Saberes e Odores

April 19, 2017 | Author: Gisele Ferreira | Category: N/A
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Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro , SP, Brasil)

C813s

Corbin, Alain . Saberes e odores : o olfato e o imaginário socia l nos seculos XVI II e XIX / Alain Corbin ; tradução Ligia \~atanabe. -- São Paulo: Companhia das Letras, 1987. ISBN 85-85095-43-1 i. França - Condições sociais - Seculo 18 2. França - Condições sociais - Século 19 3. Odores - Aspectos sociais 4. alfato - Aspectos. sociais 1. Título. II. Título : O olfato e o imaginaria social nos seculos XVIII e XIX.

CDD-152.166 - 944.034 - 944.07

87-1661 1. 2. 3. 4. 5.

Indices para catálogo Ilstemallco: França: Condições sociais: Seculo 18 944.034 França: Condições sociais Século 19 944.07 Odores : Aspectos sociais 152.166 OlEato : Aspectos sociais 152.166 Percepção olfativa: pHco1ogia 152.166

Copyright © 1982 by Éditions Aubier Montaigne Título original: Le miasme et la jonquiLLe L'odorat et l'imaginaire social XVIlle-XIxe siecles Indicação editorial: Renato lanine Ribeiro Capa: Moema Cava/canti Tecido da capa: Toile de louy, Formatex Representações Ltda. Revisão: Adriana Lichtenfels lô de Melo Denise Gutierrez

1987 Editora Schwarcz Ltda. Rua Barra Funda, 296 01152 - São Paulo - SP Fones: (011) 825-5286 e 67-9161

"Non, ce n'est pas impunément qu'une personne délicate, impressionnable et pénétrable, recevra le fâcheux mélange de cent choses viciées, vicieuses, qui montent de la rue à elle, le souffle des esprits immondes, le pêle-mêle de fumées, d'émanations mauvaises et de mauvais rêves qui plane sur nos sombres cités!" Jules Miche1et, La femme, 1859 "N ão, não há de ser impunemente que uma pessoa delicada, impressionável e permeável receberá essa desagradável mistura de mil coisas viciadas, viciosas, que sobem da rua até ela: o halo de espíritos imundos, a confusão de fumaças, de emanações ruins e de sonhos ruins que plana sobre nossas sombrias cidades!"

(Jules Michelet, A mulher, 1859)

ÍNDICE

Preâmbulo . . . ........... .. ...... . .. . .............

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Primeira parte REVOLUÇÃO PERCEPTIVA OU O ODOR SUSPEITO l. O ar e a ameaça pútrida . .. ..... ..... ... .. .... ..

2. 3. 4. 5.

Os pólos da vigilância olfativa . .... .. ........... Emanações sociais . ........ ... .... . .. .. .... ... . . Redefinir o insuportável ... .... .... ... ... ... .... . O novo cálculo do prazer olfativo ............ . . ...

19 34 51 79 97

Segunda parte PURIFICAR O ESPAÇO PÚBLICO ,. As estratégias da desodorização .................. 119 2. Os odores e a fisiologia da ordem social .. . ....... . . 146 3. A política c os malefícios ............... .. . . ..... 167

Terceira parte ODORES, SíMBOLOS E REPRESENTAÇOES SOCIAIS 1. 2. 3. 4. 5.

O fedor do pobre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . " O hálito da casa" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Os perfumes da intimidade ..... . . . . . . . .. . . .... . A embriaguez e o frasco ... ........ . .... . . . . . ... " Risos suados ..... .. .. . .......... . .. . .... . .. . . Desfecho: " Os odores de Paris" ..... . ... . .... .....

183 207 226 257 270 283

PREÂMBUW

Conclusão .... . . ... . . . . .... ...... .......... . .. . . . 291 Notas . . . ... . .... . . .. .... . .. .. ...... ....... . .. . .. 296 A DESODORIZAÇÃO E A HISTÓRIA DA PERCEPÇÃO

A idéia de consagrar um livro à história da percepção olfativa me foi sugerida pela leitura das Memórias de Jean-Noel Hallé, membro da Sociedade Real de Medicina no Antigo Regime e primeiro titular da cadeira de higiene pública criada em Paris, em 1794. Perseguidor infatigável de miasmas nauseabundos, JeanNoel Hallé comanda a batalha da desodorização. Em 14 de fevereiro de 1790, enviado por seus colegas, trilha as margens do Sena com a finalidade de nelas detectar seus fedores e de proceder a uma verdadeira mensuração olfativa das duas vertentes do rio. I Num outro dia, em companhia dos maiores nomes da ciência francesa desse tempo, supervisiona a limpeza de uma fossa considerada particularmente mortífera e testa os procedimentos suscetíveis de dominar as emanações. 2 Estes são apenas exemplos de sua prática cotidiana. No hospital, o professor Hallé analisa e define com precisão o odor de cada uma das espécies mórbidas, sabe distinguir o ambiente olfativo das salas onde se amontoam os homens, as mulheres ou as crianças. Em Bicêtre, * ele observa, de passagem, "o cheiro insípido dos bons pobres". 3 Um comportamento como esse não é isolado; uma leitura (*) Bicê/re: hospital que dá nome a uma região de Paris. (N .T .)

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o AR E A AMEAÇA PÚTRIDA

UM CALDO PAVOROSO Por volta de 1750, antes que se operassem os progressos decisivos da química chamada pneumática, o ar continuava a SL't' considerado como um fluido elementar e não como o resulIlIdo de uma mistura ou de uma combinação química. 1 Desde ti publicação dos textos de Hales, os sábios ficaram no entanto l·onvencidos de que ele entra na própria textura dos organismos vivos. Todos os mistos que compõem o corpo, fluidos ou sólidos, uo se desfazer sua coesão, deixam escapar ar. Esta descoberta au11l\.' llluvu o campo de ação até então suposto para esta substânl I elementar. Considera-se doravante que o ar age de múltiplas 111I11Il·.rIlS sobre o corpo vivo: por simples contato com a pele 1111 l011l II membrana pulmonar, por substituições através dos 11I1I1I~ , pm ingestão direta ou indireta, uma vez que até os ali1'1' 11'" I II 11 hélll contêm uma proporção de ar, de que poderão IlIlpll·f( IIIII, dc início, o quilo e, em seguida, o sangue. 1'111 II lN quulidades físicas, que variam segundo as regiões .111111" II , c~ttlções do ano, o ar regula a expansão dos fluidos II "II III tlllli fibras. Desde que seu peso se tornou verdade lo 111111111 , IIdllillL'-HC quc ele exerce uma pressão sobre os orgaIii 11111 I' I prcssllO tornaria a vida impossível, caso não se II ,iII Ifllllllllo 11m equilíbrio entre o ar externo e o interno; 19

equilíbrio precário, incessantemente restabelecido pelos arrotos, pelos gases, pelos mecanismos de ingestão e de inalação. 2 Facilmente compressível, o ar se acha, por isso mesmo, animado por uma mola. Esta elasticidade tem força igual à da gravidade. A menor bolha de ar equilibra a massa da atmosfera. Esta força permite a respiração, mantém os movimentos intestinos, assegura a dilatação que compensa a constrição exercida pelo peso do fluido. Por si mesmo, o ar nunca perde sua elasticidade; mas, uma vez que a perca, não mais a recupera. Somente o movimento, a agitação, é que permitirão a restauração da atmosfera nesse caso e dessa maneira a sobrevivência dos organismos. Com efeito, a morte intervém quando o fluido não tem mais a força de entrar no pulmão. A temperatura e a umidade do ar exercem uma influência mediata sobre os corpos. Através de um jogo sutil de aperto e de expansão, contribuem para desarranjar ou para restaurar o equilíbrio difícil entre o meio interno e a atmosfera. O calor tende a rarefazer o ar e assim determina um relaxamento e um alongamento das fibras. As partes externas do corpo, principalmente as extremidades, incham. O organismo por inteiro sente fraqueza ou abatimento. Ao contrário, o ar frio contrai os sólidos, retesa as fibras, 3 condensa os fluidos. Aumenta a força e a atividade do indivíduo. Bem paradoxalmente,4 subsiste a convicção de que é o ar que refresca o sangue e que com isso regula a transpiração sensível bem como a transpiração insensível, posta em evidência no século XVII por Sanctorius. Um ar fresco revela-se assim particularmente benéfico; 5 em compensação, um ar frio demais está arriscado a incomodar a evaporação das excreta e a causar o escorbuto. Uma umidade forte, o orvalho matutino ou vespertino, a chuva persistente relaxam os sólidos, alongam as fibras, porque ajudam o fluido a se insinuar pelos poros ao mesmo tempo em que enfraquecem a elasticidade do ar interno. Acumulando tais ações nocivas, o ar quente e úmido está arriscado a comprometer gravemente o precário equilíbrio que assegura a vida. Substância elementar, o ar desempenha o papel de supor-

