SOHO, Takuan - A Mente Liberta
March 26, 2017 | Author: Diego Gomes | Category: N/A
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A MENTE LIBERTA Takuan Sōhō
Escrito de um Mestre Zen a um Mestre da Espada
Prefácio Os temas principais dos três ensaios aqui apresentados são a espada – que nós, ocidentais, somos incentivados a transformar em arados –, as técnicas e a mentalidade correta para utilizá‐Ia. Os textos, dois dos quais são cartas escritas a mestres espadachins, foram escritos por um monge zen, Takuan Sōhō, que fez o voto de trabalhar pela Iluminação e salvação de todos os seres. É provável que o leitor ocidental não compreenda de imediato o que leva um sacerdote budista a dedicar‐se a falar sobre esse instrumento de destruição e sobre os meios de domina‐Ia. Há muito tempo que os japoneses estabeleceram uma íntima relação entre a espada e o espírito. Tanto na História como na mitologia, a espada se destaca como um instrumento de vida e morte, de pureza e honra, de autoridade e até de divindade. Sob o ponto de vista da História, foi a posse da espada de ferro que colaborou para que os migrantes vindos do continente asiático conquistassem o arquipélago japonês nos séculos II e III d.C.; o sucesso dessa conquista elevou a espada não só à categoria de um símbolo de vitória, mas também de objeto cerimonial. Sob o ponto de vista mitológico, foi a espada encontrada dentro do Yamata no Orochi – um dragão que foi morto pelo deus das tempestades – que se tornou depois uma das Três Insígnias Imperiais, símbolos de poder e de pureza que têm sido venerados pelos japoneses há quase dois milênios. Na prática, foi a casta dos samurais, com a espada em uma mão e a verdade espiritual na outra, que inspirou a maior parte dos valores perenes do país. Essa associação não perdeu sua força quando os samurais começaram a dedicar‐se a outras ocupações, há pouco mais de um século. Mesmo nos dias de hoje, a fabricação de uma nova espada japonesa – embora pouco freqüente – ocorre em meio a uma atmosfera altamente espiritual. A obra é precedida de orações às divindades ligadas a esse ofício; o artesão, depois de submeter‐se a rituais de purificação, se veste exteriormente de trajes cerimoniais, e, interiormente, de uma postura reverente; e só então começa o trabalho. O proprietário da espada deve, por gratidão, assumir o mesmo estado mental; e, de fato, quando o executivo japonês reserva um momento tranqüilo em sua casa para desembrulhar sua espada, desembainhá‐Ia e limpá‐Ia, esse ato é visto como um exercício de meditação, e não como a apreciação ociosa de uma obra de arte. A espada, o exercício espiritual e a mente liberta são em torno dos quais giram estes textos. Lembra‐nos o autor que, com esforço e paciência, essas três devem tornar‐se uma só. Devemos praticar, praticar com tudo aquilo que tivermos em mãos, até que a hesitação e a cobiça, nossos inimigos, sejam abatidas com a presteza, a força e a precisão de um golpe de espada. Existem várias edições das obras aqui traduzidas, mas elas não parecem apresentar grandes diferenças entre si. Baseei esta tradução nos textos que constam do Nihon no Zen Goroku, Vol. 13, o qual, por sua vez, utiliza‐ se dos textos de Takuan Osho Zenshu, publicado pela Takuan Osho Zenshu Kanko Kai. Agradeço sinceramente a Sra. Agnes Youngblood, que me ajudou naquelas partes da tradução que me foram mais dificultosas; a John Siscoe, pelo estímulo e pelas sugestões; e aos professores Jay Rubin e Teruko Chin, da Universidade de Washington, que, a uma distancia de mais de seis mil quilômetros e sobre uns bons centímetros de neve, me ajudaram com o material de apoio. Todo e qualquer erro deve ser imputado à minha pessoa.
INTRODUÇÃO Takuan Sōhō foi um monge zen, calígrafo, pintor, poeta, jardineiro, mestre do chá e, talvez, inventor da conserva de legumes que até hoje leva o seu nome. A extensão de sua obra escrita é prodigiosa (as obras completas preenchem seis volumes), e ela até hoje é fonte de orientação e inspiração para o povo japonês, como tem sido por três séculos e meio. Conselheiro e confidente de nobres e plebeus, ele parece ter transitado livremente por todas as camadas da sociedade, instruindo o xogum e o imperador e, segundo a lenda, sendo amigo e mestre de Miyamoto Musashi, espadachim e artista. A fama e a popularidade não parecem tê‐Io afetado; sentindo a morte próxima, pediu aos seus discípulos: "Sepultem o meu corpo na montanha atrás do templo, cubram‐no de terra e vão para casa. Não recitem sutras, não façam ritos. Não recebam presentes de monges nem de leigos. Que os monges se cubram com as mesmas vestes, comam as mesmas refeições e façam tudo como nos dias comuns." No último instante, ele escreveu o ideograma chinês yume ("sonho"), pôs o pincel sobre a mesa e expirou. Takuan nasceu em 1.573 na aldeia de Izushi, província de Tajima, região de fortes nevascas e nevoeiros nas montanhas. Izushi é antiga o suficiente para ser mencionada nas duas histórias primitivas do Japão, o Kojiki (712 d.C.), e o Nihon‐gi (720 d.C.) e o campo ao seu redor é pontilhado de relíquias de eras passadas, velhos sepulcros e depósitos de cerâmica da antigüidade longínqua. Embora nascido de uma família de samurais do clã Miura, no auge de uma guerra civil que já durava 150 anos, Takuan entrou num mosteiro aos 10 anos de idade para estudar a escola budista Jodo; aos 14 anos passou à prática da escola Rinzai do Budismo Zen; e, com meros 35 anos – fato sem precedentes –, tornou‐se o abade do Daitokuji, grande templo Zen de Kyoto. Em 1.629, Takuan envolveu‐se naquela que depois foi chamada de "A Questão do Manto Púrpura", opondo‐ se à decisão do xogunato de acabar com o poder imperial de nomear os detentores de altos postos religiosos. Devido a essa oposição, foi banido para o atual Distrito de Yamagata, e foi nessa distante província do norte que ele escreveu o primeiro e o último dos três textos contidos neste livro. Foi beneficiado pela anistia geral que se seguiu à morte de xogum, e voltou a Kyoto em 1.632. Nos anos seguintes, tornou‐se amigo e instrutor de Zen do imperador Go‐Mizunoo, que havia abdicado mas ainda conservava a sua influência; e causou uma impressão tão favorável no novo xogum, Tokugawa Iemitsu – que constantemente buscava a sua amizade –, que, em 1.638, fundou o Tokaiji a pedido do xogum. E, embora amigo do xogum e do imperador, manteve‐se sempre decisivamente afastado das querelas políticas que com tanta freqüência disputavam o xogunato e o trono do crisântemo. Diz‐se que Takuan seguiu até o fim da vida o seu próprio caminho, independente, excêntrico e às vezes amargo. Sua força e sua aspereza se evidenciam tanto em sua caligrafia e pintura quanto nos textos aqui apresentados, e, – fato interessante – talvez seja possível "saborear" o caráter desse homem simplesmente degustando um prato de takuanzuke, conserva feita do rabanete gigante japonês. Sua vida pode ser resumida nesta admoestação que ele mesmo fez: "Se tu seguires o mundo presente, darás as costas ao Caminho; se não queres dar as costas ao Caminho, não sigas o mundo." Diz‐se que Takuan buscou infundir o espírito do Zen em todos os aspectos da vida que lhe chamaram a atenção, como a caligrafia, a poesia, a jardinagem e as artes em geral. A arte da espada não escapou ao seu olhar. Vivendo os últimos dias da violenta guerra feudal que culminou na Batalha de Sekigahara, em 1.600, Takuan estava familiarizado, não somente com a paz e a elevação que acompanhavam o artista e o mestre do chá, mas também com os conflitos – a vitória e a derrota – que marcam a vida dos guerreiros e generais. Entre estes se contavam, na época, figuras tão díspares quanto Ishida Mitsunari, poderoso general que deu apoio a Toyotomi Hideyoshi: Kuroda Nagamasa, daimio cristão que urdiu a queda de Mitsunari; e, em especial, seu amigo Yagyu Munenori, chefe da escola de esgrima Yagyu Shinkage e mestre de duas gerações de xoguns. A esses homens e a essa época, não menos do que a outros, dirigiu‐se Takuan. Dos três textos incluídos nesta tradução, dois foram escritos em forma de cartas: Fudochishinmyoroku, "O Registro Misterioso da Sabedoria Imóvel", escrito para Yagyu Munenori; e Taiaki, "Anais da Espada Taia", escrito para Munenori ou talvez para Ano Tadaaki, chefe da escola de esgrima Itto e também instrutor oficial da família e da corte do xogum. As circunstâncias em que foram escritos não nos são conhecidas, e os conselhos francos e a admoestação um tanto confuciana que Takuan dirige a Munenori no final de Fudochishinmyoroku acrescentaram a essa obra urna dimensão nova e interessante, embora enigmática.
No conjunto, os três textos são dirigidos à casta dos samurais, e os três buscam unir o espírito do Zen com o espírito da espada. Os conselhos dados combinam os aspectos práticos, técnicos e filosóficos do conflito. Em linhas gerais, e de um ponto de vista individual, pode‐se dizer que Fudochishinmyoroku trata não somente da técnica, mas do modo pelo qual o eu se relaciona com o Eu [Íntimo] durante o conflito e de como o indivíduo pode vir a tornar‐se um todo unificado. Taiaki, por outro lado, trata mais dos aspectos psicológicos do relacionamento entre o eu e o outro. Entre os dois, Reiroshu, "O Claro Soar das Jóias", trata da natureza fundamental do ser humano; de como um espadachim, um daimio – ou, aliás, qualquer pessoa – , pode conhecer a diferença entre a justiça e o egoísmo e compreender a questão básica de como e quando morrer. Os três textos fazem com que o indivíduo se volte para o conhecimento de si mesmo, e, logo, à arte de viver. A esgrima como mera expressão de uma técnica e o Zen meditativo já existiam havia tempo no Japão; o Zen se estabelecera firmemente no final do século XII. Com Takuan as duas coisas chegaram a uma verdadeira união, e seus escritos e opiniões sobre a espada tiveram uma influência extraordinária sobre os rumos que a arte japonesa da esgrima tomou daquela época até hoje. Essa arte ainda é praticada com fervor, e reflete uma parcela significativa da visão de mundo japonesa. Firmando a união do Zen e da espada, a obra de Takuan influenciou os escritos dos grandes mestres daquela época e deu origem a um grande número de textos que continuam a ser lidos e aplicados, como o Heiho Kadensho de Yagyu Munenori e o Gorin no Sho de Miyamoto Musashi. Esses homens tinham estilos diferentes, mas suas conclusões reúnem intuições e entendimentos de nível elevadíssimo, quer sejam expressos como a "liberdade e espontaneidade" de Musashi, a "mente comum que não conhece regras" de Munenori ou a "mente liberta" de Takuan. Para Takuan, a culminação do Caminho não eram a morte e a destruição, mas a Iluminação e a salvação. O conflito, visto segundo uma mente "reta", não somente dá vida, como a dá em abundância.
O REGISTRO MISTERIOSO DA
SABEDORIA I MÓVEL Fudochishinmyoroku Takuan Soho para Yagyu Munenori
1.1
A AFLIÇÃO DE REPOUSAR NA IGNORÂNCIA
O termo ignorância significa a ausência de Iluminação; isto é, a ilusão. Lugar de repouso significa o lugar onde a mente se fixa. Diz‐se que na prática do Budismo há 52 estágios; dentro deles, o lugar onde a mente se fixa em alguma coisa é chamado lugar de repouso. Repousar significa fixar‐se, e fixar‐se significa que a mente está sendo detida por algum tipo de matéria – qualquer tipo. Nos termos da tua própria arte marcial: quando tu percebes a espada que vem abater‐se sobre ti, se tu pensares em enfrentar essa espada tal como ela está, tua mente vai fixar‐se na espada segundo a posição em que ela se encontra; teus movimentos se perderão e tu serás atingido pelo oponente. É isso que significa fixar‐se. Embora vejas a espada que vem abater‐se sobre ti, se a tua mente não for detida por ela e tu te conformares ao ritmo da espada que avança; se tu não pensares em abater o oponente e eliminares de ti todo pensamento ou julgamento; se, no instante em que tu vês o golpe da espada, tua mente não for minimamente detida e tu avançares e arrancares dele a espada; então, a espada que vinha atingir‐te será a tua própria espada e, de modo contrário, será a espada que atingirá o teu oponente. No Zen, diz‐se que isso é "Agarrar a lança e ferir aquele que vinha te ferir". A lança é uma arma. A essência disso é que a espada que tu arrancas do teu adversário é a espada que vem a atingi‐lo. É isso que, no teu estilo, se chama "lutar espada sem espada". Quer pelo golpe do inimigo, quer pelo teu próprio golpe; quer pelo homem que golpeia, quer pela espada que corta; quer pela posição, quer pelo ritmo, se a tua mente se desviar de alguma maneira, tuas ações não serão perfeitas, e isso pode fazer com que sejas atingido. Se te colocares perante o teu oponente, tua mente será capturada por ele. Tu não deves situar a tua mente dentro de ti. Conter a mente dentro do corpo é algo que só é feito pelos principiantes, no início do treinamento. A mente pode ser capturada pela espada. Se manténs a mente no ritmo da luta, também por isso ela pode ser capturada. Se fixas a mente na tua própria espada, a espada pode captura‐Ia. Quando a mente se fixa em qualquer um desses lugares, tu te tornas uma casca vazia. Sem dúvida, tu mesmo te recordas de tais situações. A mesma coisa se aplica ao Budismo. No Budismo, chamamos esse ato de fixar a mente de ilusão. Por isso dizemos: "A aflição de repousar na ignorância."
1.2
A SABEDORIA IMÓVEL DE TODOS OS BUDAS
Imóvel é aquilo que não se move. Sabedoria é a sabedoria da inteligência. Embora se diga que a sabedoria é imóvel, ela não o é como um objeto inanimado, um pedaço de madeira ou uma pedra. Ela se move como a mente está habituada a mover‐se: para frente e para trás, para a esquerda e para a direita, nas dez direções e rumo aos oito pontos; e a mente que jamais se fixa é chamada sabedoria imóvel. Fudo Myô1 empunha uma espada com a mão direita e segura uma corda com a esquerda. Ele mostra os dentes e o brilho da cólera reluz em seus olhos. Firme e forte, está pronto a derrotar os maus espíritos que combatem a Lei do Buda. Ele não está oculto em algum lugar especifico. Sua figura é a de um protetor do Budismo, e a sua forma é a da sabedoria imóvel. Eis o que se mostra a todos os seres.
1
Fudo Myô significa, literalmente, "Rei Iluminado Imóvel" (sânscrito Achara). É uma das Cinco Divindades da Sabedoria. O Zen o considera uma manifestação da verdadeira natureza de todas as coisas vivas.
1
Vendo essa figura, o homem comum sente medo e renuncia a ser um inimigo do Budismo. O homem próximo da Iluminação compreende que ela manifesta a sabedoria imóvel e se desfaz de toda ilusão. Assim como os maus espíritos não têm acesso a Fudo Myô, assim também não o têm ao homem que faz transparecer a sua sabedoria imóvel e é capaz de praticar na mente esse dharma. É esse o propósito das saudações a Fudo Myô. Diz‐se que o que se chama Fudo Myô é a mente imóvel e o corpo irresistível. Irresistível é aquilo que não é detido por nada. Imóvel é olhar para algo e não fixar a mente. Isso porque, quando a mente se fixa em algo, o peito se enche de juízos e é agitado por vários movimentos. Quando esses movimentos se esgotam, a mente fixada se move, mas na verdade não se move de maneira alguma. Supõe que dez homens, cada um deles com uma espada, se abatam repentinamente sobre ti. Se tu te desviares de cada espada sem fixar a mente em nenhuma ação, e passares de cada um ao seguinte, tua ação será perfeita para cada um dos dez. Embora a mente aja dez vezes contra dez homens, poderá a ação deixar de ser perfeita se a mente não se fixar em nenhum deles e tu reagires a cada um deles sucessivamente? Supõe, porém, que a mente se detenha perante um desses homens. Embora tu te desvies da sua espada, quando o próximo homem vier, a ação perfeita terá escapado de ti. Considera a Kannon2 de Mil Braços, que tem mil braços saindo de um só corpo. Se a mente se fixar no braço que segura um arco, os demais 999 serão perfeitamente inúteis. É porque a mente não se detém num determinado lugar que todos os braços são úteis. Quanto a Kannon, por que ela tem mil braços ligados a um só corpo? Essa figura foi criada com a intenção de revelar aos homens que, mesmo que um corpo tenha mil braços, cada um deles será útil se a sua sabedoria imóvel for libertada. Supõe que tu te depares com uma árvore. Se olhares para uma única folha vermelha, não verás nenhuma das outras. Quando o olho não se volta para nenhuma folha em particular e tu olhas a árvore com a mente absolutamente vazia, o olho é capaz de captar um número ilimitado de folhas. Mas quando uma única folha prende o olhar, é como se as demais folhas não estivessem lá. Aquele que compreendeu isso é idêntico à Kannon de mil braços e mil olhos. O homem comum crê, muito simplesmente, que ela é abençoada por ter mil braços e mil olhos. O homem de sabedoria imatura, perguntando‐se como alguém pode ter mil olhos, afirma ser ela uma mentira e cede à blasfêmia. Mas o homem dotado de alguma compreensão tem uma crença reverente baseada nos princípios e não precisa nem da fé simples do homem comum nem da blasfêmia do outro; ele compreende que o Budismo, por meio desse único objeto, manifesta muito bem o seu princípio. Todas as religiões são assim. Percebi que o Xintoísmo, em especial, é assim. O homem comum tem um pensamento superficial. Aquele que ataca o Budismo é ainda pior. Esta religião, aquela religião – existem várias; mas, no seu ponto mais profundo, todas elas chegam a uma única conclusão. De qualquer modo, quando um homem pratica a disciplina e parte do território do principiante rumo à sabedoria imóvel, ele termina por voltar a cair de novo no nível do principiante, o lugar de repouso. Isso tem uma razão de ser. 2
Kannon, uma Bodhisattva, Deusa da Misericórdia Budista (em sânscrito, Avalokiteshwara). Era representada originalmente como uma figura masculina. Em uma de suas três formas mais comuns de figuração, possui mil olhos e mil mãos.
