Sangue Na Caixa de Areia - Jô Bilac

January 1, 2019 | Author: PauloMotta | Category: Lucid Dream, Dream, Time, Love, Philosophical Science
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“Sangue na caixa de areia” de Jô bilac

Personagens: Ana, Cris Larin Ana 1, Julia Marini Marisa, Taís Araujo Douglas, Luiz Henrique Nogueira Felipe, Jaderson Fialho Cena 1 ( um apartamento abarrotado de móveis. No sofá, vizinho 1 triturando o gelo gelo do seu copo com os dentes. Na poltrona em frente, Vizinho 2, folheia uma revista em seu colo. Um carrinho de bebê ao fundo. ) Vizinho 3: Não achei café, mas tem chá...Vocês acham inconveniente pegar sem  pedir? Vizinho 1: Que estranho... Vizinho 3: Pois é, fiquei meio sem graça de pegar sem pedir, mas eu não sei que horas... Vizinho 1: Não. Estranho porque eu sonhei com isso ontem. Vizinho 3: Com o enterro? Vizinho 1: Com você entrando e falando exatamente isso: Vizinho 3: “Não achei café, mas tem chá?” Vizinho 1: “Você acha conveniente pegar sem pedir?” ped ir?” (tempo) Vizinho 3: E o que acontecia depois? Vizinho 1: Nada. (tempo) Vizinho 3: E antes?

Personagens: Ana, Cris Larin Ana 1, Julia Marini Marisa, Taís Araujo Douglas, Luiz Henrique Nogueira Felipe, Jaderson Fialho Cena 1 ( um apartamento abarrotado de móveis. No sofá, vizinho 1 triturando o gelo gelo do seu copo com os dentes. Na poltrona em frente, Vizinho 2, folheia uma revista em seu colo. Um carrinho de bebê ao fundo. ) Vizinho 3: Não achei café, mas tem chá...Vocês acham inconveniente pegar sem  pedir? Vizinho 1: Que estranho... Vizinho 3: Pois é, fiquei meio sem graça de pegar sem pedir, mas eu não sei que horas... Vizinho 1: Não. Estranho porque eu sonhei com isso ontem. Vizinho 3: Com o enterro? Vizinho 1: Com você entrando e falando exatamente isso: Vizinho 3: “Não achei café, mas tem chá?” Vizinho 1: “Você acha conveniente pegar sem pedir?” ped ir?” (tempo) Vizinho 3: E o que acontecia depois? Vizinho 1: Nada. (tempo) Vizinho 3: E antes?

Vizinho 1: Nada também. Era só essa parte. Mas era assim, desse jeito, nessa  posição que você está agora. Vizinho 3: Que banal. Vizinho 1: Meus sonhos são muito banais. Sonho que tô pagando conta no  banco, que tô no aeroporto esperando meu voo, noutro dia sonhei que estava trocando o pneu do meu carro... Vizinho 3: Que tédio... Vizinho 1: Pois é. Vizinho 3: Os meus já são bem confusos, tem vezes que não consigo nem descrever. Não junta lé com cré. Vizinho 1: Muito de vez em quando eu tenho uns assim, mas eu também quase não lembro de sonho nenhum... Acordo, esqueço tudo... Hoje mesmo, só agora, vendo você, lembrei. Vizinho 3: Estranho. Vizinho 1: Muito. Vizinho 3: Falando em enterro... eu sonho muito com gente quem já morreu, sabia?... No sonho a pessoa tá viva, se relacionando naturalmente com os outros e comigo, e eu sei que ela já morreu... mas mesmo assim, eu não estranho... Eu aproveito, mesmo sabendo que é um sonho. Vizinho 1: Acontece isso comigo também. Vizinho 3: É mesmo? Vizinho 1: Estou transando com alguma celebridade, eu sempre sei que é um sonho, mas aproveito também. Já sonhei com várias, vivas e mortas. Vizinho 2: (lendo no livro em sua mão) “O sonho tem o papel de ocultar ou revelar impulsos e pensamentos pensamentos daquele que dorme. Os elaborados “disfarces” apresentados pelo psiquismo, dificulta o reconhecimento do desejo reprimido. Por isso tantas vezes sem sentido para o próprio sonhador. No sonho, não tem  passado nem futuro. Não tem consciência. Em algumas, algumas circunstâncias, a pessoa sabe que tá sonhando e até consegue influenciar o que acontece no sonho, sem acordar. São chamados “sonhos lúcidos”. O cérebro adormecido

reflete sobre a própria vigília, estamos dormindo e acordados, ao mesmo tempo. Influenciando a trama.” Entendeu? Vizinho 3: Isso é Freud? Vizinho 2: Também. Vizinho 1: Vira e mexe eu tenho 1 desses. Será que quer dizer alguma coisa? Vizinho 2: Quem tem pesadelos frequentemente, em média, é mais suscetível a sonhos lúcidos. Também não sei se é bem isso... Vizinho 3: E como faz pra controlar o sonho? Vizinho 2: Não pode. Só é possível aumentar a probabilidade em ter um sonho lúcido... Vizinho 3: Como? Vizinho 2: Treinando. Por exemplo: ao longo do dia, pergunte a si mesmo, várias vezes, se está acordado. Quando isso se tornar um hábito, é bem provável que você faça dormindo... aí as chances de perceber que está sonhando aumentam muito... Vizinho 3: Eu já tive um caderninho em que anotava o sonho assim que eu acordava... Vizinho 2: A insistência em uma ideia antes de dormir, também é muito bom. Isso eleva a possibilidade de que você sonhe com o que imaginou. Vizinho 3: Como você sabe dessas coisas? Vizinho 2: Eu tenho um sonho recorrente...Que não chega a ser um pesadelo, mas me angustia sempre... Vizinho 3: Por que? Vizinho 2: Por que é sempre muito real. Vizinho 3: E por isso você tenta estar lúcida? Vizinho 2: Isso. Vizinho 3: E como é esse sonho?

Vizinho 2: Então... tem sempre uma mulher com vestido preto, ela está voltando de um enterro, ela entra, guarda a bolsa no armário, eu fico olhando pra cara dela, mas ela não diz nada... Eu não sei de quem foi o enterro, nem se ela sofreu com isso... Ela está visivelmente cansada, pensa em beber um dry martini, ela está em movimento, dentro de si... Vizinho 1: Essa é aquela peça de teatro que a gente viu juntos... Vizinho 2: Que peça? Vizinho 1: Essa da mulher com o martini, lembra não? A crítica colocou nas alturas... Vizinho 2: Não, tô falando do meu sonho. Vizinho 1: Mas você acabou de descrever uma cena igualzinha. Vizinho 2: Ele está inventando, não dê crédito. Vizinho 1: Eu não estou inventando. Vizinho 3: Tudo bem se estiver inventando... Vizinho 2: Ele faz isso... Vizinho 3: Escolhe as peças que vai ver a partir das críticas? Vizinho 2: Sempre inventa alguma coisa quando não tem o que dizer, para apontar um olhar analítico ou simplesmente se exibir... Vizinho 1: Eu vi... E você viu comigo. Vizinho 2: Será...? Vizinho 1: Por que você nunca confia em mim? Vizinho 2: Você ouve os outros e se apropria dos discursos. Não tem  personalidade.

Vizinho 1: Você só escolhe seus programas pela crítica do jornal e sou eu que não tenho personalidade? Vizinho 2: Está vendo como é limitado o conceito dele de crítica? Vizinho 3: Um pub?

