Ritual e Simbolismo Entre Os Nyakyusa
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Cadernos de Tradução Nº 2. Núcleo de Estudos Ritual e Sociabilidades Urbanas. Março de 20 10.
CADERNOS DE TRADUÇÃO N° 2
RITUAL E SIMBOLISMO ENTRE OS NYAKYUSA Monica Wilson WILSON, Monica. “Nyakyusa Ritual and Symbolism”. In: American Anthropologist. New Series, vol. 56, nº2, Part 1, apr., 1954. (pp. 228-241).
NÚCLEO DE ESTUDOS RITUAL E SOCIABILIDADES URBANAS (RISU) Departamento de Antropologia Cultural Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Antropologia Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Cadernos de Tradução Nº 2. Núcleo de Estudos Ritual e Sociabilidades Urbanas. Março de 2010.
RITUAL E SIMBOLISMO ENTRE OS NYAKYUSA
Monica Wilson
A religião tradicional dos Nyakyusa possui três elementos: primeiro, há uma viva crença na sobrevivência dos mortos e no poder dos parentes mais velhos, tanto vivos quanto mortos, sobre seus descendentes; segundo, há a crença nos remédios, isto é, no poder mágico existente em certas substâncias materiais usadas por aqueles que têm o conhecimento disso; e, em terceiro, acredita-se na bruxaria, um poder inato de prejudicar os outros, exercido por alguns indivíduos, e em um poder similar, “a respiração dos homens”, praticado pelos aldeãos, para punir os malfeitores em seu meio. Há dois princípios fundamentais de agrupamento social na sociedade Nyakyusa, o parentesco e a idade (Wilson, 1951), e a distinção entre o culto ancestral de um lado, e a bruxaria e “a respiração dos homens” de outro, coincide com eles. O culto ancestral, em seu aspecto doméstico, diz respeito a famílias e a linhagens; e, em seu aspecto público, é assunto dos domínios dos chefes e de grupos de domínios, pois a chefia é hereditária, e acredita-se que os chefes mortos detêm poder sobre suas terras e sobre as pessoas que um dia governaram. Nas aldeias, contudo, o princípio hereditário não conta; elas são formadas por grupos de pessoas da mesma faixa etária, liderados por um dentre eles, que deve ser um a pessoa comum, e não pode ser filho de um chefe de aldeia da geração anterior. Nas aldeias, o poder dos parentes mortos não opera, mas em seu lugar há a “a respiração dos homens” e o poder da bruxaria. Ao contrário disso, acredita-se que o poder derivado dos remédios se exerce em todos os tipos de relações da sociedade Nyakyusa; ele não está confinado nem ao parentesco nem às relações de idade. A crença na sobrevivência dos mortos e no poder dos parentes mais velhos expressa-se em uma série de elaborados rituais. Um conjunto desses rituais dirige-se aos ancestrais imediatos dos participantes, e um outro conjunto, aos ancestrais imediatos dos chefes governantes, e a certos ancestrais distantes na linha do chefe, heróis na história dos Nyakyusa. O nome de um desses heróis, Kyala, foi usado por missionários para traduzir a palavra “Deus”, mas todas as evidências indicam que Kyala foi, tradicionalmente, apenas um entre vários ancestrais distantes a quem se ofereciam sacrifícios regulares em nome de um grupo de domínios.
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Na sociedade Nyakyusa há pouco desenvolvimento das artes e dos fazeres artesanais, exceto em relação a construções – eles constroem sólidas e belas cabanas e compridas casas – e a principal forma de expressão artística encontra-se no ritual. Rituais são muito frequentes e elaborados; um grande número de pessoas participa deles, e o interesse que despertam é geralmente intenso. Na morte, na puberdade e no casamento, no nascimento – particularmente no nascimento de gêmeos, e no infortúnio, celebram-se ritos familiares; e, anualmente, antes da interrupção das chuvas, bem como em tempos de seca, enchente, pestilências, fome ou outros infortúnios públicos, sacrifícios são realizados em nome dos domínios de um chefe ou grupos de domínios de chefes para os ancestrais reais imediatos e para os heróis mais distantes. O maior de todos os rituais realiza-se por ocasião da transição de poder entre uma geração e a outra, mas ele ocorre apenas uma vez em trinta anos. Este artigo ocupa-se dos rituais familiares. Teria sido melhor abarcar todos os rituais da sociedade Nyakyusa, ou ao menos todos os rituais do culto aos ancestrais, mas isso seria impossível em apenas um trabalho. Deve ter-se em mente, no entanto, que nenhum ritual dos Nyakyusa pode ser compreendido totalmente sem referência a toda a série de rituais. O princípio, proposto há muito por Radcliffe-Brown, de que um símbolo recorrente em um ciclo de rituais terá provavelmente a mesma significação em todos, é válido para os Nyakyusa: certos símbolos de raspar, limpar, comer, espalhar folhas de bananeira, disseminar grãos, e assim por diante, eram interpretados de forma similar por nossos informantes nos diferentes rituais do ciclo, e sua significação plena só emerge quando comparamos seus vários usos. Logo, devemos focar nossa atenção no ciclo ritual, muito mais do que nos eventos particulares que nele ocorrem. A análise aqui apresentada baseia-se na interpretação Nyakyusa dos símbolos.1 Tivemos a sorte de encontrar entre os Nyakyusa quem pudesse, e quem quisesse, interpretar a maioria dos símbolos que surgiam nos rituais, e suas interpretações concordavam substancialmente. Parecia, pelas evidências coletadas, que certos símbolos eram compreendidos por todos, por exemplo, uma variedade de banana, itoki , substitui um homem, e a iselya , uma banana doce comida quando madura, substitui uma mulher, e esse simbolismo é tão óbvio para os Nyakyusa como calças e saias o são para nós; outros símbolos eram compreendidos apenas por algumas pessoas. Os mais conscientes eram os sacerdotes e os médicos: Kasitile, um ancião e um fazedor-de-chuva hereditário, foi nosso melhor informante nesses assuntos, mas havia mais uma dúzia de outros quase tão bons O material de campo em que se baseia este trabalho foi coletado por meu falecido marido, Godfrey Wilson, e por mim, entre os anos 1934 e 1938. Agradecemos à Rockefeller Foundation e ao International African Institute as bolsas de pesquisa recebidas. 1