2
Mais uma vez, podemos nos referir à tua própria arte marcial. Como o principiante nada sabe a respeito da postura corporal ou de como empunhar a espada, sua mente não se fixa em lugar algum dentro dele. Se alguém o golpeia com a espada, ele faz frente ao ataque sem ter nada em mente. À medida que ele estuda várias coisas e aprende as diversas posturas, a maneira de segurar a espada e o lugar onde concentrar a mente, sua mente se fixa em muitos objetos. Nesse ponto, quando ele quer golpear um oponente, seu desconforto é muito grande. Mais tarde, à medida que os dias vão passando e o tempo vai se acumulando, de acordo com a sua prática, nem as posturas do corpo nem as maneiras de empunhar a espada terão importância. Sua mente se torna simples como era no princípio, quando ele nada sabia e ainda tinha tudo por aprender. Nisso se vê o sentido de se dizer que o princípio é igual ao fim; é como contar de um a dez, quando o primeiro e o último número ficam adjacentes um ao outro. Também em outras coisas – nas notas musicais, por exemplo, quando se vai da nota inicial, a mais grave, até a final, a mais aguda – o mais baixo e o mais alto ficam um ao lado do outro.3 Nós dizemos que o mais alto e o mais baixo são semelhantes. O Budismo, quando se chega à sua profundidade, é semelhante ao homem que nada sabe do Buda ou da Lei de Buda. Não possui adornos nem qualquer outra coisa que possa chamar a atenção dos homens. A ignorância e as aflições do princípio, o lugar de repouso e a sabedoria imóvel que vem depois tornasse uma só coisa. A função do intelecto desaparece, e chega‐se a um estado de Não‐Mente‐Não‐Pensar. Quando se chega ao ponto mais profundo, os braços, as pernas e o corpo já sabem o que fazer, mas a mente não tem nenhuma participação nisso. O sacerdote budista Bukkoku escreveu: Embora não se dedique a montar guarda Nos pequenos campos da montanha O espantalho Não está de pé em vão. Tudo é assim. Para fazer um espantalho para os campos da montanha, o agricultor fabrica uma figura humana e põe‐lhe nas mãos um arco e uma flecha. Os pássaros e animais o vêem e fogem. Essa figura não tem mente de espécie alguma; mas, se os veados sentem medo e fogem, na medida em que ela cumpriu sua função, ela não foi criada em vão. Esse é um exemplo do comportamento daqueles que percorreram boa parte de qualquer Caminho. Embora mãos, pés e corpo se movimentem, a mente não se fixa em lugar nenhum e a pessoa não sabe onde sua mente está. No estado de Não‐Mente‐Não‐Pensar, a pessoa chegou ao grau do espantalho nos campos da montanha. Do homem comum que não encontrou seu caminho, podemos dizer que ele jamais teve sabedoria e que ela jamais se manifestará, quaisquer que sejam as circunstâncias. A sabedoria suprema, estando no mais remoto dos lugares, absolutamente não se manifestará. Por fim, o sabichão imaturo despeja sua sabedoria, direto do alto da cabeça, e isso é ridículo. Os trajes e as maneiras dos sacerdotes de hoje podem e devem ser vistos sob essa luz, e isso é motivo de grande vergonha. Existe um treinamento que diz respeito ao principio e um treinamento que diz respeito à técnica. O princípio é como já expliquei: quando se chega, nada se percebe. É como se a pessoa se tivesse desfeito de toda concentração. Escrevi extensamente sobre isso um pouco acima.
3
Neste ponto, o texto dá o nome das doze notas da escala musical usada na China e no Japão. Da mais grave para a mais aguda, elas são: ichikotsu, tangin, hyojo, shozetsu, shimomu, sojo, fusho, tsukuseki, ban (dakei), banshiki, shinsen, kamimu.
3
Se tu encheres o teu peito do princípio mas não te treinares na técnica, teu corpo e tuas mãos não funcionarão. No contexto da tua própria arte marcial, o treinamento que diz respeito à técnica é aquele que, quando praticado muitas e muitas vezes, faz das cinco posturas corporais uma só. Muito embora conheças o princípio, é preciso que te tornes perfeitamente livre no uso da técnica. E muito embora possas ser agilíssimo em empunhar a espada que carregas contigo, tampouco atingirás a maestria se não compreenderes os aspectos mais profundos do princípio. A técnica e o princípio são semelhantes às duas rodas de uma carruagem.
1.3
O INTERVALO EM QUE NÃO HÁ ESPAÇO SEQUER PARA UM FIO DE CABELO
De fato existe um intervalo em que não há espaço sequer para um fio de cabelo. Para falar disso, tomemos como exemplo a tua arte marcial. Intervalo é quando duas coisas se juntam uma à outra, e nem algo da espessura de um fio de cabelo pode ficar entre elas. Quando bates as mãos em palma e, no mesmo instante, soltas um grito, o intervalo entre o bater palmas e o gritar não deixa espaço sequer para um fio de cabelo. Não se trata de bater palmas, pensar em gritar e então fazê‐Io; isso resultaria num intervalo entre as duas coisas. Bates as mãos em palma e, no mesmíssimo instante, produzes um som. Do mesmo modo, se a mente se fixar na espada com a qual um inimigo vai te golpear, haverá um intervalo e tua ação será perdida. Mas se nem um fio de cabelo puder introduzir‐se no intervalo entre a espada do oponente e a tua ação, a espada do teu oponente tornar‐se‐á a tua própria. O mesmo se diz nas discussões sobre o Zen. No Budismo, abominamos a fixação da mente que permanece ligada a isso ou a aquilo. Chamamos essa fixação de aflição. É como uma bola que flutua sobre uma corrente de água que se move rapidamente: respeitamos a mente que flui dessa maneira e não se fixa nem por um instante num determinado lugar.
1.4 A AÇÃO DA FAGULHA E DA PEDRA Há também a ação da fagulha e da pedra, que é semelhante ao que acabei de dizer. No mesmo instante em que golpeias a pedra, aparece a fagulha. Como ela aparece no mesmíssimo instante em que golpeias a pedra, não há intervalo nem interstício. Também isso equivale à ausência do intervalo que fixa a mente. Seria um erro compreender isso como simples rapidez. Antes, o que isso salienta é que a mente não deve ser detida pelas coisas; revela que, mesmo com velocidade, é essencial que a mente não se fixe. Quando a mente se fixa, ela é capturada pelo oponente. Por outro lado, se a mente contempla o fato de ser rápida e se move velozmente à ação, ela é capturada por sua própria contemplação. Entre os poemas de Saigyo4 encontra‐se o seguinte: De ti, só se ouve dizer que és um homem que abomina o mundo. Só posso esperar que tua mente não seja detida por esse abrigo transitório.
4
Saigyo (1.118‐90): sacerdote Shingon do período Heian tardio, famoso por suas viagens e muitíssimo admirado como poeta.
4
Ele atribui esse poema à cortesã de Eguchi5. A última parte desse verso – "Só posso esperar / que tua mente não seja detida..." – pode ser mencionada corno algo que chega ao próprio coração das artes marciais. É essencial que a mente não seja detida. No Zen, quando alguém pergunta "o que é o Buda?", deve‐se levantar o punho cerrado. Quando alguém pergunta "Qual é o sentido último da Lei de Buda?", deve‐se responder imediatamente: "Um único ramo da cerejeira em flor", ou "O cipreste no jardim". Não se trata de escolher uma resposta boa ou má. Nós respeitamos a mente que não se fixa. A mente que não se fixa não é movida nem pela cor nem pelo cheiro. Não importa que a forma dessa mente imóvel seja reverenciada como um deus, respeitada como um Buda ou chamada de Espírito do Zen ou Sentido Último; se a pessoa pensar e depois falar, mesmo que pronuncie palavras de ouro ou versos misteriosos, isso não passará da aflição do lugar de repouso. Não se pode dizer que a ação da pedra e da fagulha tem a velocidade de um relâmpago? Sabedoria imóvel é ser chamado e responder "Sim?" imediatamente. Quando se é chamado, a hesitação quanto ao por que e o para quê do chamado é a aflição do lugar de repouso. A mente que se fixa ou é movida por algo é lançada na confusão – tal é a aflição do lugar de repouso, e tal é o homem comum. Ser chamado e responder sem intervalo é a sabedoria de todos os Budas. O Buda e todos os seres não são duas coisas. Essa mente é considerada um deus ou um Buda. Embora haja muitos caminhos – o caminho dos deuses, o caminho da poesia, o caminho de Confúcio –, todos eles compartilham da clareza dessa mente única. Quando explicamos a mente com palavras, dizemos coisas tais como "Todos possuem essa mente", ou "Bons e maus acontecimentos, o nascer e o pôr‐do‐sol ocorrem segundo o Karma", ou "Quer a pessoa deixe sua casa, quer leve seu país à ruína, tal é um reflexo do seu caráter, pois tanto o bem quanto o mal dependem da mente da pessoa". Se as pessoas quiserem conhecer essa mente, elas decerto serão confundidas se não houver um ser verdadeiramente Iluminado que lhas mostre. Neste mundo, não há dúvida de que há pessoas que não conhecem a mente. Também é claro que há aqueles que a compreendem, por raros que sejam. Embora às vezes surja alguém que a compreenda, não é habitual que essa pessoa aja de acordo com o que compreende; então, embora seja capaz de explicar muito bem a mente, é duvidoso que a compreenda em profundidade. Pode‐se explicar a água, mas nem por isso a boca ficará molhada. Podem‐se fazer longas dissertações sobre a natureza do fogo, mas a boca não se aquecerá. Sem tocar na água verdadeira e no fogo verdadeiro, ninguém pode conhecer essas coisas. Mesmo a explicação de um livro não o tornará compreensível. O alimento pode ser definido em poucas palavras, mas isso não basta para aliviar a fome. Não se chega à compreensão a partir da explicação de outra pessoa. Neste mundo, há budistas e confucionistas que explicam a mente, mas suas ações não correspondem às suas explicações. A mente dessas pessoas não é verdadeiramente Iluminada. Se a pessoa não esclarecer perfeitamente o que é a sua própria mente, ela não terá compreensão. Muitos dos que estudam não compreendem a mente, mas não se trata de mera questão de números. Não há um só dentre eles que tenha uma boa disposição. É preciso dizer que a iluminação da própria mente depende da profundidade do esforço feito.
5
Eguchi localizava‐se dentro da moderna cidade de Osaka. Diz‐se que, certa noite, Saigyo parou por lá e pediu abrigo, dando ensejo a essa resposta da cortesã.
5
1.5
ONDE SITUAR A MENTE6
Nós Dizemos: Se a pessoa situa a mente na ação do corpo do oponente, sua mente será capturada pela ação do corpo do oponente. Se ela situa a mente na espada do oponente, sua mente será capturada por essa espada. Se ela situa a mente em pensamentos sobre a intenção do oponente de golpeá‐la, sua mente será capturada pelos pensamentos sobre a intenção do oponente de golpeá‐Ia. Se ela situa a mente em sua própria espada, sua mente será capturada por sua própria espada. Se ela situa a mente na sua própria intenção de não ser atingida, sua mente será capturada por sua intenção de não ser atingida. Se ela situa a mente na postura do oponente, sua mente será capturada pela postura do oponente. O que isso quer dizer é que não há lugar onde situar a mente. Certa vez, uma pessoa disse: "Onde quer que eu situe a minha mente, minhas intenções ficam presas ao lugar para onde ela vai, e eu perco o combate. Por isso, situo minha mente logo abaixo do umbigo7 e não a deixo vaguear. Dessa maneira, sou capaz de mudar de acordo com as ações do meu oponente." Isso é razoável. Mas, segundo o ponto de vista mais elevado do Budismo, situar a mente logo abaixo do umbigo e não deixá‐la vaguear não corresponde a um alto nível de compreensão, mas a um nível baixo. Corresponde ao nível da disciplina e do treinamento, ou ao nível da seriedade8. Corresponde ainda ao dito de Mêncio: "Buscai a mente perdida." 9 Tampouco é esse o nível mais alto. Seu sentido é a seriedade. Quanto à "mente perdida", escrevi sobre isso em outra ocasião, e lá poderás encontrar a resposta. Supõe que tu situes a mente abaixo do umbigo e não a deixes vaguear: tua mente será capturada pela mente que concebe esse plano. Tu não terás a capacidade de avançar e serás como um escravo, sem liberdade alguma. Isso leva a uma pergunta: "Se o ato de situar a mente abaixo do umbigo me deixa preso e incapaz de agir, ela não tem utilidade nenhuma. Sendo assim, em que parte do corpo devo situar a mente?" Respondi: "Se tu a situares na mão direita, ela será capturada pela mão direita e o corpo perderá sua capacidade de ação. Se tu a situares no olho, ela será capturada pelo olho e o corpo perderá sua capacidade de ação. Se tu a situares no pé direito, ela será capturada pelo pé direito e o corpo perderá sua capacidade de ação. Não importa onde a situes; se a situares num só lugar, o restante do corpo perderá a capacidade de ação." Pergunta: "Então, onde situar a mente?" Eu respondi: "Se não a situares em lugar nenhum, ela irá a todas as partes do teu corpo e o preencherá inteiramente. Dessa maneira, penetrando na tua mão, ela realizará a função da mão. Penetrando no teu pé, ela realizará a função do pé. Penetrando no teu olho, ela realizará a função do olho. 6
O termo traduzido por situar a mente em pode, evidentemente, ser traduzido também como concentrar‐se em. Esse último verbo, porém, restringe o sentido original que o autor quis dar ao texto. Deve‐se manter em mente ambas as idéias. 7
O tanden, ponto situado três dedos abaixo do umbigo, é considerado por alguns taoístas como a morada da própria mente. Ele fica muito próximo do centro de gravidade do corpo e é muito mencionado nos textos sobre artes marciais.
8
Seriedade, traduzida também como reverência, significa, para os neoconfucianos, uma atitude interior de atenção e compostura aplicada aos esforços ativos. Enquanto estado desejável da mente, ela contém também, em certa medida, o sentido de meditação.
9
A citação é tirada de Mêncio (Livro 6, parte 1, capítulo 11): "Disse Mêncio: 'A compaixão é a mente do ser humano. A justiça é o seu caminho. É lastimável que ele abandone esse caminho e não confie nele; que ele perca a sua mente e não saiba buscá‐la. Quando um homem perde uma galinha ou um cachorro, ele sabe procurá‐los: mas, tendo perdido a própria mente, não sabe procurá‐la. O Caminho do Conhecimento resume‐se em buscar a mente perdida.'''
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Se tu te decidires por um lugar e lá situares a mente, ela será capturada por esse lugar e perderá sua função. Se a pessoa pensar, ela será capturada por seus pensamentos. Portanto, deixa de lado os pensamentos e a discriminação, lança a mente para fora do corpo inteiro e não a fixes nem aqui nem lá; então, quando ela visitar os vários lugares, ela realizará a função própria e agirá sem erro." Situar a mente num só lugar é cair na parcialidade. Parcialidade é a preferência por um determinado lugar. A retidão está no movimento que atinge qualquer lugar. A Mente Correta se manifesta quando a mente preenche o corpo inteiro. Ela não prefere um lugar a outro. Quando a mente prefere um determinado lugar e tem aversão por outro, ela é chamada mente parcial. A parcialidade é abominável. Ser detido por qualquer coisa – o que quer que seja – é cair na parcialidade, e é algo abominado por todos aqueles que trilham o Caminho. Quando a pessoa não pensa "Onde devo situá‐la?", a mente preenche o corpo inteiro e é capaz de atingir qualquer lugar que seja. Sem situar a mente num lugar determinado, será possível à pessoa usar a mente, direcionando‐a daqui para lá e reagindo aos movimentos do oponente? Supõe que a mente se mova pelo corpo inteiro. Quando a mão é chamada à ação, deve‐se usar a mente que está na mão. Quando o pé é requisitado, deve‐ se usar a mente que está no pé. Mas supõe‐se que determines um único lugar onde situá‐Ia; quando tentares tirá‐Ia desse lugar, ela permanecerá ali. Ela não terá função. Supõe que mantenhas a mente amarrada como um gatinho e não a deixes vaguear; contendo‐a dentro de ti, dentro de ti ela será detida. Abandonando‐a dentro do teu corpo, ela não irá a lugar nenhum. O esforço de não fixar a mente num único lugar eis a disciplina. Não fixar a mente é o objeto e a essência. Não a situando em lugar nenhum, ela está em todo lugar. Mesmo movendo a mente fora do corpo, enviando‐a a uma determinada direção, ela estará ausente das outras nove. Quando não se restringe a uma direção única, está presente nas dez.