Vizinho 1: Um pub, pode ser. Tinha uma chuva meio exagerada... E um cego tocando saxofone na sarjeta, debaixo do aguaceiro... Vizinho 3: E o que ele tocava? Vizinho 1: Não interessa, isso não faz diferença... Vizinho 3: Era “Caravan”? Vizinho 2: Essa peça não existe. Vizinho 3: Eu acho que sei qual é... É aquele com aquela atriz...qual é o nome dela?... Ela é ótima! Vizinho 2: Uma loura ? Vizinho 1: Não! Aquela outra! Vizinho 3: Vê se é isso: Ela entra completamente ensopada no café, porque estacionou o carro longe...perto de um cego tocando “Caravan”, na sarjeta. Ela fica impressionada e mesmo na chuva, cata umas moedas na bolsa e dá pro cego... Vizinho 1: É uma morena de olhos azuis? Vizinho 3: Então, ela entra encharcada, e o garçom fica olhando pra cara dela e  pergunta... Vizinho 1: O que ele pergunta? Vizinho 3: “Deseja alguma coisa?” Vizinho 1: “Se refere ao que está no cardápio? Se for , eu desejo um dry Martini com gelo. Muito gelo e pouco gim”. Vizinho 3: ”Dry Martini com gelo?” Vizinho 1: “Sou uma mulher complexa. Eu disse complexa? Eu quis dizer  paradoxal. Sou uma mulher paradoxal. ” Vizinho 3: “É uma mulher muito bonita também, se me permite o elogio.” Vizinho 1: “Não permito.” Vizinho 3: “O elogio?”

Vizinho 1: “Se me conhecesse, de fato, saberia que sou uma mulher sem  permissão para ser elogiada, sem permissão para ser nada além desse ser rastejante já sem muitos motivos para estar viva.” Vizinho 3: “Não seja cruel consigo mesma. Somos nossos piores carrascos.  Nunca te vi por aqui antes. Está perdida?” Vizinho 1: “Estou com frio.” Vizinho 3: “Você quer uma toalha?” Vizinho 1: “Quero um cigarro.”. Vizinho 3: “Você vai acabar pegando uma pneumonia.” Vizinho 1: “Não. Com cigarro eu pego câncer.” Vizinho 3: “Você não parece nada bem... o que aconteceu?” Vizinho 1: “Deixei meu filho morrer.” Vizinho 3: É uma ruiva de olhos castanhos!! Vizinho 2: Vocês estão fazendo confusão. Não é um pub, é a sala de um apartamento. Não tem garçom! Ela está voltando de um enterro, desnorteada e não diz nada, absolutamente, nem uma palavra... Ela procura por alguma coisa... Olho em expectativa, mas ela permanece em silencio. Ninguém sabe o que se  passa em sua cabeça. Vizinho 3: O apartamento é dela? Vizinho 1: E o cego saxofonista? Vizinho 2: Não existe cego saxofonista! Vizinho 1: E o que existe? (a conversa pára. Percebem Ana Cláudia, molhada, com o guarda chuva  pingando no tapete da sala. Ana atravessa a sala. Todos olhando para ela. Ela deixa o guarda chuva no chão. Senta-se na outra poltrona, Acha seu maço de cigarro. Retira um. Faz que vai acender, percebe o carrinho de bebê. Suspira exausta.) Vizinho 3: ( ainda na tradução da legenda) Quem é ela? Vizinho 2: Uma personagem.

Vizinho 3: Do sonho? Vizinho 1: Não. Não percebe o público? (eles olham o público com naturalidade) Vizinho 3: Ela veio pro enterro? Vizinho 2: O apartamento é dela. Vizinho 3: Mas eu pensei que... Vizinho 2: Não é pra pensar. Vizinho 1 : Devemos dar os pêsames? Vizinho 2: Devemos sair, a trama precisa avançar. Vizinho 1: Mas a trama está avançando. De certa forma. Isso faz parte. Vizinho 2: Isso o que? Vizinho 3: Acho que deveríamos oferecer um brandy a ela. Vizinho 1: Isso não é brandy, é água. Vizinho 3: Ela não nos ouve? Vizinhos 1/ 2: Sim/ Não. (tempo) Vizinho 2: Vamos. A trama... Vizinho 1: “...Precisa avançar”, ok, ok. Já entendi. ( Vizinho 2 joga o jornal no lixo. Saem) (Ana sozinha) (O carrinho de bebê.) (Surge Marisa carregando uma raquete de tênis) Marisa: Ola. Eu só vim pegar a minha raquete... A Samanta deixou uma cópia da chave comigo... Você é parente dela? Amiga? Conhecida? Quem é você? Desculpa. Eu to muito nervosa com tudo isso. Eu nunca pensei... a Samanta, ela nunca me falou nada. Se ela tivesse falado, eu teria ajudado. Porque, as vezes, a

 pessoa não precisa de nada. Só precisa só de uma palavra amiga... um ombro. Mas a Samanta, ela me parecia tão bem. Desculpa. Você veio ver o apartamento? E, assim... Por alto... eles estão pedindo pra base de quanto? Não deve tá muito caro, não é? Porque uma coisa dessas desvaloriza e muito o imóvel. Se bem que os parentes dela são um bando de urubu. A criatura ainda está quente no caixão e eles já botaram preço na casa. Mas parente, você sabe, não é? Não é família! Ela mesmo falava isso. Parente só vem na sua casa pra reparar no que você tem. Tinha pavor de morrer e a parentada invadir a casa dela... sabe? Mexendo nas coisas, vasculhando tudo. Morreu com esse pavor, coitada! Eu fico tentando entender o que passa pela cabeça de uma pessoa pra se atirar pelos vidros da janela da sala... dizem que estava bêbada! Dizem... dizem que ela estava vestida de cetim, porque queria morrer vestida de cetim. Mas o  povo daqui é... (gesticula) aqui tem muito aposentado, ne? Aí, você já viu! É um tomando conta da vida do outro. Se duvidar, sabem mais da tua vida que você. Se deixar, fazem até resenha. Ela que tava certa. Não dava pelota! Eu emprestei minha raquete de tênis pra ela e nós ficamos amigas. A gente fazia uma dupla...  botava todo mundo no bolso. Você me desculpa... eu sou assim, eu sou emotiva! Tenho os nervos a flor da pele. Queria muito ter ido nesse enterro. Muito! Mas como? Além desse, eu tenho os gêmeos de cinco anos. Tenha uma mais velha também, de nove anos. É tudo comigo! Mas eu mandei uma coroa de flores! Linda! Nem quis saber o preço! Coisa mais linda... com umas rosas brancas... e umas rosas vermelhas assim, em volta... fazendo uma labareda. Meu marido achou exagerado, mas ele acha tudo exagerado!sabe o que ele disse? Disse que ia chamar mais atenção que a morta. Onde já se viu? O morto é a estrela do velório!! Mas o meu marido... ele... ele... ele realmente... ele não entende. Mas ele é um homem bom. Ele é um homem bom. Sabe aquele homem serio? Homem bom. Nunca deixou faltar nada na minha casa. Não tenho do que reclamar... só do nosso apartamento...caixinha de fósforos. Do tamanho desse aqui. Então, você pode imaginar... esse aqui, pra uma mulher solteira, sem filhos, sem nada, já não é grandes coisas. Imagina pra uma família do tamanho da minha? Só se juntar os dois! Aí, é perfeito que as crianças vão poder dormir em quartos separados. A mais velha pelo menos, que é menina. Sim, você está certa. Vou ter que fazer uma obra, mas é uma obra pequena. É pouca coisa. É só derrubar essa parede aqui. Abrir tudo isso. Aproveitar essa janela e deixar o sol entrar! Vai ser bom até pro Douglas... que ele reclama muito... o meu marido. Diz: “aqui é quente, abafado... não consigo respirar.” Reclama... nossa, como meu marido reclama! Mas ele é um homem muito.... ele é oftalmologista. Morro de medo de deixar ele examinar os meus olhos e enxergar o que tem dentro de

