Ronei_fisica_quantica

March 1, 2019 | Author: Danilo Ruano | Category: Inertia, Theory Of Relativity, Light, Special Relativity, Isaac Newton
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Introdu¸c˜ ao ` a Relatividade e F´ısica Quˆ antica

Ronei Miotto Centro de Ciˆencias Naturais e Humanas Universidade Federal do ABC

Armando Corbani Ferraz Instituto de F´ısica Universidade de S˜ao Paulo

Universidade Federal do ABC Santo Andr´e, dezembro de 2011.

Introdu¸c˜ ao ` a Relatividade e F´ısica Quˆ antica

Ronei Miotto Centro de Ciˆencias Naturais e Humanas Universidade Federal do ABC

Armando Corbani Ferraz Instituto de F´ısica Universidade de S˜ao Paulo

Universidade Federal do ABC Santo Andr´e, dezembro de 2011.

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R. Miotto e A. C. Ferraz

Dados Internacionais de Cataloga¸ c˜ ao na Publica¸ c˜ ao (CIP) (Cˆ amara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bibliotec´ ario Gesialdo Silva do Nascimento CRB-8 no 7102

Introdu¸c˜ ao ` a relatividade e f´ısica quˆ antica / Ronei Miotto, Armando Corbani Ferraz – Santo Andr´e: Universidade Federal do ABC, 2011. 156 p.

ISBN: 978-85-65212-05-2

1.F´ısica 2. Relatividade 3. F´ısica quˆ antica 4.Ensino a distˆancia I. MIOTTO, Ronei .II. FERRAZ, Armando Corbani III. Titulo.

CDD 530

` a Adriana, Victoria e Ricardo

Apresenta¸ c˜ ao J´ a ´e centen´ aria a chamada F´ısica Moderna que atrav´es de ousadas concep¸c˜ oes transformou e continua a transformar nosso cotidiano e nos propiciou uma nova concep¸c˜ ao de como a natureza se manifesta. Essa verdadeira revolu¸c˜ ao cient´ıfica ocorreu com o desenvolvimento das Teoria da Relatividade e da Mecˆ anica Quˆ antica no in´ıcio do s´eculo XX, dando respostas e explicando de maneira inovadora os descobrimentos e resultados experimentais inexplic´ aveis pelas Leis da Natureza conhecidas e estabelecidas at´e aquela ´epoca. O objetivo desse livro ´e apresentar um breve hist´orico, os princ´ıpios fundamentais e o desenvolvimento conceitual em um curso de um per´ıodo, voltado aos estudantes que j´ a tenham conclu´ıdo cursos de f´ısica b´asica e c´alculo elementar. Atrav´es de exemplos simples associados a nossa atualidade, aplicamos essas novas teorias em alguns sistemas, notadamente os microsc´opicos.

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Miotto e Ferraz

Apresenta¸ c˜ ao

Sum´ ario Apresenta¸ c˜ ao

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1 Introdu¸ c˜ ao

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2 A Teoria da Relatividade Especial 2.1 Antecedentes Hist´ oricos . . . . . . . . . . 2.1.1 O Conceito Mecˆ anico . . . . . . . 2.1.2 A natureza da luz e o ´eter . . . . . 2.2 A proposta de Einstein . . . . . . . . . . . 2.3 Consequˆencias dos Postulados de Einstein 2.3.1 A dilata¸c˜ ao temporal . . . . . . . . 2.3.2 O Paradoxo dos Gˆemeos . . . . . . 2.3.3 A contra¸c˜ ao espacial . . . . . . . . 2.3.4 Dinˆ amica relativ´ıstica . . . . . . . 2.4 A utilidade da Teoria da Relatividade . .

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3 A Teoria Quˆ antica 3.1 Antecedentes experimentais . . . . . . . . . . . . . . 3.1.1 Primeiras Descobertas . . . . . . . . . . . . . 3.2 Radia¸c˜ ao do corpo negro . . . . . . . . . . . . . . . . 3.2.1 Form´ ulas emp´ıricas da distribui¸c˜ao espectral 3.2.2 A Lei Cl´ assica da Radia¸c˜ ao T´ermica . . . . . 3.2.3 A teoria de Planck sobre a radia¸c˜ao do calor 3.2.4 A introdu¸c˜ ao dos quanta . . . . . . . . . . . . 3.2.5 Implica¸c˜ oes do postulado de Planck . . . . . 3.3 O efeito fotoel´etrico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.3.1 Os argumentos de Einstein . . . . . . . . . . 3.4 Efeito Compton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.4.1 An´ alise Quantitativa . . . . . . . . . . . . . . 3.5 A natureza dual da radia¸c˜ ao eletromagn´etica . . . .

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3 3 4 7 15 16 18 21 22 25 32

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33 33 34 35 41 41 45 48 50 52 56 58 59 61

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´ SUMARIO

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4 Modelos Atˆ omicos 4.1 Antecedentes Experimentais . . . . . . . . . . . . . 4.1.1 F´ ormulas emp´ıricas espectrais . . . . . . . . 4.1.2 A descoberta do el´etron . . . . . . . . . . . 4.2 O Modelo de Thomson . . . . . . . . . . . . . . . . 4.3 Modelo de Rutherford . . . . . . . . . . . . . . . . 4.3.1 A estabilidade do ´ atomo nuclear . . . . . . 4.4 O modelo de Bohr . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.4.1 Aplica¸c˜ ao do Princ´ıpio da Correspondˆencia 4.4.2 Extens˜ oes do Modelo . . . . . . . . . . . . . 4.5 Confirma¸c˜ oes experimentais . . . . . . . . . . . . . 4.5.1 O Experimento de Moseley dos espectros de 4.5.2 O experimento de Franck-Hertz . . . . . . . 4.6 A regra de quantiza¸c˜ ao de Wilson-Sommerfeld . . 4.7 Cr´ıtica ` a teoria de Bohr e ` a Velha Teoria Quˆ antica

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Raios-X . . . . . . . . . . . . . . .

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5 Propriedades ondulat´ orias de part´ıculas 5.1 Evidˆencias Experimentais . . . . . . . . . . . . . 5.2 Pacotes de ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.3 Pacotes de ondas associadas a el´etrons . . . . . . 5.4 A interpreta¸ca˜o probabil´ıstica da fun¸c˜ ao de onda 5.5 O Princ´ıpio de Incerteza . . . . . . . . . . . . . . 5.6 Dualidade onda-part´ıcula . . . . . . . . . . . . . 5.7 Algumas consequˆencias do Princ´ıpio de Incerteza

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87 . 89 . 92 . 93 . 94 . 97 . 99 . 102

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6 Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica 6.1 A equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.1.1 Condi¸c˜ oes sobre a fun¸c˜ ao de onda . . . . . . . . . . . . 6.1.2 A Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger independente do tempo . . . 6.1.3 O po¸co quadrado infinito . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.1.4 O po¸co quadrado finito . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.2 Valores esperados e operadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3 Transi¸c˜ oes entre estados de energia . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3.1 Elementos de Matriz e Regras de Sele¸c˜ao . . . . . . . . 6.4 Reflex˜ ao e transmiss˜ ao de ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.4.1 Potencial degrau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.4.2 Potencial po¸co quadrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.4.3 Penetra¸c˜ ao em uma barreira de potencial (tunelamento) 6.5 A equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger em trˆes dimens˜ oes . . . . . . . . . . 6.6 A equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger para duas ou mais part´ıculas . . . . ´ 6.7 Atomos de um el´etron . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.8 O spin do el´etron . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.9 O experimento de Stern-Gerlach . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.10 Coment´ arios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

63 64 64 67 69 71 73 74 79 79 80 81 81 84 85

105 106 108 109 110 113 116 118 120 121 122 123 124 125 126 130 136 138 140

´ SUMARIO ´ Indice Remissivo

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´ SUMARIO

Cap´ıtulo 1

Introdu¸ c˜ ao Ao final do s´eculo XIX a F´ısica parecia ter atingido o seu cl´ımax. As Leis de Newton para a Mecˆ anica e a Gravita¸c˜ ao vinham sendo aperfei¸coadas desde o s´eculo XVII, e descreviam com grande precis˜ ao o comportamento dos corpos celestes e terrestres. As propriedades el´etricas e magn´eticas, por sua vez, haviam sido unificadas por James Maxwell em uma Teoria Eletromagn´etica. Um dos mais not´ aveis avan¸cos da Teoria de Maxwell foi a demonstra¸c˜ao de que a luz, o raio-X e o raio ultravioleta s˜ ao exemplos de ondas eletromagn´eticas que se propagam pelo espa¸co. Do ponto de vista microsc´opico, a Termodinˆamica e a ent˜ ao nascente Mecˆ anica Estat´ıstica relacionavam efeitos macrosc´opicos, como press˜ ao e temperatura, com causas microsc´opicas como a distribui¸c˜ao de energia dos gases ideais. Com as regras para o comportamento da mat´eria e das ondas definidas, caberia aos f´ısicos apenas o trabalho de aplic´a-las. N˜ao existiriam fenˆ omenos que n˜ ao pudessem ser explicados atrav´es de tais teorias e bastaria o desenvolvimento das t´ecnicas existentes para fenˆomenos mais complexos. Um fato marcante que ilustra esse quadro ocorreu em 27 de abril de 1900, de forma aparentemente casual. Lorde Kelvin, ent˜ao dirigente da Royal Institution of Great Britain (uma das mais prestigiadas sociedades cient´ıficas de ent˜ ao), proferia uma palestra intitulada Nineteenth-Century Clouds over the Dynamical Theory of Heat and Light (As nuvens do s´eculo dezenove sobre a Teoria Dinˆ amica do Calor e da Luz), descrevendo as teorias aceitas at´e ent˜ao. Kelvin chegou, inclusive, a sugerir que a F´ısica teria atingido o seu limite. No entanto, como ele mesmo observou, havia um por´em, dois fenˆomenos ainda estavam para ser explicados. A esses dois fenˆ omenos Kelvin chamou de nuvens que obscureciam a beleza e clareza das teorias f´ısicas: a primeira nuvem, envolvia a forma como a luz se propaga pelo espa¸co; a segunda, est´a relacionada ao problema de como distribuir energia de forma homogˆenea entre mol´eculas vibrantes. Em sua apresenta¸c˜ ao, Kelvin chegou a propor suas pr´oprias solu¸c˜oes para tais nuvens. Todavia, suas previs˜ oes mostraram-se totalmente equivoca-

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Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao

das. Ironicamente, o que Kelvin chamou de nuvens no horizonte eram de fato tempestades que modificaram substancialmente toda a F´ısica do s´eculo XX. Os fenˆ omenos em quest˜ ao eram o experimento de Michelson e Morley, que procurava determinar a velocidade da luz que incidia sobre a Terra vinda de diferentes dire¸c˜ oes, e o estudo da distribui¸c˜ ao de energia da luz emitida por materiais em altas temperaturas. Para Kelvin, e tamb´em para os demais f´ısicos da ´epoca, a luz era uma vibra¸ca˜o e, como qualquer outra vibra¸c˜ ao, podia ser tratada atrav´es das Leis de Newton. Tais vibra¸c˜ oes deveriam ocorrer em algum meio, de forma que os f´ısicos propuseram que o espa¸co n˜ ao era vazio, mas sim preenchido por um meio com propriedades quase m´ısticas chamado ´eter. Todavia isso significa que a velocidade da luz medida a partir de um referencial na Terra deveria depender de qu˜ ao r´ apido e em qual dire¸c˜ ao a Terra se move. Como a Terra gira em torno do sol, essa dire¸c˜ ao muda a cada instante, o que implica dizer que a velocidade da luz tamb´em deveria variar no decorrer do ano. Michelson e Morley propuseram um experimento que tinha por finalidade detectar tais varia¸co˜es. Apesar das varia¸c˜ oes na posi¸c˜ ao da Terra em rela¸c˜ao a estrelas muito distantes, n˜ ao foram observadas quaisquer varia¸c˜oes na velocidade da luz nesse experimento. O mist´erio sobre a velocidade da luz e a existˆencia ou n˜ ao do ´eter s´ o pode ser resolvido com a introdu¸c˜ ao de uma nova abordagem: a Teoria da Relatividade, que abordaremos no Cap´ıtulo 2. A outra nuvem no horizonte de Kelvin, a distribui¸c˜ao de energia em mol´eculas vibrantes, demandou uma revolu¸c˜ ao t˜ ao radical na forma de pensarmos quanto a Teoria da Relatividade: a Teoria Quˆ antica. A solu¸c˜ao para tais problemas revolucionaria a forma como encaramos o mundo e s˜ao as consequˆencias dessa revolu¸c˜ ao em nosso dia a dia que queremos trazer para vocˆes. No cap´ıtulo 3, abordaremos as primeiras descobertas relacionadas ao calor e uma de suas formas de propaga¸c˜ ao que levaram ` a proposta de Planck da quantiza¸c˜ ao. Nos demais cap´ıtulos ser˜ ao discutidas outras descobertas que se seguiram, como o efeito fotoel´etrico, o efeito Compton e a descri¸c˜ ao microsc´opica da mat´eria atrav´es de modelos matem´ aticos. Finalmente, abordaremos a descri¸c˜ao moderna dos estados microsc´ opicos da mat´eria, a chamada Mecˆanica Quˆantica.

Cap´ıtulo 2

A Teoria da Relatividade Especial Por mais de 200 anos acreditou-se que as equa¸c˜oes de movimento enunciadas por Newton descreviam a natureza corretamente. Apenas no final do s´eculo XIX, observa¸c˜ oes experimentais que n˜ ao podiam ser explicadas atrav´es das rela¸c˜ oes de Newton culminaram com o desenvolvimento, por Einstein, da Teoria da Relatividade. Por raz˜ oes hist´ oricas a Teoria da Relatividade ´e usualmente dividida em duas partes: a Teoria da Relatividade Especial (ou Restrita) e a Teoria da Relatividade Geral. A primeira foi introduzida por Einstein em 1905 e apresenta uma formula¸c˜ ao matem´ atica relativamente simples, enquanto a segunda, desenvolvida tamb´em por Einstein em 1916, ´e baseada em um formalismo matem´ atico elaborado, sendo utilizada principalmente para resolver problemas nas ´ areas de Cosmologia e Gravita¸c˜ ao. Neste trabalho discutiremos como a Teoria da Relatividade Especial foi sendo paulatinamente constru´ıda pelo m´etodo indutivo, partindo dos v´ arios fenˆomenos e dados experimentais relacionados com a velocidade da luz. Nas sec¸c˜oes seguintes analisaremos o processo de extens˜ ao desse modelo para outros campos e sua utiliza¸c˜ao, mesmo que n˜ ao diretamente percebida, em fenˆ omenos e aplica¸c˜oes cotidianas.

2.1

Antecedentes Hist´ oricos

A Teoria da Relatividade Especial prevˆe que rel´ogios e r´eguas que se movem em rela¸c˜ ao a um referencial inercial comportam-se de maneira diferente daqueles que se encontram em repouso em rela¸c˜ ao a este referencial. Rel´ogios em movimento funcionam mais devagar e r´eguas se encolhem ao longo da dire¸c˜ao do movimento. Se na F´ısica Cl´ assica espa¸co e tempo fornecem, em cada teoria ou experimento, um alicerce absoluto e imut´ avel de qualquer processo f´ısico; na Teoria Especial, este alicerce depende do sistema de referˆencia no qual um

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A Teoria da Relatividade Especial

processo f´ısico particular ´e medido1 , o que contradiz nossas experiˆencias cotidianas. Mas como ocorreu essa revolu¸c˜ ao nos conceitos f´ısicos? Nessa sec¸c˜ao vamos analisar os conceitos e experimentos que levaram Einstein a reformular a f´ısica cl´ assica2 . Inicialmente apresentaremos suscintamente o conceito mecˆ anico, ideia predominante na ´epoca, os experimentos que culminaram com o seu decl´ınio e a proposi¸c˜ ao de Einstein da Teoria da Relatividade Especial.

2.1.1

O Conceito Mecˆ anico

A Mecˆ anica Cl´ assica, tamb´em conhecida como Mecˆ anica Newtoniana, ´e utilizada na descri¸c˜ ao do movimento de objetos macrosc´opicos quer sejam eles pequenos proj´eteis, partes de outros sistemas mecˆanicos ou objetos astronˆ omicos. Sua formula¸c˜ ao ´e razoavelmente simples e permite a obten¸c˜ao de resultados bastante precisos das grandezas macrosc´opicas medidas, sendo uma das mais antigas ´ areas da Ciˆencia. De fato, apesar de sua formula¸c˜ao matem´ atica s´ o ter sido proposta por Newton, fil´ osofos gregos e, em especial, Arist´ oteles est˜ ao entre os primeiros a propor os princ´ıpios abstratos que governam a natureza. Em sua obra De Caelo (ou Nos C´eus), Arist´oteles j´a fazia distin¸c˜ ao entre movimento natural e movimento for¸cado e j´a lan¸cava as primeiras bases para o conceito de in´ercia. O processo anal´ıtico intuitivo de Arist´ oteles foi, posteriormente, substitu´ıdo pela metodologia cient´ıfica de Galileu, onde a experimenta¸c˜ao era utilizada para a comprova¸c˜ ao de hip´ oteses. Uma das grandes contribui¸c˜oes de Galileu para o avan¸co da Ciˆencia foi propor que as leis da natureza poderiam ser expressas matematicamente3 . Essa proposta, aparentemente simples, revolucionou a forma de representar os fenˆ omenos cotidianos. Algumas contribui¸c˜ oes de Galileu para a compreens˜ao do movimento dos corpos est˜ ao em seu conhecido trabalho de 1638 Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze4 . Esses estudos combinados com o trabalho de Newton sintetizado no Philosophae Naturalis Principia Mathematica5 (Princ´ıpios Matem´aticos da Filosofia 1 Na Teoria da Relatividade Geral o problema ´ e ainda mais complexo, pois os alicerces da teoria dependem at´ e mesmo da distribui¸c˜ ao de massa e energia no universo. 2 Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica (vol. 27, n´ umero 1, p. 27 (2004)) 3 Em seu livro Il Saggiatore, de 1623, Galileu j´ a registra: A filosofia est´ a escrita neste grande livro que est´ a sempre aberto diante dos nossos olhos (eu digo o universo), mas n˜ ao se pode entender o que ali est´ a sem se entender a l´ıngua, conhecer os personagens, nem o que est´ a ali escrito. Ele est´ a escrito na linguagem matem´ atica. Tradu¸c˜ ao livre do autor para o original em italiano La filosofia ` e scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico l’universo), ma non si pu` o intendere se prima non s’impara a intender la lingua, e conoscer i caratteri, ne’ quali ` e scritto. Egli ` e scritto in lingua matematica. As obras completas de Galileu est˜ ao dispon´ıveis em italiano em http://www.liberliber.it/biblioteca/g/galilei/index.htm. 4 Ver http://www.liberliber.it/biblioteca/g/galilei/index.htm (em italiano) e http://galileoandeinstein.physics.virginia.edu/tns_draft/index. html (em inglˆ es). 5 Ver http://astro.if.ufrgs.br/newton/principia.pdf (em latim) e http://

2.1 Antecedentes Hist´ oricos

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Natural) constituem a Mecˆ anica Newtoniana, um dos principais fundamentos da F´ısica Cl´ assica. A Mecˆ anica Newtoniana ´e modernamente expressa atrav´es de trˆes Leis Fundamentais (ou Leis de Newton) que representam as bases da Dinˆ amica6 : 1. Todo corpo persiste em seu estado de repouso, ou de movimento retil´ıneo uniforme, a menos que seja compelido a modificar esse estado pela a¸c˜ao de for¸cas impressas sobre ele; 2. Um corpo que sofre a a¸c˜ ao de uma for¸ca move-se de modo tal que a taxa de varia¸c˜ ao temporal do momento linear ´e igual `a for¸ca; 3. A toda a¸c˜ ao corresponde uma rea¸c˜ ao igual e contr´aria, ou seja, as a¸c˜oes de dois corpos um sobre o outro s˜ ao sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos. Todavia, para que possamos obter de tais leis fundamentais conclus˜oes quantitativas ´e necess´ ario introduzir uma matematiza¸c˜ao do problema que exige um conjunto de suposi¸c˜ oes, especialmente `aquelas relacionadas `a natureza do espa¸co e do tempo, sobre as quais muitas vezes n˜ao nos damos conta. Um dessas suposi¸c˜ oes ´e a existˆencia de um tempo absoluto, definido por Newton em seu Principia como: O tempo absoluto, verdadeiro e matem´ atico, por si s´ o e por sua pr´ opria natureza, flui uniformemente, sem rela¸c˜ ao com nenhuma coisa extensa, e ´e tamb´em chamado dura¸c˜ ao. Em outras palavras, Newton prop˜ oe que o tempo f´ısico tem sua defini¸c˜ ao associado a objetos concretos, como rel´ ogios ou outros sistemas de medi¸c˜ ao. Todavia, Newton n˜ao considerou a possibilidade de que esses objetos, tamb´em sujeitos as Leis da F´ısica, poderiam ter seu funcionamento afetado por alguma condi¸c˜ao f´ısica especial. Outro aspecto fundamental da Dinˆ amica est´a relacionado `a escolha de um sistema de referˆencia, ou por simplicidade, referencial. Um referencial ´e dito inercial quando nele ´e v´ alida a Primeira Lei de Newton, ou seja, na ausˆencia de for¸cas o referencial permanece em repouso ou em movimento retil´ıneo uniforme7 . Decorre desse fato que qualquer referencial em movimento retil´ıneo www.archive.org/details/newtonspmathema00newtrich (em inglˆ es). 6 A breve descri¸ c˜ ao aqui apresentada tem como u ´nico objetivo introduzir alguns conceitos que ser˜ ao discutidos no contexto da Relatividade Especial. Para maiores detalhes, consulte a literatura especializada, como por exemplo o livro introdut´ orio Curso de F´ısica B´ asica 1. Mecˆ anica, de autoria de H. Moys´ es Nussenzveig, Edgard Bl¨ ucher 1996. 7 Intuitivamente sabemos que n˜ ao existe uma velocidade absoluta, mas ser´ a que existe uma acelera¸ca ˜o absoluta, conforme sugerido por Newton? Imagine que vocˆ e est´ a no vag˜ ao restaurante de um trem que viaja em um estrada retil´ınea e plana, tomando um belo prato de sopa. Se o trem move-se a velocidade constante, a sopa no prato est´ a nivelada e n˜ ao oferece a vocˆ e nenhuma informa¸c˜ ao acerca da velocidade do trem. Por outro lado se o trem muda sua velocidade, a sopa apresentar´ a um desn´ıvel para um dos lados do prato e vocˆ e poder´ a afirmar em qual dire¸c˜ ao e com qual intensidade a velocidade varia, ou seja, qual ´ e a intensidade e dire¸ca ˜o da acelera¸ca ˜o. A partir desse tipo de observa¸c˜ ao, Newton sugeriu que seria conveniente indicar uma classe de observadores preferenciais: os observadores n˜ ao acelerados ou observadores inerciais. Neste trabalho o termo referencial sempre se refere a um observador ou referencial inercial.

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Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

uniforme em rela¸c˜ ao a um referencial inercial ´e tamb´em inercial. Dessa forma, n˜ ao existe um referencial privilegiado, o que Galileu sintetizou atrav´es do que chamamos Princ´ıpio de Relatividade de Galileu: as leis da Mecˆ anica Newtoniana s˜ ao as mesmas em qualquer referencial inercial. Como sugerido pelo pr´ oprio Galileu, ´e necess´ ario mostrar que esse Princ´ıpio da Relatividade pode ser representado matematicamente. Isso significa que ´e necess´ ario mostrar que as Leis de Newton devem ter express˜ oes equivalentes em dois referenciais inerciais diferentes. Considere, ent˜ ao, um referencial inercial, que chamaremos O1 , deslocandose com velocidade constante v1 Figura 2.1: Representa¸c˜ao esquem´atica de na dire¸c˜ ao x em rela¸c˜ ao a um um referencial O1 deslocando-se em rela¸c˜ao ´ outro referencial inercial O. E ao referencial O com velocidade v1 . poss´ıvel mostrar que as Leis de Newton permanecem invariantes atrav´es da transforma¸c˜ ao:   x1 = x − vt  y = y 1  z =z 1    t1 = t

(2.1)

Transforma¸c˜ ao que ´e conhecida como Transforma¸ c˜ ao de Galileu. O sucesso da Mecˆ anica Cl´ assica na descri¸c˜ ao do movimento de objetos macrosc´ opicos, desde proj´eteis at´e gal´ axias, levou a tentativas de generalizar seus conceitos aplicando-os a outras ´ areas do conhecimento. Essa apropria¸c˜ao de ideias de uma ´ area por outra ´e bastante comum em Ciˆencia e Tecnologia e continua a ocorrer. Os economistas, por exemplo, utilizam a Teoria Lagrangeana e Hamiltoniana (importantes ferramentas matem´ aticas da Mecˆanica Cl´assica) no estudo e an´ alise de casos relacionados ` a tomadas de decis˜ao, minimiza¸c˜ao de custos e maximiza¸ca˜o de lucros8 .

8 Um exemplo interessante da aplica¸ c˜ ao da Teoria de Lagrange em outras ´ areas que n˜ ao a F´ısica ´ e o trabalho multidisciplinar de Caldas e colaboradores sobre a ocupa¸ca ˜o e desmatamento de ´ areas da amazˆ onia que pode ser encontrado na Revista Brasileira de Economia 57, 683 (2003) e dispon´ıvel na base de dados www.scielo.br.

2.1 Antecedentes Hist´ oricos

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Detalhes matem´ aticos: A Transforma¸ c˜ ao de Galileu e as Leis de Newton A partir da transforma¸c˜ ao 2.1 ´ e poss´ıvel determinar-se a velocidade u~1 do corpo em rela¸ca ˜o ao sistema inercial O1 em termos das componentes da velocidade ~ u em rela¸c˜ ao ao sistema inercial O:  dx1 d dx  u1,x = dt = dt (x − v1 t) = dt − v1 = ux − v1 dy1 d (2.2) u1,y = dt = dt (y) = uy   1 = d (z) = u . u1,z = dz z dt dt De forma an´ aloga, determina-se a acelera¸c˜ ao (a~1 ) em rela¸c˜ ao ao sistema inercial O1 em termos das componentes da acelera¸c˜ ao (~a) em rela¸c˜ ao ao sistema inercial O, o que permite escrever a Segunda Lei de Newton (em termos de suas componentes) como:  d d  F1,x = ma1,x = m dt (u1,x ) = m dt (ux − v1 ) = max d d (2.3) F1,y = ma1,y = m dt (u1,y ) = m dt (uy ) = may   d d F1,z = ma1,z = m dt (u1,z ) = m dt (uz ) = maz . ~ = m~a, ent˜ ou seja, se no referencial em repouso F ao no referencial em movimento ~ tamb´ em vale F1 = ma~1 , demonstrando a validade da Segunda Lei de Newton nos dois referenciais.

2.1.2

A natureza da luz e o ´ eter

Um outro exemplo da apropria¸c˜ ao de ideias de uma ´area da F´ısica por outra ´e a utiliza¸c˜ ao do conceito mecˆ anico na elabora¸c˜ao de uma teoria para a luz. A teoria ´e simples e condizente com o conhecimento mais aceito9 em meados do s´eculo XVIII: admite-se que todos os corpos iluminados emitem part´ıculas de luz, ou corp´ usculos, os quais, ao atingirem os olhos do observador, criam a sensa¸c˜ ao de luz. Esses corp´ usculos devem caminhar em linha reta pelo espa¸co vazio com uma velocidade conhecida, levando aos olhos do observador mensagens dos corpos emissores de luz. Todos os fenˆomenos que exibem a propaga¸c˜ ao linear da luz justificam a teoria corpuscular, pois justamente esse tipo de movimento foi previsto para os corp´ usculos10 . Em contraposi¸c˜ ao ` a teoria corpuscular de Newton, Huygens sugeriu em seu trabalho sobre a luz11 que: Se, al´em disso, a luz gastar tempo para a sua passagem seguir-se-´ a que esse movimento, imprimido ` a mat´eria intermedi´ aria, ´e sucessivo; e, consequentemente, ela se espalha, como o faz o som, em superf´ıcies esf´ericas e ondas, pois eu as chamo ondas por causa de sua semelhan¸ca com as que se vˆe formarem-se na ´ agua quando nela se joga uma pedra, 9 Isaac Newton, Opticks or a treatise of the reflections, refractions, inflections and colours of light (1704), c´ opias da edi¸c˜ ao original est˜ ao dispon´ıveis em http://www.rarebookroom. org/Control/nwtopt/index.html 10 A teoria tamb´ em explica com muita simplicidade a reflex˜ ao da luz por espelhos como sendo o mesmo tipo de reflex˜ ao que ´ e mostrado na experiˆ encia mecˆ anica de bolas el´ asticas lan¸cadas de encontro a uma parede. A explica¸c˜ ao da refra¸c˜ ao ´ e um pouco mais complexa, exigindo considera¸co ˜es sobre a atua¸ca ˜o de for¸cas que alterem a velocidade de propaga¸c˜ ao dos corp´ usculos quando da mudan¸ca de meio, mas n˜ ao apresenta grandes restri¸c˜ oes conceituais. 11 Trait´ e de la lumiere (Leiden, Netherlands: Pieter van der Aa, 1690), c´ opias da edi¸c˜ ao original est˜ ao dispon´ıveis em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5659616j

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e que apresentam uma expans˜ ao sucessiva em c´ırculos, embora estes resultem de outra causa e estejam apenas em uma superf´ıcie plana12 . Assim, Huygens sugere ser a luz uma onda e prop˜oe a existˆencia de uma substˆ ancia hipot´etica, o ´eter, um meio transparente que permeia todo o universo. O ´eter seria, ent˜ ao, o suporte para a transmiss˜ ao da luz, assim como o ar o ´e para a transmiss˜ ao do som. A existˆencia dessa substˆancia em todo o espa¸co deveria, de alguma forma, influenciar o comportamento de outros corpos que por ela propagassem, notadamente os planetas. Todavia, os astrˆonomos n˜ao observavam quaisquer anomalias nas trajet´ orias dos planetas que pudessem ser associadas ao ´eter. Isso significa que o ´eter deveria existir, mas ao mesmo tempo ser im´ ovel e atravessar todos os corpos sem afet´a-los de modo algum. Apesar das restri¸c˜ oes relacionadas ao ´eter, a Teoria Ondulat´oria de Huygens permitia uma explica¸c˜ ao mecˆ anica mais simples e completa da propaga¸c˜ao da luz, incluindo n˜ ao apenas os fenˆ omenos de reflex˜ ao e refra¸c˜ao, mas tamb´em de interferˆencia. A grande restri¸c˜ ao ` a teoria ondulat´ oria de Huygens era a necessidade de supor-se a existˆencia do ´eter. Esse aspecto, contudo, n˜ao impediu a ampla aceita¸c˜ ao da teoria ondulat´ oria da luz, j´ a que como em outras tentativas de compreender os fenˆ omenos da natureza do ponto de vista mecˆanico, a introdu¸c˜ ao do ´eter teve o mesmo papel de outras substˆancias artificiais com os fluidos el´etrico e magn´etico ou os corp´ usculos de luz: concentrar as dificuldades em um u ´nico ponto essencial. Se por um lado, restri¸c˜ oes relacionadas ao ´eter eram apontadas; de outro, algumas evidˆencias importantes davam suporte a teoria ondulat´oria de Huygens. O trabalho de Euler sobre a teoria da luz e das cores13 , por exemplo, pode ser considerado um dos mais completos trabalhos sistem´aticos em favor da teoria ondulat´ oria publicado no s´eculo XVIII. Nesse trabalho, Euler mostra claramente que a difra¸c˜ ao da luz pode ser mais facilmente explicada atrav´es de uma teoria ondulat´ oria14 . Outro trabalho decisivo na aceita¸c˜ao da teoria ondulat´ oria para a luz foram os experimentos relatados por Thomas Young em 180315 que demonstravam que nessa teoria o fenˆ omeno de interferˆencia podia ser explicado de forma an´ aloga ` a interferˆencia entre ondas sonoras, al´em de prever que a luz poderia ser polarizada. Young tamb´em mostrou por meio de experimentos de difra¸c˜ ao que a luz se comportava como ondas e que cores diferentes eram causadas por diferentes comprimentos de onda da luz. De todos os estudos que contribuiram para a aceita¸c˜ao da teoria ondulat´oria da luz, o trabalho de James Clerk Maxwell 16 sobre a radia¸c˜ao eletromagn´etica 12 Extra´ ıdo de Albert Einstein e Leopold Infeld, A evolu¸c˜ ao da f´ısica, tradu¸c˜ ao Giasone Rebu´ a (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980). 13 Nova theoria lucis et colorum, Opuscula varii argumenti 1, 169-244 (1746); dispon´ ıvel em http://eulerarchive.maa.org/pages/E088.html. 14 Ver, por exemplo, R. W. Home, Leonhard Euler’s Anti-Newtonian Theory of Light, Annals of Science 45, 521 (1988). 15 The Bakerian Lecture: Experiments and Calculations Relative to Physical Optics, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 94, 1 (1804), dispon´ıvel em http://www.jstor.org/stable/107135. 16 On Physical Lines of Force, Part 1, Phil. Mag. XXI, pp. 161-175 (1861); Part 2 Phil.

2.1 Antecedentes Hist´ oricos

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e a luz merece destaque. Maxwell demonstrou que ondas eletromagn´eticas propagam-se pelo espa¸co a velocidade constante e que essa velocidade era compat´ıvel com os valores obtidos por Fizeau para a luz (discutidas na pr´oxima se¸c˜ ao), o que levou-o a concluir que a luz nada mais era do que uma forma de radia¸c˜ ao eletromagn´etica17 . Quer saber mais? As Equa¸ c˜ oes de Maxwell As propostas de Maxwell em seus trabalhos On Physical Lines of Force e A Dynamical Theory of the Electromagnetic Fielda , posteriormente sistematizados por Oliver Heavisideb nas conhecidas Equa¸c˜oes de Maxwell s˜ ao os alicerces da eletrodinˆ amica cl´ assica. Sua comprova¸c˜ao experimentalc por Hertz em 1886–1887 foi crucial para sua aceita¸c˜ao. O trabalho original de Maxwell baseava-se na ideia de que a luz propagava-se atrav´es do ´eter e que sua velocidade deveria ser por ele afetada, o que, como veremos mais adiante, provou-se um equ´ıvoco. Mas as restri¸c˜oes `a Teoria de Maxwell n˜ ao se restringiam ao ´eter. Ao contr´ario do que ocorre com as Leis de Newton, as Equa¸c˜ oes de Maxwell n˜ao s˜ao invariantes por uma Transforma¸c˜ ao de Galileu, isto ´e, as Equa¸c˜ oes de Maxwell antes e depois de uma Transforma¸c˜ ao de Galileu n˜ ao s˜ ao equivalentes. Essa contradi¸c˜ao levou um grupo de pesquisadores, conhecidos como Maxwellianos, a estudar alternativas ` a Transforma¸c˜ ao de Galileu, resultando nas Transforma¸c˜ao de Lorentz discutidas mais adiante. a Royal Society Transactions 155, 459 (1865), dispon´ıvel em http: //upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/19/A_Dynamical_Theory_ of_the_Electromagnetic_Field.pdf b On the Forces, Stresses and Fluxes of Energy in the Electromagnetic Field Philosophical Transactions of the Royal Society 183A, 423 (1892), dispon´ıvel em http: //www.jstor.org/pss/90590. c Heinrich Rudolph Hertz, Electric waves: being researches on the propagation of electric action with finite velocity through space, (MACMILAN AND CO., London, 1893), dispon´ıvel em http://ebooks.library.cornell.edu/cgi/t/text/ text-idx?c=cdl;cc=cdl;view=toc;subview=short;idno=cdl334.

Al´em da existˆencia do ´eter, um outro ponto central na teoria ondulat´oria de Huygens est´ a no fato da luz ter uma velocidade de propaga¸c˜ao finita. Como veremos a seguir, a determina¸c˜ ao da velocidade da luz desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da Teoria da Relatividade Especial (TER), sendo a constˆ ancia dessa velocidade um dos pontos fundamentais dessa teoria. A hist´ oria por tr´ as da determina¸c˜ ao da velocidade da luz ´e longa, tendo seus primeiros passos j´ a na ´epoca dos fil´ osofos gregos. Aqui discutiremos apenas alguns aspectos que influenciaram decisivamente a TER. Mag. XXI, pp. 281-291, 338-348 (1861); Part 3 Phil. Mag. XXIII, pp. 12-24 (1862); Part 4 Phil. Mag. XXIII, pp. 85-95 (1862), dispon´ıvel em http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/b/b8/On_Physical_Lines_of_Force.pdf. 17 Utilizando as palavras de Maxwell ... we can scarcely avoid the inference that light consists in the transverse undulations of the same medium which is the cause of electric and magnetic phenomena.

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Quer saber mais? A determina¸ c˜ ao da velocidade da luz Debates acerca da determina¸c˜ ao da velocidade da luz datam dos tempos da Gr´ecia Antiga. Arist´ otoles cita Empedoclesa como um dos primeiros a sugerir que a luz teria velocidade finita. Essa especula¸c˜ao n˜ao era fruto de nenhuma experimenta¸c˜ ao, mas sim de puro racioc´ınio. Uma das primeiras men¸c˜ oes a um valor para a velocidade da luz foi feita por Sayana no Rig Vedab , um livro escrito no in´ıcio do s´eculo XIV. Surpreeendentemente, o valor sugerido por Sayana, 302.000 km/s, est´ a muito pr´oximo daquele aceito em nossos dias! No s´eculo XVII Galileu propˆosc que a velocidade da luz poderia ser determinada por dois observadores dotados de lanternas e postados em dois montes adjacentes da seguinte forma: o primeiro observador descobriria sua lanterna de modo que o segundo pudesse vˆe-la; o segundo descobriria sua lanterna e o primeiro anotaria o tempo entre descobrir sua lanterna e a observa¸c˜ ao da segunda lanterna. O intervalo de tempo entre os eventos permitiria determinar-se a velocidade da luz a partir do conhecimento da distˆ ancia que separava os dois observadores. Galileu n˜ ao conseguiu chegar a um valor para a velocidade da luz, apenas concluiu que ela deveria ser muito grande. Os astrˆ onomos Jean-Dominique Cassini e Ole Rømerd notaram, quando estudavam as tabelas dos sat´elites de J´ upiter, que o per´ıodo dos eclipses do primeiro sat´elite de J´ upiter s˜ ao regulares, mas os instantes em que se iniciam avan¸cavam quando a terra se aproRepresenta¸c˜ao esximava de J´ upiter (movendo-se de Figura 2.2: atica das posi¸c˜oes da Terra e C para A, conforme a figura2.2) e quem´ upiter em rela¸c˜ao ao Sol. atrasavam quando a terra se afas- de J´ tava. Apesar das discordˆ ancias de Cassini, Rømer interpretou corretamente essa diferen¸ca como o tempo necess´ ario para os sinais luminosos do eclipse atravessarem o diˆametro da o´rbita terrestre, mas se limitou a afirmar que a velocidade da luz era extremamente alta, n˜ ao atribuindo a ela um valor num´erico. Utilizando o formalismo proposto por Rømer, Huygens e estimou o valor da velocidade da luz como sendo 230.000 km/s. a George Sarton, Ancient science through the golden age of Greece, p. 248 (Dover, London, 1952). b Subhash C. Kak, Sayana’s Astronomy, Indian Journal of History of Science 33, 31 (1998). c Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (1638). d Laurence Bobis e James Lequeux, Journal of Astronomical History and Heritage 11, 97 (2008). e Trait´ e de la lumiere (Leiden, Netherlands: Pieter van der Aa, 1690).

2.1 Antecedentes Hist´ oricos

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No in´ıcio n˜ ao se sabia como a velocidade da luz estava relacionada com a velocidade de seu corpo emissor ou com o ´eter. Em analogia ao caso mecˆanico, supunha-se vagamente que a velocidade da luz era maior quando emitida no mesmo sentido que a do corpo emissor e menor quando no sentido oposto e que o ´eter deveria, de alguma forma, alterar a velocidade de propaga¸c˜ao da luz. Por volta de 1840-1850, diversas teorias conflitantes acerca do ´eter foram formuladas com o objetivo explicar os resultados experimentais dispon´ıveis, dentre os quais o da aberra¸c˜ ao da luz18 . Segundo Fizeau19 , essas teorias podiam ser resumidas em trˆes hip´ oteses principais que se referem ao estado no qual o ´eter, dentro de um corpo transparente, deve ser considerado: a primeira hip´otese sugere que o ´eter adere ` as mol´eculas do corpo e, consequentemente, realizam o mesmo movimento imposto a esse corpo; a segunda que o ´eter ´e livre e independente, n˜ ao sendo carregado pelo corpo em seu movimento; finalmente, na terceira apenas uma parte do ´eter ´e livre enquanto a outra por¸c˜ao ´e fixa as mol´eculas do corpo, realizando o mesmo movimento imposto a ele. A terceira hip´ otese ´e uma propotas de Fresnell que funde as duas primeiras propostas e foi concebida para satisfazer ao mesmo tempo o fenˆomeno de aberra¸c˜ao e um experimento realizado por Arago no qual se mostrou que o movimento da terra n˜ ao tem nenhum efeito sobre o valor da refra¸c˜ao da luz de uma estrela em um prisma. Com o objetivo de contribuir para elucidar essas d´ uvidas, Fizeau propˆ os20 em 1851 um experimento que tinha como intuito verificar pequenas varia¸c˜ oes na velocidade da luz. Para tanto Fizeau sugeriu um arranjo experimental (apresentado na Fig. 2.3) que produz franjas de interferˆencia entre dois raios de Figura 2.3: Representa¸c˜ao esquem´atica luz depois que eles passam atrav´es de do aparato experimental concebido por dois tubos paralelos onde ar e ´ agua Fizeau (fonte:wikimedia). podem fluir a grandes velocidades e em dire¸c˜ oes opostas. Em seu experimento, Fizeau verificou um deslocamento das franjas de interferˆencia, o que ele interpretou como sendo uma clara evidˆencia a favor da proposta de Fresnel, segundo a qual o movimento dos corpos produz uma varia¸c˜ ao na velocidade da luz. Al´em disso, Fizeau sugeriu que a magnitude dessa varia¸c˜ ao depende do ´ındice de refra¸c˜ao do meio. 18 Aberra¸ c˜ ao da luz ´ e o fenˆ omeno no qual a posi¸c˜ ao aparente de um objeto sofre um desvio cuja amplitude depende da amplitude de seu movimento com rela¸c˜ ao ao observador (ou seja, sua velocidade relativa ao mesmo). Este efeito est´ a ligado ao fato de ser finita a velocidade de propaga¸ca ˜o da luz. Saiba mais em http://www.if.ufrgs.br/oei/santiago/fis2005/ textos/varcrds.htm. 19 Sur les hypoth` eses relatives a ` l’´ ether lumineux, Comptes Rendus 33, 349 (1851), dispon´ıvel em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k29901/f354. 20 Sur les hypoth` eses relatives a ` l’´ ether lumineux, Comptes Rendus 33, 349 (1851).

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A Ciˆ encia em nosso cotidiano: O interferˆ ometro de Fizeau Utilizando o mesmo princ´ıpio de funcionamento do equipamento originalmente descrito em 1851, Fizeau desenvolveu um interferˆometro que utiliza espelhos girat´ orios. Posteriormente esse interferˆ ometro foi utilizado por ele e outros pesquisadores como Foucault para determinar a velocidade da luz. Atualmente esse tipo de interferˆ ometro ´e utilizado na medi¸c˜ao da forma de superf´ıcies o´pticas e sensoresa de temperatura, press˜ao, etc. a Veja uma aplica¸ c˜ ao interessante em Luciana Montanari; Jaime Gilberto Duduch; Arthur Jos´ e Vieira Porto, Estudo de padr˜ oes de franjas interferom´ etricas aplicadas a sistemas de posicionamento de alta precis˜ ao, Minerva 4, 113 (2007), dispon´ıvel em http://www.fipai.org.br

Os resultados obtidos por Fizeau, embora muito bem recebidos pela comunidade cient´ıfica, n˜ ao eram suficientemente precisos para esclarecer totalmente as ambiguidades inerentes a` teoria do ´eter. Assim, como esperado outras aproxima¸c˜ oes experimentais estavam em estudo. Uma delas, proposta por A. A. Michelson21 em 1881 admitia-se que o ´eter est´ a em repouso e que a Terra movese atrav´es dele. Dessa forma, o tempo que a luz demora para ir de um ponto a outro da superf´ıcie da Terra deve depender da dire¸c˜ ao em que viaja. Em analagia ao caso mecˆ anico, a velocidade da luz ser´ a Figura 2.4: Representa¸c˜ao esquem´atica maior quando emitida no mesmo sen- do aparato experimental concebido por tido que a do corpo emissor e menor Michelson (retirado do artigo original ublico). quando no sentido oposto. Michel- dom´ınio p´ son utilizou um arranjo experimental como o esquematizado na figura 2.4, a luz emitida em a, passa atrav´es de um vidro plano b, parte atingindo o espelho c e parte sendo refletida para o espelho d. O feixe de luz refletido em c e d retorna a b onde foi originalmente refletido/refratado, de forma que os dois raios de luz s˜ ao agora coincidentes. Sendo a distˆ ancia bc igual a distˆ ancia bd, os dois raios de luz tem trajet´orias iguais e est˜ ao em condi¸c˜ ao de interferir22 . Segundo Michelson, o feixe de luz 21 The

Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether, American Journal of Science 22 , 120 (1881), dispon´ıvel em http://www.archive.org/stream/ americanjournal62unkngoog#page/n142/mode/1up. 22 O vidro plano g colocado no caminho ´ optico bc ´ e utilizado para compensar a espessura do vidro b.