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quanto ele. Neste texto, as interpretações oferecidas requerem o crédito do leitor, pois não há espaço para citar textos, mas os textos lá estão e serão publicados. Entre as duzentos e cinqüenta mil pessoas que são Nyakyusa – ou falantes de Ngonde, ou dominados por eles, há marcantes variações dialetais e nos costumes locais, e variações correspondentes no ritual; mas nos dois grupos que estudamos em detalhes, os Nyakyusa propriamente ditos e os Kukwe, descobrimos que símbolos diferentes expressavam idéias e sentimentos comuns, e o conhecimento que obtivemos a respeito dos outros grupos mostrou que, também entre eles, embora houvesse diferenças nos símbolos usados, havia uma convergência muito grande acerca das idéias expressas. Diferenças locais no idioma ritual são aceitas como naturais pelos próprios Nyakyusa, e são relacionadas tanto a diferenças na descendência quanto a diferenças na economia dos grupos locais. “Fazemos isto porque somos Kukwe, mas os Penja fazem de outra forma”, e assim por diante, e eles estabelecem paralelos diretos entre o que fazem e o que seus vizinhos fazem. Ao contrário da idéia comumente aceita de que o ritual é mais estável do que sua interpretação, encontramos as mesmas concepções expressas em formas rituais diversas. As comidas usadas no ritual, os símbolos de separação dos mortos, de união entre marido e mulher – variam de grupo para grupo; mas, a cada vez, há o uso ritual de alimentos, o enterro simbólico e o despojo do cadáver, a elaborada purificação, o casamento simbólico, e assim por diante. O ritual realizado na morte é o mais elaborado dos rituais familiares, e os temas que aparecem nos outros rituais expressam-se mais claramente nele. Comecemos, então, por ele. Esse ritual consiste em duas partes: primeiro, há o enterro, ao qual todos os parentes, e todos os membros da aldeia do morto, assim como seus amigos especiais de outras aldeias, devem comparecer; então, alguns dias depois, há a “despedida do morto” e a purificação ritual, que concerne somente aos agnatos e à viúva ou às viúvas, no caso do falecido ser homem, e aos irmãos, filhos, netos e ao viúvo, se o morto for mulher (cf. Wilson, 1939). Tão logo alguém morre, as mulheres começam a lamentar, e enviam-se mensagens aos parentes agnáticos, aos afins, e ao pai ou ao irmão da mãe. Uma autópsia é feita para descobrir a causa da morte, e depois procura-se o agente causador por adivinhação. A cova é cavada no pátio do terreno da família, próximo às cabanas, e algumas horas após a morte o corpo é enterrado, envolvido em panos e voltado para a direção de onde vieram seus ancestrais. Alguns utensílios são enterrados na tumba e acredita-se que junto com as roupas, e com o gado que é sacrificado, esses objetos vão com o morto para o mundo das sombras. (Diferentemente dos Ila, os Nyakyusa são bem explícitos a esse respeito). Pelo menos uma 4
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vaca do rebanho que um homem possuía é sacrificada na ocasião de sua morte, e seus parentes afins – os pais (ou irmãos) de suas esposas, e os maridos de suas irmãs e filhas – trazem, cada um, uma vaca ou touro para matar também. Para uma mulher, seu pai e seu marido fornecem, cada um, uma vaca ou um touro. Outros parentes e amigos trazem os panos, ou cintos de luto feitos com pano cru que amarram as barrigas soluçantes dos parentes mais próximos do morto, ajudando a suavizar seu pesar. Multidões de parentes e vizinhos juntam-se para lamentar, dançar e banquetear; quanto maior o festim, maior a multidão, mais longo o luto, maior é o prestígio da família em questão. Todos os que comparecem vão à cabana onde o corpo está, ou esteve, deitado, e lá cumprimentam os principais enlutados e com eles lamentam-se um pouco. Os homens logo saem para conversar e dançar, mas a maior parte das mulheres continua espremida dentro e em volta da cabana, lamentando-se em uníssono, balançando-se quando sentam, e chorando sem parar. Os homens, por sua vez, expressam sua raiva apaixonada na dança de Guerra, avançando energicamente para frente e para trás sobre a cova recém-tapada, brandindo suas lanças, e prontos para brigar e lutar a qualquer momento. Funerais costumavam terminar em batalhas entre contingentes de diferentes aldeias. A dança é uma forma de luto. “Dançamos porque há guerra em nossos corações – uma paixão de pesar e medo nos exaspera”. “Quando um parente dança, ele acalma seu apaixonado pesar; ele entra na casa para chorar e sai de lá para dançar a dança de guerra; seu pesar se torna tolerável na dança; seu coração salta e a dança o acalma”. Com suas lanças, os jovens arrancam as bananas que rodeiam o pátio, e elas se somam ao gado sacrificado e aos panos que acompanham o morto em sua jornada. As mulheres também dançam, abrindo caminho entre os homens e soltando o grito de guerra para animá-los. Gradualmente, no segundo ou terceiro dia depois da morte, a dança de guerra confunde-se com uma dança de exibição sexual. Para os Nyakyusa, isto não é, de forma alguma, incongruente; eles dizem que os amigos que vem para prestar homenagem ao morto não devem ir embora sem encorajar os enlutados a pensarem novamente na vida e a voltarem a rir. Nos funerais cristãos, isso é também notável; no segundo ou terceiro dia, há uma mudança no canto de hinos de luto para hinos alegres. A morte, para os Nyakyusa pagãos, é algo muito assustador e rituais posteriores destinam-se a purificar os parentes próximos da contaminação da morte, separá-los do cadáver, e afastar o morto de seus sonhos e pensamentos diários. Ao mesmo tempo, esses rituais asseguram o ingresso do morto na companhia das sombras de sua linhagem, e ele é, então, convidado de volta à lareira da morada de sua família. . 5
