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A DANÇA SAGRADA DE SHIVA
Neide Miele Maria Lucia Abaurre Gnerre
Da dança de Shiva ao espantalho no jardim: O percurso de um símbolo
Neide Miele¹ Maria Lucia Abaurre Gnerre² Gnerre²
No mundo antigo a sexualidade era sagrada e o “Lingam”, era um símbolo
sexual que motivava rituais de fertilidade realizados para garantir boas co lheitas lheitas e a reprodução de rebanhos e seres humanos. As bênçãos trazidas pela união sagrada de Shiva e Shakti se originaram do culto ao lingam. Boas colheitas asseguravam que não haveria fome e a fertilidade dos animais e das mulheres garantiam a fartura. No Oriente o ritual consistia da unção do lingam, seguido de farta distribuição de alimento. No Ocidente este ritual chamou-se hierogamos, que consiste basicamente na mesma idéia de união entre um homem e uma mulher. Após a consumação do enlace, um farto banquete era servido e as festividades poderiam durar vários dias. O ritual da unção tinha igualmente um significado erótico. No oriente, um falo estilizado era ungido. No Oriente Próximo este ritual era feito na cabeça do noivo. Ungir a cabeça do noivo simbolizava ungir seu falo, preparando-o para a penetração durante a consumação consumação da união física do casamento casamento sagrado³. Este ritual muito antigo permaneceu entre os dravidianos da Índia, mesmo depois da conquista ariana, ficando o símbolo conhecido como linga ou lingam, ou seja, o falo penetrado em yoni (genitália feminina), muitas vezes representada pela própria terra. “O signo distintivo que permite conhecer a natureza última das coisas chama-se linga.” (Shiva Purana, 1, 16, 106) A palavra lingam deriva da r aiz gam,
que significa penetrar profundamente, compreender, e de lin, absorver, dissolver, significando “a realidade última em que todas as criaturas se dissolvem e da qual voltam a emergir.” A natureza manifesta, a energia cósmica universal é simbolizada pela yoni, o órgão feminino que circunda o falo. Yoni representa a energia que gera o mundo, matriz de tudo que é manifesto 4.
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A representação simbólica de que o poder procriador está desperto no homem é o membro viril em ereção, por isso ele é representado no lingam, seja emergindo de uma base, figurativa de Yoni, que às vezes é a própria terra. O lingam representa a união dos órgãos masculino e feminino e esta união é o símbolo visível do dinamismo criador universal. O ato sexual é a melhor representação da ação cósmica para gerar seja lá o que for. O ato sexual simboliza a passagem do não manifesto ao manifesto. E, no dizer hermético, o que está em cima é como o que está em baixo e, para que cada novo ser humano possa vir à existência manifestada, é preciso que as duas metades de cromossomos potencialmente presentes nos genes paternos se juntem, para isso é preciso que o desejo sexual seja despertado e a união consumada. Os hinduístas chamam a união sexual de maithuna, o ato mais sagrado. O sexo é o órgão misterioso pelo qual o principio criador se manifesta, por meio do qual se estabelece uma comunicação entre o ser humano e o divino. Esculpidos toscamente em madeira, ou magistralmente cinzelados em pedra a imagem do membro viril masculino é símbolo da vida e da divindade.
Ralph Ellis relata que quando o templo fúnebre da rainha Hatsepsut em Deir El Bahri foi escavado, uma grande coleção de pênis eretos de madeira foi descoberta. Mas a época do seu descobrimento, século XIX, não era propícia ao 2
debate acerca de seu papel ou função, então eles foram simplesmente guardados e esquecidos em um porãodo Museu Britânico 5. Na tradição dravídica, provavelmente originada do Egito dinástico, o língam é um símbolo sagrado, pois representa a união dos seres humanos com o divino no ato da criação. Algumas seitas shivaista que surgem em períodos subseqüentes levam essa concepção ao pé da letra, como é o caso dos Lingayatas, ou “adoradores do lingam”6. Estes grupos de seguidores de Shiva passaram a adorar o ser divino sob a forma do falo, considerando não apenas o falo como um símbolo da divindade (Shiva), mas como a própria divindade. Os lingayatas eram conhecidos por levar sempre consigo um pequeno lingam de pedra pendurado no pescoço – objeto que seguravam na mão esquerda enquanto sentavam-se para meditar. Muitos destes homens eram ascetas, e sua adoração ao falo enquanto representação do divino não está associada a uma busca pela fertilidade, mas sim a uma busca pela própria divindade. A representação destes movimentos iniciais do Absoluto foi grafada pelos egípcios como um círculo que se projeta a partir do ponto central criando um novo círculo. A reta criada pelos pontos C e D que formam a interseção dos círculos simboliza o primeiro ato de criação e sua representação figurativa é o obelisco, inegavelmente um símbolo fálico se projetando para o azul do céu.
A união sexual era sagrada, como podemos confirmar na representação das divindades primordiais. Num e Geb, ela o céu estrelado e ele a terra, estavam tão inexoravelmente unidos que não havia possibilidade de existir nada entre eles, então Shu, o ar, os separa e cria o espaço necessário para a criação.
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Na língua fenícia a palavra nun significa “peixe”. Em egípcio a palavra nun é usada indistintamente para “peixe e água”. A divindade Nun terá, portanto, o significado de águas primordiais, bem como o de peixe, que nada nestas águas. Em 1902 os arqueólogos Flinders Petrie e Margaret Murray, descobriram o Templo Osirion nas escavações em Abidos e em uma de suas paredes encontraram um símbolo gravado, que foi chamado de Flor da Vida. Este símbolo representa o início da vida na concepção dos egípcios, a partir dos movimentos iniciais da criação.
Por um ato de vontade, o UNO produziu uma emanação de si mesmo gerando o DOIS, a dualidade, a polaridade. Por decorrência surgiu a interseção, o TRÊS, o Filho feito a imagem e semelhança do Pai. Em outras palavras, a Santíssima Trindade. Este movimento se dá em forma de espiral e na continuidade surge a primeira volta. Ao completar a terceira volta da espiral surge a Flor da Vida completa. Provavelmente esta é a origem dos símbolos do peixe e do vésica piscis (que será analisado mais adiante) adotado pelo cristianismo para representar Jesus, o Cristo, o Filho de Deus, o Messias. O símbolo do peixe resulta da interconexão dos dois círculos sendo, ao mesmo tempo, um símbolo sexual, pois representa o falo (o obelisco) e a yoni, entrada do órgão genital feminino, por onde se dá o nascimento e a saída para a Luz. Yoni também é representada entre os gestos do Yoga (chamados de Mudrás) pela interconexão das duas mãos unidas pelos polegares e indicadores.
