevendo o quê? Quem é essa aí com cara de ganido? Tu achas que Eulália tem cara de ganido? Undoubtedly. Materializaste o teu ganido diante da vida e é tão pungente que nasceu mulher. E nasceu como querias ser: pobre de espírito. E como te vês: uma sensualidade cristalina. E certa piedade, certo deboche, e finezas no coito porque no fundo tens medo que tudo descambe para a morte. (CS, p. 144-145)
O trecho fala por si só. Tiu é equiparado a todos os outros personagens que povoam Cartas de um sedutor .
Além disso, a ficcionalidade de Eulália é atestada explicitamente,
bem como o processo criativo que a engendrou. Mais que isso: Eulália é apresentada como 14
Esta figura também está presente em O caderno rosa de Lori Lamby e Contos d’escárnio. Textos grotescos. Segundo Crasso, todos vêem o seu demônio quando resolvem escrever um livro.
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mais uma máscara ficcional de Tiu, o que vem a reforçar o caráter paradoxal desse escritor que ora adere ao mercado, ora o repele. Na pele de Eulália, Stamatius mostra sua face senso comum e admite, mesmo que momentaneamente, a impossibilidade de ignorar totalmente as imposições da indústria editorial. Eulália é a força que o puxa para a realidade concreta e o obriga a repensar continuamente seu posicionamento frente às exigências mercadológicas. O desfecho de De outros ocos se assemelha ao das cartas de Karl. Se antes a vírgula marcava um vocativo que indicava a equiparação das entidades no mesmo plano ficcional (“Vou engolindo, Eulália”- CS, p. 89), agora ela é suprimida para fazer o objeto do verbo denunciar o desnível de planos: “Vou engolindo Eulália.” (CS, p.148) Stamatius demite-se de si mesmo e fica “muito mais sozinho.” (Ibidem) Essa é a deixa para o terceiro livro encaixado em Cartas de um sedutor , Novos antropofágicos, em que é possível sentirmos aplacada a tensão entre as posições antagônicas defendidas pelas máscaras de Tiu. Não sendo mais responsável pela mediação do relato, Tiu cria narradores para a série de oito mini-contos que fecham Cartas de um sedutor . Nesses escritos, vemos um escritor finalmente livre das pressões comerciais (um de seus personagens literalmente mata seu editor) e que por isso pode ousar na abordagem de situações repulsivas totalmente avessas ao conforto que a indústria cultural tem por objetivo proporcionar ao seu consumidor. Os textos flertam com a crueldade, tratando com naturalidade e ironia o lado obscuro do ser humano. Um homem entediado com a esposa pedante resolve matá-la a facadas e come-lhe os dedos; um outro corta o bico do seio da mulher por ciúme e enfeita com ele um sorvete. Quando a violência não é convocada em sua forma mais sangrenta, aparece como manifestação de impulsos sexuais reprimidos: um homem tem uma experiência pedófila num banco de uma praça e desde então não consegue ter mais relação com mulher alguma; um outro, que proclamava horror ao sexo, acaba encontrando prazer na experiência carnal com rapazes; um jovem, depois de ter perdido a virgindade com uma moça empregada de sua mãe, desenvolveu a disfunção de só conseguir prazer fazendo o sinal da cruz e obrigando a parceira a repetir “ai Jesus”. O que esses escritos curtos porém suficientemente perturbadores demonstram a partir da representação da hybris presente em todo ser humano – seja ela liberada ou reprimida, porém sempre potencial – é o aspecto transgressor de toda obra de arte. Segundo Edgar Morin (1998), sem a desordem da afetividade, as irrupções do imaginário e a loucura do impossível não haveria criação. O homo demens presente em todos nós deve
