Robert Humphrey - O Fluxo da consciência
February 26, 2017 | Author: Paulo Costa | Category: N/A
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Robert Humphrey
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0 FLUXO DA CONSCIÊNCIA
ROBERT HUMPHREY Professor de Literatura da Louisiana State University
0 Fluxo da Consciência (UM ESTUDO SOBRE JAMES JOYCE, VIRGÍNIA WOOLF, DOROTHY RICHARDSON, WILLIAM FAULKNER E OUTROS) FICHA CATALOGRAFICA
Tradução de GERT MEYER
(Preparada pelo Ccnlro dc Cnlnlognção-na-Fonte, CÂMARA BRAblU.IKA D O LIVRO, SP)
Revisão Técnica de AFRÂNIO COUTINHO Diretor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Humphrey, Robcrt O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virgínia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner c outros; tradução dc (iert Meyer, revisão técnica de Afrânio Coutinho. Sao Paulo, Mdiraw-llill do Brasil, 1976.
H912f
P-
76-0827
Bibliografia. 1. Ficção Historia c critica 2. Ficção — Técnica 3. Literatura - Psicologia 1. Titulo. CDD-808.3 -801.92 -809.3
índices paia catalogo sistemático: 1. Literatura : Psicologia KC> 1 >>2 2. Ficção : Técnica KIIK l 3. Ficção : llislória o crílica 809.3 4. Romance : Técnica 808 1 5. Romance : llislóiia c crítica 809.3
I 1'ITORA McGRAW-HILL DO BRASIL,
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tIAO PA1IIO MU > IH .IANFIRO III li» IIOIII/ONTE Pt MIK) Al I A frase é usada com maior clareza quando aplicada a processos mentais, pois como locução retórica torna-se duplamente metafórica; isto é, a palavra "consciência", assim como a palavra "fluxo", é figurativa; por conseguinte, ambas são menos precisas e menos estáveis. Se, portanto, o termo fluxo da consciência (continuarei a usá-lo, por já ser um rótulo literário estabelecido) for reservado para indicar um sistema para a apresentação de aspectos psicológicos do personagem na ficção, poderá ser usado com certa precisão. Farei esta reserva, que serve de base para esclarecer comentá(1) Em The Principies of Psychology (Os princípios da psicologia), Nova York, Henry Holt, 1890, I, 239.
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rios contraditórios e muitas vezes sem sentido sobre o romance da escola do fluxo da consciência. O romance do fluxo da consciência pode ser mais rapidamente identificado por seu conteúdo, que o clislingue muito mais do que suas técnicas, suas finalidades ou seus temas. Por isso, os romances a que se atribui em alto grau o uso da técnica do fluxo da consciência provam, quando analisados, serem romances cujo assunto principal é a consciência de um ou mais personagens; isto é, a consciência retratada serve como uma tela sobre a qual se projcla o material desses romances. Não se deve confundir "consciência" com palavras que denotam atividades mentais mais restritas, (ais como "inteligência" ou "memória". Os psicólogos deploram com razão o uso que o leigo faz do termo. Escreve um deles: "Afiiniou-sc que nenhum termo filosófico é, ao mesmo tempo, tão popular c tão destituído de significado padrão como consciência; c o uso leigo deste termo tem sido creditado com o maior número de questões metafísicas do que, provavelmente, qualquer outra palavra. (:,) A área que examinaremos aqui é uma das mais importantes em que esta confusão sc tem acumulado. Como nosso estudo dirá respeito a pessoas leigas cm psicologia, faz-se necessário prosseguirmos com o "uso leigo". E claro que não foram os escritores do fluxo da consciência que definiram seu rótulo. Isto compete a nós, que neles o afixamos. Consciência indica toda a área dc atenção mental, a partir da pré-consciência, atravessando os níveis da mente e incluindo o mais elevado de todos, a área da apreensão racional e comunicável.(4) É (2) Pelo menos dois escritores, Frederick Hoffman e Harry Levin, reconheceram este uso vago do "fluxo da consciência". Levin emprega, em seu lugar, o termo retórico francês "monologue inlérieur". Embora Levin empregue mesmo esse termo de uma maneira demasiado vaga para qualquer discussão genérica dessa técnica, cie serve perfeitamente para suas finalidades especiais. Devo-lhe a distinção básica entre os termos cm questão. Vide seu livro, James Joyce: A Criticai Introduction, Norfolk, Conn., New Directions, 1941, p. 89. (3) James Gricr Miller, Unconsciousness (Inconsciente), Nova York, J. Wiley and Sons, 1942, p. 18. (4) Vide os dicionários de filosofia, especialmente Philosophisch.es Wõrterbuch, ed. Heinrich Schmidt, 10." edição, Stuttgart, A. Krõner, 1943, e The Dictionary of Philosophy, ed. D. D. Runcs, Nova York, The Philosophical Library, 1942. Vide também a classificação das técnicas do fluxo da consciência de Frederick J. Hoffman de acordo com quatro níveis de consciência em Freudianism and the Literary Mind, Baton Rouge, La., Louisiana State University Press, 1945, pp. 126 a 129.
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com esta última que se ocupa quase toda a ficção psicológica. A ficção do fluxo da consciência difere de qualquer outra ficção psicológica precisamente por dizer respeito aos níveis menos desenvolvidos do que a verbalização racional — os níveis à margem da atenção. No tocante à ficção do fluxo da consciência, é inútil procurar formar categorias definidas dos muitos níveis da consciência. Semelhantes tentativas exigem respostas a sérias questões metafísicas e levantam sérias perguntas sobre os conceitos de psicologia dos escritores do fluxo da consciência e suas intenções estéticas — perguntas que os epistemologistas, psicólogos e historiadores literários ainda não responderam satisfatoriamente. Para uma análise da ficção do fluxo da consciência, convém supor que há níveis de consciência desde o mais baixo, escassamente acima do esquecimento, até o mais alto, representado pela comunicação verbal (ou outra comunicação formal). "Alto" e "baixo" indicam simplesmente graus daquilo que obedece a uma ordem racional. Para indicar esses graus, poder-se-ia igualmente empregar os adjetivos "claro" e "obscuro". Existem, todavia, dois níveis de consciência que podem ser distinguidos com uma certa facilidade: o "nível da fala" e o "nível da pré-fala". Há um ponto onde elas se sobrepõem, mas, sob outro aspecto, a distinção é bem clara. O nível da pré-fala, que é a preocupação da maior parte da literatura analisada neste estudo, não implica uma base para comunicação como é o caso do nível da fala (quer falada, quer escrita). Esta é a sua principal característica. Em breve, os níveis da consciência que antecedem a fala não são censurados, racionalmente controlados ou logicamente ordenados. Portanto, por "consciência", estarei indicando toda a área de processos mentais, incluindo, especialmente, os níveis da pré-fala. Usarei o termo "psique" como sinónimo de "consciência" e, por vezes, até mesmo a palavra "mente" servirá também de sinónimo. Esses sinónimos, apesar da desvantagem das diversas qualidades evocativas que possuem, são convenientes no uso por se prestarem bem à formação de adjetivos e advérbios. Não se deve, pois, confundir "consciência" com "inteligência", "memória" ou qualquer outro desses termos limitativos. Henry James escreveu romances que revelam processos psicológicos nos quais um único ponto de vista é mantido, de modo que todo o romance é apresentado através da inteligência de um só personagem. Mas como não lidam absolutamente com os níveis de pré-fala da consciência, não cabem na minha definição de romances de fluxo da consciência. Mareei Proust escreveu um clássico moderno muitas vezes citado como
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exemplo da ficção de fluxo da consciência, (5) mas À la recherche du temps perdu (Em busca do (empo perdido) somente se ocupa com o aspecto rememorativo da consciência. Proust estava propositalmente recapturando o passado com finalidades dc comunicação; portanto, não escreveu um romance de fluxo da consciência. Pensemos na consciência como tendo a forma de um iceberg — o iceberg inteiro, e não apenas a parte relativamente pequena que aparece. A ficção de fluxo da consciência, para levar avante esta comparação, ocupa-se em grande parte com o que está abaixo da .superfície. Com este conceito dc consciência, podemos definir a ficção do fluxo da consciência como um tipo dc ficção em que a ênfase principal é posta na exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade dc revelar, antes dc mais nada, o estado psíquico dos personagens. Analisando alguns romances que se enquadram nesta categoria, torna-se logo aparente que as técnicas do domínio do enredo e da apresentação dos personagens são palpavelmcnte diferentes de um romance para outro. Na verdade, o fluxo da consciência não tem uma técnica definida. Ao invés disso, são usadas as mais diversas técnicas para apresentar o fluxo da consciência. A mente autoconsciente Não é incomum a concepção errónea de que muitos romances modernos, e principalmente os que são geralmente rotulados como de fluxo da consciência, dependem cm grande parte de símbolos particulares para representar confusões particulares. Esse erro é ocasionado principalmente por considerar-sc tudo que é "interno" ou "subjetivo" em matéria dc caracterização como sendo total alucinação ou, no melhor dos casos, psicanalítico. Graves erros de interpretação e fracas avaliações resultam desse mal-cntcndido inicial, principalmente na discussão dos maiores romances do século XX. Refiro-me à ficção subjetiva tal como Ulysses, Mrs. Dalloway, To the Lighthouse (O Farol) (5) Por exemplo, Edward Wagenknecht, Cavalcade of the English Novel From Elizabeth to George VI (Cavalgada do romance inglês de Elizabeth a George VI), Nova York, Henry Holt, 1943, p. 505. (6) Naturalmente, é verdade que foram feitas várias tentativas no sentido de representar o personagem na ficção em termos psicanalíticos — especialmente nos romances Blue Voyage e The Creat Circle, de Conrad Aiken — mas essas tentativas são, na maior parte, curiosidades, sendo insignificantes no cômputo geral.
