Roteiro de Narradores de Javé

August 3, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Narradores de Javé Roteiro GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO RESPEITO POR VOCÊ Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe C hefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Made ira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Diretor-pres idente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Vice-preside nte Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretor Financeiro e Administrativo Alexandre Alves Schneider Núcleo de Projetos Institucionais Institucion ais Vera Lucia Wey Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Cinema Brasil Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico Revisão e Editoração Carlos Cirne Narradores de Javé Roteiro - 17ª versão

por Luís Alberto de Abreu e Eliane Caffé CULTURA FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA IMPRENSA OFICIAL SÃO PAULO, 2004 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Abreu, Luís Alberto de Narradores de Javé / por Luís Alberto de Abreu e Eliane Caffé. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura Fundação Padre Anchieta, 2004. –  176p. : il. - (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ”Roteiro, 17 versão”  versão”  ISBN 85-7060-233-2 (obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-284-7 (Imprensa Oficial)

 

  1. Cinema - Roteiros 2. Filmes brasileiros - História e crítica 3. Narradores de Javé (Filme cinematográfico)I. Caffé, Eliane. II. Ewald Filho, Rubens. III. Título.IV. Série. 04-5216 CDD-791.4370981 Índices para catálogo sistemático: 1. Filmes cinematográficos brasileiros : Roteiros : Arte 791.4370981 2. Roteiros cinematográficos : Filmes brasileiros : Arte 791.4370981 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: [email protected] SAC 0800-123401 Apresentação Narradores de Javé nasceu do desejo de expedicionar pelo interior mais distante dessa porção urbana do Brasil e conhecer melhor nossa gente, seus modos de vida e como se expressam. Luís Alberto de Abreu, meu parceiro desde Kenoma, incentivou-me a um processo de criação muito diferente do que conhecia, ou seja, construir o roteiro apenas ao “redor da mesa”. Ao invés disso, esboçamos um argumento e partimos para a pesquisa de campo, para o convívio corpo a corpo com pessoas e situações que pudessem oferecer um repertório de imagens vivo, rico e espontâneo. Assim, partimos para três expedições que fizemos pelo interior de Minas e da Bahia para colher histórias reais ou fabulosas contadas por pessoas comuns e originárias das regiões mais afastadas ou marginais. O humor era o que mais ressaltava em todos os relatos que ouvíamos e mesmo presente nos lugares mais miseráveis que visitávamos. A partir daí, trabalhamos com essa matéria prima – os fragmentos de histórias ouvidas - no desenho das situações e do roteiro como um todo. No filme, a idéia de termos no mesmo contexto, os relatos épicos, pessoais, cômicos e escatológicos foi algo inspirado no que apareceu naturalmente neste convício com a cultura dos “contadores de histórias” - e porque afinal a nossa vida mesma contém um pouco de cada coisa e tudo junto. No final deste processo, tínhamos um roteiro bastante amarrado, mas ainda com o objetivo de poder incorporar as improvisações e outras situações inesperadas que surgiriam na etapa de filmagem. Neste sentido, o roteiro foi fundamental para não nos perdermos frente à realidade sempre mais rica e também mais dispersiva que encontramos em Gameleira da Lapa (povoado onde filmamos). É claro que no final, o roteiro vivido na prática, dentro das improvisações dos atores e não-atores, se transformaram muito em relação ao original, mas nem por isso perdemos o horizonte ao qual pretendíamos chegar. Eliane Caffé A Construção de um Roteiro

 

  A construção do roteiro de Narradores de Javé foi um longo e feliz processo de parceria com a diretora Eliane Caffé. Já havíamos trabalhado junto em Kenoma, mas a colaboração criativa se aprofundou e alargou neste segundo trabalho. Desde a primeira idéia – a partir do fato verídico - até a última das inúmeras versões que a história recebeu, o trabalho paulatino de roteirização foi um processo de duas cabeças e quatro mãos, com espaço garantido para interferências, discussões, mudanças de rumo, confrontos entre a visão do roteirista e a visão da diretora sobre a melhor forma de encaminhar uma seqüência, uma única cena, ou mesmo o sentido pedagógico ou social da obra que criávamos. Isso quer dizer que absolutamente tudo foi discutido, partilhado. Mas criação partilhada não foi a única característica marcante da construção do roteiro. A interface entre ficção e realidade acompanhou o processo de feitura do roteiro desde os primeiros momentos. A idéia que inspirou a história foi um fato acontecido no povoado do Vau, distrito da cidade mineira de Diamantina. Um morador de lá, funcionário da empresa de correios, começou a escrever para várias localidades como forma de impedir o fechamento da agência local por falta de movimento. A partir desse motivo real começamos a criar a história ficcional, mas fortemente influenciada pelas viagens de pesquisa que realizamos pelos Estados de Minas e Espírito Santo. As viagens, os contatos com velhos contadores de histórias, a escuta atenta dos dramas de moradores de pequenas comunidades ameaçadas de extinção pela construção de hidrelétricas, alteraram significativamente os elementos da ficção. E, se por um lado, não chegaram a quebrar a o caráter ficcional do roteiro, por outro, ajudaram a consolidar o valor dramático e consistência humana, elementos inestimáveis presentes no roteiro e no filme. Muitas falas e expressões e elementos e características incorporados aos personagens foram colhidas no próprio território de pesquisa. Foi assim que foi sendo construído o roteiro e, após, o próprio filme: com a liberdade de criação e o compartilhamento dessa criação com os atores e outros criadores entre os quais se incluem, de forma marcante, os moradores da comunidade de Gameleira, na Bahia, onde o roteiro foi filmado, e que agregaram um valor mais que significativo ao filme. Luís Alberto de Abreu Narradores de Javé Roteiro 17ª versão por Luís Alberto de Abreu e Eliane Caffé

SEQ. 1: TABLE-TOP Seqüência em table-top que retrata pessoas anônimas (velhos, adultos e crianças) Suas roupa, linguajar e gestos traem sua origem simples, do campo. Todos aparecem entretidos com alguma narrativa que não se ouve. As imagens captam as diferentes expressões, posturas e atitudes dentro do ato de ouvir e narrar.

 

CRÉDITOS INICIAIS SEQ. 2 : DESCAMPADO. ENTARDECER Um rapaz, com uma grande bolsa de nylon a tiracolo, corre com dificuldade no meio de um mato rasteiro. A bolsa pesa e o rapaz pára e, cansado, apóia os braços nos joelhos. Respira várias vezes profundamente e se põe novamente a andar apressado. A bolsa é descômoda, o terreno é irregular e o rapaz pragueja. Atravessa com dificuldade por uma cerca de arame farpado e ganha uma estrada de cascalho. Corre por ela com mais esforço. SEQ. 3: EMBARCADOURO. EXT. ENTARDECER. Rapaz corre até a beira do rio onde avista uma pequena embarcação que se distancia levando um número reduzido de pessoas. Ele agita os braços e grita na esperança inútil de ainda embarcar. Após um momento de impotência, o rapaz é tomado de um acesso de raiva: chuta pedra, xinga, joga com violência a bolsa no chão. Subitamente pára a explosão ao perceber sobre ele os olhares perplexos das pessoas em frente ao bar do embarcadouro. Constrangido, ele disfarça o nervoso e caminha em direção ao bar. SEQ. 4: BAR / EMBARCADOURO. INT. ENTARDECER O bar é um misto de armazém, casa e restaurante de beira de estrada. Num lado um pequeno espaço com poucas mesas e algumas cadeiras. Vê-se também um fogão a gás ao lado de um fogão à lenha, ambos apagados. Sobre o balcão, nas traves do teto e onde houver espaço, uma confusão ordenada dos mais variados objetos e utensílios: cordas, potes, arreios, trempes, panelas, chapas e outras utilidades em ferro e couro. Um velho descalço, Zaqueu, sentado num banco escarafuncha a unha do pé com uma faca enquanto uma criança agachada no chão o observa. Apesar de vestido com simplicidade, a aparência de Zaqueu é de um homem bastante respeitável. Atrás do balcão, uma mulher, com mais de oitenta anos, balbucia baixinho as palavras de um velho e grosso livro, já com as páginas soltas da costura. A mulher soletra com dificuldade e paciência o que chama a atenção de Zaqueu que sorri. Encostados ao balcão, ao lado de uma cerveja, um homem de meia-idade e um molecote. Atrás do balcão, ao lado da velha, um homem, Sousa, de pouco mais de cinqüenta anos, serve um copo de cachaça. O rapaz que perdeu o ônibus entra e se dirige ao balcão. Faz-se silêncio. RAPAZ - Dá pra sair um misto quente? Sousa assente com um gesto de cabeça e dirige-se à velha que continua entretida na leitura do livro. SOUSA - Mãe! Um misto quente. O rapaz aproxima-se de Zaqueu que acaba de escarafunchar a unha do pé, calça o chinelo e se dirige ao rapaz em tom humorado. ZAQUEU - Não se abespinhe, não, seu moço! O senhor pega o próximo. RAPAZ - Tem outro barco? SOUSA - Às cinco da manhã, sai outro.

 

Rapaz faz um gesto de desalento. Sousa, impaciente, vira-se novamente para a velha que segue no mesmo lugar, presa à leitura do livro. SOUSA - Ôh mãe, larga isso, vai!, o rapaz tá esperando o misto! A mulher abandona o livro aberto sobre o balcão, sorri para o rapaz e vira-se para preparar o lanche. Sousa dirige-se ao rapaz quase se desculpando. SOUSA - Depois de velha, meteu na cabeça que quer aprender a ler!! ZAQUEU - Às vezes é bom! SOUSA - Bom prá que?

ZAQUEU - Agente nunca sabe... Eu mesmo, que também não sei ler e escrever, posso até contar o reboliço que uma escritura foi capaz de fazer! Ó, é o caso mais incrível que eu... mas acho que ocês não vão querer ouvir... HOMEM - A gente pode querer, sim, Zaqueu! ZAQUEU - É história grande, engenhosa... Mas qualquer dia eu conto. SOUSA - Dia pode ser hoje. Zaqueu fica silencioso. Ele apanha uma laranja e calmamente começa a descascá-la. Todos o observam, inclusive o rapaz que já se acomodou em um banco. Na verdade, Zaqueu espera mais um pedido. HOMEM - Vai! Desembucha logo, homem!! Zaqueu sorri ZAQUEU - Então, vão povoado onde desgraça que

satisfeito e devora um gomo da laranja. escutando: Pois o acontecido foi no Vale de Javé, no nasci e me criei. Foi quando caiu sobre ele a maior um povo pode viver pra ver...

SEQ. 5: PÁTIO IGREJA. EXT. DIA

 

Sino colocado numa trave na frente da igreja toca nervoso. Várias pessoas do povoado correm de todos os lados em direção ao pátio da igreja. SEQ. 6: PÁTIO DA IGREJA. EXT. DIA No pátio lateral à igreja, vemos um aglomerado de gente num tumulto de vozes que se sobrepõem. Zaqueu, em pé sobre uma pilha de caixotes, é crivado de perguntas. “Vão dar outras casas”, “E quem não tem propriedade?”, “Não quero outra casa nem outro lugar.”  lugar.”  “E os mortos? As águas vão cobrir também o cemitério? “Silêncio, deixa Zaqueu falar!” ZAQUEU - É isso mesmo: vão construir a barragem e Javé tá no caminho das águas, logo isso aqui tudo vira represa... ARISTEU - Mas e as terras, as casas, o povo todo... o que vão fazer com a gente?! ZAQUEU - Agente vai ter que sair... DEODORA - Não podem! ZAQUEU - Podem. O seu Vado também também tava comigo. comigo. Então, conta conta pra eles, eles, Vado! Seu Vado, um homem bastante humilde, aproxima-se de Zaqueu e um tanto constrangido constrangid o toma a palavra. VADO - Eles, os engenheiro, abriram os mapa na nossa frente e explicaram tudinho nos pormenor, nas miudeza. Tudo com os números, as fotos, um tantão delas! Iam ensinando pra gente os ganhos e os progresso que a Usina vai trazer. Vão ter que sacrificar uns tantos pra beneficiar a maioria. A maioria não sei quem são, mas nóis é que somos os tantos do sacrifício. Né não, Zaqueu?

Instala-se novo tumulto. Zaqueu a custo consegue colocar ordem na igreja. ZAQUEU - Então, eu perguntei pra eles se não havia nada nesse mundo que a gente pudesse fazer pra salvar Javé das águas; porque se tivesse, eu juro, a gente ia fazer! FIRMINO

 

- E aí, Zaqueu? Tem jeito? ZAQUEU - Eles disseram que só não inundam quando a cidade tem alguma importância, tem história grande. Quando tem coisa de tombamento e vira patrimônio. Aí ninguém mexe com ela! FIRMINO - Então tá tudo lascado! Este lugar não vale o que o cachorro enterra! SEU VADO (IRRITADO) - O que o cachorro enterra tem na sua cabeça, sujeito à toa! Ouvem-se vozes “Fica quieto, seu Vado!”, “Deixa o Zaqueu falar!” Ouvem-se “Vocês me respeitem!” Forma-se Forma-se novamente tumulto. Zaqueu assobia com força. Faz-se silêncio. ZAQUEU - Pois foi aí mesmo, Seu Firmino, ao contrário do que ocê pensa, que me acendeu uma esperançazinha: porque se Javé tem algo de bom são as histórias da origem, dos guerreiros lá do começo, dos casos que ocês vivem contando e recontando. E isso gente, é história de patrimônio, história grande, acontecimento de fazer arregalar os olhos de morador de muita cidade e capital! DEODORA - E ocê disse isso pros engenheiro, Zaqueu? Desse jeitinho caprichado que ôce tá dizendo agora? ZAQUEU - E não disse? Disse! Mas não adiantou nada; aquele pessoal só acredita em documento firmado, em papel escrito! MARIA - E as terras que não tem escritura? Como é que vão negociar? ZAQUEU - T’aí outra enroscada! Disseram que só vão indenizar as terras que  que  tiverem escritura de cartório. Num adiantou falar que aqui tem muita terra e propriedade adquiridas só nas “divisas cantadas”.  cantadas”.   FIRMINO - Então a gente vai lá e canta as divisas pra eles! ZAQUEU - “Divisa de Cantada” adianta, não! Eles lá lavrado, escritura, documento!



querem

saber de papel

As vozes se sobrepõem e em pouco tempo o tumulto e a confusão imperam no ambiente. SEQ. 7: BAR / EMBARCADOURO. INT. NOITE Zaqueu, é interrompido por um dos ouvintes que estão acomodados em bancos e caixotes, bem próximos ao fogão de pedra onde já crepita o fogo aceso. SOUSA - Eh, Zaqueu, e que diabo é isso de “divisa cantada”?  cantada”?   ZAQUEU - É um jeito de marcar as terras que o povoado herdou dos antigos, com os fundadores. Não carecia de documento nenhum. Era tudo cantado. SOUSA - Mas como é que um sujeito canta as divisa de terra?

 

ZAQUEU - Ora! Canta como se canta! Zaqueu ergue-se no lugar e encena para todos os ouvintes como se canta as divisas. Abre os braços e ergue a cabeça solene, como se estivesse diante de um imenso vale. ZAQUEU - “Daqui da curva da pedra até o correguinho onde todo mundo se banha; E de lá até encontrar a baixada do Afonso Cego; e dali arribando até encontrar as terra de João Fubúia! Pois tudo o que tá dentro desse trecho são terras minhas, minhas, fulano de tal.”... E era assim, cantada as divisa as terras passavam de pai pra filho. Zaqueu conclui a demonstração e volta a sentar-se diante de todos que divertem-se com sua encenação. O rapaz que perdeu o ônibus, devora um sanduíche com o olhar preso em Zaqueu. A velha, mãe de Sousa, serve uma caneca de café para Zaqueu e depois acomoda-se também para seguir a narrativa. MULHER (Rindo) - E não dava confusão? Cada um cantava as terras como queria e pronto, ficava sendo dono delas? ZAQUEU - Não. Cada um só cantava a porção que conseguia cultivar. cultivar. Era esse o documento, a garantia da posse. HOMEM - Mas, então, Zaqueu, como é que aquela gente podia defender as terras que tavam só apalavrada ? ZAQUEU - É, num tava fácil. Mas foi nessa horinha mesmo que uma idéia me socorreu e começou a alumiá essa cabeça que é minha! SEQ. 8: PÁTIO DA IGREJA. EXT. DIA Voltamos ao mesmo tumulto que agita a assembéia. Zaqueu, tenso, está introspectivo. FIRMINO - E se todo mundo não quiser negociar com eles, e se o povo todo se amarrar nas casas, enterrar os pé no chão, como é que eles vão arrastar nós daqui? Súbito, o rosto de Zaqueu ilumina-se Ele chama a atenção de todos.

e ele é tomado pelo entusiasmo.

