Sor Juana Ines de La Cruz Ou as Armadilhas Da Fe

May 6, 2019 | Author: Tenner Inauhiny Abreu | Category: Mexico, Spain, New Spain, Colony, Mesoamerica
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Octavio paz...

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Octavio Paz Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé

A visão de Octavio Paz sobre Sor Juana Inés de la Cruz, Juana de Asbaje, seu nome laico, nos permite vislumbrar uma fase da história do México pouco conhecida no Brasil, mas também pouco estudada pelos mexicanos do nosso tempo. Entre os séculos xvi e xix, no território que vai do sul dos Estados Unidos até a Mesoamérica (excluindo a capitania geral da Guatemala), constituiu-se constituiu -se o vice-reinado católico da Nova Espanha que, ao lado do vice-reinado estabelecido no Peru, atuou como a fonte primordial de transferência transferência de riquezas para a metrópole espanhola durante quase trezentos anos. O talento e a maestria de Paz permitem que nos debruce mos sobre a realidade da Nova Espanha, já que o autor percebe que, para compreender e apreciar a grandeza de Sor Juana – uma das mais extraordinárias personagens da cultura da América – é preciso entendê-la em seu contexto e valorizar como, no seio dessa realidade, ela foi excepcionalmente vanguardista e corajosa. Em quatro partes, trinta capítulos e um apêndice, a leitura de Sor Juana  nos possibilita Juana Inés de la Cruz ou ou As  As armadilhas armadilhas da Fé  nos observar simultaneamente seja a própria Sor Juana, a primeira escritora de língua castelhana da América – insuficientemente conhecida no panorama universal da literatura, onde deveria se situar, em sua justa dimensão e complexidade –, seja a sociedade da Nova Espanha, um mundo encoberto pelo barroco espanhol e pelo sacrifício dos povos indígenas, cheio de dogmas e tradições, tra dições, sincrético e injusto. Escrever um livro sobre uma freira poeta do século xvii não deixa de ser uma homenagem especial às milhares de mulheres que tiveram que calar sua voz nas sociedades espanhola, portuguesa e americana de influência ibérica. beatriz paredes

Octavio Paz Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé tradução wladir dupont

prefácio 9 1. o reino da nova espanha 17

Uma sociedade singular 19 O estrado e o púlpito 36 Sincretismo e Império 47 Uma literatura transplantada 59 2. juana ramírez (1648-68) 77

A família Ramírez 79  Sílabas las estrellas compongan 96

Os empenhos de Juana Inés 111 A profissão 126 3. sor juana inés de la cruz (1669-79) 143

A cela e suas ciladas 145 Ritos políticos 171 O mundo como hieróglifo 188 A madre Juana e a deusa Ísis 203 4. sor juana inés de la cruz (1680-90) 215

Lisonjas e mercês 217 Concílio de estrelas 231 Religiosos incêndios 251 O reflexo, o eco 273 Reino de signos 290 Diversa de si mesma 305

5. décima musa 323 Ouve-me com os olhos 325 Tinta em asas de papel 347 Arca de música 369 O palco e a corte 396 O carro e o Santíssimo 412  Primero sueño 433 6. as armadilhas da fé 467

Carta polêmica 469 A Respuesta 489 E as respostas 504 O assédio 517 A abjuração 530 Ensaio de restituição 553 apêndice 573 a carta 579 agradecimentos 587 índice onomástico 589

... al ánimo arrogante que, el vivir d espreciando, determina  su nombre eternizar en su rüina.

Primero sueño

prefácio

História, vida, obra

Na época que comecei a escrever, por volta de 1930, a poesia de Sor Juana Inés de la Cruz deixara de ser relíquia histórica para se transformar em texto vivo. Foi um poeta quem acendeu a chama desse reconhecimento no México: Amado Nervo. Seu livro ( Juana de Asbaje, 1910) é dedicado “a todas as mulheres de meu país e de minha raça”. Esse pequeno livro ainda se lê com gosto. Mais tarde, entre 1910 e 1930 , apareceram muitos estudos eruditos: era preciso desenterrar os textos e fixá-los. Aos trabalhos de Manuel Toussaint sucederam-se os do incansável Ermilo Abreu Gómez, que colocou diante de nossos olhos, pela primeira vez, em edições modernas, Primero sueño, a Carta atenagórica e a  Respuesta a Sor  Filotea de la Cruz. Os poetas do grupo Contemporáneos  leram Sor Juana com simpatia e interesse, sobretudo Jorge Cuesta e Xavier Villaurrutia, que editou os  Sonetos e as Endechas. Naqueles anos, graças ao sábio fervor de Cuesta, li pela primeira vez os poemas de Sor Juana. Os sonetos me marcaram. Só voltei a lê-la em Paris, em 1950. A revista  Sur queria comemorar o terceiro centenário de seu nascimento, e [o editor] José Bianco me escreveu, pedindo um artigo. Aceitei a tarefa, fui à Biblioteca Nacional, consultei velhas edições e escrevi um pequeno ensaio, origem remota deste livro. 1

