Sobre a Censura (On Censorship) J.M. Coetzee, com posfácio de Kathrin Rosenfield e Lawrence Flores Pereira

May 6, 2019 | Author: walter rojas vianna saenger | Category: South Africa, Apartheid, Africa, Race (Human Categorization), Etnia, raça e gênero
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A palestra de Coetzee em Porto Alegre e Curitiba sobre censura e sua experiência com os censuradores do apartheid. Acomp...

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J. M. Coetzee

Sobre a Censura

J. M. Coetzee Coetzee

Sobre a Censura Tradução de Lawrence Flores Pereira Organização e posfácio de Kathrin Holzermayr Rosenfield e Lawrence Flores Pereira

Santa Maria, 2016

Universidade Federal Federal de Santa Maria Reitor  Paulo Afonso Burmann Vice-Reitor  Paulo Bayard Gonçalves Diretor da Editora Daniel Arruda Coronel Conselho editorial Daniel Arruda Coronel (Presidente) Lawrence Flores Cesar Salvador Valderde Marcos Botton Piccini Patrícia de Moraes Costa Rogério Ferrer Koff  Liliana Essi Antônio Guilherme Schmitz Filho Marilda de Oliveira Oliveira Luciano Miranda Silva Fabiano Geremia Darci Roberto Trevisan Filder Nanda Laureano Roni Blume Marcus Vinicius Tres Revisão de texto Maicon Antonio Paim Projeto gráfico Gilberto de Moraes Jr. Sara Téssele Gonzalez (Bolsista) C673s

Coetzee, J.M. Sobre a censura / J.M. Coetzee ; tradução de Lawrence Flores Pereira ; organização e posfácio de Kathrin Holzermayr Rosenfield e Lawrence Flores Pereira. – Santa Maria : Ed. da UFSM, 2016. 55 p. ; 23 cm ISBN 978-85-7391-000-0 1. Literatura 2. Literatura inglesa 3. Crítica literária 4. Censura I. Pereira, Lawrence Flores II. Rosenfield, Kathrin Holzermayr III. Título. CDU 820.09 351.751.5

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Eckhardt - CRB-10/737 Biblioteca Central da UFSM

Direitos reservados à: Editora da Universidade Federal de Santa Maria Prédio da Reitoria - Campus Universitário Camobi - CEP 97105.900 - Santa Maria - RS Fone|Fax: (55) 3220.8610/8115 [email protected] | www.ufsm.br/editora

Sumário 5

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Posfácio: A Censura e a Verdade da Literatura em J. M. Coetzee Kathrin H. Rosenfield e Lawrence Flores Pereira

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Referências Bibliográficas

Sobre a Censura Em 2002, eu mudei minha residência da África do Sul para a Austrália. Meu requerimento às autoridades para adquirir a residência lá era apoiado por um número de escritores australianos particulares, assim como pela principal organização dos escritores australianos. A um desses colegas escritores mencionei que estava trabalhando em um novo livro. “Não se esqueça de entregar seu requerimento ao Conselho Australiano em breve” – ele me aconselhou. “O limite é no final deste mês”. “O que você quer dizer com o meu requerimento para o Conselho Australiano?” – perguntei-lhe. “Seu pedido de subvenção” – ele disse. “Você é um residente australiano. Você qualifica para concorrer por um pedido de subvenção. Com o histórico que tem, não terá grande dificuldade em assegurá-lo”. Pedido de subvenção? Do que ele estava falando? O Conselho Australiano, ele me explicou pacienciosamente, era um órgão estabelecido pelo governo austra5

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liano para dar apoio financeiro a toda a sorte de artista, incluindo escritores, a fim de que pudessem continuar em seu trabalho. “Por que você parece tão surpreso?”. “Venho da África do Sul”, respondi. “Na África do Sul, o governo jamais apoiou artistas. Na África do Sul, a única intervenção que o Estado fez na vida de escritores foi impedi-los de escrever, e não os auxiliar. Por isso eu parecia tão surpreso. Na África do Sul, tínhamos a impressão de estar com sorte se o governo ignorasse o que estávamos fazendo”. Até por volta de 1990, quando a legislação criada pelo estado do apartheid  começou a ser desmantelada, a censura de Estado foi um fato na vida dos escritores na África do Sul. Sob aquela legislação, nenhum livro podia ser vendido até receber a aprovação de um comitê de censores que não tinham um rosto – não tinham um rosto no sentido de que a identidade deles não vinha a público. A censura era o pano de fundo contra o qual todos os artistas sul-africanos operavam: romancistas, dramaturgos, poetas, cineastas. Não anomalamente, desenvolvi um interesse profissional pela censura – não apenas pelo sistema sul-africano, mas também pela censura como um fenômeno histórico geral. No tempo devido, escrevi um livro sobre o assunto, publicado em 1996 nos Estados Uni6

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dos, sob o título de Fazendo Ofensa [Giving Offense], no qual discuti os efeitos que a censura de Estado havia provocado sobre os escritores e sua escritura na era apartheid , na África do Sul, assim como na União Soviética e no Leste Europeu antes de 1989. Meu interesse pelo assunto foi renovado recentemente quando um novo livro sobre o sistema de censura sul-africano foi publicado: A Polícia da Literatura, de Peter McDonald. As pesquisas nos arquivos dos censores, levadas a cabo por McDonald e por outro scholar  sul-africano, Hermann Wittenberg, abriram não apenas os meus olhos, mas os de outros escritores sul-africanos de minha geração ao nos oferecer uma visão íntima de como nossas atividades eram vistas pelas autoridades. Quando digo “minha geração”, refiro-me a escritores que chegaram à sua maturidade durante as quatro décadas de arbítrio do Partido Nacional (19481990) e exerceram sua profissão sob o olhar do estado do apartheid . Usando materiais trazidos à luz por esses pesquisadores, gostaria de revisitar alguns livros meus que datam dos anos setenta e oitenta, livros sobre os quais os registros dos censores são particularmente reveladores. Preliminarmente vou explicar o que o sistema sul-africano pretendia atingir e como funcionava. 7

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Nos anos setenta, quando comecei a publicar, o Estado sul-africano estava se movendo daquilo que chamaria da fase utópica do apartheid  para o que chamaria da fase Realpolitik . Na fase utópica, o partido no poder acreditava que conseguiria construir um muro ao redor do país para isolá-lo e separá-lo do resto do mundo, para daí, de dentro desse muro protetor, organizar e governar uma sociedade que daria o máximo de assentimento possível, visto que a natureza do homem é natureza caída, o que se compreendia como um ditame de Deus – seu Deus sendo o Deus protestante de Calvino. Na fase da Realpolitik , o partido revisou e diminuiu suas ambições. Ele se via agora engajado no teatro africano de uma guerra de dimensões mundiais, guerra às vezes fria, por vezes quente, na qual a África do Sul branca talvez pudesse usar de seus recursos minerais estratégicos para negociar um lugar ao lado dos vencedores, o que seria, é claro, do lado dos Estados Unidos. Um dos instrumentos de controle estatal, durante as duas fases, era a censura (Lembrem-se de que estamos falando de uma época pré-eletrônica, quando o único método prático para a transmissão de textos era o impresso, um método incômodo que pode ser facilmente interrompido e encerrado). As metas desse sis8

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tema de censura eram duas: a primeira, assegurar que a nação – significando, em primeiro lugar, a nação branca – não fosse infectada pelo que era visto como o declínio do Ocidente, mas, bem ao contrário, permanecesse forte, viril e confiante; a segunda, assegurar que a propaganda comunista não ingressasse no país, trazendo auxílio, conforto e instrução às forças da escuridão. Em outras palavras, a censura possuía dois braços, um braço moral e um braço político, os quais, por causa da visão preto e branco e bem versus mal que tinha sobre o mundo, o Estado sul-africano via como duas forças que se fortaleciam mutuamente. Durante a fase utópica inicial, a ênfase estava na moralidade, na proteção da população contra influências morais nefastas. Durante a fase posterior, da Realpolitik , a boa saúde moral não era mais uma questão urgente, desde que a África do Sul branca se mantivesse no poder. Até recentemente, boa parte dos livros em língua inglesa distribuídos na África do Sul era publicada na Grã-Bretanha: a indústria editorial local, pelo menos em língua inglesa, era fraca. Até a ficção de escritores africanos era exportada em estado bruto (i.e. manuscrito) para Londres, onde era convertida no formato de livro e, depois, reexportada para a África do Sul. Como é bem 9