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e The Sound and the Fury. Estes romances podem perfeitamente encontrar-se em uma categoria que podemos rotular como fluxo da consciência, contanto que saibamos de que estamos falando. A evidência vem provar que jamais sabemos — ou soubemos. Não faz sentido rotular como fluxo da consciência todos os romances geralmente apontados como tais, a menos que por esta frase se queira apenas significar "percepção interior". A expressão desta qualidade é o que elas têm em comum. Todavia, é evidente não ser isto o que se quis significar ao rotulá-los como tais e forçá-los a se enquadrarem na mesma categoria. Não foi o que William James quis dizer ao cunhar o termo. James estava formulando uma teoria psicológica e havia descoberto que "lembranças, pensamentos e sentimentos existem fora da consciência primária" e, o que é mais, que eles nos aparecem não em cadeia, mas como uma corrente, um fluxo. (r) Portanto, quem primeiro aplicou a frase ao romance apenas o fez corretamente se de fato estava pensando em um método para representar percepção interior. Na verdade, aconteceu que "monologue intérieur" foi canhestramente traduzido para o inglês. Mas é palpavelmente certo que os métodos dos romances que se valem deste sistema são diversos, havendo dúzias de outros que usam monólogo interior, sem que ninguém, em sã consciência, os classifique como de fluxo da consciência. Entre esses estão, por exemplo, Moby Dick, Les Faux Monnayeurs e Of Time and the River (O Tempo e o Rio). Portanto, fluxo de consciência não é sinónimo de "monologue intérieur". Não é um termo usado para designar um método ou uma técnica especial, embora, provavelmente, fosse na origem usado em crítica literária com essa finalidade. Pode-se presumir, sem dúvida, que um termo tão vago e imaginoso foi uma radiante tábua de salvação para os críticos bem intencionados mas que se achavam desorientados. A associação natural e historicamente correta deste termo com a psicologia, juntamente com a esmagadora tendência psicanalítica do pensamento no século XX, resultou em dotar todos os romances, que podiam ser vagamente relacionados com a expressão indefinida de "fluxo da consciência", de um marcado sotaque vienense. A palavra "fluxo" não precisa preocupar-nos de imediato, pois a representação do fluxo da consciência é, contanto que se esteja convencido de que a consciência flui, uma pura questão de técnica. O rumo a seguir é tomar a palavra "consciência" e procurar formular (7) The Principies of Psychology, I, 239.
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA 6 aquilo que, para os vários escritores, é o significado fundamental daquilo que a consciência contém. Em suma, trata-se de uma questão psicológica e filosófica. A literatura do fluxo da consciência é uma literatura psicológica, devendo, porém, ser estudada no nível em que a psicologia se mescla à epistemologia. Defrontamo-nos logo com a pergunta: Que contém a consciência? Ou ainda: Que contém ela na medida em que a filosofia c a psicologia a investigaram e o que contém na medida cm que os romancistas cm questão a representaram? Estas perguntas podem ser reciprocamente excludentes; o certo é que são diferentes. Mas a preocupação aqui não é com a teoria psicológica e sim com o tema novclístico. A questão para este estudo é fenomenológica: Que contém a consciência, isto é, que continha ela, na medida em que a consciência dos romancistas a experimentou? Qualquer resposta terá de respeitar o possível alcance da sensibilidade e imaginação de um escritor inventivo. Nenhuma resposta precisa ser provada além da afirmação: ela está cm Virgínia Woolf; ela está em James Joyce. Convém lembrar que, cm primeiro lugar, estamos tentando esclarecer um termo literário; cm segundo, estamos procurando estipular como a arte ficcional é enriquecida pela descrição de estados interiores. A intenção de introduzir consciência humana na ficção é uma tentativa moderna para analisar a natureza humana. A esta altura, a maioria de nós deve estar convencida de que ela pode ser o ponto de partida para a mais importante de todas as funções intelectuais. Temos, por exemplo, a palavra dc Henry James de que a "experiência nunca é limitada, nem nunca é completa". Ele prossegue, no mesmo contexto, para apontar a "câmara da consciência" como sendo a câmara da experiência. (H) Portanto, a consciência é o lugar onde tomamos conhecimento da experiência humana. E, para o romancista, é o quanto basta. Ele, eoletivamente, não deixa nada de fora: sensações e lembranças, sentimentos e concepções, fantasias e imaginações — e aqueles fenómenos muito pouco filosóficos mas consistentemente inevitáveis a que chamamos intuições, visões e introspecções. Estes últimos termos, que geralmente confundem os epistemologistas, ao contrário da série imediatamente precedente, nem sempre se acham inclusos sob o rótulo dc "vida mental". Justamente por este motivo, é importante indicá-los aqui. O "conhecimento" humano que procede não da atividade "mental" mas da vida "espiritual" diz respeito aos (8) "Art of fiction", Partial Portraits, Londres, Macmillan, 1905, p. 88.