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ser rechaçado em nome da ordem social, mas pode e deve ser liberto nas manifestações artísticas. O compromisso destas é com as várias formas possíveis de experiência humana – aliás, é dessa matéria que se nutre –, inclusive aquelas que ameaçam nossa humanidade. O artista, repetindo Sontag (1987), é livre explorador dos perigos espirituais. A indústria cultural, comprometida que é com os lucros financeiros, não pode ousar provocar em nós nada além do que o conforto e a comodidade de comportamentos pré-estabelecidos. Seu ideal é o da ordem e o da assepsia. Por isso a reação de Eulália depois de ouvir o conto do rapaz acometido por enorme flatulência durante o coito: “Que coisa nojenta, Tiu./ por quê, Eulália?/ porque ninguém gosta de falar dessas coisa./ pois olha, Eulália, se todo mundo lembrasse do que lhe sai pelo cu, todo mundo seria mais generoso, mais solidário...” (CS, p. 169) O oitavo mini-conto brinca com essa dificuldade do sendo comum de lidar com o que foge às suas expectativas: um poeta se suicida depois que sua esposa não compreende a metáfora do verso que perseguia há anos. A violência que é tema desses textos – principalmente pelo tom despreocupado e debochado com que são narrados – torna-os refratários ao leitor comum. O incômodo que provocam se contrapõe ao mundo das certezas absolutas da indústria cultural e constituem a palavra final do escritor que enfim permanece ao cabo da trilogia. É de Stamatius, o autor ficcional comprometido com a pesquisa formal e a investigação lingüística, a fala que fecha Cartas de um sedutor e sela sua opção derradeira: ERA TELÚRICO E ÚNICO. Sonhava. Sonhava adeuses e sombras. Sonhava deuses. Era cruel porque desde sempre foi desesperado. Encontrou um homem-anjo. Para que vivessem juntos, na Terra, para sempre, ele cortou-lhe as asas. O outro matou-se, mergulhando nas águas. Estou vivo até hoje. Estou velho. Às noites bebo muito e olho as estrelas. Muitas vezes, escrevo. Aí repenso aquele, o hálito de neve, a desesperança. Deito-me. Austero, sonho que semeio favas negras e asas sobre uma terra escura, às vezes madrepérola. (CS, p. 172)
6. CONCLUSÃO Não importa a mediocridade geral da produção: a excelência termina sempre por sobressair e se impor. (Octavio Paz)
A leitura do conjunto das três obras que compõem a trilogia obscena de Hilda Hilst procurou demonstrar o emprego da ironia, instrumento de questionamento por excelência, como princípio construtor dos textos. As noções mais elementares evocadas por este recurso, a saber, a fratura entre o que se mostra e o que se é, assim como o jogo com a coexistência de idéias contraditórias, não dizem respeito somente à sua feição retórica, mas também à sua produtividade no âmbito literário. A atitude irônica em arte faz vacilar as categorias do real e do ficcional, assinalando sua existência enquanto produto de uma imaginação criadora. A ironia como projeto estético problematiza as duas acepções que verbo latino fingere adquiriu através do tempo, estabelecendo a história etimológica do nosso termo “ficção”: fingere como ato formativo – dar forma ao informe –; fingere como engodo – forma que pode pôr-se a serviço do engano. O que a ironia especificamente literária faz é justamente denunciar o ato formativo subjacente a todo artefato artístico, rechaçando o logro. Segundo Karlheinz Stierle: Como obra de arte, a fictio pode muito bem remeter a si mesma; como engano, não menos se esconder. O duplo sentido da palavra, em sua disposição significativa, permite a oscilação entre os dois. Isso se torna particularmente evidente quando o meio da ficção é a linguagem. (2006, p.15)
O projeto irônico hilstiano concretizado nas três narrativas aqui interpretadas joga deliberadamente com todos esses significados: é uma “arte de brincar”, como ficou dito pela autora no poema que prenunciou a publicação da trilogia. À primeira vista, o sentido irônico mais aparente está no fato de as obras se apresentarem como narrativas palatáveis destinadas ao grande público, embora, quando investigamos detidamente os textos, percebamos sua grande complexidade formal e hostilidade ao gosto médio. A pornografia escolhida como estratégia para conquistar o mercado serve então a outros propósitos que não aqueles que possam ser sugeridos em um primeiro momento: além de metáfora para o relacionamento de subjugação do escritor contemporâneo à ditadura editorial, é pretexto para uma reflexão sobre o fazer literário e para uma reafirmação da pesquisa formal em
