SOHO, Takuan - A Mente Liberta

March 26, 2017 | Author: Diego Gomes | Category: N/A
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A MENTE LIBERTA  Takuan Sōhō   

 

     

Escrito de um Mestre Zen      a um Mestre da Espada   

 

 

   

   

Prefácio  Os  temas  principais  dos  três  ensaios  aqui  apresentados  são  a  espada  –  que  nós,  ocidentais,  somos  incentivados a transformar em arados –, as técnicas e a mentalidade correta para utilizá‐Ia. Os textos, dois  dos quais são cartas escritas a mestres espadachins, foram escritos por um monge zen, Takuan Sōhō, que  fez o voto de trabalhar pela Iluminação e salvação de todos os seres. É provável que o leitor ocidental não  compreenda  de  imediato  o  que  leva  um  sacerdote  budista  a  dedicar‐se  a  falar  sobre  esse  instrumento  de  destruição e sobre os meios de domina‐Ia.  Há muito tempo que os japoneses estabeleceram uma íntima relação entre a espada e o espírito. Tanto na  História como na mitologia, a espada se destaca como um instrumento de vida e morte, de pureza e honra,  de  autoridade  e  até  de  divindade.  Sob  o  ponto  de  vista  da  História,  foi  a  posse  da  espada  de  ferro  que  colaborou  para  que  os  migrantes  vindos  do  continente  asiático  conquistassem  o  arquipélago  japonês  nos  séculos II e III d.C.; o sucesso dessa conquista elevou a espada não só à categoria de um símbolo de vitória,  mas  também  de  objeto  cerimonial.  Sob  o  ponto  de  vista  mitológico,  foi  a  espada  encontrada  dentro  do  Yamata no Orochi – um dragão que foi morto pelo deus das tempestades – que se tornou depois uma das  Três Insígnias Imperiais, símbolos de poder e de pureza que têm sido venerados pelos japoneses há quase  dois  milênios.  Na  prática,  foi  a  casta  dos  samurais,  com  a  espada  em  uma  mão  e  a  verdade  espiritual  na  outra, que inspirou a maior parte dos valores perenes do país.  Essa associação não perdeu sua força quando os samurais começaram a dedicar‐se a outras ocupações, há  pouco  mais  de  um  século.  Mesmo  nos  dias  de  hoje,  a  fabricação  de  uma  nova  espada  japonesa  –  embora  pouco freqüente – ocorre em meio a uma atmosfera altamente espiritual. A obra é precedida de orações às  divindades  ligadas  a  esse  ofício;  o  artesão,  depois  de  submeter‐se  a  rituais  de  purificação,  se  veste  exteriormente  de  trajes  cerimoniais,  e,  interiormente,  de  uma  postura  reverente;  e  só  então  começa  o  trabalho. O proprietário da espada deve, por gratidão, assumir o mesmo estado mental; e, de fato, quando o  executivo  japonês  reserva  um  momento  tranqüilo  em  sua  casa  para  desembrulhar  sua  espada,  desembainhá‐Ia  e  limpá‐Ia,  esse  ato  é  visto  como  um  exercício  de  meditação,  e  não  como  a  apreciação  ociosa de uma obra de arte.  A espada, o exercício espiritual e a mente liberta são em torno dos quais giram estes textos. Lembra‐nos o  autor que, com esforço e paciência, essas três devem tornar‐se uma só. Devemos praticar, praticar com tudo  aquilo  que  tivermos  em  mãos,  até  que  a  hesitação  e  a  cobiça,  nossos  inimigos,  sejam  abatidas  com  a  presteza, a força e a precisão de um golpe de espada.  Existem várias edições das obras aqui traduzidas, mas elas não parecem apresentar grandes diferenças entre  si. Baseei esta tradução nos textos que constam do Nihon no Zen Goroku, Vol. 13, o qual, por sua vez, utiliza‐ se dos textos de Takuan Osho Zenshu, publicado pela Takuan Osho Zenshu Kanko Kai.  Agradeço  sinceramente  a  Sra.  Agnes  Youngblood,  que  me  ajudou  naquelas  partes  da  tradução  que  me  foram mais dificultosas; a John Siscoe, pelo estímulo e pelas sugestões; e aos professores Jay Rubin e Teruko  Chin, da Universidade de Washington, que, a uma distancia de mais de seis mil quilômetros e sobre uns bons  centímetros  de  neve,  me  ajudaram  com  o  material  de  apoio.  Todo  e  qualquer  erro  deve  ser  imputado  à  minha pessoa. 

INTRODUÇÃO  Takuan  Sōhō  foi  um  monge  zen,  calígrafo,  pintor,  poeta,  jardineiro,  mestre  do  chá  e,  talvez,  inventor  da  conserva de legumes que até hoje leva o seu nome. A extensão de sua obra escrita é prodigiosa (as obras  completas preenchem seis volumes), e ela até hoje é fonte de orientação e inspiração para o povo japonês,  como  tem  sido  por  três  séculos  e  meio.  Conselheiro  e  confidente  de  nobres  e  plebeus,  ele  parece  ter  transitado livremente por todas as camadas da sociedade, instruindo o xogum e o imperador e, segundo a  lenda,  sendo  amigo  e  mestre  de  Miyamoto  Musashi,  espadachim  e  artista.  A  fama  e  a  popularidade  não  parecem  tê‐Io  afetado;  sentindo  a  morte  próxima,  pediu  aos  seus  discípulos:  "Sepultem  o  meu  corpo  na  montanha  atrás  do  templo,  cubram‐no  de  terra  e  vão  para  casa.  Não  recitem  sutras,  não  façam  ritos.  Não  recebam  presentes  de  monges  nem  de  leigos.  Que  os  monges  se  cubram  com  as  mesmas  vestes,  comam  as  mesmas refeições e façam tudo como nos dias comuns." No último instante, ele escreveu o ideograma chinês  yume ("sonho"), pôs o pincel sobre a mesa e expirou.  Takuan nasceu em 1.573 na aldeia de Izushi, província de Tajima, região de fortes nevascas e nevoeiros nas  montanhas. Izushi é antiga o suficiente para ser mencionada nas duas histórias primitivas do Japão, o Kojiki  (712 d.C.), e o Nihon‐gi (720 d.C.) e o campo ao seu redor é pontilhado de relíquias de eras passadas, velhos  sepulcros e depósitos de cerâmica da antigüidade longínqua. Embora nascido de uma família de samurais do  clã Miura, no auge de uma guerra civil que já durava 150 anos, Takuan entrou num mosteiro aos 10 anos de  idade para estudar a escola budista Jodo; aos 14 anos passou à prática da escola Rinzai do Budismo Zen; e,  com meros 35 anos – fato sem precedentes –, tornou‐se o abade do Daitokuji, grande templo Zen de Kyoto.  Em 1.629, Takuan envolveu‐se naquela que depois foi chamada de "A Questão do Manto Púrpura", opondo‐ se  à  decisão  do  xogunato  de  acabar  com  o  poder  imperial  de  nomear  os  detentores  de  altos  postos  religiosos.  Devido  a  essa  oposição,  foi  banido  para  o  atual  Distrito  de  Yamagata,  e  foi  nessa  distante  província do norte que ele escreveu o primeiro e o último dos três textos contidos neste livro. Foi beneficiado  pela anistia geral que se seguiu à morte de xogum, e voltou a Kyoto em 1.632. Nos anos seguintes, tornou‐se  amigo  e  instrutor  de  Zen  do  imperador  Go‐Mizunoo,  que  havia  abdicado  mas  ainda  conservava  a  sua  influência; e causou uma impressão tão favorável no novo xogum, Tokugawa Iemitsu – que constantemente  buscava a sua amizade –, que, em 1.638, fundou o Tokaiji a pedido do xogum. E, embora amigo do xogum e  do imperador, manteve‐se sempre decisivamente afastado das querelas políticas que com tanta freqüência  disputavam o xogunato e o trono do crisântemo.  Diz‐se  que  Takuan  seguiu  até  o  fim  da  vida  o  seu  próprio  caminho,  independente,  excêntrico  e  às  vezes  amargo.  Sua  força  e  sua  aspereza  se  evidenciam  tanto  em  sua  caligrafia  e  pintura  quanto  nos  textos  aqui  apresentados, e, – fato interessante – talvez seja possível "saborear" o caráter desse homem simplesmente  degustando um prato de takuanzuke, conserva feita do rabanete gigante japonês.  Sua vida pode ser resumida nesta admoestação que ele mesmo fez: "Se tu seguires o mundo presente, darás  as costas ao Caminho; se não queres dar as costas ao Caminho, não sigas o mundo."  Diz‐se  que  Takuan  buscou  infundir  o  espírito  do  Zen  em  todos  os  aspectos  da  vida  que  lhe  chamaram  a  atenção, como a caligrafia, a poesia, a jardinagem e as artes em geral. A arte da espada não escapou ao seu  olhar. Vivendo os últimos dias da violenta guerra feudal que culminou na Batalha de Sekigahara, em 1.600,  Takuan estava familiarizado, não somente com a paz e a elevação que acompanhavam o artista e o mestre  do chá, mas também com os conflitos – a vitória e a derrota – que marcam a vida dos guerreiros e generais.  Entre estes se contavam, na época, figuras tão díspares quanto Ishida Mitsunari, poderoso general que deu  apoio  a  Toyotomi  Hideyoshi:  Kuroda  Nagamasa,  daimio  cristão  que  urdiu  a  queda  de  Mitsunari;  e,  em  especial, seu amigo Yagyu Munenori, chefe da escola de esgrima Yagyu Shinkage e mestre de duas gerações  de xoguns. A esses homens e a essa época, não menos do que a outros, dirigiu‐se Takuan.  Dos  três  textos  incluídos  nesta  tradução,  dois  foram  escritos  em  forma  de  cartas:  Fudochishinmyoroku,  "O  Registro Misterioso da Sabedoria Imóvel", escrito para Yagyu Munenori; e Taiaki, "Anais da Espada Taia",  escrito para Munenori ou talvez para Ano Tadaaki, chefe da escola de esgrima Itto e também instrutor oficial  da  família  e  da  corte  do  xogum.  As  circunstâncias  em  que  foram  escritos  não  nos  são  conhecidas,  e  os  conselhos  francos  e  a  admoestação  um  tanto  confuciana  que  Takuan  dirige  a  Munenori  no  final  de  Fudochishinmyoroku acrescentaram a essa obra urna dimensão nova e interessante, embora enigmática. 

No conjunto, os três textos são dirigidos à casta dos samurais, e os três buscam unir o espírito do Zen com o  espírito  da  espada.  Os  conselhos  dados  combinam  os  aspectos  práticos,  técnicos  e  filosóficos  do  conflito.  Em  linhas  gerais,  e  de  um  ponto  de  vista  individual,  pode‐se  dizer  que  Fudochishinmyoroku  trata  não  somente  da  técnica,  mas  do  modo  pelo  qual  o  eu  se  relaciona  com  o  Eu  [Íntimo]  durante  o  conflito  e  de  como  o  indivíduo  pode  vir  a  tornar‐se  um  todo  unificado.  Taiaki,  por  outro  lado,  trata  mais  dos  aspectos  psicológicos do relacionamento entre o eu e o outro. Entre os dois, Reiroshu, "O Claro Soar das Jóias", trata  da natureza fundamental do ser humano; de como um espadachim, um daimio – ou, aliás, qualquer pessoa – , pode conhecer a diferença entre a justiça e o egoísmo e compreender a questão básica de como e quando  morrer.  Os três textos fazem com que o indivíduo se volte para o conhecimento de si mesmo, e, logo, à arte de viver.  A esgrima como mera expressão de uma técnica e o Zen meditativo já existiam havia tempo no Japão; o Zen  se estabelecera firmemente no final do século XII. Com Takuan as duas coisas chegaram a uma verdadeira  união, e seus escritos e opiniões sobre a espada tiveram uma influência extraordinária sobre os rumos que a  arte japonesa da esgrima tomou daquela época até hoje. Essa arte ainda é praticada com fervor, e reflete  uma  parcela  significativa  da  visão  de  mundo  japonesa.  Firmando  a  união  do  Zen  e  da  espada,  a  obra  de  Takuan  influenciou  os  escritos  dos  grandes  mestres  daquela  época  e  deu  origem  a  um  grande  número  de  textos que continuam a ser lidos e aplicados, como o Heiho Kadensho de Yagyu Munenori e o Gorin no Sho de  Miyamoto  Musashi.  Esses  homens  tinham  estilos  diferentes,  mas  suas  conclusões  reúnem  intuições  e  entendimentos  de  nível  elevadíssimo,  quer  sejam  expressos  como  a  "liberdade  e  espontaneidade"  de  Musashi, a "mente comum que não conhece regras" de Munenori ou a "mente liberta" de Takuan.  Para Takuan, a culminação do Caminho não eram a morte e a destruição, mas a Iluminação e a salvação. O  conflito, visto segundo uma mente "reta", não somente dá vida, como a dá em abundância. 

           

  O REGISTRO MISTERIOSO DA 

SABEDORIA  I MÓVEL  Fudochishinmyoroku    Takuan Soho    para Yagyu Munenori   

 

 

1.1

A AFLIÇÃO DE REPOUSAR NA IGNORÂNCIA 

O termo ignorância significa a ausência de Iluminação; isto é, a ilusão.  Lugar de repouso significa o lugar onde a mente se fixa.  Diz‐se que na prática do Budismo há 52 estágios; dentro deles, o lugar onde a mente se fixa em alguma coisa  é chamado lugar de repouso. Repousar significa fixar‐se, e fixar‐se significa que a mente está sendo detida  por algum tipo de matéria – qualquer tipo.  Nos  termos  da  tua  própria  arte  marcial:  quando  tu  percebes  a  espada  que  vem  abater‐se  sobre  ti,  se  tu  pensares em enfrentar essa espada tal como ela está, tua mente vai fixar‐se na espada segundo a posição  em que ela se encontra; teus movimentos se perderão e tu serás atingido pelo oponente. É isso que significa  fixar‐se.  Embora vejas a espada que vem abater‐se sobre ti, se a tua mente não for detida por ela e tu te conformares  ao  ritmo  da  espada  que  avança;  se  tu  não  pensares  em  abater  o  oponente  e  eliminares  de  ti  todo  pensamento  ou  julgamento;  se,  no  instante  em  que  tu  vês  o  golpe  da  espada,  tua  mente  não  for  minimamente detida e tu avançares e arrancares dele a espada; então, a espada que vinha atingir‐te será a  tua própria espada e, de modo contrário, será a espada que atingirá o teu oponente.  No Zen, diz‐se que isso é "Agarrar a lança e ferir aquele que vinha te ferir". A lança é uma arma. A essência  disso é que a espada que  tu arrancas do teu adversário é a  espada que vem  a atingi‐lo. É isso que, no teu  estilo, se chama "lutar espada sem espada".  Quer pelo golpe do inimigo, quer pelo teu próprio golpe; quer pelo homem que golpeia, quer pela espada  que corta; quer pela posição, quer pelo ritmo, se a tua mente se desviar de alguma maneira, tuas ações não  serão perfeitas, e isso pode fazer com que sejas atingido.  Se te colocares perante o teu oponente, tua mente será capturada por ele. Tu não deves situar a tua mente  dentro  de  ti.  Conter  a  mente  dentro  do  corpo  é  algo  que  só  é  feito  pelos  principiantes,  no  início  do  treinamento.  A mente pode ser capturada pela espada. Se manténs a mente no ritmo da luta, também por isso ela pode  ser capturada. Se fixas a mente na tua própria espada, a espada pode captura‐Ia. Quando a mente se fixa em  qualquer  um  desses  lugares,  tu  te  tornas  uma  casca  vazia.  Sem  dúvida,  tu  mesmo  te  recordas  de  tais  situações. A mesma coisa se aplica ao Budismo.  No  Budismo,  chamamos  esse  ato  de  fixar  a  mente  de  ilusão.  Por  isso  dizemos:  "A  aflição  de  repousar  na  ignorância."     

1.2

A SABEDORIA IMÓVEL DE TODOS OS BUDAS  

Imóvel é aquilo que não se move. Sabedoria é a sabedoria da inteligência.  Embora se diga que a sabedoria é imóvel, ela não o é como um objeto inanimado, um pedaço de madeira ou  uma pedra. Ela se move como a mente está habituada a mover‐se: para frente e para trás, para a esquerda e  para a direita, nas dez direções e rumo aos oito pontos; e a mente que jamais se fixa é chamada sabedoria  imóvel.  Fudo  Myô1  empunha  uma  espada  com  a  mão  direita  e  segura  uma  corda  com  a  esquerda.  Ele  mostra  os  dentes e o brilho da cólera reluz em seus olhos. Firme e forte, está pronto a derrotar os maus espíritos que  combatem a Lei do Buda.  Ele não está oculto em algum lugar especifico. Sua figura é a de um protetor do  Budismo, e a sua forma é a da sabedoria imóvel. Eis o que se mostra a todos os seres.                                                                    

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  Fudo  Myô  significa,  literalmente,  "Rei  Iluminado  Imóvel"  (sânscrito  Achara).  É  uma  das  Cinco  Divindades  da  Sabedoria. O Zen o considera uma manifestação da verdadeira natureza de todas as coisas vivas. 

1   

 

Vendo  essa  figura,  o  homem  comum  sente  medo  e  renuncia  a  ser  um  inimigo  do  Budismo.  O  homem  próximo da Iluminação compreende que ela manifesta a sabedoria imóvel e se desfaz de toda ilusão. Assim  como  os  maus  espíritos  não  têm  acesso  a  Fudo  Myô,  assim  também  não  o  têm  ao  homem  que  faz  transparecer  a  sua  sabedoria  imóvel  e  é  capaz  de  praticar  na  mente  esse  dharma.  É  esse  o  propósito  das  saudações a Fudo Myô.  Diz‐se que o que se chama Fudo Myô é a mente imóvel e o corpo irresistível.  Irresistível é aquilo que não é detido por nada.  Imóvel é olhar para algo e não fixar a mente. Isso porque, quando a mente se fixa em algo, o peito se enche de  juízos e é agitado por vários movimentos. Quando esses movimentos se esgotam, a mente fixada se move,  mas na verdade não se move de maneira alguma.  Supõe  que  dez  homens,  cada  um  deles  com  uma  espada,  se  abatam  repentinamente  sobre  ti.  Se  tu  te  desviares de cada espada sem fixar a mente em nenhuma ação, e passares de cada um ao seguinte, tua ação  será perfeita para cada um dos dez.  Embora a mente aja dez vezes contra dez homens, poderá a ação deixar de ser perfeita se a mente não se  fixar em nenhum deles e tu reagires a cada um deles sucessivamente?  Supõe,  porém,  que  a  mente  se  detenha  perante  um  desses  homens.  Embora  tu  te  desvies  da  sua  espada,  quando o próximo homem vier, a ação perfeita terá escapado de ti.  Considera a Kannon2 de Mil Braços, que tem mil braços saindo de um só corpo. Se a mente se fixar no braço  que  segura  um  arco,  os  demais  999  serão  perfeitamente  inúteis.  É  porque  a  mente  não  se  detém  num  determinado lugar que todos os braços são úteis.  Quanto a Kannon, por que ela tem mil braços ligados a um só corpo? Essa figura foi criada com a intenção  de  revelar  aos  homens  que,  mesmo  que  um  corpo  tenha  mil  braços,  cada  um  deles  será  útil  se  a  sua  sabedoria imóvel for libertada.  Supõe que tu te depares  com uma árvore. Se olhares para uma única folha vermelha, não verás nenhuma  das outras. Quando o olho não se volta para nenhuma folha em particular e tu olhas a árvore com a mente  absolutamente vazia, o olho é capaz de captar um número ilimitado de folhas. Mas quando uma única folha  prende o olhar, é como se as demais folhas não estivessem lá.  Aquele que compreendeu isso é idêntico à Kannon de mil braços e mil olhos.  O homem comum crê, muito simplesmente, que ela é abençoada por ter mil braços e mil olhos. O homem  de sabedoria imatura, perguntando‐se como alguém pode ter mil olhos, afirma ser ela uma mentira e cede à  blasfêmia. Mas o homem dotado de alguma compreensão tem uma crença reverente baseada nos princípios  e  não  precisa  nem  da  fé  simples  do  homem  comum  nem  da  blasfêmia  do  outro;  ele  compreende  que  o  Budismo, por meio desse único objeto, manifesta muito bem o seu princípio.  Todas as religiões são assim. Percebi que o Xintoísmo, em especial, é assim.  O homem comum tem um pensamento superficial.  Aquele que ataca o Budismo é ainda pior.  Esta religião, aquela religião – existem várias; mas, no seu ponto mais profundo, todas elas chegam a uma  única conclusão.  De  qualquer  modo,  quando  um  homem  pratica  a  disciplina  e  parte  do  território  do  principiante  rumo  à  sabedoria imóvel, ele termina por voltar a cair de novo no nível do principiante, o lugar de repouso.  Isso tem uma razão de ser.                                                                     2

  Kannon,  uma  Bodhisattva,  Deusa  da  Misericórdia  Budista  (em  sânscrito,  Avalokiteshwara).  Era  representada  originalmente como uma figura masculina. Em uma de suas três formas mais comuns de figuração, possui mil olhos e  mil mãos. 