mim. Nossa, que engraçado... a última vez que eu vi a Samanta, ela tava sentada aí. e tava assim, nessa mesma posição. Ela olhou pra mim e me disse... como é que foi mesmo que ela disse? Ela disse: “Marisa, você impressiona.” Aí, jogou a cabeça pra trás e deu uma gargalhada. (Hahahaha!) Ela era muito alegre. “Me impressiona...” em que sentido? Eu fiquei com isso na cabeça... eu impressiono em que sentido? Olha pra mim! O que você vê? A primeira impressão é a que fica. Diga a primeira coisa que vem em sua cabeça! Sem pudores. Vamos aproveitar esse momento de franqueza entre estranhos. Como você me definiria? Você é tímida? Você é elegante. Você tem uma postura muito elegante. Mas está com olhar triste. Tá com algum problema? Aconteceu alguma coisa? Ah, eu falo sem parar, não falo? Eu tenho ciência disso, meu marido já falou pra mim: “Marisa, você fala demais!” A minha mais velha diz que deve ser pela minha forma imbecil de passear pelo mundo sem um olhar critico a respeito das coisas... Agora veja só! Nove anos de idade... chamando a mãe de imbecil... eu realmente não consigo entender... Por que insistimos ferir quem mais a gente ama? Não deveria ser justamente o contrário? A intimidade é santa. (contempla o filho) Olha só pra ele... Aqui existe uma intimidade silenciosa, primitiva. Não, não vou falar. Não, eu vou falar porque eu gostei de você. Você é uma pessoa com coração bom. Eu gosto mesmo é de bebezinho. Sabe bebê, recém nascido... que não pensa... não fala... Bebê molusco. Só mama, come e dorme. Mama, come e dorme! Mas quando eles começam a falar... quando eles começam a  pensar... quando eles começam a perguntar... eu não sei o que responder. Eu fico louca, eu me sinto perdida, eu me sinto flutuando. Por isso que quando ele nasceu, eu pousei. Você tem filhos? Eles crescem. Quando a gente se dá conta, estão chamando a gente de imbecil. Ai, meu Deus! Ah, me fala de Deus... você e Deus... como é teu relação com Deus? Você é uma pessoa religiosa? Eu acho que eu também não, mas tem umas horas em que o caos impera na casa. Aí nessas horas, eu sinto gigante a presença de Deus. E é a presença física de Deus. Você sente isso? Vamos fazer um trato? Se um dia nos tornarmos amigas do  peito, não vamos deixar que a intimidade nos machuque. Eu to atrasada. To atrasada. Falei demais. Não posso mais ficar com você aqui. Não posso mais te fazer companhia. Porque esse é o momento do caos lá em casa. Chega todo mundo na mesma hora. Meu marido chega do trabalho, os gêmeos chegam da creche agora e a mais velha volta do balet e é justamente que horas? É hora do  jantar. É um entra e sai, e liga a TV e sai do banheiro e vem jantar e tira o pé do sofá e cala boca cachorro... (saindo do apartamento) (Ana sozinha)

(Ana corre até a porta, abre. Não tem ninguém.) (entram Felipe e Ana 1. Estão de luto.) Ana: (suspira exausta) Tô morrendo de dor de cabeça... Felipe: Você quer conversar? Ana: Eu quero dormir... Felipe: O enterro foi bonito. (tempo) Felipe: (leva uma bebida pra ela) Dry Martini. Muito gelo pouco gim... Não é assim que você gosta? (tempo.) Felipe: Você tá cansada. Hoje foi um dia pesado. Estamos todos... Eu vou fazer alguma coisa pra comer... Você quer que... (Ana 1, crise choro intensa. Felipe desconcertado sem saber como reagir.) (Ana 1 esgota o choro.) Felipe: Quer que eu te acorde às seis? Sua mãe disse que passaria aqui de manhã cedo... sete e meia. Ela tá preocupada com você e quer saber se... Ana 1: Esquece a minha mãe. (tempo) Ana 1: (olha Felipe de cima à baixo.) Você tem trabalho hoje ? Felipe: Eles me dispensaram do trabalho essa semana. Ana 1: Liga pra eles, pede pra ir. Felipe: Liga pra sua mãe, ela está preocu... Ana1: (corta firme) Esquece a minha mãe. Liga pra eles. Felipe: Você não pode fazer isso com você mesma. Ana: Ele está falando da mamãe ou do trabalho? Ana 1: Não sei... Eu não entendo nada do que ele fala. Acho que é do trabalho.

Ana: Pergunta pra ele sobre o que é a peça. Ana 1: Sobre o que é a peça? Felipe: (desconcertado) Ah... Não sei... É sobre... Pessoas. Ana 1: E daí? Felipe: O que? Ana 1 : O que tem essa pessoas em especial? Felipe: Nada. Ana 1: Em que sentido? Felipe: Elas sentem dificuldade em sentir... afeto. Ana a gente não precisa ir. A gente pode comer alguma coisa fora, dar uma volta ... Ana : Diz pra ele que vai ser bom pra você. Vai te distrair. Te desligar do mundo  por alguns instantes. Ana 1: Vai ser bom pra mim. Vai me distrair. Eu vou me arrumar, fico pronta em vinte minutos... Felipe: Você não está falando sério. (Ana 1 saindo) Felipe: Ana. (as duas olham) (tempo. Felipe fixo nos olhos de Ana 1, na eminência de querer dizer algo que não consegue, algo que aperta o peito e sufoca. Ana 1 sai. Ana fica ao lado de Felipe, observando sua mudez.) Marisa: (com seu bebê, mostrando o apartamento pro marido.) Aí tem essa sala... o portal que...te falei. A vista é a mesma que a nossa. Achei o piso bom. Muito bonito esse piso. Piso bom. Gostei mesmo desse piso. Diferente... Douglas: Apartamento de defunto. Marisa: Pensa nos meninos , Douglas. A gente batendo cabeça... Douglas: Não gosto... A criatura acabou de morrer. E ainda mais desse jeito...

Marisa: Olha esse mármore, Douglas... Douglas: Por que ela não foi fazer isso na rua? Marisa: Olha essa vista, pense num janelão! Douglas: Coisa mais desagradável. Marisa: O que? Douglas: Dar de cara com uma mulher morta na porta do seu prédio. Por que não se jogou de uma ponte como fazem as pessoas civilizadas? Ninguém tem nada a ver com isso, ninguém é obrigado. Um prédio residencial, familiar. Marisa: Mas o preço tá tão bom... se você ver a cozinha, vem ver a cozinha... Douglas: Não dá pra entender... Marisa: O que? Douglas: Por que uma mulher bonita e jovem se mata. Marisa: Só pode se for feia e velha? Douglas: É mais lógico. Marisa: Ela quis morrer, Douglas. Deixa a pessoa querer morrer. Douglas: Que ideia é essa Marisa? Marisa: Que que tem? É melhor morrer do que ficar por aí, infeliz. Perambulando. Reclamando da vida. Dormindo pra acordar, acordar pra dormir... Ainda mais quando é solteira, sem filhos, sem nada. A pessoa fica livre  pra morrer. Todo mundo já pensou em morrer um dia... Ninguém pode condenar. Douglas: Não estou condenando ninguém, Marisa. Só acho mesmo que essa coisa atrai... Marisa: O que? Douglas: Atrai, Marisa, atrai... A energia da casa, entende? O axé não é bom. Marisa: (irritada) O axé, Douglas?! E eu lá quero saber de axé? To que tempo de olho nesse apartamento, ó! (estalando os dedos) Fica a gente espremido com quatro crianças, cachorro, papagaio... um em cima da cabeça do outro! Um

desespero! Faço das tripas coração pra segurar a peteca, mas não tá dando...Não tem espaço! Quando eu durmo, sonho sempre que estou encontrando um compartimento novo na casa, um quarto que nunca vi, um vão secreto atrás do armário, um banheiro infinito... Nosso apartamento é uma cova e nossos filhos são os coveiros! Douglas: Só fala merda, hein! Marisa: O que? Douglas: (sardônico) “O que?” “O que?” Marisa: O que? Douglas: Só fala merda, caralho! Só fala merda! Você só fala merda! O que sai da sua boca: merda! ( tempo) (tempo) (tempo) Douglas: Desculpa. (tempo) Douglas: É que você fica falando essas coisas de caixão, morrer, não gosto disso, você sabe... (tempo) Douglas: Vai ficar com essa cara amarrada? Eu pedi desculpa, não pedi? (tempo) (Douglas andando pelo apartamento) Douglas: (murmura) Meu saco. (decide) Tá bom. Marisa: O que? Douglas: Eu compro o apartamento. Não é isso que você quer? Marisa: Mas se for de má vontade, eu prefiro até que... Douglas: Marisa! Não torra.