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7 romancistas, senão aos psicólogos. Portanto, o conhecimento, como categoria da consciência, deve incluir a intuição, a visão e às vezes mesmo o oculto, no que concerne aos escritores do século XX. Daí podermos concluir, por razões indutivas, que o campo da vida com o qual se ocupa a literatura do fluxo da consciência é experiência mental e espiritual — tanto seu "quê" quanto seu "como". O "quê" inclui as categorias de experiências mentais: sensações, lembranças, imaginações, concepções e intuições. O "como" inclui as simbolizações, os sentimentos e os processos de associação. Muitas vezes é impossível distinguir o "quê" do "como". A memória, por exemplo, faz parte do conteúdo mental ou será um processo mental? É claro que tão ténues distinções não dizem respeito aos romancistas como tais. Seu objetivo, quando estão escrevendo fluxo da consciência, consiste em ampliar a arte da ficção descrevendo os estados interiores de seus personagens. O problema da descrição do personagem é central à ficção da escola do fluxo da consciência. A grande vantagem e, consequentemente, a melhor justificativa para este tipo de romance reside em suas potencialidades para apresentar o personagem de uma maneira mais correta e mais realista. Há o exemplo do "romance experimental" atrás de James Joyce, Virgínia Woolf e Dorothy Richardson e, embora um pouco mais distante, atrás de William Faulkner. Mas existe uma diferença, tremenda aliás, entre Zola e Dreiser, digamos, dois romancistas que buscaram na ficção uma espécie de método de laboratório, e os escritores do fluxo da consciência, indicada esta diferença, principalmente, pela diferença de assunto — que, para os romancistas anteriores, é motivo e ação (homem exterior) e para os últimos, existência e funcionamento psíquicos (homem interior). A diferença é revelada também no pensamento psicológico e filosófico que está atrás disto. Psicologicamente, é a distinção entre conceitos behaviorísticos e psicanalíticos; filosoficamente, é a distinção entre um amplo materialismo e um existencialismo generalizado. Combinados, é a diferença entre preocupar-se com aquilo que se faz e preocupar-se com aquilo que se é. Não pretendo apresentar uma síntese freudiana ou existencial para a literatura do fluxo da consciência. Sem dúvida, todos seus autores estavam mais ou menos familiarizados com as teorias psicanalíticas e com a recrudescência do personalismo no século XX e foram, direta ou indiretamente, influenciados por elas. Podemos estar mais certos ainda de que esses escritores sofreram a influência dos mais
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amplos conceitos de uma "nova psicologia" e "nova filosofia" — um rótulo nebuloso para todo pensamento pós-behaviorístico e não-positivista, incluindo qualquer filosofia ou psicologia que enfatizasse a vida mental e emocional interior do homem (por exemplo a psicologia do gestaltismo, a psicologia psicanalítica, as ideias bergsonianas de durée, e élan vital, o misticismo religioso, muita lógica simbólica, existencialismo cristão, etc). Foram os antecedentes que conduziram à grande diferença entre o assunto dc Zola e o dc Joyce; entre o de Balzac e o de Dorothy Richardson. Todavia, como romancistas, todos esses escritores se preocuparam com o problema da caracterização. Encontramos naturalismo na descrição dos personagens tanto no trabalho dos romancistas anteriores como dos posteriores acima mencionados, mas há um contraste, determinado pela diferença no enquadramento psicológico. Em suma, os romancistas do fluxo da consciência, assim como os naturalistas, estavam procurando descrever corretamente a vida; mas, ao contrário dos naturalistas, a vida com que estavam preocupados era a vida psíquica do indivíduo. Ao examinar os principais escritores do fluxo da consciência para descobrir suas diversas avaliações do conhecimento interior, precisamos conservar em mente duas importantes perguntas: Que se pode realizar apresentando o personagem da maneira como ele existe psiquicamente? De que maneira a arte da ficção é enriquecida pela descrição de estados interiores? A direção da discussão que se segue será no sentido de responder a estas perguntas. Impressões e visões Ao contrário da maioria dos criadores de géneros artísticos, o pioneiro no fluxo da consciência no século XX continua sendo o menos conhecido dos importantes escritores dessa escola. É o preço que um escritor, mesmo um escritor experimental, tem de pagar por gerar monotonia. Os leitores poderão, com boas razões, omitir Dorothy Richardson, o mesmo não podendo ocorrer com quem quiser compreender a evolução da ficção no século XX. Com uma grande dívida para com Henry James e Joseph Conrad, ela inventou a descrição ficcional do fluxo da consciência. Às vezes, ela chega a ser brilhante; mas é sempre sensível às sutilezas do funcionamento mental; mas, ao fim, ela se perde no exagero — um dilúvio disforme e interminável de detalhes realistas.
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9 É difícil captar os objetivos de Dorothy Richardson. Ela própria os justifica da seguinte maneira no brilhante prefácio de Pilgrimage (Romaria): . . . a presente escritora, pretendendo, neste momento, escrever um romance e em busca de um modelo contemporâneo, viu-se confrontada pela alternativa de seguir um de seus padrões ou tentar produzir um equivalente feminino do atual realismo masculino. Optando pela última alternativa, pôs logo de lado, em consequência de um descontentamento que revelou sua natureza sem causa, um considerável volume de manuscritos. Ciente, à medida que escrevia, do gradativo afastamento das preocupações que por algum tempo vinham afetando o bom andamento da escrita, e da substituição destas inspiradoras preocupações por um algo estranho com a forma de uma realidade contemplada, tendo aparecido pela primeira vez em toda sua existência, e aparentemente justificando aqueles que consideram escrever como sendo o meio mais seguro de descobrir a verdade sobre nossos próprios pensamentos e crenças, ela vinha se atormentando cada vez mais, ao mesmo tempo não só com o fracasso desta realidade agora tão independentemente positiva, surgida corretamente dentro do texto, mas também com sua revelação, sempre que focalizada, de uma centena de rostos, qualquer dos quais, no momento em que era apanhado nas malhas miúdas da afirmação direta, intimava os demais a desqualificá-lo. Felizmente, a sugestão de Pound pouco perde de sua força, apesar do fato daquilo que ele descreve não ser inteiramente correto quanto à forma da sonata. O Professor Beach também fez uma analogia musical ao referir-se à estrutura de Ulisses. Escreve ele, "Ulisses não é mais nem menos do que um poema sinfónico, caracterizado por um vigoroso e insistente desenvolvimento de temas". Embora as analogias da técnica de uma arte para outra sejam facilmente enganosas, essas descrições gerais da estrutura musical de Ulisses são válidas. O delineamento simbólico de Virginia Woolf Se quiséssemos comparar a estrutura de um romance à forma de uma sonata, Mrs. Dalloway seria um excelente exemplo. É simples identificar ali um primeiro tema, um trecho servindo de ponte, um segundo tema, desenvolvimento e recapitulação. Entretanto, nos romances de Virginia Woolf como nos de Joyce, foram empregados padrões mais tangíveis para proporcionar a harmonia. Virginia Woolf em Mrs. Dalloway faz com as unidades quase a mesma coisa que Joyce faz com elas em Ulisses. A narrativa superficial de Mrs. Dalloway se desenrola no espaço de 24 horas; tem lugar na cidade de Londres (e em um único bairro dessa cidade); e diz respeito a dois personagens principais. No entanto, o tempo envolvido no drama básico que se desenrola nas mentes destes personagens abrange 18 anos; o local dos incidentes varia da índia para Bourton para Londres para os campos de batalha da Guerra Mundial na França; e envolve cerca de uma dúzia de personagens. As unidades em Mrs. Dalloway, espantosas como são em sua rigidez, sobrepõem-se a uma narra(14) "James Joyce et Pécuchet", Polite Essays, Londres, Fáber and Fabcr, 1937. (15) Joseph Warren Beach, The Twentieth Century Novel: Studies in Technique, Nova York, D. Appleton-Century, 1932, p. 418.
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tiva que sofre grandemente da falta dessas mesmas unidades. A função deste dualismo é a mesma que em Ulisses: permite a uma consciência de fora (a do leitor) acompanhar, compreender e interpretar as mentes dos personagens criados pelo autor. Isto é conseguido, como acontece também em Ulisses, providenciando um ponto focal mais ou menos estático para o qual a atenção do leitor pode voltar-se enquanto acompanha as associações confusas das consciências dos personagens. De certo modo, Virginia Woolf vale-se também de temas como artifícios unificadores. É o caso da imagem sonora do Big-Ben dando as horas do dia em Mrs. Dalloway; e é também o caso do símbolo recorrente do farol em O Farol. Mas a confiança que Virginia Woolf deposita nos símbolos como padrão estrutural é sumamente enfática em outro sentido. Isto se aplica principalmente a O Farol, onde todo o romance se baseia num conjunto de valores simbólicos primários. Aplica-se também em um grau elevado a As Ondas e até certo ponto a Mrs. Dalloway. Uma análise de O Farol revelará a maneira pela qual funciona essa estrutura simbólica de maneira a proporcionar a coerência de padrão necessária na ficção do fluxo de consciência. Como o próprio título indica (N. T. — Título original: To the Lighthouse, o que, traduzido ao pé da letra, significa "Rumo ao Farol"), a substância do romance consiste na tentativa dos personagens de chegarem ao farol, que fica numa ilha a poucas milhas de onde se acham reunidos. O livro começa salientando o seguinte: "Sim, claro, se amanhã fizer bom tempo," disse a Sr.5 Ramsay. "Mas vocês terão que madrugar," acrescentou. A Sr.5 Ramsay está dizendo ao seu filho James que poderá ir ao farol se o tempo assim o permitir. O livro termina dez anos depois, a Sr.5 Ramsay já falecida, quando finalmente James chega pela primeira vez ao farol. Naturalmente, não se trata de um livro de aventuras e o livro não se ocupa com naufrágios, tempestades ou coisa semelhante. O farol é um símbolo, assim como o próprio ambiente do romance, uma ilha isolada nas Híbridas, é usado simbolicamente e assim como os personagens e suas ações são simbólicos. Aliás, conforme se tem dado a entender, o símbolo do farol impregna o romance com uma força irrestrita: "A própria estrutura do livro reproduz o efeito do raio luminoso do farol, o longo clarão representado pelo primeiro movimento (A Janela), (isto é, a primeira divisão do livro), o intervalo das trevas representado pelo segundo movimento (O Tempo Passa) e o segundo clarão, também o mais curto, pelo último movimento (O Farol). Quando se pensa neste aspecto do livro, o tema deixa de ser um grupo específico de seres humanos; é a
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vida e a morte, a alegria e a dor — salientando-se mais especificamente dois temas, o isolamento do espírito humano individual e o contraste entre a experiência ordenada e fragmentária de viver e a verdade ideal ou beleza à qual a mente humana aspira." (16) A Sr.5 Ramsay, a campeã da viagem ao farol, é contrariada por seu marido, que responde às suas observações iniciais: "No entanto," disse seu pai, detendo-se junto à janela da sala de visitas, "não vai fazer bom tempo." Assim, a situação básica é dotada de significado simbólico pela oposição de duas forças. O relacionamento geral dos personagens, a luta por respostas a problemas básicos de conhecimento, a busca de códigos para lembranças e impressões assumem a importância que vem com uma busca mística. Em Virginia Woolf, tudo é questão de introspecção, pois os valores simbólicos não podem ser definidos; e quando os encontramos, sabe-se disso apenas por intuição, por "senti-lo". David Daiches, que explorou este aspecto de Virginia Woolf em maior detalhe do que ninguém, fala de O Farol: Virginia Woolf passa de uma consciência para outra, de um grupo para outro, explorando a importância de suas reações, seguindo o curso de suas meditações, combinando e moldando cuidadosamente as imagens que surgem em suas mentes, reunindo com cuidado e parcimônia um número seleto de incidentes simbólicos, até atingir um delineament o . . . e a experiência é encarada como sendo uma coisa inexprimível e todavia significativa. (17) Portanto, é a importância dos acontecimentos e lembranças e associações que é apontada por Virginia Woolf. Ela tem consciência de que não pode expressar seus significados. A fim de impressionar o leitor da importância de ir ao farol, a sutil romancista emprega outra situação simbólica para servir de contraponto ao básico. Este é centralizado sobre Lily Briscoe, uma das hóspedes dos Ramsays, que através dos 10 anos está tentando terminar a pintura de uma paisagem. Ela a termina no exato momento em que James chega ao farol, quando então, de repente, ela tem um momento de introspecção, de inspiração: "Com uma repentina intensidade, como se a visse nitidamente por um se(16) Joan Bennett, Virginia Woolf — Her Art as a Novelist, Londres, Cambridge University Press, 1945, pp. 103-104. (17) Virginia Woolf, Norfolk, Conn., New Directions, 1942, p. 82 em diante.