2   

 

Mais uma vez, podemos nos referir à tua própria arte marcial. Como o principiante nada sabe a respeito da  postura  corporal  ou  de  como  empunhar  a  espada,  sua  mente  não  se  fixa  em  lugar  algum  dentro  dele.  Se  alguém o golpeia com a espada, ele faz frente ao ataque sem ter nada em mente.  À  medida  que  ele  estuda  várias  coisas  e  aprende  as  diversas  posturas,  a  maneira  de  segurar  a  espada  e  o  lugar onde concentrar a mente, sua mente se fixa em muitos objetos. Nesse ponto, quando ele quer golpear  um oponente, seu desconforto é muito grande. Mais tarde, à medida que os dias vão passando e o tempo vai  se  acumulando,  de  acordo  com  a  sua  prática,  nem  as  posturas  do  corpo  nem  as  maneiras  de  empunhar  a  espada terão importância. Sua mente se torna simples como era no princípio, quando ele nada sabia e ainda  tinha tudo por aprender.  Nisso  se  vê  o  sentido  de  se  dizer  que  o  princípio  é  igual  ao  fim;  é  como  contar  de  um  a  dez,  quando  o  primeiro e o último número ficam adjacentes um ao outro.  Também em outras coisas – nas notas musicais, por exemplo, quando se vai da nota inicial, a mais grave, até  a final, a mais aguda – o mais baixo e o mais alto ficam um ao lado do outro.3  Nós  dizemos  que  o  mais  alto  e  o  mais  baixo  são  semelhantes.  O  Budismo,  quando  se  chega  à  sua  profundidade, é semelhante ao homem que nada sabe do Buda ou da Lei de Buda. Não possui adornos nem  qualquer outra coisa que possa chamar a atenção dos homens.  A ignorância e as aflições do princípio, o lugar de repouso e a sabedoria imóvel que vem depois tornasse uma  só coisa. A função do intelecto desaparece, e chega‐se a um estado de Não‐Mente‐Não‐Pensar. Quando se  chega ao ponto mais profundo, os braços, as pernas e o corpo já sabem o que fazer, mas a mente não tem  nenhuma participação nisso.  O sacerdote budista Bukkoku escreveu:  Embora não se dedique a montar guarda  Nos pequenos campos da montanha  O espantalho  Não está de pé em vão.  Tudo é assim.  Para fazer um espantalho para os campos da montanha, o agricultor fabrica uma figura humana e põe‐lhe  nas  mãos  um  arco  e  uma  flecha.  Os  pássaros  e  animais  o  vêem  e  fogem.  Essa  figura  não  tem  mente  de  espécie alguma; mas, se os veados sentem medo e fogem, na medida em que ela cumpriu sua função, ela  não foi criada em vão.  Esse é um exemplo do comportamento daqueles que percorreram boa parte de qualquer Caminho. Embora  mãos,  pés  e  corpo  se  movimentem,  a  mente  não  se  fixa  em  lugar  nenhum  e  a  pessoa  não  sabe  onde  sua  mente está. No estado de Não‐Mente‐Não‐Pensar, a pessoa chegou ao grau do espantalho nos campos da  montanha.  Do homem comum que não encontrou seu caminho, podemos dizer que ele jamais teve sabedoria e que ela  jamais  se  manifestará,  quaisquer  que  sejam  as  circunstâncias.  A  sabedoria  suprema,  estando  no  mais  remoto dos lugares, absolutamente não se manifestará. Por fim, o sabichão imaturo despeja sua sabedoria,  direto do alto da cabeça, e isso é ridículo. Os trajes e as maneiras dos sacerdotes de hoje podem e devem ser  vistos sob essa luz, e isso é motivo de grande vergonha.  Existe um treinamento que diz respeito ao principio e um treinamento que diz respeito à técnica.  O princípio é como já expliquei: quando se chega, nada se percebe. É como se a pessoa se tivesse desfeito de  toda concentração. Escrevi extensamente sobre isso um pouco acima. 

                                                                   3

 Neste ponto, o texto dá o nome das doze notas da escala musical usada na China e no Japão. Da mais grave para a  mais aguda, elas são: ichikotsu, tangin, hyojo, shozetsu, shimomu, sojo, fusho, tsukuseki, ban (dakei), banshiki, shinsen,  kamimu. 

3   

 

Se  tu  encheres  o  teu  peito  do  princípio  mas  não  te  treinares  na  técnica,  teu  corpo  e  tuas  mãos  não  funcionarão. No contexto da tua própria arte marcial, o treinamento que diz respeito à técnica é aquele que,  quando praticado muitas e muitas vezes, faz das cinco posturas corporais uma só.  Muito embora conheças o princípio, é preciso que te tornes perfeitamente livre no uso da técnica. E muito  embora possas ser agilíssimo em empunhar a espada que carregas contigo, tampouco atingirás a maestria  se não compreenderes os aspectos mais profundos do princípio.  A técnica e o princípio são semelhantes às duas rodas de uma carruagem.     

1.3

O INTERVALO EM QUE NÃO HÁ ESPAÇO SEQUER PARA UM FIO DE CABELO 

De fato existe um intervalo em que não há espaço sequer para um fio de cabelo. Para falar disso, tomemos  como exemplo a tua arte marcial.  Intervalo é quando duas coisas se juntam uma à outra, e nem algo da espessura de um fio de cabelo pode ficar  entre elas.  Quando bates as mãos em palma e, no mesmo instante, soltas um grito, o intervalo entre o bater palmas e o  gritar não deixa espaço sequer para um fio de cabelo.  Não se trata de bater palmas, pensar em gritar e então fazê‐Io; isso resultaria num intervalo entre as duas  coisas. Bates as mãos em palma e, no mesmíssimo instante, produzes um som.  Do mesmo modo, se a mente se fixar na espada com a qual um inimigo vai te golpear, haverá um intervalo e  tua  ação  será  perdida.  Mas  se  nem  um  fio  de  cabelo  puder  introduzir‐se  no  intervalo  entre  a  espada  do  oponente e a tua ação, a espada do teu oponente tornar‐se‐á a tua própria.  O mesmo se diz nas discussões sobre o Zen. No Budismo, abominamos a fixação da mente que permanece  ligada a isso ou a aquilo. Chamamos essa fixação de aflição.  É como uma bola que flutua sobre uma corrente de água que se move rapidamente: respeitamos a mente  que flui dessa maneira e não se fixa nem por um instante num determinado lugar.     

1.4 A AÇÃO DA FAGULHA E DA PEDRA  Há também a ação da fagulha e da pedra, que é semelhante ao que acabei de dizer. No mesmo instante em  que  golpeias  a  pedra,  aparece  a  fagulha.  Como  ela  aparece  no  mesmíssimo  instante  em  que  golpeias  a  pedra, não há intervalo nem interstício. Também isso equivale à ausência do intervalo que fixa a mente.  Seria um erro compreender isso como simples rapidez. Antes, o que isso salienta é que a mente não deve ser  detida  pelas  coisas;  revela  que,  mesmo  com  velocidade,  é  essencial  que  a  mente  não  se  fixe.  Quando  a  mente se fixa, ela é capturada pelo oponente. Por outro lado, se a mente contempla o fato de ser rápida e se  move velozmente à ação, ela é capturada por sua própria contemplação.  Entre os poemas de Saigyo4 encontra‐se o seguinte:  De ti, só se ouve dizer  que és um homem que abomina o mundo.  Só posso esperar  que tua mente não seja detida  por esse abrigo transitório.                                                                    

4

 Saigyo (1.118‐90): sacerdote Shingon do período Heian tardio, famoso por suas viagens e muitíssimo admirado como  poeta. 

4   

 

Ele atribui esse poema à cortesã de Eguchi5.  A  última  parte  desse  verso  –  "Só  posso  esperar  /  que  tua  mente  não  seja  detida..."  –  pode  ser  mencionada  corno algo que chega ao próprio coração das artes marciais. É essencial que a mente não seja detida.  No  Zen,  quando  alguém  pergunta  "o  que  é  o  Buda?",  deve‐se  levantar  o  punho  cerrado.  Quando  alguém  pergunta "Qual é o sentido último da Lei de  Buda?", deve‐se responder imediatamente: "Um único ramo da  cerejeira em flor", ou "O cipreste no jardim".  Não se trata de escolher uma resposta boa ou má. Nós respeitamos a mente que não se fixa. A mente que  não se fixa não é movida nem pela cor nem pelo cheiro.  Não importa que a forma dessa mente imóvel seja reverenciada como um deus, respeitada como um Buda  ou chamada de Espírito do Zen ou Sentido Último; se a pessoa pensar e depois falar, mesmo que pronuncie  palavras de ouro ou versos misteriosos, isso não passará da aflição do lugar de repouso.  Não se pode dizer que a ação da pedra e da fagulha tem a velocidade de um relâmpago?  Sabedoria  imóvel  é  ser  chamado  e  responder  "Sim?"  imediatamente.  Quando  se  é  chamado,  a  hesitação  quanto ao por que e o para quê do chamado é a aflição do lugar de repouso.  A mente que se fixa ou é movida por algo é lançada na confusão – tal é a aflição do lugar de repouso, e tal é o  homem comum. Ser chamado e responder sem intervalo é a sabedoria de todos os Budas.  O Buda e todos os seres não são duas coisas. Essa mente é considerada um deus ou um Buda.  Embora  haja  muitos  caminhos  –  o  caminho  dos  deuses,  o  caminho  da  poesia,  o  caminho  de  Confúcio  –,  todos eles compartilham da clareza dessa mente única.  Quando explicamos a mente com palavras, dizemos coisas tais como "Todos possuem essa mente", ou "Bons  e maus acontecimentos, o nascer e o pôr‐do‐sol ocorrem segundo o Karma", ou "Quer a pessoa deixe sua casa,  quer leve seu país à ruína, tal é um reflexo do seu caráter, pois tanto o bem quanto o mal dependem da mente da  pessoa". Se as pessoas quiserem conhecer essa mente, elas decerto serão confundidas se não houver um ser  verdadeiramente Iluminado que lhas mostre.  Neste mundo, não há dúvida de que há pessoas que não conhecem a mente. Também é claro que há aqueles  que a compreendem, por raros que sejam. Embora às vezes surja alguém que a compreenda, não é habitual  que essa pessoa aja de acordo com o que compreende; então, embora seja capaz de explicar muito bem a  mente, é duvidoso que a compreenda em profundidade.  Pode‐se explicar a água, mas nem por isso a boca ficará molhada. Podem‐se fazer longas dissertações sobre  a natureza do fogo, mas a boca não se aquecerá.  Sem  tocar  na  água  verdadeira  e  no  fogo  verdadeiro,  ninguém  pode  conhecer  essas  coisas.  Mesmo  a  explicação de um livro não o tornará compreensível. O alimento pode ser definido em poucas palavras, mas  isso não basta para aliviar a fome.  Não se chega à compreensão a partir da explicação de outra pessoa.  Neste  mundo,  há  budistas  e  confucionistas  que  explicam  a  mente,  mas  suas  ações  não  correspondem  às  suas  explicações.  A  mente  dessas  pessoas  não  é  verdadeiramente  Iluminada.  Se  a  pessoa  não  esclarecer  perfeitamente o que é a sua própria mente, ela não terá compreensão.  Muitos dos que estudam não compreendem a mente, mas não se trata de mera questão de números. Não há  um  só  dentre  eles  que  tenha  uma  boa  disposição.  É  preciso  dizer  que  a  iluminação  da  própria  mente  depende da profundidade do esforço feito.                                                                        

5

 Eguchi localizava‐se dentro da moderna cidade de Osaka. Diz‐se que, certa noite, Saigyo parou por lá e pediu abrigo,  dando ensejo a essa resposta da cortesã. 

5   

 

1.5

ONDE SITUAR A MENTE6 

Nós Dizemos:  Se  a  pessoa  situa  a  mente  na  ação  do  corpo  do  oponente,  sua  mente  será  capturada  pela  ação  do  corpo  do  oponente.  Se ela situa a mente na espada do oponente, sua mente será capturada por essa espada.  Se  ela  situa  a  mente  em  pensamentos  sobre  a  intenção  do  oponente  de  golpeá‐la,  sua  mente  será  capturada  pelos pensamentos sobre a intenção do oponente de golpeá‐Ia.  Se ela situa a mente em sua própria espada, sua mente será capturada por sua própria espada.  Se ela situa a mente na sua própria intenção de não ser atingida, sua mente será capturada por sua intenção de  não ser atingida.  Se ela situa a mente na postura do oponente, sua mente será capturada pela postura do oponente.  O que isso quer dizer é que não há lugar onde situar a mente.  Certa vez, uma pessoa disse: "Onde quer que eu situe a minha mente, minhas intenções ficam presas ao lugar  para  onde  ela  vai,  e  eu  perco  o  combate.  Por  isso,  situo  minha  mente  logo  abaixo  do  umbigo7  e  não  a  deixo  vaguear. Dessa maneira, sou capaz de mudar de acordo com as ações do meu oponente."  Isso  é  razoável.  Mas,  segundo  o  ponto  de  vista  mais  elevado  do  Budismo,  situar  a  mente  logo  abaixo  do  umbigo  e  não  deixá‐la  vaguear  não  corresponde  a  um  alto  nível  de  compreensão,  mas  a  um  nível  baixo.  Corresponde ao nível da disciplina e do treinamento, ou ao nível da seriedade8. Corresponde ainda ao dito de  Mêncio: "Buscai a mente perdida."  9 Tampouco é esse o nível mais alto. Seu sentido é a seriedade. Quanto à  "mente perdida", escrevi sobre isso em outra ocasião, e lá poderás encontrar a resposta.  Supõe que tu situes a mente abaixo do umbigo e não a deixes vaguear: tua mente será capturada pela mente  que  concebe  esse  plano.  Tu  não  terás  a  capacidade  de  avançar  e  serás  como  um  escravo,  sem  liberdade  alguma.  Isso leva a uma pergunta: "Se o ato de situar a mente abaixo do umbigo me deixa preso e incapaz de agir, ela  não tem utilidade nenhuma. Sendo assim, em que parte do corpo devo situar a mente?"  Respondi: "Se tu a situares na mão direita, ela será capturada pela mão direita e o corpo perderá sua capacidade  de ação. Se tu a situares no olho, ela será capturada pelo olho e o corpo perderá sua capacidade de ação. Se tu a  situares no pé direito, ela será capturada pelo pé direito e o corpo perderá sua capacidade de ação. Não importa  onde a situes; se a situares num só lugar, o restante do corpo perderá a capacidade de ação."  Pergunta: "Então, onde situar a mente?"  Eu  respondi:  "Se  não  a  situares  em  lugar  nenhum,  ela  irá  a  todas  as  partes  do  teu  corpo  e  o  preencherá  inteiramente. Dessa maneira, penetrando na tua mão, ela realizará a função da mão. Penetrando no teu pé, ela  realizará a função do pé. Penetrando no teu olho, ela realizará a função do olho.                                                                     6

 O termo traduzido por situar a mente em pode, evidentemente, ser traduzido também como concentrar‐se em. Esse  último verbo, porém, restringe o sentido original que o autor quis dar ao texto. Deve‐se manter em mente ambas as  idéias.  7

 O tanden, ponto situado três dedos abaixo do umbigo, é considerado por alguns taoístas como a morada da própria  mente. Ele fica muito próximo do centro de gravidade do corpo e é muito mencionado nos textos sobre artes marciais. 

8

  Seriedade, traduzida também como reverência, significa, para os neoconfucianos, uma atitude interior de atenção e  compostura aplicada aos esforços ativos. Enquanto estado desejável da mente, ela contém também, em certa medida,  o sentido de meditação. 

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 A citação é tirada de Mêncio (Livro 6, parte 1, capítulo 11): "Disse Mêncio: 'A compaixão é a mente do ser humano. A  justiça é o seu caminho. É lastimável que ele abandone esse caminho e não confie nele; que ele perca a sua mente e não  saiba buscá‐la. Quando um homem perde uma galinha ou um cachorro, ele sabe procurá‐los: mas, tendo perdido a própria  mente, não sabe procurá‐la. O Caminho do Conhecimento resume‐se em buscar a mente perdida.''' 

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Se tu te decidires por um lugar e lá situares a mente, ela será capturada por esse lugar e perderá sua função. Se a  pessoa pensar, ela será capturada por seus pensamentos.  Portanto, deixa de lado os pensamentos e a discriminação, lança a mente para fora do corpo inteiro e não a fixes  nem aqui nem lá; então, quando ela visitar os vários lugares, ela realizará a função própria e agirá sem erro."  Situar a mente num só lugar é cair na parcialidade. Parcialidade é a preferência por um determinado lugar. A  retidão  está  no  movimento  que  atinge  qualquer  lugar.  A  Mente  Correta  se  manifesta  quando  a  mente  preenche o corpo inteiro. Ela não prefere um lugar a outro.  Quando  a  mente  prefere  um  determinado  lugar  e  tem  aversão  por  outro,  ela  é  chamada  mente  parcial.  A  parcialidade é abominável. Ser detido por qualquer coisa – o que quer que seja – é cair na parcialidade, e é  algo abominado por todos aqueles que trilham o Caminho.  Quando  a  pessoa  não  pensa  "Onde  devo  situá‐la?",  a  mente  preenche  o  corpo  inteiro  e  é  capaz  de  atingir  qualquer lugar que seja.  Sem situar a mente num lugar determinado, será possível à pessoa usar a mente, direcionando‐a daqui para  lá e reagindo aos movimentos do oponente?  Supõe que a mente se mova pelo corpo inteiro.  Quando a mão é chamada à ação, deve‐se usar a mente que está na mão. Quando o pé é requisitado, deve‐ se usar a mente que está no pé. Mas supõe‐se que determines um único lugar onde situá‐Ia; quando tentares  tirá‐Ia desse lugar, ela permanecerá ali. Ela não terá função.  Supõe que mantenhas a mente amarrada como um gatinho e não a deixes vaguear; contendo‐a dentro de ti,  dentro de ti ela será detida. Abandonando‐a dentro do teu corpo, ela não irá a lugar nenhum.  O esforço de não fixar a mente num único lugar eis a disciplina. Não fixar a mente é o objeto e a essência.  Não  a  situando  em  lugar  nenhum,  ela  está  em  todo  lugar.  Mesmo  movendo  a  mente  fora  do  corpo,  enviando‐a a uma determinada direção, ela estará ausente das outras nove. Quando não se restringe a uma  direção única, está presente nas dez.     