Temos no oriente uma vasta simbologia conectando o peixe com o ato sexual. Kama-deva o deus indiano do amor e do desejo, é representado como um 4
jovem bonito e alado (como um cupido), que tem um estandarte em forma de peixe. Segundo Heinrich Zimmer 8, Kama, além de denotar o nome da divindade, teria um significado no sânscrito enquanto substantivo - que denota toda a gama de experiências possíveis no âmbito do amor, sexo, gozo e prazer sensual. A este respeito, temos o célebre texto do Kama sutra, de Vãtsyayana - obra que apresenta o tema erótico de uma perspectiva técnica e secularizada (como um manual), mas que passou a ser interpretado no ocidente como exemplo de “sensualidade despudorada” da tradição hindu.
Segundo os textos Budistas, Kama - na forma do Deus que porta o estandarte do peixe - aparece a Sidharta Gautama quando ele estava sentado sob a árvore de Bo, a ponto de transcender todas as formas. O deus do desejo procurou tentá-lo a fim de que não cumprisse sua tarefa de transcender o mundo. Mas o Budha não sucumbe às tentações de Kama-deva, continuando firme em seu propósito. Talvez esta simbologia do peixe derivada do hinduísmo tenha colaborado para que o peixe tenha sido incorporado ao Budismo como um símbolo que, colocado nos altares, evoca a fertilidade e a abundância de vida. “O peixe simboliza a fecundidade das águas de onde saem inúmeros organismos que procriam e geram a si mesmo. Para Zimmer: O peixe oferece alimento a todos, daí ser usado simbolicamente com o mesmo significado da cornucópia, o vaso cheio de flores de lótus e a jarra repleta de ouro ou de jóias 9.”
Segundo Carl Hentze 10, o peixe é um símbolo fálico. Ainda hoje, no sul da Itália, se usa a mesma palav ra para designar “peixe” e o membro viril e, como diz André Lysebeth11, quem duvidar que vá a Nápoles perguntar às vendedoras de peixe do porto. Mas, para quem não pode tirar a prova dos nove lá em Nápoles, o poema de Giuseppe Gioachino Belli (Roma, século XIX) nos dá uma lista de apelidos para o membro viril masculino, entre os quais, inguilla, versão napolitana para enguia, tido como “consolo de mulher”¹².
Er padre de li santi Er cazzo se po di´ radica, ucello, cicio, nerbo, torore, pennarolo, pezzo-de-carne, manico, cetrolo, asperge, cuzzola e sternnarello. Cavicchio, canaletto e chiavistello, er gionco, er guercio, er mio, nerchia, pirolo, attacapanni, moccolo, bruggnolo, inguilla, tocionello e manganello (e a lista continua...)¹³
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O símbolo do peixe não é apenas fálico, pois ele guarda o mesmo simbolismo do lingam, ou seja, ele traz yoni dentro de si, como o demonstram as imagens da deusa celta Sheela-na-Gig, encontrada em inúmeras igrejas e castelos irlandeses. Embora sua tradição seja milenar, a primeira menção escrita que se tem do nome desta deusa provém de uma obra publicada em 1840 pela Royal Irish Academy, ao analisar esculturas encontradas nas igrejas de Rochestown e Kiltinane, ambas na Irlanda. Porém a escultura mais famosa encontra-se no castelo de Kilpeck (a primeira) no oeste da Inglaterra 14.
Com suas mãos segurando a vagina, a deusa dá luz a todo ser que vem ao mundo. Neste sentido, a vagina é um portal para sair à luz. As palavras “peixe” e “luz” são intercambiáveis em inúmeras tradições. Em francês arcaico a palavra luce significa “peixe”, assim como a palavra latina locus.15 Estes significados cruzados entre “luz e peixe” nos remetem a diversos mitos, entre eles o da
divindade suméria Oannes.
Segundo Berósis, sacerdote caldeu do século III A.C., Oannes foi um ser fantástico, metade peixe e metade homem, que emergiu do oceano há mais de 5.000 anos atrás e transmitiu aos sumerianos as letras, as artes e as ciências. Este deus, ou herói civilizador, foi fundamental para a constituição do sacerdócio na mesopotâmia, cujos representantes maiores usavam o manto em forma de peixe, 6
que foi sendo modificado ao longo dos milênios, mas que se conserva na mitra usada pelo clero da Igreja Católica Romana até hoje.
A simbologia do peixe está igualmente associada a Cristo e ao cristianismo. A palavra grega para “peixe” é Ichthus, usada para designar Cristo, mas igualmente para designar Baco, também conhecido como Ichthus, “o peixe”.16 O etimologista J.M.Roberts em Antiquity Unveiled sustenta que Iaco (Baco) é o mesmo que Ichthus, o nome secreto de Jesus. O símbolo de Dionísio/Iaco/Baco era “IHS” (in Hoc Signo), derivado de IES, título fenício que significa “a única luz”, sendo “I” (o único) “ES” (fogo, luz)17. Mas a simbologia do peixe não para aí. Segundo Ralph Ellis, a palavra “leproso” vem do grego lepi, lepios,que significa “escamas de peixe”, uma referencia à pele escamosa do infectado, que também é usada como metáfora para a palavra “Nazareno”, que significa “seguidores de peixes”. Jesus não era “de Nazaré”, ele era Nazareno. Até hoje a palavra árabe “Nasrani”, que significa “pequenos peixes” é usada para designar
igualmente um cristão 18. Na mesma linha de raciocínio, Sir Laurence Gradner afirma, com base nos estudos da renomada teóloga Barbara Thiering sobre os documentos: Manual da Disciplina e Regra da Comunidade, que fazem parte dos pergaminhos de Qumrã, que o termo “leproso” era usado para designar aquele que havia cometido alguma falta e se desviado do Caminho, ou que ainda não tinha sido iniciado na comunidade superior. Por analogia, os “cegos” eram aqueles que não partilhavam do Caminho e, portanto, não viam a Luz. Neste sentido, a “cura de um cego” ou “cura de um leproso” referem -se ao processo de conversão ou de retorno ao Caminho. Estas metáforas passaram para a Bíblia como fatos 19. Na mitologia hindu, temos a figura do deus-peixe Matsya. Segundo os textos védicos, o deus Vishnu, na sua primeira encarnação, teria vindo ao mundo com a metade inferior de seu corpo em forma de peixe e a metade superior em forma de homem20 - exatamente como o mesopotâmico Oannes.