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te inerte. 6 O ar veicula uma quantidade de partículas que lhe são estranhas. O congestionamento desse fluido heterogêneo, assim como suas qualidades físicas, varia segundo o lugar e o tempo. Tentar traçar o inventário de tudo aquilo que, segundo os autores, compõe a carga do ar depende de adivinhação. A maioria dos sábios concorda em considerá-lo como o lugar de expansão do flogístico de Stahal e assim, por esta única razão, como sendo indispensável à vida. Vê-se também nele o vetor do calorífico. Segundo Boissier de Sauvages, o ar assegura a transmissão do fluido elétrico, responsável pela manutenção de sua elasticidade. 7 Um discurso abundante 8 atribui ao ar a transmissão de partículas magnéticas, isto é, de obscuras influências astrais. Em compensação, ninguém duvida de que o ar tenha em suspensão as substâncias que se destacam dos corpos. A atmosfera-cisterna carrega-se com es emanações telúricas, com as transpirações animais e vegetais. O ar de um lugar é um caldo pavoroso no qual se misturam as fumaças, os enxofres, os vapores aquosos, voláteis, oleosos e salinos que exalam da terra, e, se for o caso, as matérias fulminantes que ela vomita, a morrinha '" que sai dos pantanais, os insetos minúsculos e seus ovos, animálculos espermáticos, e, muito pior ainda, os miasmus contagiosos que se elevam dos corpos em decomposição. Mistura insondável a que Boyle se dedicara, sem muito su9 ll' Hb O, destrinchar com o auxílio de meios de análise sumários. Mist ltru fervilhante, incessantemente corrigida pela agitação, I /II ro de estranhas fermentações e transmutações em raios e II UVlIll, e remanejado pelas tempestades, nas quais são abolidas II pllltkulus sulfurosas superabundantes. Mistura assassina em 1\ IIIIH)S de calmaria, quando se delineia a temível estagnação '1 111 1IIIIIsfol'ma os portos abrigados e as baías profundas em ceIIdll I illb d' marinheiros. A illl como as qualidades físicas do ar agem por sua soma moulelte refere-se ora ao animal, ora ao odor; utilizamos morrinha em vez de gamhá. (N,T.)

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c por suas diferenças, a composição de sua carga regula a saúde dos organismos. Enxofres, morrinhas, vapores mefíticos comprometem a sua elasticidade, constituindo-se em ameaças de asfixia; os sais ácidos metálicos coagulam o sangue dos vasos capilares; as emanções, os miasmas, infectam o ar, incubam as epidemias. Conjunto de convicções no qual se enraíza essa vigilância atmosférica que sustenta a medicina neo-hipocrática, suscitará a epidemiologia do Antigo Regime que, em sua fase final, inspirará o projeto da mesa "pnêumato-patológica", !O elaborado pela Sociedade Real de Medicina. Hipócrates e seus discípulos da escola de Cos 11 haviam sublinhado, nos séculos v e IV a.C, a influência dos ares e dos lugares no desenvolvimento do feto, na elaboração dos temperamentos, na gênese das paixões, nas formas da linguagem e no gênio das nações. "Cada animal é naturalmente feito para o uso do ar puro, natural e livre", lê-se no livro de Arbuthnot, traduzido em francês desde o ano de 1742. 12 Os animais jovens ignoram a tolerância, que nasce do hábito e que permite ao citadino suportar um "ar artificial". Antes mesmo de um Priestley ou de um Lavoisier terem se esforçado para analisar o "ar comum", emerge então a reivindicação de um direito natural à respiração de um ar que não esteja congestionado por uma carga nociva; é somente mais tarde que a noção de pureza será encarregada de dar as referências para a alteração da composição. Por enquanto, o que importa é o justo equilíbrio entre a "depravação" e a "repurgação"; 13 procura impossível, que demanda uma higiene privada cheia de desconfiança para com as variações, para com os degelos repentinos, para com os reaquecimentos pluviais, ou para com a irrupção de chuvas após grande seca. Discurso higienista, que simbolicamente valoriza a brancura da cor e a transparência da pele, sinais manifestos da qualidade das combinações aeriformes de que se nutre o ser vivo. 14

cia de movimento e se delineia um hino de louvor às tempestades. Antes que Lavoisier identifique a respiração à combustão, as descobertas ainda titubeantes operadas entre 1760 e 1780 vão modificar profundamente a química pneumática. Durante esses vinte anos, aproximadamente, opera-se uma evolução determinante para o nosso propósito. Até então, o olfato não estava estreitamente implicado na apreciação do ar; estava longe de assumir totalmente a ansiedade ligada aos progressos do "aerismo". Medir as qualidades físicas da atmosfera concerne antes ao ta to ou aos instrumentos científicos. O aspecto teórico do discurso sobre os miasmas e os vírus, a indefinição das emanações, a ausência de análises corretas às quais se referir, a imprecisão de um vocabulário que apenas começa a se esboçar contribuem para a desqualificação do olfato. É significativa, neste sentido, a raridade das ocorrências olfativas no debate que então divide partidários e adversários do contágio. 15 Destruir esta imprecisão, analisar a ameaça: 16 tais são precisamente as tarefas que os químicos empreendem a partir de então. Estes formulam um projeto duplo: 1) proceder ao inventário e, portanto, à denominação dos mistos, esforçando-se para criar uma linguagem olfativa que permitisse defini-los; 2) relevar as etapas, os ritmos da corrupção, e situá-los numa escala cssencialmente olfativa, uma vez que o olfato se afirma como o sentido privilegiado para a observ~çã.o dos fenômen~s da :er~ mcntação e da putrefação. A emergencla de uma eut1tometr~a uinda balbuciante quase não interfere no avanço do papel Clenlffico do olfato, instrumento de análise impreciso, mas infinitaIllcnlc mais sensível do que os aparelhos postos em uso por Volta ou pelo padre Fontana. Desde então, químicos e médicos afinam o vocabulário que li 've permitir-lhes transcrever as observações do olfato. A tra-

As definições de são e de malsão, bem como a organização das normas do salubre e do insalubre, esboçam-se em função do pensamento "aerista". Desde logo, formula-se a exigên-

('s llldo; de onde: medição e medidor do bom estado (de coisas, objelo l , (N.T.)