1.6 A MENTE RETA E A MENTE CONFUSA  A Mente Reta é a mente que não permanece em um lugar determinado, é a mente que se estende por todo o  corpo e por todo o ser.  A Mente Confusa é aquela que, pensando em alguma coisa, congela‐se num único lugar.  Quando a Mente Reta congela e acomoda‐se num único lugar, ela se transforma naquilo que se chama Mente  Confusa.  Quando  a  Mente  Reta  se  perde,  deixa  de  funcionar  aqui  e  lá.  Por  esse  motivo,  é  importante  não  perdê‐Ia.  Por não permanecer num lugar determinado, a Mente Reta é como a água. A Mente Confusa é como o gelo, e  com gelo não se pode lavar as mãos nem a cabeça. Quando o gelo derrete, ele se transforma em água e flui  para todo lugar, podendo‐se usá‐Io para lavar as mãos, os pés ou qualquer outra coisa.  Quando a mente se congela num determinado lugar e permanece ligada a uma coisa, assemelha‐se à água  congelada  e  não  pode  ser  usada  livremente:  é  gelo,  com  o  qual  não  é  possível  lavar  as  mãos  nem  os  pés.  Quando a mente é derretida e é usada como água, preenchendo o corpo inteiro, ela pode ser enviada para  onde quer que se seja.  Assim é a Mente Reta.     

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1.7

A MENTE DA MENTE EXISTENTE E A MENTE DA NÃO‐MENTE 

A  Mente  Existente  é  idêntica  à  Mente  Confusa  e  significa  literalmente  a  "mente  que  existe".  É  a  mente  que  pensa numa direção determinada, qualquer que seja o objeto de seu pensamento. Quando existe na mente  um objeto de pensamento, surgem a discriminação e os pensamentos. É isso que se conhece como Mente  Existente.  A Não‐Mente é idêntica à Mente Reta. Ela jamais se congela nem se fixa num determinado lugar. Chama‐se  Não‐Mente  o  estado  em  que  a  mente  não  abriga  nem  discriminação  nem  pensamento,  mas  caminha  pelo  corpo inteiro e preenche o ser como um todo.  A  Não‐Mente  não  se  situa  em  lugar  nenhum.  Mesmo  assim,  ela  não  se  assemelha  à  madeira  ou  à  pedra.  Chama‐se Não‐Mente onde não há lugar de repouso. Quando ela se fixa, há algo na mente. Quando não há  nada na mente, chama‐se isso de mente da Não‐Mente. Chama‐se também Não‐Mente‐Não‐Pensar.  Quando essa Não‐Mente está bem desenvolvida, a mente não se fixa em nada nem sente falta de nada. É  semelhante  à  água  transbordante  e  existe  dentro  de  si  mesma.  Manifesta‐se  em  sua  melhor  forma  nas  épocas de necessidade.  A mente que enrijece e se fixa num determinado lugar não funciona livremente. Do mesmo modo, as rodas  de uma carruagem giram porque não estão rigidamente fixas. Se estivessem muito apertadas, não girariam.  Também a mente não funciona quando se apega a uma situação determinada.  Supõe  que  haja  algum  pensamento  dentro  da  mente;  embora  tu  ouças  as  palavras  ditas  por  outrem,  não  serás capaz de escutá‐las. Isso ocorre porque a tua mente se fixa nos teus pensamentos.  Quando a tua mente se inclina na direção desses pensamentos, embora tu ouças, não escutarás; e embora  olhes, não verás. Isso ocorre porque há algo na tua mente, e esse algo que lá existe é o pensamento. Se tu  fores capaz de eliminar esse algo que lá esta, tua mente se transformará na Não‐Mente, funcionará sempre  que necessário e será perfeitamente adequada ao uso.  A mente que pensa em eliminar o que contém dentro de si será ocupada por esse mesmo ato. Se a pessoa  não pensar a respeito, a mente eliminará os pensamentos por si mesma e por si mesma transformar‐se‐á na  Não‐Mente.  Se  a  pessoa  sempre  trata  a  própria  mente  desse  modo,  um  dia  ela  entrará  neste  estado  por  si  mesma.  Aquele que procura atingir esse estado à força jamais o atingirá.  Diz um velho poema:  Pensar: "Não vou pensar" –  Também é algo que está nos pensamentos.  Simplesmente não pense  Sobre não pensar em absoluto.       

1.8 LANCE O CANTIL NA ÁGUA E EMPURRE‐O PARA BAIXO;  ELE VAI VIRAR PARA CIMA E VOLTAR À SUPERFÍCIE  Empurrar um cantil, no caso, é empurrá‐la com a mão. Quando se lança um cantil na água e ele é empurrado  para baixo, de repente ele escapa para um dos lados e volta à superfície. O que quer que se faça, é algo que  não pára num só lugar.  A mente daquele que chegou [na outra margem] não se fixa nem por um momento num objeto determinado.  É como empurrar o cantil para baixo d'água.    8   

 

 

1.9 GERAR A MENTE QUE NÃO TEM LUGAR DE REPOUSO  Na nossa escrita sino‐japonesa, isso se pronuncia omushoju jijogoshin.  Não importa o que a pessoa faça; quando ela gera a mente que pensa sobre algo, a mente se fixa nesse algo.  Portanto, deve‐se gerar a mente que não tem lugar onde se fixar.  Quando não se gera a mente, a mão não avança.  Aqueles que, ao avançar, geram a mente que de hábito se fixa nesse avanço, mas ao mesmo tempo não se  fixam em absoluto no decurso da ação – estes se chamam os homens realizados de todos os Caminhos.  A  mente  apegada  nasce  da  mente  que  se  fixa.  Também  o  ciclo  da  transmigração  nasce  daí.  A  fixação  transforma‐se nos laços da vida e da morte.  Supõe que alguém olhe para as flores da cerejeira ou as folhas das árvores no outono. Enquanto a pessoa  gera a mente que olha para essas coisas, é essencial não fixar‐se nelas.  Diz o poema de Jien10:  A flor que recende seu perfume  diante da minha porta de junco  O faz sem cuidados.  Eu, porém, sento‐me e olho –  Como é triste este mundo.  Isso  significa:  a  flor  desprende  seu  perfume,  com  a  Não‐Mente;  enquanto  isso,  eu  olho  para  ela  e  minha  mente não vai além. É lastimável que a minha mente me tenha paralisado desse modo!  Faze disso um princípio secreto: ao veres ou ouvires, não detenhas a mente num lugar determinado.  A palavra seriedade é explicitada pelo dito: "Uma meta, nenhuma distração."  11 A mente é estabelecida num  só  lugar  e  não  se  deixa  que  ela  se  movimente.  Mais  tarde,  mesmo  ao  desembainhar  a  espada  para  dar  o  golpe, considera‐se essencial não permitir que a mente se movimente na direção do golpe. Especialmente  em questões tais como a de receber ordens do teu senhor, deve‐se manter a palavra seriedade diante dos  olhos da mente o tempo todo.  Também  no  Budismo  temos  o  espírito  da  seriedade.  Quando  soa  três  vezes  o  sino  chamado  Sino  da  Reverência, nós juntamos as mãos e nos inclinamos. Essa atitude de reverência, na qual a primeira coisa a  fazer é entoar o nome do Buda, é idêntica a ter "uma meta, nenhuma distração" ou "a mente sem confusão".  O  espírito  de  seriedade  não  é  o  nível  mais  profundo  do  Budismo.  Conter  a  própria  mente,  sem  deixá‐Ia  confusa, é a disciplina do noviço que apenas principiou no caminho do aprendizado.  Essa prática, quando levada a efeito por muito tempo, leva àquele nível de liberdade em que se pode deixar  a  mente  ir  a  qualquer  direção.  O  nível  acima  mencionado,  o  de  "engendrar  a  mente  que  não  tem  lugar  de  repouso", é o mais elevado de todos.  O significado da palavra seriedade está em conter a mente e não enviá‐Ia a outros lugares; o pensamento é  que, se a mente for liberada, ela se confundirá. O que ocorre nesse nível é uma constrição da mente, e não se  permite sequer um til de negligência.  É como um gato que caçou um filhote de pardal. Para evitar que isso aconteça de novo, o gato é amarrado  com uma corda e permanece sempre preso.  Se  a  minha  mente  está  amarrada  como  um  gato,  ela  não  está  livre  e,  provavelmente,  é  incapaz  de  atuar  como  deve.  Quando  o  gato  está  bem  treinado,  a  corda  é  desamarrada  e  deixa‐se  que  ele  vá  para  onde                                                                    

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 Jien (1155‐1225), também muito conhecido pelo nome de Jichin, foi um poeta e monge da escola Tendai. 

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 Frase que era usada freqüentemente pelos neoconfucianos chineses para explicar a "seriedade". 

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quiser. A essa altura, mesmo que os dois estejam juntos, o gato não vai mais caçar o pardal. Esse é o sentido  da expressão "gerar a mente que não tem lugar de repouso".  Embora eu solte minha mente e a ignore como faço com o gato, embora ela possa ir aonde quiser, é assim  que se usa a mente de modo a não fazê‐Ia fixar‐se.  Tomemos um exemplo da tua própria arte marcial: a mente não é detida pela mão que empunha a espada.  Completamente alheia à mão que empunha a espada, a pessoa golpeia e corta seu oponente. Ela não situa a  mente no adversário. O oponente é o Vazio. Eu sou o Vazio. A mão que brande a espada, a própria espada, é  o Vazio. Compreende isso, mas não deixes que a tua mente seja capturada pelo Vazio.  Quando  Mugaku12,  sacerdote  Zen  de  Kamakura,  foi  capturado  durante  os  distúrbios  ocorridos  na  China  e  estava a ponto de ser degolado, ele recitou o gatha13: "Com a rapidez de um relâmpago / Decepa a brisa da  primavera" – então, o soldado jogou longe a espada e fugiu.  Mugaku queria dizer que no brandir a espada, no momento infinitesimal em que refulge o relâmpago, não  há mente nem pensamento. Para a espada que golpeia, não há mente. Para mim, que estou a ponto de ser  golpeado, não há mente. Aquele que ataca é o Vazio. Sua espada é o Vazio. Eu mesmo, que estou a ponto de  ser degolado, sou o Vazio.  Sendo assim, o homem que golpeia não é um homem de maneira alguma. A espada que golpeia não é uma  espada. E para mim mesmo, a pessoa que está a ponto de ser degolada, no refulgir de um relâmpago, será  como  decepar  a  brisa  que  sopra  pelo  céu  da  primavera.  É  a  mente  que  absolutamente  não  se  fixa.  E  é  improvável que a espada reaja a decepar o vento.  Esquece por completo da mente, e farás bem todas as coisas.  Quando  tu  danças,  a  mão  segura  o  leque,  e  o  pé  dá  um  passo.  Se  não  te  esqueces  de  tudo,  se  continuas  pensando  em  fazer  movimentos  precisos  com  as  mãos  e  os  pés  e  em  dançar  bem,  não  se  pode  dizer  que  tenhas habilidade. Quando a mente se fixa nas mãos e nos pés, nenhum dos teus atos é único e singular. Se  não te desfizeres por completo da mente, nada do que fizeres será bem feito.     

1.10 BUSCAI A MENTE PERDIDA  Trata‐se de um dito de Mêncio que significa que a pessoa deve buscar a mente perdida e fazê‐la voltar a si.14  Se um cão, gato ou galo escapou e fugiu para outro lugar, o dono sai para procurá‐lo e fazê‐lo voltar para  casa. Do mesmo modo, quando a mente, senhora do corpo, se extraviou por um caminho vil, por que não  sair em busca dela para fazê‐Ia voltar a nós? Isso é perfeitamente razoável.  Mas  há  também  este  dito  de  Shao  K'ang‐chieh15:  "É  essencial  perder  a  mente."  Isso  é  outra  coisa.  A  tendência geral é a de que a mente, quando amarrada, acaba por se cansar; então, como o gato, é incapaz  de  atuar  como  deve.  Se  a  mente  já  não  se  fixa  nas  coisas,  ela  já  não  é  maculada  por  elas  e  pode  ser  bem  utilizada. Deixe‐a livre para correr por onde bem quiser.  A mente é maculada e fixada pelas coisas; por isso, nós somos advertidos a não deixar que isso aconteça, e  admoestados a sair em busca dela para fazê‐Ia voltar a nós. Esse é o primeiríssimo estágio do treinamento.                                                                     12   Mugaku  (1226‐86):  sacerdote  chinês  da  escola  Linchi  (Rinzai),  trazido  ao  Japão  por  Hojo  Tokimune  em  1.278.  A  história mencionada refere‐se à invasão da província Sung do sul pelos mongóis, em 1.275.  13

 Um gatha é um hino ou cântico metrificado que se encontra muito nos sutras budistas. Eis o poema inteiro: "Em todo  o céu e em toda a terra, não há onde erigir um único poste. / Feliz, eu compreendo: o homem é o Vazio, a lei de Buda é  o Vazio. / Quão maravilhosa é a espada do Grande Yuan, comprida de três pés. / Com a rapidez de um relâmpago, /  Decepa a brisa da primavera."  14

 Ver nota nº. 9   Shao K'ang‐chieh (1011‐77) foi um erudito da Dinastia Sung do norte. O verbo traduzido por "perder" também pode  ser traduzido por "deixar ir", "largar". 

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Devemos ser como o lótus, que não é maculado pela lama sobre a qual cresce. Embora a lama exista, isso  não deve nos amargurar. Deve‐se tornar a mente semelhante ao cristal polido, que  permanece imaculado  mesmo quando mergulhado na lama. Deve‐se deixar a mente ir para onde ela queira.  O efeito da constrição da mente é fazê‐la perder a liberdade. O controle estrito da mente é algo que só se faz  no princípio. Quem permanece assim a vida inteira jamais atingirá o nível mais alto. Na verdade, nem sequer  sairá do mais baixo.  Durante  o  treinamento,  é  bom  fixar  na  memória  as  palavras  de  Mêncio:  "Buscai  a  mente  perdida."  O  grau  supremo, porém, está contido no que disse Shao K'ang‐chieh: "É essencial perder a mente."  Eis um dos ditos do sacerdote Chung‐fêng16: "Detende a posse de uma mente que foi libertada." O significado  dessas  palavras  é  idêntico  ao  do  dito  de  Shao  K'ang‐chieh,  segundo  o  qual  devemos  deixar  a  mente  livre.  Sua importância reside em advertir‐nos a não procurar a mente perdida nem amarrá‐la num único lugar.  Chung‐fêng também disse: "Não vos prepareis para a retirada." Isso equivale a ter uma mente que não pode  ser  alterada.  Significa  que  o  homem  deve  cuidar  para  que,  embora  tenha  avançado  com  sucesso  uma  ou  duas vezes, não se resigne à retirada quando estiver cansado ou em circunstâncias imprevistas.     

1.11 UMA BOLA ATIRADA NA CORRENTEZA JAMAIS SE DETERÁ17  Segundo um ditado, "Uma bola atirada na correnteza jamais se deterá."  Isso significa que se tu atirares uma bola na água corrente, ela flutuará sobre as ondas e jamais se fixará num  só lugar.     

1.12 ROMPEI O ISTMO ENTRE O ANTES E O DEPOIS  Há  uma  frase  que  diz:  "Rompei  o  istmo  entre  o  antes  e  o  depois."  Não  libertar  a  mente  dos  momentos  passados, deixar que permaneçam vestígios da mente presente – ambas as coisas são más. Isso significa que  se deve romper decididamente o intervalo entre o antes e o agora. A importância disso está em cortar o fio  que liga o antes e o depois, o agora e o que já foi feito; isto é, não deter a mente.     

1.13 A ÁGUA INCENDEIA O CÉU, O FOGO LAVA AS NUVENS  Não queimes hoje os campos de Musashino. Meu esposo e eu jazemos ocultos na relva da primavera.18  Houve quem interpretasse o significado desse poema desta maneira:                                                                    

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 Chung‐fêng (1263‐1323): sacerdote Zen da China sob a Dinastia Yuan. 

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  Do Pi Yen Lu, coleção de problemas, ditos e anedotas dos patriarcas Zen. Um monge perguntou a Chao‐chou: "Um  bebê  recém  nascido  é  dotado  das  seis  percepções?"  Disse  Chao‐chou:  "Atira  uma  bola  na  correnteza."  O  monge  então  perguntou a T'ou‐tze: "O que significa 'Atira uma bola na correnteza'?" Disse T'ou‐tze: "Ela jamais se deterá."  18

  Poema  encontrado  no  final  da  duodécima  seção  do  lse  Monogatari  (século  IX).  Eis  a  seção:  Há  muito  tempo,  um  homem  roubou  uma  jovem  de  outro  homem  e  levou‐a  para  Musashino.  Lá,  sendo  considerado  um  ladrão,  ele  foi  perseguido  pelo  governador  da  província.  Então,  escondeu  a  moça  num  matagal  e  fugiu.  Disse  um  viajante:  "Há  um  ladrão  neste  campo",  e  os  perseguidores  prepararam‐se  para  acender  uma  fogueira  a  fim  de  expulsá‐lo  dali  com  a  fumaça. Em sua angústia, a jovem gritou: "Não queimeis hoje os campos de Musashino. / Meu esposo e eu jazemos ocultos  / na relva da primavera.”  11 

 

 

Enquanto as nuvens brancas se juntam / As glórias da manhã logo se extinguem.  Há algo que tenho meditado somente nos meus momentos de solidão e sobre o que devo aconselhar‐te. Sei  que isso não passa de uma opinião minha, humilde e questionável, mas sinto que este é o momento correto;  logo, devo escrever aquilo que vejo.  Tu  és  um  mestre  de  artes  marciais  sem  igual  no  passado  ou  no  presente,  e  por  isso  a  tua  dignidade  nobiliárquica,  as  tuas  rendas  e  a  tua  reputação  resplandecem  como  o  sol.  Acordado  ou  dormindo,  tu  não  deves  jamais  esquecer  essa  dádiva;  e,  a  fim  de  retribuir  este  favor,  o  teu  único  pensamento  deve  ser  o  de  cumprir com os teus deveres de lealdade, de dia e de noite.  A lealdade total reside, em primeiro lugar, em corrigir a mente, disciplinar o corpo, não dividir nem por um  fio os pensamentos acerca do teu senhor, e não alimentar ressentimento pelos outros nem culpá‐Ios. Não  negligencies a tua faina diária. Em casa, sê filial; não permitas que nada de indecente ocorra entre esposo e  esposa, sê correto nas formalidades, não te ligues a concubinas, aparta‐te do caminho da sensualidade, sê  austero como pai e age de acordo com o Caminho. Ao empregar subordinados, não faças distinções calcadas  no  sentimento  pessoal.  Emprega  homens  que  sejam  bons  e  liga‐os  a  ti;  reflete  sobre  as  tuas  deficiências,  conduz com justiça o governo da tua província e afasta os homens maus.  Dessa maneira, os bons serão dia a dia recompensados, e os demais serão naturalmente influenciados ao ver  que seu senhor ama o bem. Assim, eles mesmos apartar‐se‐ão do mal e voltar‐se‐ão para o bem.  Dessa maneira, senhor e servo, superior e inferior, serão homens de bem; e, quando os desejos pessoais se  tornarem  exíguos  e  o  orgulho  for  abandonado,  a  província  abundará  em  riqueza,  os  filhos  terão  a  mesma  mente que os pais e superiores e inferiores trabalharão juntos como mãos e pés de um só organismo. Então,  a província por si mesma se tornará pacífica. É esse o princípio da lealdade.  Esse  soldado,  tão  absolutamente  dedicado,  provavelmente  seria  da  tua  predileção  em  qualquer  situação,  mesmo se tivesses o comando de centenas de milhares de homens. Quando o conjunto da mente da Kannon  de Mil Braços está correta, cada um dos mil braços é útil; do mesmo modo, se o espírito da tua arte marcial  estiver correto, a função de toda a tua mente será livre, e mil inimigos estarão sujeitos à tua espada. Isso não  é, porventura, uma lealdade grandiosa?  Ninguém fora de ti é capaz de discernir se a tua mente está correta ou não. O bem e o mal estão presentes  em cada pensamento que surge. Aquele que pensa sobre os fundamentos do bem e do mal, e faz o bem e  abstém‐se do mal, verá que sua mente se corrigirá por si mesma.  Conhecer  o  mal  mas  não  abster‐se  dele  é  uma  enfermidade  dos  desejos.  Quer  se  trate  de  um  amor  da  sensualidade,  quer  de  uma  condescendência  com  as  próprias  paixões,  é  sempre  uma  questão  de  a  mente  desejar  algo.  Então,  mesmo  que  houvesse  um  homem  bom  ao  teu  lado,  o  seu  bem  não  teria  utilidade  nenhuma  se  não  cativasse  o  teu  capricho.  Encontrar  agrado  num  homem  ignorante,  afeiçoar‐se  a  ele  e  designar‐lhe  um  cargo,  sem  ter  em  conta  o  homem  bom  que  está  próximo  de  ti,  é  o  mesmo  que  não  ter  nenhum homem bom ao teu lado.  Nesse  caso,  mesmo  que  um  senhor  empregasse  milhares  de  homens,  dificilmente  haveria  um  que  lhe  servisse bem num momento de emergência. Quanto aos jovens ignorantes e maus que de início haviam se  mostrado tão atraentes, eles jamais pensariam em sacrificar a própria vida quando confrontados com uma  situação real, pois seus corações estavam na injustiça desde o início. Jamais ouvi falar de um homem que,  não tendo a mente correta, tivesse sido de boa valia ao seu senhor.  O fato de que tal coisa possa estar ocorrendo na tua escolha de aprendizes é motivo de grande vergonha.  Eis algo que ninguém sabe: em decorrência de uma inclinação escusa, um homem pode ser arrastado pelos  maus hábitos e por fim cair no mal. É possível que tu penses que ninguém conhece esses teus pecados; mas,  uma  vez  que  "nada  é  tão  evidente  quanto  aquilo  que  mal  se  vê"19,  se  eles  forem  conhecidos  da  tua  própria                                                                     19   A citação baseia‐se na Doutrina do Justo Meio (capítulo 1): "Nada é tão visível quanto aquilo que está oculto, nada é  tão evidente quanto aquilo que mal se vê. Por isso, o cavalheiro é cuidadoso quando está sozinho."  12   