1 Grupo de escritores, principalmente poetas, mas também ensaístas e romancistas, reunidos em torno da revista Contemporáneos  (1928-31), que impulsionou uma renovação da literatura mexicana, incorporando as tendências estéticas vanguardistas da época. O grupo incluía sobretudo Jorge Cuesta, Xavier Villaurrutia, Jaime Torres Bodet, Carlos Pellicer, Gilberto Owen, Salvador Novo e Bernardo Ortiz de Montellano. [n.t.] [As notas que traduzem os versos são sempre do tradutor; as demais, quando não indicada a autoria, são de Octavio Paz.]

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Como se fosse uma presença recorrente, cíclica, Sor Juana reapareceu em 1971. A Universidade de Harvard me convidou para ministrar alguns cursos, e quando me perguntaram qual seria o tema de um deles, respondi sem pensar muito:  Sor Juana Inés de la Cruz . Foi preciso lê-la outra vez, e ler muito o que sobre ela fora escrito até então, e que eu esquecera ou não conhecia. Já naquela época, Alfonso Méndez Plancarte havia publicado sua notável edição das Obras completas. As bibliotecas de Harvard provocaram e também saciaram minha curiosidade. Em seus corredores, às vezes eu encontrava Raimundo Lida;  falávamos de Sor  Juana, da música e d a numerologia mística. Ministrei o mesmo curso em 1973 e, com as anotações feitas durante aquele período, pronunciei, em 1974, no Colegio Nacional, no México, uma série de conferências:  Sor Juana Inés de la Cruz, su vida y su obra. No ano seguinte, ao reler as anotações e ouvir as gravações, pensei que valeria a pena utilizá-las num texto que fosse, simultaneamente, um estudo do momento em que ela viveu e uma reflexão sobre sua vida e obra. História, biografia e crítica literária. Comecei a escrever o livro, mas de forma intermitente, interrompido com frequência por outros afazeres. Concluí, em 1976, as três primeiras partes. Depois, durante vários anos, nada. O projeto dormia e estive a ponto de abandoná-lo. No fim de 1980, movido – ou melhor: sacudido – por uma espécie de remorso, voltei ao manuscrito inconcluso. No primeiro semestre de 1981, escrevi as três partes finais. Meu livro não é o primeiro sobre Sor Juana, nem será o último. A bibliografia sobre sua pessoa e sua obra abrange três séculos e se estende a várias línguas, embora ainda esteja faltando o previsível estudo de algum erudito japonês. As últimas a chegar foram as mulheres. Contudo, compensaram o atraso com entusiasmo: Dorothy Schons, Anita Arroyo, Eunice Joiner Gates, Clara Campoamor, Elizabeth Wallace, Gabriela Mistral, Luisa Luisi, Frida Schultz e outras. A esse grupo recentemente  juntaram-se Georgina Sabat de Rivers e Margarita López Portillo. A esta última, a propósito, devemos uma obra que merece reconhecimento: o resgate e a reconstrução do claustro do convento de San Jerónimo. 2

A palavra sedução, que tem ressonâncias ao mesmo tempo intelectuais e sensuais, dá uma ideia muito clara do tipo de atração que desperta a figura de Sor Juana Inés de la Cruz. Seu confessor, o jesuíta Antonio Núñez de Miranda, já se deleitava com o fato de que ela fi zera os votos, pois    o    i    c     á    f    e    r    p

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2 Filólogo, crítico literário e ensaísta, o argentino Raimundo Lida (1908-79) era especialista no Século de Ouro da literatura espanhola. [n.e.]