Marisa: (abraça o marido) Obrigada. Douglas: (se desvencilha do abraço) Manda pintar. Concertar essa janela. Tirar as coisas dela. Eu vou também chamar um padre, uma mãe de santo, sei lá. Alguma coisa pra defumar. Só entro aqui, defumado. (saindo) (Ana 1 volta com casaco e maquiada, prepara alguma coisa pra beber no bar) Marisa: (canta uma cantiga de ninar para o bebê, enquanto circula pelo apartamento) Ana 1: Vamos. (Marisa cantando. Ana observa em silêncio.) Felipe: (abstraído) Ana 1: Felipe. ( Felipe pega o casaco. Saem.) (Ana está sentada) Ana: Já me apaixonei, já nadei nua, já quis ser artista, já tive um gato, já chorei cantando uma música, já me deixaram falando sozinha, já paguei a conta e fui embora, já emprestei e não me devolveram, já tive medo e fui mesmo assim, já tive raiva e bati a porta, já casei, já descasei, já fiz tempestade em copo dágua, já dancei descalça, já esqueci o nome dele, já fui embora querendo ficar, já dei boa noite quando já era bom dia, já vi coisas que não precisava ter visto, já fiquei calada quando deveria ter dito, já tive catapora, já fui mãe um dia, já dormi sem escovar os dentes, já fiquei endividada, já caí, já levantei, já cansei de esperar, já corri atrasada, já cheguei na hora, já fui cigana na outra vida, já levei calote, já desisti de entender certas coisas, já investi em muitas outras, já me disseram que me pareço com fulana, já me ligaram pedindo o telefone de beltrana, já parei na metade, já bati o pé e fui até o final, já me decepcionei, já to careca de saber, já  passei perrengue, já tomei porre de champanhe, já me arrependi, já culpei, já fui  perdoada, já xinguei, já me odiaram, já falaram que eu era a coisa mais importante e vice versa, já fui católica, já liguei de madrugada, já perdi a cabeça, a minha bolsa, a paciência, já perdi no poker, já perdi a hora, já perdi a fala... Já  perdi tanta coisa... Já ganhei outras também. Mas as que perdi... as que perdi sinto falta até hoje. (tempo. Melancólica.) Desculpa, eu ando meio perdida... é esse lugar... o tempo aqui é outro... Ó! Tô. Eu. Velha. Tô velha. Gasta. Meus ossos. Meus olhos. Minha cabeça... Tô velha pra essas coisas... Eu. Fui tão...  Não. Sou. Um continente. Não. Eu tô mais pra uma ilha vagabunda recusada por  barcos. Eu to morrendo. Quero uma critica construtiva. Vejamos. Análise Ana. Engraçado isso... Analise Ana. Ana-lise... Ana-lítica...Ana-lisando Ana. Que

engraçado isso... Eu não venho nesse lugar faz muito tempo. Morei aqui menina, com meus pais e meus irmãos...meu quarto era ali... depois casei, voltei pra cá numa tentativa de ser feliz num modelo clássico mamãe, papai, filhinho... Mas não deu muito certo... aí eu fui embora, mas O MEU EX MARIDO ficou. A gente não se via, tem o que?... (pensa) uns... 29, 30 anos...! 30 anos... (continua) (reflete) Eu to voltando do enterro dele, ele morreu sem falar comigo... Também não sei se a gente tinha muita coisa pra dizer um pro outro... Mas eu sempre soube que a gente só voltaria a se ver assim: eu ou ele no caixão... O lance é que eu sempre acreditei que eu ia morrer primeiro... Mas não. To aqui. Aqui. No meio dos fragmentos da minha vida. Alguns fazendo sentido, outros não... mas não se preocupe em querer entender, pois nem eu mesma me entendo muito bem... e fazer sentido é tão relativo e pessoal que fica difícil definir o que ... Eu vim procurar o que tem dentro de mim, que tá perdido aqui em algum lugar. Mas pra me achar, eu vou tentar_ tentar_ me organizar por enterros. Pois o que perdemos nos define mais do que ganhamos. Vou organizar  por enterros... tá? (Entra Samanta, vestido de cetim, toda enfaixada, não é  possível ver seu rosto.)O primeiro enterro foi o dela. Eu tive a impressão de ter visto. Ela, na janela. Vestida de cetim. Debruçada... Ao alcance... Ela me viu também. Na hora. Ficamos nos olhando... eu tinha uns... oito, nove anos de idade. Ela era bonita. Como é que uma mulher bonita e jovem faz uma coisa dessas? (lembra) Tinha uma outra pessoa com ela... ! Alguém... Mas eu não conseguia ver quem... Quem era? (entram Ana 1 e Felipe, sentam-se nas poltronas fora da casa, virados pra cena, como se estivessem vendo uma peça de teatro. No palco, Samanta e o Analista dançando. Ana encara Ana 1. Samanta e o analista, insinuação ao sexo. Samanta tenta fugir. O analista bestial cerca a moça de cetim, explicitamente ameaçador. Tensão. Ele tenta agredi-la, ela foge. Samanta recua até a janela. O analista ameaçador se aproxima mais. Mais. Mais. A cortina se fecha entre os dois núcleos.) (Felipe abrindo um pacote de amendoim) Ana: Você não vai parar com isso? Felipe: O que? Ana: Isso que você tá fazendo. Você não percebe o quanto isso é inconveniente? Felipe: Eu só quero comer. Ana: Mas é muito inconveniente. Voce não... a peça tem uma hora e vinte. Você não consegue ficar uma hora e vinte sem mastigar? É isso que você quer me

 provar? Atrapalha quem está vendo. Atrapalha quem está fazendo. Não é  possível. Que coisa mais desagradável! Felipe: Tá difícil. Eu to tentando mas a coisa é complicada. Ana 1: É. São muitas camadas. Felipe: Eu não estou conseguindo entender nada. Ana 1: Você nunca entendeu. Felipe: Minha cabeça também... Maluquice. A gente aqui... Hoje é dia 16? Ana 1: 17. Felipe: Meu Deus. Que dia longo! Ana 1: (olha pro marido) Felipe: Por que a gente não fez outra coisa? Ana 1: Por que a gente continua? Felipe: Você acha que ainda dá tempo? Não fica chato? Ana 1: Você acha melhor ficar, mesmo não gostando... Felipe: Não sei... Ana: O que que você não sabe? Felipe: O que eu to fazendo aqui. Ana: É só ir embora. Felipe: A gente não pode sair no meio... Fica chato... Ana: Pra quem? Felipe: Todo mundo. Ana: e você se importa com isso? Felipe: Com que? Ana: Em chatear o mundo. Felipe: Em que sentido?

Ana: No sentido desta frase que você acabou de dizer. Felipe: Me importo. Claro. Ana: Por quÊ? Felipe: Porque eu me importo com os outros. Ana: Voce se importa com os outros ou com que os outros vão pensar de você? Felipe: Não entendi. Ana: Eu sei. Felipe: O que você sabe? Ana: Da sua dificuldade de entender. Felipe: Eu nunca escondi isso de você! Ana: é. Você é muito transparente. Felipe: Obrigado. Ana: Isso não é uma qualidade. Felipe: eu tenho alguma qualidade, Ana? Ana: Paciência. Felipe: Obrigado. Ana: Pensando bem, paciência também é um defeito. Felipe: Eu tenho muitos defeitos, não é, Ana? Ana: Voce tem muitos defeitos, Felipe. Felipe: Eu deveria levantar e ir embora daqui. Ana: Evidentemente. Felipe: Tinha que ter pensado nisso antes de entrar. Ana: Por quÊ? Felipe: Agora já era. Ana 1: Do que você está falando?