ZAQUEU - Escutem! Só não inunda se for patrimônio, não é assim?! Pois já sei o que temos de fazer: se até hoje ninguém escreveu, porque também nunca precisou, a grande história de Javé, então, agora, nós mesmo é que vamos escrever. Provar, por escrito, a importância de Jáve. Vamos escrever a história do Vale de Javé! Zaqueu encara o povo sorridente, orgulhoso da solução por ele encontrada. Aos poucos fecha o sorriso. O povo todo está mudo, parado, sem entender. ZAQUEU - Vamos colocar no papel as histórias, gente! Desencavar da cabeça os acontecimentos de valor. Botar na escrita, fazer uma juntada de tudo

 

que é importante e provar pras autoridades porque Javé tem de ter “tombamento”! Começa um zum-zum entre os presentes. Começam a entender e gostar da idéia. DEODORA - Tá certo! História grande, de valor, é o que não falta aqui! ZAQUEU - Só que tem uma coisa: Lá, eles me falaram que só tem validade se for um trabalho assim... científico! ARISTEU - Que coisa é científico? ZAQUEU - Científico é...é... é coisa assim... com “sustança” de ciência... versada, assim, nas artes e práticas... Os presentes olham Zaqueu sem nada entender. Zaqueu se confunde. ZAQUEU - Científico é...ó, é assim, como por exemplo... é...é que não pode ser as patacoadas mentirosas que ocês inventam! As patranha duvidosa que ocês gostam de dizer e contar! FIRMINO - Ora!, tudo o que eu conto é caso acontecido! MARIA - E como vamo juntar as história, se elas tão tudo espalhado na cabeça do povo?! VADO - E de quem é a mão santa que vai escrevinhar, botar as letra no papel ? Forma-se um silêncio. Todos se entreolham buscando por alguém que esteja apto para realizar a tarefa. Ninguém se prontifica. Súbito, uma voz do fundo grita a solução. FIRMINO - Chama Antonio Biá! Ao ouvir-se ouvir-se o nome “Antônio Biá”, a reunião transforma-se transforma -se em tumulto. As pessoas protestam, gritam e riem numa balbúrdia que parece não ter fim. Zaqueu bate palmas por bom tempo antes de conseguir colocar ordem no lugar. ZAQUEU - Antonio Biá, não! Deve de ter outro vivente melhor do que o desgranhento! Zaqueu faz uma pausa pensativa. O povo espera. Zaqueu retoma a fala a contragosto. ZAQUEU - Diabo de lugar que ninguém sabe das letras! Diacho, que aquele mal prestante é o único que sabe escrever corrido e com arte. É. Não tem jeito. Tem de ser o infeliz mesmo! Zaqueu é interrompido por uma nova onda de gritos, risos e insultos.

 

SEQ. 9: CASA DE ANTONIO BIÁ. INT / EXT. ENTARDECER Imagem de escritos riscados em todas as paredes da pequenas casa de chão de terra: são frases, fragmentos de poemas e pensamentos dispersos, dis persos, porém cuidadosamente “diagramados” junto aos poucos objetos pendurados e aos batentes de janelas e portas. A mobília singela e rústica, serve apenas para as necessidades mais básicas. Sobre o tampo da mesa, um prato com resto de comida. Sentado em um banquinho, perto da porta entreaberta que dá para o exterior, descobrimos a figura solitária de Antônio Biá que sopra, inflando uma tripa seca. Depois, ele recheia a tripa com pedaços de carne e toucinho de porco tirados de uma bacia ao seu lado. De um varal pendem lingüiças já feitas. Ao fundo, vemos alguns porcos num cercado. Súbito, Biá ergue a vista ao perceber uma comitiva de homens vindo em sua direção. Ele torna-se tenso e assustado. Corte. SEQ. 10: RUA DO POVOADO DE JAVÉ. EXT. NOITE Duas mulheres debruçadas na janela observam com malícia o assustado Antonio Biá que passa pela rua ao lado dos homens que o conduzem.

Na medida em que ele passa, ouvimos e vemos novos protestos e provocações das pessoas que o observam. MULHER - “Salafrais!” RAPAZ - Aí, Biá! VELHO - Tinha era de tirar o couro desse sujeito! SEQ. 11: BAR / EMBARCADOURO. INT. NOITE O círculo dos ouvintes está maior e mais concentrado ao redor de Zaqueu. Ele domina a pequena platéia, já totalmente entregue ao desenrolar de sua narrativa. Ao fundo, a luz do fogo que arde no fogão de pedra, evoca no ambiente uma atmosfera quase primitiva. Do exterior, vez e outra, projetam-se os fachos de luz de carros que circulam na ponte, próxima ao embarcadouro. SOUSA - Mas que babilônia fez esse tal Biá, Zaqueu? HOMEM - Calma, homem! Ele tá contando! SOUSA

 

- Eu sei, mas quero saber que diabo fez esse Biá pra quererem o couro dele! ZAQUEU - Vai escutando! O povoado queria era ter Biá nas unhas! Pois não é que ele trabalhava no posto de correio? E prá que um posto de correio num lugar que ninguém lê nem escreve? Coisa de deputado sem o que fazer! Então o posto ia fechar.

SEQ. 12: POSTO DE CORREIO. INT / EXT. DIA (2 ANOS ATRÁS) No cômodo apertado que serve para a agência, vemos a imagem de Antônio Biá debruçado sobre o minúsculo balcão que dá para a rua. Ele está escrevendo cartas e mais cartas. Biá pára, dá uma gargalhada e continua a escrevinhação. Imagem de Biá que sela grande quantidade de cartas. Sobre essas imagens a voz de Zaqueu

ZAQUEU (OFF) - Daí, pra salvar o seu emprego, Biá inventou de escrever carta pra qualquer cidade onde ele tinha um conhecido. E prá atiçar essa gente, ele começou a inventar histórias usando da vida do vilarejo: aumentou os casos acontecidos, mentiu e com malícia ia difamando um e outro infeliz do povoado. Tudo feito com muita graça e sabença de ofício. O que aconteceu: o movimento do correio cresceu e ele ficou com o emprego. O caminhão de correio parte. Biá satisfeito acena para o caminhão. ZAQUEU (OFF)

 

- Só que história dos outros em boca de gente, corre mais rápido que o vento! SEQ. 13: POSTO DE CORREIO. EXT. DIA. (2 ANOS ATRÁS) Um grupo de pessoas invade o posto de correio. Antônio Biá é jogado para fora. Alguns homens avançam contra ele e começam a surrá-lo. Outros intermediam em sua defesa para evitar uma desgraça. Um rapazola, excitado com a baderna, arranca com golpes de pau a placa do correio. Sobre estas imagens, ouvimos a voz em (OFF) de Zaqueu. ZAQUEU (OFF) - Quando o povo de Javé descobriu, não houve perdão! Queriam desancar, descadeirar, descadeirar , moer o pobre do Antonio Biá. O resultado é que ele foi expulso de Javé prá nunca mais voltar. Corte para o Negro. SEQ. 14: FUNDO NEGRO Sobre a tela escura, somente ouvimos a voz em off de Zaqueu. ZAQUEU (OFF) - Antônio Biá ficou morando só, retirado nas redondezas...Mas agora o povoado precisava dele. SEQ. 15: ARMAZÉM. INT. NOITE Um maço de cartas amarrado com barbante é jogado sobre uma mesa onde está o livro de Zaqueu. Biá, ao lado da mesa e rodeado de moradores do povoado, reage um tanto assustado.

ZAQUEU - O povo não não esquece, seu Biá! Aqui tá a prova de sua sua ladinagem... ladinagem... As cartas futriquentas que ocê espalhou pela região. Nas minhas andanças, eu consegui recuperar um bocado delas. Zaqueu estende uma carta para Antero, o dono do bar. Antero, semianalfabeto, lê com dificuldade. ANTERO - Prezado amigo: amigo: pois o caso é que que aqui também também tem um velho que posa de galo majestoso e bate as asas prá cima de tudo que é rabo de saia; mas o coitado já não deve de ter uso e competência naquela parte que todo homem preza...

 

As pessoas riem. Seu Vado, furioso, avança para cima de Biá. SEU VADO - Seu sujeitinho despudorado! despudorado! ZAQUEU - Tá justo, seu Vado! Mas o senhor há de concordar que se Antonio Biá só escreveu mentira, ele escreveu muito bem. Agente precisa da arte que esse sujeito tem pras coisas da escrita! Seu Vado faz um gesto de contrariedade, mas não diz nada. ZAQUEU - Então! Então, agora, seu Biá, o povoado vai lhe dar a chance do senhor exercer o seu ofício de escrivão, e ainda praticar o maior feito de sua vida. A gente quer que o senhor escreva a história do Vale de Javé. Zaqueu aponta o livro com um gesto. Biá tem expressão de perplexidade. ANTONIO BIÁ - Quer que eu escreva...Como é que é?

ZAQUEU - Tem de fazer um dossiê, uma juntada, na escrita, das coisas importantes acontecidas por aqui. Antonio Biá não consegue segurar o riso. ANTONIO BIÁ - Mas, seu Zaqueu... ô gente! Que diabo de coisa importante aconteceu em Javé ? VADO - Tá vendo! Isso aí não sabe e não dá valor a nada. ZAQUEU - Pois a maneira de saber é ouvindo de nossa gente as tais histórias... histórias.. . e escrevendo. Ouvindo Ouvindo e escrevendo! E assim vai nos ajudando. Depois de pensar por um momento, Biá abre um sorriso maroto. ANTONIO BIÁ - Que é que eu ganho com a trabalheira que isso vai dar? Zaqueu adquire uma expressão séria. ZAQUEU

 

- Já disse, o povoado esquece o que ocê fez. Mas, veja bem, não pode ser história inventada, chistosa, sem regra. É história verdadeira, científica! Biá começa a caminhar como se estivesse refletindo, dando-se importância. ANTONIO BIÁ - E quanto tempo tenho pra parir esse dossiê? ZAQUEU - Já tá atrasado! De minha parte, amanhã eu tô indo embora dizer pras autoridades que o povo de Javé já tá se unindo, preparando os documentos. Quando voltar, é melhor o senhor ter o seu serviço bem adiantado. Se vamos negociar com eles, temos de ter o que é nosso pra fazer valer! ANTONIO BIÁ - Não sei, não. Isso tá parecendo coisa de gente doida... Câmera passeia pelos rostos dos presentes. São rostos de gente madura, séria, decidida.Zaqueu estende o livro a Antonio Biá. ZAQUEU - Olhe seu Biá: Um dia você salvou seu emprego às custas do povoado. Agora você vai ajudar a salvar o povoado às custas de seu trabalho. Tá entendendo? Ou aceita, ou vai-se embora de vez, ensinando o caminho antes das águas entrar. Zaqueu espera a decisão de Biá. Após um tempo, Biá folheia o livro com as páginas em branco. Corte. SEQ. 16: RUA DE JAVÉ. EXT. DIA Zaqueu prepara-se para deixar o povoado. Perto dele uma mulher e dois burros já arriados, prontos para partir. Ele recebe encomendas e para não esquecer “anota” os pedidos dando nós em um maço de finas tiras de couro. MULHER - Linha e agulhas... um corte de lã... um tacho grande prá fazer sabão... Zaqueu anota o pedido com nós em outra tira de couro. Antônio Biá surge e posta-se ao lado de Zaqueu. Ele está muito bem trajado, cabelo penteado e carregando debaixo do braço o livro devidamente encapado. Zaqueu sorri, surpreso. ZAQUEU - Eita, que o homem tá escovado e lustrado! ANTONIO BIÁ - O senhor pode viajar sossegado, seu Zaqueu, que já que dei a palavra, o prometido vai ser comprido... Um velho, Dito, aproxima-se deles. ZAQUEU - Ôh, seu Dito, não esqueci sua encomenda, não! Zaqueu, prestativo em serví-lo, remexe na mercadoria. Enquanto isso, o velho estende a mão para Biá. DITO

 

- Que Deus lhe acompanhe, seu Biá. Eu mesmo nunca tive nada contra o senhor. (Olha para o livro). É esse aí o livro da salvação? Zaqueu volta-se para Dito e experimenta uma dentadura na boca do velho. ZAQUEU - Agora, remelexe a “perereca” na boca, seu Dit Dito. o. O velho faz o que Zaqueu mandou. A dentadura é nitidamente maior, com os dentes ficando à mostra. Antônio Biá tenta disfarçar o riso. ZAQUEU - Ótimo! Ficou uma espiga de milho! SEU DITO - Num ficou um tantico grande, não? ANTONIO BIÁ - Ficou não, seu Dito! É seus beiço que são pequeno! E depois o senhor fica com um ar mais alegre, risonho... O velho bate a dentadura dentro da boca e sorri satisfeito. SEU DITO - Que Deus lhe guie, Zaqueu! ZAQUEU - Pois reza pra ele, Seu Dito! Zaqueu volta-se, encara Biá seriamente e lhe fala quase em segredo: ZAQUEU - Foi um custo convencer esse povo a lhe aceitar de volta. Não me traia a confiança! Volto o mais rápido que puder! Zaqueu parte com seus dois burros. SEQ. 17: RUA DE JAVÉ / CASA VICENTINO. EXT. DIA Antônio caminha eufórico em poder transitar livremente com sua “autoridade” de escrivão. Carrega com orgulho o pesado livro debaixo do braço. Vai direto para uma das casas. Olha ao redor e espia por um corredor que dá para os fundos da casa. Ele avista a figura de uma jovem mulher mulher que estende estende roupas no no varal. Biá Biá se apruma e arranca de de um canteiro ao lado duas rosas vermelhas. Toma coragem e chama pela jovem. ANTONIO - Êh Tereza! Tereza olha na direção de Biá, surpresa com sua presença. ANTONIO - Seu pai t’aí?  t’aí?  TEREZA - Não. ANTONIO - Sua mãe t’aí?  t’aí?  TEREZA - Não.

 

ANTONIO - Então, dá licença. Antônio Biá entra na casa. SEQ. 18: CASA DE VICENTINO. INT. DIA Antonio Biá atravessa o corredor lateral da casa e pára ao observar de corpo inteiro a singela beleza de Tereza, que metida em um vestidinho simples, o olha um pouco envergonhada. TEREZA - Ocê não devia de ter entrado. ANTONIO BIÁ - Sou todo errado: entro sem pedir licença e só saio se for mandado! Ô, saudade louca: a minha muita, a sua pouca! Tereza ri dos provérbios ditos por Biá. Ele aproveita a descontração da moça para agarrá-la sensualmente e roubar-lhe um beijo. Porém, subitamente o olhar de Tereza torna-se sério e ela desaparece rapidamente no interior da casa. Biá faz um gesto para chamá-la e assusta-se ao perceber a entrada de Vicentino, o pai de Tereza, um sujeito sisudo, sistemático. ANTONIO BIÁ - Bati o povoado todo lhe procurando, seu Vicentino... Queria que o senhor fosse o primeiro! Sem dizer palavra, Vicentino conduz Biá para um puxado ao lado da sala. SEQ. 19: OFICINA DE VICENTINO. INT. DIA. Sob o puxado de madeira, estende-se uma oficina de ferreiro com todos os apetrechos de trabalho: estribos, couro, ferramentas etc. Em destaque na parede, vemos um enorme quadro com a figura de São Jorge. Vicentinho crava o olhar severamente em Biá e, com um gesto, o velho indica-lhe uma cadeira em frente ao tampo de madeira que serve de mesa. Biá senta-se. Vicentino senta-se à sua frente. Desconfiados, olham-se olho no olho. Após um momento de indecisão Biá põe-se a arrumar o livro e a borracha sobre a mesa. Embaraçado tira um canivete do bolso e começa a apontar o lápis, meticulosamente, meticulosam ente, enquanto fala.

 

  ANTONIO BIÁ - Vim lhe ouvir e anotar o que for importante. Vicentino permanece em silêncio com o olhar duro sobre Biá. Constrangido, Biá disfarça o incômodo afinando a ponta do lápis com o canivete. ANTONIO BIÁ - Não uso caneta, não costumo. O senhor já viu? Caneta corre no papel sem freio e se a gente erra e quer arrumar... aí emporcalha tudo. Lápis, não! Lápis agarra o papel, aceita borracha, obedece a mão e o pensamento. Sou um homem que só consegue pensar a lápis... Vicentino ouve a arenga de Biá com o mesmo olhar severo. Subitamente levanta-se. Biá emudece. Com passos decididos Vicentino vai até uma cômoda, abre uma gaveta e dela tira um objeto embrulhado em panos. Põe sobre a mesa à frente de Biá e desembrulha desembrulha. . É uma garrucha. Biá o olha desconfiado. ANTONIO BIÁ - Olha, se por acaso escrevi nas cartas alguma coisa que lhe aborreceu...

VICENTINO - Já me ofereceram muito dinheiro por essa garrucha. Não vendo por nenhum dinheiro nem troco por nenhum favor. Essa coronha que você está vendo, aí, já esteve no punho de Indalécio... ANTONIO BIÁ - Indalécio, o fundador de Javé? VICENTINO - Ele mesmo. Como o senhor deve de saber, é quase certo que eu seja parente distante daquele nobre chefe de guerra. Indalécio era homem duro, seco, sistemático que não dizia sim quando queria dizer não. Pra ele, cada coisa tinha uma só medida. Contam que nunca descia do cavalo. Dormia sentado na sela pra estar sempre pronto para a guerra.... Vicentino se cala e encara novamente Biá. Sem entender, Biá faz um gesto de cabeça como que perguntando o que o velho deseja. VICENTINO - Ocê não vai escrever?