2.1 Antecedentes Hist´ oricos

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4 que viaja na dire¸c˜ ao do movimento da terra o faz 100 de um comprimento de onda a mais do que o faria se viajasse em uma dire¸c˜ao na qual a terra est´ a em repouso (ver Detalhes Matem´ aticos: A hip´ otese de Michelson). O outro feixe de luz estando a um ˆ angulo reto em rela¸c˜ao ao movimento da terra n˜ ao seria afetado. Dessa forma a menor diferen¸ca na velocidade de propaga¸c˜ ao da luz poderia ser detectada atrav´es de varia¸c˜oes na figura de interferˆencia formada pelos feixes de luz em e. Michelson realizou uma s´erie de medidas rotacionando o seu equipamento em torno de seu eixo principal mas observou apenas pequenas varia¸c˜ oes nas figuras de interferˆencia obtidas, interpretando-as como desvios inerentes ao seu aparato experimental, o que o levou a concluir que a hip´ otese de um ´eter estacion´ario estava incorreta. Nas palavras de Michelson: The result of the hypothesis of a stationary ether is thus shown to be incorrect, and the necessary conclusion follows that the hypothesis is erroneous.

Detalhes Matem´ aticos: A hip´ otese de Michelson Seja V a velocidade da luz, v a velocidade da Terra em rela¸c˜ao ao ´eter, D a distˆ ancia entre dois pontos, d a distˆ ancia que a Terra viaja enquanto o feixe de luz se propagaga de um ponto a outro, e d1 a distˆancia que a terra viaja quando a luz se propaga na dire¸c˜ao contr´aria. Suponha que a linha que une dois pontos coincida com a dire¸c˜ao do movimento da terra, com T o tempo necess´ ario para a luz passar de um ponto a outro, e T1 o tempo necess´ ario para realizar o trajeto inverso. Nesse caso T = D+d = vd ; V d1 D−d ario para que um fecho de luz realize e T1 = V = v . O tempo necess´ o movimento de ida e volta ´e T + T1 = 2D V 2V−v2 . Todavia, se a luz viaja em uma dire¸c˜ ao perpendicular ao movimento da terra, sua velocidade n˜ao ser´ a afetada por esse movimento e o tempo total reduz-se a 2 D V = 2T0 . A diferen¸ca entre os tempos de ida e volta nos dois casos vale   1 1 v2 − = τ τ = 2DV 2 2 , T + T1 − 2T0 = 2DV 2 2 2 V −v V V (V − v 2 ) 2

ou aproximadamente 2T0 Vv 2 . No tempo τ a luz viaja a distˆancia V τ = 2 2 2V T0 Vv 2 = 2D Vv 2 , ou seja, a distˆ ancia real que a luz viaja no primeiro caso 2 ´e 2D Vv 2 maior do que no segundo. 2 Considerando apenas a velocidade da terra em sua ´orbita, a raz˜ao Vv 2 vale 1 aproximadamente 100 000 000 milimetros, ou em termos do comprimento de onda da luz amarela 2.000.000 unidades. Em termos da mesma unidade, 2 4 a distˆ ancia real que a luz viaja no primeiro caso vale 2D Vv 2 = 100 . A precis˜ ao dos resultados de Michelson foi contestada por v´arios pesquisadores, como Lorentz23 , o que o levou a aperfei¸coar seu experimento. Em 1887, 23 De

l’Influence du Mouvement de la Terre sur les Phen, Lum. Archives N´ eerlandaises

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A Teoria da Relatividade Especial

contando com a colabora¸c˜ ao de E. Morley, Michelson publicou novos resultados obtidos com um aparato experimental onde as incertezas eram menores do que as anteriormente obtidas24 . Nesse experimento, conhecido como Experimento de Michelson-Morley, estabeleceu-se que a velocidade da Terra em rela¸ca˜o ao ´eter n˜ ao podia ser maior que 5 km/s, o que era incompat´ıvel com a teoria de propaga¸c˜ ao da luz aceita na ´epoca. Mais do que isso, os resultados de Michelson-Morley sugeriam que a id´eia de que o ´eter se comportava como um referencial privilegiado para as equa¸c˜ oes de Maxwell teria que ser descartado. O Experimento de Michelson-Morley foi objeto de in´ umeros testes e vers˜oes mais modernas25 utilizando lasers permitem determinar uma anisotropia na velocidade da luz da ordem de 10−17 , o que corresponde a uma velocidade da Terra em rela¸c˜ ao ao ´eter da ordem de 10−9 m/s. Ao contr´ ario do que se possa pensar, o resultado obtido por Michelson e Morley n˜ ao significou o fim da teoria do ´eter. Muitos pesquisadores renomados, dentre os quais George FitzGerald, Oliver Lodge, Oliver Heaviside e Heinrich Hertz buscavam alternativas que pudessem conciliar as propostas de Maxwell e a teoria ondulat´ oria, que intr´ınsecamente envolvia o conceito do ´eter. Assim, G. FitzGerald, publicou uma curta nota26 em 1889, com o claro intuito de reconciliar os experimentos de Michelson-Morley e a teoria do ´eter. FitzGerald propˆ os que o comprimento dos corpos muda de uma quantidade que depende do quadrado da raz˜ ao entre sua velocidade e a velocidade da luz, nas palavras do autor: ... the length of material bodies changes, according as they are moving through the ether or across it, by an amount depending on the square of the ratio of their velocity to that of light. O trabalho de FitzGerald foi posteriormente aperfei¸coado por H. A. Lorentz27 e expresso matematicamente como um conjunto de rela¸c˜ oes conhecidas como Transforma¸c˜oes de Lorentz, que para um sistema com velocidade relativa v na dire¸c˜ao x tem a forma: 0  t = γ t − v cx2    x0 = γ (x − vt) (2.4)  y0 = y    0 z =z onde γ =

q 1 2 1− vc2

´e chamado fator de Lorentz.

xxi, 2me livr. (1886). 24 On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether, American Journal of Science 34, 333 (1887), dispon´ıvel em http://www.aip.org/history/exhibits/gap/ PDF/michelson.pdf. 25 S. Herrmann, A. Senger, K. M¨ ohle, M. Nagel, E. V. Kovalchuk, and A. Peters, Rotating optical cavity experiment testing Lorentz invariance at the 10−17 level, Phys. Rev. D 80, 105011 (2009). 26 The Ether and the Earth’s Atmosphere, Science 13, 390 (1889), dispon´ ıvel em http: //www.archive.org/details/science131889mich. 27 Simplified Theory of Electrical and Optical Phenomena in Moving Systems, Proceedings of the Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences 1, 427 (1899), dispon´ıvel em http: //www.dwc.knaw.nl/DL/publications/PU00014571.pdf.

2.2 A proposta de Einstein

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Um dos aspectos mais importantes relacionados a essas rela¸c˜oes ´e o fato de que as Equa¸c˜ oes de Maxwell s˜ ao invariantes por uma Transforma¸c˜ao de Lorentz, ou seja, os aspectos f´ısicos observados em diferentes referenciais inerciais n˜ ao se alteram. Note, ainda, que ao contr´ario da proposta de Galileu, o tempo medido em referenciais em movimento relativo n˜ao ´e necessariamente o mesmo, ou em outras palavras, o conceito de tempo absoluto n˜ao existe nessa teoria. Como esse conceito ´e contr´ ario ` a intui¸c˜ao cl´assica, Lorentz assumiu a existˆencia de um tempo absoluto, definido em termos de um sistema de coordenadas absoluto e um tempo medido em referˆenciais em movimento, chamado por ele de tempo local. Quer saber mais? Novamente a velocidade da luz Recentemente, um grupo de pesquisadores, utilizando o European Synchrotron Radiation Facility, encontraram um novo limite para a isotropia da velocidade da luz. Utilizando o que poder´ıamos chamar de um interferˆ ometro sofisticado, eles determinaram que a velocidade da luz n˜ao depende da dire¸c˜ ao pelo menos em um parte em 1014 , isto ´e, a velocidade da luz n˜ ao apresenta varia¸c˜ oes maiores do que 0,000000000001%. Veja o trabalho completo em http://arxiv.org/abs/1004.2867.

2.2

A proposta de Einstein

Assim como FitzGerald e Lorentz, no in´ıcio do s´eculo XX, diversos cientistas, como Poincar´e e Bucherer, buscavam uma forma de reconciliar as Equa¸c˜ oes de Maxwell, a Teoria Ondulat´ oria e os muitos experimentos derivados de tais tentativas. Em 1905, Einstein apresentou sua contribui¸c˜ao sobre o tema em um longo trabalho28 com sua interpreta¸c˜ao das teorias e resultados dispon´ıveis. Logo em seu segundo par´ agrafo, o trabalho de Einstein j´a explicita claramente a quebra do paradigma aceito at´e ent˜ao: ... o insucesso dos experimentos feitos para detectar qualquer movimento da Terra em rela¸c˜ ao ao ´eter sugere que os fenˆ omenos da Eletrodinˆ amica, tal como os da Mecˆ anica, n˜ ao apresentam nenhuma propriedade que corresponda a id´eia de repouso absoluto. Ao contr´ ario, eles sugerem que em todos os sistemas de coordenadas em que ´ s˜ ao v´ alidas as Equa¸c˜ oes da Mecˆ anica tamb´em s˜ ao v´ alidas as Leis Opticas e Eletrodinˆ amicas. Vamos elevar ` a categoria de postulado essa conjectura (que chamaremos daqui em diante Princ´ıpio da Relatividade); vamos, al´em disso, introduzir o postulado - s´ o aparentemente incompat´ıvel com o primeiro - de que a luz, no v´ acuo, se propaga com velocidade determinada, independente do estado de movimento da fonte de luz. Estes dois postulados s˜ ao suficientes para construir uma eletrodinˆ amica dos corpos em movimento, simples e livre 28 Zur Elektrodynamik bewegter K¨ orper, Annalen der Physik 322, 891 (1905), dispon´ıvel em http://www.archive.org/stream/annalenderphysi108unkngoog# page/n1021/mode/1up.

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A Teoria da Relatividade Especial

de contradi¸c˜ oes. A introdu¸c˜ ao de um “´eter” se revelar´ a sup´erfluo, uma vez que para a teoria que vamos desenvolver n˜ ao necessitamos introduzir um “espa¸co em repouso absoluto”, nem atribuir um vetor velocidade a um ponto do espa¸co vazio no qual o processo eletromagn´etico ocorre.29 A proposta de Einstein pode ser simplificada em dois postulados: 1. Postulado (ou Princ´ıpio) da Relatividade: as Leis da F´ısica tˆem a mesma forma em todos os referenciais inerciais; 2. Postulado da constˆ ancia da velocidade da luz: a velocidade da luz no v´ acuo ´e uma constante universal que independe do movimento de sua fonte. Esses dois postulados s˜ ao a base do que hoje denominamos Teoria da Relatividade Especial ou Restrita. Al´em desses dois postulados, Einstein indicou claramente que a transforma¸c˜ ao de coordenadas e tempos de um referencial estacion´ ario para outro referencial em movimento uniforme em rela¸c˜ao ao primeiro obedecia as Transforma¸c˜ oes de Lorentz (Equa¸c˜ao 2.4). Quer saber mais? Por tr´ as da Relatividade Em seu trabalho A f´ısica cl´ assica de cabe¸ca para baixo: Como Einstein descobriu a teoria da relatividade especial, J¨ urgen Renn relata os eventos que culminaram com a introdu¸c˜ ao da Relatividade. Veja o trabalho completo em http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/renn.pdf.

2.3

Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

O primeiro postulado ´e uma generaliza¸c˜ ao do Princ´ıpio de Relatividade de Galileu, j´ a que inclui todos os fenˆ omenos e n˜ ao apenas os Mecˆanicos. Ele implica na inexistˆencia de um referencial inercial privilegiado. Isso significa 29 Tradu¸ c˜ ao livre do autor para o original em alem˜ ao: sowie die mißlungenen Versuche, eine Bewegung der Erde relativ zum ’Lichtmedium’ zu konstatieren, f¨ uhren zu der Vermutung, daß dem Begriffe der absoluten Ruhe nicht nur in der Mechanik, sondern auch in der Elektrodynamik keine Eigenschaften der Erscheinungen entsprechen, sondern daß vielmehr f¨ ur alle Koordinatensysteme, f¨ ur welche die mechanischen Gleichungen gelten, auch die gleichen elektrodynamischen und optischen Gesetze gelten, wie dies f¨ ur die Gr¨ oßen erster Ordnung bereits erwiesen ist. Wir wollen diese Vermutung (deren Inhalt im folgenden ’Prinzip der Relativit¨ at’ genannt werden wird) zur Voraussetzung erheben und außerdem die mit ihm nur scheinbar unvertr¨ agliche Voraussetzung einf¨ uhren, daß sich das Licht im leeren Raume stets mit einer bestimmten, vom Bewegungszustande des emittierenden K¨ orpers unabh¨ angigen Geschwindigkeit V fortpflanze. Diese beiden Voraussetzungen gen¨ ugen, um zu einer einfachen und widerspruchsfreien Elektrodynamik bewegter K¨ orper zu gelangen unter Zugrundelegung der Maxwellschen Theorie f¨ ur ruhende K¨ orper. Die Einf¨ uhrung eines ’Licht¨ athers’ wird sich insofern als u ¨berfl¨ ussig erweisen, als nach der zu entwickelnden Auffassung weder ein mit besonderen Eigenschaften ausgestatteter ’absolut ruhender Raum’ eingef¨ uhrt, noch einem Punkte des leeren Raumes, in welchem elektromagnetische Prozesse stattfinden, ein Geschwindigkeitsvektor zugeordnet wird.

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

Miotto e Ferraz

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que nenhum experimento pode medir ou detectar o movimento uniforme do sistema de referˆencia utilizado. J´ a o segundo postulado indica que a velocidade da luz (c) ´e constante em qualquer referencial inercial. Dessa forma a luz se propagando no v´ acuo passa a ter propriedades comuns a outras ondas mecˆ anicas, como o som, por exemplo. O segundo postulado de Einstein, apesar de tamb´em parecer bastante razo´ avel, apresenta consequˆencias surpreendentes que contradizem o senso comum. Considere, por exemplo, uma fonte de luz L e dois observadores O1 , em repouso em rela¸c˜ ao a L, e O2 , em movimento em rela¸c˜ao a L com uma dada velocidade v. A velocidade da luz emitida pela fonte medida a partir do referencial O1 vale c ' 3.108 m/s. Utilizando os conceitos de velocidade relativa da Mecˆ anica Cl´ assica, esperamos que o valor da velocidade da luz emitida pela fonte medida a partir do referencial em movimento O2 seja v + c. Observe que, como um sistema no qual o observador O2 est´a em repouso e a fonte L e o observador O1 est˜ ao em movimento, do ponto de vista de O2 ´e a fonte que est´ a em movimento. Se levarmos agora em considera¸c˜ao o postulado da constˆ ancia da velocidade da luz que ´e claro ao dizer que c independe do movimento de sua fonte, temos imediatamente que a velocidade medida a partir de O2 tamb´em deve ser c. Se a velocidade da luz medida a partir de dois referenciais em movimento relativo ´e a mesma, isso significa que n˜ ao podemos perceber o movimento absoluto. Mais do que isso, Einstein sugere que nenhuma experiˆencia poder´ a medir ou detectar o movimento uniforme do sistema de referˆencia utilizado, o que ´e coerente com as propostas de Galileu e Newton nas quais se baseiam a Mecˆ anica Cl´ assica. Vamos analisar outro exemplo sugerido por Einstein30 . Considere uma sala em movimento com dois observadores: um posicionado dentro da sala (observador interno) e outro fora dela (observador externo). Um sinal luminoso ´e emitido do centro da sala e pergunta-se aos dois o que esperam observar considerando apenas os postulados propostos por Einstein. Citamos suas respostas: Observador interno: O sinal luminoso que caminha do centro da sala atingir´ a as paredes simultaneamente. Isso significa que todas as paredes est˜ao equidistantes da fonte de luz e a velocidade da luz ´e a mesma em todos as dire¸c˜ oes. Observador externo: Em meu sistema, a velocidade da luz ´e exatamente a mesma que a medida pelo observador que se move com a sala. N˜ao me importa se a fonte de luz se move ou n˜ ao em meu referencial, seu movimento n˜ao influi sobre a velocidade da luz. O que vejo ´e um sinal luminoso caminhando com uma velocidade padr˜ ao idˆentica em todas as dire¸c˜oes. Um das paredes se afasta do sinal e a parede oposta aproxima-se dele. Logo, a parede que se afasta ser´ a atingida pelo sinal um pouco mais tarde do que a parede que se aproxima. Embora a diferen¸ca seja diminuta se a velocidade da sala for pequena em compara¸c˜ ao com a velocidade da luz, o sinal luminoso n˜ao atingir´a 30 A. Einstein e L. Infeld, A Evolu¸ ca ˜o da F´ısica, tradu¸c˜ ao de Giasone Rebu´ a, Quarta Edi¸c˜ ao, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980, p. 146-147.

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Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

simultaneamente as duas paredes opostas, perpendiculares `a dire¸c˜ao do movimento. Mais do que isso, as paredes paralelas ` a dire¸ca˜o do movimento tamb´em n˜ ao ser˜ ao atingidas no mesmo instante que as paredes perpendiculares, mesmo que todas estejam dispostas simetricamente em rela¸c˜ao ao centro da sala. Comparando as previs˜ oes de nossos dois observadores, encontramos um resultado que contradiz frontalmente os conceitos aparentemente bem fundamentados da Mecˆ anica Cl´ assica. Dois acontecimentos, no caso os dois raios de luz atingirem as paredes, s˜ ao simultˆ aneos para o observador interno, mas n˜ao para o observador externo. Na Mecˆ anica Cl´ assica t´ınhamos um rel´ogio, um escoamento do tempo, para todos os observadores em todos os referenciais. O tempo, e, portanto, palavras como simultaneamente, mais cedo e mais tarde, tinham um significado absoluto, independente de qualquer referencial. Dois acontecimentos que ocorressem ao mesmo tempo em um referencial, necessariamente ocorreriam simultaneamente em qualquer outro referencial. Os postulados de Einsten nos for¸cam a abandonar esse ponto de vista. Descrevemos dois acontecimentos ocorrendo ao mesmo tempo em um referencial, mas em instantes diferentes em outro referencial. Isso significa que dois observadores inerciais em movimento relativo discordam se dois acontecimentos que tenham ocorrido em lugares diferentes s˜ ao simultˆ aneos ou n˜ ao.

2.3.1

A dilata¸c˜ ao temporal

Mas como explicar esse aparente paradoxo? Para abordar esse problema, considere um exemplo similar ao sugerido por Einstein31 no qual dois espelhos A e B est˜ ao dispostos paralelamente, separados por uma Figura 2.5: Representa¸c˜ao esquem´atica de dois distˆ ancia d, conforme es- espelhos, A e B, separados por uma distˆancia quema ao lado. Um obser- d e de um observador O em repouso (esquerda) vador O determina o tempo e em movimento (direita). necess´ ario para que um flash de luz, que viaja em linha reta com velocidade c, efetue o movimento de ida e volta entre os dois espelhos, tal qual o tic-tac de um rel´ogio. No esquema `a esquerda, o observador O est´ a em repouso, o que nos permite escrever a distˆ ancia entre os espelhos d em termos do intervalo de tempo que a luz leva para viajar de A para B (t0 ) e da velocidade da luz: c=

d → d = ct0 . t0

31 Relativity: The Special and General Theory, traduzido por Robert W. Lawson, Methuen and Company, London, revised edition 1924.

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

Miotto e Ferraz

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Agora vamos nos concentrar no caso em que o observador O viaja com velocidade v. Nesse caso, como exemplificado no esquema `a direita, o observador ver´ a, ap´ os um certo intervalo de tempo 2t, o flash de luz refletido por B. Nesse caso, o raio de luz viaja uma distˆ ancia de A para B maior do que d. Como a velocidade da luz ´e constante, essa distˆ ancia vale ct. Nesse mesmo intervalo de tempo t, o observador O ter´ a se deslocado vt em rela¸c˜ao `a sua posi¸c˜ao inicial. Do triˆ angulo retˆ angulo formado, temos c2 t2 = v 2 t2 + c2 t02 , ou seja,

02

t =t

2



v2 1− 2 c



0

→t =t

s

 v2 1− 2 . c

(2.5)

Observe que a equa¸c˜ ao acima indica que os tempos medidos em diferentes referenciais em movimento relativo n˜ ao s˜ ao idˆenticos. A express˜ao acima indica que o tempo medido por um observador em repouso (t0 ) ´e menor do que aquele medido por um observador em movimento (t). Em outras palavras, rel´ogios que se deslocam em rela¸c˜ ao a um referencial inercial andam mais devagar. Esse efeito ´e conhecido como dilata¸ c˜ ao temporal e pode ser enunciado como: dois observadores em movimento relativo medem tempos diferentes para o mesmo acontecimento e para os intervalos entre dois acontecimentos. N˜ao se trata de uma ilus˜ ao, mas de um efeito f´ısico real decorrente da n˜ao simultaniedade de eventos em referenciais em movimento relativo. Note que nos eventos cotidianos, a dilata¸c˜ao temporal n˜ao pode ser percebida, pois as velocidades dos objetos que nos cercam s˜ao muito menores do que a velocidade da luz. Considere, por exemplo, o movimento transla¸c˜ao da Terra em torno do Sol. Nosso planeta realiza esse movimento com uma velocidade m´edia de aproximadamente 30 km/s, o que ´e extremamente alta para nossos padr˜ oes32 . Apesar de parecer muito grande, a velocidade de transla¸c˜ao 2 da Terra resulta em um raz˜ ao vc2 = 10−8 ! Considere dois observadores, um na Terra e outro no Sol. Para que a diferen¸ca nos rel´ogios dos dois observadores fosse de 1 segundo, ter´ıamos que esperar cerca de 108 segundos, ou seja, milhares de dias! Para que a dilata¸c˜ ao temporal fosse percept´ıvel, os objetos deveriam moverse a grandes velocidades. Apenas algumas part´ıculas naturais, como os m´ uons33 , por exemplo, que s˜ ao raios c´ osmicos, possuem velocidades compar´aveis `a velocidade da luz. Os m´ uons viajam com velocidade m´edia em torno de 0,9992c, o que torna poss´ıvel verificar efeitos relativ´ısticos. 32 Como compara¸ c˜ ao, considere a nave New Horizon desenvolvida pela Nasa para atingir Plut˜ ao. A New Horizon atingiu uma velocidade m´ axima de aproximadamente 16 km/s, sendo considerada um dos objetos mais velozes concebidos pelo homem. Confira a trajet´ oria da New Horizon em www.nasa.gov. 33 No modelo padr˜ ao da f´ısica de part´ıculas, o m´ uon ´ e uma part´ıcula elementar similar ao el´ etron, com carga el´ etrica negativa unit´ aria e spin 12 .

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A Teoria da Relatividade Especial

Quer saber mais? Comprova¸ c˜ ao experimental da dilata¸ c˜ ao temporal Uma comprova¸c˜ ao experimental da dilata¸c˜ ao temporal foi obtida por Hafele e Keatinga . Durante outubro de 1971, Hafele e Keating utilizaram quatro rel´ ogios atˆ omicos transportados em vˆ oos comerciais, com velocidades m´edias de 900 km/h, em rotas ao redor do mundo a oeste e a leste e compararam suas medidas com rel´ ogios de referˆencia montados no U.S. Naval Observatory. Observe que os rel´ ogios de referˆencia n˜ao est˜ao de fato parados, mas sim em movimento, devido ` a rota¸c˜ ao da Terra. Os rel´ogios de referˆencia est˜ ao no paralelo 39◦ , o que significa que eles percorreram uma trajet´ oria de cerca de 31.000 km em aproximadamente 24 horas, ou seja, viajam com uma velocidade de aproximadamente 1.300 km/h. Considere inicialmente o avi˜ ao voando na dire¸c˜ ao oeste, ou seja, contr´aria a rota¸c˜ ao da Terra. A velocidade relativa rel´ ogio no avi˜ao/rel´ogio de referˆencia ´e v = 1300 + 900 = 2200 km/h. No experimento de Hafele e Keating o avi˜ ao, viajando a aproximadamente de 900 km/h demora cerca de t = 31000 ' 31,4 horas ou 124.000 segundos para completar a volta em 900 torno da Terra. Assim, a Equa¸c˜ ao 2.5 tem a forma s 0

t = 124.000

1−



1.3002 (3,6 × 3 × 108 )2

s

 −

1−



2.2002 (3,6 × 3 × 108 )2

!

= 170 × 10−9 s.

Observe que o valor acima ´e uma aproxima¸c˜ ao, pois arredondamos os n´ umeros de forma a facilitar os nossos c´ alculos. Os valores previstos por Hafele e Keating a partir da Teoria da Relatividade Restrita indicam uma varia¸ca˜o de 275(±21) nanosegundosb compar´ aveis aos 273(±7) nanosegundos obtidos considerando-se a m´edia de mais de 5.000 observa¸c˜oes experimentais. Agora ´ e com vocˆ e! Estime o valor previsto para a varia¸c˜ ao no rel´ ogio colocado no avi˜ ao que viaja para leste e compare com o resultado experimental de 59(±10) nanosegundos e com o valor por eles estimado de 40(±23). Nesse caso, o desvio em rela¸c˜ ao ao valor experimental ´e um pouco maior do que o observado no caso anterior. Vocˆe saberia dizer o por quˆe? a Around-the-World Atomic Clocks: Predicted Relativistic Time Gains, Science 177, 166 (1972). b 1 nanosegundo = 1 × 10−9 segundos

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

2.3.2

Miotto e Ferraz

21

O Paradoxo dos Gˆ emeos

Em um trabalho de 1911, Einstein34 sugeriu que suas observa¸c˜oes relativas a dilata¸c˜ ` ao temporal tamb´em se aplicam a organismos vivos35 : Se considerarmos, por exemplo, um organismo vivo contido em uma caixa e aplicarmos as mesmas condi¸c˜ oes observadas anteriormente para os rel´ ogios humanos, ´e poss´ıvel que o organismo retorne ao seu local de origem de um vˆ oo arbitrariamente longo com pequenas modifica¸c˜ oes em rela¸c˜ ao ao seu estado original, enquanto organismos semelhantes mantidos no local de partida j´ a deram espa¸co a novas gera¸c˜ oes h´ a muito tempo. Se o movimento ocorreu a velocidade pr´ oxima da luz, o longo per´ıodo contabilizado por seus semelhantes no local de origem, para o viajante nada mais representou do que um breve instante! Essas s˜ ao as consequˆencias irrefut´ aveis dos princ´ıpios por n´ os estabelecidos e que a experiˆencia nos imp˜ oe. Com base nessas conjecturas, Langevin 36 propˆos um experimento mental que classificou como singular e que modernamente denominamos Paradoxo dos Gˆ emeos. Ao inv´es de discut´ı-lo na sua forma original, vamos apresentar uma vers˜ ao mais aplic´ avel ao nosso cotidiano. As transforma¸c˜ oes de Lorentz possuem uma simetria com rela¸c˜ao `a dire¸c˜ao da velocidade do observador. Se invertermos apenas o sentido da velocidade, ou seja, considerarmos ~v → −~v , as transforma¸c˜oes de Lorentz n˜ao se alteram. Este fato est´ a associado com a equivalˆencia entre observadores inerciais. Descrever o afastamento de um observador B com velocidade ~v com rela¸c˜ao a um observador A parado ´e equivalente a descrever o observador B parado e A se movendo com velocidade −~v . No entanto, a passagem de tempo depende do estado de movimento do observador, logo, poder´ıamos fazer a seguinte pergunta: se dois gˆemeos s˜ ao separados, um permanecendo na Terra e o outro sendo levado para viajar numa espa¸conave com velocidade compar´avel a da luz durante alguns anos terrestres, ao retornar `a Terra como ser´a a rela¸c˜ao entre as idades dos dois gˆemeos? Considere, por exemplo, o caso em que um dos gˆemeos fez uma viagem de ida e volta a um determinado local. Essa viagem teve a dura¸c˜ao de 1 ano medida pelo gˆemeo no referencial da Terra, e foi feita a uma velocidade m´edia 34 Die Relativit¨ ats-Theorie, Naturforschende Gesellschaft, Z¨ urich, Vierteljahresschrift 56, 1 (1911), dispon´ıvel em http://www.archive.org/stream/ vierteljahrsschr56natu#page/1/mode/1up. 35 Tradu¸ c˜ ao livre do autor para o original em alem˜ ao ... Wenn wir z. B. einen lebenden Organismus in eine Schachtel hineinbr¨ achten und ihn dieselbe Hin- und Herbewegung ausf¨ uhren liessen wie vorher die Uhr, so k¨ onnte man es erreichen, dass dieser Organismus nach einem beliebig langen Fluge beliebig wenig ge¨ andert wieder an seinen urspr¨ unglichen Ort zur¨ uckkehrt, w¨ ahrend ganz entsprechend beschaffene Organismen, welche an den urspr¨ unglichen Orten ruhend geblieben sind, bereits l¨ angst neuen Generationen Platz gemacht haben. F¨ ur den bewegten Organismus war die lange Zeit der Reise nur ein Augenblick, falls die Bewegung ann¨ ahernd mit Lichtgeschwindigkeit erfolgte! Dies ist eine unabweisbare Konsequenz der von uns zugrunde gelegten Prinzipien, die die Erfahrung uns aufdr¨ angt. 36 L’Evolution ´ de l’espace et du temps, Scientia 10, 31 (1911), dispon´ıvel em http://fr. wikisource.org/wiki/L’volution_de_l’espace_et_du_temps.

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Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

de 0,8c. Utilizando a equa¸c˜ ao 2.5, ´e imediato que r 0

t =1 1−

(0,8c)2 3 = anos, c2 5

ou seja, para o gˆemeo que viaja, passaram-se apenas 3/5 do tempo! Em outras palavras, a dilata¸c˜ ao temporal indica que o gˆemeo que viajou com velocidade compar´ avel a da luz est´ a mais jovem do que o gˆemeo que permaneceu na Terra. Se levarmos, agora, em considera¸c˜ ao a simetria das Transforma¸c˜oes de Lorentz, poder´ıamos dizer que do ponto de vista do gˆemeo no foguete, ´e a Terra quem se move a uma velocidade de 0,8c, enquanto ele permanece parado. No seu referencial ´e o gˆemeo terrestre quem deveria ser mais novo, o que nos leva ao paradoxo: qual dos dois irm˜ aos de fato envelheceu mais devagar? A resposta a este aparente paradoxo pode ser dada de diferentes formas37 . Aqui abordaremos apenas uma delas. Embora as transforma¸c˜ oes de Lorentz exibam simetria entre o afastamento dos gˆemeos, ao longo de toda a jornada, existe uma diferen¸ca fundamental entre as duas situa¸c˜ oes: enquanto o gˆemeo terrestre permanece com velocidade constante ao longo de toda a viagem, o gˆemeo viajante ´e acelerado para possibilitar o seu retorno ` a Terra. Esta assimetria rompe com a argumenta¸c˜ao de equivalˆencia entre os gˆemeos. Enquanto o gˆemeo terrestre permanece sempre em um mesmo referencial inercial, o gˆemeo viajante muda de referencial ao longo de sua viagem. De fato, o gˆemeo viajante encontra-se em parte de sua viagem em um referencial n˜ ao inercial, pois ´e acelerado de forma a possibilitar seu retorno ` a Terra. Lembre-se de que o primeiro postulado de Einstein limita claramente a validade de suas propostas para referenciais inerciais.

2.3.3

A contra¸c˜ ao espacial

Em todos os exemplos discutidos, o fato de dois observadores inerciais em movimento relativo discordarem se dois acontecimentos que tenham ocorrido em lugares diferentes s˜ ao simultˆ aneos ou n˜ ao desempenha um papel fundamental na compreens˜ ao dos fenˆ omenos discutidos. Ocorre que a influˆencia dessa n˜ ao simultaniedade n˜ ao se limita ` as medidas temporais. Considere, por exemplo, o ato de medir o comprimento de um corpo. Se o objeto est´ a em repouso em rela¸c˜ ao ao observador, o ato de medir pode ser feito simplesmente colocando ao lado do objeto um padr˜ ao para sua determina¸c˜ao. Por outro lado, se o objeto estiver em movimento, uma poss´ıvel estrat´egia seria adotar um eixo coordenado, como o representado na figura ao lado, e medir os intervalos de tempo nos quais o objeto passa por um determinado ponto de referˆencia, no caso o eixo y. Sabendo a velocidade e o tempo necess´ario para que o objeto passe pelo ponto de referˆencia, obt´em-se seu comprimento. 37 Veja, por exemplo, Paul A. Tipler e Ralph Al. Llwellyn, F´ ısica Moderna, tradu¸ca ˜o Ronaldo S´ ergio Biasi, LTC Editora, Rio de Janeiro, 2001, p. 33.

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

Miotto e Ferraz

23

Ocorre que, devido a n˜ ao simultaniedade, observadores em diferentes referenciais inerciais podem n˜ ao concordar sobre o instante em que o objeto passa pelo ponto de referˆencia, ou seja, em diferentes referenciais os eventos de medi¸c˜ ao s˜ ao n˜ ao simultˆ aneos. Isso significa que a Figura 2.6: Representa¸c˜ao esquem´atica de medida do comprimento do ob- duas poss´ıveis formas de se medir um objeto n˜ ao ´e u ´nica, mas depende do jeto. Para um objeto em repouso, colocareferencial38 . mos um padr˜ao ao seu lado. J´a para um Vamos agora estimar o valor objeto em movimento, adotamos um eixo dessa varia¸c˜ ao considerando um coordenado e observamos os intervalos de outro exemplo em que a medida tempo nos quais o objeto passa por um dedo comprimento do objeto ´e feito terminado ponto de referˆencia, no caso o da mesma forma tanto para o re- eixo y. Sabendo a velocidade e o tempo neferencial em repouso quanto para cess´ ario para que o objeto passe pelo ponto o referencial em movimento. Su- de referˆencia, obt´em-se seu comprimento. ponha que em um dado referencial, P 0 , o objeto, no caso uma barra, encontra-se em repouso, com uma das suas extremidades na posi¸c˜ ao x01 e a outra na posi¸c˜ao x02 . Nesse caso, podemos medir o comprimento da barra em um dado instante t0 qualquer atrav´es da rela¸c˜ ao Lp = x02 −x01 . Considere, agora, um outro referencial S, em movimento em rela¸c˜ ao a P 0 com velocidade v. Se utilizarmos o mesmo procedimento para medir a barra, seu comprimento no referencial S ´e dado por L = x2 − x1 , onde x1 ´e a posi¸c˜ ao de uma das extremidades da barra no instante t1 e x2 ´e a posi¸c˜ ao da outra extremidade medida no mesmo instante t2 = t1 = t. Como P 0 e S est˜ ao em movimento relativo, a n˜ ao simultaniedade prevˆe que os tempos medidos nos dois referenciais t0 e t n˜ ao s˜ ao idˆenticos. Vamos agora, com o aux´ılio das Transforma¸c˜ oes de Lorentz (equa¸c˜ao 2.4) relacionar as posi¸c˜oes das extremidades das barras nos dois referenciais: ( x02 = γ (x2 − vt) x01 = γ (x1 − vt) , com γ =

q 1 2 1− vc2

. Subtraindo as duas equa¸c˜ oes temos x02 − x01 = γ(x2 − x1 ),

38 Como discutido anteriormente, essa constata¸ c˜ ao ´ e consistente com a proposta de FitzGerald segundo a qual o comprimento dos corpos muda de uma quantida que depende do quadrado do raz˜ ao entre sua velocidade e a velocidade da luz, necess´ aria para explicar o ´ Experimento de Michelson-Morley no contexto da Teoria do Eter.

24

Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

ou seja r Lp = γL −→ L =

v2 1− 2 c

! Lp .

(2.6)

Como do ponto de vista do observador em S ´e o objeto que est´a se movendo, essa express˜ ao equivale a dizer que o comprimento de um objeto ´e menor quando ele ´e medido em um referencial em que ele se encontre em movimento. Essa consequˆencia dos Postulados de Einstein ´e conhecida como contra¸ c˜ ao espacial ou contra¸ c˜ ao de Lorentz-FitzGerald. ´ importante salientar que a contra¸c˜ E ao espacial s´o se verifica na dire¸c˜ao do movimento relativo entre o referencial e o objeto. Assim, se considerarmos, por exemplo, um quadrado em movimento de tal forma que dois de seus lados est˜ ao posicionados na dire¸c˜ ao do movimento e dois na dire¸c˜ao perpendicular a do movimento, a contra¸c˜ ao s´ o se verificaria nos lados paralelos `a dire¸c˜ao do movimento e sua forma final seria a de um retˆ angulo. Se o quadrado estiver posicionado de tal forma que suas faces formam um ˆ angulo em rela¸c˜ao `a dire¸c˜ao de movimento, n˜ ao s´ o suas faces ser˜ ao deformadas, mas tamb´em os ˆangulos internos deixar˜ ao de ter 90◦ . Agora ´ e a sua vez: Verifique que um quadrado cujo lado A forma um ˆangulo de 30◦ em rela¸c˜ ao ` a dire¸c˜ ao x ser´ a visto como um paralelogramo com lados 0,901A e 0,968A, cujos lados menores fazem um ˆangulo de 33,7◦ em rela¸ca˜o a` dire¸c˜ ao x0 quando visto de um referencial que se move a uma velocidade v = 0,5c. Quer saber mais? Os m´ uons, um exemplo da dilata¸ c˜ ao temporal e contra¸ c˜ ao espacial Um exemplo interessante que ilustra a dilata¸ca ˜o temporal e a contra¸c˜ ao espacial est´ a relacionado ao decaimento de m´ uons que se formam na atmosfera a partir dos chamados chuveiros de raios c´ osmicosa . Os m´ uons decaem de acordo com a lei estat´ısica da radiotividade N (t) = No e−τ /r , onde No ´ e o n´ umero de m´ uons no instante t = 0, N (t) o n´ umero de m´ uons no instante t e τ o tempo m´ edio de vida, que no caso dos m´ uons ´ e de aproximadamente 2 µs. Os m´ uons s˜ ao formados nas camadas superiores da atmosfera, aproximadamente 10 km acima do n´ıvel do mar. Um m´ uon t´ıpico, com uma velocidadesde 0,998c, percorreria apenas 600 m em 2 µs. Ocorre que tais part´ıculas s˜ ao detect´ aveis na superf´ıcie terrestre e mesmo abaixo do n´ıvel do marb . A explica¸c˜ ao desse aparente paradoxo est´ a na dilata¸ ao temporal: para um observador qc˜ 2 e o na Terra, o m´ uon tem um tempo de vida t0 = t 1 − vc2 = 30 µs. Esse tempo ´ suficiente para que o m´ uon, que tem velocidade 0,998c, percorra cerca de 9.000 metros antes de decair quando visto do referencial da terra. a O estudo dos chuveiros c´ osmicos foi de fundamental importˆ ancia no desenvolvimento da f´ısica no Brasil. Grandes pesquisadores como C´ esar Lattes, Marcelo Damy, Gleb Wataghin, e Paulus Pomp´ eia, dedicaram parte de suas carreiras a essa importante ´ area. S˜ ao dignos de nota os trabalhos de Wataghin, Dami e Pomp´ eia sobre o componente penetrante da radia¸c˜ ao c´ osmica (Phys. Rev. 59, 902 (1941)) e o estabelecimento da existˆ encia do m´ eson-π por Lattes (Nature 159, 694 (1947)). b Em 1947, Wataghin, Damy e Pomp´ eia relataram em seu trabalho a detec¸c˜ ao de tais part´ıculas a profundidades equivalentes a 60 m abaixo do n´ıvel do mar!

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

2.3.4

Miotto e Ferraz

25

Dinˆ amica relativ´ıstica

Na se¸c˜ ao 2.1.1 O Conceito Mecˆ anico vimos que as Leis de Newton s˜ ao invariantes (equivalentes) em rela¸c˜ ao ` a Transforma¸c˜ao de Galileu. Isso ~ significa que a Segunda Lei de Newton F = m~a ´e v´alida em qualquer referencial inercial, ou seja, a acelera¸c˜ ao ~a medida em um dado referencial deve ser igual a uma acelera¸c˜ ao a~0 medida em outro referencial inercial em movimento relativo em rela¸c˜ ao ao primeiro. Por outro lado, segundo os Postulados de Einstein, o tempo e o espa¸co medidos em diferentes referenciais inerciais em movimento relativo n˜ ao s˜ ao iguais, o que implica que as velocidades e acelera¸c˜ oes tamb´em n˜ ao o ser˜ ao. Em outras palavras, a Segunda Lei de Newton n˜ ao ´e invariante em rela¸c˜ ao ` a Transforma¸c˜ ao de Lorentz. Dessa forma, faz-se necess´ ario determinarmos uma nova lei de movimento, equivalente `a vers˜ao cl´ assica de Newton, mas tamb´em consistente com os Postulados de Einstein. Para tanto, vamos, inicialmente observar o que ocorre com a velocidade de um corpo quando medida em diferentes referenciais. Transforma¸ c˜ oes de velocidades Considere dois referenciais inerciais S e S 0 , com velocidade relativa ~v = v ˆı na dire¸c˜ ao do eixo x. Nesse caso, as transforma¸c˜oes de Lorentz (equa¸c˜ao 2.4) tem a forma:  0 x = γ (x − vt)   !−1 r  y 0 = y v2 . (2.7) com γ = 1− 2  c z0 = z    0 t = γ t − cv2 x As velocidades, por sua vez, ser˜ ao dadas por:   t xt − v  x0 γ (x − vt) x − vt vx − v  0    v = = = =  x vx v v x = 1 − vvx  t t − γ t − x t 1 −  c2 c2  c2 c2 t  y y 1 vy y0 0 = =  = vy = x  t t γ 1 − cv2 xt γ t − cv2 x γ 1 − vv  c2  0  z z z 1 vz   0 = = ,   vz = t = v v x x t γ 1 − c2 t γ t − c2 x γ 1 − vv c2

(2.8)

onde vα = αt ´e a velocidade na dire¸c˜ ao α com que o um dado objeto se move ´ em rela¸c˜ ao ao referencial S. E importante ressaltarmos que nossa escolha de escrever as posi¸co˜es e velocidades do referencial em movimento S 0 em termos de seus equivalentes no referencial em repouso S n˜ao ´e u ´nica. Poder´ıamos ter feito a transforma¸c˜ ao inversa, isto ´e, verificado como um sistema de referˆencia em repouso se comporta sob a ´ optica de um observador em um sistema de referˆencia em movimento. Por simetria, a transforma¸c˜ao inversa leva ao mesmo conjunto de equa¸c˜ oes, por´em com a velocidade com sinal oposto, j´a que do

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Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

ponto de vista de S 0 ´e o outro referencial que se move na dire¸c˜ao contr´aria. Se considerarmos o exemplo anterior, a velocidade na dire¸c˜ao x, por exemplo, seria escrita como: v0 + v vx = x vv0 . 1 + c2x Observe que as express˜ oes que relacionam as velocidades nos diferentes referenciais tˆem consequˆencias importantes especialmente na determina¸c˜ao das velocidades relativas. Enquanto as Transforma¸c˜ oes de Galileu previam que a velocidade relativa era determinada pela soma alg´ebrica das velocidades (vrel = vA ±vB ), o mesmo n˜ ao ocorre se utilizarmos as express˜oes relativ´ısticas. Considere, por exemplo, que vocˆe est´ a em um foguete, viajando a uma velocidade de 0,5c em rela¸c˜ ao a um referencial qualquer S. Em um determinado instante, vocˆe lan¸ca um objeto a um velocidade 0,5c na mesma dire¸c˜ao em que o foguete viaja. Se aplic´ assemos as Transforma¸c˜ oes de Galileu, a velocidade desse objeto do ponto de vista de S deveria ser c. Todavia, ao utilizarmos as express˜ oes relativ´ısticas, temos vx =

0,5c + 0,5c 1+

(0,5c)2 c2

=

1 1 4 c= c = c, 2 1 + 0,5 1,25 5

ou seja, do ponto de vista relativ´ıstico 0,5c + 0,5c = 54 c! Considere a mesma situa¸c˜ ao, mas agora vocˆe est´ a observando um pulso de luz, que sabemos viajar a uma velocidade c. Nesse caso, para o observador em repouso teremos: c + 0,5c 1,5c vx = 0,5c×c = 1 + 0,5 = c, 1 + c2 o que ´e consistente com o Postulado de Einstein que prevˆe que a velocidade da luz (c) independe da velocidade de sua fonte. Momento e Massa relativ´ıstica Apesar de j´ a sabermos como as transforma¸co˜es de velocidades s˜ ao afetadas pelas transforma¸c˜ oes relativ´ısticas, ainda n˜ ao sabemos quais s˜ ao seus efeitos sobre outras grandezas relacionadas ` a dinˆ amica do sistema, como, por exemplo, o momento. Para verificarmos a dimens˜ ao dessa mudan¸ca, vamos considerar um exemplo com o qual estamos bastante familiarizados: o choque el´ astico entre duas esferas. Considere duas esferas maci¸cas (bolas), idˆenticas quando em repouso, de massa m, que denominaremos A e B por simplicidade, nas m˜ aos de dois

Figura 2.7: Representa¸c˜ao esquem´ atica do choque perfeitamente el´astico de duas esferas idˆenticas.