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detrimento da pouca inventividade dos livros feitos exclusivamente para atender ao consumo. Assim, o que a princípio poderia parecer um ato de rendição da autora ao mercado se mostra, para quem não se detém na superfície, uma atitude diametralmente oposta de crítica e contestação. Talvez a temática controversa tenha contribuído para que o significado mais imediato da trilogia – a representação explícita da sexualidade para supostos fins comerciais – obliterasse de forma tão prejudicial suas intenções críticas subjacentes. Boa parte da repercussão da trilogia se ateve ao escândalo causado tanto por Hilda Hilst ser à época uma sexagenária quanto pelo rebaixamento da artista até então hermética e dedicada a temas existenciais. Por outro lado, houve quem simplesmente negasse o caráter pornográfico patente da trilogia, considerando que o rótulo em questão traz em si a degradação do valor estético da obra. Em ambos os casos, a compreensão dos textos foi prejudicada por uma visão estrita do que seja a pornografia. Enquanto representação artística, a pornografia apresenta uma característica facilmente identificável que a diferencia do erotismo: a exibição sem rodeios de órgãos e práticas sexuais que contrariam as regras de decoro da sociedade. Depois de lermos detidamente cada uma das narrativas, fica difícil sustentarmos a hipótese de que não há nada de pornográfico nelas. Só concordaremos com o fato de que a pornografia que esses textos apresentam passa ao largo daquela que é produto da indústria cultural. Assim, fica claro que, para que os estudos da representação da sexualidade em literatura façam jus ao seu material artístico, é preciso que revejamos os paradigmas que os têm guiado. Podemos considerar Goulemot (2000) o representante dessa visão mais difundida de que a pornografia necessariamente elide a literatura de qualidade. Aos considerar que os “defeitos” do texto pornográfico que impedem a efetivação de seu efeito afrodisíaco – questão que também deve ser revista – são necessariamente “qualidades de escritura”, o autor faz-nos supor que o texto pornográfico só é esteticamente relevante quando deixa de ser pornográfico. É possível que essa visão, ainda encontrada no meio acadêmico, esteja pautada em uma concepção dos apelos sexuais como algo que obrigatoriamente remete à nossa animalidade e nos afasta de nossa tão louvada racionalidade. Por isso, uma obra de arte que fale de perto aos nossos desejos é necessariamente uma obra ruim: somente quando esse efeito afrodisíaco é prejudicado por elucubrações mentais é que a obra pode se lida como literária. Parece ser esta a atmosfera em que a trilogia esteve freqüentemente
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envolta. Quando não condenada pelo tema “vil”, esse mesmo tema foi ignorado para que se exaltasse seu alto rendimento estético. A questão da excitação provocada pelo texto pornográfico, como enunciamos no segundo capítulo, não pode ser considerada o bode expiatório da exclusão da pornografia do reino artístico, até porque, embora sejam continuamente reduzidas às fórmulas simplórias difundidas pela pornografia comercial, nossas pulsões sexuais obedecem a mecanismos muito mais complexos que aqueles que guiam os instintos dos animais, pois que são regidas pelo desejo e pela imaginação. D. H. Lawrence é bastante elucidativo a esse respeito ao afirmar que a pornografia não pode ser equiparada de maneira alguma à intenção deliberada do artista em despertar os apetites sexuais do leitor, mas sim com sua tentativa de denegri-los e rebaixá-los (1947, p. 652-653). Assim, considerar