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( "' ) Elldiometria, eudiômetro, do grego eudía, bom, sereno, bom

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dução da vigilância olfativa na linguagem científica suscita uma impressionante ascensão das ocorrências, o que todos os especialistas do final do século XVIII observam. Vigilância que, doravante, tem por múltiplos objetivos detectar os gases e principalmente os "ares" irrespiráveis, discernir e descrever os vírus, os miasmas, os venenos até então inapreendidos. Projeto impossível, já que repousa num erro; rochedo de Sísifo, sobre o qual os médicos se encarniçarão, até o triunfo das teorias pastorianas. Na falta de se conseguir detectar, pelo olfato, tais seres terríficos, restará por muito tempo a esperança de se poder detectar seus efeitos sobre os corpos vivos. Enquanto a medicina clínica que se esboça põe em perspectiva o mórbido e as lesões observadas no interior do cadáver, o então dominante sincretismo médico, no qual o neo-hipocratismo se mescla à herança mecanicista, toma por referência para os odores do patológico a gama definida pela observação da decomposição pútrida. Entre 1770 e 1780 os sábios desdobram-se numa atividade apaixonada de recolher, transvasar, conter e conservar os "ares" - que chamam também de gases - , identificando os efeitos de cada um deles sobre o organismo animal. Em alguns anos, e o livro de Scheele 17 resume muito bem esse labor fascinado, constitui-se um quadro dos "ares" respiráveis e das morrinhas. Classificação confusa, encavalada, de terminologia ainda fleXÍvel, no seio da qual despontam algumas vedetes: o.ar fixado, o ácido sulfúrico, o ar inflamável, o álcali volátil e o fígado de enxofre. No curso dessas múltiplas experiências, cada qual aprende a reconhecer, isto é, a detectar, pelo olfato, os membros desta prolífica família. Enquanto ratos, cães e coelhos se debatem e morrem aprisionados em suas gaiolas, vão sendo pouco a pouco reveladas as combinações e as transmutações ligadas ao mecanismo vital. O pastor Priestley 18 mede a degradação do "ar comum" utilizado pela respiração e a produção do "ar flogístico" (azoto) e do "ar fixado (gás ácido de carbono) às custas do "ar vital", desflogíslico (oxigênio). Aquele é doravante reconhecido como o ar respirável por excelência. A fidelidade do sábio britânico ao flo24

gístico o impede entretanto de levar a termo uma análise correta do fluido. Priestley esboça também a teoria das combinações gasosas do reino vegetal, mas deixa para Ingenhausz o mérito de descrever com exatidão a fotossíntese. A descoberta do poder oxigenante das plantas sob o efeito da luz engendra, nestes dois pesquisadores, a visão otimista de uma regulagem providencial que fizesse a correção do ar, viciado pelos animais, 19 através dos vegetais. Tais descobertas levam a se considerar o ar não mais como um elemento ou uma combinação, mas como uma mistura de gases cujas proporções respectivas determinem suas qualidades. Priestley mostrou aliás que era impossível calcular a taxa de "respirabilidade" de um ar. Assim, munido de seu eudiômetro, o abade Fontana percorre a Europa, esperado ansiosamente, como um adivinho. Pretexta ser capaz de anunciar a vitalidade das atmosferas. Decepção geral, eis que o ar da região dos Halles * não parece dotado da menor qualidade daquele encontrado nas montanhas; bem depressa, será preciso abandonar as esperanças depositadas no seu aparelho. Como último recurso, é mesmo do olfato que será preciso esperar receber os oráculos .

OS ODORES DA CORRUPÇÃO

Destruir a confusão das emanações, "a indefinição do púIrido ",20 para finalmente chegar à compreensão dos mecanisIIIO H tia infecção constitui, sem embargo, o projeto fundamen1111 dl!sta química dos gases tão fortemente implicada na observa~'I IO dos fenômenos orgânicos. Estudar os "ares" é então estudlll OH mecanismos da vida; é o que lança a moda da experiênl iII " pneumática". Nos meios esclarecidos, esta se expande como 1111111 Jllli xao incontrolável. Por um desvio que nos parece curio.11 , l IIll'H lnO a angústia da morte, da desunião das partes do (. ) AlIlI l(o Mercado Central de Paris. (N.T.)

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corpo vivo que cria aqui a fascinação. O ar não é mais tão estudado enquanto o lugar da geração, 21 da expansão da vitalidade, mas enquanto o laboratório da decomposição. Observar com uma atenção mórbida a marcha da dissolução da substância orgânica, situar o escapamento do "cimento" dos corpos, 22 deste "ar fixado" promovido ao nível de ator principal do drama que se encena, sentir - pelo olfato _ a coesão dos mistos se desfazendo, tudo isto exerce um inquietante fascínio. Tratase de trilhar o caminho da morte na matéria viva a fim de se discernir a maneira pela qual se estabelece o líbrio vi ta J.

mi~terioso

equi-

O olfato se acha tão profundamente engajado nesta busca que nos é necessário esboçar uma pré-história das pesquisas sobre. a putrefação. Bacon 23 poderia sepresentar aqui o papel de paI fundador. No início do século XVII, ele já proclamava que todos os desarranjos de nossa máquina conduziam-na mais ou menos para a dissolução pútrida,24 a qual "destrói por completo o arranjo entre as partes" a fim de permitir uma nova com?inação. Como prova, segundo · ele, estão as transmutações olfattvas. Assim, "ele já havia observado os odores de âmbar d~ musgo, de gineta, * que se seguiam à putrefação e que fre~ quentemente são seus produtos". 25 . De fato, é ao alemão Becher que convém reconhecer a paternIdade da teoria pútrida. Segundo ele, a putrefacão constitui um movimento intestino permanente, perpetuame~te em luta contra o princípio da coesão natural e inata das partes, fogo elementar que se perpetua graças ao espírito balsâmico 26 do sangue. Numa perspectiva mecanicista, este movimento intestino res~!ta da mobilidade das moléculas liberadas dos entraves que as ftxavam, e daí o odor fétido e penetrante dos corpos que a?odrece~. Este, portanto, não poderia ser considerado como simples stnal da putrefação; ele é parte integrante do processo.

Fetidez e umidade definem a corrupção. As partes aquosas da matéria orgânica liberam-se sob forma de sânie e de pus, as partes pútridas tornadas voláteis desprendem-se sob forma de moléculas nauseabundas. Resta a terra. Se o combate permanente que se desenrola no vivente der vantagem à putrefação; se, porventura, miasmas pútridos, emanados dos corpos doentes ou em estado de decomposição, forem inalados pelo organismo e vierem a corromper o equilíbrio das forças intestinais; se se produzir uma interrupção da circulação do espírito balsâmico do sangue pela obstrução dos vasos, viscosidade dos humores ou ferimento, isto poderá significar o triunfo da gangrena, da varíola, do escorbuto, das febres pestilenciais ou pútridas. O anti-séptico, isto é, a substância capaz de entravar o excesso de putrefação, deve ser procurado entre os corpos voláteis, quentes, oleosos, aromáticos, aptos a fornecerem as vias pelus quais deve circular o espírito balsâmico. A promoção teI'upêutica dos arômatas, fundada sobre sua volatilidade e seu poder de penetração, concorda com uma antiga tradição, aquela ' dos o dores. 27 que levará Hipócrates a combater a peste atraves A física do sábio alemão * conduz a uma dupla valorizaodores: a fetidez reflete a desorganização, o arômata IIlul: cuminho para o princípio vital. Tanto os sintomas quanto " !l'IlH.:dio baseiam-se na olfação. ~IIU dos

TOlllllndo para si a afirmação de Boyle segundo a qual a da matéria orgânica produz ar, Hales se dedicou ao I Illd" (kssc escapamento. Uma polegada cúbica de sangue de 1'111111 11Imlllz 33 polegadas cúbicas de um "ar" que Black iria Il fll 1/11 d · "III' fixado". Assim, os estudos sobre a dissolução púIlldll 111'1111111 til: reorientados: a putrefação é mesmo uma lise, ela I 1111 11 IlIl''' 1\O de um movimento intestino. Assim sendo, o esI III h!llll, qUl' doravante aparece como a doença pútrida por exI [I III II, I IIJl~'I1US u dissolução que se introduz no corpo vivo. IIIIIIII'~IIO

( *) Gineta: carnívoro mefitino do tipo da marta; var.: zibeta. (N.T.) I

I "di

I.