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Se o morto for um homem casado, seu herdeiro é formalmente reconhecido e colocado em uma cabana junto com as viúvas; então uma flor de bananeira, representando o cadáver, é enterrada. “Nós estamos dizendo para ele ‘você, cadáver, nós terminamos com você, não volte mais aqui, terminou para sempre, não olhe mais em nossa direção, vá embora’”. O herdeiro e as viúvas, e alguns outros parentes agnáticos que são os condutores do ritual, lavam-se num córrego, e lavam-se outra vez com o remédio no umbral da cabana do morto, e acocoram-se, então, para comer bananas com sementes de abóbora postas no chão. Isso simboliza tanto o ato sexual quanto as ações de um louco ao comer fezes, e é essencialmente profilático contra a loucura. Espalharam-se folhas secas de bananeira pela cabana do morto, sobre as quais os enlutados dormem e sentam-se. Até que as ações de um homem louco tenham sido imitadas, o chão não é varrido, mas agora a folhagem é retirada e queimada. Parentes e vizinhos trazem presentes de painço “para saudar a sombra” (e conta-se a ele quem veio), e há, então, uma purificação final, eles varrem toda folhagem que tenha sobrado na cabana do luto até as pernas dos familiares, e passam uma cesta rasa de painço, misturado com sementes de abóbora e com lentilhas, entre suas pernas. Isso é tanto um símbolo do ato sexual, como de libertação de seus corpos da sombra, pois a sombra está tanto dentro quanto fora dos homens, e é expelida nos fluidos sexuais. Eles voltam a um córrego para se lavar, e jogam fora na água uma haste de bananeira, um símbolo do cadáver. Voltando para casa, os participantes correm para dentro e para fora da cabana, um por um, enquanto o oficiante joga água misturada com o remédio pulverizado na calha em cima da porta de entrada, fazendo-a cair sobre os seus corpos. Isso é interpretado como “trazer a sombra de volta para casa”. As ações de um homem louco são imitadas pela segunda vez, e aí então os participantes se raspam, o herdeiro mata outra vaca e é apresentado para as crianças do morto como seu “pai”. Eles respondem, “Obrigados sejamos, o pai voltou dos mortos”. Faz-se uma massa com uma parte do painço trazido por amigos e parentes e ela é, oferecida à sombra como sendo a comida que ela comia. Com o restante prepara-se a cerveja e os participantes bebem-na com o remédio ikipiki , representando o sangue da linhagem. Eles então raspam os cabelos que estão começando a nascer com as borras da cerveja, e se ungem pela primeira vez depois da morte. Se o morto fosse um homem casado, a transmissão formal da herança se seguiria, e as viúvas seriam lembradas de seus deveres para com o novo marido. O herdeiro sentar-se-ia no umbral da porta de entrada da cabana de luto, a esposa mais velha do morto lhe entregaria um facão de poda (como o que é usado 6
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para cortar as bananas) e ele seria auxiliado pelos parentes e vizinhos presentes para cuidar das crianças do morto como se fossem suas. Ele então entra na cabana com as mulheres que herdou, e deve fazer sexo com todas elas nessa noite. Uma delas bate na parede quando ele termina e o oficiante entoa um trinado de triunfo e sacode uma cesta de sementes em frente à porta gritando, “Nossos, nossos, nos maravilhamos com a coisa”. Até essa conexão ritual, o herdeiro e as viúvas devem permanecer separados. Na manhã seguinte, o herdeiro é chamado oficialmente para fora da cabana por um homem gritando “A guerra chegou”, ou seja, que o relacionamento sexual começou. Ele se senta num banco no umbral da entrada e lá é saudado pelos filhos do morto que dizem “Bom dia, pai”. Cada uma das mulheres herdadas vai embora para o terreno de seu próprio pai com os fluidos sexuais ainda no corpo, e leva consigo as bananas cozidas que ela besunta com o esperma do marido e com seus próprios fluidos. Ela enterra isso tudo no arvoredo de bananas no terreno de seu pai, onde ele reza para suas sombras. O herdeiro, de forma similar, vai para o terreno de seu pai, ou do herdeiro de seu pai se ele for de um ramo júnior da família, e enterra as bananas e o sêmen no canteiro sagrado de seu pai. Cada um bebe a cerveja misturada com o remédio, com seus próprios parentes. Se foi uma mulher quem morreu, ela é substituída pela irmã mais nova ou pela filha do irmão, ou se a família não tiver nenhuma menina para oferecer, uma vaca é enviada para ajudar a tirar água. Este é um relato muito esquemático de um ritual complexo, e muitos detalhes, que confirmam a interpretação, foram necessariamente omitidos. Nele, existem nove temas: Primeiro, o afastamento do morto dos sonhos de seus parentes próximos, e as medidas para evitar que ele “monte sobre eles” – a palavra é a mesma usada para um galo montando sobre as galinhas. Uma viúva, em particular, deve ser separada da sombra de seu marido antes que o herdeiro, ou qualquer outro homem, ouse ter relações sexuais com ela. Segundo, a identificação dos enlutados com o cadáver, e a separação de suas respectivas sombras. “O que eles fazem com os participantes, eles também fazem com o morto... se os participantes não forem purificados, o morto ainda está sujo – seus companheiros o devolvem e dizem, ‘você ainda não pode vir, você ainda não se banhou no rio’. Nós jogamos o cadáver, a contaminação da morte, no rio… nós expulsamos a sombra de nossos corpos para que ela se junte a seus companheiros… nós separamos o cadáver e a sombra”. Terceiro, devolver a sombra como um espírito beneficente para o lar. “No ritual nós dizemos à sombra para ir embora e encontrar seus companheiros e então voltar com eles e 7