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

Miotto e Ferraz

27

observadores inerciais S e S 0 , inicialmente em repouso. Suponha39 que os dois observadores arremessem suas bolas com velocidade inicial igual ~v = vo ˆ, quando vistas por eles, conforme esquema na figura 2.7. Note que isso significa que, para cada observador, sua bola tem velocidade +vo e a outra bola tem velocidade −vo . Como os dois observadores est˜ao em repouso, ´e poss´ıvel analisarmos o evento utilizando as Leis de Newton. Antes da colis˜ao, o momento total do sistema ´e nulo. Para que o momento seja conservado, as velocidades de retorno devem ser, em m´ odulo, iguais ` as velocidades originais, ou seja, cada observador ver´ a sua bola retornando com velocidade ~v = −vo ˆ. Por outro lado, caso um dos observadores esteja em movimento relativo em rela¸c˜ ao ao outro com velocidade ~v , a solu¸c˜ ao do problema ´e bem diferente. Isso ocorre porque ao utilizarmos a transforma¸c˜ ao relativ´ıstica das velocidades as bolas n˜ ao ter˜ ao mais as mesmas velocidades. Consideremos, inicialmente, a colis˜ ao do ponto de vista do observador S, como exemplificado ao lado. Neste referencial, a bola A est´a se movendo ao longo do eixo y, com velocidade uy,A = uo e ux,A = 0. J´ a a bola B, do ponto de vista de S, tem uma velocidade w que podemos decompor em uma componente x dada por ux,B = v e uma componente y dada pela transforma¸c˜ ao inversa da rela¸c˜ ao 2.8: r u0y,B v2 −uo = uy,B =  = −uo 1 − 2 . Figura 2.8: Representa¸c˜ao vu0x,B γ c γ 1+ c esquem´atica do choque perfeitamente el´astico de duas Como para v > 0, γ < 1, o valor absoluto da esferas idˆenticas visto a componente y da velocidade da bola B ´e menor partir do observador S do que a componente y da bola A. Isso significa (parte superior) e S 0 (parte que, do ponto de vista de S, a componente y total inferior). do momento cl´ assico n˜ ao ´e nula. Como a componente y das velocidades muda apenas de sinal P em uma colis˜ ao el´ astica, o momento definido classicamente como p~ = m~v n˜ ao ´e conservado no referencial escolhido. Mais uma vez, ao analisarmos o problema partindo do referencial S 0 (parte inferior da figura 2.8) chegaremos ao mesmo resultado, pois a mudan¸ca de referenciais implica apenas na mudan¸ca dos pap´eis das bolas A e B. Se, por um lado, os resultados da Mecˆ anica Cl´assica indicam claramente que o momento p~ ´e conservado no caso de colis˜ oes el´asticas, o exemplo analisado 39 Na an´ alise desse problema escolhemos um sistema de coordenadas conveniente para simplific´ a-lo. Nossa an´ alise n˜ ao mudaria se tiv´ essemos escolhido outro sistema de coordenadas, pois a conserva¸ca ˜o do momento continuaria v´ alida.

28

Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

sugere que isso s´ o ocorrer´ a quando a velocidade v tende a zero, pois nesse caso uy,B ' uy,A = uo . Observe que a igualdade s´ o existe quando v ≡ 0. Para explorarmos melhor esse aspecto, vamos escrever explicitamente as varia¸c˜oes dos momentos para A e para B na dire¸c˜ ao y, j´ a que ´e apenas nessa dire¸c˜ao que o momento n˜ ao ´e conservado. Para evitar ambiguidades em nossa an´alise, vamos indicar explicitamente a velocidade de cada uma das bolas atrav´es de ´ındices. Assim, considerando o referencial S, podemos dizer que ∆pA = muo uo − (−muo uo ) = 2muo uo e

r

v2 . c2 Para que a conserva¸c˜ ao do momento seja observada, ´e necess´ario que as varia¸co˜es dos momentos se cancelem, o que s´ o ocorre se r v2 ∆pA = ∆pB −→ 2muo uo = 2mw uo 1 − 2 , c ∆pB = mw uy,B − (−mw uy,B ) = 2mw uo

ou seja, se

mu mw = q o . 2 1 − vc2

1−

(2.9)

No caso limite onde uo → 0, a velocidade w ´e praticamente idˆentica `a velocidade do referencial v. Nesse caso, podemos reescrever a equa¸c˜ao como mo mv = q 1−

,

(2.10)

v2 c2

onde mo ´e chamada massa de repouso e, como o pr´oprio nome indica, ´e medida com o corpo em repouso em rela¸c˜ ao ao referencial onde essa medida ´e feita. A rela¸c˜ ao 2.10 expressa o fato de que a massa de um corpo aumenta quando sua velocidade aumenta. Esse aumento ´e praticamente impercept´ıvel para as velocidades que os corpos atingem em nosso cotidiano, mas tem consequˆencias importantes, como discutiremos a seguir. A primeira consequˆencia refere-se ` a conserva¸c˜ ao do momento. A conserva¸c˜ ao do momento continua v´ alida na Teoria da Relatividade desde que o momento p~ de um corpo, com massa de repouso mo , movendo-se a uma velocidade ~v , seja expresso por: mo~v . p~ = q 2 1 − vc2

(2.11)

Essa express˜ ao ´e muitas vezes chamada de momento relativ´ıstico. A segunda consequˆencia do aumento da massa de um corpo quando sua velocidade aumenta, est´ a na interpreta¸c˜ ao f´ısica da equa¸c˜ao 2.10 e principalmente

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

Miotto e Ferraz

29

de m, algumas vezes chamado de massa relativ´ıstica. Perceba que quando a velocidade ~v aproxima-se da velocidade da luz, a raz˜ao v 2 /c2 aproxima-se da unidade. Isso significa que o momento do corpo tende ao infinito, mas n˜ao sua velocidade. Enquanto na Mecˆ anica Cl´ assica momento e velocidade s˜ao diretamente proporcionais, na Teoria da Relatividade o mesmo n˜ao ocorre, como claramente indicado em 2.11. Se aplicarmos continuamente uma for¸ca a um corpo qualquer seu momento cresce indefinidamente, pois sua massa tamb´em cresce. A acelera¸c˜ ao resultante dessa for¸ca aplicada, por outro lado, decresce at´e tornar-se praticamente nula. Quando uma for¸ca aplicada a um corpo resulta em uma mudan¸ca muito pequena de sua velocidade, dizemos que a in´ercia desse corpo ´e muito grande. Essa ´e, essencialmente, a interpreta¸c˜ao da massa relativ´ıstica dada pela equa¸c˜ ao 2.10. Finalmente, ´e importante destacar que n˜ ao notamos em nosso cotidiano varia¸c˜ oes na massa de um corpo, pois elas s˜ ao, em geral, muito pequenas. Considere, por exemplo, um avi˜ ao a jato, com peso pr´oximo a 100 toneladas a e movendo-se a uma velocidade de aproximadamente 3.600 km/h. Apesar de 2 considerarmos alto o valor de sua velocidade, a raz˜ao vc2 ´e da ordem de 10−10 , o que faz com que a varia¸c˜ ao observada na massa seja da ordem de miligramas. Quer saber mais? A massa de repouso A verifica¸ca ˜o experimental de que a massa de um corpo aumenta com sua velocidade ´ e anterior ` a Teoria da Relatividade. Em uma s´ erie de trabalhos iniciados em 1901 e sintetizados em uma publica¸c˜ ao de 1906, Kaufmana j´ a indicava claramente a existˆ encia de evidˆ encias experimentais de que a massa de um corpo varia com sua velocidade. Vale ressaltar que os trabalhos de Kaufman tinham inicialmente o objetivo apresentar ´ ind´ıcios favor´ aveis a Teoria do Eter, e apenas seu trabalho de 1906 faz referˆ encias ` a Teoria da Relatividade. a Uber ¨ die Konstitution des Elektrons, Annalen der Physik 324, 487 (1906), dispon´ıvel em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k15326w/f497. chemindefer.

Energia Relativ´ıstica Tendo estabelecido que, de acordo com a Teoria da Relatividade, a massa de um corpo varia com sua velocidade, vamos agora verificar quais s˜ao as consequˆencias dessa modifica¸c˜ ao para a Mecˆ anica Newtoniana. Vamos iniciar nossa an´ alise pela Segunda Lei de Newton40 :   mo~v  d q 2 1 − vc2 d~ p d (m~v ) ~ F = = = . (2.12) dt dt dt 40 Observe que n˜ ~ = m~a, derivada da express˜ ao mais podemos usar a express˜ ao F ao originalmente proposta por Newton, pois sabemos agora que a massa varia com a velocidade e, consequentemente, com o tempo. Ser´ a que Newton j´ a sabia disso?

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Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

Por outro lado, a Mecˆ anica Newtoniana tamb´em define a Energia Cin´etica, Ec , como o trabalho realizado por uma for¸ca para acelerar uma part´ıcula desde o repouso at´e uma certa velocidade ~v . Considerando o movimento em apenas uma dimens˜ ao, temos Z v Z v Z v d (mv) Ec = dx F = dx = v d (mv) , (2.13) dt v=0 0 0 j´a que v = dx/dt. Essa integral pode ser determinada:   − 32 Z v 1 v2 Ec = mo 1 − 2 v dv = mo c2  q c 0 1−

 v2 c2

− 1

ou seja, a Energia Cin´ etica Relativ´ıstica ´e dada por Ec == mo c2 (γ − 1).

(2.14)

Sabemos que no limite de baixas velocidade v  c, a express˜ao 2.14 deve levar a express˜ ao Newtoniana Ec = 21 mv 2 . Podemos demonstrar essa correspondˆencia considerando a expans˜ ao binomial para o caso em que vc  1:   2 1  ' 1 + 1 v + ... γ = q 2 2 2c 1− v c2

Assim, para baixas velocidades,   1 1 v2 + ... − 1 ' mo v 2 Ec = mo c2 1 + 2 2c 2 A express˜ ao que obtivemos para a Energia Cin´etica Relativ´ıstica Ec = mo c2 (γ − 1) tem um termo que depende de γ, e consequentemente da velocidadade da part´ıcula v, e outro que depende apenas de sua massa (E = mo c2 ). Esse segundo termo ´e chamado energia de repouso da part´ıcula e estabelece a rela¸ c˜ ao massa-energia proposta por Einstein41 em 1905. Isso significa que ao aplicarmos uma for¸ca F~ em um corpo inicialmente em repouso, o trabalho realizado por essa for¸ca aumentar´ a a energia do sistema de uma energia de repouso (mo c2 ) at´e um certo valor γmo c2 , ou seja, aumenta sua massa de mo para γmo , o que ´e consistente com o que vimos anteriormente em rela¸c˜ao ao momento relativ´ıstico. 41 Em seu trabalho original, Ist die Tr¨ agheit eines K¨ orpers von seinem Energiegehalt abh¨ angig?, Annalen der Physik. 18, 639 (1905), dispon´ıvel em http://www.zbp.univie. ac.at/dokumente/einstein4.pdf, Einstein utilizou um outro caminho para chegar a a essa rela¸c˜ ao, posteriormente verificado experimentalmente por Cockcroft e Walton em Experiments with high velocity positive ions (II) - The disintegration of elements by high velocity protons, Proc. Roy. Soc. London A137, 229-242 (1932).

2.3 Consequˆ encias dos Postulados de Einstein

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O fato de uma for¸ca agindo em um corpo resultar em um aumento de sua in´ercia, ou alternativamente, o trabalho realizado por uma for¸ca implicar no aumento de sua massa, leva-nos a conclus˜ ao de que um corpo qualquer teria sua massa aumentada de mo para infinito caso sua velocidade atingisse a velocidade da luz. Em outras palavras, a velocidade da luz c ´e a velocidade limite que qualquer corpo de massa de repouso mo poderia atingir, sendo que nesse processo, a energia necess´ aria para impulsion´a-lo tenderia ao infinito. Logo, do ponto de vista da Teoria da Relatividade, podemos dizer que nenhum corpo de massa de repouso mo pode atingir a velocidade da luz. Esse fato foi verificado experimentalmente, por exemplo, mostrando que el´etrons acelerados at´e atingirem energias da ordem de MeV e determinando suas velocidades para percorrer uma determinada distˆancia42 resultavam em gr´aficos de energia cin´etica por velocidade compat´ıveis com o previsto na Teoria da Relatividade. Por outro lado, recentemente (setembro de 2011), colaboradores do projeto OPERA (Oscillation Project with Emulsion-tRacking Apparatus), afirmaram ter detectado43 neutrinos viajando com velocidade maior do que c. Os neutrinos s˜ ao particulas subatˆ omicas elementares que possuem massa de repouso pequena, mas n˜ ao nula. Essas observa¸c˜oes experimentais, apesar de ainda serem objeto de debate entre a comunidade, pois contradizem resultados anteriores, indicam a possibilidade de algumas part´ıculas com massa n˜ao nula terem velocidades maiores do que a luz. Como na Ciˆencia n˜ao existe uma verdade absoluta, essa afirma¸c˜ ao n˜ ao pode ser simplesmente desprezada, mas deve ser confirmada em outros experimentos realizados por outros grupos de pesquisa. Detalhes Matem´ aticos: Determina¸ c˜ ao da Energia Relativ´ıstica A Energia Cin´etica Relativ´ıstica pode ser determinada por   Z v Z v m v o . Ec = v d (mv) = v d q v2 0 0 1 − c2 Como



  − 23 m v v2 o   d q dv = mo 1 − 2 2 c 1 − vc2

a integral a ser calculada ´e Z Ec = 0

v

 − 32 v2 m 1− 2 v dv c

42 Ver, por exemplo, William Bertozzi, Speed and Kinetic Energy of Relativistic Electrons, American Journal of Physics 32, 551 (1964). 43 Measurement of the neutrino velocity with the OPERA detector in the CNGS beam, arXiv:1109.4897v1, dispon´ıvel em http://arxiv.org/abs/1109.4897v1

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Miotto e Ferraz

A Teoria da Relatividade Especial

Quer saber mais? A Energia Total Relativ´ıstica A partir da express˜ oes para a Energia Relativ´ıstica e para o Momento Relativ´ıstico, ´ e poss´ıvel demonstrara que para um sistema com energia E e momento p, a quantidade E 2 − p2 c2 ´ e invariante, ou seja, apesar dos valores de E e p poderem separadamente variar em diferentes referenciais, a diferen¸ca dos quadrados dos valores n˜ ao depende do referencial. Aproveitando-se dessa invariˆ ancia, ´ e possivel definir a massa de repouso do sistema mo pela equa¸c˜ ao c4 m2o = E 2 − p2 c2 , que pode ser rearranjada, fornecendo E 2 = m2o c4 + p2 c2 ,

(2.15) m2o c4

que ´ e a Energia Total da part´ıcula em termos de sua Energia de Repouso e do seu momento p. Utilizamos a aproxima¸c˜ ao sugerida pelo Prof. Newton Bernardes, que permite, al´ em de determinar uma express˜ ao para a Energia Total Relativ´ıstica de um sistema, mostrar que a massa de repouso ´ e um atributo pr´ oprio do sistema cujo valor num´ erico n˜ ao depende do referencial. a Ver, por exemplo, Newton Bernardes, Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Relativ´ıstica, Boletim Did´ atico, USP - CNEN (1972), dispon´ıvel em http://webbif.ifi.unicamp.br/ apostilas/f428/introrelativ-NB.pdf.

2.4

A utilidade da Teoria da Relatividade

Todo esse conhecimento referente aos sistemas idealizados pela Teoria da Relatividade seriam in´ uteis se essa teoria n˜ ao fosse capaz de estabelecer uma rela¸ca˜o entre os estados inicial e final do sistema. Essa rela¸c˜ao ´e dada pelos axiomas fundamentais da f´ısica: o Princ´ıpio da Conserva¸c˜ao do Momento e o Princ´ıpio de Conseva¸c˜ ao da Energia. A aplica¸c˜ ao desses princ´ıpios, aliado a aproxima¸c˜ ao cl´ assica para baixas velocidades, permite a solu¸c˜ao de muitos problemas, como, por exemplo, a energia de liga¸c˜ ao dos n´ ucleos atˆomicos44 . Quer saber mais? Einstein e o Ano Mundial da F´ısica A apresenta¸c˜ ao da Teoria da Relatividade n˜ ao foi o u ´nico feito de Einstein no Ano Miraculoso de 1905. De fato, como discutido por Nelson Studart na Revista Brasileira de Ensino de F´ısicaa 27, n´ umero 1, p´ agina 1, de 2005, foram cinco as constribui¸c˜ oes extraodin´ arias de Einstein ` a Ciˆ encia, todas publicadas na prestigiosa revista alem˜ a Annalen der Physik em 1905: a Teoria da Relativade Especial, a Introdu¸c˜ ao do Conceito de Quantum de Luz (Efeito Fotoel´ etrico), a Explica¸c˜ ao do Movimento Browniano, a Equivalˆ encia entre Massa e Energia e um Novo M´ etodo de Determina¸c˜ ao de Dimens˜ oes Moleculares (sua tese de doutorado). N˜ ao ´ e sem raz˜ ao que a ONU (Organiza¸c˜ ao das Na¸c˜ oes Unidas) declarou 2005 o Ano Mundial da F´ısica, em comemora¸c˜ ao ao centen´ ario desse marco hist´ orico da F´ısica. O volume 27 da Revista Brasileira de Ensino de F´ısica ´ e uma Edi¸c˜ ao Especial Dedicada a Einstein no Ano Mundial da F´ısica. Divirta-se!! a Dispon´ ıvel

na p´ agina da Sociedade Brasileira de F´ısica www.sbfisica.org.br.

44 Veja diversos exemplos em Newton Bernardes, Introdu¸ ca ˜o ` a Mecˆ anica Relativ´ıstica, Boletim Did´ atico, USP - CNEN (1972), dispon´ıvel em http://webbif.ifi.unicamp. br/apostilas/f428/introrelativ-NB.pdf

Cap´ıtulo 3

A Teoria Quˆ antica 3.1

Antecedentes experimentais

As diferentes teorias acerca da natureza do calor remontam os fil´osofos gregos, sucedendo-se at´e os dias de hoje. Uma dessas teorias considera o calor como um fluido sutil, el´ astico, imponder´ avel, mas material, que se encontra nos corpos quentes. Este conceito regente no in´ıcio do s´eculo XVII tinha como um de seus defensores Galileu. De acordo com esse conceito, o calor ´e constitu´ıdo por uma substˆ ancia extraordin´ aria capaz de penetrar em todos os corpos e abandon´ a-los facilmente. Essa substˆ ancia termogˆenea n˜ao pode ser gerada ou destru´ıda, mas apenas distribu´ıda e redistribu´ıda entre os corpos. Quando a quantidade de cal´ orico do corpo diminui, sua temperatura abaixa e vice-versa. Esse conceito ´e atribu´ıdo a um m´edico escocˆes chamado James Black. A id´eia do calor ser uma esp´ecie de movimento interior aos corpos e n˜ao uma substˆ ancia especial, como se acreditava, foi feita inicialmente pelo inglˆes Bacon, ao observar que fortes e frequentes marteladas produzem o aquecimento de um peda¸co de ferro. Outro inglˆes, Benjamin Thompson, o Conde de Rumford, observou que a perfura¸c˜ ao de canh˜ oes em uma f´abrica de muni¸c˜oes produzia uma enorme quantidade de calor. Para evitar que as brocas utilizadas queimassem, elas eram resfriadas com ´ agua, o que liberava uma enorme quantidade de calor. Uma das hip´ oteses examinadas por Thompson foi a possibilidade de que os corpos materiais na forma de blocos s´olidos possu´ıssem uma capacidade maior para o fluido cal´ orico quando comparados a pequenos fragmentos do mesmo material, o que explicaria o desprendimento de calor no momento da perfura¸c˜ ao do canh˜ ao - dada a produ¸c˜ao de limalha. Todavia, ele n˜ ao encontrou qualquer evidˆencia que apontasse nesse sentido. Esse conjunto de informa¸c˜ oes levou-o a concluir que o calor n˜ao pode ser uma substˆancia, mas sim alguma coisa em movimento. Esse conceito foi posteriormente desenvolvido pelo f´ısico alem˜ ao Julius Robert Mayer e pelo inglˆes James Prescott Joule, possibilitando-nos enunciar o conceito moderno de que calor ´e energia

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A Teoria Quˆ antica

Figura 3.1: Representa¸c˜ ao esquem´ atica do Espectro Eletromag´etico.

t´ermica em trˆ ansito. Dessa forma, nosso senso comum sugere que um corpo aquecido deve emitir calor, pois sentimos que est´ a quente mesmo sem toc´ a-lo. A emiss˜ao de calor por um corpo aquecido ocorre via radia¸c˜ ao. Esta radia¸c˜ ao ´e emitida em um largo espectro cont´ınuo de frequˆencias, principalmente na regi˜ao do infravermelho, que ´e respons´ avel pela sensa¸c˜ ao de calor. A intensidade da radia¸c˜ao emitida varia, tendo um m´ aximo em um determinado comprimento de onda. Sabemos que um metal a 600 o C, por exemplo, em um forno el´etrico, apresenta uma fraca colora¸c˜ ao avermelhada, enquanto o mesmo material, em uma sider´ urgica, por exemplo, apresenta uma cor azulada a temperaturas bem mais altas. O sol, cuja temperatura na superf´ıcie ´e de cerca de 6000 o C, ´e o exemplo mais familiar de emiss˜ ao de radia¸c˜ ao t´ermica, cujo espectro abrange toda a regi˜ao vis´ıvel, incluindo a de comprimento de ondas maiores - infravermelho - e menores ultravioleta.

3.1.1

Primeiras Descobertas

Tire uma pedra da sombra e coloque-a ` a luz direta do sol. Ela ir´a esquentar at´e que, a uma determinada temperatura, cessam as mudan¸cas. Como vimos anteriormente, a emiss˜ ao de calor ocorre via radia¸ca˜o t´ermica. Logo, quando cessam as mudan¸cas de temperatura, estamos de fato no ponto de equil´ıbrio t´ermico entre a radia¸c˜ ao e a mat´eria. Essa ´e uma observa¸c˜ao emp´ırica elementar. Em 1770, Josiah Wedgwood obteve o primeiro resultado cient´ıfico sobre o problema em quest˜ ao: a descoberta de que a cor emitida por um forno a alta temperatura independe de qualquer detalhe do forno, seja do material de que

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Miotto e Ferraz

35

´e feito, seja do material que est´ a no seu interior. A cor observada depende apenas da temperatura - que ´e a temperatura de equil´ıbrio entre a mat´eria e a radia¸c˜ ao - do forno. A partir da constata¸c˜ ao Wedgwood desenvolveu-se o pirˆ ometro ´ optico, um aparelho que mede a temperatura do forno pela cor da luz emitida. Tamanha foi a importˆ ancia desse instrumento que seu inventor foi eleito para a Royal Society. A Ciˆ encia em nosso cotidiano: Pirˆ ometros ´ opticos O termo “pirˆ ometro” (do grego pyros, fogo) foi originalmente atribu´ıdo a todos os instrumentos destinados ` a medi¸c˜ ao de temperaturas acima da incandescˆencia (aproximadamente 550 o C). Os primeiros pirˆ ometros fo- Figura 3.2: Representa¸c˜ao esram constru´ıdos por Henri-Louis quem´ atica de um pirˆometro ´optico. Le Chˆ atelier em 1892, quando j´ a recebeu o nome de pirˆ ometro ´ otico. A primeira patente desse pirˆometro foi concedida em 1901 e os primeiros modelos comerciais foram introduzidos em 1931. Pirˆ ometros s˜ ao sensores de temperatura que utilizam como informa¸c˜ ao a radia¸c˜ ao eletromagn´etica emitida pelo corpo a medir. Este aparelho permite a medida de temperatura sem contato. Os modelos utilizados atualmente n˜ ao diferem em muito dos primeiros aparelhos constru´ıdos. A figura 3.2 apresenta o funcionamento esquem´atico de um pirˆometro: olhase atrav´es de um telesc´ opio para um objeto incandescente, comparando o seu brilho com o de um filamento dentro do pirˆometro. Ajusta-se a corrente no filamento at´e o seu brilho coincidir com o do objeto, sendo ambos observados atrav´es de um filtro vermelho, obtendo-se a temperatura. Este ´e um m´etodo pr´ atico para medir a temperatura de objetos muito quentes, objetos em locais inacess´ıveis como fornos ou cˆamaras de v´acuo, ou objetos em atmosferas oxidantes ou redutoras onde n˜ao podem ser utilizados termopares. Pirˆ ometros ´ opticos t´ıpicos cobrem um intervalo de 750o C at´e o ao de cerca de 4o C no in´ıcio do intervalo e 20o C 3000 C, com uma precis˜ na parte superior.

3.2

Radia¸ c˜ ao do corpo negro

De uma maneira geral, mat´eria e radia¸c˜ ao interagem e atingem equil´ıbrio termodinˆ amico atrav´es de trocas de energia. Sejam e a potˆencia emissiva, isto ´e, a quantidade de energia radiante emitida por unidade de ´area e por unidade de tempo, e a a absortividade ou absortˆ ancia, isto ´e, a fra¸c˜ao de energia incidente sobre a superf´ıcie que ´e absorvida. Por volta de 1833, W. Ritchie verificou o princ´ıpio de proporcionalidade entre emiss˜ao e absor¸c˜ao total atrav´es

36

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

de um experimento com dois corpos radiantes A e B, e um termˆometro diferencial. No equil´ıbrio t´ermico, o princ´ıpio estabelece que: eA eB = . aA aB

(3.1)

Supondo que um dos corpos apresenta a especificidade aN = 1, ou seja, ele absorve toda a radia¸c˜ ao sobre ele incidente, teremos eN =

eA . aA

(3.2)

e o corpo com tal especificidade (eN ) foi denominado corpo negro1 . Em outras palavras, todo corpo negro tem uma potˆencia emissiva maior do que a de qualquer outro corpo. Evidentemente, um objeto com essas caracter´ısticas ´e um corpo ideal que n˜ ao pode ser encontrado na pr´atica, mas pode ser constru´ıdo, com uma boa aproxima¸c˜ ao, atrav´es de uma caixa oca, um forno, por exemplo, com paredes internas met´ alicas e uma pequena abertura que permite a passagem de radia¸c˜ ao, como ilustrado na figura 3.3. A caixa deve ser revestida de um excelente isolante t´ermico e espelhada internamente, refletindo toda a radia¸c˜ ao eventualmente incidente, garantindo que apenas a radia¸ca˜o no interior da cavidade tenha chance de ser absorvida. A radia¸c˜ao que entra na cavidade, tem uma probabilidade muito pequena de sair, permanecendo em seu interior e sendo refletida pelas paredes da cavidade at´e atingir o equil´ıbrio t´ermico. Desta forma, toda radia¸c˜ ao que entra na cavidade ´e absorvida pelo corpo, da´ı o nome corpo negro. Do ponto de vista experimental, a determina¸c˜ ao do espectro de absor¸c˜ ao do corpo negro ´e muito dif´ıcil. Todavia, como todo corpo negro, al´em de ser um absorvedor ideal tamb´em tem uma potˆencia emissiva maior do que a de qualquer outro corpo, experimentalmente o estudo do espectro do corpo negro se d´ a atrav´es da an´alise do seu espectro de emiss˜ ao no equil´ıbrio termodinˆ amico. Para tanto, constroem-se cavidades utilizadas como fontes de radia¸c˜ ao2 . Apesar de ser apenas uma idealiza¸c˜ao, o espectro de emiss˜ ao do corpo negro apresenta, em uma larga faixa do espectro, especialmente para grandes frequˆencias, as mesmas caracter´ısticas do espectro obtido para um corpo real, como pode ser observado na figura 3.4. A radia¸c˜ ao contida na cavidade pode ser decomposta em suas componentes espectrais atrav´es de uma fun¸c˜ ao distribui¸c˜ ao ρ(ν,T ), tal que ρ(ν,T )dν ´e a densidade de energia (energia por unidade de volume) da radia¸c˜ao com frequˆencia no intervalo compreendido entre ν e ν + dν quando a cavidade est´a a uma temperatura absoluta T . O espectro emitido pela cavidade ´e especificado pelo fluxo de energia R(ν,T ) que, obviamente, deve ser proporcional a 1 O termo corpo negro foi introduzido por Kirchhoff em Uber ¨ das Verh¨ altnis zwischen dem Emissionsverm¨ ogen und dem Absorptionsverm¨ ogen der K¨ orper fur W¨ arme und Licht, Pggendorfss Annalen der Physik 109, 275 (1860). 2 As primeiras cavidades baseadas nos teoremas de Kirchhoff foram contru´ ıdas por Lummer e Wien em 1895 e relatadas em Methode zur Pr¨ ufung des Strahlungsgesetzes absolut schwarzer K¨ orper, Wiedemannsche Annalen der Physik 56, 451 (1895)

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Figura 3.3: Representa¸c˜ ao de um corpo negro atrav´es de uma cavidade com paredes internas espelhadas.

Miotto e Ferraz

37

Figura 3.4: Compara¸c˜ao entre os espectros de um corpo negro (linha cheia) e de um corpo real (linha tracejada). Adaptado de T.M. Lillesand and R.W. Kieffer, Remote Sensing and Image Interpretation, 2nd Ed., 1987.

ρ(ν,T ), com constante de proporcionalidade advinda de fatores geom´etricos. Experimentalmente, mede-se o fluxo de energia R(ν,T ), muitas vezes chamado de radiˆ ancia espectral, para a determina¸c˜ ao indireta de ρ(ν,T ): R(ν,T ) ∼ ρ(ν,T ).

(3.3)

Em 1859, Gustav Robert Kirchhof apresentou perante a Academia de Berlin o trabalho Sobre a rela¸c˜ ao entre a emiss˜ ao e absor¸ca ˜o de calor e luz3 , no qual provou que para raios de mesmo comprimento de onda e a mesma temperatura, a raz˜ ao entre a potˆencia emitida e a absorvida ´e a mesma para todos os corpos. O teorema foi demonstrado com base em considera¸c˜oes te´oricas bastante simples e estabelece que, para quaisquer corpos em equil´ıbrio t´ermico trocando radia¸c˜ ao com comprimento de onda λ, a equa¸c˜ao aeAA = aeBB ´e satisfeita. Somente em um segundo trabalho, Kirchhoff introduziu a no¸c˜ao de um corpo perfeitamente negro, conforme discutido anteriormente, e mostrou que a potˆencia emissiva de um corpo negro depende s´o da temperatura e da frequˆencia de radia¸c˜ ao, tal que eN = f (ν,T ) onde f (ν,T ) ´e uma fun¸c˜ao universal independente da forma, tamanho e composi¸c˜ao qu´ımica do corpo. Com base na Termodinˆ amica e na Teoria Eletromagn´etica da Radia¸c˜ao, ´e poss´ıvel deduzir duas leis relativas ` a dependˆencia da radia¸c˜ao do corpo negro com a temperatura: 3 Uber ¨ den Zusammenhang zwischen Emission und Absorption von Licht und W¨ arme, Monatsberichte der Akademie der Wissenschaften zu Berlin, December, 783 (1859), dispon´ıvel em http://bibliothek.bbaw.de/bibliothek-digital/digitalequellen/ schriften/anzeige/index_html?band=09-mon/1859&seite:int=798.

38

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

A Primeira Lei deriva dos resultados experimentais de J. Tyndall4 , realizados na d´ecada de 1860, segundo o qual a emiss˜ ao total de um fio de platina a 1200◦ C (ou 1473 K) ´e 11,7 vezes maior que a correspondente emiss˜ao a 525◦ C (ou 798 K). Atrav´es da an´ alise dos resultados obtidos por Tyndall, Josef Stefan5 concluiu, em 1879, que a energia total ´e proporcional `a quarta potˆencia da temperatura absoluta, ou seja, da temperatura medida em Kelvin, j´a que (1473/798)'11,7 !!!! Este resultado fortuito, pois as medidas foram realizadas com um corpo de prova que n˜ ao tinha as caracter´ısticas de um corpo negro, foi demonstrado rigorosamente por Boltzmann6 em 1884. O trabalho de Boltzmann se baseou na existˆencia de uma press˜ ao de radia¸c˜ao e considerava a radia¸ca˜o como uma m´ aquina t´ermica sujeita ` as Leis das Termodinˆamica. O resultado para a densidade de energia de radia¸c˜ ao U pode ser expresso como U = σT 4 , sendo conhecido com Lei de Stefan-Boltzmann. Detalhes Matem´ aticos: Dedu¸ c˜ ao simplificadaa da Lei de Stefan-Boltzmann Considere um g´ as ideal de radia¸c˜ ao com energia E, densidade de energia U e press˜ ao P = U/3 (note que tal valor para a press˜ ao de radia¸c˜ ao pode ser obtida atrav´ es das Equa¸co ˜es de Maxwell). Atrav´ es das rela¸c˜ oes termodinˆ amicas ´ e poss´ıvel demonstrar que:     ∂E ∂P =T − P. (3.4) ∂V T ∂T V   ∂E Por outro lado, tamb´ em sabemos que ∂V = U. Utilizando a regra da cadeia, ´ e T

poss´ıvel obter: 

∂P ∂T

 =

1 3



∂U ∂T

 ,

(3.5)

logo, U =T

1 3



∂U ∂T

 −

1 4 T U → U = 3 3 3



∂U ∂T

 →4

dT dU = . T U

(3.6)

Integrando ambos os membros teremos U = σT 4 , com σ constante. a S. G. Brush, Heat Conduction and the Stefan-Boltzmann law, Arch. Hist. Exact. Sciences 11, 38 (1973)

A segunda lei, chamada Lei de Deslocamento, data de 1893 e foi apresentada por Wihelm Wien7 . Essa lei, derivada inicialmente a partir de argumentos 4 Os in´ umeros resultados obtidos por Tyndall relativos aos estudos da Radia¸c˜ ao T´ ermica est˜ ao resumidos em seu trabalho Contributions to molecular physics in the domain of radiant heat, New York, D. Appleton and company (1873), dispon´ıvel em http://www.archive. org/details/contributionsto00tyndgoog. 5 Uber ¨ die Beziehung zwischen der W¨ armestrahlung und der Temperatur, Sitzungsberichte der mathematisch-naturwissenschaftlichen Classe der kaiserlichen Akademie der Wissenschaften, Bd. 79 (Wien 1879), S. 391-428. 6 Ableitung des Stefan’schen Gesetzes, betreffend die Abh¨ angigkeit der W¨ armestrahlung von der Temperatur aus der electromagnetischen Lichttheorie, Annalen der Physik und Chemie 22, 291 (1884), dispon´ıvel em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ andp.18842580616/abstract 7 Eine neue Beziehung der Strahlung schwarzer K¨ orper zum zweiten Hauptsatz der W¨ armetheorie, Sitzungsberichte der K¨ oniglich Preußischen Akademie der Wis-

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Miotto e Ferraz

39

termodinˆ amicos e eletromagn´eticos8 , estabelece que a distribui¸c˜ao spectral da densidade de energia ´e dada pela equa¸c˜ ao: ρ(ν,T ) = ν 3 f

ν  T

,

(3.7)

ao apenas da raz˜ ao entre a frequˆencia e a temperaonde f ( Tν ) ´e uma fun¸c˜ tura. A Lei de Deslocamento de Wien tamb´em pode ser escrita em termos do comprimento de onda da radia¸c˜ ao, ao inv´es da frequˆencia, j´a que λν = c. Assim, c4  c  ρ(λ,T )dλ = 5 f dλ = λ−5 φ(λT )dλ. (3.8) λ λT Dessa forma, o tratamento das fun¸c˜ oes f (λ/T ) ou φ(λT ) na descri¸c˜ ao da distribui¸c˜ ao espectral da densidade de energia s˜ ao equivalentes. A origem do nome Lei de Deslocamento deve-se ao fato de que a frequˆencia - ou, alternativamente, o comprimento de onda - na qual a intensidade de radia¸c˜ ao ´e m´ axima varia com a temperac tura de acordo com a rela¸c˜ ao νmax T = b - ou em termos de comprimento de onda λmax T = b. A Lei de Deslocamento de Wien foi verificada experimentalmente in´ umeras vezes, por exemplo, por Otto Lummen e Ernst Pringsheim9 , conforme extrato de seu trabalho representado na fig.3.5. A excelente concordˆ ancia da Lei de Deslocamento em rela¸c˜ ao aos resultados experimentais levaram essa lei a ser utilizada como referˆencia nos estudos da emiss˜ ao de radia¸c˜ ao. Os dados experimentais detalhados de Lummen e Pringsheim, por exemplo, permitiram a obten¸c˜ ao da constante de proporcionalidade b = 0,294 cm.grau, valor usado posteriormente por diversos pesquisadores em seus trabalhos, dentre os quais Planck.

Figura 3.5: Resultados experimentais obtidos por Lummen e Pringsheim comprovando a concordˆancia entre a Lei de Deslocamento de Wien e os resultados experimentais. Extra´ıdo do trabalho original de 1899.

senschaften zu Berlin I, 55 (1893), dispon´ıvel em http://bibliothek.bbaw.de/ bibliothek-digital/digitalequellen/schriften/anzeige/index_html?band= 10-sitz/1893-1&seite:int=70 8 Jagdish Mera and Helmut Rechenberg, The historical development of quantum theory, New York, Springer-Verlag (1982) 9 Die Vertheilung der energie im Spectrum des schwarzen K¨ orpes, Verh. Phys. Ges. I, 23 (1899).

40

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

Detalhes Matem´ aticos: A Lei de Deslocamento de Wien e a Lei de StefanBoltzmann N˜ ao ´ e dif´ıcil demonstrar que a Lei de Stefan-Boltzmann est´ a contida na Lei de Deslocamento de Wien. Lembrando que Z Z ν (3.9) U = ρ(ν,T )dν = ν 3 f ( )dν, T a mudan¸ca de vari´ aveis x = ν/T leva a Z T 4 x3 f (x)dx = σT 4 ,

(3.10)

j´ a que a integral em dx de uma fun¸ca ˜o que s´ o depende de x (em um dado intervalo) ´ e uma constante.

A Ciˆ encia em nosso cotidiano: Aplica¸ co ˜es da Lei de Deslocamento de Wien A radia¸c˜ ao de corpo negro e em especial a Lei de Deslocamento de Wien s˜ ao muito importantes para os astrof´ısicos. As estrelas s˜ ao opacas a todos os comprimentos de onda, o que torna imposs´ıvel analisar sua estrutura interna, independentemente da frequˆ encia utilizada para tal. Al´ em disso, as estrelas emitem tanta radia¸c˜ ao que qualquer radia¸ca ˜o incidente que poderia ser por ela refletida ter´ a intensidade t˜ ao pequena (quando comparada a ` radia¸ca ˜o emitida pela estrela) que ser´ a imposs´ıvel detect´ ala. Assim, para estudar as estrelas, os astrof´ısicos assumem que sua temperatura n˜ ao muda consideravelmente e que elas c˜ao possam ser aproximadas por corpos ne- Figura 3.6: Intensidade da radia¸ gros. Dessa forma, o estudo do espec- espectral (brilho) obtida para algutro de luz emitido pela estrela pode ser mas estrelas analisada atrav´es de comparado ao espectro de um corpo nec˜ ao com o espectro de um gro dando informa¸c˜ oes importantes so- compara¸ bre sua estrutura interna. Al´ em disso, corpo negro. As temperaturas obtiao comparar a curva de radia¸ca ˜o emi- das a partir da Lei de Deslocamento tida por uma estrela com a curva de um de Wien s˜ ao utilizadas para classificorpo negro a uma dada temperatura, ´ e car as estrelas em quentes ou frias. poss´ıvel utilizar-se a Lei de Deslocamento de Wien para determinar sua temperatura. De fato, o mesmo procedimento ´ e adotado para classificar lˆ ampadas eletrˆ onicas. Na sua pr´ oxima ida a um mercado, repare que todas as lˆ ampadas eletrˆ onicas s˜ ao classificadas de acordo com a sua cor e temperatura, temperatura essa obtida quando o espectro de radia¸c˜ ao da lˆ ampada ´ e comparado ao espectro de um corpo negro. Vocˆ e encontrar´ a diversos exemplos de aplica¸co ˜es da Lei de Deslocamento de Wien, na rede, por exemplo em: http://edmall.gsfc.nasa.gov/inv99Project. Site/Pages/science-briefs/ed-stickler/ed-irradiance.html ou http://csep10.phys.utk.edu/astr162/lect/light/radiation.html (acessos em 06/06/2010).

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

3.2.1

Miotto e Ferraz

41

Form´ ulas emp´ıricas da distribui¸c˜ ao espectral

Nem os princ´ıpios e rela¸c˜ oes b´ asicas da termodinˆamica ou do magnetismo permitem, por si s´ o, determinar a forma funcional de f (ν,T ) . Sua determina¸c˜ ao era um dos maiores problemas da F´ısica Te´orica no final do s´eculo XIX. Uma das conjecturas propostas em 1896 pelo pr´oprio Wien10 , argumentava que se na teoria cin´etica dos gases a fun¸c˜ao distribui¸c˜ao das mol´eculas −mv 2

com componente da velocidade em uma dada dire¸c˜ao ´e proporcional a e kB T , essa express˜ ao tamb´em deveria ser v´ alida para ´atomos em um s´olido. Em seu trabalho, Wien considerou uma s´erie de suposi¸c˜oes baseadas n˜ao s´o em suas observa¸c˜ oes, mas tamb´em nas de outros pesquisadores: a distribui¸c˜ao de velocidades das cargas el´etricas tanto em mol´eculas quanto em s´olidos ´e capaz de excitar ondas eletromagn´eticas; o per´ıodo de oscila¸c˜ao depende da velocidade da mol´ecula e determina o comprimento de onda da radia¸c˜ao emitida; a frequˆencia de vibra¸c˜ ao tamb´em ´e proporcional `a temperatura. Assim, usando essas suposi¸c˜ oes e a Lei de Deslocamento, Wien propˆos que a distribui¸c˜ao espectral seria dada por: −c

φ(νT ) = Ce λT ,

(3.11)

ou em termos da frequˆencia f

ν  T

= αe

−βν T

.

(3.12)

O mais interessante ´e que essa f´ ormula ajustava-se satisfatoriamente aos primeiros resultados experimentais11 obtidos ao final da d´ecada de 1890, ao menos para a regi˜ ao do espectro vis´ıvel e temperaturas at´e 4.000◦ . Todavia, com o desenvolvimento das t´ecnicas espectrosc´ opicas dispon´ıveis, foi poss´ıvel analisar o espectro da radia¸c˜ ao para comprimentos de onda mais longos e a proposi¸c˜ao de Wien mostrou-se inadequada.

