Senhorio e feudalidade na Idade Média - Guy Fourquin - completo

March 18, 2021 | Author: Anonymous | Category: N/A
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SENHORIO

E

FEUDALIDADE

NA

IDADE

MÉDIA

Guy Fourquin Edições Setenta

Digitalização Agostinho Costa Arranjo Fátima Vieira

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Fabricador de instrumentos de trabalho, de habitações, de culturas e sociedades, o homem é também agente transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na história da história na vida do homem? LUGAR DA HISTORIA 1. A NOVA HISTORIA Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie, Georges Duby e outros 2. PARA UMA HISTORIA ANTROPOLÓGICA W. G. L. Randles, Nathan Wachtel e outros 3. A CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTORIA Helmut Pleischer SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MÉDIA Guy Fourquin 5. EXPLICAR O FASCISMO Renzo de Fellce 6. A SOCIEDADE FEUDAL Marc Bloch A publicar HISTORIA DO CRISTIANISMO Ambrogio Donini O FIM DO MUNDO ANTIGO E O PRINCIPIO DA IDADE MÉDIA Ferdinand Lot A CIVILIZAÇÃO CHINESA Mareei Granet

SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MÉDIA

À memória de Charles-Edmond Perrin, que, em 16 de Março de 1970, tinha escrito ao autor: «A sua obra dá-me a ocasião de saudar, de passagem, alguns elementos do meu ensino, mas tão judiciosamente apresentados e interpretados, que adquirem um carácter de novidade, o que não me

impede de murmurar a consolação dos velhos: Non omnino moriar...»

Paginação - Rodapé Índice - No final

INTRODUÇÃO O termo feudalidade «presta-se a confusão». É que, se o adjectivo feodalis foi utilizado na Idade Média, o substantivo só veio a ser criado quando a feudalidade se aproximava da morte, portanto para o fim dos Tempos Modernos. E os historiadores servem-se deste termo, que afinal é anacrónico para os medievalistas, em dois sentidos diferentes. Em primeiro lugar, pode entender-se por feudalidade um tipo de sociedade baseado numa organização muito particular das relações entre os homens: laços de dependência de homem para homem estabelecendo uma hierarquia entre os indivíduos. Um homem, o vassalo, confia-se a outro homem, que escolhe para seu amo, e que aceita esta entrega voluntária. O vassalo deve ao amo fidelidade, conselho, ajuda militar e material. O amo, o senhor, deve ao seu vassalo fidelidade, protecção, sustento. O sustento pode ser assegurado de diversas maneiras. Geralmente faz-se através da concessão ao vassalo duma terra, o benefício ou feudo. Assim, muito rapidamente, à hierarquia entre os indivíduos corresponde uma outra hierarquia, a dos direitos sobre a terra, devida a uma «fragmentação extrema dos direitos de propriedade». Por último, dada a fragmentação do próprio poder público, existe em cada país uma hierarquia de instâncias autónomas que exercem em proveito próprio poderes normalmente detidos pelo Estado. Por vezes qualifica-se este tipo de sociedade de «regime feudal», mas Jean Calmette e Marc Bloch preferiram, para este primeiro sentido, substituir feudalidade por «sociedade feudal». O que permite, então, reservar a palavra feudalidade /; para uma segunda acepção é um conjunto de instituições. Enquanto o primeiro sentido tinha sobretudo um alcance social e mesmo político, o segundo é antes de mais jurídico, sendo o que F.-L. Ganshof utiliza no seu belo livro precisamente intitulado Quest-ce que la féoda-lité?. Mas ambos os sentidos estão intimamente ligados entre si: feudal, feudalidade, derivam de feudo. Georges Duby observa que o feudo é «apenas uma das articulações» do sistema feudal. Todavia, como escreve F.-L. Ganshof, ele é, «senão a trave mestra, pelo menos o elemento mais saliente na hierarquia dos direitos sobre a terra» que a sociedade feudal comporta. Esta palavra feudalidade sobrevive enquanto invectiva. Ainda hoje se criticam as «feudalidades» políticas, administrativas, económicas, etc. Aviltou-se sob este rótulo tudo o que caracterizava o Antigo Regime, e foi assim que na noite de 4 de Agosto de 1789 se aboliram pretensamente os direitos «feudais», enquanto o decreto de 11 de Agosto suprimia «inteiramente o regime feudal». Durante muito tempo, a invectiva conteve dois sentidos misturados. Por um lado, a equivalência entre monarquia absoluta e feudalidade, o que é nítido sobretudo nas obras de Proudhon: mas não é o absolutismo a antítese dum sistema caracterizado na sua maior parte pela desagregação do Estado? Por outro lado, confundia-se feudalidade e senhorio: consideravam-se como equivalentes feudalidade e nobreza, e acontece que esta tirava a sua força, em princípio, da posse de terras, designadas senhorios. Pensando nos seus

antepassados, o grande domínio e a villa, o senhorio pode parecer uma «organização mais do que milenária que permitia aos grandes possuidores fundiários exigir dos seus tenanciers ^) tributos e serviços». Na medida em que o grande proprietário, o grande senhor, não tinha —ou já não tinha — C) Tenancier é aquele que detém uma tenure, i. e., que cultiva uma terra dependente dum feudo mediante pagamento ao senhor de diversas prestações e tributos). A dependência do cultivador em relação ao senhor é constitutiva da qualidade do tenancier em terminologia medieval francesa). As formas e o conteúdo dessa dependência eram múltiplas: o termo francês, não designando nenhuma em especial, tem a vantagem da generalidade que nenhum termo português aproximadamente equivalente oferece. Com efeito, qualquer das traduções possíveis — colono, malado, foreiro, etc.— possui um sentido mais restrito, designando uma forma específica de dependência. Daí termos optado por manter o termo francês na falta de equivalente rigoroso em português. N. T.) 12 direito de justiça, isso já nada tinha a ver com a decomposição do Estado. Se, em 1789, a feudalidade se encontrava moribunda, o senhorio rural mantinha-se bem vivo, mas a Revolução matou-o ao abolir os direitos «feudais», que eram quase todos direitos senhoriais. A antiga confusão entre feudalidade e senhorio não provém apenas do facto de a nobreza participar dos vestígios de feudalidade e possuir, ainda no século XVIII, um grande número de senhorios rurais. Ela explica-se também porque em certas regiões oeste e sudoeste da França, Inglaterra) tinha havido sempre confusão da linguagem, e os mesmos termos tinham duas utilizações: por exemplo, feudo tanto designava as tenures O vassálicas como camponesas. Por conseguinte, nada há de surpreendente em que um bordelês, Montesquieu, confunda facilmente feudalidade e sistema senhorial. O que não obsta a que para este grande espírito a feudalidade fosse efectivamente uma fase da história humana caracterizada pelo fraccionamento dos poderes que o Estado deve normalmente exercer. Em contrapartida, o marxismo confundiu feudalidade e senhorio por outras razões. A «feudalidade» seria muito menos uma forma de regime político do que um tipo de organização da economia e da sociedade, intercalando-se entre o esclavagismo antigo e o capitalismo. Neste sistema, o essencial é evidentemente a infra-estrutura, cuja característica principal consiste na subordinação das massas rurais aos «senhores», que se apoderaram duma parte do trabalho dos seus dependentes ao mesmo tempo que das terras. Mas isso é precisamente o senhorio e não a feudalidade, dado que esta em nada é um modo de produção. Para os marxistas, a «feudalidade» durou um milénio, quando, na verdade, a verdadeira feudalidade apenas durou cerca de três séculos. O carácter particularmente tenaz da confusão entre ambos os termos, confusão que renasce constantemente, tem um lado positivo porque adverte contra a tentação de estudar separadamente feudalidade e senhorio, o que não é desejável, uma vez que o feudo era ao mesmo tempo um ou vários senhorios. Seria preferível ver como senhoC) Tenure é a terra concedida por um senhor a um camponês ou a um vassalo. Como o próprio livro ilustra, as modalidades de tenures eram as mais diversas. Pela mesma ordem de razões apontadas na N. T. n." 1, optámos por manter o termo francês. N. T.) 13 rio e feudalidade puderam reagir um sobre o outro, sem perder de vista que o senhorio, na condição de tornar este termo extensivo ao grande

domínio da primeira Idade Média, durou bem mais de um milénio. Organismo anterior, pela maioria das suas características, à feudalidade, poder-se-ia estudar o senhorio sem evocar grande coisa das instituições feudais, mas o inverso seria bem mais difícil. Há duas atitudes possíveis para fazer o exame da feudalidade sem nos limitarmos ao seu aspecto jurídico, e da escolha depende o lugar a tomar pelo senhorio. Se se colocar a ênfase sobre os laços de dependência de homem para homem, o estudo do senhorio ficará reduzido ao mínimo. Assim fez Marc Bloch no seu admirável livro A Sociedade Feudal. E a sua conclusão era brutal: «O senhorio, em si mesmo, a nenhum título deverá tomar lugar no cortejo das instituições a que chamamos feudais.» Porquê? Porque o grande domínio, seu antepassado, «coexistira anteriormente com um Estado mais forte, com relações de clientela mais raras e menos estáveis, com uma maior circulação do dinheiro». E, sem dúvida também, porque ele voltaria a coexistir com tudo isto muito antes do fim da Idade Média. Em contrapartida — e é a segunda atitude possível —, se, sem minimizar o poder dos laços de homem para homem em todos os escalões da hierarquia social, se quiser acentuar os aspectos económicos, o feudo, portanto o senhorio rural, não é uma simples articulação, ainda que importante, mas sim a trave mestra de todo o sistema. Dos rendimentos do senhorio vive toda a sociedade feudal, do não livre ao senhor feudal. O que este retira em serviços e dinheiro do seu vassalo — ele próprio senhor rural— já não é concebível sem o suporte da terra, a qual muitas vezes é simultaneamente senhorio rural e feudo. Nós adoptaremos esta segunda atitude, que permite ligar melhor o estudo do senhorio e da feudalidade. A pequena dimensão deste livro obrigou-nos a evocar apenas o contexto político, religioso, mental, económico. E foi preciso limitar o estudo simultaneamente no tempo e no espaço. O que havíamos escrito sobre a villa e a vassalagem merovíngias e carolíngias até meados do século IX) não ocupou mais lugar nesta edição do que na primeira, nem mais, de resto, do que na tradução inglesa hoje publicada. Pela mesma razão, o trabalho teve de centrar-se, mais do que seria desejável, sobre o 14 sector entre o Loire e o Reno, onde, é certo, o senhorio e a feudalidade, tal como a villa e a vassalagem, nasceram e revestiram os aspectos mais clássicos. Da imensa bibliografia retenhamos apenas, pela força das circunstâncias, as obras mais importantes ou mais recentes. PRIMEIRA PARTE EM DIRECÇÃO AO SENHORIO E À FEUDALIDADE de meados do séc. IX aos anos mil) I CAPÍTULO I MUTAÇÃO OU EVOLUÇÃO? 1. O deperecimento do Estado A formação da sociedade vassálica carolíngia foi um fenómeno espontâneo, ignorando os «quadros» políticos, mas que estes não podiam ignorar. Ora, as consequências, nem sequer distantes, deste fenómeno não deixam dúvidas: a vassalagem conduziu à desagregação do Império e do «Estado» carolíngios. À primeira vista poder-se-ia pensar que os primeiros Carolíngios tivessem encarado esta transformação social com grande desconfiança. Na verdade, sem dúvida desde Pepino, o Breve, seguramente desde Carlos Magno, os soberanos favoreceram conscientemente a vassalagem. A) Os Carolíngios e as relações vassálicas

Longe de tentarem contrariar a evolução social —o que, de resto, era praticamente impossível —, Pepino e os seus sucessores favoreceram-na. E integraram mesmo a vassalagem no quadro dos organismos de «Estado». Os laços vassálicos eram apenas laços privados que os representantes régios, por conseguinte, teriam podido ignorar no exercício das suas funções. Ora, pelo menos desde o reinado de Carlos Magno, os reis quiseram fazer da vassalagem um instrumento de governo *). *) GANSHOF F.-L.), Lorigine des rapports féodo-vassaliques «I problemi delia Cività Carolíngia», Ia Settimana di Studio dei Centro ital. di studi sulValto medioevo, Espoleto, 1954, p. 27-69. P. 71-157: extensão à Itália por P. S. Leicht, e à Espanha por 21 Porquê esta utilização sistemática das relações de vassalagem, a não ser devido à própria insuficiência e ineficácia dos quadros do «Estado»? Na sequência das guerras de Pepino e de Carlos Magno, o reino franco «dilatou-se». Como os meios de comunicação eram muito medíocres, o Ocidente carolíngio representava, à nossa escala, um continente. Impossível, pois, recrutar pessoal em número bastante, suficientemente competente o Renascimento das Letras seria lento e limitado) e suficientemente seguro quanto mais não fosse devido às distâncias e à presença da aristocracia). Tanto mais que os recursos da realeza continuavam irregulares e limitados. Carlos Magno e os seus herdeiros apenas podiam controlar um pequeno número dos seus súbditos. Só lhes restava agarrarem-se o melhor possível a esta minoria, representada pela aristocracia. O que correspondia à mentalidade da época. O rei partilha o estado de espírito dos grandes, para quem os agricultores não merecem interesse, quer se trate de não-livres quer mesmo de «francos». De resto, os não-livres apenas dependem, salvo muito raras excepções, dos seus amos, e o mesmo acontece com os colonos livres, sobretudo se o respectivo dominus gozar de imunidade. Os campónios só interessam C. E. Albornoz); Les relations féodo-vassaliques aux temps postcarolingiens lia Settimana..., Espoleto, 1955, p. 67-114); Uéchec de Charlemagne C. R. de VAcad. des Inscript. et Belles-Lettres, 1947, p. 251); Limmunité dans la monarchie franque Rec. Soe. Jean-Bodin, t. I=^ p. 171-216). DÊLÉAGE A.), La vie rurale en Bour-gogne jusquau début du XI siècle, Paris, 1941. —DHONDT J.), Etude sur la naissance des principautés territoriales en France IX-X s.), Bruges, 1948. — LEMARIGNIER J. F.), Les fidèles du rol de France, 936-987 Rec. Clóvis Brunei, 1955, t. H, p. 138-162); De rimmunité à la seigneurie ecclésiastique... 977-1108) in Etudes dédiées à G. Le Bros, p. 619-630. — PLATELLE H.), La justice seigneuriale de Saint-Amand, Louvain, 1965. — VERRIEST L.), Institutions médiévales, Mons-Frameries, 1946. — Sobre a nobreza: DUBY G.), Une enquête à poursuivre: la noblesse dans la France médiévale {Revue Hist., 1961, p. 1-22). —GENICOT L.), La noblesse... dans Tancienne «Francie», continuité, rupture ou évolution? {Comparative Stud. in Soe. and Hist., vol. 5, n.° 1, 1962, p. 5259); La noblesse... dans rancienne «Francie» Annales E.S.C., 1962, p. 1-22); La noblesse dans la société médiévale... Le Moyen Age, 1965, p. 539-560); Naissance, fonction et richesse...; le cas de la noblesse du nord-ouest du continent Probl. de stratif. sociale, 1966, p. 83-100). — PERROY E), La noblesse des Pays-Bas Revue du Nord, 1961, p. 53-59). — DUBY G.), Lignage, noblesse et chevalerie au XIP siècle dans la région mâconnaise Annales E.S.C., 1972, p. 802-823). 22 ao soberano como fonte de receita fiscal. Este acha por bem governar os grupos de camponeses por interposta pessoa, por outras palavras, pelos

grandes proprietários fundiários. Um só estrato social tem pois importância para o rei, a aristocracia fundiária. E ele julgou que, ligando-a solidamente a si, dominaria, com ela e por intermédio dela, o Ocidente inteiro. Faltava ainda impor a autoridade real ao conjunto deste estrato, utilizando de duas maneiras o laço de vassalagem. Em primeiro lugar, multiplicando na medida do possível o número dos vassalos directos do rei, aos quais seriam concedidos benefícios importantes e privilégios. Depois, pressionando os outros aristocratas — portanto os proprietários fundiários médios ou modestos — a entrar na vassalagem dos vassalos reais ou vassi dominici. A sociedade aristocrática ficaria assim enquadrada numa hierarquia de três níveis o rei, os vassi dominici, os vassalos destes), ligando-se estes níveis uns aos outros «por cadeias de juramentos de que o soberano detinha uma ponta, e que esperava utilizar para aumentar o controlo sobre os seus súbditos» E. Perroy), na impossibilidade de poder retirar um efeito prático dos juramentos de fidelidade exigidos em diversas ocasiões a todos os homens livres. Os progressos da vassalagem real explicam-se também por considerações militares. Carlos Magno e os seus primeiros sucessores alargaram «o recurso à vassalagem em matéria militar»: não só os seus exércitos eram formados por vassalos, como estes, com os seus próprios vassalos, tinham aumentado muito os efectivos e o valor das hostes, nomeadamente quando se encontravam estabelecidos em colónias, guarnições militares instaladas nas zonas fronteiriças e nos sectores mal dominados ou turbulentos, como a Aquitânia, a Baviera ou a Itália. Em matéria política e administrativa, a utilização da vassalagem foi igualmente considerável, mas muito perigosa. Desenvolvendo um costume criado no reinado de seu pai, Carlos Magno colocou sob a sua vassalagem, quando ainda o não estivessem, condes e prelados. Só sob Luís, o Pio, é que veio a generalizar-se completamente o costume de integrar as honores na vassalagem. Assim, em todo o território do Império de Carlos Magno, as funções públicas e as altas dignidades religiosas sofreram graves desvios. 23 Distingamos o caso dos leigos e dos clérigos. Enquanto vassus dominicus, o conde recebeu vastos benefícios. Enquanto conde, recebeu as res de comitatu *), terras da fazenda pública que constituíam a dotação da sua função enquanto esta durasse. Ainda em 817, um diploma de Luís, o Pio, relativo à dotação do conde de Tournai qualifica-a de ministerium e distingue-a dos beneficia que eram recebidos pelos vassalos reais. Mas deu-se, ao longo do século IX, uma espécie de fusão entre a honra e o benefício no seio do património do conde; daí a crescente dificuldade em deslocar ou destituir um conde, tanto mais que a honor, tal como o benefício, tornou-se rapidamente vitalícia e depois hereditária de facto. Em 877, em Quierzy, foram tomadas idênticas medidas provisionais para as honores de condes que ficassem vagas e para os benefícios de vassalos: a mesma hereditariedade de facto em ambos os casos, o filho sucedendo ao pai. Os cargos eclesiásticos conheceram a mesma evolução, salvo evidentemente no que diz respeito à hereditariedade, dado que, pelo menos desde Luís, o Pio, todos os bispos e alguns abades tiveram de entrar na vassalagem real: os prelados, cujas terras beneficiavam de imunidade, eram considerados como funcionários. Estado de coisas que se reflecte nos escritos de Hincmar, arcebispo de Reims, utilizando o mesmo termo de honores para designar as funções e dotações dos bispos, e mesmo os benefícios dos vassalos reais: a função episcopatus, abbatia) é assimilada ao benefício. Quanto à homenagem e ao juramento

do prelado, faziam-se como para os leigos: em 860, Hincmar protestou efectivamente contra o rito das mãos e o juramento — provavelmente sem sucesso —, mas não contra a regra da commendatio em si mesma. E o prelado entrava na posse do seu bispado ou da sua abadia segundo o rito da vestitio, e o objecto simbólico era neste caso o báculo. O modo como detinha os seus bens completava assim a aproximação do alto clero com a aristocracia laica, da qual, cada vez mais frequentemente, provinham os seus membros filhos mais novos de famílias poderosas). De livre vontade ou não, os Carolíngios instauraram uma política que se voltou quase imediatamente contra o poder real. Bispos e abades, para mais imunes, tiveram *) Ou comitatus, au ministerium, ou honor. Aqui, honor não designa apenas, como supra, a função pública, mas também a respectiva dotação. 24 cada vez mais liberdade de acção, mas não era isso o mais grave. Mais grave foi que os condes, longe de estarem mais submetidos, se libertaram da tutela real, perpetuando-se nas suas funções *). Quanto aos vassalos privados, cujo recrutamento os Carolíngios haviam tentado vigiar e que em princípio tinham o direito de apelar para o soberano contra o seu dominus, ficaram dependentes da suserania deste último em muito maior grau do que os primeiros Carolíngios teriam desejado. Resta o caso dos vassi dominici desprovidos de honores, portanto os médios e os pequenos. Como o rei está longe e se vai tornando fraco, mais vale ceder à pressão dum senhor poderoso da vizinhança, muito frequentemente o conde. Finalmente, cerca de 900, já só se encontrarão vassalos reais na região de residência do rei. O fracasso carolíngio terá sido verdadeiramente total? Não, e a vassalagem — que esteve longe de ser a única causa do declínio da dinastia— contribuirá largamente, a partir do século X e até ao tempo das «monarquias feudais», para a salvaguarda do princípio monárquico. B) Fragmentação do poder e tentativas de reagrupamento territorial Na França e na Alemanha, a ruína do «Estado» foi simultaneamente causa e consequência do que Marc Bloch chamou «um desmembramento dos poderes públicos em pequenos grupos de comando pessoal». Alguns condados acabaram por se dissolver e, em muitos casos, a unidade de base passou a ser o castelo e o que se chamará mais tarde a castelania. Houve um movimento de sentido inverso, uma «reunião dos poderes regionais nas mãos dum só homem». Estes dois movimentos contrários não foram coisa nova após o tratado de Verdun: desde a época merovíngia que se haviam feito e desfeito «principados», por exemplo na Austrásia e na Borgonha, sem falar da Aquitânia nem dos arremedos de ducados nacionais na Germânia *) Uma vez que se tornassem vassalos, os condes só obedeciam ao rei na medida em que este respeitasse os seus compromissos. Havendo homenagem, os deveres são recíprocos, por conseguinte o rei já não é obedecido pelos seus agentes enquanto soberano. Quanto mais fraco ele for, mais os seus agentes-vassalos podem impor-lhe compromissos pesados que arruinam mais ainda o seu poder. 25 cf. a Baviera de Tassilo), enquanto se desvaneceram unidades mais restritas. A novidade está em que diversas unidades regionais nascidas do declínio carolíngio iriam conservar por muito tempo a sua configuração geográfica. Não apenas na Germânia, onde os ducados, salvo na Lorena, eram nacionais, possuindo portanto um certo particularismo étnico, linguístico, jurídico, mas até mesmo em Itália e na Fr anciã. Alguns condados foram assim unidos sob a dominação dum mesmo aristocrata.