havendo conhecido [...] sua erudição singular associada a sua não pouca formosura, atrativos para a curiosidade de muitos, que desejariam conhecê-la e ficariam felizes de cortejá-la, costumava dizer que não podia Deus enviar calamidade maior a este reino que permitir que Juana Inés se tornasse a personalidade do século. Os temores do padre Núñez se concretizaram, embora de maneira não prevista por ele. Nem a escassez de notícias sobre os principais episódios da vida de Juana Inés nem o desaparecimento de boa parte de seus papéis pessoais e de sua intensa correspondência a livraram de ser a “personalidade do século”. Há mais de cinquenta anos su a vida e sua obra não param de intrigar e apaixonar eruditos, críticos e leitores comuns: por que escolheu, sendo jovem e bonita, a vida de freira? Qual a verdadeira índole de suas inclinações afetivas e eróticas? Qual o significado e o lugar de seu poema Primero sueño na história da poesia? Que relações tinha com a hierarquia eclesiástica? Por que renunciou à paixão de toda a sua vida: as letras e o saber? Essa renúncia foi o resultado de uma conversão ou de uma abdicação? Este livro é uma tentativa de responder a essas perguntas.

São muitos os enigmas de Sor Juana Inés de la Cruz: os da vida e os da obra. É claro que existe uma relação entre a vida e a obra de um escritor, mas essa relação nunca é simples. A vida não explica inteiramente a obra, e a obra tampouco explica a vida. Entre uma e outra há uma zona vazia, uma fenda. Há algo na obra que não está na vida do autor; isso é o que se chama criação ou invenção artística e literária. O poeta, o escritor, é o olmo que, sim, dá peras.  Entre os estudos consagrados a S or Juana, há dois que ilustram as limitações do método que pretende explicar a obra pela vida. O primeiro é a biografia do padre jesuíta Diego Calleja. Foi seu primeiro biógrafo. Para Calleja, a vida de Sor Juana é uma ascensão gradual para a santidade; quando percebe alguma contradição entre essa vida ideal e o que a obra de fato diz, ele trata de minimizá-la ou dela se esquivar. A obra se transforma numa ilustração da vida, isto é, num discurso edificante. No polo oposto, encontra-se o professor ale mão Ludwig Pfandl. Influenciado pela psicanálise, ele descobre em Sor  Juana uma fixação pela imagem paterna da qual deriva seu narcisismo: 3

3 Em espanhol, a expressão “ pedir peras al olmo”, de uso disseminado, significa exigir de alguma pessoa ou de alguma coisa algo que, por suas características, ela não pode dar. O olmo é um árvore nativa da Europa que dá um fruto seco incomível. [n.e.]

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Sor Juana é uma personalidade neurótica, em quem predominam fortes tendências masculinas. Para o padre Calleja, a obra de Sor Juana não passa de uma alegoria de sua vida espiritual; para Pfandl, é a máscara de sua neurose. De um modo ou de outro, sua obra deixa de ser uma obra literária: o que esses dois críticos leem é a transposição de sua vida. Uma vida santa para Calleja, um conflito neurótico para Pfandl. A obra se transforma em hieróglifo da vida; na verdade, como obra, se evapora. Não nego que a interpretação biográfica seja um caminho para chegar à obra. Só que é um caminho que se interrompe às portas dela: para compreendê-la realmente, devemos atravessar essa barreira e penetrar seu interior. Nesse momento ela se desvincula de seu autor e se transforma numa realidade autônoma. Imersos na leitura, já não nos interessam os motivos inconscientes que possam ter levado Cervantes a escrever Dom Quixote. Tampouco nos interessam suas razões; essas razões são uma interpretação, e nós, tacitamente, pelo simples fato de ler o livro, sobrepomos nossas interpretações às do autor. A obra se fecha para o autor e se abre para o leitor. O autor escreve impulsionado por forças e intenções conscientes e inconscientes, porém os significados de sua obra – e não só os significados, mas também os prazeres e as surpresas que sua leitura nos proporciona – ja mais coincidem exatamente com esses impulsos e intenções. As obras não respondem às perguntas do autor, e sim às do leitor. Entre a obra e o autor se interpõe um elemento que os separa: o leitor. Uma vez escrita, a obra tem uma vida diferente da do autor: a vida que lhe é outorgada por seus sucessivos leitores. Outros a veem como uma realidade independente, autônoma. Partem de uma ideia que me parece justa: a obra tem características próprias, irredutíveis à vida do autor. É lícito ver nos poemas de Sor Juana Inés de la Cruz certas peculiaridades que, embora sejam até de origem psicológica, constituem variedades dos estilos predominantes em sua época. A soma dessas variantes e peculiaridades faz da sua uma obra única, irrepetível e autossuficiente. Contudo, embora nos pareça única – e ainda que de fato o seja –, é evidente que a poesia de Sor Juana está relacionada a um grupo de obras, umas contemporâneas e outras vindas do passado, da Bíblia e dos Pais da Igreja, até Góngora e Calderón. Elas constituem uma tradição e por isso surgem aos olhos do escritor como modelos a serem imitados ou rivais a serem igualados. O estudo da obra de Sor Juana imediatamente nos coloca em relação com outras, e estas com o ambiente intelectual e artístico de seu tempo, ou seja, com tudo aquilo que constitui o que se chama “o espírito de uma época”.