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Existem diversas explicações sobre o motivo para Vishnu ter vindo ao mundo na forma de peixe. Nos Vedas, coube a Matsya resgatar o legislador Manu do dilúvio, entregando-lhe os Vedas, o conhecimento sagrado. Em textos posteriores aos vedas, como o Bhagavata-Purana21 conta-se que o dia de Brahma estava chegando ao fim, e aproximava-se o momento do universo ser destruído para ser novamente reconstruído.Mas, enquanto Brahma dormia, o Demônio Hayagriva roubou os Vedas e os levou para o fundo do oceano. Os vedas, no entanto, eram absolutamente necessários para a tarefa de recriação do universo, e caberia a um deus-peixe resgatar este conhecimento nas profundezas do oceano. Assim, Vishnu teria encarnado na forma de Matsya, lutado e derrotado Hayagriva. Os Vedas foram devolvidos à Brahma através do deus-peixe que traz o conhecimento sagrado à superfície. Nas duas versões do mito, temos o peixe como salvador e portador do conhecimento necessário a continuidade da vida. Vale lembrar que na tríade hindu, cabe a Vishnu o papel da preservação do universo e de sua ordem, dando continuidade ao trabalho da criação de Brahma. Nos textos da linhagem tântrica, de onde deriva a Hatha – Yoga²², o peixe também tem este papel de portar e disseminar o conhecimento do Yoga que o grande yogue Shiva teria transmitido ao mundo. Segundo esta mitologia, o Yoga teria sido revelado por Shiva à sua consorte Parvati, na beira de um rio. A mulher, desatenta da importância do presente que estava recebendo, adormeceu profundamente. Neste momento, um peixe, embevecido com as palavras do Maha-yogi Shiva, ergue-se acima da superfície do rio e passa a escutar as palavras do mestre. Ao observar que a criatura aquática havia se tornado seu discípulo, Shiva resolve transformá-lo em homem. Na forma humana, este peixe mágico passa a ser chamado de Matsyendra (o senhor dos peixes). Este homem-peixe é considerado o primeiro sábio da linhagem Natha, uma tradicional linhagem de mestres de Yoga²³.
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Estabelece-se assim, uma ligação estreita de Shiva com o peixe – que se torna portador do conhecimento transcendental do Yoga. O peixe aparece como um terceiro elemento neste mito, posicionando-se entre os princípios masculino e feminino (Shiva e Parvati). Cabe ao peixe a função de receptáculo e ao mesmo tempo de disseminador daluz do Yoga, papel que cumpre após sua transmutação em ser humano. No antigo Egito a interconexão dos dois círculos primordiais era chamado de RU, que significa “portal”, ou “passagem de nascimento” 24, origem para os hieróglifos de boca, por onde sai a palavra (o verbo que se faz carne), vulva, por onde a mãe da à luz, e, por ter o formato dos olhos, esse símbolo também significava consciência, visão apurada, imortalizado no Olho de Hórus. O símbolo do Olho de Hórus traz um conjunto de significados muito caros para os egípcios antigos. Além do Absoluto, representado pela Iris, tem o traço (obelisco) imagem da ação do Absoluto no primeiro ato realizado pela vontade do criador, e a divina proporção, simbolizada pela espiral, modelo de toda a criação. O Olho de Hórus guarda o mesmo significado que o lingam hinduísta, unindo o membro viril (obelisco) com a vulva (auréola em formato de amêndoa, chamada mandorla). Ambos estão representados no vésica piscis, 25 que é a interseção de dois círculos, base da Flor da Vida e símbolo do peixe. O vésica piscis representa a criação, resultado da interseção do Absoluto com sua própria emanação. O hermetismo diz que ao criar o dois, o Absoluto criou simultaneamente o três, o filho, feito à imagem e semelhança do Pai. O filho é o próprio Cristo, envolto pela mandorla.
Nos dois exemplos que seguem temos os portais das catedrais de Santo Domingo, na Espanha, e Chartres, na França.
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O vésica piscis está na origem do arco gótico, maravilha talhada em pedra nas catedrais medievais. Este conhecimento hermético foi passado pelos gnósticos alexandrinos aos integrantes das primeiras cruzadas que se dirigiram à Jerusalém paralibertar a Terra Santa do jugo muçulmano. De volta à Europa os participantes dascruzadas deram início a um ciclo de mudanças das quais fazem parte, o trovadorismo, o amor cortês, o mito do graal, o catarismo e a construção das catedrais góticas. As portas das catedrais marcavam a passagem do mundo exterior para a luz interior, luz divina, luz que penetrava pelos magníficos vitrais e davam ao interior das catedrais uma característica mística. Entretanto, devido ao puritanismo que marcou o nascimento e a existência do cristianismo desde a crucificação do Cristo, ao menos na sua concepção paulina, este aspecto sagrado da sexualidade ficou guardado a sete chaves pelos mestres construtores, sendo revelado apenas aos iniciados.
O gótico é um símbolo sexual. Cada portal de catedral medieval é um lingam, representação da união do falo (obelisco) com yoni (mandorla, porta de entrada para a luz). Na Idade Média seria impossível revelar para os não iniciados que o portal de uma catedral continha em si os símbolos do falo e de Yoni em união sexual. Nos dias atuais esta revelação talvez ainda choque muita gente. O aspecto sutil do lingam só é perceptível àqueles que controlam o lado material de sua sexualidade 26. Tomado apenas em seu aspecto exterior, a veneração dos órgãos sexuais masculino e feminino é uma redução aos aspectos libidinosos da sexualidade, impedindo a percepção do aspecto sublime do símbolo. O órgão sutil é interior e sua imagem tem por objetivo despertar os fiéis para o conhecimento da existência do sagrado em todas as leis que regem o universo. Mircea Eliade viveu alguns anos na Índia, o que lhe valeu um grande aprendizado. Em suas palavras, na tradição shivaísta a união sexual deixa de ser um ato erótico ou simplesmente carnal. Sem negar o prazer, ela é uma espécie de sacramento, assim como beber vinho num ritual não é ingerir uma bebida alcoolizada, mas partilhar de um ato sagrado através de um ato simbólico. Diz Eliade, “na Índia vi mulheres tocando e decorando um lingam de pedra, anatomicamente bastante exato. As casadas, pelo menos, não podiam ignorar sua função fisiológica, então compreendi a possibilidade de ver o símbolo para além
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de sua representação. O linga simboliza o mistério da criação que se manifesta em todos os níveis cósmicos. A epifania da vida era Shiva, não o membro físico. O símbolo revelou-me o mundo dos valores espirituais. O lingam é o símbolo da sagrada união entre feminino e masculino. Enquanto a palavra informa, o símbolo revela. O símbolo é um modo não-verbal para transmitir verdades eterna s”27.