 

Finalmente Biá entende que Vicentino já está oferecendo o seu depoimento. Rapidamente anota o nome INDALÉCIO na primeira folha do livro. No alto da página está escrito com letras grandes e caprichadas : “ESTE LIVRO É DESTINADO A ESCRITA DOS GRANDES E NOBRES ACONTECIMENTOS DA HISTÓRIA DO VALE DE JAVÉ”. SEQ. 20: CAMPO ABERTO. EXT. DIA (RECONSTITUIÇÃO) Um longo cordão de pessoas à pé marcha sob o sol, ladeando enormes formações rochosas que pontuam a superfície de um extenso campo aberto. Visto de perto, o cordão é formado por homens, mulheres e crianças que carregam suas poucas tralhas além de conduzirem um enorme sino. Indalécio, o único cavaleiro, de aproximadamente sessenta anos, seco de corpo e com expressão enérgica, abre a longa fila de pessoas. Sobre essas imagens a voz de Vicentino. VICENTINO (OFF) - A história de Javé começa junto de Indalécio, esse grande homem guerreiro. Foi ele quem guiou nossos antepassados, um punhado de gente valente que era sobra de uma guerra perdida. Tinham sido expulsos das suas terras de origem por ordem do rei de Portugal que queria tomar o ouro que era deles. Pois Indalécio, mesmo ferido, foi trazendo seu povo pra longe, em busca de um lugar seguro, bom de fazer parada, juntar mais gente, munição e voltar para recobrar as terras que, por direito, eram deles.

SEQ. 21: MONTE ROCHOSO. EXT. DIA. (RECONSTITUIÇÃO) A procissão de gente caminha agora sobre uma extensa costa rochosa, árida e desértica. A marcha é bastante árdua e difícil, sobretudo pelo imenso esforço em locomoverem o pesado carro que leva o imenso sino. Indalécio, montado no cavalo, segue na frente conduzindo todo o grupo. Em (OFF) segue a narração de Vicentino.

 

 

VICENTINO (OFF) - Mas Indalécio não atinava com o lugar certo. Queria ir mais longe, distante de de ogoverno ou de Andaram meses Trazendo nasbraço nas costas sino que era erarei. a coisa maisdias, sagrada sagrad a quemesmo! possuíam. possuíam. Imagem de pessoas que empurram, agora com o auxílio de cordas e alavancas, o sino sobre uma encosta íngreme e rochosa. Sobre suas cabeças, o sol arde escaldante e luminoso. VICENTINO (OFF) - Alguns morriam pelo caminho e o sol era tanto que os corpos nem apodreciam, ficavam inteiros, curtidos como carne seca. A fome e a morte iam junto deles! SEQ. 22: CAMPO ABERTO. EXT. DIA. (RECONSTITUIÇÃO) Uma imensa boiada cruza o quadro: bois, vacas, bezerros, correndo, pisoteando moitas, quebrando galhos – uma imagem de impacto e grandeza. A terra seca espalha-se no ar e mistura-se à cor dos animais. Ao longe, ouve-se os berrantes e gritos melancólicos dos vaqueiros que conduzem a manada. Indalécio e seu grupo estão parados, um ao lado do outro, formando um paredão de gente contra o horizonte. Assistem, hipnotizados e famintos, o espetáculo de tanto gado reunido. Súbito, Indalécio dispara a galopar, misturando-se entre os animais. VICENTINO (OFF) - Indalécio entrou naquele mar de bois, escolheu o melhor boi e levou pra matar a fome de nossa gente. Não disse palavra e.... Hei!

SEQ. 23: OFICINA DE VICENTINO. INT. DIA Vicentino interrompe a narrativa e olha surpreso para Biá que se constrange, disfarçando a dispersão. Ele está de pé, garrucha erguida, imitando “Indalécio” de seu relato.  relato.  VICENTINO - Hei! Porque ocê num tá escrevendo?... ANTONIO BIÁ - O quê, home de Deus, tô escrevendo!

 

VICENTINO - Sou cego? Não tô vendo que ocê não tá mexendo a mão aí no papel? ANTONIO BIÁ - Eeeh, também não dá pra escrever tudo de uma carreira só. (Muda o tom de voz) E, olha, vai vai me desculpar, desculpar, Seu Vicentino, Vicentino, mas mas isso de Indalécio ir lá e pegar um boi de graça, sem mais nem menos, não tá bom não! VICENTINO - O que não tá bom? ANTONIO BIÁ - Ninguém vai entregar um boi inteiro assim de graça! Essa parte aí tem que melhorar. VICENTINO - Melhorar como? Ocê já vai querer inventar? ANTONIO BIÁ - Inventar não, mas florear um bucadinho! Vamos ver.... Biá ajeita-se melhor na cadeira e começa a escrever. Na medida em que escreve, vai falando em voz alta para que Vicentino o acompanhe. ANTONIO BIÁ - Vamos ver... Os dias pareciam não ter fim e aquele povo guerreiro, de tanta fome, quase nem mais respirava ... Biá pára de escrever no livro e com gestos põe-se a descrever para Vicentino como ele vê a cena: ANTONIO BIÁ - Aí, passa por eles aquela boiada imensa, gorda, aquele mundo, aquele mar de boi de fazer verter lágrima só de ver aquelas coxas, as costelas, as alcatra chiando na brasa, pingando gordura no fogo... Biá engole a saliva que lhe brotou na boca e continua a narrativa: ANTONIO BIÁ - Mas tinha muita gente armada guardando aqueles bois. Então, Indalécio pensou numa alta estratégia: esperou a noite chegar e quando os bois já tavam quietos e os vaqueiros mais espreguiçados, aí, no meio daquele breu, ele escolheu assim, dois homens do seu bando, os mais valentes, e mandou eles rastejarem, largateando, pra dentro daquele rebanho todo... e... Biá detêm-se sem saber como prosseguir com a história. Vicentino impacienta-se. VICENTINO - E o que? ANTONIO BIÁ - E... e...e... e aí eles arrancaram dos pés as alpargatas e enfiaram nas quatro patas do boi mais gordo. Calçaram o animal e depois foram trazendo o bicho devagarinho, sem fazer barulho nenhum, sem dar um tiro mas com tamanha bravura e esperteza... VICENTINO - Num carece de continuar, Seu Biá... O senhor volta a escrever do jeito que lhe ditei!

 

  ANTONIO BIÁ - Mas assim não fica melhor?... eles pegam o boi é na unha mesmo... Faz parte do heroísmo! VICENTINO (IRRITADO) - Ora! E quem é que vai acreditar nisso de um camarada botar sapato em boi pra não fazer barulho?!... ANTONIO BIÁ pode deixar comigo dessas coisas eu entendo. Uma coisa é O o senhor fato acontecido, outra é oque fato escrito. O fato tem de ser melhorado no escrito para que o povo creia no acontecido. VICENTINO - Não tô gostando nada disso, não. ANTONIO BIÁ - Mas não vamo brigar por isso, não é? Olhe, eu já tenho sua história gravada na memória. Depois escrevo com calma e com floreio bonito. E logo mostro pro senhor, tá bem assim? VICENTINO - Mas se eu ainda não terminei... ANTONIO BIÁ - Termina depois... Eu volto. Por enquanto diz seu nome por inteiro, se faz favor. Vicentino esboça um ligeiro sorriso e declina seu nome com orgulho. VICENTINO - Vicentino “Indalécio” da Rocha.  Rocha.  Vicentino debruça-se na mesa para assistir, orgulhoso, o seu nome aparecendo sobre a página do livro. SEQ. 24: RUA DO POVOADO. EXT. DIA Biá caminha na rua central do povoado. Uma voz chama por ele. VOZ (OFF) - Ei, Biá! Biá se volta. É o barbeiro, Dirceu, que o chama da “barbearia”. Em realidade, a barbearia não passa de uma cadeira disposta debaixo de uma grande árvore que também serve de apoio para os instrumentos de barba e cabelo. SEQ. 25: BARBEARIA. EXT. DIA DIRCEU - Faz favor, senta e desfrute que é de graça. Antonio Biá se senta. O barbeiro, Dirceu, amola a lâmina da navalha na tira de couro. ANTONIO BIÁ - Depois de mão de mulher, só mão de barbeiro que alisa cara de macho e põe cheiro! Dirceu ensaboa o rosto de Biá enquanto fala, meio constrangido. DIRCEU

 

- Ó, eu também, de minha parte, queria ajudar, ocê sabe... ter alguma historiazinha historiazin ha pra ocê pôr aí nesse nesse livro. Tenho uma...não uma...não é história história assim, de grande valia mas... o senhor é homem de idéias... escreve com formosura. Então eu pensei... ANTONIO BIÁ - Pensou o quê, seu Dirceu? DIRCEU - Pensei que barba não se faz um dia só... cresce todo dia... Barbeiro abre o jogo de chofre. DIRCEU - Ó, o senhor podia pôr meu nome com uma baita história neste livro. Mesmo que fosse um pouquinho arranjada! ANTONIO BIÁ - ‘pera, aí, seu Dirceu! A coisa não é assim! Meu trabalho é de responsabilidade, responsabil idade, verdadeiro... verdadeiro... DIRCEU - Não me entenda mal. Eu não quero que o senhor minta mas... ANTONIO BIÁ - ...E o mundo hoje não é como antigamente quando quando só bastava ter um homem, um capim e um jumento e pronto, já se tinha uma boa história. Hoje não! Contar história hoje é muito difícil... Biá aproxima-se mais do barbeiro como se temesse ser ouvido e também abre o jogo de chofre. ANTONIO BIÁ (SUSSURANDO) - Quero, pelo menos, um ano de barba grátis. BARBEIRO (SUSSURRANDO) - Tinha pensado em, no máximo, seis meses. Ou, então, lhe faço a barba de dois em dois dias. ANTONIO BIÁ - De jeito nenhum. O senhor pense de novo e traga uma proposta à altura de meu esforço. Biá se ajeita melhor na cadeira e sorri satisfeito. Dois homens aproximam-se e colocam-se diante de Biá. É Firmino e Vado. VADO - Bom dia, seu Biá. Viemo lhe acompanhar. ANTONIO BIÁ - A troco de que? FIRMINO - Ajudar no que o senhor precisar. VADO - Mas também lhe apressar se o senhor folgar demais. SEQ. 26: EXT. DIA Antonio Biá ganha a rua seguido por Firmino e Vado. Eles caminham em silêncio e trocam olhares desconfiados. Antonio Biá freia o passo de repente. Vado e Firmino detêm-se também. Logo Biá retoma a caminhada,

 

ziguezagueando os dois homens pela lateral. Os dois tentam segui-lo meio confusos com as reviravoltas de Biá. ANTONIO BIÁ - E não fiquem colados em mim feito dois carrapatões! SEQ. 27: CASA DE DEODORA. EXT. DIA Observado por um grupo de moradores, Biá bate à porta de uma casa. Uma mulher quarentona e de beleza agreste, Deodora, abre a porta. Biá a cumprimenta. Deodora, ao de reconhecer Biá, fecha-lhe a porta na cara. Biá pacientemente chama novo. A porta se abre novamente e de dentro da casa Deodora sai furiosa. DEODORA - É preciso preciso muita coragem ou muito pouca pouca vergonha vergonha na cara! cara!

Rua!

ANTONIO BIÁ - Na rua eu já estou, dona Deodora. Tô querendo é entrar! DEODORA - Nem com pedido de santo nem com ordem do diabo! Ocê merecia era surra de pau. Sujeito inventador, traste mentiroso! A alteração entre os dois começa a atrair mais e mais vizinhos. ANTONIO BIÁ - Inventador, não! Eu só mostrei que tinha fogo onde todo mundo só via fumaça. Escritura é assim, gente! Homem curvo vira corcunda, gente de olho torto eu digo que é zarolho, sujeito que é manco na vida, na história eu digo que não tem perna. É assim! É das regras da escritura. DEODORA - Pois a minha regra é outra! Deodora ainda furiosa arma-se de um pedaço de pau. ANTONIO BIÁ - Não se agigante, dona Deodora, que galinha que muito cisca acha cobra! Se a senhora não quiser, eu não registro sua história. Ou escrevo o que me der na cachola! Algumas pessoas à volta riem outras se irritam. ANTONIO BIÁ - Eu ‘tava quieto ‘tava quieto no meu canto, foram me buscar. Estou fazendo meu trabalho. Se a senhora não tem nada pra dizer que lhe ponha nas páginas da grande história do Vale, então adeus! SEQ. 28. CASA DE DEODORA. INT. DIA Antonio Biá, sentado a uma simples mesa na sala, saboreia um pedaço de torta. O clima é completamente diferente da sequência anterior. Deodora, ainda carrancuda, observa Biá ao lado de outras pessoas que se aglomeram nas janelas e na porta da casa. Biá limpa o farelo da roupa, desfrutando a expectativa de todos que esperam em silêncio pelo início da história. Num gesto solene, Biá abre seu livro. ANTONIO BIÁ - Estou pronto, dona Deodora. DEODORA

 

- O senhor sabe como todo mundo que Javé surgiu foi de uma gente que saiu fugida de guerra ... Não lembro bem que guerra era essa... Firmino que está do lado de fora da casa, mas com o corpo debruçado na janela, faz uma intervenção: FIRMINO - Era guerra contra a coroa; o Rei de Portugal queria as terras porque tinha ouro. Deodora caminha irritada em direção à Firmino e fecha a janela na cara dele para afastar maiores intromissões. DEODORA - Pois é, era guerra contra a coroa. Mas o fato é que a nossa gente saiu fugida... Agora quem interfere é Vado, que surge apoiado na porta da casa. VADO - Fugida não, senhora! Eles saíram em retirada. DEODORA - E não é a mesma coisa ? VADO - Não é não! Fugido é quando os homens dão as costas pro inimigo e saem correndo, acovardados. Retirada é diferente; aí os homens vão saindo de marcha-ré, devagarinho, mas com a cara voltada de frente pro inimigo! Arma-se um pequeno tumulto entre Deodora e Vado e logo após com outras pessoas. Antônio Biá devora o último pedaço de bolo e fala de boca cheia. ANTONIO BIÁ - Se em brejo sapo falasse um de cada vez, não precisava tanta gritaria. Todo mundo vai ter sua vez! Faz-se silêncio. Deodora prossegue sua história. DEODORA Pois bem, fazia muitos dias que caminhavam, cansados. Indalécio ia... ANTONIO BIÁ - Pode pular essa parte, dona Deodora. Esse comecinho, Seu Vicentino já contou. DEODORA - Mas deve de ter contado puxando pro lado dele. Aposto que nem tocou no nome de Mariadina! Firmino, que depois de ter tido a janela fechada em sua cara, ressurge ao lado da porta e faz um novo aparte. FIRMINO - É, mas todo mundo sabe que a senhora também se crê parente de Mariadina! DEODORA

 

- Creio, não senhor. Eu sou mesmo... e posso lhe provar!! Deodora alterada, exibe uma mancha de nascença que traz perto do colo do seio. Faz questão de ostentar a marca para Biá e para todos os presentes. DEODORA - Todo descendente de Mariadina tem esse sinal de nascença. Antonio demora-se um pouco além do necessário no exame da marca no seio de Biá Deodora. ANTONIO BIÁ - É... pois é... uma bonita marca! Assim... robusta! Pena que eu não possa pregar a senhora no livro como prova, então vamos aos fatos de uma vez! DEODORA - O fato é que tem muita gente aqui que não dá crédito a Mariadina só porque era mulher. Mas foi ela mesmo que cantou as divisas de Javé... SEQ. 29: MARGEM RIO. EXT. DIA (RECONSTITUIÇÃO) Imagem de pessoas que caminham margeando um imenso e pedregoso rio. O sol é intenso e eles formam um grupo compacto de gente, porém a presença de mulheres é bem maior em relação ao relato de Vicentino. O imenso sino é o mesmo mas, ao contrário do relato de Vicentino, é conduzido sobre um andor. Na frente do grupo que sustenta o pesado andor, sobressai sobressai a figura figura de Mariadina, Mariadina, uma mulher de 40 40 anos. Ela caminha de cabeça erguida, a expressão cansada, porém o olhar altivo. Sobre as primeiras imagens ainda se ouve a voz de Deodora. DEODORA (OFF) - Caminhavam a dias, o de comer era pouco e muitos ficavam mortos pelo caminho... Indalécio, mesmo ferido, guiava o bando, mas nenhum lugar parecia prestar pra assentar sua gente. Em plano mais aberto, vemos o cavalo de Indalécio afastado na dianteira do grupo. O olhar de Mariadina fixa-se sobre a sua imagem. Indalécio está está com o corpo corpo encurvado sobre a cela cela e a cabeça cabeça tombada - ele parece abandonar-se ao trote vagaroso do animal. O grupo inicia a travessia do rio. Mariadina desvencilha-se do andor e, afastando-se do grupo, vai em direção aode cavalo Indalécio. Ao aproximar-se, percebe que Indalécio está olhos de fechados e desfalecido. Ela toca sua mão que descansa sobre a cela e constata que ele está morto. Sem fazer nenhum alarde, ela monta no cavalo, unindo-se ao corpo de Indalécio. Toma as rédeas e cavalga à frente do grupo assumindo uma anônima liderança. SEQ. 30: FORMAÇÃO ROCHOSA. EXT. DIA (RECONSTITUIÇÃO) Mariadina, montada no cavalo, entrega o corpo de Indalécio para os braços dos retirantes. Ao ver-se livre, Mariadina toma as rédeas do cavalo e parte em disparada. Atônitos no lugar, o grupo assiste a sua desaparição.