O espírito e algo mais forte que o espírito: o gosto. Entre a vida e a obra encontramos um terceiro termo: a sociedade, a história. Sor Juana é uma individualidade poderosa e sua obra possui inegável singularidade; ao mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a freira e a intelectual se inserem numa sociedade: a Nova Espanha do final do século xvii. Não pretendo explicar a literatura por meio da história. O valor das interpretações sociológicas e históricas das obras de arte é sem dúvida limitado. Por outro lado, seria absurdo fechar os olhos diante desta verdade elementar: a poesia é um produto social, histórico. Ignorar a relação entre sociedade e poesia seria um erro tão grave como ignorar a relação entre a vida do escritor e sua obra. Mas Freud já nos preveniu: a psicanálise não pode explicar inteiramente a criação artística; e da mesma forma que existem na arte e na poesia elementos irredutíveis à explicação psicológica e biográfica, existem elementos irredutíveis à explicação histórica e sociológica. Então, em que sentido me parece válida a tentativa de inserir a dupla singularidade de Sor Juana, a de sua vida e a de sua obra, na história de seu mundo: a sociedade aristocrática da Cidade do México na segunda metade do século xvii? Estamos diante de realidades complementares: vida e obra se desenvolvem numa dada sociedade e, assim, são inteligíveis apenas no âmbito da história dessa sociedade; por sua vez, essa história não seria a história que é sem a vida e o legado de Sor Juana. Não basta dizer que a obra de Sor Juana é um produto da história; é preciso acrescentar que a história também é um produto dessa obra. As relações entre obra e história tampouco são simples. Já disse que a obra nunca aparece isolada, mas relacionada a outras, do passado e do presente, que são seus modelos e suas rivais. Acrescento que existe outra relação não menos determinante: a relação com os leitores. Muito se fala da influência do leitor sobre a obra e sobre o próprio autor. Em toda sociedade, funciona um sistema de proibições e autorizações: o terreno do que se pode ou não fazer. Há outra esfera, em geral mais ampla, dividida também em duas zonas: o que se pode ou não dizer. As autorizações e as proibições abrangem uma gama de matizes muito rica e que varia de sociedade para so ciedade. Contudo, umas e outras p odem se dividir em duas grandes categorias: as expressas e as implícitas. A proibição implícita é a mais poderosa; é o que “por sabido se cala”, aquilo a que se obedece automaticamente e sem refletir. O sistema de repressões vigente em cada sociedade repousa sobre esse conjunto de inibições que nem sequer exige a aprovação de nossa consciência.

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No mundo moderno, o sistema de autorizações e proibições implícitas exerce sua influência sobre os autores por meio dos leitores. Um autor não lido é vítima da pior censura: a indiferença. É uma censura mais efetiva que a do Índice Eclesiástico [Congregatio pro Indice Librorum Prohibitorum]. Não é impossível que a impopularidade de certos gêneros – a poesia, por exemplo, a partir de Baudelaire e os simbolistas – resulte da censura implícita da sociedade democrática e progressista. O racionalismo burguês é, digamos assim, constitucionalmente contrário à poesia. Daí que a poesia, desde as origens da era moderna – ou seja, desde o período final do século xviii – tenha se manifestado como rebelião. Ela não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro. É verdade que alguns poetas acreditam de forma sincera e apaixonada nas ideias progressistas, mas o que suas obras de fato dizem é muito diferente. A poesia, qualquer que seja o conteúdo manifesto do poema, é sempre uma transgressão da racionalidade e moralidade da sociedade burguesa. Nossa sociedade acredita na história – jornal, rádio, televisão: o agora –, e a poesia é, por natureza, extemporânea.

