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1. Obstetrícia – Manuais, guias, etc. I. Rezende Filho, Jorge de, 1966-. I. Título. 14-13485
CDU: 618.2
CDD: 618.2
A primeira edição de Obstetrícia Fundamental veio a lume em 1976 e, diz a lenda, foi feita no Carnaval daquele ano. Segundo Rezende pai, a obra era destinada a estudantes, mas sem deixar de abordar noções básicas da boa doutrina obstétrica. Ao longo do tempo, houve novas edições, e o livro ficou popularmente conhecido como “Rezendinho”, diferenciando-se de Obstetrícia, tratado referido como “Rezendão”. Em 2014, apresentamos a 13a edição de Obstetrícia Fundamental, e não seria desarrazoado afirmar que o livro obteve grande aceitação, comprovada pelos seus inúmeros leitores durante as quase 4 décadas de existência. Na atual era digital, o maior desafio dos editores é lançar um livro que não seja publicado já desatualizado, haja vista a velocidade dos conhecimentos incorporados à ciência médica. Por certo, a maior revolução no diagnóstico pré-natal foi a introdução do teste pré-natal não invasivo (NIPT), que utiliza para o diagnóstico de aneuploidias o DNA fetal livre no sangue materno. Entretanto, até a publicação desta edição, ainda não sabíamos se o teste seria de rastreamento ou de diagnóstico. Outra grande conquista foi a predição do parto pré-termo por meio da ultrassonografia transvaginal, utilizada para a mensuração universal do colo uterino, por ocasião do exame morfológico de 2o trimestre, e para a possível prevenção com a progesterona vaginal. Como diz Campbell: não fazer nada não é mais uma opção. Impressiona, principalmente entre nós, obstetras, a indicação cada vez mais frequente da operação cesariana. Ela é considerada a responsável pela chamada patologia do século 20 – o acretismo placentário –, cuja incidência aumentou 10 vezes nos últimos 50 anos. Em contrapartida, cresce a aceitação do parto humanizado, com inúmeros e apaixonados seguidores no Brasil e no Mundo. In fine, e como sempre, cumpre agradecer o apoio e o zelo de Juliana Affonso, da Editora Guanabara Koogan. Além disso, esta edição em particular teve a revisão cuidadosa e competente de Tatiane Carreiro da Silva, de trato pessoal extremamente agradável. Desta feita, a iconografia nova ficou a cargo da editora. O trabalho de secretariado foi realizado, mais uma vez, por Simone Oliveiros. Ousamos dizer, sem medo de errar, que Obstetrícia Fundamental 13a edição é o livro mais bonito e bem cuidado que tivemos a oportunidade de realizar. Rio de Janeiro, julho de 2014 Carlos Antonio Barbosa Montenegro Jorge de Rezende Filho
Este livro conta com os seguintes materiais suplementares: ■ Vídeos com procedimentos obstétricos (acesso livre) ■ Ilustrações da obra em formato de apresentação (acesso restrito a docentes) O acesso ao material suplementar é gratuito, bastando que o leitor ou docente se cadastre em http://gen-io.grupogen.com.br.
Parte 1 Fisiologia da Reprodução 1 Bases Morfológicas e Funcionais do Sistema Genital 2 O Desenvolvimento 3 Anexos do Embrião e do Feto 4 Endocrinologia da Gravidez. Trocas Materno-ovulares ■ A. Endocrinologia da Gravidez ■ B. Trocas Materno-ovulares
Parte 2 Ciclo Gestatório Normal 5 Modificações do Organismo Materno 6 Propedêutica da Gravidez 7 Diagnóstico da Gravidez 8 Idade da Gestação e Data Provável do Parto 9 Estática Fetal 10 Estudo da Bacia 11 Assistência Pré-natal ■ A. Cuidados Pré-natais ■ B. Aspectos Nutricionais
12 13 14
Contratilidade Uterina Mecanismo do Parto Parto. Estudo Clínico e Assistência ■ A. Dilatação e Expulsão ■ B. Secundamento ■ C. Assistência ao Recém-nascido na Sala de Parto
15 16
Puerpério Lactação
Parte 3 Ciclo Gestatório Patológico 17 Hiperêmese Gravídica 18 Toxemia Gravídica: Pré-eclâmpsia/Eclâmpsia 19 Abortamento 20 Gravidez Ectópica 21 Doença Trofoblástica Gestacional 22 Placenta Prévia 23 Descolamento Prematuro da Placenta 24 Coagulação Intravascular Disseminada. Choque. Reanimação Cardiopulmonar. Reanimação Neonatal ■ A. Coagulação Intravascular Disseminada ■ B. Choque ■ C. Reanimação Cardiopulmonar ■ D. Reanimação Neonatal
25
Polidramnia. Oligoidramnia ■ A. Polidramnia ■ B. Oligoidramnia
26 27 28 29 30 31 32 33 34
Ruptura Prematura das Membranas Gravidez Gemelar Parto Pré-termo Crescimento Intrauterino Restrito Gravidez Prolongada Doença Hemolítica Perinatal Obesidade Diabetes Melito Lúpus Eritematoso Sistêmico e Trombofilias ■ A. Lúpus Eritematoso Sistêmico ■ B. Trombofilias
35 36 37
Cardiopatias Hipertensão Crônica Infecção Urinária e Doença Renal Crônica