1.6 A MENTE RETA E A MENTE CONFUSA A Mente Reta é a mente que não permanece em um lugar determinado, é a mente que se estende por todo o corpo e por todo o ser. A Mente Confusa é aquela que, pensando em alguma coisa, congela‐se num único lugar. Quando a Mente Reta congela e acomoda‐se num único lugar, ela se transforma naquilo que se chama Mente Confusa. Quando a Mente Reta se perde, deixa de funcionar aqui e lá. Por esse motivo, é importante não perdê‐Ia. Por não permanecer num lugar determinado, a Mente Reta é como a água. A Mente Confusa é como o gelo, e com gelo não se pode lavar as mãos nem a cabeça. Quando o gelo derrete, ele se transforma em água e flui para todo lugar, podendo‐se usá‐Io para lavar as mãos, os pés ou qualquer outra coisa. Quando a mente se congela num determinado lugar e permanece ligada a uma coisa, assemelha‐se à água congelada e não pode ser usada livremente: é gelo, com o qual não é possível lavar as mãos nem os pés. Quando a mente é derretida e é usada como água, preenchendo o corpo inteiro, ela pode ser enviada para onde quer que se seja. Assim é a Mente Reta.
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1.7
A MENTE DA MENTE EXISTENTE E A MENTE DA NÃO‐MENTE
A Mente Existente é idêntica à Mente Confusa e significa literalmente a "mente que existe". É a mente que pensa numa direção determinada, qualquer que seja o objeto de seu pensamento. Quando existe na mente um objeto de pensamento, surgem a discriminação e os pensamentos. É isso que se conhece como Mente Existente. A Não‐Mente é idêntica à Mente Reta. Ela jamais se congela nem se fixa num determinado lugar. Chama‐se Não‐Mente o estado em que a mente não abriga nem discriminação nem pensamento, mas caminha pelo corpo inteiro e preenche o ser como um todo. A Não‐Mente não se situa em lugar nenhum. Mesmo assim, ela não se assemelha à madeira ou à pedra. Chama‐se Não‐Mente onde não há lugar de repouso. Quando ela se fixa, há algo na mente. Quando não há nada na mente, chama‐se isso de mente da Não‐Mente. Chama‐se também Não‐Mente‐Não‐Pensar. Quando essa Não‐Mente está bem desenvolvida, a mente não se fixa em nada nem sente falta de nada. É semelhante à água transbordante e existe dentro de si mesma. Manifesta‐se em sua melhor forma nas épocas de necessidade. A mente que enrijece e se fixa num determinado lugar não funciona livremente. Do mesmo modo, as rodas de uma carruagem giram porque não estão rigidamente fixas. Se estivessem muito apertadas, não girariam. Também a mente não funciona quando se apega a uma situação determinada. Supõe que haja algum pensamento dentro da mente; embora tu ouças as palavras ditas por outrem, não serás capaz de escutá‐las. Isso ocorre porque a tua mente se fixa nos teus pensamentos. Quando a tua mente se inclina na direção desses pensamentos, embora tu ouças, não escutarás; e embora olhes, não verás. Isso ocorre porque há algo na tua mente, e esse algo que lá existe é o pensamento. Se tu fores capaz de eliminar esse algo que lá esta, tua mente se transformará na Não‐Mente, funcionará sempre que necessário e será perfeitamente adequada ao uso. A mente que pensa em eliminar o que contém dentro de si será ocupada por esse mesmo ato. Se a pessoa não pensar a respeito, a mente eliminará os pensamentos por si mesma e por si mesma transformar‐se‐á na Não‐Mente. Se a pessoa sempre trata a própria mente desse modo, um dia ela entrará neste estado por si mesma. Aquele que procura atingir esse estado à força jamais o atingirá. Diz um velho poema: Pensar: "Não vou pensar" – Também é algo que está nos pensamentos. Simplesmente não pense Sobre não pensar em absoluto.
1.8 LANCE O CANTIL NA ÁGUA E EMPURRE‐O PARA BAIXO; ELE VAI VIRAR PARA CIMA E VOLTAR À SUPERFÍCIE Empurrar um cantil, no caso, é empurrá‐la com a mão. Quando se lança um cantil na água e ele é empurrado para baixo, de repente ele escapa para um dos lados e volta à superfície. O que quer que se faça, é algo que não pára num só lugar. A mente daquele que chegou [na outra margem] não se fixa nem por um momento num objeto determinado. É como empurrar o cantil para baixo d'água. 8
1.9 GERAR A MENTE QUE NÃO TEM LUGAR DE REPOUSO Na nossa escrita sino‐japonesa, isso se pronuncia omushoju jijogoshin. Não importa o que a pessoa faça; quando ela gera a mente que pensa sobre algo, a mente se fixa nesse algo. Portanto, deve‐se gerar a mente que não tem lugar onde se fixar. Quando não se gera a mente, a mão não avança. Aqueles que, ao avançar, geram a mente que de hábito se fixa nesse avanço, mas ao mesmo tempo não se fixam em absoluto no decurso da ação – estes se chamam os homens realizados de todos os Caminhos. A mente apegada nasce da mente que se fixa. Também o ciclo da transmigração nasce daí. A fixação transforma‐se nos laços da vida e da morte. Supõe que alguém olhe para as flores da cerejeira ou as folhas das árvores no outono. Enquanto a pessoa gera a mente que olha para essas coisas, é essencial não fixar‐se nelas. Diz o poema de Jien10: A flor que recende seu perfume diante da minha porta de junco O faz sem cuidados. Eu, porém, sento‐me e olho – Como é triste este mundo. Isso significa: a flor desprende seu perfume, com a Não‐Mente; enquanto isso, eu olho para ela e minha mente não vai além. É lastimável que a minha mente me tenha paralisado desse modo! Faze disso um princípio secreto: ao veres ou ouvires, não detenhas a mente num lugar determinado. A palavra seriedade é explicitada pelo dito: "Uma meta, nenhuma distração." 11 A mente é estabelecida num só lugar e não se deixa que ela se movimente. Mais tarde, mesmo ao desembainhar a espada para dar o golpe, considera‐se essencial não permitir que a mente se movimente na direção do golpe. Especialmente em questões tais como a de receber ordens do teu senhor, deve‐se manter a palavra seriedade diante dos olhos da mente o tempo todo. Também no Budismo temos o espírito da seriedade. Quando soa três vezes o sino chamado Sino da Reverência, nós juntamos as mãos e nos inclinamos. Essa atitude de reverência, na qual a primeira coisa a fazer é entoar o nome do Buda, é idêntica a ter "uma meta, nenhuma distração" ou "a mente sem confusão". O espírito de seriedade não é o nível mais profundo do Budismo. Conter a própria mente, sem deixá‐Ia confusa, é a disciplina do noviço que apenas principiou no caminho do aprendizado. Essa prática, quando levada a efeito por muito tempo, leva àquele nível de liberdade em que se pode deixar a mente ir a qualquer direção. O nível acima mencionado, o de "engendrar a mente que não tem lugar de repouso", é o mais elevado de todos. O significado da palavra seriedade está em conter a mente e não enviá‐Ia a outros lugares; o pensamento é que, se a mente for liberada, ela se confundirá. O que ocorre nesse nível é uma constrição da mente, e não se permite sequer um til de negligência. É como um gato que caçou um filhote de pardal. Para evitar que isso aconteça de novo, o gato é amarrado com uma corda e permanece sempre preso. Se a minha mente está amarrada como um gato, ela não está livre e, provavelmente, é incapaz de atuar como deve. Quando o gato está bem treinado, a corda é desamarrada e deixa‐se que ele vá para onde
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Jien (1155‐1225), também muito conhecido pelo nome de Jichin, foi um poeta e monge da escola Tendai.
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Frase que era usada freqüentemente pelos neoconfucianos chineses para explicar a "seriedade".
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quiser. A essa altura, mesmo que os dois estejam juntos, o gato não vai mais caçar o pardal. Esse é o sentido da expressão "gerar a mente que não tem lugar de repouso". Embora eu solte minha mente e a ignore como faço com o gato, embora ela possa ir aonde quiser, é assim que se usa a mente de modo a não fazê‐Ia fixar‐se. Tomemos um exemplo da tua própria arte marcial: a mente não é detida pela mão que empunha a espada. Completamente alheia à mão que empunha a espada, a pessoa golpeia e corta seu oponente. Ela não situa a mente no adversário. O oponente é o Vazio. Eu sou o Vazio. A mão que brande a espada, a própria espada, é o Vazio. Compreende isso, mas não deixes que a tua mente seja capturada pelo Vazio. Quando Mugaku12, sacerdote Zen de Kamakura, foi capturado durante os distúrbios ocorridos na China e estava a ponto de ser degolado, ele recitou o gatha13: "Com a rapidez de um relâmpago / Decepa a brisa da primavera" – então, o soldado jogou longe a espada e fugiu. Mugaku queria dizer que no brandir a espada, no momento infinitesimal em que refulge o relâmpago, não há mente nem pensamento. Para a espada que golpeia, não há mente. Para mim, que estou a ponto de ser golpeado, não há mente. Aquele que ataca é o Vazio. Sua espada é o Vazio. Eu mesmo, que estou a ponto de ser degolado, sou o Vazio. Sendo assim, o homem que golpeia não é um homem de maneira alguma. A espada que golpeia não é uma espada. E para mim mesmo, a pessoa que está a ponto de ser degolada, no refulgir de um relâmpago, será como decepar a brisa que sopra pelo céu da primavera. É a mente que absolutamente não se fixa. E é improvável que a espada reaja a decepar o vento. Esquece por completo da mente, e farás bem todas as coisas. Quando tu danças, a mão segura o leque, e o pé dá um passo. Se não te esqueces de tudo, se continuas pensando em fazer movimentos precisos com as mãos e os pés e em dançar bem, não se pode dizer que tenhas habilidade. Quando a mente se fixa nas mãos e nos pés, nenhum dos teus atos é único e singular. Se não te desfizeres por completo da mente, nada do que fizeres será bem feito.
1.10 BUSCAI A MENTE PERDIDA Trata‐se de um dito de Mêncio que significa que a pessoa deve buscar a mente perdida e fazê‐la voltar a si.14 Se um cão, gato ou galo escapou e fugiu para outro lugar, o dono sai para procurá‐lo e fazê‐lo voltar para casa. Do mesmo modo, quando a mente, senhora do corpo, se extraviou por um caminho vil, por que não sair em busca dela para fazê‐Ia voltar a nós? Isso é perfeitamente razoável. Mas há também este dito de Shao K'ang‐chieh15: "É essencial perder a mente." Isso é outra coisa. A tendência geral é a de que a mente, quando amarrada, acaba por se cansar; então, como o gato, é incapaz de atuar como deve. Se a mente já não se fixa nas coisas, ela já não é maculada por elas e pode ser bem utilizada. Deixe‐a livre para correr por onde bem quiser. A mente é maculada e fixada pelas coisas; por isso, nós somos advertidos a não deixar que isso aconteça, e admoestados a sair em busca dela para fazê‐Ia voltar a nós. Esse é o primeiríssimo estágio do treinamento. 12 Mugaku (1226‐86): sacerdote chinês da escola Linchi (Rinzai), trazido ao Japão por Hojo Tokimune em 1.278. A história mencionada refere‐se à invasão da província Sung do sul pelos mongóis, em 1.275. 13
Um gatha é um hino ou cântico metrificado que se encontra muito nos sutras budistas. Eis o poema inteiro: "Em todo o céu e em toda a terra, não há onde erigir um único poste. / Feliz, eu compreendo: o homem é o Vazio, a lei de Buda é o Vazio. / Quão maravilhosa é a espada do Grande Yuan, comprida de três pés. / Com a rapidez de um relâmpago, / Decepa a brisa da primavera." 14
Ver nota nº. 9 Shao K'ang‐chieh (1011‐77) foi um erudito da Dinastia Sung do norte. O verbo traduzido por "perder" também pode ser traduzido por "deixar ir", "largar".
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Devemos ser como o lótus, que não é maculado pela lama sobre a qual cresce. Embora a lama exista, isso não deve nos amargurar. Deve‐se tornar a mente semelhante ao cristal polido, que permanece imaculado mesmo quando mergulhado na lama. Deve‐se deixar a mente ir para onde ela queira. O efeito da constrição da mente é fazê‐la perder a liberdade. O controle estrito da mente é algo que só se faz no princípio. Quem permanece assim a vida inteira jamais atingirá o nível mais alto. Na verdade, nem sequer sairá do mais baixo. Durante o treinamento, é bom fixar na memória as palavras de Mêncio: "Buscai a mente perdida." O grau supremo, porém, está contido no que disse Shao K'ang‐chieh: "É essencial perder a mente." Eis um dos ditos do sacerdote Chung‐fêng16: "Detende a posse de uma mente que foi libertada." O significado dessas palavras é idêntico ao do dito de Shao K'ang‐chieh, segundo o qual devemos deixar a mente livre. Sua importância reside em advertir‐nos a não procurar a mente perdida nem amarrá‐la num único lugar. Chung‐fêng também disse: "Não vos prepareis para a retirada." Isso equivale a ter uma mente que não pode ser alterada. Significa que o homem deve cuidar para que, embora tenha avançado com sucesso uma ou duas vezes, não se resigne à retirada quando estiver cansado ou em circunstâncias imprevistas.
1.11 UMA BOLA ATIRADA NA CORRENTEZA JAMAIS SE DETERÁ17 Segundo um ditado, "Uma bola atirada na correnteza jamais se deterá." Isso significa que se tu atirares uma bola na água corrente, ela flutuará sobre as ondas e jamais se fixará num só lugar.
1.12 ROMPEI O ISTMO ENTRE O ANTES E O DEPOIS Há uma frase que diz: "Rompei o istmo entre o antes e o depois." Não libertar a mente dos momentos passados, deixar que permaneçam vestígios da mente presente – ambas as coisas são más. Isso significa que se deve romper decididamente o intervalo entre o antes e o agora. A importância disso está em cortar o fio que liga o antes e o depois, o agora e o que já foi feito; isto é, não deter a mente.
1.13 A ÁGUA INCENDEIA O CÉU, O FOGO LAVA AS NUVENS Não queimes hoje os campos de Musashino. Meu esposo e eu jazemos ocultos na relva da primavera.18 Houve quem interpretasse o significado desse poema desta maneira:
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Chung‐fêng (1263‐1323): sacerdote Zen da China sob a Dinastia Yuan.
