Sermão de Santo António
December 14, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Padre António Vieira, Sermão de Santo António Rúben Inocêncio Fevereiro 2021 Todo o contexto histórico-cultural em que esta obra se insere data do século XVII, uma época em que se fez, por toda a Europa, várias reformas, durante crises e conflitos religiosos: ✓
Na Europa – Reforma protestante, contrarreforma, ascensão da Inquisição, tudo isto gerou conflito e medo na população. ✓ Em Portugal – Período de luto pelo desaparecimento do Rei D. Sebastião, governo da coroa espanhola com a dinastia Filipina (1580 – 1640), progressivo aumento da Inquisição, comportamentos bárbaros quanto à escravatura em África e no Brasil. ✓ Brasil – Exploração dos índios brasileiros por parte dos colonos.
Portugal, durante todo este período conturbado, distanciou-se culturalmente devido à Inquisição e outros problemas associados à religião e às colónias. Ainda outra corrente artística se desenvolveu neste período e que seduzia os católicos c atólicos indecisos – o Barroco. 1
Biografia e Estilo Literário de Padre António Vieira
O nosso autor, neste contexto histórico tão pouco promissor, decide usar o poder da palavra que ele tanto dominou para alterar o comportamento dos crentes e até da sociedade em geral. António Vieira nasceu a 6 de fevereiro de 1608 em Lisboa, tendo-se mudado para o Brasil em 1614, onde desde cedo ingressou numa vida religiosa. Enquanto se encontrava no Brasil terá contactado com índios nos sertões 1 brasileiros, esta experiência social promoveu um entendimento diferente da vida humana o que motivou Vieira a pregar uma nova sociedade em prol da defesa dos direitos dos indígenas. Esta nova visão pouco agradou aos colonos… Anos mais tarde em 1640, Portugal restaurou a independência e a linhagem real portuguesa, devido a este acontecimento, António Vieira foi convocado para várias vár ias missões diplomáticas em Lisboa e por Europa fora. Já em Portugal, Vieira presta lealdade ao novo rei D. João IV, mas acaba por ser acusado herege2 pela Inquisição, isto leva a uma suspensão do ato de pregação e fica encarcerado em Coimbra. Acaba por regressar ao Brasil e por se assumir como defensor dos direitos dos índios. Em 1654, prega então o Sermão de Santo António dias antes de voltar a Lisboa. Morreu em 1697, com 89 anos, após compilar os seus sermões em 15 volumes.
Sermão de Santo António António | | Rúben Inocêncio
Padre António foi um grande mestre da oratória3 e é essa condição que iremos explorar quando se fala do seu estilo literário. A obra que aqui vamos estudar é um Sermão e obedece assim a três principais objetivos: 1. Docere
– Educar ou Ensinar – Vieira aposta numa abordagem pedagógica utilizando referências respeitadas como a Bíblia. 2. Delectare – Agradar Agradar – Existe uma apresentação do conteúdo que atrai e cativa a audiência, normalmente é conseguida através de recursos expressivos ou de mudanças no tom de voz e no próprio ritmo do discurso. 3. Movere – Persuadir Persuadir – É o culminar de todo o processo, o orador persuade a audiência a fazer um exercício de pensamento crítico sobre as ações que toma e convence os demais a mudar os seus hábitos.
2 Sermão de Santo António
Resumo e Análise
O sermão, tal como referido, é uma “arma” da Contrarreforma contra as atitudes ati tudes bárbaras que
se praticavam de origem religiosa. Aqui, António Vieira, começa por iniciar o seu sermão com o alegado objetivo de pregar às “pessoas da terra”, no entanto, ao ver que a terra está
contaminada, este vira-se para o mar e começa c omeça a pregar aos peixes, animal este que se entende como o mais puro. A estrutura do sermão é extremamente simples e é uma ajuda a quem está a analisar, é então composta por: ✓
Exórdio (capítulo I) – Apresentação do tema e do motivo que o leva a fazer este sermão, é uma forma de cativar o público. ✓ Exposição e Confirmação (capítulo II a V) – Apresentação da sua argumentação e da sua tese. ✓ Peroração (capítulo VI) – Conclusão do assunto desenvolvido.