38 39 40
Doença Tromboembólica Venosa Doenças Infecciosas Câncer Genital e Indicações da Cirurgia Não Obstétrica ■ A. Câncer Genital ■ B. Indicações da Cirurgia Não Obstétrica
41 42 43 44
Anemia Discinesias Sofrimento Fetal Agudo Distocias do Trajeto, Desproporção Cefalopélvica e Distocia de Ombros ■ A. Distocias do Trajeto ■ B. Desproporção Cefalopélvica ■ C. Distocia de Ombros
45
Apresentações Anômalas ■ A. Apresentações Cefálicas ■ B. Apresentação Pélvica ■ C. Apresentação Córmica
46 47
Distocias do Cordão Umbilical Ruptura Uterina e Laceração do Trajeto ■ A. Ruptura Uterina ■ B. Laceração do Trajeto
48 49 50 51
Secundamento Patológico Infecção Puerperal Hemorragia Pós-parto Patologia da Lactação
Parte 4 Operações Obstétricas (Tocurgia) 52 Fórceps 53 Versão e Extração Podal 54 Punção Craniana na Hidrocefalia 55 Procedimentos para a Interrupção da Gravidez 56 Operação Cesariana Histerectomia-cesárea e Esterilização Pós-parto
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■ A. Histerectomia-cesárea ■ B. Esterilização Pós-parto
Parte 5 Medicina Fetal 58 Ultrassonografia 59 Avaliação Anteparto da Vitalidade Fetal 60 Diagnóstico Pré-natal 61 Terapia Fetal 62 Hidropisia Fetal Não Imune Parte 6 Aspectos Éticos e de Saúde Pública 63 Mortalidade Materna e Perinatal 64 Obstetrícia Médico-Legal e Forense
1 Bases Morfológicas e Funcionais do Sistema Genital
2 O Desenvolvimento 3 Anexos do Embrião e do Feto 4 Endocrinologia da Gravidez. Trocas Materno-ovulares
■ Bases morfológicas ■ Bases funcionais
■ Bases morfológicas ■ Sistema genital feminino O sistema genital feminino é dividido em genitália externa e interna. A genitália externa ou vulva pode ser estudada em conjunto com o períneo, constituindo a região vulvoperineal.
■ Genitália externa feminina A vulva inclui as seguintes estruturas (Figura 1.1): • Monte de vênus, pênil ou monte púbico (mons veneris) • Pregas tegumentárias ou formações labiais: grandes e pequenos lábios • Espaço interlabial ou fenda vulvar: vestíbulo, meato uretral, introito vaginal e hímen • Órgãos eréteis: clitóris e bulbovestibulares • Glândulas acessórias: parauretrais (ou de Skene) e vulvovaginais (ou de Bartholin). A vulva representa a entrada da vagina e, em condições normais, cobre e protege o meato uretral. A porção externa da vulva está coberta por um tipo especial de pele, rica em folículos pilosos, glândulas sebáceas e sudoríparas. Internamente, a partir dos pequenos lábios, a pele se modifica, tem umidade acentuada e não mais apresenta pelos. Os grandes lábios se continuam em direção ao períneo para formarem, na linha média, a comissura posterior ou fúrcula, limite inferior da vulva. Os pequenos lábios (ninfas) se separam anteriormente para englobar o clitóris, formando-lhe o freio e seu prepúcio. Posteriormente, fundem-se com os grandes lábios na porção média ou, muito raramente, vão mais abaixo até a fúrcula (Figura 1.1). O vestíbulo, espaço elíptico situado internamente em relação aos pequenos lábios, se estende do clitóris até a borda posterior do hímen (Figura 1.1). Os orifícios da uretra, vagina, glândulas parauretrais e de Bartholin têm suas aberturas no vestíbulo. O hímen, nas mulheres virgens, oclui parcialmente o orifício vaginal (Figura 1.1). Em geral, após o primeiro coito, e sempre depois do parto, a estrutura do hímen rompe-se, permanecendo vestígios conhecidos como carúnculas mirtiformes. O clitóris consta de dois corpos cavernosos que se inserem no ramo isquiopúbico, e de porção distal, glande, a única visível (Figura 1.1). É o clitóris, órgão erétil, homólogo do pênis masculino, que funciona para a mulher como o “centro nervoso do coito”. Os bulbovestibulares correspondem ao corpo esponjoso masculino. Consistem em duas estruturas eréteis, colocadas de cada lado do orifício vaginal, entre a fáscia inferior do diafragma urogenital e os músculos bulbocavernosos (Figura 1.2). As glândulas parauretrais de Skene, homólogas da próstata masculina, têm seus orifícios
externos localizados lateroposteriormente ao meato uretral (Figura 1.1). As glândulas vulvovaginais de Bartholin se localizam de cada lado do introito vaginal, apresentando orifícios na parte posterior do vestíbulo, entre os pequenos lábios e o hímen (Figuras 1.1 e 1.2). Correspondem às glândulas bulbouretrais no sexo masculino e secretam muco, especialmente durante o ato sexual.
Figura 1.1 ■ Genitália externa feminina. (Adaptada de Kistner, R.W. Gynecology. Principles and Practice, Chicago, Year Book, 3a ed., 1979.)