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se aquecer no fogo em nossa casa... primeiro, a sombra está em nossos corpos, nós a expulsamos... primeiro, é como se estivéssemos ainda segurando o cadáver em nossos braços, mas nós o jogamos no rio... o espírito, nós o trazemos de volta para nossa casa”. Quarto, a imitação das ações de um louco como profilaxia contra comportamento desse tipo. O morto, se não for separado dos vivos, traz loucura para eles, e estimular a loucura é uma proteção contra ela. Quinto, o cadáver e as fezes são identificados: “O cadáver é sujo, é excremento. E assim, quando um louco para quem o ritual não foi realizado come sujeira, isto é o cadáver; ele ainda o segura, não fizeram o ritual para ele”. Sexto, as sombras são identificadas com o esperma e com as sementes, e seu controle sobre a potência e a fertilidade é reconhecido. Os Nyakyusa pensam que elas estão sempre presentes no ato sexual, e símbolos de atos sexuais são interpretados como meios de expulsar a sombra do corpo dos participantes. Sétimo, a “comida que ele plantou” é simbolicamente dada à sombra, ao homem que acabou de morrer, e pede-se a ele que fique satisfeito: “Você, sombra, não pense que havia pouca comida no seu ritual... a comida que nós comemos, você comeu... não crie fome”. Oitavo, a sombra é reconhecida como parente ao comerem com ela a comida e beberem a cerveja misturada com o remédio ikipiki , o símbolo do parentesco, antes de ser levada embora. Por último, um homem morto é formalmente substituído por seu herdeiro, uma mulher por sua irmã ou pela filha de seu irmão. Não há espaço para descrever os outros rituais do ciclo ainda que do modo esquemático com que descrevi os rituais funerários. Será suficiente mostrar que a forma geral do ritual é a mesma na morte, na puberdade e no casamento, e no nascimento. Na puberdade, uma garota é posta em isolamento na cabana de sua mãe. Suas sogras (pois tradicionalmente ela é sempre prometida antes da puberdade) vêm formalmente trazer a folhagem sobre a qual ela se sentará com suas companheiras, meninas um pouco mais jovem que ela. Ali, elas passam a maior parte do dia tecendo esteiras, dançando e cantando; ali elas entretêm os rapazes; e ali elas dormem. A garota se banha ritualmente com seu marido, utilizando a medicação ikipiki providenciada pela linhagem dele como um símbolo de seu casamento, e come as bananas como nos ritos funerários. “O remédio é para criar o relacionamento. Usá-lo significa que a noiva é agora da minha linhagem”. Festins são trocados entre as duas linhagens, a dela e a do marido e, aproximadamente três meses depois, ela é purificada e raspada elaboradamente, a folhagem é retirada e queimada, e ela é 8
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lembrada de seus deveres em relação ao seu marido como mulher casada que agora é e clama “ponha-me no chão, mãe”. Quando sua virgindade é comprovada, seu marido traz um touro que é morto para um banquete. O corte sagrado ( ijammapa ) deste é enterrado pelo pai dela em seu canteiro de bananas, e lá ele reza, pedindo: “Aqui está a carne. Eu comi a comida dos outros, afaste-se um pouco, permita que ela venha a parir uma criança na casa de seu marido”. Depois que ela vai com seu marido, ela volta trazendo bananas misturadas com seus fluidos sexuais para enterrar no canteiro de seu pai, tal como faz a viúva depois de sua união com o herdeiro do morto. O ritual de nascimento é bem mais elaborado no nascimento do primogênito, mas simples e curtos para os outros filhos, embora prolongados e complexos nos casos de um nascimento anormal, em caso de gêmeos ou de parto transpélvico (a mesma palavra, ilipasa , é utilizada para ambos e o ritual é o mesmo). Nascimentos anormais são tidos como ainda mais perigosos e aterrorizantes do que a morte, e acredita-se que um círculo mais amplo de parentes do que aquele afetado pelo cadáver fica em perigo. Parentes afins, e parentes da mãe, assim como os agnatos, reúnem-se para a purificação. Cabanas de isolamento são construídas para os pais de gêmeos, e eles são formalmente instalados lá, com uma folhagem ritual arrumada para eles. Um grupo muito extenso de parentes une-se para lavar-se com os remédios e traz presentes de painço que é colocado de molho para fazer cerveja. Quando a cerveja é produzida, as cabanas temporárias são queimadas, os pais, os gêmeos e os parentes são raspados e besuntados, lavados com a medicação escaldante, e salsichas feitas com mingau com remédio são oferecidas a eles, e devem ser comidas no chão. Os pais fazem sexo ritualmente e um monte de bananas é levado pela mãe dos gêmeos ao canteiro de seu pai, como fazem a noiva e a viúva. Há diferenças apreciáveis entre os vários rituais do ciclo: na morte, há a lamentação e o funeral; na puberdade e no casamento, a alegria, a celebração da virgindade; no nascimento, a elaboração de tabus para a mãe antes de seu confinamento; mas aqui, no espaço disponível, o foco é o conteúdo comum dos rituais, o padrão simbólico comum. O enquadramento de todos os rituais é a “indução” ( ukwingesia ) com a arrumação formal da folhagem de bananeira em uma cabana para a qual o participante é trazido para viver apartado das outras pessoas; o retiro ou a “reclusão” durante a qual ele ou ela vive e come separadamente e é visto como sujo, pois ela está “montada pelas” sombras; e a “saída” ( ukusosya ) quando as sombras são mandadas embora e ela é purificada2. No período de Embora a forma clássica do rito de passagem vislumbrada por Van Gennep seja válida, a mudança no status é apenas um entre muitos temas. 2