Foi na Francia Occidentalis, onde o particularismo era todavia menos acentuado do que na Alemanha e as divisões políticas de antiga data menos sentidas do que na Itália, que o apagamento do poder real foi mais grave e o nascimento de principados um fenómeno generalizado, ainda que, no conjunto, relativamente pouco preparado pelos tempos anteriores. O desaparecimento definitivo dos Carolíngios em 987 não se deveu nem ao acaso nem a má sorte: «O acesso ao trono dos Capetos não constitui uma ruptura; é a consagração duma realidade de facto.» J. Dhondt demonstrou irrefutavelmente que o apagamento do poder régio na França Ocidental proveio da «progressiva retracção geográfica e territorial do fisco». Como os primeiros Merovíngios, os primeiros Carolíngios tinham assentado o seu poderio num vasto domínio composto de grandes e numerosos fiscos disseminados por todo o país, fonte de grande riqueza, principal meio de subsistência para o Palácio, reserva de benefícios a criar para assegurar novas fidelidades ou consolidar antigas. Se os reis conseguiram, durante bastante tempo, assegurar um «equilíbrio» E. Perroy) entre o fisco = conjunto dos fiscos) e os domínios dos grandes, o mesmo já não aconteceu a partir de Luís, o Pio: o Império estava territorialmente estabilizado no momento em que as rivalidades entre filhos do rei, depois entre candidatos ao trono Robertianos contra Carolíngios), obrigavam a pagar cada vez mais cara a fidelidade cada vez mais vacilante dos grandes, incitados a «subir a parada» cada vez mais. O resultado era nítido no fim do século X: a fortuna fundiária carolíngia tinha vindo a reduzir-se progressivamente e o seu possuidor era rei já só de nome. Isto acontecia no momento em que se formavam principados, portanto territórios nos quais o soberano só podia intervir por intermédio do príncipe, ou seja, muito raramente e sem grande sucesso. Os Carolíngios 26 tinham-se apercebido do perigo e tentaram, mas sem grande esforço, constituir um principado para si mesmos. Em vão. A definitiva vitória dos Capetos, na pessoa de Hugo Capeto 987), deve ser posta em paralelo com a substituição dos Merovíngios por Pepino, o Antigo, e seus sucessores: estes eram ricos em terras e os últimos reis merovíngios já quase as não tinham. Hugo encontrava-se à cabeça dum grupo de condados homogéneos entre o Sena e o Loire médios, enquanto os últimos Carolíngios já só detinham o Laon e umas vinte propriedades do fisco ao longo do Aisne e do Oise. O ano 987 foi marcado pela vitória dos principados territoriais, pelo menos de um deles e do seu senhor. As atribuições militares, judiciais, económicas terrádigos, oficinas de cunhagem, etc), a protecção das igrejas, etc, em suma, as regalia, tal como a autoridade sobre a sociedade rural e vassálica, é o duque ou conde possuidor de um ou vários condados) que as exerce. E já não o rei. Por outras palavras, em finais do século X os primeiros Capetos já só são «duques no seu reino», sendo para eles a única base real de autoridade o seu próprio principado. Iniciado pouco depois de 850, o «movimento de usurpação» acelera-se fortemente no tempo de Eudes f 898). Foi a partir do fim do século IX que Balduíno II criou a Flandres, que Ricardo, o Justiceiro, edificou o ducado da Borgonha, que da «heteróclita amálgama» dos condados de Bernardo Plantevelue nasceram ao mesmo tempo o primeiro ducado da Aquitânia e a marca de Tolosa. Foi ainda por volta do ano de 900 que apareceram o principado neustriano dos Robertianos e a Normandia, sendo esta última uma «formação das mais originais», porque devida à ocupação da região pelos Vikings, antes que Carlos, o Simples, a cedesse, em

911, ao chefe Rolão. Se nem todos os poderes públicos no interior do principado estão ainda, a partir de 900, concentrados nas mãos do príncipe, este detém já a maior parte deles e não passará muito tempo até que se apodere do resto. Os principados da Francia occidentalis possuem três características principais: só alguns conservaram o quadro inicial; os seus contornos eram vagos e, se os seus chefes sempre cultivaram os particularismos regionais, nenhum deles conteve uma população verdadeiramente homogénea. No número dos principados com alguma coerência, que duma maneira geral conservariam os seus con27 tornos iniciais por vezes até 1789, pomos os ducados da Normandia e da Bretanha, até mesmo o domínio dos Robertianos, berço da futura Ilha-deFrança. «Colossos com pés de barro», como alguém escreveu, uma vez que os principados vieram a sofrer dos mesmos males que os reinos. Sim, mas na medida em que eram demasiado grandes e em que a circulação dos homens e das ordens se tornava aí particularmente difícil, na medida também em que os príncipes «não souberam impor regras sucessórias que refreassem a fragmentação». Foram pois vários os que, a partir do século X, se dividiram em unidades mais bem adaptadas às condições do tempo, tal como a Aquitânia. Impossível traçar um mapa de conjunto para este século X, de tal modo os contornos permaneciam fluidos. Cerca do ano mil, ainda então, o duque da Borgonha só exercerá poder efectivo no centro do seu ducado entre Autun, Avallon, Dijon e Beaune), enquanto os «condes periféricos» de Nevers a Lan-gres, de Troyes a Mâcon) apenas reconhecerão a sua autoridade por intermitência. No entanto, ducados e condados da França ocidental foram por vezes, apesar da sua fragilidade, votados a um longo futuro. E, contudo, a sua população nunca era perfeitamente homogénea. Nem os Borguinhões, nem os habitantes da Aquitânia, nem os da antiga Nêustria chegaram a estar todos reunidos num principado «nacional»: depois da estabilização dos anos mil, os ducados da Borgonha e da Aquitânia apenas viriam a incluir uma parte reduzida da Burgundia e da Aquitânia de outrora. O condado da Flandres reuniu Romanos e Alemães. O centro de gravidade da Bretanha, de maioria celta, ficou situado na franja ocidental do ducado, nas zonas romanas de Nantes e de Rennes. E, na Normandia, os verdadeiros «Normandos» —os Vikings— nunca passaram duma minoria. Na Germânia as coisas eram completamente diferentes. A morte de Luís, o Menino 911), os Alemães renunciaram a apelar para outro carolíngio, na pessoa de Carlos, o Simples, rei de Francia Occidentalis. A designação dum novo soberano chocou com o «particularismo dos grupos étnicos e políticos», o dos ducados nacionais Stammesherzogtum), que remontavam a um passado remoto e tinham sobrevivido à conquista merovíngia e carolíngia. Memórias, língua e costumes comuns — se bem que as antigas «leis» dos Alemães, Bávaros e Saxões) tivessem caído em desuso — davam a cada ducado uma 28 base possível para a sua unidade efectiva. Além disso, os Stammes da Baviera e da Alemanha tinham conservado os seus duques nacionais depois da entrada para o reino franco. Mas, no princípio do século X, embora cada Stamni ainda tenha um duque, este já não é um descendente da antiga dinastia: é o herdeiro dum funcionário nomeado por um dos primeiros carolíngios e que terminou por adoptar o título de dux. A fraqueza do poder real no fim do século IX, as incursões normandas, eslavas e húngaras, tiveram por efeito o renascimento do particularismo dos Stammes, que se colocaram sob a protecção do dux. Cerca de 900, quatro Stammes vieram assim a reconstituir-se: os ducados da Saxónia,

da Francónia, da Baviera e da Suábia. Além disso, a Lota-ríngia, desprovida de unidade étnica porque povoada de Romanos, Alemães, Prisões, etc, viu as peripécias que afectaram o seu destino dar nascimento a um particularismo lotaríngeo. Viria a formar, a partir de 925, o quinto ducado da Germânia. Dois destes ducados, a Francónia e a Saxónia, foram a partir de 911 os berços da realeza: mais cedo do que na Francia Occidentalis, os Carolíngios foram na Alemanha definitivamente suplantados pelos príncipes territoriais. Conrado I, rei em 911, era da Francónia. O seu sucessor foi o duque da Saxónia, Henrique I, cuja dinastia iria ocupar o trono até à sua extinção, em 1204. Vai então começar a reinar a grande dinastia dos Sálios, com Conrado II: os duques da Francónia pretendiam-se descendentes dos Francos Saltos, eles como os seus homens; daí lhes vinha glória, uma glória que os predestinava a retomar a obra carolíngia. A oposição entre os ducados foi mais acentuada do que em França por causa do seu particularismo, e viria a prolongar-se para lá da Idade Média. E a designação dum novo rei pressupunha o acordo entre os grupos nacionais, daí o ter-se mantido o princípio da eleição, enquanto em França este princípio cedeu rapidamente o lugar a uma hereditariedade de facto, depois de direito. Quanto aos grandes, deviam retirar do particularismo dos ducados «uma força excepcional» que faltou aos grandes de França e de Inglaterra na sua oposição aos soberanos. No entanto, sendo certo que sob Conrado I e Henrique I, portanto entre 911 e 936, as lutas contra os duques e depois as soluções conciliatórias a que se chegou enfraqueceram bastante a monar29 quia, ia efectuar-se um nítido restabelecimento do poder real sob Otão I, que soube mantê-los com a rédea presa, limitando os seus direitos e tratando-os como funcionários. Isto significava um retorno à regra carolíngia. Os duques são os vassalos do rei a partir do novo imperador, que os pode destituir e não reconhece, por princípio, ao filho o direito de suceder ao pai nos seus títulos e funções. Isto passava-se ainda à roda do ano mil. Mas por quanto tempo? Provisoriamente, por conseguinte, o rei da Germânia parece mais favorecido do que o rei da França Ocidental. Este, de resto, já nem se mostra em pessoa nas zonas afastadas da sua residência e, ao sul do Loire, a maioria dos príncipes já nem sequer lhe presta homenagem. Apenas ao norte do rio quase todos os príncipes se encomendaram ao rei, são os seus fiéis. Mas estes rompem e reconciliam-se com o soberano, assistindo ou não às sessões da sua Cúria, participando ou não nas suas expedições, conforme estejam ou não em estado de revolta, aquando dos tumultos ocasionados pela rivalidade entre Robertianos e Carolíngios. Em resumo, o número dos príncipes territoriais e dos condes efectivamente fiéis ao rei é pouco elevado, e varia ao sabor das desordens. O rei já não é mais do que um príncipe territorial — e só o é desde que seja Robertiano; no entanto, todos os condes, todos os príncipes, reconhecem, ao menos formalmente, a autoridade suprema do rei, nascida simultaneamente da sagração e da tradição, datando os seus actos pelo ano do seu reinado, chegando mesmo a apelar para ele em caso de perigo extremo cf. o caso de Borel, conde da marca de Espanha). Nisto reside uma esperança para o futuro. Esta esperança não existe de todo em Itália. O processo de fragmentação territorial foi acelerado pelas divisões políticas preexistentes. No Norte os bispos exercem o poder dos condes, criam para si mesmos principados eclesiásticos Bérgamo, Placência, Cremona, Parma, etc), fundam-se marquesados Frioul, Ivrée). O Estado da Igreja fica contido

entre o marquesado da Toscânia e os ducados lombardos ou bizantinos do Sul. A autoridade real apagou-se, já só intervém momentaneamente. Sendo exterior ao país, o seu futuro parece desesperado. 30 2. Da villa ao senhorio rural A evolução ou a mutação — as opiniões dividem-se — que levaram da villa ao senhorio é devida principalmente à transformação duma instituição antiga, a imunidade, e à apropriação pelos poderosos do direito de bannum. ^) Em que medida é que este processo modificou a vida dos camponeses? A) A imunidade Desde o fim dos tempos merovíngios, as propriedades da Igreja distinguiam-se das dos leigos por uma vantagem de que estes, mais cedo ou mais tarde, quererão beneficiar. Trata-se da imunidade, que os Carolíngios outorgaram com maior liberalidade ainda do que os seus antecessores. A origem da imunidade, que tem suscitado controvérsias, remonta ao Baixo Império. O fisco, portanto a fazenda do Estado, encontrava-se isento de todo o imposto directo ou indirecto, e os seus habitantes, os colonos, não pagavam a capitação. Sob os Merovíngios o domínio do Estado continuou a beneficiar de isenção fiscal, a que vinha juntar-se, como corolário, a isenção judicial: o administrador duma villa real cobrava dos habitantes todos os rendimentos reservados ao rei e exercia por delegação os poderes de justiça. Assim, os habitantes, subtraídos aos tribunais públicos, ficavam unicamente submetidos aos poderes de coacção do administrador. Desde que o rei alienasse uma parte do fisco, esta perdia logicamente o privilégio de imunidade. Mas, talvez desde o século VI, considerou-se que o laço entre domínio estatal e imunidade era indissolúvel, uma vez que esta última se encontrava ligada àquele para sempre: alienando a terra, o rei, ipso facto, alienava o privilégio. As consequências desta indissolubilidade serão imensas, a prazo, para a transformação da villa em senhorio. Ao longo dos séculos VI e VII, os reis esbanjaram o seu imenso capital fundiário mais vasto do que o dos C) O droit de ban consiste num poder geral de comandar, coagir e punir os homens livres. Significa um conjunto de prerrogativas dos senhores feudais. Em português apenas existem o substantivo e o adjectivo derivados, banalidade e banal. imperadores, porque acrescido de espoliação e de conquistas), sobretudo em benefício da Igreja, a tal ponto que Carlos Martel, em muitos casos, não fará mais do que recuperar doações que lhe tinham sido efectuadas pelos Merovíngios. Assim, no conjunto, os bens temporais dos episcopados e abadias, constituídos em larga medida sob os reis bárbaros, provêm de terras de fisco e gozam, salvo reserva expressa, de imunidade. E, a pretexto de simplificar a sua própria administração, os detentores de villae imunes, clérigos na maioria, obtiveram a extensão do privilégio a todos os seus outros bens: vários diplomas e fórmulas concedem assim a imunidade ao conjunto desta ou daquela propriedade da Igreja. Por fim, última transformação importante da imunidade anterior aos Carolíngios, o acessório o judicial) tornou-se o essencial, dado que a fiscalidade se diluiu ainda mais depressa do que o Estado: «Não há imunidade sem exclusão dos juizes régios» Fustel de Coulanges). Estes deixam de poder advogar as suas causas, condenar, apreender, prender, e de beneficiar do direito de pousada no território colocado desta forma à margem das instituições públicas. A vantagem material para o senhor imune é apreciável; recebe os lucros da justiça, devendo

apenas, mas nem sempre, contribuir com uma parte das multas para o soberano. A justiça começa a proporcionar aos proprietários de villae belos lucros, e estes, sem dúvida alguma, representam já uma percentagem importante dos rendimentos «dominiais». No que respeita à imunidade, a época carolíngia teve menos influência do que a sua predecessora. Não se modificando daí em diante, as novas características da imunidade não fizeram mais que acentuar-se. Mas foi então que ela se generalizou: proliferam diplomas de concessão, e não apenas de confirmação, a tal ponto que quase todas as terras eclesiásticas dela beneficiam. Mas deixa de haver concessão de imunidade a leigos —coisa que sempre fora rara —, o que significa que a imunidade é de então em diante o regime normal dos bens da Igreja, e só deles. O conde e os seus subordinados vêem vedar-se-lhes os bens temporais de bispados e abadias, e quase todos os seus poderes, até mesmo no que respeita ao recrutamento de contingentes militares, passam para os prelados, únicos representantes do rei nos seus imensos e numerosos domínios. Financeiramente, a isenção — immunis significa isento— é tão completa como no plano militar: a todos 32 os seus vassalos e tenanciers o prelado cobra, por conta do rei, os terrádigos, as contribuições ligadas quer ao exército o hostilicium, taxa de substituição do serviço militar), quer às incursões normandas os Carolíngios lançaram impostos para pagar os tributos aos invasores), quer ao exercício da justiça o senhor imune deve pagar ao rei um terço das multas). Mas, no plano judicial, a imunidade não é completa. O prelado e o conde partilham entre si o poder de julgar e condenar, tendo Carlos Magno provavelmente assegurado que este último continuasse a exercer uma parte da autoridade. Distinguem-se em matéria penal as causae minores delitos), que não são passíveis de multa igual a 60 s. e relevam do tribunal do senhor imune e já não do centurião, subordinado do conde), e as causae majores. Trata-se dos delitos mais graves e dos crimes passíveis da multa de 60 s. reservada ao bannum dominicum), de prisão, de penas corporais, inclusive a morte. O tribunal do conde permanece o único competente, e o senhor imune tem o dever de lhe submeter os delinquentes, sob pena de pesadas sanções, que podem ir até à confiscação ou à deposição. Os efeitos da imunidade foram imensos, e não só nas terras da Igreja. Mas não os esperados pelos soberanos, que julgavam ter criado uma ligação imediata com os territórios imunes e consolidado o seu próprio poder enfraquecendo os condes, colocados, por esta forma, em oposição aos senhores imunes. Porque a fidelidade dos condes era bem mais aleatória do que a dos prelados, nomeados pelo rei e cuja dedicação era mais fácil de assegurar. Mas os Carolíngios tinham-se iludido e o controlo real sobre os domínios imunes ia diminuir rapidamente. E isso por culpa dos reis, de Carlos Magno em primeiro lugar, que outorgaram novos privilégios às igrejas, financeiros o rei abdica da sua parte das multas, isenção do terrádigo para o prelado e sua família, até mesmo abandono completo do terrádigo a favor deste último) e também militares limitação do contingente a fornecer ao exército). Daí a cobiça dos leigos, nomeadamente dos condes. Contra ela, contra a rebelião eventual de senhores imunes, os Carolíngios promulgaram pesadas penas. Facto significativo: os soberanos renderam-se depressa à evidência, os seus cálculos tinham falhado. Até mais ainda do que parece. As terras imunes não permaneceram por muito tempo em ligação imediata 33

com o rei, e uma nova barreira ia rapidamente interpor-se entre o rei e os seus súbditos das terras eclesiásticas. O senhor imune, na verdade, viu-se na obrigação de criar um embrião de administração, recrutando cobradores de terrádigos, juizes, etc, escolhidos muitas vezes de entre os clérigos que o rodeavam. Mas os homens da Igreja não podiam exercer a justiça de sangue em caso de flagrante delito) nem conduzir um contingente à guerra. Tornou-se pois necessário delegar estas funções laicas num subordinado, escolhido entre os membros da aristocracia local. Desde o princípio do século IX, designou-se este leigo de advogado advocatus) ou vidama vice-domi-nus); sendo este último título reservado aos domínios episcopais. Havia duas maneiras possíveis de lhe retribuir os serviços: entregando-lhe uma parte dos lucros cedidos pelo rei ao senhor imune ou, então, concedendo-lhe em benefício villae da Igreja, ou, ainda, acumulando estes dois processos. Tendo quase as mesmas funções que o conde, o advogado em breve se revelou tão rebelde em relação ao prelado quanto o conde em relação ao rei. Tal como o conde foi roendo o poder real, o advogado consolidou rapidamente o seu controlo sobre uma parte dos bens da igreja. Eis aqui, a curto prazo, graves ameaças para os domínios eclesiásticos. De intermediários entre o «Estado» e o território imune, os advogados iriam transformar-se, a partir do século X, em «protectores necessários e incómodos». Os documentos, raros no século X, abundam no século seguinte. Então, a função do advogado apresenta características «radicalmente diferentes» das do século IX. Estas características, que muito provavelmente se afirmaram antes do ano mil, mostram que a função do advogado carolíngio se transformou, no intervalo, em algo de completamente novo Ch.-Ed. Perrin). A função é menos gratuita do que nunca. No século IX, o advogado recebia um beneficium vitalício como prémio pelos seus serviços. Com os tempos, este benefício transformou-se em feudo, de facto hereditário e alienável, uma vez que é no seu benefício que o advogado «talha os feudos que concede aos subadvogados». O feudo do advogado é dum tipo muito particular dado que cria obrigações «puramente unilaterais», consistindo na protecção do senhor pelo vassalo, sem reciprocidade. Contrariamente aos seus predecessores da época carolíngia, o advogado cobra um direito de hospitalitas de cada vez que penetra em território imune para o exercí34 cio das suas funções e, quando preside aos «julgamentos senhoriais» três vezes por ano, em geral), recebe uma parte das multas. Encontramonos na época obscura do nascimento das justiças privadas, mas é um dado certo que alguns senhores imunes, não contentes em julgar as causae minores, se tinham apoderado das causae majores, em detrimento dos condes. Multiplicaram-se assim as causas julgadas nos «tribunais senhoriais», mas o aumento dos rendimentos derivado do maior número de multas não beneficiou os religiosos. Os seus advogados foram os únicos que lucraram com isso, eles que tinham abandonado as causas de baixa justiça aos agentes dos clérigos que tomavam parte nos julgamentos ordinários, de importância diminuta. Muitos bispados puderam resistir à «pressão dos advogados». Mas muito poucas abadias. E esta função representava um encargo muito pesado: a troco da sua protecção, os advogados impuseram «exacções» aos homens da abadia, a tal ponto que houve tendência para «substituir o senhorio das abadias pelos dos advogados». Daí, em finais do século XI, aquando da reforma gregoriana, a vigorosa acção dos monges para limitar todas as «exacções» dos advogados. Da geografia da função juiz-delegado avouerie) ainda só ressaltam os

traços essenciais. Duma maneira geral, esta teria tido tendência a prosperar, no século X e mais tarde, nas regiões onde o poder do rei ou do príncipe era fraco, mas nem sempre foi este o caso. É verdade que a função do advogado pós-carolíngio não pôde desenvolver-se na Normandia, uma vez que o próprio duque exercia a protecção das igrejas. Em França, o novo advogado —ou advogado senhorial, como o designou Ch.-Ed. Perrin — só sucedeu ao carolíngio a leste duma linha unindo os limites orientais da Normandia, Chartres, Orléans, Bour-ges e Lyon; ora, coexistiam aí príncipes fortes e príncipes fracos. Coisa mais estranha: no Sul da França, frequentemente anárquico, a função manteve-se sob a sua forma carolíngia, portanto «humilde», desempenhando o seu titular apenas um modesto papel de representante do senhor imune em matéria judicial. De qualquer maneira, a monarquia capeta retomará forças no século XII e vai absorver esta função, que desaparecerá, em muitos casos, antes de 1200: de ora em diante é o rei quem assegurará a guarda das igrejas. Mas, no Império, a situação devia evoluir em sentido mais ou menos contrário. Durante toda a primeira Idade Média o rei da Germânia tinha 35 sido suficientemente forte para assegurar a protecção das casas religiosas e impedir que o poder dos advogados se alargasse. Este advogado «carolíngio» devia ter aí uma vida mais longa do que noutros lados, uma vez que só desaparecerá no limiar da época revolucionária. Colocam-se a imunidade c esta função do advogado à cabeça das causas que provocaram a passagem da villa ao senhorio rural principalmente porque a extensão da imunidade às villae possuídas por leigos tinha assumido grandes proporções através dos tempos. Se bem que só se tenha conservado um diploma de imunidade passado em favor dum leigo 888), não há dúvida de que, dentro dos limites das suas possessões, os leigos exerceram uma jurisdição análoga à dos clérigos nos seus territórios imunes: nas capitulares de Pitres 864), Carlos, o Calvo coloca no mesmo plano o domínio imune e o dum potens leigo, o que significa que então todo o potens leigo era assimilado, do ponto de vista da imunidade, ao potens eclesiástico. Assim, os leigos gozaram, nas suas terras, duma imunidade de facto, tolerada ou suportada pelo rei. Tolerada, a princípio: o conde estendeu aos seus próprios alódios os direitos que exercia nos limites do seu condado; muitos leigos edificaram toda ou parte da sua fortuna com benefícios retirados dos domínios públicos ou eclesiásticos, e estas terras continuaram a beneficiar da sua anterior imunidade. Suportada, depois: foi certamente por usurpação, sem a menor aceitação tácita do soberano, que muitos leigos se apropriaram da imunidade nas suas próprias terras. A imunidade, mãe das justiças privadas que se encontram completamente constituídas cerca do ano mil, é em parte consequência do declínio do poder real, tal como o senhorio rural ou o senhorio banal que dela derivam. «Poderes de origem pública juntaram-se) aos velhos direitos dominiais» escreveu alguém, e tornaram mais pesado o poder já antigo do senhor do solo sobre os seus dependentes rurais. A partir do século X, os senhores imunes ou os advogados tornaram-se os juizes de quase todos os camponeses. B) O direito de bannum Sob os Carolíngios, o símbolo da autoridade pública era o bannum do rei. Tão rudimentar e imperfeito quanto o próprio poder real, era a sua significação. Tendo o rei 36 por missão primordial manter a paz entre os «francos», o bannum era um poder geral de comandar, coagir e punir os homens livres.