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Em outras sociedades, acima da confraria anônima dos leitores comuns, existe um grupo de leitores privilegiados que se chamam arcebispo, inquisidor, secretário-geral do partido, politburo. Esses leitores terríveis influenciaram Sor Juana Inés de la Cruz tanto quanto seus admiradores. Em sua Respuesta a Sor Filotea de la Cruz, ela nos deixou uma confissão: “Não quero problemas com a Inquisição”. Os leitores terríveis são uma parte – e uma parte decisiva – da obra de Sor Juana. Sua obra nos diz algo, mas para entender esse algo devemos perceber que se trata de um dizer rodeado de silêncio: o que não se pode dizer. A zona do que não se pode dizer está determinada pela presença invisível dos leitores terríveis. A leitura de Sor Juana deve ser feita diante do silêncio que rodeia suas palavras. Esse silêncio não é uma ausência de sentido; ao contrário: aquilo que não se pode dizer é o que diz respeito não só à ortodoxia da Igreja católica, mas também às ideias, interesses e paixões de seus príncipes e suas ordens. A palavra de Sor Juana se constrói ante uma proibição; essa proibição se sustenta numa orto doxia, encarnada numa burocracia de pre lados e juízes. A compreensão de sua obra inc lui compreender a proibição que essa obra enfrenta. Seu dizer nos leva ao que não se pode dizer; este, a uma ortodoxia; a ortodoxia, a um tribunal, e o tribunal, a uma sentença.

Essa breve descrição das relações entre autor e leitores, entre aquilo que se pode dizer e o que é indizível, omite algo essencial: com frequência

o autor compartilha o sistema de proibições – tácitas mas imperativas – que formam o código do dizível em cada época e em cada sociedade. Contudo, não poucas vezes, e quase sempre a despeito de si próprios, os escritores violam esse código e dizem o que não se pode dizer. O que eles e só eles têm de dizer. Por sua voz fala a outra voz: a voz condenada, sua verdadeira voz. Sor Juana não foi exceção. Ao contrário: seus contemporâneos logo perceberam, em sua voz, a irrupção da voz outra. Essa foi a causa das desgraças que ela sofreu no final da vida. Porque essas transgressões eram e são castigadas com severidade; mais ainda: não raro em algumas sociedades – como a da Nova Espanha do século xvii –, o próprio escritor se torna aliado e mesmo cúmplice de seus censores. No século xx, por uma espécie de regressão histórica, há também muitos exemplos de escritores e ideólogos transformados em acusadores de si próprios. A semelhança entre os anos finais de Sor Juana e esses casos contemporâneos levaram-me a escolher como subtítulo desse livro o da última parte: As armadilhas da fé . Confesso que essa frase não se aplica à vida inteira de Sor Juana, nem mesmo define a natureza de sua obra: o melhor dela mesma e de seus escritos escapa à sedução dessas armadilhas. Contudo, parece-me que a expressão alude a um mal comum a sua época e à nossa. Vale a pena destacar isso, e por esta razão a mantive: como advertência e como lição. A obra sobrevive a seus leitores; ao final de um ou dois séculos, é lida por outros que lhe impõem outros sistemas de leitura e interpretação. Os leitores terríveis desaparecem e em seu lugar surgem outras gerações, cada uma dona de uma interpretação distinta. A obra sobrevive graças às interpretações de seus leitores. Interpretações que são, na verdade, ressurreições: sem elas não haveria obra. A obra ultrapassa sua história só para se inserir em outra história. E aqui acho que posso concluir: a compreensão da obra de Sor Juana inclui necessariamente a de sua vida e seu mundo. Nesse sentido, meu ensaio é uma tentativa de restituição; pretendo restituir a seu mundo, a Nova Espanha do século xvii, a vida e a obra de Sor Juana. Por sua vez, a vida e a obra de Sor Juana restituem a nós, seus leitores do século xx, a sociedade da Nova Espanha no século xvii. Restituição: Sor Juana em seu mundo e nós no mundo dela. Ensaio: essa restituição é histórica, relativa, parcial. Um mexicano do século xx lê a obra de uma freira da Nova Espanha do século xvii. Podemos começar.