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reclusão, o participante não só está sujo, como também não pode se lavar, se raspar ou usar cosméticos; no ritual de morte, ela abraça o cadáver, se mistura com lama e cinzas – e imita as ações de um louco. O louco é sujo como um cadáver e esse é também o caso do enlutado. Em outros rituais também o participante fica sujo, cercado pelas sombras, ameaçado de enlouquecer. São muitos os símbolos de purificação: limpar e enterrar a folhagem; queimar os panos ou as folhas usadas durante a reclusão; a lavação e a raspagem repetidas e elaboradas; besuntar o corpo com óleo e rouge ; e afastar alguma representação da sombra. Um elemento do rito mortuário é a separação entre corpo e espírito, o despejo final do corpo, e o ato de trazer de volta a nova sombra “para que se aqueça junto às outras sombras” na lareira da família; mas a distinção entre o cadáver do qual se desfaz, e a sombra que é bem vinda, não é mantida de modo sistemático. Repetidamente nossos informantes falavam tanto da sombra ( unsyuka ) sendo expulsa dos sonhos e dos pensamentos acordados, e dos corpos dos homens, como sendo separada do cadáver. O alvo do ritual Nyakyusa não é aquela união com Deus buscada constantemente pelo ritual cristão, mas uma separação, uma vez que a associação com os deuses pagãos gera loucura e morte, e não plenitude de vida. Um grau de separação das sombras é condição não só da fertilidade como da sanidade. Atos sexuais não serão fecundos a menos que as sombras da linhagem do pai da mulher se tenham “afastado um pouco para o lado” da menina nubente, e o mesmo vale para a sombra do falecido marido, com relação a sua viúva. O tempo todo nos rituais enfatiza-se a conexão das sombras com a potência e a fertilidade. As sombras causam a menstruação e o desejo sexual; elas estão presentes no ato sexual e são expelidas no esperma; elas controlam a concepção; elas controlam a fertilidade nos campos. “A sombra e o esperma são irmãos”. “Quando eles sacodem o painço e as sementes de abóbora (depois da conexão ritual) a semente é o esperma... e é a sombra”. Os símbolos de macho e fêmea, a banana e a banana doce ( itoki e iselya ), aparecem repetidamente, e o ato de vestir folhas destas plantas é explicitamente interpretado como um símbolo de fertilidade. Relações sexuais entre marido e mulher é a culminância dos rituais de morte, puberdade, casamento e de nascimento anormal, e são tidos como essenciais para a saúde da esposa ou da viúva (mesmo que ela seja idosa) e também como prova do apoio das sombras ao marido ou ao herdeiro. Um símbolo de conexão ritual é oferecido às sombras de ambas as linhagens. Na verdade, tanto os rituais de morte e nascimento anormal, como os de puberdade e casamento, podem ser interpretados como a celebração da união entre marido e mulher. Para os pais dos gêmeos o fim do ritual marca o ressurgimento da vida de 10
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casados depois de um intervalo durante o qual o contato entre eles era tido como extremamente perigoso; para a viúva e para o herdeiro de um homem morto, o fim do ritual de morte marca o início de sua união. A maneira pela qual uma viúva, ou uma mãe de gêmeos, é advertida sobre o comportamento adequado que dela se espera como esposa, do mesmo modo que uma menina em seu primeiro casamento, sublinha o fato de que os rituais de morte e de nascimento são, em certo sentido, também rituais de casamento. A virilidade da linhagem é simbolizada pela medicação ikipiki interpretada como sendo “nosso sangue” ou “esperma”. Com ela são tratados os enlutados, as garotas menstruando, a noiva e o noivo, os bebês recém-nascidos e suas mães. Oferecê-la ou tomála é reconhecer laços de parentesco: marido e mulher lavam-se com ela juntos como reconhecimento do fato de que a esposa é agora “um único sangue” com seu marido; a avó lava a criança de seu filho em reconhecimento de sua legitimidade; nos rituais mortuários os enlutados comem alimentos como reconhecimento de seu parentesco com a sombra. Pertencer a uma linhagem é estar protegido, e o remédio ikipiki é tido como proteção para aqueles que são vazios em relação aos que estão cheios de esperma de verdade, ou de outras medicações. A sombra, unsyuka , “ele que ergueu dos mortos”, pode ser interpretada como o princípio da vida, mas ao mesmo tempo ela é “aquela que está embaixo” ( ugwa pasi ), suja e temida. O que os homens celebram é a vida; o que eles temem é a morte, a corrupção; e para os Nyakyusa, assim como para os cristãos, ambos estão inextricavelmente misturados. Imindu significa sujeira, poeira, porcaria, a folhagem da cabana de isolamento, e também a sombra. Eu falei do desprezo dos Nyakyusa pela sujeira ( ubunyali ), que é associada ao corpo, a menstruação, ao parto, ao ato sexual, e às fezes, e todos esses elementos são de alguma forma associados com a sombra. Fezes “vão para baixo para a terra das sombras”. “O cabelo de um cadáver é o cabelo da sombra”, o cabelo de uma menina na puberdade é “a sujeira de seu sangue menstrual”. Em todos os rituais a “sujeira” é enterrada, raspada, queimada ou expelida pela lavagem. No ritual de morte “aquele que se ergueu” é trazido para “aquecer-se” na lareira da família, mas ainda assim ele habita a terra e é “sujo”. A concepção de impureza, de sujeira, associada com as funções fisiológicas do coito, da excreção, da menstruação, e do parto e da morte é, obviamente, uma concepção muito difundida. Os Nyakyusa talvez a enfatizem mais do que seus vizinhos (embora não mais que os judeus ou hindus) e sua preocupação com a purificação nos rituais encontra paralelo na ênfase dada à limpeza ( ubwifyusi ) pessoal, da casa e do pátio, à limpeza do cozinhar e do despejo dos excrementos. Sua extrema limpeza, em contraste com a de seus vizinhos, foi 11