Em relação ao soberano, os homens livres tinham assim um duplo dever, a obediência o rei «coage e pune»), o serviço militar o rei «comanda»). No que se refere ao representante local do poder, o conde, este duplo dever materializava-se sobretudo na obrigação de participar nos contingentes do condado a cada convocação do exército franco e na de tomar parte nas assembleias judiciais em que se julgavam crimes ou delitos e que eram encarregadas de manter a paz entre os «francos» = livres). Trata-se do que nos tempos feudais se iria chamar serviço de hoste e serviço judicial. Entre os anos 850 e o ano mil, os condes e os seus delegados continuaram, como detentores da autoridade pública, a exigir o cumprimento destas obrigações. Mas passou a ser, de então em diante e salvo excepções, em proveito próprio. O que significa que os maiores proprietários fundiários dispunham, a partir daí, do bannum sobre todos os homens das suas terras, reforçando assim os seus poderes sobre os camponeses, dado que este bannum era evidentemente mais eficaz do que a imunidade. Poderes militares, poderes judiciais, mas também poderes económicos. A sua aplicação viria a ser muito ampla: todos os homines dependentes) iam ter de aceitar novos serviços, novos tributos, ou suportar a reentrada em vigor de antigos impostos caídos em desuso. É em nome do direito de bannum que as fontes de lucro para o senhor da antiga villa se vão multiplicar, cerca do ano mil, no continente, no fim do século XI em Inglaterra, quando o regime senhorial tiver endurecido na sequência da conquista normanda. Este direito de bannum conferiu ao seu detentor tais poderes sobre os tenanciers que o senhorio banal foi o tipo de senhorio que mais pesou sobre a vida dos camponeses. Mas que aconteceu aos proprietários de villa que o não obtiveram? Podemos supor que, por contaminação, a autoridade vaga que —segundo alguns— o dominus tinha desde há muito estendido a todos os homens da sua terra se tenha reforçado gradualmente: o dominus tornou-se um senhor fundiário. Por fim, acrescentemos que o bannum —que pode dividir-se em bannum superior e inferior conforme o seu possuidor o detenha ou não na totalidade) — não devia ser adquirido à partida por todos os potentes. Pensa-se 37 que, num primeiro tempo, só dele beneficiaram os condes e os alcaides. Mas, pouco a pouco, este direito vai descer à hierarquia dos possuidores fundiários: no Mâconnais, a «vulgarização da justiça e dos poderes de comando e a confusão do senhorio banal com o senhorio fundiário» só se terão consumado depois do ano 1200. A evolução anuncia-se, embora, por vezes, bastante lenta. C) Os grupos de dependentes rurais: força numérica e fraqueza social Durante toda a primeira Idade Média, os dependentes rurais formaram a grande maioria da população: afora eles, apenas havia diante da aristocracia fundiária pequenos proprietários livres em número decrescente e habitantes urbanos —mercadores ou não— em número reduzido. Dizer que o nível de vida dos camponeses permaneceu miserável explica que os humildes nunca tenham então podido opor resistência à vontade da aristocracia, cujas exigências não podiam senão originar uma baixa do nível de vida, porque se vivia numa economia deprimida. O enfraquecimento da situação económica dos camponeses foi mais ou menos contínua. A documentação merovíngia é indigente. Ela continua insuficiente, apesar de grandes progressos, sob os carolíngios. Não contemos com as capitulares, que não se interessam pelos camponeses, mesmo livres:

durante séculos os reis deixarão os dependentes rurais à discrição dos aristocratas. As outras fontes por exemplo, os polípticos) também comportam riscos. Apenas conhecem uma única linha de demarcação, a que separa livres e não-livres. Conhece-se a resposta de Carlos Magno a um dos seus missi: «Só existem duas condições, a de liher e a de servus.» Mas, a despeito desta demarcação jurídica, livres e não-livres, desde que explorassem uma Tenure, encontravam-se todos sob a estrita dependência do dominus da Villa: as condições de vida unificavam o que os diversos estatutos pessoais podiam separar. Eis porque seria difícil falar de classes rurais —da dos livres e da dos não-livres —, uma vez que o conceito de classe nunca pode assentar exclusivamente em critérios jurídicos. No direito das pessoas como no sistema judicial, o direito romano e as leis bárbaras opunham nitidamente livres e escravos. Ora, ao longo da alta Idade Média, esta 38 oposição atenuou-se na prática progressivamente. De tal modo que as distinções entre os estatutos pessoais tenderam a perder quase toda a força, tendo-se os camponeses fundido num só estrato de dependentes *). 1) Do colonato galo-romano ao colonato da alta Idade Média. — No Baixo Império o termo colonus, que designava anteriormente qualquer agricultor, tinha adquirido na legislação um sentido simultaneamente restrito e preciso, o do homem ligado à terra. Os camponeses rendeiros dum grande proprietário foram apanhados num movimento visando tornar hereditárias muitas profissões para tentar atenuar as dificuldades sociais e a decadência material resultante da deserção dos campos. A instituição de colonato fez pois parte dum plano de conjunto: tal como a aristocracia se encontrava fixada hereditariamente ao seu cargo municipal, de igual modo o rendeiro duma terra, explorada pela sua família desde há pelo menos trinta anos, ficava ligado a esse bocado de terra que os seus descendentes também não poderiam abandonar. Se o colono permanecia teoricamente livre ao contrário do escravo, não tinha senhor), tornava-se contudo escravo da sua terra. Em contrapartida, o proprietário não podia tirar-lha, e o regime do novo colonato, em princípio, proporcionava aos homens subjugados a certeza do dia de amanhã. Mas, na realidade, o colonato favorecia muito mais a aristocracia: a sua principal razão de ser era impedir que os grandes tivessem falta de mão-de-obra para a exploração dos seus domínios. Tanto mais que a legislação estipulava que o colono deveria aos seus proprietários os tributos e os serviços «consuetudinários», e que este, indo mais longe, impôs as condições de trabalho que quis: a verdadeira sorte do colono aproximou-se da do escravo fixado à terra. E a aristocracia arrecadava o imposto fundiário sobre os *) Não devem esquecer-se os livres não dependentes em virtude de serem pequenos proprietários. Mas os seus efectivos reduziram-se progressivamente durante o Baixo Império, durante a época bárbara e depois sob os Carolíngios. A realeza desempenhou um papel nesse declínio: a independência e a plena liberdade tinham o seu lado mau porque as obrigações militares e judiciárias dos pequenos proprietários eram muito pesadas. Ora, os potenes da vizinhança, sobretudo detendo funções públicas ou um privilégio de imunidade, não careciam de meios de pressão para obrigar os «francos» a ceder a propriedade das suas terras e a retomá-las a título de tenure. Quando a sua pequena propriedade entrava desta maneira para uma villa, o «franco» perdia simultaneamente uma parte da sua liberdade. 39 1

colonos, com o encargo de entregar o respectivo produto ao Estado, donde abusos frequentes. Em que medida foi aplicada a legislação do Baixo Império? O imperador não dispôs de meios suficientes de coerção para ligar todos os colonos ao solo, daí que tenha persistido no Ocidente uma certa mobilidade da população rural. Mobilidade que aumentou muito depois das invasões germânicas: concebese dificilmente que os «funcionários» merovíngios ou lombardos pudessem perseguir os colonos fugitivos. Podemos pois estar certos de que a obrigação antiga caiu em desuso, ainda que alguns aristocratas tenham tentado lutar pelos seus próprios meios contra o que os séculos ulteriores chamarão as «deserções». Assim, o colono carolíngeo não podia ser inteiramente semelhante ao colono do Baixo Império. É certo que, a avaliar pelos políticos, o termo continua muito difundido. Mas é evidente que os homens assim chamados não descendem todos do colonato romano. Mesmo sem a relativa mistura de povos devida às grandes invasões germânicas, teria havido, como em todos os tempos, transferências de população de um lado para outro, a extinção de certas famílias, etc. Entre os colonos duma villa carolíngia deviam figurar simultaneamente descendentes longínquos dos colonos primitivos, imigrantes —por vezes arroteadores — e sobretudo, talvez, antigos pequenos proprietários livres. Os Carolíngios definiram claramente o novo estatuto dos colonos: eram tenanciers livres cuja dependência do senhor da villa tinha sido reforçada pelos reis. «Que cada dominus — ordenou Carlos Magno numas capitulares de 810— faça pressão sobre os seus juniores = dependentes) para que estes obedeçam cada vez melhor e aceitem as ordens e as prescrições imperiais.» Em suma, os primeiros Carolíngios levaram à consolidação e à extensão do escalão mais baixo da «pirâmide» dos laços de dependência, tal como o fizeram para os outros escalões, e sempre com a mesma ilusão: controlar as massas camponesas por intermédio dos grandes, só ficando em ligação imediata com estes através da vassalagem. Tanto é verdade que a marcha para a vassalagem e a marcha para o senhorio rural se processaram paralelamente. Esta evolução no sentido do senhorio rural é particularmente visível no que respeita aos poderes judiciais do dominus, mesmo daquele que não era imune ou 40 — mais tarde — detentor do bannum. Os proprietários romanos tinham-se arrogado um poder de coagir e punir todos os seus tenanciers, mesmo aqueles que, tal como os colonos, eram em princípio livres. E Justiniano — cujas leis foram aplicadas na Itália bizantina— reconheceu aos aristocratas o direito de punir «moderadamente» os seus colonos sem apelar para os tribunais públicos. Os Carolíngios deviam ir mais longe: conhece-se a sorte dos tenanciers dos senhores imunes, mas até mesmo os outros foram daí em diante levados para o exército pelos seus domini. O mesmo acontecia, a fortiori, nos fiscos grupos de domínios régios), onde os judices regedores), vindos provavelmente do meio aristocrático, desempenhavam esse ofício. Por toda a parte se interpôs uma barreira entre colonos e poderes públicos e, perante uma realeza impotente, os tribunais públicos ficaram desertos desses livres ou «francos» que eram os colonos: estes, mais ou menos impedidos pelos grandes proprietários de frequentar esses tribunais, caíram sob o poder judicial dos seus senhores, à excepção da justiça criminal, uma vez que o dominus ainda era obrigado a apresentar o culpado ao tribunal do conde. O colono era pois, desde o século IX, tratado de facto como um nãolivre. Tanto mais que deixara de ser chamado para o exército, uma vez

que o senhor resgatara a obrigação militar dos seus colonos repartindo entre estes a quantia a pagar ao rei. Ora, a sociedade carolíngia, tal como a sociedade feudal que se lhe seguirá, era uma sociedade predominantemente guerreira que desprezava os indivíduos que não iam para o exército. A tal ponto que, apesar das afirmações repetidas da sua liberdade teórica, por vezes o colono acabava por ser tratado como os escravos: no édito de Pitres 864), Carlos, o Calvo, decidiu submeter, já não a multa, mas a sessenta chicotadas, os colonos que infringissem o bannum real. Tal como os escravos. Como os colonos formavam, sem dúvida alguma, a maioria dos grupos rurais no fim da primeira Idade Média, vê-se quanto a liberdade tinha retrocedido. Os colonos já não passavam de semilivres, cuja sorte tinha piorado, enquanto a dos escravos seguia a evolução inversa. Não deverá esquecer-se, todavia, que se o colono, em princípio, não era mais do que o usufrutuário da terra —cuja plena propriedade à romana os seus antepassados tinham abandonado, forçados ou voluntaria41 mente, quando eram pequenos proprietários livres—, podia dispor dela a título gratuito ou até mesmo a título oneroso. Muito mais tarde ter-seá consciência de que este direito, decorrente da ruptura da antiga ligação do colono à sua terra, podia ser gerador duma melhoria da sua sorte, até mesmo duma verdadeira promoção social. 2) Da escravatura antiga à servidão medieval. — Os escravos carolíngios, em menor número do que os colonos, eram muito diferentes dos escravos antigos. O que explica que certos historiadores prefiram falar de servos e já não de escravos. Os rebanhos de escravos que trabalhavam nos grandes domínios romanos tinham-se progressivamente reduzido em número e em efectivos, de tal modo que a partir do século VIII já não passavam dum grupo residual. Esta última expressão, de resto, não é totalmente exacta porque a sorte dos servi tinha nitidamente melhorado ao longo dos tempos. Os escravos antigos eram autêntica mercadoria que o proprietário podia vender e por vezes mesmo destruir. Se nem sempre eram maltratados, os seus descendentes carolíngios mas será que se tratava realmente duma parte da sua posteridade?) levavam uma vida muito menos difícil. Em partes graças ao Cristianismo. É certo que os servi dos séculos IX e X continuavam a ser uma gente muito pobre, mas a sua vida era menos precária: só alguns eram alojados em cabanas, próximas da habitação do senhor da villa, ficando à inteira disposição deste, sendo o seu trabalho dirigido pelo administrador, que lhes fornecia a subsistência. Aparentemente, nada possuíam de próprio, mas, permanecendo embora um objecto de comércio, já não eram verdadeiramente uma mercadoria. As causas do quase-desaparecimento da escravatura foram múltiplas. Antes do século VII ainda havia mercados de escravos, e o testemunho de Gregório de Tours, por exemplo, denota que a sociedade da Gália continuava a ser, no século VI, «uma sociedade esclavagista em muito larga medida» E. Perroy). Com o século VII, o quadro modificou-se. Será necessário ter em linha de conta o aprofundamento do sentimento religioso, a irregularidade do abastecimento sobretudo externo) e a concorrência dos mercadores de escravos muçulmanos, ou ainda a longa depressão económica conjugada com a decadência da administração dominial nas mãos de 42 administradores ignorantes, que incitaram os domini a desembaraçar-se dos seus escravos, difíceis de dirigir e de vigiar em grupo, fixando-os à terra, portanto, concedendo-lhes tenures? É mais fácil exigir, em certos dias ou em certos períodos, os serviços dum tenancier, do que

dirigir e vigiar todos os dias o rebanho de servi cujas carências era necessário satisfazer. A fixação à terra) dos servi, que deve ter dispersado importantes grupos de escravos, tem de ser relacionada com a transformação dos vassalos «sustentados» em vassalos «fixados», portanto dotados com um benefício. No entanto, a transformação dos servi em tenanciers não pode explicar-se apenas pelo desejo de simplificar a manutenção da «casa» do aristocrata. Em que medida terá a verdadeira sorte dos servi no fim da alta Idade Média correspondido ao seu estatuto jurídico? a) Estatuto jurídico. O servus — termo que significou escravo antes de dar servo em romano— era marcado por uma tara hereditária transmitida pela mãe. Se os cônjuges fossem ambos não-livres, as crianças seriam servi. De igual modo no caso de um homem livre casar com uma escrava. Dir-se-á mais tarde que o não-livre é o homem de corpo, inteiramente propriedade do seu senhor, o dominus da villa. Sob os Carolíngios, tal como durante os séculos posteriores, não havia verdadeiramente impostos específicos da «servidão»: se é certo que se encontra o chevage, imposto ligeiro, como obrigação «servil» em alguns polípticos, é provável que não se tratasse dum imposto generalizado. A servidão era apenas fundada na nascença, não sendo o chevage mais do que a contrapartida duma protecção especial, de uma igreja nomeadamente. Um laço de homem a homem unia o servus ao seu proprietário. Este podia requerer o seu escravo sempre que desejasse, retomar a qualquer altura o mansus ^) em que o tivesse fixado e reduzi-lo ao seu antigo estado de «doméstico». Mas tinha o dever imperativo de o defender contra tudo e contra todos. Em contrapartida, o senhor podia mandar perseguir o seu «servo» fugitivo, pois é evidente que o laço de homem a homem não se O Não existe tradução portuguesa para o francês manse. Daí termos utilizado o termo latino mansus, plural mansi. N. T.) 43 rompia pela fuga do não-livre. Deste laço decorria um problema em caso de exogamia formariage) ^): uma escrava que casasse com o escravo de outro senhor passava a morar nas terras deste último, que adquiria assim uma mão-de-obra suplementar a esposa e as crianças que nascessem). Este último senhor apenas obtinha a mão-de-obra, não a propriedade da mulher e das crianças, que era ou passava a ser propriedade do senhor da esposa. Dificuldade que só mediante acordo entre os dois senhores se podia resolver: estes repartiam geralmente a descendência ou chegavam a qualquer forma de acordo pecuniário. Em todo o caso, a fim de controlar esta migração da mão-de-obra e a dissociação entre o direito de propriedade e o direito à mão-de-obra, os domini impuseram o direito do aprovarem ou não o casamento em caso de exogamia. É provável que tenha aparecido, a partir do século IX, uma compensação em dinheiro, o imposto de formariage, devido pelo «servo» ou pela «serva». Mesmo fixado à terra, o servus não se diluía completamente na massa rural. Sofria de incapacidades graves, tais como a interdição de entrar para a vida religiosa e a exclusão dos tribunais públicos, onde não podia nem testemunhar nem prestar juramento. Estava submetido à autoridade arbitrária do seu senhor, que dispunha de todo o poder para o punir em caso de delito ou até mesmo de crime. b) Condição económica. A instalação dos escravos em mansi servis, mais pequenos do que mansi ingénuos, melhorou muito a sorte dos não-livres: no caso de o senhor vender um servus, vende-o, a partir de então, juntamente com o mansus, e o indivíduo não mudará de vida. Simplesmente, o não-livre tem mais obrigações do que o colono, e estas — o que é perigoso — nem sempre são perfeitamente precisas. Em virtude duma relativa mobilidade da população, e sem dúvida por

outros factores também, desde antes de Carlos Magno deixou de haver coincidência necessária entre o estatuto de cultivador e a categoria a que pertencia o mansus: havia escravos que detinham mansi ingénuos e colonos que detinham mansi servis. C) «Droit de formariage»: direito pago pelo servo que pretendesse casar «fora» do respectivo senhorio. N. T.) 44 Quanto aos escravos domésticos, cujo número se tornou muito reduzido, a não ser em regiões mediterrânicas como a Itália, também a sua sorte melhorou consideravelmente. Constituindo, de entre os habitantes da villa, aqueles que o dominus conhecia melhor, foi de preferência a alguns deles que atribuiu os encargos de confiança administração do moinho, do forno, do lagar, oficina de preparação do mosto, funções de mordomo ou administrador), bem como os trabalhos de artesanato. Nas casas muito grandes, as missões importantes, os serviços de administração ministeria), eram-lhes confiados. No século X, estes homens da familia, tornados indispensáveis, chamar-se-ão ministeriales. E, no Império, viriam a formar o grupo poderoso dos cavaleiros-servos. Não obstante oposições jurídicas, as condições económicas uniformes aproximaram livres e não-livres. Mas a fusão relativa ter-se-á operado pela base ou por cima? Pela base, respondeu Marc Bloch, para quem os colonos título que deveria desaparecer cerca do ano mil) teriam adquirido a condição de não-livres entre o final da época carolíngia e o princípio do século XI. Por cima, respondeu L. Verriest. Juridicamente, a linha de partilha entre livres e «servos» não mudaria entre a época carolíngia e o século XI, fundando-se no nascimento e não em atribuições pretensamente características {chevage, mão-morta, formariage para os servos, segundo Marc Bloch). De facto, os não-livres ganharam um pouco em relação aos antigos colonos, segundo L. Verriest, dado que todos os camponeses se tornaram «semilivres». Do ponto de vista social, não deve exagerar-se a oposição entre regime dominial e regime senhorial. Muitos traços característicos do senhorio rural já estavam presentes na villa carolíngia e houve muito mais uma evolução do que uma mutação. 3. Da vassalidade à feudalidade A passagem duma à outra deve ter-se efectuado, em geral, durante esse período tão confuso que se estende de meados do século IX até cerca do ano mil. Não foi só e directamente a consequência do desaparecimento do Estado nem duma certa «vulgarização» dos laços de vassalagem, mas também de outros factos, que de resto lhes estão associados. 45 A) Estratificação das fortunas fundiárias: estratificação dos poderes sobre os homens No final da primeira Idade Média, a estratificação das fortunas no seio da aristocracia fundiária corresponde a uma estratificação dos poderes. Nada há aqui de surpreendente: a base do poder sobre os homens permanece a terra. O poder, de maneira geral, reparte-se como aquela. 1) A estratificação das fortunas fundiárias. — Esta estratificação, facilmente perceptível nas suas grandes linhas, não é na verdade conhecida em pormenor em algumas regiões privilegiadas. Na maioria das vezes, os estratos da sociedade feudo-vassálica só se conhecem indirectamente, através de fontes eclesiásticas, e ainda há poucos estudos regionais. Por falta de documentação, muitas vezes indigente ou pouco clara, não é certo que se possa um dia «cobrir» todo o Ocidente com trabalhos de história social relativos a este período. Em vez de incorrer em extrapolações imprudentes, é preferível apoiarmonos sobre o exemplo mais seguro, porque melhor conhecido, o da Borgonha

e particularmente de Mâconnais cerca de 950. Mas tratar-se-á dum caso médio? Não é certo, porque os bens eclesiásticos aparecem aí com pouca importância: os antigos mosteiros foram vítimas de graves espoliações por parte de leigos e os novos, em meados do século X, encontram-se apenas no estádio inicial da constituição das suas fortunas. Assim, nesta província, os leigos detêm a imensa maioria do solo, seja em alódios seja em tenures a título de benefício ou a título precário). Nesta época de transição entre a vassalidade e a feudalidade, há um «desfasamento no tempo entre as relações pessoais e o regime das terras» E. Perroy). Quase todos os aristocratas são senhores ou vassalos, encontrando-se a vassalagem múltipla já bem implantada. Em muitos casos, o vassalo possui um benefício recebido do senhor de concessão ou retomado dum terceiro), mas este apenas constitui uma parte da sua fortuna fundiária, parte tanto maior quanto mais alto se situe na hierarquia social. Assim, os alódios representam ainda um papel importante nos patrimónios médios e pequenos, e figuram igualmente nos mais ricos. Dever-se-á relacionar este facto com a tardia penetração da vassalidade e do benefício no Centro e no Sul da Francia? Não só porque, à roda do ano mil, havia alódios, e muitas 46 vezes importantes, entre o Loire e o Reno. Por toda a parte a «feudalização» subiu de baixo para cima, e não existe «pirâmide feudal» acabada no século X. Também se devem ter formado alódios fraudulentos: por esquecimento de antigos contratos de vassalagem, negligência do senhor, má-fé do vassalo, antigos benefícios, hereditários ou precários sobretudo tratando-se dum potens face ao qual a Igreja se encontrava indefesa), entravam para o património alodial dos seus possuidores, efeito da hereditariedade de facto das «tenures vassálicas». Não falaremos de classe nem mesmo de grupo aristocrático, porque a aristocracia se dividia em numerosos estratos. Demasiados matizes, demasiados graus, um leque excessivamente grande das fortunas, só contribuíam para a tornar pouco coerente. Os patrimónios podiam estar dispersos por vários sectores, mas também podia acontecer apenas compreenderem uma só parte do senhorio. Numa extremidade da gama temos os potentes, nohiles ou optimates, muito ricos, pouco numerosos. Na outra, temos os detentores de senhorios menores vivendo sob certos aspectos de forma próxima da dos seus vizinhos camponeses, dos quais talvez ainda nenhuma distinção jurídica nítida os separasse. À cabeça dos potentes, os duques, margraves, marqueses, condes, e alguns destes começavam a criar os seus próprios principados. Outros só tinham adquirido ou conservado um único condado, como por exemplo, na Borgonha, o conde de Chalon ou de Mâcon. Uns e outros podiam ser — mas só de nome — os vassalos ¦ directos do rei, ou dum príncipe, ou podiam talvez, por vezes, dizer-se independentes, mesmo no plano jurídico. Mas todos tinham integrado no seu património o comitatus, ou seja, o conjunto das prerrogativas realengas que os seus antepassados tinham exercido em nome do rei. Trata-se dum conjunto de poderes e de rendimentos dos condes: — de poderes: de ordem judiciária presidência dos tribunais, cobrança de multas, etc), militar protecção de alguns castelos que faziam a cobertura do condado, termo tomado aqui enquanto demarcação geográfica; direito de impor o serviço de guarda a homens livres; comando dos contingentes destinados ao exército... do príncipe ou do próprio conde, na falta do de rei), económico cobrança, em 47 I proveito do conde, dos terrádigos, portagens, etc); — de rendimentos:

existiam outros além dos da justiça e dos impostos sobre a circulação e venda de mercadorias. É o que se chamava sob os carolíngios as honores, termo cuja utilização decaiu durante o século X. Nesta altura, as res de comitatu passaram, sem permissão régia, para o património do conde, que pôde mesmo enfeudar algumas partes a homens tornados seus próprios vassalos. Nisto consistia o essencial das fortunas dos conde no século X. E, nos casos mais favoráveis, os condes tinham podido apoderar-se das terras «desertas» florestas, matagais, pântanos): assim aconteceu com Balduíno II, fundador do poderio dos condes da Flandres, e a prazo — quer dizer, aquando dos grandes desbravamentos — tal facto proporcionará à dinastia um notável acréscimo de riqueza e de poder. Muitas vezes o conde é tanto mais forte quanto a sua família se possa ter ligado a algumas grandes linhagens do condado. No Mâconnais foi possível detectar três ou quatro famílias poderosas que não pertenciam a condes. A fortuna destes potentes aumentou de geração para geração: únicos apoios possíveis para o rei, o príncipe ou o conde, receberam destes novas concessões, incluindo os cargos de viscondes delegação tornada hereditária de direitos do conde), a guarda ou a posse de alguns castelos. E a Igreja tivera de lhes conceder algumas terras ricas a título precário, rapidamente transformadas em alódios. Eis aqui, pois, um grupo de algumas dezenas de pessoas — a linhagem do conde e as linhagens suas aliadas. É o único grupo dirigente que, passado o ano mil, viria a formar o grupo dos alcaides e senhores banais. Bem mais numerosos eram os senhores de importância média. Alguns dos seus rendimentos eram de origem religiosa: a linhagem tinha-se apropriado ao menos duma igreja paroquial e das respectivas dízimas. Os outros provinham de terras detidas a título de benefício ou alodial, portanto de um ou de vários senhorios rurais. Como estes homens não tinham podido apossar-se de vastas extensões «desertas», geralmente não enriquecerão muito com os próximos desbravamentos. Quanto aos muito pequenos senhores, cujos efectivos variavam muito de região para região, as suas terras eram redu48 zidas, como era reduzido o número dos seus tenanciers. Por um aparente paradoxo, a maioria dos senhores pequenos e médios possuía um património composto principalmente de um ou de vários alódios. Não tinham sido suficientemente fortes para extorquir terras a título precário às igrejas e, uma vez colocados sob a necessária protecção dum grande, apenas receberam benefícios sem importância, como os direitos duma tenure campesina ou uma parte da dízima, ou então apenas um pedaço de terra como reserva. O senhor não necessitara de pagar mais cara a fidelidade destes homens, que ele não temia, que necessitavam prementemente da sua protecção e que não poderiam efectuar serviços dispendiosos. O resultado é claro: pelo menos na Borgonha, antes do ano mil, a sociedade vassálica permanecia pouco coesa e incompletamente organizada, dado que a maioria dos vassalos apenas devia poucas terras às concessões senhoriais, portanto prestavam muito poucos serviços vassálicos — estes cada vez mais ligados ao «feudo» e à sua importância, cada vez menos à homenagem em si mesma. Seria errado imaginar que a sociedade vassálica do final do século X formava uma pirâmide completa. Dado que o século X ainda vive sem dúvida num relativo marasmo económico, que as trocas comerciais continuavam pouco animadas, as causas económicas não teriam podido abalar ou modificar a composição das fortunas e a respectiva hierarquia. Se modificações houve, deveramse principalmente às partilhas sucessórias, tanto mais frequentes

quanto então era breve a vida humana. Uma época de subpopulação, como foi a primeira Idade Média, não é necessariamente uma época de famílias pouco numerosas. A restrição dos casamentos e dos nascimentos, muitas vezes efectiva, não impediu por completo o fraccionamento dos patrimónios aristocráticos. Era necessário dar dotes às raparigas e os filhos que não entrassem para a vida religiosa não renunciavam à sua parte, a qual podia ir parar às mãos dos sobrinhos, a menos que tivesse sido doada à Igreja. Os costumes que, mais tarde, tentarão limitar as partilhas cf. o direito de morgadio) ainda não se tinham formado: sem dúvida que por quase toda a parte, na Francia do século X, os filhos dividiam igualmente entre si a herança materna ou paterna. E nessa altura ainda não era necessário o consentimento da linhagem em caso de alienação a título gratuito ou oneroso, nem de legado, por parte de um dos seus membros. Daí que o fraccionamento se repe49 tisse a cada geração. De tal modo que, nos pequenos patrimónios compostos originariamente de um ou dois senhorios, as partilhas conduziam à quase-pobreza dos herdeiros que não encontrassem a possibilidade de obter qualquer novo benefício. Um paliativo medíocre e provisório: os herdeiros podiam manter entre eles a indivisão fraternitas, fréresche). Outra causa levava ao desaparecimento dos patrimónios. Eram as doações e legados pios feitos por muitos senhores e que são bem conhecidos, evidentemente, através dos documentos dos mosteiros, catedrais ou colegiadas. Mas terá de facto havido, como se insiste em afirmar, uma tão vasta transferência de bens a favor dos clérigos? Não exageremos a sua amplitude, que no entanto foi real no século X, muito mais do que virá a sê-lo para o fim da Idade Média. Esta transferência justifica-se pela mentalidade aristocrática do século: a melhor maneira de ser protegido por Deus cá na terra e de assegurar a salvação consiste em dar esmolas aos seus santos, portanto aos patronos das igrejas. E a esmola era o meio de resgatar um erro, mesmo abominável. Habilmente, os clérigos contribuíram para a ideia de esmola, necessidade moral. As dádivas à Igreja, repartidas em cada geração, lesaram os herdeiros e acentuaram o empobrecimento dos patrimónios devido às partilhas sucessórias. As linhagens pouco abastadas sofreram com certeza mais do que as outras. Tanto mais que os senhores pequenos e médios possuíam sobretudo alódios, ao passo que os grandes detinham sobretudo benefícios e terras a título precário, das quais só algumas tinham sido fraudulentamente transformadas em alódios. Ora, se um alódio, como toda a propriedade, é susceptível de ser dividido em tantas partes quantas se queira e pode ser livremente dado, uma tenure vassálica ainda não é, em princípio, divisível nem objecto de liberalidade. Dever-se-á estender à maior parte do Ocidente o que Georges Duby notou para o Mâconnais, isto é, que no século X um certo número de famílias da pequena aristocracia empobreceu ao ponto de terminar por desaparecer, seja por extinção da linhagem seja por redução à condição camponesa. Para este autor, o ano mil teria pois sido o «tempo das despromoções sociais». Não se pode extrapolar, e o declínio das pequenas linhagens pode ter sido limitado noutras províncias. Um facto, contudo, parece ter sido geral: os detentores de alódios 50 do século X, ante a diminuição das suas terras, tiveram de renunciar à sua liberdade de acção para se aproximarem mais frequentemente e de maneira mais estreita dos poderosos, que eram, a partir de então, os detentores do bannum «real».