 

 

DEODORA (OFF) - Mariadina desapareceu por um dia e uma noite... SEQ. 31: VALE. EXT. DIA (RECONSTITUIÇÃO) O pequeno grupo alcança o monte mais elevado de um imenso vale. No meio do grupo foi improvisado um estandarte tosco. Sobre esta imagem, eleva-se a voz-(OFF) de Deodora. DEODORA (OFF) - Mas no dia seguinte Mariadina voltou pra levar sua gente ao lugar que os pássaros da noite haviam lhe mostrado. E alí, no grande Vale, ela cantou as divisas de Javé; onde a gente vive até hoje... Mariadina, observada por sua gente, caminha no sentido sul, pára e “canta” as divisas: DEODORA (OFF) - No rumo do cruzeiro do céu até onde a vista alcança há de ser terra nossa. Depois, DEODORA - Nesse inteiro

ela retorna no sentido norte e pára novamente. (OFF) contrário de rumo, até onde um homem possa andar num dia de marcha, há de ser terra nossa.

Volta até seu grupo e toma a direção leste. DEODORA (OFF) - Lá onde o sol nasce a terra vai ser defendida como nossa. Retorna na direção contrária passando pelo meio do povo que abre um claro. DEODORA (OFF) - Nesse rumo onde acaba o vale. Isso é Javé. Aqui fazemos parada, aqui curamos nossos feridos. Aqui enterraremos nossos mortos! SEQ. 32: CASA DEODORA. INT. DIA Deodora, em pé e gesticuland gesticulando o muito, dá o seu depoimento. Há quatro ou cinco pessoas espremendo-se do lado de fora da janela aberta e um mesmo tanto de pessoas na porta. Duas crianças sentadas no chão já invadiram a sala e escutam com atenção. DEODORA (IMITANDO MARIADINA) - Aqui criaremos filhos e filhas com a dureza da pedra e um dia vamos voltar, muita gente armada, pra recobrar o que foi nosso e nosso há de ser!

 

Deodora termina sua narrativa épica, faz pausa e conclui. DEODORA - Mulher que, de fato, teve importância foi Mariadina. Essa, sim, foi mulher turuna, lidadora, de coragem de comer no mesmo prato que onça. A pequena platéia se mantém atenta, presa ainda à força das imagens narradas por Deodora. Firmino rompe o silêncio. FIRMINO - Eita! que tá virando verdade coisa que nunca se deu! DEODORA - E o que ocê sabe disso, Firmino? FIRMINO (IRRITADO) - Sei que não fico com inventação pra engrandecer os parentesco. Sei que Indalécio não morreu em cima do cavalo. Morreu foi agachado por causa de uma desinteria que lhe deu no nó nas tripas. E sabe qual foram de verdade as últimas palavras que Indalécio deixou nesse mundo? “Viver tanto e tanto, pra morrer cagando em todo canto!”...  canto!”...  Antônio Biá explode numa gargalhada, batendo o punho sobre o livro. Ele diverte-se enormemente com a polêmica que se cria. Os outros também riem com o inesperado da frase de Firmino. Deodora é a única que está petrificada e indignada. ANTONIO BIÁ (RINDO) - Alguém podia ir buscar seu Vicentino e trazer ele aqui pra ouvir isso! FIRMINO - Pois vou lhe dizer mais, Seu Antônio Biá: Esses véios embaraça as idéias e os acontecidos! Mariadina nunca foi do bando de Indalécio, porque quando o home chegou aqui trazendo os retirados da guerra, ela já perambulava pelo Vale. Eu até posso levar o senhor na casa de gente que tem as prova, aquelas “científica” “científica ” de tudo que eu tô lhe dizendo. Mas o caso foi assim... SEQ. 33: CAATINGA. EXT. DIA Imagens de pessoas que caminham, carregados de tralhas, por um descampado árido de poucas árvores retorcidas. Porém, ao contrário das aparições anteriores, estão mais dispostos um e sobre expressões há sinal de tragédia eminente. Indalécio, homem suas de chapéu claro,não montado a cavalo e bastante armado, guarda a caminhada do grupo. Súbito o grupo paralisa ao ouvir o comando de Indalécio. INDALÉCIO - Aqui tá bom de fazer parada. Deitem as tralhas, acendam a fogueira, uns prá cá, outros prá lá, mas tudo junto!... E as “necessidades” vão fazer prá depois daquele arbusto alí que lugar de dormir não tem que tá emporcalhado! O grupo dispersa-se e pouco a pouco vai se acomodando. Indalécio contrai-se de dor em cima do cavalo e galopa na direção indicada por ele para as “necessidades”. Avistamos ao longe a sua figura que apeia do cavalo e logo desaparece ao agachar-se detrás de uma moita. Após um tempo, ouve-se um grito de susto vindo da mesma direção onde Indalécio escondeu-se. Um grupo de pessoas corre na direção do grito, alguns já munidos com paus. Ao aproximarem-se do local, deparam-se com Indalécio petrificado e perplexo diante do que vê: deitada de costas e espojada

 

sobre um chão de folhas e terra, vê-se a figura de uma velha magra, com olhos arregalados e rosto zangado. Sobre o corpo, tiras de pano tapam-lhe o sexo como se fosse uma fralda esgarçada. Algumas pessoas do bando aproximam-se e, atônitos, formam um circulo ao redor da velha. Sem mover o corpo, a velha, Mariadina, ergue a cabeça e fala: MARIADINA - Desgraça! Quem vem em nome de homem! INDALÉCIO - Bendito! E quem é isso que nos fala? MARIADINA - Isso não é isso, é essa... Mariadin Mariadina, a, com a glória de Deus pai que nos acompanha, amém! O grupo em circulo, repete em coro “Amém” e faz o sinal da cruz. cruz.   

MARIADINA - E me diga, se ocês vieram como servidores de Deus ou do inimigo... Se são criaturas então deitem aqui e rezem comigo que já é hora de repassar os malfeito pra melhor servir, e assim tenho, eu, com a graça, o céu, as providências e o Espírito Santo nas artura, dito! Mariadina, sentindo sentindo a tensão no pescoço erguido, deixa a cabeça cair no chão. Indalécio, não contendo mais o para riso,o explode numa perplexo risada breve e seca. Depois, recompõe-se, olha grupo ainda e fala. INDALÉCIO - Nóis somo gente guerreira, gloriosa, que saímo fugido... quer dizer, fugido não, mas em retirada... expulsos das nossas terras de ouro e prá longe caminhamos... MARIADINA - Será que o senhor pode pode mover a cabeça solzinho que me afusca as vista?

pra esse lado lado prá tapar tapar esse

Indalécio tomba o corpo um pouco mais para a esquerda protegendo os olhos da velha contra o sol. Mariadina, sem esperar que ele continue, ergue novamente a cabeça e toma a fala. MARIADINA

 

- Pois é, eram ocês então que eu tava esperando... é o sinal... tava escrito... o mais falante e pedregoso, que me protege desse sor milagroso, ao lado desse pangaré supremo de Deus o poderoso... é o príncipe... benquisto e glorificado nas artura... é ele que eu devo guiar e alumiar! INDALÉCIO - Muito lhe agradeço, mas pra me guiar e alumiar já basta esse mesmo sol de todo dia! MARIADINA - ... mas de noite ocê num tem quem te alumie. Escuta... ocês fica tudo aqui e quando crarear o dia num vai haver nem um passaro piando... vai ser o dia mais quente e desabitado que ocês nunca viram... mas, bendito... quando vier a outra noite... os pássaros vão piá e avoar, invertido, aos contrário, tomando a noite pelo dia e levar ocês até as terras que serão suas... prá ocês viverem em graça e enterrarem seus mortos... SEQ. 34: CASA DEODORA.INT. DIA Todos os presentes olham atentos e divertidos para Firmino que, deitado sobre o chão, imita a “Mariadina” do seu relato. Deodora ergue-se da cadeira furiosa. Biá ri ao mesmo tempo que escreve freneticamente. Ela cutuca Firmino com o pé. DEODORA - Levanta daí, escracho!... Essa é a patranha mais descabeçada que já ouvi! Fazer de Mariadina uma louca farrapilha!! Ó, seu Biá... o que o senhor tá escrevendo aí ?! Isso não tá parecendo coisa séria! Biá responde sem parar de escrever como se tivesse medo da idéia lhe escapar do papel. ANTONIO BIÁ - Primeiro tenho de registrar tudo, dona! Depois é que vem o trabalho de ir aparando as borda e limpar os excessos... excessos... VADO - E agora, seu Biá, qual Mariadina é que fica? Antônio Biá, ergue o lápis sem saber o que dizer. Deodora toma a palvra: DEODORA - O senhor escreva o que eu lhe ditei que é a história certa! FIRMINO - História certa é a que foi, não a que a senhora inventou. DEODORA - Quem tá inventando é ocê! Onde já se viu! ALÍPIO - Eu também já ouvi dizer que Indalécio morreu foi cagando. Era homem valente mas morreu mesmo se esmerdeando, coitado! DEODORA - Indalécio até aceito mas Mariadina, não! Era mulher de guerra, turuna, num era velha destemperada das idéias. VADO - Como é que fica, seu Biá?

 

  O povo pressiona Biá que reflete um momento. ANTONIO BIÁ - Só se eu pôr as duas. VADO - Assim, não, seu Biá! Pato não é marreco nem cachorro é bezerro! Como é que pode? ANTONIO BIÁ - Então ocês decidem! Quem acha que é a Mariadina de Deodora levanta a mão. Alguns levantam a mão. ANTONIO BIÁ - E quem acha que é a de Firmino? Outros levantam a mão. VADO - O senhor levantou duas vezes, seu Alípio! ALÍPIO - Mas acontece que as duas histórias têm sustança. Num pode tirar uma sem o prejuízo da outra. ANTONIO BIÁ - Ói, assunto esse carece mais raciocínio. Isso é trabalho de ciência e ocês não tão costumado. Mais tarde eu volto pra ver mais detalhes, marcas e provas. É assim que procede a ciência. Antonio Biá põe o livro debaixo do braço e sai da casa de Deodora em meio ao vozerio que segue na polêmica. SEQ. 35: RUA DE JAVÉ. EXT. DIA Firmino segue pela rua ao lado de Biá e de Vado. Um grupo de gente também os acompanha. FIRMINO - O senhor vai botar no livro livro a minha minha história, heim, seu Biá? Vai botar, não vai? Eu tenho gente que pode lhe provar tudinho, palavra por palavra... Vado que segue ao lado de Biá, interrompe a tagarelice de Firmino. VADO - Ôh praga! Que é que ocê tem pra provar? A bosta seca de Indalécio? Ocê já teve a sua chance, deixa o homem descansar! Firmino dá a volta e recoloca-se novamente ao lado de Biá. aproveita a deixa e volta-se solícito para Biá.

Vado

VADO - Olha, seu Antônio, esse povo fala demais! Se quiser vamos alí na sombrinha, com calma, nós dois, porque eu já começo a lhe ter menos raiva por causa daquelas cartas maledicentes... a gente senta, o senhor abre o livro e eu lhe faço um resumo de toda história de Indalécio, Mariadina e outras tantas... ANTONIO BIÁ (SEGURANDO A IRRITAÇÃO)

 

- Eita, que quem muito fala dá bom dia a cavalo. (explodindo) Ocês sabem de tudo nesse mundo! Capaz até de saberem por onde é que a formiga mija! Antonio Biá, irritado, afasta-se de Firmino, Vado, e dos outros. Vai sozinho em direção ao bar. SEQ. 36: ARMAZÉM. INT. DIA Biá apanha a garrafa de cachaça e serve seu copo e depois o copo de um outro homem ao de lado dele. Firmino aproxima-se curiosoBiá, abreirritado, o livro que está atrás Biá, apoiado sobre o balcão. eAntônio fecha o livro com um tapa. ANTONIO BIÁ - Que é que veio cheirar! Aí não tem nada da sua conta! FIRMINO - São nossas histórias. ANTONIO BIÁ - As histórias são de vocês, a escrita é minha. Quanto tiver pronto eu mostro! Firmino dá de ombros e dirige-se a Antero que ajeita alguma mercadoria atrás do balcão. FIRMINO - Ôh Antero, me dá uma caixa de fósforos. Antero dá a caixa para Firmino que risca um palito e acende o cigarro. Depois, ele estende uma nota para Antero que devolve o dinheiro e dispara: ANTERO - Não tenho troco. FIRMINO - Então eu pago depois. ANTERO - Ocê sabe que não vendo fiado. FIRMINO - Então fica com o dinheiro que depois eu pego o troco. ANTERO - Também não fico com o que é dos outros. FIRMINO (IRRITANDO-SE) - Então toma a caixa de volta, diacho! ANTERO - Também não quero porque ocê já riscou um palito. FIRMINO - Então, o que é que eu faço? ANTERO - E eu é que sei? Quem mandou ocê ser folgado? Por que é que ocê riscou o fósforo antes de pagar ? Firmino, atônito, mantêm-se mantêm-se rígido com os olhos cravados em Antero. Biá rompe o silêncio, dando um tapinha generoso nas costas de Antero.

 

ANTONIO BIÁ - Tá justo, Antero! É por toda essa sapiência que lhe tenho muito respeito. Ainda volto aqui só pra lhe escrever! (Volta-se para o Firmino) E ocê, meu rapaz; devia amarrar as mãos e deixar de ser fuçador!! Biá apanha a garrafa de cachaça e torna a servir o copo de mais dois homens, animando-os para um brinde. Um pouco mais afastado, Vado, com expressão irritadiça, bebe cerveja ao lado de dois velhos que jogam trilha. Sem tirar os olhos de Biá, Vado murmura para os dois velhos: VADO - Ói lá, todo empertigado, bebendo com os outros como se fosse rei...Tô fazendo minha parte, vigiando o homem o tempo inteiro... ôces sabem, pau que nasce torto... Agente nunca sabe o que um homem desse quilate é capaz de fazer... Seu Vado cospe no chão com raiva. VADO - Faço minha parte mas quero ser um homem morto, morto, se algum dia beber com um homem da qualidade desse Biá! SEQ. 37:RUA DE JAVÉ. EXT. NOITE Seu Vado e Antonio Biá andam pela rua, um apoiado no outro e já bastante alcoolizados. VADO - Olha seu Biá, a sua labuta não é fácil, não é facil não... e como era a frase mesmo? ...“viver tanto e tanto, pra morrer cagando em todo canto !”  !”  Os dois explodem numa gargalhada. Antônio Biá, cambaleando, abraça seu Vado e sussurra-lhe no pé do ouvido: ANTONIO BIÁ - E ói seu Vado, já que tamo no assunto, o senhor conhece peido de moça que é bem apertadinho, pffff... E Tem o de velha que é obra de um instrumento mais largo, mais frouxo, assim ó: poooufff ! Seu Vado pára a caminhada num acesso de riso que não consegue conter. Biá é logo contagiado. Seu Vado, em meio ao acesso de riso, continua a listar a variedade de peidos. VADO - E tem... aquele... de caganeira... pé, pé, pé, po,pu, pfuuiii...iii...iiii...i! Ah! Os dois são tomados de novo acesso de riso. ANTONIO BIÁ (RINDO) - E tem o que nasce assustado: Pó! SEU VADO (RINDO) - E tem aquele que é só vento e vem se esfarelando: Pruff... fff ! Um som de moto faz com que eles cessem o riso e parem a caminhada. Logo, um motoqueiro, com moto de cross, todo coberto de pó, pára em frente dos dois. MOTOQUEIRO - Tem posto por aqui?

 

  SEU VADO - Posto de que? MOTOQUEIRO - De gasolina! SEU VADO (RI) - E onde tão os carros ? (Ri mais.) MOTOQUEIRO - E daqui pra frente? ANTONIO BIÁ - Daqui pra frente é melhor voltar pra trás! Aqui tem nada, pra frente tem menos ainda! Motoqueiro acelera, manobra e some numa nuvem de poeira. Os dois parados, observam o rapaz desaparecer. Súbito, Biá rompe o silêncio com um ar ensimesmado. ANTONIO BIÁ (PENSATIVO) - Que coisa, seu Vado! Imagina se agente peidasse a propulsão!! Antonio Biá faz som de peido e a cada ruído projeta o corpo pra frente como que movido a retropropulsão. Seu Vado explode em riso incontido. SEQ. 38: CASA DE ANTONIO BIÁ. INT / EXT. AMANHECER Antonio Biá acorda assustado com chamamentos e burburinho de multidão como se estivesse dentro de um pesadelo. Abre a janela e a luz forte do dia invade o quarto. Fora da casa formou-se um pequeno aglomerado de pessoas. ANTONIO BIÁ - Que é, gente? Mas isso é hora de acordar um cristão? VELHA - Nois somo tudo cristão e já tamo em pé! ANTONIO BIÁ - Então vão ciscá o dia que logo eu apareço. Sou escravo? Sou cavalo de cela? Então, me deixa dormir, gente! Biá, ainda sonolento, fecha a janela. SEQ. 39: CASA ANTÔNIO BIÁ. EXT. DIA Ao sair da casa, Biá espreguiça-se longamente, olha o dia satisfeito e dá os primeiros passos assobiando. Súbito, pára surpreso ao deparar com um enorme ajuntamento de gente ao lado da casa. As pessoas avançam sobre ele. SAMUEL - Pai Cariá! Tem que ouvir Pai Cariá!!