No erimitério de Rishikesh, no sopé do Himalaia, é realiz ado o milenar ritual hinduísta de unção do lingam. O oficiante traça nele símbolos ritualísticos com pasta de sândalo. Durante toda a celebração o oficiante e os participantes cantam o mantra, “Om Namah Shivayah”, jogando pétalas de flores sobre o lingam. No ponto culminante da cerimônia o oficiante derrama sobre o lingan um líquido branco e viscoso, feito de leite e mel, que escorre pela fenda de yoni e é cuidadosamente recolhido para ser partilhado em seguida entre os participantes, que o ingerem com devoção evidente 28. Este ritual transmite a idéia de geração e nutrição da vida, mas não deixa de ter para nós, ocidentais, uma forte conotação sexual e provavelmente para os hindus também. A diferença é que os shivaístas entendem que é ritualizando o sexo, e não o reprimindo, que se adquire a força física e mental para controlá-lo e descobrir o que nele há de divino. O puritanismo cristão reprimiu o sexo como forma de controle social e econômico sobre os adeptos, o que não significa possuir controle sobre os próprios instintos, embora isto jamais tenha sido assumido pela Igreja. A proibição do casamento entre os padres católicos romanos tem mais a ver com a disputa na transmissão dos bens materiais acumulados, herança, do que com a evolução espiritual. Para os shivaístas, os órgãos sexuais em união são a expressão visível do poder criativo da divindade. Quando egípcios ou hindus veneram o lingam, não deificam a característica física da genitália humana, eles apenas reconhecem que o poder criativo tem origem no sexo, sede e emblema do divino, eternamente presente no nascimento de todas as coisas e seres. “Aqueles que não querem reconhecer a natureza divina do falo, que consideram o ato amoroso vil e desprezível, ou uma simples função física, estejam cerros de fracassar em suas tentativas de realização material e espiritual.” Fragmento de um texto hindu 29. 11
Ungir o lingam é um ritual cuja tradição se perde na noite dos tempos, não sendo possível identificar sua origem, mas o fato é que ele pode ser encontrado do Oriente ao Ocidente e vice-versa. E este é realmente o problema. Sabemos que nossa cultura tem origem nas migrações indo-arianas, entretanto, como identificar a direção migratória? Ela ocorreu das estepes do norte da Europa para a Índia ou o inverso? A antropóloga Marija Gimbutas elaborou a hipótese kurgan, juntando arqueologia e lingüística, para explicar as origens da cultura proto-indo-européia, supondo a expansão gradual da "cultura Kurgan" a partir do entorno do Mar Negro para a Índia, que deu origem à domesticação do cavalo e o uso das primeiras bigas, incrementando a expansão dos costumes indo-iranianos por volta de 2500 a.C. 30. A teoria oposta é a da expansão a partir da Índia, que foi sugerida por Koenraad Elst, para quem os indo-iranianos eram remanescentes da cultura protoindo-européia que viveu no subcontinente indiano no quinto milênio a.C. Após a separação dos protoindo-iranianos, os iranianos teriam migrado na direção do Hindu Kush e finalmente na direção da Ásia Central até a Mesopotâmia, formando um grande império iraniano 31. Seria digressão entrar nessa discussão, porém ela não poderia deixar de ser mencionada, pois que é essencial na discussão da migração do símbolo fálico/yônico do Oriente para o Ocidente, ou vice-versa. Para além desta discussão entre os arqueólogos, o fato é que o sítio neolítico de Urartu32, no sudeste da Turquia, revelou a existência de um povo cujo território se estendia desde os atuais Irã, Irak, Armênia e Síria até a Índia. Tais achados revelaram a proximidade cultural entre assírios e hindus, esquentando o debate teórico sobre a direção das grandes migrações indo-arianas.
Neste rolo de cobre são vistas representações humanas com características assírias, num ritual de culto ao lingam, que por sua vez está associado à Árvore da Vida, o que resulta na união de símbolos considerados específicos de tempos e lugares diferentes.
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Alain Daniélou, um francês de família tradicional que trabalhou por mais de vinte anos na Índia, lecionando em universidades e dirigindo o setor de manuscritos de grandes bibliotecas da Índia e da França, sustenta a teoria que o culto ao deus Shiva transferiu-se da Índia para a Europa sob a forma de Dionísio. Nesta migração o culto foi perdendo seu caráter sagrado, expandindo o lado profano, culminando nas bacanais romanas. Daniélou (citando J. Jeanmaire – Dionysos, pág 58) explica que os adeptos do culto de Shiva são chamados de bhaktas, palavra traduzida por “devotos”, mas que na ve rdade significa “ participantes”. Baco é um dos nomes de Dionísio e seria, na origem, o equivalente lídio de Dionísio. É provável que as palavras bacchos (baco) e bacchaï (bacantes) sejam uma transposição da palavra bhakta. A palavra baco não se liga a nenhuma raiz conhecida da língua grega 33. A palavra Dio-nísio tem sua origem na tradição shivaísta. Nisa é tido como o lugar de infância de Dionísio. Nisah é um epíteto de Shiva, que significa “supremo”. Nisam é a beatitude, nisâ a alegria, nisai as ninfas. Nisa é também a Montanha Feliz, o equivalente ao Paraíso terrestre. O significado do nome Dionísio é, provavelmente, Deus de Nisa, onde nisa é a forma feminina da palavra nysos, que entra na composição do nome do deus, inexplicável na língua grega, a não ser pelo nome da Montanha sagrada. Os gregos acreditavam na existência da Montanha de Nisa e estas foram enumeradas em aproximadamente dez, distribuídas desde o Cáucaso à Arábia, da Índia à Líbia. “Há uma Nisa, alta montanha, onde florescem as florestas muito além da Fenícia.” (Hinos homéricos)34. O sítio arqueológico de Filitosa, na Córsega, é um exemplo significativo da ocorrência de rituais e cultos envolvendo Baco/Dionísio na Europa neolítica. Embora as civilizações européias deste período histórico não tenham deixado registros escritos de suas concepções a respeito do significado dos menires plantados na terra, por analogia eles podem ter o mesmo significado a eles atribuído na Índia. A região da Córsega elaborou as melhores representações para os cultos e rituais ligados ao mistério da gestação.