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1. O reino da Nova Espanha

Uma sociedade singular Uma sociedade se define não só por sua atitude diante do futuro como também diante do passado: suas lembranças não são menos reveladoras que seus projetos. Embora nós, mexicanos, estejamos preocupados – ou melhor, obcecados – por n osso passado, não temos uma ideia clara do que fomos. E, o que é mais grave: não queremos tê-la. Vivemos entre o mito e a negação, idolatramos certos períodos, nos esquecemos de outros. Esses esquecimentos são significativos; há uma censura histórica, bem como uma censura psíquica. Nossa história é um texto cheio de trechos escritos com tinta preta e outros escritos com tinta invisível. Parágrafos repletos de pontos de exclamação seguidos de parágrafos riscados. Um dos momentos mais riscados, apagados e emendados com maior fúria tem sido o da Nova Espanha. Existem duas versões populares da história do México, e nas duas a imagem da Nova Espanha aparece deformada e reduzida. Naturalmente, essa deformação não passa da projeção de nossas deformações. A primeira versão pode ser assim reduzida: o México nasce com o Estado asteca ou até mesmo antes; perde sua independência no século xvi e a recupera em 1821. De acordo com essa ideia, entre o México asteca e o moderno existe não só continuidade como identidade; trata-se da mesma nação e por isso se costuma dizer que o México recupera sua independência em 1821. A Nova Espanha é um interregno, um parêntese histórico, uma zona vazia na qual pouca coisa acontece. É o período do cativeiro da nação mexicana. O regime de Moctezuma, embora tenha oprimido todas as nações indígenas, foi um regime nacional, enquanto o vice-reinado foi um regime estrangeiro; por isso a Independência é tida como uma restauração. Essa versão tem uma coloração mítica. A outra é uma metáfora ao mesmo tempo agrícola e biológica: as raízes do México estão no mundo pré-hispânico; os três séculos da Nova Espanha, sobretudo o xvii e o xviii, são a época de gestação; a Independência é o amadurecimento da nação, algo como sua maioridade. A segunda versão é mais sensata, mas vê nossa história como uma ininterrupta evolução progressiva; ao destacar excessivamente a continuidade do processo histórico, acaba omitindo rupturas e diferenças. A verdade é que a história do México é uma história à imagem e semelhança de sua geografia: abrupta, tortuosa. Cada período histórico é como uma meseta fechada entre altas montanhas e separada das outras

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por precipícios e despenhadeiros. A conquista foi a grande ruptura, a linha divisória que quebra nossa história em duas partes: de um lado, o de lá, o mundo pré-colombiano; do outro, o de cá, o vice-reinado católico da Nova Espanha e a República laica e independente do México. O segundo período compreende duas projeções opostas, excêntricas e marginais, da civilização ocidental: a primeira, a Nova Espanha, foi uma realidade histórica que nasceu e viveu contra a corrente geral do Ocidente, quer dizer, em oposição à modernidade nascente; a segunda, a República do México, foi e é uma adaptação apressada e irrefletida dessa mesma modernidade. Uma imitação, diga-se de passagem, que deformou nossa tradição sem nos transformar numa nação de fato moderna. O corte da conquista é de tal maneira nítido e profundo que quase todos sentimos a tentação de ver o mundo pré-colombiano como um todo

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compacto e sem fissuras. Não é assim. Nesse mundo também houve divisões e descontinuidades. Em primeiro lugar, estamos diante de uma divisão de ordem espacial, constante em toda a história mesoamericana desde o neolítico: os nômades e os sedentários. Essa divisão é tanto geográfica como cultural: o Norte e o Sul, os bárbaros e os civilizados – ou, como diziam os nauas: os toltecas e os chichimecas. Na área dos sedentários, sede da civilização mesoamericana, deparamos com uma grande diversidade de culturas, línguas e Estados, desde os olmecas até os teotihuacanos, zapotecas, mixtecas e a plural família maia, também dividida em muitas cidades-Estados. Esse mundo, rico em particularidades, antagonismos e diferenças, está dividido, por sua vez, do ponto de vista da história dessas sociedades, em duas grandes eras. A primeira é a das “grandes teocracias”, como a chamam os historiadores, isto é, a época de Teotihuacan, Monte Albán e as cidades-Estados maias. Esse período dura até o século ix; depois, vem a etapa propriamente histórica, também dividida em dois períodos: o de Tula e o do México-Tenochtitlan. Isso posto, por mais radicais que tenham sido as mudanças da história mesoamericana e por mais profundas que fossem as diferenças entre o México-Tenochtitlan e Palenque ou Tikal, está claro que as mudanças ocorreram e se deram dentro de uma civilização. O grande corte, é preciso repetir, foi a conquista, porque foi uma mudança de civilização. Nós, mexicanos do século xx, sem excluir os índios puros, vemos o mundo pré-colombiano como um mundo que está do outro lado. Nós o vemos não só remoto no tempo como na outra vertente. É claro que – embora a versão oficial, por uma aberração intelectual e moral, se negue a aceitar o fato – existem maiores afinidades entre o México indepen-