(N.T,)

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Mas aquilo que garante a coesão, aquilo que resta após a desunião das partes, não é terra; é ar. O cimento dos corpos é de natureza volátil. Os componentes terrestres, salinos, oleosos, aquosos, entram, após sua fuga, em outras combinações. Tais são as intuições mais importantes que inspiram, em 1750, os trabalhos de Pringle e, alguns anos mais tarde, os de Mac Bride, 28 o químico de Dublin. Segundo este último, o antiséptico deve desempenhar uma função quádrupla: entravar, é claro, a liberação do "ar fixado", que poderia resultar da dissolução do sangue ou de um excessivo relaxamento das fibras', assegurar a fluidez necessária a todo movimento intestino; facilitar a expulsão do pútrido em trânsito no corpo; e, quando necessário, restabelecer as substâncias apodrecidas, deixando-as em seu estado natural. Serão, desse modo, promovidos à dignidade de anti-sépticos, por Pringle ou por Mac Bride, os adstringentes que constringem as fibras, os arômatas, os sais, a quina e, em última análise, o próprio ar. Estas descobertas britânicas são rapidamente difundidas na França. Em 1763, a Academia de Dijon abre um concurso para o estudo dos anti-sépticos, o que permite a Boissieu obter um primeiro prêmio. 29 Realizou uma brilhante síntese em que sublinha, ao mesmo tempo, o caráter indispensável do movimento putrefativo interno a todo organismo vivo e a precariedade de um equilíbrio que convém ser permanentemente vigiado. O autor delimita os perigos, enumera os princípios que guiarão a ação dos higienistas e define com grande precisão a estratégia futura. Acima de tudo, é preciso conter o escapamento do "ar fixado", já que este tende a fugir, quando não houver resistência, para entrar no ciclo das combinações aerjformes que regulam a vida e a morte. Com este fim, é necessário evitar certos obstáculos: 1) o calor, que tende a rarefazer as partículas que compõem os corpos e a tornar assim mais frágil o sistema de proteção; 2) a umidade, que desmancha a coesão das partes; 3) a imersão em um ar que tenha perdido sua força e que por

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isso se oponha menos eficazmente ao escapamento do "ar fixado". Acima de tudo, é conveniente evitar o ar infectado por essas exalações pútridas que transmitem aos liquores "o movimento intestino que as agita" e que, com isso, aceleram a marcha da putrefação. Em compensação, o médico favorecerá tudo aquilo que impeça a fuga do gás. Deverá, ao mesmo tempo, garantir o movimento dos fluidos, porque este retém o ar no estado de fixidez; zelar pelo bom encaminhamento da excreção que expulsa os humores putrescentes; facilitar a absorção do ar pelos pulmões, pelos poros, pelos vasos inaladores do estômago e dos intestinos; melhorar as trocas gasosas por intermédio do quilo; e isto, pela escolha de alimentos, pelo emprego de anti-sépticos balsâmicos, pela exposição a vapores que emanam de arômatas aquecidos ou de certas matérias em fermentação. Assim se encontra ddinida uma política higienista que ultrapassa em muito a te 0l'Iu l1eo-hipocrática, na qual se tem insistido no erro de confi1111 III , e que se baseia na análise do ar, na luta contra os miasIIIII S pútridos e na valorização do arômata. A difusão de tais teorias conduz à multiplicação das exi 'ncias e das análises olfativas da putrefação. Seria ainda I" Ild ioso citar que somente as principais obras as relatam. Bre, III I Ilé se esforçara para descrever o odor dos diferentes estáI " dll decomposição pútrida. Numa tese defendida em 1760, III MOlltpellier, Féou refina a sua análise. Nos primeiros ins111111' do deccsso, aparece um "odor adocicado", 30 que alguns IIlIldllllll1 como "fermentação vinosa". Em seguida se desen1111'1 11111 odol' ácido mais forte, "muito freqüentemente pareti" 111111 !l do queijo que apodrece" (Gardane o qualifica de I. II di" II .IISO " ) , .. Por fim, o odor de podridão se manifesta; ele ills(pido e sem agrume, mas essa insipidez causa ): iIlsl.:l1si velmente, o odor se torna penetrante, é I 1I\lllIllilllÍvel. Ao gosto pútrido sucedem o gosto herfimbar ... ", O autor conclui: "Isto deve 1'\1

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levHl' os médicos a determinar mais exatamente os odores nas doenças ". A presidenta Thiroux d'Arconville constitui um bom exemplo destes sábios na escuta olfativa da putrefação. Robert Mauzi 3 1 sublinha a importância desta aristocrata apaixonada pela física; condenada à virtude pelos estigmas da varíola, ela parece ter encontrado na ciência alegrias compensadoras. A presidenta garante ter-se dedicado a experiências com mais de trezentas substâncias para estudar a maneira pela qual seria possível entravar a putrefação em cada uma delas. Isto nos valeu um pesado volume de seiscentas páginas, sem contar os quadros. 32 A jovem tomou o cuidado de multiplicar as experiências em função das estações, da temperatura, do grau de umidade , dos ventos, da exposição. Ela trabalhou na cidade e no campo. E manteve um diário de toda essa atividade científica. Thiroux d 'Arconville é uma incomparável observadora dos odores. Ela ambiciona detectar aqueles que determinam o ritmo da putrefação de cada uma das substâncias estudadas. Prestando atenção durante meses a essa incessante valsa, sofre vertigens diante dessas variações olfativas que indicam prodigiosos mistérios . A natureza exibe aqui um discurso fascinante , mais estimulante, para a imaginação, do que a mudança de cor das substâncias putrescentes e do que os sopros e as ebulições da fermentação . O caso não é isolado. Godart,33 autor de uma tese apresentada no concurso de Dijon, mostra-se abertamente alucinado pelos ritmos olfativos descontínuos da putrefação e por aquilo que ele batizou de "deflagrações" de odores no interior de seus frascos. Outro exemplo é o do ár. Raymond , 34 que relata, em seu livro sobre a elefantíase, a maneira pela qual ele se pusera a seguir pelo nariz a marcha da putrefação no vivente. O olfato se aproveita do movimento que, sob a influência dos discípulos de Locke e em seguida de CondilIac, vai progressivamente aguçando a atenção sobre os fenômenos sensíveis c a capacidade de análise de cada um dos sentidos. Ao contrári o do que comumente se pensa, 35 o olfato se beneficia disto

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mais do que a Vlsao, a audição ou o tato. Com efeito, ele se ucha implicado mais de perto na definição do são e do malsão que então se esboça e contribui para organizar as condutas higienistas até as descobertas pastorianas. Enquanto a clínica nasCl!nte privilegia a visão, a audição e o tato, cabe ao olfato reve111 1' a fisiologia subterrânea, controlar a modificação dos humor 's, acompanhar a "ordem da putrefação". 36 A complicação do vocabulário traduz as novas exigências; de todo um sistema de balizas olfativas, o médico preI j ~ 1I ~a be r destrinchar a complexidade dos signos. Graças a uma II prcl1dizagem sutil, ele sabe manejar então uma série dupla de dmlos o lfativos: aquela que permite reconhecer os gases, e por111 111 0 detectar a ameaça de mefitismo, e aquela que se refere às 11 11 di sl!s da fermentação e da putrefação, graças à qual é possível pl l'~M: n(ir o miasma e detectar seus efeitos sobre o organismo, ( '11 111 0 l!spantar-se, então, diante das inumeráveis referências ao 111 111 1 qu e sobrecarregam o discurso médico e que freqüentam a I IHI'I l' llCia vivida dia a dia pelo professor Hallé? 1I II'IIVés

No entanto , será que se pode, legitimamente, privilegiar a 11I111Il Il l'iu dos médicos e dos higienistas a ponto de atribuir-lhes "11 ,, 11IH'll h.: LI pré-história desta revolução perceptiva? CertamenIt 'I II\' 11110 . Se por um lado desempenharam um papel muItipliId ll l l'llll hiderável, por outro lado tudo leva a crer que só fi111111 II Id II ziI' a sensibilidade particularmente viva de seus conI! "1j '" 111I11' Oh. O oHato se beneficia, temporariamente, de uma I I 111 11 II li , porque assume, melhor do que os demais sentidos, II " lI lIVllh inquietudes",37 que irão engendrar as mitologias I ' I ' 1 1I 1 1I 111 11~. * O olfato sabe revelar a precariedade da vida III, I I 1 ~ l o ~ o essencial. A atenção olfativa prestada à puI I I III 11 /1" , pl' l'spectivas abissais na psicologia das elites do fiII ti I" I1l ipll lü'g ime. A permanente escuta da marcha da morII{ I I 1\1 111 1', qUl' se torna análise atenta dos arrotos, dos borI