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Do Pi Yen Lu, coleção de problemas, ditos e anedotas dos patriarcas Zen. Um monge perguntou a Chao‐chou: "Um bebê recém nascido é dotado das seis percepções?" Disse Chao‐chou: "Atira uma bola na correnteza." O monge então perguntou a T'ou‐tze: "O que significa 'Atira uma bola na correnteza'?" Disse T'ou‐tze: "Ela jamais se deterá." 18
Poema encontrado no final da duodécima seção do lse Monogatari (século IX). Eis a seção: Há muito tempo, um homem roubou uma jovem de outro homem e levou‐a para Musashino. Lá, sendo considerado um ladrão, ele foi perseguido pelo governador da província. Então, escondeu a moça num matagal e fugiu. Disse um viajante: "Há um ladrão neste campo", e os perseguidores prepararam‐se para acender uma fogueira a fim de expulsá‐lo dali com a fumaça. Em sua angústia, a jovem gritou: "Não queimeis hoje os campos de Musashino. / Meu esposo e eu jazemos ocultos / na relva da primavera.” 11
Enquanto as nuvens brancas se juntam / As glórias da manhã logo se extinguem. Há algo que tenho meditado somente nos meus momentos de solidão e sobre o que devo aconselhar‐te. Sei que isso não passa de uma opinião minha, humilde e questionável, mas sinto que este é o momento correto; logo, devo escrever aquilo que vejo. Tu és um mestre de artes marciais sem igual no passado ou no presente, e por isso a tua dignidade nobiliárquica, as tuas rendas e a tua reputação resplandecem como o sol. Acordado ou dormindo, tu não deves jamais esquecer essa dádiva; e, a fim de retribuir este favor, o teu único pensamento deve ser o de cumprir com os teus deveres de lealdade, de dia e de noite. A lealdade total reside, em primeiro lugar, em corrigir a mente, disciplinar o corpo, não dividir nem por um fio os pensamentos acerca do teu senhor, e não alimentar ressentimento pelos outros nem culpá‐Ios. Não negligencies a tua faina diária. Em casa, sê filial; não permitas que nada de indecente ocorra entre esposo e esposa, sê correto nas formalidades, não te ligues a concubinas, aparta‐te do caminho da sensualidade, sê austero como pai e age de acordo com o Caminho. Ao empregar subordinados, não faças distinções calcadas no sentimento pessoal. Emprega homens que sejam bons e liga‐os a ti; reflete sobre as tuas deficiências, conduz com justiça o governo da tua província e afasta os homens maus. Dessa maneira, os bons serão dia a dia recompensados, e os demais serão naturalmente influenciados ao ver que seu senhor ama o bem. Assim, eles mesmos apartar‐se‐ão do mal e voltar‐se‐ão para o bem. Dessa maneira, senhor e servo, superior e inferior, serão homens de bem; e, quando os desejos pessoais se tornarem exíguos e o orgulho for abandonado, a província abundará em riqueza, os filhos terão a mesma mente que os pais e superiores e inferiores trabalharão juntos como mãos e pés de um só organismo. Então, a província por si mesma se tornará pacífica. É esse o princípio da lealdade. Esse soldado, tão absolutamente dedicado, provavelmente seria da tua predileção em qualquer situação, mesmo se tivesses o comando de centenas de milhares de homens. Quando o conjunto da mente da Kannon de Mil Braços está correta, cada um dos mil braços é útil; do mesmo modo, se o espírito da tua arte marcial estiver correto, a função de toda a tua mente será livre, e mil inimigos estarão sujeitos à tua espada. Isso não é, porventura, uma lealdade grandiosa? Ninguém fora de ti é capaz de discernir se a tua mente está correta ou não. O bem e o mal estão presentes em cada pensamento que surge. Aquele que pensa sobre os fundamentos do bem e do mal, e faz o bem e abstém‐se do mal, verá que sua mente se corrigirá por si mesma. Conhecer o mal mas não abster‐se dele é uma enfermidade dos desejos. Quer se trate de um amor da sensualidade, quer de uma condescendência com as próprias paixões, é sempre uma questão de a mente desejar algo. Então, mesmo que houvesse um homem bom ao teu lado, o seu bem não teria utilidade nenhuma se não cativasse o teu capricho. Encontrar agrado num homem ignorante, afeiçoar‐se a ele e designar‐lhe um cargo, sem ter em conta o homem bom que está próximo de ti, é o mesmo que não ter nenhum homem bom ao teu lado. Nesse caso, mesmo que um senhor empregasse milhares de homens, dificilmente haveria um que lhe servisse bem num momento de emergência. Quanto aos jovens ignorantes e maus que de início haviam se mostrado tão atraentes, eles jamais pensariam em sacrificar a própria vida quando confrontados com uma situação real, pois seus corações estavam na injustiça desde o início. Jamais ouvi falar de um homem que, não tendo a mente correta, tivesse sido de boa valia ao seu senhor. O fato de que tal coisa possa estar ocorrendo na tua escolha de aprendizes é motivo de grande vergonha. Eis algo que ninguém sabe: em decorrência de uma inclinação escusa, um homem pode ser arrastado pelos maus hábitos e por fim cair no mal. É possível que tu penses que ninguém conhece esses teus pecados; mas, uma vez que "nada é tão evidente quanto aquilo que mal se vê"19, se eles forem conhecidos da tua própria 19 A citação baseia‐se na Doutrina do Justo Meio (capítulo 1): "Nada é tão visível quanto aquilo que está oculto, nada é tão evidente quanto aquilo que mal se vê. Por isso, o cavalheiro é cuidadoso quando está sozinho." 12
mente, também o serão do céu, da terra, dos deuses e do povo. Nesse caso, não estará a província correndo grande perigo? Tu deves reconhecer esse fato como uma enorme deslealdade. Não importa, por exemplo, quão ardentemente professes lealdade ao teu senhor; se a tua família não estiver em harmonia e o povo do Vale de Yagyu te voltar as costas, nada do que fizeres terá a menor conseqüência. Diz‐se que a melhor maneira de conhecer os pontos bons e maus de um homem é conhecer os cortesãos e subordinados que ele ama e emprega, bem como os amigos com os quais ele tem uma convivência íntima. Se o senhor não estiver na retidão, nenhum de seus cortesãos e amigos estará. Nesse caso, ele será desdenhado por todos e as províncias circundantes o terão como objeto de desprezo. Mas, se o senhor e seus cortesãos forem bons, serão vistos com agrado por todos. Diz‐se que um homem bom é visto pelo povo como uma jóia rara. Tu deves fazer com que isso aconteça contigo. Se, num lugar onde fores reconhecido pelo povo, tu rapidamente evitares a injustiça, afastares os homens sem caráter e amares os sábios, o governo da província há de tornar‐se mais correto e tu serás o melhor de todos os cortesãos leais. E o mais importante, no que diz respeito ao comportamento do teu nobre filho: é uma inversão investir contra os maus atos do filho quando o pai, ele mesmo, está na injustiça. Se te dedicares primeiro a corrigir a tua conduta para só depois manifestares as tuas opiniões, ele há de corrigir‐se naturalmente, e não só; também o seu irmão mais novo, Mestre Naizen, há de aprender da sua conduta e corrigir‐se por sua vez. Assim, pai e filhos serão homens de bem. Seria esse um feliz desfecho. Diz‐se que os homens devem ser empregados ou despedidos de acordo com uma mente reta. Nesta época, em que és um cortesão dos mais estimados, é inconcebível que aceites subornos dos senhores provinciais ou que a retidão da mente seja esquecida por causa da avareza. Que aprecies o ranbu, que tenhas orgulho do teu talento para o Nô e que, pela exibição desse talento, procures ganhar ascendência sobre os senhores das províncias – tais coisas, sinceramente considero‐as como uma doença. Não deverias refletir sempre sobre o fato de que a recitação imperial é feita segundo a forma Sarugaku20, e que os senhores provinciais que mais se destacam pela cortesia são aqueles que mais são chamados a comparecer perante o xogum? Diz uma canção: É a própria mente Que leva a mente ao extravio; Da mente Jamais te descuides.
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Sarugaku (literalmente, "Música de macacos") é uma antiga forma teatral, precursora do Nô.
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O CLARO SOAR DAS JÓIAS
Reiroshu
Takuan Soho
Não há nada que nos seja mais querido que a vida. Um homem pode ser rico ou pobre; mas, se não tiver uma vida longa, não terá atingido seu verdadeiro propósito. Mesmo que tivesse de despender milhares em bens e riquezas, deveria fazê‐lo se com isso pudesse comprar a vida. Diz‐se que a vida vale muito pouco em comparação à retidão da mente1. Na verdade, a retidão da mente é o bem mais estimado. Nada é mais precioso que a vida. No entanto, no momento em que é preciso desfazer‐se desta vida tão amada para firmar‐se na retidão da mente, não há nada que seja tão estimado quanto essa retidão. Ao examinar o mundo com cuidado, constatamos que há muita gente que não se importa em perder a vida. Supõe tu, porém, que uma pessoa em mil morreria pela retidão da mente? Parece que, ao contrário de toda expectativa, na humilde casta dos servos há muitos que o fariam. Mas, entre aqueles que se consideram sábios, é difícil encontrar quem faça o mesmo. Num dia de primavera, enquanto eu meditava sobre essas coisas, uma pessoa se apresentou e disse algo como o que segue: "Embora a riqueza nos agrade o coração, a vida é a maior das riquezas. Quando se apresenta o momento da escolha, o homem se desfaz de toda a sua riqueza para manter intacta a própria vida. Mas quando pensamos que o mesmo homem não hesitaria em perder a vida tão querida pelo bem da retidão da mente, constatamos que o valor da retidão da mente é maior que o da própria vida. O desejo, a vida e a retidão da mente – entre esses três, não é a última a mais amada pelo homem?" Naquela época, respondi algo como o que segue: "Desejo, vida e retidão da mente – dizer que a retidão da mente é a mais amada das três é apenas natural. Mas dizer que todos os homens, sem exceção, amam a retidão da mente acima de tudo, é algo que não corresponde à verdade. Não há nenhum homem que ame o desejo e a vida e conserve a retidão da mente em seus pensamentos." Então uma outra pessoa disse: "A riqueza é um adorno da vida. Só a vida tem valor, pois, sem ela, a riqueza é inútil. Entretanto, diz‐se que há muitos que não se importam em perder a vida pelo bem da retidão da mente." Perguntei: "Qual o homem que não se importa em perder a vida por amor à retidão da mente?" Ele respondeu: "Há muitas pessoas neste mundo que não toleram um insulto e que, junto com seus inimigos, perdem a vida numa luta. Isso quer dizer que elas atribuem o primeiro lugar à retidão da mente e não se importam com a vida. Elas não morrem pela riqueza ou pela vida, mas pela retidão da mente. Aqueles que foram mortos no fragor da batalha, é impossível conhecer‐lhes o número. Todos eles morreram pela retidão da mente. Sabendo‐se disso, pode‐se dizer que todos os homens amam a retidão da mente acima do desejo e da vida." Eu disse: "Morrer por ter sido humilhado ou insultado assemelha‐se à retidão da mente, mas não é de modo algum. Morrer assim é esquecer‐se de si mesmo na cólera do momento. Não é, em absoluto, uma manifestação de retidão da mente. O nome mais apropriado para isso é ira, e nada mais. Antes de a pessoa ter sido insultada, ela já se havia apartado da retidão da mente, e é por isso que sofreu o insulto. Se a mente da pessoa é correta no relacionamento com os outros eles não a insultarão. Tendo sido insultada, a pessoa deve admitir que já havia perdido a retidão da mente antes da ofensa." A retidão da mente é questão de suma importância. Sua substância é idêntica ao Princípio do Céu, que dá vida a todas as coisas. Quando ela é adquirida pelo corpo humano, é chamada a natureza própria da pessoa. Seus outros nomes são virtude, o Caminho, 1
Retidão da mente foi o termo finalmente escolhido para traduzir o japonês gi, embora esteja longe de ser um equivalente exato. Entre as alternativas levadas em conta, justiça foi rejeitada porque, em última análise, o ocidental satisfeito com o próprio senso de justiça pode sentir‐se "justificado" em corrigir os outros. Probidade ("integridade irrepreensível") é muito mais próximo e não deve ser esquecido. A ênfase está em que a pessoa corrija primeiro a si mesma, através da reflexão, do treinamento e da disciplina. Isso não leva automaticamente ao proselitismo, e em geral não leva de maneira alguma. Na verdade, o Zen e a artes marciais estão repletos de relatos de pessoas que, querendo submeter‐se ao discipulado, impuseram‐se enormes sofrimentos e humilhações para se tornarem dignas de receber os ensinamentos do mestre.
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compaixão, probidade e decoro. Embora o nome mude de acordo com a situação, e embora as funções sejam diferentes, na substância trata‐se de uma só coisa. Quando ela é chamada de compaixão e a situação envolve o relacionamento humano, sua função é a benevolência. Quando ela é chamada de retidão da mente e a situação envolve a posição e a integridade social, sua função é eliminar os erros que toldam a clareza de discernimento. Mesmo ao morrer, se a pessoa não chegou ao princípio desse fato, ela não possui a retidão da mente, embora alguns pensem que, o simples fato de morrer, significa que a pessoa tinha essa qualidade. A retidão da mente é tida como a substância absolutamente pura que está no âmago da mente humana; e, quando usamos a retidão desse âmago da mente como um fio de prumo, tudo o que é feito manifesta a retidão da mente. Esquecer esse âmago e morrer pelo desejo não é uma morte que manifesta a retidão da mente. Quanto àquelas pessoas que supostamente teriam morrido pela retidão da mente, há sequer uma entre mil que verdadeiramente o faria? Supõe, então, que alguém se tenha posto a serviço de um daimio. A partir desse momento, de tudo o que ele possui – as vestes com que se cobre, a espada que leva na bainha, seus calçados, sua sela, seu cavalo e todas as suas armas –, não há nada que não seja devido à graça do seu senhor. A família, a mulher, os filhos e os servos – todos eles e todos os seus parentes – de nenhum deles se pode dizer que não recebeu o favor do senhor. Tendo esses favores bem nítidos na sua mente, o homem enfrenta os inimigos de seu senhor no campo de batalha e não se importa com sua vida. Isso é morrer pela retidão da mente. Ele não morre pela honra do seu nome. Não morre para adquirir fama, rendas ou terras. Receber um favor e retribuir um favor – a sinceridade do âmago da mente consiste somente nisso.2 Há um homem entre mil que morreria dessa maneira? Se houvesse um entre mil, haveria cem entre cem mil; e, para qualquer eventualidade, haveria cem mil homens disponíveis. Na verdade, seria extremamente difícil encontrar cem homens de mente reta. Sempre que o país sofreu distúrbios, em qualquer época, depois de cada batalha podia‐se contar de cinco a sete mil cadáveres. Entre eles havia homens que haviam enfrentado o inimigo e adquirido um bom nome. Outros haviam sido mortos sem que ninguém o percebesse. Aparentemente, todos esses homens morreram pela retidão da mente, mas muitos não o fizeram. Muitos morreram pelo nome e pelo lucro. O primeiro pensamento é o de fazer algo pela fama; o segundo é o de estabelecer um nome honrado; depois, o de receber terras e subir na vida. Há homens que realizam feitos notáveis, adquirem fama e sobem na vida. Há também aqueles que morrem na batalha. Entre os samurais mais velhos, há aqueles que gostariam de adquirir um nome na próxima batalha a fim de deixá‐lo para os seus descendentes na velhice; ou, se não morressem em batalha, gostariam de legar um nome e um feudo. Nenhum deles se importa com a própria vida, mas todos estão voltados para o nome e o lucro. Sua morte é uma morte temerária, nascida do desejo. Não se trata da retidão da mente. Aqueles que recebem uma boa palavra do seu senhor e dedicam‐lhe a vida também morrem de uma morte que manifesta a retidão da mente. Mas não há nenhum que ame a retidão da mente, embora seja ela o que há de mais precioso. Por isso, tanto aqueles que entregam a vida pelo desejo, quanto aqueles que se apegam à vida e se expõem à vergonha, se contam entre os que não se preocupam com a retidão da mente, quer morram, quer continuem vivos. Ch'eng Ying e Ch'u Chiu3 morreram juntos por amor à retidão da mente. Po I e Shu Ch'i4 eram homens que refletiam profundamente sobre a retidão, e lamentavam o fato de que um vassalo estivesse disposto a assassinar o próprio rei. No fim, ambos morreram de fome aos pés do monte Shouyang.
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Na morte, o princípio reside em saber por quê e de que modo morrer.
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Quando saímos em busca desses homens, constatamos que eles nunca foram numerosos, mesmo na antigüidade. Com tanto mais razão, neste mundo atual que se apartou do Caminho, é possível que não haja nenhum que, por amor à retidão da mente, se desfaça com facilidade do desejo e da vida. Em geral, as pessoas perdem a vida por amor ao desejo, ou senão apegam‐se à vida e cobrem‐se de vergonha. Nenhuma delas tem a menor idéia do que seja a retidão da mente. Todos os homens vestem a máscara da retidão da mente, mas nenhum deles realmente pensa nela. Devido a essa loucura, quando um desagrado se abate sobre um homem, ele é incapaz de suportá‐lo e se põe a injuriar aquele que lhe causou o desagrado. Este, por sua vez, se sente humilhado e, em retaliação, dispõe‐se a perder a vida. Tal homem não só é desprovido de retidão mental, como também exala o mau cheiro do desejo. Pensar que eu possa causar desagrado a um homem e não receber de volta palavras duras – isso não passa da manifestação de um desejo. Eis um exemplo da mesma paixão: um homem dá uma pedra a alguém e, se a pessoa lhe devolve ouro, fica amigo dessa pessoa; mas se a pessoa lhe devolve outra pedra, ele corta‐lhe a cabeça. Quando um homem canta louvores a outro, é provável que receba louvores em troca. Mas supõe que um homem injurie o outro; se, quando a injúria lhe é retribuída, ele corta a cabeça do outro e morre por sua vez; isso não passa de desejo. É o oposto da retidão da mente e o auge da estupidez. Além disso, todos os samurais estão sujeitos a um senhor; desperdiçar a vida que deveria ser dada por amor ao senhor, morrer por causa de uma simples discussão, equivale a não conhecer a diferença entre o certo e o errado. Equivale, acima de tudo, a não conhecer a significado da retidão da mente. Aquilo que se chama desejo não consiste simplesmente em se apegar à riqueza ou pensar somente no gosto que se tem pela prata e pelo ouro. Quando o olho vê as cores, isso é desejo. Quando o ouvido ouve os sons, isso é desejo. Quando o olfato sente os perfumes, isso é desejo. Quando um único pensamento germina, isso é o que se chama desejo. Esse corpo foi solidificado e produzido pelo desejo, e faz parte da natureza das coisas que todos os homens o sintam [o desejo] intensamente. Embora exista uma natureza sem desejos confinada no interior desse corpo produzido e consolidado pelo desejo, essa natureza está sempre oculta pela temporariedade, e sua virtude é difícil de cultivar. Não é fácil proteger essa natureza. Como ela reage às Dez Mil Coisas do mundo exterior, ela é atraída de novo pelos Seis Desejos5 e submerge neles. Esse corpo é composto dos Cinco Atributos: 1. 2. 3. 4. 5.
Matéria; Sensações; Percepções; Formações mentais; Consciência [mente].
1. Matéria é o corpo carnal. 2. Sensações são os sentimentos que o corpo carnal tem do bem e do mal, do certo e do errado, do sofrimento e da alegria, da dor e do prazer. 3. Percepções são as predileções: odiar o mal, desejar o bem, fugir do
3 Ch'eng Ying e Ch'u Chiu: dois servos da Casa de Chao Shu durante o Período da Primavera e do Outono (770‐403 a.C.), sabendo que um mau ministro estava planejando massacrar toda a família Chao, [então] Ch'eng Ying e Ch'u Chiu conceberam um plano: Ch'u Chiu e seu filho, que era muito parecido com o herdeiro dos Chao, simulariam uma fuga e seriam mortos; enquanto isso, Ch'eng Ying fugiria para as montanhas com o verdadeiro herdeiro. O plano deu certo, e muito tempo depois o herdeiro conseguiu liquidar o mau ministro e dar continuidade à Casa de Chao. Então, Ch'eng Ying recitou todo o incidente perante o túmulo de Ch'u Chiu e cometeu suicídio. 4
Po I e Shu Ch'i: dois irmãos que viveram nos últimos dias da Dinastia Yin (1.766‐1.122 a.C.). Quando o Rei Wu dos Chou planejava assassinar o último imperador Yin, os irmãos admoestaram‐no, dizendo ser descabido para um vassalo assassinar o próprio rei. O conselho foi ignorado, e o Rei Wu terminou por fundar a Dinastia Chou. Os irmãos, sentindo‐ se envergonhados por comer a cevada dos Chou, fugiram para o Monte Shouyang, onde se alimentavam somente de samambaias. Por fim, morreram de fome. 5
Os Seis Desejos: os desejos provocados pelos seis sentidos visão, audição, olfato, paladar, tato e consciência [mente]; ou as seis atrações sensuais que decorrem da cor, da forma, do porte, da voz, da pele macia e dos traços bonitos.