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fácil de imaginar, o fato de um editor em Londres decidir se um manuscrito de um escritor sul-africano devia ser publicado tinha consequências bastante abrangentes. Assim, por exemplo, nuanças de linguagem que apenas um sul-africano podia entender tinham de ser mantidas fora do texto, assim como a mistura de linguagens, tão características da vida cotidiana na África do Sul. O que as companhias editoriais queriam, e o que lhes era oferecida, era uma visão da vida da África do Sul que tivesse toques de cor local, mas que fosse principalmente acessível ao leitor internacional. Eu me apresso em acrescentar que aqueles dias terminaram. A situação do escritor na África do Sul está mudando para melhor com a expansão de uma indústria editorial local. Convém também lembrar que a África do Sul dos anos sessenta e setenta não estava de modo algum sozinha em seus esforços para controlar a moralidade pública por meio da censura. A Austrália, outra ex-colônia da Grã-Bretanha no remoto Hemisfério Sul, concedeu imensos poderes aos seus funcionários alfandegários para escrutinar livros suspeitos que entravam no país e destruí-los, se os achassem moralmente ofensivos. A lei na África do Sul exigia dos importadores de materiais semióticos, desde livros e filmes até camise10

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tas, que submetessem esses materiais às autoridades para que fossem revistados em busca de conteúdos imorais ou subversivos. O sistema era administrado por um órgão chamado de Diretório de Publicações, que, no caso de livros, canalizaria livros que entrassem no país para este ou aquele de seus comitês de leitores especializados – chamados, em outras situações, de censores –, para que fossem escrutinados. É o bastante sobre o sistema e suas metas. Chegamos agora à questão de como o sistema operou no meu caso particular. Concentro-me em três livros meus publicados nos anos setenta e oitenta: No Coração do País, À Espera dos Bárbaros eVida e Época de Michael K. Os três foram publicados na África do Sul e seguiram o procedimento padrão para publicações: eram enviados a Londres em manuscrito, publicados em Londres e depois exportados de volta para a África do Sul. Na sua chegada, conforme as regulações, eram transmitidos pelos funcionários alfandegários ao Diretório, e do Diretório para um dos comitês de censores. Todos os três, ao seu tempo, passaram por esse escrutínio e receberam OK para a venda em livrarias. Nenhum deles foi banido. Fim de história. Fim de história a não ser pela seguinte nota de rodapé. Em 1994, o poder político passou para as mãos 11

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de um governo popularmente eleito. Pasta após pasta, de gaveta em gaveta, de estante em estante, os arquivos foram abertos para examinação. Um dia, do nada, recebi um e-mail de Hermann Wittenberg. Ele estava investigando os registros do Diretório de Publicações, ele disse. Estaria eu interessado em ver os relatórios dos censores sobre os meus livros? Eu fiquei pasmo. Tinha por certo que qualquer documentação interna que os censores houvessem gerado teria sido destruída como procedimento padrão durante os derradeiros dias do velho regime. Mas estava errado. Aparentemente, um imenso montante havia sobrevivido. Eu agarrei a oferta. Sim, escrevi de volta para o Dr. Wittenberg: “por favor, envie cópias”. E, uma semana depois, lá estavam elas sobre minha escrivaninha: República da África do Sul, Lei das Publicações, Relatório do leitor, formulário DP1E, nº P77-7-103, datado de 23 de julho de 1977, assinado F. C. Fensham; número de série 80-11-205, datado de 7 de dezembro 1980, assinado por R. E. Lighton; e assim por diante, assim por diante. Sob o apartheid , pelo menos em sua fase utópica, havia um forte policiamento do contato sexual entre as raças. Qualquer espécie de sexo inter-racial tornou-se subitamente ilegal e sujeita a pesadas penalidades. 12

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A base da legislação era a ciência racial do século XIX europeu, que alegava ter provado que quando o sangue de uma raça era misturado com o sangue de outra, a progenitura da união estaria marcada pela deterioração genética ou, para usar o termo da ciência-racial, pela degeneração. As raças ‘elevadas’, como a raça nórdica, eram aconselhadas a proteger sua herança genética e prevenir a degeneração da raça, evitando a exogamia com as raças ‘baixas’. Nesse relatório sobre No Coração do País, o membro do comitê, Fensham, escreve o seguinte (em afrikaans): Embora sexo entre as cores seja descrito, e embora haja traços de versetsliteratuur   (escrita oposicionista, de resistência, literatura de revolta), o romance é tão excepcionalmente escrito que o ato sexual não é jamais sobre-enfatizado, mas sempre descrito funcionalmente... Embora se possam ter dúvidas sobre o livro, é escrito magistralmente, e também de modo altamente intelectual com estruturas superficiais e estruturas profundas, de modo que será lido e apreciado tão somente por intelectuais. Um livro como este não pode ser descrito como indesejável.

(Indesejável [ongewens] era a palavra-código que era regularmente usada: com efeito, significava ser banido para a venda.) 13

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Um segundo leitor, que assinava como Anna Bassel, descreve o mesmo livro como “um romance que é realmente um ensaio filosófico”. Ela identifica duas passagens com as quais ela possui reservas: uma cena que tem lugar em um banheiro e uma cena de estupro, mas encerra chamando o romance “uma obra de estatura”: “Não posso destacar com suficiente ênfase minha recomendação de que se permita a circulação desse romance”. Um terceiro leitor, não identificado, lista treze passagens questionáveis, mas diz enfim: A horrorosa cena de assassinato... as relações sexuais entre pretos e brancos são entrelaçadas juntas de modo tão compacto num estilo que é às vezes hermético e que não causará afronta... Na verdade, a história é escrita de forma tão compacta, às vezes tão elaborada, ...que não será, em situação nenhuma, acessível a todos. Não é uma leitura recreativa agradável, mas uma obra séria que certamente receberá atenção. De acordo com meus critérios, ela deve definitivamente ser aprovada.

Nesse resumo, o presidente do comitê anota que, embora haja uma inquietante cena de sexo entre diferentes cores, apresenta um modo geográfico e histórico que a torna aceitável. Esta é “uma obra difícil, obscu-

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ra, multiestratificada que será lida apenas por intelectuais”. Não indesejável. Aprovada. Três anos mais tarde, quer porque a carga de trabalho dos censores houvesse aumentado, quer porque, tendo passado no primeiro teste, eu havia me tornado um objeto menor de suspeita, meu romance À Espera dos Bárbaros foi lido por apenas um censor sênior, R. J. Lighton. No seu relatório, Lighton anota que o romance se passa num deserto em algum lugar no hemisfério norte. “Não é em nenhum lugar perto da África do Sul, nem há nenhuma população branca. Não há nenhum paralelo aparente, embora algum simbolismo possa ser encontrado.” Numa nota de rodapé, ele acrescenta que o simbolismo em questão é “de significação amplamente universal, sem particularização”. Lighton lista 22 exemplos que talvez possam ser considerados indesejáveis segundo as disposições da Lei: passagens onde sexo e brutalidade são descritos, ocorrências das palavras fuck , shit etc. Ele ainda observa, contudo, que o livro é “sombrio... sem ser aliviado por um toque mais brando”, e que os incidentes de sexo não “atiçam a lascívia”: Ainda que o livro possua considerável mérito literário, não possui nenhum apelo popular. O público leitor provável se limitará em grande parte à intelli15

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gentsia e à minoria capaz de discriminar... Não há razão convincente para declarar o livro indesejável.