/'/, 1'11 I ("IIII I1 I/,\', isto é, anteriores às descobertas de Luois PasI I 1,,1 01,1 Illll'l'Ohiologia. Seguimos a preferência do Autor pela I , ,,," 1110' I III VI'I. de pasteuriano. (N.T.) I

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borismos, dos gases, das cólicas, das diarréias métidas, introduz ansiedades novas. O cálculo dos graus de podridão interna fundado no odor das dejeções traz consigo esta espantosa vigilância excrementicial que precisaremos estudar. A relação que o homem mantém com seu meio ambiente também se desequilibra . O essencial não residirá tanto na qualidade do espaço, na altitude, na exposição, na natureza dos ventos, quanto na análise das qualidades do local restrito, fechado, da vida cotidiana, do invólucro aéreo, da atmosfera dos corpos. Doravante os perigos serão o "ar degenerado", o mefitismo, a proximidade do nauseabundo, a molécula pútrida emanada da corrupção, o "miasma aéreo", que perdeu sua origem, 38 mas cujo poder dissolvente de matéria viva aumentou consideravelmente; o mias ma cujo poder corruptor se estende aos vegetais, à carne exposta no açougue, aos metais nos bufês.

, Cowper Powys,40 se aventuraram a descrever a geena *. Numa ótica histórica mais limitada, todos aqueles que se esforçam para compreender ou para pensar a Revolução teriam sem dúvida grande interesse em focalizar o fascínio da putrefação com o deleitamento do cadáver. 41 De qualquer modo, permanece um fato histórico de primeira grandeza: o pútrido iria "desenhar a figura de uma natureza típica da sociabilidade". 42

A atenção olfativa voltada para o pútrido traduz a angústia do ser que não pode fixar - eis a palavra-chave - , que não pode reter os elementos que o compõem, os quais ele recebeu de seres precedentes e que permitirão a combinação de novos seres. A putrefação é um relógio, e os estudos que lhe são consagrados se tornam histórias. Assim sendo, a vigilância olfativa não tem apenas por finalidade detectar a ameaça, o risco de infecção. Aqui, o olfato-sentinela revela-se um conceito demasiado estreito. Esta vigilância é a escuta permanente de uma dissolução dos seres e de si. Para o Dorian Gray de Oscar Wilde - como para nós - , o ponto de referência da destruição é visual; para os contemporâneos do professor Hallé, ele também é de ordem olfativa. Uma tal atitude nos é difícil de compreender, e a hilariedade, sinal de incompreensão, é nossa tentação, diante do aturdimento provocado pelo miasma nauseabundo. Jacques Guillerme 39 nota que, em Schlegel, por exemplo, o pútrido é freqüentemente assimilado ao demoníaco; o que concorda com a relação obcecante entre o mau cheiro e as profundezas do inferno, sublinhada pelos autores que, de Milton a

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do hehraico Gehinnom, o Inferno. (N.T.)

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(7) Sobre o assunto, cf. Jean Erhard, L 'ldée de nature en France dal/ s la premiere moitié du XVIIIe siécle, 1963, p. 676. (8) lbid., p. 685. (9) Claire Salomon-Bayet (L'institulion de /a science el l'expéficl/cC du vivant, Flammarion, 1978, pp. 204 e ss.) analisou bem como os sábios utilizam as observações do homo jerus, a cilada filosófica (a estátua de Condillac) , as ciladas experimentais (o cego curado de Maupertuis) ou os acidentes imprevistos (a queda de Rousseau quando de seu segundo passeio) para tentar resolver os problemas colocados pelo conhecimento empírico. (10) Jacques Guillerme, "Le malsain et I'économie de la nature", XVIII' siec/e, n.O 9, 1977, p. 61. (11) "Todas as diversidades de sabores, de odores, de sons, de cores , numa palavra, todas as nossas sensações, são apenas a ação de Deus sobre nós, diversificada segundo as necessidades" , escreve ele (t. IV, p. 162) em seu Speclacle de la nature. (12) Lucien Febvre, op. cit. , pp. 461-472. (13) Ressaltada por Locke (Essai philosophique concernant l'entendemenl humain, 1755, p . 78). (14) Bayle havia notado que o almíscar, apesar dos fortes odores que desprende, não perde nada, ou quase nada, de sua substância . Haller (Élémenls de physiologie, t. IV, p. 157) conserva por mais de quarenta anos papéis perfumados por um único grão de âmbar, sem que tenham perdido seu forte odo!'. São tais observações que reforçam a teoria do espírito diretor armada por Boerhaave. Segundo este, longe de ser a emanação de corpúsculos destacados do corpo odorante, o odor é um fluido sutil, "ser muito volátil, muito fugaz , muito expansível , privado de peso, completamente invisível, intáctil, a não ser para a membrana olfativa" (Hippolyte Cloquet, Osphrésiologie ou Trailé des odeurs, 1821, pp. 39-40) . Para a maiori a dos sábios, esse espírito dire101', que no fin al do século XVIII é chamado aroma, seria de natureza oleosa. Parece, no entanto, evidente que ele não se reveste em toda parte da mesma forma, e Macquer, um dos mais eminentes químicos da época, esforça-se para repertoriar su as diversas manifestações . É precisamente essa variedade que vai levar ao descrédito a teoria de Boerhaave. Se o aroma se revela perpetuamente diferente de si mesmo, sua existência, como princípio, não pode mais ser sustentada. É ao menos o que pensam Nicolas Le Cat (Trail é des sensalions el des passions en gén éral el des sem en parliculier, 1767, t. II, p. 234) e o cavaleiro de Jaucourt, red ator do artigo "odorat" da Enciclopédia, em 1765. Embora a teori a corpuscular formulada por Teofrasto, admitida pelos cartesianos, permaneça em estado de hipótese até que Fourcroy e Berthollet provem seu fundamento, numerosos contemporâneos de Hallé

consideram que os corpos emitem muitas partículas odorantes que fa zem parte de sua substância. (I5) Principalmente para Bouffon. (16) Cf. o papel da linguagem segundo Condillac; Jean Erhard, tese citada, p. 686. (17) Verbo "odorat", suplemento. O que leva a pensar no desen volvimento de Freud, citado à p. 291 . (18) Pére du Terte, Hisloire naturelle et mora/e des des AI/ti/les . .. , 1658; Padre Lafitau, Moeurs des sauvages américains . .. , 1724; A. Humboldt, Essai politique SUl' le royaume de la Nouvelle-Espagn e, 18/1. (I 9) Principalmente Soemmerring e Blumenbach . (20) "Viram - escreve ainda Maller, em 1·777 _ Uma criança criada num deserto cheirar as plantas, como faria uma ovelha, e escolher pelo olfato aquela com que dc:sejava se alimentar; devol'!ida à sociedade, acostumada a diferentes alimentos, ela perdeu esse privilégio." (21) Cf. Le Cat, op. cit., t. II, p. 230, e Kant, Conjectures, p. 113 . (22) Ainda é a opinião de Haller, Élérnents de physiologie, 1769, t. II, p. 33.

(23) Cavaleiro de Jaucourt, artigo citado. (24) Haller, art. cito (25) Émile, Garnier, 1966, pp. 200-201. Principalmente: os odores "afetam menos por aquilo que dão do que por {lquilo qu e fazem esperar". (26) Jaucourt, art. cit.: "Há uma relação desconhecida entre o princípio vital e os corpos odorantes". (27) "Eu começava a ver sem emoção e a escutar sem perturbação, quando uma leve brisa, cujo frescor eu senti, trouxe-me perfumes que me causaram uma expansão íntima e me deram um sentimento de amor por mim mesmo", declara o primeiro homem no relato de Buffon (De I'Homme, Maspero, 1971, p. 215) .