Exórdio Esta parte do sermão é apenas composta por um capítulo e tem como objetivo principal cativar aVieira audiência mesmo tempo que de introduz é a motivação paratarefa tal sermão. Padre António utilizaaoum jogo metafórico formaqual a cumprir esta dupla utilizando o conceito predicável4 :
“Vos estis sal terrae” 1 Metáfora para pregadores
Metáfora para ouvintes
Os pregadores eram muito importantes na sociedade da época, pois eram donos da transmissão da palavra e tinham imenso poder na medida em que influenciavam as mentalidades e culturas da época. Vieira associa então os pregadores ao sal, pois ele impede que os alimentos se estraguem, ou seja, impede que o Homem seja corrompido. co rrompido. Mas o mundo está imerso em corrupção! 1
“Vós sois o sal da terra”
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António | | Rúben Inocêncio Sermão de Santo António
ou
"O sal não salga"
ou
ou
O pregador não faz o seu trabalho ou
A Terra está corrupta! Porquê?
ou
ou
"A terra não se deixa salgar" Os ouvintes não ouvem o que lhes é pregado
ou
Não pregam a verdadeira doutrina Dizem uma coisa e fazem outra Pregam-se a si e não a Cristo Os ouvintes querem imitar os pregadores e não fazer o que lhes dizem A doutrina é verdadeira, mas os ouvintes não a ouvem
ou Em vez de servirem Cristo, os ouvintes servem-se a si mesmos
Vendo que a “terra” despreza completamente as doutrinas que ele tenta passar, Vieira segue o
seu mentor, Santo António2, e decide voltar-se de costas para a terra e direcionar o seu sermão para o mar, para os peixes. Assim vai utilizar diferentes peixes para criticar e salientar as atitudes que quer ver alteradas. Concluindo, António Vieira dirige-se à “terra” com intuito de revelar as falhas do sistema religioso e como forma de mudar mentalidades, vai utilizar estes tópicos para desenvolver a sua tese.
Exposição e Confirmação Nesta parte da obra fazem-se louvores e repreensões aos peixes (indiretamente falando dos Homens). Primeiro salientam-se os louvores em geral e depois em peixes particulares; as repreensões seguirão a mesma estrutura:
Louvores em Geral – Capítulo II
Num primeiro momento existe uma exposição dos louvores. António Vieira relembra a importância dos seus sermões: louvar o bem (“para o conservar”) e rrepreender epreender o mal (“para preservar dele”). Reaviva ainda que os peixes são de facto excelentes ouvintes, pois ouvem
atentamente e não falam. O orador vai então enumerar as qualidades e virtudes dos peixes em geral em oposição aos defeitos dos homens:
2
Santo António foi uma figura religiosa que é recordada por dirigir um sermão aos peixes, inspirando assim a atitude de Padre António Vieira.
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Sermão de Santo António António | | Rúben Inocêncio
Qualidades dos Peixes
Defeitos dos Homens
São obedientes;
Deslumbram-se facilmente com qualquer lisonjeio;
São excelentes ouvintes;
São presunçosos e egocêntricos;
Respeitam e prestam culto à palavra de Deus;
Despertam a violência e a obstinação5;
Estão isolados da humanidade, ou seja, não se deixam corromper pela sociedade humana;
Têm na sua natureza uma crueldade irracional;
São dos poucos animais que não se deixam domesticar, mais uma vez distanciam-se dos Humanos.
São vaidosos e exibicionistas, vivendo à custa das aparências.
Estas descrições são acompanhadas dos tais elementos bíblicos que conferem credibilidade à oração e que ajudam a ilustrar o ponto de vista tornando o sermão mais apelativo e compreensível.
Louvores em Particular – Capítulo III
Agora que foram expostos os louvores existe uma confirmação dos mesmo salientando alguns peixes específicos e retratando o que cada um tem de especial:
✓
O Peixe de Tobias – É um animal que é protagonista de um
episódio bíblico, em que as suas entranhas têm o poder de curar a cegueira dos homens e o coração afugenta o mal. o Analogia: Santo António “abria a boca contra os hereges” curando a cegueira e expulsando os demónios
das casas dos Homens.