Entre as passagens que não chegaram a ser singularizadas como indesejáveis na lista de vinte e duas do professor Lighton está a seguinte: o Magistrado, a personagem principal, um homem mais ou menos bom, interroga um oficial de polícia, o coronel Joll, sobre os métodos que utiliza para obter a verdade dos prisioneiros: Quando vejo o coronel Joll novamente... puxo a conversa para a tortura. ‘E se o prisioneiro está dizendo a verdade’, pergunto, ‘e aí descobre que não acreditam nele?’ Não é uma posição terrível? Imagine: estar pronto para ceder, ceder, não ter mais nada a ceder, e ser coagido a ceder ainda mais! E que responsabilidade para o interrogador! Como é que você sabe afinal que um homem lhe disse a verdade? ‘Há um certo tom’, Joll diz. ‘Um certo tom surge na voz de um homem quando está dizendo a verdade. O treino e a experiência nos ensinam a reconhecer esse tom’. ‘O tom da verdade!... Você consegue ouvir quando estou dizendo a verdade?’ Não, você está me entendendo mal. Estou falando de uma situação especial apenas... uma situação em que estou procurando a verdade, em que 16

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tenho de exercer pressão para encontrá-la. Primeiro, eu consigo mentiras… primeiro as mentiras, depois mais pressão, depois mais mentiras, e então mais pressão, depois a quebra, depois mais pressão, e então a verdade. É assim que se consegue a verdade.

Retornarei a essa passagem no momento apropriado. Vida e Época de Michael K , publicado em 1983, foi também lido por apenas um censor. “Esse... romance trata de questões políticas delicadas na África do Sul”, escreve a senhora E. M. Scholtz: Contém referências depreciativas ao Estado e comentários sobre suas atitudes, e também sobre as políticas e os métodos que emprega ao executar seus deveres... [Entretanto,] os leitores prováveis dessa publicação serão leitores sofisticados e judiciosos, com um interesse em literatura. Esses leitores experienciarão o romance como uma obra de arte e notarão que, embora a vida trágica de Michael K esteja situada na África do Sul, o problema dele hoje é um problema universal não limitado à África do Sul.

A senhora Scholtz lista passagens questionáveis, mas argumenta que elas são “funcionais”. “A descrição de felação não é minimamente ofensiva.” A recomen-

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dação dela de que o livro fosse aprovado foi carimbada de cima a baixo. Basta sobre os relatórios dos censores acerca dos meus livros. Se, no fundo de nossas mentes, temos um retrato de um censor profissional, ele será a de um burocrata menor e insignificante que chega ao trabalho pontualmente às oito e meia da manhã e passa o dia a folhear livros, sublinhar passagens ofensivas com tinta vermelha e a carimbar LIBERADO ou BANIDO na capa; ou, ainda, a sondar películas de filme com uma tesoura na mão, pronto para cortar imagens de corpos desnudos; o qual, quando bate cinco horas no relógio, chaveia o escritório e toma um ônibus de volta para sua casa em algum subúrbio anônimo, e passa a noite assistindo à suave programação da TV, antes de cair num sono sem sonhos. Ou, se estamos pensando não em censores profissionais, mas em censores de meio período, pessoas que suplementam seus ganhos fazendo um pouquinho de censura em seu tempo livre, então podemos supor que assistentes sociais, professores aposentados, clérigos e bisbilhoteiros em geral ficariam interessados por esse ofício. Mas conforme os registros arquivais da África do Sul, os censores não correspondiam ao meu estereótipo. Quem era exatamente a meia dúzia de pessoas que 18

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se sentava secretamente – ou seja, sem revelar suas identidades – para julgar meus livros? Anna Bassel foi escritora por profissão, uma romancista notável em língua afrikaans, possivelmente uma das seis melhores no país, vencedora de um número de prêmios prestigiosos. Ela escreveu sob o nome de Anna M. Louw. Ela era também a sogra de um colega meu, na Universidade de Cape Town, um eminente microbiologista. Na verdade, eu a conhecia um pouco: um dia, sem preâmbulo, eu recebi um telefonema dela convidando-me para o chá na sua casa, nos subúrbios da cidade. Só estávamos nós dois. Tivemos uma longa discussão sobre o estado das letras na África do Sul. Eu não tinha a menor ideia da verdadeira relação entre nós, isto é, que ela era um de meus censores, até o dia em que aqueles documentos assinados por ela pousaram em minha escrivaninha, numa época em que ela já era falecida. Reginald John Lighton havia sido um professor na Universidade de Cape Town, um especialista em teoria educacional, no período em que eu era um estudante de graduação nos anos cinquenta; nunca tive contato com ele. H. van der Merwe Scholtz, o presidente do comitê que liberou No Coração do País, era professor de língua e literatura afrikaans, na Universidade de Cape Town, na 19

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época em que eu era um lecturer  em inglês na mesma instituição. Houve o acaso de que o professor Scholtz também possuía uma casa de férias num vilarejo rural chamado Greyton, onde meus pais viveram por breve período. Uma vez ele nos convidou a todos para um churrasco no seu quintal, e foi bastante amigável, bastante cordial. A senhora E. M. Scholtz, leitora de Michael K , era sua esposa Rita, nossa anfitriã naquela ocasião. F. S. Fensham nunca encontrei pessoalmente. Era professor de línguas semíticas na Universidade de Stellenbosch, a cinquenta quilômetros da Cidade do Cabo. O Diretório de Publicações estava baseado na Cidade do Cabo, a cidade onde nasci e vivi a maior parte de minha vida. Portanto, não é estranho que o Diretório, para formar seus comitês, recorresse a pessoas que morassem na Cidade do Cabo ou nas proximidades. E a comunidade intelectual na Cidade do Cabo dos anos setenta e oitenta não era grande, particularmente se o conjunto se restringisse aos brancos (se estava escrito na legislação que censores tinham de ser brancos, eu não sei, mas o fato é que somente brancos eram escolhidos). Uma consequência disso foi que eu, por assim dizer, bati ombros diariamente com pessoas que estavam, em segredo – pelo menos em segredo para mim –, produzindo julgamentos de se eu devia ter a permissão 20

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de ser publicado e lido em meu país de origem. Além disso, essas pessoas não achavam estranho ter relações sociais cordiais comigo e com outros escritores a que estavam secretamente submetendo a julgamento. Eu fiquei perplexo, até mesmo chocado, quando o Dr. Wittenberg me revelou tudo aquilo. Mas, após reflexão, decidi que minha surpresa era ingênua. Por quê? Porque, como finalmente consegui ver, os censores encarregados de ler e fazer relatório sobre meus livros – a senhora Bassel, o professor Lighton, o professor Fensham, o professor Scholz e sua esposa – viam a si próprios não apenas como guardiões da moralidade e da segurança do país, mas também como guardiões da república das letras. Se minha leitura de seus relatórios está correta, eles, na verdade, declararam-me não culpado de atentar contra a moralidade e/ou de subverter a segurança do Estado, sob o pressuposto de que eu era um cidadão bona-fide da república das letras, ou seja, que minhas lealdades eram para essa república extramundana, não para alguma ideologia alienígena. Certamente, eu, como um escritor, poderia encará-los ex officio, já que eram censores, como o inimigo. Mas, na visão deles, eles estavam do meu lado. Estavam interpondo seu julgamento especializado entre mim e os rigores da Lei de Controle de 21

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Publicações, que, em mãos mais cruas, menos versadas, talvez tivesse sido mobilizada para banir meus livros, visto que eu havia, aqui e ali, feito comentários hostis à polícia. Várias e várias vezes meus censores usaram em meu favor uma cláusula da lei que os legisladores haviam criado com a intenção de isentar manuais médicos da censura às representações explícitas do corpo humano desnudo e permitir estudiosos acadêmicos de consultar as obras de escritores notoriamente subversivos, como Karl Marx. “Esses livros de J. M. Coetzee não precisam ser banidos”, disseram, com efeito, meus censores, “pois eles serão lidos tão somente por profissionais da literatura.” Acerca de No Coração do País, eles comentaram: “Será lido e apreciado apenas por intelectuais”. Sobre À Espera dos Bárbaros: “realmente não possui nenhum apelo popular... O público leitor provável estará limitado em grande parte à intelligentsia e à minoria judiciosa”. De certo modo, meus censores viam a si como cidadãos da mesma república das letras que eu, como fundamentalmente bem dispostos com os escritores e com a escrita, até mesmo como espécie de heróis não celebrados, assumindo um trabalho sujo – afinal, nin-