3.2.2

A Lei Cl´ assica da Radia¸c˜ ao T´ ermica

A contribui¸c˜ ao de Lord Rayleig ` a investiga¸c˜ao da radia¸c˜ao do corpo negro baseia-se na Mecˆ anica Estat´ıstica Cl´ assica de Maxwell-Boltzmann, sendo conhecida como o resultado cl´ assico da distribui¸c˜ao espectral. Em uma curta nota, publicada12 em junho de 1900, Rayleigh mostrou atrav´es de princ´ıpios cl´ assicos que ρ(ν,T ) = c1 ν 2 T . Em uma carta `a revista 10 Uber ¨ die Energievertheilung im Emissionsspectrum eines schwarzen K¨ orpers, Annalen der Physik 294, 662 (1896), dispon´ıvel em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10. 1002/andp.18962940803/abstract. 11 F. Paschen em Uber ¨ Gesetzm¨ aßigkeiten in den Spektren fester K¨ orper, Wiedemannsche Annalen der Physik 60, 662 (1897); F. Paschen e H. Wanner em Eine photometrische Methode zur Bestimmung der Exponentialconstanten der Emissionsfunction, Berliner Berichte, p. 5 (1899). 12 Remarks upon the law of complete radiation, Philosophical Magazine 49, 539 (1900).

42

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

Nature13 Rayleigh determinou o valor da constante c1 aplicando a doutrina de Maxwell-Boltzmann da parti¸c˜ ao de energia14 ` as oscila¸c˜oes eletromagn´eticas da radia¸ca˜o na cavidade. Note que essa suposi¸c˜ ao ´e contr´aria `a hip´otese utilizada por Wien na obten¸c˜ ao de sua f´ ormula¸c˜ ao emp´ırica. O m´etodo proposto por Rayleigh consistia em calcular o n´ umero de ondas estacion´arias, ou seja, a distribui¸c˜ ao de modos eletromagn´eticos permitidos com frequˆencia no intervalo entre ν e ν + dν, dentro da cavidade e que denotaremos N (ν)dν. Suponhamos, para simplificar, que a cavidade com paredes met´alicas contendo a radia¸c˜ ao eletromagn´etica tenha a forma de um cubo cujas arestas medem a. A radia¸c˜ ao refletida sucessivamente pelas paredes pode ser decomposta em trˆes componentes (definidas pelas arestas da cavidade). Como as paredes opostas s˜ ao paralelas, n˜ ao haver´ a superposi¸c˜ao das trˆes componentes da radia¸c˜ ao, o que implica que elas podem ser tratadas independentemente. Consideremos inicialmente a componente x e a parede met´alica em x = 0. Toda radia¸c˜ ao nessa dire¸c˜ ao [x] que incide sobre a parede ´e por ela refletida. A superposi¸c˜ ao das ondas incidente e refletida forma uma onda estacion´aria. Como a radia¸c˜ ao eletromagn´etica ´e uma vibra¸c˜ ao transversal, com o vetor campo el´etrico E perpendicular ` a dire¸c˜ ao de propaga¸c˜ao e a dire¸c˜ao de propaga¸ca˜o ´e perpendicular ` a parede considerada, conclui-se que E ´e paralelo `a parede. No entanto, na parede met´ alica n˜ ao pode haver um campo el´etrico paralelo ` a superf´ıcie, pois as cargas el´etricas ali presentes sempre fluem de forma a neutralizar o campo. Isso significa que essa componente de E deve ser sempre nula na parede, isto ´e, a onda estacion´ aria associada `a componente x da radia¸c˜ ao deve ter um n´ o em x = 0. Da mesma forma, a onda estacion´aria dever´ a ter um n´ o em x = a. Por analogia, as componentes y e z do campo el´etrico dever˜ ao ter n´ os em y = z = 0 e y = z = a. Essas condi¸c˜oes limitam os poss´ıveis comprimentos de onda, e, consequentemente, as poss´ıveis frequˆencias da radia¸c˜ ao eletromagn´etica na cavidade. Consideremos, agora, o problema da contagem do n´ umero de ondas estacion´ arias com n´ os nas superf´ıcies da cavidade, com comprimento de onda no intervalo λ e λ + dλ, que corresponde ao intervalo de frequˆencias de ν e ν + dν. Em uma dimens˜ ao temos:   2πx E(x,t) = Eo sen sen (2πνt) , λ onde λ ´e o comprimento de onda, ν a frequˆencia e Eo a amplitude m´axima da onda. Sabemos que a onda estacion´ aria apresenta nodos para 2x λ = 0, 1, 2, ..., e nos extremos da caixa, ou seja, quando x = 0 e x = a. Essas condi¸c˜oes determinam o conjunto de valores poss´ıveis para o comprimento de onda e, consequentemente, das poss´ıveis frequˆencias, j´ a que se c = λν, ent˜ao ν = cn 2a = 0, 1, 2, ..., com n = 1, 2, 3, 4.... Podemos representar esses poss´ıveis valores de frequˆencia em termos de um 13 The 14 Essa

Dynamical Theory of Gases and of Radiation, Nature 72, 54 (1905) doutrina ´ e modernamente chamada de Teorema de Equiparti¸c˜ ao de Energia.

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Miotto e Ferraz

43

diagrama. Para obtermos o n´ umero de frequˆencias poss´ıveis no intervalo entre ν e ν + dν, basta contar o n´ umero de pontos sobre o eixo n neste intervalo. A figura 3.7 apresenta a distribui¸c˜ ao esquem´ atica de um sistema tridimensional. Considerando apenas um dos eixos da representa¸c˜ao da figura 3.7, ´e poss´ıvel ao verificar15 N (ν)dν = 2a c dν. No entanto, devemos multiplicar essa express˜ por um fator dois, pois para cada uma das frequˆencias poss´ıveis existem duas ondas independentes, correspondendo aos dois poss´ıveis estados de polariza¸c˜ao das ondas eletromagn´eticas. Assim, em uma dimens˜ao temos: N (ν)dν =

4a dν. c

(3.13)

No caso de uma cavidade tridimensional, temos uma figura formada por um arranjo de pontos cujas coordenadas s˜ ao valores internos tomados ao longo de trˆes eixos n mutuamente perpendiculares. A cada ponto do arranjo corresponde uma poss´ıvel onda estacion´ aria tridimensional. O n´ umero de frequˆencias entre ν e ν +dν corresponde ao n´ umero de pontos contidos entre camadas de raios correspondentes ` as frequˆencias Figura 3.7: Diagrama representando a ν e ν + dν. Este n´ umero ser´ a prodistribui¸c˜ao de nodos em um dado arporcional ao volume contido nessas ranjo tridimensional utilizado na conta2 duas camadas (ν dν), pois os pontos gem do n´ umero de ondas estacion´arias se distribuem uniformemente, o que na cavidade. nos leva a 8πa3 8πV N (ν)dν = 3 ν 2 dν = 3 ν 2 dν. (3.14) c c Para encontrar a densidade de energia devemos determinar a energia m´edia de cada onda estacion´ aria. Para tanto, vamos supor que cada onda seja representada por uma carga el´etrica (sujeita ` as Leis de Newton) oscilando. Assim, a energia m´edia de cada onda estacion´ aria ´e dada pela energia m´edia de cada oscilador. O Teorema da Equiparti¸c˜ ao de Energia16 estabelece que, a uma dada temperatura T , cada termo da energia cin´etica contribui sempre com a mesma quantidade para a energia m´edia 12 kB T . No caso de um oscilador harmˆonico 15 A contagem do n´ umero de frequˆ encias poss´ıveis em um dado intervalo ´ e apresentada em ´ detalhes no livro de R. Eisberg e R. Resnick, F´ısica Quˆ antica: Atomos, Mol´ eculas, S´ olidos, N´ ucleos e Part´ıculas (6a edi¸c˜ ao, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1988) p.27. 16 Se cada ´ atomo de uma mol´ ecula diatˆ omica for tratado como um ponto material, os termos correspondentes ` a energia cin´ etica de transla¸ca ˜o, rota¸c˜ ao e vibra¸ca ˜o e ` a energia potencial de vibra¸ca ˜o s˜ ao fun¸c˜ oes quadr´ aticas de velocidades ou coordenadas (lineares ou angulares). Em equil´ıbrio t´ ermico (T = constante), a energia m´ edia associada a cada termo quadr´ atico na express˜ ao da energia total ´ e igual a 12 kB T por mol´ ecula, com kB a constante de Boltzmann.

44

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

2

p + 12 mw2 x2 , e no caso da radia¸c˜ ao eletromagn´etica  ' Eo2 + Bo2 . Como  = 2m cada onda estacion´ aria oscila senoidalmente com duas poss´ıveis polariza¸c˜oes, ela ter´ a uma energia total igual a duas vezes sua energia cin´etica m´edia, ou seja, u ¯(T ) = kB T .

A lei obtida por Rayleigh para a radia¸c˜ ao do corpo negro pode ser expressa pelo produto do n´ umero de ondas eletromagn´eticas na cavidade pela energia de cada uma delas, e pode ser escrita como ρ(ν,T )dν = N (ν)dν u ¯(T ) =

8πV kB T ν 2 dν. c3

(3.15)

A Lei de Radia¸c˜ ao de Rayleigh ´e conhecida como Lei de Rayleigh-Jeans, ap´ os James Jeans17 ter detectado uma falha nos c´ alculos de Rayleigh18 . Como seu resultado era consideravelmente diferente da aclamada f´ormula de Wien, Rayleigh introduziu um fator exponencial igual ao proposto anteriormente por Wien, tal que a express˜ ao completa modificada tem a forma: ρ(ν,T )dν = C1 T ν 2 e(−C2 T ) dν. ν

A figura 3.8 apresenta uma compara¸ca˜o entre a equa¸c˜ ao de RayleighJeans e resultados obtidos para um corpo negro. Observe que a proposi¸ca˜o de Rayleigh-Jeans s´ o descreve os pontos experimentais na regi˜ ao de baixas frequˆencias (ou grandes comprimentos de onda), al´em de satisfazer a Lei de Deslocamento de Wien. Todavia, a f´ormula falha no limite de grandes frequˆencias e conduz a uma divergˆencia na densidade de energia total conhecida como Cat´ astrofe do Ultravioleta, denomina¸c˜ ao sugerida por

(3.16)

Figura 3.8: Compara¸c˜ao entre a equa¸c˜ ao de Rayleigh-Jeans e os resultados obtidos para um corpo negro. Ehrenfest19 em 1911.

17 On the partition of energy between matter and aether, Philosophical Magazine 10, 91 (1905) 18 Como admitido pelo pr´ oprio Rayleigh em Nature 72, 243 (1905), Jeans apontou a redundˆ ancia de um fator 8 em seus c´ alculos:... In connection with similar work of his own Mr Jeans (Phil. Mag. July [1905]) has just pointed out that I have introduced a redundant factor 8 by counting negative as well as positive values of my integers .... 19 Welche Z¨ uge der Lichtquantenhypothese spielen in der Theorie der W¨ armestrahlung eine wesentliche Rolle, Annalen der Physik 341, 91 (1911)

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Miotto e Ferraz

45

Detalhes Matem´ aticos: Dedu¸ c˜ ao simplificada da contagem do n´ umero de modos eletromagn´ eticos N (ν)dν Determinar o n´ umero de modos eletromagn´ eticos em um dado intervalo corresponde a determinar o n´ umero de frequˆ encias permitidas entre ν e ν + dν, ou seja, determinar N (ν)dν. Para fazer esta contagem, considere o sistema ortogonal de eixos nx , ny e nz da figura 3.7. Cada termo nx , ny , nz define um ponto (que corresponde a uma frequˆ encia permitida) em um octante deste sistema. Dessa forma, cada superf´ıcie de raio r define uma frequˆ encia. Assim, entre as superficies r e r + dr temos frequˆ encias entre ν e ν + dν que em n´ umero ´ e igual ao n´ umero de pontos contidos entre as superf´ıcies de raio r e r + dr. Matematicamente q r = n2x + n2y + n2z ou

2a c r→r= ν. 2a c ou seja, N (ν)dν = N (r)dr ´ e o volume entre as superf´ıcies do octante vezes a densidade de pontos. Como cada ponto da superf´ıcie foi gerado por uma frequˆ encia permitida, sua densidade ´ e igual a um por constru¸ca ˜o. Como o volume ocupado em um dada regi˜ ao ´ e 2 dado por Voc = 4πr8 dr , πr2 dr N (r)dr = = N (ν)dν. 2 Como vimos no caso unidimensional, r = 2a ν, o que implica que dr = 2a dν. Assim, c c  2  3 3 2a π 2a 4πa 2 π 2aν dν = ν 2 dν = ν dν. (3.17) N (ν)dν = 2 c c 2 c c3 ν=

Lembrando que existem 2 estados de polariza¸c˜ ao poss´ıveis para cada onda eletromagn´ etica, o resultado acima ´ e o valor obtido para cada onda independente. Logo, considerando os poss´ıveis estados de polariza¸ca ˜o e o fato de que a3 ´ e o volume do cubo, podemos generalizar o resultado para um sistema qualquer como sendo N (ν)dν =

3.2.3

8π 3 2 V ν dν. c3

(3.18)

A teoria de Planck sobre a radia¸c˜ ao do calor

Em seus primeiros trabalhos sobre a radia¸c˜ao do corpo negro, Planck, em uma s´erie de trabalhos20 apresentados ` a Academia de Ciˆencias de Berlin entre 1897 e 1899, deduziu rigorosamente a Lei Emp´ırica proposta por Wien. Os estudos de Planck foram bastente frut´ıferos, sendo ele respons´avel por demonstrar21 , a partir da Teoria Eletromagn´etica e da Termodinˆamica, que ρ(ν,T )dν =

N (ν) 8π dν u ¯(T ) = 3 ν 2 u ¯(T )dν, V c

(3.19)

onde u ¯(T ) ´e a energia m´edia por unidade de volume do sistema. Planck, assim como Rayleigh, concentrou seus esfor¸cos na determina¸c˜ao da energia m´edia de um oscilador harmˆ onico a uma temperatura T . Ao inv´es 20 Uber ¨ irreversible Strahlungsvorg¨ ange, Berliner Bericthe, p. 57 (1897); p. 715 (1897); p. 1121 (1897); p. 449 (1898); p. 440 (1899). 21 Uber ¨ irreversible Strahlungsvorg¨ ange, Annalen der Physik 1, 69 (1900).

46

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

de utilizar o teorema da equiparti¸c˜ ao, Planck preferiu usar uma abordagem termodinˆ amica. Combinando a Lei de Deslocamento de Wien ν  ρ(ν,T ) = ν 3 f , (3.20) T a formula¸c˜ ao emp´ırica tamb´em proposta por Wien ν  −βν f = αe T T

(3.21)

e a sua pr´ opria express˜ ao (equa¸c˜ ao 3.19), temos ρ(ν,T ) = αe

−βν T

=

8π 2 ν u ¯(T )dν. c3

(3.22)

Invertendo a express˜ ao acima, podemos determinar o valor da temperatura T   1 8π u ¯(T ) −1 T = − ln . (3.23) βν αc3 ν Como por defini¸c˜ ao 1 = T



∂S ∂U

 ,

(3.24)

V

a equa¸ca˜o pode ser integrada e a entropia do sistema (S) pode ser escrita em termos de sua energia u ¯(T ) (ou simplesmente u para simplificar a nota¸c˜ao) como u  u  S = − ln , (3.25) βν Aeν 3

onde A = αc umero neperiano. 8π e e o n´ Com a entropia assim definida, Planck determinou a entropia da radia¸c˜ao em equil´ıbrio com o conjunto de osciladores e mostrou que esta satisfazia a Segunda Lei da Termodinˆ amica. Sua equa¸c˜ ao implicava que ∂2S ∝ −u−1 . ∂u2

(3.26)

Tendo sido informado por Rubens22 , um dos grandes expoentes das pesquisas experimentais envolvendo o espectro de um corpo negro, do fato de que ρ(ν,T ) ∝ T , Planck propˆ os uma f´ ormula para a distribui¸c˜ao espectral da radia¸ca˜o do corpo negro obtida pela interpola¸c˜ ao entre os resultados previstos 22 Ged¨ achtnisrede des Hrn Planck auf Heirich Rubens, Berliner Bericht, p. cxi (1923); ¨ H. Rubens and F. Kurlbaum, Uber die Emission langwelliger W¨ armestrahlen durch den schwarzen K¨ orper bei verschiedenen Temperaturen, Berliner Berichte, p. 929 (1900). Uma reprodu¸c˜ ao dos resultados experimentais obtidos na ´ epoca pode ser encontrada na Revista Brasileira de Ensino de F´ısica, volume 22, p´ agina 536, que pode ser obtida gratuitamente no s´ıtio da Sociedade Brasileira de F´ısica (www.sbfisica.org.br).

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Miotto e Ferraz

47

para os limites extremos da faixa de frequˆencias. Para altas frequˆencias, a for2 mula¸c˜ ao de Planck previa uma dependˆencia da forma ∂∂uS2 ∝ −u−1 enquanto que para baixas frequˆencias, os resultados experimentais de Rubens e Kurl2 baum indicavam23 que ∂∂uS2 ∝ −u−2 . Planck propˆos, ent˜ao, uma express˜ao quase t˜ ao simples quanto a anteriormente proposta por Wien: ∂2S 1 = . ∂u2 u(α + u)

(3.27)

Segundo Planck ... uso a derivada segunda de S em rela¸ca ˜o a u porque esta quantidade tem um significado f´ısico simples. Esta ´e, de longe, a mais simples de todas as express˜ oes que leva S a ser uma fun¸c˜ ao logar´ıtmica de u. Integrando a express˜ ao proposta por Planck temos:     ∂S 1 α+u = ln + constante. (3.28) ∂u α u Usando novamente a defini¸c˜ ao termodinˆ amica de temperatura, teremos     1 1 α+u = ln + constante. (3.29) T α u J´ a que no limite de altas temperaturas ambos os lados da equa¸c˜ao devem se anular, conclu´ımos imediatamente que a constante deve valer zero. Assim, a energia do oscilador ´e dada por u=

α , e −1 α T

(3.30)

e, consequentemente, teremos ρ(ν,T ) =

8π αν 2 . α c3 e T − 1

(3.31)

A Lei de Deslocamento de Wien torna claro que α deve ser uma fun¸c˜ao linear de ν. Uma express˜ ao em termos de duas constantes gen´ericas A e B pode ser escrita como: 8π Aν 3 ρ(ν,T ) = 3 Bν . (3.32) c e T −1 Essa express˜ ao foi apresentada por Planck ` a Sociedade Alem˜a de F´ısica em 19 de outubro de 1900. Uma tradu¸c˜ ao do trabalho original de Planck foi publicada em 2000 na Revista Brasileira de Ensino de F´ısica, volume 22, p´agina 536, e pode ser obtida gratuitamente atrav´es do s´ıtio da Sociedade Brasileira de F´ısica (www.sbfisica.org.br). 23 Esse resultado pode ser verificado facilmente se lembrarmos que se ρ(ν,T ) ∝ T , ent˜ ao ∂S u ∝ T . Usando-se o fato de que T −1 = ∂U , obtˆ em-se a dependˆ encia desejada.

48

Miotto e Ferraz

3.2.4

A Teoria Quˆ antica

A introdu¸c˜ ao dos quanta

Na reuni˜ ao de 14 de dezembro de 1900, Planck comunicou24 aos membros da Sociedade Alem˜ a de F´ısica a dedu¸c˜ ao te´ orica de sua f´ormula, proposta em 19 de outubro, e no que veio a chamar de um ato de desespero teve de introduzir a hip´ otese da descontinuidade da energia dos osciladores. Planck havia mostrado nos trabalhos anteriores que um ponto chave para uma Teoria do Espectro de Radia¸ca˜o T´ermica era a determina¸c˜ ao te´ orica da entropia em fun¸c˜ao da energia de um oscilador harmˆ onico com frequˆencia ν. Se sua express˜ao para ρ(ν,T ) estivesse correta, seguindo os mesmos passos, seria poss´ıvel obter a entropia do oscilador. Como em sua f´ ormula u = Tαα , invertendo-se essa express˜ao e e

usando o fato de que T −1 = S=

∂S ∂U

−1

e integrando a express˜ao obt´em-se:

h  u i u   u  u A0 = 1 + 0 ln 1 + 0 − 0 ln 0 , B Aν Aν Aν Aν

(3.33)

3

onde A0 = Ac ao constantes. 8π com A e B s˜ Para deduzir formalmente essa express˜ ao, Planck tinha de procurar outro m´etodo, tendo encontrado-o no trabalho de Boltzmann. Segundo Boltzmann, a entropia de um sistema em um dado estado ´e proporcional `a probabilidade daquele estado que, em nota¸c˜ ao moderna, pode ser escrita como S = kB lnW , onde W , segundo Planck, ´e o n´ umero de complexos25 e kB ´e a constante de Boltzmann. Considere a explica¸c˜ ao originalmente proposta por Planck: Ent˜ ao, a ` energia total uN = N u de um dado sistema, formado por N ressonadores (osciladores), corresponde uma certa entropia total SN = N S do mesmo sistema, em que S representa a entropia m´edia de um ressonador particular. Essa entropia SN depende da desordem com a qual a energia total uN reparte-se entre os diferentes ressonadores individuais. Importa agora encontrar a probabilidade W de modo que os N ressonadores possuam em conjunto a energia total uN . Para isso, ser´ a necess´ ario que uN n˜ ao seja uma quantidade continua, infinitamente divis´ıvel, mas antes uma grandeza discreta, composta de um n´ umero inteiro de partes finitas iguais. Denominaremos  a tal parte elementar de energia, e teremos, uN = P , onde P representa um n´ umero inteiro, em geral grande. Deixaremos, no momento, indeterminado o valor de  ..... +P −1)! De acordo com Planck26 , existem W = (N (N −1)!P ! maneiras nas quais N 24 Uma tradu¸ c˜ ao do trabalho original de Planck foi publicada em 2000 na Revista Brasileira de Ensino de F´ısica, volume 22, p´ agina 538, podendo ser obtida no s´ıtio da Sociedade Brasileira de F´ısica (www.sbfisica.org.br). 25 O n´ umero de complexos ´ e o n´ umero de arranjos microsc´ opicos compat´ıveis com um dado arranjo macrosc´ opico. 26 Como exemplo, considere N = 4 e P = 7. Uma poss´ ıvel distribui¸c˜ ao de energias ´ e R1 = 4, R2 = 2, R3 = 0, e R4 = 4. Para facilitar a discuss˜ ao, considere uma representa¸ca ˜o esquem´ atica de energia onde a separa¸c˜ ao entre ressonadores ser´ a delimitada pelo s´ımbolo 2 Nesse caso, a distribui¸ca ˜o proposta ser´ a escrita como k222k (Note que no esquema

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Miotto e Ferraz

49

ressonadores (R1 , R2 , R3 , ..., R4 ) podem ser distribu´ıdos pelos v´arios graus de energia determinados pela s´erie de m´ ultiplos 0, , 2, ..... O c´ alculo da entropia pode agora ser feito diretamente. Usando a f´ormula de Stirling para simplificar a express˜ ao envolvendo fatoriais   (N + P )N +P W = NNPP e a equa¸c˜ ao de Boltzmann, a entropia do ressonador em fun¸c˜ao da sua energia ´e dada por: h u  u   u   u i S = kB 1 + ln 1 + − ln (3.34)     Observe que esta equa¸c˜ ao ´e semelhante ` a anterior. At´e aqui o valor de  ´e completamente arbitr´ ario. Contudo, sabemos que S deve depender de ν e de u. Al´em disso, como kB ´e uma constante universal, a dependˆencia com ∂S a frequˆencia deve aparecer em . Usando o fato de que T −1 = ∂U , Planck encontrou a energia m´edia dos osciladores como sendo 

u= e

 kB T

−1

.

(3.35)

De modo a satisfazer a Lei de Wien, o elemento de energia  deve ser proporcional ` a frequˆencia do oscilador. A express˜ ao mais simples para indicar essa proporcionalidade, modernamente chamada Rela¸c˜ ao de Planck ´e  = hν, sendo h conhecida como constante de Planck. Logo, a distribui¸c˜ ao espectral da densidade Figura 3.9: Compara¸c˜ao entre a de energia deve ter a forma: equa¸c˜ ao de Rayleigh-Jeans (linha azul), 8π hν 3 . (3.36) a express˜ao emp´ırica de Wien (linha ρ(ν,T ) = 3 hν c e kB T − 1 vermelha) e a express˜ao quˆantica de Planck (linha preta) que coincide com Na parte final de seu traba- os resultados obtidos para um corpo nelho, Planck determina os valores das gro. constantes h e kB a partir dos resultados experimentais a ele apresentados por Rubens, obtendo valores muito pr´ oximos aos mais aceitos atualmente. De fato, como pode ser visto na figura 3.9, a concordˆ ancia entre os resultados experimentais e a express˜ao obtida por Planck ´e impressionante. proposto 22 indica que um dado ressonador tem energia 2 enquanto 22 indica que o ressonador tem energia zero). Para valores gerais de N e P , a representa¸c˜ ao esquem´ atica ter´ a P vezes o sinal  e (N −1) vezes o sinal 2. Evidentemente teremos (N +P −1)! maneiras diferentes de arranjar os s´ımbolos que se repetir˜ ao (N − 1)!P ! vezes.

50

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

Cabe aqui um pequeno coment´ ario acerca do trabalho original de Planck: ele propˆ os que um dado valor de energia do sistema s´o poderia ser distribu´ıdo entre os diversos osciladores da cavidade se fosse composta de um n´ umero inteiro de partes finitas iguais (lembre-se, arranjos e combina¸c˜ oes s´ o s˜ ao poss´ıveis com n´ umeros inteiros). Dessa suposi¸c˜ ao simples nasceu a F´ısica Quˆantica, pois est´ a a´ı colocado o argumento b´ asico da quantiza¸c˜ ao de energia: os osciladores n˜ ao podem ter um valor de energia qualquer, mas apenas m´ ultiplos inteiros de um valor elementar.

3.2.5

Implica¸co ˜es do postulado de Planck

Uma formula¸c˜ ao alternativa para o postulado de Planck pode ser escrita como: Qualquer ente f´ısico cuja coordenada generalizada ´e uma fun¸c˜ ao senoidal do tempo (isto ´e, executa oscila¸c˜ oes harmˆ onicas simples) pode possuir apenas energias totais  que satisfa¸cam ` a rela¸c˜ ao  = hν, onde ν ´e sua frequˆencia e h uma constante Universal. O postulado de Planck tem uma implica¸ca˜o muito importante: se classicamente a energia de um sistema pode assumir qualquer valor (de zero a infinito), quanticamente Figura 3.10: Representa¸c˜ ao esquem´atica dos poss´ıveis um ente executando valores para a energia de um sistema cl´assico (esoscila¸co˜es harmˆ oni- querda) e quˆ antico (direita). cas simples pode ter apenas energias totais discretas E = 0, hν , 2hν, 3hν, ..., nhν. A energia de um ente que obedece ao postulado de Planck ´e dita quantizada, seus poss´ıveis estados de energia s˜ ao chamados de estados quˆ anticos e os inteiros n n´ umeros quˆ anticos. Essa diferen¸ca fundamental est´ a representada esquematicamente na figura 3.10 Mas por que n˜ ao verificamos esse fato para sistemas muito simples como um pˆendulo? Ao vˆe-lo oscilar parece-nos que o sistema ´e capaz de possuir um conjunto cont´ınuo de energias. A resposta est´ a no fato de que o incremento de energia (hν) no pˆendulo ´e da ordem de 10−33 J, enquanto que a energia t´ıpica de tal sistema ´e da ordem de 10−5 J. Para piorar a situa¸c˜ao, n˜ao temos condi¸c˜ oes t´ecnicas de medir incrementos de energia da ordem de 10−33 J. O mesmo fato ´e observado para todos os sistemas mecˆanicos macrosc´opicos presentes em nosso cotidiano. Para que possamos identificar tal descontinuidade, ´e necess´ ario estarmos no limite de grandes frequˆencias ou que a ordem de varia¸c˜ ao da energia seja mensur´ avel.

3.2 Radia¸ c˜ ao do corpo negro

Miotto e Ferraz

51

A Ciˆ encia em nosso cotidiano: Medidores de temperatura por radia¸ c˜ ao Por volta de 1800, Sir. Frederick Willian Herschel, astrˆ onomo j´ a famoso pela descoberta do planeta Urano, estava envolvido com experiˆ encias relacionadas ao espectro de cores. Em particular, ele queria determinar como o calor se relacionava com as diferentes cores. Para tanto, ele passava luz atrav´ es de diferentes filtros utilizados para ob- Figura 3.11: Representa¸ c˜ao esquem´atica de servar a luz solar. Ele notou que um medidor de temperatura atrav´es de rafiltros de diferentes cores apac˜ ao (gentileza Raytek do Brasil). rentemente permitiam a passa- dia¸ gem de diferentes quantidades de calor. Herschel acreditava que as cores propriamente ditas poderiam ter temperaturas diferenciadas. Para provar suas suposi¸c˜ oes ele imaginou um experimento onde a luz solar direta passa por um prisma para criar um espectro (tal qual na forma¸c˜ ao do arco-´ıris) e depois mediu a temperatura de cada cor, com o aux´ılio de trˆ es termˆ ometros com bulbos escuros (para melhor absorver o calor) sendo que, para cada cor do espectro, um bulbo se encontrava iluminado pela cor e os outros dois mais distantes para servir como controle. Quando mediu as temperaturas individuais das cores violeta, azul, verde, vermelho, laranja e amarelo, ele notou que todas as cores tinham temperaturas mais altas do que o controle. Al´ em disso, ele observou um aumento da temperatura indo do violeta para o vermelho. Este fato levou-o a medir a temperatura pouco al´ em da por¸c˜ ao vermelha do espectro, em uma regi˜ ao onde a luz solar n˜ ao era vis´ıvel. Para sua surpresa, ele encontrou nessa regi˜ ao a mais alta temperatura. Hershchel realizou uma s´ erie de experimentos adicionais com os ent˜ ao raios cal´ oricos. Ele observou que eles eram refletidos, refratados, absorvidos e transmitidos da mesma forma que a luz vis´ıvel. Herschel havia descoberto os raios infravermelhos, o primeiro tipo de luz n˜ ao-vis´ıvel conhecida. Os grandes avan¸cos tecnol´ ogicos propiciados pela Ciˆ encia dos Materiais permitiram o desenvolvimento de detectores de radia¸ca ˜o infravermelho pequenos, dur´ aveis e extremamente precisos. Na maior parte desses medidores de temperatura a radia¸c˜ ao ´ e coletada por um arranjo ´ optico fixo e dirigida a um detetor do tipo termopilha (associa¸c˜ ao em s´ erie - Figura 3.12: Exemplo de aplica¸ c˜ao ver figura 3.11) ou do tipo semicondutor industrial de um termo-visor (gentinos mais modernos, onde gera um sinal el´ etrico, no caso da termopilha; ou altera leza Raytek do Brasil) o sinal el´ etrico, no caso do semicondutor. A essa altera¸ca ˜o de sinal corresponde uma intensidade de radia¸c˜ ao espectral. Como o comprimento de onda no qual opera o detector tamb´ em ´ e conhecida, basta utilizar a express˜ ao proposta por Planck para determinar a temperatura do corpo de prova ou para obten¸c˜ ao de imagens t´ ermicas como a da figura 3.12.

52

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

A Ciˆ encia e o seu desenvolvimento: A aceita¸ c˜ ao (ou n˜ ao!) da quantiza¸ c˜ ao A leitura do trecho final da palestra de Wiena proferida em 11 de dezembro de 1911 quando da ocasi˜ ao do recebimento do Prˆemio Nobel, mostra o humor da comunidade em rela¸c˜ ao ` as descobertas de Planck. A fim de que n˜ ao restem d´ uvidas quanto ao ceticismo reinante em rela¸c˜ao `a introdu¸c˜ao da quantiza¸c˜ ao, o u ´ltimo par´ agrafo da palestra est´a transcrito abaixo em sua forma original. ... We must admit that the result of radiation theory todate is not a very good one for theoretical physics. As we have seen, only the general thermodynamic theories have proved satisfactory as yet. The theory of electrons has come to grief over the radiation problem, the Planck theory has not yet been brought into a definite form. Research is faced with exceptional difficulties and we cannot discern when and how they can be overcome. In science, the redeeming idea often comes from an entirely different direction, investigations in an entirely different field often throw unexpected light on the dark aspects of unresolved problems. We must base our hope in the future in the expectation that the present era which has proved so fruitful for physics may not pass without a complete solution being found for the problem of thermal radiation. Farreaching and new thoughts will have to set to work, but the result will be great, because we shall obtain a profound insight into the world of the atom and the elementary processes within it.

Quando Wien declara que a Teoria de Planck ainda n˜ao est´a em sua forma definitiva, acrescentando que a resposta esteja em uma dire¸c˜ao completamente diferente, deixa claro que grandes cientistas, com participa¸c˜ao fundamental no estudo da radia¸c˜ ao do corpo negro, tinham muitas restri¸c˜oes ao conceito de quantiza¸c˜ ao. a http://nobelprize.org/nobel\_prizes/physics/laureates/1911/ wien-lecture.html

3.3

O efeito fotoel´ etrico

´ uma das ironias da hist´ E oria da ciˆencia que na famosa experiˆencia de Henrich Hertz27 , em 1887, na qual ele produziu e detectou ondas eletromagn´eticas em laborat´ orio (confirmando, assim, a teoria de Maxwell), ele tenha tamb´em descoberto o efeito fotoel´etrico sem que a ele desse a aten¸c˜ao devida. Foi a partir desse efeito que se pode chegar ` a descri¸c˜ ao corpuscular da luz. Hertz usava um dispositivo de fagulha, com um intervalo de separa¸c˜ao num circuito ajustado para gerar as ondas e outro circuito semelhante para detect´a27 Os

resultados obtidos por Hertz foram publicados em uma s´ erie de artigos submetidos a ` revista Annalen der Physik e posteriormente reunidos em seu livro Untersuchungen u ¨ber die Ausbreitung der elektrischen Kraft, Leipizig, Johann Ambrosius Barth (1892), dispon´ıvel em http://de.wikisource.org/wiki/Untersuchungen_ber_die_ Ausbreitung_der_elektrischen_Kraft

3.3 O efeito fotoel´ etrico

Miotto e Ferraz

53

las. Acidentalmente, ele notou que quando a luz do dispositivo gerador n˜ao atingia o dispositivo receptor, o intervalo no receptor tinha que ser diminu´ıdo para permitir a passagem de fagulhas. Ele observou, ainda, que a luz de qualquer fagulha que atingisse os terminais do dispositivo facilitava a passagem das fagulhas. Hertz n˜ ao levou adiante suas investiga¸c˜ oes acerca do efeito fotoel´etrico, mas outros o fizeram. Constatou-se que part´ıculas negativas eram emitidas por uma superf´ıcie met´ alica quando esta era exposta ` a luz28 . Em uma s´erie de experimentos, P. Lenard29 , desviou esses raios por interm´edio de um campo magn´etico e verificou que eles possu´ıam uma raz˜ ao entre a carga Figura 3.13: Representa¸c˜ao ese a massa da mesma grandeza da quem´ atica de um aparelho utilizado medida por Thompson para os raios para observar o efeito fotoel´etrico. A cat´ odicos. A figura 3.13 apresenta luz atinge o catodo que ejeta el´etrons. um diagrama esquem´ atico do apa- O n´ umero de el´etrons que atinge o relho usado no estudo do efeito fo- anodo ´e medido por um amper´ımetro. toel´etrico. Quando incide luz sobre uma superf´ıcie met´ alica limpa (catodo), s˜ ao emitidos el´etrons. Se alguns desses el´etrons atingem o anodo, detecta-se a presen¸ca de uma corrente no circuito. O n´ umero de el´etrons emitidos que atinge o anodo pode ser aumentado ou diminuindo variando a diferen¸ca de potencial entre catodo e anodo. Seja V a diferen¸ca de potencial entre o catodo e o anodo e i a corrente medida no circuito. A figura 3.14 mostra a curva i × V para dois valores de intensidade de luz incidente sobre o catodo. Quando V Figura 3.14: Curva caracter´ıstica da in´e positivo, os el´etrons s˜ ao atra´ıdos tensidade (i) pela tens˜ao (V ) observada para o anodo. Quando V ´e sufici- para um sistema onde ocorre efeito foentemente grande, todos os el´etrons toel´etrico considerando diferentes inemitidos alcan¸cam o anodo e a cor- tensidades de energia luminosa. rente atinge o seu valor m´ aximo. 28 E. Rutherford em The discharge of electrification by ultraviolet light, Proceedings of the Cambridge Philosophical Society 9, 401 (1898); J. J. Thomson em On the masses of the ions in gases at low pressure, Philosophical Magazine 48, 547 (1899). 29 Erzeugung von Kathodenstrahlen durch ultraviolettes Licht, Wiener Berichte 108, 1649 ¨ (1899); Annalen der Physik 2, 359 (1900); Uber die lichtelectrische Wirking, Annalen der Physik 8, 149 (1902).

54

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

Stoletow30 observou que a corrente m´ axima ´e proporcional `a intensidade da luz. Esse era um resultado esperado, inclusive do ponto de vista cl´assico, j´a que dobrando a energia por unidade de tempo incidente no catodo, deveriam dobrar tamb´em o n´ umero de el´etrons ejetados. Quando V ´e negativo, os el´etrons s˜ ao repelidos do anodo. Segundo o teorema de conserva¸c˜ao de energia, somente el´etrons com energia inicial 12 mv 2 maior do que eVo podem alcan¸car o anodo. Pela curva caracter´ıstica (i × V ) fica claro que se V ´e menor do que Vo , nenhum el´etron atinge o anodo. O potencial Vo ´e chamado de potencial de frenamento e est´ a relacionado com a energia cin´etica m´axima dos el´etrons emitidos por:   1 = eVo . (3.37) mv 2 2 max Ao investigar esse sistema, Ladenburg31 percebeu um fato surpreendente: Vo n˜ ao depende da intensidade da luz incidente. Esse resultado era totalmente inesperado, tendo em vista que a teoria cl´ assica da luz previa que a amplitude do campo el´etrico oscilante E da onda luminosa deve crescer com o aumento da intensidade da luz, mas isso n˜ ao ocorre mesmo para varia¸c˜oes na intensidade da luz da ordem de 107 lumens. Al´em disso, sabemos que a energia adquirida por um fotoel´etron32 ´e absorvida da onda incidente sobre a placa met´ alica e que a um dado el´etron corresponde uma regi˜ ao espacial, ou ´ area de alvo efetiva, onde ocorreria a absor¸c˜ ao da onda. Em primeira aproxima¸c˜ ao, ´e razo´ avel supor que essa ´ area de alvo efetiva para um el´etron em um metal ´e limitada pelo diˆametro atˆomico. Na te´ orica cl´ assica, a energia luminosa est´ a uniformemente distribu´ıda sobre a frente de onda. Logo, se a luz ´e suficientemente fraca, deveria existir um intervalo de tempo mensur´ avel entre o instante em que a luz come¸ca a incidir sobre a superf´ıcie e a eje¸c˜ ao do fotoel´etron. Nesse intervalo de tempo o el´etron deveria estar absorvendo energia do feixe at´e que tivesse acumulado o bastante para ser ejetado. Todavia esse tempo de retardo jamais foi observado experimentalmente. Finalmente, esperava-se que o efeito fotoel´etrico deveria ocorrer para qualquer frequˆencia de luz. Por´em, tanto os experimentos de Lennard33 , quanto experimentos mais detalhados posteriormente realizados por Millikan34 , em 1916, mostrou que existe, para cada superf´ıcie, um limiar de frequˆencia νo caracter´ıstico, conforme representado na figura 3.15. 30 Sur une sorte de courants ´ electriques provoqu´ es par les rayons ultraviolets, Comptes Rendus 106, 1149 (1888). 31 Untersuchungen u ¨ber die entladende Wirkung des ultravioletten Lichtes auf negativ geladene Metallplatten im Vakuum, Annalen der Physik 12, 558 (1903). 32 Fotoel´ etron ´ e a denomina¸c˜ ao dada aos el´ etrons ejetados do metal como resultado do efeito fotoel´ etrico. 33 Ver nota 29 34 A direct photoelectric determination of Planck’s h, Physical Review 7, 355 (1916).

3.3 O efeito fotoel´ etrico

Miotto e Ferraz

55

Para frequˆencias menores do que νo , o efeito fotoel´etrico n˜ ao ocorre, qualquer que seja a intensidade do feixe incidente. No caso do s´ odio, por exemplo, νo = 4,39 × 1014 Hz. Apesar do experimento realizado por Millikan ter sido elaborado quase uma d´ecada depois da proposi¸c˜ ao de Einstein para a correta explica¸c˜ ao do efeito fotoel´etrico, esse experimento constitui uma comprova¸c˜ ao defini- Figura 3.15: Representa¸c˜ao estiva das propostas de Einstein35 , in- quem´ atica do limiar de frequˆencias cluindo a´ı a inclina¸c˜ ao da reta carac- para um sistema hipot´etico. ter´ıstica36 observada na figura 3.15 e que vale he , onde h ´e a constante de Planck e e a carga eletrˆonica. Em 1905 Einstein37 apresentou uma explica¸c˜ao para as contradi¸c˜oes entre a Teoria Eletromagn´etica Cl´ assica e os resultados experimentais em um not´avel artigo publicado no mesmo volume do peri´ odico alem˜ao Annalen der Physik que continha seus trabalhos sobre Relatividade. Einstein considerou que a quantiza¸c˜ ao da energia usada por Planck no problema do corpo negro era uma caracter´ıstica universal da luz. Ao inv´es de distribuir-se igualmente pelo espa¸co no qual ela se propaga, a energia luminosa ´e composta de pacotes discretos, ou quanta, de energia. De forma an´ aloga ao proposto por Planck, Einstein sugeriu que esses pacotes de energia tinham valores fixos iguais a hν. Quando um desses quanta, que atualmente denominamos f´otons38 , penetra na superf´ıcie do catodo, toda a sua energia ´e completamente fornecida a um u ´nico el´etron. Se Φ, ou fun¸c˜ ao trabalho, ´e a energia necess´ aria para remover um el´etron da superf´ıcie39 , a energia m´ axima dos el´etrons que deixam a superf´ıcie deve ser hν − Φ. Assim, o potencial de frenamento deve ser dado por:  eVo

1 mv 2 2

 = hν − Φ,

(3.38)

max

express˜ ao conhecida como Equa¸c˜ ao de Einstein. 35 Apesar das expectativas contr´ arias do pr´ oprio Millikan, como relatado em sua Palestra por ocasi˜ ao da recep¸c˜ ao do Prˆ emio Nobel de 1923: ... this work resulted, contrary to my own expectation, in the first direct experimental proof in 1914 of the exact validity, within narrow limits of experimental error, of the Einstein equation, and the first direct photoelectric determination of Planck’s h. .. dispon´ıvel em http://www.nobelprize. org/nobel_prizes/physics/laureates/1923/. 36 ibid; New tests of Einstein’s photoelectric equation, Physical Review 6, 55 (1915). 37 Uber ¨ einen die Erzeugung und Verwandlung des Lichtes betreffenden heuristischen Gesichtspunkt, Annalen der Physik 17, 132 (1905). 38 A origem do nome f´ oton ´ e atribu´ıda a G. N. Lewis em The conservation of photons, Nature 118, 874 (1926). 39 Φ ´ e chamada de fun¸ca ˜o trabalho e ´ e uma caracter´ıstica do metal.