Primeira parte -

REVOLUÇÃO PERCEPTIVA OU ODOR SUSPEITO

Capítulo I -

O AR E A AMEAÇA PÚTRIDA

(1) Assim, Boissier de Sauvages, primeiro prêmio do concurso proposto sob esse tema pela Academia de Dijon, em 1753, permanece fiel à concepção mecanicista do ar. Segundo ele, este é composto por pequen~s esferas ou moléculas separadas por interstícios em cujos va -

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.' zios se insinuam outras matérias. No século precedente, Boerhaave considerava o ar como um simples instrumento, um intermediário não concernido pelas trocas químicas (Boissier de Sauvages, Dissertation ou l'of! recherche comment l'air, suivant ses dillérentes qualités, agit SUl' le corps humain, Bordeaux, 1754). (2) "Eis por que", escreve Malouin em 1755, "digerimos diferentemente os mesmos alimentos, de acordo com a diferença do ar que se respira." Isto faz com que se digira melhor no campo do que na cidade (M. Malouin, Chimie médicinale, 1755, 1. I, p. 54). (3) Sobre a importância que reveste, no século XVJII, a noção de fibra, cf. Jean-Marie AlIiaume, "Anatomie des discours de ré forme", in Politiques de l'habitat (1800-1850) , Paris, Corda, 1977, p. 150. (4) Jean Erhard (L'ldée de nature en Fra nce dans la premiere moitié du XVJIIe siec/e, Paris, 1963, pp. 697-703) consagra desenvolvimentos muito esclarecedores quanto a esses aspectos do assunto. (5) Os homens de letras, observa De Seze, bem sabem que o matinal "dá uma disposição singular para o estudo", R echerches physiologiques et philosophiques SUl' la sensibilité ou la vie animale, Paris, Prault, 1786, p. 241) . (6) A esse propósito, cf. o belo artigo de Owen e Caroline Hannaway, "La fermeture du cimetiere des Innocents", xvm' siec/e, n\> 9, 1977, pp. 181-191. (7) A seus olhos, o fluido elétrico constitui a própria natureza do fluido nervoso, o que significa deixar de lado a teoria dos espíritos animais. (8) Cf. J. Erhard, op. cit., pp. 701 e ss. (9) Robert Boyle, Tlze General History 01 the Air, Londres, 1692. A esse propósito, ver também John Arbuthnot, Essai des ellets de ['air SUl' le corps humaines, Paris, 1742, principalmente pp . 92 e ss. (10) Cf. Thouvenel, Mémoire ehimique et médicilUJl SUl' la nature, les usages et les ellets de I' air des aliments et des médicaments, relativem ent à l' économie anit~/ale, Paris, 1780. (11) A propósito da obra de Hipócrates e de sua significação, cf. Robert J oly, H i ppoerate, médeein e grecque, Gallimard ,' 1964, principalmente "Des airs, des eaux, des lieux", pp. 75 e ss. A influência que os médicos gregos atribuem, segundo as escolas, ao ar é de uma extrema complexidade. Cf. Jeanne Ducatillon , Polémiques dans la colleetion hippoeratique, tese em Paris IV, 1977, pp . 105 e ss. Os tratados da coleção hipocrática, ao subordinarem a medicina ao conhecimento do corpo humano, afastam-se de uma "medicina antiga", inspirada pelos filósofos . Esta pretendia explicar as doenças por uma [lI1ica e mesma causa, e, adotando um ponto de vista cosmológico, abria um espaço maior para os gases do que os médicos da Escola de Coso

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Cf., sobre esse ponto, a análise do trabalho "Des vents", feita por Robert Joly (pp. 25-33) e Jeanne Ducatillon. Note-se aind a que recentemente Antoine Thivel (Cnide et Cos?, Essai sur les doetrines médicales dans la collection hippoeratique, Paris, 1981) questiona a legitimidade dessa distinção entre duas escolas. Sobre a medicina das constituições, ver Jean-Paul Desaive, Jean-Pierre Goubert, Emmanuel Le Roy Ladurie, Jean Meyer, ... , Médecins, c/imats et épidémies à la lin du XVIII' sieele, Paris, Mouton, 1972. (12) J. Arbuthnot, op. cit., p. 268. (13) Thouvenel, op. cit., p. 27. "É preciso que o ar não seja nem demasiado virgem, nem demasiado espirituoso, nem demasiado vaporoso, nem demasiado vivo, nem demasiado pesado, nem demasiado fosco, nem demasiado concentrado, nem demasiado dissolvente, nem demasiado extenso, nem demasiado apagado, nem dem asiado excitante, nem demasiado nutriente, nem demasiado séptico, nem demasiado anti-séptico, nem demasiado dessecante, nem demasiado umectante, nem demasiado relaxante, etc." (op. cit., p. 24) (14) Arbuthnot, op. cit., p. 275 . ( 15) Cf. J. Erhard, "Opinions médicales en France au XVIlI" siecle : La peste et l'id6e de contagion", A nnales. Économies. Soeiélés. Civili.m tions, jan.-mar. 1957, pp. 46-59. (16) Jacques Guillerme, "Le malsain et I'économie de la nature" , XVIII' siec/e, op. cit., pp. 61-72. (17) Melhor ainda, o Supplément au Irailé chimique de I'ai,. el du leu de M . Seheele et le Tableau abrégé des 110uvelles décollverles SUl' les diverses espeees d'air, por Jean-Godéfroy Leonhardy, Paris, 1785. (18) Priestley, Expérienees et observations sur dillérenles espeees d'air, Paris, 1777-1780, 5 vols. Tradução de trabalhos editados entre 1774 e 1777. (19) CL Jacques Guillerme, art. citado, p. 63. (20) lbid., p. 61. (21) A esse propósito, Pierre Darmon, Le mythe de la proeréation à l'âge barroque, Paris, J.-I. Pauwert, 1977. (22) Thouvenel, op. eit., p. 13 . (23) Em sua Histoire naturelle; a propósito da história das pesquisas sobre a putrefação, J .-J. Gardane, Essais SUl' la putrélactiol1 des humeurs animales, Paris, 1769. (24) lbid., p . v. (25) lbid. (26) Quer dizer, aqui, oleoso. (27) Na Antiguidade Grega, o arômata, solar, imputrescível, cuja figura-arquétipo é a mirra, constitui a antítese do vegetal úmido, putres-

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cível, simbolizado pela alface. Cf. Marcel Detienne, L es Jardins d'Adonis, La mythologie des aromates en Grêce, Paris, Gallimard, 1972. (28) John Pringle, M émoire SUl' les substances sepiiques et antiseptiq:Jes, lida no dia 28 de junho de 1750. David Mac Bride, Essais d'expériences, Paris, 1766. (29) As teses de Barthélemy-Camille Boissieu, Toussaint Bordenave e Guillaurme Lambert Godart, aqui citadas, são publicadas sob o título coletivo: Dissertation SUl' le antiseptiques ... , Dijon, 1769. (30) Assim como as citações seguintes: Gardane, op. cit. , p. 121. ( 31) Robert Mauzi, L'idée du bonheur au xvm e siêcle, pp . 273 e ss. (32) Sra. Thiroux d'Arcoi1ville, Essai paul' servir a l'histoire d e la putré/action, Paris, 1766. (33) Op. cit. , pp. 253 -258. (34) Citado por Gardane, op. cit. , p. 220. (35) Que se fund amenta na hierarquia sensorial estabelecida pelos filósofos e se constitui, é bom repeti-lo, numa herança platônica. (36) Gardame, op. cit., p. 124. (37) Jacques Guillerme, op. cit. , p. 61. (38) Jean Erhard, art. cit. O Autor estuda a gênese e a evolução da teoria dos miasmas e sua relaçãu, na origem, com as teorias corpuscuiares saídas dos trabalhos de Boyle. Jean Erhard faz a separação entre essa teoria dos miasmas, a teoria dos fermentos e a dos vermes ou dos insetos. (39) Ar!. cit., p . 63 . (40) John Cowper Powys, Morwyn. Robert Favre (op. cit., p. 403 ) lembra, após Chamfort, a definição do inferno segundo Santa Tereza d'Ávila : "é o lugar onde fede e onde não se ama" . (41) Cf. a convicção, obcecante para os românticos, segundo a qu al a morte é necessária para qu e um mundo novo nasça. Assim sendo , a morte de G auvin e de Cimourdin em Quatre-vingt-treize. Muito tempo antes, Novalis, L es songes de Heinrich Hofterdin gen. (42) Jacques Guillerme, art. cit., p. 62.