2) A estratificação dos poderes. — Apesar do aparecimento de principados, foi ao nível do condado que as instituições do «Estado» carolíngio se perpetuaram e que, a despeito dum declínio menos acusado ao Norte do rio Somme), ainda subsistiam em finais do século X, em particular no sector setentrional do Ocidente. Mas o conde não era, ou já não era, o único detentor do poder. a) O conde, outrora representante do soberano e de agora em diante o seu «substituto» a diversos títulos, continua a impor o seu bannum ao conjunto dos homens livres do condado ou pagus, o que ainda acontece cerca do ano mil. Apesar da extrema carência de fontes para o século X, é nitidamente perceptível que os condes continuaram a ser os chefes militares dos homens livres, mas estes tornaram-se seus soldados e já não do rei cf. as inúmeras revoltas de condes e duques, eles próprios condes em diversos pagi). Ora, começa a afirmar-se uma distinção de facto, perceptível desde os grandes reinados carolíngios. Dum lado, os camponeses livres e os muitos pequenos proprietários, demasiado pobres para se armarem e abandonarem as suas terras: o conde dispensa-os das suas obrigações mediante imposto de substituição ou serviços de transporte militar. Do outro, aqueles que não se tardará muito a chamar os milites: os aristocratas suficientemente ricos para se armarem e possuírem um cavalo de batalha são os cavaleiros que cumprem pessoalmente o serviço militar agora devido ao conde. Estes aristocratas, os fiéis, tornaram-se os vassalos do conde. Estão em vias de fazer do velho mallus publicus uma «corte» vassálica. Porque, se as antigas instituições judiciárias persistiram, sofreram uma transformação importante. Tenanciers livres e pequenos proprietários alodiais viram vedar-se-lhes o acesso ao tribunal do conde, e encontram-se a partir de então sob a alçada do tribunal público inferior, o do centurião. Por conseguinte, só os proprietários poderosos ou médios continuaram a apresentar as suas causas perante o tribunal do conde. Em suma, os grandes começaram a submeter os seus diferendos aos seus pares, dado que o conde 51 julgava com os seus fiéis, particularmente os seniores, os seus homens mais ricos. Na guerra, no tribunal, em todas as circunstâncias importantes, vêem-se os condes rodeados da sua companhia vassálica, que se tornou a principal base da sua força, b) Os vigários delegados do conde): as várias jurisdições em que eram divididos os condados viram aumentar a sua competência, dado que todos os homens livres continuavam a frequentar os respectivos tribunais a área de cada jurisdição era de pequena dimensão) e os mais pobres tinham ficado, de facto, quase exclusivamente sob a alçada dos mesmos. Daí o título de placitum generale dado à sessão presidida pelo juiz-delegado vicarius) ou centenarius), assistida por assessores recrutados entre a gente miúda. Se, por delegação, os subordinados do conde tinham recebido uma parte importante do poder público —os homens livres, mas pobres, eram, evidentemente, mais numerosos do que os outros homens livres—, nem por isso os juízes-delegados, de condição bastante modesta, chegaram alguma vez a desempenhar um papel político. Para muitos deles como para os que se encontravam sob a alçada da sua justiça, o futuro parecia sem perspectivas: a distinção de ordem «económica» entre livres pobres e livres ricos poderia no futuro transformar-se facilmente em distinção jurídica. c) Os alcaides eram os defensores das fortalezas públicas encarregadas de garantir a segurança da região circunstante. Quanto à sua origem e ao seu número, avançaram-se propostas exageradas. Sobretudo quanto ao

seu número: imagina-se uma verdadeira proliferação de castelos. Na realidade, distavam em média uns vinte quilómetros uns dos outros. Quanto à sua origem também. Essas fortalezas provinham de duas épocas. As mais antigas tinham nascido no século IX, aquando das perturbações e, mais ainda, das incursões normandas: para Henri Pirenne, elas teriam dado lugar aos burgos e serviam de refúgio às populações vizinhas em caso de desastre. As mais recentes tinham aparecido no século X, nos tempos mais inquietos da «anarquia feudal»: geralmente, tinham sido erguidas pelos reis, ou, mais tarde, pelos condes tornados independentes. Mesmo um conde de poderio mediano, como o conde de Mâcon, possuía no seu condado uma meia dúzia de castelos. Tinha pois sido necessário assegurar a guarda destes e os condes tinham-nos confiado aos mais pode52 rosos dos seus fiéis, àqueles cujos senhorios rurais mais importantes se agrupavam nas redondezas. É evidente que estes guardas, por seu turno, se tinham tornado hereditários no século X, mas não haviam ainda logrado libertar-se da tutela do conde e apenas eram ainda, em princípio, os representantes, não os detentores do poder público. No entanto já eram os detentores reais do bannum, trazendo para as hostes do conde os pequenos e médios senhores rurais da sua área geográfica que se estendia num raio duma dezena de quilómetros) depois de eles próprios os terem convocado. Impunham serviços aos homens livres pobres em substituição das obrigações militares abastecimento, reparação do castelo, etc). Finalmente, aplicavam no seu sector as sentenças do tribunal do juiz-delegado do conde. Defensores da paz pública, esses alcaides eram-no. Mas defensores por vezes embaraçosos e cúpidos. No ano mil, o futuro próximo é deles: vãose interpor frequentemente como uma barreira entre o conde e os habitantes da sua área, e muitos deles — pelo menos na Francia — conseguirão, durante a primeira idade feudal clássica, tornar-se verdadeiramente independentes. B) Da aristocracia à nobreza: continuidade, ruptura ou evolução? Durante a baixa Idade Média e mesmo até ao século XVIII, os nobres fixaram as origens das suas linhagens num passado muito recuado. Mesmo na época moderna, muitos pensaram remontar aos conquistadores francos, tendo os Galo-Romanos dado origem ao Terceiro Estado. Por reacção contra o carácter evidentemente fantasista de muitas genealogias, Marc Bloch, seguido pela maioria dos historiadores franceses, julgou que as grandes famílias da aristocracia galo-franca se tinham extinguido antes do ano mil, devendo ter-se constituído uma «nobreza inteiramente nova» nos tempos feudais em função dum nível mínimo de fortuna fundiária, duma aptidão para o exercício exclusivo da cavalaria e duma maneira de viver fora do comum. Neste ponto como noutros, as ideias de Marc Bloch, tão estimulantes para a investigação, deixaram de ser aceites desde há uma ou duas décadas. Por outras palavras, teria havido —conforme se crê hoje em dia— continuidade de certas linhagens aristocráticas, que mais tarde se transformaram em linhagens 53 de cavaleiros. Até esta página, empregámos sempre propositadamente os termos aristocracia e aristocratas de forma a não estabelecer qualquer preconceito quanto às explicações que se vão seguir. É tempo de nos perguntarmos se, antes do ano mil, não se poderia já falar de nobreza. Seriam os próprios aristocratas da época franca homens novos? Não, respondem os germanistas: desde a Antiguidade que existia uma nobreza a leste do Reno, e ela teria subsistido tal qual durante a primeira Idade

Média. Os príncipes ou nobiles de Tácito não eram apenas aristocratas, dado que se distinguiam dos outros Germanos por uma ascendência que sempre fora ilustre e por vezes divina. Tinham direito a um séquito de fiéis, o comitatus, composto de diversas centenas de homens que eles sustentavam com os recursos das suas terras e com as dádivas dos outros habitantes do sector, estes últimos protegidos pela fortaleza do nobilis. Mas não será isto reportar a um passado muito remoto as noções de senhorio banal e de reduto fortificado? Seja como for, para H. Dannenbauer, um dos mais recentes defensores da tese «germanista», na Innendeutschland Baviera, Turíngia, etc.) essa nobreza pouco numerosa ter-se-ia mantido sem grandes transformações até à plena Idade Média. E, depois das grandes invasões, ela ter-se-ia implantado no Império, abrindo-se tanto mais facilmente aos descendentes das famílias senatoriais quanto os potentes do Baixo Império se tinham arrogado atribuições que normalmente competem ao Estado em matéria judicial e fiscal: os «romanistas», esses insistem muito mais na permanência de certas linhagens de potentes depois dos anos 400. Segundo H. Mittteis, os Francos, nomeadamente, deveriam ter acolhido nas fileiras da sua própria «nobreza» muitos membros da «nobreza» autóctones. Teria pois havido, para muitos, evolução e não ruptura entre a Antiguidade germânica ou romana e a primeira Idade Média, ainda que os historiadores estabeleçam matizes e creiam que a «nobreza» das tribos germânicas se tenha podido formar mais lentamente e caracterizar-se durante muito tempo tanto pelo mérito como pelo nascimento. Para outros, entre os quais se encontram historiadores alemães, os nobres seriam pelo contrário homens novos e não teria havido «continuidade biológica»: o serviço do rei é que teria assegurado a esses homens privilégios 54 e riquezas. A época merovíngia apenas teria conhecido uma família nobre, a do rei stirps nobilium), enquanto os aristocratas só se teriam constituído na segunda metade do século IX em famílias independentes da linhagem real, só então se tendo tomado nobres. Por conseguinte, na época pós-carolíngio ter-se-ia transposto do domínio económico para o domínio jurídico o facto de que nem todos os «francos» —portanto todos os livres — eram iguais; só os poderosos — os nobres — detinham o exercício da justiça e por vezes o direito de bannum. Haveria portanto ao menos uma certa «continuidade de conceitos». Existirá pois uma nobilitas desde a primeira Idade Média e, se sim, quais eram os seus contornos e as suas características? «Ao abordar os textos mesmos os da alta Idade Média), o medievalista encontra nobiles», escreveu L. Genicot. Às fontes narrativas e diplomáticas demonstram-no, quer se trate de Gregório de Tours, que cita nobiles, um nobile genus, etc, ou então das capitulares decretando esta ou aquela medida aplicável aos homines laici, tam nobiles quam ignobiles. Os nobiles detêm sempre os papéis mais importantes, mas este critério, em rigor, só basta para definir uma aristocracia, não uma nobreza, a qual é algo de mais preciso e de mais afirmado. O termo nobilis é ambíguo pode até ser simplesmente sinónimo de livre): o seu alcance pode ser individual, social, jurídico, aplicar-se a homens de grande valor pessoal, ou então a um grupo social e politicamente superior, beneficiando dum estatuto de excepção. De facto, os escritos da primeira Idade Média usam a palavra para designar um homem pertencente a um grupo cujos membros apresentam todos uma identidade de mentalidade e comportamento, o orgulho de pertencer ao estrato superior e privilegiado da sociedade. Eis o que parece peio menos meio milénio anterior à feudalidade clássica e à cavalaria. E se os nobres nunca

foram os únicos livres, nem por isso deixaram de ser os livres por excelência. Era o caso dos potentes do Império romano, dos príncipes das tribos germânicas, mais tarde dos principais auxiliares dos reis bárbaros e dos Carolíngios. É impossível saber se houve verdadeiramente continuidade biológica ou até mesmo continuidade de conceitos ainda que esta seja dificilmente detectável) desde o início da nossa era até ao século VIII. O terreno torna-se mais firme na época carolíngia e pós-carolíngia. A continuidade biológica entre aristocratas dos séculos 55 IX a X e nobres da primeira idade feudal é actualmente admitida, pelo menos em parte, pelos próprios historiadores franceses. «A nobreza carolíngia transmitiu-se pelo sangue numa abundante posteridade feudal» G. Duby). Pode bem dizer-se nobreza, dado que esta aristocracia era uma aristocracia privilegiada, sendo os privilégios um dos melhores critérios da nobreza. O orgulho — que não era novidade — não constituía o único cimento entre os seus membros, que beneficiavam dum estatuto de excepção de direito ou de facto. Talvez os nobres carolíngios fossem homens novos. Não o eram, de certeza, todos os nobres do século XI. Tomemos o exemplo da Nêustria, onde uma nobilitas se enraizou ou fortaleceu desde a época carolíngia. E isto para explicar por que razão todo o nobre «se dizia em primeiro lugar de nobilibus ortus..., quer dizer, não se referia, antes do mais, ao seu poderio e à sua riqueza, mas aos seus antepassados» G. Duby). Se durante muito tempo se acreditou existir um hiato entre a aristocracia da primeira Idade Média e a nobreza dos tempos feudais, tal facto deve-se em larga medida à rarefacção dos documentos no século X. K.-F. Werner pôde estabelecer as ligações, tão frequentemente rompidas, nomeadamente no que respeita a Touraine. Nesta região, apesar das incursões normandas, cujos efeitos têm sido arbitrariamente empolados, as grandes famílias já se encontravam bem implantadas cerca de 845, constituindo uma sólida rede vassálica em torno e em benefício de Roberto, o Forte, e vamos reencontrá-las no século X. O que prova a continuidade dessa nobreza entre o reino de Luís, o Pio, pelo menos, e o tempo dos últimos carolíngios da França Ocidental, bem como a época seguinte, sendo o meio do século X o ponto de partida das primeiras genealogias mais ou menos seguras. Mas K.-F. Werner distingue dois escalões: — no topo, a Reichsaristocratie, formada por alguns grupos de linhagens desempenhando as mais altas funções e disseminados por todo o Império carolíngio. Roberto, o Forte, oriundo da França Oriental e fazendo parte dela, encontrou parentes seus na Touraine. Eis aí uma elite simultaneamente reduzida e dotada de grande mobilidade. — a aristocracia regional está bem fixada e dividida em duas categorias distintas: os condes e os viscondes em primeiro lugar; depois os vassi dominici, 56 que, aí como noutros lados, passaram, cerca do segundo quartel do século X, a estar sob a subordinação dos condes, por vezes dos viscondes, e que são frequentemente membros de ramos laterais das linhagens de condes. Se ambos os escalões eram nitidamente distintos, nem por isso deixavam de formar, conjuntamente, o corpo dos «nobres», separado por um fosso profundo dos simples homens livres e figurando, nos séculos IX e X, nas listas dos testemunhos que subscreviam os actos dos Robertianos. Concluiremos, com G. Duby, que «existia efectivamente, desde a alta Idade Média, uma nobreza que participava no poder público, ligada de princípio à casa real, mas desligando-se dela a pouco e pouco,

consciente da sua posição e da honra da sua descendência e, por conseguinte, fechada, em princípio, aos novos-ricos. Esta nobreza constitui a raiz da alta aristocracia dos tempos feudais — os vassi dominici do século IX são os antepassados dos alcaides do século XI e dos barões do século XII; ela guardava as suas distâncias relativamente às famílias da aristocracia média, as que mais tarde viriam a dar os cavaleiros, mas que, desde então..., gozavam da liberdade jurídica». A nobreza é pois anterior à cavalaria, é independente desta última: é uma qualidade que deriva dos antepassados L. Verriest). Mas de qual ascendência? Da paterna, da materna, ou de ambas? Parece que, de princípio, terá sido de ambas ao mesmo tempo, o que permite entrever uma nítida diferença entre a mentalidade da nobreza da primeira Idade Média e a da sua sucessora dos tempos feudais. Antes do ano mil, a mentalidade nobre ainda não atribuía às filiações agnáticas a superioridade de que vão desfrutar nos séculos seguintes: em princípio, ela colocava no mesmo plano agnatos e cognatos. Testemunha isso o mais antigo escrito genealógico, o que traça a ascendência do conde Arnoul de França e que foi composto entre 951 e 959. Este relato insiste sobretudo nas mulheres e na sua linhagem ilustre, e as únicas datas mencionadas são as dos casamentos. O objectivo do relato é o de afirmar a alta nobreza do conde relacionando-o, através da avó, com a família dos Carolíngios. Para o autor, a linhagem dominante é mesmo a das mulheres; os agnatos e os cognatos não se encontram, por conseguinte, no mesmo plano, passando os cognatos para primeiro plano. 57 Este facto é confirmado por um inquérito geral sobre a nobreza das regiões renanas. Por exemplo, neste quadro, o estudo da nobreza alemã por K. Schmid. No século XII, a concepção familiar será dinástica: cada um remonta aos seus antepassados pelos elementos masculinos, e os ramos colaterais da linhagem conservarão a recordação da origem agnática. Então, «a raça apresentar-se-á como uma casa»: a linhagem terá o nome da residência comum, berço da família, transmitida de pais para filhos. Mas nada disso antes do ano mil: não há nomes de família, mas apenas nomes individuais o que torna difíceis as pesquisas genealógicas sobre o final da primeira Idade Média). Apenas existe a Sippe agrupamento fluido de aliados) e ainda não existe Geschlecht, linhagem que reúne todos os homens descendentes dum mesmo antepassado masculino. Na Alemanha, sendo certo que os cognatos não têm a precedência como na família dos condes da Flandres, encontram-se pelo menos num pé de igualdade com os agnatos. Na vida e na consciência familiares, o parentesco da mãe desempenha assim um grande papel e muitas vezes prefere dar-se aos filhos nomes pertencentes à linhagem da sua mãe. No fundo, «de ambos os lados da filiação —constata G. Duby —, era aquele de que a nobreza mais se orgulhava, cujo prestígio era maior, cujos antepassados mais gloriosos, o que era posto em primeiro plano». Mas ainda não existe raça, porque não há dúvida de que os nobres ainda não se encontram estabelecidos em residências estáveis: não há casa mas apenas «múltiplos locais de residência», possuindo as famílias senhorios rurais muito dispersos, tornados móbeis pelas alianças e as heranças. O aparecimento da casa, da raça, portanto a noção e a consistência da nobreza, tudo isso está ligado à evolução do poder político. Sob os Carolíngios, uma só casa, a do rei, a primeira a manifestar-se como uma raça e a reconhecer a superioridade da agnatio. Associando-se a ela como «comensal», recebendo depois honores e benefícios, é que um nobre podia fazer fortuna. A nobreza era pois uma nobreza «doméstica» Hausadel) que não podia organizar-se em «casas» independentes, não sendo os descendentes pelo lado das mulheres

desfavorecidos em relação aos descendentes pela parte dos homens nas distribuições reais. Depois, mais ou menos a partir de meados do século IX, as famílias «nobres» libertaram-se da domesticidade real, apoderaram-se do poder político e passou-se da Sippe ao Geschlecht. A «casa» do nobre 58 torna-se «o centro e o ponto de cristalização independente e durável duma raça a quem ela confere o poder». Então, a linha masculina reforça-se a pouco e pouco, reservando-se a transmissão da glória ancestral, da riqueza fundiária, da autoridade, por outras palavras, da nobreza. Foi este «um dos aspectos do nascimento da feudalidade» G. Duby). Mas já teríamos chegado aí pelo ano mil? O ritmo variou de região para região mas, no conjunto, a autonomia já estava conquistada pelas maiores casas, portanto pelas dos condes. Ela encontrava-se em vias de descer a hierarquia dos diversos níveis nobiliárquicos: antes do ano mil, as famílias dos alcaides e outros detentores do bannum do Mâconnais já se encontravam organizadas em linhagem, se bem que os pequenos nobres só o venham a estar no século XI, até mesmo no século XII. Continuidade, ruptura ou evolução, eis o que se pergunta depois de L. Genicot. A resposta parece mais ou menos segura: não houve ruptura entre a aristocracia e a nobreza, mas sim continuidade e evolução ao mesmo tempo. No entanto esta resposta não é válida para toda a extensão do Ocidente, nem sequer para toda a extensão da antiga Gália. No Sudoeste da Aquitânia, como insistentemente o recorda . Higounet, a continuidade entre aristocracia carolíngia e nobreza não parece assegurada, porque apenas houve uma implantação muito restrita da aristocracia franca e porque seguidamente se deu por duas vezes, no século VIII e no IX, a irrupção de clãs gasconhos que introduziram ao nível de condes uma certa descontinuidade. E, quanto aos alcaides do século IX, são geralmente homens novos *). *) Structures sociales de VAquitaine, du Languedoc et de VEspagne au premier âge féodat Colloque de Toulouse, 1968), Paris, C.N.R.S., 1969. 59 SEGUNDA PARTE AS IDADES CLÁSSICAS do princípio do séc. XI ao fim do séc. XIII) CAPITULO II GENERALIDADES Cerca do ano mil apareceu o que se chama a feudalidade clássica. Mas se para uns se trata duma segunda feudalidade, para outros trata-se apenas da primeira que o Ocidente conheceu. A sua delimitação cronológica, os diversos aspectos de que se iria revestir, colocam inúmeros problemas. Sabe-se que para F.-L. Ganshof se teria tratado duma nova feudalidade: depois da feudalidade carolíngia *) *) O período carolíngio foi altamente importante tanto na história dos laços vassálicos como na dos grandes domínios. E mais ainda na história das relações entre a vassalidade e a villa: o desenvolvimento dos laços de dependência sob os merovíngios contribui para explicar a primeira expansão das villae, mas o benefício consistente em terras ainda não era a «consequência normal e quase obrigatória» da vassalagem. Com a época carolíngia «as duas instituições..., da vassalagem e do benefício, foram unidas em larga medida por forma a constituir um sistema de instituições» F.-L. Ganshof). Mas nessa altura tratava-se apenas dum laço de facto, não de direito. Se existe unanimidade quanto à importância da época carolíngia sob estes aspectos, ela não se estende a todos os outros aspectos