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guém ama nem admira os censores – a fim de proteger a literatura sul-africana contra os políticos e os filisteus. Quão representativas eram essas pessoas – Anna Bassel, Lighton Fensham, Scholtz e sua esposa – daquele sistema do qual serviam de roldana? Que coisas pode nos dizer o aparato de censura de livros da África do Sul, hoje mais ou menos defunto, sobre a censura em geral? Minha suposição é que o velho sistema sul-africano era mais representativo de regimes de censura do que geralmente pensamos ou, pelo menos, mais representativo do que nossos estereótipos ditam. O típico censor, na África do Sul ou em outros lugares, não precisa ser o pequeno burocrata insignificante que descrevi anteriormente. Ao contrário, ele ou ela pode ser uma pessoa inteligente, com um emprego verdadeiro, que faz um pouco de resenha/censura no seu tempo livre, porque isso garante uma renda suplementar útil; que acredita na censura porque ele ou ela é de inclinação conservadora (i.e., não quer que o país seja inundado pela pornografia, não quer que a ordem social e política existente seja derrubada) e porque ele ou ela disse para si próprio que, se ele/ela não assumir o cargo, então algum funcionário estatal o fará, alguém que não distin-

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gue literatura séria do lixo abusivo e que não se importaria minimamente se a cultura literária floresce ou não. Não tenho dúvida de que quando eles se acomodam em casa após um dia de trabalho, com um volume de Anthony Trollope ou de Jane Austen no colo e Mozart no equipamento de som, eles, provavelmente, pensam a si mesmos como pessoas civilizadas fazendo um bom serviço, um serviço que vale a pena fazer. Se eles possuem um santo padroeiro, é o Czar Nicolau I da Rússia, que presidiu a mais repressiva censura em toda a Europa, criada com o fim de isolar a Rússia das ideias subversivas estrangeiras, mas que se ofereceu para agir como censor pessoal de Alexander Pushkin, não a fim de garantir que o maior poeta russo da época fosse submetido aos padrões mais rigorosos dentre todos aplicados a ele, mas, ao contrário, para protegê-lo dos funcionários ignorantes e prosaicos e lhe permitir o máximo de espaço criativo dentro da lei. Como Nicolau, os homens e as mulheres que chamo ‘meus’ censores provavelmente se retrataram como pessoas boas trabalhando num momento histórico duro, inapreciadas, sem gratidão, de um lado salvaguardando uma ordem social frágil, por outro lado estendendo sobre o artista uma asa norteadora e protetora.

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Claro, do mesmo modo que o Czar Nicolau não estendeu sua asa protetora sobre todos os escritores russos, os censores sul-africanos não protegeram todos os escritores sul-africanos da lei. Suspeito que apenas um punhado qualificou-se para esse tratamento especial. Por que fui particularmente qualificado para tratamento especial? Na minha visão, havia três motivos. Um: eu era branco e afrikaner, mesmo que não fosse afrikaner puro sangue, um dos homens do povo eleito [volk ]. Nenhum escritor de cor poderia esperar o tipo de tratamento simpático que recebi. Dois: eu vim da mesma classe e do mesmo estrato de classe dos meus censores, ou seja, da intelligentsia de classe-média. Três: eu não era um escritor popular. Tal como eles assinalaram várias e diversas vezes em seus relatórios, meus livros não eram para consumo das massas. Embora as leis de censura não previssem nenhuma disposição sobre o público, os censores rotineiramente distinguiam entre livros de apelo de massa e livros de apelo minoritário, aplicando padrões mais rigorosos aos primeiros. Fui tratado com indulgência porque apenas um pequeno segmento da população leria meus livros. Implícita nessa abordagem está uma compreensão de como livros afetam o curso dos negócios humanos, uma compreensão que me surpre25

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ende como bastante incorreta, bastante equivocada. Um livro que muda a história não precisa ser um livro que traz a notícia fresquinha e que é devorado pelas massas, as quais imediatamente são enfeitiçadas por ele, eletrizadas para a ação. Os processos da história são muito mais indiretos do que isso e levam muito mais tempo. Eu retorno, para finalizar, à passagem que citei de  À Espera dos Bárbaros, uma passagem que não foi selecionada para exame pelo censor pertinente, na qual o coronel da polícia de informação explica exatamente como a tortura é usada para extrair a verdade dos prisioneiros. O coronel Joll, no livro, é o líder de uma unidade especial dentro do agrupamento policial que se move de uma área conturbada do Império para outra, interrogando prisioneiros e construindo um retrato de como a resistência ao regime está sendo planejada e organizada. Sua atitude para com as autoridades locais responsáveis pela execução da lei, representadas no livro pelo Magistrado, é de desdém. A polícia local, ele diz, não sabe o que está fazendo; é preciso de um especialista do quartel general, como ele, para cumprir o serviço de modo apropriado. A imprensa sul-africana, ou pelo menos a imprensa liberal de língua inglesa, após a intensificação da resis26

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tência ao apartheid  em 1976, estava repleta de histórias horripilantes sobre o tratamento de prisioneiros políticos. Embora limitados quanto ao que podiam noticiar sem infringir a lei, em particular a lei que tornava o denegrimento da polícia um crime punível, o modo como as reportagens eram escritas deixava claro para qualquer leitor perspicaz que a tortura de prisioneiros acontecia de modo rotineiro, e que dentro da assim chamada Special Branch (Força Especial) havia especialistas em tortura que acabaram se tornando conhecidos pelos prisioneiros e temidos. Prisioneiros morreram nas mãos deles na prisão. A explicação rotineira que era oferecida para tais mortes era a de que o prisioneiro havia escorregado numa barra de sabão quando estava tomando uma ducha, batendo a cabeça no piso de concreto, com consequências fatais. Essa explicação era oferecida ao público num espírito de profundo cinismo. No fundo, era um modo codificado de dizer que o prisioneiro tinha morrido durante interrogatório e, assim, isso era compreendido por todos os que estavam familiarizados com o código. Nenhum leitor sul-africano de  À Espera dos Bárbaros, que foi publicado em 1980, teria deixado de fazer a conexão entre as atividades do coronel Joll, no inominado império do qual ele é um servidor, e as ati27

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vidades da Special Branch na África do Sul. A pergunta que olhou de frente o professor Lighton foi: O que ele deveria dizer em seu relatório? Deveria ele dizer que as atividades vergonhosas descritas no livro tinham um paralelo estreito com as atividades vergonhosas que estavam acontecendo justo naquele momento nas celas de cárceres sul-africanos? Ou deveria dizer que o livro não tinha nada a ver com a África do Sul, que tratava das atividades de torturadores num país muito distante no Hemisfério Norte e que, além do mais, era escrito de modo tão obscuro que seria lido apenas por poucos. Embora não tenha nenhum conhecimento pessoal de Lighton, gosto de pensar que ele era uma pessoa de escrúpulos morais normais, que teria refletido cuidadosamente antes de aceitar um compromisso em que seu dever seria o de impor a política oficial. Gostaria de pensar que a leitura de À Espera dos Bárbaros o tenha encaminhado a um exame genuíno de seu papel de censor. Podemos rir ao descobrir que certa vez, num país distante na África, o regime montou um custoso e elaborado sistema para impedir os cidadãos de ver imagens de corpos humanos desnudos ou de ler os escritos de Karl Marx. Pelo menos nós, os modernos, atingimos algo melhor do que isso - assim gostamos de dizer para nós mesmos; pelo menos jogamos fora aqueles lúgubres cen28

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sores e afirmamos nossa liberdade de ler e olhar o que bem desejamos; ao menos fizemos algum progresso. Mas será que as pessoas lá nos anos cinquenta teriam acreditado se lhes fosse dito que, perto do final do século, nas avançadas democracias liberais do Ocidente, se tornaria um crime punível possuir imagens de crianças nuas?  A verdade é que não existe essa coisa que chamamos de progresso quando se trata de censura – o pendor de identificar e atacar o objeto censurável é muito complexo e reside muito fundo dentro de nós. Quando nos é negado um objeto indesejado, encontramos outro. Quando mais as coisas mudam, mais se mantêm as mesmas.