a excitação física um defeito per se, ou que esta seja conseguida apenas com estratégias narrativas muito específicas, é contribuir para uma visão bastante simplória da sexualidade humana. Embora a denotação típica do vocabulário obsceno possa facilitar o efeito físico, este pode dar-se na sua ausência. Como bem observa Eliane Robert Moraes, “as relações entre o plano simbólico e o real não se regem por leis mecânicas e qualquer atribuição nesse sentido pecará por falta de provas.” (2006, p. 152-153) Estando excluída de nosso alcance a possibilidade de uma investigação empírica acerca dos estímulos físicos provocados pela leitura das obras pornográficas literárias, é-nos imprescindível, então, atermo-nos a uma definição de pornografia que permita rigor analítico, qual seja, a da explicitação de condutas sexuais. Tal explicitação pode dar-se sem a utilização de palavras de baixo calão, sem que por isso a cena obscena seja menos visível mentalmente pelo leitor. Dino Preti (1984), por exemplo, analisa o fenômeno do vocabulário comum que, considerado em um contexto marcado pelo tom malicioso, pode passar a representar idéias ligadas à obscenidade. Podemos lembrar também que Fanny Hill (1989)
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, aludido freqüentemente como um
clássico da literatura pornográfica, não apresenta uma única palavra interdita. Em vez disso, as expressões utilizadas são do tipo “brinquedo de marfim com ponta vermelha”, “vale estreito”, “colinas de prazer” e nem por isso os atos sexuais quedam apenas sugeridos. No mesmo sentido, Lori Lamby, que não utilizou a linguagem denotativa por desconhecimento – ela tem só oito anos –, conseguiu produzir descrições de carga sexual intensa e conteúdo tão ofensivo quanto se tivesse feito uso de léxico próprio. Portanto, o 15
A obra foi publicada pela primeira vez em dois volumes: o primeiro em 1748 e o segundo em 1749.
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excesso metafórico observado na trilogia, que aparece ao lado dos vocábulos vulgares, não é suficiente para negarmos a abordagem explícita da sexualidade nas narrativas – ele apenas denuncia uma preocupação meticulosa com a palavra, objeto de investigação do escritor literário. Sua falta de “precisão lingüística”, ou seja, de realismo, é mais uma maneira de opor-se à pornografia estritamente comercial. Na explanação que D. H. Lawrence faz acerca de seu conceito de pornografia, acima aludida, estão anunciadas as diferenças entre essas duas formas de exposição do sexo: uma está inscrita nas leis do mercado e é destinada ao consumo imediato, enquanto a outra é expressão artística da experiência humana. O problema se instala, agora, não na representação pura e simples dos impulsos sexuais do homem e no seu potencial afrodisíaco, mas no choque entre o corpo banalizado pela indústria cultural e o corpo como “espaço de resistência e liberdade”. (SANTIAGO, 1989, p. 28) Susan Sontag é quem melhor resume a oposição contrária representada por Goulemot. A autora contrapõe claramente a pornografia como “contaminação da saúde sexual da cultura” (1987, p. 61) e a pornografia levada a cabo artisticamente por autores como Sade e Bataille, para quem “o ‘obsceno’ é uma noção primal do conhecimento humano, algo muito mais profundo que a repercussão de uma aversão doentia da sociedade ao corpo”. (Ibidem) A autora defende com rigor a idéia de que essa segunda acepção de pornografia seja interpretada esteticamente, e não como documento comprobatório de patologias individuais ou sociais: (...) a arte (e fazer arte) é uma forma de consciência; seus materiais são a variedade de formas de consciência. Nenhum princípio estético pode fazer com que essa noção da matéria-prima da arte seja construída excluindo-se mesmo as formas mais extremas de consciência, que transcendem a personalidade social ou a individualidade psicológica. (Ibidem, p. 49 – grifo da autora).