56

Miotto e Ferraz

3.3.1

A Teoria Quˆ antica

Os argumentos de Einstein

Einstein argumentou que os experimentos ´ opticos bem conhecidos de interferˆencia e difra¸c˜ ao da radia¸c˜ ao eletromagn´etica haviam sido feitas apenas em situa¸c˜ oes que envolviam um n´ umero muito grande de f´otons. Essas experiˆencias fornecem resultados que s˜ ao m´edias dos comportamentos dos f´otons individuais. Segundo Einstein, a presen¸ca dos f´ otons nessas experiˆencias n˜ao ´e mais aparente do que a presen¸ca das gotas de ´ agua isoladas em um jato de ´agua de uma mangueira de jardim se o n´ umero de gotas for muito grande. Evidentemente as experiˆencias de interferˆencia e difra¸c˜ ao mostram que os f´otons n˜ ao v˜ ao de onde s˜ ao emitidos at´e onde s˜ ao absorvidos da mesma forma que part´ıculas cl´ assicas o fariam. Eles se propagam como ondas cl´assicas, o que corresponderia, em m´edia, a como os f´ otons viajam. Einstein n˜ao concentrou sua aten¸c˜ ao na forma familiar com a qual a luz se propaga, mas sim na maneira corpuscular na qual ela ´e emitida e absorvida. Ele argumentou que o resultado de Planck segundo o qual a energia de um sistema oscilat´orio assume apenas os valores 0, hν, 2hν, ..., nhν implicava que no processo de transi¸c˜ao entre um estado com energia nhν para um estado com energia (n − 1)hν, a fonte emitiria um pulso de radia¸c˜ ao eletromagn´etica discreto, com energia hν. Einstein supˆ os ainda que no processo fotoel´etrico um f´oton ´e completamente absorvido por um el´etron no catodo. A partir desses argumentos, Einstein pˆ ode explicar as falhas no modelo cl´ assico da seguinte forma: 1. A amplitude da onda n˜ ao cresce com o aumento da intensidade de luz. A hip´ otese do f´ oton concorda integralmente com a experiˆencia: dobrar a intensidade da luz meramente dobra o n´ umero de f´otons, duplicando a corrente eletrˆ onica sem, no entanto, alterar a energia hν de cada f´oton ou a natureza do processo fotoel´etrico; 2. A existˆencia de um tempo de retardo ´e eliminada pela hip´otese do f´oton, pois a energia necess´ aria ´e fornecida em pacotes concentradas e n˜ao espalhada em uma frente de onda; 3. A existˆencia de um limiar de frequˆencias ´e imediatamente satisfeita pela Equa¸c˜ ao de Einstein, pois se 21 mv 2 = 0, ent˜ ao hν = Φ, o que significa que um f´ oton de frequˆencia νo tem exatamente a energia necess´aria para ejetar os fotoel´etrons e nenhum excesso que possa ser transformado em energia cin´etica. Se a frequˆencia for menor do que νo , os f´otons, n˜ao importando quantos sejam (isto ´e, independentemente da intensidade da luz incidente), n˜ ao ter˜ ao individualmente a energia necess´aria para ejetar fotoel´etrons. Citando Millikan40 ... O efeito fotoel´etrico ...., descrito corretamente apenas pela Equa¸c˜ ao de Einstein, fornece uma prova independente da fornecida 40 Tradu¸ c˜ ao livre do autor para ... The photoelectric effect then, ..., if only it is correctly described by Einstein’s equation, furnishes a proof which is quite independent of the facts

3.3 O efeito fotoel´ etrico

Miotto e Ferraz

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pela radia¸c˜ ao do corpo negro da exatid˜ ao da hip´ otese fundamental da teoria quˆ antica, ou seja, a hip´ otese da emiss˜ ao descont´ınua ou explosiva da energia que ´e absorvida das ondas et´ereas pelos constituintes eletrˆ onicos dos ´ atomos. Ele materializa, por assim dizer, a quantidade h descoberta por Planck em seu estudo da radia¸c˜ ao do corpo negro e como nenhum outro fenˆ omeno nos faz acreditar que o conceito f´ısico b´ asico que est´ a por tr´ as do trabalho de Planck corresponde ` a realidade. Apesar do sucesso de sua teoria em explicar o efeito fotoel´etrico, o que lhe valeu o Prˆemio Nobel de 1921, a hip´ otese do f´ oton de Einstein n˜ao era plenamente aceita pela comunidade cient´ıfica41 . Em contrapartida, atualmente, a hip´ otese do f´ oton ´e aceita e utilizada em todo o espectro eletromagn´etico para explicar com sucesso diversos fenˆ omenos observados experimentalmente.

Leitura Complementar: Mas ser´ a que s˜ ao el´ etrons mesmo? Uma pergunta ´ obvia quando estudamos o efeito fotoel´etrico ´e como ter certeza de que as part´ıculas ejetadas s˜ ao realmente el´etrons? Os primeiros experimentos de Lenard j´ a indicavam que essas part´ıculas tinham caracter´ısticas semelhantes aos el´etrons caracterizados por Thompson alguns anos antes. Todavia, a prova definitiva veio com a constru¸c˜ ao de sistemas com eletrosc´ opios acoplados, como o exemplificado na figura 3.16. A montagem experimental garante a identifica¸c˜ ao das part´ıculas ejetadas como sendo el´etrons, j´ a que o desbalanceamento das cargas no eletrosc´ opio provoca a deflex˜ ao das folhas met´ alicas.

Figura 3.16: Apresenta¸c˜ao esquem´ atica de um dispositivo utilizado no estudo do efeito fotoel´etrico acoplado a um eletrosc´opio.

of black-body radiation of the correctness of the fundamental assumption of the quantum theory, namely, the assumption of a discontinuous or explosive emission of the energy absorbed by the electronic constituints of atoms from ether waves. It materialize, so to speak, the quantity h discovered by Planck through the study of black body radiation and gives us a confidence inspired by no other type of phenomenon that the primary physical conception underlying Planck’s work corresponds to reality. Physical Review 7, 355 (1916). 41 ibid, ... Despite then the apparently complete sucess of the Einstein equation, the physical theory of which it was designed to be the symbolic expression is found so untenable that Einstein, himself, I believe, no longer holds it.

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A Teoria Quˆ antica

A Ciˆ encia em nosso cotidiano: Detectores fotoel´ etricos O efeito fotoel´etrico ´e a base de v´ arias aplica¸c˜ oes tecnol´ogicas. Como exemplo, podemos citar os sensores e sua enorme gama de utiliza¸c˜oes. Os sensores fotoel´etricos tˆem, em geral, alcance de v´arios metros e s˜ao aplicados em ambientes que necessitam de resposta de detec¸c˜ao r´apida. Seu funcionamento ´e relativamente simples, pois ´e baseado na detec¸c˜ao de altera¸c˜ oes da quantidade de luz que ´e refletida ou bloqueada pelo objeto a ser detectado.

3.4

Efeito Compton

Uma evidˆencia independente da exatid˜ ao do conceito de quantiza¸c˜ ao e do fato de que o quanta de radia¸c˜ ao (f´ oton) transporta tanto energia quanto momento foi dada por Arthur H. Compton42 , que mediu o espalhamento de Raios X e Raios γ por elemenao esquem´atica do procetos leves. Em sua Figura 3.17: (a) Representa¸c˜ dimento experimental utilizado por Bragg. Um feixe experiˆencia de 1923, de Raios X ´ e espalhado por um bloco de carbono e a Compton fez com que intensidade do feixe espalhado como fun¸c˜ao do comum feixe de Raios X primento de onda ´ e medido para diversos ˆangulos. (b) de comprimento de Representa¸ c a ˜ o do resultado obtido por Compton. onda λ incidisse sobre um alvo como mostrado na figura 3.17. Compton mediu a intensidade do feixe de Raios X espalhado como fun¸c˜ ao de seu comprimento de onda para v´arios ˆangulos de espalhamento. O resultado obtido est´ a representado na figura 3.17b. Embora o feixe incidente consista de Raios X com um u ´nico comprimento de onda λ, os raios espalhados apresentam m´ aximos em dois comprimentos de onda distintos: λ e λ0 . A diferen¸ca ∆λ = λ − λ0 ´e chamada de deslocamento Compton e varia com o ˆ angulo de incidˆencia. A existˆencia de um segundo pico em λ0 n˜ao pode ser explicada se os Raios X incidentes forem encarados como uma onda eletromagn´etica cl´ assica, pois a onda incidente com frequˆencia ν faria com que 42 A Quantum Theory of the Scattering of X-rays by Light Elements Physical Review 21, 483 (1923), dispon´ıvel em http://prola.aps.org/abstract/PR/v21/i5/p483_1.

3.4 Efeito Compton

Miotto e Ferraz

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os el´etrons livres no alvo oscilassem com a mesma frequˆencia e, consequentemente emitissem ondas apenas com frequˆencia ν. Logo, no modelo cl´assico dever´ıamos ter simplesmente λ e n˜ ao λ0 . Compton interpretou seus resultados experimentais postulando que o feixe de Raios X incidente n˜ao era uma onda de frequˆencia ν, mas um conjunto de f´ otons, cada um com energia hν. Tais f´ otons colidiam com os el´etrons livres do alvo da mesma forma que colidem duas bolas de bilhar. O el´etron absorveria parte da energia total e o f´oton espalhado deveria ter energia menor e frequˆencia mais baixa (e, consequentemente, um comprimento de onda maior). A interpreta¸c˜ao de Compton pressup˜oe que os f´ otons sejam part´ıculas e n˜ ao ondas, o que s´o ´e poss´ıvel se a proposta de existˆencia do f´ oton for considerada verdadeira. Segundo Compton, ... A perfeita concordˆ ancia entre experimento e a teoria, indica claramente que o espalhamento ´e um fenˆ omeno quˆ antico e que pode ser explicado sem a introdu¸c˜ ao de nenhuma hip´ otese nova ... al´em disso, o quanta de radia¸c˜ ao carrega consigo tanto momento quanto energia43 . Dessa forma, podemos considerar os estudos de Compton como mais uma confirma¸c˜ ao independente tanto da quantiza¸c˜ao de energia proposta por Planck quanto da existˆencia do f´oton proposta por Einstein.

3.4.1

An´ alise Quantitativa

Para a radia¸ca˜o X de frequˆencia ν, a energia de um f´oton no feixe incidente vale hν e seu momento p. A energia relativ´ıstica do f´oton44 ´e dada por m o c2 E=q . 2 1 − vc2

(3.39)

como a velocidade do f´ oton ´e c e sua energia E = hν ´e finita, a massa de repouso do f´ oton mo deve, necessariamente, ser nula. Assim, toda sua energia deve ser cin´etica, o que nos leva a E = pc. Reescrevendo a express˜ao temos p=

hν h E = = . c c λ

(3.40)

Considere uma colis˜ ao como a esquematizada na fig. 3.18. Nela o el´etron ´e esquematizado por um c´ırculo e a onda incidente por uma linha senoidal. Sejam p1 e p2 os momentos do f´ oton antes e ap´os a colis˜ao,e pe o momento do el´etron ap´ os a colis˜ ao. Suponha, ainda, que o el´etron esteja em repouso antes 43 Tradu¸ c˜ ao livre do autor para This remarkable agreement between experiment and theory indicates clearly that scattering is a quantum phenomenon and can be explained without introducing any new hypothesis ... also that a radiation quantum carries with it momentum as well as energy. Ver nota 43. 44 O estudo da Relatividade Restrita proposta por Einstein, em 1905, ´ e discutido no primeiro cap´ıtulo.

60

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

da colis˜ ao. Para que haja conserva¸c˜ ao do momento devemos ter: em x p1 = pe cos Φ + p2 cos θ

em y 0 = pe sin Φ − p2 sin θ ou

p2e

2

2

cos Φ = (p1 − p2 cos θ)

p2e

2

sin Φ =

p22

(3.41)

2

sin θ.

Somando membro a membro, temos: p2e cos2 Φ + p2e sin2 Φ = p22 sin2 θp21 − 2p1 p2 cos θ + p22 cos2 θ, ou seja, p2e = p21 p22 − 2p1 p2 cos θ.

(3.42)

Por outro lado, utilizando a conserva¸ca˜o de energia devemos levar em considera¸ca˜o antes da colis˜ ao a energia inicial do f´ oton (E1 ) e a energia de repouso do el´etron. Ap´ os a colis˜ ao teremos as energias cin´etica e de repouso do el´etron e a energia final do Figura 3.18: Representa¸c˜ ao esquem´atica do processo f´oton (E2 ). Seja mo de espalhamento entre um f´ oton e um el´etron. a massa de repouso do el´etron. Nesse caso: p (3.43) E1 + mo c2 = E2 + m2o c4 + p2e c2 , onde o primeiro termo do lado esquerdo corresponde `a energia cin´etica do f´oton incidente e o segundo ` a energia de repouso do el´etron, enquanto do lado direito temos a energia cin´etica do f´ oton espalhado e a soma da energia de repouso e da energia cin´etica do el´etron espalhado. Usando o fato de que a energia cin´etica do f´ oton vale E = pc, teremos p (3.44) p1 c + mo c2 − p2 c = m2o c4 + p2e c2 . Elevando ambos os membros ao quadrado, n˜ ao ´e dif´ıcil mostrar que a equa¸c˜ao se reduz a: p2e = p21 + p22 − 2p1 p2 + 2mo c (p1 − p2 ) . (3.45) Combinando as equa¸c˜ oes 3.42 e 3.45 ´e imediato que mo c (p1 − p2 ) = p1 p2 (1 − cos θ) .

(3.46)

2.5 A natureza dual ...

Miotto e Ferraz

Multiplicando-se a equa¸c˜ ao 3.46 por teremos finalmente λ2 − λ1 =

hc p1 p2 m o c

e usando o fato de que p =

h (1 − cos θ) , mo c

61 h λ,

(3.47)

que ´e conhecida como equa¸c˜ ao de Compton e o coeficiente mho c como comprimento de onda Compton, correspondendo ao valor m´aximo observado para a varia¸c˜ ao do comprimento de onda em um experimento de Compton. Alguns dos f´ otons colidem com el´etrons fortemente ligados ao n´ ucleo. Nesses casos os f´ otons n˜ ao perdem energia para os el´etrons, o que ´e conhecido como Espalhamento Thomson, explicando o pico com comprimento de onda idˆentico ao da onda incidente. Observe ainda que a diferen¸ca λ2 − λ1 ´e muito 1 pequena e s´ o observ´ avel se λ for muito pequeno, tal que λ2λ−λ atinja valores 1 apreci´ aveis. Leitura Complementar: Os Raios X Os Raios X foram descobertos em 1895, por W. Roentgen quando trabalhava com um tubo de raios cat´ odicos. Ele descobriu que quando certos raios, que se originavam no ponto onde os raios cat´ odicos (que na verdade s˜ ao el´ etrons), chocavam-se com o tubo de vidro, ou com um alvo dentro do tubo, podiam atravessar materiais opacos a ` luz e ativar uma tela fluorescente ou placa fotogr´ afica. Ele investigou este fenˆ omeno extensivamente e verificou que todos os materiais eram transparentes a esses raios em algum grau e que a transparˆ encia decrescia com o aumento da densidade. Essa caracter´ıstica not´ avel levou ao uso m´ edico dos Raios X alguns meses ap´ os o trabalho de R¨ otengen. R¨ ontegen n˜ ao pode desviar esses raios com um campo magn´ etico nem observar fenˆ omenos de refra¸c˜ ao ou interferˆ encia associados a essas ondas. A natureza misteriosa de tais raios fez com que R¨ otengen desse a eles o nome de raios X. Como a Teoria Cl´ assica do Eletromagnetismo prevˆ e que cargas aceleradas devem irradiar ondas eletromagn´ eticas, ´ e natural esperar que os Raios X sejam ondas eletromagn´ eticas produzidas pela acelera¸ca ˜o de el´ etrons quando esses s˜ ao freados pelo alvo. Em 1899, H. Haga e C. H. Wind observaram um ligeiro alargamento de um feixe de Raios X depois de atravessarem fendas de alguns poucos milion´ esimos de largura. Admitindo que este fato era devido ` a difra¸ca ˜o, eles estimaram o comprimento de onda dos Raios X como sendo da ordem de 10−10 m (ou 1 angstron - ˚ A). Em 1912, Laue sugeriu que, como os comprimentos de onda dos Raios X eram da mesma ordem de grandeza dos espa¸camentos entre os ´ atomos de um cristal, esse arranjo regular de ´ atomos num cristal poderia servir como uma rede tridimensional para a difra¸c˜ ao de Raios X. W. Friederich e P.Knipping seguiram a sugest˜ ao e observaram os primeiros espectros de Raios X dos cristais, estimando entre 0,1 e 0,5 ˚ A o seu comprimento de onda. Esse experimento propiciou ainda duas importantes confirma¸c˜ oes: a de que os Raios X s˜ ao ondas eletromagn´ eticas e os s´ olidos (ou pelo menos muitos deles) apresentam arranjo peri´ odico dos a ´tomos que os constituem.

3.5

A natureza dual da radia¸c˜ ao eletromagn´ etica

Em seu artigo Uma Teoria Quˆ antica para o espalhamento de Raios X por elementos leves, Compton escreveu: A presente teoria depende essencialmente da suposi¸c˜ ao de que cada el´etron participa do processo espalhando um quantum

62

Miotto e Ferraz

A Teoria Quˆ antica

completo (f´ oton). Isto envolve tamb´em a hip´ otese de que os quanta de radia¸c˜ ao vˆem de dire¸c˜ oes definidas e s˜ ao espalhados em dire¸c˜ oes definidas. O apoio experimental da teoria indica de forma bastante convincente que um quantum de radia¸c˜ ao carrega consigo tanto momento como energia45 . A necessidade da hip´ otese do f´ oton, ou part´ıcula localizada, para interpretar processos que envolvem a intera¸c˜ ao da radia¸c˜ ao com a mat´eria ´e clara, mas ao mesmo tempo ´e necess´ aria uma teoria ondulat´ oria da radia¸c˜ao para explicar os fenˆ omenos de interferˆencia e difra¸c˜ ao. A ideia de que a radia¸c˜ao n˜ao ´e um fenˆ omeno puramente ondulat´ orio e nem meramente um feixe de part´ıculas deve ser ponderada com muito cuidado. O que quer que seja a radia¸c˜ao, ela se comporta como uma onda em certos experimentos e como uma part´ıcula em outros. Sem d´ uvida essa situa¸c˜ ao ´e colocada em evidˆencia no trabalho experimental de Compton, onde (a) um espectrˆ ometro de cristal ´e utilizado para medir o comprimento de onda dos Raios X, sendo as medidas analisadas por meio da teoria ondulat´ oria da difra¸c˜ ao; e (b) o espalhamento afeta o comprimento de onda de uma forma que s´ o pode ser compreendida tratando os ´ essencial deixarmos claro que o comportamento da Raios X como part´ıculas. E radia¸ca˜o eletromagn´etica como part´ıcula ou como onda est´a intrinsecamente relacionada ao experimento que ser´ a realizado. Se o experimento ´e tal que um car´ ater coletivo ser´ a observado (como no caso de fenˆomenos de interferˆencia), ent˜ ao o comportamento ser´ a o de uma onda. Todavia, se o experimento for tal que um car´ ater individual ´e observado (como no caso do efeito fotoel´etrico), ent˜ ao o comportamento ser´ a o de uma part´ıcula. Essa discuss˜ao ser´a retomada mais a frente, j´ a que a caracter´ıstica dual da radia¸c˜ao eletromagn´etica ser´ a verificada em diversos fenˆ omenos.

45 Tradu¸ c˜ ao livre do autor para ... The present theory depends essentially upon the assumption that each electron which is effective in the scattering scatters a complete quantum. It involves also the hypothesis that the quanta of radiation are received from definite directions and are scattered in definite directions. The experimental support of the theory indicates very convincingly that a radiation quantum carries with it directed momentum as well as energy. Physical Review 21, 483 (1923).

Cap´ıtulo 4

Modelos Atˆ omicos O conceito de ´ atomo n˜ ao ´e uma novidade. Os mais antigos relatos1 sugerem 2 que foi Leucippus que, por volta do s´eculo V a.C., apresentou tal conceito. Apesar de existirem poucas informa¸c˜ oes sobre Leucippus, relatos acerca dos trabalhos de seu disc´ıpulo Democritus3 , dentre os quais os de Epicurus - que foi um grande disseminador dessa teoria - e Arist´oteles4 , indicavam que o conceito de ´ atomo baseava-se na hip´ otese de que os constituintes fundamentais do mundo natural eram entes indivis´ıveis e o vazio. Em outras palavras, Leucippus e Democritus pressup˜ oem que existe um limite inferior para a divis˜ao da mat´eria, a partir da qual n˜ ao se pode passar. Esse limite seria o ´atomo, que vem do grego atomos, ou o que n˜ ao pode ser dividido. Segundo Epicurus, em sua obra De Rerum Natura5 , se a mat´eria pudesse ser infinitamente dividida, estaria sujeita a completa desintegra¸c˜ ao e n˜ ao poderia mais ser reconstru´ıda. Apesar de ser poss´ıvel destruir mat´eria atrav´es de sucessivas divis˜oes, Democritus observara que tamb´em ´e poss´ıvel fazer novas coisas ao agregar pequenos peda¸cos de mat´eria, o que implica que o processo de desintegra¸c˜ao-reintegra¸c˜ao ´e revers´ıvel. Essa reversibilidade leva ao limite inferior na divis˜ao da mat´eria. Al´em de acreditar que a mat´eria tinha um limite inferior, Epicurus estabeleceu um limite superior para os ´ atomos de forma a garantir que esses fossem sempre invis´ıveis aos olhos humanos. 1 Sylvia Berryman, Ancient Atomism, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition), Edward N. Zalta (ed.), dispon´ıvel em http://plato.stanford.edu/ archives/fall2008/entries/atomism-ancient. 2 Sylvia Berryman, Leucippus, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), dispon´ıvel em http://plato.stanford.edu/archives/ fall2010/entries/leucippus. 3 Sylvia Berryman, Democritus, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), dispon´ıvel em http://plato.stanford.edu/archives/ fall2010/entries/democritus/. 4 Os relatos de Arist´ oteles deixam claro sua oposi¸ca ˜o ` a id´ eia de a ´tomo apresentado por Leucippus. 5 Uma tradu¸ c˜ ao para o inglˆ es da obra Sobre a Natureza das Coisas pode ser obtida em http://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/gutbook/lookup?num=785.

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Miotto e Ferraz

Modelos Atˆ omicos

A existˆencia de vazios entre os ´ atomos, conforme proposta de Epicurus, explicaria as varia¸c˜ oes observadas na mat´eria, sendo tais varia¸c˜oes atribu´ıdas ao movimento dos ´ atomos. Al´em das proposi¸c˜ oes originais de Epicurus, Democritus sugeriu, ainda, que os ´ atomos eram completamente s´olidos, homogˆeneos, n˜ ao apresentariam estrutura interna e que diferiam em tamanho, forma e peso.

4.1 4.1.1

Antecedentes Experimentais F´ ormulas emp´ıricas espectrais

Em seu famoso livro Opticks6 , Isaac Newton demonstrou que a luz do Sol decomp˜ oe-se em luz de diferentes cores ao passar por um prisma, formando um espectro, como o arco-´ıris. Essa descoberta levou a diversos estudos que culminaram com a proposi¸c˜ ao das Linhas de Fraunhofer7 . Em 1857, Robert Wilhelm Bunsen inventou o bico de g´ as (conhecido hoje como bico de Bunsen8 ), cuja chama apresentava uma caracter´ıstica incolor. Quando um elemento qu´ımico era colocado sobre a chama, a chama adquiria uma certa colora¸c˜ao t´ıpica. Utilizando o invento de Bunsen, Gustav Robert Kirchhoff9 desenvolveu um estudo detalhado das linhas de Fraunhofer no qual sugeria que as cores emitidas por um dado elemento qu´ımico, quando colocado sobre a chama, seriam melhor identificadas se passadas atrav´es de um prisma. O aparato experimental foi ent˜ ao aperfei¸coado e o elemento n˜ ao era mais colocado sobre a chama, mas sim aquecido em um tubo. A radia¸c˜ ao emitida tinha as mesmas caracter´ısticas daquela emitida quando o elemento era colocado sobre a chama. De fato, quando examinada atrav´es de um espectrosc´ opio, o espectro emitido era constitu´ıdo por um conjunto de linhas discretas, cada uma de uma cor ou comprimento de onda particular, e cujas posi¸c˜ oes e intensidades s˜ ao caracter´ısticas do elemento em estudo (ver figura 4.1). Os comprimentos de onda dessas linhas foram determinados com precis˜ ao e muito esfor¸co da comunidade cient´ıfica de ent˜ao foi despendido na tentativa de se encontrar regularidades nos espectros obtidos experimentalmente. Um grande progresso foi alcan¸cado em 1885, quando Balmer10 , mostrou que as linhas no espectro do hidrogˆenio poderiam ser representadas pela express˜ao: 6 A primeira edi¸ c˜ ao, de 1704, est´ a dispon´ıvel em http://www.rarebookroom.org/ Control/nwtopt/index.html 7 O Espectro de Fraunhofer ou Linhas de Fraunhofer s˜ ao um conjunto de linhas espectrais associadas originalmente a faixas escuras existentes no espectro solar, e que foram catalogadas pelo f´ısico alem˜ ao Joseph von Fraunhofer. Essas linhas escuras, originalmente observadas por William Hyde Wollaston, foram posteriormente atribu´ıdas a ` absor¸c˜ ao da luz pelos elementos existentes nas camadas mais externas do Sol. Ver, por exemplo, Francis A Jenkins and Harvey Elliott White, Fundamentals of optics New York, McGraw-Hill (2001). 8 William B. Jensen, The Origin of the Bunsen Burner , Chemical Education Today 82, 518 (2005). 9 Ueber die Fraunhofer’schen Linien, Annalen der Physik 185, 148 (1860). 10 Annalen der Physik und Chemie 25, 80 (1885), tradu¸ c˜ ao em inglˆ es dispon´ıvel em http: //web.lemoyne.edu/˜giunta/balmer.html.

4.1 Antecedentes Experimentais

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65

Figura 4.1: Representa¸c˜ ao esquem´ atica de um experimento de emiss˜ao de um g´ as (no caso H2 ). A luz emitida ´e colimada por uma fenda e depois passa por um prisma. As linhas resultantes s˜ ao observadas no anteparo. Diferentes gases apresentam diferentes linhas (ou frequˆencias caracter´ısticas) de emiss˜ao.

2

λ = 364,6 mm e o comprimento de onda em nanometros e m um 2 −4 , onde λ ´ n´ umero inteiro maior do que 2. Balmer utilizou um aparato experimental semelhante ao esquematizado na figura 4.1, obtendo um espectro semelhante ao indicado na figura 4.2. A s´erie obtida atrav´es de tal express˜ao ficou conhecida com S´erie de Balmer. Ela descrevia corretamente o comprimento de onda das nove linhas espectrais conhecidas na ´epoca com precis˜ao superior a uma parte em mil. Essa descoberta iniciou uma busca por f´ormulas emp´ıricas similares que pudessem ser identificadas na distribui¸ca˜o de linhas que constituem o espectro de outros elementos. Balmer sugeriu que sua f´ormula poderia ser o caso particular de uma express˜ ao mais geral, aplic´avel aos espectros de outros elementos. Essa express˜ ao, encontrada por J. R. Rydberg11 e posteriormente rigorosamente demonstrada12 por W. Ritz13 , fornece o inverso do comprimento

11 Research on the Structure of the Emission Spectra of the Chemical Elements, Kongl. Svenska Vetenskaps Akademians Handlingar 23, No. 11, Stockholm (1890) 12 Uma an´ alise detalhada da participa¸c˜ ao de Rydberg, Ritz e outros pesquisadores para o desenvolvimento da express˜ ao hoje conhecida como Express˜ ao de Rydberg-Ritz pode ser encontrada em M. A. El’yashevich, N. G. Kembrovskaya, and L. M. Tomil’chik, Rydberg and the development of atomic spectroscopy (Centennial of J. R. Rydberg’s paper on the laws governing atomic spectra), Sov. Phys. Usp. 33, 1047 (1990), dispon´ıvel em http: //iopscience.iop.org/0038-5670/33/12/R03. 13 W. Ritz, Gesammelte Werke (Collected Works), Paris (1911).

66

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Modelos Atˆ omicos

Figura 4.2: Reprodu¸c˜ ao do espectro de emiss˜ ao do ´atomo de hidrogˆenio na regi˜ ao do vis´ıvel e ultravioleta pr´ oximo. A letra Hx representa a posi¸c˜ao da radia¸ca˜o. Adaptado de G. Herzberg, Molecular Spectra and Molecular Structure, 2a Edi¸c˜ ao (1944).

de onda e tem a forma:

1 =R λ



onde n e m s˜ ao inteiros, tais que n Rydberg14 Em uma s´erie de trabalhos15 publicados em 1897, Zeeman demonstrou que as linhas espectrais produzidas por diversos gases confinados em um tubo aquecido eram separadas quando o g´ as era submetido ` a uma campo magn´etico externo (ver figura 4.3). Para algumas esp´ecies, como o hidrogˆenio, as linhas espectrais dividem-se em trˆes sob a a¸c˜ ao do campo magn´etico. Esse fato ´e conhecido como Efeito Zeeman. Para alguns outros ´ atomos, como o s´ odio,

1 1 − 2 2 m n

 (4.1)

> m e R ´e chamada de constante de

Figura 4.3: Representa¸c˜ao esquem´atica de uma linha de um espectro de emiss˜ ao na ausˆencia e na presen¸ca de um campo magn´etico externo.

14 A constante de Rydberg n˜ ao ´ e a mesma para todos os elementos, mas apresenta uma varia¸ca ˜o muito pequena. Seja RX o valor da constante para o elemento X. Enquanto RH = 1,096776×107 m−1 , Relementopesado = 1,097373×107 m−1 . Assim, em geral apenas o valor de RH ´ e utilizado. 15 On the influence of Magnetism on the Nature of the Light emitted by a Substance, Philosophical Magazine 43, 226 (1897); Doubles and triplets in the spectrum produced by external magnetic forces, Philosophical Magazine 44, 55 (1897); e The Effect of Magnetisation on the Nature of Light Emitted by a Substance, Nature 55, 347 (1897).

4.1 Antecedentes Experimentais

Miotto e Ferraz

67

o espectro apresenta um padr˜ ao de separa¸c˜ ao mais complexo e o fenˆomeno ´e conhecido como Efeito Zeeman Anˆ omalo. A explica¸c˜ao desse fenˆomeno representou um grande desafio para os pioneiros da F´ısica Quˆantica e teve grande influˆencia na elabora¸c˜ ao dos primeiros modelos atˆomicos, j´a que indicava claramente que o ´ atomo era uma estrutura complexa. De fato, a descoberta de Zeeman foi a primeira evidˆencia de que cargas el´etricas deveriam ter alguma influˆencia no espectro emitido por um dado elemento.

4.1.2

A descoberta do el´ etron

A natureza das descargas el´etricas em tubos de raio cat´odicos foi objeto de estudo de um grande n´ umero de pesquisadores no final do s´eculo XIX. Duas vis˜ oes eram prevalentes16 : na primeira, apoiada principalmente pelos f´ısicos ingleses, supunha-se que os raios cat´ odicos eram corpos negativamente eletrificados ejetados do catodo a grandes velocidades; na segunda, apoiada pela grande maioria dos f´ısicos alem˜ aes, acreditava-se que os raios eram algum tipo de vibra¸c˜ ao et´erea ou ondas. Para demonstrar que suas suposi¸c˜oes eram corretas, Thomson realizou uma s´erie de experimentos17 em que retirou os gases presentes no interior do tubo e demonstrou que, nessas condi¸c˜oes, os raios cat´ odicos eram eletricamente defletidos. Os in´ umeros experimentos de Thomson permitiram verificar que a deflex˜ ao produzida por for¸cas el´etricas e magn´eticas tinha uma dire¸c˜ ao que claramente indicava que os raios eram negativamente carregados. O pr´ oximo passo de Thomson consistiu na determina¸c˜ao da velocidade dessas part´ıculas negativamente carregadas, o que possibilitou a determina¸c˜ao da raz˜ ao e/m a partir da for¸ca coulombiana e da for¸ca gravitacional que agem sobre elas. A raz˜ ao e/m obtida por Thomson era quase 1700 vezes menor do que a mesma raz˜ ao obtida para o ´ atomo de hidrogˆenio carregado18 . Essa grande diferen¸ca s´ o poderia ser explicada se a massa da part´ıcula fosse muito menor do que a massa do ´ atomo de hidrogˆenio ou se sua carga fosse muito maior do que a carga do ´ atomo carregado. Fazendo uso dos experimentos de C. T. R. Wilson em cˆ amaras de condensa¸c˜ ao, Thomson descartou a segunda hip´ otese, o que permitiu a ele estimar o valor da carga das part´ıculas19 e levou-o a concluir que o ´ atomo n˜ ao era o limite para a subdivis˜ ao da mat´eria, j´ a que era poss´ıvel detectar uma part´ıcula negativamente carregada com massa 16 Conforme relato do pr´ oprio Thomson em sua palestra por ocasi˜ ao do recebimento do Prˆ emio Nobel de F´ısica de em 11 de dezembro de 1906. 17 Cathode Rays, The Electrician 39, 104 (1897), tamb´ em publicado no Proceedings of the Royal Institution April 30, 1897, foi o primeiro an´ uncio da existˆ encia de um corp´ usculo; Cathode rays, Philosophical Magazine 44, 293 (1897) ´ e o artigo cl´ assico onde a raz˜ ao e/m ´ e obtida. 18 O a ´tomo de hidrogˆ enio carregado utilizado para determinar e/m era obtido atrav´ es da eletr´ olise da ´ agua 19 Thomson estimou a carga como sendo da ordem de 1,1 × 10−19 C e a massa da part´ ıcula como sendo aproximadamente igual a 6 × 10−28 gramas, que s˜ ao da ordem de grandeza dos valores mais aceitos atualmente.

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aproximadamente 1700 vezes menor do que a massa do ´atomo de hidrogˆenio. Essas part´ıculas foram chamadas el´etrons20 . A quantiza¸ c˜ ao da carga do el´ etron Os experimentos de Zeeman e Thomson demonstravam atrav´es de m´etodos distintos a existˆencia do el´etron. A esses estudos seguiram-se v´arios outros que levaram a uma aceita¸c˜ ao quase universal da existˆencia do el´etron. Ainda assim, inexistia um experimento no qual fosse poss´ıvel determinar de forma independente a massa ou a carga do el´etron, o que permitia que alguns ainda especulassem que o car´ ater unit´ ario da eletricidade nada mais era do que um fenˆ omeno estat´ıstico. Uma prova direta da existˆencia do el´etron foi o experimento21 idealizado por Robert Millikan22 e Harvey Fletcher em 1909. Esse experimento utiliza um aparato (figura 4.4) semelhante ` a cˆ amara de Wilson e faz uso da determina¸c˜ ao da velocidade terminal de uma gota esf´erica caindo sob a a¸ca˜o de um campo gravitacional, num fluido viscoso. Millikan, aproveitando-se do fato de que as gotas est˜ ao eletricamente carregadas, utiliza uma diferen¸ca de potencial para imobilizar as gotas23 . As gotas imobilizadas tˆem as for¸cas el´etrica e gravitacional em equil´ıbrio, o que Figura 4.4: Representa¸c˜ao esquem´atica permite determinar a carga el´etrica do aparato experimental utilizado por elementar atrav´es de uma rela¸c˜ ao Millikan. simples como24 p g e = 3,1 × 10−19 (Vx − Vj ) Vj , E onde g ´e o m´ odulo da acelera¸c˜ ao da gravidade, E o m´odulo do campo el´etrico aplicado, Vx e Vj s˜ ao, respectivamente, os m´ odulos das velocidades terminais 20 O termo el´ etron, que em grego significa ˆ ambar, foi originalmente utilizado por George Johnstone Stoney em 1881 (G. J. Stoney, Phil. Mug. II, 384 (1881)), ou seja, antes da descoberta de Thomson, para identificar o correspondente ao a ´tomo (a menor por¸c˜ ao da mat´ eria) para a eletricidade. 21 Existem v´ arias controv´ ersias acerca desse experimento. A primeira refere-se a participa¸c˜ ao de Fletcher nos experimentos, mas a ausˆ encia de seu nome no famoso trabalho que valeu a Millikan o Prˆ emio Nobel de F´ısica em 1923 (ver, por exemplo, Revista Brasileira de Ensino de F´ısica 17, 107 (1995)) e a segunda a respeito das alega¸c˜ oes de que Millikan escolheu cuidadosamente os pontos que usaria na determina¸ca ˜o da carga do el´ etron (ver, por exemplo, The Chemical Educator 2, 1 (1997). 22 Science 32, 436 (1910). 23 Veja uma simula¸ c˜ ao computacional do experimento em http://physics.wku.edu/ womble/phys260/millikan.html. ˜ 24 Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica 17, 107 (1995)

4.2 O Modelo de Thomson

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com e sem campo el´etrico, e e ´e a carga do el´etron. Em 1913, Millikan apresentou um novo trabalho discutindo modifica¸c˜oes necess´ arias para melhorar a acur´ acia da metodologia original25 . O valor determinado por Millikan em seu trabalho de 1913 difere em cerca de 1% do valor mais aceito atualmente (1,602176487(40) × 10−19 C). Esse desvio se deve em grande parte ao fato de Millikan ter utilizado um valor equivocado da viscosidade do ar26 . Apesar das muitas controv´ersias envolvendo o trabalho de Millikan, n˜ao se pode negar que juntamente com os experimentos de Zeeman e Thomson ele traz ` a luz um novo aspecto at´e ent˜ ao desconhecido: a quantiza¸c˜ao da carga. Essa observa¸cao ´e a primeira evidˆencia de uma propriedade ainda mais fundamental: a quantiza¸c˜ ao dos estados da mat´eria.

4.2

O Modelo de Thomson

O grande conjunto de evidˆencias experimentais, que apontavam para um modelo atˆ omico complexo, incentivava um grande n´ umero de pesquisadores a somarem esfor¸cos na tentativa de construir um modelo cujo espectro de radia¸c˜ ao fosse compat´ıvel com as f´ ormulas emp´ıricas apresentadas. Sabia-se que um ´ atomo possu´ıa um diˆ ametro da ordem de 10−10 metros, continha el´etrons muito mais leves do que ele pr´ oprio e era eletricamente neutro. O grande sucesso das Leis de Maxwell na descri¸c˜ ao das ondas eletromagn´eticas fez com que j´ a os primeiros modelos atˆ omicos apontassem para um espectro proveniente das vibra¸c˜ oes de suas part´ıculas carregadas. De fato, diversos experimentos forneciam uma boa estimativa do n´ umero atˆ omico (Z) e indicavam que, numericamente, o n´ umero de el´etrons era aproximadamente igual `a metade do peso atˆ omico do ´ atomo considerado. Como os ´ atomos em seu estado fundamental s˜ ao neutros, eles devem conter uma carga positiva com mesmo m´odulo que a carga negativa de seus el´etrons. De acordo com esse racioc´ınio, um ´atomo neutro tem uma carga negativa −Ze e uma carga positiva +Ze. O fato de que a massa do el´etron ´e muito pequena se comparada com a de qualquer ´atomo implica em dizer que a maior parte da massa do ´atomo deve estar associada `a carga positiva. Essas considera¸c˜ oes levaram ao problema de como seria a distribui¸c˜ao de cargas positivas e negativas dentro do ´ atomo. J. J. Thomson propˆos27 uma tentativa de descri¸c˜ ao, ou modelo, de um ´ atomo segundo o qual os el´etrons carregados negativamente estariam localizados no interior de uma distribui¸c˜ao cont´ınua de cargas positivas. Por simplicidade, Thomson supˆos que a forma da distribui¸c˜ ao da carga positiva fosse esf´erica com um raio da ordem de grandeza 25 http://www.aip.org/history/gap/PDF/millikan.pdf 26 Em

seu livro Surely you’re joking, Mr. Feynman!, Richard Feynman utiliza esse desvio sistem´ atico para criticar diversos pesquisadores que escolhiam os seus resultados experimentais de modo a obterem valores para e pr´ oximos ao valor encontrado por Millikan! 27 Philosophical Magazine Series 6 7, 237 (1904).

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Modelos Atˆ omicos

do raio de um ´ atomo (10−10 m). Devido ` a repuls˜ ao m´ utua, os el´etrons estariam uniformemente distribu´ıdos na esfera de carga positiva, como indicado na figura 4.5. Esse modelo tinha uma distribui¸c˜ ao muito semelhante ` a de um pudim de ameixas tendo ficado conhecido por esse nome. Um ´ atomo em seu estado fundamental tem os el´etrons fixos em suas posi¸c˜ oes de equil´ıbrio. Para ´ atomos excitados, os el´etrons vibram em torno de suas posi¸co˜es de equil´ıbrio. Como o eletromagnetismo prevˆe que um corpo Figura 4.5: Representa¸c˜ao esquem´atica carregado acelerado emite radia¸c˜ ao do modelo de Thomson para o ´atomo: eletromagn´etica, o modelo de Thom- el´etrons carregados negativamente esson permitia entender qualitativa- tariam localizados no interior de uma ao cont´ınua de cargas positimente a emiss˜ ao de radia¸c˜ ao por distribui¸c˜ vas. ´atomos excitados. Todavia, quantitativamente, o modelo n˜ ao descrevia os espectros observados. O grande problema do modelo de Thomson residia no fato dele prever apenas uma frequˆencia de emiss˜ ao caracter´ıstica para o ´atomo de hidrogˆenio28 enquanto um grande n´ umero de frequˆencias eram observadas experimentalmente. Apesar desse problema intr´ınseco, o modelo de Thomson foi o primeiro a associar, ao menos qualitativamente, a estrutura interna do ´atomo ao seu espectro de emiss˜ ao. O fracasso desse modelo s´ o foi definitivamente estabelecido em 1911 com os trabalhos de Rutherford29 , cujo aparato experimental est´ a representado na figura 4.6. Ao estudar o espalhamento de part´ıculas alfa (que j´ a se sabia serem el´etrons), Rutherford e Figura 4.6: Representa¸c˜ao esquem´atica do colaboradores verificaram que aparato de Rutherford. elas poderiam ser espalhadas a grandes ˆ angulos30 . 28 Segundo Thomson, os el´ etrons vibravam em torno de sua posi¸ca ˜o de equil´ıbrio com frequˆ encia caracter´ıstica igual a sua frequˆ encia de emiss˜ ao. Como todos os el´ etrons do sistema s˜ ao equivalentes, n˜ ao existe nenhuma raz˜ ao para que os el´ etrons tenham frequˆ encias de vibra¸c˜ ao diferentes, ou seja, apenas uma frequˆ encia poderia ser emitida. 29 The Scattering of α and β Particles by Matter and the Structure of the Atom, Philos. Mag. 6, 21 (1911), dispon´ıvel em http://www.lawebdefisica.com/arts/ structureatom.pdf 30 Veja uma simula¸ c˜ ao do experimento de Rutherford em http://micro.magnet.fsu.

4.3 Modelo de Rutherford

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Este fato era incompat´ıvel com o modelo de Thomson, j´ a que a distribui¸c˜ ao cont´ınua de cargas de cada ´ atomo deveria provocar apenas pequenas deflex˜ oes nas part´ıculas inci- Figura 4.7: Representa¸c˜ao esquem´atica do (a) dentes. Ocorre que Ruther- resultado esperado e (b) resultado obtido por ford verificou que mesmo Rutherford. atomos individuais poderiam ´ espalhar a part´ıcula alfa por ˆ angulos muito grandes (at´e 180◦ ). Segundo Rutherford: Foi praticamente o acontecimento mais inacredit´ avel de minha vida. Era t˜ ao inacredit´ avel como se vocˆe atirasse um obus de 15 polegadas sobre um peda¸co de papel de seda e ele voltasse e o atingisse.

4.3

Modelo de Rutherford

No modelo de Rutherford para a estrutura do ´atomo, todas as cargas positivas deste ´ atomo e, consequentemente, a sua massa, est˜ao concentradas em uma pequena regi˜ ao central, chamada n´ ucleo. Se suas dimens˜oes forem suficientemente pequenas, uma part´ıcula alfa que passe bem perto desse n´ ucleo poder´ a ser espalhada em um grande ˆ angulo devido a forte repuls˜ao coulombiana. Para que o espalhamento ocorra a um ˆ angulo de θ ∼ 1 rad, ou seja, cerca de 57◦ , toda carga positiva do ´ atomo deve estar concentrada em uma regi˜ao com raio da ordem de 10−14 m31 . Em suas considera¸c˜oes Rutherford utilizou as seguintes hip´ oteses: 1. O espalhamento ocorreria apenas para ˆ angulos maiores do que alguns graus (o que elimina o espalhamento por el´etrons); 2. O espalhamento ocorreria principalmente devido `a intera¸c˜ao coulombiana entre part´ıculas alfa e o ´ atomo; 3. Os ´ atomos considerados seriam pesados, isto ´e, suas massas seriam t˜ao grandes em rela¸c˜ ao ` as massas do el´etron que durante o espalhamento n˜ ao ocorreria o recuo do ´ atomo; 4. As part´ıculas alfa n˜ ao penetrariam nos n´ ucleos atˆomico e a intera¸c˜ao entre ambas ocorreria como se fossem cargas pontuais. Por simplicidade, omitiremos os c´ alculos feitos por Rutherford baseados na trajet´ oria parab´ olica da figura 4.8. edu/electromag/java/rutherford. 31 Hoje sabemos que 10−14 m ´ e, de fato, a ordem de grandeza do raio de um n´ ucleo.