■ Períneo Conjunto de partes moles (músculos e aponeuroses) que fecha inferiormente a cavidade pélvica, é atravessado pelo reto, posteriormente, pela vagina e pela uretra, anteriormente. O períneo anatômico é habitualmente dividido em anterior (ou genital) e posterior (ou retal), pelo traçado da linha bi-isquiática. Os músculos do períneo são (Figuras 1.2 e 1.3): • Músculos do diafragma ou assoalho pélvico: levantador do ânus e coccígeo. Além desses, dois outros cobrem as paredes da pelve verdadeira: o obturador interno e o piriforme • Músculos do períneo anterior: superficiais – transverso superficial, isquiocavernoso e bulbocavernoso –; profundos – transverso profundo e esfíncter externo da uretra • Músculo do períneo posterior: esfíncter externo do ânus. O sistema aponeurótico é complexo pode ser separado em três planos (Figura 1.4): • Aponeurose perineal superficial: cobre os músculos superficiais • Aponeurose perineal média ou diafragma urogenital: dois folhetos aponeuróticos que englobam os músculos profundos do períneo anterior (transverso profundo e esfíncter externo da uretra), atravessados pela vagina e pela uretra (Figura 1.2)
Figura 1.2 ■ Períneo feminino. (Adaptada de Netter, F.H. The Ciba Collection of Medical Illustrations, Vol. 2, Reproductive System, New York, 1954.)
Figura 1.3 ■ Diafragma pélvico visto de cima, na mulher. (Adaptada de Netter, F.H. – op. cit.)
Figura 1.4 ■ Aponeuroses do períneo feminino. (Adaptada de Netter, F.H. – op. cit.)
• Aponeurose perineal profunda ou endopélvica: recobre, internamente, o assoalho pélvico, a bexiga, o útero, a vagina e o reto.
▶ Vascularização e inervação da região vulvoperineal. A vascularização é assegurada pela artéria pudenda interna, ramo da hipogástrica, que imerge, na região, juntamente com o nervo, pelo canal de Alcock. O retorno venoso acompanha as artérias. Os nervos provêm do pudendo interno, ramos genitais do grande e do pequeno abdominogenital e do genitocrural, além da porção perineal do pequeno ciático (Figura 1.5).
■ Genitália interna feminina A genitália interna feminina se compõe, essencialmente, de (Figuras 1.6, 1.7 e 1.8): • Um longo canal que se estende da superfície externa do corpo até a cavidade peritoneal: vagina, útero e tubas uterinas • Um par de gônadas: ovários. A vagina é o órgão da cópula destinado a receber o pênis e o sêmen ejaculado durante o coito. O útero retém o óvulo fecundado (ovo) possibilitando-lhe desenvolvimento e crescimento, e o expulsa, quando maduro (parto), ou antes disso (abortamento e parto pré-termo); é o órgão da gestação. As tubas uterinas recolhem o óvulo na superfície do ovário, após a postura, e o conduzem ao útero; são os ovidutos. Os ovários produzem os óvulos; são as gônadas.
Figura 1.5 ■ Inervação da genitália externa feminina. (Adaptada de Kistner, R.W. – op. cit.)
Figura 1.6 ■ Vista anterior da genitália interna feminina. (Adaptada de Kistner, R.W. – op. cit.)
A vagina é um canal que se interpõe da vulva até o útero (Figura 1.7). Na mulher virgem, a sua abertura inferior, introito ou óstio vaginal, é provida do hímen. Em torno do introito estão localizados os músculos bulbocavernosos ou constritores da vagina. O útero é composto por três camadas separadas e distintas: (1) serosa, cobertura peritoneal externa; (2) miométrio, camada de músculo liso; (3) endométrio, membrana mucosa que reveste a cavidade uterina. O miométrio é formado por três camadas de fibras musculares lisas. Em cada uma delas há células musculares lisas que são mantidas em justaposição por tecido conjuntivo rico em fibras elásticas. A camada muscular externa, principalmente longitudinal, é contínua com as fibras que seguem pelos ligamentos largo e redondo. A camada média é a mais espessa, apresenta fibras em sentido circular e é ricamente vascularizada. A camada interna é ricamente constituída de musculatura da mucosa e é composta de fibras dispostas oblíqua e longitudinalmente. O arranjo dos vasos sanguíneos entre os feixes musculares constitui método ideal de hemostasia após o secundamento. O útero é constituído por duas partes: o colo e o corpo. É o colo ou cérvice a porção caudal. Acima, continua-se como corpo uterino, sendo o ponto de junção nomeado istmo. A vagina se dispõe em volta do colo, possibilitando separar-lhe uma porção supravaginal e outra vaginal (Figura 1.7). Na porção supravaginal, lateralmente, se inserem os ligamentos paracervicais (cardinais ou de Mackenrodt) que contêm os vasos uterinos. Posteriormente, a porção supravaginal está recoberta pelo peritônio e une-se ao sacro pelos ligamentos uterossacros (Figuras 1.8 e 1.10). A porção vaginal do colo (portio vaginalis) projeta-se na vagina entre os fundos de saco anterior e posterior. Em condições normais, o orifício externo limita o epitélio pavimentoso estratificado da porção vaginal, contíguo ao epitélio cilíndrico, glandular, que reveste o canal cervical ou endocérvice. A endocérvice se estende do orifício externo até o orifício interno histológico, onde começa o istmo (Figura 1.9). A porção superior do corpo uterino constitui o fundo, com ângulos denominados cornos, onde
penetram as tubas. A área estreitada que liga o corpo ao colo é o istmo (Figuras 1.6 e 1.9). O canal do istmo é demarcado pelo orifício interno anatômico, que o separa da cavidade do corpo, e pelo orifício interno histológico, limite do canal cervical (Figura 1.9). O orifício histológico constitui zona de transição entre o epitélio endocervical e o endométrio. O istmo uterino, na gravidez, incorporase ao corpo para constituir o segmento inferior do útero. Os espaços entre os folhetos peritoneais que revestem a bexiga, o útero e o reto constituem os fundos de saco anterior e posterior (ou de Douglas) (Figura 1.7). As coberturas peritoneais do corpo uterino se juntam lateralmente e formam o ligamento largo (Figura 1.8). Os ligamentos redondos vão da face anterolateral do fundo uterino até os grandes lábios, após penetrarem no canal inguinal. Estruturalmente, o corpo uterino é composto de: serosa (peritônio), miométrio (ver Capítulo 5) e endométrio.