Sontag defende ainda que essa forma extrema de consciência – a imaginação pornográfica – pode promover o acesso a alguma verdade do indivíduo quando projetada na arte. Por isso, se configura como uma forma de conhecimento, mesmo que um conhecimento que não possa ser acessível a toda e qualquer pessoa por seu potencial deletério. Também por esse motivo, Eliane Robert Moraes afirma que esse tipo de conhecimento só pode ser acessado por meio da imaginação artística. E cita Bataille, para quem “a ficção pode correr o risco de explorar os subterrâneos de nossa humanidade
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justamente porque está circunscrita ao campo simbólico.” (2006, p. 156) Para autora, os escritores pornográficos dessa estirpe fazem da criação literária uma forma de descoberta daquilo que a realidade recusa, “operando uma espécie de ‘ruptura com o mundo’ e, por conseqüência, com as exigências sociais de ordem ética e moral”. (Ibidem, p. 11) À trilogia hilstiana também comparece a abordagem radical da besta que habita o homem e o ronda qual fantasma: a pedofilia, o incesto, a crueldade. Todos os interditos basilares são transgredidos e a carne é festejada com humor impagável. A pornotopia; a caracterização de personagens pelo exterior, sem maior aprofundamento psicológico; a focalização nos órgãos e atos sexuais; a estrutura episódica; a intercambialidade entre parceiros; a variabilidade de formas de satisfação do prazer; a insipidez emocional – todos os elementos caros à imaginação pornográfica comparecem aos textos, como procuramos deixar claro na interpretação dos mesmos. Mas o rendimento estético das narrativas provém igualmente de uma fonte inusitada: o trabalho crítico com as convenções da outra pornografia, a comercial. Aliás, é na mistura de clichê e experimentalismo que reside o ponto fulcral da produtividade literária do texto hilstiano. Visando a tematizar uma possível crise de consciência do escritor contemporâneo que, ao se profissionalizar, deve abdicar cada vez mais de seus projetos artísticos pessoais, a autora se projeta ficcionalmente nos textos a partir de dois personagens-escritores de visões opostas sobre a literatura. Assim, Lori Lamby, Crasso e Karl, escritores amadores, representam a decisão de escrever para o mercado, sem qualquer preocupação com o mérito literário de seus livros. A matéria obscena não lhes parece problemática; daí a desenvoltura com que narram suas aventuras sexuais e se utilizam das convenções pornográficas. Não é por acaso que também o dinheiro é para eles conquista fácil, seja pela prostituição, por negociações ilegais ou por herança. Os outros três escritores que com estes fazem par – o pai de Lori, Hans Haeckel e Stamatius – em tudo se lhes opõem. A relação desses autores profissionais com a pornografia comercial não é pacífica: ou se recusam terminantemente a escrevê-la ou passam por abalos emocionais ao dedicarem-se a ela; em ambos os casos a escrita para o mercado é colocada em xeque. Quanto ao dinheiro, este lhes é negado sob todas as formas. O suicídio e a mendicância são os representantes máximos dessa carência. A maneira como esses dois autores se apresentam nas narrativas é diferenciada. Em O caderno rosa de Lori Lamby,
há uma espécie de curto-circuito de níveis de produção
textual, causando certa confusão quanto à autoria do texto. Em Contos d’escárnio. Textos
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grotescos,
a confusão é amenizada pela delimitação dos discursos dos dois escritores,
sendo que podemos ainda observar uma fusão inusitada da autoria quando o autor que escreve para o mercado começa a sentir-se influenciado pela leitura dos escritos do outro autor, o sofisticado. Finalmente, em Cartas de um sedutor, as obras encaixadas na narrativa maior – a narrativa do processo de elaboração de Cartas de um sedutor – têm sua autoria estritamente delimitada, de modo que nos é possível identificar claramente as diferenças entre um e outro discurso. O continuum que podemos observar da indistinção dos autores até a palavra final assumida pelo escritor preterido pelo mercado delineia um percurso gradativo de tomada de consciência frente ao fenômeno da literatura comercial: se de início a proposta de