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observada pelos primeiros viajantes da área e ainda é evidente. Casas e pátios são varridos e arrumados, potes e pratos lavados; quando servida em banquetes, a comida é escrupulosamente coberta com folhas frescas de bananeira; uma boa dona-de-casa é umwifyusi , aquela que é limpa. Os homens lavam-se diariamente em água corrente, e crianças
são educadas para levarem consigo uma pá quando forem defecar, de modo a enterrar suas fezes. O horror à sujeira é intimamente associado ao medo da loucura que é, ao mesmo tempo, também um medo de associação muito próxima com o morto. Pois os homens enlouquecem quando os mortos não foram devidamente afastados e retornam em sonhos, quando a necessária separação entre vivos e mortos não foi alcançada.. Fala-se da loucura, sobretudo, como uma penalidade pela negligência com o ritual de morte, embora não ela se reduza, em tese, a esses casos. “Todos os rituais são iguais; se forem desprezados, os homens se tornarão loucos”. Se os rituais forem negligenciados ou se tabus forem quebrados, temem-se, além da loucura, a esterilidade, a debilidade, o inchaço de braços e pernas, e a diarréia “que se desfaz da sujeira na barriga”. A NATUREZA DO SIMBOLISMO NO RITUAL NYAKYUSA
O simbolismo baseia-se sempre em uma associação, em um sentimento de semelhança entre coisas. A qualidade intrínseca de um objeto ou de uma relação, ou de um evento, é expressa em termos de outro objeto ou ação com os quais sente-se que ela se assemelha. As imagens que os homens usam, as coisas que eles sentem que se assemelham, são de modo geral determinadas pela forma da sociedade: a poesia de Louis MacNeice, por exemplo, só poderia ser a de uma sociedade industrializada, e as imagens Nyakyusa são construídas em termos de bananas, de grãos, de forjar o ferro em uma fornalha primitiva, da organização por linhagens, e assim por diante. Existem “idiomas culturais”, formas aceitas de expressão, que são frequentemente recorrentes – nós falamos em termos de calças e saias, ao passo que os Nyakyusa falam em termos de bananas e bananas doce – e podemos aprender essas formas de expressão. Podemos entender, quando nos explicam, que ikipiki é um símbolo para o sangue de uma linhagem, que lavar-se em uma cachoeira, ou deitar-se em um córrego e deixar que seixos passem entre os dedos dos pés e das mãos, são símbolos de purificação, entre outras coisas. Porém, ainda que aprendamos o simbolismo de uma cultura do mesmo modo que aprendemos a língua, e mesmo que estejamos alerta para o fato de que 12
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certas formas de expressão são comuns, não é possível predizer com certeza quais símbolos serão usados em um ritual, da mesma forma como não é possível prever quais símbolos um poeta usará. O simbolismo do ritual Nyakyusa, e mesmo todo o simbolismo mágico, difere assim do simbolismo da poesia: em um ritual mágico as coisas percebidas como assemelhadas são tomadas como causalmente conectadas, ao passo que na poesia elas são apenas similares e isso é tudo. Nos rituais, os participantes imitam a loucura como uma profilaxia para preveníla; a mulher grávida não fica parada na soleira da porta, pois se o fizer a criança fará o mesmo e o parto será demorado; a mulher que dorme com seu marido não se aproxima de um ferreiro, pois o ato de forjar ferro e o ato sexual são assemelhados e antagônicos. Isso nos leva ao próximo ponto: às vezes, o semelhante produz o semelhante, assim como a hesitação na soleira da casa ou a “ferocidade” de uma mulher grávida que torna feroz a caça de seu marido se ele vai para caçar; e, às vezes, as coisas ou ações semelhantes são tidas como antagônicas, como forjar ferro e fazer sexo, sementes na barriga e sementes no chão, a guerra e a “guerra nas esteiras”, ou seja, relação sexual. No campo da antropologia, não penso que existam quaisquer regras, quaisquer princípios gerais a serem encontrados, que explicariam porque algumas coisas são tomadas como simpatizantes e outras como antagônicas, ou até mesmo porque certas coisas são escolhidas como assemelhadas. Depende de como o poeta sentiu-se quando criou sua imagem, pois o adivinho ou médico, que criaram um novo ritual ao modificar o antigo, são, nesse sentido, poetas. Estabeleci a analogia com a poesia. Quase não é necessário dizer que a mesma concepção – purificação, loucura, ou o que se queira – é simbolizada de várias maneiras, e que o mesmo símbolo pode representar várias coisas para a mesma pessoa. ANÁLISE
Agora chegamos à análise mais profunda: o que os rituais realmente exprimem? Os símbolos recorrentes da sociedade Nyakyusa foram indicados e interpretados. Quais idéias e atitudes subjazem a eles? Os ritos funerários são uma adaptação à morte através de uma violenta expressão de pesar, uma luta apaixonada com a própria morte, e uma afirmação da vida expressa na dança, no flerte, no banquetear-se com carne, na tentativa deliberada de afastar o morto dos