Figura 1.7 ■ Secção sagital da pelve feminina. (Adaptada de Kistner, R.W. – op. cit.)
As tubas uterinas se dirigem de sua inserção nos cornos uterinos até os ovários, onde permanecem em aposição (Figuras 1.6 e 1.8). Descrevem-se quatro regiões nas tubas (Figura 1.11): intersticial (ou intramural), ístmica, ampular e infundibular (com aproximadamente 25 fímbrias na sua parte mais distal). Suas paredes são formadas por serosa, muscular e mucosa, a última bastante pregueada, principalmente na porção mais externa (Figura 1.11). Os ovários estão ligados, anteriormente, à face posterior do ligamento largo pelo mesovário (Figuras 1.6 e 1.8). A face posterior é livre. A região do ligamento largo que prende os ovários à pelve chama-se ligamento suspensor do ovário, por onde transitam os vasos ovarianos. Em um dos polos do ovário está o ligamento uterovariano (Figura 1.8). O ovário é constituído pelo córtex e pela medula. O córtex, revestido pelo epitélio celômico (ou germinativo), contém os folículos ovarianos, e a medula apresenta estroma e rica vascularização. ▶ Vascularização da genitália interna feminina. Está assegurada pelas artérias
uterina, ovariana e vaginal (Figura 1.12). O ramo ascendente da artéria uterina provê inúmeras artérias arqueadas que circundam o útero e emitem as artérias radiadas. Essas artérias radiadas se ramificam no terço interno do miométrio em artérias retas e artérias espiraladas. As artérias retas alcançam a camada basal do endométrio e terminam em capilares nessa região. As artérias espiraladas atravessam a espessura do endométrio e dão origem a capilares logo abaixo do epitélio.
Figura 1.8 ■ Vista posterior da genitália interna feminina. (Adaptada de Kistner, R.W. – op. cit.)
Figura 1.9 ■ Relações anatômicas entre o corpo, o istmo e o colo do útero. (Adaptada de Kistner, R.W. – op. cit.)
Figura 1.10 ■ Secção frontal da pelve feminina. (Adaptada de Netter, F.H. – op. cit.)
Figura 1.11 ■ Divisões anatômicas da tuba uterina. (Adaptada de Kistner, R.W. – op. cit.)
Figura 1.12 ■ Vascularização do útero, do ovário e da tuba. (Adaptada de Kistner, R.W. – op. cit.)
■ Sistema genital masculino O sistema genital masculino é composto por (Figura 1.13): • Um par de gônadas, testículos, responsáveis pela produção de hormônios (células intersticiais ou de Leydig) e de espermatozoides (túbulos seminíferos) • Diversos canais, vias espermáticas, para a eliminação dos espermatozoides: rete testis, canais eferentes, canais epididimários, canais deferentes, vesículas seminais, canais ejaculatórios e uretra • Um órgão para a cópula, o pênis • Outros órgãos acessórios: ○ Sistema de coberturas que rodeiam os testículos, as bolsas escrotais ○ Glândulas cujas secreções se juntam aos espermatozoides, constituindo o esperma ou sêmen: próstata e glândulas bulbouretrais (ou de Cowper).
■ Bases funcionais ■ Ciclos sexuais Tendo início na puberdade e se continuando pelos anos reprodutores, a mulher apresenta ciclos sexuais que envolvem o hipotálamo, a hipófise, o ovário e o útero, além de outros órgãos com participação menor (tubas, colo, vagina, glândulas mamárias etc.). Esses ciclos preparam o sistema genital para a gravidez e dependem do sistema hipotálamohipofisário.