 

  SILICO - Não, não! O Gêmeo e o Outro mandaram buscar o senhor!! VADO - Mandaram! E desde quando o Gêmeo manda?! Biá vai ouvir Genésio! DEODORA - Primeiro vai terminar o que começou comigo! SAMUEL - Pai Cariá!! SILICO - É melhor o Gêmeo que mora aqui perto. FIRMINO - É, é melhor! SAMUEL - Primeiro Pai Cariá que é o mais véio de todos! FIRMINO - Pai Cariá não fala coisa com coisa! Uma agitação de gritos e nomes desnorteia Biá. SEQ. 40: RUA DE JAVÉ / BIFURCAÇÃO. EXT. DIA Visto do alto e de longe, o grupo em procissão chega a uma bifurcação. Biá ainda é conduzido no meio do grupo. Os primeiros componentes do grupo com Firmino e Silico seguem para a esquerda como se o itinerário já estivesse previamente combinado. Os de trás empurram Biá para a direita. Os da esquerda seguem por instantes sem perceber que foram logrados. Páram, gritam e correm atrás do grupo. Fazem parar o cortejo com empurra-empurra, gritos e discussões. Biá aproveita a confusão e sorrateiro afasta-se do grupo sem ser visto. Desnorteado, ele entra na primeira casa com a porta aberta para a rua. SEQ. 41: CASA DE DANIEL. INT. DIA Biá percorre o interior da casa procurando pela porta dos fundos. Súbito, tropeça com Daniel, um rapaz de 30 anos, que surge carregando uma enorme rede de pescar. No esbarrão, a rede desenrola-se no chão. Solícito e agitado, Biá recolhe a rede e devolve a Daniel ao mesmo tempo em que desculpa-se. desculpa-se. ANTONIO BIÁ - Oh, rapaz, desculpa a intromissão! Mas é que eu...onde é que tá a porta dos fundos?! Atrás de Biá, ressoa a voz de Vado. VADO - Eh, Daniel, dá licença... (descon (desconfiado) fiado) E porque a pressa, seu Biá? Biá, meio constrangido, volta-se para Vado. ANTONIO BIÁ - Ãh, a pressa? ... (muda o tom) Ora, porque alguém aqui tem de trabalhar, né’não? enquanto ocês ficam aí nesse revolteio sem direção ... Surge Deodora, Firmino, Samuel e os outros. Biá, imediatamente imediatamente arma-se do livro.

 

  ANTONIO BIÁ - Pois então, Daniel! Eu vim mesmo lhe dar uma palavrinha. O senhor sabe, é sobre o livro. DANIEL - O tal dossiê, da história do Vale? ANTONIO BIÁ Isso permanece mesmo! É coisa séria, do interesse de todos! Daniel num breve silêncio, indeciso. DANIEL - Não tenho muito que contar. Só acho justo que o senhor bote umas linhazinhas pro meu falecido pai, Isaías. Como todo mundo aqui é testemunha, foi um homem valente, dos mais corajosos que Javé conheceu. DEODORA - Isso lá é verdade. ‘tamos aqui de prova, Daniel.  Daniel.   Daniel afasta-se para abrir uma cortina que separa a sala de um pequeno quarto de dormir. Todos se espremem para espiar o ambiente. Daniel, orgulhoso, apresenta a intimidade intacta que conserva do pai como uma pequena caixinha de museu. DANIEL - Até hoje guardo as coisas dele no jeito que ele deixou. DEODORA - Morreu desvariado pelo amor de Santinha... DANIEL - Santinha não merecia esse amor. Mãe nunca teve sossego, nunca parava em casa. Tinha fogo de ir por esse mundo, ficava meses sem dar notícia, garimpando garimpando tudo que é rio e grota... Mulher assim, não conhece amor de filho ou de marido. Daniel faz uma pausa, tenta recalcar a emoção diante de todos. Consegue e continua a mostrar os objetos que pertenceram ao pai: a cama, a baciazinha, o pincel de barba e a navalha; o rebenque; as roupas no armário etc. Daniel tira uma velha pistola de dentro de um pequeno armário e exibe a Biá. DANIEL - Olha, seu Biá, essa garrucha, que beleza!... De menino, eu sempre tive muito medo, medo de tudo, de escuro, de briga, de assombração... até um dia que perdi o medo de vez e de pronto. O senhor já viu isso? Alguém perder todo o medo de uma vez só? Câmera lentamente vai aproximando-se do retrato de Isaías que pende ao lado da cama. Ele tem uns 45 anos, aproximadamente. SEQ. 42: CASA DE DANIEL. INT. NOITE (RECONSTITUIÇÃO) Câmera afasta-se do retrato de Isaías para encontrá-lo solitário, em carne e osso, sentado na mesa, ingerindo a sopa de um prato. Do seu rosto escorre lágrima como se ele não se desse conta de que chora. Súbito, num golpe inesperado, um homem montado em seu cavalo, entra no interior da sala. A cena é de impacto e violência: no pequeno ambiente, o cavalo pateia de um lado a outro, derrubando e quebrando

 

os poucos objetos. O cavaleiro golpeia violentamente a Isaías que tenta a todo custo expulsar o intruso. CAVALEIRO - Quero o ouro! Entrega o ouro que ocê esconde, desgraçado! ISAÍAS - O ouro não é meu, é de Santinha! De Santinha!! Vivo, homem nenhum tira de mim! CAVALEIRO - Não seja por isso! O cavaleiro puxa um facão e desfere vários golpes em Isaías que se esquiva, defendendo-se com as mãos. Um dos golpes sangra-lhe o ombro. ISAÍAS - Apeia miserável!! Vem como homem, sem vergonha!!! Súbito, vemos Daniel, um rapazola, que aterrorizado, encolhe-se em um canto da sala, paralisado pelo medo. Ouve-se um tiro. Com a mão trêmula, Isaías aponta a garrucha na direção do intruso que se detêm com o olhar assustado. Após um tempo o homem bambeia sobre o cavalo e cai da cela. Isaías expulsa o animal para fora da casa. Depois, extenuado, ele cai de joelhos ao lado do morto. Permanece em silêncio, recuperando o fôlego. O seu olhar cruza com o olhar de Daniel que, pálido de medo, observa atônito a figura do pai. ISAÍAS - Eita, Daniel, que tu não presta nem pra morrer junto de teu pai! O rosto de Daniel revela o impacto da acusação do pai. SEQ. 43: CASA DE DANIEL. INT. DIA O rosto de Daniel revela ainda o mesmo impacto pela acusação do pai. Ele faz uma longa pausa em sua narrativa. Biá, Deodora, Vado, Firmino e os outros que o escutam, estão calados e introspectivos. DANIEL - “Tu não presta nem pra morrer junto de teu pai!”. E desse dia em diante, de uma vez só, perdi todo o medo. Hoje não temo coisa alguma, nada... VADO - Era mesmo corajoso, o Isaías ! Só se rendeu foi pra doença, pra loucura, que arrancou ele desse mundo. Daniel dá de ombros e segue o relato como se evocasse a mesma imagem sempre. DANIEL - Quando pai tava ruim da cabeça, ele saía vagando sem rumo e eu ia atrás. Eu tinha que conseguir que ele virasse o rosto pra mim, aí então ele voltava prá trás, na direção que os olhos apontavam... (e revivendo a cena)... “Olha prá mim, aonde cê tá indo pai! Ó, a mãe voltou pra casa. Santinha tá lá em casa! Olha prá mim, pai...”  pai...”  Daniel fecha a cortina que separa o minúsculo quarto do pai do resto da sala. Firmino, já impaciente procura a porta de saída. Vado e João vão atrás. Súbito, Daniel encara Antonio Biá nos olhos e diz com força e convicção. DANIEL

 

- Dessa casa eu só saio morto, seu Biá! Biá, meio sem jeito, bate com a mão no ombro de Daniel. É o último a abandonar a casa. SEQ. 44: 44: RUA / FACHADA FACHADA CASA DANIEL. EXT. DIA DIA Em frente da casa de Daniel os acompanhantes estão dispersos aqui e ali. Seu Vado é o primeiro a perceber que Biá saiu e apressa-se em ir ao seu encontro. Pergunta com ares de cumplicidade e interesse. VADO - Baita história, heim Biá! Mas cá prá nós, o senhor acha que ela tem algum proveito pro livro, quer dizer, pra grande história de Javé? ANTONIO BIÁ - Tem toda razão, seu Vado. Proveito tem quando não há de ter e, tendo, pode ser que não tenha, igual como se tivesse. Seu Vado franze o cenho tentando entender a lógica da resposta e sem saber se Biá fala sério ou está de gozação. Firmino, Silico e outros, aproximam-se. Vado tenta conduzir Biá. VADO - Vamos ver Genésio, que esse sim sabe das coisas! SILICO - Mas, por primeiro, vamos até os gêmeos... VADO - Não começa, Silico! ANTONIO BIÁ (DECIDIDO) - Enquanto ocês decidem eu vou até alí me aliviar e volto já!! Biá afasta-se com um repique de pernas, quase correndo. SEQ. 45: CASA VICENTINO. EXT. DIA Antonio Biá, agitado, espia através do muro de cerca para o interior da casa de Vicentino. Ele procura por Tereza: ANTONIO BIÁ - Tereza! Terezinha! Ôh Terê!! Do outro lado da rua, uma voz o intercepta. Biá vira-se num sobressalto e depara com uma mulher apoiada sobre a porta de sua casa. MULHER - Seu Vicentino não está! Mas venha cá que quero uma palavrinha com o senhor... ANTONIO BIÁ - Claro, já tô indo! Só vou alí resolver um assunto e já tô voltando! Sem esperar resposta, Biá afasta-se em passo acelerado. SEQ. 46: RUA DE JAVÉ. EXT. DIA Antonio Biá caminha satisfeito, quase eufórico, por não ter ninguém que o acompanhe. Um grito de criança ressoa alto e forte. CRIANÇA (OFF)

 

- ÊH Biá! Biá!! Biá gira o rosto na direção de uma árvore de onde despenca um enxame de meninos que, em grande algazarra, saltam dos galhos para o chão e correm na direção dele. As crianças rapidamente rodeiam Biá e eufóricas pedem para examinar o livro ( “Deixa ver!”; “Posso segurar um pouquinho!” “Deixa ver! Primeiro eu!”... ). Biá à custo consegue conter o reboliço com gestos de ameaça. Súbito, sua atenção recai para duas raparigas que, do outro lado da rua, observam a confusão. Biá reconhece a uma delas e a chama pelo nome. ANTONIO BIÁ - Hei! Helena! Venha cá! Venha! As duas moças permanecem no lugar e sorriem marotas, já conhecedores dos gracejos deles. Ao não obter sucesso, ele abre o livro e desenha, sob o olhar atento e divertido da molecada que o rodeia, um enorme e voluptuoso coração. Depois, exibe o livro aberto para elas. As moças sorriem, mas sinalizam negativamente, conservando a mesma distância dele. Antonio volta a rabiscar o livro e depois exibe para elas o desenho de um rosto triste. Elas sorriem e reconsideram com um gesto ambíguo. Em resposta, ele desenha um sorriso no rosto que se transforma em expressão de cômica alegria. A criançada ri, maravilhada com o desenrolar da brincadeira. As moças também sorriem e finalmente cedem, vindo na direção a Biá. Ele se anima, porém Firmino surge no outro extremo da rua e grita interrompendo o flerte. FIRMINO - Achei ele! Tá aqui, gente! Logo atrás de Firmino, surgem os outros moradores que rapidamente rodeiam Biá. FIRMINO - Ôh Biá! O gêmeo e o Outro ‘tão esperando. Vam’bora falá com eles!  eles!   Sem tirar os olhos das moças, Biá explode em irritação. ANTONIO BIÁ - Que falar com quem, nada! Não devo, não quero, não vou! Forma-se um pequeno alvoroço ao redor de Biá. Ouvem-se Ouvem-se vozes: “Como é que não vai? Tem de ir, sim!”, “Ainda tem muita gente!”. Biá olha Biá olha desalentado para as raparigas que constrangidas com a confusão, lhe dão as costas e afastam-se novamente. SEQ. 47: CASA DE GÊMEO E OUTRO. INT. DIA “Gêmeo”, um velho de mais de 60 anos, tipo irritadiço, recebe um grupo de pessoas que vão amontoando-se na pequena sala rústica: Deodora, Silico, Vado, Firmino entre outros. Antônio Biá é um dos últimos a entrar. Ele apresenta-se com ar pomposo como se fosse a autoridade máxima esperada. Gêmeo apressa-se em acomodá-lo em frente a mesa preparada para receber o escrivão. Biá senta e abre o livro. Gêmeo também toma assento e apóia sobre a mesa uma caixa de madeira. Súbito, o velho grita em direção ao interior da casa: GÊMEO - Outro! Outro!! Gêmeo volta-se para Biá e dá um sorrizinho amarelo. Depois, torna a gritar:

 

  GÊMEO - Ôh mal’educado! Venha logo que o homem não ‘tá aqui pra lhe servir!  servir!  

Entra na sala o Outro, irmão de Gêmeo, também ao redor dos 60 anos, porém de expressão mais submissa. Ele cumprimenta a todos com um aceno de cabeça e senta-se ao lado do irmão, apoiando sobre a mesa uma outra caixa de madeira. Todos permanecem em silêncio à espera de Biá que aponta o lápis meticulosamente. Ele testa o grafite no papel e dispara: ANTONIO BIÁ - Tô pronto.

GÊMEO - O senhor deve de saber, seu Biá, que uma terra vale pelo que ela produz; mas pode valer mais ainda pelo que ela esconde. ANTONIO BIÁ - Bonito começo. Mas dá pro senhor ser mais objetivo? Gêmeo retira da caixa de madeira um mapa desenhado e estende sobre a mesa. GÊMEO - O desenho que fiz da minha propriedade, herança que vem vindo lá dos meus antigos. Pois todo mundo sabe que é nessas terras aqui que estão

 

enterrados os restos de Indalécio, o fundador. E toda essa porção que o senhor tá vendo desse lado... Enquanto o Gêmeo fala, o Outro remexe em sua caixa de madeira e retira de dentro um retrato. Ele exibe o retrato a Biá, interrompendo a fala do irmão. OUTRO - Olhe, seu Biá: nossa mãe, Margarida... Nos tempo de moça dela... GÊMEO (IRRITADO) - Peraí, Outro! Que o assunto não vai por aí... Indiferente ao Gêmeo, Biá apanha o retrato que o Outro exibe e o observa com atenção. Firmino e Deodora esticam o pescoço para também contemplarem contemplare m a foto. ANTONIO BIÁ - Ô Boniteza! Nem parece que era mãe de ôces!

Gêmeo resignando-se abre, irritado, a sua caixa e também exibe outro retrato a Biá. Na foto, posam, lado a lado, dois homens, gêmeos idênticos. GÊMEO - E esses aqui, eram nossos pais, Cosme e Damião. Biá examina o novo retrato, rodeado pelos demais. Firmino agora é quem interrompe a Gêmeo: FIRMINO - Eita, que eram iguaizinhos feito um só! ANTONIO BIÁ (MALICIOSO) - Mas os dois eram pai de ocês ? GÊMEO - Não brinca, seu Biá! O que aconteceu... OUTRO - Deixa que eu explico. Eles são a razão de tudo. Até desse aqui, meu irmão, ser conhecido como Gêmeo e eu ser o Outro. GÊMEO - Mas ocê é mesmo o outro, Outro! Era assim que meu pai lhe chamava. OUTRO - Nosso pai! Sou tão filho de Cosme como ocê!