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sonhos e dos pensamentos, pela sua substituição através do levirato ou do sororato 3, e finalmente, com a busca de um bode expiatório 4. Os enlutados são apoiados por seus parentes e vizinhos que devem reunir-se para chorar com eles e têm também a obrigação de animá-los antes de se dispersarem. Todos os rituais, incluindo o próprio ritual de morte, são uma afirmação da importância suprema da procriação. O poder reprodutivo é tratado como sagrado, carregado com tabus, controlado pelas sombras; o clímax de cada ritual é o encontro do marido e da esposa, ou esposas; e o objetivo explícito é a saúde e a fertilidade. Uma manifestação da sacralidade do ciclo reprodutivo é seu caráter poluidor. Todas as funções fisiológicas são pensadas como poluidoras: as sombras são associadas com o cadáver, e com a procriação, e são sujas, impuras. Aqueles que são submetidos ao ritual e estão “montados pelas sombras” também são impuros, e não podem se limpar até que o ritual imponha isso. A loucura provém do fracasso na purificação de alguém no ritual, no fracasso em separá-lo das sombras. Esse sentido de poluição, e o horror à loucura com a qual ele está ligado entre os Nyakyusa, é uma expressão de medo, e está bem próxima do sentido de assombro; aquilo que Otto chamou de “Idéia do Sagrado”. Se o sentido de poluição é ou não também ligado a um sentido de culpa, não sei. Os freudianos certamente interpretariam deste modo, mas não possuo quaisquer evidências de que os Nyakyusa sentem culpa. De seu terror pela morte e pelo nascimento anormal, e em grau menor pelo nascimento rotineiro e pela menstruação, não há dúvida alguma. Tudo isso é percebido e vivido como poluidor. A dependência mútua entre parentes, vivos e mortos, é expressa continuamente. Os parentes são “membros uns dos outros” no sentido em que a morte de um parente, ou o nascimento de gêmeos de algum parente do sexo masculino ou feminino, afeta diretamente um indivíduo. Saúde e sanidade são pensadas como dependentes da realização do ritual com os parentes; a procriação e a fertilidade dos campos são controladas pelos parentes mortos. A separação e a ligação de linhagens também se expressa na concepção da medicação ikipiki , o “sangue da linhagem”, e no monte de bananas que uma mulher leva para enterrar no canteiro de bananas de seu pai. A diferenciação de machos e fêmeas, de linhagens, de grupos locais, é expressa em termos de colheitas e gado: o que não se reflete nos rituais familiares é a estrutura etária. É o desenvolvimento do indivíduo mais do que seus grupos etários organizados que são simbolizados nesses rituais. Sororato é usado aqui para indicar a substituição de uma esposa morta por sua irmã ou por outras parentes, e distingue-se da poliginia sororal, i.e. do casamento simultâneo com duas irmãs. 4 As reações à morte postuladas por Ruth Benedict como características de diferentes sociedades ocorrem sucessivamente no ritual Nyakyusa. Cf. Patterns of Culture, passim . 3
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Todos os rituais são uma expressão formal e pública de mudança no status; uma saída de uma relação anterior que é incompatível com a nova. O morto junta-se a seus pais como sombra; sua viúva o afasta de si – pois separar-se dele é uma condição para seu novo casamento. A jovem é reconhecida como uma mulher casada, como sendo um só sangue com seu marido, e as sombras da linhagem de seu pai devem “afastar-se um pouco para o lado”. É o fim da infância e da dependência de seus pais. A criança recém-nascida é aceita como membro da linhagem de seu pai; até que o ritual de nascimento seja realizado, o bebê não é tratado como uma pessoa ou reconhecido como parente, e ao fim do ritual a mãe, que havia sido separada de seu marido, retorna a ele. Por fim, o valor posto no gado reflete-se nos rituais, e a dependência das bananas e dos grãos. Os mortos devem levar gado consigo se quiserem ser recebidos pelas sombras; os sacrifícios oferecidos a eles consistem, sobretudo, de pedaços de carne e de cerveja de painço, e são ofertados no canteiro de bananas. Desde a publicação de Andaman Islanders 5 ficou esclarecido que rituais tanto suscitam quanto canalizam emoções; eles ensinam aos homens a sentir e lhes ensinam o que sentir. Os rituais familiares dos Nyakyusa ocorrem quando emoções são, de todo modo, suscitadas nas crises da vida, e eles intensificam e direcionam essas emoções. O terror com a morte daqueles que pertencem a sua própria espécie é muito comum entre animais, e é razoável assumir que os homens têm um medo instintivo do cadáver, mas a sociedade pode intensificar ou minimizar isso. A sociedade Nyakyusa intensifica isso – os homens tremem diante da morte – e espera-se que ajam desse modo – e no ritual eles recebem conforto e são traquilizados. Eles voltam-se da morte para a vida. Sugiro que também pode haver uma base instintiva para o temor diante do nascimento; que a vaca ou a cadela em trabalho de parto é um animal aterrorizado. O que quer que seja, o fato é que, na sociedade Nyakyusa, o processo reprodutivo é percebido e sentido como temível, e em especial um nascimento anormal. Os Nyakyusa cristãos indicam prontamente que não temem a morte, o nascimento, a menstruação como fazem os pagãos – eles não observam muitos de, senão todos, os tabus tradicionais – e dizem que os próprios pagãos temem hoje muito menos do que antigamente; em outras palavras, indicam que o medo é culturalmente determinado, ou ao menos intensificado . Em todos os rituais, a expressão de certos sentimentos é compulsória, o que quer que sinta o indivíduo. As mulheres Nyakyusa comentavam livremente sobre o fato de que Meu débito para com Radcliffe-Brown nesta análise será certamente óbvia para todos os estudantes de antropologia. 5