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A anatomia do membro viril masculino esculpido em pedra no sítio de Filitosa não deixa dúvida quanto ao simbolismo dos gigantescos menires ali plantados. Teriam eles o mesmo significado que o lingam hinduísta, a sagrada união do falo com yoni? Teriam estas pedras sido usadas para um culto exclusivamente priápico (falocrático), um culto ao pênis pura e simplesmente, ou estariam simbolizando algo da ordem do sagrado como no Egito antigo ou na Índia?
Para Alain Daniélou, a representação do falo pode ser encontrada em todo o mediterrâneo e na Europa nórdica, locais onde houve propagação dos cultos dionisíacos, guardando o significado original do símbolo. Mas, com o passar do tempo e, sobretudo, na transição da sociedade matrilinear para sua oponente, a patriarcal, o símbolo foi perdendo sua sacralidade. Para compreender o movimento do símbolo é preciso recorrer novamente ao mito. Com a descoberta do papel do homem na procriação teve início um longo processo de transferência de importância atribuída à polaridade feminina para a masculina. Se no período neolítico a Deusa-Mãe reinava absoluta, nos períodos históricos subseqüentes essa importância foi sendo reivindicada pelo Deus-Pai. No processo de perda de importância a mulher terminou por ser reduzida ao receptáculo da semente masculina e confinada ao gyneceu, como na Grécia antiga. Os mitos da Deusa-Mãe para os de Shiva e Dionísio são um bom exemplo desta migração. De origem dravidiana, Shiva tornou-se uma divindade chave do panteão hinduísta que, juntamente com Brahma e Vishnu, formam a trindade hindu. Os principais textos considerados como fontes do Shivaismo na literatura sânscrita são a literatura épica do Shiva Puranas, os Shiva Sutras35 e os Ágamas (revelações tântricas). Nestes textos, do período dos upanishads, temos as primeiras referências a Shiva em seus aspectos que conhecemos hoje.
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Shiva monta o touro Nandi, que dará origem a inúmeros rituais que foram se processando ao longo do tempo chegando até nossos dias na forma de festas populares, danças e touradas. Shiva é habitualmente representado pelo lingam. Sendo deus da criação ele se mostra em sua eterna relação com Shakti, a perfeita união do feminino e do masculino. No seu aspecto Nataraja, Shiva dança dentro de um círculo de fogo, símbolo da renovação, ele cria, conserva e destrói o universo, para recriá-lo em seguida. O terceiro olho no meio de sua testa simboliza a visão para além do tempo e do espaço, o tridente (trishula) simboliza a trimûrti, ou seja, a trindade na perpetuação da criação, destruição e recriação. Ele porta um pequeno tambor (damaru), essencial para produzir o som que dá origem à criação. Da sua cabeleira nasce o sagrado rio Ganges. Conta o Linga Purana que quando o universo foi invadido pelas águas, Vishnou e Brahma começaram uma disputa, cada um afirmando que era o maior dos deuses. De repente surge uma imensa coluna de fogo saindo das águas. Ela era tão alta que parecia não ter fim. Os dois deuses decidem medir a altura da coluna. Vishnu se transforma em javali e mergulha nas águas enquanto Brahma toma a forma de um ganso para voar o mais alto possível. Mas nem um nem outro puderam atingir as extremidades da coluna incandescente. Então Shiva aparece e explica que se trata de um lingam, símbolo dele mesmo e do seu poder. Brahma e Vishnu reconhecem a supremacia de Shiva.
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As imagens de Shiva revelam ainda outros de aspectos da personalidade multifacetada desta divindade. O Deus criador do Yoga é freqüentemente representado como grande asceta, que vive nas altas montanhas do Himalaia, sempre sentado em estado meditativo. Mas Shiva é também o andarilho que costuma a caminhar à noite pelas aldeias da Índia com o pênis ereto, escandalizando e ao mesmo tempo despertando o desejo nas esposas dos Brâmanes celibatários que vivem nas florestas 36. Embora estas representações como asceta meditativo e como andarilho de pênis ereto – possam parecer contraditórias aos nossos olhos ocidentais, na Índia elas convivem perfeitamente dentro deste imaginário mítico de Shiva. Tal convivência parece ter sido posta em prática pela tradição Pâshupata, uma importante fase da comunidade religiosa do shivaismo, que foi reconhecida no texto do Mahabarata como uma das cinco tradições religiosas mais importantes de sua época, as outras seriam as religiões dos Vedas, o Yoga, o Sânkia, a Pâncarâtra37. Acredita-se que a ordem religiosa Pâshupata foi fundada por um asceta chamado Lakulisha, que teria vivido entre os séculos I e II d.C. Mas já no período pré-budista há registro de ascetas adoradores de Shiva dos quais o movimento poderia ter se originado. O ponto importante a respeito dos Pâshupatas e de seu fundador, é que Laukulîsha é considerado como a última encarnação de Shiva e costuma a ser representado na iconografia hindu sentado na posição de lótus, com uma lima-da pérsia na mão direita, uma clava na mão esquerda, e o pênis ereto cheio de força vital. Georg Feuerstein, em sua obra A Tradição do Yoga, nos fornece uma interessante explicação a respeito destes símbolos: Podemos ver na clava e na lima-da-pérsia respectivamente os símbolos dos aspectos masculinos e femininos da Divindade embora não haja dúvida de que tenham também outros significados esotéricos. O pênis ereto não é um sinal de imoralidade sexual, mas do perfeito domínio do impulso sexual e da conversão do sêmen na misteriosa Ojas, a vitalidade sutil, que é uma parte muito importante do processo alquímico que ocorre no corpo do adepto do yoga 38.