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gundo, traçou uma linha ali, no centro. Estava pronto; estava acabado. Sim, pensou, pousando o pincel, extremamente fatigada, tive a minha visão." O delineamento simbólico e a visão simbólica podem ser encontrados em quase toda a obra de Virginia Woolf. O dia de Clarissa Dalloway, seus preparativos para a festa, sua compreensão definitiva de si mesma na festa são simbólicos. Desta forma, o tema trivial ganha um significado inexprimível, assim como o trivial na consciência ganha significado quando tem uma referência simbólica. Por exemplo, Clarissa Dalloway está sozinha no seu quarto de dormir enquanto a festa prossegue no andar de baixo. Ela está olhando pela janela: — Na sala fronteira, a velha senhora olhou para ela! Ia deitar-se. E o céu. Devia ser um céu solene, tinha pensado, um céu escuro, a esconder sua bela face. Mas ali estava — de um cinza-pálido, percorrido rapidamente de vastas nuvens. O que era novo para ela. Devia ter-se erguido o vento. A senhora da casa em frente ia deitar-se. . . . Fechou a cortina. O relógio começou a bater. O jovem se havia suicidado; mas não podia lamentá-lo; com o relógio a bater a hora, uma, duas, três, não podia lamentá-lo, com tudo aquilo acontecendo. Pronto! a velha senhora apagara a luz! toda a casa estava agora às escuras com tudo isto acontecendo, repetiu, e outra vez lhe ocorreram as palavras, Não mais temas o calor do sol. Devia voltar para junto deles. Mas que noite extraordinária! Sentia-se de certo modo muito semelhante a ele — ao jovem que se havia suicidado. Sentia-se contente de que ele tivesse feito aquilo; alijado a vida. É o significado simbólico, particular de tudo isto que ilumina para Clarissa suas ações e as ações da humanidade (a mulher que vai dormir, o jovem que cometeu o suicídio) em seu redor; e é o significado simbólico que ilumina para o leitor o significado do lugar-comum na mente de Clarissa. Embora As Ondas também siga um evidente padrão simbólico, o principal artifício estrutural que Virginia Woolf usa nesse romance é (18) To the Lighthouse, Nova York, Harcourt, Brace, 1927, p. 310. (19) Mrs. Dalloway, Modem Library Edition, Nova York, Random Mouse, 1928; copyright 1925 by Harcourt, Brace, p. 283.
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de arranjos cénicos formais. Isto é combinado com a força simbólica das marés enchentes e vazantes, o nascer e o pôr do sol e o contínuo avanço das ondas na praia. O delineamento cénico é obtido pela apresentação de sete grupos de solilóquios estilizados que representam sete fases nas vidas dos personagens. Cada grupo de solilóquio é introduzido por um trecho de prosa poética descrevendo o avanço da maré numa praia. Estas descrições avançam do levantar para o pôr do sol à medida que os personagens passam da infância para a meia-idade. Por exemplo, a primeira é um prelúdio à fase infantil, quando as coisas ainda estão começando para os personagens: O sol ainda não se havia levantado. Não se podia distinguir o mar do céu, exceto que o mar estava ligeiramente encapelado, como um lençol que tivesse pregas. Aos poucos o céu foi embranquecendo, uma linha escura apareceu no horizonte separando o mar do céu e o lençol cinzento listrou-se de grossas batidas que se moviam, uma após a outra, sob a superfície, seguindo-se umas às outras, a perseguir-se perpetuamente. Isto vem seguido dos solilóquios de Bernard, Neville, Louis, Susan, Jinny e Rhoda, crianças que vivem juntas. Elas revelam o mais íntimo de si mesmas e suas revelações são complementadas pelos pensamentos de cada uma acerca das outras cinco. A cena muda súbita e arbitrariamente. A nova cena é introduzida por outra descrição poética, que por sua vez tem outro significado simbólico: "O sol levantouse mais a l t o . . . " Isto é, as crianças vão avançando em idade, de modo a ser apropriado que o próximo grupo de solilóquios tenha lugar no momento em que as crianças partem para os internatos. O livro termina com uma cena de reunião, quando já os personagens passaram da meia-idade, havendo uma descrição final da praia resumida numa única frase, para finalizar a história: "As ondas romperam na praia." A disposição cénica formal de As Ondas substitui a falta de unidade de tempo e de enredo, pois cada cena contém sua própria unidade de tempo e o livro todo é ligado pelas descrições simbólicas entre as cenas. Este elevado grau de formalização está em harmonia com o tipo estilizado dos solilóquios. A síntese de Faulkner Em Enquanto Agonizo, de Faulkner, vamos encontrar um padrão cénico completamente diferente. Este romance, como As Ondas, con-
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siste de um grupo de solilóquios. Também como As Ondas, é apresentado em um conjunto de cenas sem a ligação de qualquer narrativa objetiva. Mas aí termina a semelhança. As cenas arbitrariamente apresentadas em Enquanto Agonizo são introduzidas simplesmente por títulos que identificam a pessoa que está falando, semelhante a tais descrições em peças teatrais. Os solilóquios não são estilizados à maneira do estilo formal de um escritor, com o mesmo estilo para cada um dos personagens, como acontece em As Ondas. Em vez disso, são escritos no linguajar e nos padrões de pensamento típicos a cada personagem. Podemos afirmar sumariamente que o uso que Faulkner faz da disposição formal das cenas em Enquanto Agonizo é um artifício que permite apresentar os pensamentos de grande número de personagens sem confundir desnecessariamente o leitor. Há treze personagens cujas consciências são representadas neste pequeno romance. Isto o distingue de toda a outra ficção do fluxo de consciência, que varia neste sentido entre apenas um personagem importante em Pilgrimage e seis em As Ondas. O artifício unificador de Faulkner em seu romance é outra coisa. É uma unidade de ação que ele emprega. Em outras palavras, ele usa um enredo sólido, aquilo que falta em toda a outra literatura do fluxo de consciência. Foi este aspecto diferenciador na obra de Faulkner (o mesmo se aplica a The Sound and the Fury) que já observamos duas vezes. É aquilo que afasta Enquanto Agonizo e The Sound and the Fury do tipo de romance do puro fluxo de consciência até um ponto onde o romance tradicional se funde com o de fluxo de consciência. Como existe um enredo coerente e como os personagens agem num drama exterior que tem começo, complicações, clímax e fim, desaparece a absoluta necessidade de outros artifícios unificadores. Aquilo que é egocêntrico e caótico, digamos, na mente de Darl, pode ser compreendido porque tem relação com um conflito e um problema de ação nitidamente estruturados. Por exemplo, no seguinte trecho, quando a consciência de Darl é apresentada logo depois que alguém lhe perguntou onde estava seu irmão Jewel, o conteúdo torna-se claro ao leitor à base de um conflito que paira entre os dois irmãos: Lá embaixo, divertindo-se com o cavalo. Passará pela baia e entrará no pasto. O cavalo não estará à vista: está mais em cima, gozando a fresca entre os pinheiros. Jewel assovia, um único e penetrante assovio. O cavalo relincha, então Jewel o vê brilhando, por um breve instante, entre as sombras azuis. Jewel assovia novamente; o cavalo aproxi-