Felipe: Não posso. Depois eles ficam aqui no meu ouvido... chamando atenção! Ana: Eles quem? Felipe: Quem nos paga! Ana: Você misturou os assuntos. Felipe: Ana, você tá aqui? Ana 1: Acho que não. Felipe: Onde você tá? (Ana entra por trás do casal. Observa os dois.) Felipe: Ana. (sem resposta) Felipe: Você quer embora? ( tempo) Felipe: Ana. (tempo) Felipe: Tá tudo bem? (tempo) Felipe: Ana... (estalando os dedos para chamara atenção) Ana! Ana! Ana! (terceiro sinal do teatro) Ana 1 e Ana: Shiiiiiiiiiiiiiiiiiii! ( cortina se abre. Marisa com o bebe. Douglas lendo jornal. Som do rádio. Rotina. Do lado de fora, Ana 1 e Felipe, observando a cena. Por trás deles, Ana observa Ana 1 e Felipe observarem Marisa e Douglas.) Marisa: (depois de certa resistência) Sua filha me chamou de imbecil. (sem resposta) Marisa: Agora tudo pra ela é isso. Imbecil. (sem resposta)

Marisa: Fiquei coma raiva dela. (sem resposta) Marisa: Agora to com vontade de chorar. (sem resposta) Marisa: A gente não precisa ser amiga. Não é isso. Não precisa morrer de amores uma pela outra...Mas imbecil... (sem resposta) Marisa: De onde vem isso Douglas? (sem resposta) Marisa: Imbecil... Douglas: Não foi da defunta? Marisa: O que? Douglas: Deve ter ouvido dela. Na quadra de tênis. Ela gritava pra você toda hora. Imbecil! É isso. Marisa: A Sam nunca me chamou de imbecil, Douglas. Douglas: Não? (Sem resposta) Douglas: Então, não sei... ela deve ter ouvido de alguém na escola. (volta pro  jornal) (tempo) Marisa: Ela virou pra mim, daí mesmo, onde você está. E Disse: Imbecil. Eu fiquei meio... Por que...? (incompreensão) Falei: filha, você sabe o que significa essa palavra? “... Não. Mas sei que os imbecis não possuem condições  para a própria subsistência.” Douglas: Ela disse isso? Marisa: acredita? Douglas: Subsistência?

Marisa: Sem a mínima cerimônia. Douglas: Ela é muito inteligente. Marisa: A palma da mão, toda vermelha. O médico disse que é alergia. Douglas: É o quarto. Eu falei que era pra derrubar, agora fica a garota dormindo no quarto da defunta. Marisa: Daí fiquei pensando. Não sei... Mas é bem possível... Douglas...Me  pareceu absurdo á principio, mas depois... Não sei... Douglas: O que? Marisa: Será que sou eu? Você acha que minha filha é alérgica a mim? Douglas: Fala baixo, ela tá ouvindo. (tempo) (Os dois olhando para Ana, fora da casa) Marisa: (ao marido, segrega) Tá vendo como ela me olha? (tempo) Marisa: Tô constrangida... Pede pra ela parar de olhar assim pra mim, Douglas. Douglas: Ana, vem cá. Vem com pai. Vem. (Ana entra na casa) Douglas: (batendo no colo) Senta aqui no colo do pai. Vem! Isso! (Ana Senta no colo de Douglas) Douglas: Quem é a princesa do pai? Linda! (beija a filha) Deixa eu ver sua mão. Hum... (dá um beijo na palma da mão de Ana) O que foi? Você quer em dizer alguma coisa?... O que você está pensando? Ana: No meu trabalho... Douglas: Hum...o seu trabalho! Suas bonecas tem sido boas alunas? Ana: Eu não sou professora. Douglas: Não? O que você faz? É pianista? Deveria ser...Tem mãos de pianista.

Ana: Eu sou critica de arte. (Douglas e Marisa se olham) Marisa: Tá vendo? Eu não consigo entender essa menina... Douglas: Critica de arte? Como é isso? Ana: Escrevo critica numa revista de arte. Douglas: Hum... Viu Marisa? Ela faz crítica em uma revista de arte. É muito inteligente. E você gosta? Ana: Gosto. É um prazer avaliar os que me submetem seu trabalho e reputação. Marisa: Agora, veja! Critica! Onde ela ouve essas coisas? Isso lá é ocupação? Saiba você que uma mulher crítica, não casa! Douglas: Para de falar merda Marisa. (para a filha com doçura) E como é isso? Assim, o que acontece? Explica pro pai. Ana: É critica jornalística. (Marisa e Douglas sem entender) (Ana sai do colo do pai e vai preparar uma bebida) Ana: Basicamente são duas coisas, informar quem fez o trabalho, o quanto seu objetivo foi alcançado e por outro lado informar ao publico a respeito do que se  pode esperar da obra. Mas também ganhamos fama com critica negativa que são divertidas de escrever e ler. Marisa: Se o seu marido fuma, não arrume aborrecimento só porque deixou cair cinzas no tapete. Tenha cinzeiros espalhados por toda a casa. São três verdades nessa vida: O noivado longo é um perigo. O barato sai caro. E uma boa esposa deve evitar ser crítica dentro da sua própria casa, minha filha. Pois a pior coisa do mundo, é uma esposa chata. A esposa pode ser tudo, até infiel. Sim. Tem homem que gosta. Mas chata, mulher chata ninguém atura. Pode até casar, mas não dura um filho. Douglas: De onde você tirou isso, minha filha? Ana: Meu marido. Douglas: Olha Marisa, o marido dela! Quantos aninhos ele tem? Ele da sua escola?

Ana: Era jornalista. Foi chamado pra ser critico de artes. Mesmo não entendendo nada de arte. Eu o acompanhava nos eventos e acabava fazendo a critica por ele.  No começo ele não se incomodava, achava até bom. Mas depois da morte do nosso filho... Marisa: Você perdeu um filho? (Ana olha para Ana1) Marisa: Era criancinha? Tenho muita pena quando vejo um caixão de criancinha. Douglas: Lá vem você com essa ideia de caixão! Fixação! Ana: Ficou como um disco arranhado... (entrega bebida pro pai) O mesmo dia... Repetindo, repitindo... Marisa: Do que ela está falando? Ana: O segundo enterro foi do meu filho. Marisa: Qual era o nome dele? Ana: Floquinho. Floquinho de neve. Marisa: E o que aconteceu com o Floquinho de neve? Ana: Derreteu. Marisa: Foi na caixa de areia? Ana: Você ficou sabendo? Marisa: Não. Mas já ouvi muitos casos de mães que esquecem os filhos em caixas de areia. O Sol daqui é muito forte. Ana: Eu não esqueci meu filho. Douglas: Que caixa é essa Marisa? Marisa: Essa que fica aqui em baixo, tava interditada por causa da Samantha. Mas disseram que trocaram, que o sangue manchou tudo, que não ficava bem... Eu. Desde quando a gente veio pra cá, não tiro os olhos dela. (assombrada) Ele fica bem aqui de cara... É enorme, você nunca reparou Douglas? Impossível. É tão convidativa... Aflitiva.