apresentados pela vassalagem e pelo benefício, por conseguinte, também, pela villa. Nem sequer existe acordo quanto ao vocabulário. Se se aceita como generalizada e sistemática a união dos laços de homem para homem, por um lado, a da tenure-salário, por outro, a partir dos anos 800, não se hesitará em falar de feudalidade carolíngia, como faz F.-L. Ganshof. Se, como pensam outros —e nós próprios—, a combinação dos elementos essenciais que definem a feudalidade é nessa época imperfeita, não generalizada, não sistemática, falar-se-á antes de vassalidade carolíngia, ainda que esta locução não seja muito feliz, pois parece abstrair do que frequentemente estava já ligado aos problemas da hierarquia social, a terra considerada como consequência frequente da vassalagem e como meio que permitia ao vassalo desempenhar-se do seu serviço. 63 ter-se-ia gerado uma segunda feudalidade, verdadeiramente clássica, iniciando-se em finais do século IX e devendo prosseguir, sem modificações de maior, até aos anos 1300. A feudalidade clássica constituiria pois uma época de cerca de três séculos, caracterizada por uma unidade fundamental. Mas F.-L. Ganshof limitou-se voluntariamente aos aspectos propriamente jurídicos dessa feudalidade. Ora, ainda que as estruturas do direito não tenham sofrido mutações profundas durante esses três séculos, é pouco provável que, se tomarmos o termo de feudalidade na sua mais lata acepção e se considerarmos as estruturas sociais, políticas, os géneros de vida, não possamos entrever duas ou mais fases distintas nesse longo período, supondo que retemos os termos a quo e ad quem avançados por F.-L. Ganshof. Tanto mais que continuaremos a ligar, na medida do possível, o estudo da feudalidade ao seu suporte fundiário, o senhorio, ele próprio sujeito a toda a espécie de forças económicas, sociais, etc, que mudaram muito durante esses três séculos, tendo em conta o forte desenvolvimento material dos campos. Mas os recortes cronológicos são, no pormenor, muito difíceis de estabelecer em matéria económica e social, muito mais do que no domínio jurídico. Foi dum ponto de vista diferente do de F.-L. Ganshof que partiu Marc Bloch, em 1940, em A Sociedade Feudal. Ele concentra-se antes no exame dos modos de vida, exame ligado ao estudo da evolução económica como ao das mentalidades, ainda tão mal conhecidos. Para ele, o Ocidente teria conhecido duas idades feudais. A primeira idade teria saído das ruínas do Império carolíngio, ruínas do Estado precariamente restaurado, ruínas materiais também, devidas às incursões normandas, cujos efeitos Marc Bloch tinha tendência a empolar. A primeira idade feudal teria pois aparecido cerca do final do século IX e ter-se-ia prolongado até à volta dos anos 1100: teria sido uma era de grande contracção económica, de vida rural quase «autárcica», de comércio pouco mais que nulo, sendo todos estes factores responsáveis por estruturas sociais muito características, sobretudo no mundo dos senhores. Quanto à segunda idade feudal, nascida cerca de 1100, teria durado dois séculos. Então, o mundo feudal ter-se-ia modificado profundamente por causa da «revolução económica», isto é, dos grandes desbravamentos, do renascimento urbano e comercial. Esta segunda idade feudal seria pois filha da expansão, como a primeira o teria sido da depressão. 64 Esta distinção entre duas idades feudais, ligadas a duas fases contrárias da história económica, é de primordial importância. Mas a «periodização» entrevista por Marc Bloch deixou de ser inteiramente satisfatória. De 1940 para cá, a história material da Idade Média fez grandes progressos, e a tendência actual leva a preencher parcialmente

o fosso entre o século X e os que lhe sucederam: comércios e cidades não tinham desaparecido em fins do século IX e no século X; portanto, em lugar de «revolução», mais vale falar duma aceleração da evolução económica. E, mesmo que tivesse havido «revolução», esta situar-se-ia no século XI: se houve um corte, este teve lugar antes de 1100. Ao que se poderia responder, é certo, que as transformações teriam agido com algum atraso sobre o sistema feudal. Outra objecção à tese de Marc Bloch: a periodização terá sido a mesma em todas as regiões dum Ocidente tão dividido? Ê duvidoso. Uma região, na verdade pouco vasta apenas 150 paróquias), o Máconnais, beneficia duma dupla vantagem, a de ter conservado uma documentação tão rica que permitiu um estudo em profundidade, e a de ter sido objecto do belo livro de G. Duby La Société au XP et XIF siècles dans la région mâconnaise 1953). De facto, o trabalho do autor incide sobre um período mais longo que vai de 950 a 1240, ou seja três séculos. Para G, Duby ter-se-iam sucedido três estruturas — daí a divisão do seu livro em três partes —, devendo os dois cortes ser situados cerca dos anos 1000 e 1160. Não nos vamos deter na primeira fase, anterior ao ano mil, que foi a idade de formação da sociedade feudo-vassálica, durante a qual os laços e as obrigações vassálicas se tinham mantido incompletas, por vezes vagas, enquanto as instituições carolíngias ainda não tinham perdido toda a eficácia. Restam a segunda e a terceira fases, por outras palavras, as duas idades feudais. A) A primeira idade feudal Esta idade, que vai dos anos mil aos anos 1160, foi para G. Duby «o tempo dos alcaides independentes». No Máconnais, como em muitas outras regiões da França, o poderio do duque ou do conde entra então em decadência; por vezes passageira, por vezes definitiva, tendo este último sido o caso da região de Mâcon. Acontece 65 então ao duque ou ao conde o que tinha acontecido aos Carolíngios no final do século IX. Deixa de haver exercício da autoridade pública, e os grandes apenas possuem poder na medida do seu património. O comitatus o poder do conde) junta-se ao poder real no mundo das aparências e, muito mais do que no passado, o poder mede-se pelo número dos vastos senhorios rurais e dos vassalos que um aristocrata possui. Entre os poderosos que são condes e os que o não são, a diferença diminuiu: os potentes são todos alcaides; têm os senhorios castelãos, por outras palavras, um conjunto de direitos e de prerrogativas ligados à posse dum castelo. À volta da fortaleza agrupa-se a pequena companhia de vassalos do alcaide: estes são todos guerreiros, daí a equivalência que se afirma entre vassalo e miles. E uma mentalidade comum, um género de vida comum, um «código cavaleiresco», começam a precisar-se. Será este verdadeiramente um tempo de anarquia feudal, como se afirma repetidamente? Seria bem mais uma tentativa para estabelecer uma nova ordem, mas num quadro rural muito estreito, uma vez que cada castelo tinha sob a sua alçada um território de pequena extensão. Daí as instituições de paz, a consolidação dos laços da linhagem, a mais estrita definição dos deveres feudais. Daí, também, um controlo mais apertado dos grupos dirigentes sobre o campesinato. A repercussão do poder dos alcaides sobre o senhorio rural e seus habitantes é considerável, e talvez que os laços entre senhorio e feudalidade nunca venham a ser tantos e tão estreitos. Ao senhorio rural sobrepõe-se o senhorio banal — de princípio mais ou menos sinónimo de senhorio castelão: em troca da protecção, eficaz ou não, do castelo, os camponeses obrigam-se a entregar, ao detentor do direito de bannum, somas de dinheiro, mercadorias, trabalho, obrigação que a todos, livres

e não-livres, vincula, tendendo a uniformizar o estatuto dos camponeses. O paradoxo é evidente: estes quadros locais, muitas vezes novos, nasceram duma época de extremo isolamento da vida rural, ligado à depressão económica do fim da primeira Idade Média. Mas, precisamente, o século XI beneficia duma notável reviravolta da conjuntura económica. A expansão material —intelectual, artística também— do século XI, a renovação demográfica, teriam então sido condicionadas pela organização da desordem — ou da ordem— ao nível local? A expansão económica, a crescente abertura da actividade material, 66 não iriam comprometer esta organização social assente em bases tão exíguas? Sim, mas a ruína desse sistema social foi lenta e, para G. Duby, a época dos alcaides só viria a terminar cerca de 1160. Bastará realmente recordar que as transformações demográficas, técnicas e económicas foram lentas, e que a grande expansão —com a segunda fase dos grandes desbravamentos— só veio a dar-se no século XII? Bastará igualmente dizer que as estruturas sociais evoluem geralmente com atraso relativamente às estruturas económicas? Todas estas são questões ainda não completamente resolvidas. Poder-se-á, finalmente, transportar para outros lados este quadro da primeira idade feudal no Mâconnais? É provável, pelo menos para aquelas regiões da França onde o poder do duque ou do conde sofreu um longo eclipse. Para a Alemanha, é mais duvidoso, dado que o poder real conheceu aí um renascimento, aliás provisório. E, evidentemente, a Inglaterra conheceu, por causa de Hastings, uma evolução completamente diferente. B) A segunda idade feudal Situada por G. Duby no período compreendido entre 1160 e 1240, foi marcada pela passagem «da castelania ao principado» e à «monarquia feudal» Petit-Dutaillis). A terra já não é, a partir de então, a única fonte de riqueza e de poder. No entanto, ela permanece a principal fonte de uma e de outro. Ela rende muito mais do que outrora aumento dos rendimentos, extensão das superfícies cultivadas na reserva, aumento do número das tenures, etc): são os senhores rurais, mesmo os simples milites, que frequentemente mais aproveitam com as transformações económicas, até mesmo com o maior volume e aceleração de circulação monetária. A necessidades novas correspondem novos recursos através duma comercialização intensiva dos produtos agrícolas. Os quadros locais nem por isso correm menor perigo, e a castelania encontra-se ameaçada de morte. Tanto mais que o poder real é forte em Inglaterra a partir de Guilherme o Conquistador e em seguida, depois dum eclipse, a partir de 1154 e de Henrique II. Ê que em França ele sai da letargia ao longo do século XII. O renascimento do poder real, contudo, não teve efeitos imediatos: não se passou do quadro acanhado da 67 castelania ao quadro muito vasto do reino sem o intermediário duma relativa simplificação territorial. Num primeiro tempo, os grandes senhores, condes ou duques, foram os beneficiários desta simplificação: hierarquizaram a «sociedade feudal» impondo obrigações mais precisas aos alcaides, que são já seus vassalos ou foram obrigados a sê-lo. É então que se edifica verdadeiramente a pirâmide feudal, já não deixando lugar para as pequenas unidades vassálicas mais ou menos autónomas e destituídas de laços entre si. Deste trabalho de concentração beneficiaram —particularmente em França— os reis, que iriam substituirse aos príncipes ou colocá-los sob controlo: pode-se, para esta segunda

fase, falar de «monarquia feudal». Mas a evolução nem sempre atingiu este segundo estádio: a Alemanha é o melhor exemplo disso, tendo visto os grandes principados imporem-se aos reis porque estes, ao contrário dos Capetos, não possuíam domínio, por outras palavras, principado pessoal, salvo excepções pouco duradoiras. A obra dos príncipes, depois dos reis, só foi possível graças a uma certa modificação da hierarquia das fortunas feudais à escala local. Disse-se durante muito tempo, com Marc Bloch, que, diante da «ascensão da burguesia», a nobreza, empobrecida, tinha declinado, e daí um endurecimento dos nobres e um espírito de mais nítido. Mas as coisas não foram tão simples como isso. Digamos que nem todos os nobres puderam sempre beneficiar da extensão das superfícies cultivadas: a forte natalidade conduzia às partilhas sucessórias, as guerras e as cruzadas custavam muitas vezes mais do que rendiam. Tem igualmente sido posta em relevo, com algum exagero, a prodigalidade e a incompetência administrativa dos cavaleiros. Passou a haver, cada vez mais, dois grupos muito distintos, a «plebe nobiliárquica» e a nobreza rica. Daí o desejo, no primeiro grupo, de obter outras fontes de rendimentos e a necessidade de passar para o serviço permanente do príncipe, por exemplo no corpo dos seus «oficiais», administradores e juizes. Mas, aí, o segundo grupo ficou muitas vezes com a melhor parte. De qualquer maneira, em meados do século XIII, «a transformação é completa» G. Duby). C) A diversidade do Ocidente A periodização proposta por G. Duby não pode evidentemente aplicar-se a todo o Ocidente, tão dividido. 68 Nem no espaço, nem mesmo no tempo, a evolução foi completamente uniforme. Esboçámos o estudo comparativo de diversos conjuntos territoriais. 1) As regiões entre o médio Loire e o Reno. — Como para a primeira Idade Média, é delas que o estudo deve partir e é sobre elas que se deve centrar. Mais cedo e mais profundamente do que noutros lados, elas conheceram o senhorio «clássico», uma sociedade vassálica, estruturas sociais mais bem definidas, uma «senhorialização» das terras e uma «feudalização» da sociedade mais completas. É também lá, apesar da importância dos alcaides, que as instituições públicas «carolíngias» se mantiveram melhor e por mais tempo, o que serviu de «suporte» E. Perroy) a condados ou ducados que, aquando da primeira idade feudal, puderam escapar à diluição. 2) Os sectores franceses a oeste da bacia parisiense e ao sul do Loire. — Quanto mais se avança para sudoeste ou sudeste, mais o senhorio e a feudalidade parecem tardios, fluidos, cobrindo irregularmente a região. Deviam subsistir aí senhorios alodiais em grande número, por exemplo na região de Bordéus *). E os poderes, em decomposição desde o século X, só com grande dificuldade conseguiram reconstituir-se: a Aquitânia foi um modelo de anarquia que os Plantagenetas não conseguiram completamente resolver. Cf. a morte de Ricardo Coração de Leão, no castelo dum vassalo revoltado.) Quanto ao Languedoc, será necessário esperar pela cruzada albigense e depois por Afonso de Poitiers para que a ordem aí seja restaurada, e isso graças à imigração de feudais vindos do Norte do Loire. A imprecisão do vocabulário, que ainda se manterá em 1789, testemunha da ignorância relativa dos meridionais quanto às características, ligadas mas diferentes, do senhorio e da feudalidade. 3) O reino da Germânia a leste do Reno). — «No que respeita às regiões situadas para lá do Reno, é à primeira vista a data da respectiva

incorporação na monarquia franca que determinou a sua receptividade às instituições» vassálicas, depois feudais, observou Ch.-Ed. Perrin. Os antigos ducados «nacionais», estreitamente submetidos aos Francos nos séculos VIII-IX, conheceram uma *) BOUTRUCHE R.), Une société... en lutte contre le regime féodal: Valleu en Bordelais et en Bazadais du XI au XVIII s., Rodez, 1943. 69 «vassalização», depois uma «feudalização» acentuadas: assim aconteceu na Alemanha, na Francónia, na Turíngia e mais ainda na Baviera, onde a vassalagem penetrara desde Papino, o Breve, e onde os alódios, em consequência, se tornaram raros. As coisas passaram-se de modo diferente na Frísia e na Saxónia. Porque estas só entraram para o reino franco sob Carlos Magno e este atraso de meio século nunca viria a ser recuperado. Mas este argumento cronológico é insuficiente, sendo necessário fazer intervir outros: — Para a Frísia: a originalidade da região é tão patente quanto mal elucidada. Duma maneira geral, não conheceu nem regime senhorial nem regime feudal: ausência de senhorio rural, portanto impossibilidade de aparecimento duma verdadeira feudalidade. «É incontestável —escreveu Ch.-Ed. Perrin— que as instituições feudais se implantaram de preferência nas regiões onde o regime senhorial oferecia a possibilidade de recortar, nos vastos senhorios, benefícios numerosos e importantes; pelo contrário, nas regiões onde havia alódios em grande número, enquanto os senhorios eram dispersos e de extensão diminuta cf. a sul do Loire), não se deparou à feudalidade um terreno favorável ao seu desenvolvimento.» A fortiori, naquelas — raras — onde o senhorio não apareceu, como na Frísia, precisamente; — Para a Saxónia: põe-se geralmente em causa a estrutura social do país, estrutura que nas suas linhas gerais persistiu após a conquista carolíngia. Dividida em numerosos grupos sociais rigorosamente separados, não comportava o contrato de vassalagem, o qual, sendo sinalagmático, pressupunha em teoria uma certa igualdade entre o vassalo e o senhor. Só no último quartel do século XI é que as relações feudo-vassálicas deveriam tomar aí um relativo desenvolvimento, porque a luta contra Henrique, o Leão, na sua tentativa de transplantar para a Saxónia a sólida organização feudal que conhecera na Baviera, demonstra o atraso persistente da Saxónia relativamente a outras regiões germânicas. De qualquer modo, ao infiltrarem-se nas regiões alemãs, as instituições feudo-vassálicas modificaram-se. 70 tendo adquirido características específicas. Facto de que os contemporâneos tiveram consciência: nos séculos XII c XIII, os alemães pensavam que existia um direito alemão, diferente do direito francês ou do direito italiano. Isso explica-se por um facto: mesmo nas regiões que primeiramente aderiram ao direito franco, as instituições desenvolveram-se mais lentamente do que na Francia, sem dúvida porque no século XI a cavalaria ainda não tinha aí substituído inteiramente a infantaria, substituição que só viria efectivamente a dar-se com as duas primeiras cruzadas. Por outro lado, senhorio e feudalidade não teceram sobre a Alemanha uma malha tão cerrada como em França: muitos «feudos de sol» Sonnen-lehen), por outras palavras, alódios, deviam manter-se, e o impacte do senhorio e da vassalagem permaneceu incompleto, tal como ao sul da Loire, mas por razões parcialmente diferentes. Para além destas duas características — anacronismo e realização incompleta— há uma terceira importante: mais ainda do que na França, o elemento real feudo) predominou sobre o elemento pessoal

vassalagem), o que marcou mais fortemente o direito alemão e também o italiano) do que o direito francês, a tal ponto que, na Alemanha, se encarou a investidura como a origem do contrato. Nesse século XIII, os italianos chegaram mesmo a ir mais longe, dado que por vezes, nalgumas partes da península, a investidura precedia a prestação da homenagem. E, é evidente, o enfraquecimento do poder real alemão, na baixa Idade Média, não deixou de fazer sentir os seus efeitos sobre o sistema feudal: o soberano, por exemplo, é obrigado a enfeudar novamente um feudo deixado por um príncipe sem herdeiros, ao passo que o rei de França pode tornar a incluí-lo no domínio real, coisa que não se privou de fazer. 4) A Itália. — Por falta de espaço, o seu estudo teve de ser sacrificado neste livro. Por falta, também, aliás, de estudos tão numerosos e sólidos como os que existem para a França, a Alemanha e a Inglaterra. Indiquemos, pelo menos, as características mais salientes *). Em primeiro lugar, o campo não foi, como a norte dos Alpes, o centro da vida económica, social, até mesmo *) PERRIN Ch.-Ed.), UAllemagne, Vltàlie et la Papauté de 1125 à 1250, Paris, C.D.U., 1956. — PONTIERI E.>, Tra i Normanni nelVItalia meridionale. Nápoles, 1948. —TOUBERT P.), op. cit. 71 «política». As cidades, mesmo em recessão, conservaram aí esse papel. De tal modo que os potentes, tanto os condes como os militares, continuam a residir na cidade, não em castelos rurais. É da sua casa fortificada, em pleno centro urbano, que exercem o comando sobre os seus fiéis e vão, dentro em breve, entregar-se ao comércio. E os nobres da cidade subjugaram o campo dos arredores, tanto os camponeses como os senhores rurais. Pelo menos os das grandes cidades, como Florença. Isto deu-se principalmente na Itália do Centro e do Norte, que tinha conhecido a dominação lombarda antes da conquista carolíngia, e depois a influência intermitente da monarquia germânica. Mas, diante desta nobreza urbana, encontramos grandes condados, sobretudo nas fronteiras — as marcas: marqueses, condes ou bispos constituíram fortalezas nas planícies, mas não conseguiram, geralmente, levar a melhor sobre a nobreza das grandes cidades. O direito desta parte da Itália — dito jus Langobardorum —, passado a escrito desde muito cedo, ignorou qualquer ligação entre feudo e serviço militar. A Itália do Sul apresenta características diferentes, sequela da longa presença bizantina e da fraca influência germânica. A principal reside na persistência do direito romano: a propriedade completa, hereditária, continuou a reger a maioria dos bens fundiários. A tal ponto que, a despeito da força e do grande número dos laços de dependência, nunca haverá verdadeira feudalidade. No entanto, dois aspectos aproximam ambas as metades da Itália: os serviços militares regulares são raros e os nobres — salvo excepções — moram na cidade, tanto na Itália do Sul como do Norte. E a conquista normanda não iria provocar, como em Inglaterra, o aparecimento duma verdadeira feudalidade de importação. 5) As feudalidades de importação. — São principalmente as de Inglaterra e dos Estados latinos de oriente, para onde os conquistadores Normandos, «Francos») importaram daí a expressão, que pertence a Marc Bloch) o sistema a que estavam habituados. Por falta de espaço, teremos de passar sob silêncio a feudalidade do Oriente para apenas encarar a de Inglaterra *). *) STENTON F. M.), The First Century of English Feudalism, 1066-1166, 2. ed., Oxford-New York, 1961. 72

Na grande ilha, a evolução «natural» foi modificada em 1066. O que se sabe das sociedades anglo-saxónicas e anglo-dinamarquesas leva a pensar que elas se caracterizavam, antes de Hastings, pela existência de laços de homem para homem, mas laços não tão precisos nem tão difundidos como nas regiões carolíngias. O que não impede que os aristocratas thegns saxões e iarls dinamarqueses) utilizassem em seu proveito, em certa medida, laços de dependência pessoal. Hastings talvez não marque a ruptura completa que por vezes se imagina. Sobrevieram à conquista normanda, depois à instalação dos homens de Guilherme, o Conquistador, nos domínios confiscados aos aristocratas anglo-saxões ou anglo-dinamarqueses. Imediatamente, o novo rei criou um sistema de relações feudo-vassálicas semelhante ao da Normandia. Quer dizer que esse sistema foi imposto de cima, em lugar de se desenvolver de baixo para cima, e que foi a monarquia que se encarregou disso. Daí a grande originalidade dessa feudalidade anglo-normanda, que não se formou contra o Estado e a realeza mas, ao contrário, às suas ordens. Onde Carlos Magno, ao tempo da vassalidade, falhou, os reis de Inglaterra triunfaram em larga medida: por muito tempo a feudalidade será a aliada, a base do poder real, não sua adversária. Nota adicional ao capítulo: Dois trabalhos recentes esclarecem os nossos conhecimentos sobre regiões meridionais: BONASSIÉ P.), La catalogue du milieii du X" siécle à la fin du XI siécle, Toulouse, publ. Univ. Toulouse-Le Mirail, 19751976, 2 vol.; MAGNOU-NORTIER E.). La société Idique et VEglise dans la province ecclesiastique de Narbonne de la fin du VIII siécle à la fin du XI siécle, ibid., 1974. É preciso notar, no entanto, que, o que é válido para estas regiões, não o seria sempre, provavelmente, para outros países meridionais, a começar pela Gasconha. 73 CAPITULO III RECONSTRUÇÃO DOS PODERES DE BAIXO PARA CIMA *) A sociedade das idades feudais clássicas — a da primeira, sobretudo — foi uma sociedade fortemente hierarquizada. Retomando, mas modificandoa, a teoria das ordines da época carolíngia, os clérigos elaboraram duas tipologias das ordens, sendo estas em número de três. Uma dessas interpretações inspirava-se na realidade social: ela distinguia os que rezam oratores), os que combatem bellatores) e os camponeses agricultores). Assim fizeram, por exemplo, Rathier de Vérone morto em 974) e Adalberão de Laon morto em 1030). Assim se exprimia Adalberão, no seu Poema ao rei Roberto: «A cidade de Deus, considerada una, está dividida em três: uns rezam, outros combatem e outros, enfim, trabalham. Estas três ordens coexistentes não sofrem com *) BOUARD M. de), Quelques données archéologiques con-cernant le premier âge féodal Annales du Midi, n.° 89, 1968, p. 383-404). — BOUSSARD J.>, Le gouvernement dHenri II Plan-íagenèt, Paris, dArgences, 1956. — CHELINI A.), Histoire reli-gieuse de VOccident medieval, Paris, A. Colin, 1968. — DUBY, G.), Lan mil. Paris, Julliard, 1967. — FAWTIER R.), Les Capétiens et la France, Paris, Presses Universitaires de France, 1942.— FOUR-QUIN G.), Les campagnes de la région parisienne... du milieu du XIII^ s. au début du XVI" s.). Paris, Presses Universitaires de France, 1963-1964. — LEMARIGNIER J.-F.), Le gouvernement royal aux premiers temps capétiens, 987-1108, Paris, A. et J. Picard, 1965. — Oxford History of England The), vol. 3 From Domesday Book to Magna Carta, 108-1216, par A. L. POOLE, 2« éd., Oxford, 1958), vol. 4 The XlIIth Century, 1216-1307, par M. POWICKE, ibid., 1954). — PACAUT M.), Les structures politiques de VOccident medieval. Paris, A.