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ma-se, descendo a encosta, com as pernas rígidas, as orelhas erguidas e inquietas, rolando os olhos de grandes órbitas, e pára a uns vinte passos, de lado, observando Jewel por sobre a crina, em atitude travessa e alerta. (20) Na maior parte deste romance, o conteúdo das psiques dos personagens são, essencialmente, observações de outros personagens. Isto oferece a Faulkner um problema especial, porque ao depender do conteúdo observacional da consciência, vê-se forçado a oferecer menor parte do conteúdo que surge com o funcionamento da memória e da imaginação. Esta seleção tem a tendência de tornar a representação da consciência pouco convincente. Faulkner vence em parte esta dificuldade por meio de dois artifícios: primeiro, ele lida apenas com um nível razoavelmente superficial da consciência em Enquanto Agonizo; e segundo, ele é fiel ao idioma e à linguagem que retratam aquele personagem específico com maior exatidão, conseguindo assim o efeito de verossimilhança da consciência. Enquanto Agonizo é uma obra relativamente simples e pouco sutil, quando comparada a outro romance de Faulkner, também pertencente ao fluxo de consciência, The Sound and the Fury. Todavia, estes dois romances são semelhantes no que diz respeito a diversos aspectos técnicos: ambos contêm considerável unidade de ação, mas a do último é mais complexa. Ambos têm uma disposição cénica formal, mas a do último é ao mesmo tempo mais complexa e menos definida. Mas a semelhança técnica não vai muito mais longe que isso; pois The Sound and the Fury lida com personalidades complexas e nele a consciência é apresentada a um nível extremamente profundo. Consequentemente, outros artifícios estruturais se fazem necessários para esclarecer ao leitor o que se está passando neste mundo específico da consciência. Destes outros artifícios, os principais são a estrutura simbólica e o tema. De modo que o que temos em The Sound and the Fury em matéria de padrões de unidade são o enredo rigorosamente entrelaçado, unidade de tempo, disposição cénica, estrutura simbólica e motivos. Nenhum destes é predominante em sua eficácia e nenhum deles é definido. O enredo de The Sound and the Fury gira em torno das vidas dos quatro filhos da família Compson, outrora uma família orgulhosa e respeitável do Mississippi e que se encontra em seus últimos estágios de decadência. Este processo de decadência é simbolizado pelo grada(20) The Sound and the Fury and As I Lay Dying, Modera Library Edition, Nova York, Random House, 1930, p. 345.
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tivo desaparecimento do "Domínio dos Compson", originalmente uma milha quadrada da melhor terra com seus "alojamentos para escravos I estábulos e pomares e os formais gramados e parques e pavilhões desenhados pelo mesmo arquiteto que construiu a casa de colunas e pórticos cuja mobília veio por vapor da França e de Nova Orleãs..." 0 processo da decadência é dramatizado pela história da destruição elos filhos, Benjy, Quentin III, Cândace (Caddy) e Jason IV. Como a destruição, exceto a de Jason, é interior, o drama que apresenta a destruição, exceto a parte que tem a ver com Jason, tem por local de ação as psiques dos personagens. É claro que os problemas da unidade de tempo e de disposição cénica são rigorosamente elaborados com relação a esta unidade de ação ou enredo. É complexo. A primeira parte do romance é intitulada "7 de abril de 1928". É a data que representa a "atualidade" desta cena. O cenário é a mente do idiota, Benjy, que em 1928 conta 33 anos de idade mas cuja idade mental é de três anos. A consciência de Benjy segue as mesmas leis de movimento e associação que as outras consciências, só que se move talvez com maior fluidez. Assim, o "presente" em sua mente move-se livremente através dos anos passados de sua existência, de modo a haver em sua consciência, mais que na de Qualquer outro personagem na ficção, uma qualidade de fluxo. Assim sendo, esta parte do romance precisa ser analisada a dois níveis: o dos acontecimentos do dia, 7 de abril de 1928, e o dos acontecimentos passados na vida de Benjy. Os acontecimentos do "presente" ocupamnc com aquilo que aconteceu a Benjy e a seu protetor, o negrinho 1 uster. A realização neste nível é a apresentação de um subtema centralizado no relacionamento entre brancos e negros, um corolário ao lema principal da degeneração dos Compson. Mas, o que importa aqui, por motivo de enredo, são os materiais do passado. O caráter psíquico ile Benjy é dramatizado e os acontecimentos e personagens cruciais do passado (principalmente Cândace) na história da família Compson são apresentados do ponto de vista deste idiota simplório mas estranhamente lúcido. Faulkner relata que "Benjy amava três coisas: o pasto que lui vendido para pagar o casamento de Cândace e para mandar Quentin para Harvard, sua irmã Cândace, a fogueira". (21) Como o amor de Benjy é de uma persistência ímpar e inabalável, estas três coisas, | praticamente mais nada, constituem os materiais de sua consciência. A importância narrativa disto reside no fato de o "pasto" ser uma (.'I) The Sound and the Fury and As I Lay Dying, Modem Library EdiII.in, Nova York, Random House, 1930, p. 19.
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metonímia para o desaparecimento do domínio dos Compson, símbolo central do romance; "Cândace" é a única dos filhos dos Compson cuja consciência não é apresentada diretamente, de modo a ser manejada, como personagem, desta maneira indireta; e a "fogueira" é um símbolo vital para a excepcional instrospecção do idiota. Esta introspecção dá um certo peso de autoridade aos materiais da consciência de Benjy com relação a todo o romance, não obstante seu idiotismo. É por esta concentração nos três assuntos básicos na mente de Benjy que o leitor consegue não só entender o que está se passando, como também compenetrar-se dos materiais do enredo. O segundo episódio do romance intitula-se "2 de junho de 1910". O ambiente exterior é Cambridge, Massachusetts, na data do título; o enredo diz respeito aos preparativos de Quentin para o suicídio. O ambiente interior é a mente de Quentin a qual, assim como a de Benjy, flui livremente no passado. Aqui, o enredo é um complemento do enredo central do romance, que foi esquematizado na primeira parte. Quentin, embora inteligente, é demasiado instável psicologicamente, de modo a ser obcecado ainda mais que o próprio Benjy; e, assim como no caso de Benjy, o objeto de sua obsessão é Cândace, sua irmã. Assim, o desenvolvimento do personagem de Cândace e seu papel no esquema geral das coisas dá mais um passo à frente. A preocupação fraternal, neste caso, é incestuosa mas não física; é simbólica para Quentin, "que amava não o corpo de sua irmã, mas algum conceito da honra dos Compson". (22) A relação incestuosa em si fica sendo um símbolo relacionado ao enredo central e ao tema de todo o romance. A terceira e a última partes são intituladas "6 de abril de 1928" e "8 de abril de 1928" respectivamente que, conforme veremos, são o dia antes e o dia depois do começo do episódio. O método principal da primeira destas partes não é o de monólogo interior como o foi o das duas anteriores mas sim o solilóquio a um nível superficial de comunicação. Diz respeito ao quarto e mais jovem filho dos Compson, Jason IV. Como se relata aqui principalmente a narrativa superficial, o elemento de tempo é estático. O mesmo se aplica à última parte, só que mediante emprego de um método ainda mais convencional, o do narrador onisciente na terceira pessoa. O papel de Jason no drama da degeneração da família Compson é devidamente o último a ser tratado por constituir o clímax; isto é, a sua degeneração é a definitiva. Embora sendo o único irmão são, a sua degeneração é maior por en(22) The Sound and the Fury and As I Lay Dying, Modem Library Edition, Nova York, Random House, 1930, p. 9.