Assim, na tradição shivaista, o falo ereto pode ser visto como sinal de uma prática de transmutação. E os seguidores da seita dos Pâshupatas teriam levado a diante tal prática. Mas, além de simbolizar a transcendência, a demonstração fálica pode ser entendida como uma forma de causar escândalo na sociedade: ao agir de forma não-convencional, o praticante tende a desvencilhar-se definitivamente de todas as castas e todos os carmas da vida cotidiana, transcendendo os paradigmas do bem e do mal.Torna-se assim, ainda mais livre para se dedicar a auto-transcendência. Por fim devemos ressaltar ainda outro aspecto fundamental e aparentemente contraditório de Shiva: a sua existência enquanto deidade só se completa com a presença de sua shakti - a esposa Parvati. Shiva tem uma única 16
esposa, e se mantém fiel a ela, embora Parvati possa receber outros nomes quando apresentada com outras características. Seus filhos são Ganesha e Karttikeya, e, juntos, estes membros da família Shiva representam o exemplo de estabilidade e harmonia. O culto a Shiva chegou ao Ocidente através das migrações indo-arianas e se instalou nas terras que circundam o mediterrâneo, ganhando esta divindade o nome de Dionísio. Esta é a tese de Alain Daniélou. Nesta migração o símbolo foi se metamorfoseando, indo de uma polaridade a outra, da relação sexual sagrada realizada por Shiva para a criação do universo e de tudo o que existe na Terra, até chegar às bacanais romanas onde sexo passou a ser sinônimo de orgia. Estamos retraçando este percurso nos limites deste artigo. Existem versões diferentes para tratar da progenitura e do nascimento de Dionísio. Nos hinos homéricos Dionísio é filho da mortal Sêmele e do seu amante, Zeus. Hera, esposa de Zeus, ao se sentir ofendida por mais uma tr aição do seu consorte, o deus do Olimpo, se disfarçou e foi falar com Sêmele instigando-a a pedir ao amante (caso ele fosse o verdadeiro Zeus) que viesse ter com ela vestido em todo seu esplendor e assim lhe mostrasse sua verdadeira forma. Sêmele, sem saber que seu amante era um deus, pediu a ele que atendesse ao seu pedido, sem explicar do que se tratava. Zeus atendeu-a, mas quando soube o que era imediatamente se arrependeu. Entretanto, uma vez concedido, ele não podia voltar atrás e o pedido teve que ser cumprido. Zeus então foi ao Olimpo, colocou suas vestes maravilhosas, voltou e apresentou-se à amante em sua verdadeira forma, já sabendo das implicações que este ato provocaria. De fato, o corpo mortal de Sêmele não foi capaz de suportar o esplendor da divindade e foi reduzida a cinzas. Seu bebê, ainda não completamente formado, saiu do útero de sua mãe e alojou-se na coxa de Zeus, onde permaneceu até que completasse a sua gestação.Quando Dionísio nasceu, Zeus entregou-o a Hermes, que o confiou ao casal Ino e Athamas para ser criado como moça, junto com as ninfas. Depois de crescido Dionísio encontrou-se com Sileno que lhe ensinou a cultura das parreiras, a poda dos galhos e a fabricação do vinho.
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Dionísio repassou os conhecimentos adquiridos e o povo passou a cultuálo como deus do vinho. Ensinando sua arte, Dionísio vagou pela Ásia, foi até a Índia e chegou à Frígia, onde a deusa Réia, mãe dos deuses, o purificou e lhe ensinou os ritos de iniciação. Na sua volta à Grécia, Dionísio puniu quem se interpôs em seu caminho e triunfou sobre seus inimigos além de se salvar dos perigos que Hera sempre procurava colocar em seu caminho. Mais tarde ele resgatou a mãe Sêmele e a levou ao Olimpo, onde Zeus a transformou em deusa. Acredita-se que o mito de Dionísio na sua versão grega tenha se desenvolvido lá pelo século VIII a.C, uma vez que seu primeiro registro está na Ilíada. O festival mais importante, as Dionisíacas, era celebrado em Atenas por cinco dias a cada primavera. Foi para estas celebrações que os dramaturgos Ésquilo, Sófocles, e Eurípides escreveram suas grandes tragédias. Por volta do século V a.C., Dioníso ficou conhecido entre os romanos como Baco, cujo culto tornou-se popular na Itália do século II a.C., onde os mistérios dionísicos eram chamados de bacanália e as mulheres de bacantes. Embora tenham sido proibidas pelo senado romano em 186 a.C., os mistérios dionísicos permaneceram. Dionísio casou-se com a linda Ariadne, filha do rei Minos, de Creta. Conta o mito que, apaixonada por Teseu, Ariadne o ajudou a derrotar o Minotauro e encontrar a saída do terrível Labirinto. Vitorioso, Teseu partiu levando-a em sua companhia, porém abandonou-a logo depois na ilha de Naxos. Vendo-se sozinha, Ariadne entregou-se ao desespero. Afrodite apiedou-se dela e consolou-a com a promessa de que lhe daria um amante imortal, em lugar do mortal Teseu. Naxos era a ilha favorita de Dionísio e, quando Ariadne lamentava seu terrível destino, ele a encontrou, consolou-a e casou-se com ela. A partir de então, Ariadne foi retratada como líder das seguidoras de Dionísio. Juntos tiveram quatro filhos: Toas, Estáfilo, Enópion e Peparetos. Entretanto, o divino Dionísio não foi melhor que o humano Teseu. Loucamente apaixonado por Afrodite, Dionísio deixa Ariadne e se entrega aos amores da deusa e desta paixão nasceu Priapo. O adjetivo priápico deriva de priapus e priapéia designa um gênero literário que contém poemas dedicados a Priapo. Tais poemas são de autoria anônima, mas especialistas dizem que podem ter sido compostos por diversos autores, entre eles Ovídio. Os temas dos poemas abrangem a exaltação do falo de Priapo, indecoroso castigo inferido aos invasores que malfazejam as propriedades alheias, por isso suaestátua era costumeiramente colocada nos jardins gregos.