Douglas: Seu filho morreu na caixa de areia Ana? (Ana 1 entra em cena com Felipe. Repetem a mesma entrada que fizeram anteriormente, da volta do enterro. Mas no lugar da crise de choro Ana 1 diz) Ana 1: Eu vou te deixar. Vou embora daqui. Já não tem mais nada que me  prenda a você. Eu quero embora desse lugar. Eu quero ter outra vida. Outra cara. Outra pele. Quarta. Sexta... Vou fechar conta. Vender meu carro. Comprar  passagem de ida. Devolver os livros. Você vai ficar me esperando, mas eu não vou voltar... Não vou deixar carta. Nem vou ligar. Não vou me despedir. Você vai me entender , não vai me procurar. O tempo vai passar. Eu. Você. Seremos apenas alguma coisa no fundo da memória. Mas como a nossa memória teatraliza tudo, vai ser bom mesmo assim. Felipe: Quer que eu te acorde às seis? Ana: Fica repetindo na minha cabeça... Repetindo... Douglas: Você enterrou seu filho e foi ao teatro. Ana: Isso. Douglas: E a peça era boa? Ana: Não lembro. Douglas: Então? Ana: Eu vim procurar. Douglas: A crítica que escreveu da peça? Ana: Isso. Douglas: E que diferença isso faz agora? Ana: Nenhuma. Mas queria ler. Foi tudo muito pessoal. Douglas: Você escrevia e seu marido assinava. Ana: Isso. Douglas: E agora? Ana: Estou em análise. (Os vizinhos espiam da porta)

Ana 1: Eu vou ser direta. Você precisa ser forte. Ana: Não foi culpa sua. Ana 1: Eu sei, o calor... no calor ninguém raciocina direito... Fica tudo meio delirante... Entre uma coisa e outra, entende? Eu queria um dry Martini. Muito gelo, pouco gim. Ana : Muito gelo, pouco gim. Ana 1 : Isso. E tem o calor, e tem Samantha... Ana : Quem é Samantha? Ana 1: A vizinha que se atirou do nono andar. Caiu na caixa de areia. Ela é uma música que não sai da minha cabeça. Estou pensando nela agora. Ana : Por causa da caixa? Ana 1: Não. Por causa do Martini. Mamãe dizia que ela morreu bêbada, vestida de cetim. Beber de dia é coisa de alcoólatra. Ana : Alcoólico. Agora se diz alcoólico. Felipe. Ele bebeu demais... Ana 1: Porque eu vou embora? Ana: Porque ele é doente. Ana 1: Então, eu não deveria ficar e cuidar dele? Ana: O dry Martini... (segredo entre as duas.) Ana 1: Eu, eu fiquei pensando na Samantha ao som de Caravan... Tava tão quente... Fiquei lá de baixo, dando voltas pelo edifício... duas, três, quatro, dez, 25... Fiquei olhando a distância entre o nono andar e o chão. Fiquei imaginando o trajeto. O corpo atravessando os andares, passando na frente das janelas, e o  povo almoçando, tomando banho, vendo tv, e o corpo despencando, sete, seis, quinto andar, uns fazendo sexo, outros fumando depois do sexo, e o corpo despencando, quarto, terceiro andar, criança brincando, cachorro latindo, som de liquidificador, grito de gol, porta batendo, cadeira arrastada, gargalhadas ao longe, avião passando, estoura a champanhe, algo se rompeu, está rompido, um corpo estalado no chão. Eu jamais teria coragem... Ana: De se matar?

Ana 1: De pular, morro de medo de altura. Me dá vertigem só de pensar. Ana: No que que você está pensando? Ana 1: Na mãe. Como às vezes agente se sente tão diferente da matriz. Tão despertencente. Por quê? Eu queria amá-la, eu quero amá-la. Mas eu não consigo. Tenho simpatia por ela, gosto de conversar... Mas não... Sabe? Eu me sinto um monstro.... mentira. Ana: Eu to pensando nisso. Ana 1: Eu to tomando Martini, pensando nisso. Ana: Virei um eco de mim mesma. Ana 1: Fiquei pensando na mamãe. Na Samantha. Nesse abandono... Essa vontade de deixar pra trás tudo que não interessa... De virar a página. Eu queria tanta coisa, menos isso que eu tenho aqui e agora. Eu sou tão nova. A gente vai vendo o tempo passar. As possibilidades do mundo. Eu sou tão nova! Eu tento agarrar, mas não consigo. Me escorre pelas mãos. Como uma areia movediça, eu não consigo! É tão mais fácil sem filhos... Eu queria mas não consigo. Ana: E Floquinho? Ana 1: Penso nele todo dia. Ana: Mentira. Ana 1: (chama) Floquinho... Ana: (Chama) Floquinho... Ana 1: O calor me deixa absurda. Ana: (chamando) Meu floquinho de neve...cadê você? Ana 1: (confessa frágil) Posso te contar uma coisa você não conta pra ninguém? Ana: Floquinho... cade você? Ana 1: Acho que eu tenho alergia ao meu filho... Ana: (chamando aflita) Meu filho, cadê você? Onde você se meteu? Aparece filho! Ana 1: Eu fico toda vermelha quando ele me abraça. Eu não consigo.

Ana: (aflita) Onde você tá filho? Cadê você? Ana 1: Eu queria, mas não consigo... Ana: Filho! Floquinho! Por favor, filho! Ana 1: (apavorada) Por que? Por que eu não consigo amar meu filho? Por que eu não consigo entrar na minha casa e me sentir confortável? Por que eu não consigo ver no meu marido a razão de alguma coisa além do meu desprezo? Por que eu não consigo me sentir plena, realizada, viva! Por que eu tenho medo de tudo? Por que eu não me permito? Por que eu me minto tanto? Por que não consigo me sentir presente, participando? Onde foi que eu me perdi de mim? Ana: Tem sempre algo de ausente que me atormenta... Ana 1: Por que? Ana: A caixa de areia. Ana 1: Eu esqueci... Ana: Me aproximei. Ana 1: Eu não sei, a minha cabeça, quando me dei conta... Ana: (chama baixinho, com cuidado) Floquinho... Ana 1: Ele estava parado. Ana: Na caixa de areia. Ana 1: De costas pra mim, assim, nessa mesma posição que você tá agora... Ana: Meu floquinho de neve... Ana 1: Na caixa de areia... Criança gosta tanto de brincar na areia. Ana: . Floquinho... Ana 1: (chama) Floquinho... Ana: Vem com a mamãe filho... Ana 1: Acho que eu fiquei meio surda. Ana: Floquinho... Ana 1: Eu virei o ombrinho dele...

Ana: Meu floquinho de neve... Ana1: O bracinho dele desmontou na minha mão. A cabeça. O tronco. Parecia um boneco dissolvido na areia. (abstrata) Acho que foi insolação. (abismo) (somente o som de Douglas e Marisa acalmando Felipe) Felipe: (agressivo) Ela matou o meu filho! Ela não tinha o direito!!!!! Ela é um monstro!!!!! Monstro!!!!!!!!!!!! Você é uma egoísta Ana! Só pensa em você o tempo todo. No SEU conforto, no SEU bem estar, na SUA vida, EU, EU! Essa sua mania estúpida de querer ficar achando plenitude em tudo! Qual o problema de uma vida simples? Me diz? Qual o problema de ser medíocre? Por que que eu tenho que provar alguma coisa pra alguém? Quem te deve satisfações? Tudo tem que ter uma opinião?! Tudo tem que ter um conceito, uma razão, uma explicação razoável, um sim, um não! Não, ana! Não! A minha resposta é não. Eu não quero mais. A vida pode acontecer simplesmente. As pessoas não  precisam ser fascinantes o tempo todo. O pôr do sol pode ser só pôr do sol. Suas ideias não precisam mudar o mundo, você não precisa convencer ninguém. E tem gente que é feliz assim. E é honesto. (à medida que ele fala, vão desaparecendo tu, até ficar apenas o rosto de Ana) E você com esses seu ar de superioridade, achando que é melhor que os outros porque entende de arte ! Eu não entendo de arte Ana, e quer saber? Eu grito sem vergonha : Eu não entendo  porra nenhuma de arte! Eu acho um tédio! Um bando de gente metida à besta com hábitos excêntricos que se acham melhor que o resto da humanidade! Fodase a arte Ana! A vida real não precisa de artistas, na guerra, num terremoto critica de arte não serve pra porra nenhuma e você... (voz vai desaparecendo) (Silêncio) ( Volta a luz. Marisa, Ana e Ana 1.) Marisa: Qual é o limite entre uma opinião e uma análise? Ana 1: O que que ela tá falando? Ana: Ela só quer conversar. Ana 1 (depois de certa resistência) : É claro que nenhuma pessoa é completamente livre, porque cada um chega diante de uma obra de arte, trazendo a sua história pessoal, o que define muito seu ponto de vista. Mas eu  procuro ser o mais isenta possível. É preciso analisar o gato como um gato,