Colin, 1969. — PETIT-DUTAILLIS Ch), La mo-narchie féodale en France et en Angleterre X - XIII s.). Paris, A. Michel, 1933. — RICHARD J.), Les ducs de Bourgogne et la 75 a seperação. Os serviços prestados por uma permitem os trabalhos das outras duas. Cada uma, por seu turno, encarrega-se de aliviar o conjunto.» No século XII, São Bernardo não devia exprimir-se de modo diferente, e insistiu como tantos outros na complementaridade das três ordens. Porque esta teoria «permitia integrar uma realidade social numa visão providencial da sociedade», sacralizando a hierarquia e fixando a cada um a tarefa desejada por Deus. Para assegurar a própria salvação e contribuir para a harmonia social, cada um devia submeter-se à vocação obedientia) da sua ordem. Imaginava-se que estas ordens se encontravam determinadas desde sempre, concebidas por Deus desde a Criação e para toda a vida da Cidade terrestre. Não havia pois espaço, nesta teoria, para a evolução: «Num mundo fixo, cada um presta indefinidamente os mesmos serviços. Não existe qualquer lugar para novas funções» A. Chélini). Na realidade, a teoria apenas correspondeu a um curto período de evolução social, à primeira idade feudal e, talvez, ao princípio da segunda. Os burgueses não tinham lugar nesta visão da sociedade e do mundo. Seria pois necessário remediar esta lacuna, pois nenhuma ordem pôde ignorar os burgueses por muito tempo, nem sequer os bellatores a partir do momento em que os burgueses passaram a emprestar-lhes fundos, até mesmo a comprar feudos. Por isso é que no século XIII, a par da noção de ordo, se vai difundir a noção de status, de formation du duche du XI^ au XIV" s., Paris, Belles-Lettres, 1954; Châteaux, châtelains et vassaux en Bourgogne aux XI« et XII^ s. Cahiers de civil, méd., 1960). Consultar ainda: BUR M.), La formation du comté de Cham-pagne vers, 950-vers 1150), Nancy, publ. Univ. Nancy II, 1977.— DEVAILLY G.), Le Berry du X siècle au milieu du XIIP siècle; étude politique, religieuse, sociale et économique, Paris-La Haye, Mouton, 1973. —GARAUD M.)., Les châtelains de Poitou et Vavè-nement du regime féodal XI" et XIP siècles), Poitiers, Soe. des Antiq. de TOuest, 1967. — GARDELLES J.), Les châteaux du Moyen Age dans la France du Sud-Ouest; la Gascogne anglaise de 1216 à 1327, Genève, Droz, 1972. — GUILLOT O.), Le comte dAnjou et son entourage au XP siècle, 2 voL, Paris, A. et J. Picard, 1972.— NEWMANN W.-M.), Les seigneurs de Nesle en Picardie XII-XIIP siècles), leurs chartes et leur histoire, 2 vol.. Paris, A. et J. Picard, 1971. Et BOURNAZEL E.), Le gouvernement capétien au XIP siècle 1108-1180), Paris, Presses Universitaires de France, 1957. Aliás, a maior parte destas obras é também importante para os problemas evocados nos dois capítulos precedentes. 76 estado, com um conteúdo socioprofissional. «A visão social fragmentase, e os grupos assim distinguidos por exemplo os burgueses e os artesãos) adquiriram uma tarefa especializada, à imagem dos ofícios urbanos.» Mas a noção de ordo subsistiu porque continuava muito viva a preocupação de unidade cristã e nenhuma outra noção teria podido corresponder-lhe melhor. Não é verdade que São Bernardo tinha conseguido integrar nela burgueses e artesãos fazendo da terceira ordem não já a dos camponeses, mas a de todos os laboratores? Assim modificada, a teoria das ordines desempenhará um papel muito importante

até ao fim da Idade Média e aos Tempos Modernos: em França, falar-se-á em Terceiro Estado até 1789, sendo este liltimo termo tomado aqui no sentido de ordem, o que se tornou cada vez mais frequente a partir de Etienne Mareei. 1. Os grupos sociais dominantes; os cavaleiros Os que escrevem — os clérigos — modificaram cerca do ano mil, e sem dúvida com algum atraso sobre a realidade, o seu vocabulário para designar os aristocratas: vassus suplanta fidelis, por exemplo, e regressa nomeadamente o uso de nobilis, salvo em diversas regiões como o Poitou. Este termo nobilis era vago e designava em princípio «um grupo sem limites fixos, sem privilégios, sem títulos» E. Perroy). Pouco a pouco, as regiões francesas substituíram-no por miles, que se aplicava, tal como o precedente, ao género de vida do nobre, mas com maior precisão: a substituição completou-se frequentemente entre 1030 e 1050. E, coisa curiosa, os aristocratas que não se tinham adornado com o «título» de nobre vão rapidamente gloriar-se com o novo termo, pois muitas actas passam a começar assim: «Eu, X, cavaleiro» = miles). Miles não é sinónimo de livre {*) porque não se qualificam assim os homens livres sem vocação militar. Também não é idêntico a vassus ou a fidelis: em França, para nos limitarmos ao que é, juntamente com a Lotaríngia, o sector onde estes problemas foram geralmente mais {*) Na Alemanha, na Lotaríngia, no Berry, na bacia parisiense, etc, existiam cavaleiros-servos. Beaumanoir simplificou demasiado ao opor brutalmente cavalaria e servidão P. Petot, in Revue Hist. de Droit, fr. et étr. 1960). 77 Jbem esmiuçados, certos vassalos oficiais domésticos, ministeriales) não tinham abraçado a carreira militar. O conjunto dos milites forma uma militia, a militia terrestre, oposta à militia divina cf. S. Bento de Núrsia), formada pela ordem dos clérigos. Será que a substituição de nobilis por mz7es é apenas uma adaptação tardia do vocabulário, cerca do ano mil, a uma situação de facto antiga, já que a faculdade de se armar para o combate a cavalo era desde há séculos reservada aos mais afortunados? Não parece, e é necessário fazer intervir um facto importante: então, o estrato nobiliárquico está geralmente em vias de adquirir privilégios consuetudinários, por outras palavras, está em vias de se cristalizar em larga medida, e isso sob a denominação de cavalaria. Ê que o século XI assistiu à conclusão duma evolução começada pelo menos desde os anos 700: nas tropas armadas do Ocidente, não há apenas primazia mas sim o exclusivo dos grupos de cavaleiros com armamento pesado. Os cavaleiros são organizados em pequenos grupos homogéneos, conrois, sendo cada um composto pelos cavaleiros dum mesmo alcaide, os milites castri, habituados a viver, a treinar e a combater juntos, sendo todos vassalos desse alcaide. Em Forez e no Máconnais, e de maneira geral em toda a França do Centro, os cavaleiros do século XI pertencem a linhagens abastadas, reivindicam os mesmos antepassados que os alcaides, seus senhores: desde essa época, para os seus filhos, «cumprir as funções cavaleirescas parece ter sido... uma capacidade estritamente hereditária» G. Duby). Ao contrário, na França do Norte e do Noroeste, mesmo no século XII, muitos cavaleiros vivem duma prebenda, portanto «em condição doméstica, no castelo do respectivo senhor» G. Duby). E nas regiões onde o direito de morgadio se virá a implantar, os mais novos — juvenes — deverão, para viver, agregar-se às companhias vassálicas agrupadas nas casas dos muito «poderosos». Posto isto, os problemas da cavalaria permanecem dos mais controversos

e suscitam continuamente novos trabalhos. Na impossibilidade de poder considerá-los todos em detalhe, tentaremos notar os principais pontos de acordo ou desacordo, particularmente nas regiões de língua francesa. O problema central reside na delimitação, tão exacta quanto possível, deste grupo social. Há outro problema que se encontra inextricavelmente ligado com este: será 78 que este estrato social era aberto e, em caso afirmativo, era-o ou não completamente e até que época? Dependência vassálica e nível de fortuna não são critérios suficientes. Há cavaleiros que podem ser proprietários alodiais, e os seus senhorios são em número e tamanho muito variáveis e assim será cada vez mais graças ao jogo das heranças e das compras). O género de vida, militar, parece o melhor critério, mas isso será menos válido a partir do século XIII, mais ou menos a altura em que os cavaleiros se terão tornado funcionários de reis ou de príncipes, do que nos dois séculos precedentes. Terá havido uma «barreira jurídica», uma «barreira social», e foram elas ou não erguidas entre os cavaleiros e os outros homens livres? Numa obra de 1902 que ainda conserva toda a autoridade Essai sur Vorigine de la noblesse en France au Moyen Age), Guilhiermoz via na cavalaria francesa uma «classe» nobiliárquica que de início era facilmente acessível aos recém-chegados, mas que se teria seguidamente fechado cerca do século XIII), de resto incompletamente. Teoria que foi reforçada, mas algo modificada, por Marc Bloch, primeiro nos seus artigos, depois, em 1940, na sua bela Sociedade Feudal, e que os historiadores franceses seguiram durante muito tempo, e continuam mesmo, por vezes, a seguir. Conscientes de terem um modo, depois um código de vida, diferentes dos restantes homens, conscientes, portanto, da sua superioridade, evitando casar fora do seu meio, os nobres teriam formado inicialmente uma «classe» social. A partir da segunda metade do século XII ter-se-iam transformado lentamente numa «classe jurídica», dotada de então em diante de privilégios hereditários — facto novo —, e isso sob a dupla influência da cavalaria e da hierarquia feudal. Conquistados pelo prestígio que lhes conferia o facto de serem armados cavaleiros, os «poderosos» adoptaram esta cerimónia regularmente e, seguidamente, reservaram-na para os seus filhos. Então, a «classe» da cavalaria ter-se-ia fechado, tornando-se uma «casta»: em consequência, torna-se desnecessário armar os filhos cavaleiros, os quais terminam por herdar automaticamente a posição dos pais. Portanto, uma «casta» evidentemente fechada no século XIII, em reacção contra os progressos materiais e políticos da burguesia compradora dos feudos postos à venda por cavaleiros necessitados: o fecho da nobreza seria o reflexo de defesa duma «classe» ameaçada nos seus interesses e no seu poderio. Muitos historiadores 79 franceses pareceram aderir a esta visão, por exemplo a propósito do Mâconnais, do Norte da França ou da Alsácia. O próprio Georges Duby pareceu inicialmente tomar uma via mais radical ao pensar que, a partir dos anos 1100, a nobreza de Mâcon era uma «casta» fechada em que os homens novos já não podiam penetrar: o fechamento, nesta região, teria sido tão completo quanto precoce. Léopold Genicot lembrou oportunamente o perigo que haveria em estender a todo o Ocidente as conclusões de Alarc Bloch. Com L. Verriest, sublinhou que as regiões ao norte do Somme tinham «permanecido, tanto em matéria de instituições judiciais como da condição das pessoas, o conservatório de velhas estruturas francas... Contraste evidente com as

outras regiões da França, onde, menos sólidas e menos antigas, as instituições evoluíram mais depressa sob a pressão do mundo feudal e se adaptaram com menos dificuldade às recomposições sociais»: é assim que E. Perroy, que em parte aderiu a esta tese, resume a posição. Até ao fim do século XIII teria subsistido em Namurois uma nobreza hereditária e fechada, perfeitamente distinta da cavalaria, simples agrupamento militar definido pelo seu género de vida. Na Lotaríngia, portanto, e por vários séculos, a equivalência nobreza-cavalaria não teria existido. Existe pois um desfasamento no tempo no que respeita à «exaltação da condição de cavaleiro», mais precoce em França salvo ao norte do Somme) e em Inglaterra do que na Lotaríngia e na Alemanha. A partir do século XI, o grupo da cavalaria afirmou-se na maior parte da França. Os clérigos tinham elaborado o conceito de miles Christi desde a época carolíngia, mas ele não se viria a impor verdadeiramente antes do século X: o miles ganha a sua salvação protegendo o povo de Deus, razão pela qual merece beneficiar de privilégios jurídicos. Os regulamentos de paz estabeleceram assim os milites num estatuto particular, muito superior ao dos outros leigos. Ora, ao mesmo tempo, repartiam-se de forma diferente os poderes de comando, nasciam as exacções exigidas pelos detentores do bannum, de que os cavaleiros foram isentos mesmo antes de esse direito deixar de ser monopólio dos alcaides e de muitos cavaleiros passarem, por seu turno, a deter uma parte dele. Assim, no século XI, a cavalaria era «um corpo privilegiado tanto no domínio temporal como no espiritual», ainda que devesse manter-se em França por muito tempo, na 80 literatura como nos costumes, a ideia duma nobreza de sangue mais prestigiada do que a própria cavalaria. Em qualquer caso, o cavaleiro «é simultaneamente sacerdote, soldado e juiz» L. Genicot). Nas regiões do Império, pelo contrário, a influência da Igreja não inflectiu a noção de cavalaria. A manutenção da autoridade régia ou do príncipe no século XI, em matéria de paz, sustentou a ideia de libertas, quer dizer, aqui, de nobreza. Aqui é o nobre quem é sacerdote, soldado, juiz, três missões detidas em princípio ou de facto pelo rei. O que significa que, em suma, em todo o Ocidente, e apesar de diferenças regionais muito acentuadas, homens houve —cavaleiros ou nobres— que tiveram as mesmas missões carismáticas, missões decalcadas do modelo real. E isso sem ou com o reconhecimento do rei, conforme as épocas e as regiões. Nas zonas do Império e em diversas províncias vizinhas, só no século XII é que nobreza e cavalaria se tornaram termos e conceitos equivalentes: será que tal se deve ao aparecimento, aqui tardio, da exaltação da condição de cavaleiro, das dificuldades materiais da nobreza, dificuldades propositadamente exageradas e que não poderiam fornecer uma explicação suficiente? Ou, pelo contrário, ao «reforço dos poderes dos príncipes» que nivelaram as «camadas aristocráticas»? É muito provável. O poder dos alcaides foi reduzido, os cavaleiros das aldeias apoderaram-se duma parte do bannum — o bannum inferior— e transformaram as suas residências em «casas fortes». Foi então que os simples cavaleiros, beneficiando da «vulgarização da autoridade banal», se elevaram ao nível da antiga nobreza dos alcaides. No século XIII, de resto, e um pouco por toda a parte, a reconstituição dos «estados» — aqui dos reis, no Império dos príncipes —, ia modificar os privilégios nobiliárquicos ou cavalheirescos. De então em diante, e por muito tempo, ser nobre significa escapar ao fisco. Daí a obrigação, para o príncipe, de «controlar a pertença dos indivíduos a essa categoria franca»: os critérios serão em geral duplos —consumando a

confusão, se é que ainda era necessário, entre nobreza e cavalaria—, fundados no sangue pela obrigação de ter um antepassado cavaleiro, portanto também fundados no antigo cerimonial. E este controlo do Estado havia de conduzir rapidamente à noção de perda da nobreza. Agora, a nobreza tinha de ser comprovada. 81 Para tentar decidir se a cavalaria foi ou não foi, e a partir de que altura, um grupo mais ou menos fechado, é necessário procurar responder primeiro a duas questões: o que representou ela numericamente, qual foi o seu «grau de fluidez»? No Máconnais do princípio do século XI, o número de cavaleiros era muito pouco elevado, e tinha ainda decrescido no decorrer desse século. Porquê? É que o equipamento do cavaleiro custava caro e o género de vida cavaleiresco exigia muitos tempos livres guarda do castelo senhorial, numerosas expedições próximas ou longínquas — a duração das obrigações militares só viria a ser limitada no século XIII —, guerras de linhagens também, torneios, treinos em geral). Era pois necessário possuir um belo senhorio rural dum mínimo de 150 ha, ao que se pensa), cuja reserva era explorada sob as ordens dum administrador. Por conseguinte, muitos pequenos nobres do século X não tinham podido aceder à cavalaria ou conservar-se nela. O que foi o caso do Máconnais dos anos mil; em cinco paróquias viviam então ao todo sete senhores possuindo o título de cavaleiro. Cerca de 1100 já só havia quatro e, das três famílias desaparecidas da cavalaria, uma tinha-se entretanto extinguido, enquanto as outras duas, empobrecidas, tinham saído da nobreza e aceitado, para subsistir, as funções de preboste — administrador do alcaide. Poder-se-á extrapolar a partir deste exemplo regional? Assim parece, a considerar os reduzidos efectivos que os próprios príncipes reuniam durante a primeira idade feudal. Cerca de 1100, por conseguinte, o número de paróquias não teria sido igual ao das linhagens de cavaleiros. Contudo, o grupo da cavalaria não era fechado. Foi frequentemente renovado pelo aumento da população as famílias de cavaleiros eram muitas vezes numerosas) e pela intrusão de arrivistas. Ainda se conhece muito mal a demografia das linhagens aristocráticas, mas L. Genicot já mostrou que algumas famílias da «nobreza» do Namurois proliferaram de princípio e diversificaram-se em ramos, antes de se reduzirem progressivamente a partir do século XIII pela extinção de certas linhagens. Será possível explicar esta retracção apenas pelos perigos inerentes à vida militar? Não, e as práticas destinadas a evitar o parcelamento das heranças são em larga medida responsáveis: os mais novos tornavam-se clérigos ou então evitava-se que casassem. As pesquisas de E. Perroy para o Forez testemunham disso: as linha82 gens de cavaleiros extinguiam-se em grande número e num lapso de tempo relativamente curto. Mas não todas, nem por toda a parte: G. Duby constatou uma «surpreendente permanência» de diversas famílias de cavaleiros no Máconnais dos séculos XI e XII. Ainda subsistem hoje em dia, no Ocidente, famílias que «remontam às Cruzadas». A extinção das antigas linhagens foi constantemente e largamente compensada «pela entrada de novas famílias enobrecidas pelas suas alianças, as suas funções ou a sua fortuna» G. Duby). Mas em proporções muito desiguais de região para região e também de época para época. Um pouco por toda a parte, de início, esta pequena elite foi aberta aos que eram suficientemente ricos, aos que tinham a possibilidade de comprar armas e cavalos, de se treinarem a maior parte do tempo e de entregar aos respectivos administradores a direcção dos seus domínios. O próprio Marc Bloch via em muitos milites do século XII os

descendentes de aventureiros afortunados ou de camponeses enriquecidos à força de economias. Tais homens, com efeito, tinham o mesmo género de vida que os cavaleiros, a mesma vida militar e recursos fundiários equivalentes. A melhor prova disso encontra-se sem dúvida na literatura do século XII, em que nos são apresentados muitos cavaleiros profissionais vendendo os seus serviços a grandes senhores, e em que não são raros, destes últimos, os que procuram apoio de mercenários, homens novos vindos por vezes de muito longe. Todavia, durante a primeira idade feudal, estes homens novos não encontraram por toda a parte as mesmas facilidades. Era necessário, em primeiro lugar, que o mercenário encontrasse um senhor suficientemente rico que pudesse talhar nas suas propriedades um novo feudo para conceder ao seu novo vassalo. Tal não era possível com um alcaide ou conde de medíocre importância: a observação é seguramente válida para todo o Ocidente. E as condições geográficas não eram por toda a parte idênticas: oponhamos ainda o Centro e o Sul da França ao Noroeste e a uma parte da Lotaríngia. Na França central e meridional as obrigações militares dos vassalos permaneceram, durante a primeira idade feudal, simultaneamente imprecisas e bastante ligeiras: por isso o senhor apenas concedia pequenos feudos e só era possível ser cavaleiro desde que se possuíssem alguns alódios à parte. Nada, portanto, que atraísse os aventureiros: pela força 83 das coisas, o mundo da cavalaria apenas podia ser, no máximo, entreaberto a elementos novos por exemplo no Mâconnais. As coisas passavam-se de maneira diferente nos ricos e vigorosos principados do Noroeste da França e da Baixa-Lotaríngia, bem como em Inglaterra, à semelhança da Normandia. Ê sabido que estas regiões foram reservatórios de guerreiros que se espalharam até ao Oriente: contrariamente a uma opinião vulgarizada, E. Perroy pensa que a supernatalidade dessas regiões — ainda que se provasse a sua existência— não poderia ser a única causa dessa expansão. Desde o século XI que a Flandres e a Normandia eram detidas por príncipes possuidores simultaneamente de autoridade e de riqueza. Daí que lhes fosse possível atrair para a carreira das armas um maior número de homens, aos quais eram atribuídos feudos que na Normandia podiam atingir 400 a 500 ha incluindo a reserva), quer dizer, bem mais do que os da França central ou meridional. A tal ponto que cerca dos anos 1100 o duque da Normandia podia reunir até mil cavaleiros. E, em 1172, haverá 2800 feudos cobrindo sem dúvida metade da superfície cultivável na Normandia. Entre os seus detentores encontravam-se, lado a lado, filhos de cavaleiros e —numa proporção desconhecida— homens novos. E no entanto não tinha sido possível criar feudos em favor de todos os homens novos, nem na Normandia nem na Inglaterra ou na Lota-ríngia. Na Inglaterra de 1116 alguns guerreiros profissionais, não fixados, eram mantidos pelo seu senhor no respectivo domicílio: eram estes os milites de domínio. Em Namurois chamavam-se milites de família ou «cavaleiros da casa» do conde. Seguramente, a cavalaria da primeira idade feudal foi de facto um estrato social aberto e não fechado em todas estas regiões. Ao longo da segunda idade feudal, em contrapartida, este estrato, sem nunca se fechar completamente, tendeu em geral a tornar-se muito menos receptivo a elementos novos. E isso porque se quis considerar que apenas eram cavaleiros os descendentes de cavaleiros: o grupo da cavalaria tinha-se portanto tornado hereditário. Mas quererá isto dizer que nenhum homem novo se poderia infiltrar nele? Não, mas o número dos elementos novos não podia, em qualquer caso, ser elevado, à falta de lugares disponíveis. E as antigas linhagens cavaleirescas, empobrecidas

frequentemente pelas cruzadas e pelas guerras do século XIII, viam com desprazer estes recém-chegados. Tanto mais que os burgueses enriquecidos tentavam 84 por outro lado adquirir feudos, obrigando os costumes a precisar que a compra duma terra nobre — por outras palavras, dum feudo — não tornava nobre o comprador. Se a cavalaria-nobreza *) não se fechou completamente, como pretendia Marc Bloch, é certo que não fez mais do que entreabrir-se em virtude das suas dificuldades materiais, ou, pelo menos, das dificuldades económicas de alguns dos seus representantes, dado que não houve um marasmo generalizado das fortunas nobiliárquicas. 2. Alcaides e castelanias A) Os castelos Já existiam castelos no Ocidente antes do ano mil, sem mesmo falar das fortificações renovadas em torno das cidades de origem romana) ou das que foram apressadamente construídas contra os Normandos e que, de resto, caíram depois em ruínas em alguns casos. È a partir de 900 e sobretudo de 950 que começaram a construir-se fortalezas, razoavelmente numerosas, já não destinadas a proteger uma aglomeração ou um mosteiro mas a vigiar as áreas vizinhas contra quem quer que causasse desordens. Trata-se dum novo tipo de fortificação castrum, castellum, munitio, firmitas — daí ferté —, etc), quase sempre independente duma aglomeração, ao lado de alguns vici. Era uma cintura de muralhas — simples paliçada de madeira, inicialmente — protegida pela sua posição sobre qualquer elevação natural ou sobre um pequeno monte de terra batida para o efeito, ou então bordeada por um rio. Em toda a volta cavavam-se fossos. No interior, no ponto mais fácil de defender, uma torre, mais tarde chamada torreão em francês donjon: dungio deriva de dominus), que muitas vezes deu o nome ao conjunto turris = torre, mas também fortaleza, castelo) e representava a peça mestra do conjunto. A localização era escolhida em função das suas vantagens geográficas e estratégicas: era *) Para o século XIII é preferível utilizar novamente o termo nobreza, dado que na altura já nem todos os filhos de cavaleiros eram armados cavaleiros, sem que por isso perdessem o estatuto privilegiado. E, um pouco por toda a parte, será necessário distinguir uma nobreza «popular» duma nobreza mais elevada, e isto ainda no fim da Idade Média. 85 necessário, antes de mais, vigiar caminhos c rios navegáveis. Distingue-se o castelo de eminência, construído sobre um local elevado permitindo uma boa vigilância do território circundante, por exemplo na zona de contacto entre montanhas ou colinas e planície cf. em Forez), e o castelo de estrada, no cruzamento de vias terrestres ou próximo dum rio para defesa do respectivo vale, como era o caso das fortalezas de planície cf., na Flandres, os castelos de Douai, Aire, Ypres, Bruges, etc, anteriores às cidades que terão estes nomes). Depois do ano mil, tal como antes, os castelos não podiam em princípio ser edificados a não ser pelos detentores locais ou regionais do bannum: até mesmo soberanos fracos como os primeiros Capetos fizeram questão nisso, pelo menos no seu domínio, tal como os condes ou príncipes da França, de tal maneira que se admitiu geralmente, antes das pesquisas arqueológicas conduzidas por M. de Boiiard, que um aventureiro não podia construir uma torre própria: sem dúvida que, muitas vezes, isso lhe teria sido bastante difícil, à falta de meios suficientes, porque a construção, manutenção e guarda dum castelo, mesmo de madeira, custava caro. Foram os condes que edificaram mais castelos: um dos maiores