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Para João Ângelo Oliva Neto, autor de Falo no Jardim39, Priapo veio do Egito, passou pela Trácia e chegou à Grécia. O culto provavelmente surgiu no século IV na Ásia Menor, às margens do Helesponto, estreito que fica na região da Trácia, que corresponde ao atual estreito de Dardanelos, na Turquia. Da Trácia o culto passou ao mundo grego por meio das relações comerciais e culturais, espalhando-se por todo o Mediterrâneo.40 Priapo também podia ser denominado uccello, outro nome para o deus e apelido para o sexo masculino, ainda de uso corrente entre os italianos. O nome se dá devido à forma fálica do osso da escápula de certos pássaros.
Priapo era um deus menor, disforme e desprovido da beleza e harmonia dos deuses olímpicos, mas, por isso mesmo, era popular entre as classes mais humildes da população que, além de considerá-lo protetor da fertilidade animal e vegetal, se valia do caráter apotropaico do deus, isto é, de sua capacidade para afastar doenças, malefícios emaus-olhados que pudessem prejudicar a virilidade dos homens, a fertilidade do solo, dos animais e das esposas. Tais poemas eram em grande parte jocosos quando não explicitamente obscenos, mas apresentam qualidade poética proporcional à obscenidade e ao humor. Eles foram compostos em latim entre os séculos 1º a.C. e 1º da era comum.
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Ainda segundo Oliva Neto, figura de Priapo originou-se das imagens fálicas diante das quais se desenvolviam as orgias dionisíacas. Mas, entre os séculos III e II a.C., a imagem de Priapo deixa de ser exclusividade do espaço público e ingressa no jardim, o que altera radicalmente o caráter do deus. A partir do século IV a.C., o jardim já se tornara o espaço da atividade filosófica. A Academia de Platão se situa nos jardins, sem falar nos jardins de Epicuro, lugar buscado pelos filósofos para o necessário ócio produtivo.41 O jardim filosófico, afirma o autor, é um meio público por pertencer ao espaço da cidade e um meio particular por servir a fins específicos, que influenciou os jardins privados das classes elevadas. Nestes, Priapo tinha a função de prover o vigor das plantas e, assim, a satisfação de seu proprietário. Priapo provê não só o desenvolvimento dos frutos quanto os protege dos ladrões e dos pássaros. Sua imagem era feita de madeira, pintada de vermelho, colocada nos jardins gregos e romanos e tinha, finalmente, a função de espantalho 42. Para enfrentar as mudanças nos costumes, nas regras e normas sociais, sobretudo quanto à sexualidade, as civilizações vão criando seus mitos, deuses e deusas, ressignificando suas atribuições, que na verdade resultam das mudanças ocorridas em suas próprias concepções. Príapo nos remete a uma questão: por que seu sexo era disforme? Sua mãe, a deusa Afrodite, muito fogosa, teve incontáveis relacionamentos enumerosos filhos : Hermafrodito com Hermes, Eros com Hefesto, Anteros com Adônis, Fobos, Deimos e Harmonia com Ares, Himeneu com Apolo, Enéias com Anquises, Priapo com Dionísio. Hera, patrona do casamento e do lar, sentindo-se ultrajada com a promiscuidade de Afrodite e, usando seus poderes, fez Príapo nascer com um falo exorbitante, como no afresco encontrado na cidade de Ponpéia. Príapo nasceu do êxtase físico oriundo do vinho embriagante de Dionísio e da satisfação sexual instintiva de Afrodite. A relação sexual deixou de simbolizar o ato divino da criação e assumiu simplesmente o lado profano do gozo, restando-lhe apenas o lado obsceno. O membro disforme de Príapo é ambivalente, evoca simultaneamente o sagrado e o grotesco: O espaço filosófico dos jardins estava destinado ao contato com a sabedoria e com a função sagrada de propiciar o nascimento das idéias, da vida e proteger os frutos, tarefa a qual Priapo estava destinado. Mas sua tarefa também tinha o lado profano ao permitir o gozo e a plenitude erótica do proprietário. 20
Essa concepção prazerosa da sexualidade terá seu fim decretado com o advento do cristianismo. Como diz Oliva Neto, contra o falo, a cruz.43 A imposição da cruz vai escamotear a capacidade dos seres humanos de se rejubilarem com o sexo, tornando-o ato pecaminoso. Ao ocultar o falo desproporcional e abundante com que se celebra a vida é oferecido em troca uma relação pudica, sem erotismo, regrada pelo puritanismo e voltada apenas para a procriação. Esse movimento de reconfiguração do símbolo pelo cristianismo fez com que a percepção do erótico se transformasse em algo proibido, vexatório, nojento, pecaminoso, passível de ser feito apenas com outras mulheres, jamais com a esposa, confinada aos rituais para a procriação. Seriam necessários alguns séculos até que Freud reabrisse novas interpretações da sexualidade. A noção de Deus-pai, base da tradição judaico-cristã, é uma transposição puritana da noção do lingam védico. Na concepção shivaísta o prazer é a imagem do estado divino, por isso quando o divino manifesta-se sob o aspecto procriador também o faz com prazer. Os órgãos sexuais têm então um duplo papel, o inferior da procriação e o superior do contato com o divino, levando ao êxtase do prazer. O gozo é uma “sensação do divino”. Enquanto a paternidade prende o homem às coisas terrenas, o êxtase do prazer pode revelar-lhe a realidade divina e levá-lo à realização espiritual 44. Dos ritos sagrados de Shiva, cujo falo representa a busca da perfeita unidade com a divindade suprema, com o Absoluto, com o Inominável, onde a relação sexual é veículo para a iluminação, o falo terminou como espantalho nos jardins greco-romanos e se imortalizou em poesias jocosas, cheias de duplo sentido. Comparado ao asno e ao jumento devido ao órgão desmedido Príapo não conhece o gozo e não dá prazer. Ele sofre de uma ereção patológica, cuja obscenidade tornou-se geradora do poder conservador e puritano 45. Talvez seja hora de buscar o meio termo entre ambos.