 

  GÊMEO - Não. Ocê é filho de Damião! OUTRO - Então, vai escutando, seu Biá: Cosme e Damião eram dois irmãos gêmeos e muito unidos. Mas foi Cosme quem conseguiu juntar muitas terras... Gêmeo eleva a voz na narrativa e retoma o foco sobre si. GÊMEO - Então o caso é que Cosme conseguiu juntar muitas terras e Damião não teve a mesma sorte! Um dia conheceram Margarida, minha mãe. OUTRO - Minha, também! GÊMEO - Apaixonaram num zás-traz, os dois irmãos pela mesma mulher! Mas Margarida escolheu Cosme. E casaram. Gêmeo, retira da caixa de madeira uma certidão de casamento e entrega para Biá. Rapidamente, o Outro retira de sua caixa uma foto e também exibe a Biá: na foto, aparecem os noivos Cosme e Margarida, vestidos para a cerimônia. O retrato chama mais atenção entre os presentes e vai passando de mão em mão. SEQ. 48: FESTA DE CASAMENTO. EXT. TARDE (RECONSTITUIÇÃO) OBSERVAÇÃO: Tratamento emblemático Numa mesa comprida coberta com uma toalha branca estão os noivos Cosme e Margarida ladeados de outros convidados. Um pequeno bolo enfeitado está no centro. Come-se e bebe-se. Todos vestidos de maneira simples, mas algo solenes, se reúnem em volta dos noivos. Damião, afastado do grupo dos noivos, bebe e olha a festa com alguma tristeza. Dois violeiros cantam velhas velhas canções. canções. Cosme abandona abandona a noiva e aproxima-se de Damião. Olham com a profundidade de um olhar cúmplice e depois abraçam-se com gestos expansivos e com emoção. Brindam e bebem em uma alegria melancólica. SEQ. 49: QUARTO DE NÚPCIAS. INT. DIA. (RECONSTITUIÇÃO) Amanhece o dia. Um galo canta. O quarto de núpcias aos poucos vai clareando até que conseguimos ver Margarida que se move semiadormecida aconchegando-se junto ao torso nu do marido. Margarida abre os olhos como se estranhasse algo. Com a mão tateia a extensão da cama às suas costas. Assusta-se. Virase devagar e percebe que, às suas costas, dorme, placidamente, também com o torso nu, o outro gêmeo. Senta-se assustada e percebermos os gêmeos, um de cada lado da cama. SEQ. 50: CASA DO GÊMEO. INT. DIA Gêmeo retoma a narrativa. GÊMEO - E foi assim. Todo mundo bebeu fora da conta. E nenhum dos gêmeos lembrava de nada, mas Margarida tinha certeza de que, no escuro, tinha sido mulher de um deles. Não sabia de qual. Cosme expulsou Damião que desapareceu no mundo e renegou esse aí, o filho da dúvida, que nasceu nove meses depois! OUTRO

 

- Não me chama de filho duvidoso! GÊMEO - Um ano depois nasci eu, filho legítimo e provado de Cosme. Súbito, os dois irmãos param de falar e observam atentamente a Biá. Este olha para os lados sem entender o que os dois esperam. ANTONIO BIÁ - E... então?... GÊMEO - Então, o senhor me diga se eu posso dar metade da herança para um sujeito que tanto pode ser meu irmão, filho do meu pai e da minha mãe; meu meio-irmão, filho só da minha mãe; ou meu primo por ser filho do meu tio Damião! Então, o caso é que não tá certo o Outro herdar metade das terras que meu pai deixou! OUTRO - Nosso pai! DEODORA - Peraí gente, isso não é história pra entrar no livro... FIRMINO (RINDO) - Eita, confusão!! GÊMEO - Então, prova que ocê é filho de Cosme! Cadê o seu registro? Gêmeo apressa-se e apanha de sua caixa uma certidão de nascimento, exibindo-a para todos. Transtornado, o Outro apanha de sua caixa um retrato seu guando jovem e coloca sobre a mesa ao lado da foto dos gêmeos Cosme e Damião. OUTRO - Compare, seu Biá, olhe bem: se eu não tenho a mesma cara que meu pai Cosme; tá vendo aqui... Gêmeo explode numa irônica gargalhada. GÊMEO - Mas quer comparar o que, se os dois eram gêmeos, iguaizinhos!! OUTRO - Se ocê não vê a diferença, então é ocê que não é filho dele! Um filho reconhece o próprio pai! Não reconhece não, gente? ANTONIO BIÁ - Tá muito bem! Quem é filho de pai, de tio ou de vizinho vocês decidem. Agora eu quero saber porque, diabo, me chamaram aqui? GÊMEO - O senhor não é o escrivão das histórias? Justament Justamente; e; então bote aí no livro que “nas terras de Armando Peneré, que sou eu, conhecido como Gêmeo, FILHO ÚNICO E HERDEIRO LEGÍTIMO DE COSME PENERÉ, bote isso em letras grandes; é onde está enterrada a ossada de Indalécio, o fundador, bem como as armas que ele escondeu....”  escondeu....”   OUTRO (AGITADO) - O pai por direito é meu também... GÊMEO - Filho de adultério!

 

  OUTRO - Não fale assim de nossa mãe! GÊMEO - Estou falando é do seu pai que era um abusado! Margarida era santa, mas ocê veio como filho da puta! Biá tapa os ouvidos com as mãos, desnorteado pela confusão de vozes. Do seu ponto de vista, vemos, SEM ESCUTAR, as pessoas que falam, gesticulam, insultam e riem. O Outro, perdendo o controle, se atraca em Gêmeo e os dois lutam sob risos e gritos dos que assistem. Empurra prá lá, empurra prá cá e os dois irmãos, desafetos, acabam na varanda. Antônio Biá, irritado sai da casa pisando duro. Deodora o chama. DEODORA - Onde vai, seu Biá? ANTONIO BIÁ - Tô indo procurar uma corda pra me enforcar! Ocês fiquem pra varrer a casa do capeta! Biá dá as costas e sai deixando a discussão que corre solta. SEQ. 51: RUA DE JAVÉ. EXT. DIA Biá caminha a passos rápidos, resmungando para si, irritado. Algumas dezenas de cabras cruzam a rua, conduzidas por um homem e uma menina bastante humildes. Ao deparar com Biá, o homem grita para ele: HOMEM (GRITANDO) - Quando é que o senhor vai aparecer lá na Varzea, seu Biá? Ó, já combinamo de fazer os turno, das histórias.... Ao mesmo tempo, Vado, Firmino e Deodora surgem no outro extremo da rua. Vado grita: VADO (GRITANDO) - Êh Biá ! Volte! Venha! O povo já se aquietou! Confuso no meio da gritaria, Biá não sabe a quem atender. Um moleque cutuca-lhe a perna, tentando pegar o livro que ele segura. MOLEQUE - Deixa eu ver? Só um pouquinho? Desnorteado, Biá dá um safanão no menino e grita na direção de Vado, Deodora e outros que vindo da casa dos gêmeos, aproximam-se. ANTONIO BIÁ (GRITANDO) - E ocês podem parar aí mesmo; tão ouvindo?! Porque eu to ficando doido de morder, mastigar e engolir! Não sou o divino!! Biá dá uma banana no ar e parte atravessando e enxotando o grupo de cabras espalhadas no caminho. SEQ. 52: CASA DE ANTONIO BIÁ. INT. NOITE Antonio Biá, solitário, bebe cachaça e folheia languidamente algumas poucas páginas escritas. O livro tem de tudo. Página escrita pela metade, página só com o cabeçalho, página com rabiscos aleatório aleatórios s e poucas palavras, página com desenhos e uma e outra página com letra cursiva e caprichada. Irritado, ele fecha o livro de um golpe e o

 

afasta de si com desdém. Sorve mais um gole da cachaça e vai até a parede da casa, entulhada de escrituras gravadas no próprio tijolo. Detêm-se Detêmse em uma delas: “Conheci um certo cidadão que qu e era tão doido que não tinha cabelo...” Com um prego grosso, esculpe a frase que conclui o verso: “... tinha capim”. Uma voz vinda de fora chama por ele. Num sobressalto, sobressalto , Biá afasta-se da parede e espia lá fora por uma fresta da janela fechada. Depois, sai sorrateiro pelos fundos da casa para evitar companhia. Volta para apanhar o livro esquecido e sai definitivamente. SEQ. 53: COZINHA / CASA DE ESTURLANA. EXT. NOITE Uma mulher velha com um olhar assustado começa a levitar. Lentamente ela sai do chão de terra da cozinha e ascende no ar. Ela permanece algum tempo olhando perplexa para os lados e para o chão. Numa das mãos tem ervas e na outra uma pequena foice de segar cereais. Sobre essas imagens incide a voz de Biá.

ANTONIO BIÁ (OFF) - Ave Maria, Esturlana.... SEQ. 54: COZINHA / CASA DE ESTURLANA. EXT. NOITE Esturlana, uma velha de mais de oitenta anos, magricela e quase sem dentes, surge em pé e apoiada sobre o cimento de um forno a lenha. Ela segura um copo de cachaça. À sua frente está Biá, também em pé e com outro copo de cachaça. Ao lado dele, o livro aberto, porém esquecido. O ambiente é bastante simples e dentre a pouca mobília da cozinha, vemos um oratório que mescla, sincreticamente, quadro do sagrado coração de Jesus com figas e objetos de culto afro e uma pequena estátua de Nossa Senhora Aparecida enfeitada com flores frescas. Ao lado da santa, vemos uma vela acesa e uma terrina onde queimam algumas ervas, elevando fumaça. Esturlana remexe na lenha que queima dentro do

 

forno e dá um longo trago na cachaça. Uma trovoada ressoa, advertindo a chegada da chuva. ANTONIO BIÁ - E a senhora levitou ???? ESTURLANA - E, não, meu fio?! Desse jeitinho que contei... Tô preparando minhas ervinhas e de repente, hurvvv, sem mais nem menos, já tô no ar, levitando! Aí arranco um chumacinho dos cabelo da véia e vou descendo, devagarinho, até os pé tocá o chão. Faço uma rezinha pra minha Santa e pronto! Biá serve-se de mais um longo gole da cachaça. Depois, encara Esturlana, divertido. ANTONIO BIÁ - E ocê quer ver eu levitar, Esturlana? Esturlana?! ! Quer ver? ESTURLANA (RINDO) - Ocê é eu, pode beber tudo, mas não arranca os pé do chão! É “dom” (Ela ri de si mesma). Eita! Essa véia é só um monte de osso e pele! Já não presta pra nada, tranqueira!! (Ri) De repente, um grito vindo de fora invade a cena. VOZ (OFF) - Eh, Biá! Se enredando com a benzedeira benzedeira, , salafrário? Ao som do grito, Biá lança-se furioso em direção da janela aberta. Ele grita tentando ver o intruso escondido na noite. ANTONIO BIÁ - Ôh berrante dos inferno!! Vem gritá os bofe aqui, cabra macho !! Ao voltar-se, Biá tropeça com Esturlana que se aproximou muito dele. Ele dá um pequeno salto para trás de susto. ESTURLANA - Abre os braços e afasta um pouco as pernas, seu Biá. ANTONIO BIÁ - ...Quê...Quê é? ESTURLANA - Ocê num veio aqui prá isso? Vou lhe benzê. Ocê tá mesmo carregado! Precisando! Antônio Biá fica na posição indicada e Esturlana começa a benzê-lo. Ela fecha os olhos e murmura uma rezinha ininterrupta ao mesmo tempo em que agita um ramo de erva sobre o corpo de Biá, da cabeça aos pés. Biá acha graça e espia o solfejo com um olho aberto e outro fechado. Súbito, um ruído de líquido bate no chão de terra. Esturlana, meio em transe, urina em pé por debaixo da saia. Biá se contorce inteiro para conter o riso, porém, Esturlana é quem dispara a rir. ESTURLANA (RINDO) - Ôh, Deus! é essa véia bixiguenta que tá mijando nas carça!! É suas carga ruim que passa pra mim mas a véia não segura nada; sorta os ”trem” e deixa escorrer embora! (ri) Agora ocê levita!  levita!  Os dois riem e Biá, já bastante alcoolizado, dá um longo trago na cachaça.

 

  SEQ. 55: CASA DE ANTONIO BIÁ. EXT. NOITE Ruído de trovoada. Antônio Biá caminha trôpego e alcoolizado em direção à sua casa. Ao atravessar o portão, ele tropeça e cai. Porém, entregue à letargia, ele permanece no chão como se a queda mais o acomodasse. Após um tempo, ele apoia o livro nos joelhos e observa a página aberta. Uma formiga cruza o papel. Biá, com a ponta do lápis, vai seguindo e desenhando a trajetória que o inseto realiza sobre a folha. Uma ventania forte levanta a terra do chão, arrastando folhas, tufos de galhos secos, etc. Ainda sem mover-se, Biá observa a ventania com expressão tensa e pesarosa. SEQ. 56: CASA DE ANTONIO BIÁ. INT. NOITE Deitado sobre a cama, Biá escuta imóvel o ruído da chuva que bate forte contra o telhado e paredes da casa. Um filete de água começa a escorrer do teto para o chão. Biá, absorto, fixa o olhar na goteira que ao atingir o tampo da mesa, explode em minúsculas gotículas. Súbito, numa imagem surpreendente e irreal, Biá, estarrecido, observa uma enorme torrente de água que surge da fissura do teto e vai recobrindo toda a extensão das paredes do quarto. SEQ. 57: CAMINHO DE TERRA. EXT. DIA Imagem de um céu azul e infinito. Sobre esta imagem a voz (OFF) de Zaqueu. ZAQUEU (OFF) - ‘Quando a gente mais precisa do tempo, ele voa... Antônio Biá já Biá  já nem era mais dono de si; dia e noite, vinha gente de todo canto oferecendo as histórias – era a pressa de parar a represa misturada com a vontade de ver o próprio nome desenhado nas páginas do grande livro.’ A câmera desce do céu e descobre a figura de Samuel que canta um aboio montado no cavalo. Ao seu lado, também montado, vemos a Biá com expressão de tédio. ANTONIO BIÁ - Falta muito, diabo? SAMUEL - Légua e meia. ANTONIO BIÁ (INCONFORMADO) - Jesus! Biá agora é quem começa a cantar. Súbito, Samuel grita para o alto, olhando para o topo de um chapadão de pedra. SAMUEL (GRITANDO) - Eh, Dasdor! Lá de cima, no alto do paredão, surge a imagem minúscula de uma mulher, Dasdor. Ela grita em resposta num diálogo que parece abarcar toda a extensão do vale. DASDOR (GRITANDO) - Êh!!! O homê t’aí junto?  junto?  SAMUEL (GRITANDO) - Tá chegando! DASDOR (GRITANDO)

 

- Diz pra ele que o café tá coado! ANTONIO BIÁ (GRITANDO) - Não precisa, dona! Deu pra lhe escutar! Samuel puxa a rédea do cavalo e segue a caminhada à frente de Biá. SEQ. 58: QUILOMBO.EXT. DIA Um negro que toca uma flauta de bambu. Ele termina a frase musical e propõe um pequeno enigma (jogo de “procura”) SEQ.59: QUILOMBO. EXT. DIA Close de um negro velhíssimo, magro, de carapinha toda branca que se expressa numa língua estranha (iorubá) sem se deter um único instante. Câmera recua e vemos o velho sentado a um banquinho, ao lado de uma árvore frondosa. Biá e Samuel também estão sentados em bancos. Ao redor deles, alguns moradores compartilham do encontro. Biá mantêm-se atento à figura de Pai Cariá. Samuel vai traduzindo as palavras em iorubá do velho que não pára de falar.

SAMUEL - Ele tá dizendo que há muito tempo nossa gente foi trazida para essa parte da África.... ANTONIO BIÁ - Que parte da África? SAMUEL - O Brasil. Ele acha que o Brasil é uma parte da África. É uma aldeia grande dentro da África. Antonio Biá anima-se e abre o livro. ANTONIO BIÁ - ‘Tá, dessas histórias a gente gente fala depois. Quero saber se vocês faziam parte do mesmo povo que chegou aqui guiado por Indalécio. Samuel pergunta. Pai Cariá segue falando e, de repente, surge claramente a palavra “Indaléu”. SAMUEL - Indaléu era chefe de guerra e queria guiar nossa gente de volta pras terras de origem. Mas ele também não sabia o caminho de volta.. ANTONIO BIÁ

 

- Indaléu? É o mesmo que Indalécio? Pergunta pra ele... Não, deixa prá lá. Se não é, parece que é, tem tudo pra ser. Então fica sendo. Biá retoma a escritura no livro. Pai Cariá continua em sua algaravia. SEQ. 60: AREAL. EXTERIOR. DIA. Imagem de um grupo de homens, mulheres e crianças, todos negros, que caminham escalando os montes de um areal. À frente, guiando o grupo, surge a figura de Indaléu como um grande líder. Está sem camisa e enfeitado com colares de contas. A mão direita erguida traz uma lança enfeitada em cuja ponta está um colar feito de cocos de dendê: os olhos de Ifá. Sobre esta imagem, ouvimos a Voz (OFF) de de Pai Cariá que começa a cantar em iorubá. SEQ. 61: QUILOMBO. EXT. DIA Biá levanta o lápis do livro e observa impaciente Pai Cariá que segue cantando em iorubá.

Após um tempo, ele cochicha para Samuel. ANTONIO BIÁ (SUSSURRANDO) - Com jeitinho, num dá prá pedir pra ele pular essa parte da cantoria e ir direto pros fatos? Dasdor interfere, sussurrando ao ouvido de Biá. DASDOR (SUSSURRANDO) (SUSSURRANDO) - Ele tá contando do jeito dele, Seu Biá. Samuel é que não tá traduzindo. Biá dá um suspiro de desalento e confusão. Neste momento Pai Cariá interrompe a canção. Biá apressa-se e cutuca Samuel. ANTONIO BIÁ - Aproveita a pausa e pergunta pra ele se nessa história não tinha nenhuma mulher, de nome Mariadina? Samuel faz a pergunta em Iorubá. Pai Cariá responde e Samuel traduz. SAMUEL - Diz que tem Oxum. ANTONIO - Oxum? BIÁ Era mulher?