■ Sistema hipotálamo-hipofisário No controle neuroendócrino da ovulação é determinante o papel desempenhado pelo eixo central – sistema hipotálamo-hipofisário – que se conecta por feedback com as gônadas, enquanto se liga ao sistema sensorial, recebendo estímulos do meio ambiente e conexões do próprio cérebro. ▶ Células do hormônio liberador de gonadotrofinas. As células do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) têm, no adulto, seu número estimado em menos de 10.000, distribuídas bilateralmente na parte anterior do hipotálamo, mais especificamente no núcleo arqueado. As células GnRH direcionam os seus maiores axônios para a eminência média quando estão em frente aos vasos porta-hipofisários. Embora não haja conexão nervosa direta entre o hipotálamo e a hipófise anterior (adeno-hipófise), a comunicação vascular (sistema portahipofisário) liga essas duas estruturas. Os vasos sanguíneos do sistema porta-hipofisário carreiam neurotransmissores – fatores de liberação (releasing factors) – segregados pelas células nervosas dos centros hipotalâmicos para a adeno-hipófise (Figura 1.14). O neurotransmissor que regula as gonadotrofinas hipofisárias é denominado fator ou hormônio liberador de gonadotrofina. O GnRH é um peptídio pequeno, constituído por apenas 10 aminoácidos. O GnRH é transportado como pré-hormônio através dos axônios, por via rápida e em direção à eminência média. As células GnRH secretam o hormônio de modo pulsátil sob a influência de sinapses estimuladoras ou inibidoras. Os ciclos pulsáteis duram entre 30 e 90 min na fase folicular e mais tempo na fase luteínica.
Figura 1.13 ■ Corte sagital do aparelho genital masculino: 1, bolsa escrotal contendo os testículos e o canal epididimário; 2, canal deferente; 3, vesícula seminal; 4, canal ejaculatório; 5, próstata, atravessada pela uretra prostática; 6, glândula de Cowper; 7, uretra peniana; 8, túbulos seminíferos; 9, rete testis; 10, canais eferentes; 11, canal epididimário; 12, canal deferente.
O GnRH se liga aos gonadotrofos hipofisários, células situadas na hipófise anterior (pars
distalis) e que produzem as gonadotrofinas – hormônio luteinizante e hormônio foliculestimulante. ▶ Família glicoproteica. As gonadotrofinas são glicoproteínas que fazem parte da família que inclui o hormônio luteinizante (LH), o hormônio foliculestimulante (FSH), o hormônio tireoide estimulante (TSH) e a gonadotrofina coriônica humana (hCG). Todas essas glicoproteínas são constituídas por duas subunidades – uma comum, denominada subunidade α, e outra hormônioespecífica, chamada de subunidade β, que determina a ação biológica e imunorreativa do hormônio.
■ Controle neuroendócrino A ligação do GnRH aos receptores das células da pars distalis induz a liberação do FSH armazenado na adeno-hipófise e estimula a sua síntese. A ligação subsequente do FSH a receptores específicos das células da granulosa dos folículos primários estimula o seu desenvolvimento a folículos secundários. O FSH também induz as células de teca interna dos folículos em desenvolvimento a iniciar a sua produção de androgênios, que são convertidos em estrogênios pelas células da granulosa. De fato, o ponto de partida da esteroidogênese ovariana são os esteroides C19 (androstenodiona e testosterona) produzidos pela teca interna, que funcionam como precursores na granulosa, onde se originam os esteroides C18 (estrona e estradiol). As células da granulosa dos folículos secundários também produzem inibina e ativina, que ajudam a regular a liberação do FSH. O estrogênio desempenha papel relevante no controle das gonadotrofinas hipofisárias. A amplitude dos pulsos do GnRH (e das gonadotrofinas) é regulada pelo estrogênio, que torna sensíveis os gonadotrofos hipofisários, enquanto inibe a secreção do GnRH. Durante 90% do tempo de duração do ciclo ovariano, o controle das gonadotrofinas se faz por meio de feedback negativo, com o estrogênio e a inibina sendo os principais agentes. Assim, a queda na amplitude e no pulso da secreção do GnRH, induzida pelos estrogênios, leva à diminuição do FSH, a despeito de sensibilizarem a hipófise. A queda do FSH é também parcialmente decorrente da inibina produzida pelas células da granulosa. Precedendo o pico do LH (fase pré-ovulatória), o folículo maduro secreta quantidades maciças de estrogênio no sangue, que excede de cinco vezes os níveis basais desse hormônio. Os níveis elevados de estrogênio liberam as sinapses inibidoras da secreção do GnRH, determinando o aumento do pulso desse hormônio, que aciona as gonadotrofinas hipofisárias altamente sensibilizadas, acabando por determinar o pico do LH (feedback positivo). Na fase luteínica, volta a predominar o feedback negativo. Assim, os níveis de gonadotrofina alcançam, durante esta fase, os valores mais baixos durante todo o ciclo ovariano, na dependência de ação inibitória do estrogênio e da progesterona no hipotálamo.
■ Ciclo ovariano As gonadotrofinas produzem alterações cíclicas nos ovários – desenvolvimento dos folículos,
ovulação, formação do corpo lúteo –, constituindo o ciclo ovariano.
■ Desenvolvimento folicular É caracterizado por: • Crescimento e diferenciação do oócito I • Proliferação das células da granulosa • Desenvolvimento de uma cápsula de tecido conectivo, a teca folicular, proveniente do estroma ovariano (Figura 1.14). O crescimento do folículo primário (oócito I mais uma camada de células da granulosa) faz-se à custa, principalmente, dessas células, estratificadas em derredor do oócito. Subsequentemente, espaços cheios de líquido aparecem em volta das células, tornam-se coalescentes e formam uma cavidade única – o antro. O oócito situa-se excentricamente, cercado pelas células da granulosa, constituindo o cúmulo oóforo.