 

mente, também o serão do céu, da terra, dos deuses e do povo. Nesse caso, não estará a província correndo  grande perigo? Tu deves reconhecer esse fato como uma enorme deslealdade.  Não importa, por exemplo, quão ardentemente professes lealdade ao teu senhor; se a tua família não estiver  em harmonia e o povo do Vale de Yagyu te voltar as costas, nada do que fizeres terá a menor conseqüência.  Diz‐se que a melhor maneira de conhecer os pontos bons e maus de um homem é conhecer os cortesãos e  subordinados que ele ama e emprega, bem como os amigos com os quais ele tem uma convivência íntima.  Se  o  senhor  não  estiver  na  retidão,  nenhum  de  seus  cortesãos  e  amigos  estará.  Nesse  caso,  ele  será  desdenhado  por  todos  e  as  províncias  circundantes  o  terão  como  objeto  de  desprezo.  Mas,  se  o  senhor  e  seus cortesãos forem bons, serão vistos com agrado por todos.  Diz‐se  que  um  homem  bom  é  visto  pelo  povo  como  uma  jóia  rara.  Tu  deves  fazer  com  que  isso  aconteça  contigo.  Se, num lugar onde fores reconhecido pelo povo, tu rapidamente evitares a injustiça, afastares os homens  sem caráter e amares os sábios, o governo da província há de tornar‐se mais correto e tu serás o melhor de  todos os cortesãos leais.  E  o  mais  importante,  no  que  diz  respeito  ao  comportamento  do  teu  nobre  filho:  é  uma  inversão  investir  contra os maus atos do filho quando o pai, ele mesmo, está na injustiça. Se te dedicares primeiro a corrigir a  tua  conduta  para  só  depois  manifestares  as  tuas  opiniões,  ele  há  de  corrigir‐se  naturalmente,  e  não  só;  também  o  seu  irmão  mais  novo,  Mestre  Naizen,  há  de  aprender  da  sua  conduta  e  corrigir‐se  por  sua  vez.  Assim, pai e filhos serão homens de bem. Seria esse um feliz desfecho.  Diz‐se que os homens devem ser empregados ou despedidos de acordo com uma mente reta. Nesta época,  em que és um cortesão dos mais estimados, é inconcebível que aceites subornos dos senhores provinciais ou  que a retidão da mente seja esquecida por causa da avareza.  Que  aprecies  o  ranbu,  que  tenhas  orgulho  do  teu  talento  para  o  Nô  e  que,  pela  exibição  desse  talento,  procures  ganhar  ascendência  sobre  os  senhores  das  províncias  –  tais  coisas,  sinceramente  considero‐as  como uma doença.  Não deverias refletir sempre sobre o fato de que a recitação imperial é feita segundo a forma Sarugaku20, e  que  os  senhores  provinciais  que  mais  se  destacam  pela  cortesia  são  aqueles  que  mais  são  chamados  a  comparecer perante o xogum?  Diz uma canção:  É a própria mente  Que leva a mente ao extravio;  Da mente  Jamais te descuides. 

                                                                   20

 Sarugaku (literalmente, "Música de macacos") é uma antiga forma teatral, precursora do Nô. 

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O CLARO SOAR DAS JÓIAS 

Reiroshu 

Takuan Soho     

 

   

 

 

Não há nada que nos seja mais querido que a vida. Um homem pode ser rico ou pobre; mas, se não tiver uma  vida longa, não terá atingido seu verdadeiro propósito. Mesmo que tivesse de despender milhares em bens e  riquezas, deveria fazê‐lo se com isso pudesse comprar a vida.  Diz‐se que a vida vale muito pouco em comparação à retidão da mente1. Na verdade, a retidão da mente é o  bem mais estimado.  Nada  é  mais  precioso  que  a  vida.  No  entanto,  no  momento  em  que  é  preciso  desfazer‐se  desta  vida  tão  amada para firmar‐se na retidão da mente, não há nada que seja tão estimado quanto essa retidão.  Ao examinar o mundo com cuidado, constatamos que há muita gente que não se importa em perder a vida.  Supõe tu, porém, que uma pessoa em mil morreria pela retidão da mente? Parece que, ao contrário de toda  expectativa,  na  humilde  casta  dos  servos  há  muitos  que  o  fariam.  Mas,  entre  aqueles  que  se  consideram  sábios, é difícil encontrar quem faça o mesmo.  Num  dia  de  primavera,  enquanto  eu  meditava  sobre  essas  coisas,  uma  pessoa  se  apresentou  e  disse  algo  como  o  que  segue:  "Embora  a  riqueza  nos  agrade  o  coração,  a  vida  é  a  maior  das  riquezas.  Quando  se  apresenta o momento da escolha, o homem se desfaz de toda a sua riqueza para manter intacta a própria vida.  Mas quando pensamos que o mesmo homem não hesitaria em perder a vida tão querida pelo bem da retidão da  mente, constatamos que o valor da retidão da mente é maior que o da própria vida. O desejo, a vida e a retidão  da mente – entre esses três, não é a última a mais amada pelo homem?"  Naquela  época,  respondi  algo  como  o  que  segue:  "Desejo,  vida  e  retidão  da  mente  –  dizer  que  a  retidão  da  mente é a mais amada das três é apenas natural. Mas dizer que todos os homens, sem exceção, amam a retidão  da mente acima de tudo, é algo que não corresponde à verdade. Não há nenhum homem que ame o desejo e a  vida e conserve a retidão da mente em seus pensamentos."  Então uma outra pessoa disse: "A riqueza é um adorno da vida. Só a vida tem valor, pois, sem ela, a riqueza é  inútil. Entretanto, diz‐se que há muitos que não se importam em perder a vida pelo bem da retidão da mente."  Perguntei: "Qual o homem que não se importa em perder a vida por amor à retidão da mente?"  Ele respondeu: "Há muitas pessoas neste mundo que não toleram um insulto e que, junto com seus inimigos,  perdem  a  vida  numa  luta.  Isso  quer  dizer  que  elas  atribuem  o  primeiro  lugar  à  retidão  da  mente  e  não  se  importam com a vida. Elas não morrem pela riqueza ou pela vida, mas pela retidão da mente.  Aqueles que foram mortos no fragor da batalha, é impossível conhecer‐lhes o número. Todos eles morreram pela  retidão  da  mente.  Sabendo‐se  disso,  pode‐se  dizer  que  todos  os  homens  amam  a  retidão  da  mente  acima  do  desejo e da vida."  Eu  disse:  "Morrer  por  ter  sido  humilhado  ou  insultado  assemelha‐se  à  retidão  da  mente,  mas  não  é  de  modo  algum. Morrer assim é esquecer‐se de si mesmo na cólera do momento. Não é, em absoluto, uma manifestação  de retidão da mente. O nome mais apropriado para isso é ira, e nada mais. Antes de a pessoa ter sido insultada,  ela já se havia apartado da retidão da mente, e é por isso que sofreu o insulto. Se a mente da pessoa é correta no  relacionamento com os outros eles não a insultarão. Tendo sido insultada, a pessoa deve admitir que já havia  perdido a retidão da mente antes da ofensa."  A retidão da mente é questão de suma importância.  Sua  substância  é  idêntica  ao  Princípio  do  Céu,  que  dá  vida  a  todas  as  coisas.  Quando  ela  é  adquirida  pelo  corpo  humano,  é  chamada  a  natureza  própria  da  pessoa.  Seus  outros  nomes  são  virtude,  o  Caminho,                                                                     1

  Retidão  da  mente  foi  o  termo  finalmente  escolhido  para  traduzir  o  japonês  gi,  embora  esteja  longe  de  ser  um  equivalente exato. Entre as alternativas levadas em conta, justiça foi rejeitada porque, em última análise, o ocidental  satisfeito  com  o  próprio  senso  de  justiça  pode  sentir‐se  "justificado"  em  corrigir  os  outros.  Probidade  ("integridade  irrepreensível")  é  muito  mais  próximo  e  não  deve  ser  esquecido.  A  ênfase  está  em  que  a  pessoa  corrija  primeiro  a  si  mesma, através da reflexão, do treinamento e da disciplina. Isso não leva automaticamente ao proselitismo, e em geral  não leva de maneira alguma. Na verdade, o Zen e a artes marciais estão repletos de relatos de pessoas que, querendo  submeter‐se ao discipulado, impuseram‐se enormes sofrimentos e humilhações para se tornarem dignas de receber os  ensinamentos do mestre. 

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compaixão,  probidade  e  decoro.  Embora  o  nome  mude  de  acordo  com  a  situação,  e  embora  as  funções  sejam diferentes, na substância trata‐se de uma só coisa.  Quando  ela  é  chamada  de  compaixão  e  a  situação  envolve  o  relacionamento  humano,  sua  função  é  a  benevolência.  Quando ela é chamada de retidão da mente e a situação envolve a posição e a integridade social, sua função  é eliminar os erros que toldam a clareza de discernimento.  Mesmo  ao  morrer,  se  a  pessoa  não  chegou  ao  princípio  desse  fato,  ela  não  possui  a  retidão  da  mente,  embora alguns pensem que, o simples fato de morrer, significa que a pessoa tinha essa qualidade.  A retidão da mente é tida como a substância absolutamente pura que está no âmago da mente humana; e,  quando  usamos  a  retidão  desse  âmago  da  mente  como  um  fio  de  prumo,  tudo  o  que  é  feito  manifesta  a  retidão da mente.  Esquecer  esse  âmago  e  morrer  pelo  desejo  não  é  uma  morte  que  manifesta  a  retidão  da  mente.  Quanto  àquelas  pessoas  que  supostamente  teriam  morrido  pela  retidão  da  mente,  há  sequer  uma  entre  mil  que  verdadeiramente o faria?  Supõe, então, que alguém se tenha posto a serviço de um daimio. A partir desse momento, de tudo o que  ele possui – as vestes com que se cobre, a espada que leva na bainha, seus calçados, sua sela, seu cavalo e  todas as suas armas –, não há nada que não seja devido à graça do seu senhor. A família, a mulher, os filhos e  os servos – todos eles e todos os seus parentes – de nenhum deles se pode dizer que não recebeu o favor do  senhor.  Tendo  esses  favores  bem  nítidos  na  sua  mente,  o  homem  enfrenta  os  inimigos  de  seu  senhor  no  campo de batalha e não se importa com sua vida. Isso é morrer pela retidão da mente.  Ele não morre pela honra do seu nome. Não morre para adquirir fama, rendas ou terras. Receber um favor e  retribuir um favor – a sinceridade do âmago da mente consiste somente nisso.2  Há um homem entre mil que morreria dessa maneira? Se houvesse um entre mil, haveria cem entre cem mil;  e, para qualquer eventualidade, haveria cem mil homens disponíveis.  Na verdade, seria extremamente difícil encontrar cem homens de mente reta.  Sempre que o país sofreu distúrbios, em qualquer época, depois de cada batalha podia‐se contar de cinco a  sete mil cadáveres. Entre eles havia homens que haviam enfrentado o inimigo e adquirido um bom nome.  Outros haviam sido mortos sem que ninguém o percebesse. Aparentemente, todos esses homens morreram  pela retidão da mente, mas muitos não o fizeram. Muitos morreram pelo nome e pelo lucro.  O  primeiro  pensamento  é  o  de  fazer  algo  pela  fama;  o  segundo  é  o  de  estabelecer  um  nome  honrado;  depois, o de receber terras e subir na vida.  Há homens que realizam feitos notáveis, adquirem fama e sobem na vida. Há também aqueles que morrem  na  batalha.  Entre  os  samurais  mais  velhos,  há  aqueles  que  gostariam  de  adquirir  um  nome  na  próxima  batalha a fim de deixá‐lo para os seus descendentes na velhice; ou, se não morressem em batalha, gostariam  de legar um nome e um feudo. Nenhum deles se importa com a própria vida, mas todos estão voltados para  o nome e o lucro. Sua morte é uma morte temerária, nascida do desejo. Não se trata da retidão da mente.  Aqueles que recebem uma boa palavra do seu senhor e dedicam‐lhe a vida também morrem de uma morte  que manifesta a retidão da mente. Mas não há nenhum que ame a retidão da mente, embora seja ela o que  há de mais precioso. Por isso, tanto aqueles que entregam a vida pelo desejo, quanto aqueles que se apegam  à  vida  e  se  expõem  à  vergonha,  se  contam  entre  os  que  não  se  preocupam  com  a  retidão  da  mente, quer  morram, quer continuem vivos.  Ch'eng Ying e Ch'u Chiu3 morreram juntos por amor à retidão da mente. Po I e Shu Ch'i4 eram homens que  refletiam  profundamente  sobre  a  retidão,  e  lamentavam  o  fato  de  que  um  vassalo  estivesse  disposto  a  assassinar o próprio rei. No fim, ambos morreram de fome aos pés do monte Shouyang.                                                                    

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 Na morte, o princípio reside em saber por quê e de que modo morrer. 

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Quando  saímos  em  busca  desses  homens,  constatamos  que  eles  nunca  foram  numerosos,  mesmo  na  antigüidade. Com tanto mais razão, neste mundo atual que se apartou do Caminho, é possível que não haja  nenhum  que,  por  amor  à  retidão  da  mente,  se  desfaça  com  facilidade  do  desejo  e  da  vida.  Em  geral,  as  pessoas perdem a vida por amor ao desejo, ou senão apegam‐se à vida e cobrem‐se de vergonha. Nenhuma  delas tem a menor idéia do que seja a retidão da mente.  Todos os homens vestem a máscara da retidão da mente, mas nenhum deles realmente pensa nela. Devido  a  essa  loucura,  quando  um  desagrado  se  abate  sobre  um  homem,  ele  é  incapaz  de  suportá‐lo  e  se  põe  a  injuriar aquele que lhe causou o desagrado. Este, por sua vez, se sente humilhado e, em retaliação, dispõe‐se  a perder a vida. Tal homem não só é desprovido de retidão mental, como também exala  o mau cheiro do  desejo.  Pensar que eu possa causar desagrado a um homem e não receber de volta palavras duras – isso não passa  da manifestação de um desejo. Eis um exemplo da mesma paixão: um homem dá uma pedra a alguém e, se  a pessoa lhe devolve ouro, fica amigo dessa pessoa; mas se a pessoa lhe devolve outra pedra, ele corta‐lhe a  cabeça.  Quando  um  homem  canta  louvores  a  outro,  é  provável  que  receba  louvores  em  troca.  Mas  supõe  que um homem injurie o outro; se, quando a injúria lhe é retribuída, ele corta a cabeça do outro e morre por  sua vez; isso não passa de desejo. É o oposto da retidão da mente e o auge da estupidez.  Além disso, todos os samurais estão sujeitos a um senhor; desperdiçar a vida que deveria ser dada por amor  ao senhor, morrer por causa de uma simples discussão, equivale a não conhecer a diferença entre o certo e o  errado. Equivale, acima de tudo, a não conhecer a significado da retidão da mente.  Aquilo que se chama desejo não consiste simplesmente em se apegar à riqueza ou pensar somente no gosto  que se tem pela prata e pelo ouro.  Quando o olho vê as cores, isso é desejo.  Quando o ouvido ouve os sons, isso é desejo. Quando o olfato sente os perfumes, isso é desejo. Quando um  único pensamento germina, isso é o que se chama desejo.  Esse corpo foi solidificado e produzido pelo desejo, e faz parte da natureza das coisas que todos os homens o  sintam [o desejo] intensamente. Embora exista uma natureza sem desejos confinada no interior desse corpo  produzido e consolidado pelo desejo, essa natureza está sempre oculta pela temporariedade, e sua virtude é  difícil de cultivar. Não é fácil proteger essa natureza. Como ela reage às Dez Mil Coisas do mundo exterior,  ela é atraída de novo pelos Seis Desejos5 e submerge neles.  Esse corpo é composto dos Cinco Atributos:  1. 2. 3. 4. 5.

Matéria;  Sensações;  Percepções;  Formações mentais;  Consciência [mente]. 

1. Matéria é o corpo carnal.  2.  Sensações  são  os  sentimentos  que  o  corpo  carnal  tem  do  bem  e  do  mal, do certo e do errado, do sofrimento e da alegria, da dor e do prazer.  3.  Percepções  são  as  predileções:  odiar  o  mal,  desejar  o  bem,  fugir  do 

                                                                                                                                                                                                                               3   Ch'eng  Ying  e  Ch'u  Chiu:  dois  servos  da Casa  de  Chao Shu  durante  o  Período  da  Primavera  e  do  Outono  (770‐403  a.C.), sabendo que um mau ministro estava planejando massacrar toda a família Chao, [então] Ch'eng Ying e Ch'u Chiu  conceberam um plano: Ch'u Chiu e seu filho, que era muito parecido com o herdeiro dos Chao, simulariam uma fuga e  seriam mortos; enquanto isso, Ch'eng Ying fugiria para as montanhas com o verdadeiro herdeiro. O plano deu certo, e  muito tempo depois o herdeiro conseguiu liquidar o mau ministro e dar continuidade à Casa de Chao. Então, Ch'eng  Ying recitou todo o incidente perante o túmulo de Ch'u Chiu e cometeu suicídio.  4

 Po I e Shu Ch'i: dois irmãos que viveram nos últimos dias da Dinastia Yin (1.766‐1.122 a.C.). Quando o Rei Wu dos  Chou planejava assassinar o último imperador Yin, os irmãos admoestaram‐no, dizendo ser descabido para um vassalo  assassinar o próprio rei. O conselho foi ignorado, e o Rei Wu terminou por fundar a Dinastia Chou. Os irmãos, sentindo‐ se envergonhados por comer a cevada dos Chou, fugiram para o Monte Shouyang, onde se alimentavam somente de  samambaias. Por fim, morreram de fome.  5

 Os Seis Desejos: os desejos provocados pelos seis sentidos visão, audição, olfato, paladar, tato e consciência [mente];  ou as seis atrações sensuais que decorrem da cor, da forma, do porte, da voz, da pele macia e dos traços bonitos. 