 

SAMUEL - É a orixa das águas, dos rios, dos córgos. Serve? ANTONIO BIÁ - Aí fica complicado. Mas depois eu dou um jeito; até aqui a história vai batendo mais ou menos... Biá constrange-se e apruma-se para ouvir a narrativa. Pai Cariá retoma a palavra em iorubá. Samuel vai traduzindo. SEQ. 62: AREAL. EXT. DIA A marcha de homens, mulheres e crianças, segue com maior dificuldade. Pouco a pouco vão alcançando o ponto mais alto da imensa rocha do areal. Sobre esta imagem a voz (OFF) de Samuel: VOZ (OFF) DE SAMUEL (SOBREPOSTA AO OFF DE PAI CARIÁ) - Durante muito tempo nossa gente andou guiada por Indaléu e pelos olhos de Ifá que já enxergava os caminhos. Até que um dia encontraram o lugar onde morava Oxum.. Indaléu susta a marcha e olha em volta ao mesmo tempo em que ouvimos em (OFF) a voz de Pai Caria que recomeça a cantar. SEQ. 63: BEIRA DE UM LAGO DE CACHOEIRA. EXT. DIA A gente de Indaléu chega às margens de um penhasco ao lado de uma frondosa cachoeira. Aproximam-se lentamente da beira, conduzidos por Indaléu. O momento é sagrado. Indaléu quebra o colar de cocos de dendê e lança os cocos lá prá baixo, para o interior do lago. Os cocos bóiam. VOZ (OFF) DE SAMUEL (SOBREPOSTA AO OFF DE PAI CARIÁ) - Ali era o lugar onde morava Oxum. Ali era a terra aonde deviam ficar. A África agora tava alí com eles. Indaléu dá um longo grito e, subitamente, mergulha no lago. Sua gente imediatamente também mergulha. Espojam-se na água, gritam e riem em uma festa alegre. SEQ. 64: QUILOMBO. EXT. DIA Pai Cariá pára subitamente de falar. Antonio Biá levanta o lápis do livro e olha perplexo para todos. Após uma breve pausa, Pai Cariá retoma a fala ainda mais enfático. Samuel vai traduzindo. SAMUEL - Ele diz que Javé é morada de Oxum.... ANTONIO BIÁ - Tudo bem, mas pergunta de novo prá ele se nessa história não tem mesmo nenhuma mulher de verdade; nome parecido com Mariadina, Mariadéu, Marioxum... Samuel vai fazer a pergunta, mas o velho Cariá segue falando sem parar. Biá puxa Samuel pelo braço: ANTONIO BIÁ - Esquece. Pede prá ele voltar lá atrás, do comecinho de novo... quando Indaléu... Pai Cariá puxa Samuel pelo ombro e começa a falar mais alto e aparentemente mais Súbito, em o Iorubá. velho dá um cascudo em Samuel que se desculpa comirritado. o velho falando

 

ANTONIO BIÁ - Que que ele tá dizendo? Traduz prá mim! SAMUEL - ‘Tá me xingando... ‘tá xingando o senhor também... Também ‘tá dizendo que... Subitamente Pai Cariá emudece. Samuel pergunta e tenta fazer o velho falar. Porém, Pai Cariá se mantém mudo e alheio. Todos ficam um tempo em suspense. DASDOR - Não vai falar mais. Pronto. Vai ficar calado, assim, por uns três quatro dias. ANTONIO BIÁ (IRÔNICO) - Tá vendo o que ocê fez, rapaz? Tá vendo? Agora temos que esperar esse tempão. Vai me desculpar, mas ocê não fez o serviço direito! Antônio Biá finge descontentamento e retoma o tom solene, debruçandose sobre o livro. ANTONIO BIÁ - Por hora,

basta soletrar o nome de vocês todos.

As pessoas descontraem-se e, ávidos, rodeiam a Biá para verem os próprios nomes serem desenhados. Biá pede que eles ditem os sobrenomes e vai escrevendo, em letras caprichadas. SEQ. 65: RUA DE JAVÉ. EXT. DIA Imagem da placa que informa a construção da usina, colocada na entrada da rua principal do povoado. Postados diante dela, alguns moradores lêem as informações em meio ao clima de temor e ansiedade. Surge Antônio Biá que, ainda montado em seu cavalo e seguido por Samuel, também posta-se perplexo diante da placa. Ao darem-se por Biá, o grupo de gente o rodeia em nervosa expectativa. Firmino, entre eles. Antonio Biá apeia e abandona o cavalo aos cuidados de Samuel. FIRMINO - Eles chegaram... Os engenheiros! ‘Tão vasculhando toda região. E Gaudério veio guiando eles! Biá desvencilha-se do grupo e agitado, caminha em direção ao interior do povoado. Firmino vai atrás. SEQ.66: RUA DE JAVÉ. EXT. DIA Biá e Firmino chegam na praça principal do povoado. Um jipe cruza na frente deles e estaciona mais à frente. As pessoas nas portas da casa observam, caladas, a nova movimentação no povoado. Crianças rodeiam em silêncio e curiosas o carro que lhes parece estranho. Biá observa um dos engenheiros que conversa com um dos moradores. Em outro ponto da rua, dois agrimensores, tomam medidas. O clima é de expectativa e tensão. Súbito, o olhar de Biá recai sobre a estranha figura de um homem que perambula no centro da praça, seguido à distância por um grupo de crianças curiosas. Ele traz os cabelos em desalinho, as roupas puídas e nos pés, calça panos enrolados que mais se assemelham a travesseiros. ANTONIO BIÁ - E aquele divino, quem é? FIRMINO

 

- É Cirilo. Há anos que vive com as pedras na gruta da onça. ANTONIO BIÁ - Pensei que já tivesse morto. FIRMINO - ‘Tava é esquecido. Mas vivinho ele tá, olha aí!  aí!   Biá afasta-se em direção ao Armazém. SEQ. 67: ARMAZEM. INT / EXT. DIA Junto ao balcão pessoas, as mesmas de sempre, conversam tensas. Entra Antonio Biá e se dirige ao balcão, ao lado de Firmino. ANTERO - ‘Ocê já viu eles, Biá. ‘Tão por aí, anotando e fotografando tudo que é canto. Chegaram sem nenhum aviso. VADO - Devia era correr com eles. FIRMINO - E quem corre com Gaudério? Neste instante, surge, como num passe de mágica, a figura de Gaudério na porta do bar. Antero faz sinal para que Firmino se cale. Sob o olhar tenso de todos, Gaudério avança para o balcão e com gestos pede uma bebida. Antero serve. Gaudério bebe em meio a um silêncio e imobilidade totais. Depois do trago, ele deposita o copo vazio sobre o balcão. GAUDÉRIO - O pior que pode passar a um homem quando bebe arrodeado de gente, é escutar o barulho do próprio trago! Gaudério olha para os homens e abre um sorriso inesperado. O ambiente descontrai-se um pouco. GAUDÉRIO - Tá muito bom! Mas num tá facil! Essa represa vem e vem bulindo feio com a cabeça de muita gente. Vai ser um aguaceiro danado, de não

sobrar nada. VADO - E o senhor é que tá guiando eles ! GAUDÉRIO - Eu aliviei cabra bravo essas desse trilha, grotas e sumidouro tudinho. Quemmuito conhece melhor ospor caminho vale? Esses homens vêm varrendo tudo. São gente a trabalho do progresso! Vão anotando tudo

 

que encontram pela frente: pedra, planta, bicho, e, ói, caçam até pernilongo dentro de uns vidrinho! Gaudério ri e não sendo acompanhado no riso torna-se subitamente sério. GAUDÉRIO - E quem aqui é o tal de Biá que esse povo fala tanto? Antônio Biá dá um passo a frente e se apresenta. ANTONIO BIÁ - Eu mesmo; em carne e osso! GAUDÉRIO - Sei. E o senhor é o quê, faz o quê? ANTONIO BIÁ - Sou escrivão de prosa e estou na labuta de escrever a história dos grandes feitos do Vale de Javé; história, como bem sabe o senhor, muito contada e ouvida mas até hoje nunca escrita e lida. GAUDÉRIO - ‘Tá muito bom! Prezo muito essa labuta, respeito! Ainda mais se é a história de um lugar que não vai existir mais. As palavras de Gaudério caem como uma sentença. Vado, o mais velho entre todos, aproxima-se de Gaudério e fala levado por uma emoção que tenta controlar. A voz lhe sai trêmula. VADO - O senhor me desculpe lhe falar, mas Javé não vai afundar. A gente parece assim, meio prascóvio... Mas só parece. Nóis aqui também viemo de gente de brava, de luta, de guerra. O livro vai provar, nos termo científico. Vado fixa o olhar em Biá buscando cumplicidade. Depois se volta para Gaudério, embaraçando-se nas palavras e na emoção. VADO - O que quero dizer... e digo!, é que... não tá certo! Não tá certo mesmo! Biá, Gaudério e todos se surpreendem com a determinação de baixa a cabeça e vai saindo de mansinho como se a qualquer fosse desabar. Já na porta do armazém, ainda tropeça com a Cirilo que aproveita o esbarrão para segredar-lhe no pé do

Vado. Ele momento figura de ouvido:

CIRILO (SUSSURRANDO) (SUSSURRANDO) - A sua casa, a sua cama, os seus trapos vão se encharcar de água... Vado, perplexo, fixa o olhar em Cirilo, mas logo o repele como se estivesse diante de um louco. Ele abandona o armazém e ganha a rua. SEQ. 68: ACAMPAMENTO DOS CIENTISTAS. EXT. NOITE Sobre um descampado, duas barracas estão erguidas e iluminadas por lampiões a gás. Os engenheiros descansam, observados por algumas pessoas do povoado que, conservando certa distância, formam um semicírculo ao redor deles.pré-anunciando Mais próximo deles, uma dupla de repentistas, improvisam o lado canto a inundação. Apenas Gaudério está sentado ao dos engenheiros. Mais ao longe, surge uma pequena procissão de

 

mulheres e crianças, com velas acesas, que atravessa a rua conduzindo uma santinha à frente do cortejo. Um dos engenheiros, que está ao lado de Gaudério, apanha uma câmera de vídeo e começa a gravar a procissão. Gaudério, atento ao interesse do engenheiro, fala em alto tom para que todos ao redor o escutem. GAUDÉRIO - Povo que muito reza, é povo devedor! Não presta de tá sempre ajoelhado com a cara vortada pro chão. As atenções dos engenheiros voltam-se toda para Gaudério. O que está gravando, também aproveita e volta a câmera de vídeo para captar a sua imagem. GAUDÉRIO - E digo mais! Eu não creio em Deus, não creio, não, senhor! (PAUSA) E como é que eu posso ter fé, crê num camarada que de tão covarde não veio ao mundo e mandou o filho no lugar?!! Sobre o impacto das palavras de Gaudério, um e outro começam a rir. O engenheiro com a câmera anima-se e erguendo-se, caminha em direção a dupla de repentistas que concluem o repente. Um menino aproxima-se da câmera e pede para ser gravado. Deodora, discretamente, aproxima-se também e posta-se diante da câmera. DEODORA - Posso falar um poquitim? O engenheiro consente e ela começar a falar com o olhar grudado na lente da câmera. DEODORA - Pois eu queria dizer pra ocês e o chefe de ocês que minha casa não está à venda! Tá gravando, moço? Dona Dé, aproveita a iniciativa de Deodora e aproxima-se da câmera para ter sua chance. DONA DÉ - E eu Deolinda Jesus, não conheço lugar melhor do que esse que ocês querem trocar.... Pouco a pouco, outras pessoas vão chegando, entre elas Firmino, Samuel, etc. Alternando-se diante da câmera, começam a disputar a vez de falar. Discutem, desabafam, inflamam-se e até cantam. O engenheiro grava tudo com interesse e disposição. A gravação torna-se um acontecimento que aglutina e estimula a todos como numa grande ação catártica. Finalmente Seu Vado aproxima-se, tenso. Naturalmente as pessoas se afastam dando passagem para ele. Ele posta-se diante da câmera de vídeo, mas não consegue dizer nada. Seu rosto intenso e paralisado fica em quadro um bom tempo. DEODORA (OFF) - Vai Seu Vado! Fala homem, é sua vez! Vado, tomado por forte emoção, permanece em silêncio. Súbito, ressoa um tiro. Depois, outro e outro. Todos correm assustados. Gaudério puxa o revolver e, com destreza, põe-se de prontidão, à frente dos engenheiros e mirando em algo que no meio da noite só ele consegue ver. GAUDÉRIO - Sai no claro que já lhe tenho na mira, desgraçado!

 

  Do escuro surge a figura de Daniel, empunhando o revolver do pai, transtornado. DANIEL - Daqui eu só saio morto! GAUDÉRIO - Vou fazer sua vontade! Os engenheiros lançam-se em direção a Gaudério e lhe seguram à força para evitar a tragédia. Ao mesmo tempo, Vado, Firmino e os outros, seguram a Daniel. Antônio Biá surge e a custo, consegue arrancar a arma da mão de Daniel. ANTONIO BIÁ - Esfria, Daniel! GAUDÉRIO (DEBATENDO-SE) (DEBATENDO-SE) - Quieta fora! Que agora esse assunto é entre eu e o desvairado! ENGENHEIRO - Calma, seu Gaudério! O momento é de muita tensão. Ao ver-se totalmente imobilizado e com o corpo frente à frente com Gaudério, também imobilizado imobilizado pelos engenheiros, engenheiros , Daniel explode em fúria: DANIEL - Devia era escorraçar a pau e tiro essa gente a mando da represa. E quem mais vier! Que não vamos entregar nossas casas, nossa vida assim... O grupo de moradores arrasta Daniel para longe. No lugar, permanecem apenas Biá, Vado e Deodora. Estarrecidos, encaram o grupo de engenheiros que parecem mais perplexos e atônitos que todos. OBSERVAÇÃO: NESTA SEQÜÊNCIA, PARTE DOS DEPOIMENTOS SERÃO CAPTADOS EM VÍDEO (KINESCOPIA) (KINESCOPIA) SEQ. 69: FACHADA ARMAZÉM. EXT. DIA Antonio Biá aproxima-se do bar. Pessoas caladas nas portas e postadas aqui e ali observam o trabalho dos agrimensores na medição das ruas. Gaudério, entre eles, bebe solitário, porém atento a tudo e a todos. A atenção de Biá recai para o outro lado da rua: um casal e três rapazes acabam de transportar a mobília de uma das casas para o interior de duas carroças e um carro de boi. Ao lado deles, algumas pessoas observam em silêncio. Antônio Biá dirige-se para Antero. ANTONIO BIÁ - Pra onde é que o Luiz vai ? ANTERO - Vai pra junto de uns parente que tem por aí. Diz que não vai ficar pra ver a desgraça! As carroças põem-se em movimento e o rangido sonoro e lento do carro de boi invade toda a cena. Esse rangido acompanha vários planos das pessoas quietas e silenciosas. Pouco a pouco, o ranger do carro de boi se até ser substituído som que cresce aosdistancia poucos vai tirando as pessoaspor de outro sua letargia. É o somlentamente de um sinoe que começar a ganhar os ares e a soar de modo frenético. Todos que

 

estão na rua surpreendem-se surpreendem-se com as badaladas nervosas. Alguns começam a correr em direção a igreja. SEQ. 70: RUA DE JAVÉ. EXT. DIA Ouve-se agora o sino mais perto e mais forte. As badaladas soam de modo descontrolado. descontrolado. Uma mulher assoma curiosa à porta de sua casa. Velhos, homens, mulheres e crianças aparecem de todos os lugares e correm agitados em direção à igreja. SEQ. 71: FACHADA DA IGREJA. EXT. DIA O sino preso a um trave de madeira em frente à igreja dança loucamente. Cirilo, tomado por algum acesso, é quem maneja o sino. Do ponto de vista dele, vemos as pessoas que se aproximam e surpresas, formam um semicírculo ao redor dele. Surge Biá ao lado de Firmino e, também perplexos, detêm-se à frente da pequena multidão. Subitamente o sino pára de tocar. Tudo se silencia. Após um tempo de suspense, Cirilo dá uns passos em direção às pessoas. Abre os braços e tenta articular palavras sem conseguir. Está muito agitado e percebe-se que ele titubeia com medo das pessoas. Cirilo volta-se e entra apressado na igreja. As pessoas, após um instante de pasmo, entram apressadamente atrás dele. SEQ. 72: IGREJA. INT. DIA Em frente ao altar e diante de todos, Cirilo agita-se de um lado a outro, abre os braços, faz esforço como se tivesse algo importante a dizer mas a voz não lhe sai. HOMEM - Esse sujeito tá louco! DEODORA - Vai desarranjar a casa de Deus!

Biá toma a frente e coloca-se diante de Cirilo, meio temeroso das reações do homem. ANTONIO BIÁ - Pronto, homem, desembucha! Fala sem medo!! que já vamo chegando aonde ocê tá indo! CIRILO ...Não presta...contrari presta...contrariado...eu ado...eu vim ...uff ...nas gaveta...Perra! gaveta...Perra! ...Crió-ô...o !!

 

ANTONIO BIÁ - Calma aí, seu Cirilo! Devagar que o senhor tá desacostumado de falar. CIRILO - Argh...arv. Argh...arv...vu..vu.. ..vu..vu.. VADO - Árvore! Disse árvore? ANTONIO BIÁ - Não atropela que ele vem vindo! Súbito, Cirilo recompõe-se e começa a falar pausadamente enquanto caminha, ameaçador, ameaçador, na direção de Vado que, assustado, recua lentamente. CIRILO - A ...a sua vaca vai se afogar, vai inchar os cornos até o couro dela estourar! - Alguém ri e Cirilo muda repentinamente de direção, indo de encontro à risada. Aproxima-se, fitando fixamente outra pessoa.

CIRILO - Sua casa vai encher d’água todos os potes, todos os baldes, quartos, até o topo. Cirilo volta-se para os outros. CIRILO - Sua cama vai alagar, suas panelas vão transbordar, a sua roupa vai encharcar... Sua rua vai ser um rio e depois um mar... As pessoas agitam-se, fazem o sinal da cruz, assustadas com a anunciação de Cirilo. Ouvem vozes: “Esse homem não tem o que dizer! Fora com ele!”. “Isso é um hereje!”. Súbito, para espanto e surpresa de todos, a voz de Zaqueu ressoa alta e forte. ZAQUEU - Que babilônia é isso aqui, Biá? Todos silenciam e voltam-se à procura de Zaqueu. As pessoas abrem passo e Zaqueu entra pelo corredor central da igreja. Ao fundo, no contra luz, a imagem de seu burro parado na porta da igreja. Em meio ao silêncio de respeito, Zaqueu aproxima-se de Biá e com espanto, observa Cirilo que se encolhe, assustado. Após um momento de indecisão Antonio Biá apressa-se em responder. ANTONIO BIÁ - Estou cumprindo o mandado de Zaqueu. Ouvindo o povo, colhendo histórias... Zaqueu desvia o olhar de Biá e fala alto, para que todos o escutem. ZAQUEU - É bom que esteja todo mundo aqui. A coisa tá difícil, mal-parada, quase sem jeito. O tempo de Javé ‘tá se acabando.  acabando.   DEODORA

 

- Eles já tão aqui, Zaqueu! Já puseram os pé no povoado... ZAQUEU - Calma! O tempo é pouco, mas é tempo! (Para Biá) Onde tá o livro? Antonio Biá, pego de surpresa, fica um instante sem fala. Recompõe-se e exibe o livro a Zaqueu. ZAQUEU - Então me dê.