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Modelos Atˆ omicos

Em seu trabalho32 , Rutherford mostrou que o n´ umero de part´ıculas alfa que atravessam o alvo e s˜ ao espelhadas entre um determinado ˆ angulo θ e θ + dθ (que chamamos N (θ)dθ) equivale ao n´ umero de part´ıculas que Figura 4.8: Representa¸c˜ao esquem´atica incidem no alvo com parˆ ametro de da trajet´ oria hiperb´olica considerada impacto sobre o n´ ucleo entre b e por Rutherford. b ´e o parˆametro de imb + db. A express˜ ao determinada por pacto e θ o ˆ angulo de espalhamento. Rutherford tem a forma:  2   1 zZe2 Iρt2π sin θ (4.2) N (θ)dθ =  4 dθ, 4π0 2mv 2 sin θ2 onde t ´e a espessura do alvo; ρ ´e o n´ umero de n´ ucleos por cent´ımetro c´ ubico no alvo; I ´e o n´ umero de part´ıculas alfa incidentes; θ ´e o ˆangulo de espalhamento; Ze, a carga do n´ ucleo; e ze, M e v s˜ ao, respectivamente, a carga, a massa e a velocidade das part´ıculas alfa. A an´ alise da express˜ ao 4.2 indica claramente que o espalhamento em ˆangulos grandes ´e muito mais prov´ avel em um u ´nico espalhamento por um ´atomo nuclear (como o sugerido por Rutherford) do que em um espalhamento m´ ultiplo em pequenos ˆ angulos (como sugerido no modelo de Thomson). De fato, Geiger e Marsden33 realizaram um grande n´ umero de experimentos para verificar as dependˆencias sugeridas na formula¸c˜ ao original de Rutherford, obtendo os seguintes resultados: 1. Testou-se a dependˆencia angular usando-se alvos de prata e ouro, e varia¸c˜ oes de θ entre 5 e 150◦ . Embora N (θ)dθ variasse por um fator 105 nessa regi˜ ao, os dados experimentais eram proporcionais `a distribui¸c˜ao angular te´ orica; 2. Verificou-se que N (θ)dθ era proporcional ` a espessura do alvo (t) pelo menos para varia¸c˜ oes de t da ordem de 10 vezes; 3. Utilizando diferentes fontes de part´ıculas alfa foi poss´ıvel verificar que N (θ)dθ era inversamente proporcional ` a energia cin´etica das part´ıculas; 4. N (θ)dθ foi utilizado para determinar com sucesso o n´ umero atˆomico (Z) de diversos ´ atomos e tamb´em para verificar que o n´ umero de el´etrons era igual ao n´ umero atˆ omico. 5. Utilizando-se do fato de que a distˆ ancia de m´ axima aproxima¸c˜ao ´e proporcional ao raio da esfera carregada positivamente, Geiger e Marsden 32 The Scattering of α and β Particles by Matter and the Structure of the Atom, Philos. Mag. 6, 21 (1911) 33 On a Diffuse Reflection of the α-Particles, Proceedings of the Royal Society, Series A 82, 495 (1909), dispon´ıvel em http://www.chemteam.info/Chem-History/GM-1909.html.

4.3 Modelo de Rutherford

Miotto e Ferraz

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estimaram o raio atˆ omico do n´ ucleo de ouro como sendo da ordem de 3 × 10−14 metros. O tamanho de um n´ ucleo atˆomico est´a, tipicamente, entre 1 × 10−14 e 10 × 10−14 metros. Esse conjunto de experimentos indicava claramente que a proposi¸c˜ ao de Rutherford era compat´ıvel com os resultados experimentais e foi fundamental na populariza¸c˜ ao do aparato experimental por ele desenvolvido. Em s´ıntese, o Modelo de Rutherford prevˆe um n´ ucleo massivo, carregado positivamente e gran- Figura 4.9: Representa¸c˜ao esquem´atica des espa¸cos vazios, onde se encon- do modelo atˆomico proposto por trariam os el´etrons carregados nega- Rutherford. tivamente, conforme esquema na figura 4.9.

4.3.1

A estabilidade do ´ atomo nuclear

A verifica¸c˜ ao experimental detalhada das previs˜oes do modelo nuclear de Rutherford para o ´ atomo deixou pouco espa¸co para d´ uvidas em rela¸c˜ao `a validade desse modelo. No centro do ´ atomo encontra-se um n´ ucleo cuja massa ´e aproximadamente a massa de todo o ´ atomo, e cuja carga ´e igual ao n´ umero atˆ omico (Z) multiplicado pela carga fundamental (e); em torno desse n´ ucleo existem Z el´etrons, neutralizando o ´ atomo como um todo. Todavia, surgem s´erias quest˜ oes a respeito da estabilidade de um ´atomo desse tipo. Supondo, por exemplo, que os el´etrons em um ´ atomo s˜ ao estacion´arios, n˜ao existe arranjo est´ avel que os impe¸ca de colapsar no n´ ucleo, sob a influˆencia da atra¸c˜ao coulombiana. N˜ ao podemos admitir que o ´ atomo sofre um colapso, pois isso implicaria em termos ´ atomos com um raio da mesma ordem de grandeza do raio nuclear, que ´e quatro ordens de grandeza menor do que o valor obtido em diversos experimentos. Uma segunda possibilidade seria pensar em um modelo orbital. Nesse caso, os el´etrons simplesmente circulariam em torno do n´ ucleo, em ´orbitas semelhantes ` as dos planetas em torno do Sol. A For¸ca Eletrost´atica, Fe , exerceria o mesmo papel que a For¸ca Gravitacional exerce no caso planet´ario. O sistema assim idealizado pode ser mecanicamente est´avel, como ocorre com o sistema solar. Surge, no entanto, uma dificuldade s´eria quando tentamos transportar essa id´eia do sistema planet´ ario para o sistema atˆomico: os el´etrons, que s˜ ao eletricamente carregados, estariam constantemente acelerados em seu movimento em torno do n´ ucleo, e, de acordo com a Teoria Eletromagn´etica cl´ assica todos os corpos carregados irradiam energia na forma de radia¸c˜ao eletromagn´etica.

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Modelos Atˆ omicos

A energia seria emitida ` as custas da energia mecˆ anica do el´etron. Para que a energia do sistema seja conservada, a velocidade orbital, ~v , deve diminuir, tornando a o´rbita inst´ avel. Nesse caso, o el´etron necessaria- Figura 4.10: Compara¸c˜ao esquem´atica entre mente descreveria uma tra- um sistema mecanicamente est´avel, semelhante jet´ oria espiralada at´e atin- a um sistema planet´ ario, e a instabilidade elegir o n´ ucleo, conforme com- tromagn´etica, provocada pela emiss˜ao de rapara¸ca˜o esquem´ atica da fi- dia¸c˜ ao pelo el´etron acelerado, decorrentes do gura 4.10. Novamente ter´ıa- Modelo de Rutherford. mos um ´ atomo que rapidamente sofreria um colapso: para um ´ atomo de 10−10 m de diˆametro, por exemplo, o intervalo de tempo que um el´etron leva para colapsar no n´ ucleo ´e da ordem de 10−12 segundos. Isso significa que a mat´eria, tal como conhecemos, n˜ ao poderia existir. Al´em disso, o espectro cont´ınuo de radia¸c˜ao emitido durante esse processo n˜ ao est´ a de acordo com o espectro discreto observado experimentalmente. O problema da estabilidade atˆ omica foi um dos motivos que levaram Niels Bohr a propor um novo modelo para a estrutura dos ´atomos.

4.4

O modelo de Bohr

O f´ısico dinamarquˆes Niels Bohr propˆ os, em 1913, um modelo do ´atomo de hidrogˆenio34 que, combinado com os trabalhos de Planck, Einstein e Rutherford, teve sucesso extraordin´ ario reproduzindo o espectro observado experimentalmente. Bohr, que havia trabalhado no laborat´ orio de Rutherford durante as experiˆencias de Geiger e Marsden, formulou a hip´ otese de que o el´etron no ´ atomo de hidrogˆenio movia-se em arios uma o´rbita ao redor do n´ ucleo posi- Figura 4.11: Os estados estacion´ tivo, sujeito ` a atra¸c˜ ao eletrost´ atica. previstos pelo modelo de Bohr e os proNesse sistema, a mecˆ anica cl´ assica cessos de emiss˜ao e absor¸c˜ao de energia. prevˆe que ´ orbitas circulares ou el´ıpticas ser˜ ao est´ aveis. Bohr escolheu, por simplicidade, ´ orbitas circulares. Todavia, j´ a vimos que esse modelo leva ao colapso dos el´etrons no n´ ucleo e produz um espectro cont´ınuo de radia¸c˜ao, 34 On the Constitution of Atoms and Molecules, Part I, Philosophical Magazine 26, 1 (1913), dispon´ıvel em http://web.ihep.su/dbserv/compas/src/bohr13/eng.pdf.

4.4 O modelo de Bohr

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75

Figura 4.12: A explica¸c˜ ao de Bohr para o processo de absor¸c˜ao de luz nos experimentos com gases: o el´etron passa de um estado estacion´ario para outro absorvendo um f´ oton de energia.

o que ´e incompat´ıvel com os resultados experimentais dispon´ıveis. Essa dificuldade foi resolvida por Bohr postulando que o el´etron poderia mover-se em certas ´ orbitas sem irradiar. Essas ´ orbitas est´ aveis foram por ele denominadas estados estacion´ arios. Ele admitiu, ainda, que o ´atomo irradia quando realiza uma transi¸c˜ ao de um estado estacion´ ario para outro (ver figura 4.11) e que a frequˆencia da radia¸c˜ ao emitida n˜ ao est´ a relacionada com o movimento em nenhuma das ´ orbitas est´ aveis, mas sim com a energia das ´orbitas: hν = Ei − Ef , onde h ´e a constante de Planck e Ei e Ef s˜ ao as energias totais para as ´orbitas inicial e final. Essa hip´ otese, que ´e equivalente `a de conserva¸c˜ao de energia com a emiss˜ ao de um f´ oton, tem papel fundamental na nova teoria, pois se afasta da teoria cl´ assica que requer que a frequˆencia da radia¸c˜ao seja igual a do movimento da part´ıcula carregada. De forma an´ aloga, o processo de absor¸c˜ ao de luz ocorreria quando um f´oton excita um el´etron, que passa de um estado com energia mais baixa para um estado de energia mais alta (ver figura 4.12). Observe que durante os processos de absor¸c˜ ao e emiss˜ ao a energia dos f´ otons envolvida n˜ao ´e arbitr´aria, mas sim um n´ umero inteiro de unidades de hν. Isso significa que a energia dos el´etrons em um ´ atomo ´e quantizada . Para determinar o raio das ´ orbitas permitidas (n˜ao irradiantes) Bohr introduziu uma hip´ otese adicional que ´e conhecida como Princ´ıpio da Correspondˆencia: No limite de ´ orbitas grandes e de grandes energias, c´ alculos quˆ anticos devem concordar com c´ alculos cl´ assicos. O Princ´ıpio da Correspondˆencia afirma que quaisquer que sejam as modifica¸c˜ oes da F´ısica Cl´ assica feitas para descrever a mat´eria a n´ıvel microsc´opico, quando os resultados obtidos s˜ ao estendidos ao mundo macrosc´opico, eles devem concordar com os previstos pelas Leis da F´ısica Cl´assica, j´a que essas

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Modelos Atˆ omicos

foram exaustivamente verificadas no dia a dia. Muito embora o modelo detalhado de Bohr para o ´ atomo de hidrogˆenio tenha sido superado pela Teoria Quˆ antica, suas hip´ oteses sobre a emiss˜ ao e absor¸c˜ ao da radia¸c˜ao e o Princ´ıpio da Correspondˆencia permanecem como caracter´ısticas essenciais da Nova Teoria. Bohr, no seu primeiro artigo, em 1913, mostrou que seus postulados acarretavam em um momento angular do el´etron, no ´ atomo de hidrogˆenio, que somente poderia assumir valores que s˜ ao m´ ultiplos inteiros da constante de Planck dividido por 2π, isto ´e, o momento angular ´e quantizado, podendo somente assumir os valores nh e um n´ umero inteiro. 2π = n~, onde n ´ A express˜ ao obtida por Bohr relacionando a frequˆencia de emiss˜ao (ou absor¸c˜ ao) de um f´ oton quando um el´etron muda de um estado estacion´ario para outro com o raio do estado estacion´ ario ocupado pelo el´etron   1 1 1 Ei − Ef = − kZe2 − ν= , (4.3) h 2 ri rf foi de fundamental importˆ ancia para a grande aceita¸c˜ao do modelo de Bohr, j´a que a partir dela ´e poss´ıvel obter um conjunto de grandezas medidas experimentalmente, como veremos a seguir. Usando a quantiza¸c˜ ao do raio da ´ orbita (vide Detalhes Matem´aticos: A quantiza¸c˜ ao do momento angular) e a express˜ ao para a frequˆencia, obtemos facilmente uma express˜ ao para similar ` aquela obtida por Rydberg-Ritz: ! ! 1 1 hν Z 2 mk 2 e4 1 1 1 2 = (4.4) − 2 → =Z R − 2 , hc 4πc~3 n2f ni λ n2f ni 2 4

e onde R = mk 4πc~3 deve concordar com a constante de Rydberg. Bohr calculou R usando os valores de m, e, c e ~ conhecidos em 1913, e o resultado concordou razoavelmente bem com o valor da constante de Rydberg obtido pela espectroscopia. Al´em disso, Bohr enfatizou em seu trabalho original que essa equa¸c˜ ao poderia ser de valia para a determina¸c˜ao de melhores valores para as constantes m, e e ~ devido ` a extrema precis˜ao poss´ıvel na medida de R, o que de fato aconteceu. Os valores poss´ıveis para a energia do a´tomo de hidrogˆenio, conforme previsto pelo modelo de Bohr s˜ao dados por:

En = − 2 4

2

E0 mk 2 e4 Z 2 = −Z 2 2 2 2~ n n

(4.5)

onde E0 = mk2~e2 Z = 13,6 eV. Os n´ıveis de energia s˜ ao convenientemente indicados pelo diagrama de n´ıveis de energia exemplificado na figura 4.13. As setas verticais indicam as transi¸c˜ oes entre os n´ıveis de energia. A frequˆencia pode ser obtida atrav´es da Equa¸c˜ ao de Bohr 4.3 e a energia de ioniza¸c˜ ao (ou de liga¸c˜ao) ´e a energia requerida para remover o el´etron do ´ atomo. No caso do hidrogˆenio essa energia ´e de 13,6 eV.

4.4 O modelo de Bohr

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77

Figura 4.13: Diagrama de n´ıveis de energia para o ´atomo de hidrogˆenio conforme a previs˜ ao de Bohr. As setas verticais indicam as transi¸c˜oes entre os n´ıveis de energia. As s´eries espectrais de Balmer e Paschen j´a eram conhecidas ent˜ ao. As s´eries de Lyman (1916), Brackett (1922) e Pfund (1924) corroboraram as previs˜ oes de Bohr.

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Modelos Atˆ omicos

A excelente concordˆ ancia entre as previs˜ oes te´ oricas de Bohr e os espectros obtidos anos depois por Brackett foram grandes triunfos para o modelo de Bohr. Suas previs˜ oes tamb´em se mostraram adequadas para ´atomos hidrogen´ oides (He+ , por exemplo), mas n˜ ao eram apropriadas para outros elementos neutros que n˜ ao o hidrogˆenio.

Detalhes Matem´ aticos: O modelo de Bohr Ao inv´ es de seguir a dedu¸ca ˜o de Bohr baseada no Princ´ıpio da Correspondˆ encia, usaremos a conclus˜ ao fundamental da quantiza¸ca ˜o do momento angulara para encontrar sua express˜ ao para os espectros observados. Se a carga nuclear ´ e Ze, onde e ´ e a carga 2 1 do el´ etron, a energia potencial a uma distˆ ancia r vale V = − kZe , onde k = ´ ea r 4π0 constante de Coulomb. A energia total do el´ etron que se move em uma ´ orbita circular 2 . A energia com velocidade v pode ser escrita como E = 12 mv 2 + V = 21 mv 2 − kZe r cin´ etica pode ser obtida como uma fun¸ca ˜o da posi¸c˜ ao usando a Segunda Lei de Newton. Igualando a for¸ca atrativa de Coulomb com a massa vezes a acelera¸c˜ ao centr´ıpeta 2 2 2 temos: kZe = mv ou alternativamente 12 kZe = 12 mv 2 . b Dessa forma, podemos r r2 r2 escrever a energia do sistema como E=−

1 kZe2 2 r

Considerando o primeiro postulado de Bohr, teremos   Ei − Ef 1 1 1 ν= , = − kZe2 − h 2 ri rf

(4.6)

(4.7)

onde ri e rf correspondem aos raios inicial e final dos estados estacion´ arios ocupados pelo el´ etron antes e ap´ os a sua transi¸c˜ ao. a A quantiza¸ c˜ ao do momento angular ´ e muitas vezes apresentada como um dos postulados de Bohr. Todavia, esse resultado foi obtido por Bohr a partir do postulado de conserva¸ca ˜o de energia e do Princ´ıpio da Correspondˆ encia. b Note que esse resultado equivale a dizer que para ´ orbitas circulares, a energia cin´ etica ´ e igual ` a metade do m´ odulo da energia potencial. De fato esse ´ e um resultado que vale para o movimento circular sujeito a qualquer campo de for¸ca que varia com o inverso do quadrado da distˆ ancia.

Detalhes Matem´ aticos: A quantiza¸ c˜ ao do momento angular A seguir apresentamos um dedu¸c˜ ao simplificada da quantiza¸c˜ ao do raio da ´ orbita do ´ atomo de hidrogˆ enio. O momento angular de uma part´ıcula que se move em uma trajet´ oria circular ´ e mvr. Igualando-o a um n´ umero inteiro (n) multiplicado pela raz˜ ao h = ~, obtemos mvr = n~ e o n´ umero inteiro ´ e chamado de n´ umero quˆ antico, ou 2π seja, de acordo com Bohr o momento angular ´ e uma grandeza quantizada. Usando o 2 fato de que 21 kZe = 12 mv 2 e mvr = n~, podemos obter uma condi¸c˜ ao quˆ antica para r2 r eliminando a velocidade: v2 = 2

n2 ~2 kZe2 n2 ~2 n2 a0 = →r= = , 2 2 2 m r mr mkZe Z

(4.8)

~ ˚ e conhecido como Primeiro Raio de Bohr e coincide com onde a0 = mke 2 = 0,529177 A ´ a primeira ´ orbita n˜ ao irradiante do ´ atomo de hidrogˆ enio.

4.4 O modelo de Bohr

4.4.1

Miotto e Ferraz

79

Aplica¸c˜ ao do Princ´ıpio da Correspondˆ encia

De acordo com o Princ´ıpio da Correspondˆencia, quando os n´ıveis de energia est˜ ao muito pr´ oximos, a quantiza¸c˜ ao deveria ser impercept´ıvel e os c´alculos quˆ anticos e cl´ assicos deveriam fornecer o mesmo resultado. Uma inspe¸c˜ao do diagrama de n´ıveis de energia mostra que os estados de energia est˜ao muito mais pr´ oximos quando n ´e grande, o que nos leva a possibilidade de enunciar o Princ´ıpio da Correspondˆencia de uma forma ligeiramente diferente: na regi˜ ao de n´ umeros quˆ anticos muito grandes, os c´ alculos cl´ assicos e quˆ anticos devem levar aos mesmos resultados. Para ilustrar esse conceito, vamos comparar os resultados cl´assicos para o atomo de hidrogˆenio com ` ´ aqueles obtidos pelo modelo de Bohr. Suponha uma transi¸c˜ ao entre um n´ıvel ni = n (onde n → ∞) e um n´ıvel nf = n − 1:     c Z 2 mk 2 e4 1 1 2n − 1 Z 2 mk 2 e4 − = . ν= = λ 4π~3 (n − 1)2 n2 4π~3 n2 (n − 1)2 Como n tende a infinito, ent˜ ao podemos fazer as seguintes aproxima¸c˜oes: 2n − 1 ∼ n e (n − 1)2 ∼ n2 . Logo,   Z 2 mk 2 e4 2 . (4.9) ν= 4π~3 n3 Classicamente, a frequˆencia de revolu¸c˜ ao do el´etron pode ser determinada v , onde v ´e a velocidade. Por outro lado, utilizando a quancomo νrev = 2πr n2 ~ 2 n~ ou alternativamente r = mkZe tiza¸c˜ ao do momento angular v = mr 2 . Logo, νrev

n~ mr

n~ n~ Z 2 mk 2 e4  = = = = 2 2 n ~ 2πr 2πmr2 4π~3 2πm mkZe 2



2 n3

 ,

(4.10)

que ´e exatamente o mesmo resultado obtido a partir da express˜ao de Bohr (equa¸c˜ ao 4.9).

4.4.2

Extens˜ oes do Modelo

Uma extens˜ ao natural do modelo de Bohr ´e o tratamento de ´orbitas el´ıpticas. De acordo com a Mecˆ anica Cl´ assica, para um campo de for¸ca do tipo inverso do quadrado da distˆ ancia, a energia de uma part´ıcula efetuando um movimento orbital depende somente do eixo maior da elipse e n˜ao de sua excentricidade. Consequentemente, se a Mecˆ anica Newtoniana n˜ao for modificada e a for¸ca considerada variar com o inverso do quadrado da distˆancia, n˜ao se esperam varia¸c˜ oes na energia do sistema com varia¸c˜ oes na excentricidade da ´orbita. A. Sommerfeld35 considerou o efeito da relatividade especial36 no modelo de Bohr. 2 Como as corre¸c˜ oes relativ´ısticas deveriam ser da ordem de vc2 , esperava-se que 35 Atombau 36 Ver

und Spektrallinien, Friedrich Vieweg und Sohn, Braunschweig (1919). Cap´ıtulo de Relatividade para maiores detalhes.

80

Miotto e Ferraz

Modelos Atˆ omicos

o´rbitas com maior excentricidade teriam corre¸c˜ oes maiores, pois a velocidade do el´etron aumenta quando ele se aproxima do n´ ucleo37 . Vamos estimar a ordem de grandeza das corre¸c˜ oes relativ´ısticas evitando a complexidade dos c´ alculos de Sommerfeld. Para n = 1 a conserva¸c˜ ao do momento angular imp˜oe ~2 mvr = ~. Considerando a primeira ´ orbita do ´ atomo de hidrogˆenio ao = mke 2 obtemos: v=

~ v ke2 1 ~ ke2 → = = . = = 2 ~ ma0 ~ c c~ 137 m mke2

(4.11)

2

Ora, muito embora a raz˜ ao vc2 seja muito pequena, um efeito de tal intensidade seria observ´ avel. De fato, em experimentos de alta resolu¸c˜ao ´e poss´ıvel verificar que algumas linhas espectrais do hidrogˆenio s˜ao compostas por v´arias linhas muito pr´ oximas. Na teoria de Sommerfeld, esse resultado ´e explicado da seguinte maneira: a cada ´ orbita circular de raio rn e energia En correspondem m poss´ıveis ´ orbitas el´ıpticas de mesmo eixo maior, mas com diferentes excentricidades, o que resultaria em energias ligeiramente diferentes. A energia irradiada quando o el´etron muda de ´ orbita, depende das ´orbitas inicial e final, bem como de seus eixos maiores. A separa¸c˜ ao dos n´ıveis de energia ´e chamada 2 1 separa¸ca˜o de estrutura fina, e a constante α = ke c~ = 137 de constante de 38 estrutura fina . Muito embora a explica¸c˜ ao de Sommerfeld n˜ao forne¸ca uma imagem correta, ela ´e extraordin´ aria, pois o resultado de seu c´alculo concorda perfeitamente n˜ ao s´ o com a experiˆencia, mas tamb´em com c´alculos detalhados baseados na Equa¸c˜ ao Relativ´ıstica de Dirac (n˜ ao tratada neste curso), que inclui efeitos devido ao spin.

4.5

Confirma¸ co ˜es experimentais

A extens˜ ao da teoria de Bohr para ´ atomos mais complexos do que o hidrogˆenio apresentava dificuldades. A partir do modelo por ele proposto n˜ao foi poss´ıvel efetuar c´ alculos quantitativos dos n´ıveis de energia dos ´atomos de mais de um el´etron. Contudo, experiˆencias realizadas, em 1913, por H. Moseley e, em 1914, por J. Franck e G. Hertz concordavam com a imagem geral de Bohr-Rutherford do ´ atomo: um caro¸co positivo rodeado por el´etrons que se movem em estados de energia quantizados, relativamente afastados do caro¸co. 37 Sup˜ oe-se

que as ´ orbitas dos el´ etrons obedecem a `s Leis de Kepler. sabemos que a constante de estrutura fina est´ a relacionada ao spin do el´ etron (uma propriedade que n˜ ao pode ser explicada classicamente e que estudaremos mais adiante) e n˜ ao ` as diferentes excentricidades das ´ orbitas. Assim, embora Sommerfeld tenha o m´ erito de ter determinado corretamente o valor da constante de estrutura fina, sua explica¸ca ˜o 1 era totalmente equivocada. Cabe ainda destacar que o valor obtido ( 137 ) despertou uma grande curiosidade na comunidade, j´ a que n˜ ao se esperava que a raz˜ ao entre tais constantes universais poderiam resultar em uma fra¸c˜ ao exata. 38 Hoje

4.5 Confirma¸ c˜ oes experimentais

4.5.1

Miotto e Ferraz

81

O Experimento de Moseley dos espectros de RaiosX

Moseley39 mediu os comprimentos de onda de linhas espectrais de RaiosX caracter´ısticos de cerca de 40 elementos alvo diferentes utilizando m´etodos de espectroscopia cristalina. Moseley notou que as linhas espectrais de Raios X variavam de maneira regular de elemento para elemento, como indicado na figura 4.14, muito embora os espectros ´ opticos variassem irregularmente. Ele suspeitou que essa varia¸c˜ ao regular ocorreria porque os espectros caracter´ısticos de Raios X corresponderiam ` as transi¸c˜oes envolvendo os el´etrons mais internos dos ´ atomos. Enquanto os el´etrons mais externos s˜ao respons´aveis pelas intera¸c˜ oes com outros ´ atomos, o que resulta em espectros ´opticos complexos, os el´etrons mais internos s˜ ao blindados do meio externo, sendo fortemente influenciados pelo n´ ucleo atˆ omico. Antes do trabalho de Moseley, o n´ umero atˆ omico era simplesmente o n´ umero de localiza¸c˜ ao do elemento na Tabela Peri´ odica de Mendeleev dos elementos, arranjados de acordo com o seu peso atˆ omico40 . Entretando, v´arias discrepˆ ancias foram encontradas na tabela peri´ odica com o arranjo de acordo com o peso atˆ omico. O d´ecimo oitavo elemento, por exemplo, de acordo com o peso atˆ omico ´e o pot´ assio (39,1 uma) e o d´ecimo nono, o argˆonio (39,9 uma). O arranjo conforme o peso atˆ omico coloca, por exemplo, o pot´assio na coluna dos gases inertes e o argˆ onio com os metais ativos, justamente o oposto das respectivas propriedades qu´ımicas conhecidas. Moseley mostrou que para que esses elementos estivessem corretamente representados nas linhas espectrais, o argˆ onio deveria ter n´ umero atˆ omico 18 e o pot´assio 19. O arranjo de elementos conforme o n´ umero atˆ omico obtido pelo gr´afico de Moseley, ao inv´es do arranjo conforme o peso atˆ omico, fornece uma classifica¸c˜ao peri´odica em completo acordo com as propriedades qu´ımicas conhecidas.

4.5.2

O experimento de Franck-Hertz

Em 1914, J. Franck e G. Hertz41 realizaram uma experiˆencia de grande importˆ ancia que confirmou as hip´ oteses de Bohr da quantiza¸c˜ao da energia nos atomos. Nesse experimento, esquematizado na figura 4.15, el´etrons s˜ao ejeta´ dos de um catodo aquecido e acelerados em dire¸c˜ao a uma grade que est´a a um potencial Vo com rela¸c˜ ao ao catodo. Alguns el´etrons atravessam a grade e 39 A publica¸ ca ˜o original de Moseley (H. G. J. Moseley, M. A. Phil. Mag. (1913), p. 1024) est´ a integralmente dispon´ıvel em http://www.chemistry.co.nz/henry_ moseley_article.htm (acesso em 02/05/2011) 40 Numericamente, o n´ umero atˆ omico era tido como sendo aproximadamente a metade do peso atˆ omico. As experiˆ encias de Geiger e Marsden mostraram que a carga nuclear era aproximadamente A , enquanto experiˆ encias de espalhamento de raios X realizadas por 2 Barkla mostraram que o n´ umero de el´ etrons em um ´ atomo era aproximadamente A . Essas 2 duas experiˆ encias s˜ ao consistentes, pois o ´ atomo deve ser eletricamente neutro. 41 Uber ¨ Zusammenst¨ osse zwischen Elektronen und Molek¨ ulen des Quecksilberdampfes und die Ionisierungsspannung desselben, Verh. Dtsch. Phys. Ges. 16, 457 (1914).

82

Miotto e Ferraz

Modelos Atˆ omicos

Figura 4.14: Reprodu¸c˜ ao do espectro original apresentado por Moseley do n´ umero atˆ omico em fun¸c˜ ao da raiz quadrada da frequˆencia. Quando um ´atomo ´e bombardeado por f´ otons de alta energia (raios-X), um el´etron mais interno pode ser arrancado, deixando uma vacˆ ancia na camada mais interna (estado de mais baixa energia). Um el´etron das camadas mais externas emite um f´oton e passa a ocupar a ´ orbita outrora vacante. Adaptado da publica¸c˜ao original.

4.5 Confirma¸ c˜ oes experimentais

Miotto e Ferraz

83

Figura 4.15: (Esquerda) Diagrama esquem´ atico da experiˆencia de Frank-Hertz. El´etrons ejetados de um catodo aquecido, a um potencial zero, s˜ao atra´ıdos por uma grade positiva e alcan¸cam a placa se suas energias s˜ao suficientes para vencer o potencial retardador ∆V . (Direita) Resultados da dependˆencia da corrente coletada pelo potencial retardador obtidos por Franck-Hertz para o g´ as de merc´ urio.

alcan¸cam a placa, que est´ a a um potencial ligeiramente inferior Vp = Vo − ∆V . O tubo ´e preenchido com vapor de merc´ urio. O aparato experimental permite a medida da corrente na placa em fun¸ca˜o do potencial Vo . Conforme Vo aumenta a corrente cresce at´e um valor cr´ıtico (cerca de 4,9 V no caso do merc´ urio), quando repentinamente decresce. Como Vo continua a ser aumentado, a corrente cresce novamente. A explica¸ca˜o dada por Franck-Hertz para esse resultado pode ser expressa da seguinte forma: o primeiro estado excitado do merc´ urio est´ a cerca de 4,9 eV acima do estado fundamental. Um el´etron com energia abaixo desse valor n˜ ao pode perder energia para os ´atomos de merc´ urio, mas el´etrons com energia maior do que 4,9 eV podem sofrer colis˜oes inel´ asticas e perder essa quantidade precisa de energia. Se isso ocorre pr´oximo a grade, esses el´etrons n˜ ao podem ganhar energia suficiente para vencer a diferen¸ca de potencial e alcan¸car a placa. Nesse caso, a corrente decresce. Os atomos de Hg que s˜ ´ ao excitados para o n´ıvel 4,9 eV acima do estado fundamental deveriam retornar ao estado fundamental, emitindo luz de comprimento de hc = 2530 ˚ A. Essa linha foi ent˜ao observada ao se examinar o onda λ = νc = eV o tubo com um espectrˆ ometro. Para potenciais acima desse valor s˜ao observados decr´escimos r´ apidos adicionais da corrente, que correspondem `a excita¸c˜ao de outros n´ıveis ou a` excita¸c˜ oes m´ ultiplas do primeiro estado excitado42 . O experimento de Franck-Hertz foi uma confirma¸c˜ao importante da ideia de que espectros ´ opticos discretos existiam devido `a n´ıveis discretos de energia nos ´ atomos que podiam ser excitados por m´etodos n˜ao ´opticos. 42 Veja uma simula¸ c˜ ao do experimento em http://phys.educ.ksu.edu/vqm/free/ FranckHertz.html

84

Miotto e Ferraz

4.6

Modelos Atˆ omicos

A regra de quantiza¸ c˜ ao de Wilson-Sommerfeld

Foi surpreendente que Bohr tivesse explicado o espectro de hidrogˆenio, que tem como uma de suas condi¸c˜ oes a conserva¸c˜ ao do momento angular, enquanto Planck e Einstein tivessem usado a quantiza¸c˜ao da energia para obter a distribui¸c˜ ao da radia¸c˜ ao espectral do corpo negro e os calores espec´ıficos dos s´ olidos. Alguma liga¸c˜ ao entre tais condi¸c˜ oes quˆ anticas certamente deveria existir, mas essa conex˜ ao permaneceu desconhecida durante algum tempo. Foi somente em 1915-1916 que W. Wilson e A. Sommerfeld anunciaram43 uma regra geral de quantiza¸c˜ ao para sistemas peri´ odicos. Essa regra pode ser expressa como I P dq = nh, onde P ´e um momento generalizado da coordenada generalizada q e a integral deve ser considerada sobre um ciclo completo do sistema. Para exemplificar a aplica¸ca˜o dessa regra, consideremos alguns exemplos: 1. Considere uma part´ıcula que realiza um movimento circular uniforme e est´ a sujeita a uma for¸ca central. Seja L seu momento angular e θ a coordenada generalizada. Lembrando que, nesse caso, o momento angular ´e conservado, a regra de quantiza¸c˜ ao de Wilson-Sommerfeld ser´a escrita como I Z 2π nh Ldq = nh → L dθ = 2πL = nh → L = = n~, 2π 0 que ´e a condi¸c˜ ao de quantiza¸c˜ ao do momento angular proposta por Bohr. 2. Considere um sistema massa-mola realizando movimento harmˆonico com amplitude A, massa m, e frequˆencia angular w. De acordo com a Segunda 2 Lei de Newton −kx = m ddt2x cuja solu¸c˜ ao t´ıpica tem a forma: x(t) = Asenwt. Assim, dx = wA cos wtdt e p = mwA cos wt. Por outro lado, a energia mecˆ anica do sistema pode ser escrita como: EM EC = 21 kA2 = 1 2 2 2 mw A . Logo, a Regra de Quantiza¸c˜ ao de Wilson-Sommerfeld ter´a a forma: I I I 2 2 2 pdx = dt mw A cos wt = nh ; 2E dt cos2 wt = nh Fazendo a mudan¸ca de vari´ aveis θ = wt, a integra¸c˜ao sobre um ciclo completo corresponde ` a integra¸c˜ ao entre 0 e 2π, portanto, Z 2π 2E nhw 2E dθ cos2 θ = π = nh → E = = nhν = n~w, (4.12) w 0 w 2π 43 W. Wilson, Philosophical Magazine 29, 795 (1915); A. Sommerfeld, Annalen der Physik 51, 1 (1916).

3.7 Cr´ıtica a teoria ...

Miotto e Ferraz

85

ou seja, exatamente a condi¸c˜ ao de quantiza¸c˜ao de Planck.

4.7

Cr´ıtica ` a teoria de Bohr e ` a Velha Teoria Quˆ antica

As hip´ oteses quˆ anticas estudadas at´e o momento e resumidas pela regra de quantiza¸c˜ ao de Wilson-Sommerfeld (conhecidas como Velha Teoria Quˆ antica) explicam razoavelmente bem os resultados experimentais observados. Todavia, deve-se ressaltar que a aplica¸c˜ ao dessa teoria quˆantica no in´ıcio do s´eculo XX era mais uma arte do que uma Ciˆencia, j´ a que ningu´em sabia exatamente quais eram as regras. As falhas da teoria de Bohr e da velha teoria quˆantica foram principalmente falhas de omiss˜ ao, pois n˜ ao se sabia aplic´a-las na previs˜ao de sistemas mais complexos. Finalmente, havia o problema filos´ofico da falta de alicerces para suas hip´ oteses. N˜ ao havia, a priori, raz˜oes para se esperar que para explicar o Modelo de Bohr era necess´ario invocar a Lei de Coulomb, ao mesmo tempo em que era necess´ ario afirmar que as Leis da Radia¸c˜ao n˜ao eram v´ alidas. Da mesma forma, recorria-se ` as Leis de Newton mesmo quando se desejava provar que somente determinados valores de momento angular eram permitidos. Apesar da Regra de Quantiza¸c˜ao de Wilson-Sommerfeld funcionar bem para sistemas peri´ odicos, n˜ ao se sabia o porquˆe, e n˜ao havia uma teoria para sistemas n˜ ao peri´ odicos. Tais dificuldades foram superadas gra¸cas aos esfor¸cos de Louis de Broglie, Schr¨ odinger, Heisenberg, Pauli, Dirac e outros. Como veremos a seguir, apesar da formula¸c˜ao que sucedeu a Velha Teoria Quˆ antica ser bastante abstrata, ela pode explicar os fenˆomenos que observamos sem a necessidade de postulados ou inferˆencias advindas de outras teorias.

86

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Modelos Atˆ omicos

Cap´ıtulo 5

Propriedades ondulat´ orias de part´ıculas Mauricie de Broglie foi um f´ısico experimental francˆes que, desde o princ´ıpio, apoiou o ponto de vista de Compton em rela¸c˜ ao `a natureza corpuscular da radia¸c˜ ao. Suas experiˆencias e discuss˜ oes em rela¸c˜ao aos problemas filos´oficos da F´ısica, notadamente aquelas associadas ` a F´ısica Quˆantica, impressionaram tanto seu irm˜ ao Louis que ele resolveu trocar de carreira, deixando a Hist´oria e passando a estudar a F´ısica. Em sua tese de doutoramento Louis de Broglie1 , que posteriormente ficou conhecido apenas por de Broglie, sugeriu que assim como a luz possui propriedades de onda e de part´ıcula, talvez a mat´eria, em particular el´etrons, pudesse tamb´em apresentar essa caracter´ıstica. Essa sugest˜ ao era altamente especulativa; n˜ ao existia at´e ent˜ao evidˆencias dos aspectos ondulat´ orios para el´etrons, o que fez com que o trabalho de de Broglie n˜ ao recebesse a devida aten¸c˜ ao. Supondo a existˆencia de uma onda associada a um el´etron de momento p e energia E, de Broglie escolheu para a frequˆencia e o comprimento de onda das ondas associadas a tais el´etrons as rela¸c˜ oes ν=

E h

(5.1)

λ=

h p

(5.2)

e

onde h ´e a constante de Planck. Essas rela¸c˜ oes foram propostas por analogia com equa¸c˜ oes idˆenticas ` aquelas v´ alidas para f´ otons. Ele salientou que, com essa hip´ otese, a condi¸c˜ ao de Bohr de quantiza¸c˜ ao do momento angular equivale `a condi¸c˜ ao de onda estacion´ aria. 1 Recherches

sur la th´ eorie des quanta, Thesis (Paris), 1924.

88

Miotto e Ferraz

Propriedades ondulat´ orias de part´ıculas

Detalhes Matem´ aticos: Rela¸ c˜ ao entre a quantiza¸ c˜ ao do momento angular e a condi¸ c˜ ao de onda estacion´ aria Seja S = 2πr a circunferˆencia da ´rbita circular de Bohr de raio o r representada na figura 5.1. A quantiza¸c˜ ao do momento angular pode ser expressa como mvr = n~. Lembrando que o momento linear pode ser expresso como p = mv e utilizando as rela¸c˜ oes de de Broglie (Eq. 5.2), ent˜ ao nh nh nh mvr = → 2πr = = , 2π mv p ou seja, nλ = 2πr = S

Figura 5.1: Representa¸c˜ao esquem´ atica de uma poss´ıvel onda estacion´ aria (linha cheia) sobreposta a ´ ` orbita de Bohr de um ´atomo de hidrogˆenio (linha tracejada).

Segundo a argumenta¸c˜ ao de de Broglie, a regra de quantiza¸c˜ao de WilsonSommerfeld poderia ser interpretada como um requisito para ondas estacion´arias. Considere, por exemplo, a condi¸c˜ ao quˆ antica de Wilson-Sommerfeld para uma part´ıcula em uma caixa unidimensional de dimens˜ao L ´e dada por p = nh 2L . h h nh λ Usando p = λ , a express˜ ao pode ser reescrita como λ = 2L ou n 2 = L, que ´e a condi¸c˜ ao de onda estacion´ aria em uma corda fixa em ambas as extremidades! Pouco tempo depois, E. Schr¨ odinger2 expandiu as ideias de de Broglie, englobando-as em uma teoria completa, como veremos adiante. Em 1927, Davisson e Germer3 verificaram as hip´ oteses de de Broglie diretamente, observando padr˜ oes de interferˆencia com feixes de el´etrons. Podemos entender porque as propriedades ondulat´ orias da mat´eria n˜ ao eram facilmente observadas se nos lembrarmos que as propriedades ondulat´orias da luz n˜ao foram notadas at´e que puderam ser obtidas aberturas ou fendas com as mesmas dimens˜ oes do comprimento de onda da luz. Os efeitos de difra¸c˜ao e interferˆencia n˜ ao s˜ ao observados quando o comprimento de onda da luz ´e muito menor do que qualquer abertura. Nesse caso, vale a ´ optica geom´etrica. Como a constante de Planck ´e muito pequena, as rela¸c˜ oes de de Broglie implicam em comprimentos de onda muito pequenos para qualquer objeto macrosc´opico, mesmo que extremamente pequeno. Para el´etrons de baixa energia, a situa¸c˜ ao ´e diferente. Considere um el´etron que foi acelerado por um potencial Vo . Para el´etrons n˜ao relativ´ısticos, ou p2 . seja, quando eVo V o, a part´ıcula n˜ ao est´ a confinada, o que equivale a dizer que a quantiza¸c˜ ao da energia n˜ ao poder´ a ser percebida Figura 6.4: Representa¸c˜ao de um po¸co e, aparentemente, qualquer valor de quadrado infinito de lado L. energia ser´ a permitido. Discutiremos esse caso detalhadamente mais adiante. Por hora, analisaremos apenas o que ocorre quando E < Vo , ou seja, trataremos de uma part´ıcula que classicamente estaria confinada em uma regi˜ ao compreendida entre 0 e L. No interior do po¸co a solu¸c˜ ao da equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger ´e idˆentica a do po¸co infinito: 2mE d2 ψ(x) = − 2 ψ(x) = −k 2 ψ(x), dx2 ~

(6.15)

onde k ´e o n´ umero de onda. As solu¸c˜ oes s˜ ao senos e cossenos, como vimos anteriormente. Todavia, n˜ao podemos mais impor a condi¸c˜ ao de contorno ψ(x = 0) = ψ(x = L) = 0, j´a que n˜ ao existe mais o v´ınculo de que a probabilidade de se encontrar o el´etron nos pontos x ≤ 0 e x ≥ L seja nula. Ocorre que as condi¸c˜oes sobre a fun¸c˜ao de onda devem ser obedecidas para qualquer problema em an´alise. Nesse caso,

114

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

usamos o fato de que a fun¸c˜ ao de onda e sua primeira derivada devem ser cont´ınuas em todos os pontos, inclusive em x = 0 e x = L. Se j´ a conhecemos a solu¸c˜ ao do problema dentro do po¸co de potencial, resta agora determin´ a-la fora do po¸co, ou seja, para 0 > x > L. Fora do po¸co, a equa¸ca˜o de Schr¨ odinger deve ser escrita como: 2m(Vo − E) d2 ψ(x) = ψ(x) = α2 ψ(x), 2 dx ~2

(6.16)

onde α2 = 2m(V~o2−E) > 0. O m´etodo direto para encontrar as fun¸c˜ oes de onda e energias permitidas para esse problema 7 ´e resolver a Equa¸c˜ ao de Schr¨odinger dentro e fora do po¸co e impor que a fun¸c˜ ao de onda e sua primeira derivada em rela¸c˜ao `a x sejam cont´ınuas em x = 0 e x = L. Na regi˜ ao fora do po¸co, a solu¸c˜ ao da equa¸c˜ ao 6.16 tem a forma ψ(x) = Ce−αx , onde C ´e uma constante e consideramos apenas x > 0. Restanos impor a condi¸c˜ ao de continuidade e resolver o problema analiticamente. Apesar de poss´ıvel, o m´etodo direto ´e bastante trabalhoso. Ao inv´es de tomar este caminho, vamos fazer uma an´ alise desta solu¸c˜ ao. Enquanto dentro do po¸co o limite da fun¸c˜ ao de onda quando x tende a um Figura 6.5: Representa¸c˜ao de poss´ıveis n´ umero muito grande ´e, em m´ odulo, solu¸c˜ oes para o po¸co quadrado finito. zero (ou seja, limx→∞ ψ(x) = 0), fora do po¸co, esse limite tende a infinito. Esse fato pode ser verificado facilmente se observarmos que o sinal da segunda derivada espacial da fun¸c˜ao de onda (que est´ a ligada a curvatura da fun¸c˜ ao) ´e positivo (negativo) quando a fun¸c˜ ao de onda ´e positiva (negativa), ou seja, a fun¸c˜ao de onda se afasta do eixo. Dessa forma, para a maioria dos valores de energia a fun¸c˜ao de onda n˜ ao ´e bem comportada e n˜ ao pode ser normalizada (lembre-se a normaliza¸c˜ao p2 h2 imp˜ oe que a fun¸c˜ ao de onda seja limitada). Para uma energia E = 2m = 2mλ 2, teremos, por exemplo, para λ = 4L uma fun¸c˜ ao que tem a forma dada pela figura 6.5. Todavia, como a fun¸c˜ ao de onda deve ser normalizada, s´o os valores do comprimento de onda que tornam a fun¸c˜ ao bem comportada, como as representadas na parte inferior da figura 6.5, s˜ ao admitidos . Note que, em contraste com o caso cl´ assico, h´ a alguma probabilidade de encontrar a part´ıcula fora da caixa. Nessas regi˜ oes, a energia total ´e menor que 7 Esse

´ e de fato o m´ etodo direto para a solu¸c˜ ao de qualquer problema que apresenta formas funcionais diferentes para o potencial em diferentes regi˜ oes espaciais: escreve-se a Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger para as diversas regi˜ oes, obt´ em-se a solu¸c˜ ao para cada regi˜ ao diferente. As constantes de normaliza¸ca ˜o ser˜ ao obtidas utilizando a continuidade da fun¸c˜ ao de onda e de sua primeira derivada nos limites das regi˜ oes consideradas.