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sofrimento, esperar pela alegria, evitar a dor e desejar o prazer.  4. As formações mentais operam o corpo a partir das sensações e percepções. São, por exemplo, odiar a dor  e, portanto buscar o prazer, ou odiar o mal e, portanto fazer coisas que sejam boas para a pessoa.  5. Consciência é distinguir o bem do mal, o certo do errado, a dor do prazer e a alegria do sofrimento nas  sensações, percepções e formações mentais. Através da consciência [discernimento], o mal é reconhecido  como mal, o bem como bem, a dor como dor e o prazer como prazer.  Uma vez que a consciência discrimina e forma preconceitos, ela abomina o feio e aproxima‐se do belo; e  o corpo carnal se move de acordo com os apegos da consciência.  Porque existe o corpo carnal, existe o atributo da sensação.  Porque existe o atributo da sensação, existe o atributo da percepção.  Porque o atributo da percepção existe, ele põe em ação o atributo das formações mentais.  Porque o atributo das formações mentais é posto em ação, existe o atributo da consciência.  Por  causa  do  atributo  da  consciência,  nós  diferenciamos  o  bem  do  mal,  o  certo  do  errado,  o  feio  do  belo;  surgem pensamentos de apego e rejeição e, na medida em que surgem esses pensamentos, nasce o corpo  carnal. Este é como o Sol ou a Lua refletindo‐se numa poça d'água. Buda explicou que "a manifestação da  forma em reação ao mundo material é como a Lua em meio à água".6  Matéria, sensação, percepção, formação mental – e consciência [discernimento] – depois, da consciência de  volta à matéria: quando essas coisas se condensam muitas vezes, a ligação dos Cinco Atributos7 de acordo  com o fluxo dos Doze Elos da Cadeia da Existência8 – uma vez recebido esse corpo – começa com um único  pensamento da consciência.  A  consciência,  portanto,  é  desejo.  Esse  desejo,  essa  consciência,  dá  origem  a  esse  corpo  dos  Cinco  Atributos. O corpo inteiro é empedernido pelo desejo; por isso, um único cabelo arrancado da cabeça faz  surgir  pensamentos  de  desejo.  Quando  tu  és  tocado  pela  ponta  de  um  dedo,  surgem  pensamentos  de  desejo. Mesmo quando és tocado pela ponta de uma unha do pé, surgem pensamentos de desejo. O corpo  inteiro é solidificado pelo desejo.  Dentro  desse  corpo  consolidado  pelo  desejo  oculta‐se  o  âmago da  mente,  que  é  absolutamente  vertical  e  sem desejos. Essa mente não está no corpo dos Cinco Atributos, não tem cor nem forma e não é desejo. É  inabalavelmente correta, é absolutamente pura. Quando é usada como um fio de prumo, tudo que é feito é  feito com retidão da mente. Essa realidade absolutamente reta é a substância da retidão da mente.  Retidão da mente é um nome que temporariamente se acrescenta quando ela se manifesta nos assuntos  externos. Também é chamada Compaixão. Sua função é a benevolência. Quando indicamos sua substância,  dizemos  "compaixão";  benevolência  é  uma  designação  temporária  que  lhe  damos.  Compaixão,  retidão  da  mente, decoro, sabedoria – a substância é a mesma, mas os nomes diferem.  Essas  coisas  devem  ser  compreendidas  com  o  âmago  da  mente.  É  por  isso  que  se  diz  que  o  Caminho  de  Confúcio  é  o  Caminho  da  Sinceridade  e  da  Simpatia.  Sinceridade  é  o  mesmo  que  "âmago  da  mente".  Simpatia  é  o  mesmo  que  "compatibilidade  de  mentes"  ou  "unicidade".  Quando  se  atingem  o  âmago  da  mente e a compatibilidade de mentes, entre dez mil assuntos nenhum será mal resolvido.  Nós podemos dizer essas coisas; mas, se um homem não foi Iluminado, podes explicá‐las por cem dias e ele  pode ouvir por cem dias, mas é pouco provável que ele entre no Caminho.                                                                    

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 Do Sutra da Luz Dourada: "O Corpo Absoluto do Buda é semelhante ao Vazio. A manifestação da forma em reação ao  mundo material é como a Lua no meio da água." 

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 1. Matéria; 2. Sensação; 3. Percepção; 4. Formações mentais; e 5. Consciência ou Discernimento 

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  Os  Doze  Elos  da  Cadeia  da  Existência:  ignorância,  ação  volitiva,  consciência,  nome  e  forma,  os  seis  sentidos,  contato,  sensação,  desejo,  apego,  existência  individual,  nascimento,  velhice  e  morte.  Começando  com  a  ignorância,  cada um deles causa o elo seguinte na cadeia; assim, se a ignorância for eliminada, velhice e morte não ocorrerão. Essa  cadeia também é chamada Cadeia da Originação Interdependente. 

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Se,  ao  falar  assim,  houver  quem  negue  o  que  dizemos,  o  melhor  será  examinar  os  pensamentos  mais  recônditos e as ações daqueles que ensinam e aprendem os Clássicos Confucianos. Não que o mesmo não  ocorra  com  aqueles  que  ensinam  e  aprendem  as  escrituras  budistas.  Não  estamos  fazendo  uma  crítica  ao  Confucionismo.  A  pessoa  pode  ser  eloqüente  como  uma  torrente  volumosa;  mas,  se  sua  mente  não  tiver  sido Iluminada e ela não tiver visto a sua verdadeira natureza, não se pode confiar nela. É fácil discernir isso a  partir do comportamento da pessoa.  Certa pessoa expressou suas dúvidas, dizendo: "Se até mesmo os atos de ver e ouvir são desejo, se até mesmo  o surgir de um único pensamento é desejo, como é possível chegar à retidão da mente? A concentração de um  único pensamento é semelhante a uma rocha ou uma árvore. Sendo semelhante a uma rocha ou uma árvore, é  improvável que a pessoa aja com retidão da mente por amor ao seu senhor. É difícil conseguir isso sem criar em  si uma firme força de vontade."  Eu disse: "Essa dúvida tem sua razão de ser. Sem pensamentos na mente, a pessoa não vai correr nem para a  esquerda  nem  para  a  direita;  não  vai  subir  nem  descer;  vai  caminhar  em  linha  reta.  Surgindo  um  único  pensamento,  a  pessoa  vai  correr  para  a  esquerda  ou  para  a  direita,  vai  subir  ou  descer,  e  por  fim  chegará  ao  lugar do seu desejo. É por isso que o pensamento se chama desejo.  A virtude da retidão inabalável é uma virtude oculta. Sem pôr em ação o desejo, a pessoa não chegará nem ao  bem  nem  ao  mal.  Supõe  que  tens  a  intenção  de  resgatar  um  homem  que  caiu  num  abismo;  se  não  tiveres  as  mãos, não serás capaz de fazê‐lo. Supõe, por outro lado, que alguém tenha a intenção de empurrar um outro  num  abismo;  se  não  tiver  as  mãos,  não  será  capaz  de  fazê‐lo.  Concluindo:  quer  se  trate  do  sucesso  ou  do  fracasso, no mesmo momento em que surgem mãos que causam o sucesso ou o fracasso, a natureza das coisas  fica em segundo plano.  A  pessoa  faz  uso  da  força  do  desejo  para  fracassar  ou  obter  sucesso;  e,  mesmo  quando  considera  a  mente  inabalavelmente correta como seu fio de prumo e age de acordo com ela, sucesso e fracasso ainda dependem  daquela força.  Mas quando a pessoa não se afasta desse fio de prumo, já não se fala em desejo. Fala‐se em retidão da mente. A  retidão da mente não é outra coisa senão a virtude.  Considera o âmago da mente como uma carroça que leva em si a força de Vontade. Se a empurrares para um  lugar  onde  pode  haver  fracasso,  haverá  fracasso.  Se  a  empurrares  para  um  lugar  onde  pode  haver  sucesso,  haverá sucesso. Mas se a pessoa se entregar à retidão dessa carroça, que é o âmago da mente, ela chegará à  retidão da mente quer haja sucesso, quer fracasso. Aquele que se separa do desejo e torna‐se semelhante a uma  rocha ou uma árvore jamais realizará coisa alguma. Não se afastar do desejo, mas realizar uma retidão mental  sem desejos – esse é o Caminho."  Dentre os deuses, há os famosos e os desconhecidos. Sumiyoshi, Tamatsushima, Kitano e Hirano são todos  deuses famosos. Quando falamos dos deuses pura e simplesmente, referimo‐nos àqueles cujos nomes não  conhecemos.  Quando  falamos  de  adorar  e  venerar  os  deuses,  não  fazemos  distinção  entre  os  nomes  de  Sumiyoshi, Tamatsushima, Hirano e Kitano. Adoramos e veneramos os deuses, quem quer que sejam.  Quando o deus de Kitano é adorado, o deus de Hirano é esquecido. Quando o deus de Hirano é venerado,  Kitano é relegado.  Limitando  um  deus  a  um  local,  os  outros  deuses  são  descartados  como  se  não  tivessem  valor.  Venera‐se  exclusivamente esse deus específico, ou adora‐se um e despreza‐se o outro.  Ao falar dos deuses, não devemos limitá‐los – um deus a um local. Isso é contrário ao estabelecimento do  Caminho  dos  Deuses.  Esse  Caminho  é  estabelecido  quando  adoramos  os  deuses  em  qualquer  lugar,  e  qualquer  que  seja  o  deus  que  temos  à  nossa  frente.  Vamos  considerar  essa  mesma  questão  no  que  diz  respeito ao Caminho do Senhor e do Criado.  Senhor  significa  o  imperador,  e  criado  significa  os  criados  do  imperador.  Não  se  costuma  usar  as  palavras  senhor e criado para designar pessoas que estejam abaixo daquelas na hierarquia, mas no momento vamos  usá‐las desse modo. 

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Dentre os senhores, há aqueles que são famosos e aqueles cujos nomes são desconhecidos. Também entre  os criados há aqueles que são famosos e aqueles que não são. Falando‐se de um senhor famoso, costuma‐se  dizer algo como "Nosso senhor é Matsui Dewa", ou "Meu senhor é Yamamoto Tajima". Falando‐se de senhores  desconhecidos, fala‐se simplesmente "o senhor", sem mencionar‐lhe o nome.  Para  o  criado,  o  Caminho  do  Senhor  é  estabelecido  quando  ele  pensa  simplesmente:  "o  senhor."  E  para  o  senhor, o Caminho do Criado é estabelecido quando ele pensa simplesmente: "o criado."  No  passado,  dizia‐se  que  "o  criado  sábio  não  serve  a  dois  senhores".  Isso  significa  que,  nessa  época,  não  se  pensava que um criado pudesse obedecer a dois mestres. Com a decadência do mundo, os criados agora se  colocam  a  serviço  deste  e  daquele  senhor;  no  fim,  com  toda  a  fanfarronice  que  fazem  de  seus  próprios  méritos, vão‐se assemelhando cada vez mais a mercenários errantes. Essa é a época em que vivemos.  Um senhor, alegando não estar satisfeito com este ou aquele homem, expulsa‐o de sua casa e cobre‐o de  vergonha. Também isso traz desordem ao Caminho do Senhor e do Criado, do Mestre e do Servo.  Mesmo que um criado sirva a várias famílias, deve pensar em cada mestre como sendo o único. Isso significa  que  o  senhor  será  um  senhor  desconhecido,  pois,  se  ele  for  desconhecido,  o  Caminho  do  Senhor  se  estabelecerá. Mesmo que ele sirva a uma família depois da outra, deve pensar nesse senhor como "o senhor"  e naquele senhor como "o senhor". Dessa maneira, pensará no senhor com grande devoção; e, mesmo que a  família mude, sua mente não mudará. Com isso, o senhor será único e sempre o mesmo, do começo ao fim.  Supõe que um homem esteja recebendo rendas e terras e esteja subindo na vida; se ele pensar: "Meu senhor  é Matsui Dewa, mas na verdade ele é um palerma...”, não estará pensando "o senhor" de maneira nenhuma.  Depois,  quando  ele  se  empregar  na  casa  do  Senhor  Yamamoto  Tajima,  a  mesma  mente  o  acompanhará.  Onde quer que vá, ele jamais compreenderá o significado da palavra senhor, e dificilmente prosperará.  Por isso, é melhor não procurar saber quem é este ou aquele senhor, mas pensar simplesmente que ele é "o  senhor" e dirigir a ele a retidão da mente, sem mencionar‐lhe o nome. Se o criado fizer isso – e se servir a seu  senhor com a firme decisão de nunca se opor a ele e de nem sequer pisar‐lhe a sombra durante todo o tempo  que  estiver  sob  seu  senhorio,  quer  seja  um  mês,  um  ano  ou  mesmo  dez  anos  –,  embora  sirva  em  muitas  famílias, o senhor será sempre o mesmo.  Mesmo  que  haja  muita  rotatividade  de  criados,  o  senhor,  por  sua  vez,  não  deve  interferir  no  Caminho  do  Criado.  Deve  ter  o  amor  e  a  compaixão  profundamente  arraigados  no  coração,  não  deve  fazer  distinção  entre criados novos e velhos e deve agir com grande benevolência para com todos. Dessa maneira, nem os  criados terão nomes, nem o senhor terá nome; e o Caminho do Senhor e do Criado, do Mestre e do Servo, se  estabelecerá. Não deve haver distinção entre o criado novo que começou a servir hoje e o antigo que já está  no cargo há dez ou vinte anos. Todos devem ser tratados com amor e compaixão, e cada um deve ser visto  como o "meu criado".  É  provável  que  os  salários  e  honrarias  sejam  consideravelmente  diferentes  segundo  o  caso,  mas  não  deve  haver distinção no que se refere à compaixão e ao amor. Mesmo que um criado tenha sido empregado hoje,  o significado do pensamento "o senhor" não será encontrado no pensamento "o senhor atual".  Não é esse o Caminho do Senhor e do Criado? Disse Li Po9:  “O céu e a Terra são a estalagem na estrada das Dez Mil Coisas. O tempo fugidio é o viajante de cem gerações.  Esta vida mutável é como um sonho. Quanto tempo durará nossa felicidade? Os antigos acendiam lâmpadas e  se divertiam à noite. Na verdade, isso tinha uma razão de ser.”  Coisas não são apenas os objetos inanimados; diz‐se que o homem é uma coisa. O espaço entre o céu e a  Terra é a estalagem onde descansam das andanças os homens e as coisas. A passagem do tempo é como a  perpétua  passagem  do  viajante;  e  a  passagem  gradual  de  primavera,  verão,  outono  e  inverno  não  mudou  por cem gerações.                                                                     9

 Li Po (Li T'ai Po, 701‐62) foi um dos grandes poetas chineses do período T'ang. Esse parágrafo é a introdução ao seu  poema "Banquete no Jardim dos Pêssegos numa Noite de Primavera", e esta frase é de Chuang Tzu: "Esta vida é como  um sonho; esta morte é como uma correnteza." 

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O  corpo  é  como  um  sonho.  Quando  percebemos  esse  fato  e  acordamos,  não  sobra  sequer  um  vestígio.  Quanto tempo ainda temos para procurar?  Não era sem razão que os antigos passavam a noite em claro, acendendo as lâmpadas e divertindo‐se nas  horas de escuridão.  Neste  ponto,  pode‐se  cair  em  erro.  Deve  haver  critérios  para  a  diversão;  se  houver,  ela  não  fará  mal.  A  pessoa  que  não  tem  critérios  enlouquece.  Se  a  pessoa,  ao  se  divertir,  não  cai  em  erro,  ela  não  transgride  esses critérios. O que chamamos de critérios são, em geral, limites fixos para todas as coisas. Como os nós  do bambu, a maior parte das diversões devem ter limites. Não é bom transgredi‐Ios.  A  nobreza  cortesã  tem  as  diversões  da  corte,  a  casta  dos  samurais  tem  as  diversões  dos  samurais  e  os  sacerdotes têm as diversões dos sacerdotes. Cada um deve ter a diversão que lhe cabe.  Pode‐se  dizer  que  o  envolvimento  em  diversões  que  não  concordam  com  a  posição  social  é  um  erro  de  critério.  A  nobreza  cortesã  tem a  poesia  japonesa  e  chinesa  e  os  instrumentos  de  sopro  e de  cordas.  Com  essas  coisas,  não  haverá  nada  de  errado  em  que  eles  passem  a  noite  em  claro.  É  razoável  que  também  a  casta dos samurais e os sacerdotes tenham as diversões que lhes são apropriadas.  A  rigor,  não  deveria  haver  diversões  para  os  sacerdotes.  Diz‐se,  porém,  que  "em  público,  nem  uma  agulha  passa; mas, em particular, passam uma carruagem e seu cavalo". Isso significa que, compreendendo a mente  do ser humano e reconhecendo que o mundo degenerou, devemos deixar que também eles tenham as suas  diversões.  Deve‐se,  permitir  que,  reunindo‐se  na  quietude  noturna,  eles  componham  poesia  chinesa  e  japonesa, e até mesmo versos ligados. Num outro nível, não é descabido que eles inclinem o coração para a  Lua  e  as  flores  de  cerejeira  e,  acompanhados  por  jovens  de  quatorze  ou  quinze  anos,  dirijam‐se  para  um  lugar de onde se possa ver a Lua sobre as flores; e, lá, partilhem com eles algumas taças de saquê. Não é de  mau gosto que tenham também um pequeno tinteiro e papel para escrever.  Mas nem essas coisas são consideradas apropriadas para um sacerdote que aspira ao espírito religioso. Que  dizer, então, de outras versões menos requintadas?  Não seria motivo de surpresa se a nobreza e os samurais, percebendo que este mundo mutável não passa de  um sonho, acendessem as lâmpadas e passassem as noites em diversões.  Há aqueles que dizem: "Tudo é um sonho! Só nos resta a diversão!" Essas pessoas levam a mente além dos  limites, afundam‐se nos prazeres e vão até os extremos da luxúria. Embora citem as palavras dos antigos, a  mente delas está tão longe da mente dos antigos quanto a cinza está longe da neve.  Quando Ippen Shonin10 encontrou Hotto Kokushi11, fundador do Kokokuji da vila Yura, na província de Kii,  lhe disse: "Fiz um poema."  Disse Kokushi: "Vamos ouvi‐Io."  Shonin recitou:   Quando eu canto,  Buda e o eu  Deixam de existir.  Só existe a voz que diz  Namu Amida Butsu12.  Disse Kokushi: "Há algo de errado com os dois últimos versos, não achas?"  Então Shonin se retirou para Kumano e meditou por 21 dias. Quando passou de novo por Yura, disse: "Eis  como o escrevi":                                                                     10  Ippen Shonin (1.239‐89): fundador da escola Jodô do Budismo Terra Pura.  11  Hotto Kokushi (1.207‐98) foi um monge da escola Rinzai que viajou para a China dos Sung em 1.249.  12   Namu  Amido  Butsu,  "Louvor  ao  Buda  Amitabha",  é  a  fórmula  litúrgica  e  meditativa  utilizada,  em  particular,  pelos  budistas da escola Terra Pura.  7   

 

Quando eu canto,  Buda e o eu  Deixam de existir.  Namu Amida Butsu,  Namu Amida Butsu.  Kokushi manifestou sua aprovação com entusiasmo e disse: "Aí está! Conseguiste!"  Isso foi registrado nas notas de Kogaku Osho13. Devemos sempre reexaminá‐lo.  Falarei agora das Dez Qualidades Essenciais14.  São elas: 1. Forma, 2. Natureza, 3. Incorporação, 4. Poder, 5. Função, 6. Causa Latente, 7. Causa Externa, 8.  Efeito  Latente,  9.  Efeito  Manifesto  e  a  10.  Total  Inseparabilidade  entre  elas.  Os  Dez  Mundos15  são:  1.  o  Inferno,  2.  a  Fome,  3.  a  Animalidade,  4.  a  Ira,  5.  a  Humanidade,  6.  o  Céu,  7.  o  Conhecimento,  8.  a  Realização, 9. o Grau de Bodhisattva e 10. o Grau de Buda. As Dez Qualidades Essenciais são semelhantes a  eles. Em geral, desde os mundos do Inferno, da Fome, da Animalidade, da Ira, da Humanidade e do Céu, até  os  do  Conhecimento,  da  Realização,  do  Grau  de  Bodhisattva  e  do  Grau  de  Buda16,  todos  têm  as  Dez  Qualidades Essenciais.  Em regra, nada daquilo que nasce pode ser desprovido de forma; por isso, falamos da Qualidade Essencial  da Forma. Embora a Forma possa mudar de múltiplas maneiras, enquanto Forma ela é a mesma. Quando a  forma muda, até o som do seu cantar muda: o cuco canta a canção do cuco, e o rouxinol, a do rouxinol.  Será que cada um destes, para expressar a própria forma, muda sua figura até afetar a canção que canta? É  certo que os cucos da montanha e os rouxinóis do vale recitam suas próprias canções. Mas isso não significa  que até o som mude quando a forma muda. A canção é algo que torna o seu contexto mais requintado; o  contexto das palavras é algo que combinamos com a retidão da mente para, a partir daí, poder conhecê‐lo.  Tudo o que tem Forma também tem uma Natureza. Embora a Natureza de Buda seja sempre a mesma, a  Forma se insere em tudo quanto a recebe, e, por isso, muda.  Todos os seres senescentes [que envelhecem] possuem a Natureza de Buda, e o mesmo se pode dizer até  daqueles  que  estão  no  Inferno  e  nos  Mundos  da  Fome  e  da  Animalidade.  Isso  é  sempre  explicado  desse  modo, até mesmo nos sutras.  Supõe  que  vários  espelhos  sejam  colocados  em  volta  de  um  pedestal  e  uma  lâmpada  seja  colocada  no  centro; a lâmpada será refletida em cada um dos espelhos. A lâmpada é uma só, mas sua imagem aparece  em cada um dos espelhos. Isso ilustra o fato de que a Natureza de Buda é urna só, mas é recebida por todos  os seres senescentes dos Dez Mundos, até pelos famintos, e pelos animais. Esse é o exemplo do espelho e da  lâmpada mencionado no Sutra da Guirlanda de Flores. 