dente e a Nova Espanha do que entre ambos e as sociedades pré-hispânicas. A prova é que nossa reação diante do mundo indígena não é muito diferente da dos novo-hispânicos. A Nova Espanha, sobretudo nos séculos xvii e xviii, interessou-se pela recuperação do passado pré-colombiano, não sem antes submetê-lo a uma curiosa idealização; e ao mesmo tempo continuou, no Norte, a evangelização dos índios, iniciada pelos primeiros franciscanos e dominicanos. O México independente, em especial o do século xx, surgido da Revolução Mexicana, tem dado continuidade a ambas as tarefas: a reconquista do passado indígena, com propósitos de autojustificação e idealização, e a integração dos grupos indígenas na sociedade mexicana. Nossos antropólogos e professores rurais são os descendentes dos missionários dos séculos xvi e xvii. Mudaram a retórica e as ideias, não o movimento geral da história. Esse movimento se abre em duas direções contraditórias e complementares: à medida que em termos de raça o país se transforma mais e mais numa nação mestiça, em termos socioculturais ele se torna mais e mais ocidental. Essa rápida visão sobre a história do México revela não tanto uma continuidade linear como a existência de três sociedades diferentes. Não sou o único a pensar dessa forma. Edmundo O’Gorman sustenta que “nosso passado contém três entidades históricas, ainda que estreitamente vinculadas. Primeiro: a conhecida com o nome de Império mexica; segundo: o vice-reinado da Nova Espanha; e terceiro: a nação mexicana...”. Há um ponto que me interessa destacar: cada uma dessas sociedades está separada da outra por uma negação. A relação entre elas é, simultaneamente, filial e polêmica. A primeira sociedade – o plural seria mais exato, pois o mundo indígena foi um conjunto de nações, línguas e culturas – foi negada pela Nova Espanha. Apesar disso, a Nova Espanha é ininteligível sem a presença do mundo indígena, como antecedente e presença secreta nos usos e costumes, nas estruturas familiares e políticas, nas formas econômicas, nos artesanatos, nas lendas, nos mitos e nas crenças. Por sua vez, a República do México nega a Nova Espanha; ao negar, ela a prolonga. Cada negação contém a sociedade negada – e a contém, quase sempre, como presença disfarçada, recoberta. Cada uma das três sociedades tem fisionomia própria e se oferece ao olhar do espectador como um sistema econômico, social, político, religioso e 1

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Edmundo O’Gorman,  La supervi vencia política novohispana: Reflexion es sobre el monarquismo mexicano. Cidade do Mé xico: Fundación Cultural de Condumex, S.A., Centro de Estudios de Historia de México, 1969.

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artístico diferente. Por outro lado, muitos dos elementos constitutivos do mundo pré-hispânico reaparecem na Nova Espanha; esses mesmos elementos e outros próprios da Nova Espanha são par te do México moderno. Os elementos novo-hispânicos são os mais numerosos e decisivos, pois entre eles se encontram o idioma, a religião e a cultura. Conclusão: existe continuidade, sim, mas quebrada, interrompida aqui e ali. Mais do que de continuidade, devemos falar de sobreposições. Em vez de conceber a história do México como um processo linear, deveríamos vê-la como uma justaposição de so ciedades diferentes. As rupturas não negam uma continuidade secreta, persistente. Teotihuacan foi o centro religioso, político, militar e econômico do México antigo, do segundo milênio antes de Cristo até sua destruição no século vii. A ruína da grande metrópole não significou o fim de sua carreira histórica. Desaparecida como cidade-Estado, mas transformada em mito e lenda, tem sido o arquétipo de todas as sociedades que a sucederam, dos toltecas e astecas aos novo -hispânicos e mexicanos modernos. Primeiro inspirou Tula, o Estado militarista que substituiu os teotihuacanos nos vales do México e Puebla. Por sua vez, Tula foi o modelo do México-Tenochtitlan. A imagem do México-Tenochtitlan, significativamente confundida com a de Roma, reaparece nos séculos xvii e xviii na imperial Cidade do México. Embora as derrotas e os descalabros que temos sofrido desde a Independência tenham dissipado as quimeras imperiais – dupla herança do México-Tenochtitlan e da Nova Espanha –, a república moderna continuou o centralismo asteca e hispânico (a despeito de nossa imitação do federalismo norte-americano). Houve continuidade, mas também sobreposições: sobre o mundo pré-colombiano – vencido, não morto –, construiu-se uma sociedade diferente, a Nova Espanha, que alcançou seu apogeu no século xviii e que, por sua vez, foi derrotada nas guerras civis da primeira metade do século xix. Sobre os restos da Nova Espanha ergueu-se um México mais reduzido e pobre: o México republicano de Juárez e seus sucessores. Essa terceira sociedade mexicana – a nossa – ainda está em processo de formação. A Nova Espanha não se parece nem com o México pré-colombiano nem com o atual. Tampouco se parece com a Espanha, embora tenha sido um território submetido à Coroa espanhola. Qual era a natureza de suas relações com a metrópole? Foi de fato uma colônia? Tudo depende do que se entende por essa palavra. Em sua acepção original, a palavra colônia designa o estabelecimento – pacífico ou violento –, num território