Capítulo 2 -

OS PÓLOS DA VIGILÂNCIA OLFATIVA

(1) Jean Erhard, L'Idée de nature . .. , p. 710.

(2) Boissier de Sauvages, op. cit. , p. 51. (3) Ibid . (4) É título da obra de Becher editada em Frankfurt, em 166') .

°

(5) Essa noção de uma compensação, da correção do mefiti sll1ll sustenta o discurso de Arbuthnot, op. cit., passim.

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(6.) Cf. Robert Boyle, op. cito (7) Ramazzini, Essai SUl' les maladies des artisans. Tradução francesa de Fourcroy, 1777, p. 533 (original editado em Pádu a, em 1713). (8) Ibid., p. 327. (9) lbid., p. 534. (10) Cf. infra, pp. 200 e ss. (11) M. De Chamseru, "Recherches sur la nyctalopie", Histoire et Mémoires de la Société Roya le de M édecine, 1786, pp. 167 e ss. (12) J .-B. Theodore Baumes, M émoire ( . .. ) S Ul' la questions peuton déterm iner par l'observation quel/es sont les maladies qui résulten t des émanations des eaux stagnantes . . . , 1789, p. 234. (13) Ibid., p . 165. Em 1815, Etienne Tourtelle ainda fará a mesma queixa (Élém ents d'hygiene, Paris, 1815, t. I , p. 277) . (14) Paul Savi, "Considérations sur I'insalubrité de I'air dans les Maremmes", Annales de chimie et de physique, 1841, p. 347. (15) Op . cit. , p. 278 . (16) Tema obscuro, abordado anteriormente por Jean Roger em Les sciences de la vie dans la pensée /rançaise du xvm e siêcle, Paris, 1963, pp. 642-647 . Jean-Baptiste Robinet ( De la Nature) tornou-se propaga ndista desta teoria da vitalidade universa l. (17) M. Thouret, Rapport SUl' la voirie de Montfau col/, lido no dia 11 de novembro de 1788, na Sociedade Rea l de Medicina, p. 13. (18) "Rapport fait à l'Académi e Royale des Sciences le 17 ma rs 1780, por MM. Duhamel, de Montigny, le Roy, Tenon, Tillet et Lavoisier, rapporteur", M émoires de I'A cadémie des Sciences, 1780, in Lavoisier, (Euvres, t. III, p. 493. (19) Cf. o va lor simbólico da en xovia e seu papel de conservar mensagens do passado em Victor Hugo, principalmente em Quatre-vingttreize e em L'Homme qui rit o (20) Cf. Boissier de Sauvages, op. cit., p. 54 . (21) ln La Politique de I'espace parisien à la fin de L'A ncien R égime, Paris, Corda, 1975; Bruno Fortier, "La politique de I'espace parisien", p. 32. (22) Louis-Sébastien Mercier, Tableau de Paris, Amsterdam, 17821788, t. I, p. 21. (23) Bruno Fortier, ar/ . cit., pp. 116-125. (24) Robert Favre, La mort dans la littérature et la pensée fran çaises au siêcle des Lumieres, PUL , 1978, p. 398. (25) Pa ra G aston Bachelard (La Terre et les rêveries de la volonté, Paris, 1948, pp. 129 e ss.) , essa atenção prestada às matérias lodosas esconde uma ambivalência; traduz o desejo implícito de chafurdar, e os psicanalistas dissertaram com abundância sobre essa re-

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industriais tivessem se acumulado no espaço urbano. Evidentemente, a teoria científica desempenhou um papel decisivo. Nós perdemos isso de vista, porque praticamos uma história das ciências que privilegia a verdade e negligencia as incidências

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históricas do erro. Resta tirar uma dúvida. Tudo o que precedeu só comprova a viva percepção do ambiente olfativo num meio preciso, formado por médicos , químicos e escritores políticos. Não é certamente uma amostra aberrante: leva a supor um processo de maior amplitude. Convém entretanto medir com maior precisão a difusão da ansiedade e da vigilância.

I~I

REDEFINIR O INSUPOKrÁVEL

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REBAIXAMENTO DOS LIMITES DE TOLERÂNCIA

Um fato essencial deve, logo de início, chamar a atenção: a intensidade dos procedimentos de alarme postos em funcionamento pelos especialistas e destinados a denunciar os riscos de infecção. O sonho da pureza do ar sugere a urgência do perigo, reaviva o fantasma da asfixia urbana; ele nutre o vigor da mensagem. "A necessidade é premente, clama Tournon, a capital não é mais do que uma vasta cloaca, seu ar é pútrido ( ... ), já há (bairros) tão infectos que os habitantes mal respiram." 1 A campanha participa dessa medicina social, contemporânea da decolagem da química (1760-1769), cuja emergência Daniel Roche descreve minuciosamente. Inspirados por uma "mística da utilidade" 2 - ainda não se ousa falar de utilitarismo - , sábios de todas as linhas observam, coletam, registram; procedem a um interminável inventário, numa perspectiva gerencial. Ora, a gestão da saúde passa pelo repertório dos odores nocivos. Sem dúvida, não convém superestimar a influência dos clamores ansiosos feitos pelas elites esclarecidas . É preciso evitar apagar a desenvolturà olfativa do homem comum e as resistências populares contra a desodorização , sobre as quais será preciso voltarmos a falar. A tolerância para com o fedor, com a

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qual os observadores começam a se espantar e a qual atribuem ao hábito, prova a defasagem de comportamentos. "Só há no mundo o parisiense, para comer aquilo que revolta o olfato " , exclama Louis-Sébastien Mercier,.l escandalizado com as peixarias da capital. Nenhum mau cheiro poderia chocar um comerciante parisiense, nota Chauvet, tão habituado ele está à infecção. 4 Perseguidas pelas exalações dos cadáveres empilhados no cemitério dos Inocentes, as jovens passeiam e conversam; "é em meio ao odor fétido e cadaveroso que as vemos comprar coisas da moda, fitas ... "5 As meninas da paróquia de Santo Eustáquio ouvem o catecismo sem ficar enjoadas com as emanações nauseabundas. 6 O texto redigido pelos curas de Paris com a finalidade de se opor à mudança dos mortos traz a marca dessa relativa anestesia popular. 7 O fato essencial continua sendo que esta tolerância da " proximidade exasperante" 8 passa doravante a ser marcada pelo selo da estranheza. Melhor ainda do que os textos que precedem, a narração de Arthur Young traduz o espanto, mas desta vez de um britânico, diante da tolerância olfativa de que a maioria dos continentais fazem prova . "Visitem a Inglaterra ( .. . ), e os seus sentidos poderão não ser agradados , mas tampouco serão ofendidos" .9 No albergue de Pézenas, escreve ele ainda, "fomos servidos por uma fêmea sem sapatos nem meias, agudamente feia e exalando um odor que não era de rosa; havia no entanto um cruzado de São Luís e dois ou três mercadores tagarelavam familiarmente com ela". 10 Ainda mais estranha a seus olhos é a atitude dos habitantes de Clermond: " A acumulação dos odores nauseabundos com os quais o ar está impregnado, quando a brisa vivificante das montanhas não ventila estas ruelas cheias de excremento, me faz invejar os nervos dessa gente corajosa que , ao que pude saber, parece viver feliz aí". II O espanto do viajante sensível não deve ocultar os sinais precursores de um rebaixamento do limite de tolerância nos próprios meios populares. Aqui operou-se uma ligação direta enI n.: os odores e a morte . Os comportamentos , já antigos , que se manifestam em tempo de pestes 12 comprovam-no claramente . 80