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 Kogaku Osho (1.465‐1.548): monge Rinzai que ensinou o Zen para o Imperador Go‐Nara. 

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 De acordo com o Sutra do Lótus, o termo Dez Qualidades Essenciais pode ser traduzido também como "assim" ou  "tal", ou seja, a "qüididade" ou "esseidade" de uma coisa. 

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  Os Dez Mundos também podem ser compreendidos como estados ou aspectos imutáveis que são comuns à toda  vida.  Alguns  têm  designações  alternativas,  como  segue:  Fome:  Espírito  Faminto  (sânscrito  Preta).  Esses  espíritos  se  encontram  em  diversos  graus  de  sofrimento  e  tormento.  Ira:  Demônio  (sânscrito  Asura).  Seres  inferiores  que,  na  mitologia  hindu,  guerreavam  constantemente  contra  o  deus  Indra.  Céu:  Reino  dos  Devas  [Nirvana].  Lugar  onde  os  seres  que  adquiriram  méritos  gozam  dos  frutos  do  bom  karma,  mas  não  fazem  progresso  rumo  à  Iluminação  dos  bodhisattvas.  (Homem  de)  Conhecimento:  Aquele  que  Ouve  (sânscrito  Sravaka).  Originalmente,  um  discípulo  que  havia ouvido em pessoa o ensinamento do Buda; por extensão, no Hinayana, qualquer discípulo do Buda. (Homem da)  Realização:  sânscrito  Pratyeka‐Buddha.  Pessoa  que  vive  separada  das  outras  e  atinge  por  si  só  o  conhecimento  da  Cadeia da Originação Interdependente (ver Nota 7, acima). Ela se contrapõe ao bodhisattva, que opta por permanecer  no ciclo das transmigrações para ajudar os demais, assim como ele mesmo, a atingir a Iluminação. Como um Sravaka,  um bodhisattva pode ser monge ou leigo.  16

 Os seis primeiros permanecem no mundo da ilusão; os quatro últimos detêm algum grau de iluminação. 

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Incorporação  é  a  Incorporação  da  Lei.  Todas  as  Dez  Mil  Coisas  possuem  Incorporação  e  Função.  A  Forma  nasce da Incorporação; depois, tendo percorrido todo o seu ciclo, ela perece. A Incorporação em si mesma  nunca se exaure.  Digamos que a neve e o gelo sejam a Função, e que a água seja a Incorporação. Quando a água se solidifica,  ela  vira  gelo;  mas  depois  ela  derrete  e  se  torna  a  água  original.  Considera  a  água  corno  figura  da  Incorporação.  Este é um exemplo da manifestação da Incorporação quando as dez mil Formas nascem da Incorporação da  Lei e depois perecem.  O homem comum é incapaz de ver além da Forma, é incapaz de ver a Incorporação. Quando algo se produz,  ele diz que esse algo se manifestou. Do ponto de vista da Iluminação, dizemos que esse algo se manifesta  quando ele volta à Incorporação e já não pode ser visto.  A neve nos altos picos,  o gelo nos vales entre as montanhas,  derretem e geram  o som nas colinas baixas:  A água da primavera.  Isso é dito da Incorporação.  Se uma coisa tem Forma, Natureza e Incorporação, é necessário que tenha também o Poder. Poder é a força  de atuar com eficácia; é a força que subjaz à realização de todos os fenômenos. Em todas as coisas, aquilo  que permite a realização do efeito é o Poder.  A  constância  do  pinheiro,  sempre  verde  em  meio  às  folhas  luxuriantes  da  montanha  no  verão,  sempre  foi  tema de muitas canções. Isso é assim porque ele nunca muda de cor, seja na geada, seja nas chuvas do fim  do  outono.  Permanece  constante  até  mesmo  durante  o  período  mais  frio  do  ano,  e  por  isso  é  cantado  e  decantado como a Qualidade Essencial do Poder.  Devido à existência do Poder, a Função permite a execução de todas as coisas. Aquele que não mitiga seus  esforços,  aprendendo  um  ideograma  hoje  e  outro  amanhã,  pode  realizar  qualquer  coisa.  O  significado  da  Função pode ser compreendido pelo ditado: "A jornada de mil milhas começa com um único passo."  Dadas a Forma, a Natureza, a Incorporação, o Poder e a Função, tudo o que se quiser fazer pode ser feito.  Essa é a Causa Latente. Se algo não é feito, isso ocorre em prejuízo da própria pessoa; e não existe nada que  não possa ser feito. Sem a Causa Latente e a Causa Exterior, é praticamente impossível chegar ao Grau de  Buda17.  O  ideograma  chinês  que  designa  a  Causa  Latente  também  significa  "dependência".  Isso  quer  dizer  que,  "dependendo" de uma certa coisa, várias outras coisas podem ser obtidas.  O ato de plantar a semente na primavera é tido como uma representação da Causa Latente. Mas, embora  ela tenha sido bem plantada, nada há de crescer sem o concurso da chuva e do orvalho. A ajuda da chuva e  do orvalho é uma representação da Causa Exterior. Dependendo da ajuda da chuva e do orvalho, a planta  crescerá e dará frutos no outono. Este é o Efeito Latente.  Quando o coração está pleno  E não se limita a descansar,  Minhas esperanças se voltam  Para o milésimo corte  De um ramo de madressilva.18                                                                    

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 Grau de Buda, lit. o "efeito" (fruto) do Buda. Além de homófonos, os ideogramas ka (efeito) e ka (fruto) assemelham‐ se um ao outro, de modo que, nas páginas seguintes, o autor faz vários trocadilhos intraduzíveis. 

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 No nordeste do Japão, havia antigamente o costume de pendurar um  ramo de madressilva na entrada da casa da  moça  com  quem  se  pretendia  casar.  Se  ela  concordasse  em  encontrar  o  pretendente,  levava  o  ramo  para  dentro  de  casa. Se não, o pretendente ia pendurando ramo após ramo até que, dizia‐se, pendurasse mil ramos. 

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O  significado  disso  é  que  o  ato  de  pendurar  um  ramo  de  madressilva  é  a  Causa  Latente  do  casamento.  Depois, a intermediação é a Causa Exterior; e, por fim, o fato de o homem e a mulher se casarem e terem  filhos é um exemplo de Efeito Latente.  Supõe, do mesmo modo, que alguém queira tornar‐se um Buda. Se ele não agir em primeiro lugar de acordo  com  a  Causa  Latente  [agir],  jamais  atingirá  o  Grau  de  Buda.  Fazei  da  disciplina  a  Causa  Latente,  e  no  fim  obterás o efeito.  A  palavra  efeito  tem  o  sentido  de  "fruto".  Dependendo  do  ato  de  plantar  a  Causa  Latente  na  primavera,  obtém‐se o fruto no outono. Isso é uma representação do Grau de Buda.  A Causa Exterior fica evidente nas notas acima.  O navio, a velas soltas,  Dobrou, sem dúvida,  O Cabo de Wada,  Impelido como é  Pelos ventos da montanha de Muko.  O navio é a Causa Latente. O vento é a Causa Exterior. Chegar à outra margem é o Efeito Latente. Sem o  navio, é impossível chegar à outra margem. E, mesmo que exista o navio, não pode faltar a Causa Exterior: o  vento.  É  isso  que  se  diz  ser  a  harmonia  entre  Causa  Latente  e  Causa  Externa.  Os  ventos  da  montanha  de  Muko devem ser considerados como a Causa Exterior. É impossível tornar‐se um Buda sem a Causa Latente,  que é a disciplina.  Porque as plantei,  Vejo‐as amadurecer  Na ponta dos remos,  Que estão pesados  Com as peras da Baía de Iki.  Esse é o Efeito Latente.  Chegar ao Grau de Buda é como plantar pereiras e vê‐Ias crescer.  Na Baía de Iki  Em ramos pesados  Como peras que amadurecem,  como peras que não amadurecem;  Elas não são fiéis  Até mesmo no sono?  Esse é o poema original. A Baía de Iki situa‐se em Ise.  Efeito Manifesto  Espera e verás!  Quando tu, que tratas os outros  Com crueldade, tentares amar,  Certamente saberás  (Como eu me sinto.)  Esse poema de amor significa: "Muito embora me trates com tanta crueldade, certamente não poderás deixar  de amar. Talvez um dia venhas a saber o que é o amor. Então, receberás aquilo que mereces."  Se fizeres o bem nesta vida, receberás em recompensa o bem na próxima vida. Se fizeres o mal, receberás o  mal. Esse é o Efeito Manifesto. Se a Causa Latente for boa, o Efeito Latente será bom. Se a Causa Latente  for má, o Efeito Latente será mau. É como o eco que responde a uma voz, ou a sombra que acompanha uma  forma.  É natural que uma pessoa se discipline com a Causa Latente nesta vida e obtenha a recompensa na próxima.  Mas  também  existem  ocasiões  em  que  uma  Causa  Latente  no  presente  é  acompanhada  por  um  Efeito  Manifesto no presente, uma Causa Latente do passado é seguida por um Efeito Manifesto no presente ou  10   

 

uma  Causa  Latente  no  presente  é  seguida  por  um  Efeito  Manifesto  no  futuro.  Isso  passa  de  um  mundo  a  outro,  manifestando‐se  mais  cedo  ou  mais  tarde,  e  não  pode  ser  evitado.  Também  pode  haver  uma  simultaneidade de Causa Latente e Efeito.  Podemos  tomar  como  exemplo  a  flor,  como  Causa  Latente,  e  o  fruto,  como  Efeito  Manifesto.  No  pé  de  melão, a flor e o fruto crescem ao mesmo tempo. No pé de arroz, o fruto – ou melhor, o grão – cresce e a flor  se abre sobre ele. Essas coisas podem ser tomadas como exemplos.  Inseparabilidade  Total:  desde  a  Qualidade  Essencial  da  Forma  até  a  Qualidade  Essencial  do  Efeito  Manifesto,  não  há  solução  de  continuidade  do  Princípio  ao  Fim.  Elas  se  sucedem  em  ciclos  da  Raiz  até  o  Ramo e são chamadas de Dez Pontos. O Limite Extremo é chegar ao que há de mais supremo. E isso, como  é evidente, são os Dez Mundos. Todas as coisas vivas – até mesmo os pequenos vermes – possuem as Dez  Qualidades Essenciais. Nem os seres inanimados estão isentos disso.  Tomemos  como  exemplo  os  frutos  da  castanheira  e  do  caquizeiro.  Dizer  que  eles  não  têm  dor  nem  sofrimento  é  um  juízo  feito  do  ponto  de  vista  humano.  Na  verdade,  tanto  a  dor  quanto  a  tristeza  se  estampam naturalmente neles.  A aparência de dor nas ervas e árvores não difere da expressão de sofrimento nos seres humanos. Quando  elas  são  regadas  e  bem  cuidadas,  elas  crescem  e  parecem  felizes.  Quando  são  cortadas  e  caem,  a  decomposição de suas folhas é semelhante à morte de um ser humano.  A dor e o sofrimento delas não são conhecidos dos seres humanos. E, quando as ervas e árvores olham para  a  tristeza  dos  seres  humanos,  é  como  quando  os  seres  humanos  olham  para  eles:  é  provável  que  elas  também pensem que nós não temos dor nem sofrimento. Simplesmente, parece que nós não conhecemos a  vida das ervas e árvores, e elas não conhecem a nossa. Isso está escrito nos livros dos confucianos.  Quando há cercas ou muros ao norte das plantas que estão crescendo, essas plantas se inclinam para o sul.  Vendo isso, fica claro que as plantas sabem o que lhes é prejudicial, embora não tenham olhos.  Dormindo  à  noite  e  abrindo‐se  de  dia,  o  lírio  é  outro  exemplo  útil.  Entretanto,  essa  natureza  não  está  presente apenas no lírio, mas em todas as ervas e árvores.  É por não prestarmos atenção que passamos a vida no desconhecimento. Aqueles que conhecem tudo sobre  as  ervas  e  árvores  são  sábios.  Só  não  compreendemos  essas  coisas  por  culpa  da  nossa  mente  tosca  e  endurecida.  É muito difícil saber se uma coisa é senciente ou insenciente. Provavelmente, não há nada na existência que  não  tenha  sensitividade.  Quando  dizemos  que  alguma  coisa  não  tem  sensitividade,  não  é  porque  ela  simplesmente não é parecida com as coisas que evidentemente a têm?  Dizem que, quando uma galinha está com frio, ela vai para o alto das árvores; e que, quando um pato está  com frio, ele entra na água para nadar. Essa idéia não é semelhante a pensar que, porque o pato vai nadar  quando está com frio, ele não tem a sensação de frio? Ou que a galinha, porque voa para o alto das árvores  quando está com frio, também não tem a sensação de frio?  A água é fria, e diz‐se que essa é a sua natureza. O fogo é quente, e diz‐se  que essa é a  sua natureza. Do  ponto  de  vista  do  fogo,  a  água  não  tem  natureza;  do  ponto  de  vista  da  água,  o  fogo  não  tem  natureza.  Embora a coisa possa ser  encarada dessa maneira,  na verdade cada um deles tem a sua própria natureza.  Não existe nada que não tenha a sua natureza.  Observando atentamente os fenômenos, vemos que não existe nada entre o céu e a terra que seja de fato  diferente do restante. Se enxergamos diferença, isso é porque nossa visão é estreita.  Supõe que eu não consiga ver o monte Fuji por ele estar encoberto, na minha linha de visão, por uma árvore  frondosa. Como o monte Fuji pode ser encoberto por uma única árvore? Ele só não pode ser visto por causa  da  estreiteza  da  minha  visão  e  porque  a  árvore  está  na  minha  linha  de  visão.  Mesmo  assim,  continuamos  pensando  que  a  árvore  está  encobrindo  o  monte  Fuji.  Esse  fato,  porém,  decorre  da  estreiteza  da  minha  visão. 

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Por  não  compreender  o  princípio  das  coisas,  as  pessoas  costumam  fazer  pose  de  sábios  e  criticar  os  que  compreendem.  Mas,  embora  pareçam  estar  rindo  dos  outros,  na  verdade  estão  rindo  de  si  mesmas.  Ao  menos as pessoas que verdadeiramente compreendem [isso] devem pensar assim.  Olha com plena atenção o estado do mundo agora.  A Terra é uma mãe, e o céu, um pai. Quando alojamos a semente da castanheira ou do caquizeiro na terra, o  broto aparece e o fruto da castanheira ou do caquizeiro se manifesta sem mudança alguma. Desse modo, ele  é criado por um pai e uma mãe. Quando dizemos que ele é "alojado", isso indica que é algo que vem de outro  lugar.  Também para o ser humano a Terra é mãe e o céu é pai, e o fenômeno que se torna a criança é algo trazido  de outro lugar e alojado aqui.  Aquilo que se chama meta‐existência [imaterial] não é nem um pouco diferente da concepção das coisas na  presente  existência  [material].  É  por  essa  razão  que  a  existência  presente  também  é  chamada  "uma  existência".  Quando a existência atual chega ao fim, vem aquilo que se chama meta‐existência. Depois a meta‐existência  se altera e vem a existência posterior, ou reencarnação.  Em cada uma delas, a mente que está neste corpo atual não sofre absolutamente nenhuma mudança.  Embora  até  na  meta‐existência  haja  um  corpo,  ele  não  pode  ser  visto  pelos  olhos  humanos  devido  à  sua  sutileza. Quanto à meta‐existência daqueles que foram profundamente apegados a este mundo, há casos de  pessoas  que  a  viram.  Sendo  esse  um  fato  fora  do  comum,  as  pessoas  duvidam  dele  e  o  atribuem  à  transformação de raposas ou furões, ou explicam‐no como uma visão ilusória dos mortos.  Também essas duas últimas coisas podem acontecer. Mas, mesmo admitindo isso, não devemos enquadrar  todos os casos nessas duas categorias. As coisas verdadeiras também existem no mundo, e não apenas no  falar dos homens. Além disso, elas também foram registradas pelas penas [escrituras] daqueles que viveram  no  Mundo  do  Caminho  e  que  eram,  eles  mesmos,  homens  do  Caminho.  É  compreensível  que  tenhamos  dúvidas, pois não chegamos aos pés da sabedoria dos homens que escreveram essas coisas.  Quando vemos as coisas no meio de um sonho, encontramos pessoas, falamos e ouvimos, vemos cores e até  temos relações sexuais, muito embora não vejamos nem ouçamos essas coisas com os olhos e ouvidos que  recebemos  ao  nascer.  Nós  nos  debatemos  com  os  assuntos  que  cotidianamente  nos  preocupam  e,  no  momento mesmo em que achamos que estamos prestes a conseguir aquilo que desejamos, acordamos.  É ao despertar que percebemos que tudo não passava de um sonho. Durante o sonho, nós nunca pensamos  "Isto é um sonho" ou "Isto não é real".  Durante o sonho, este corpo permanece vivo, mas está preso e não pode ir aonde quer. Com a força de seus  próprios pensamentos, porém, ele pode ver os lugares que quiser, atraindo‐os a si.  Quando a pessoa morre e abandona o corpo, ela vai para onde quer, como um gato que se livra da coleira.  Embora  os  pensamentos da  pessoa  sejam  semelhantes  aos  pensamentos  que  se  têm  num  sonho,  agora  é  como se ela pudesse ir livremente para onde quiser.  No meio da escuridão profunda ou quando as portas e janelas estão fechadas, a pessoa entra num estado de  liberdade. Isso ocorre porque ela não tem forma.  Nesse caso, embora haja forma, não há corporalidade. É como ver o reflexo da Lua ou de uma lâmpada na  água. Não há impedimentos.  Quando  o  corpo  age  como  uma  barreira,  não  se  pode  penetrar  no  santuário  interior;  mas  a  mente  pode  entrar em contato com aquilo que está dentro, assim como os pensamentos podem atravessar a Montanha  de  Prata  ou  a  Muralha  de  Ferro.  É  improvável  que  esse  mistério  seja  compreendido  pelo  comum  dos  homens.  O  Buda  e  os  patriarcas  o  compreenderam,  mas  o  povo  comum  não  o  conhece  de  maneira  alguma.  Não  o  conhecendo, eles têm dúvidas, e insensatez se acrescenta à insensatez.  12   