alheio, de um grupo que vem de outro país. Os recém-chegados desalo jam os nativos – às vezes os exterminam –, mas não se constituem em uma entidade independente; na verdade, conservam seus laços políticos e religiosos com a pátria de origem. Os movimentos de independência surgem depois, quando os descendentes dos primeiros colonos começam a sentir-se diferentes da metrópole. As colônias gregas no mundo antigo, ou as inglesas na Nova Inglaterra, são um exemplo do que nos primórdios se entendia por colônia. Nesse sentido, a Nova Espanha não foi uma colônia, embora é provável que os criollos, sim, tivessem tido uma consciência “colonial” nos séculos xvii e xviii. E no sentido moderno da palavra? Basta pensar um instante no que foram as colônias que, até há pouco, Grã-Bretanha, França, Holanda ou Bélgica tinham, para perceber a enorme diferença com a Nova Espanha e os outros do mínios da Coroa espanhola. Hoje se chama “colônia” a todo território dependente, semidependente ou, até mesmo, submetido à influência de uma grande potência. O termo se transformou em um projétil. Com os projéteis podemos liquidar os a dversários, mas não compreender uma situação histórica. As colônias inglesas na América foram criadas por grupos de colonos inspirados por motivos religiosos, políticos e econômicos. Como os colonos gregos, os ingleses quiseram fundar comunidades à imagem e semelhança das que existiam na mãe-pátria; diversamente dos gregos, muitos desses colonos eram dissidentes religiosos. Daí a dupla influência da religião e da utopia na formação da democracia política dos Estados Unidos. O pacto social foi, em sua origem, um pacto religioso. Entre os espanhóis aparecem também os motivos religiosos, mas enquanto os ingleses fundaram suas comunidades para escapar de uma ortodoxia, os espanhóis as estabeleceram para estendê-la. Num caso, o princípio fundador foi a liberdade religiosa; no outro, a conversão dos nativos submetidos a uma ortodoxia e a uma Igreja. A ideia de evangelização não aparece entre os colonos ingleses e holandeses; a de liberdade religiosa não figura entre as que moveram os conquistadores espanhóis e portugueses. A conquista foi feita por conta e risco dos conquistadores e, assim, de certa maneira foi uma iniciativa privada. Já a ação espanhola foi uma empreitada imperial: a cruz, a espada e a Coroa. Fusão do militar, do religioso e do político. Duas palavras definem a expansão hispânica: conquista e evangelização. São palavras imperiais e, também, palavras medievais. A conquista da América pelos espanhóis e portugueses não se parece com a colonização grega ou inglesa, e sim com as cruzadas cristãs

  r   a    l   u   g   n    i   s   e    d   a    d   e    i   c   o   s   a   m    U

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© Ubu Editora, 2017 © Marie-José Paz, heredera de Octavio Paz, 2017 © Fondo de Cultura Económica, 2017 © Embajada de México en Brasil, 2017 Coordenação editorial maria emilia bender Assistente editorial isabela sanches Preparação fábio bonillo, livia deorsola Revisão gênese de andrade, claudia cantarin, cristina yamazaki Design elaine ramos Assistente de design livia takemura Ilustração da capa alejandro magallanes  Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) P348s Paz, Octavio Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé: Octavio Paz Título original: Sor Juana Inés de la Cruz o Las trampas de la fé  Tradução: Wladir Dupont São Paulo: Ubu Editora, 2017 608 pp. isbn: 978-85-92886-47-9

1. Biografia. 2. Juana Inés de la Cruz, Sor, 1651-1695. i. Dupont, Wladir. ii. Título. 2017-364

cdd 928.61 cdu 929

Índice para catálogo sistemático: 1. Biografia : personagens históricos espanhóis 928.61 2. Biografia 929

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