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1 Docente do Departamento de Ciências das Religiões, do Programa de PósGraduação em Ciências das Religiões, da UFPB. 2 Doutora em História pela Unicamp. Pesquisadora DCR/CNPq do departamento de Ciências das Religiões da UFPB. 3 Starbird, Margareth. Maria Madalena e o Santo Graal. SP: Sextante,2004, pag. 49. 4 LYSSEBETH, A. Tantra: O culto da feminilidade. SP: Summus, 1994, pág 163 5 ELLIS. As chaves de Salomão. SP: Madras, 2004, pág. 147. 6 Segundo Georg Feuerstein, no livro A tradição do Yoga, esta seita teria se originado por volta do século XII d.c., embora seus seguidores afirmem que ela remonte “a noite dos tempos”. Os lingayatas vêem Shiva em tudo, e defendem a igualdade social, propondo eliminação de restrições de castas, permissão de novos casamentos para viúvas e pessoas em idade madura. Cf. FEUERSTEIN, Georg. A tradição do Yoga: história, literatura, filosofia e prática. São Paulo: Pensamento, 2006, p. 328. 7 Fonte: http://www.yogaencantada.com.br/artigos 8 Cf. ZIMMER, Heinrich Robert. Filosofias da Índia. Texto compilado por Joseph Campbell. São Paulo: Palas Athena, 1986, p. 116 9 ZIMMER, op. Cit, p. 116 10 HENTZE, Carl. Mythes et symboles lunaires. Bélgica: Labor, 2006. 11 LYSEBETH, André. Pág. 162. 12 OLIVA NETO, J.A. Falo no jardim. SP: Ateliê Editorial/Unicamp, 2008. 13BELLI, G. G. Apud: OLIVA NETO, João Ângelo. Falo no jardim. p. 359. 14 Para outras imagens visite http://taramc.tripod.com/sheelas.html. 15 Cf. GARDINER e OSBORN. O Graal da Serpente. SP: Pensamento, 2008, pág. 71. 16 GARDINER, P. e OSBORN,G. O Graal da Serpente. SP: Pensamento, pág 72. 17 idem, pág 131. 18 ELLIS, Ralph. Jesus: O último dos faraós. SP: Madras, 2008, págs. 195 e 216. 19 GARDNER, Laurence. A Linhagem do Santo Graal. SP: Madras, 2004, pág. 40.
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20 Cf. SINGH, Dharam Vir. Hinduísm – an introduction. Jaipur ( India): Surabhi Prakash, 2005, p. 35. 21 O Bhâgavata-Purana é um texto importante dentro da tradição Vaishnava, que teria sido escrito provavelmente por volta de 750 d.C. A base de seus ensinamento consiste na adoração ao divino na forma de Krishna, e trata-se de um texto repleto de ensinamento de Yoga e Sânkhya. Cf. FEUERTEIN, Georg. Enciclopédia de Yoga da Pensamento. SP: Pensamento, 2005, p. 54. 22 Devido a sua história e a grande diversidade de práticas e doutrinas que se encerram sob essa designação é difícil definir o que é o tantra. Mas, essencialmente, podemos considerar o tantrismo como o conjunto de Mestres e seus ensinamentos sobre o tantra, surgidos no decorrer do primeiro milênio d.C. Neste período surge um importante conjunto de escrituras sagradas do Shaktismo, Shivaismo e Budismo. O culto à deusa Shakti está no âmago de muitas escolas tântricas e muitos textos se organizam na forma de diálogo entre Shiva e sua consorte Parvati. Mas a grande transformação trazida pelo tantrismo foi a incorporação das práticas corporais como caminho e parte do ser absoluto, dando surgimento às técnicas do Hatha Yoga. A historiadora Ananda Coomaraswamy faz uma síntese da filosofia do tantrismo: A realização última do pensamento é o reconhecimento da identidade que existe entre o espírito e a matéria, o sujeito e o objeto; e essa fusão é o matrimônio do céu e do inferno, o caminhar de um universo contraído rumo a liberdade, em resposta ao amor da eternidade pelos produtos do tempo. Depois disso não há mais sagrado nem profano, espiritual nem sensual; tudo que vive é puro e diáfano. (COOMARASWAMY, A. APUD: FEUERSTEIN, Georg. A tradição do Yoga: história, literatura, filosofia e prática. SP: Pensamento, 2006, p. 419). 23 Esta versão do mito de origem do Yoga foi retirada de uma publicação nacional recente, O Livro de Ouro do Yoga. Cf. BORELLA, Ana [et. al.] O livro de ouro do Yoga. Rio de Janeiro, 2007, p. 39- 40. 24 GARDINER e OSBORN. O Graal da Serpente. SP: Pensamento, 2008, pág. 46. 25 CANNUYER, Christian. Le poisson Ichthus, symbole du Christ, serait-il d'origine égyptienne, dans Acta Orientalia Belgica, XV, 2002, pp. 255-292. 26 DANIELOU, Alain. Shiva e Dionísio: a religião da natureza e do Eros. SP: Martins Fontes, 1989, pag. 46 27 ELIADE, Mircea. A provação do Labirinto. Lisboa: Don Quixote, 1987, pág 44. 28 LYSEBETH, pág 161. 29 Idem, pág. 162. 23
30 GIMBUTAS, M. Os Baltas. Portugal: Ed. Rio Neris, 1992. 31 http://pt.wikipedia.org/wiki/Indo-Iranianos 32 Imagens retiradas de wikipedia.org/wiki/Urartu Acesso em 12/07/09. 33 DANIÉLOU. A. Shiva e Dionísio. SP: Martins Fontes,1989, pág. 86. 34 Idem, pág. 119. 35 Existe uma versão em português deste texto na obra A Tradição do Yoga. O Shiva Sutra de Vasugupta, texto que teria sido descoberto por um sábio da caxemira por volta do século VII d.C. tem os princípios dessa tradição shivaista, que se caracteriza pela não dualidade tântrica. Nesta publicação temos uma versão com tradução à partir da fonte sânscrita para o Inglês e posteriormente para o português. Cf. FEUERTEIN, op. cit., 335-341. 36 BORELLA, Ana [ et. al.]. op.cit., p 42. 37 FEUERTEIN. op. cit. p. 324. 38 Idem, p. 324 39 OLIVA NETO, João Ângelo. Falo no jardim. SP: Ateliê Editorial/Unicamp, 2008. 40 Idem, pág. 15. 41 Idem, pág. 19. 42 Idem, pág. 22. 43 Idem, pág. 31. 44 DANIÉLOU, Alain. Shiva e Dionísio: A religião da Natureza e do Eros. SP: Martins Fontes, 1989, pág.46. 45 Revista eletrônica do Instituto de Humanidades. Volume III, nº X, 07-09/2004. Acessado em 20/07/09.http://www.unigranrio.br/unidades_acad/ihm/graduacao/letras/revista/nu mero10/textoairto3.html
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