 

Há um número indefinido de coisas que eu não conheço, e; não as conhecendo, simplesmente digo que elas  não existem. Supõe que eu conheça seis ou sete coisas de um total de cem. Se, quando alguém vier me falar  das  restantes,  ou  disserem  que  elas  não  existem,  90  coisas  terão  deixado  de  existir.  Mas  se  eu  passar  a  conhecer  por  volta  de  15,  dentre  aquelas  que  não  existiam,  cinco  ou  seis  terão  passado  à  existência.  Para  aquelas  pessoas  que  conhecem  20  ou  30  coisas,  o  número  de  coisas  não‐existentes  baixa  a  setenta.  Se  alguém  conhece  60  ou  70  de  um  total  de  cem,  as  restantes  30  ou  40  continuam  tão  obscuras  quanto  às  primeiras mencionadas. E quando a pessoa conhece todas essas coisas e pensa que já não existe nada que  ela não conheça, é porque ainda não tem o conhecimento.  Se um homem avança, esclarecendo as coisas uma após a outra, por fim será capaz de conhecer todas as  coisas. Se algo é conhecido de alguém, ninguém deve dizer que esse algo não existe; se alguém o disser, é  porque ele mesmo ignora o assunto.  Mesmo  um  homem  extremamente  tolo  pode  vir  a  conhecer  algo  devido  à  sua  fé.  Por  outro  lado,  não  se  costuma dizer que "uma arte marcial incipiente é causa de grandes desastres"?  No  meu  entender,  as  Cinco  Raízes19  não  passam  à  meta‐existência  [imaterialidade].  No  momento  da  transição, as Cinco Raízes da existência atual são transferidas para a consciência20, o sexto sentido. Então, as  Cinco Raízes perdem a forma, mas continuam funcionando.  Como o sexto sentido da Percepção é a consciência, ele não tem forma. Mas tem as faculdades da visão e da  audição; é por isso que nos sonhos, mesmo sem o concurso dos olhos e dos ouvidos corpóreos, uma forma  diferente se produz e ocorrem a visão e a audição. Ele é chamado de consciência porque, embora não exista  a matéria, sua função existe.  Se não existe a matéria, e esse sentido é algo que não conhecemos, é melhor dizer simplesmente "visão" ou  "audição".  Como  a  visão  e  a  audição  são  transferidas  para  a  consciência  e  atingem  um  segundo  nível,  a  matéria das Cinco Raízes é descartada e suas funções são assumidas pela consciência.  Embora as Cinco Raízes não existam na meta‐existência, o discernimento dos cinco sentidos não difere do  discernimento que temos na existência atual. Simplesmente não se pode ver isso de fora. Para a pessoa em  questão, é tudo exatamente igual a este mundo. Além disso, mesmo admitindo a existência do corpo, ele é  tão etéreo que é difícil de ver.  Quando um pássaro voa pelo céu, ele vai ficando cada vez mais indistinto à medida que se afasta, até que  por fim nós pensamos que ele desapareceu. Embora percamos de vista a matéria, esse desaparecimento não  quer dizer que o pássaro não existe mais. Nós não o enxergamos porque ele ficou muito indistinto.  A forma da pessoa que está na meta‐existência é apagada e difícil de identificar; por isso nós não a vemos. A  pessoa, nesse estado, pode ver‐nos assim como via quando estava viva, mas as pessoas não sabem disso.  Quando as pessoas que cometeram sérios pecados passam à meta‐existência, suas formas são visíveis. As  pessoas as vêem naturalmente e chamam‐nas de fantasmas ou coisa que o valha. Também isso existe. As  formas das pessoas que eram profundamente apegadas a este mundo não são nem um pouco sutis.  É como ferver muitos ingredientes para fazer um caldo medicinal. Se os ingredientes forem fracos, o caldo  será fino. Se forem fortes, o caldo será grosso. Será possível saber nitidamente quais foram os ingredientes  utilizados.  O  caldo  muito  fino  é  idêntico  à  água.  Sendo  ele  idêntico,  as  pessoas  não  o  reconhecem  como  caldo, mas o vêem como água.  Na meta‐existência, a forma da pessoa que foi profundamente apegada às coisas materiais é visível. Mas a  pessoa cuja forma é sutil é idêntica ao ar, e nós não a vemos. Nós não a vemos, mas ela nos vê.  Por ter forma, eu posso ser visto. Por elas terem formas sutis, eu não posso vê‐Ias. No Ming‐i Chi21, esse fato  é ilustrado pelo grão de cevada.                                                                    

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 As Cinco Raízes são os cinco órgãos dos sentidos: olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo. (Cf. Nota 5, acima). 

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  Consciência  (sânscrito  vijnana).  O  sexto  dos  seis  meios  de  percepção  (visão,  audição,  olfato,  paladar,  tato  e  consciência)  é  a  mente  no  sentido  mais  amplo  de  todas  as  faculdades  mentais,  mas  especialmente  a  faculdade  do  pensamento. 

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Com um único grão de cevada, nasce um broto; mas, embora o broto seja dotado das mesmas funções que a  cevada original, ele jamais se tornará cevada se a água e a terra não se juntarem.  A consciência humana e o mundo objetivo se unem, vários pensamentos se manifestam, e destes nascem  muitos outros. Atraído por esses pensamentos, esse corpo material é recebido e produzido. Ele não é apenas  um objeto estranho que caiu do céu.  Partindo  do  pensamento  único  que  não  tem  início,  a  multiplicidade  das  coisas  vem  à  existência.  Se  procurares cuidadosamente pela fonte desse pensamento único que não tem início, verás que ele não tem  fonte  alguma.  Não  tendo  origem  absolutamente  nenhuma,  o  nascimento  da  infinita  variedade  das  coisas  pode ser considerado um mistério. 

                                                                                                                                                                                                                              

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 Fan‐i Ming‐i Chi: dicionário sânscrito‐chinês em sete capítulos, elaborado na Dinastia Sung. 

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ANAIS DA ESPADA TAIA 

 

Taiaki  Takuan Soho    para Yagyu Munenori 

 

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 “É de supor‐se que, enquanto guerreiro2, não Iuto para ganhar nem para perder, não me importo com a  força nem com a fraqueza, e não avanço sequer um passo nem recuo sequer um passo. O inimigo não me  vê. Eu não vejo o inimigo. Penetrando num lugar onde Céu e Terra ainda não se separaram, onde Yin e  Yang ainda não surgiram, eu rápida e necessariamente atinjo o objetivo.”  A  expressão  “é  de  supor‐se”  indica  algo  que  eu  não  sei  com  certeza.  Originalmente,  o  significado  desse  ideograma  era  "tampa".  Por  exemplo:  quando  se  põe  uma  tampa  numa  caixa,  embora  não  saibamos  com  certeza  o  que  há  ali  dentro,  se  usarmos  a  imaginação  acertaremos  seis  ou  sete  vezes  de  um  total  de  dez.  Também neste caso eu não sei com certeza, mas imagino que as coisas devem ser tais e quais eu afirmo. Na  verdade,  essa  forma  de  escrever  é  usada  até  mesmo  com  relação  àquelas  coisas  que  nós  sabemos  com  certeza. Nós  a usamos para sermos modestos e para não parecer que estamos falando como se fôssemos  donos da verdade.  Guerreiro é exatamente aquilo que o ideograma indica.  Não lutar para ganhar nem para perder, não se importar com a força nem com a fraqueza significa não ansiar  pela vitória nem temer a derrota, e não se importar com as funções de força ou fraqueza.  Não avançar sequer um passo nem recuar sequer um passo significa não dar nem um passo à frente nem um  passo atrás. A vitória é alcançada sem que você se mova do lugar onde está.  O eu de "o inimigo não me vê" refere‐se ao meu Eu Verdadeiro. Não diz respeito ao meu eu palpável. É fácil  ver o eu palpável; é difícil discernir o Eu Verdadeiro. Por isso digo: "O inimigo não me vê."  Eu não vejo o inimigo. Por não adotar o ponto de vista pessoal3 do eu palpável, eu não vejo a arte marcial do  eu  palpável  do  inimigo.  Embora  eu  diga  "Eu  não  vejo  o  inimigo",  isso  não  quer  dizer  que  eu  não  veja  bem  diante dos meus olhos. Ver uma coisa sem ver a outra é, de fato, algo muito singular.  Ora, o Eu Verdadeiro é o eu que existia antes da separação do Céu e da Terra e antes que nascessem o nosso  pai e a nossa mãe. É o eu que está dentro de mim, dos pássaros e animais, das ervas, das árvores e de todos  os fenômenos. É exatamente aquilo que se chama de Natureza de Buda.  Este eu não tem figura nem forma, não tem nascimento nem morte. Não é um eu que possa ser visto com o  concurso do olho corpóreo. Só o homem que recebeu a Iluminação é capaz de vê‐lo. Diz‐se que aquele que o  vê, viu a sua própria natureza e tornou‐se um Buda.  Há muito tempo, o Venerável4 foi para as Montanhas Nevadas5 e, depois de passar seis anos no sofrimento,  tornou‐se Iluminado. Esta foi a Iluminação do Eu Verdadeiro. O homem comum não tem força de fé e não  consegue perseverar nem três ou cinco anos numa só coisa. Mas aqueles que estudam o Caminho mantêm  uma  dedicação  absoluta  por  dez  a  vinte  anos,  24  horas  por  dia.  Eles  reúnem  uma  grande  força  de  fé,  conversam com os sábios e desprezam a adversidade e o sofrimento. Como um pai que perdeu o filho, eles  não  se  demovem  nem  sequer  um  átomo  da  resolução  que  formaram.  Refletem  profundamente,  acrescentando investigação a investigação. No fim, chegam àquele lugar em que até mesmo a doutrina e a  Lei de Buda se desvanecem, e são naturalmente capazes de ver "Isto".  Penetrando num lugar onde céu e Terra ainda não se separaram, onde Yin e Yang ainda não surgiram, eu rápida  e  necessariamente  atinjo  o  objetivo  significa  mirar  os  olhos  no  lugar  que  existia  antes  que  o  Céu  e  a  Terra  fossem a Terra, antes de haver Yin e Yang. Equivale a não valer‐se nem do pensamento nem do raciocínio e  olhar sempre em frente. Dessa maneira, o objetivo será indubitavelmente atingido.                                                                     1

 Os parágrafos recuados [centralizados e em negrito] foram compostos num estilo chinês forte e conciso e constituem  o coração do Taiaki (Anais da Espada Taia). As partes mais longas entre esses parágrafos, compostas em japonês, são  essencialmente exegeses das partes em chinês.  2

 Na versão inglesa, o termo usado é "artista marcial". Optamos por "guerreiro" devido ao caráter inusitado da primeira  forma. (N.T.) 

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 Ponto de vista pessoal é um termo budista que significa uma visão pessoal baseada na idéia errônea de que o ego, ou  eu pessoal, é uma realidade e é capaz de perceber a realidade. 

4 5

 Venerável é um dos dez epítetos do Shakyamuni, o Buda histórico. 

 Montanhas Nevadas são os Himalaias. 

1   

 

 

“Ora, o homem perfeito usa a espada, mas não mata ninguém. Ele usa a espada e vivifica os outros seres.  Quando é necessário matar, ele mata. Quando é necessário dar a vida, ele a dá. Ao matar, ele mata em  concentração completa; ao dar a vida, ele a dá em concentração completa. Sem olhar para o certo e o  errado, ele é capaz de ver o certo e o errado; sem procurar discriminar, ele é capaz de discriminar com  perfeição. Andar sobre as águas é como andar sobre a terra, e andar sobre a terra é como andar sobre as  águas. Se ele for capaz de alcançar essa liberdade, não será levado à perplexidade por nenhum ser sobre a  Terra. Em todas as coisas, não haverá quem se lhe equipare.”  O homem perfeito significa o homem perfeito nas artes marciais.  Ele usa a espada, mas não para matar significa que, mesmo que ele não use a espada para golpear os outros,  eles se acovardam e por si mesmos tornam‐se como mortos quando confrontados por esse princípio. Não há  necessidade de matá‐los.  Ele usa a espada e dá a vida aos outros seres significa que, enquanto lida com seu oponente usando a espada,  ele deixa tudo a cargo dos movimentos do oponente; assim, é capaz de observá‐lo a seu bel‐prazer.  Quando  é  necessário  matar,  ele  mata;  quando  é  necessário  dar  a  vida,  ele  a  dá.  Ao  matar,  ele  mata  em  concentração  completa;  ao  dar  a  vida,  ele  a  dá  em  concentração  completa  significa  que,  quer  dando  a  vida,  quer tirando‐a, ele o faz com liberdade num estado de meditação de absorção total, e aquele que medita  torna‐se uma coisa só com o objeto da meditação.  Sem olhar para o certo e o errado, ele é capaz de ver o certo e o errado; sem procurar discriminar, ele é capaz de  discriminar com perfeição. Isso significa que, no que diz respeito à sua arte marcial, ele não a examina para  julgá‐la "correta" ou "incorreta", mas é capaz de ver o que ela é. Ele não procura julgar nada, mas é capaz de  fazer isso com perfeição.  Quando se levanta um espelho, a forma de tudo o que está à frente dele é refletida e pode ser vista. Como o  espelho  faz  isso  sem  intenção  nenhuma,  as  diversas  formas  são  refletidas  claramente,  sem  nenhuma  preocupação  de  diferenciar  isto  daquilo.  Tornando  toda  a  sua  mente  como  um  espelho,  o  praticante  das  artes marciais não tem a intenção de discriminar o certo do errado; mas, segundo a limpidez do espelho da  sua mente, o juízo de certo e errado será percebido sem que ele precise pensar sobre isso.  Andar  sobre  as  águas  é  como  andar  sobre  a  terra,  e  andar  sobre  a  terra  é  como  andar  sobre  as  águas.  O  significado  disso  não  pode  ser  conhecido  por  quem  não  seja  Iluminado  a  respeito  da  própria  origem  da  existência humana.  Se  o  tolo  pisar  sobre  a  terra  como  pisa  sobre  a  água,  ao  pisar  sobre  a  terra  ele  certamente  cairá.  Se  pisar  sobre a água como pisa sobre a terra, ao pisar sobre a água ele pensará que pode caminhar normalmente.  No  que  diz  respeito  a  essa  questão,  o  homem  que  se  esquecer  tanto  da  terra  quanto  da  água  chegará  à  compreensão desse princípio pela primeira vez.  Se ele for capaz de alcançar essa liberdade, não será levado à perplexidade por nenhum ser sobre a Terra. De  acordo com isso, o guerreiro que for capaz de alcançar a liberdade não terá dúvidas sobre o que fazer, não  importa quem ele enfrente sobre a Terra.  Em  todas  as  coisas,  não  haverá  quem  se  lhe  equipare  significa  que,  por  não  ter  iguais  no  mundo,  ele  será  idêntico ao Shakyamuni, que disse: "No Céu acima e na Terra que está embaixo, só eu sou o Venerável."6   

 

                                                                  

6

  Diz‐se  que,  quando  Shakyamuni  nasceu,  ele  deu  sete  passos  em  cada  uma  das  quatro  direções,  levantou  a  mão  direita, apontou para o céu e pronunciou essa frase. 

2   

 

“Queres chegar a isso? Andando, de pé, sentado ou deitado, falando e permanecendo em silêncio,  durante o chá e durante o arroz, deves exercitar‐se constantemente, deves rapidamente fixar o olho na  meta, deves investigar tudo cuidadosamente, quer indo, quer vindo. Assim, deves olhar direto para as  coisas. À medida que os meses forem se acumulando e os anos forem passando, deverás ser como que uma  luz que se acende por si mesma no escuro. Receberás a sabedoria sem mestre e manifestarás uma  habilidade misteriosa sem procurar fazê‐Io. Nesse momento, isso não se diferencia do que é comum, mas o  transcende. Dou‐lhe o nome de "Taia".”  Queres  chegar  a  isso  "Isso"  indica  aquilo  que  foi  escrito  acima;  a  pergunta  é  se  estás  disposto  a  obter  o  significado do que foi dito.  Andando,  de  pé,  sentado  ou  deitado.  Essas  quatro  coisas  –  andar,  estar  de  pé,  sentado  ou  deitado  –  são  chamadas as Quatro Dignidades7. Ninguém está isento delas.  Falando e permanecendo em silêncio significa: quer falando sobre as coisas, quer não pronunciando palavra.  Durante o chá e durante o arroz significa: ao beber chá e ao comer arroz.  Deves  exercitar‐se  constantemente,  deves  rapidamente  fixar  o  olho  na  meta,  deves  investigar  tudo  cuidadosamente, quer indo, quer vindo. Assim, deves olhar direto para as coisas. Isso significa que jamais deves  ser  descuidado  ou  negligente  nos  teus  esforços,  e  que  deves  sempre  voltar  a  ti  mesmo.  Deves  fixar  rapidamente o teu olho na meta e deves investigar  esses princípios em profundidade,  continuamente. Vai  sempre em frente, considerando o certo como certo e o errado como errado, sem deixar de observar esse  princípio em todas as coisas.  À medida que os meses forem se acumulando e os anos forem passando, deverás ser como que uma luz que se  acende  por  si  mesma  no  escuro  significa  que,  desse  mesmo  modo,  deves  perseverar  incontavelmente  no  esforço.  À  medida  que  avançares,  acumulando  meses  e  anos,  tua  aquisição  própria  desse  princípio  misterioso será como encontrar, de repente, a luz de uma lanterna numa noite escura.  Receberás  a  sabedoria  sem  mestre  significa  que  hás  de  adquirir  essa  sabedoria  fundamental  sem  que  ela  jamais te tenha sido transmitida por um mestre.  Manifestarás uma habilidade misteriosa sem procurar fazê‐Io. As obras do homem comum vêm todas da sua  consciência; por isso, são todas ações do mundo dos fenômenos criados e acarretam sofrimento. Ao mesmo  tempo,  as  ações  incriadas8  são  geradas  por  essa  sabedoria  fundamental;  por  isso,  só  elas  são  naturais  e  pacíficas.  Nesse momento indica esse exato momento: o momento em que a pessoa recebe a sabedoria sem mestre e  manifesta uma habilidade misteriosa sem procurar fazê‐lo.  O significado de isso não  se diferencia  do que  é comum, mas o transcende  é que essa misteriosa  habilidade  incriada não é gerada a partir daquilo que não é comum.  Só se tornam o incriado aquelas ações que não se destacam, mas são absolutamente comuns e cotidianas;  por  isso,  esse  princípio  nunca  se  destaca  nem  se  separa  daquilo  que  é  comum.  Isso  não  quer  dizer  que  as  ações comuns do homem comum no mundo dos fenômenos criados não sejam totalmente diferentes. Por  isso se diz que "isso não se diferencia do que é comum, mas o transcende".  Dou‐lhe o nome de "Taia". Taia é o nome de uma espada [chinesa antiga] que não tem igual sob o céu. Essa  famosa espada, incrustada de jóias, é capaz de cortar qualquer coisa, desde o metal duro e aço temperado  até gemas e pedras densas e endurecidas. Sob o céu, não há nada que se equipare a essa lâmina. A pessoa  que  obtiver  essa  misteriosa  habilidade  incriada  não  será  abalada  nem  pelo  comandante  de  exércitos  gigantescos, nem por uma força inimiga de centenas de milhares de homens. Isso equivale a não haver nada  que  resista  ao  corte  da  lâmina  da  famosa  espada.  Por  isso,  chamo  a  força  dessa  misteriosa  habilidade  de  Espada Taia.                                                                      

7

 Esse termo budista indica aquelas situações em que a pessoa inspira respeito pela sua postura. As quatro representam  todos os estados do homem, cujo número, calcula‐se, chega a oitenta mil. 