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Posfácio: A Censura e a Verdade da Literatura em J. M. Coetzee Kathrin Holzermayr Rosenfield1 Lawrence Flores Pereira2

A palestra de Coetzee Sobre a Censura, de 2013, surpreende em vários sentidos. Quem conhece os ensaios anteriores sobre o tema, colididos no livro Giving Of fense (COETZEE, 1996b), nota de imediato que, entre aquela obra e a palestra que Coetzee proferiu em Porto Alegre e Curitiba, a reflexão teórica dá lugar a aproximações autobiográficas do autor. Ou, para ser mais preciso, uma revisão da sua ‘outro-biografia’ – pessoal e literária. Pois aqui o autor visita documentos que ele 1 Kathrin Holzermayr Rosenfield é doutora pela Universidade de Salzburg e professora titular da UFRGS. Possui inúmeros estudos sobre Guimarães Rosa (Desenveredando Rosa), Robert Musil, Hölderlin, Sófocles e Coetzee. 2 Lawrence Flores Pereira é doutor em teoria da literatura pela PUC-RS com pós-doutorado pela Universidade de Massachusetts. É professor da UFSM. Possui estudos sobre J. M. Coetzee, poesia moderna e Renascimento inglês. É tradutor de William Shakespeare, Sófocles, T. S. Eliot e Germain Habert. 31

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próprio descobriu tardiamente: os pareceres da censura sobre três dos seus primeiros livros. Neles, Coetzee de algum modo revisita um passado já remoto. O que emerge é toda uma parte de sua própria história que ele ignorava por completo, já que desconhecia os detalhes envolvidos na censura de seus livros. E o relato, plasmado por essa experiência pessoal, torna-se o objeto de uma palestra que é ao mesmo tempo fragmento de biografia, crítica e teoria. Coetzee é famoso pela arte de transformar reminiscências em ficção. Obras como Infância, Juventude, Desonra e Verão já tocavam, de um modo sempre oblíquo, na sua biografia. Ora, também os textos sobre a censura retomam, na verdade, um problema que obsedou seu autor de modo intelectual e pessoal. E a atual palestra Sobre a Censura é mais um relato de uma história oculta tal como essa se reflete nos pareceres da censura do apartheid sobre os romances  À Espera (No Coração do País, Vida e Época de Michael K e dos Bárbaros). Já não é mais uma reflexão neutra sobre a censura, como era o caso de Giving Offense, mas uma história fascinante e bizarra, com certo teor kafkiano, bem frequente nos seus romances. O interesse de Coetzee pela censura não é, na verdade, novo. Tem sua origem na sua própria experiência do escritor sob o regime do apartheid  e transformou-se, 32

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por vias indiretas e sinuosas, numa intervenção intelectual incomum que ficou sintetizada em seu livro Giving Offense. A África do Sul sob oapartheid , um regime que se estabeleceu com a emergência do Partido Nacional da África do Sul, em 1948, foi responsável pela oficialização do racismo naquele país. O racismo, aliás, já tinha longa história na África do Sul, desde o Land Act de 1913, que regulara a aquisição de terras pelos ‘nativos’. O apartheid  manteve, ao longo das várias décadas de existência, um impressionante aparelho de censura que encarnava, de fato, os olhos e os ouvidos do aparelho estatal maior, o mesmo aparelho que, em 1950, instituiria o “Registro Populacional”, categorizando os sul-africanos como Bantus, Coloured   (mestiços) e brancos. Criou sistemas segregatórios de áreas que deveriam ser habitadas por cada uma das ‘raças’. O sistema previa a divisão compulsória da terra, reservando mais de 80 por cento do território cultivável do país à minoria branca, relegando a população nativa ao restante do país. A infâmia do regime é lembrada pela proibição até mesmo dos contatos entre as raças e pela segregação de locais públicos. A máquina do Estado do apartheid , pela sua violência, sua forma tentacular, só pode ser comparada talvez aos regimes nazista e stalinista. 33

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Foi, assim, impactado pela onipresença desse sistema de vigilância generalizada, que Coetzee começou a escrever sobre censura. Os doze ensaios de Giving Offense, publicados anteriormente, entre 1988 e 1993, não constituem, como o próprio autor assinalou, uma história ‘forte’ da censura, nem uma proposta para uma teoria da censura, mas resultaram de outros interesses diversos: o primeiro era “entender a paixão com a qual não tenho nenhuma simpatia intuitiva, a paixão que se manifesta em atos de silenciamento e censura” (COETZEE, 1996b, p. vii). Um outro seria “entender, historicamente e sociologicamente, por que não tenho nenhuma simpatia por essa paixão” (COETZEE, 1996b, p. vii). O estudo de Coetzee andava, portanto, ao largo do fenômeno estatal e burocrático (embora não o excluísse, pois, de fato, o pressupunha), concentrando-se em questões que muitos considerariam laterais. Entre elas, as razões subjetivas e até mesmo psicológicas que levam um indivíduo a se dedicar à paixão de censurar, ou a questão da existência de um fundo fantasmático que, muitas vezes, emerge atavicamente no ato de censura. O autor procurava explorar as zonas obscuras que muitas vezes servem de fundamento para a instituição da censura em vários níveis da vida social, não apenas incluindo a censura de Estado, mas principalmente de estados autoritários ou totalitários. 34

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Daí resulta o estudo do dano psíquico que essa prática inflige sobre o censurado. A ação da censura, segundo ele, não é perniciosa apenas porque suprime obras ou escritos, mas também porque se torna uma presença perseverante na própria criação ou na escritura. A censura acaba por hospedar o censurado e, gradualmente, apossa-se da sua mente vulnerável, assombrando-lhe o espírito ao modo de uma figura paterna que vistoria dia a dia cada passo de sua escritura. O censurado, ciente das raias invisíveis assentadas pelo censurador e aturdido por sua presença inquebrantável, passa a moldar sua obra de acordo com aquilo que o censor pode ou não aceitar em tese. Mas nesse processo o censurado está numa posição precária e volátil: como a censura se faz quase sempre de modo secreto, intramuros, o potencial sujeito censurado passa a viver no estado de inferência e de deduções psíquicas tantalizantes em que busca pressagiar o teor dos critérios do censor que, agora, passa a lhe parasitar a consciência. São esses os efeitos colaterais da censura, segundo o próprio Coetzee. Giving Offense trabalha sobre algumas causes célebres: o caso de Ossip Mandelstan, que é aprisionado por Stalin, e a quase surreal sequência dessa história, quando, já prisioneiro, Mandelstan é forçado a escrever uma ode louvaminha ao seu célebre 35

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carrasco. O caso de Breyten Breytenbach, escritor sul-africano, que sofre perseguição em seu país, e do novelista cubano Reinaldo Arenas. Finalmente, talvez por uma atração inevitável entre aqueles que foram de algum modo visados pela vigilância censuratória, Coetzee não esconde algo de um fascínio bizarro pelas ‘razões dos censores’ e pela peculiaridade de seu raciocínio, o qual não raro se assemelha ao pensamento obsessivo e paranoico: o seu longo e interessante estudo sobre Geoffrey Cronjé é um exemplo disso (COETZEE, 1996a). Coetzee ali lembra das origens daquilo que chama do “pensamento do apartheid ” e lhe sublinha o caráter patológico, por meio de um notável estudo linguístico dos termos e das oposições simbólicas que emergem das regurgitações imaginárias de Cronjé. Este estava, como Coetzee analisa, obcecado, angustiado com os casamentos inter-raciais que punham em risco seu ideal racial. Cronjé se tornou famoso principalmente por liderar a Cronjé Commision, que tinha por objetivo avaliar as publicações na África do Sul e, nesse sentido, era responsável por estabelecer medidas draconianas. Encarnou o espírito de uma censura inscrita no maquinário do Estado, como prática de burocratas. Seus escritos, sempre sintomáticos, revelam os entrançamentos semânticos e psíquicos, as 36