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sofrimento, esperar pela alegria, evitar a dor e desejar o prazer. 4. As formações mentais operam o corpo a partir das sensações e percepções. São, por exemplo, odiar a dor e, portanto buscar o prazer, ou odiar o mal e, portanto fazer coisas que sejam boas para a pessoa. 5. Consciência é distinguir o bem do mal, o certo do errado, a dor do prazer e a alegria do sofrimento nas sensações, percepções e formações mentais. Através da consciência [discernimento], o mal é reconhecido como mal, o bem como bem, a dor como dor e o prazer como prazer. Uma vez que a consciência discrimina e forma preconceitos, ela abomina o feio e aproxima‐se do belo; e o corpo carnal se move de acordo com os apegos da consciência. Porque existe o corpo carnal, existe o atributo da sensação. Porque existe o atributo da sensação, existe o atributo da percepção. Porque o atributo da percepção existe, ele põe em ação o atributo das formações mentais. Porque o atributo das formações mentais é posto em ação, existe o atributo da consciência. Por causa do atributo da consciência, nós diferenciamos o bem do mal, o certo do errado, o feio do belo; surgem pensamentos de apego e rejeição e, na medida em que surgem esses pensamentos, nasce o corpo carnal. Este é como o Sol ou a Lua refletindo‐se numa poça d'água. Buda explicou que "a manifestação da forma em reação ao mundo material é como a Lua em meio à água".6 Matéria, sensação, percepção, formação mental – e consciência [discernimento] – depois, da consciência de volta à matéria: quando essas coisas se condensam muitas vezes, a ligação dos Cinco Atributos7 de acordo com o fluxo dos Doze Elos da Cadeia da Existência8 – uma vez recebido esse corpo – começa com um único pensamento da consciência. A consciência, portanto, é desejo. Esse desejo, essa consciência, dá origem a esse corpo dos Cinco Atributos. O corpo inteiro é empedernido pelo desejo; por isso, um único cabelo arrancado da cabeça faz surgir pensamentos de desejo. Quando tu és tocado pela ponta de um dedo, surgem pensamentos de desejo. Mesmo quando és tocado pela ponta de uma unha do pé, surgem pensamentos de desejo. O corpo inteiro é solidificado pelo desejo. Dentro desse corpo consolidado pelo desejo oculta‐se o âmago da mente, que é absolutamente vertical e sem desejos. Essa mente não está no corpo dos Cinco Atributos, não tem cor nem forma e não é desejo. É inabalavelmente correta, é absolutamente pura. Quando é usada como um fio de prumo, tudo que é feito é feito com retidão da mente. Essa realidade absolutamente reta é a substância da retidão da mente. Retidão da mente é um nome que temporariamente se acrescenta quando ela se manifesta nos assuntos externos. Também é chamada Compaixão. Sua função é a benevolência. Quando indicamos sua substância, dizemos "compaixão"; benevolência é uma designação temporária que lhe damos. Compaixão, retidão da mente, decoro, sabedoria – a substância é a mesma, mas os nomes diferem. Essas coisas devem ser compreendidas com o âmago da mente. É por isso que se diz que o Caminho de Confúcio é o Caminho da Sinceridade e da Simpatia. Sinceridade é o mesmo que "âmago da mente". Simpatia é o mesmo que "compatibilidade de mentes" ou "unicidade". Quando se atingem o âmago da mente e a compatibilidade de mentes, entre dez mil assuntos nenhum será mal resolvido. Nós podemos dizer essas coisas; mas, se um homem não foi Iluminado, podes explicá‐las por cem dias e ele pode ouvir por cem dias, mas é pouco provável que ele entre no Caminho.
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Do Sutra da Luz Dourada: "O Corpo Absoluto do Buda é semelhante ao Vazio. A manifestação da forma em reação ao mundo material é como a Lua no meio da água."
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1. Matéria; 2. Sensação; 3. Percepção; 4. Formações mentais; e 5. Consciência ou Discernimento
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Os Doze Elos da Cadeia da Existência: ignorância, ação volitiva, consciência, nome e forma, os seis sentidos, contato, sensação, desejo, apego, existência individual, nascimento, velhice e morte. Começando com a ignorância, cada um deles causa o elo seguinte na cadeia; assim, se a ignorância for eliminada, velhice e morte não ocorrerão. Essa cadeia também é chamada Cadeia da Originação Interdependente.
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Se, ao falar assim, houver quem negue o que dizemos, o melhor será examinar os pensamentos mais recônditos e as ações daqueles que ensinam e aprendem os Clássicos Confucianos. Não que o mesmo não ocorra com aqueles que ensinam e aprendem as escrituras budistas. Não estamos fazendo uma crítica ao Confucionismo. A pessoa pode ser eloqüente como uma torrente volumosa; mas, se sua mente não tiver sido Iluminada e ela não tiver visto a sua verdadeira natureza, não se pode confiar nela. É fácil discernir isso a partir do comportamento da pessoa. Certa pessoa expressou suas dúvidas, dizendo: "Se até mesmo os atos de ver e ouvir são desejo, se até mesmo o surgir de um único pensamento é desejo, como é possível chegar à retidão da mente? A concentração de um único pensamento é semelhante a uma rocha ou uma árvore. Sendo semelhante a uma rocha ou uma árvore, é improvável que a pessoa aja com retidão da mente por amor ao seu senhor. É difícil conseguir isso sem criar em si uma firme força de vontade." Eu disse: "Essa dúvida tem sua razão de ser. Sem pensamentos na mente, a pessoa não vai correr nem para a esquerda nem para a direita; não vai subir nem descer; vai caminhar em linha reta. Surgindo um único pensamento, a pessoa vai correr para a esquerda ou para a direita, vai subir ou descer, e por fim chegará ao lugar do seu desejo. É por isso que o pensamento se chama desejo. A virtude da retidão inabalável é uma virtude oculta. Sem pôr em ação o desejo, a pessoa não chegará nem ao bem nem ao mal. Supõe que tens a intenção de resgatar um homem que caiu num abismo; se não tiveres as mãos, não serás capaz de fazê‐lo. Supõe, por outro lado, que alguém tenha a intenção de empurrar um outro num abismo; se não tiver as mãos, não será capaz de fazê‐lo. Concluindo: quer se trate do sucesso ou do fracasso, no mesmo momento em que surgem mãos que causam o sucesso ou o fracasso, a natureza das coisas fica em segundo plano. A pessoa faz uso da força do desejo para fracassar ou obter sucesso; e, mesmo quando considera a mente inabalavelmente correta como seu fio de prumo e age de acordo com ela, sucesso e fracasso ainda dependem daquela força. Mas quando a pessoa não se afasta desse fio de prumo, já não se fala em desejo. Fala‐se em retidão da mente. A retidão da mente não é outra coisa senão a virtude. Considera o âmago da mente como uma carroça que leva em si a força de Vontade. Se a empurrares para um lugar onde pode haver fracasso, haverá fracasso. Se a empurrares para um lugar onde pode haver sucesso, haverá sucesso. Mas se a pessoa se entregar à retidão dessa carroça, que é o âmago da mente, ela chegará à retidão da mente quer haja sucesso, quer fracasso. Aquele que se separa do desejo e torna‐se semelhante a uma rocha ou uma árvore jamais realizará coisa alguma. Não se afastar do desejo, mas realizar uma retidão mental sem desejos – esse é o Caminho." Dentre os deuses, há os famosos e os desconhecidos. Sumiyoshi, Tamatsushima, Kitano e Hirano são todos deuses famosos. Quando falamos dos deuses pura e simplesmente, referimo‐nos àqueles cujos nomes não conhecemos. Quando falamos de adorar e venerar os deuses, não fazemos distinção entre os nomes de Sumiyoshi, Tamatsushima, Hirano e Kitano. Adoramos e veneramos os deuses, quem quer que sejam. Quando o deus de Kitano é adorado, o deus de Hirano é esquecido. Quando o deus de Hirano é venerado, Kitano é relegado. Limitando um deus a um local, os outros deuses são descartados como se não tivessem valor. Venera‐se exclusivamente esse deus específico, ou adora‐se um e despreza‐se o outro. Ao falar dos deuses, não devemos limitá‐los – um deus a um local. Isso é contrário ao estabelecimento do Caminho dos Deuses. Esse Caminho é estabelecido quando adoramos os deuses em qualquer lugar, e qualquer que seja o deus que temos à nossa frente. Vamos considerar essa mesma questão no que diz respeito ao Caminho do Senhor e do Criado. Senhor significa o imperador, e criado significa os criados do imperador. Não se costuma usar as palavras senhor e criado para designar pessoas que estejam abaixo daquelas na hierarquia, mas no momento vamos usá‐las desse modo.
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Dentre os senhores, há aqueles que são famosos e aqueles cujos nomes são desconhecidos. Também entre os criados há aqueles que são famosos e aqueles que não são. Falando‐se de um senhor famoso, costuma‐se dizer algo como "Nosso senhor é Matsui Dewa", ou "Meu senhor é Yamamoto Tajima". Falando‐se de senhores desconhecidos, fala‐se simplesmente "o senhor", sem mencionar‐lhe o nome. Para o criado, o Caminho do Senhor é estabelecido quando ele pensa simplesmente: "o senhor." E para o senhor, o Caminho do Criado é estabelecido quando ele pensa simplesmente: "o criado." No passado, dizia‐se que "o criado sábio não serve a dois senhores". Isso significa que, nessa época, não se pensava que um criado pudesse obedecer a dois mestres. Com a decadência do mundo, os criados agora se colocam a serviço deste e daquele senhor; no fim, com toda a fanfarronice que fazem de seus próprios méritos, vão‐se assemelhando cada vez mais a mercenários errantes. Essa é a época em que vivemos. Um senhor, alegando não estar satisfeito com este ou aquele homem, expulsa‐o de sua casa e cobre‐o de vergonha. Também isso traz desordem ao Caminho do Senhor e do Criado, do Mestre e do Servo. Mesmo que um criado sirva a várias famílias, deve pensar em cada mestre como sendo o único. Isso significa que o senhor será um senhor desconhecido, pois, se ele for desconhecido, o Caminho do Senhor se estabelecerá. Mesmo que ele sirva a uma família depois da outra, deve pensar nesse senhor como "o senhor" e naquele senhor como "o senhor". Dessa maneira, pensará no senhor com grande devoção; e, mesmo que a família mude, sua mente não mudará. Com isso, o senhor será único e sempre o mesmo, do começo ao fim. Supõe que um homem esteja recebendo rendas e terras e esteja subindo na vida; se ele pensar: "Meu senhor é Matsui Dewa, mas na verdade ele é um palerma...”, não estará pensando "o senhor" de maneira nenhuma. Depois, quando ele se empregar na casa do Senhor Yamamoto Tajima, a mesma mente o acompanhará. Onde quer que vá, ele jamais compreenderá o significado da palavra senhor, e dificilmente prosperará. Por isso, é melhor não procurar saber quem é este ou aquele senhor, mas pensar simplesmente que ele é "o senhor" e dirigir a ele a retidão da mente, sem mencionar‐lhe o nome. Se o criado fizer isso – e se servir a seu senhor com a firme decisão de nunca se opor a ele e de nem sequer pisar‐lhe a sombra durante todo o tempo que estiver sob seu senhorio, quer seja um mês, um ano ou mesmo dez anos –, embora sirva em muitas famílias, o senhor será sempre o mesmo. Mesmo que haja muita rotatividade de criados, o senhor, por sua vez, não deve interferir no Caminho do Criado. Deve ter o amor e a compaixão profundamente arraigados no coração, não deve fazer distinção entre criados novos e velhos e deve agir com grande benevolência para com todos. Dessa maneira, nem os criados terão nomes, nem o senhor terá nome; e o Caminho do Senhor e do Criado, do Mestre e do Servo, se estabelecerá. Não deve haver distinção entre o criado novo que começou a servir hoje e o antigo que já está no cargo há dez ou vinte anos. Todos devem ser tratados com amor e compaixão, e cada um deve ser visto como o "meu criado". É provável que os salários e honrarias sejam consideravelmente diferentes segundo o caso, mas não deve haver distinção no que se refere à compaixão e ao amor. Mesmo que um criado tenha sido empregado hoje, o significado do pensamento "o senhor" não será encontrado no pensamento "o senhor atual". Não é esse o Caminho do Senhor e do Criado? Disse Li Po9: “O céu e a Terra são a estalagem na estrada das Dez Mil Coisas. O tempo fugidio é o viajante de cem gerações. Esta vida mutável é como um sonho. Quanto tempo durará nossa felicidade? Os antigos acendiam lâmpadas e se divertiam à noite. Na verdade, isso tinha uma razão de ser.” Coisas não são apenas os objetos inanimados; diz‐se que o homem é uma coisa. O espaço entre o céu e a Terra é a estalagem onde descansam das andanças os homens e as coisas. A passagem do tempo é como a perpétua passagem do viajante; e a passagem gradual de primavera, verão, outono e inverno não mudou por cem gerações. 9
Li Po (Li T'ai Po, 701‐62) foi um dos grandes poetas chineses do período T'ang. Esse parágrafo é a introdução ao seu poema "Banquete no Jardim dos Pêssegos numa Noite de Primavera", e esta frase é de Chuang Tzu: "Esta vida é como um sonho; esta morte é como uma correnteza."
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O corpo é como um sonho. Quando percebemos esse fato e acordamos, não sobra sequer um vestígio. Quanto tempo ainda temos para procurar? Não era sem razão que os antigos passavam a noite em claro, acendendo as lâmpadas e divertindo‐se nas horas de escuridão. Neste ponto, pode‐se cair em erro. Deve haver critérios para a diversão; se houver, ela não fará mal. A pessoa que não tem critérios enlouquece. Se a pessoa, ao se divertir, não cai em erro, ela não transgride esses critérios. O que chamamos de critérios são, em geral, limites fixos para todas as coisas. Como os nós do bambu, a maior parte das diversões devem ter limites. Não é bom transgredi‐Ios. A nobreza cortesã tem as diversões da corte, a casta dos samurais tem as diversões dos samurais e os sacerdotes têm as diversões dos sacerdotes. Cada um deve ter a diversão que lhe cabe. Pode‐se dizer que o envolvimento em diversões que não concordam com a posição social é um erro de critério. A nobreza cortesã tem a poesia japonesa e chinesa e os instrumentos de sopro e de cordas. Com essas coisas, não haverá nada de errado em que eles passem a noite em claro. É razoável que também a casta dos samurais e os sacerdotes tenham as diversões que lhes são apropriadas. A rigor, não deveria haver diversões para os sacerdotes. Diz‐se, porém, que "em público, nem uma agulha passa; mas, em particular, passam uma carruagem e seu cavalo". Isso significa que, compreendendo a mente do ser humano e reconhecendo que o mundo degenerou, devemos deixar que também eles tenham as suas diversões. Deve‐se, permitir que, reunindo‐se na quietude noturna, eles componham poesia chinesa e japonesa, e até mesmo versos ligados. Num outro nível, não é descabido que eles inclinem o coração para a Lua e as flores de cerejeira e, acompanhados por jovens de quatorze ou quinze anos, dirijam‐se para um lugar de onde se possa ver a Lua sobre as flores; e, lá, partilhem com eles algumas taças de saquê. Não é de mau gosto que tenham também um pequeno tinteiro e papel para escrever. Mas nem essas coisas são consideradas apropriadas para um sacerdote que aspira ao espírito religioso. Que dizer, então, de outras versões menos requintadas? Não seria motivo de surpresa se a nobreza e os samurais, percebendo que este mundo mutável não passa de um sonho, acendessem as lâmpadas e passassem as noites em diversões. Há aqueles que dizem: "Tudo é um sonho! Só nos resta a diversão!" Essas pessoas levam a mente além dos limites, afundam‐se nos prazeres e vão até os extremos da luxúria. Embora citem as palavras dos antigos, a mente delas está tão longe da mente dos antigos quanto a cinza está longe da neve. Quando Ippen Shonin10 encontrou Hotto Kokushi11, fundador do Kokokuji da vila Yura, na província de Kii, lhe disse: "Fiz um poema." Disse Kokushi: "Vamos ouvi‐Io." Shonin recitou: Quando eu canto, Buda e o eu Deixam de existir. Só existe a voz que diz Namu Amida Butsu12. Disse Kokushi: "Há algo de errado com os dois últimos versos, não achas?" Então Shonin se retirou para Kumano e meditou por 21 dias. Quando passou de novo por Yura, disse: "Eis como o escrevi": 10 Ippen Shonin (1.239‐89): fundador da escola Jodô do Budismo Terra Pura. 11 Hotto Kokushi (1.207‐98) foi um monge da escola Rinzai que viajou para a China dos Sung em 1.249. 12 Namu Amido Butsu, "Louvor ao Buda Amitabha", é a fórmula litúrgica e meditativa utilizada, em particular, pelos budistas da escola Terra Pura. 7
Quando eu canto, Buda e o eu Deixam de existir. Namu Amida Butsu, Namu Amida Butsu. Kokushi manifestou sua aprovação com entusiasmo e disse: "Aí está! Conseguiste!" Isso foi registrado nas notas de Kogaku Osho13. Devemos sempre reexaminá‐lo. Falarei agora das Dez Qualidades Essenciais14. São elas: 1. Forma, 2. Natureza, 3. Incorporação, 4. Poder, 5. Função, 6. Causa Latente, 7. Causa Externa, 8. Efeito Latente, 9. Efeito Manifesto e a 10. Total Inseparabilidade entre elas. Os Dez Mundos15 são: 1. o Inferno, 2. a Fome, 3. a Animalidade, 4. a Ira, 5. a Humanidade, 6. o Céu, 7. o Conhecimento, 8. a Realização, 9. o Grau de Bodhisattva e 10. o Grau de Buda. As Dez Qualidades Essenciais são semelhantes a eles. Em geral, desde os mundos do Inferno, da Fome, da Animalidade, da Ira, da Humanidade e do Céu, até os do Conhecimento, da Realização, do Grau de Bodhisattva e do Grau de Buda16, todos têm as Dez Qualidades Essenciais. Em regra, nada daquilo que nasce pode ser desprovido de forma; por isso, falamos da Qualidade Essencial da Forma. Embora a Forma possa mudar de múltiplas maneiras, enquanto Forma ela é a mesma. Quando a forma muda, até o som do seu cantar muda: o cuco canta a canção do cuco, e o rouxinol, a do rouxinol. Será que cada um destes, para expressar a própria forma, muda sua figura até afetar a canção que canta? É certo que os cucos da montanha e os rouxinóis do vale recitam suas próprias canções. Mas isso não significa que até o som mude quando a forma muda. A canção é algo que torna o seu contexto mais requintado; o contexto das palavras é algo que combinamos com a retidão da mente para, a partir daí, poder conhecê‐lo. Tudo o que tem Forma também tem uma Natureza. Embora a Natureza de Buda seja sempre a mesma, a Forma se insere em tudo quanto a recebe, e, por isso, muda. Todos os seres senescentes [que envelhecem] possuem a Natureza de Buda, e o mesmo se pode dizer até daqueles que estão no Inferno e nos Mundos da Fome e da Animalidade. Isso é sempre explicado desse modo, até mesmo nos sutras. Supõe que vários espelhos sejam colocados em volta de um pedestal e uma lâmpada seja colocada no centro; a lâmpada será refletida em cada um dos espelhos. A lâmpada é uma só, mas sua imagem aparece em cada um dos espelhos. Isso ilustra o fato de que a Natureza de Buda é urna só, mas é recebida por todos os seres senescentes dos Dez Mundos, até pelos famintos, e pelos animais. Esse é o exemplo do espelho e da lâmpada mencionado no Sutra da Guirlanda de Flores.