6.1 A equa¸ c˜ ao de Schr¨ odinger

Miotto e Ferraz

115

a energia potencial. Assim, pareceria a primeira vista, ser a energia cin´etica negativa. Como n˜ ao h´ a, na f´ısica cl´ assica, significado para energia cin´etica negativa, como podemos interpretar essa penetra¸c˜ao da fun¸c˜ao de onda na regi˜ ao da barreira? Ser´ a que podemos medir energias cin´eticas negativas na Mecˆ anica Quˆ antica? Em caso positivo, haveria grande falha na teoria, pois estar´ıamos desrespeitando o Princ´ıpio de Complementariedade de Bohr. Felizmente, o Princ´ıpio de Incerteza de Heisenberg nos permite explicar essa aparente contradi¸c˜ ao. Vamos compreender esse fato qualitativamente para a regi˜ ao x > L. Como a fun¸c˜ ao de onda decresce segundo e−αx , o m´odulo ao quadrado da fun¸c˜ ao de onda tamb´em ´e uma exponencial (e−2αx ), que se torna muito pequena numa distˆ ancia da ordem de ∆x ' α−1 . Se considerarmos que o m´ odulo da fun¸c˜ ao de onda ´e desprez´ıvel em qualquer ponto al´em de x = L + α−1, poderemos dizer que encontrar a part´ıcula na regi˜ao x > L ´e grosseiramente equivalente a localiz´ a-la na regi˜ao ∆x ' α−1 . Tal medida ~ introduz uma incerteza no momento da ordem de ∆p ' ∆x = ~α, e uma 2

2

2

~ α c˜ao (vide energia cin´etica m´ınima da ordem de (∆p) 2m ' 2m . Mas, por defini¸ 2m(Vo −E) ~2 α2 2 equa¸c˜ ao 6.16) α = , ou seja, = V − E. Essa incerteza m´ınima o ~2 2m na energia cin´etica ´e suficiente para evitar que uma medida desta grandeza seja negativa. A penetra¸c˜ ao da fun¸c˜ ao de onda em uma regi˜ao classicamente proibida tem consequˆencias importantes no tunelamento (ou penetra¸c˜ao de barreiras), como veremos a seguir.

Quer saber mais? Aplica¸ c˜ oes A maior parte da nossa discuss˜ ao acerca do problema do po¸co quadrado finito se aplica a qualquer problema em que E < V (x) em alguma regi˜ ao e E > V (x) fora daquela regi˜ao. Considere um potencial arbitr´ ario V (x) com formato parab´olico (essa ´e uma primeira aproxima¸c˜ ao para o potencial de intera¸c˜ ao entre dois ´atomos, vide por exemplo, http://www.cepa.if.usp.br/e-fisica/mecanica/ universitario/cap09/cap09_38.htm). No interior do po¸co, d2 x a Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger tem a forma dx2 ψ(x) = −k 2 ψ(x), onde 2m[E−V (x)] k2 = depende explicitamente de x. As solu¸c˜oes dessa equa¸c˜ao ~2 n˜ ao s˜ ao fun¸c˜ oes simples do tipo seno e cosseno, porque o n´ umero de onda varia com x. Todavia, uma vez que a fun¸c˜ ao de onda (ψ(x)) e sua segunda derivada em rela¸c˜ ao a x (ψ 00 (x)) tem sinais opostos, ψ(x) necessariamente ir´ a se curvar em dire¸c˜ ao ao eixo, e as solu¸c˜oes oscilar˜ao. Fora do po¸co, ψ(x) ir´ a se curvar afastando-se do eixo, de sorte que haver´ a somente certos valores de E para os quais existem solu¸c˜ oes que se aproximam de zero quando x ´e um n´ umero muito grande. Observe que a quantiza¸c˜ao da energia (nem todos os valores de E s˜ ao permitidos) mais uma vez decorreu da solu¸c˜ ao da Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger sem que houvesse a necessidade de qualquer postulado ou suposi¸c˜ ao.

116

6.2

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

Valores esperados e operadores

A solu¸c˜ ao de um problema de Mecˆ anica Cl´ assica fica bem especificada dando-se a posi¸c˜ ao da part´ıcula, ou part´ıculas, em fun¸c˜ao do tempo. Como j´a discutimos, a natureza ondulat´ oria da mat´eria nos impede de fazer isso para sistemas microsc´ opicos. Em vez disso, procuramos determinar a fun¸c˜ao de onda ψ(x,t) e a fun¸c˜ ao de distribui¸c˜ ao de probabilidade |ψ(x,t)|2 . O m´aximo que podemos conhecer ´e a probabilidade de medir um certo valor de posi¸c˜ao. O valor esperado de x ´e definido como: Z +∞ hxi = dxψ ? (x,t)xψ(x,t) (6.17) −∞

O valor esperado ´e o pr´ oprio valor m´edio de x que esperar´ıamos obter a partir de uma medida das posi¸c˜ oes de um grande n´ umero de part´ıculas com a mesma fun¸c˜ ao de onda ψ(x,t). Como vimos, para uma part´ıcula num estado de energia definida, a distribui¸c˜ ao de probabilidade ´e independente do tempo. O valor esperado ´e, ent˜ ao, dado por: Z +∞ hxi = dxψ ? (x)xψ(x) (6.18) −∞

Para o po¸co quadrado, por exemplo, um c´ alculo simples leva a hxi = L2 e 2 2 L L analogamente hx2 i = 3 − 2n2 π2 . ´ importante salientar que ao realizar uma medida, o valor obtido n˜ao ´e E necessariamente o valor esperado. Isso ocorre porque o valor esperado ´e a representa¸c˜ ao de um conjunto grande de medidas, tal qual uma m´edia. Para exemplificar esse fato, consideremos dois exemplos. O primeiro ´e o jogo de cara ou coroa. Sabemos, de antem˜ ao que a probabilidade de cara ou coroa ´e de 50%. Assim, ao realizarmos dois sorteios, esperamos obter uma vez o valor cara e uma vez o valor coroa. Todavia, nem sempre isso ocorrer´a. Os dois sorteios podem resultar em cara (fa¸ca o teste!) e n˜ao existe nada errado a´ı. Conforme aumentamos o n´ umero de sorteios, digamos para 100, teremos, por exemplo, 48 resultados cara e 52 resultados coroa. Para 1000, teremos, por exemplo, 505 resultados cara e 495 resultados coroa. Note que ao aumentarmos o n´ umero de sorteios, o resultado obtido aproxima-se cada vez mais do valor inicialmente proposto de 50%. No caso de sistemas quˆanticos ocorre exatamente o mesmo: ao fazermos uma u ´nica medida, o valor obtido n˜ao ´e necessariamente o valor esperado. Todavia, se realizamos um grande n´ umero de medidas, a m´edia dessas medidas aproxima-se cada vez mais do resultado esperado. Como exemplo, considere o caso onde n = 2 para o po¸co quadrado infinito. A probabilidade de se medir x em algum intervalo dx no meio do po¸co (x = L/2) ´e nula, porque a fun¸c˜ ao de onda sen(nπx/2) se anula nesse ponto. Todavia, como vimos, o valor esperado de x ´e L/2, porque a fun¸c˜ao densidade de probabilidade (ψ ? ψ) ´e sim´etrica em torno daquele ponto.

6.2 Valores esperados e operadores

Miotto e Ferraz

117

Detalhes matem´ aticos: Determina¸ c˜ ao do valor esperado de uma part´ıcula confinada em po¸ co quadrado Z

+∞

dxψ ? (x)xψ(x)

hxi = −∞ Z L

=

dx x 0

2 cos2 (x). L

Para resolver a integral, utilizamos a rela¸c˜ ao trigonom´etrica, 2cos2 (x) = 1 + cos(2x), de forma que "Z # Z L L 2 x x hxi = dx + dx cos(2x) . L 0 2 2 0 A solu¸c˜ ao da primeira integral ´e imediata (L2 /4), mas para resolver a segunda o m´etodo de integra¸c˜ao por partes. Lembrando R ´e preciso utilizar R que u dv = uv − v du, identificamos u = x, du = dx, dv = cos(2x), o que implica que v = 21 sen(x). Assim, a segunda integral tem a forma     Z Z 1 x 1 1 uv − du v = sen(2x) − dx sen(2x) 2 2 2 2   1 x 1 = sen(2x) − (−cos(2x)) 2 2 4 1 1 = xsen(2x) − cos(2x). 4 8 Substituindo os limites de integra¸c˜ ao (0 e L), chegamos ao valor esperado hxi = L2 . A determina¸c˜ ao de hx2 i pode ser feita de forma an´aloga. O valor esperado do momento, por sua vez, pode ser escrito como8 : Z

+∞

hpi =

dxψ ? (x,t)pψ(x,t)

−∞ +∞

Z =

?



dxψ (x,t) −∞

~ ∂ i ∂x

 ψ(x,t),

(6.19)

enquanto que hp2 i =

Z

+∞

−∞ 8 Para

dxψ ? (x,t)



~ ∂ i ∂x



~ ∂ i ∂x

 ψ(x,t).

uma demonstra¸c˜ ao bastante elegante entre a equivalˆ encia entre p e o volume III do livro The Feynman Lectures on Physics, sec¸c˜ ao 20-5.

(6.20) ~ ∂ , i ∂x

consulte

118

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

Para a fun¸c˜ ao de onda do estado fundamental do po¸co quadrado infinito, por exemplo, ter´ıamos: Z +∞ hpi = dxψ ? (x)pψ(x) −∞ r Z L  πx   ~ ∂  r 2  πx  2 sen sen = dx L l i ∂x L l 0 Z L Z L     ~2π πx πx = dx dx sen cos i LL 0 l l 0 = 0. (6.21) O que ´e fisicamente coerente com o fato de a part´ıcula ter a mesma probabilidade de estar se movendo no sentido de x positivo ou x negativo, o que implica que o momento m´edio ´e sempre nulo. Analogamente, podemos mostrar que o valor esperado de hp2 i, no caso do po¸co quadrado infinito, pode ser calculado como: r Z L  πx   ~ ∂   ~ ∂  r 2  πx  2 2 hp i = dx sen sen L l i ∂x i ∂x L l 0 Z L  πx   πx  2 Z L 2 π = dx ~2 dx sen sen L L2 0 l l 0 ~2 L2 = . (6.22) π2

6.3

Transi¸ c˜ oes entre estados de energia

Vimos que a equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger leva ` a quantiza¸c˜ao de energia para sistemas ligados e que esta quantiza¸c˜ ao ´e observada experimentalmente atrav´es das transi¸c˜ oes de energia. Vamos observar alguns aspectos cl´assicos destas transi¸c˜ oes em uma dimens˜ ao considerando como exemplo uma carga el´etrica. Sabemos que uma carga el´etrica acelerada emite radia¸c˜ao, enquanto que uma carga el´etrica oscilando emite radia¸c˜ ao com frequˆencia igual `a frequˆencia de sua oscila¸c˜ ao, e, em contrapartida, uma carga el´etrica estacion´aria n˜ao emite radia¸ca˜o. Por outro lado, do ponto de vista quˆ antico, uma part´ıcula de carga q (um el´etron, por exemplo), em um estado quˆ antico n, ´e descrita pela fun¸c˜ao de onda ψn (x,t) = ψn (x)exp(−i(En /~)t), onde En ´e a energia do estado quˆantico n e ψn (x) ´e a solu¸c˜ ao da equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger independente do tempo para um dado potencial V (x). A probabilidade de encontrarmos a carga em dx ´e proporcional a ψn? (x)ψn (x)dx. Se fizermos muitas medidas em sistemas idˆenticos (isto ´e, part´ıculas com a mesma fun¸c˜ ao de onda), a quantidade de carga encontrada em dx ´e proporcional a qψn? (x)ψn (x)dx. Portanto, podemos identificar qψn? (x)ψn (x)dx como a densidade de carga ρ (que ´e um observ´avel!). Se a

6.3 Transi¸ c˜ oes entre estados de energia

Miotto e Ferraz

119

fun¸c˜ ao de onda contiver uma u ´nica energia, a fun¸c˜ao de onda ´e independente do tempo, o que significa que a densidade de carga tamb´em o ser´a. Isso implica que a densidade de carga estacion´ aria n˜ ao irradiar´a (o que foi utilizado como argumento para explicar o postulado de Bohr das ´orbitas n˜ao irradiantes). Todavia, sabemos que mesmo nesses casos os el´etrons sofrem transi¸c˜oes de energia, causadas pela intera¸c˜ ao da part´ıcula carregada com um campo eletromagn´etico (f´ otons). O tratamento detalhado desse processo ´e complexo, o que nos restringe ao estudo semi-cl´ assico do problema. Considere uma part´ıcula, um el´etron, por exemplo, que pode realizar uma transi¸c˜ ao de um estado n caracterizado pela fun¸c˜ao de onda ψn (x,t), para um estado m caracterizado pela fun¸c˜ ao de onda ψm (x,t). Espera-se que a densidade de probabilidade e a densidade de carga oscilem com frequˆencia angular ωnm , dada pela rela¸c˜ ao de Bohr: hν = ~ωnm = En − Em , ou seja, ωnm = (En − Em )/~, j´ a que essa ´e a frequˆencia de emiss˜ao do f´oton quando ocorre a transi¸c˜ ao (de um el´etron, por exemplo) de um estado n para um estado m . Escreveremos a fun¸c˜ ao de onda para uma part´ıcula que esteja realizando uma transi¸c˜ ao do estado n para o estado m como uma mistura dos dois estados 9 ψnm (x,t) = aψn (x,t) + bψm (x,t). N˜ ao nos preocuparemos com a e b, apenas vamos consider´ a-los n˜ ao nulos. Quando a part´ıcula estiver no estado n, a = 1 e b = 0, para o estado m, a = 0 e b = 1 e quando a part´ıcula estiver realizando uma transi¸c˜ ao do estado n para o estado m, a e b s˜ao simultaneamente n˜ ao nulos. A densidade de probabilidade para a fun¸c˜ao de onda ser´a escrita como: ? ψnm (x,t)ψnm (x,t)

=

? (aψn? (x,t) + bψm (x,t)) (aψn (x,t) + bψm (x,t))

=

? a2 ψn? (x,t)ψn (x,t) + b2 ψm (x,t)ψm (x,t)

+

? abψn? (x,t)ψm (x,t) + abψm (x,t)ψn (x,t).

(6.23)

Para simplificar a nota¸c˜ ao, admitiremos que a fun¸c˜ao de onda ψ(x,t) possa ser escrita como o produto de uma fun¸c˜ ao espacial ψ(x) real e uma fun¸c˜ao temporal imagin´ aria exp(−i(En /~)t) (esse ´e o caso, por exemplo, de um el´etron confinado em um po¸co quadrado infinito). Nesse caso, os dois primeiros termos de 6.23 s˜ ao independentes do tempo10 . Note que isso ´e coerente com os resultados experimentais, pois no caso do el´etron estar, por exemplo, no estado n (a = 1 e b = 0), s´ o o primeiro termo ´e n˜ ao nulo. Isso significa que a densidade de carga n˜ ao varia com o tempo, ou seja, ele n˜ao irradia em concordˆancia com os resultados experimentais. Resta agora verificarmos o que acontece com os dois u ´ltimos termos que s˜ ao n˜ ao nulos apenas quando a part´ıcula estiver 9 N˜ ao

esque¸ca que essa ´ e uma aproxima¸c˜ ao!! ? (x,t)ψ (x,t) = a2 qψ ? (x)exp(i(E /~)t)ψ (x)exp(−i(E /~)t). que a2 qψn n n n n n Como ψ(x) ´ e real, sua parte imagin´ aria ´ e igual a parte real, resultando em ? (x,t)ψ (x,t) = a2 qψ 2 (x), que n˜ a2 qψn ao depende do tempo. n n 10 Verifique

120

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

realizando uma transi¸ca˜o do estado n para o estado m.     En Em ? ? qψn (x,t)ψm (x,t) = qaψn (x)exp i t bψm (x)exp −i t ~ ~   En − Em t = qabψn (x)ψm (x)exp i ~ =

qabψn (x)ψm (x)e(iωnm t) .

(6.24)

Analogamente, ? qψm (x,t)ψn (x,t) = qabψm (x)ψn (x)e(iωmn t) = qabψn (x)ψm (x)e(−iωnm t) , (6.25) onde ωnm ´e a frequˆencia angular de Bohr. Somando-se essas duas rela¸c˜oes e usando o fato de que eix + e−ix = 2cos(x), temos que a densidade de probabilidade ter´ a a forma geral ? 2 ψm (x,t)ψn (x,t) = a2 qψn2 (x) + b2 qψm (x) + 2qabψn (x)ψm (x)cos (ωnm t) . (6.26)

Logo, a fun¸c˜ ao de onda constitu´ıda pela mistura de dois estados de energia leva a uma distribui¸c˜ ao de carga que oscila com a frequˆencia de Bohr. Podemos escrever a radia¸c˜ ao de um sistema simplificadamente da seguinte maneira: em algum instante, um sistema est´ a em um estado excitado n, descrito por ψnm (x,t), e com a = 1 e b = 0. Por causa da intera¸c˜ao do sistema com um campo eletromagn´etico, por exemplo, (n˜ ao inclu´ıdo na equa¸c˜ao) a decresce e b n˜ ao ´e mais zero. Nesse instante, a densidade de carga oscila com frequˆencia angular ωnm . Entretanto, o sistema n˜ ao irradia energia continuamente, como prevˆe a teoria cl´ assica. Em vez disso, a densidade de carga oscilante implica em uma probabilidade de que um f´ oton de energia ~ωnm = En − Em seja emitido, evento ap´ os o qual o sistema ficar´ a no estado m com a = 0 e b = 1. Observe que essa an´ alise semi-cl´ assica permitiu-nos explicar a emiss˜ao de um f´oton individual atrav´es de um processo estat´ıstico.

6.3.1

Elementos de Matriz e Regras de Sele¸c˜ ao

O sistema de radia¸c˜ ao cl´ assica mais elementar ´e um dipolo el´etrico oscilante. O momento de dipolo qx para uma part´ıcula de fun¸c˜ao de onda ψn (x,t) tem o valor esperado Z +∞

dx qψn? (x,t)xψm (x,t).

qhxi =

(6.27)

−∞

Pela discuss˜ ao anterior, podemos inferir que se a fun¸c˜ao de onda corresponder a um estado estacion´ ario que cont´em uma u ´nica energia, o valor esperado do momento de dipolo ser´ a independente do tempo. Entretanto, se a fun¸c˜ao de onda ´e uma mistura de dois estados quˆ anticos (ψnm (x,t)), qhxi ter´a termos que oscilam com a frequˆencia de Bohr an´ alogos aos obtidos no caso anterior: Z +∞ 2 qhxi = a2 qψn2 (x) + b2 qψm (x) + 2qabcos (ωnm t) dx ψn (x)xψm (x). (6.28) −∞

6.4 Reflex˜ ao e transmiss˜ ao de ondas

Miotto e Ferraz

121

A integral na equa¸c˜ ao acima ´e chamada de elemento de matriz e em muitos casos ela vale zero. Por exemplo, se ψn (x,t) e ψm (x,t) forem fun¸c˜oes de onda para o po¸co quadrado infinito, um c´ alculo direto mostrar´a que o elemento de matriz na equa¸ca˜o acima ser´ a zero se n e m forem ambos pares ou ´ımpares. Para esses casos, transi¸c˜ oes de dipolos s˜ ao proibidas entre esses estados. A ausˆencia de transi¸c˜ ao entre dois estados, devido ao fato de que o elemento de matriz ´e nulo, ´e usualmente descrita por uma regra de sele¸c˜ ao. Por exemplo, uma regra de sele¸c˜ ao para o po¸co quadrado infinito ´e que o n´ umero quˆantico n deve mudar segundo 1,3,5,... e n˜ ao segundo 2,4,6,.... Assim, as transi¸c˜oes entre estados estacion´ arios s˜ ao definidas por regras de sele¸c˜ao derivadas dos elementos de matrizes. As transi¸c˜ oes que temos discutido, e que s˜ao resultantes de perturba¸c˜oes de um sistema com um campo eletromagn´etico, s˜ao chamadas transi¸c˜oes espontˆ aneas. Se um sistema est´ a no seu estado fundamental e ´e exposto `a radia¸c˜ ao externa de frequˆencia ωnm correspondente `a frequˆencia de Bohr para uma transi¸c˜ ao para um estado excitado, ele pode efetuar a transi¸c˜ao absorvendo um f´ oton da radia¸c˜ ao externa. Se esse sistema voltar ao estado fundamental atrav´es da emiss˜ ao de um f´ oton, caracteriza-se uma emiss˜ao espontˆ anea. Por outro lado, se tal sistema estiver num estado excitado e exposto ` a radia¸c˜ ao externa de frequˆencia correspondente `a frequˆencia de Bohr para uma transi¸c˜ ao para um estado de energia mais baixo, o sistema poder´a ser estimulado a emitir um f´ oton (ao realizar a transi¸c˜ao) de energia exatamente igual a energia da radia¸c˜ ao externa. Tal emiss˜ao estimulada ocorre em lasers e masers. Tanto no caso de emiss˜ oes estimuladas quanto de emiss˜oes espontˆ aneas, as regras de sele¸c˜ ao ser˜ ao sempre as mesmas.

6.4

Reflex˜ ao e transmiss˜ ao de ondas

At´e este ponto estudamos apenas problemas com estados ligados, ou seja, a energia potencial ´e menor do que a energia total do sistema para grandes valores de x. Vamos considerar agora alguns casos simples de estados n˜ao ligados para os quais E ´e maior do que V (x). Para esses problemas, a derivada segunda em rela¸c˜ ao ` a posi¸c˜ ao (∂ 2 ψ(x,t)/∂x2 ) sempre tem sinal oposto ao da fun¸c˜ ao de onda 11 , tal que ψ(x,t) se curva em toda parte em dire¸c˜ao ao eixo e n˜ ao se torna infinito para grandes valores de x. Dessa forma, qualquer valor de E ´e permitido. Mesmo nesse caso, a natureza ondulat´oria da equa¸c˜ao de Schr¨ odinger leva a algumas consequˆencias interessantes, como veremos a seguir. 11 Considere, por exemplo, a forma geral ψ(x,t) = Aφ(t)e−ikr , onde A ´ e uma constante e φ(t) representa a parte temporal da fun¸c˜ ao de onda. Nesse caso, ∂ 2 ψ(x,t)/∂x2 sempre ter´ a sinal contr´ ario a ψ(x,t).

122

6.4.1

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

Potencial degrau

Considere uma part´ıcula de energia E movendo-se numa regi˜ ao em que a energia potencial seja uma fun¸ca˜o degrau: ( 0 para x < 0; V (x) = (6.29) Vo para x > 0. Vamos nos concentrar no caso particular em que a part´ıcula se move da Figura 6.6: Representa¸c˜ao esquem´atica esquerda para a direita. Nesse caso, do potencial degrau. a resposta cl´ assica ´e simples. Para x < 0 a part´ıcula q se move com ve2E locidade v = ca impulsiva atua nela. Se E for m . Em x = 0 uma for¸ menor do que Vo , a part´ıcula ser´ a refletida pelo potencial degrau e se mover´ a para esquerda com sua velocidade original. Se E for maior do que Vo , a part´ıcula a se movendo para a direita, mas com velocidade reduzida q continuar´

o) v = 2(E−V . m O resultado quˆ antico ´e similar para E < Vo . Consideremos uma onda incidindo em tal barreira. A figura ao lado mostra a fun¸c˜ao de onda para o caso E < Vo . A fun¸c˜ ao de onda n˜ ao tende a zero em x = 0, mas decai exponencialmente como faz a fun¸c˜ ao de onda para o estado ligado no problema do po¸co quadrado finito. A onda penetra um pouco na regi˜ao classicamente proibida x > 0, mas eventualmente ´e refletida por completo. Esse problema ´e algo similar ` aquele da reflex˜ ao interna total na ´ optica. Para E > Vo , o resultado quˆ antico difere da previs˜ao cl´assica. Enquanto que classicamente a u ´nica mudan¸ca observada ´e a redu¸c˜ao da velocidade, no caso quˆ antico observamos uma mudan¸ca abrupta do comprimento de onda em h para λ2 = ph2 = √ h . x = 0 de λ1 = ph1 = √2mE

2m(E−Vo )

Sabemos da ´ optica que, quando o comprimento de onda muda abruptamente (numa distˆ ancia pequena quando comparada ao comprimento de onda) parte da onda ´e refletida e parte transmitida. Como o movimento de um el´etron ´e governado por uma equa¸c˜ ao de onda, Figura 6.7: Representa¸c˜ao esquem´atica da ao de uma fun¸c˜ao de onda em um o el´etron tamb´em ser´ a algumas penetra¸c˜ potencial degrau. Note o decaimento expovezes transmitido e outras reflenencial indicado. tido. As probabilidades de reflex˜ ao e transmiss˜ ao podem ser calculadas resolvendo a Equa¸c˜ao de Schr¨odin-

6.4 Reflex˜ ao e transmiss˜ ao de ondas

Miotto e Ferraz

123

ger em cada regi˜ ao do espa¸co e comparando as amplitudes das ondas transmitida e refletida com aquela da onda incidente. Esse c´alculo e seu resultado s˜ao similares a encontrar a fra¸c˜ ao de luz refletida de uma superf´ıcie ar-vidro. Se R for a probabilidade de reflex˜ ao, chamada coeficiente de reflex˜ao, tal c´alculo 2 1 −k2 ) , onde k1 ´e o n´ umero de onda da onda incidente e resulta em R = (k (k1 +k2 )2 k2 o da onda refletida. Esse resultado ´e o mesmo da ´optica para reflex˜ao sob incidˆencia normal. O coeficiente de transmiss˜ ao pode ser calculado a partir do coeficiente de reflex˜ ao, pois a soma da probabilidade de transmiss˜ao com a de reflex˜ ao deve ser igual a 1 (T + R = 1).

6.4.2

Potencial po¸co quadrado

Consideremos, agora, um potencial do tipo po¸co quadrado, conforme esquematizado na figura 6.8, e em particular o caso onde a energia da part´ıcula ´e maior do que zero (E > 0), ou seja, a part´ıcula n˜ ao est´ a confi´ importante destacar nada no po¸co. E que a discuss˜ ao a seguir n˜ ao muda Figura 6.8: Representa¸c˜ao esquem´atica significativamente se o po¸co for subsdo potencial po¸co quadrado. titu´ıdo por uma barreira, por exemplo. A solu¸c˜ ao cl´ assica ´e novamente simples: uma part´ıcula se aproximando do po¸co pela esquerda ´e acelerada e se move a uma velocidade maior no interior do po¸co. Ela ´e desacelerada quando deixa o po¸co e cont´ınua ` a direita com sua velocidade inicial. Observe que classicamente n˜ ao existe qualquer possibilidade da part´ıcula ser refletida. Por outro lado, na Mecˆ anica Quˆ antica ou no tratamento ondulat´ orio, h´ a duas mudan¸cas abruptas no comprimento de onda Figura 6.9: Sequˆencia temporal de um pacote em x = 0 e x = L e ocorre gaussiano que incide pela esquerda sobre um reflex˜ ao em cada um desses po¸co quadrado.

124

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

pontos. Uma onda que incide pela esquerda ´e transmitida e refletida parcialmente em x = 0. A onda transmitida prossegue at´e x = L, onde novamente h´ a transmiss˜ ao e reflex˜ ao parciais. A onda refletida em x = L retorna para x = 0, onde o processo se repete. A figura 6.9 mostra a sequˆencia temporal de um pacote gaussiano que incide pela esquerda sobre um potencial de po¸co quadrado. Eventualmente, s˜ ao formados dois pacotes: um pacote transmitido, movendo-se para a direita; e um pacote refletido, movendo-se para a esquerda. As probabilidades de reflex˜ ao e transmiss˜ ao dependem da energia da onda em quest˜ ao. Quando a dimens˜ ao L do po¸co for exatamente igual `a metade do comprimento de onda de uma part´ıcula, a onda refletida em x = L se desloca exatamente de um comprimento de onda inteiro quando retorna para x = 0 e se combina com a onda refletida em x = 0. Devido `a mudan¸ca de fase de 180◦ na reflex˜ ao em x = 0, as duas ondas refletidas est˜ao fora de fase e tendem a se cancelar mutuamente, a menos que tenham amplitudes diferentes. Um exemplo de potencial semelhante ao do po¸co quadrado ´e observado quando el´etrons interagem com gases inertes.

6.4.3

Penetra¸c˜ ao em uma barreira de potencial (tunelamento)

Consideremos uma part´ıcula de energia E incidindo numa barreira retangular de altura Vo e largura a. Vamos nos limitar ao caso12 em que E < Vo , como exemplificado na figura 6.10. Classicamente, a part´ıcula seria sempre refletida. Entretanto, uma onda que incide pela esquerda n˜ ao decresce imediatamente para zero na barreira, mas em vez disso decair´ a exponencialmente Figura 6.10: Representa¸c˜ao de um pana regi˜ ao da barreira. Ap´ os atingir a cote senoidal incidindo em uma barsegunda parede da barreira, a fun¸c˜ ao reira de potencial. de onda volta a ser senoidal (linha tracejada). Isso implica que haver´ a alguma probabilidade de a part´ıcula ser encontrada do outro lado da barreira mesmo que classicamente este evento seja imposs´ıvel. O tunelamento quˆ antico ´e o segredo de in´ umeros fenˆomenos f´ısicos essenciais na produ¸c˜ ao de dispositivos, tais como o do diodo t´ unel, da jun¸c˜ ao supercondutora de Josephson, e do fenˆ omeno de decaimento radioativo atrav´es da emiss˜ ao de part´ıculas α. 12 O

caso E > Vo corresponde ` a reflex˜ ao e transmiss˜ ao de ondas estudada na se¸c˜ ao anterior.

1.5 A equa¸ c˜ ao de Schr¨ odinger ...

6.5

Miotto e Ferraz

125

A equa¸ c˜ ao de Schr¨ odinger em trˆ es dimens˜ oes

At´e agora, todos os nossos estudos limitaram-se a movimentos unidimensionais. Vamos generalizar nosso resultado para sistemas tridimensionais. Em coordenadas cartesianas, a Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger Independente do Tempo pode ser escrita como:   2 ~2 ∂2 ∂2 ∂ − Ψ + Ψ + Ψ + V Ψ = EΨ (6.30) 2m ∂x2 ∂y 2 ∂z 2 onde Ψ ≡ Ψ(x,y,z). No caso de uma part´ıcula sujeita a um potencial com simetria c´ ubica, tendo o cubo lado L o potencial ´e dado por: ( 0 para 0 < Ξ < L, com Ξ = x, y, z; V (x,y,z) = (6.31) ∞ fora do cubo. Assim como no caso do po¸co quadrado infinito unidimensional, no caso tridimensional a fun¸c˜ ao de onda tamb´em deve se anular nos limites da caixa e deve ter uma forma senoidal em seu interior. A resolu¸c˜ao formal deste problema envolve a separa¸c˜ ao de vari´ aveis, onde consideremos a fun¸c˜ao de onda total como um produto de fun¸c˜ oes que dependem de apenas uma vari´avel Ψ(x,y,z) = ψ1 (x)ψ2 (y)ψ3 (z), onde cada uma das fun¸c˜oes ψn ´e uma fun¸c˜ao seno, como no caso unidimensional. Se utilizarmos, por exemplo, uma solu¸c˜ao tentativa com a forma Ψ(x,y,z) = Asen(k1 x)sen(k2 y)sen(k3 z), verificare ~2 mos que a energia ´e dada por E = 2m k12 + k22 + k32 , que ´e equivalente a p2 +p2 +p2

2 3 E = 1 2m , com pi = ~ki . Usando as restri¸c˜oes nos n´ umeros  de onda obtidas para o po¸co quadrado infinito unidimensional ki = nLi π , que vem da condi¸c˜ ao de contorno na qual a fun¸c˜ ao de onda deve ser zero nas paredes,  ~2 π 2 umero obtemos para a energia total E = 2mL2 n21 + n22 + n23 , com ni um n´ inteiro. A energia e a fun¸c˜ ao de onda s˜ ao caracterizadas por trˆes n´ umeros quˆanticos, cada qual proveniente de uma condi¸c˜ ao de contorno para uma das coordenadas. Nesse caso, os n´ umeros quˆ anticos s˜ ao independentes uns dos outros, mas em problemas mais gerais, o valor de um n´ umero quˆantico pode afetar os poss´ıveis valores dos outros. O estado fundamental ´e dado por n1 = n2 = n3 = 1, enquanto o primeiro n´ıvel excitado pode ser obtido de trˆes maneiras diferentes: n1 = 2 e n2 = n3 = 1; ou n2 = 2 e n1 = n3 = 1; ou n3 = 2 e n1 = n2 = 1. A fun¸c˜ao de onda correspondente poderia ser escrita como:    πy   πz  2πx Ψ(x,y,z) = Asen sen sen . L L L

Quando um estado de energia est´ a associado a mais de uma fun¸c˜ao de onda, dizemos que o estado ´e degenerado. No exemplo acima a degenerescˆencia ´e

126

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

tripla, j´ a que existem trˆes conjuntos de n´ umeros quˆ anticos, e consequentemente trˆes fun¸c˜ oes de onda que correspondem a energia do primeiro estado excitado do sistema considerado. A degenerescˆencia est´ a relacionada `a simetria do problema, sendo maior para sistemas mais sim´etricos.

6.6

A equa¸ c˜ ao de Schr¨ odinger para duas ou mais part´ıculas

Nossos estudos limitaram-se, at´e este ponto, apenas a problemas envolvendo uma u ´nica part´ıcula. Todavia, mesmo no caso do ´atomo de hidrogˆenio, temos duas part´ıculas: o el´etron e o pr´ oton. Entretanto, como no caso da Mecˆ anica Cl´ assica, podemos trat´ a-lo como um problema de um s´o corpo, considerando o pr´ oton parado e substituindo a massa do el´etron pela massa reduzida. Problemas mais complexos s˜ ao, em geral, de dif´ıcil solu¸c˜ao anal´ıtica devido aos muitos graus de liberdade do sistema. Particularmente, no caso de sistemas multi-eletrˆ onicos, a intera¸c˜ ao entre os el´etrons e a sua indistinguibilidade introduzem dificuldades adicionais ao problema. A intera¸c˜ao entre os el´etrons pode, em primeira aproxima¸c˜ ao, ser expressa em termos de uma intera¸ca˜o puramente coulombiana. Todavia, mesmo nesse caso uma solu¸c˜ao anal´ıtica n˜ ao ´e trivial, j´ a que sabermos ser imposs´ıvel resolver analiticamente um problema de muitos corpos mesmo na Mecˆ anica Cl´assica. O fato dos el´etrons serem idˆenticos traz o problema quˆ antico (sem equivalente cl´ assico) de n˜ ao podermos identific´ a-los (n˜ ao esque¸ca do Princ´ıpio de Incerteza!). A figura ao lado ilustra o problema. No caso cl´ assico, se identificamos as part´ıculas antes do processo de espalhamento13 , poderemos seguir suas trajet´ orias sem qualquer dificuldade e identific´ a-las ap´ os o espalhamento. Todavia, no caso quˆ antico, existe uma incerteza em rela¸ca˜o `a posi¸c˜ao (identificada pela hachura na figura), o que impossibilita-nos de identificar as part´ıculas ap´ os o espalhamento, j´ a que n˜ ao podemos seguir sua trajet´ oria. A indistinguibilidade de part´ıculas idˆenticas tem consequˆencias importantes relacionadas ao Princ´ıpio de Exclus˜ ao de Pauli e implica na introdu¸c˜ao do spin, que discutiremos detalhadamente mais adiante. Assim, faremos uma abordagem preliminar do Princ´ıpio de Exclus˜ ao de Pauli, voltando a ele com maior detalhamento posteriormente. Considere duas part´ıculas n˜ ao interagentes em um po¸co quadrado infinito unidimensional. A equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger independente do tempo para duas 13 Espalhamento ´ e nome que se d´ a ao processo de intera¸c˜ ao entre duas part´ıculas independentemente do processo de media¸c˜ ao (eletrost´ atico, colis˜ ao, etc.) entre elas.

1.6 A equa¸ c˜ ao de Schr¨ odinger ...

Miotto e Ferraz

127

part´ıculas de massa m, restritas a um movimento unidimensional ´e   −~2 ∂ 2 Ψ(x1 ,x2 ) ∂ 2 Ψ(x1 ,x2 ) + + V (x1 ,x2 )Ψ(x1 ,x2 ) = EΨ(x1 ,x2 ), (6.32) 2m ∂x21 ∂x22 onde x1 e x2 s˜ ao coordenadas das part´ıculas 1 e 2, respectivamente. Se as part´ıculas forem interagentes, a energia potencial ter´a dependˆencia funcional em x1 e x2 que, em geral, n˜ ao permite a utiliza¸c˜ao da t´ecnica de separa¸c ˜ao de 2 vari´ aveis. Exemplo t´ıpico ´e a intera¸c˜ ao eletrost´atica onde V = x2ke −x1 . Por outro lado, se as part´ıculas n˜ ao interagem, podemos escrever o potencial como a soma de dois potenciais distintos que dependem apenas das coordenadas de uma part´ıcula V (x1 ,x2 ) = V (x1 ) + V (x2 ), o que permite a simplifica¸c˜ao do problema com a obten¸c˜ ao de duas equa¸c˜ oes diferenciais acopladas de uma part´ıcula. Considere um problema no qual o potencial dependa apenas das coordenadas de uma u ´nica part´ıcula de tal forma que ele se reduz a duas equa¸c˜oes acopladas semelhantes ` aquela obtida para o po¸co quadrado infinito. Nessas condi¸c˜ oes precisamos resolver a equa¸c˜ ao de Schr¨odinger somente no interior do po¸co onde o potencial ´e nulo e impor que a fun¸c˜ao de onda seja nula nos limites do po¸co, exatamente como fizemos anteriormente. Como o potencial ´e nulo, notamos que a equa¸c˜ ao para duas part´ıculas tem a mesma forma que a observada para uma u ´nica part´ıcula em um po¸co bidimensional. A solu¸c˜ao dessa equa¸c˜ ao pode ser escrita na forma  πx   πx  1 2 Ψ1,2 = Csen sen , (6.33) L L onde C ´e uma constante de normaliza¸c˜ ao, L a largura do po¸co e x1 e x2 as coordenadas generalizadas das part´ıculas 1 e 2, respectivamente. A probabilidade de encontrar a part´ıcula 1 em dx1 e a part´ıcula 2 em dx2 2 ´e por defini¸c˜ ao |Ψ(x1 ,x2 )| dx1 dx2 , que para o problema analisado ´e exata2 2 mente o produto das probabilidades separadas |ψ(x1 )| dx1 |ψ(x2 )| dx2 . Entretanto, mesmo que tenhamos classificado as part´ıculas 1 e 2, se elas forem idˆenticas, n˜ ao poderemos distinguir qual est´ a em dx1 e qual est´a em dx2 . Para part´ıculas idˆenticas, devemos construir a fun¸c˜ao de onda tal que a densidade de probabilidade seja a mesma se permutarmos os ´ındices, ou seja, 2 2 |Ψ(x1 ,x2 )| = |Ψ(x2 ,x1 )| . Vamos analisar com mais detalhe as implica¸c˜oes dessa u ´ltima igualdade. Inicialmente percebemos que n˜ ao existe nenhuma restri¸c˜ao em rela¸c˜ao `a simetria da fun¸c˜ ao de onda, ou seja, a fun¸c˜ ao de onda pode ser sim´etrica ou antissim´etrica em rela¸c˜ ao ` a troca de part´ıculas14 ( Ψ(x1 ,x2 ) = Ψ(x2 ,x1 ) caso sim´etrico; (6.34) Ψ(x1 ,x2 ) = −Ψ(x2 ,x1 ) caso antissim´etrico. 14 As fun¸ c˜ oes sim´ etrica e antissim´ etrica tamb´ em s˜ ao chamadas de fun¸c˜ oes pares e ´ımpares. Para lembrar as propriedades b´ asicas dessas fun¸c˜ oes, consulte, por exemplo, http://ecalculo.if.usp.br/funcoes/pareimpar/fparimpar.htm

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Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

Lembrando que um estado quˆ antico ´e caracterizado por seus n´ umeros quˆ anticos, no exemplo considerado, nossa primeira tentativa seria escrever a fun¸c˜ ao de onda total para um dado estado como Ψnm (x1 ,x2 ) = ψn (x1 )ψm (x2 ), onde n e m s˜ ao os n´ umeros quˆ anticos associados. Todavia, essa forma funcional n˜ ao reflete o fato de a fun¸c˜ ao de onda total poder ser sim´etrica ou antissim´etrica em rela¸c˜ ao a troca de part´ıculas (troca de x1 por x2 ). Para que essa propriedade possa ser claramente evidenciada, a fun¸c˜ao de onda total deve assumir as formas: ( Ψsim (x1 ,x2 ) = C (ψn (x1 )ψm (x2 ) + ψn (x2 )ψm (x1 )) Ψanti (x1 ,x2 ) = C (ψn (x1 )ψm (x2 ) − ψn (x2 )ψm (x1 )) .