construtores foi o conde de Anjou, Foulque Nerra, que mandou levantar pelo menos uma quinzena de edifícios no seu condado e arredores, em Loudun, Mirebeau, Moncontour, etc. Ou então os viscondes: por exemplo, os de Thouars e de Chatellerault, que dependiam em princípio do grande condado de Poitou. Isso, entre 950 e 1050. Ou, então, prelados. E se os condes deviam em princípio autorizar toda a nova construção na sua área, pensa-se efectivamente que nem sempre assim aconteceu na realidade, nem sempre puderam controlar os edifícios que estavam nas mãos dos seus «delegados», os viscondes ou os alcaides. Finalmente, ao longo da primeira idade feudal, as fortalezas de origem pública conferiram aos que as possuíam ou guardavam, e que as tinham integrado no seu património, um vivo sentimento de independência, e esta era muitas vezes real. O que explica que G. Duby tenha qualificado esta idade, pelo menos no caso da França, de época dos alcaides independentes. Isto é principalmente válido para a França do Centro e do Sul. Seria falso, em contrapartida, no caso da Normandia, onde, no século XI, o duque conservou o controlo, quase total, dos castelos, ou ainda no caso da Flandres. Seria pelo contrário parcialmente ver86 dadeiro num condado tão vasto como o de Anjou, dotado, no entanto, de condes mais enérgicos: a partir do final do século X estes tornaram-se grandes construtores, Foulque Nerra em primeiro lugar, mas tiveram de confiar a guarda de muitos castelos a vassalos que se tornaram rapidamente rebeldes. Quando, no segundo quartel do século XII, Godofredo Plantageneta se vai aplicar a restaurar a autoridade do conde, que entretanto se enfraquecera, passará o tempo a reconquistar e a demolir os dos mais rebeldes, tal como na Ilha-de-França tinham feito pouco antes os reis Filipe I e Luís VI. A tese mais geralmente admitida é a da raridade dos castelos após o ano mil: ela foi enunciada por reacção contra outra, perfeitamente contrária, que acreditava num nascimento perfeitamente anárquico da feudalidade e sustentava que os castelos tinham sido extremamente numerosos. M. de Bouard acaba de sublinhar que se crê na relativa raridade das fortalezas porque nos deixamos influenciar por uma «concepção legalista» da origem das estruturas feudais. Ora, a fotografia aérea e a exploração do terreno revelam «um número considerável de lugares fortificados de carácter arcaico». Como a pesquisa está longe de concluída, parece prudente distinguir, para efeitos de inventário, as verdadeiras fortalezas e os simples montes fortificados. Parece ainda certo que em muitas regiões o número dos verdadeiros castelos, reduzido no século X, aumentou apenas modestamente depois do ano mil. O Mâconnais cerca de 150 paróquias), onde, no entanto, o poder do conde se encontrava em decadência, apenas viu passar o total dos seus castelos duma meia dúzia no fim do século X para dez ou onze cerca de 1150. De igual modo em Forez e em Roannais, onde as fortificações foram pouco numerosas E. Perroy). Porquê este reduzido aumento? Por um lado, em virtude da progressiva substituição da madeira pela pedra: a construção tornava-se cada vez mais cara, apesar da expansão dos rendimentos senhoriais. Por outro lado em virtude da oposição frequente dos detentores dos antigos castelos, quando não da do próprio conde, príncipe ou rei. Daí as numerosas guerras locais em que os poderosos se coligavam para destruir as fortalezas «adulterinas», apoiados pelos camponeses, cujo interesse era evidentemente opor-se à multiplicação dos detentores do bannum, portanto à das exacções. Segundo os cálculos de J. Boussard, a Inglaterra de 1154, no advento de Henrique II Plantageneta, mal che-

87 garia a contar 250 castelos, cada um controlando entre 30 e 40 paróquias. Estava-se então na época em que a implantação das torres tinha mais ou menos acabado. Setenta e cinco estavam nas mãos do rei, sendo o excedente guardado por prelados ou vassalos directos ou não da coroa. Bem entendido, em algumas regiões quase não havia castelos, mas havia-os em grande número particularmente nas regiões fronteiriças por exemplo, no limite do País de Gales, ainda quase independente, salvo no Sul) ou nos sectores ainda mal submetidos, como o Sul do País de Gales. Estas duas constatações —o número pouco elevado dos verdadeiros castelos; a relativa abundância dos «castelos de marca» — seriam válidas para a maior parte da França, nomeadamente para toda a França Ocidental, da Normandia aos Pirenéus, detida pelos Plantagenetas. Daí uma divisão do território pouco nítida, cada torreão dominando a planície num raio de 5 a 10 km, mais ou menos, o que era suficiente, tendo em conta as técnicas militares. E temos bons exemplos de «castelos de marca» nos limites — disputados — da Normandia dos Plantagenetas e da Ilha-de-França dos Capetos, portanto no Vexin. E. Perroy distingue duas categorias de castelos: — os castelos de marca, em princípio os mais numerosos, factores de insegurança, só podendo sobreviver à custa de guerras incessantes; — os castelos «defensivos», representando o tipo normal, ainda que nem sempre o mais difundido. Mantêm um simulacro de ordem, enquadrando razoavelmente a sociedade cavaleiresca do cantão onde a sua influência económica e política sobre os camponeses é suficientemente forte. São os que mais importa conhecer. Os castelos de madeira já metiam respeito. Mas muito menos do que os de pedra, que apareceram primeiro no vale do Loire, ao redor do ano mil, e que depois se espalharam, entre esta data e os anos 1200, em todo o Ocidente. Salvo de surpresa, não era possível tomar um castelo de pedra a não ser através dum cerco prolongado. Não faltam os exemplos de tomadas impossíveis ou muito difíceis. Filipe I e Luís VI tiveram dificuldades indizíveis para se apoderarem dessas maravilhosas fortalezas da Ilha-de-França que haviam proporcionado aos 88 seus possuidores um excesso de independência, portanto de rebeldia cf. o caso do Puiset). Se os verdadeiros castelos foram residências dos senhores importantes, o aterro fortificado foi, desde o século XI, o «habitat típico do pequeno e médio senhor», e era sem dúvida considerado «como o símbolo da autoridade senhorial» M. de Boiiard): dungio, com efeito, era também sinónimo de motta, termo que de resto lhe é posterior. Tratava-se portanto, naquele caso, dum «habitat senhorial fortificado», de que muitos exemplos foram já observados, de Anjou a Escaut, passando pela Normandia, e mesmo na Itália normanda. Este tipo de habitat «estava ao alcance de senhores de condição modesta ou média, destituídos de notáveis recursos financeiros»: os camponeses podiam trabalhar na construção da fortificação e da residência de madeira que talvez não classifiquemos de castelo) que devia elevar-se sobre o aterro. Em Anjou, em Touraine, na Normandia, na Flandres, a implantação de aterros fortificados «não parece ter sido feita segundo um plano que deixe entrever a intervenção duma autoridade superior à do construtor». «Em Inglaterra, pelo contrário, onde é sabido que após a conquista normanda a organização feudal procedeu da iniciativa régia e foi à partida muito rigorosa, observou-se que no Shropshire) os aterros e os pequenos recintos de terra batida se encontram rigorosamente dispostos de molde a assegurar a defesa dos três grandes castelos dos Montgomery:

Shrewsbury, Caus Castle, Hen Domen» M. de Bouard). Parece portanto que os aterros fortificados, quando não eram encimados por um pequeno castelo, ficavam subordinados aos verdadeiros castelos. No fundo, relevam mais da história do senhorio rural, e não são as verdadeiras fortalezas do senhorio feudal. Voltaremos pois a estas. B) Alcaides, castelanias, senhorios castelões O verdadeiro castelo não é apenas a base do sistema militar. Ele tomouse o centro do verdadeiro poder, e foi neste quadro — o mais vivo durante a primeira idade ** feudal francesa — que se organizaram voluntariamente os cavaleiros) ou à força os clérigos e os camponeses) as três ordens da sociedade. O poder do alcaide estendia-se sobre um território determinado. E, em consequência, a divisão administra89 tiva, pelo menos em França, modificou-se profundamente. A unidade de base tinha passado a ser o pagtis região), termo que se substituiu ao de comitatus condado) nos tempos carolíngios. Este pagus ou condado subdividia-se em centaines, termo frequentemente substituído, no século X, pelos de viguerie ou de voierie, os quais derivam de vicária "). Mas, durante a primeira idade feudal, certos viscondes adjuntos do conde) tinham talhado para si mesmos um território, aproveitando-se do declínio do poder do conde, ao passo que noutros tempos o seu poder próprio era apenas um poder por delegação, destituído de base territorial o viscondado não existia). Não houve continuidade entre os viscondes do século IX e os da primeira idade feudal, tornados frequentemente hereditários e possuidores dum território onde exerciam a totalidade do direito de bannum cf. os viscondes de Thouars, de Châtellerault ou de Béziers). Enquanto a maioria das jurisdições em que o condado se subdividia se extinguiam, o termo viguerie) apenas viria a designar a função dum muito modesto agente senhorial. Os antigos poderes do juiz-delegado do conde passaram para o alcaide, enquanto que as antigas jurisdições — no sentido geográfico — se viam substituídas por novas circunscrições, os territórios: o território era a área em que o alcaide exercia, em princípio exclusivamente, o direito de bannus. Não existe pois coincidência entre as antigas circunscrições judiciais e os territórios. Territorium castri foi primeiro a expressão habitual no Norte da França, mas ela é vaga. Mais frequentemente, preferiu-se-lhe a de districtus =estreito) castri, que indica que o castelo exercia a sua coacção {estreito, aperto) numa área geográfica. Mandamento, termo que só aparecerá no século XII na França do Centro e do Sudeste, é equivalente, dado que mandamentum e districtus são sinónimos. Quanto à Borgonha e à França de Leste, serviram-se de duas palavras precisas: uma — pôté potestas) — é o equivalente de mandamento e de estreito; a outra — salvamento salvamentum) — possui uma tonalidade moral, dado que era a área em que os habitantes estavam sob a salvaguarda do castelo, cujo detentor, em contrapartida, podia imporlhes deveres. Depois de 1150, C) A tradução literal em português —vigário— apenas respeita ao domínio eclesiástico. Traduzimos viguier por juiz-delegado do conde ou do rei), uma vez que se trata dum agente senhorial com fundações de carácter judicial. N. T.) estes diferentes termos serão suplantados por um novo, e finalmente já só se falará de castelania ou alcaidaria — casíellania). Nada disto se fez num dia, mas, ao longo do século XI, elaborou-se em França uma nova geografia «administrativa» — e, portanto, judicial. Geografia ainda movediça, confusa, pouco clara, com numerosos enclaves,

com limites decerto imprecisos e constituídos por zonas indecisas e disputadas entre vizinhos. Traçá-los sobre um mapa seria aleatório, a menos que se disponha, como G. Duby para o Mâconnais, duma documentação excepcional. Mas tudo isto é específico da França. Assim, na Inglaterra normanda, não houve senhorios castelões porque o rei era forte: o castelo dum vassalo não era —talvez como os aterros fortificados do continente — mais do que um centro de administração dominial para os solares da honra, por outras palavras, do grande feudo detido por esse homem. Não havia portanto castelanias, áreas militares e judiciais, mas apenas liberdades ou franquias: cada honra formava uma liberdade ou franquia, e o seu possuidor, clérigo ou leigo, exercia diversos direitos sobre a população em lugar dos agentes reais, mas tratava-se duma relação financeira infinitamente menos importante do que as exacções efectuadas pelos alcaides franceses. Simplesmente, mas é importante, isso conferia ao titular um grande prestígio e influência social sobre os camponeses, bastante análogos, sob certos aspectos, aos dos alcaides franceses. Mas a semelhança termina aqui. Quanto à Alemanha, a situação foi simultaneamente diferente da francesa e da inglesa. Ainda no século XII os castelos estarão nas mãos dos condes, uma vez que o direito de erguer fortalezas escapou rapidamente à monarquia. Mas os condes, ao enfeudarem alguns dos seus castelos, reservaram-se um direito de controlo, tal como os príncipes sobre os seus vassalos. Dizia-se que o castelo «podia ser entregue a qualquer guarnição, grande ou pequena», e o vassalo era obrigado a assegurar a guarda permanente serviço de Burghut). Por conseguinte não se vêem, ao que parece, castelanias independentes como em França. E ao passo que os reis normandos de Inglaterra submeteram, em suma, os castelos à sua dominação, que os reis de França, mais tarde nos séculos XII e XIII), farão em larga medida o mesmo, jamais os monarcas alemães voltarão a adquirir um direito de controlo sobre as fortalezas, salvo nas terras e nos condados que relevam directamente da sua autoridade e onde de resto 90 91 nunca a tinham perdido: serão os príncipes territoriais da Alemanha os beneficiários deste trabalho de concentração de poder, e não os reis, como em França e na Inglaterra. Dos poderes e rendimentos que os alcaides franceses retiravam do seu direito de bannum, e à parte o aspecto puramente militar do problema, distinguem-se duas categorias: a) Os poderes policiais. — Eram em princípio os que se justificavam melhor, mas eram frequentemente os menos rendosos. Tinham por fim proteger a circulação dos viajantes e das mercadorias. A guarda das estradas passou do rei, depois do duque ou do conde, para as mãos do alcaide: chama-se conduto conductus). Salvo nos casos em que os alcaides não passavam de salteadores, esse conduto foi eficaz e permitiu, juntamente com muitas outras causas, é verdade, a renovação comercial dos séculos XI e XII. O senhor ora fornecia uma escolta aos mercadores, peregrinos, grandes personagens, ora se fazia pagar pela sua protecção através dum seguro ou «salvo-conduto», ou, ainda —caso mais durável e mais frutuoso—, impunha uma portagem, taxa geralmente ad valorem e pagável por toda a mercadoria obrigada a passar num ponto determinado. Foi assim que as portagens se multiplicaram, pelo menos em França, a partir dos anos 1050. Se as portagens —ou os condutos— não fossem proibitivos, se a protecção fosse verdadeiramente eficaz, permitiam uma circulação dos homens e das coisas mais intensa. Mas a

proliferação das portagens— o seu número aumentaria incessantemente até ao fim da Idade Média— podia provocar desvios de tráfego mesmo nas regiões onde a paz estava assegurada. Em todo o caso, à medida dos progressos da expansão económica do Ocidente, as portagens, que de início não tinham rendido muito, acabarão por tornar-se um dos principais recursos dos alcaides. Enquanto o direito de conduto ia perder importância, devendo o conde, e depois o rei, outorgar o seu próprio conduto num território mais vasto e de resto pacificado: o conduto dos condes de Champagne, depois o dos reis de França, constituíram nos séculos XII e XIII uma notável protecção para os mercadores que se dirigiam às feiras da Champagne. b) Os outros poderes: senhorio banal e senhorio castelão. — Será ou não necessário distinguir dois tipos de 92 senhorio detidos pelo alcaide, o senhorio banal e o senhorio castelão? Ê discutível. No entanto, é preferível fazer a distinção porque o direito de bannum não ia continuar a ser exclusivo dos alcaides mas, ao contrário, sobretudo sob o seu aspecto económico, seria partilhado entre estes e outros senhores rurais, e em primeiro lugar, sem dúvida, aqueles que dispunham dum aterro fortificado. Até mesmo àqueles habitantes do sector que não eram seus tenanciers, o senhor banal pôde impor diversas obrigações, entre elas a de utilizar o seu moinho, o seu forno, o seu lagar, a sua destilaria, mediante uma taxa que representa simultaneamente o preço do serviço prestado e uma «exacção». Nos campos de França, o papel económico das banalidades foi de primeira importância. Mas, em datas variáveis e ainda mal conhecidas, muitos outros senhores rurais puderam apoderar-se desse direito, que parece representar em grande parte o bannum «inferior». Depois do bannum económico, o bannum militar, que, neste caso, apenas será exercido pelo alcaide. Passado o fim do século X, os chefes militares que tinham um castelo arrogaram-se o bannum superior sobre todos os habitantes do território, quer dizer, de facto, sobre todos os camponeses. Os benefícios do bannum, para além dos de ordem policial e económica de que acabámos de falar, consistiam para o alcaide: — em fazer recair sobre os habitantes todas as despesas militares: construção ou manutenção do castelo; — na contribuição para a sua defesa, participação nas guerras do alcaide como peões ou através do fornecimento de géneros ou de serviços de transporte; — em punir os camponeses e arrogar-se os lucros da justiça, civil ou criminal, exercida contra eles por qualquer causa que fosse. É fora de dúvida que o bannum foi «um maravilhoso instrumento de dominação» Ch.-Ed. Perrin), sobretudo quando se encontrava ou permanecia nas mãos dum possuidor duma fortaleza. Quanto às igrejas de castelania, não escaparam completamente ao bannum mas, invocando as suas imunidades, conseguiram obter quer uma partilha das prerrogativas do bannum quer uma «tarifação» mais ou menos ligeira dos direitos banais. O alcaide, guardião das casas religiosas da sua área, não pôde geralmente impor ou 93 manter um poder arbitrário sobre os clérigos e sobre os homens que destes dependiam. É evidente que o poder e a riqueza do alcaide não teriam podido estabelecer-se nem manter-se se este não tivesse conseguido enquadrar eficazmente a sociedade cavalheiresca da sua área: os milites castri, pouco afortunados salvo na França do Norte e em Inglaterra), ligados entre si por alianças familiares, cujas heranças se fragmentavam em

cada geração, não teriam podido viver, nem manter o seu nível e armarse, sem o socorro e a generosidade do respectivo senhor, o alcaide. Dependência económica e laços vassálicos reforçavam-se assim reciprocamente para maior benefício do possuidor da «torre» da área. Mas o apogeu dos «alcaides independentes» situa-se cerca dos anos 1100; o século XII, no entanto, iria assistir ao seu declínio e à ascensão, em França como noutros lados, de poderes territoriais de raio de acção geralmente mais lato. 3. O reagrupamento territorial e os principados O problema é da maior importância. Seremos contudo breves, por falta de espaço e sobretudo porque não faltam obras bastante divulgadas que tratam dele abundantemente. Como passámos em silêncio as regiões cristãs da península Ibérica e estando a Inglaterra evidentemente fora de causa, resta assinalar o essencial a propósito da França, da Alemanha e da Itália, pelo menos da Itália do Norte e do Centro. A) A França Não qualificaremos ainda de Estados os principados franceses dos séculos XI-XII e XIII, como poderíamos fazê-lo a propósito dos «Estado» borguinhão do final da Idade Média. Durante muito tempo, salvo — mesmo isso— no Oeste dos Plantagenetas, a autoridade dos condes e dos duques assentou sobretudo na importância dos seus próprios feudos e das suas clientelas de vassalos. Pouco a pouco, no entanto, eles viriam a conseguir recuperar os direitos régios por exemplo, o de cunhar moeda) e o direito de bannus, em detrimento dos alcaides. Se o 94 século XII é o século da decadência para as castelanias, é pelo contrário o século dum primeiro progresso para muitos principados da França. A tarefa dos príncipes seria dupla: domesticar os vassalos rebeldes e esboçar uma administração para cada principado. Não faltam mapas dos «grandes feudos» para os séculos XII e XIII, ao passo que seria duvidoso estabelecê-los para o século X ou os anos mil. O facto é significativo: prova uma certa precisão nos limites dos principados se bem que não se deva exagerá-la) e uma certa permanência na consistência de cada «grande feudo». E um número relativamente elevado de principados remonta ao final da primeira Idade Média: inicialmente não dispunham, como na Alemanha, do cimento dum particularismo étnico ou outro, mas o hábito de viver em conjunto acabou por fazer aparecer um certo grau de particularismo que seria evidentemente anacrónico classificar de «provincial». Alguns grandes feudos conservam a mesma configuração, nas linhas gerais, do final da alta Idade Média: o melhor exemplo é seguramente o da Normandia, cujos limites conheceram uma fixidez excepcional, ou então o da Bretanha, o da Flandres, etc. Outros procuraram estender-se, como o condado de Anjou sob Foulque Nerra 987-1040), que fez mais do que ir roendo nos principados vizinhos. Em suma, a época seria antes, sobretudo no séculos XII e mais tarde, uma época de simplificação do mapa territorial, sinal indubitável dos sucessos dos príncipes. Um caso à parte, que demonstra bem que a hora já não é de fragmentação mas de reagrupamento: a expansão dos Plantagenetas, que, a partir de Henrique II, acabaram por deter toda a metade ocidental do reino. O melhor exemplo de unificação dum principado é, escusado será dizer, o do domínio real, tanto mais que ele explica em parte como os Capetos iriam conseguir aumentar o poderio real tão enfraquecido, limitar a independência dos príncipes e, finalmente, apoderar-se de bom número de grandes feudos. Segundo J. F. Lema-rignier, Hugo Capeto e Roberto, o Pio, apesar do desmembramento político do reino de França, continuavam

a apoiar-se na tradição carolíngia, sem se empenharem suficientemente no seu domínio. A partir de Henrique I 1031-1060), a realeza compreende enfim que a única base do seu poder, ou quase, reside na posse do principado da Ilha-de-França, tanto mais que os condes e os bispos se abstêm cada vez mais de fazer parte da corte 95 do rei. De então em diante, o palácio do rei deixa de ser o conselho dos «fiéis», para ser apenas o conselho das grandes famílias do domínio real, unidas ao rei por laços de parentesco em muitos casos, as dos alcaides e cavaleiros, às quais se vêm juntar modestos magistrados de aldeia. Isso permitiu uma compreensão geográfica, um reforço da autoridade do rei, da sua justiça, sem o que não se compreenderia bem como Filipe I 1060-1108) e o seu sucessor, Luís VI 1108-1137), teriam podido, como fizeram, dominar os senhores excessivamente cobiçosos e restabelecer a ordem no domínio. Este último era rico, mas de média extensão, e a sua administração antes de Filipe Augusto há-de parecer bastante primitiva em comparação com a de diversos grandes feudos. Mas encontrava-se, pelo menos, sob o controlo seguro do rei, poderoso senhor fendal graças ao seu domínio, o que lhe vai permitir lançar-se ao assalto dos grandes feudos, cujas estruturas administrativas irá copiar. Porque, finalmente, os Capetos beneficiarão da obra realizada pelos duques c pelos condes R. Fawtier). B) A Alemanha Dado que, entre o século XI e os anos 1300, o poder real na Alemanha seguiu uma curva inversa da do poder dos Capetos, os principados «germânicos» prolongaram a sua expansão durante mais tempo que os franceses: é sabido que o parcelamento territorial da Alemanha sobreviveu até à época contemporânea. E se o mapa «feudal» da França tendeu sempre para uma maior simplificação, o da Alemanha tornou-se cada vez mais complicado. Deram-se na Alemanha, simultaneamente, o reagrupamento territorial em certos casos e o parcelamento mais acentuado noutros. A formação dos principados está ligada à feudalização das funções públicas que atingiu todos os duques e todos os condes. A feudalização dos príncipes leigos remonta ao século X, mas a dos príncipes eclesiásticos —bispos e abades dos mosteiros régios— apenas data do final do século XII: estes últimos cessam então de ser considerados como funcionários. Todavia, no princípio do século XIII, o rei continuava a ser o chefe supremo da justiça na totalidade do reino. Mas, mais tarde, Frederico II, que queria obter o apoio dos príncipes para o seu grande desígnio a íntima união do reino da Sicília 96 com o Império), ia outorgar-lhes privilégios exorbitantes 1220 e 1232): confirmou-lhes os direitos régios de que gozavam mas, por isso mesmo, acentuou a velocidade do processo que levava os Fiirsten da Landesherrlichkeit senhorio territorial) à Landeshoheit soberania territorial), nomeadamente à posse de jurisdição superior em detrimento da realeza, o que se consumou a partir de 1250. Oponhamos a Alemanha Ocidental, ou Velha Alemanha, fechada nos seus limites da alta Idade Média, à Alemanha a leste do Elba, terra de colonização recente. A oeste o parcelamento torna-se extremo, ao passo que a leste o mapa é nitidamente menos complicado porque não faltam aí principados poderosos de futuro assegurado. Notemos também que o parcelamento contínuo não enfraquece completamente a jurisdição dos príncipes, tendo-se estabelecido toda uma hierarquia de principados. Os principados de maior importância são detidos pelos Fiirsten: sob Frederico II havia 16 príncipes leigos e 90 eclesiásticos, sendo a

constituição de grandes principados religiosos um dos traços característicos da história medieval alemã. Eram príncipes aqueles duques e condes desfrutando duma autoridade e dum poderio particularmente fortes marqueses, landgraves, condes palatinos). Em seguida, outros condes viriam a ser elevados à dignidade de príncipes, e no século XV haverá uma quarentena de Fiirsten leigos. O principado superior é o ducado: no final da primeira Idade Média, eram cinco Lorena, Saxónia, Francónia, Suábia, Baviera). A Lorena dividiu-se em dois desde cedo, tendo-se o Brabante substituído à BaixaLorena. Depois o ducado da Boémia foi integrado na Alemanha o respectivo titular será mais tarde portador do título de rei). Sob Barba Ruiva, outros ducados foram criados, o Brabante, a Áustria, a Estíria, a Caríntia, a Vestefália, a Morávia. Alguns marquesados devem ser colocados entre os principados superiores: são eles o Brandeburgo, a Lusácia, a Misnia. São sobretudo estes principados de maior importância que constituem, no século XIII, verdadeiros Estados dotados duma organização administrativa. E é principalmente entre os leigos e os prelados possuidores de principados superiores que a Bula de Ouro de 1356 vai escolher os eleitores dos soberanos. O segundo escalão dos principados é formado por condados ainda importantes, cujos titulares possuem 97 por vezes o título de landgrave ou de conde palatino, por exemplo a Turíngia ou o condado palatino do Reno. Outros condados relevam dos príncipes ou ainda do rei, como o do Tirol. E, no mais baixo degrau da hierarquia, encontramos senhorios religiosos ou leigos de extensão ainda considerável. Todavia a Alemanha é apenas um conglomerado de Estados completamente soberanos, senão mesmo verdadeiramente independentes. Mais do que a monarquia, é a própria nobreza que começa a organizar-se numa ordem Stand) que conserva um mínimo de coesão: a recordação das grandezas passadas, da luta contra os Húngaros, primeiro, e contra os Eslavos, sobretudo, o sentimento de pertencer a uma mesma civilização, distinta da dos Latinos do Ocidente e do Sul, a conservação da ideia imperial, tudo isso impediu que a Alemanha ficasse reduzida a uma palavra destituída de sentido. C) A Itália do Norte e do Centro Itália Imperial) Deixemos de parte os Estados da Igreja, que se tornaram pelo menos desde o século X uma entidade soberana: o Papa tem de fazer face à anarquia alimentada pelos senhores locais, mas o seu próprio território não é «feudal». Ainda existe um reino de Itália, mas o rei, que é o imperador, só o domina parcialmente aquando das suas expedições na península. Um dos efeitos desta carência, para não falar de outras, é o agravamento da pulverização em muitas regiões. Existem, em traços gerais, duas espécies de «territórios» tomando-se o termo no seu sentido mais vago). O condado italiano fragmentou-se ainda mais do que o alemão: com maior ou menor acordo régio, beneficiaram disso múltiplos personagens, numerosos senhorios e localidades. E, face aos ducados e marquesados que englobam frequentemente vários condados, encontramos as grandes cidades. Estas, graças ao movimento comunal, vão libertar-se do sistema feudal e depois cada uma delas, ou quase, vai tentar apoderar-se da planície circundante e criar um contado. O contado não é um principado feudal, o que levou a Itália do Norte e do Centro a assistir à coexistência de principados feudais — os ducados e marquesados— e de «territórios» que desconheciam, pelo menos ao nível superior, a feudalidade.