Tobias curando a cegueira de seu pai, graças ao peixe e suas entranhas.
✓
A Rémora – Peixe de pequenas dimensões que, através de
uma ventosa, se agarra ao casco dos navios servindo de leme, guiando as naus a bom porto e fora de maus caminhos. o Analogia: Santo António faria exatamente o mesmo, mas com os homens, guiando-os pela vida através da sua palavra, corrigindo os Homens. “Se alguma rémora houve na terra, foi a língua de Santo António.” António.”
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Sermão de Santo António António | | Rúben Inocêncio ✓
O Torpedo - Peixe que possui a capacidade de produzir descargas elétricas que impedem o pescador de o apanhar, pois “tremelga”
-lhes o braço ao a agarrar. o Analogia: As palavras de St. António têm um efeito semelhante para aqueles que extorquem o que não lhes pertence, abaulando-os de forma que se transformem e se arrependam. A descarga elétrica simboliza a palavra de Deus que deveria abalar a consciência dos Homens. ✓
O quatro-olhos – Devido á sua anatomia, o quatro-
olhos, consegue ter uma visão do céu e da terra e assim proteger-se de outros peixes, mas também de aves. o Analogia: Existe aqui uma relação entre a forma como o peixe olha tanto para cima e para baixo e entre a consciência que o ser humano tem de ter acerca do Céu, mas também do Inferno. Os cristãos teriam de olhar para o Céu, mas sempre com noção que existe o Inferno.
Repreensões em geral – Capítulo IV
Novamente procede-se a uma exposição de repreensões aos peixes como modo de voltar a criticar os humanos. As repreensões prendem-se com dois principais aspetos: I.
Os peixes comem-se uns aos outros, os grandes comem os pequenos
Existem uma crítica à opressão dos mais pequenos, pois os grandes “se alimentam do sacrifício dos mais pequenos tal como os peixes". A apreensão é transposta para os humanos: Também os homens se “comem” uns aos outros, os mais poderosos exploram os mais fracos e esta situação agrava-se quando em ambiente de sociedade; “Comem-nos os herdeiros (…) enfim, ainda o podre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra”. •
•
um apelo generalizado de Vieira a todos os peixes de forma que não se Existe comam e não sigam o exemplo humano. Dá o exemplo do episódio da Arca de Noé como atitude de benevolência e tolerância que os animais deveriam seguir para sobreviver. Num tom final, repreende ainda os peixes por se deixarem enganar por um
•
mísero “retalho de pano” quando são pescados, demonstrando ignorância e
cegueira – exemplificando a situação dos homens do Maranhão3 que se endividaram perdendo tudo o que ganharam num ano.
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Os homens do Maranhão viveram no Brasil, na mesma colónia em que Vieira viveu durante alguns anos.
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Sermão de Santo António António | | Rúben Inocêncio II.
Os peixes são ignorantes e cegos
Os peixes são facilmente enganados e por isso são punidos com a morte. São ignorantes por não saberem o significado do isco que lhes lançam e são completamente cegos porque se atiram sem hesitar e ficam presos. Esta crítica aparece invariavelmente i nvariavelmente associada aos homens do Maranhão, utilizando-os como meio de comparação com os peixes: os homens “bonitos, ou os que o querem parecer” não
são diferentes dos peixes pois são levados pela aparência e vaidade das coisas, ficam então
“engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, de uma safra para outra safra, e lá vai uma vida” à semelhança dos peixes.
Santo António surge sempre como exemplo a seguir, pois este “pescou muitos homens”, mas para um percurso de vida mais estável e digno.
Repreensões em particular – Capítulo V
Procede-se então a uma confirmação dos factos relatados anteriormente, utilizando exemplos concretos de peixes com defeitos que se assemelham à realidade humana:
✓
– forte, como se de uma autopromoção à procura de
O Roncador Peixe pequeno que emite um som bastante atenção se tratasse; “quem tem muita m uita espada, tem pouca língua”. língua”.