Figura 1.14 ■ Esquema que ilustra as inter-relações entre hipotálamo, hipófise, ovário e endométrio. Estão assinalados os ciclos ovariano e menstrual. (Adaptada de Moore, K.L. & Persaud, T.V.N. Embriologia clínica. Rio de Janeiro, Elsevier, tradução da 7a ed., 2004.)
Em cada ciclo vários folículos (15 a 20) se desenvolvem, porém apenas um (dito dominante), por mecanismo ainda pouco conhecido, chega à plena maturação e, após romper-se, expulsa o óvulo. É a ovulação. O desenvolvimento folicular é estimulado, basicamente, pelo FSH que, além disso, prepara o folículo para responder ao LH (ovulação e luteinização). Os folículos em crescimento produzem estrogênios (estradiol), hormônio sexual feminino que regula o desenvolvimento e a função dos órgãos genitais.
■ Ovulação Algumas substâncias não esteroides existem no líquido folicular, modulando os processos ovarianos (inibina, ativina e inibidor da maturação do oócito). Sob o estímulo dos estrogênios (especificamente, nível de estradiol plasmático acima de 200 pg/mℓ agindo sobre o centro cíclico hipotalâmico por período crítico de 50 h), há liberação significativa de LH (pico do LH) pela adeno-hipófise, fenômeno que permanece por cerca de 24 h e induz a ovulação. A postura ovular ocorre dentro de 24 h após o pico do LH, cerca de 2 semanas antes do período menstrual a se instalar, isto é, 14 dias após o 1o dia da menstruação, no ciclo usual de 28 dias. O tempo decorrido entre a ovulação e o início do catamênio seguinte é quase sempre constante, mas a fase folicular (proliferativa) pode ter duração variável. Como já mencionado, dos diversos folículos que amadurecem a cada ciclo, apenas uma unidade avança até a ovulação, caso seja adequado o estímulo gonadotrófico. Morfologicamente, os fenômenos que concorrem para a ovulação estão caracterizados pelo crescimento súbito do folículo, em decorrência do acúmulo de líquido folicular, produzindo adelgaçamento da teca interna e abaulamento pré-ovulatório na superfície do ovário. Uma pequena área avascular (estigma) logo aparece nessa elevação (Figura 1.15 A). Antes da ovulação, o oócito e algumas células do cúmulo oóforo se separam do interior do folículo distendido. Na ovulação, o estigma rompe-se e o oócito é expulso juntamente com o líquido folicular, do folículo e do ovário (Figura 1.15 B a D). O oócito está cercado pela zona pelúcida e por uma ou mais camadas de células foliculares que logo se dispõem de modo radial – coroa radiada (Figuras 1.15 C e 1.18).
Figura 1.15 ■ Esquema que ilustra a ovulação. O estigma se rompe e o oócito é expulso juntamente com o líquido folicular. (id., ibid.)
■ Formação do corpo lúteo Logo após a ovulação, as células da granulosa, sob a influência do LH, hipertrofiam-se acentuadamente e enchem a cavidade cística remanescente, por vezes com conteúdo hemorrágico, transformando-a em estrutura granulosa, tingida por pigmento amarelo (luteína), o corpo lúteo ou corpo amarelo, produtora de estrogênio e de progesterona.* Na verdade, as células da granulosa e da teca interna do folículo ovulatório remanescente, que apresentam receptores LH, é que, ativadas pelo hormônio, formam o corpo lúteo. As células da granulosa e da teca interna são convertidas em células luteínicas e produzem ativamente progesterona, principalmente as derivadas da granulosa. A vida útil do corpo lúteo – não importa a invocação a supostos agentes luteolíticos – é mantida, provavelmente, por determinismo biológico intrínseco, e permanece por 10 dias, aproximadamente. É relevante acentuar essa noção, posto que o primeiro fenômeno gravídico de importância é modificar a duração do corpo lúteo, prolongando-a. Os estrogênios e, sobretudo, a progesterona, estimulam a secreção das glândulas endometriais, preparando, concomitantemente, todo o endométrio para a implantação do ovo. Fertilizado o óvulo, o corpo lúteo aumenta de tamanho e passa a constituir o corpo lúteo gravídico, que tem a produção hormonal aumentada. Nessas circunstâncias, não ocorrerá a sua degeneração porque o trofoblasto produz hormônio de ação gonadotrófica hCG. O corpo lúteo gravídico mantém-se funcionante até 8 a 9 semanas, quando a esteroidogênese placentária assume papel endócrino
dominante. Se o óvulo não foi fecundado, o corpo lúteo começa a degenerar-se cerca de 10 dias depois da ovulação e se transforma em cicatriz branca – o corpus albicans.