Então, "a multidão corre, nota Menuret em 1781, para evitar o odor e o veneno da doença e da morte ". 13 Dentro da extensa gama dos fedores, é o do cadáver o primeiro que parece ter suscitado mais amplamente a intolerância. Apesar da desenvoltura evocada por Mercier, a precocidade das queixas formuladas pelos residentes na vizinhança dos cemitérios o comprova. A colocação do odor cadaveroso e a corrupção das carnes e dos metais em mútua relação reaviva a ansiedade, justifica a veemência do tom. Separar o mundo dos mortos do mundo dos vivos passa a ser uma exigência incessantemente reiterada. Este episódio da história da opinião pública está hoje bem documentado. Madeleine Foisil 14 expõe as queixas suscitadas em 1672 pelas exalações do cemitério da Trindade. Philippe Aries, Pierre Chaunu e todos os especialistas da morte de outrora sublinharam , sobretudo com respeito a Paris, a intensidade da campanha destinada a afastar o cadáver. As peti ções de moradores vizinhos sedimentam as teses dos sábios e os relatórios dos administradores. É uma série de lamentações populares orquestradas pelos lojistas da rua de la Lingerie 15 que provocará, finalmente, em 1780, o fechamento do cemitério dos Inocentes. O rebaixamento do limite de tolerância olfativa constitui um fato histórico muito bem ressentido, muito bem descrito. Louis-Sébastien Mercier analisa, não sem alguma contradição, mas com muita lucidez, os seus mecanismos; e atribui a responsabilidade disso aos " quimistas". ~, "Bebíamos água há vinte anos sem prestarmos muita atenção nisso; mas, desde que a família dos gases, a raça dos ácidos e dos sais apareceram no horizonte ( .. . ), nos armamos em toda parte contra o mefitismo. Essa palavra nova ressoou como um sinal de alarme formidável; em todos os lugares viam-se gases maléficos, e os nervos olfalórios tornaram-se de uma sensibilidade surpreendente." 16 E ul'rematando: .. A leviandade parisiense se divertirá muito em ver ( "' ) Em fram:ês, chimisle, químico . Neste caso, guardamos o sufixo 1.1·llI . quilllisla. para enfatizarmos a especialização, como o requer a cita-

1,:1\0 que se segue. (N .T . )

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os quimi stas transvasando o ar como malabaristas e seus copos, levando em seguida seus nervos olfatórios por sobre as abertura s mefitizadas". 17 Os testemunhos da nova sensibilidade são múltiplos , notadamente quanto aos odores excrementiciais. Em Paris, a limpeza de fossas à antiga, isto é, sem ventilação, efetuada com pequenas tinas e tonéis mal construídos, provoca escândalos. Multiplicam-se as querelas entre limpadores e os vizin hos. 18 Raspar uma fossa séptica é ressentido como um "horroroso suplício" . 19 Quando um conserto se faz necessário - nota Géraud - , " os habitantes da casa levam uma vida inquieta" 20 durante todo o decorrer dos trabalhos. Os transeuntes reclamam. Doravante, a limpeza de foss as concerne à opinião pública. Lavoisier, Forgerou x e MiIly, delegados pela Academia Real de Ciências para testar os novos procedimentos, consultam o povo, reunido em assembléia, sobre as variações do odor. Os condutores de Montfaucon começam a suscitar indignação. 21 Os moradores do faubourg Saint-Martin e os da rua de Bondy protestam em 1781. 22 As lamas agridem a nova sensibilidade ... Dir-se-i a", escreve Ronesse, em 1782, ( ... ) ao ouvir as queixas que se multiplicam a cada dia , " que as ruas antigamente eram sempre lirripas . No entanto, a verdade é que outrora não se cogitava em reclamar." 23 A moda recente que convida a andar estimula a indignação. Aconselhadas por Tronchin, 24 , as próprias mulheres da aristocracia abandonam os carros, mefitizados pelo amontoamento dos corpos, para aspirar a plenos pulmões um ar que elas exigem que seja puro. Damours nota que a vizinhança mostra uma intolerância nova em relação aos matadouros e fornos de sebeiros . 25 É somente após 1750, como especifica Françoise Boudon, que o drama higiênico dos mercados aflora à consciência pública. 26 Coisa que o testemunho de Tournon vem confirmar. O mau cheiro engendra a polêmica ; a fetidez das fossas - observa Géraud - , bem como a dos poços, a dos muros sujos. a dos esgotos, suscita a ira. "Desde há alguns anos,

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ocupamo-nos mais do que outrora em alertar contra os perigos que devemos temer em certos vapores " ( ... ); "daí nasce um número infindável de disputas, de animosidades, de processos". 27 Evidentemente, em função de um processo de descida agora conhecido, 28 a nova sensibilidade se difunde de alto a baixo na pirâmide social. Os químicos, como vimos, propuseram um sistema de imagens 29 do são e do malsão, em boa parte organizado segundo as possibilidades de análises do olfato. Neste domínio, "aquilo que já existia, e que não mudara, havia de repente passado a ser insuportável " . 30 Por sua vez , a medicina, cujo discurso hesitante , polimorfo, enrijecido por incertezas ansiosas, só propõe figuras etiológicas imprecisas, e com isto alimenta a confusão entre o miasma e o fedor, o nauseabundo e o malsão, o mefítico e o asfixiante. As flutuações do discurso médico sobrecarregam o olfato com afecções muito intensas. O caminhar divagante daquilo que nos parece pertencer mais ao fantasma do que à teoria científica assombra o imaginário coletivo. É assim que se acentuou esse grande temor popular do hospital e da prisão, ao qual Michel Foucault consagrou, há tempos, páginas luminosas. Com ainda maior razão diante do fato de que , para o povo, todo perigo se manifesta pelos sentidos . 31 Dominique Laporte propõe, incidentalmente, uma outra via de explicação. 32 Segundo esse autor, que se quer afiliado ao pensamento lacaniano, a lenta construção de um Estado forte , centralizado, teria inaugurado uma experiência nova do olfato. Doravante, "o aprendizado do sentir se voltará todo contra o stercus" .33 O cheiro de merda teria se tornado pouco a pouco in tolerável, enquantb o excremento se privatizava com a difusão das fossas sépticas. Já que todo odor se refere ao do stercus, o édito de Villers-Cotterêts, que determina que todo particular deve conservar seus excrementos para si mesmo, é o que teria induzido a um desaparecimento tendencial do sentir cheiro. O psicanalista reforça aqui as intuições , já antigas, rfe Lucien Febvre.

Esta pré-história da revolução olfativa , cujo ato decisivo

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crcio ter-se operado a partir da metade do século XVIlI, conccrniu primeiramente à linguagem. O francês clássico foi depurado , lavado de seu vocabulário nauseabundo. Esperava-se com isso torná-lo imputrescíveJ. Daí, o baixo número de ocorrências concernentes ao cheirar e, sobretudo , ao "obsceno retorcer da sintaxe" 34 quando da necessidade de evocar o excremento. Para completar a desodorização era forçoso cercar, analisar, descrever os odores. Nesta questão precisa , compartilho totalmente da análise de Dominique Laporte, lamentando que ele só tenha realizado um breve esboço 35 e que tenha dado provas do mais total desdém pela cronologia, deixando provavelmente para os historiadores o cuidado de localizar e datar o processo lógico que ele pressente assim como Leverrier previra em cálculo a existência do planeta Netuno. A partir de uma certa data _ a meu ver , entre 1760 e 1840 aproximadamente - , o higienista é promovido ao nível do herói que "desafia as mais tenazes das repugnâncias" . 36 Ele prepara a "imensa ode à limpeza " , 37 cantada por todo o século XIX. A revolução olfativa passava, evidentemente, por toda a epopéia do nauseabundo, pela gesta da doaca, pela maré discursiva consagrada ao lodo, com o fito de aboli-lo. O mal-estar gerado pela hiperestesia, que constitui o tema do presente capítulo , só poderia ser temporário , uma vez que implicava a cria
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