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volver um rompimento com os padrões de integridade dos Compson. Robert Penn Warren frisou isto em suas observações sobre Faulkner. Assim se refere a Jason: " . . . em matéria de degradação e baixeza, não há ninguém que possa ser comparado ao Jason de The Sound and the Fury, o Compson que aderiu ao Snopesismo. Na verdade, Popeye e Fiem, os vilões mais famosos de Faulkner, em matéria de baixeza e extrema maldade, não chegam aos pés de Jason." (23) O conflito de Jason se relaciona a duas pessoas (seu pai e seu irmão Quentin, os dois principais esteios da honra dos Compson, são falecidos): Dilsey, o velho cozinheiro de cor que compreende a honra dos Compson, pelo menos na sua parte exterior, e Miss Quentin, filha ilegítima de Cândace. Miss Quentin vive com os Compson, mas não entende (nem se importa com) o código dos Compson. Ela representa uma animalidade deliberada, estranha a todos os Compson — mesmo a Jason. Jason é derrotado por Miss Quentin, não por Dilsey. Simbolicamente, a estirpe dos Compson termina com a derrota de Jason (ele não deixa herdeiro) e o suicídio de Quentin (ele nunca coabita, a não ser em imaginação e simbolicamente, com sua irmã). Benjy, naturalmente, acaba por ser castrado e finalmente internado no Asilo Estadual. Essa história se iguala à derrota da dinastia dos Stephen em Absalom, Absalom! É através deste uso complicado porém orgânico de enredo, unidade de tempo, disposição cénica e estrutura simbólica que Faulkner consegue um padrão de unidade estrutural em The Sound and the Fury. Além disto, ele faz um interessante uso de temas para ajudar a ligar estes outros elementos estruturais. O uso específico que Faulkner faz dos temas pode ser encontrado cm qualquer das duas primeiras partes do romance. A título de ilustração, será suficiente examinar somente uma delas. No segundo episódio, que contém o monólogo de Quentin, os motivos são principalmente motivos-símbolo, embora haja também alguns motivos-imagem. 0 uso do motivo-palavra não é frequente na obra de Faulkner que, ao contrário de Joyce, não gosta de "equiparar palavras a coisas". Os motivos principais são o relógio, o convite de casamento, o pasto, o carrilhão, as imagens de arrumação e a palavra "irmã". Num capítulo anterior que se ocupava da intimidade das associações, demonstramos que estas coisas reaparecem na consciência de Quentin. Elas voltam cons(23) "William Faulkner", Forms of Modem Fiction, ed. William Van 0'Connor, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1948, p. 125 em diante
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tantemente como sinais, não só à mente de Quentin, mas também à do leitor. Estes temas suportam o peso principal do enredo e são os meios pelos quais um significado universal e coerente é destilado de um significado particular e caótico. O relógio, por exemplo, que aparece frequentemente como objeto da atenção de Quentin, é o relógio que ele ganhou de presente do pai. Quentin o desnuda de seus ponteiros para provar a si mesmo que a teoria do pai é válida: que sua finalidade "não é para você poder lembrar o tempo, mas para poder esquecê-lo de vez em quando por um instante e não desperdiçar todo seu fôlego procurando conquistá-lo". O tique-taque do relógio, que não marca a hora mas só diz que o tempo está sempre passando, é salientado pelos diversos relógios — Quentin sempre se recusa a olhá-los — que se impingem sobre a consciência de Quentin. Essas referências aos relógios substanciam duas importantes ideias relacionadas com o tema principal: uma é a disjunção da consciência ao competir entre o tempo psicológico e o tempo civil; a outra é a ideia mais generalizada da decomposição no tempo. Para a nossa finalidade, é desnecessário definir a maneira pela qual todos esses temas são usados no romance. Uma delas, no entanto, é especialmente instrutiva como exemplo do modo de usar o motivo que encontramos geralmente ao longo de toda a obra de Faulkner. Tratase da imaginação narrativa que tem a ver com a preocupação de Quentin com sua aparência antes de cometer suicídio. Ele é descrito lavando as mãos, limpando a gravata com gasolina, escovando os dentes e escovando o chapéu antes de sair do quarto finalmente para ir ao rio. É claro que Faulkner precisa levá-lo a fazer alguma coisa a fim de dar um foco aos processos de sua consciência. É grande o valor simbólico dessa imaginação particular, que passa por um tema devido à frequência de sua recorrência. Pode ser o ato derradeiro e frágil de limpar a desgraça e a desonra dos Compson; uma tentativa catártica da parte de Quentin para apagar a mancha deixada por Cândace em sua psique. Vem como preparativo para o clímax do episódio, o suicídio propriamente dito, que é, igualmente, um ato de redenção. Há pelo menos uma escritora de fluxo de consciência que não se preocupa com padrões complexos como unidades de tempo e lugar, enredo, estrutura simbólica, ciclos teóricos e farsas. Na realidade, o único forte princípio unificador que Dorothy Richardson emprega em seu longo Pilgrimage é o da unidade do personagem. Quanto a este, ela o emprega até o limite de suas possibilidades. Tudo em cada volume de Pilgrimage é apresentado do ponto de vista de Miriam. Na verdade,
é o suficiente em matéria de padrão para este romance, em parte porque permanece a um nível razoavelmente superficial da consciência e em parte porque Dorothy Richardson não tem muitos temas para transmitir. Aliás, é difícil determinar se existe em todo o Pilgrimage a apresentação de algum tema. O assunto, quanto a isso não resta dúvida, é a vida bastante monótona de Miriam, principalmente sua vida psíquica. É possível que haja um tema de "busca" subjacente, uma espécie de procura mística por uma coisa vaga que é simbolizada por "um pequeno jardinzinho". Este motivo-imagem do jardim atravessa Pilgrimage, mas não há nada de substancial em matéria de estrutura a que o leitor se possa apegar. No que concerne aos padrões estruturais, fizemos uma longa caminhada desde as complexas camadas de artifícios em Ulisses até o artifício único da unidade do personagem em Pilgrimage. Temos maior admiração por Joyce do que por Richardson como artífice, assim como damos maior valor a Ulisses do que a Pilgrimage como obra de arte. A razão disto relaciona-se com o fato de os padrões serem absolutamente necessários na ficção do fluxo de consciência. Podemos deixar que o próprio Joyce responda por nós:
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"Ela (a arte) desperta, ou deveria despertar, ou induz, ou deveria induzir, um entorpecimento estático, uma piedade ideal ou um terror ideal, um entorpecimento provocado, prolongado e finalmente dissolvido por aquilo que eu chamo o ritmo da beleza." "Que vem a ser isso, propriamente?", perguntou Lynch. "O ritmo", disse Stephen, "é a primeira relação formal estética duma parte com outra parte, em qualquer conjunto ou todo estético, ou dum todo estético para a sua parte ou partes, ou duma parte para o todo estético do qual é parte." Ou, para simplificar a resposta, poderíamos arriscar um epigrama dizendo que as muletas são necessárias somente quando há um peso precisando de apoio. (24) A Portrait of the Artist as a Young Man, em Viking Portable Joyce, Nova York, Viking, 1947, p. 471. (N. T. — No trecho acima, de Joyce, usamos a palavra "entorpecimento" no sentido de "estase", e não "êxtase", conforme consta da tradução publicada pela Editora Civilização Brasileira.)