■ Fisiologia do ciclo menstrual | Síntese O GnRH é liberado de modo pulsátil, sendo sua periodicidade e sua amplitude críticas para determinar a liberação fisiológica do FSH e do LH, gonadotrofinas produzidas na adeno-hipófise. O FSH tem produção crescente no início do ciclo menstrual por estímulo do GnRH, com aumento mais marcante na metade do ciclo; é responsável pelo desenvolvimento do folículo préantral e secreção dos estrogênios pelas células da granulosa. O folículo inicia a produção do estrogênio por meio da intervenção do FSH nas células da granulosa e do LH nas células da teca interna. Na verdade, os estrogênios são produzidos na granulosa por meio de precursores androgênicos elaborados nas células da teca. O LH, liberado em pequena quantidade desde o início do ciclo, apresenta elevação subitânea em torno do 13o dia, causada por pico na produção do estradiol ovariano (feedback positivo) (Figura 1.16). O pico do estradiol ocorre aproximadamente 24 h antes do pico do LH, que, por sua vez, precede a ovulação em 24 h. Os estrogênios voltam a ter pequena elevação na segunda fase do ciclo. A progesterona, que, no início do ciclo, apresenta níveis muito baixos, tem sua expressão maior logo após a ovulação, produzida pelo corpo lúteo. Quando os níveis desses hormônios esteroides (estrogênios e progesterona) estão altos, ocorre feedback negativo com o hipotálamo, que suprime a liberação do GnRH, levando à queda da produção hipofisária de LH e de FSH no final do ciclo e à consequente diminuição da produção hormonal do corpo lúteo.
■ Ciclo menstrual As alterações cíclicas que ocorrem no endométrio constituem o ciclo uterino, comumente referido como o ciclo menstrual, porque é a menstruação o fenômeno mais conspícuo. A parede uterina consta de três camadas (Figura 1.17 A): • Uma serosa • Uma espessa porção de músculo liso – o miométrio • Uma estrutura interna – o endométrio. Durante a fase secretória do ciclo menstrual, há também três camadas no endométrio (Figura 1.17 B e C): ○ Camada compacta, fina, superficial, formada por células do estroma, densamente arranjadas em torno das porções vizinhas às glândulas endometriais ○ Camada esponjosa, espessa, edemaciada, contendo glândulas dilatadas e tortuosas ○ Camada basal, fina, que não apresenta edema ou hipertrofia e contém as porções distais das glândulas.
A camada basal tem sua própria vascularização e não se destaca na menstruação. A compacta e a esponjosa, ao contrário, desprendem-se durante o catamênio ou após o parto, e, em razão disso, constituem, conjuntamente, a camada funcional.
Figura 1.16 ■ A ovulação é precedida pelo pico de LH 24 h antes. (id., ibid.)
Figura 1.17 ■ A. Secção frontal do útero mostrando as três camadas: serosa, miométrio e endométrio. B. Pormenores da área delimitada em A. C. Mesmo esquema sob outra interpretação. (id. ibid.)
Os hormônios ovarianos causam alterações cíclicas nas estruturas do aparelho genital, notadamente no endométrio. O ciclo menstrual pode ser dividido em 4 fases (Figura 1.14):
Fase menstrual: o 1o dia da menstruação é contado como o início do ciclo. A camada • funcional do endométrio descama-se e é expelida durante o sangramento, que normalmente ocorre a cada 28 dias e dura de 3 a 5 dias • Fase proliferativa ou folicular: os estrogênios determinam a recuperação do endométrio, o crescimento glandular e a multiplicação das células do estroma • Fase secretória ou progestacional: a progesterona induz o entortilhamento das glândulas, que passam a segregar em abundância, e o edema do estroma • Fase isquêmica ou pré-menstrual: se o óvulo não é fertilizado, o corpo lúteo degenera, os efeitos progestacionais declinam e surgem alterações vasculares acentuadas que ocasionam a isquemia da camada funcional. À menstruação, segue-se novo ciclo uterino. Antes de completar-se a fase menstrual, o FSH induz o desenvolvimento de outro grupo de folículos, iniciando mais um ciclo ovariano, com os estrogênios recomeçando a exercer os seus efeitos no endométrio. Em caso de gravidez, o ciclo menstrual não se completa, mas se continua com o ciclo gravídico. Finalizada a gestação, realizado o parto e completada a involução puerperal, os ciclos ovariano e uterino ressurgem, após intervalo variável. Após os 40 anos de idade, os ciclos sexuais ainda se sucedem nitidamente, embora muitos deles não mais ovulatórios, e, entre 48 e 55 anos, encerra-se definitivamente a vida reprodutora da mulher, fato que se exibe ostensivamente pela cessação da função menstrual (menopausa).