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paixões reativas e a paranoia emergente e angustiada que fermentaram em sua mente. Paranoicos comportam-se como se o ar estivesse repleto de mensagens codificadas ridicularizando-os ou conspirando sua destruição. Por décadas o Estado da África do Sul viveu em um estado de paranoia. Paranoia é uma patologia dos regimes inseguros e das ditaduras em particular. Um dos fatores que distingue as ditaduras modernas das anteriores tem sido quão abrangente e rapidamente a paranoia, vinda de cima, pôde se espraiar para infectar a população. (COETZEE, 1996b, p. 34)

Em vários ensaios do mesmo livro, Coetzee faz um tour de force complexo para interligar as questões que envolvem as relações entre intolerância e censura com aqueles fenômenos reativos, que se manifestam pela via das paixões mais primitivas e que René Girard chamou de “espírito vendetário”. A crítica coetzeeana às formas repressivas e vigilantes não é apenas um exercício contra o pesadelo dos regimes autoritários do século XX. Ainda que atento a casos típicos, pertencentes à história política, ela amplia a noção da censura e inclui manifestações censuratórias mais atuais – por exemplo, a vigilância excessiva que se instalou no mundo acadêmico anglo-saxão a partir da década de 1990. Nos Estados Unidos, segundo Coetzee, as instituições de 37

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ensino aprovaram o banimento de certas categorias de fala, impedindo que se manifestassem os sinais diretos da agressão, que agora se alojam no zelo censuratório. O mesmo aconteceu na África do Sul pós-apartheid : onde se esperaria uma resistência da intelligentsia contra a reedição da censura, praticou-se uma inversão reativa. Livros clássicos do afrikaans foram submetidos a uma ‘limpeza’ de termos, nos moldes do que ocorreu com Uncle Tom’s Cabin, de Harriet B. Stowe, e de outros autores americanos. As ideias de Coetzee são instigantes também no Brasil, onde a discussão acerca dos termos racialmente conotados na obra de Monteiro Lobato gerou fricção na arena intelectual. Coetzee assinala que a limpeza linguística é uma ameaça perigosa não só em estados totalitários, mas também em democracias. Coetzee diversas vezes se manifestou diante das novas formas do controle censuratório. Em 1995, a suposição [de que a censura era inaceitável] não pode ser mais feita. Existem intelectuais respeitáveis que advogam por sanções legais e institucionais contra publicações e filmes do tipo que, na antiga África do Sul, costumavam ser chamados de indesejáveis e que hoje são geralmente chamados de ofensivos; a tese de que, em conflitos entre o escritor e a lei, o direito deve sempre estar do lado do escritor está no processo de ser 38

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historicamente enquadrada e posta de lado como a-histórica, como um elemento do ‘pesado’ liberalismo de trinta anos atrás. (COETZEE, 1996b, p. 8)

Vários ensaios de Giving Offense debruçam-se sobre esse problema da reemergência do espírito censuratório entre professores e alguns ativistas a partir dos anos 1980. Assim, por exemplo, os bem-intencionados que chegaram a defender, com os argumentos do feminismo, o banimento da pornografia. O autor, perito observador dos sinais psicológicos que gravam seus rastros na argumentação, assinala que o pensamento progressista não está a salvo das inclinações mais dúbias da psicologia (nem da cultura) de massas. Nesse sentido, ele sublinha os sintomas da compulsão à repetição que aparecem com frequência nessa nova censura, que, às vezes, parece ter suas razões mais secretas em pulsões agressivas soterradas. Alerta que o puritanismo e a paranoia sempre fizeram bon ménage nas construções fantasmáticas de inimigos postiços. Pois a tentativa de supressão radical da ofensa em todos os seus níveis – na ação, na linguagem e no pensamento – necessariamente põe em movimento reações pulsionais sorrateiras. A censura que impede a expressão e, com ela, a discussão, é um perigo – tanto ao nível institucional (como em ditaduras) como em ambientes 39

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aparentemente consensuais (pensemos no consenso ‘virtuoso’ ou politicamente correto). No entanto, essa nova censura reativa apresenta-se muitas vezes com balizas persuasivas, com intenções boas, dignas de serem admiradas. No seu artigo The Harms of Pornography, o autor discutiu as ideias envolvidas, por exemplo, nos argumentos de Catharine MacKinnon em favor do banimento da pornografia. É bem possível que esse novo tipo de ‘censura’, mais escamoteado, originado de um novo consenso político, seja o tema de fundo do capítulo 6 de Desonra. Nele o professor Lurie é submetido a um pseudoinquérito. A comissão, no caso, é constituída de diversos agentes acadêmicos que convidam Lurie a se retratar frente à comunidade, num ritual crivado de hipocrisia, sofismas, ambiguidades pseudojurídicas e engodos linguísticos que lembram os processos de intenção da Inquisição. Se nossas simpatias dificilmente podem estar sempre do lado de David Lurie, neste momento sua posição passa da de ‘molestador’ para a de vítima do moralismo tortuoso das últimas décadas. Como já mencionamos, o interesse de Coetzee pela censura revivificou-se com a vinda à luz dos documentos que o prodigioso aparato estatal do apartheid  engendrou durante seu período no poder. Coetzee acabou descobrindo a identidade daqueles que haviam avaliado 40

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os seus livros graças ao pesquisador Peter McDonald. Esse investigador dos arquivos liberados após a queda do apartheid abria uma janela verdadeiramente fascinante para um passado submerso e desconhecido pelo próprio autor. O relato de Coetzee deixa claro que seus censores não eram meros burocratas executando ordens segundo critérios preestabelecidos pela grande máquina. Eram membros da intelligentsia sul-africana, gente pensante com formação literária boa e gostos refinados que se revelam na sofisticação suficiente de algumas de suas avaliações. Acostumados que estamos com os relatos da censura brasileira, com seus episódios surreais de tacanha ignorância, ficamos desconcertados ao descobrir que os censores de Coetzee eram homens e mulheres sofisticados, capazes de articular pensamentos complexos e argumentos generosos que contrastam com o próprio trabalho mesquinho que cumpriam. O que fascina Coetzee é a questão de saber por que seus livros foram liberados pela censura, e sua palestra busca formular algumas respostas para isso. Considerando o caráter evidente da contestação de Coetzee ao regime do apartheid , a liberação de seus romances por parte da censura é um verdadeiro enigma, e sua aprovação privou o autor, como ele bem assinala, de um distintivo de honra no momento do pós-apartheid . 41

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Como explicar que cenas de tortura calcadas sobre práticas então reais na África do Sul, como as que são apresentadas em Waiting for the Barbarians, não foram vistas como uma crítica ao regime dos censores? Ainda mais que Coetzee havia sido ativo também em protestos políticos fora da África do Sul - fato esse que lhe custou caro nos Estados Unidos. Ele teve negada a renovação de seu visto para aquele país, devido à sua participação em um protesto pacífico contra a guerra do Vietnã na Universidade de Buffalo. Ao retornar à África do Sul, esse episódio teria bastado para que os censores o colocassem na lista negra dos opositores do regime do apartheid . O que moveu os censores, ao que parece, eram menos as razões do Estado do que os seus gostos de conhecedores de arte e literatura, assim como o seu bom senso. Aquelas obras, eles argumentaram em suas fichas de avaliação, devido à sua sofisticação, seriam apenas do interesse da intelligentsia, sem grande efeito sobre a massa de leitores do país. Poderíamos ainda acrescentar: essa avaliação não ocorria no caso de escritores mais ‘realistas’ como Breyten Breytenbach, que foi perseguido e aprisionado também por suas publicações e suas críticas frontais ao regime. O que salvou os livros de Coetzee é a narrativa profundamente alusiva, simbólica e muito estilizada que, embora aludisse à história 42