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Kogaku Osho (1.465‐1.548): monge Rinzai que ensinou o Zen para o Imperador Go‐Nara.
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De acordo com o Sutra do Lótus, o termo Dez Qualidades Essenciais pode ser traduzido também como "assim" ou "tal", ou seja, a "qüididade" ou "esseidade" de uma coisa.
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Os Dez Mundos também podem ser compreendidos como estados ou aspectos imutáveis que são comuns à toda vida. Alguns têm designações alternativas, como segue: Fome: Espírito Faminto (sânscrito Preta). Esses espíritos se encontram em diversos graus de sofrimento e tormento. Ira: Demônio (sânscrito Asura). Seres inferiores que, na mitologia hindu, guerreavam constantemente contra o deus Indra. Céu: Reino dos Devas [Nirvana]. Lugar onde os seres que adquiriram méritos gozam dos frutos do bom karma, mas não fazem progresso rumo à Iluminação dos bodhisattvas. (Homem de) Conhecimento: Aquele que Ouve (sânscrito Sravaka). Originalmente, um discípulo que havia ouvido em pessoa o ensinamento do Buda; por extensão, no Hinayana, qualquer discípulo do Buda. (Homem da) Realização: sânscrito Pratyeka‐Buddha. Pessoa que vive separada das outras e atinge por si só o conhecimento da Cadeia da Originação Interdependente (ver Nota 7, acima). Ela se contrapõe ao bodhisattva, que opta por permanecer no ciclo das transmigrações para ajudar os demais, assim como ele mesmo, a atingir a Iluminação. Como um Sravaka, um bodhisattva pode ser monge ou leigo. 16
Os seis primeiros permanecem no mundo da ilusão; os quatro últimos detêm algum grau de iluminação.
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Incorporação é a Incorporação da Lei. Todas as Dez Mil Coisas possuem Incorporação e Função. A Forma nasce da Incorporação; depois, tendo percorrido todo o seu ciclo, ela perece. A Incorporação em si mesma nunca se exaure. Digamos que a neve e o gelo sejam a Função, e que a água seja a Incorporação. Quando a água se solidifica, ela vira gelo; mas depois ela derrete e se torna a água original. Considera a água corno figura da Incorporação. Este é um exemplo da manifestação da Incorporação quando as dez mil Formas nascem da Incorporação da Lei e depois perecem. O homem comum é incapaz de ver além da Forma, é incapaz de ver a Incorporação. Quando algo se produz, ele diz que esse algo se manifestou. Do ponto de vista da Iluminação, dizemos que esse algo se manifesta quando ele volta à Incorporação e já não pode ser visto. A neve nos altos picos, o gelo nos vales entre as montanhas, derretem e geram o som nas colinas baixas: A água da primavera. Isso é dito da Incorporação. Se uma coisa tem Forma, Natureza e Incorporação, é necessário que tenha também o Poder. Poder é a força de atuar com eficácia; é a força que subjaz à realização de todos os fenômenos. Em todas as coisas, aquilo que permite a realização do efeito é o Poder. A constância do pinheiro, sempre verde em meio às folhas luxuriantes da montanha no verão, sempre foi tema de muitas canções. Isso é assim porque ele nunca muda de cor, seja na geada, seja nas chuvas do fim do outono. Permanece constante até mesmo durante o período mais frio do ano, e por isso é cantado e decantado como a Qualidade Essencial do Poder. Devido à existência do Poder, a Função permite a execução de todas as coisas. Aquele que não mitiga seus esforços, aprendendo um ideograma hoje e outro amanhã, pode realizar qualquer coisa. O significado da Função pode ser compreendido pelo ditado: "A jornada de mil milhas começa com um único passo." Dadas a Forma, a Natureza, a Incorporação, o Poder e a Função, tudo o que se quiser fazer pode ser feito. Essa é a Causa Latente. Se algo não é feito, isso ocorre em prejuízo da própria pessoa; e não existe nada que não possa ser feito. Sem a Causa Latente e a Causa Exterior, é praticamente impossível chegar ao Grau de Buda17. O ideograma chinês que designa a Causa Latente também significa "dependência". Isso quer dizer que, "dependendo" de uma certa coisa, várias outras coisas podem ser obtidas. O ato de plantar a semente na primavera é tido como uma representação da Causa Latente. Mas, embora ela tenha sido bem plantada, nada há de crescer sem o concurso da chuva e do orvalho. A ajuda da chuva e do orvalho é uma representação da Causa Exterior. Dependendo da ajuda da chuva e do orvalho, a planta crescerá e dará frutos no outono. Este é o Efeito Latente. Quando o coração está pleno E não se limita a descansar, Minhas esperanças se voltam Para o milésimo corte De um ramo de madressilva.18
17
Grau de Buda, lit. o "efeito" (fruto) do Buda. Além de homófonos, os ideogramas ka (efeito) e ka (fruto) assemelham‐ se um ao outro, de modo que, nas páginas seguintes, o autor faz vários trocadilhos intraduzíveis.
18
No nordeste do Japão, havia antigamente o costume de pendurar um ramo de madressilva na entrada da casa da moça com quem se pretendia casar. Se ela concordasse em encontrar o pretendente, levava o ramo para dentro de casa. Se não, o pretendente ia pendurando ramo após ramo até que, dizia‐se, pendurasse mil ramos.
9
O significado disso é que o ato de pendurar um ramo de madressilva é a Causa Latente do casamento. Depois, a intermediação é a Causa Exterior; e, por fim, o fato de o homem e a mulher se casarem e terem filhos é um exemplo de Efeito Latente. Supõe, do mesmo modo, que alguém queira tornar‐se um Buda. Se ele não agir em primeiro lugar de acordo com a Causa Latente [agir], jamais atingirá o Grau de Buda. Fazei da disciplina a Causa Latente, e no fim obterás o efeito. A palavra efeito tem o sentido de "fruto". Dependendo do ato de plantar a Causa Latente na primavera, obtém‐se o fruto no outono. Isso é uma representação do Grau de Buda. A Causa Exterior fica evidente nas notas acima. O navio, a velas soltas, Dobrou, sem dúvida, O Cabo de Wada, Impelido como é Pelos ventos da montanha de Muko. O navio é a Causa Latente. O vento é a Causa Exterior. Chegar à outra margem é o Efeito Latente. Sem o navio, é impossível chegar à outra margem. E, mesmo que exista o navio, não pode faltar a Causa Exterior: o vento. É isso que se diz ser a harmonia entre Causa Latente e Causa Externa. Os ventos da montanha de Muko devem ser considerados como a Causa Exterior. É impossível tornar‐se um Buda sem a Causa Latente, que é a disciplina. Porque as plantei, Vejo‐as amadurecer Na ponta dos remos, Que estão pesados Com as peras da Baía de Iki. Esse é o Efeito Latente. Chegar ao Grau de Buda é como plantar pereiras e vê‐Ias crescer. Na Baía de Iki Em ramos pesados Como peras que amadurecem, como peras que não amadurecem; Elas não são fiéis Até mesmo no sono? Esse é o poema original. A Baía de Iki situa‐se em Ise. Efeito Manifesto Espera e verás! Quando tu, que tratas os outros Com crueldade, tentares amar, Certamente saberás (Como eu me sinto.) Esse poema de amor significa: "Muito embora me trates com tanta crueldade, certamente não poderás deixar de amar. Talvez um dia venhas a saber o que é o amor. Então, receberás aquilo que mereces." Se fizeres o bem nesta vida, receberás em recompensa o bem na próxima vida. Se fizeres o mal, receberás o mal. Esse é o Efeito Manifesto. Se a Causa Latente for boa, o Efeito Latente será bom. Se a Causa Latente for má, o Efeito Latente será mau. É como o eco que responde a uma voz, ou a sombra que acompanha uma forma. É natural que uma pessoa se discipline com a Causa Latente nesta vida e obtenha a recompensa na próxima. Mas também existem ocasiões em que uma Causa Latente no presente é acompanhada por um Efeito Manifesto no presente, uma Causa Latente do passado é seguida por um Efeito Manifesto no presente ou 10
uma Causa Latente no presente é seguida por um Efeito Manifesto no futuro. Isso passa de um mundo a outro, manifestando‐se mais cedo ou mais tarde, e não pode ser evitado. Também pode haver uma simultaneidade de Causa Latente e Efeito. Podemos tomar como exemplo a flor, como Causa Latente, e o fruto, como Efeito Manifesto. No pé de melão, a flor e o fruto crescem ao mesmo tempo. No pé de arroz, o fruto – ou melhor, o grão – cresce e a flor se abre sobre ele. Essas coisas podem ser tomadas como exemplos. Inseparabilidade Total: desde a Qualidade Essencial da Forma até a Qualidade Essencial do Efeito Manifesto, não há solução de continuidade do Princípio ao Fim. Elas se sucedem em ciclos da Raiz até o Ramo e são chamadas de Dez Pontos. O Limite Extremo é chegar ao que há de mais supremo. E isso, como é evidente, são os Dez Mundos. Todas as coisas vivas – até mesmo os pequenos vermes – possuem as Dez Qualidades Essenciais. Nem os seres inanimados estão isentos disso. Tomemos como exemplo os frutos da castanheira e do caquizeiro. Dizer que eles não têm dor nem sofrimento é um juízo feito do ponto de vista humano. Na verdade, tanto a dor quanto a tristeza se estampam naturalmente neles. A aparência de dor nas ervas e árvores não difere da expressão de sofrimento nos seres humanos. Quando elas são regadas e bem cuidadas, elas crescem e parecem felizes. Quando são cortadas e caem, a decomposição de suas folhas é semelhante à morte de um ser humano. A dor e o sofrimento delas não são conhecidos dos seres humanos. E, quando as ervas e árvores olham para a tristeza dos seres humanos, é como quando os seres humanos olham para eles: é provável que elas também pensem que nós não temos dor nem sofrimento. Simplesmente, parece que nós não conhecemos a vida das ervas e árvores, e elas não conhecem a nossa. Isso está escrito nos livros dos confucianos. Quando há cercas ou muros ao norte das plantas que estão crescendo, essas plantas se inclinam para o sul. Vendo isso, fica claro que as plantas sabem o que lhes é prejudicial, embora não tenham olhos. Dormindo à noite e abrindo‐se de dia, o lírio é outro exemplo útil. Entretanto, essa natureza não está presente apenas no lírio, mas em todas as ervas e árvores. É por não prestarmos atenção que passamos a vida no desconhecimento. Aqueles que conhecem tudo sobre as ervas e árvores são sábios. Só não compreendemos essas coisas por culpa da nossa mente tosca e endurecida. É muito difícil saber se uma coisa é senciente ou insenciente. Provavelmente, não há nada na existência que não tenha sensitividade. Quando dizemos que alguma coisa não tem sensitividade, não é porque ela simplesmente não é parecida com as coisas que evidentemente a têm? Dizem que, quando uma galinha está com frio, ela vai para o alto das árvores; e que, quando um pato está com frio, ele entra na água para nadar. Essa idéia não é semelhante a pensar que, porque o pato vai nadar quando está com frio, ele não tem a sensação de frio? Ou que a galinha, porque voa para o alto das árvores quando está com frio, também não tem a sensação de frio? A água é fria, e diz‐se que essa é a sua natureza. O fogo é quente, e diz‐se que essa é a sua natureza. Do ponto de vista do fogo, a água não tem natureza; do ponto de vista da água, o fogo não tem natureza. Embora a coisa possa ser encarada dessa maneira, na verdade cada um deles tem a sua própria natureza. Não existe nada que não tenha a sua natureza. Observando atentamente os fenômenos, vemos que não existe nada entre o céu e a terra que seja de fato diferente do restante. Se enxergamos diferença, isso é porque nossa visão é estreita. Supõe que eu não consiga ver o monte Fuji por ele estar encoberto, na minha linha de visão, por uma árvore frondosa. Como o monte Fuji pode ser encoberto por uma única árvore? Ele só não pode ser visto por causa da estreiteza da minha visão e porque a árvore está na minha linha de visão. Mesmo assim, continuamos pensando que a árvore está encobrindo o monte Fuji. Esse fato, porém, decorre da estreiteza da minha visão.