escrever para o mercado parece tão sedutora a ponto de o escritor “gênio” esconder-se por trás do discurso do escritor “venal”, ao fim do processo a indecisão parece ter se resolvido: a voz que prevalece é indiscutivelmente a do artista. Corrobora nossa visão o fato de a autora, depois de selar sua opção na contramão do mercado ao fim de Cartas de um sedutor, ter retomado o fio de sua ficção reflexivoexistencial com Rútilo nada, em 1993, cedendo de vez às suas demandas artísticas. Na tensão entre as posições antagônicas dos dois autores ficcionais podemos entrever novos desdobramentos da ironia. Em primeiro lugar, o jogo com os posicionamentos contraditórios que se criticam mutuamente e dão forma à narrativa. Aliado a isso, temos o fato de tais autores ficcionais de personalidades opostas serem na verdade desdobramentos de um único autor, o que coloca em relevo a prática irônica do escritor que se divide simultaneamente em sujeito e objeto de conhecimento, distanciandose criticamente de si mesmo e de sua obra. Acima de tudo, é um artista capaz de autoironia. Hilda Hilst, sob as máscaras que criou, assumiu posicionamentos contraditórios (conivência/ oposição ao mercado) da mesma forma que os colocou em perspectiva, julgando-os. A ironia comparece então como paradoxo. Há ainda um jogo possível entre essência e aparência: o escritor que se mostra como o mercado deseja esconde o escritor insatisfeito com a inevitabilidade de suas escolhas. A mise en abyme dupla do processo de escrita ficcional tal qual descrita acima articula ainda de outra forma os propósitos irônicos da autora. Ao levar para dentro do universo diegético a entidade materialmente responsável pelo texto, o procedimento acaba por chamar a atenção tanto para o contexto de produção externo ao texto (a opressão do escritor frente à indústria editorial), quanto para o contexto de produção interno (o fazer literário em si levado a cabo por esse mesmo escritor). Assim, a mise en abyme consegue
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unir os dois alvos da crítica hilstiana. No primeiro caso, a ironia se mostrará pelo ridículo a que estão expostos editores e público de massa, bem como pela reapropriação crítica dos clichês da literatura de mercado. No segundo caso, a ironia se fará sentir pela reafirmação do caráter de artefato do texto – tecido verbal que é –, ao deixar que o nível da elaboração ficcional emerja sobre a superfície da representação. O império do realismo, no sentido de uma realidade dada de antemão que deve ser reproduzida, está ruído em ambas as circunstâncias. Porque se afirma literatura de qualidade, a trilogia hilstiana não comunga com o logro imposto pela produção cultural massificada. Da mesma forma que, camuflando a arbitrariedade dos signos em relação ao real, a literatura realista stricto sensu incita a crença na naturalização do signo (almejando passar-nos a impressão de que estamos diante do real, e não do ficcional), também a propaganda e os meios de comunicação em geral tratam como natural uma (hiper-) realidade construída discursivamente para defender o lucro, o consumo e a alienação. Nesse sentido, o projeto irônico hilstiano, ao assinalar que o narrado não é dado da realidade, mas construção verbal da instância de enunciação, desconstrói a idéia de ficção como engodo apenas; ao expor o jogo de interesses que está por trás da produção do livro como mercadoria e suas conseqüências para a literatura como forma de arte, desfaz as verdades constantemente disseminadas pela indústria cultural – seus critérios de valoração baseados em números, sua ideologia homogeneizante, sua função entorpecente. Concordar com o fato de, hoje em dia, nada existir fora da indústria cultural não significa defender que a literatura deva render-se ao consumo em larga escala como sua motivação primeira. Este é o fim do processo; o início está nas inquietações do artista e no seu trabalho com a palavra para dar forma à experiência humana. A alta carga crítica encontrada na trilogia obscena de Hilda Hilst visa justamente a colocar em xeque uma evidente tendência à naturalização do processo de submissão do artista às leis do mercado, indo de encontro às tendências recentes de se considerar a influência da indústria cultural na produção literária algo não problemático. Claro que a conjuntura atual nos força a considerar inevitável a inserção do escritor e do livro no circuito da produção em massa de mercadorias culturais. A grande questão do ficcionista hoje diz respeito às estratégias de que deve lançar mão para colocar seu livro em circulação no mercado sem que seja necessário renunciar a suas convicções artísticas – ou seja, como ficou dito em outro momento, seu objetivo é salvaguardar a criação na repetição. É preciso que se diga que o problema colocado por Hilda Hilst não é o da ilegitimidade de ganhar dinheiro com a