8

 Os "fenômenos criados" resultam da lei do Karma; os "incriados" são independentes da ação, da palavra e da vontade. 

3   

 

“Todos os homens estão equipados com a afiadíssima Espada Taia, e em cada um deles ela é  perfeitamente completa. Aqueles para os quais isso é claro são temidos até mesmo pelos Maras9; mas  aqueles para quem isso é obscuro são enganados até mesmo pelos heréticos. Por um lado, quando dois  homens de igual habilidade se defrontam para combater à espada, o confronto não se conclui jamais; é  semelhante a quando Shakyamuni segurou a flor e Kashyapa10 sorriu sutilmente. Por outro lado, elevar  um lado e compreender os outros três, ou distinguir sutis diferenças de peso a olho nu, são exemplos de  inteligência comum. Aquele que dominou isso te cortará em três pedaços antes mesmo que o primeiro lado  seja revelado e os outros três, compreendidos.11 Quanto mais não o fará quando o encontrares face a  face?”  Todos  os  homens  estão  equipados  com  a  afiadíssima  Espada  Taia,  e  em  cada  um  deles  ela  é  perfeitamente  completa. Isso significa que a célebre Espada Taia, cuja lâmina não é igualada por nenhuma outra sob o céu,  não é dada apenas aos outros homens. Todos, sem exceção, estão equipados com ela; ela não é inadequada  para ninguém, e está absolutamente inteira.  Isso  diz  respeito  à  mente.  Essa  mente  não  nasceu  no  momento  em  que  nasceste,  nem  vai  morrer  no  momento em que morreres. Assim sendo, diz‐se que ela é a tua Face Original12. O Céu não é capaz de cobri‐ Ia, nem a Terra de suportá‐la; o fogo não é capaz de queimá‐la, nem a água de umedecê‐la; sequer o vento é  capaz de penetrá‐la. Não existe nada sob o céu que possa obstruí‐Ia.  Aqueles para os quais isso é claro são temidos até mesmo pelos Maras, e aqueles para quem isso é obscuro são  enganados  até  mesmo  pelos  heréticos.  Não  há  nada  no  universo  que  obscureça  ou  obstrua  a  visão  daquele  que  foi  claramente  Iluminado  no  que  diz  respeito  à  sua  Face  Original.  Por  isso,  o  poder  sobrenatural  dos  Maras não tem meio de ação. Essa pessoa enxerga até o fundo de suas próprias intenções; por isso, os Maras  a temem e evitam, e hesitam em aproximar‐se dela. Por outro lado, a pessoa que está na obscuridade e no  extravio no que diz respeito à sua Face Original acumula um número incalculável de ilusões e pensamentos  confusos, que então aderem a ela. Os heréticos facilmente enganam e burlam essa pessoa.  Quando  dois  homens  de  igual  habilidade  se  defrontam  para  combater  à  espada,  o  confronto  não  se  conclui  jamais.  Isso  significa  que,  se  dois  homens  que  houvessem  ambos  penetrado  a  sua  Face  Original  se  defrontassem e desembainhassem ambos a espada Taia para combater, seria impossível levar o embate a  uma conclusão. A situação é comparável ao encontro entre Shakyamuni e Kashyapa.  Shakyamuni  segurou  a  flor  e  Kashyapa  sorriu  sutilmente.  Na  reunião  da  Montanha  de  Gridhrakuta,  pouco  antes da morte de Shakyamuni, ele segurou nas mãos um único lótus vermelho e o mostrou a oitenta mil  monges, que permaneceram todos em silêncio. Somente Kashyapa sorriu. Conhecendo nesse momento que  Kashyapa  tinha  sido  Iluminado,  Shakyamuni  confiou‐lhe  a  Reta  Doutrina,  que  não  depende  da  palavra  escrita e é transmitida sobretudo sem instrução13, e impôs sobre ele o selo de Buda.                                                                    

9

 Mara é um demônio; o termo sânscrito significa literalmente "Ladrão da Vida". Aqui faz‐se referência especificamente  ao Deva Mara, o qual, a partir de sua situação no Sexto Céu, obstrui a prática do Budismo. 

10

  Kashyapa  (Mahakashyapa),  o  mais  dedicado  às  práticas  ascéticas  dentre  os  dez  discípulos  principais,  tornou‐se  o  chefe dos discípulos depois da morte do Buda.  11

  O texto original é obscuro. Em termos gramaticais, ele correlaciona analogicamente o exemplo do "primeiro e dos 

outros três" com a referência a Shakyamuni e Kashyapa, mas isso não condiz nem com o sentido com um todo nem  com as demais partes do texto. A referência ao "primeiro e aos outros três" é provavelmente tirada dos Analectos de  Confúcio (7:8): "Disse o Mestre: 'Não Ilumino aqueles que não se entusiasmam, nem educo os que não têm forte desejo  de  aprender.  Não  repito  instruções  àqueles  que,  quando  eu  levanto  um  dos  lados,  não  voltam  tendo  levantado  os  outros  três.”  –  Isso  diz  respeito  à  construção  geométrica  do  quadrado.  A  partir  de  um  lado,  pode‐se  conhecer  imediatamente os outros três lados da figura. (N.T.) A última parte da frase é do Pi Yen Lu, coletânea de problemas,  ditos e anedotas dos patriarcas Zen: "Revelar um lado e compreender os outros três, distinguir sutis diferenças de peso  a olho nu – esse é o arroz com feijão [no original, "o chá e o arroz"] do monge budista."  12

 Face Original é a natureza pura da Mente, imaculada ainda pelas ações e intenções humanas. 

13

 A desconfiança da palavra escrita e a transmissão sem instrução são dois pontos especialmente salientados no Zen.  Eles  expressam  o  princípio  de  que  se  deve  olhar  para  a  própria  natureza  intrínseca,  e  não  confiar  nos  textos  ou  ensinamentos de outrem. 

4   

 

Depois disso, a Reta Doutrina foi transmitida na Índia em 28 sucessões até Bodhidharma14. Na China, ela foi  passada por Bodhidharma em seis transmissões até chegar ao Sexto Patriarca, o Mestre Zen Ta Chien15.  Como esse Mestre Zen encarnou‐se como bodhisattva, desde aquela época a Lei de Buda floresceu na China,  espalhando suas folhas e ramos, gerando rapidamente as Cinco Casas e Sete Seitas16 e, finalmente, sendo  transmitida aos sacerdotes japoneses Daio17 e Daito18 pelo sacerdote Nai Chih Hsü T'ang19. Isso não cessou  de ser transmitido de mestre para discípulo até os dias de hoje.  A  doutrina  de  "segurou  a  flor...  sorriu  sutilmente"  é  difícil  de  captar  e  quase  impossível  de  destrinchar  por  meio da especulação. É preciso beber o sopro de todos os Budas e, ao mesmo tempo, engolir a própria voz.  Na  realidade,  não  existe  um  meio  de  expressar  esse  princípio;  mas,  caso  seja  necessário,  pode‐se  citar  o  exemplo  de  tomar  a  água  de  um  vaso  e  passá‐la  a  outro,  de  modo  que  as  águas  se  misturem  e  não  se  distinguem  mais.  Esse  é  o  momento  em  que  os  olhos  de  Shakyamuni  e  de  Kashyapa  se  encontraram  e  tornaram‐se uma só coisa. Não existe mais relatividade.  Dentre todos os guerreiros de todas as escolas, não há sequer um em cem mil que tenha captado o sentido  de  "Segurou  a  flor...  sorriu  sutilmente".  Não  obstante,  se  alguém  tivesse  a  mais  firme  das  intenções  e  realmente  quisesse  compreender,  teria  ainda  de  disciplinar‐se  por  outros  30  anos.  Extraviar‐se  nesse  caminho não seria mera questão de não dominar as artes marciais; a pessoa entraria no inferno como uma  flecha atirada de um arco. Isso é assustador.  Elevar um lado e compreender os outros três significa que, assim que se mostra uma parte, as outras três são  imediatamente compreendidas.  Distinguir sutis diferenças de peso a olho nu. Distinguir... a olho nu significa a função do olho, ou medir a olho.  As diferenças de peso são extremamente sutis. O homem capaz de medir a olho qualquer peso de ouro ou  prata, sem errar, é pessoa inteligente e hábil20.  Esses  são  exemplos  de  inteligência  comum  significa  que  as  pessoas  dotadas  desse  tipo  de  inteligência  são  comuns e seu número é incalculável; por isso, elas não têm nada de especial.  Aquele que dominou isso te cortará em três pedaços antes mesmo que o primeiro lado seja revelado e os outros  três, compreendidos. Isso diz respeito à pessoa que foi Iluminada quanto à causa da manifestação do Buda no  mundo.  É  ela  que  te  cortará  em  três  pedaços  antes  que  o  primeiro  tenha  sido  revelado,  os  três  compreendidos, ou antes que surja qualquer indicação. Por isso penso que, ao encontrar alguém assim, não  há nada que se possa fazer.  Quanto mais não o fará quando o encontrares face a face? O homem que adquiriu essa rapidez e sutileza, ao  defrontar‐se  com  outro  face  a  face,  golpeia  com  tanta  facilidade  que  o  outro  nem  sequer  percebe  que  a  cabeça lhe rolou de sobre os ombros.   

 

                                                                  

14

 Bodhidharma: primeiro patriarca do Budismo Ch'an (Zen) na China. Diz‐se que chegou a esse país vindo da Índia, em  470 ou 520 d.C. 

15

 Ta Chien (637‐713): mais conhecido como Hui Neng, foi figura crucial para o desenvolvimento do Budismo Zen. 

16

 "Cinco Casas e Sete Seitas" são as várias escolas e subescolas do Zen.   Daio Kokushi (1.234‐1.308): monge da escola Rinzai que estudou o Budismo na China.  18  Daito Kokushi (1.282‐1.337): discípulo de Daio Kokushi, tido como o introdutor do Zen no Daitokuji.  17

19

  Nai  Chi  Hsü  T'ang  (1.185‐1.269):  também  conhecido  como  Hsü  T'ang  Chih  Yü,  foi  um  monge  chinês  do  Budismo  Linchi. 

20

 Aqui, o texto original define os pesos e medidas, do período Edo, que são tomados como exemplo. 

5   

 

“No fim, um tal homem nunca expõe a ponta da sua espada. Sua velocidade – nem o relâmpago se lhe  equipara. Sua agilidade – ela desaparece antes ainda que o vento da tempestade. Se a pessoa, sem  possuir essa tática, acabar por ver‐se embaraçada ou confusa, ela há de quebrar a própria lâmina ou ferir  a própria mão, e não chegará à perfeição. Isso não se adivinha pelas impressões ou pelo conhecimento.  Não há como transmití‐lo por palavras ou pela fala, como aprendê‐lo por alguma doutrina. É essa a lei da  transmissão que está além da instrução.”  No fim, um tal homem nunca expõe a ponta da sua espada significa que, desde o primeiríssimo momento, o  mestre jamais expõe a ponta da sua espada.  Sua velocidade – nem o relâmpago se lhe equipara. Sua agilidade – ela desaparece antes ainda que o vento da  tempestade.  Acerca  da  velocidade  da  técnica,  isso  significa  que  nem  o  relâmpago,  que  desaparece  no  momento  mesmo  em  que  o  vês,  é  capaz  de  passar  em  meio  aos  movimentos  desse  homem.  Quanto  à  agilidade, eles desaparecem mais rápido que os grãos de areia levantados pela tempestade.  Se a pessoa, sem possuir essa tática, acabar por ver‐se embaraçada ou confusa... Diz que, se a pessoa sem essa  habilidade apegar‐se minimamente à posição da espada ou ao direcionamento da mente...  Ela  há  de  quebrar  a  própria  lâmina  ou  ferir  a  própria  mão,  e  não  chegará  à  perfeição  significa  que  ela  sem  duvida  quebrará  a  ponta  da  própria  espada,  cortará  a  própria  mão  e,  provavelmente,  jamais  será  considerada hábil.  Isso não se adivinha pelas impressões ou pelo conhecimento. "Pelas impressões ou pelo conhecimento" refere‐se  ao  conhecimento  e  à  discriminação  do  coração  humano.  Adivinhar  significa  calcular  e  supor.  O  que  isso  significa é que, por mais que tentes calcular ou supor por meio das impressões ou do conhecimento, isso não  terá a menor utilidade. Portanto, aparta‐se da discriminação baseada na suposição.  Não há como transmití‐lo por palavras ou pela fala, como aprendê‐lo por alguma doutrina. Para o verdadeiro  guerreiro, não existe maneira de expressar isso em  palavras. Além do mais, não há maneira de ensinar ou  aprender através da doutrina qual a posição a se assumir ou a hora de atacar.  É essa a lei da transmissão que está além da instrução. Não se pode transmiti‐Ia em palavras e não se pode  ensiná‐Ia, qualquer que seja o método adotado. Logo, essa doutrina é chamada a doutrina da "Transmissão  que está além da instrução". É a doutrina que não está nos ensinamentos do instrutor, a doutrina que requer,  de modo especial, a auto‐iluminação e a realização por conta própria.   

 

6   

 

“Não existe regra estabelecida para manifestar essa grande habilidade21. Ação ordenada, ação contrária  – nem o céu determina isso.22 Se assim é, qual é a natureza disso? Disseram os antigos: "Quando uma casa  não tem uma imagem de Pai Che, é como se não tivesse espíritos." O homem que se adestrou e chegou a  esse princípio há de controlar tudo sob o céu com uma única espada. Que aqueles que estudam isso não  deixem de refletir.”  Não  existe  regra  estabelecida  para  manifestar  essa  grande  habilidade.  Se  a  "grande  habilidade"  da  lei  dessa  transmissão  se  manifestar  à  tua  frente,  ela  o  fará  livremente,  sem  seguir  nenhuma  regra  preestabelecida.  Não obstante, ela é chamada de "grande habilidade" porque alcança as dez direções e não está ausente nem  da ponta de um pêlo de coelho. Uma regra estabelecida é uma lei ou regulamentação; não existem regras  nem regulamentações que moldem a manifestação dessa grande habilidade.  Ação ordenada, ação contrária – nem o céu determina isso. O homem que manifesta essa grande habilidade é  livre e não encontra obstáculos, quer aja de maneira ordenada, quer de maneira contrária.  Se assim é, qual é a natureza disso? Indica confrontar alguém e perguntar‐lhe o que algo é de fato.  Disseram os antigos: "Quando uma casa não tem uma imagem de Pai Che, é como se não tivesse espíritos." Essa  é uma resposta à pergunta precedente.  O  Pai  Che  tem  corpo  de  vaca  e  cabeça  de  homem,  e  é  um  animal  diferente  de  todos  os  outros.  Ele  se  alimenta  dos  sonhos  e  dos  infortúnios;  na  China,  um  quadro  com  a  imagem  de  Pai  Che  costuma  ser  pendurado na entrada das casas ou nos pilares  internos. Em suma, erige‐se  uma imagem de  Pai Che  para  afastar o infortúnio.  A  pessoa  que  desde  o  princípio  não  tivesse  maus  espíritos  em  sua  casa  sequer  pensaria  em  fazer  uma  imagem  de  Pai  Che  para  pendurar.  Isso  quer  dizer  que  aquele  que  adquiriu  a  liberdade  de  uso  quer  do  ordenado,  quer  do  contrário,  transcende  completamente  a  dor  e  o  prazer,  pois  nem  mesmo  o  céu  pode  determinar o que lhe vai na mente. Ele não tem infortúnios nem no corpo, nem em casa. Por isso, sua mente  não há de se preocupar com a imagem de Pai Che, e seu mundo será belo.  O homem que se adestrou e chegou a esse princípio há de controlar tudo sob o céu com uma única espada. Isso  significa  que,  se  o  homem  se  disciplinar  dessa  maneira,  temperando  exaustivamente  esse  metal  puro  por  mais de mil vezes, e se ele se tornar instantaneamente livre como o rápido desembainhar de uma espada,  então será como o fundador da Dinastia Han, controlando tudo sob o céu com uma única espada.  Que  aqueles  que  estudam  isso  não  deixem  de  refletir.  Aqueles  que  estudam  o  princípio  misterioso  dessa  espada não devem assumir facilmente noções irrefletidas, mas devem lutar por aumentar o brilho do próprio  intelecto.  Esforçando‐se  constante  e  ardorosamente,  não  devem  ser  negligentes,  nem  sequer  por  um  momento. 

                                                                  

21

 Do Pi Yen Lu: "Não existe maneira fixa para manifestar essa grande habilidade." 

22

  Do  Cheng  Tao  Ko  e  talvez  do  Hsin  Hsin  Ming,  dois  tratados  muito  antigos  sobre  o  Zen.  Diz  cada  um  deles,  respectivamente:  "Ação  ordenada,  ação  contrária  ‐  nem  o  céu  determina  isso"  e  "Se  quiseres  conseguir  a  sua  manifestação, não penses em ordem nem em contrariedade". 

7   

 

                                                      TAKUAN  SOHO  (1.573‐1.645)  foi  um  grande  mestre  da  escola  Rinzai  de  Budismo  zen,  famoso  por  sua  força  de  caráter  e  agudeza  de  espírito;  foi  também  jardineiro,  poeta,  mestre  do  chá,  escritor  prolífico  e  figura  de  destaque  na  história  da  pintura  e  da  caligrafia  zen.  Começou  sua  formação  religiosa  aos  dez  anos  de  idade.  Aos  14  ingressou  na  escola  Rinzai,  e  aos  35  foi  nomeado  abade  do  Daitokuji,  grande  templo  zen  de  Kyoto.  Em  1.629,  depois  de  uma  disputa  com  o  segundo  xogum  Tokugawa  a  respeito  de  nomeações  religiosas,  foi  banido  para  uma  província longínqua do norte do Japão. Beneficiado pela anistia geral que se seguiu à morte do  xogum,  voltou  ao  convívio  social  três  anos  depois  e  foi,  entre  outras  coisas,  conselheiro  do  terceiro xogum, Tokugawa.    WILLIAM  SCOTT  WILSON  formou‐se  em  Letras  no  Dartmouth  College,  especializou‐se  em  Estudos  Japoneses  no  Monterey Institute of Foreign Studies e recebeu seu mestrado em Literatura Japonesa na Universidade de Washington.  Teve a oportunidade de conhecer o Japão em 1.966, quando participou de uma expedição pelo litoral desse país, desde  o porto ocidental de Sasebo até a cidade de Tóquio, a bordo de um caiaque. Residiu depois na aldeia de ceramistas de  Bizen,  estudou  como  aluno  especial  na  Universidade  da  Prefeitura  de  Aichi  e  ocupou  o  cargo  de  conselheiro  no  Consulado Geral do Japão em Seattle. Reside atualmente na Flórida, Estado onde nasceu.  Suas traduções de obras originais da literatura japonesa têm sido muito aclamadas. Entre elas, destacam‐se Hagakure:  The Book of the Samurai e The Roots of Wisdom: Saikontan. 

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