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de violência da África do Sul em todos os seus detalhes práticos, o fazia evitando a referência direta. Um caso emblemático é o mundo de temporalidade e localização indefinidas em À Espera dos Bárbaros. Revisando os relatórios dos censores, a reflexão de Coetzee se faz mais errante do que a dos próprios censores. Ele chega à conclusão de que eles tinham um entendimento muito estreito e errôneo a respeito do modo como a literatura afeta o leitor e de como seus efeitos se plasmam no mundo social ou político. Ao mesmo tempo, a formulação parece sugerir que a leitura dos romances talvez possa ter minado o próprio trabalho censuratório, levando os censores não só a liberar as obras de Coetzee, mas a também refletir sobre o apartheid . Decisivo nesse caminho errante da reflexão de Coetzee é o a priori artístico e poético da inseparabilidade dos afetos e dos pensamentos. O que intriga Coetzee é que os censores respeitaram até certo ponto esse espaço de liberdade da arte, que lhes permitiu aprovar obras que consideravam de boa qualidade, sem que tivessem simpatias políticas pelo autor e por suas posturas pessoais. Na palestra de Coetzee, assistimos ao mesmo processo paradoxal: embora o autor não mostre nenhuma simpatia pelos seus censores, ele lhes concede – e aqui há algo de provocativo 43

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em sua palestra – um lugar e um papel benéfico na ‘Cidade das Letras’. Ao fazer essa afirmação, Coetzee adere ou homenageia a ideia de ‘educação estética’ que ultrapassa as fronteiras políticas: para ele, a literatura e a arte conservam o potencial de liberdade e renovação que Schiller e os pré-românticos lhes atribuíram. É essa adesão ao princípio sagrado da liberdade poética que parece até hoje alimentar sua crítica do retorno da censura em novas roupagens. De resto, Coetzee mostra maior desconforto com os censores, com seus argumentos e critérios – por exemplo, o da falta de ‘popularidade’, que tornaria inofensiva a obra. Coetzee argumenta que mudanças em regimes autoritários podem nascer de iniciativas muito pouco evidentes que nada têm a ver com a política literária do choque. Haveria excesso de idealismo na interpretação daqueles que escutaram nessa palestra a sugestão de que o regime do apartheid talvez não tenha desmoronado apenas devido à avassaladora oposição externa, mas também devido ao trabalho lento e sinuoso de ideias e críticas ‘mudas’, pela corrosão de metáforas e devido a construções imaginárias que roeram o regime de dentro? Desse trabalho silencioso das figuras participariam todas as obras que burlam a consciência imediata e, 44

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assim, instalam-se na mente antes das defesas bloqueá-las. Em outras palavras: os efeitos morais desejáveis dependem de constelações muito complexas. A ética mantém relações imprevisíveis com as leis positivas cujas normas tendem a se enrijecer rapidamente em torno de interesses (ideológicos, políticos, econômicos) que, por sua vez, deturpam o ‘espírito’ da lei. É por isso que todo cuidado é pouco quando se trata de precipitadamente definir limites para a livre expressão – mesmo quando se trata de fazer frente à opressão dos desfavorecidos e de promover sua emancipação.

O implícito: as respostas nos romances Essas sugestões que entrevemos, aqui e ali, nas entrelinhas da palestra, fazem pensar na ousadia com que o romance Desonra apresentou – além dos temas difíceis, porém cruciais, da era do pós-apartheid   – situações embaraçosas que geraram protestos e censuras, originadas sobretudo de setores do Congresso Nacional Africano. Durante a palestra que Coetzee proferiu em Porto Alegre, muitos participantes do evento devem ter tido a expectativa de que seriam ilustrados sobre as posições do autor a respeito desse episódio, episódio que de fato revela a incrível capacidade da censura de se metamorfosear, res45

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surgindo em novas modulações nas novas práticas que pretendem promover o Estado de Direito. No entanto, há sempre o perigo das boas intenções se transformarem em meros simulacros, nas fórmulas do ‘politicamente correto’. Essa preocupação é onipresente nas obras de Coetzee a partir de Desonra. No capítulo 12 de Diário de um Ano Ruim, é possível discernir um comentário da voz ficcional do autor a respeito da censura que sofreram o autor e o romance Desonra. O detalhe interessante desse episódio é que a censura não foi exercida por um órgão do Estado, mas por setores do partido do Congresso Nacional Africano e – paradoxalmente – com o apoio de alguns colegas escritores. Coetzee jamais fez comentário público sobre esses fatos, nem sobre as razões de sua mudança para a Austrália. No Diário, porém, ouvimos a versão ficcional da reflexão coetzeeana a respeito do poder de censura que muitos intelectuais e acadêmicos exercem hoje em toda parte nas universidades progressistas: Quanto a sexo entre professores e alunos, tão forte é hoje a onda de reprovação que pronunciar até a mais tênue palavra em sua defesa se transforma em algo como um combate contra a maré, sentindo o débil esforço vencido pela vigorosa corrente que nos puxa para trás. O que se enfrenta ao abrir a boca não é o toque silenciador do censor, mas um decreto de exílio. (COETZEE, 2008a, p. 57) 46

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Há sem dúvida uma preocupação de Coetzee com as novas e mais veladas formas de censura. O que se observa hoje em determinadas camadas da sociedade civil é nada menos que a tentativa de impor limitações severas à liberdade de expressão e de pensamento, em nome, muitas vezes, de uma suposta preocupação humanitária ou emancipatória. O fato é que essa atitude põe em perigo o próprio espaço da literatura e da arte. Esse mesmo problema reaparece nas mais diversas reflexões – uma delas intitulada Sobre a Autoridade na Ficção. Coetzee é incansável quando se trata de reivindicar a autonomia da literatura, seu direito de praticar um pensamento e formas de expressão sui generis, cujo valor moral depende justamente do respeito dessa redoma – espaço de jogo fundamental para reflexões e ações eticamente relevantes. Em Diário de um Ano Ruim, assim como em Doubling the Point,  Coetzee reforça esse caráter de isolamento que constitui o ato de escrever. “Escrever não é propriamente uma atividade como as outras – mas um lugar” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 205). Esse lugar é possivelmente, como ele próprio assinala em Doubling the Point,  um “estado de perceptividade realçada” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 63), um estado, ele completa, que “despersonaliza o autor” (COETZEE; 47

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ATWELL, 1992, p. 63), e possivelmente um ato em que o autor abre “mão do sujèt supposé savoir ” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 65), “quando ele desce da posição de alguém que possui o saber” (COETZEE, 2008, p. 70). O encontro do escritor com o ato de escrever não apenas suspende o saber, mas passa a ser determinado pela própria história que passa a contar a si mesma. Finalmente, no interior desse processo, a verdade aparece, algo que só é possível num espaço reservado, no isolamento, no silêncio. Em outros termos, a ideia da escritura não deve ser confundida com um lugar de entretenimento, nem com o da propaganda. Ela é lugar do aparecer da verdade que é outra – diferente daquilo que seu autor queria ou pensava dizer. Essa outra voz da verdade escrita requer um constante jogo da imaginação: oscilação entre a voz ativa (eu escrevo um romance), a voz média (eu escrevo um romance) e a voz passiva: eu estou sendo escrito/determinado pelos discursos que constituem meu ambiente, romance e assim por diante. Ora é à luz dessa compreensão sutil que podemos entender também a posição de Coetzee diante da censura. Adiantemos isto: ele não está preocupado com as repetidas tentativas de censura ad hominem que sofreu – tanto por parte dos setores partidários importantes na África do Sul, particularmente pelo partido do Congresso 48

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Nacional Africano em sua “Submissão à Comissão de Direitos Humanos” (AFRICAN NATIONAL CONGRESS, 2000), como por alguns de seus pares. Estes, em particular, ignoraram as ‘regras da arte’. Coetzee sempre silenciou quando seus detratores interpretavam formulações ficcionais e opiniões de personagens como se fossem declarações ofensivas do autor que exigiriam alguma censura. Lembremos, por exemplo, que foi a antiga companheira de lutas contra o apartheid , Nadine Gordimer, que expressou seu repúdio contra uma passagem – tendenciosamente alterada por ela – de Desonra, declarando-a inverossímil: Considero difícil de se acreditar, realmente mais que difícil, tendo vivido aqui toda minha vida e sendo parte de tudo o que aconteceu aqui, que uma família negra protegeria um estuprador porque ele é um deles. (DONADIO, 2007)