(6.35)

onde os ´ındices sim e anti indicam as fun¸c˜ oes de onda totais sim´etrica e antissim´etrica, respectivamente. H´ a uma diferen¸ca entre combina¸c˜oes sim´etricas e antissim´etricas. Se n = m, a fun¸c˜ ao de onda antissim´etrica ´e identicamente nula para quaisquer combina¸c˜ oes de x1 e x2 , o que n˜ao ocorre para a fun¸ca˜o sim´etrica. El´etrons, pr´ otons e nˆeutrons, genericamente denominados f´ermions15 , podem somente ter fun¸c˜ oes de onda antissim´etricas. Assim, fun¸c˜ oes de onda de uma u ´nica part´ıcula (como ψn (x1 ) e ψm (x2 )) associadas `a el´etrons, por exemplo, n˜ ao podem ter os mesmos n´ umeros quˆanticos. Este ´e uma das poss´ıveis formas de se enunciar o Princ´ıpio de Exclus˜ao de Pauli16 . Vimos na se¸c˜ ao 6.5 que os el´etrons em um ´ atomo tˆem trˆes n´ umeros quˆanticos (n1 , n2 e n3 ), associados a cada um dos seus graus de liberdade (coordenadas x, y e z). O Princ´ıpio de Exclus˜ ao de Pauli estabelece que dois el´etrons em um a´tomo n˜ ao podem ter o mesmo conjunto de valores para seus n´ umeros quˆ anticos. Veremos adiante que, para que o Princ´ıpio de Exclus˜ao de Pauli seja atendido, ser´ a necess´ ario a inclus˜ ao de um n´ umero quˆantico adicional associado ao spin. Por outro lado, part´ıculas como a part´ıcula alfa, dˆeuterons, f´otons e m´esons, genericamente denominados b´ osons, tˆem fun¸c˜oes de onda sim´etricas e n˜ ao obedecem ao Princ´ıpio de Exclus˜ ao de Pauli. No caso dos f´otons, que s˜ ao b´ osons, podemos gerar um grande n´ umero de part´ıculas com mesma energia. Esse ´e o princ´ıpio de funcionamento de um laser17 .

15 Saiba mais sobre f´ ermions e outras part´ıculas elementares descritas pelo modelo padr˜ ao acessando, por exemplo, http://www.sprace.org.br/AventuraDasParticulas, http://www.tvcultura.com.br/particulas/particula1.php, http://dx.doi. org/10.1590/S1806-11172009000100006, e http://www.on.br/glossario/ alfabeto/p/particulaselementares.html. 16 O Princ´ ¨ ıpio de Exclus˜ ao de Pauli foi sugerido em Uber den Zusammenhang des Abschlusses der Elektronengruppen im Atom mit der Komplexstruktur der Spektren, Zeitschrift f¨ ur Physik 31, 765 (1925). 17 Saiba mais sobre lasers em A Ciˆ encia em nosso cotidiano: lasers.

1.6 A equa¸ c˜ ao de Schr¨ odinger ...

Miotto e Ferraz

129

A Ciˆ encia em nosso cotidiano: lasers O princ´ıpio b´ asico de funcionamento de um laser (light amplification by stimulated emission of radiation) ou um maser (microwave amplification by stimulated emission radiation) ´e o mesmo, mudando apenas a regi˜ ao de emiss˜ ao da radia¸c˜ ao: frequˆencias ´ opticas, no caso do laser; e na regi˜ ao do micro-ondas, no caso do maser. Para construir o tipo mais comum de laser (ou maser), utiliza-se um sistema atˆ omico de trˆes n´ıveis, conforme a figura 6.11, com algumas propriedades especiais. O sistema, inicialmente com energia E II ab- Figura 6.11: Representa¸c˜ao essorve radia¸c˜ ao (luz, por exemplo) quem´ atica dos n´ıveis de energia em com frequˆencia ~ω1 e vai do estado um laser de trˆes n´ıveis. fundamental a um estado de energia excitado E ? , rapidamente emite f´ otons com frequˆencia ~ω2 e vai a um outro estado de energia excitado E I , com E ? > E I . Esse estado de energia E I , apesar de tamb´em ser um estado excitado, tem um tempo de vida mais longo. Estados com essa caracter´ıstica s˜ ao chamados de estados metaest´ aveis. El´etrons nesse estado, eventualmente, emitem f´otons e retornam ao estado fundamental. Todavia, esse evento pode demorar algum tempo, permitindo que a sua popula¸c˜ ao (ou seja, o n´ umero de el´etrons com esta energia) aumente, estabelecendo as condi¸c˜ oes apropriadas para a opera¸c˜ao de nosso laser. Quando, eventualmente, um dos el´etrons emite um f´oton com energia ~ω0 , a presen¸ca desse f´ oton estimula os outros el´etrons a tamb´em emitirem f´ otons com a mesma frequˆencia, retornando ao estado fundamental. Os el´etrons podem novamente ser excitados e voltar ao estado E ? , realimentando o ciclo. No caso de lasers, a energia ~ω0 , resultante da transi¸c˜ ao do n´ıvel excitado E I para o estado fundamental E II , est´ a na regi˜ ao do vis´ıvel e sua frequˆencia pode ser ajustada com a escolha do material de emissor adequado. Saiba mais em http://educar. sc.usp.br/licenciatura/2001/laser/index.htm, ou em http: //pt.wikipedia.org/wiki/Laser.

130

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

´ Atomos de um el´ etron

6.7

Um dos maiores sucessos na hist´ oria da Mecˆ anica Quˆantica foi a compreens˜ ao do espectro de alguns ´ atomos simples. Nesta sec¸c˜ao discutiremos o papel da equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger neste processo. A equa¸c˜ ao de Schr¨odinger n˜ao pode ser resolvida analiticamente para qualquer sistema atˆomico, mas apenas para alguns a´tomos hidrogen´ oides. De fato, no seu trabalho original, Schr¨odinger resolveu explicitamente o ´ atomo de hidrogˆenio. Sua solu¸c˜ao envolvia o estudo dos movimentos do pr´ oton e do el´etron que comp˜ oem o ´atomo de hidrogˆenio e ´e an´ aloga ` a formula¸ca˜o cl´ assica de descrever o movimento em termos de um centro de massa. Dada a dificuldade na solu¸c˜ ao da equa¸c˜ao de Schr¨odinger, n˜ ao vamos resolvˆe-la explicitamente, mas t˜ ao somente discutir seus resultados, indicando o caminho da solu¸c˜ ao. Todavia, cabe ressaltar que, apesar das dificuldades na resolu¸c˜ ao de problemas de muitos corpos, a equa¸c˜ao de Schr¨ odinger ´e largamente empregada, com o aux´ılio de computadores, na resolu¸ca˜o de sistemas complexos em F´ısica da Mat´eria Condensada. Para tanto, utilizam-se solu¸c˜ oes aproximadas, j´ a que o potencial real n˜ao ´e bem conhecido, como a proposta pelo ganhador do Prˆemio Nobel de Qu´ımica de 1998, Walter Kohn18 . Supondo que possamos tratar um ´ atomo de hidrogˆenio como uma u ´nica p2 part´ıcula: um el´etron com energia cin´etica 2µ sujeito a um potencial coulom2

biano V (r) = − kZe e o momento do el´etron, µ sua massa reduzida19 , r , onde p ´ Z seu n´ umero atˆ omico, e a carga do el´etron e r sua posi¸c˜ao. Nesse caso, a Equa¸ca˜o de Schr¨ odinger em trˆes dimens˜ oes assume a forma −~2 2µ



∂2 ∂2 ∂2 + + ∂x2 ∂y 2 ∂z 2

 Ψ(x,y,z) + V (x,y,z)Ψ(x,y,z) = EΨ(x,y,z). (6.36)

Por quest˜ oes de simetria, o tratamento do problema proposto em coordenadas esf´ericas   x = rcosθ y = rsenθ cosφ   z = rsenθ senφ

18 A Teoria do Funcional da Densidade (DFT) foi proposta por Walter Kohn em colabora¸c˜ ao com Pierre Hohember e Lu Jeu Sham e est´ a fundamentada em dois trabalhos seminais: P. Hohenberg and Walter Kohn Inhomogeneous electron gas, Physical Review 136, B864 (1964) e W. Kohn and L. J. Sham, Self-consistent equations including exchange and correlation effects, Physical Review 140, A1133 (1965). 19 O uso da massa reduzida nos permite levar em considera¸ ca ˜o a existˆ encia do n´ ucleo sem trat´ a-lo explicitamente.

´ 6.7 Atomos de um el´ etron

Miotto e Ferraz

131

´e mais adequado do que em coordenadas cartesianas, o que leva `a      ~2 1 ∂ 1 ∂ ∂Ψ(r,θ, φ) 2 ∂Ψ(r,θ, φ) r senθ 2µ r2 ∂r ∂r senθ ∂θ ∂θ  1 ∂Ψ(r,θ, φ) + + V (r)Ψ(r,θ, φ) = EΨ(r,θ, φ). sen2 θ ∂θ



(6.37)

Para resolver esse problema, supomos que seja poss´ıvel a separa¸c˜ao de vari´aveis Ψ(r,θ,φ) = R(r)Θ(θ)Φ(φ), o que permite a substitui¸c˜ao da equa¸c˜ao 6.37 por trˆes equa¸c˜ oes diferenciais acopladas: em r (radial), em θ e em φ. Como o potencial coulombiano apresenta apenas dependˆencia radial (potencial central), ele s´ o aparecer´ a na equa¸c˜ ao dependente de r, e a equa¸c˜ao radial ter´ a a forma:



   ~2 1 ∂ kZe2 2 ∂R(r) r − R(r) = ER(r). 2 2µ r ∂r ∂r r

(6.38)

As equa¸c˜ oes diferenciais em θ e φ n˜ ao sofrem influˆencia do potencial, o que significa que as solu¸c˜ oes aqui discutidas valem para qualquer potencial central. Em nosso estudo sobre a equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger em coordenadas cartesianas, vimos que a cada grau de liberdade (ou coordenada independente) est´ a associado um n´ umero quˆ antico (que decorre das condi¸c˜oes de contorno do sistema). Assim, a solu¸c˜ ao em coordenadas esf´ericas leva a trˆes n´ umeros quˆ anticos, simbolizados por n, l e m. Os n´ umeros quˆanticos n1 , n2 e n3 associados ` as coordenadas cartesianas eram independentes. Todavia, o mesmo n˜ao ocorre com os n´ umeros quˆ anticos associados ` as coordenadas esf´ericas. Na tabela 6.1 apresentamos a forma das solu¸c˜ oes para a equa¸c˜ao de Schr¨odinger em coordenadas esf´ericas, os valores poss´ıveis dos n´ umeros quˆanticos associados e sua interpreta¸c˜ ao f´ısica. Utilizando as solu¸c˜ oes para as equa¸c˜ oes diferenciais acopladas apresentadas na tabela 6.1, podemos escrever a solu¸c˜ ao geral para o ´atomo de hidrogˆenio na forma: Ψn,l,m (r,θ,φ) = Cn,l,m Rn,l (r)Θl,|m| (θ)eimφ ,

(6.39)

onde Cn,l,m ´e uma constante de normaliza¸c˜ ao. Observe que essa solu¸c˜ao geral depende explicitamente dos n´ umeros quˆ anticos n, l e m. Da mesma forma, a energia tamb´em deve depender explicitamente dos mesmos n´ umeros quˆanticos. Assim, ´e muito comum identificar n˜ ao s´ o a fun¸c˜ao de onda, mas tamb´em a energia e outros operadores utilizando o mesmo conjunto de ´ındices.

132

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Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

Tabela 6.1: Descri¸c˜ ao das solu¸c˜ oes para a equa¸c˜ ao 6.37 e suas respectivas interpreta¸c˜ oes. Nas solu¸c˜ oes apresentadas Z ´e o n´ umero atˆomico do ´atomo 1 , onde o ´e a permissihidrogen´ oide; µ, a massa reduzida do el´etron; k = 4π o vidade do v´ acuo, e a carga do el´etron; Pl,|m| (cosθ) ´e uma Fun¸c˜ao de Legendre Associada; Λn,l um polinˆ omio; e ao o raio de Bohr (0,529177 ˚ A). coordenada r solu¸ca˜o

Rn,l (r) ∝ e−Zr/nao



2Zr nao

n´ umero quˆ antico

n

poss´ıveis valores

0, 1, 2, ...

interpreta¸c˜ ao

coordenada solu¸ca˜o

l

Λn,l

Θ(θ) ∝ Pl,|m| (cosθ)

poss´ıveis valores

0, 1, 2, ..., (n − 1)

solu¸ca˜o



θ

l

coordenada

2Zr nao

a solu¸c˜ ao da equa¸c˜ ao radial fornece n´ıveis de energia quantizados idˆenticos aos obtidos por Bohr 2 4 2 En = − µk2~e2 nZ2

n´ umero quˆ antico

interpreta¸c˜ ao



quantiza¸c˜ ao do pmomento angular (L = l(l + 1)~)

φ Φ(φ) ∝ eimφ

n´ umero quˆ antico

m

poss´ıveis valores

−l, −l + 1, −l + 2, ..., 0, 1, ..., l − 2, l − 1, l

interpreta¸c˜ ao

quantiza¸c˜ ao da componente z do momento angular (Lz = m~)

´ 6.7 Atomos de um el´ etron

Miotto e Ferraz

133

Quer saber mais? Na solu¸c˜ ao do ´ atomo de hidrogˆenio, a energia n˜ao depende dos n´ umeros quˆ anticos l e m porque escolhemos um potencial que ´e proporcional ao inverso do raio ao quadrado. De forma geral, a energia pode depender de todos os trˆes n´ umeros quˆ anticos. De fato, se al´em do potencial, tiv´essemos ~ = B zˆ, a coordenada z n˜ao mais poderia ser escoum campo magn´etico B lhida aleatoriamente, e ter´ıamos uma dependˆencia explicita em m na energia. Experimentalmente, na presen¸ca de um campo magn´etico externo, observa-se uma separa¸c˜ ao das raias espectrais, o que ´e conhecido como Efeito Zeeman. Para saber mais sobre este efeito, consulte, por exemplo, ´ Paul Tipler, F´ısica, vol. 4, Otica e F´ısica Moderna, sec¸c˜ ao 37.5. Vamos agora explorar um pouco mais a solu¸c˜ao geral dada em 6.39. Considere inicialmente o estado fundamental do sistema, ou seja, n = 1, l = m = 0. A exponencial que representa a dependˆencia em φ assume o valor 1. O mesmo ocorre com a Fun¸c˜ ao de Legendre Associada, o que implica em termos apenas a parte radial da fun¸c˜ ao de onda, que vale: Ψ1,0,0 (r,θ,φ) = R1,0 (r) = atomo de hidrogˆenio, Z = 1 e a solu¸c˜ao reduzC1,0,0 e−Zr/nao . No caso de um ´ se a Ψ1,0,0 = R1,0 (r) = C1,0,0 e−r/nao . A constante C1,0,0 ´e determinada pela condi¸c˜ ao de normaliza¸c˜ ao Z +∞ dx Ψ?1,0,0 (r,θ,φ)Ψ1,0,0 (r,θ,φ) = 1, −∞

  32 e vale C1,0,0 = √1π a1o . Assim, o estado fundamental do ´atomo de hidrogˆenio ´e descrito por: 1 Ψ1,0,0 (r,θ,φ) = √ π



1 ao

 23

r

e− ao ,

(6.40)

que depende explicitamente apenas de r. Os estados quˆanticos definidos por l = m = 0 s˜ ao normalmente designados como estados s. De forma an´aloga, os estados excitados 2s, 3s,..., apresentam dependˆencias radiais similares: 

Ψ2,0,0 (r,θ,φ)

=

1 √ 4 π

Ψ3,0,0 (r,θ,φ)

=

1 √ 81 3π

etc

....

1 ao 

 32 

 r r 2− e− 2ao ao  32   r 1 r r2 27 − 18 + 2 2 e− 3ao ao ao ao

(6.41) (6.42)

Como vimos anteriormente, a densidade de probabilidade ´e proporcional a Ψ? Ψ e a densidade de carga, que ´e um observ´avel f´ısico, pode ser obtida de Ψ? eΨ, onde e ´e a carga elementar.

134

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

Na parte superior da figura 6.12 temos a representa¸c˜ ao da densidade de carga para o estado fundamental 1s e para os estados excitados 2s e 3s do a´tomo de hidrogˆenio. Observe a forma esfericamente sim´etrica das densidades de carga. O decr´escimo exponencial da densidade pode ser mais facilmente avaliado a partir da fun¸ca˜o de distribui¸c˜ ao radial representada na parte inferior. A distˆ ancia mais prov´ avel corresponde ao m´ aximo da fun¸c˜ ao de distribui¸c˜ ao e ´e igual ao raio de Bohr para o estado 1s. Para os estados 2s e 3s observamos um m´ aximo em torno de ao , mas m´ aximos globais para valores muito maiores. Note, tamb´em, que o n´ umero de m´ aximos nas distribui¸c˜ oes radiais ´e numericamente igual ao n´ umero quˆ antico n. Es- Figura 6.12: Representa¸c˜ao da densitados com n´ umeros quˆ anticos maio- dade de carga (superior) e da fun¸c˜ao res (n = 4, 5, 6, ...) apresentam com- de distribui¸c˜ao radial (inferior) do portamento semelhante para a den- ´ atomo de hidrogˆenio. A nomenclatura sidade de carga e para a fun¸c˜ ao de Xs refere-se ao estado com n´ umeros distribui¸c˜ ao radial. quˆ anticos n = X (X = 1,2,3) e l = Consideremos agora o caso onde m = 0. l = 1. Conforme descrito na tabela 6.1, o valor de m pode variar entre −l e l, ou seja, para l = 1 os valores poss´ıveis de m s˜ ao −1, 0 e 1. Assim como no caso dos estados s, a nota¸c˜ao para os estados com l = 1 ´e muitas vezes feita utilizando uma letra, no caso p. Assim, temos l = 1 e m = 0 → pz , l = 1 e m = 1 → px e l = 1 e m = −1 → py . Os ´ındices x, y e z representam as dire¸c˜ oes das coordenadas cartesianas e a escolha da associa¸c˜ ao entre um dado valor de m e sua respectiva coordenada ´e feita por conven¸c˜ ao. Observe na figura 6.13 que as densidades de carga associadas aos estados p s˜ ao sim´etricas em rela¸c˜ ao ao plano nodal e apresentam o formato semelhante ao de um haltere. Esse formato de haltere da densidade de carga deriva diretamente das formas funcionais das fun¸c˜oes de onda, que no caso do ´ atomo de hidrogˆenio (Z = 1) tem a forma:  r r C2,1,0 e 2ao cosθ ao   r r C2,1,±1 e 2ao senθ e±iφ , ao 

Ψ2,1,0

=

Ψ2,1,±1

=

(6.43) (6.44)

´ 6.7 Atomos de um el´ etron

Miotto e Ferraz

135

Figura 6.13: Representa¸c˜ ao da densidade de carga para alguns estados do a´tomo de hidrogˆenio. A nomenclatura pΛ refere-se ao estado com n´ umeros quˆ anticos n = 2, 3, .., tal que se l = 1 e m = 0 → Λ = z, m = +1 → Λ = x, e m = −1 → Λ = y.

onde as constantes de normaliza¸c˜ ao C s˜ ao determinadas utilizando-se a condi¸c˜ ao de normaliza¸c˜ ao. Al´em dos estados s e p discutidos explicitamente acima, outros estados quˆ anticos tem caracter´ısticas comuns. Para os estados com l = 2, por exemplo, os poss´ıveis valores de m s˜ ao −2, −1, 0, 1 e 2. Esses estados tamb´em s˜ao geralmente indicados pela associa¸c˜ ao entre letras: dxy , dzx , dyz , e assim por diante, de tal forma que a letra d est´ a associada a l = 2 e os ´ındices ao n´ umero quˆ antico m. Da mesma forma, a estados com l = 3 e l = 4 associam-se as letras f e g respectivamente. Quer saber mais? As letras s, p, d n˜ ao significam nada. No passado elas indicavam as linhas sharp (afilada), principal (principal), diffuse (difusa), e fundamental (fundamental) do espectro ´ optico dos ´ atomos. Mas isso foi na ´epoca em que as pessoas n˜ ao sabiam qual a origem de tais linhas. Depois de f n˜ao havia nomes especiais, assim continuamos hoje com as linhas g, h, etc. Vocˆe poder´ a visualizar as representa¸c˜ oes das densidades de carga de alguns desses estados em http://www.d.umn.edu/˜pkiprof/ChemWebV2/AOs. O mesmo tratamento utilizado para o ´ atomo de hidrogˆenio pode ser estendido a todos os elementos da tabela peri´ odica. A dificuldade est´a no fato de agora ser necess´ ario o tratamento de um sistema de mais de duas part´ıculas. Sabemos da Mecˆ anica Cl´ assica que a solu¸c˜ ao anal´ıtica de tal problema s´o foi obtida em alguns poucos casos. Todavia, podemos utilizar aproxima¸c˜oes num´ericas para obter tais solu¸c˜ oes. De fato, nos estudos na ´area de F´ısica da Mat´eria Condensada, onde sistemas com muitos el´etrons s˜ao tratados, as solu¸c˜ oes da Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger s˜ ao obtidas atrav´es de tais aproxima¸c˜oes, como citado anteriormente.

136

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

Quer saber mais? Em geral os estados quˆ anticos atˆ omicos s˜ ao chamados simplesmente de orbitais. Assim, s˜ ao comuns as referˆencias ` a orbitais s, orbitais p, etc. Todavia, como vimos em nossa discuss˜ ao, os el´etrons n˜ao descrevem ´ orbitas, pois isso seria inconsistente com o Princ´ıpio de Incerteza de Heisenberg. Mesmo assim, o uso do termo orbital persiste ainda nos dias de hoje e sua raiz est´ a no Modelo de Bohr e em seu sucesso na descri¸c˜ao dos n´ıveis de energia do espectro do hidrogˆenio. Lembre-se que as raias espectrais eram conhecidas com uma excelente precis˜ ao e a excelente concordˆancia entre o Modelo de Bohr e os resultados experimentais contribu´ıram significativamente para sua aceita¸c˜ ao. De fato, a obten¸c˜ ao da mesma express˜ao, a partir de uma equa¸c˜ ao de movimento para o el´etron, foi o primeiro grande sucesso da teoria de Schr¨ odinger. Al´em disso, em contraste com as imagens pict´ oricas associadas ao Modelo de Bohr, a Mecˆanica Quˆantica tem um car´ ater bastante abstrato. Assim, a manuten¸c˜ao de algumas express˜ oes associadas ao Modelo de Bohr como o termo orbital sobreviveram ao advento da Mecˆ anica Quˆ antica. Existe inclusive uma teoria chamada Teoria do Orbital Molecular que ´e utilizada como uma ferramenta na compreens˜ ao das liga¸c˜ oes qu´ımicas entre mol´eculas. Saiba mais em http://zeus.qui.ufmg.br/˜ayala/matdidatico/tom.pdf.

6.8

O spin do el´ etron

Vocˆe j´ a deve ter notado que nossa defini¸c˜ ao da energia dos estados eletrˆonicos do ´ atomo de hidrogˆenio s´ o depende do n´ umero quˆantico n. Esse fato tem uma consequˆencia muito importante: o n´ıvel de energia correspondente a n = 2 est´ a relacionado a quatro estados distintos: Ψ2,0,0 (r,θ,φ), Ψ2,1,0 (r,θ,φ), Ψ2,1,−1 (r,θ,φ), e Ψ2,1,1 (r,θ,φ). Em outras palavras, esses quatro estados s˜ao degenerados, isto ´e, tˆem n´ umeros quˆ anticos diferentes, mas o mesmo valor de energia. Os n´ıveis de energia podem ser observados com grande precis˜ao em experimentos de excita¸c˜ ao de gases (o g´ as ´e excitado e emite radia¸c˜ao, analisada atrav´es de um espectrosc´ opio). Nesses experimentos, verifica-se que as raias espectrais relacionadas com o n´ umero quˆ antico n = 2 n˜ao s˜ao degeneradas, isto ´e, apresentam uma pequena separa¸c˜ ao entre si. De fato, os experimentos indicam que cada raia espectral ´e, na verdade, constitu´ıda por pelo menos duas raias muito pr´ oximas. Esta pequena separa¸c˜ ao ´e chamada de estrutura fina das raias e constituiu um dos obst´ aculos a serem superados pela Teoria Quˆ antica. Em 1925, Pauli20 sugeriu que o el´etron tinha um n´ umero quˆantico adicional que s´ o poderia assumir dois valores. No mesmo ano, Goudsmit e Uhlenbeck21 sugeriram que este quarto n´ umero quˆ antico seria a componente z do momento angular intr´ınseco do el´etron (ms ), o qual denominaram spin 20 Zeitschrift

f¨ ur Physik 32 794 (1925). 47, 953 (1925); Nature 117 264, (1926).

21 Naturwissenschaften

6.8 O spin do el´ etron

Miotto e Ferraz

137

do el´etron. Em seu modelo22 , Goudsmit e Uhlenbeck imaginaram o el´etron como uma esfera que gira em torno do seu eixo enquanto ´orbita o n´ ucleo, em analogia ` a rota¸ca˜o e transla¸c˜ ao da terra em torno do sol. Seguindo esse racioc´ınio, o momento angular intr´ınseco do spin do el´etron s seria descrito de forma an´ aloga ao n´ umero quˆ antico l, e os poss´ıveis valores de sua componente z seriam 2s + 1 (j´ a que s˜ ao 2l + 1 os poss´ıveis valores da componente z do momento angular orbital). Se ms tem apenas dois poss´ıveis valores, ent˜ao s deve ser igual a 21 . Assim, ms = ±s = ± 12 , onde cada n´ umero corresponde `as componentes z do el´etron ± 12 ~. Uma consequˆencia direta da introdu¸c˜ ao do spin do el´etron ´e a existˆencia de um momento magn´etico intr´ınseco (j´ a que uma carga em rota¸c˜ao ´e equivalente a um conjunto de espiras de corrente el´etrica). Do eletromagnetismo sabemos que o momento magn´etico µ de um sistema el´etrico girante est´a relacionado com o seu momento angular atrav´es de uma constante de proporcionalidade que ´e a raz˜ ao da carga pelo dobro da massa da part´ıcula. No caso do el´etron, e ~ ter´ıamos ent˜ ao µ ~ = 2m L, onde e ´e a carga; me , a massa; e L, o momento e angular do el´etron. A partir desta equa¸c˜ ao, podemos escrever o m´odulo do momento magn´etico e de sua componente z: µ=

p e e p l(l + 1)~ = l(l + 1)µB L= 2me 2me

(6.45)

e µz = −

e m~ = mµB , 2me

(6.46)

´ onde µB ´e conhecido como magn´eton de Bohr e vale 9,27 × 10−24 J/T. E muito interessante destacar que a quantiza¸c˜ ao do momento angular implica na quantiza¸c˜ ao do momento magn´etico do el´etron. Como o el´etron tem um momento angular do spin, caracterizado pelos n´ umeros quˆ anticos s e ms , ´e de se esperar que o momento magn´etico tenha a mesma forma, bastando que substituamos l por s e m por ms . Isso levaria a uma componente z do momento magn´etico do el´etron com magnitude de ± µ2B . Todavia, valor experimental observado ´e o dobro do esperado, o que faz com que a rela¸ca˜o usual entre a componente z de qualquer tipo de momento angular JZ e a componente z do seu momento magn´etico seja escrita como µz = −gµB J~Z , onde g ´e a raz˜ ao giromagn´etica, que vale gl = 1, para o momento angular orbital e gs = 2 para o spin. Esses valores foram previstos por Dirac23 j´ a em 1927, que utilizou a relatividade restrita e a Mecˆanica Quˆantica numa equa¸c˜ ao de onda relativ´ıstica que denominamos Equa¸c˜ao de Dirac. 22 Um relato dos acontecimentos que culminaram com a introdu¸ ca ˜o do spin foi feito pelo pr´ oprio Goudsmit, em 1971, durante uma palestra em comemora¸c˜ ao ao jubileu de ouro da Sociedade Neerlandesa de F´ısica. Veja a integra, com uma curta nota de apresenta¸c˜ ao de J. H. van der Waals em http://www.lorentz.leidenuniv.nl/history/spin/goudsmit. html. 23 The Quantum Theory of the Electron, Proc. R. Soc. A 117, no 778, 610 (1928).

138

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

O modelo proposto por Goudsmit e Uhlenbeck, no qual o el´etron aparece como uma esfera que gira em torno do seu eixo, levou-nos a um valor para o momento magn´etico do el´etron que ´e o dobro do observado experimentalmente. Isso ocorre porque este modelo simples n˜ ao pode ser tomado literalmente. Ele ´e apenas uma descri¸c˜ ao pict´ orica, tal qual o modelo atˆ omico de Bohr, que facilita a nossa compreens˜ ao do problema, mas que n˜ ao descreve perfeitamente o sistema quˆ antico em quest˜ ao. Al´em disso, o modelo de Goudsmit e Uhlenbeck tem um problema intr´ınseco: ele preve que o el´etron ´e uma esfera que gira em torno de seu eixo. Essa previs˜ ao ´e contr´ aria ao Princ´ıpio de Incerteza de Heisenberg, j´ a que implica em localizarmos o el´etron em um u ´nico ponto. A separa¸c˜ ao das raias espectrais observadas experimentalmente pode ent˜ao ser entendida como o resultado da intera¸c˜ ao entre o momento magn´etico associado ao momento angular orbital e o momento magn´etico do spin. O momento magn´etico do spin s´ o pode ter duas orienta¸c˜ oes poss´ıveis: paralela ou anti-paralela ao momento magn´etico angular orbital, que s˜ao comumente denominadas spin para cima e spin para baixo e representadas graficamente por ↑ e ↓. A inclus˜ ao do n´ umero quˆ antico associado ao spin possibilita uma descri¸c˜ao completa do ´ atomo de hidrogˆenio atrav´es da Mecˆ anica Quˆantica. As fun¸c˜oes de onda do el´etron no a´tomo de hidrogˆenio, ou em qualquer sistema eletrˆonico, s˜ ao caracterizadas por quatro n´ umeros quˆ anticos: n, l, m, e ms . Pelo Princ´ıpio de Exclus˜ ao de Pauli sabemos que no caso de f´ermions (por exemplo, el´etrons) dois estados n˜ ao podem ser degenerados, ou seja, pelo menos um de seus quatro n´ umeros quˆ anticos deve diferir. Para um estado qualquer n˜ao podemos dizer a priori qual ´e a orienta¸ca˜o do spin do el´etron. Assim, para sermos o mais geral poss´ıvel, dizemos que o estado ´e uma mistura dos dois poss´ıveis estados de spin. O estado fundamental do ´ atomo de hidrogˆenio, por exemplo, ´e descrito por uma combina¸c˜ ao linear dos dois poss´ıveis estados de spin que o sistema pode ocupar: Ψ(r,θ,φ)f undamental = C1,0,0, 21 Ψ(r)1,0,0, 12 + C1,0,0,− 12 Ψ(r)1,0,0,− 12

6.9

O experimento de Stern-Gerlach

Apesar das previs˜ oes te´ oricas, a constata¸c˜ ao experimental de que o momento angular ´e quantizado n˜ ao foi uma tarefa simples24 . As primeiras evidˆencias experimentais da existˆencia do spin est˜ ao relacionadas com o experimento de Stern e Gerlach 25 de 1922. 24 Perceba que a aceita¸ c˜ ao da existˆ encia do spin com um n´ umero quˆ antico semi-inteiro ´ e objeto de extenso relato por parte do pr´ oprio Goudsmit http://www.lorentz.leidenuniv. nl/history/spin/goudsmit.html. 25 Das magnetische Moment des Silberatoms, Zeitschrift f¨ ur Physik 9, 353 (1922).

6.9 O experimento de Stern-Gerlach

Miotto e Ferraz

139

O experimento de Stern e Gerlach faz uso de um aparato experimental desenhado para medir o momento magn´etico individual de ´ atomos de prata. Sern e Gerlach produziram um feixe de ´ atomos de prata por evapora¸c˜ ao em um forno quente, permitindo que apenas alguns dos ´ atomos assim produzidos passassem atrav´es de uma s´erie de pequenos Figura 6.14: Representa¸c˜ao esquem´atica do exorif´ıcios (colimadores). Esse perimento de Stern-Gerlach. feixe de ´ atomos atravessa um magneto especialmente constru´ıdo, conforme a figura 6.14. Se o ´atomo de prata ~ ele tem a energia tem um momento magn´etico µ, sob a a¸c˜ ao de um campo B, ~ −µz |B|, onde zˆ ´e a dire¸c˜ ao do campo magn´etico. Pela teoria cl´assica, µz seria igual ao produto do momento magn´etico pelo cosseno do ˆangulo entre o momento e o campo magn´etico, de forma que a energia extra devida ao campo ~ seria ∆U = −µ|B|cosθ. Quando os ´ atomos saem do forno, seus momentos magn´eticos apontam para todas as dire¸c˜ oes poss´ıveis, o que significa que todos os valores de θ ser˜ ao permitidos. Todavia, se o campo magn´etico varia rapidamente com zˆ, ou seja, o campo apresenta um gradiente muito grande, a energia magn´etica tamb´em varia com a posi¸c˜ ao, e a for¸ca sobre um dos polos do im˜ a ser´ a maior ou menor do que a for¸ca sobre o outro polo, deFigura 6.15: Representa¸c˜ao espendendo da orienta¸c˜ ao do im˜ a. A quem´ atica da a¸c˜ao de um campo figura 6.15 ilustra o efeito de um magn´etico B n˜ao uniforme aplicado campo magn´etico n˜ ao uniforme soa trˆes barras imantadas orientadas bre trˆes pequenas barras imantadas, diferentemente. com diferentes orienta¸c˜ oes. Al´em do torque, que provoca a precess˜ ao do momento magn´etico em torno da dire¸c˜ao do campo, h´ a tamb´em uma for¸ca na dire¸c˜ ao positiva ou negativa de zˆ, dada z por Fz = µz dB . Essa for¸ c a, devida ao im˜ a, ter´a orienta¸c˜ao para cima ou dz para baixo, de acordo com a n˜ ao uniformidade do campo magn´etico e da componente z do campo magn´etico. Assim, classicamente esperar´ıamos que, ao deixarem o magneto, os ´ atomos estivessem distribu´ıdos igualmente de acordo

140

Miotto e Ferraz

Introdu¸ c˜ ao ` a Mecˆ anica Quˆ antica

com a componente vertical de seu momento magn´etico, j´a que todos os ˆangulos s˜ ao permitidos. Todavia, o experimento de Stern e Gerlach mostra um resultado completamente diferente: os ´ atomos de prata formaram dois feixes. O fato de um feixe de ´ atomos cujos momentos magn´eticos (ou spins) deveriam estar distribu´ıdos randomicamente poder ser separado em dois feixes foi um resultado surpreendente. Os pesquisadores se perguntavam como o momento magn´etico sabia que s´ o alguns valores eram permitidos. Em 1927, Phipps e Taylor26 fizeram o mesmo experimento, s´ o que com ´atomos de hidrogˆenio, obtendo a mesma separa¸c˜ ao dos feixes. Esse experimento mostrou definitivamente que os resultados obtidos por Stern e Gerlach n˜ao eram devido a alguma propriedade intr´ınseca da prata. Al´em disso, como o ´atomo de hidrogˆenio n˜ ao possui momento magn´etico, a divis˜ ao do feixe de hidrogˆenio em dois feixes s´ o poderia ser devido ao spin intr´ınseco do el´etron, que s´o pode ter duas orienta¸c˜ oes, correspondentes ao n´ umero quˆ antico s = 21 . Quer saber mais? Apesar de decisivo como evidˆencia experimental do spin, o experimento de Stern e Gerlach teve uma interpreta¸c˜ ao inicial muito diferente daquela aqui apresentadaa . Todavia, apesar da interpreta¸c˜ao original estar incorreta, o resultado obtido por Stern e Gerlach era t˜ ao fundamental que resistiu ` as novas interpreta¸c˜ oes dadas pela Mecˆ anica Quˆantica. Isso nos tr´as a um outro ponto interessante: os resultados experimentais n˜ ao mudam quando a teoria aceita muda, apesar de sua interpreta¸c˜ ao poder mudar. Diversas informa¸c˜ oes e um simulador para o experimento de Stern e Gerlach podem ser encontrados em http://www.if.ufrgs.br/˜betz/ quantum/SGtexto.htm. a Veja, por exemplo, Friedel Weinert in Wrong theory - Right experiment: The significance of the Stern-Gerlach experiments, Studies In History and Philosophy of Science Part B: Studies In History and Philosophy of Modern Physics 26, 75 (1995).

6.10

Coment´ arios

Esta breve abordagem n˜ ao tem a pretens˜ ao de uma descri¸c˜ao detalhada da Mecˆ anica Quˆ antica, mas t˜ ao somente apresentar alguns conceitos b´asicos que podem ser utilizados em sala de aula. Estudos mais detalhados podem ser encontrados nos diversos livros ou artigos originais citados no decorrer do texto. Dentre os poss´ıveis t´ opicos a serem abordados, a descri¸c˜ao do funcionamento de um laser desperta grande curiosidade entre os alunos de diversos n´ıveis escolares, j´ a que este dispositivo est´ a presente em muitos aparelhos eletrˆonicos. A estrutura da mat´eria tamb´em est´ a contemplada em nossa abordagem. Dependendo do interesse e dos pr´e-requisitos de cada turma, um poss´ıvel assunto a ser abordado utilizando os conceitos aqui desenvolvidos ´e o de liga¸c˜ao qu´ımica. 26 The

Magnetic Moment of the Hydrogen Atom, Physical Review 29, 309 (1927).

6.10 Coment´ arios

Miotto e Ferraz

141

Os conceitos abordados na descri¸c˜ ao do ´ atomo de um el´etron podem ser estendidos para propiciar uma compreens˜ ao mais simples dos diferentes tipos de liga¸c˜ oes qu´ımicas.

´Indice Remissivo Arist´ oteles, 4 a´tomo, 73 a´tomo de hidrogˆenio, 146 n´ umeros quˆ anticos, 147 n´ıveis de energia, 148 orbital, 152 quantiza¸c˜ ao da componente z do momento angular, 148 quantiza¸c˜ ao do momento angular, 148 raio de Bohr, 150

corpo negro, 40, 42 absortˆ ancia, 40 potˆencia emissiva, 40 radiˆ ancia espectral, 41

Davisson e Germer, 101 de Broglie, 99 rela¸c˜ oes de, 99 degenerados, 152 degenerescˆencia, 141 densidade de carga, 134, 135, 150 densidade de probabilidade, 134, 150 b´ osons, 144 detectores de radia¸c˜ao, 58 Balmer, 75 detectores de radia¸c˜ao infravermelho s´erie de, 75 imagens t´ermicas, 58 Bohr, 86 Dirac, 154 modelo atˆ omico de, 86 Equa¸c˜ ao de, 154 postulados de, 86 Equa¸c˜ ao Relativ´ıstica de, 92 Princ´ıpio da Correspondˆencia, 87, dualidade onda-part´ıcula, 69, 110, 113 91 car´ ater coletivo, 70 Princ´ıpio de Complementariedade, car´ ater individual, 70 115 Princ´ıpio de Complementariedade efeito fotoel´etrico, 59 fotoel´etron, 61 de, 129 limiar de frequˆencia, 62, 64 Raio de, 90 sensores fotoel´etricos, 66 Boltzmann, 42 tempo de retardo, 62, 64 calor, 37 Efeito M¨ ossbauer, 117 cal´ orico, 37 Einstein, 3, 17 Compton, 66 Equa¸c˜ ao de, 63 comprimento de onda, 69 el´etron, 78, 106 deslocamento, 66 carga el´etrica elementar, 79 pacote de ondas, 106 efeito, 66 constante de estrutura fina, 92 quantiza¸c˜ao da carga, 80

´ INDICE REMISSIVO elemento de matriz, 136 eletrosc´ opio, 65 entropia, 54 Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger, 122 independente do tempo, 124 Espalhamento Thomson, 69 Espectro Eletromag´etico, 38 estados quˆ anticos, 56 ´eter, 8, 10, 12, 14 Experimento de Michelson-Morley, 14 Experimento de Young, 107 Express˜ ao de Rydberg-Ritz, 76 f´ermions, 144 f´ oton, 63, 64 emiss˜ ao, 135 F´ısica Quˆ antica, 56 fenˆ omeno ondulat´ orio, 104 FitzGerald, 15 Fizeau, 12 Franck-Hertz, 95 experimento de, 95 Fresnell, 12 fun¸c˜ ao de onda, 105, 120 condi¸c˜ ao de normaliza¸c˜ ao, 123 continuidade, 123 interpreta¸c˜ ao probabil´ıstica, 109 fun¸c˜ ao trabalho, 63 G. P. Thomson, 101 Galileu, 4, 37 Princ´ıpio de Relatividade de, 6 Transforma¸c˜ ao de, 7 Goudsmit e Uhlenbeck, 153 grau de liberdade, 147

Miotto e Ferraz falhas no modelo de, 81 modelo atˆomico de, 80 Joule, 38 Kirchhoff, 40, 41, 74

laser, 136, 144, 145 f´ oton, 145 Lei de Rayleigh-Jeans, 50 Cat´astrofe do Ultravioleta, 50 Lei de Stefan-Boltzmann, 43 Linhas de Fraunhofer, 74 Lorentz, 16 fator de, 16 Transforma¸c˜oes de, 16 maser, 136, 145 Maxwell, 9 Mecˆ anica Newtoniana, 4 Mecˆ anica Quˆantica, 119 Michelson, 13 Millikan, 79 experimento de, 79 Modelo de Bohr, 86 diagrama de n´ıveis de energia, 88 emiss˜ao de um f´oton, 86 energia de ioniza¸c˜ao, 88 Equa¸c˜ao de Bohr, 88 estados estacion´arios, 86 momento angular, 87 quantiza¸c˜ao da energia, 87 transi¸c˜ao, 86 Modelo de Drude, 124 modelos atˆomicos, 80 Moseley, 93 experimento de, 93

Heisenberg, 110, 119 n´ umero quˆantico, 56, 141 Princ´ıpio de Incerteza de, 110, 129, Newton, 5 154 Mecˆanica Newtoniana, 5 Hertz, 59 Primeira Lei de, 6 Huygens, 8 onda estacion´aria, 47 Interpreta¸c˜ ao de Copenhagen, 109 operador, 130 J. J. Thomson, 80

143

pacote de ondas, 104

144

´ INDICE REMISSIVO

Miotto e Ferraz

velocidade de fase, 105 velocidade de grupo, 105 parˆ ametro de impacto, 83 Paradoxo dos Gˆemeos, 23 Pauli, 142, 153 Princ´ıpio de Exclus˜ ao de, 142, 144, 154 pirˆ ometro ´ optico, 39 Planck, 51 po¸co quadrado finito, 127 aplica¸c˜ ao, 130 condi¸c˜ ao de contorno, 128 continuidade da fun¸c˜ ao de onda, 128 Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger, 128 interpreta¸c˜ ao, 129 metal, 124 tunelamento, 130 po¸co quadrado infinito, 124 condi¸c˜ ao de normaliza¸c˜ ao, 126 condi¸c˜ oes de contorno, 125, 126 corda vibrante, 125 densidade de probabilidade, 127 energia, 125 Equa¸c˜ ao de Schr¨ odinger, 125 estado quˆ antico, 127 n´ umero quˆ antico, 125 onda estacion´ aria, 125 quantiza¸c˜ ao, 125 Princ´ıpio de Incerteza, 110 consequˆencias, 115 propriedades ondulat´ orias da mat´eria, 100 evidˆencias experimentais, 101 pudim de ameixas, 81 quanta, 63 radia¸ca˜o t´ermica, 38 Raios X, 71, 103 cristalografia, 103 Rayleig, 46 referencial, 6 inercial, 6 regra de sele¸c˜ ao, 136

Rela¸c˜ ao de Planck, 55 constante de Planck, 55 Rutherford, 82 modelo atˆomico de, 84 trajet´ oria parab´olica de, 83 Rydberg, 76 Schr¨ odinger, 100, 119 equa¸c˜ ao de, 122 spin, 152, 153, 157 estrutura fina, 153 modelo de Goudsmit e Uhlenbeck, 153 momento angular orbital, 154 Stern e Gerlach, 155 experimento de, 155 Tabela Peri´ odica, 93 tempo absoluto, 16 Teorema da Equiparti¸c˜ao de Energia, 49 Teoria da Relatividade, 3 contra¸ca˜o espacial, 26 dilata¸c˜ ao temporal, 21 Energia Cin´etica, 34 massa, 32 massa de repouso, 31 momento, 32 Postulado (ou Princ´ıpio) da Relatividade, 18 Postulado da constˆancia da velocidade da luz, 18 Teoria Ondulat´oria, 9 transi¸c˜ oes entre estados quˆanticos, 133 tunelamento, 140 valor esperado, 131 Velha Teoria Quˆantica, 97 velocidade da luz, 10, 18 Wien, 43 Lei de Deslocamento de, 43 Wilson-Sommerfeld, 96 regra de quantiza¸c˜ao, 96, 97 Zeeman, 77

´ INDICE REMISSIVO efeito, 77 efeito Zeeman anˆ omalo, 77

Miotto e Ferraz

145

c

R. Miotto e A. C. Ferraz

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