Analogia: Santo António, apesar de ser um mítico
o
símbolo e um exemplo, nunca se “gabou” nem se
vangloriou de forma vaidosa da sua condição e capacidade. ✓
O Pegador – É um peixe parasita que se apega ao seu
hospedeiro e se aproveita inteiramente do mesmo. o Analogia: Crítica ao sistema colonial português, pela forma como os governadores nunca partem para conquistas ou conflitos sem uma larga comitiva. Os preguiçosos acabam como o pegador, quando o hospedeiro é “pescado” o parasita é
arrastado sem qualquer forma de defesa. ✓
O Voador – Morfologicamente, o voador possui barbatanas
maiores que a maioria conferindo a possibilidade de voar curtas distâncias em saltos emersos imitando as aves. o Analogia: Aqui existe uma crítica à ganância e ambição que, tal como o voador, os humanos têm e em relação à inconformidade em relação àquilo que têm. Querem sempre mais e mais, isso leva a que muitos sejam apanhados pelas redes, não se contentando com o que têm. 6
Sermão de Santo António António | | Rúben Inocêncio ✓
O Polvo – Não existe apenas uma abordagem negativa em
relação ao polvo, é visto como o culminar de imensos aspetos negativos: aparenta santidade, beleza, uma certa mansidão; no entanto, não passa de hipocrisia e dissimulação. É um animal de pura aparência e traição, utiliza-a para seu proveito de predação. o Analogia: A relação entre as características do polvo eSanto de um homem são e justas. António, pelocorrupto contrário, c ontrário, foiclaras “o mais puro exemplar da candura, sinceridade, e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano”.
Peroração e Conclusão Esta partepara da obra é composta pelo último capítulo (capítulo VI) e utiliza um desfecho forteúltima e emotivo impressionar a audiência. Padre António Vieira compara o modo como os peixes chegam a Deus, comparando-os a outros animais. Enquanto os outros animais chegam vivos ao sacrifício os peixes geralmente já chegam mortos. Ainda existe uma comparação entre os peixes e o orador, feita pelo mesmo: ✓
Embora os peixes sejam irracionais, não ofendem Deus tal como Vieira ofende, e anda cumprem a missão que Ele lhes deu, enquanto o orador não cumpriu: “Eu espero que O hei de ver (…) não cesso de O ofender (…) Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes”
✓
Realiza um hino de louvor: “Louvai, peixes a Deus”, pois Deus fê-los numerosos, belos
e diversos; porque na água vivem v ivem e multiplicam-se e porque ainda escolheram os pescadores (Apóstolos) para com Ele privarem. ✓
Como os peixes não são capazes de Glória nem de Graça, Vieira acaba o sermão num tom irónico dizendo: “Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória”.
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Sermão de Santo António António | | Rúben Inocêncio
3 Discurso Figurativo Para conferir vivacidade e para tornar o Sermão cativante e persuasivo, António Vieira, utiliza vários recursos expressivos, entre tantos salientarei os fundamentais: ✓
Alegoria: Expressão de uma ideia abstrata através da sua materialização. Os peixes, no Sermão de Santo António, representam os vícios e as virtudes o dos seres humanos.
✓
Metáfora: Aproximação de duas realidades que, à partida, não representam de semelhança evidentes entre si. “No mar pescam as canas, na terra, pescam as varas (…), pescam as bengalas, o pescam os bastões e até os cetros pescam, e pe pescam scam mais que todos, porque pescam cidades e reinos i nteiros.” nteiros.”
✓
Comparação: Relação de semelhança estabelecida pela conjunção “como”, por expressões equivalentes ou por verbos. o “E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos v os está ouvi las vivos, que experimentá-las experimentá-las depois de mortos.”
4 Glossário (1)” (1)” sertões” sertões” – Floresta Floresta no interior de um continente, longe da costa. (2)” herege” herege” - Quem segue religião diferente da católica. (3)” (3)” oratória” oratória” – Arte Arte da eloquência. Arte de bem falar. Convencer, comover. (4)”conceito predicável” – texto bíblico que serve de tema e que irá ser desenvolvido de acordo com a intenção e objetivo do autor (5)”obstinação” – Qualidade Qualidade de quem é firme ou constante numa ideia ou na procura de algo. Teimosia.
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