5 OS RESULTADOS Uma vez que a realidade nos tenha sido revelada desta forma específica, continuaremos a vê-la dessa forma. ERNST CASSIRER
Ficou esclarecido que existe um padrão de desenvolvimento dentro do género do fluxo de consciência. Desde as primeiras experiências com a apresentação impressionista do mundo interior, ilustrada da melhor maneira em Mrs. Dalloway de Virginia Woolf e da maneira mais extensa em Pilgrimage de Dorothy Richardson, passando pela apresentação extremamente vigorosa da vida psíquica em Ulisses de James Joyce, até o ápice da experiência em As Ondas e Finnegans Wake — que conduziram ao fluxo de consciência en fleur, e obscuridade — chegamos a uma sutil contenção nos romances de Faulkner. A obra de Faulkner representa um retorno à base fundamental da ficção, o uso notório de significativa ação exterior, e que ele combina com o fluxo de consciência. Entrando pelo fluxo principal O romance do fluxo de consciência entrou no fluxo principal da ficção. Voltar os olhos para a era da experimentação com um suspiro de alívio e a relutante confissão de que a experimentação produziu parte da mais importante literatura do século não é apreciar o significado completo do movimento. O tremendo resultado é este: os métodos do fluxo de consciência são, hoje, métodos convencionais; as fantasias da vida mental que antecedem a fala passaram a fazer parte das formas do século XX; os artifícios que transmitem a consciência particular são usados sem hesitação pelo escritor, sendo aceitos sem um murmúrio pelo leitor. A aceitação do método do fluxo de consciência para descrever um personagem é recente. A arte sempre procurou expressar os processos dinâmicos de nossa "vida interior". Agora que essa "vida interior" é uma realidade que reconhecemos como sendo disponível a qualquer consciência, e agora que as técnicas, fornias c
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artifícios para transmitir esta realidade foram estabelecidos, a arte da ficção está mais perto que nunca de alcançar o seu objetivo. Mas a coisa mais importante que merece nossa atenção é a aceitação da realidade da vida interior, dos níveis da consciência que antecedem a fala, como tema apropriado para a ficção. Se olharmos ao acaso para a obra de alguns dos mais importantes escritores do meio do século, esta aceitação tornar-se-á óbvia. Poderemos percebê-la (e aceitá-la como convenção padronizada) na ficção de Elizabeth Bowen, Graham Greene, Katherine Anne Porter, Robert Penn Warren, Delmore Schwartz e Eudora Welty — para citar apenas alguns, e deixar de notar a enorme quantidade de obras mais efémeras onde a consciência não-pronunciada não é apenas casualmente aceita como tema legítimo, mas onde ela é mesmo automaticamente formada à imagem dos grandes romances experimentais do fluxo de consciência. Bastam uns poucos exemplos da obra dos autores acima citados para ampliar essas observações. AU the King's Men (Todos os homens do rei) de Mr. Warren, um romance esplêndido e relativamente popular, foi publicado em 1946. Este romance, para chegarmos ao âmago da questão e deixando de lado grande parte de sua força, é, fundamentalmente, o estudo do desenvolvimento moral e do despertar ético de seu personagem principal, Jack Burden. Naturalmente, a história de Burden depende de mudanças morais paralelas e contrastantes dos outros personagens principais. Para estes — Willie Stark e Ann Stantos em especial — o desenvolvimento é realizado quase que inteiramente através de ação. Para Burden, ele se realiza principalmente na qualidade de drama psíquico. Grande parte do romance se concentra na descrição do drama íntimo da consciência. O método de Warren é muito mais naturalista (isto é, emprega símbolos e imagens concretas) do que impressionista. Assim como Faulkner, ele toma os materiais densos e caóticos da mente, objetivando-os através de símbolos e temas. É pela retórica que conserva a textura de densidade e caos. No entanto, o método que Warren emprega para projetar as atividades mentais não-enunciadas de Burden não é uma imitação de Faulkner; a sugestão de fluxo de consciência em AU the King's Men é tão convencional que chega a desarmar. Geralmente é apresentado na primeira pessoa e às vezes na segunda, que é mais objetiva. ("Indo para a cama no fim da tarde de primavera ou bem no começo do crepúsculo, com cujo som em seus ouvidos proporciona-lhe uma maravilhosa sensação de paz (p. 325).) Warren evita os artifícios mecânicos, as aberrações sintáticas, os fragmentos e a obscuridade lógica.
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o que vem refletir sua aversão pelos aspectos puramente mecânicos (psicanalíticos e teóricos) do funcionamento mental. O interesse de Warren reside na luta espiritual (ascensão ou decadência), que se manifesta dramaticamente na confusão não-pronunciada da mente. Ele se vale da retórica, dos símbolos e da livre associação para renresentar esta confusão. É significativo que tanto a ignorância das teorias psicológicas da consciência como a aceitação da descrição básica que estas teorias deram à geração de Warren estejam presentes na descrição que faz de seu personagem. Um pequeno trecho do romance ilustrará o método de Warren. O ponto de vista na primeira pessoa e a narrativa na terceira pessoa indicam a função dual deste trecho. Isto é, a narrativa prossegue mas, o que é mais importante, o estado mental de Burden, o narrador, também é apresentado com nitidez. Ela lá estava desde o enterro de Adam. Acompanhara o corpo, seguindo o carro fúnebre dispendioso que brilhava ao sol na limusine de um agente funerário... Eu não a via sentada na limusine alugada que avançava as suas quase cem milhas à velocidade decorosa de um algoz, descolando as milhas lentamente da laje de concreto, lenta e fastidiosamente, como quem descasca uma infindável tira de pele da carne viva. Eu não a via, mas sei como estava: ereta, o rosto sem cor, os belos ossos da face aparecendo por baixo da pele tensa, as mãos cerradas no seu colo. Pois é assim que ela estava quando a vi parada sob os carvalhos com suas grinaldas de musgo, parecendo absolutamente só apesar da enfermeira e de Katy Maynard e de toda a gente — amigos da família, curiosos que vieram para assistir com satisfação maligna e cutucar, jornalistas, médicos importantes da cidade e de Baltimore e Filadélfia — que ali estavam parados enquanto as pás faziam o seu trabalho. (1) A primeira frase desta citação é narrativa. O resto é a associação imaginativa que Burden faz. As imagens indicam o estado obcecado de sua mente, a insistente demora sobre um objeto (o retrato de Ann). Ao mesmo tempo, as associações com outros incidentes, temas e motivos do romance são lembradas com habilidade (e realismo). Um eco mais evidente do fluxo de consciência pode ser encontrado num romance posterior de Warren, World Enough and Time (Mundo (1) Nova York, Harcourt, Brace, 1946, p. 426.
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suficiente e tempo) (1950). É interessante observar que o método iroDressionista de Virginia Woolf se reflete neste romance. Mais uma vez. não há indícios de uma imitação direta ou mesmo de uma influência direta. A estrutura de fluxo de consciência na obra de Warren parece esnontânea e é delicadamente conjugada ao método básico de seu romance, o diário combinado com a narrativa onisciente dos incidentes exteriores na terceira pessoa. O seguinte exemplo vem logo depois de uma descrição do personagem Jeremiah, que está espiando para dentro da janela da casa de um amigo. Da descrição dos incidentes exteriores, a narração nassa para uma descrição da consciência de Jeremiah. Os grifos são do autor. Então era essa a mulher de Fort, pensou. Ele sabia de sua existência, mas nunca a vira, ela não tinha sido real. Mas agora ela se tornara real e por um instante ele sentiu uma mudança KO centro de sua intenção, . . . e ele aguçou os ouvidos para ouvir as palavras que dizia, mas nada Dodia ouvir. Depois pensou: Ela não lhe tem amor. posso ver pela sua cara que não. E pensou com um medo enjoado: Mas se assim não fosse, se de fato ela o amasse, poderia eu...? E não conseguiu completar seu pensamento, nem em sua própria mente, e com um salto de alívio e de súbita certeza, pensou: Mas não ama, não. Ela não poderia, não com aquela cara e aquele olhar morto sobre ele. W Esta combinação de descrição onisciente e monólogo interior trarão à lembrança do leitor o método usado em Mrs. Dalloway e O Farol. Como exemplo final da penetrante influência do género do fluxo de consciência sobre a ficção recente, uma observação de Fale Horse, Fale Rider (Cavalo pálido, cavaleiro pálido) (1939) de Katherine Anne Porter é elucidativa. O maior interesse aqui reside no reflexo, numa estória muito lúcida e sob outros aspectos elaborada de maneira muito convencional, das inovações técnicas mais radicais empregadas por James Joyce em Ulisses. Refiro-me ao uso de elaborado simbolismo para expressar as qualidades de sonho da consciência. No romance de Miss Porter, o leitor é apresentado, com uma montagem de símbolos extremamente eficiente, à vida do sonho do Dersona^em. Miranda. Mais (2) Nova York. Random House. 1950. p. 258.