entender o gato. Não aquilo que você define como gato, é preciso olhar além...Acho que isso é fundamental para o meu trabalho. Não sei se foi isso que você perguntou. Foi isso que você me perguntou? Marisa: Eu queria ganhar dinheiro dizendo o que gosto ou não gosto... Ana 1: Não é uma questão de gosto não gosto. Ana: Até certo ponto acho que é sim, e é até bom que seja... Deve no sentido que (pausa), deve mostrar no sentido que é humana. Compreende? Não é uma máquina. Olha, isso aqui é assim, ou assado. É importante que a crítica tenha uma carga de emoção também. É uma comunicação. Se fizer só assim: “No  primeiro ato, é assim, tá tá tá...”, no final.... (pausa) As pessoas querem sentir alguma coisa. Querem que a crítica transmita algum tipo de emoção. Ana 1: Que tipo de emoção? Você gosta de causar frisson ofendendo os outros? Ana: Muito pelo contrário. Me recuso. Hoje só críticas do que eu gosto. O que eu não gosto não quero...Não quero na minha vida, não quero no meu caminho, não quero. Não faz sentido, entende? Dar espaço pro que eu não gosto. Espaço no mundo hoje tá tão disputado... A arte já ganhou tantas concorrentes pelo interesse das pessoas. Tantas coisas tem sido, estado à frente... Ana 1: Ficou benevolente com o tempo? Ana: Não. É que decidi depois de um tempo, à só dar vasão àquilo que eu gosto. Ana 1: E espera ser paga por isso? Ana: E qual é o problema? Gente! Me deixa. Eu to falando do jeito que eu trabalho, se você trabalha de outro, paciência! Que bom, mais um ponto de vista. É exatamente isso. Quanto mais melhor. Marisa: Não briguem, por favor... Ana 1: Você é tão complexa. Se define tão bem profissionalmente, tem uma...Mas a vida... É tão mais confusa... Ana: Paradoxal. Você quis dizer, paradoxal. Ana 1: Também. Ana: Creio que seja assim com a maioria das pessoas.

Marisa: Vocês não pensam em algum momento parar de fazer tantas críticas? Ana 1: Não. / Ana: Todos os dias Marisa: Parece que há divergências! Ana 1: Ai. Marisa: O que foi? Ana 1: Lembrei do meu filho. Ana: Ana, não... Marisa: Ana! Respeite os mais velhos. (para Ana) Desculpe os modos dela, Ana. Você entende né? (Ana consente) Ana 1: Desculpa, é que realmente eu não... Onde eu estava? Sim! Escrever pra mim é tão além... não é só por dinheiro, não pode ser só por dinheiro. Escrever me redimensiona. Me expande. Marisa: (com uma câmera fotográfica antiga) Para quieta menina, deixa eu tirar uma foto de vocês juntas! Ana 1: Mãe. To no meio de um raciocínio, pelo amor de deus. Ana: A vida passa, a velhice já se encarrega de te redimensionar em todos os aspectos. O da escrita, inclusive, é um deles. Marisa: Adoro essa palavra “Inclusive”. Ana 1: Para de escrever se isso não te dá mais prazer. Ana: Tá tudo ficando cada vez mais caro e eu cada vez mais velha... Preciso de dinheiro. Ana 1: E a liberdade ? Ana: Olha pra mim Ana. Marisa : Olhem pra mim! Xis! (dispara o flash da câmera) Ana: Só a alma é realmente livre, quando extinta do corpo... onde li isso? (repete para si mesma) “Só a alma é realmente livre, quando extinta do corpo...”

Marisa: Mais fotos! Ana 1: Mas será possível? Marisa: O que? Ana 1: Você não entende como isso é inconveniente? Marisa: O que? Ana 1: Inconveniente. Ana: Desculpa. Ana 1: Sem culpa. Só não quero você em cima. Marisa: (para Ana) Eu só queria fotografar. Desculpa. Ana 1: Para de pedir desculpa. Marisa: Desculpa. Ana: Eu não quero. Eu não quero você aqui, controlando a minha vida, dizendo o que eu devo fazer ou deixar de fazer, o que é melhor pra mim, o que eu deveria ser... Você ainda não percebeu. Não vai acontecer. Ana: Ana... Ana 1: Ela precisa ouvir. Eu preciso falar. Não vai acontecer. Infelizmente. Não nessa vida. Não agora e nem nunca. Não seremos amigas e isso não deve ser um  problema entre nós. Ana: Ana... Marisa: A gente pode ser mãe e filha pelo menos? (tempo) Você deixa? (sem resposta) Marisa: Você tem vergonha de mim? Por que? (sem resposta) (entra Douglas pela cozinha) (Ana e Douglas se olham demoradamente) Douglas: (rompendo o silêncio) Oi filha... Por que você está com esse olhar assustado?

(Ana em silêncio, recua à medida em que ele avança, lentamente) Douglas: Você está com medo do pai? (sem resposta) Douglas: Você é uma menina de tutano. Sua mãe perguntou mais alguma coisa? (Ana faz que não) Douglas: Melhor assim. Mas se ela insistir, você não diz nada. Você não viu nada. Você não sabe de nada. Sua mãe não entenderia... Ana: Você empurrou a Samantha. Douglas: Não! Claro que não! Ana: Não mente... Douglas: Filha. Seu pai pode não ser o melhor pai, o melhor marido do mundo... mas assassino, isso ele também não é. Ana: Eu vi você com ela, dançando... Douglas: Ela era só uma amiga do pai que... Ana: Vocês tinham um caso. (sem resposta) Ana: (acuada) Tinham ou não tinham? Douglas: Olha como você fala com seu pai! A Samatha era uma amiga. Você só viu uma dança. Nada demais. Amigos dançam junto. Sua mãe é histérica. Burra. Limitada. Não entenderia nunca. Por isso você precisa ficar quietinha. Pra evitar confusão. (Ana olha pra Marisa, humilhada) Douglas: Você está com medo de mim? Ana... Não precisa ter medo do pai... Eu não empurrei ninguém, foi a sua imaginação... Você não acredita em mim? Ana: Eu acredito em você. Só estou confusa... estou num dia atípico... Misturando tudo... Que cena é essa? Douglas: Ana...(sorri) Você acha mesmo...? Ana! Eu não seria capaz de... Não  precisa ter medo de mim...