11
Por não compreender o princípio das coisas, as pessoas costumam fazer pose de sábios e criticar os que compreendem. Mas, embora pareçam estar rindo dos outros, na verdade estão rindo de si mesmas. Ao menos as pessoas que verdadeiramente compreendem [isso] devem pensar assim. Olha com plena atenção o estado do mundo agora. A Terra é uma mãe, e o céu, um pai. Quando alojamos a semente da castanheira ou do caquizeiro na terra, o broto aparece e o fruto da castanheira ou do caquizeiro se manifesta sem mudança alguma. Desse modo, ele é criado por um pai e uma mãe. Quando dizemos que ele é "alojado", isso indica que é algo que vem de outro lugar. Também para o ser humano a Terra é mãe e o céu é pai, e o fenômeno que se torna a criança é algo trazido de outro lugar e alojado aqui. Aquilo que se chama meta‐existência [imaterial] não é nem um pouco diferente da concepção das coisas na presente existência [material]. É por essa razão que a existência presente também é chamada "uma existência". Quando a existência atual chega ao fim, vem aquilo que se chama meta‐existência. Depois a meta‐existência se altera e vem a existência posterior, ou reencarnação. Em cada uma delas, a mente que está neste corpo atual não sofre absolutamente nenhuma mudança. Embora até na meta‐existência haja um corpo, ele não pode ser visto pelos olhos humanos devido à sua sutileza. Quanto à meta‐existência daqueles que foram profundamente apegados a este mundo, há casos de pessoas que a viram. Sendo esse um fato fora do comum, as pessoas duvidam dele e o atribuem à transformação de raposas ou furões, ou explicam‐no como uma visão ilusória dos mortos. Também essas duas últimas coisas podem acontecer. Mas, mesmo admitindo isso, não devemos enquadrar todos os casos nessas duas categorias. As coisas verdadeiras também existem no mundo, e não apenas no falar dos homens. Além disso, elas também foram registradas pelas penas [escrituras] daqueles que viveram no Mundo do Caminho e que eram, eles mesmos, homens do Caminho. É compreensível que tenhamos dúvidas, pois não chegamos aos pés da sabedoria dos homens que escreveram essas coisas. Quando vemos as coisas no meio de um sonho, encontramos pessoas, falamos e ouvimos, vemos cores e até temos relações sexuais, muito embora não vejamos nem ouçamos essas coisas com os olhos e ouvidos que recebemos ao nascer. Nós nos debatemos com os assuntos que cotidianamente nos preocupam e, no momento mesmo em que achamos que estamos prestes a conseguir aquilo que desejamos, acordamos. É ao despertar que percebemos que tudo não passava de um sonho. Durante o sonho, nós nunca pensamos "Isto é um sonho" ou "Isto não é real". Durante o sonho, este corpo permanece vivo, mas está preso e não pode ir aonde quer. Com a força de seus próprios pensamentos, porém, ele pode ver os lugares que quiser, atraindo‐os a si. Quando a pessoa morre e abandona o corpo, ela vai para onde quer, como um gato que se livra da coleira. Embora os pensamentos da pessoa sejam semelhantes aos pensamentos que se têm num sonho, agora é como se ela pudesse ir livremente para onde quiser. No meio da escuridão profunda ou quando as portas e janelas estão fechadas, a pessoa entra num estado de liberdade. Isso ocorre porque ela não tem forma. Nesse caso, embora haja forma, não há corporalidade. É como ver o reflexo da Lua ou de uma lâmpada na água. Não há impedimentos. Quando o corpo age como uma barreira, não se pode penetrar no santuário interior; mas a mente pode entrar em contato com aquilo que está dentro, assim como os pensamentos podem atravessar a Montanha de Prata ou a Muralha de Ferro. É improvável que esse mistério seja compreendido pelo comum dos homens. O Buda e os patriarcas o compreenderam, mas o povo comum não o conhece de maneira alguma. Não o conhecendo, eles têm dúvidas, e insensatez se acrescenta à insensatez. 12
Há um número indefinido de coisas que eu não conheço, e; não as conhecendo, simplesmente digo que elas não existem. Supõe que eu conheça seis ou sete coisas de um total de cem. Se, quando alguém vier me falar das restantes, ou disserem que elas não existem, 90 coisas terão deixado de existir. Mas se eu passar a conhecer por volta de 15, dentre aquelas que não existiam, cinco ou seis terão passado à existência. Para aquelas pessoas que conhecem 20 ou 30 coisas, o número de coisas não‐existentes baixa a setenta. Se alguém conhece 60 ou 70 de um total de cem, as restantes 30 ou 40 continuam tão obscuras quanto às primeiras mencionadas. E quando a pessoa conhece todas essas coisas e pensa que já não existe nada que ela não conheça, é porque ainda não tem o conhecimento. Se um homem avança, esclarecendo as coisas uma após a outra, por fim será capaz de conhecer todas as coisas. Se algo é conhecido de alguém, ninguém deve dizer que esse algo não existe; se alguém o disser, é porque ele mesmo ignora o assunto. Mesmo um homem extremamente tolo pode vir a conhecer algo devido à sua fé. Por outro lado, não se costuma dizer que "uma arte marcial incipiente é causa de grandes desastres"? No meu entender, as Cinco Raízes19 não passam à meta‐existência [imaterialidade]. No momento da transição, as Cinco Raízes da existência atual são transferidas para a consciência20, o sexto sentido. Então, as Cinco Raízes perdem a forma, mas continuam funcionando. Como o sexto sentido da Percepção é a consciência, ele não tem forma. Mas tem as faculdades da visão e da audição; é por isso que nos sonhos, mesmo sem o concurso dos olhos e dos ouvidos corpóreos, uma forma diferente se produz e ocorrem a visão e a audição. Ele é chamado de consciência porque, embora não exista a matéria, sua função existe. Se não existe a matéria, e esse sentido é algo que não conhecemos, é melhor dizer simplesmente "visão" ou "audição". Como a visão e a audição são transferidas para a consciência e atingem um segundo nível, a matéria das Cinco Raízes é descartada e suas funções são assumidas pela consciência. Embora as Cinco Raízes não existam na meta‐existência, o discernimento dos cinco sentidos não difere do discernimento que temos na existência atual. Simplesmente não se pode ver isso de fora. Para a pessoa em questão, é tudo exatamente igual a este mundo. Além disso, mesmo admitindo a existência do corpo, ele é tão etéreo que é difícil de ver. Quando um pássaro voa pelo céu, ele vai ficando cada vez mais indistinto à medida que se afasta, até que por fim nós pensamos que ele desapareceu. Embora percamos de vista a matéria, esse desaparecimento não quer dizer que o pássaro não existe mais. Nós não o enxergamos porque ele ficou muito indistinto. A forma da pessoa que está na meta‐existência é apagada e difícil de identificar; por isso nós não a vemos. A pessoa, nesse estado, pode ver‐nos assim como via quando estava viva, mas as pessoas não sabem disso. Quando as pessoas que cometeram sérios pecados passam à meta‐existência, suas formas são visíveis. As pessoas as vêem naturalmente e chamam‐nas de fantasmas ou coisa que o valha. Também isso existe. As formas das pessoas que eram profundamente apegadas a este mundo não são nem um pouco sutis. É como ferver muitos ingredientes para fazer um caldo medicinal. Se os ingredientes forem fracos, o caldo será fino. Se forem fortes, o caldo será grosso. Será possível saber nitidamente quais foram os ingredientes utilizados. O caldo muito fino é idêntico à água. Sendo ele idêntico, as pessoas não o reconhecem como caldo, mas o vêem como água. Na meta‐existência, a forma da pessoa que foi profundamente apegada às coisas materiais é visível. Mas a pessoa cuja forma é sutil é idêntica ao ar, e nós não a vemos. Nós não a vemos, mas ela nos vê. Por ter forma, eu posso ser visto. Por elas terem formas sutis, eu não posso vê‐Ias. No Ming‐i Chi21, esse fato é ilustrado pelo grão de cevada.
19
As Cinco Raízes são os cinco órgãos dos sentidos: olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo. (Cf. Nota 5, acima).
20
Consciência (sânscrito vijnana). O sexto dos seis meios de percepção (visão, audição, olfato, paladar, tato e consciência) é a mente no sentido mais amplo de todas as faculdades mentais, mas especialmente a faculdade do pensamento.
13
Com um único grão de cevada, nasce um broto; mas, embora o broto seja dotado das mesmas funções que a cevada original, ele jamais se tornará cevada se a água e a terra não se juntarem. A consciência humana e o mundo objetivo se unem, vários pensamentos se manifestam, e destes nascem muitos outros. Atraído por esses pensamentos, esse corpo material é recebido e produzido. Ele não é apenas um objeto estranho que caiu do céu. Partindo do pensamento único que não tem início, a multiplicidade das coisas vem à existência. Se procurares cuidadosamente pela fonte desse pensamento único que não tem início, verás que ele não tem fonte alguma. Não tendo origem absolutamente nenhuma, o nascimento da infinita variedade das coisas pode ser considerado um mistério.
21
Fan‐i Ming‐i Chi: dicionário sânscrito‐chinês em sete capítulos, elaborado na Dinastia Sung.
14
ANAIS DA ESPADA TAIA
Taiaki Takuan Soho para Yagyu Munenori
1
“É de supor‐se que, enquanto guerreiro2, não Iuto para ganhar nem para perder, não me importo com a força nem com a fraqueza, e não avanço sequer um passo nem recuo sequer um passo. O inimigo não me vê. Eu não vejo o inimigo. Penetrando num lugar onde Céu e Terra ainda não se separaram, onde Yin e Yang ainda não surgiram, eu rápida e necessariamente atinjo o objetivo.” A expressão “é de supor‐se” indica algo que eu não sei com certeza. Originalmente, o significado desse ideograma era "tampa". Por exemplo: quando se põe uma tampa numa caixa, embora não saibamos com certeza o que há ali dentro, se usarmos a imaginação acertaremos seis ou sete vezes de um total de dez. Também neste caso eu não sei com certeza, mas imagino que as coisas devem ser tais e quais eu afirmo. Na verdade, essa forma de escrever é usada até mesmo com relação àquelas coisas que nós sabemos com certeza. Nós a usamos para sermos modestos e para não parecer que estamos falando como se fôssemos donos da verdade. Guerreiro é exatamente aquilo que o ideograma indica. Não lutar para ganhar nem para perder, não se importar com a força nem com a fraqueza significa não ansiar pela vitória nem temer a derrota, e não se importar com as funções de força ou fraqueza. Não avançar sequer um passo nem recuar sequer um passo significa não dar nem um passo à frente nem um passo atrás. A vitória é alcançada sem que você se mova do lugar onde está. O eu de "o inimigo não me vê" refere‐se ao meu Eu Verdadeiro. Não diz respeito ao meu eu palpável. É fácil ver o eu palpável; é difícil discernir o Eu Verdadeiro. Por isso digo: "O inimigo não me vê." Eu não vejo o inimigo. Por não adotar o ponto de vista pessoal3 do eu palpável, eu não vejo a arte marcial do eu palpável do inimigo. Embora eu diga "Eu não vejo o inimigo", isso não quer dizer que eu não veja bem diante dos meus olhos. Ver uma coisa sem ver a outra é, de fato, algo muito singular. Ora, o Eu Verdadeiro é o eu que existia antes da separação do Céu e da Terra e antes que nascessem o nosso pai e a nossa mãe. É o eu que está dentro de mim, dos pássaros e animais, das ervas, das árvores e de todos os fenômenos. É exatamente aquilo que se chama de Natureza de Buda. Este eu não tem figura nem forma, não tem nascimento nem morte. Não é um eu que possa ser visto com o concurso do olho corpóreo. Só o homem que recebeu a Iluminação é capaz de vê‐lo. Diz‐se que aquele que o vê, viu a sua própria natureza e tornou‐se um Buda. Há muito tempo, o Venerável4 foi para as Montanhas Nevadas5 e, depois de passar seis anos no sofrimento, tornou‐se Iluminado. Esta foi a Iluminação do Eu Verdadeiro. O homem comum não tem força de fé e não consegue perseverar nem três ou cinco anos numa só coisa. Mas aqueles que estudam o Caminho mantêm uma dedicação absoluta por dez a vinte anos, 24 horas por dia. Eles reúnem uma grande força de fé, conversam com os sábios e desprezam a adversidade e o sofrimento. Como um pai que perdeu o filho, eles não se demovem nem sequer um átomo da resolução que formaram. Refletem profundamente, acrescentando investigação a investigação. No fim, chegam àquele lugar em que até mesmo a doutrina e a Lei de Buda se desvanecem, e são naturalmente capazes de ver "Isto". Penetrando num lugar onde céu e Terra ainda não se separaram, onde Yin e Yang ainda não surgiram, eu rápida e necessariamente atinjo o objetivo significa mirar os olhos no lugar que existia antes que o Céu e a Terra fossem a Terra, antes de haver Yin e Yang. Equivale a não valer‐se nem do pensamento nem do raciocínio e olhar sempre em frente. Dessa maneira, o objetivo será indubitavelmente atingido. 1
Os parágrafos recuados [centralizados e em negrito] foram compostos num estilo chinês forte e conciso e constituem o coração do Taiaki (Anais da Espada Taia). As partes mais longas entre esses parágrafos, compostas em japonês, são essencialmente exegeses das partes em chinês. 2
Na versão inglesa, o termo usado é "artista marcial". Optamos por "guerreiro" devido ao caráter inusitado da primeira forma. (N.T.)
3
Ponto de vista pessoal é um termo budista que significa uma visão pessoal baseada na idéia errônea de que o ego, ou eu pessoal, é uma realidade e é capaz de perceber a realidade.
4 5
Venerável é um dos dez epítetos do Shakyamuni, o Buda histórico.
Montanhas Nevadas são os Himalaias.
1
“Ora, o homem perfeito usa a espada, mas não mata ninguém. Ele usa a espada e vivifica os outros seres. Quando é necessário matar, ele mata. Quando é necessário dar a vida, ele a dá. Ao matar, ele mata em concentração completa; ao dar a vida, ele a dá em concentração completa. Sem olhar para o certo e o errado, ele é capaz de ver o certo e o errado; sem procurar discriminar, ele é capaz de discriminar com perfeição. Andar sobre as águas é como andar sobre a terra, e andar sobre a terra é como andar sobre as águas. Se ele for capaz de alcançar essa liberdade, não será levado à perplexidade por nenhum ser sobre a Terra. Em todas as coisas, não haverá quem se lhe equipare.” O homem perfeito significa o homem perfeito nas artes marciais. Ele usa a espada, mas não para matar significa que, mesmo que ele não use a espada para golpear os outros, eles se acovardam e por si mesmos tornam‐se como mortos quando confrontados por esse princípio. Não há necessidade de matá‐los. Ele usa a espada e dá a vida aos outros seres significa que, enquanto lida com seu oponente usando a espada, ele deixa tudo a cargo dos movimentos do oponente; assim, é capaz de observá‐lo a seu bel‐prazer. Quando é necessário matar, ele mata; quando é necessário dar a vida, ele a dá. Ao matar, ele mata em concentração completa; ao dar a vida, ele a dá em concentração completa significa que, quer dando a vida, quer tirando‐a, ele o faz com liberdade num estado de meditação de absorção total, e aquele que medita torna‐se uma coisa só com o objeto da meditação. Sem olhar para o certo e o errado, ele é capaz de ver o certo e o errado; sem procurar discriminar, ele é capaz de discriminar com perfeição. Isso significa que, no que diz respeito à sua arte marcial, ele não a examina para julgá‐la "correta" ou "incorreta", mas é capaz de ver o que ela é. Ele não procura julgar nada, mas é capaz de fazer isso com perfeição. Quando se levanta um espelho, a forma de tudo o que está à frente dele é refletida e pode ser vista. Como o espelho faz isso sem intenção nenhuma, as diversas formas são refletidas claramente, sem nenhuma preocupação de diferenciar isto daquilo. Tornando toda a sua mente como um espelho, o praticante das artes marciais não tem a intenção de discriminar o certo do errado; mas, segundo a limpidez do espelho da sua mente, o juízo de certo e errado será percebido sem que ele precise pensar sobre isso. Andar sobre as águas é como andar sobre a terra, e andar sobre a terra é como andar sobre as águas. O significado disso não pode ser conhecido por quem não seja Iluminado a respeito da própria origem da existência humana. Se o tolo pisar sobre a terra como pisa sobre a água, ao pisar sobre a terra ele certamente cairá. Se pisar sobre a água como pisa sobre a terra, ao pisar sobre a água ele pensará que pode caminhar normalmente. No que diz respeito a essa questão, o homem que se esquecer tanto da terra quanto da água chegará à compreensão desse princípio pela primeira vez. Se ele for capaz de alcançar essa liberdade, não será levado à perplexidade por nenhum ser sobre a Terra. De acordo com isso, o guerreiro que for capaz de alcançar a liberdade não terá dúvidas sobre o que fazer, não importa quem ele enfrente sobre a Terra. Em todas as coisas, não haverá quem se lhe equipare significa que, por não ter iguais no mundo, ele será idêntico ao Shakyamuni, que disse: "No Céu acima e na Terra que está embaixo, só eu sou o Venerável."6
6
Diz‐se que, quando Shakyamuni nasceu, ele deu sete passos em cada uma das quatro direções, levantou a mão direita, apontou para o céu e pronunciou essa frase.
2
“Queres chegar a isso? Andando, de pé, sentado ou deitado, falando e permanecendo em silêncio, durante o chá e durante o arroz, deves exercitar‐se constantemente, deves rapidamente fixar o olho na meta, deves investigar tudo cuidadosamente, quer indo, quer vindo. Assim, deves olhar direto para as coisas. À medida que os meses forem se acumulando e os anos forem passando, deverás ser como que uma luz que se acende por si mesma no escuro. Receberás a sabedoria sem mestre e manifestarás uma habilidade misteriosa sem procurar fazê‐Io. Nesse momento, isso não se diferencia do que é comum, mas o transcende. Dou‐lhe o nome de "Taia".” Queres chegar a isso "Isso" indica aquilo que foi escrito acima; a pergunta é se estás disposto a obter o significado do que foi dito. Andando, de pé, sentado ou deitado. Essas quatro coisas – andar, estar de pé, sentado ou deitado – são chamadas as Quatro Dignidades7. Ninguém está isento delas. Falando e permanecendo em silêncio significa: quer falando sobre as coisas, quer não pronunciando palavra. Durante o chá e durante o arroz significa: ao beber chá e ao comer arroz. Deves exercitar‐se constantemente, deves rapidamente fixar o olho na meta, deves investigar tudo cuidadosamente, quer indo, quer vindo. Assim, deves olhar direto para as coisas. Isso significa que jamais deves ser descuidado ou negligente nos teus esforços, e que deves sempre voltar a ti mesmo. Deves fixar rapidamente o teu olho na meta e deves investigar esses princípios em profundidade, continuamente. Vai sempre em frente, considerando o certo como certo e o errado como errado, sem deixar de observar esse princípio em todas as coisas. À medida que os meses forem se acumulando e os anos forem passando, deverás ser como que uma luz que se acende por si mesma no escuro significa que, desse mesmo modo, deves perseverar incontavelmente no esforço. À medida que avançares, acumulando meses e anos, tua aquisição própria desse princípio misterioso será como encontrar, de repente, a luz de uma lanterna numa noite escura. Receberás a sabedoria sem mestre significa que hás de adquirir essa sabedoria fundamental sem que ela jamais te tenha sido transmitida por um mestre. Manifestarás uma habilidade misteriosa sem procurar fazê‐Io. As obras do homem comum vêm todas da sua consciência; por isso, são todas ações do mundo dos fenômenos criados e acarretam sofrimento. Ao mesmo tempo, as ações incriadas8 são geradas por essa sabedoria fundamental; por isso, só elas são naturais e pacíficas. Nesse momento indica esse exato momento: o momento em que a pessoa recebe a sabedoria sem mestre e manifesta uma habilidade misteriosa sem procurar fazê‐lo. O significado de isso não se diferencia do que é comum, mas o transcende é que essa misteriosa habilidade incriada não é gerada a partir daquilo que não é comum. Só se tornam o incriado aquelas ações que não se destacam, mas são absolutamente comuns e cotidianas; por isso, esse princípio nunca se destaca nem se separa daquilo que é comum. Isso não quer dizer que as ações comuns do homem comum no mundo dos fenômenos criados não sejam totalmente diferentes. Por isso se diz que "isso não se diferencia do que é comum, mas o transcende". Dou‐lhe o nome de "Taia". Taia é o nome de uma espada [chinesa antiga] que não tem igual sob o céu. Essa famosa espada, incrustada de jóias, é capaz de cortar qualquer coisa, desde o metal duro e aço temperado até gemas e pedras densas e endurecidas. Sob o céu, não há nada que se equipare a essa lâmina. A pessoa que obtiver essa misteriosa habilidade incriada não será abalada nem pelo comandante de exércitos gigantescos, nem por uma força inimiga de centenas de milhares de homens. Isso equivale a não haver nada que resista ao corte da lâmina da famosa espada. Por isso, chamo a força dessa misteriosa habilidade de Espada Taia.