Ainda sete anos após a publicação de Desonra, Gordimer não poupou críticas ao livro, desacreditando o valor e a pertinência do romance, que aborda com muita coragem o labirinto do mútuo desconhecimento que isola africanos e europeus, gerando preconceitos e fantasmas que impedem o entendimento. Com severidade um tanto condescendente, Gordimer arrematou: 49

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Se esta tem sido a única verdade que Coetzee pôde encontrar na África do Sul pós-apartheid, eu muito o lamento e tenho pena por ele. (DONADIO, 2007)

Quem leu Desonra, certamente se impressionou com o núcleo desse romance: a reflexão ficcional sobre um dos problemas que ocupou as manchetes dos jornais – na África do Sul e no mundo –, as reportagens sobre os farm attacks, assaltos e assassinatos, roubos e estupros que grupos de jovens africanos praticavam nas fazendas. Coetzee ousou abordar esse problema em toda sua complexidade, borrando os limites entre fatos e fantasias paranoicas dos brancos, tal como investigamos anteriormente em um estudo sobre a recepção de Desonra (PEREIRA, 2015). Nesse sentido, é notável que o menino Polux, personagem de Desonra, que participou supostamente do estupro de Lucy, não seja apresentado categoricamente como ‘o estuprador’. Lucy nunca revela o que exatamente ocorreu após o assalto, enquanto seu pai imagina que se tratou de um estupro em grupo. Ela chama Polux de criança ‘perturbada’ que precisa da proteção da família de Petrus, o coproprietário da chácara de Lucy. Obviamente essa visão nos é transmitida pelos olhos e sentimentos de Lucy – ao passo que Lurie, na intensidade de sua revolta, é incapaz de sustentar essa visão. A responsabi50

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lidade do menino não pode ser estabelecida, e a narrativa faz habilmente desaparecer os outros dois rapazes maiores, dificultando a tarefa do leitor na compreensão e atribuição da violência. Até mesmo para Lucy, vítima do estupro, a versão de seu pai parece ser questionável e duvidosa. A avaliação de Gordimer tem um fio condenatório que equivale a uma forma sutil de censura ex post facto, pois fortalece e legitima aquela, mais ameaçadora, que o Conselho Nacional Africano lançou contra a obra e o autor, taxando a narrativa de perpetuadora do antigo preconceito da “criança primitiva” (AFRICAN NATIONAL CONGRESS, 2000), ideia originada dos escritos de James Barry Munnik Hertzog, o general Boer , da União da África do Sul, de 1924 a 1939, que incentivou o desenvolvimento e a mitificação da cultura africâner. O que teria motivado a reação pouco solidária de Gordimer? Há algumas indicações. Desonra  recorre a uma narração em terceira pessoa, mas esse narrador não tem um ponto de vista fixo. Ele se desloca, ora aderindo às opiniões e aos preconceitos, ora às ideias e fantasias dos personagens, deixando cada personagem aparecer sob o olhar crítico dos outros. Com essa técnica narrativa, Coetzee combina elementos realistas (personagens, etnias, regiões, conste51

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lações familiares e sociais) segundo as leis de um outro ‘espaço’ peculiar: o espaço-domínio reservado da escritura. O romance, diz Coetzee, é um “lugar em que o escritor vai, todos os dias, por um certo número de horas” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 205), para encontrar seus personagens, aqueles que estão à sua procura, que vêm até ele...e se dispõem a lhe falar, com gestos, palavras ou pelo silêncio – silêncio esse que é uma maneira particularmente eloquente de (não)comunicação. Em vez de postular abstratas ideologias, Coetzee capta o que está ao alcance da escritura: jogos de discursos que determinam os possíveis modos dos raciocínios, das representações e dos sentimentos se reconfigurarem, tecendo a trama de relações movediças, lançando os personagens inadvertidamente de um afeto a um desafeto. No momento de transição difícil do pós-apartheid , simpatias, ressentimentos e culpas mal articulados se conjugam num quebra-cabeça que obriga todos os envolvidos a debater-se com o outro (des)conhecido, a adivinhar qual é o seu novo lugar e como esse redefine os lugares que os demais tiveram e terão. Um território fértil a fantasias, a temores e a pesadelos. Gostaríamos de finalizar este posfácio com alguns rápidos comentários a respeito de uma questão que surgiu junto ao público que estava presente na palestra 52

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proferida por Coetzee em Porto Alegre. Na ocasião, perguntaram, inquietos, o que Coetzee quis dizer ao ironizar a censura da pedofilia, pois tendemos a considerá-la como inadequada. Uma primeira resposta, de princípio, seria: no espaço reservado da arte, o que determina a diferença entre pornografia obscena e arte são critérios artísticos: a autenticidade, a qualidade da apresentação, não os conteúdos tirados de contexto. Além desse princípio básico, Coetzee ainda alerta que um certo tipo de atenção exagerada, quase obsessiva, que hoje predomina no tratamento de um elenco de assuntos (em particular em questões de gênero e raça, além da pedofilia), tende a ser contraproducente; surge uma deformação da percepção devido ao foco reduzido e repetitivo sobre certos temas. Ele lembra que, durante o período em que vigorou a censura na África do Sul - proibindo qualquer tipo de cena com envolvimento sexual ou amoroso entre negros e brancos -, muitos escritores escreveram histórias com esse tema. No entanto, quando a censura foi abolida, os mesmos temas foram esquecidos. De modo análogo, Coetzee, longe de inocentar a pedofilia, apenas alerta que a intensidade do foco atual é sintomática de um mal-estar que pouco ou nada tem a ver com a pedofilia em si. 53

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O autor comenta sobre as armadilhas imprevisíveis da censura na entrevista Obscenidade e Censura, que concedeu a Atwell (COETZEE; ATWELL, 1992). De um lado, a censura produziu em toda uma geração de artistas na África do Sul um alto grau de responsabilidade e seriedade na atividade de escritura: “Escrever sob a ameaça da censura oficial concentra a mente maravilhosamente” (COETZEE; ATWELL, 1992, p. 299). Ao mesmo tempo, porém, essa concentração gerou o perigo da obsessão. A exasperação compulsiva que procura devassar e antecipar a mente do censor e do torturador pode facilmente contaminar o escritor capturado pela lógica da opressão, abolindo sua liberdade imaginativa e anulando, na verdade, o espaço da escritura – o domínio reservado no qual possibilidades ainda não vistas podem acontecer.

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Referências Bibliográficas AFRICAN NATIONAL CONGRESS. ANC submission to the Human Rights Commission Hearings on Racism in the Media . Disponível em: . Acesso em: 7 jan. 2011. COETZEE, J. M. Apartheid Thinking. Giving offense: essays on censorship. [S.l.]: University of Chicago Press, 1996a. COETZEE, J. M. Diário de um ano ruim. São Paulo: Companhia das Letras, 2008a. COETZEE, J. M. Diary of a bad year . Reprint edition ed. New York: Penguin Books, 2008b. COETZEE, J. M. Giving offense: essays on censorship. University of Chicago Press, 1996b. COETZEE, J. M.; ATWELL, D. Doubling the point: essays and interviews. Harvard University Press, 1992. DONADIO, R. Out of South Africa. The New York Times, 16 dez. 2007. Books / Sunday Book Review. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2010. PEREIRA, L. F. A publicação de Disgrace, de J. M. Coetzee e a submissão do Congresso Nacional Africano à Comissão de Direitos Humanos: os farm attacks, a AIDS, os temores brancos e as tentações da censura. In: ROSENFIELD, K. H.; PEREIRA, L. F (Org.). Lendo J. M. Coetzee. Santa Maria: Editora UFSM, 2015. p. 186-251. 55

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