98 4. As monarquias feudais A expressão monarquia feudal, lançada por Petit-Dutaillis, evoca um facto de grande importância: uma monarquia é feudal quando o rei retira o essencial do seu poder das suas prerrogativas feudais. A monarquia germânica terá sido uma monarquia feudal? Sobre este ponto, nomeadamente com respeito ao século X, os historiadores alemães dividiram-se. Otão I, é certo, remeteu os duques para o seu papel de funcionários à moda dos carolíngios. Mas o aspecto «carolíngio» da realeza germânica veio finalmente a esbater-se: no século XII, esta feudalizou-se completamente porque a concordata de Worms transformou os principados eclesiásticos em feudos régios, tendo Frederico Barba Ruiva querido restaurar a autoridade real apoiando-se no direito feudal. O que se pode dizer é que, e não apenas porque permanecia electiva, a monarquia alemã não logrou retomar vigor com a ajuda do direito feudal. Completamente diferente é o espectáculo proporcionado pelas realezas da França e da Inglaterra. De imediato, a monarquia anglo-normanda apoiouse no direito feudal, mas, se isso resultou durante séculos, tal devese provavelmente ao facto de a feudalidade ter sido «importada», imposta pelo rei. Por conseguinte, o poder real retirou daí uma grande força, mas foi longe de mais na exploração do sistema feudal, o que será uma das grandes causas da reacção dos barões que levará à Magna Carta e a numerosas desordens ao longo do século XIII: é evidente que não se trata de instaurar na grande ilha uma «monarquia parlamentar» —a expressão é verdadeiramente anacrónica— mas apenas de temperar o poder do rei e as prerrogativas que lhe tinham conferido os costumes feudais importados. Nada há nisto que não seja de natureza muito conservadora. O melhor exemplo de grande monarquia feudal é seguramente o dos Capetos, pois é a propósito da França que se vê melhor como uma feudalidade espontânea e não importada pôde, finalmente, mostrar-se benéfica para o poder real. O Capeto não era, como demasiadamente se repetiu, um «pequeno senhor», o da Ilha-de-França. Mas outros príncipes podiam ser mais poderosos do que ele adentro dos seus domínios: nenhum, contudo, a não ser por ocasião de revoltas passageiras, «recusou verdadeiramente reconhecer a supremacia teórica do rei». Isso por 99 duas razões: primeiro porque o rei é o rei, um rei sagrado, herdeiro do título de Carlos Magno, cuja lenda se manteve tão viva por muito tempo. O soberano pôde assim subsistir e depois, a partir pelo menos do século XII, foi-lhe possível consolidar o seu poder. O rei é um ser à parte, acima dos outros, representante de Deus e garante —em princípio— da paz pública. Daí um evidente prestígio, mesmo junto dos grandes leigos e, mais ainda, junto dos clérigos no auge da reforma gregoriana, nunca houve diferendos dramáticos entre os Capetos e os Papas). «Isto não significa que não se mova guerra ao rei), que ele não seja derrotado. Poucos soberanos conheceram tantas derrotas como os Capetos até Filipe Augusto. Mas o rei nunca será esmagado. Porque, apesar da sua fraqueza, ele continua a ser o rei, o ungido do Senhor» R. Fawtier). Pouco a pouco, concluiu-se a edificação da pirâmide feudal: pensa-se actualmente que isso aconteceu no tempo de Suger, portanto na primeira metade do século XII, sob a influência das hierarquias gregorianas, elas mesmas inspiradas na obra de Cluny J. F. Lemarignier). De então em diante, o rei é «o suserano supremo e, directa ou indirectamente, todos os feudais do reino são homens dele» R. Fawtier). E temos aqui o segundo motivo da sobrevivência da monarquia capeta: desde o século XI que eram em maior número os grandes ligados ao rei por laços de

dependência feudal, tendo depois passado a estar todos nessa dependência, portanto a partir do tempo de Suger. É este segundo motivo o mais importante do ponto de vista que nos interessa. Jogando com a sua dupla qualidade de soberano e suserano, o rei, num primeiro tempo, não deixou prescrever as prerrogativas que o costume feudal lhe conferia, isto antes de se servir delas, num segundo estádio, para aumentar as suas forças e o seu domínio. De princípio, durante o século XI e a primeira parte do século XII, os reis raramente hesitaram em afirmar a sua posição de suseranos, e isso sem dificuldades demasiadas: já em 1002, tendo o duque da Borgonha morrido sem herdeiros, Hugo Capeto recusou-se a reconhecer OtãoGuilherme, escolhido pelos grandes, e, à custa de várias campanhas escalonadas ao longo de treze anos, conseguiu impor-lhes o seu candidato, Roberto, seu segundo filho. Ê certo que o Capeto nem sempre lograva alcançar os seus fins cf. o caso da Flandres, em 1127, onde, no entanto, os príncipes tinham aceite 100 Guillaume Cliton). Pelo menos o princípio não caía em esquecimento. E não se tratava apenas do direito de intervir na escolha dum príncipe na ausência de herdeiro directo. Mas também, em grandes ocasiões, de fazer os grandes respeitar a fidelidade devida ao rei: em 1078, por exemplo, Filipe I proibiu ao duque da Aquitânia e aos prelados que realizassem um «pseudoconcílio» convocado pelo legado com um desígnio hostil ao rei, sob pena de faltar à fé jurada. E Guilherme VIII, ajudado pelos habitantes de Poitiers, molestou os Padres conciliares. O rei não foi apenas ajudado pelo seu prestígio, mas também pelo facto de que um príncipe tinha frequentemente conveniência em estar de bem com ele, pois podia vir um dia a necessitar da sua ajuda; em 1162-1163, o conde de Toulouse, ameaçado por Henrique II, rei de Inglaterra e há pouco duque da Aquitânia, apelou para a ajuda de Luís VII, nestes termos: «Nós perdemos a nossa terra, ou antes, a vossa, dado que... tudo o que é nosso vos pertence.» Muitos príncipes traíram os reis — a traição era comum a todos os níveis da sociedade feudal—, mas com má consciência e nem sempre levando a sua traição até ao fim. Isso será verdade no século XIII, por exemplo sob a regência de Branca de Castela, o que não deverá surpreender, uma vez que os Capetos se tinham então tornado poderosos. Mas era-o muito antes. Assim, em 1103, o conde da Flandres aliou-se ao rei de Inglaterra contra Filipe I, «salva a fidelidade ao rei de França»: «Se o rei Filipe viesse a Inglaterra e trouxesse com ele o conde Roberto, este conduziria o contingente mais pequeno possível, por forma a que não pudesse, no entanto, incorrer no confisco do seu feudo por parte do rei de França.» R. Fawtier mostrou admiravelmente que «o vassalo que se revoltasse contra o rei, ainda que este fosse tão fraco como Filipe I, tinha razões de receio. Atormentava-o a fé jurada porque, ao violá-la, dava aos seus próprios vassalos um exemplo perigoso»: o suserano, mesmo fraco, pode apreender o feudo do rebelde e concedê-lo a um terceiro, o qual, esse, será suficientemente forte para se apoderar dele de armas na mão. Por outro lado, em virtude da sua própria fraqueza, os quatro ou seis primeiros Capetos impediram os príncipes de «se aperceberem do perigo que havia para o futuro da grande nobreza nos direitos teóricos — ou cuja prática, durante 101 muito tempo, foi apenas ocasional— que o sistema político atribuía ao

rei». Eis a razão pela qual «a dinastia capeta, no dia a seguir a ter adquirido uma base territorial suficiente portanto sob Filipe Augusto), se vai encontrar quase instantaneamente senhora da feudalidade». De forma insensível, e ainda insuficientemente conhecida porque só há pouco tempo é que se descobriu que a «pirâmide feudal» não se encontrava constituída no começo da primeira idade clássica), os Capetos acabaram por transformar todos os príncipes em seus vassalos. Por diversos meios, e graças ao prestígio da sagração, afirmaram em seguida a sua posição no cume da pirâmide, por outras palavras, a sua posição de suserania senhor supremo). Se o rei adquirir um feudo de modesta importância detido por um senhor, não deve homenagem a ninguém. Princípio que continuará a ser afirmado com o maior vigor: numa resolução de 22 de Outubro de 1314, o Parlamento lembrará que «os reis de França não têm o costume de prestar homenagem aos seus súbditos». Nem a ninguém fora do reino, nem sequer — nem sobretudo — ao imperador, que reivindicava o supremo poder temporal no Ocidente latino. Em relação à baronia, os Capetos retiraram pois a sua maior força moral da sua qualidade de suseranos. Pouco a pouco, e principalmente a partir do tempo de Suger, usaram mais largamente do seu direito de pedir conselho aos grandes. Daí os progressos tão promissores da Cúria Regis. Aí passam desde então a ser julgados grandes processos, é aí que os bispos apelam dos duques e condes, aí que as comunidades urbanas apresentam os seus casos. De início são os grandes que julgam, mas, face ao afluxo ainda muito relativo— das causas, e perante os progressos do sistema consuetudinário, aceitam seguidamente ser assistidos por juizes profissionais e aceitam mesmo que sejam estes, na maioria dos casos, a ditar a sentença. Mas o dever de conselho ultrapassa, para um feudatário, o domínio jurídico. Desde Luís VII que se realizam nos palácios de Paris assembleias de barões que são assembleias políticas: aí se decide da Cruzada, da guerra contra o Plantageneta, aí se elaboram ordenações gerais sobre a «paz» em benefício da Igreja e do povo. Os grandes habituam-se a vir a Paris e a fazer parte da corte do rei, depois a executar as suas decisões, porque estas terão sido tomadas na sua presença e com o seu assentimento. Deste dever de conselho, que Filipe Augusto e os seus sucessores utilizarão muito mais e de que tirarão o maior benefício, digamos também que iam sair as grandes instituições da monarquia, tal como a «dilatação» do domínio e poder reais. Filipe II ia «tirar da sua prerrogativa feudal benefícios decisivos. A Cúria, em virtude mesmo do seu carácter feudal, tornou-se nas suas mãos um instrumento temível» Petit-Dutaillis). O poder real reforçou-se de maneira inédita com as aquisições totais ou parciais de grandes feudos, sem falar de uma multidão de aquisições menores. Está fora de questão lembrar aqui nem que fossem apenas as etapas desse processo, mas vamos apreciar somente os processos utilizados pelos grandes Capetos. Estes «utilizaram pouco a força», preferindo «acordos particulares», explorando ao máximo — e pelo menos com a aparência de boa-fé é — todas as possibilidades oferecidas pelo direito feudal: Carlos V não foi seguramente o primeiro rei de França a ter merecido o epíteto de «advogado»! O melhor exemplo, que é também o mais conhecido, é a deserdação de João Sem Terra: o que mostra, de resto, que em apoio do direito feudal era necessário fazer intervir quer o peso da força quer o do génio político, duas coisas de que Filipe Augusto não era destituído. «Um suserano que tinha dinheiro, um grande domínio, um exército sólido, podia pedir muito ao dever vassálico» Petit-Dutaillis). Foi o que fizeram os Capetos a partir de Filipe Augusto. Cada vez mais, o

carácter feudal da monarquia foi para esta última «uma fonte de força». Fixaram-se por escrito —o que já tinha feito Henrique II Plantageneta —, e depois de inquéritos, as obrigações dos vassalos, que foram recenseados, aumentou-se o número dos vassalos directos do rei — retorno à política de Carlos Magno —, recorreu-se largamente às cauções feudais. E ver-se-á como os reis, de Filipe Augusto a Filipe, o Belo, usaram, ou até mesmo abusaram, dos direitos de confisco, de guarda e de casamento. Utilizando a possibilidade, reconhecida pelos costumes, de proceder a trocas, Filipe II soube adquirir as fortalezas estrategicamente mais bem colocadas. Houve coisas mais importantes. Os dois serviços — de conselho, de ajuda militar e financeira— devidos ao senhor pelos vassalos permitiram ao rei suserano reunir exércitos numerosos para a época) e, sem que ele houvesse sempre tido rapidamente consciência, esboçar verdadeiros órgãos de governo e administração. É 102 103 certo que o serviço militar estava agora limitado a 40 dias pelo costume para além disso, os vassalos podiam abandonar o exército, mas o rei podia retê-los mediante um pagamento), e esta duração era insuficiente para conduzir vastas e longínquas operações, mas nem por isso os grandes Capetos e Branca de Castela deixaram de resolver situações difíceis. Um só exemplo: Bouvines, vitória de Filipe Augusto, devida tanto ao valor e à fidelidade das suas tropas quanto ao seu génio pessoal. Mas as consequências da utilização pelo rei do serviço de conselho ou de corte foram ainda mais significativas. Podem dizer-se imensas: foi este serviço devido pelo baronato que esteve na origem do renascimento do «poder legislativo» do rei, do nascimento do Parlamento de Paris que foi, sob algumas reservas, a mais admirável instituição da França medieval e moderna) e de outros órgãos centrais da monarquia. «O papel essencial do rei de França —escreveu R. Fawtier — consiste em ser o juiz supremo. Mas a justiça, no que ela tem de terrestre, nunca é mais do que a aplicação da lei, e é uma questão mais delicada a de saber em que medida o rei de França, na Idade Média, deteve o que nós chamamos o poder legislativo.» O rei, como os duques e os condes, pôde sempre, em princípio, obrigar os seus vassalos a respeitar uma resolução debatida e tomada na sua Cúria. Isso, no seu domínio. Mas o que aconteceu com as ordenações gerais, executórias em toda a extensão do reino? As duas primeiras ordenações gerais datam do reinado de Luís VII: em 1144, o rei baniu os judeus do reino e, em 1155, estabeleceu a paz de Deus por dez anos. Era, em 1155, uma decisão bastante platónica, «manifestação dum impulso de piedade nos barões presentes, que tinham dado a sua aprovação — ex beneplácito), mais do que uma disposição emanada da vontade real». Não é evidentemente senão a partir do reinado de Filipe Augusto que as coisas se passarão de outra maneira: ordenações limitando a jurisdição eclesiástica, regulamentando a partilha dos feudos, interditando a usura, etc, foram promulgadas durante o seu reinado e o do seu filho «de acordo entre o rei e os barões». A partir do reinado de Luís VIII e durante a regência de Branca de Castela, os barões que estivessem ausentes da corte do rei em que se decidisse uma medida geral eram obrigados a acatar a respectiva execução dentro dos seu feudos. Durante o reinado pessoal de São Luís, o aspecto feudal das ordenações régias esbateu-se. Sob a influência de juristas cada vez mais

penetrados do direito romano e sob a influência da reunião da Coroa do Languedoc do Meio-dia, onde o direito romano se encontrava em pleno renascimento desde o século XII, o poder real tornou-se cada vez mais o dum soberano e foi cada vez menos o dum suserano. São Luís, sob a influência também dos canonistas, «julgava que o rei tem o direito de impor a todos a sua vontade, porque ela é conforme evidentemente à vontade geral», ao «bem comum», como dirá Beaumanoir. Mais ainda, Filipe III desenvolverá uma actividade legislativa considerável. Mas esta aplicação das ideias romanas e religiosas só foi possível «porque os predecessores de São Luís puderam alargar a pouco e pouco a área de observância dos seus éditos, graças ao sistema das consultas feudais». Mais importante ainda foi o desenvolvimento da justiça monárquica. Foi este que, roendo com tenacidade as justiças feudais, enfraqueceu os principados e preparou a sua união à coroa. No fundo, tudo procede da justiça, e o rei só é legislador supremo porque se afirmou como juiz supremo. O rei e a sua corte reconquistaram lentamente, também neste caso, todo o terreno perdido desde os carolíngios que sucederam a Carlos Magno. Até ao fim do reinado de Luís VI, a corte —por outras palavras, o rei e os seus barões presentes— apenas tinha tido que tomar conhecimento dos diferendos entre prelados, ou entre prelados, juízes-delegados e senhores vizinhos, ou então, a partir do princípio do século XII, processos respeitantes às cidades, à parte os casos de crime envolvendo os grandes leigos e que eram julgados pelos seus pares em conformidade com o direito feudal. Mas o rei raramente submeterá à sua corte os seus próprios diferendos com os grandes feudatários. Em contrapartida, a partir do tempo de Luís VII, a actividade judicial da corte desenvolveu-se, apesar das resistências dos grandes e até do próprio clero. Contudo, Luís VII é considerado um rei fraco. Por isso, Luís Augusto conseguiu facilmente impor a competência da sua corte, daí em diante composta em parte de juristas profissionais, para julgar os processos entre varões ou entre estes e o rei. Em 1202-1203, João Sem Terra foi condenado à perda dos seus feudos franceses: não era a primeira vez que um grande feudatário 104 105 era condenado, mas era a primeira vez que o rei podia, pela força, fazer executar a sentença da sua corte. Foi em meados do século XIII que o Parlamento — ou os Parlamentos, como primeiro se disse — se distinguiu como parte judicial e permanente da Cúria Regis, antes de se tornar, cerca de 1300, um corpo especializado, independente e bem estruturado. O prestígio moral de São Luís provocou um afluxo considerável de causas levadas diante da corte: o seu renome de justiceiro juntava-se de resto ao prestígio duma realeza já poderosa e tornada garante eficaz da ordem e da paz. Afluxo de processos, mas também de pedidos de arbitragem: até mesmo o rei de Inglaterra aceitou recorrer a ela aquando dum diferendo entre ele e um dos seus vassalos gascões. A apelação foi o principal instrumento do surto do Parlamento, e era uma revolução, escreveu Montesquieu. O apelo era de resto um processo reconhecido por muitos costumes feudais em França; autorizava os réus a recorrer ao senhor imediatamente superior para tentar que fosse feito novo julgamento. Ora, a partir dos anos 1250, o Parlamento facilitou a apelação organizando o processo de inquérito: uma delegação da Cúria, formada por especialistas, ia in loco instruir de novo o processo. Os apelos multiplicaram-se, portanto, tanto mais que se podia sempre apelar para o rei dado que era ele o senhor máximo de qualquer parte do reino. Nas mãos do Parlamento de Paris, a apelação revestiu-se

duma imensa importância para os progressos da monarquia, não só porque apontava para a via duma relativa «unificação», como também porque minava, e por vezes arruinou, as jurisdições feudais. Nascido dum princípio feudal, o Parlamento destruiu, talvez inconscientemente, os melhores fundamentos do sistema feudal, de que no entanto saíra. Seria simultaneamente demasiado simples e falso dizer que, como se reforçava em detrimento da nobreza, a monarquia se mostrou deliberadamente hostil aos nobres. Nem todas as conquistas da realeza foram obtidas pela força. Se os reis, como certos príncipes, «cavaram e exploraram as divisões da nobreza», se sempre empregaram contra ela «forças crescentes», também a integraram no quadro da monarquia ou do principado: recrutaram no seu seio a maioria dos seus funcionários. E o rei considerou-se sempre como o primeiro dos nobres, portanto como o chefe da nobreza. E mesmo como seu defensor: o rei de França, com este propósito, arrogou-se o exclusivo do direito de nobilitar. Se, a partir de Filipe, 106 o Belo, os reis obrigaram os senhores a aceitar a homenagem dos seus vassalos vilões, obrigaram estes a pagar o direito de franc-fief ) e continuaram a controlar o acesso à nobreza. O Trata-se de um direito pago ao rei por um vilão que adquiria um feudo sem que por isso se tornasse nobre. N. 1 ¦) 107 I TERCEIRA PARTE HOMENAGEM, FEUDO E SENHORIO do séc. XI ao séc. XIII) CAPITULO IV O DIREITO FEUDAL *) 1. O contrato vassálico Se, pouco a pouco, a vassalagem viria a perder em importância e significado, devido à evolução do feudo, resta que o elemento pessoal deveria continuar a manter-se indispensável. O contrato coloca em presença dois homens: — aquele que no século XI se chama com muita frequência miles, depois, a partir do século XII, homo ou vassalus. Ê o vassalo, o homem, o Mann dos textos germânicos; — aquele a quem cada vez menos se chama dominus e cada vez mais sénior, daí os termos senhor e Herr. Os «actos geradores das obrigações de ambas as partes» continuam próximos dos da commendatio carolíngia, Há escritos, mais claros e mais completos do que para os tempos passados, que descrevem os ritos que criam o laço de homem para homem. Em muitos textos romanos, deviam qualificar-se de fé e homenagem, ainda *) Bibliografia importante em GANSHOF F.-L.), Quest-ce que la féodalité?, e na maior parte das obras já citadas atrás. O melhor estudo de um costume feudal, o mais exaustivo, continua a ser o de OLIVIER-MARTIN Fr.), Histoire de la coutume de... Paris, Paris, Leroux, 1922-1930, que acaba de ser reeditado com actualização sob a direcção de M. BOULET-SAUTEL. 111 que a homenagem tenha precedido a fé. A expressão recorda que a cerimónia compreendia pelo menos dois ritos. A) A homenagem e a fé

1) A homenagem. — Em latim hominium, depois ho-magiíim latinização do francês hommage), em alemão Mannschaft. Tudo termos que mostram o sucesso da palavra homo homem, Mann) para designar o vassalo. Prestar homenagem a alguém é reconhecer-se seu homem: A homenagem decompõe-se em dois elementos: — immixtio manuum, essência da cerimónia. Sem armas, o homem, de cabeça descoberta, na maioria dos casos de joelhos, coloca as suas mãos juntas nas do senhor, que fecha as suas sobre as do vassalo. Este acto material, consistindo num contacto físico, é um rito indispensável numa civilização em que os sistemas jurídicos foram primeiro pouco evoluídos e em que, pelo menos no século XI, a escrita ocupava um lugar ainda restrito. Este rito persistirá até ao fim da «feudalidade» 1789 em França), a despeito do imenso desenvolvimento do direito e da escrita a partir, sobretudo, do século XII; — o volo, declaração de vontade. Não obrigatória, é muito comum. A fórmula variou, mas compreende em toda a parte e sempre uma frase análoga a esta:
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