7
Esse termo budista indica aquelas situações em que a pessoa inspira respeito pela sua postura. As quatro representam todos os estados do homem, cujo número, calcula‐se, chega a oitenta mil.
8
Os "fenômenos criados" resultam da lei do Karma; os "incriados" são independentes da ação, da palavra e da vontade.
3
“Todos os homens estão equipados com a afiadíssima Espada Taia, e em cada um deles ela é perfeitamente completa. Aqueles para os quais isso é claro são temidos até mesmo pelos Maras9; mas aqueles para quem isso é obscuro são enganados até mesmo pelos heréticos. Por um lado, quando dois homens de igual habilidade se defrontam para combater à espada, o confronto não se conclui jamais; é semelhante a quando Shakyamuni segurou a flor e Kashyapa10 sorriu sutilmente. Por outro lado, elevar um lado e compreender os outros três, ou distinguir sutis diferenças de peso a olho nu, são exemplos de inteligência comum. Aquele que dominou isso te cortará em três pedaços antes mesmo que o primeiro lado seja revelado e os outros três, compreendidos.11 Quanto mais não o fará quando o encontrares face a face?” Todos os homens estão equipados com a afiadíssima Espada Taia, e em cada um deles ela é perfeitamente completa. Isso significa que a célebre Espada Taia, cuja lâmina não é igualada por nenhuma outra sob o céu, não é dada apenas aos outros homens. Todos, sem exceção, estão equipados com ela; ela não é inadequada para ninguém, e está absolutamente inteira. Isso diz respeito à mente. Essa mente não nasceu no momento em que nasceste, nem vai morrer no momento em que morreres. Assim sendo, diz‐se que ela é a tua Face Original12. O Céu não é capaz de cobri‐ Ia, nem a Terra de suportá‐la; o fogo não é capaz de queimá‐la, nem a água de umedecê‐la; sequer o vento é capaz de penetrá‐la. Não existe nada sob o céu que possa obstruí‐Ia. Aqueles para os quais isso é claro são temidos até mesmo pelos Maras, e aqueles para quem isso é obscuro são enganados até mesmo pelos heréticos. Não há nada no universo que obscureça ou obstrua a visão daquele que foi claramente Iluminado no que diz respeito à sua Face Original. Por isso, o poder sobrenatural dos Maras não tem meio de ação. Essa pessoa enxerga até o fundo de suas próprias intenções; por isso, os Maras a temem e evitam, e hesitam em aproximar‐se dela. Por outro lado, a pessoa que está na obscuridade e no extravio no que diz respeito à sua Face Original acumula um número incalculável de ilusões e pensamentos confusos, que então aderem a ela. Os heréticos facilmente enganam e burlam essa pessoa. Quando dois homens de igual habilidade se defrontam para combater à espada, o confronto não se conclui jamais. Isso significa que, se dois homens que houvessem ambos penetrado a sua Face Original se defrontassem e desembainhassem ambos a espada Taia para combater, seria impossível levar o embate a uma conclusão. A situação é comparável ao encontro entre Shakyamuni e Kashyapa. Shakyamuni segurou a flor e Kashyapa sorriu sutilmente. Na reunião da Montanha de Gridhrakuta, pouco antes da morte de Shakyamuni, ele segurou nas mãos um único lótus vermelho e o mostrou a oitenta mil monges, que permaneceram todos em silêncio. Somente Kashyapa sorriu. Conhecendo nesse momento que Kashyapa tinha sido Iluminado, Shakyamuni confiou‐lhe a Reta Doutrina, que não depende da palavra escrita e é transmitida sobretudo sem instrução13, e impôs sobre ele o selo de Buda.
9
Mara é um demônio; o termo sânscrito significa literalmente "Ladrão da Vida". Aqui faz‐se referência especificamente ao Deva Mara, o qual, a partir de sua situação no Sexto Céu, obstrui a prática do Budismo.
10
Kashyapa (Mahakashyapa), o mais dedicado às práticas ascéticas dentre os dez discípulos principais, tornou‐se o chefe dos discípulos depois da morte do Buda. 11
O texto original é obscuro. Em termos gramaticais, ele correlaciona analogicamente o exemplo do "primeiro e dos
outros três" com a referência a Shakyamuni e Kashyapa, mas isso não condiz nem com o sentido com um todo nem com as demais partes do texto. A referência ao "primeiro e aos outros três" é provavelmente tirada dos Analectos de Confúcio (7:8): "Disse o Mestre: 'Não Ilumino aqueles que não se entusiasmam, nem educo os que não têm forte desejo de aprender. Não repito instruções àqueles que, quando eu levanto um dos lados, não voltam tendo levantado os outros três.” – Isso diz respeito à construção geométrica do quadrado. A partir de um lado, pode‐se conhecer imediatamente os outros três lados da figura. (N.T.) A última parte da frase é do Pi Yen Lu, coletânea de problemas, ditos e anedotas dos patriarcas Zen: "Revelar um lado e compreender os outros três, distinguir sutis diferenças de peso a olho nu – esse é o arroz com feijão [no original, "o chá e o arroz"] do monge budista." 12
Face Original é a natureza pura da Mente, imaculada ainda pelas ações e intenções humanas.
13
A desconfiança da palavra escrita e a transmissão sem instrução são dois pontos especialmente salientados no Zen. Eles expressam o princípio de que se deve olhar para a própria natureza intrínseca, e não confiar nos textos ou ensinamentos de outrem.
4
Depois disso, a Reta Doutrina foi transmitida na Índia em 28 sucessões até Bodhidharma14. Na China, ela foi passada por Bodhidharma em seis transmissões até chegar ao Sexto Patriarca, o Mestre Zen Ta Chien15. Como esse Mestre Zen encarnou‐se como bodhisattva, desde aquela época a Lei de Buda floresceu na China, espalhando suas folhas e ramos, gerando rapidamente as Cinco Casas e Sete Seitas16 e, finalmente, sendo transmitida aos sacerdotes japoneses Daio17 e Daito18 pelo sacerdote Nai Chih Hsü T'ang19. Isso não cessou de ser transmitido de mestre para discípulo até os dias de hoje. A doutrina de "segurou a flor... sorriu sutilmente" é difícil de captar e quase impossível de destrinchar por meio da especulação. É preciso beber o sopro de todos os Budas e, ao mesmo tempo, engolir a própria voz. Na realidade, não existe um meio de expressar esse princípio; mas, caso seja necessário, pode‐se citar o exemplo de tomar a água de um vaso e passá‐la a outro, de modo que as águas se misturem e não se distinguem mais. Esse é o momento em que os olhos de Shakyamuni e de Kashyapa se encontraram e tornaram‐se uma só coisa. Não existe mais relatividade. Dentre todos os guerreiros de todas as escolas, não há sequer um em cem mil que tenha captado o sentido de "Segurou a flor... sorriu sutilmente". Não obstante, se alguém tivesse a mais firme das intenções e realmente quisesse compreender, teria ainda de disciplinar‐se por outros 30 anos. Extraviar‐se nesse caminho não seria mera questão de não dominar as artes marciais; a pessoa entraria no inferno como uma flecha atirada de um arco. Isso é assustador. Elevar um lado e compreender os outros três significa que, assim que se mostra uma parte, as outras três são imediatamente compreendidas. Distinguir sutis diferenças de peso a olho nu. Distinguir... a olho nu significa a função do olho, ou medir a olho. As diferenças de peso são extremamente sutis. O homem capaz de medir a olho qualquer peso de ouro ou prata, sem errar, é pessoa inteligente e hábil20. Esses são exemplos de inteligência comum significa que as pessoas dotadas desse tipo de inteligência são comuns e seu número é incalculável; por isso, elas não têm nada de especial. Aquele que dominou isso te cortará em três pedaços antes mesmo que o primeiro lado seja revelado e os outros três, compreendidos. Isso diz respeito à pessoa que foi Iluminada quanto à causa da manifestação do Buda no mundo. É ela que te cortará em três pedaços antes que o primeiro tenha sido revelado, os três compreendidos, ou antes que surja qualquer indicação. Por isso penso que, ao encontrar alguém assim, não há nada que se possa fazer. Quanto mais não o fará quando o encontrares face a face? O homem que adquiriu essa rapidez e sutileza, ao defrontar‐se com outro face a face, golpeia com tanta facilidade que o outro nem sequer percebe que a cabeça lhe rolou de sobre os ombros.
14
Bodhidharma: primeiro patriarca do Budismo Ch'an (Zen) na China. Diz‐se que chegou a esse país vindo da Índia, em 470 ou 520 d.C.
15
Ta Chien (637‐713): mais conhecido como Hui Neng, foi figura crucial para o desenvolvimento do Budismo Zen.
16
"Cinco Casas e Sete Seitas" são as várias escolas e subescolas do Zen. Daio Kokushi (1.234‐1.308): monge da escola Rinzai que estudou o Budismo na China. 18 Daito Kokushi (1.282‐1.337): discípulo de Daio Kokushi, tido como o introdutor do Zen no Daitokuji. 17
19
Nai Chi Hsü T'ang (1.185‐1.269): também conhecido como Hsü T'ang Chih Yü, foi um monge chinês do Budismo Linchi.
20
Aqui, o texto original define os pesos e medidas, do período Edo, que são tomados como exemplo.
5
“No fim, um tal homem nunca expõe a ponta da sua espada. Sua velocidade – nem o relâmpago se lhe equipara. Sua agilidade – ela desaparece antes ainda que o vento da tempestade. Se a pessoa, sem possuir essa tática, acabar por ver‐se embaraçada ou confusa, ela há de quebrar a própria lâmina ou ferir a própria mão, e não chegará à perfeição. Isso não se adivinha pelas impressões ou pelo conhecimento. Não há como transmití‐lo por palavras ou pela fala, como aprendê‐lo por alguma doutrina. É essa a lei da transmissão que está além da instrução.” No fim, um tal homem nunca expõe a ponta da sua espada significa que, desde o primeiríssimo momento, o mestre jamais expõe a ponta da sua espada. Sua velocidade – nem o relâmpago se lhe equipara. Sua agilidade – ela desaparece antes ainda que o vento da tempestade. Acerca da velocidade da técnica, isso significa que nem o relâmpago, que desaparece no momento mesmo em que o vês, é capaz de passar em meio aos movimentos desse homem. Quanto à agilidade, eles desaparecem mais rápido que os grãos de areia levantados pela tempestade. Se a pessoa, sem possuir essa tática, acabar por ver‐se embaraçada ou confusa... Diz que, se a pessoa sem essa habilidade apegar‐se minimamente à posição da espada ou ao direcionamento da mente... Ela há de quebrar a própria lâmina ou ferir a própria mão, e não chegará à perfeição significa que ela sem duvida quebrará a ponta da própria espada, cortará a própria mão e, provavelmente, jamais será considerada hábil. Isso não se adivinha pelas impressões ou pelo conhecimento. "Pelas impressões ou pelo conhecimento" refere‐se ao conhecimento e à discriminação do coração humano. Adivinhar significa calcular e supor. O que isso significa é que, por mais que tentes calcular ou supor por meio das impressões ou do conhecimento, isso não terá a menor utilidade. Portanto, aparta‐se da discriminação baseada na suposição. Não há como transmití‐lo por palavras ou pela fala, como aprendê‐lo por alguma doutrina. Para o verdadeiro guerreiro, não existe maneira de expressar isso em palavras. Além do mais, não há maneira de ensinar ou aprender através da doutrina qual a posição a se assumir ou a hora de atacar. É essa a lei da transmissão que está além da instrução. Não se pode transmiti‐Ia em palavras e não se pode ensiná‐Ia, qualquer que seja o método adotado. Logo, essa doutrina é chamada a doutrina da "Transmissão que está além da instrução". É a doutrina que não está nos ensinamentos do instrutor, a doutrina que requer, de modo especial, a auto‐iluminação e a realização por conta própria.
6
“Não existe regra estabelecida para manifestar essa grande habilidade21. Ação ordenada, ação contrária – nem o céu determina isso.22 Se assim é, qual é a natureza disso? Disseram os antigos: "Quando uma casa não tem uma imagem de Pai Che, é como se não tivesse espíritos." O homem que se adestrou e chegou a esse princípio há de controlar tudo sob o céu com uma única espada. Que aqueles que estudam isso não deixem de refletir.” Não existe regra estabelecida para manifestar essa grande habilidade. Se a "grande habilidade" da lei dessa transmissão se manifestar à tua frente, ela o fará livremente, sem seguir nenhuma regra preestabelecida. Não obstante, ela é chamada de "grande habilidade" porque alcança as dez direções e não está ausente nem da ponta de um pêlo de coelho. Uma regra estabelecida é uma lei ou regulamentação; não existem regras nem regulamentações que moldem a manifestação dessa grande habilidade. Ação ordenada, ação contrária – nem o céu determina isso. O homem que manifesta essa grande habilidade é livre e não encontra obstáculos, quer aja de maneira ordenada, quer de maneira contrária. Se assim é, qual é a natureza disso? Indica confrontar alguém e perguntar‐lhe o que algo é de fato. Disseram os antigos: "Quando uma casa não tem uma imagem de Pai Che, é como se não tivesse espíritos." Essa é uma resposta à pergunta precedente. O Pai Che tem corpo de vaca e cabeça de homem, e é um animal diferente de todos os outros. Ele se alimenta dos sonhos e dos infortúnios; na China, um quadro com a imagem de Pai Che costuma ser pendurado na entrada das casas ou nos pilares internos. Em suma, erige‐se uma imagem de Pai Che para afastar o infortúnio. A pessoa que desde o princípio não tivesse maus espíritos em sua casa sequer pensaria em fazer uma imagem de Pai Che para pendurar. Isso quer dizer que aquele que adquiriu a liberdade de uso quer do ordenado, quer do contrário, transcende completamente a dor e o prazer, pois nem mesmo o céu pode determinar o que lhe vai na mente. Ele não tem infortúnios nem no corpo, nem em casa. Por isso, sua mente não há de se preocupar com a imagem de Pai Che, e seu mundo será belo. O homem que se adestrou e chegou a esse princípio há de controlar tudo sob o céu com uma única espada. Isso significa que, se o homem se disciplinar dessa maneira, temperando exaustivamente esse metal puro por mais de mil vezes, e se ele se tornar instantaneamente livre como o rápido desembainhar de uma espada, então será como o fundador da Dinastia Han, controlando tudo sob o céu com uma única espada. Que aqueles que estudam isso não deixem de refletir. Aqueles que estudam o princípio misterioso dessa espada não devem assumir facilmente noções irrefletidas, mas devem lutar por aumentar o brilho do próprio intelecto. Esforçando‐se constante e ardorosamente, não devem ser negligentes, nem sequer por um momento.
21
Do Pi Yen Lu: "Não existe maneira fixa para manifestar essa grande habilidade."
22
Do Cheng Tao Ko e talvez do Hsin Hsin Ming, dois tratados muito antigos sobre o Zen. Diz cada um deles, respectivamente: "Ação ordenada, ação contrária ‐ nem o céu determina isso" e "Se quiseres conseguir a sua manifestação, não penses em ordem nem em contrariedade".
7
TAKUAN SOHO (1.573‐1.645) foi um grande mestre da escola Rinzai de Budismo zen, famoso por sua força de caráter e agudeza de espírito; foi também jardineiro, poeta, mestre do chá, escritor prolífico e figura de destaque na história da pintura e da caligrafia zen. Começou sua formação religiosa aos dez anos de idade. Aos 14 ingressou na escola Rinzai, e aos 35 foi nomeado abade do Daitokuji, grande templo zen de Kyoto. Em 1.629, depois de uma disputa com o segundo xogum Tokugawa a respeito de nomeações religiosas, foi banido para uma província longínqua do norte do Japão. Beneficiado pela anistia geral que se seguiu à morte do xogum, voltou ao convívio social três anos depois e foi, entre outras coisas, conselheiro do terceiro xogum, Tokugawa. WILLIAM SCOTT WILSON formou‐se em Letras no Dartmouth College, especializou‐se em Estudos Japoneses no Monterey Institute of Foreign Studies e recebeu seu mestrado em Literatura Japonesa na Universidade de Washington. Teve a oportunidade de conhecer o Japão em 1.966, quando participou de uma expedição pelo litoral desse país, desde o porto ocidental de Sasebo até a cidade de Tóquio, a bordo de um caiaque. Residiu depois na aldeia de ceramistas de Bizen, estudou como aluno especial na Universidade da Prefeitura de Aichi e ocupou o cargo de conselheiro no Consulado Geral do Japão em Seattle. Reside atualmente na Flórida, Estado onde nasceu. Suas traduções de obras originais da literatura japonesa têm sido muito aclamadas. Entre elas, destacam‐se Hagakure: The Book of the Samurai e The Roots of Wisdom: Saikontan.
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