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certas viúvas não sentiam efetivamente pesar na morte de seus maridos: “Talvez elas estejam apenas pensando sobre com quem se casarão em seguida”, elas diziam, “mas ainda assim elas devem lamentar-se e se lambuzar de lama e cinzas”. E a expressão mesma tende a induzir o sentimento apropriado. Mesmo para alguém de fora, a pressão do ritual é forte: o sentido de terror e de pesar é intenso quando você está no meio de uma aglomeração de mulheres que choram e se lamentam muito próximas umas das outras. Radcliffe-Brown (1952:157) argumentou que os rituais não apenas desenvolvem certos sentimentos nas mentes dos indivíduos, mas que a existência mesma de uma sociedade depende da presença desses sentimentos. É possível, penso eu, demonstrar que os sentimentos expressos no ritual Nyakyusa são os necessários para a continuidade da sociedade. Em cada sociedade os homens devem superar a morte, emocionalmente; eles devem voltar-se para a vida. No ritual da morte, os enlutados estão consternados, aterrorizados. Expressam seu pesar e o deixam para trás; seus parentes e vizinhos reúnem-se em torno deles, compartilham sua tristeza, e ajudam-nos a superá-la. É verdade que o ritual intensifica o medo, mas ele também o supera (cf. Homans, 1941). Não é por acaso que os Nyakyusa interpretam todos os rituais, e especialmente o ritual de morte, como uma proteção contra o enlouquecimento, contra a desintegração da personalidade. E por que o ritual mortuário deveria intensificar o medo? Por que não diminuí-lo? Porque com seu terror as pessoas são levadas a se dar conta de sua dependência de seus parentes para a cooperação na realização do ritual, e da necessidade de seguir o costume tradicional. Todos os rituais familiares dos Nyakyusa intensificam o medo e fazem com que eles recorram a seus parentes e à maneira tradicional de aliviá-lo. O sentido de veneração (ligado à idéia de poluição) expressa a dependência dos deuses, dos ancestrais e também dos parentes. Resumindo, o medo gera a solidariedade do grupo de parentesco, e a continuidade cultural. É também evidente que o medo de sanções sobrenaturais ajuda a manter a ordem na sociedade Nyakyusa. O temor aos deuses faz com que os homens “andem humildemente e ajam justamente”. E na medida em que os rituais alimentam esse sentido de reverência, eles reforçam a força das sanções sobrenaturais. O reconhecimento público da mudança de status, das novas responsabilidades (expressas de forma muito precisa na admoestação), imprime nos indivíduos suas sempre novas obrigações dentro do grupo de parentesco. Os rituais são um desligamento simbólico da infância, de um casamento anterior, ou dos pais mortos, e compelem à aceitação de uma nova posição. 16
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As sociedades dependem não apenas de sentimentos de dependência mútua entre seus membros, mas também de sua sobrevivência física – do desejo deles de se reproduzirem. Certos grupos parecem perder esse desejo, embora saibamos pouco sobre as razões pelas quais o fazem. Os rituais Nyakyusa expressam a importância suprema da procriação e a regulam. A procriação fora do casamento é misticamente perigosa, gestações são deliberadamente espaçadas, e a vida reprodutiva das mulheres é limitada por certos tabus. Desse modo a concepção é limitada ao período em que as crianças têm mais chances de sobreviverem, e em que os cuidados com a criança dentro da família estão assegurados. A palavra ritual foi utilizada neste artigo e não fiz referência alguma a cerimonial. Eu faço uma distinção entre os dois (Wilson, 1939), usando ritual para indicar primariamente ação religiosa, ou seja, uma ação destinada a assegurar a benção de um ou mais poderes místicos. A ação pode ser negativa, por exemplo, uma evitação ou um tabu, ou positiva. Símbolos e conceitos são empregados em rituais, mas são subordinados a fins práticos. Cerimonial, por outro lado, é uma elaborada forma convencional para a expressão de sentimentos, não confinada a ocasiões religiosas; qualquer situação emocional, seja religiosa ou secular, pode constituir uma cerimônia, e uma cerimônia não é reforçada por sanções místicas, mas apenas por sanções convencionais. Grosso modo, uma cerimônia é uma forma apropriada e elaborada para a expressão de sentimentos, mas um ritual é uma ação que se acredita eficaz. Um ritual encontra-se com frequência imbricado em um cerimonial que não é visto como necessário para a eficácia do ritual, mas que é percebido como adequado. Tanto o ritual quanto o cerimonial têm uma função ao suscitarem e canalizarem emoções, mas o ritual, ao relacionar seus símbolos a alguma realidade supostamente transcendental, afeta as pessoas mais profundamente do que uma cerimônia, que alguns descreverão como um “mero desempenho teatral de papéis”. Por fim, sustento que os rituais revelam valores em seu nível mais profundo. Há muita confusão na discussão sobre valores e sobre como estudá-los, sobre como atingir um sistema e como ter objetividade quando os observamos. Certamente, nos rituais, os homens expressam aquilo que mais os mobiliza, e como a forma de expressão é convencional e obrigatória, nos rituais revelam-se os valores do grupo. Vejo no estudo dos rituais a chave para uma compreensão da constituição essencial das sociedades humanas. Tradução: Igor Mello Diniz Revisão Técnica: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
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Referências citadas: HOMANS, G. “Anxiety and ritual: the theories of Malinowski and Radcliffe-Brown”. In: American Anthropologist . 43, nº 5.
Menasha, 1941. pp. 164-172.
MACNEICE, Lows. Collected poems 1925-1948 . London: Faber & Faber, 1949. OTTO, R. The idea of the holy . London: Oxford University Press, 1926. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Structure and function in primitive society . London: Cohen & West, 1952. VAN GENNEP, A. Les rites de passage . Paris: E. Nourry, 1909. WILSON, G. “Nyakyusa conventions of burial”. In: Bantu Studies . Nº 13: 1-31. Johannesburg, South Africa, 1939. WILSON, M. Good company: a study of Nyakyusa age-villages . London: Oxford University Press, 1951.
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