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para o final da estória, a fantasia-do-sonho, com toda sua incoerência e desconjuntamento, é usada na apresentação da febril batalha de Miranda contra a morte. Esta ficção mais recente, por mais que seus autores fossem influenciados por Woolf, Joyce e Faulkner, não pertencem ao fluxo de consciência. Este género foi absorvido em sua maior parte pelo organismo maior do método ficcional. A descrição da vida mental na ficção de Mr. Warren e Miss Porter (como também na de muitos outros romancistas) é semelhante à sondagem psicológica que podemos encontrar em romances anteriores ao fluxo de consciência como os de Henry James e Mareei Proust. Mas há uma importante diferença: a ficção de James e Proust era obscura, esotérica ou então escandalosamente nova, ao passo que os romances mais recentes são prontamente acessíveis a um público leitor razoavelmente amplo, sem a presença das barreiras da obscuridade ou estranheza. O fluxo de consciência havia surgido entre Henry James e Robert Penn Warren. Os interesses intelectuais e as forças sociais que geraram e encorajaram os escritores do fluxo de consciência também vieram intervir. Consequentemente, quando em 1932 o Professor Beach considerou limitado o futuro do fluxo de consciência devido a sua invariável aplicação à "neurose", estava-se desfazendo dele cedo demais. Mas quando, vinte anos mais tarde, o Professor Hoffman descreve o assunto do fluxo de consciência como uma fase "historicamente interessante" do método romanesco, resultado do interesse popular na abordagem freudiana da vida sexual, ele está ignorando os resultados (e, até certo ponto, as criações) desta fase. Os erros tanto do Professor Beach como do Professor Warren consistem em uma ênfase mal aplicada. (3) Os aspectos da literatura do fluxo de consciência que acentuam a vida neurótica e sexual de Freud não são o que a distinguem. Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que os personagens de Ulisses e O Farol não são mais — e talvez muito — "neuróticos" do que os de The American Tragedy (Uma tragédia americana), Point Counter Point (Ponto e Contraponto) e The Sun also Rises (O sol também se levanta) para não falar em Antic Hay e Sanctuary (Santuário). Da mesma maneira que o reflexo histórico do freudismo popular não é mais aparente em Mrs. Dalloway e Pilgrimage do que em Sons and Lovers (Filhos e Amantes) e The Great Gatsby (O grande Gatsby). O que aconteceu foi o seguinte: (3) Beach em The Twentieth Century Novel: Studies in Techniquc, NOVI York, D. Appleton-Century, 1932; Hoffman em The Modem Novel in America, 1900-1950, Chicago, Regnery, 1951.
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quando a personalidade é examinada tão minuciosa e imparcialmente como aconteceu no romance do século XX — dentro e fora do fluxo de consciência — ela aparece como indivíduo e não como "norma". E se, neste século, não nos tivermos convencido de que tudo é anormal, que a assim chamada condição neurótica é uma condição generalizada, então não teremos aprendido nada de essencial acerca de nós mesmos. O romance do fluxo de consciência nos deu provas empíricas desta verdade. Deu-nos provas também do metempírico. Aprendemos com os exploradores da psique humana que o indivíduo procura, e às vezes alcança, uma transcendência daquilo que Balzac descreveu como "condição humana". O mundo empírico produz a personalidade neurótica; mas essa personalidade tem condições de ansiar por contato com aquilo que existe de estável, por conhecimento do núcleo do significado. Assim sendo, o fluxo de consciência se alia, mais propriamente, à esmagadora tendência na ficção dos nossos tempos para investigar um significado na personalidade humana do que à ação e reação sociais. Apresentando uma concentração extrema sobre a consciência não-pronunciada, ele produziu seus marcos, muito altos por sinal, mas foi agregado a alguma coisa fundamental na natureza da ficção: a necessidade de ação superficial e realidade externa para fazer da realidade um todo tal como o homem a conhece, pois o homem, como ilustrou Joyce, tem apenas meias aspirações. Sumário A nova dimensão criada na literatura pelos principais escritores de fluxo de consciência foi tentada anteriormente; foi tentada pelos próprios escritores de fluxo de consciência em obras que não se enquadram no fluxo de consciência. O senso especial de imanente visão em Mrs. Dalloway e O Farol foi sugerido por Virginia Woolf em seu anterior Jacob s Room (O quarto de Jacob) e posterior The Years (Os anos), mas era só usando as técnicas básicas do fluxo de consciência que ela conseguia transmiti-lo. Da mesma forma, a comédia satírico-patética da existência, realizada por Joyce, foi defendida nos contos de Dubliners (Os Dublinenses), mas só foi totalmente transmitida no fluxo de consciência de Ulisses. E o senso de tragédia irónica de Faulkner, embora muitas vezes majestoso em romances como Santuário e The Hamlet (A Aldeia), só alcança a credibilidade necessária para a mais veemente eficácia em suas obras do fluxo da consciência, onde o drama psíquico prevalece sobre a imponência da retórica.
OS RESULTADOS
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As técnicas básicas para apresentar a consciência na literatura não são invenções do século XX. Tanto o monólogo interior direto como indireto pode ser encontrado em obras dos séculos anteriores, e a descrição onisciente e o solilóquio foram características primárias da ficção mesmo em seus estágios embrionários. O emprego singular destes que produziram o fluxo de consciência vieram com o conhecimento que os romancistas do século XX tomaram do significado do drama que se desenrola nos confins da consciência do indivíduo. Dois aspectos desse drama da consciência apresentavam problemas especialmente difíceis aos escritores que desejavam representá-lo. Entre os psicólogos-filósofos, William James e Henri Bergson convenceram as gerações seguintes de que a consciência flui como uma correnteza e de que a mente tem seus próprios valores de tempo e espaço à parte dos que são arbitrários e estabelecidos pelo mundo exterior. Desta forma, fluxo e "durée" são aspectos da vida psíquica para os quais seria preciso encontrar novos métodos narrativos, caso os escritores quisessem descrevê-los. O outro aspecto era mais óbvio: a mente é uma coisa particular. O problema apresentado por este aspecto era simplesmente como trazer a público aquilo que é particular e ainda assim parecer preservar suas qualidades de intimidade? O principal artifício que os escritores descobriram para descrever e controlar tanto o movimento como a intimidade da consciência foi o emprego dos princípios da livre associação mental. Estes ofereciam uma base utilizável para impor uma lógica especial aos devaneios irregulares da consciência, proporcionando assim um sistema para que o escritor seguisse e o leitor se apegasse. O processo da livre associação provou ainda ser aplicável a qualquer consciência específica de maneira a mostrar um padrão de associação que dependia das experiências passadas do indivíduo e de suas atuais obsessões. Deste modo, mais que metade do problema da intimidade ficou resolvido. Mas eram necessários outros artifícios para transmitir o movimento inconvencional e o enigma da intimidade nos níveis da consciência que antecedem a fala. As mentes engenhosas dos escritores que estivemos estudando, assim como as de seus contemporâneos nas artes irmãs, especialmente no cinema, encontraram técnicas que foram idealizadas para projetar a dualidade e o fluxo da vida mental. A montagem, com sua função de apresentar simultaneamente mais de um objeto ou mais de um tempo era especialmente aplicável à ficção. Os artifícios resultantes do "flash-back", "fade-out" e "slow-up" provaram ser acessórios úteis à montagem e à livre associação. A própria tradição
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O FLUXO DA CONSCIÊNCIA
literária foi rebuscada à procura de artifícios, revelando os materiais já existentes que a retórica e a poesia clássica podiam oferecer, entre eles os especialmente úteis da metáfora e do símbolo. Até as convenções da pontuação foram remodeladas para produzir em palavras as qualidades da consciência que antecedem a fala. Finalmente, a maior dificuldade estava superada, mas onde estava a forma da arte nisto? A consciência, nos níveis que antecedem a fala, não tem um padrão definido; uma consciência, por sua própria natureza, existe independente de ação. Em suma, o enredo devia ficar em segundo plano. E ainda assim, era preciso sobrepor um certo padrão aos materiais caóticos da consciência. Em lugar de um enredo bem acabado, os escritores inventaram toda a sorte de unidades. Eles conseguiram a maior aderência possível às unidades clássicas que o romance jamais produzira; moldaram suas obras por modelos literários, ciclos históricos e estrutura musical; usaram uma complexa estrutura simbólica e finalmente conseguiram até fundir o enredo externo com o fluxo da consciência! The Sound and the Fury e Enquanto Agonizo, retardatárias no género do fluxo de consciência, não são puros exemplos disto. Contêm um importante elemento de enredo e representam o ponto no desenvolvimento do romance do século XX em que o fluxo de consciência entrou pela correnteza principal da ficção adentro, onde continua até hoje. E as sagradas águas dessa correnteza estão mais potentes do que eram.
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