Ana: (mais acuada) Eu não estou com medo de você... Douglas: Estamos só conversando. Eu na qualidade de pai e você na qualidade de filha mais velha...Você ama o pai? Ana: (nitidamente transtornada) Amo. Douglas: Então... Ana: Eu não sei... Douglas: O que você não sabe? Ana: Se você matou a Samantha ou se isso é uma coisa que eu inventei quando menina... Douglas: ( ameaçador) Vamos conversar... Ei... Você está tremendo? Ana! Que isso Ana... Eu sou seu pai... Não vou te fazer mal... Ana: Vai embora... Douglas: Eu fui. Antes de você completar 15 anos. Deixei sua mãe. Vocês. Essa casa, esse sonho de felicidade... a farmácia pro sustento de vocês. Os meninos ainda não sabem disso e eu não tive coragem de dizer. Fui embora sem deixar notícias. Porque eu sou covarde. Numa quarta, ou sexta... vocês ficaram me esperando e eu não voltei... Não mandei carta. Nem liguei. Comprei passagem de ida. Vendi meu carro. Fechei minha conta. Não me despedi. Você me entendeu , nunca me procurou. O tempo passou. Eu passei. Ficamos na memória um do outro... porque no fundo, no fundo... Você é igual a mim, e no meu lugar, você faria mesma coisa. Não é? (Douglas sai) ( Entra Felipe, repetindo a cena da volta do enterro. No lugar de Ana 1 , está Ana.) Marisa: (para o vizinho) Ele se jogou da sala. Estava bêbado. Era sozinho, não tinha ninguém. Vai ver até que foi por isso que fez o que fez. Não era muito de se abrir com as pessoas... Vivia aqui sozinho... Um apartamento tão grande...dá uma solidão, né... Ana: Ele não morreu! Ele foi embora, você ficou largada, esperando que ele voltasse um dia, mas ele nunca voltou. Nunca quis saber... Você esperou todos os dias da sua vida, mas ele... Nem no seu enterro apareceu.

Marisa: Ana, eu não to falando de seu pai. Eu to falando do seu ex-marido. Foi  pra isso que você voltou, não foi? Pro enterro dele? Meu pêsames. Felipe: (para Ana) Você quer conversar? Marisa: (num lamento) Eu queria morrer vestida de cetim... Felipe: Você tá cansada. Hoje foi um dia pesado. Estamos todos... O que foi? Marisa: São 3 as verdades sobre a mulher moderna minha filha. Primeiro:ela  pergunta, ela responde e ela mesma muda de assunto. Felipe: Um Dry Martini. Do jeito que você gosta. Muito gelo, pouco gim. Ana: (procurando a crítica entre documentos espalhados na casa) Onde você colocou? Felipe: Você quer que te acorde às seis? Ana: Cadê... cadê a crítica? Felipe: Você quer que eu te acorde às seis? (repetindo ininterrompidamente, como um disco arranhado) Ana: Você organizava numa pastinha, não é isso? Por ano... Não! Por ordem alfabética! Marisa: São 3 verdades sobre o enterro. Primeiro, depois que morre todo mundo vira santo. Segundo, uma jovem viúva com filhos, é quase um mártir e a terceira... Ana: Concentra! Marisa: São 3 as verdades sobre o bom casamento...Primeiro, a mulher deve sempre evitar perguntas como... Ana 1: Você se arrependeu, foi isso? Você acha que deveríamos ter ficado? Enterradas num casamento falido? À sombra de um homem como ele? Ana, você quer se redimir? Quer se salvar? Tá com medo de ir pro inferno? O inferno não são os outros, não. O inferno somos nós mesmos. Marisa: E as verdades sobre a compra da casa própria? São 3. Primeiro: jamais invista em uma parede que não possa quebrar! Segunda... Ana 1: O que foi?

Ana: (cansada) Estou misturando tudo... Ana 1: Você viu muita coisa, é normal misturar realidade com ficção. Quantas Lady Macbeth você já viu? Quantas Medeias, Julietas, avarentos, reis, traidores, lunáticos, guerreiros, bruxas, esposas, mães, filhas... Quanto amores impossíveis, quedas de impérios, traições homéricas... Quantas vezes você já esperou Godot? A humanidade aos nossos pés, melhor, à nossa vista... No que você está pensando? Ana: Por que deixei meu filho morrer... Ana 1: Ah não Ana, não... Acontece muito. Já faz tanto tempo. Você se sente culpada? (tempo) Ana 1: Não vai responder? (reconstruindo os passos) A gente voltou do teatro... Ele foi dormir, não é isso? ... Eu sentei de frente pra essa janela e escrevi... Deixei aqui em cima pra ele. Guardei depois... mas onde? Onde foi que guardei...? Você não lembra? EU estava morrendo de dor de cabeça... Ana: Uma dor bem aqui... Ana 1: É só uma crítica, vieram tantas depois dessa. Ana: Concentra, concentra! Ana 1: (para Ana) O que você está pensando? Marisa: Se eu não tivesse filhos eu pulava... Ana: Eu queria muito. Ana 1: achar a crítica? Ana: (para a Marisa/ Felipe) Ter te amado de forma simples. Ana 1: (reflete) É uma questão. Esbarramos muito nisso... Entre o que desejaria que tivesse acontecido e o que aconteceu de fato... Esse não é um bom lugar pra se viver. Ana: Você está falando do trabalho ou da nossa vida? Ana1: Depois de certo tempo, uma coisa necessariamente não tem a ver com a outra?

Ana: Eu to morrendo de dor de cabeça... Queria um café. Ana 1: To pensando na Samantha. Sempre penso nela. Na coragem dela. Diz que geralmente quem se atira pela janela, se atira de dia. Será que é pra todo mundo ver?...Ai. Ana: O que foi? Ana 1: Meu filho... Ana: Não... Ana, não. Ana 1: O que é que você está pensando? Ana: To pensando no Felipe. Eu pensei que o Felipe não ia morrer nunca. Sabe, gente que não vai morrer nunca? Então, eu pensava isso dele. Ver o Felipe naquele caixão... Babaca. (suspira exausta) To precisando respirar pra fora. To  boa hoje não. Ana 1: Ele se jogou? Ana: Caiu bêbado. Ana 1: Tinha areia na barba dele? Ana: Tinha sim. Ana 1: Pode repetir? Ana: Tinha sim... Ana 1: Insegura. Pouca convicção no que defende, falta vivacidade e um colorido nas emoções propostas no jogo. Gestos vazios, figurino inadequado, velha, insistente, um desastre de mulher. Seu sentimento agudo de culpa desnorteia qualquer possibilidade de contato direto com o outro. É evidente seu discurso piegas e por muitas vezes apelativo. Por que tão metafórica em tempos hiperbólicos? O mergulho dedicado, não se pode negar, em suma, Ana cumpre. Ana: Cumpre... (pensa) Simplesmente. Cumpre. Ana 1: Então isso é bom. Ana: Lógico. Ana 1: Mas é irônico também.

Ana: Óbvio. Ana 1: E você lida bem com críticas? Ana: Queria tanto achar... Ana 1: Floquinho? Ana: Não foi culpa sua. Ana 1: O que você tá pensando? Ana: . To precisando respirar fora. Sabe respirar fora? Eu to precisando deixar correr solto... Parar de... É que... Sei lá, o enterro do Felipe me deixou impulsiva... Esse apartamento... Parece cada vez menor... To afim de vender essa casa. Com tudo dentro. Embrulhar e entregar ! Voltar pra minha vida e seguir a semana... (num muxoxo) To tão enrolada... Esse enterro bagunçou tudo... (confessa) Queria, não sei... Queria guardar uma coisa. Uma coisa física. Compreende? Só pra olhar. Vivi por muito tempo fora de mim, não no sentido de raiva, fúria, descontrole...não. Fora de mim no sentido de uma alma fora do corpo. Sentada do outro lado. Olhando pra mim...do lado de fora... (reflete) Depois fiquei muito dentro de mim, dentro de mim, dentro de mim, dentro de mim... Muito... O tempo vai passando e a gente vai ficando mais pra si, né?  Normal. Eu acho. Vai ficando mais pra dentro. Talvez até por isso que mais curvado. Daí é aquele papo, “precisa respirar fora” outra vez. Entende? Precisa... (faz gesto de abrir no ar) Eu to nessa fase. Querendo. Precisando. Ia ser tão bom se eu encontrasse... O que você acha? (Ana está sozinha) (Quieta) (Anda pela casa, em silêncio) ( tem alguma coisa dentro da sua boca.) (Tira) (é uma folha de papel amassada) (ela desamassa) (Lê. Em silêncio) (coroas de flores entrando)

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