ANTONIO BIÁ - Não. Ainda não! Só falta assentar umas duas ou três, não mais que quatro ou cinco páginas... ZAQUEU - Mas antes, vamos ver até onde o senhor já escrevinhou. ANTONIO BIÁ - Como quiser. Então, descanse suas tralhas e logo mais me espere no armazém que lhe entrego o que já tenho feito. (volta-se para as pessoas) E, se for da vontade de todos, vamos começar a leitura do livro pra que a maioria esteja de conforme e satisfeita! Um zum-zum cresce entre os presentes. Vado grita eufórico: VADO - Bendito! Chegou a hora! Vamo mostrar pra eles, Zaqueu! ZAQUEU (ENTUSIASMANDO-SE) (ENTUSIASMANDO-SE) - Êh, Biá !...Então, vá logo homem de Deus, que mais à noitinha lhe esperamos no armazém! E não se preocupe com os detalhe; depois corrigimos o que tiver de descontento... Biá sai da igreja sob os cumprimentos das pessoas alegres e cúmplices. SEQ. 73: ARMAZÉM. EXT. NOITE Zaqueu e outras pessoas esperam ansiosos por Biá, postados na porta do armazém. Estacionado na praça, vemos o jipe dos engenheiros denunciando a presença deles no vilarejo. Um rapazola e um velho distraem-se distraemse em “por as nádegas” em um casal desenhado nestes cartões com buracos para preencher. Chega um menino franzino, carregando o livro todo embrulhado. Ele entrega o embrulho a Zaqueu que estupefato, olha ao redor sem entender. MENINO

 

- Foi seu Biá que mandou. ZAQUEU - Mas cadê o homem? MENINO - Não sei, não senhor. Ele mandou eu entregar só em suas mãos. Zaqueu desconfiado desembrulha o livro. Junto ao mesmo tem um bilhete. Zaqueu olha o bilhete e procura ao lado um dos meninos que sabe ler. Passa o bilhete ao menino que lê em voz alta o recado de Biá. MENINO - “Tenho a declarar que eu, Antonio Biá, Biá, sou gente de cara, dente e nariz pra frente! E mais: bunda, cacunda e calcanhar pra trás! Desculpe não estar presente, mas saí em retirada para nunca mais. Me exonero como escrivão, estou ausente pra manter a mente e o corpo são. Quanto às histórias tais, melhor ficar na boca do povo porque no papel não há mão que lhes dê razão...”  razão...”  As pessoas se entreolham perplexas. Zaqueu, rodeado pelas pessoas, folheia as poucas páginas escritas do livro: frases dispersas, fragmentos de textos, desenhos etc. Um longo silêncio até que Zaqueu explode furioso. ZAQUEU Traste!... O demônio deve tá longe! Eu pego o Tralha! traste até aqui e ele explicanão essa afronta ou couro deleBiá, não arrasto vai mais ser o mesmo! Zaqueu sai seguido de outras pessoas. SEQ. 74: RUA DE JAVÉ. EXT. NOITE Um grupo de pessoas conduz Antonio Biá que vem seguro pelos braços. Nas portas da casa as pessoas se juntam curiosas para ver Biá passar. Meneiam a cabeça. E dizem frases como: “Agora ele toma o corretivo”, “Isso é pau que não desentorta”. Biá, embora acuado, vem rindo e fazendo piadas.

ANTONIO BIÁ - Vamos se ajuntando, gente! Antes do pão tem a massa, antes do assado tem a caça e agora o nó da questão ou rebenta ou desenlaça. VADO - Dessa agora ocê não escapa, desgraçado!

 

Junta mais gente e começa a se formar um cortejo barulhento. O cortejo aproxima-se de Zaqueu que espera em pé no meio da rua. A bulha diminui e Biá aproxima-se ainda rindo, mas meio nervoso e sem graça, evitando encarar Zaqueu. ANTONIO BIÁ - Ôh, Zaqueu! ZAQUEU - Só isso que tem pra me dizer? Só isso que tem a dizer pra todo mundo, sujeito à toa? ANTONIO BIÁ - Com todo o respeito... ZAQUEU - E ocê, lá, tem respeito? Ocê é, é mesmo, um salafrais, um sujeito ordinário, um homem que não merece a companhia de um cão! Ocê vai sendo o que sempre foi: um tratante, um trolha! ANTONIO BIÁ - Homem, não me insulta, não! VADO - Eu lhe fecho a boca, ordinário! DEODORA - E eu que, depois de tudo, ainda lhe abri minha casa! As pessoas começam a xingar e ameaçar Biá: “Chega o couro nele! Peste! Dá uma corrida nele, Zaqueu!” Começa a se formar tumulto sem muito controle. Antonio Biá, embora acuado, enfrenta com coragem as pessoas. ANTONIO BIÁ - Ocês acham que escrever essas histórias vai parar a represa? Não vai não e sabem porque? Porque Javé é só buraco perdido no oco do mundo... E daí que Javé nasceu de um povo guerreiro? Se hoje, isso aqui é um lugar miserável, de rua de terra, de gente apoucada, ignorante, como eu, como ocês tudinho! O que nós somos é só um povinho desmilingüido que quase não escreve o próprio nome, mas inventa histórias de grandeza pra esquecer a vidinha rala, sem futuro nenhum! E ocês crê mesmo que os homens vão parar a represa e o progresso por um bando de semi-analfabeto? Não vão, não. Isso é fato. É científico!... À medida que Antonio Biá fala as pessoas vão perdendo o ímpeto, desfazendo a raiva em perplexidade. Olham para Zaqueu que, tenso, encara Antonio Biá. Após um tempo em silêncio, Zaqueu fala em tom calmo e pausado. ZAQUEU - Nas suas idéias Javé pode não valer muito, mas o caso é que sem Javé, Antônio Biá vale menos ainda! E não vale a pena sujar as mãos com um tralha desses! Zaqueu volta-lhe as costas e começa a distanciar-se. Logo todas as pessoas o imitam. Após um momento de perplexidade, Antonio Biá dá de ombros e parte em direção contrária. Depois, vira-se novame novamente nte e grita, ofendido, para o grupo que se afasta. ANTONIO BIÁ coisa boa que Javé tem prá ensinar é o caminho de ir - Ó... única embora.

 

  Biá segue o passo mas, inconformado, quase culpado, volta-se mais uma vez: ANTONIO BIÁ - Lugar bom de criar lobisomem! Biá permanece um tempo ainda pasmado e com expressão pesarosa. Depois, faz um gesto de desdém na direção do povo, e parte definitivamente. Sobre essa imagem a voz de Zaqueu. ZAQUEU (OFF) - Biá foi-se embora e o povo de Javé criou uma ânsia, um desespero de querer saber o que fazer pra impedir a represa de chegar. SEQ. 75: EMBARCADOURO. INT. NOITE Zaqueu silencia-se, pesaroso. Os ouvintes entreolham-se em meio à sua introspecção. O tênue ruído dos carros que circulam na estrada, unidos à varredura dos fachos de luz dos faróis, intensificam certa melancolia no ambiente. HOMEM - E é só? Acabou-se assim? ZAQUEU - Mas como tudo o que já foi é o começo do que vai ser, conto o que ainda por elas vir. vieram. Passou tempo, mas o povo não teve tempo de fazer nada. está E um dia SOUSA - Elas quem, diacho? ZAQUEU - As águas. SEQ. 76: MARGEM RIO. EXT. DIA Imagem da dupla de repentistas (os mesmos vistos na seq. do acampamento dos engenheiros) que cantam em versos a desaparição de Javé. O canto melancólico, vai revelando, em forma de rima, o drama vivido pelos habitantes frente à extinção repentina do povoado. SEQ. 77: JAVÉ SUBMERSA NAS ÁGUAS Imagens dos fragmentos da cidade de Javé submersa nas águas. Sobre estas imagens, ainda ouvimos a voz da mulher que canta a desaparição do povoado. SEQ. 78: REPRESA. EXT. DIA Imagem da cúpula da igreja de Javé que se projeta para fora das águas de uma gigantesca represa. Sobre esta imagem, ouvimos a voz (OFF) de Zaqueu. ZAQUEU (OFF) - As águas subiram ligeiro. Mas teve gente que teimou até o fim. Espremidos no pé da represa, olhavam sem crer no que os olhos iam vendo. Era como tá se revirando vivo dentro da própria sepultura... Perfilados ao longo da margem da represa, vemos a expressão de desalento e perplexidade de alguns dos antigos moradores de Javé. Entre eles, reconhecemos alguns de nossos personagens: Firmino, Vado, Deodora, outros. O olharSurpreso, de Firmino desvia-se rio para fixar-se Zaqueu em algoefora de quadro. ele cutuca ado Deodora apontando para a mesma direção de seu olhar. Pouco a pouco, a atenção

 

do grupo vai recaindo sobre a mesma imagem fora de campo. A certa distância deles e isolado de todos, emerge a figura solitária de Antônio Biá. Desalinhado e com o livro debaixo do braço, ele contempla os moradores em silêncio. Depois, volta-se para fixar-se na imagem da cúpula da igreja que se projeta para fora d’água. Sem dizer palavra, Biá caminha lenta, mas decididamente em direção às águas. Ele entra no rio mergulhando o corpo até a cintura. Permanece imóvel, com o olhar fixo na torre da igreja. Atrás dele, os moradores o observam com perplexidade. Antonio Biá, alheio a tudo, tem a expressão emocionada. A sua tensão vai cedendo até romper num choro sentido, escondido de todos

e que ele tenta ocultar até para si mesmo. Pouco a pouco, o grupo vai dispersando e um a um voltam-lhe as costas, partindo em direção contrária. Em (OFF) surge a voz de Zaqueu: ZAQUEU (OFF) - Então, desse resto de gente, os mais apegados se juntaram e resolveram partir, unidos, em retirada, em busca de um novo lugar pra reerguer a cidade perdida... E Antônio Biá ia junto deles... SEQ. 79: PLANÍCIE. EXT. DIA Um longo cordão de pessoas à pé marcha sob o sol, margeando um extenso rio. Visto de perto o cordão é formado pelos remanescentes da antiga Javé que viajam entulhados de objetos e pertences domésticos. Ao lado deles, alguns animais, burros e carros de bois, transportam sacos de apetrechos, desmanches de portas, telhas, janelas, etc. A câmera percorre os corpos em marcha até encontrar a figura esquecida de Antonio Biá sentado sobre os entulhos de um carro de boi.

 

  Concentrado e com o livro aberto sobre as pernas, ele escreve em meio aos duros solavancos que o movimento da carroça desfere contra o chão. (Montagem ágil e paralela une a escrita frenética de Biá com o movimento da marcha dos retirantes) OBSERVAÇÃO: O TRATAMENTO DESTAS IMAGENS NOS REMETERÁ À LEMBRANÇA DO “EXERCITO DE INDALÉCIO” QUE VIMOS ANTERIORMENTE, DENTRO DAS RECONSTITUIÇÕES LENDÁRIAS. SEQ. 80: PLANÍCIE. EXT. DIA O grupo de retirantes descansa descansa e almoça ao ar livre. Mais afastado, vemos a Antonio Biá, ainda sentado sobre os entulhos do carro de boi estacionado. Ausente a tudo, ele escreve nas páginas do livro. A mão corre solta, obedecendo o jorro de idéias que vão sendo projetadas nas folhas do livro. A expressão de Biá, contraída e extenuada, delata o desejo quase insano de prosseguir e prosseguir. Súbito, alguém aproxima-se para espiar o livro. Vado e Firmino colam-se ao lado de Biá. VADO - Isso já não presta mais, Biá! Após um tempo, Antônio Biá responde sem desviar o olhar sobre a escrita que vai desenvolvendo sem parar. ANTONIO - O... O BIÁ que foi? Ah, é ocê, Vado! FIRMINO - Eu tô aqui também. Totalmente entretido, entretido, Biá responde sem erguer o rosto do livro para não perder a concentração. concentração. ANTONIO BIÁ - Sei... Também não esqueci de ocês dois. (PAUSA) Entram um pouquitinho... Mais na primeira parte... Firmino e Vado entreolham-se perplexos. VADO - Como assim, pouquitinho? ... Que primeira parte? Antônio Biá fica mais reticente por temer perder o rítmo da escrita que não lhe abandona. ANTONIO BIÁ - Que parte? ...a parte da antiga Javé... Porque agora, não tô vendo ocês fazerem muita coisa... Parece que tão mais sapeando os outros trabalhando... Biá fica mudo e introspectivo. O lápis corre solto. VADO - Peraí, se o senhor insiste em escrever a história certa, seja justo! O senhor não tava aqui quando o aguaceiro chegou. Eu puxei sozinho o sino cá pra fora... FIRMINO - Sozinho uma ova! Ocê só puxou o carro de boi; que mergulhamo... mergulhamo...

eu mais Antero foi

 

  Dois outros homens e Deodora aproximam-se para ver o que discutem. Vai formando-se novamente o círculo ao redor de Biá. Reinicia-se novamente a disputa entre eles. Sobre essas imagens, lentamente, as vozes fundem-se com o primeiro plano da voz (OFF) de Zaqueu. ZAQUEU (OFF) - E desde então esta é a história de Javé que se conta, mas que também pode ser lida e relida por essas serras e por essas grotas sem fim. Tá assentada em livro, correndo o mundo pra nunca que ser esquecida. É isso e não tem mais que isso! Quem quiser que escreva diferente. FADE-OUT PARA O BRANCO SEQ. 81: FINAL. TELA EM BRANCO Sobre a tela em branco, ouvimos o diálogo em (OFF) dos homens na parada de ônibus. SOUSA (OFF) - Eh, história, hein Zaqueu! MULHER (OFF) - Eita, que o homem mente, mas mente bonito! Entra ruído de percussão seca, pontuando o fim do relato. Corte da tela em branco para tela negra. Sobem os créditos finais. FIM Narradores de Javé Ficção - 35 mm - 100 minutos - Cor - 2003

Elenco José Dumont.....Antônia Biá Nelson Xavier.....Zaqueu Gero Camilo.....Firmino Rui Rezende.....Vado Rezende.....Vado Luci Pereira.....Deodora Matheus Nachtergale.....Souza Nelson Dantas.....Vicentino Dantas.....Vicentino Silvia Leblon.....Mariadina Leblon.....Mariadina Orlando Vieira.....Gêmeo Roger Avanzi.....O Outro Alessandro Azevedo.....Daniel Azevedo.....Daniel Mário César Camargo.....Pai de Daniel Benê Silva.....Pai Cariá Maurício Tizumba.....Samuel Tizumba.....Samuel Henrique Lisboa.....Cirilo Maria Dalva Ladeira.....Dona Maria Altair Lima.....Galdério Direção..... Direção.... . Eliane Caffé Produção..... Vânia Catani Produção executiva..... executiva... .. Caio Gullane, Fabiano Vânia Catani Roteiro..... Luís Alberto de Abreu e Eliane Caffé Direção de Fotografia..... Hugo Kovensky

Gullane e

 

Direção de Arte..... Carla Caffé Produção de elenco..... Fernando Cardoso de Golombeck Direção de produção..... produção.... . André Montenegro e Som Direto..... Romeu Quinto Cenografia..... Cibele Gardim Figurinos..... Figurinos.. ... Cris Camargo Maquiagem..... Uirandê Hollanda Edição..... Daniel Rezende Direção Musical..... DJ Dolores Edição de Som..... Miriam Biderman

Sá e Viviam Rui Pires

Premiação Festival de Cinéma des 3 Ameriques (Quebec / Canadá) 2004 Melhor longa-metragem de ficção Festival Un Cine de Punta (Punta del Leste / Uruguai) 2004 Prêmio Mano de Ouro, Melhor filme XIX Muestra de Cine Mexicano e Liberoamericano de Guadalajara Menção Honrosa pelo Júri Oficial 30º Festival do roteiro Filme Independente de Bruxelas / 2003 MelhorInternacional filme e Melhor Federation Internationale de la Presse Cinematographique Melhor filme pelo Júri FIPRESCI Festival de Friburgo/ Suíça – 2003 Mostra Competitiva da 32º edição do Festival Internacional de Rotterdam (Holanda 2003) Festival Internacional do Rio de Janeiro / 2003 Melhor filme Melhor ator, José Dumont Melhor filme, Júri Popular Cine PE – Festival do Audiovisual / 2003 Melhor filme Melhor Direção Melhor montagem, som, ator, atriz, ator coadjuvante Prêmio da crítica: Melhor Filme Prêmio Gilberto Freire 3º Ecocine – Festival Nacional de Cinema e Vídeo Ambiental Melhor filme 7ª Bienal de Design Gráfico / 2004 Premiado como destaque na categoria TV, Cinema e Vídeo Créditos das fotografias: fotografias: Fotos de divulgação, fornecidas pela produção do filme. Ctp, impressão e acabamento IMPRENSA OFICIAL

e atriz

 

Rua da Mooca, 1921 São Paulo SP Fones: 6099-9800 – 0800 123401 www.imprensaoficial.com.br

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