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literatura, muito pelo contrário: seu embate é justamente com o estreitamento das possibilidades de se fazer literatura de qualidade e ainda assim ter a possibilidade de encontrar um espaço no mercado. Por mais que se tente propagar o contrário, o livro não é uma mercadoria como qualquer outra. As necessidades que busca satisfazer são de ordem totalmente diversa das que caracterizam parcela significativa dos produtos destinados ao consumo massificado. Em entrevista já citada ao jornal O Globo, em 1997, Hilda Hilst demarcou claramente esta posição: “Já disseram que detesto os leitores. É uma piada infeliz. Eu amo os leitores, juro. Mas quando trabalho não penso neles, como fazem muitos autores. E estes produzem coisas diferentes do que eu entendo por literatura.” A leitura da trilogia nos força então a relativizar aquilo que Jameson (2007) e seus seguidores afirmam ser a diferença cabal da produção cultural contemporânea em relação a períodos anteriores, a saber, o apagamento das fronteiras entre a alta cultura e a chamada cultura de massa. No caso da literatura, observa-se que os textos aparecem impregnados das formas e conteúdos da indústria cultural, como se por uma contaminação inevitável, mesmo aqueles considerados de alto rendimento estético. Na trilogia, contrariamente a essa tendência, o double coding (a conjugação de estilemas cultos e de massa) não comparece como sinal de um processo natural de contágio entre sistemas semióticos diferentes. Mesmo considerando que é justamente na fusão de dois códigos conflitantes que reside o principal foco de produtividade da trilogia hilstiana, não podemos deixar de assinalar que a apropriação dos estilemas da literatura de consumo é uma apropriação irônica, ou seja, sua utilização aponta para o intuito de submeter essa mesma literatura ao crivo da crítica para assim problematizar a situação do escritor contemporâneo frente às demandas do capital. É nesse sentido que podemos considerar a trilogia uma metapornografia, pois faz uso consciente e reflexivo das convenções da pornografia comercial, de modo que, se seu intuito inicial de escrever bandalheiras fracassou, não foi por desconhecimento das regras de funcionamento do gênero. Tivemos a oportunidade de demonstrá-lo na interpretação da obras. Além disso, a trilogia tem o processo de construção de narrativas pornográficas tomado como tema – e assim como a metaficção não deixa de ser ficção, o mesmo pode ser dito em relação à metapornografia. Isto posto, resta-nos enfatizar que Hilda Hilst não pretendeu de forma alguma fazer uma espécie de defesa da literatura erudita e elitista. Suas declarações sobre a imagem de “tábua etrusca” difundida a seu respeito são exemplares de seu incômodo frente sua fama de “ilegível”. A autora, como afirmado em outro momento, queria “ficar no coração do
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outro” (O Globo, 1990, p.4), mas cada vez mais sua tarefa era dificultada pelas leis do mercado. Sua defesa era pela liberdade de criação e contra o engessamento das potencialidades inventivas do artista, daí podermos afirmar que a crise de consciência do artista tematizada na trilogia é uma falsa crise – ou seja, é mais um índice de ironia. A tensão entre adequar-se ao mercado e apostar no experimentalismo estava desde sempre resolvida na própria tessitura ficcional, de extrema complexidade formal. Hilda Hilst, com sua trilogia obscena, reafirma o valor estético em detrimento do valor de troca e pode, assim, resistir à prova do tempo.
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