■ Fecundação Na sequência de fenômenos que se originam das gametogêneses masculina e feminina e culminam na fecundação, destacam-se: • Inseminação: deposição do sêmen na vagina. Os gametas masculinos assim liberados já alcançaram plena maturidade, são espermatozoides. As divisões de maturação, redutoras, transformaram os espermatogônios, células diploides, 44 + XY, em espermatócitos, células haploides, 22 + X ou 22 + Y (Figura 1.18). Os espermatócitos evoluem para espermátides. Há, portanto, espermatozoides de dois tipos. A espermatogênese dá-se, em média, no prazo de 75 dias. Em outras palavras, qualquer que seja a idade do homem, seus espermatozoides têm sempre 2 meses e meio • Ascensão dos espermatozoides pelo aparelho genital feminino: cerca de 300 milhões de espermatozoides são depositados no fundo de saco posterior da vagina, durante o coito, próximo ao orifício externo do útero. Impulsionados por movimentos das próprias caudas, transitam através do canal cervical, embora o percurso pelo útero e pelas tubas se faça principalmente pela contração da musculatura desses órgãos. Espermatozoides podem ser encontrados no muco cervical 90 s depois da ejaculação e no local da fecundação, a ampola tubária (Figura 1.17 A), 5 min após a inseminação. Acredita-se que os primeiros
espermatozoides a penetrarem na tuba não sejam capazes de fecundar, papel desempenhado por aqueles que guardados no muco cervical seriam liberados posteriormente. Em consequência da ação letal da secreção vaginal, ácida, e da insuficiência dos mecanismos de transporte, menos de 200 espermatozoides conseguem chegar às tubas. Na ovulação, as oogônias, diploides 44 + XX, durante a vida fetal, proliferam por mitoses reducionais e passam a oócitos I (Figura 1.18), que, rodeados por camada de células da granulosa, constituem os folículos primários. Ao contrário do que se dá no homem, a oogênese é um processo extremamente lento. As oogônias são formadas exclusivamente durante a vida intrauterina; no feto, os oócitos I iniciam a divisão de maturação antes do nascimento, mas não se completa a prófase, que ocorrerá somente após a puberdade, precedendo imediatamente a ovulação, que é singular, em cada ciclo. Assim, o óvulo de uma adolescente de 14 anos tem essa idade ou um pouco mais, uma vez que, ao nascer, as células germinativas contavam já alguns meses; pela mesma razão, o óvulo de uma mulher de 40 anos tem 40 anos ou ligeiramente mais. Justifica-se a afirmação de que o homem, jovem ou idoso, tem espermatozoides invariavelmente jovens, enquanto a mulher, independentemente da fase de sua vida, gera óvulos “velhos”. O fenômeno tem consequências clínicas. Em virtude do amadurecimento do folículo, o oócito I adquire membrana – zona pelúcida –, e, como foi referido, precedendo, de perto, a ovulação, completa-se a primeira divisão de maturação ou meiose. O oócito II recebe todo o citoplasma e o primeiro corpúsculo polar quase nada, acabando, mais tarde, por se degenerar (Figura 1.18). O núcleo do oócito II inicia a segunda divisão de maturação, que progride, todavia, só até a metáfase, em que a divisão é paralisada. Se a fertilização ocorre, a segunda divisão de maturação se completa e novamente o óvulo maduro recebe a maioria do citoplasma, e a outra célula, o segundo corpúsculo polar, pequena, logo se desintegra.
Figura 1.18 ■ Espermatogênese e oogênese. O complemento cromossômico está indicado a cada estágio. Após divisões de maturação, o número diploide de cromossomos (46) é reduzido para o número haploide (23). Enquanto quatro espermatozoides se formam apenas de um espermatócito, um só óvulo resulta de um oócito. (id., ibid.)
O óvulo, liberado no momento da ovulação, está cercado pela zona pelúcida e pela camada de células da granulosa nomeada coroa radiada. A respeito dos cromossomos sexuais, ao contrário dos espermatozoides, há apenas um tipo X, de tal modo que os óvulos são sempre 22 + X.
Em geral, cerca de 1 a 2 milhões de oócitos estão presentes nos ovários de recém-nascida, mas a maioria regride durante a infância, permanecendo à puberdade apenas 300 mil. Desses, somente 1 em cada mil alcança plena maturidade e é expulso durante a ovulação. Todos os oócitos restantes degeneram, à medida que os folículos que os contêm tornam-se atrésicos, isto é, regridem. ▶ Transporte do óvulo. Após a ovulação, o óvulo está cercado pelas células da granulosa que aderem à superfície do ovário até serem finalmente captadas pelas fímbrias da tuba uterina (Figura 1.15 A). As células da granulosa proporcionam contato indispensável para que os cílios, existentes em determinadas células do epitélio das fímbrias, impulsionem o óvulo para dentro do infundíbulo da tuba. O transporte ulterior do óvulo para a ampola (Figura 1.17 A) ocorre em minutos ou horas, e o fator responsável por isso é a contração da musculatura tubária, cabendo ao aparelho ciliar o papel menor. ▶ Vitalidade das células germinativas. Os espermatozoides parecem reter a capacidade de fertilização por 24 a 48 h e o óvulo apenas por 12 a 24 h. ▶ Capacitação e reação acrossômica. Antes de o espermatozoide fecundar o óvulo, deve sofrer alteração fisiológica nomeada capacitação (perda da camada protetora) e outra estrutural, a reação acrossômica (Figura 1.19). A reação acrossômica é caracterizada pelo aparecimento de pequena perfuração na parede do acrossoma por onde saem as enzimas que digerem a coroa radiada e a zona pelúcida, favorecendo o percurso do espermatozoide no interior do óvulo. Fenômenos importantes em diversas espécies animais parecem ter pouca relevância no homem. Fecundação (fertilização ou concepção) é a fusão dos gametas, células haploides, restabelecendo o número diploide de cromossomos e constituindo o ovo ou zigoto (Figura 1.20). A fusão de espermatozoide 22 + Y com óvulo, esse sempre 22 + X, resulta em um ovo 44 + XY, cuja evolução natural será a formação de indivíduo masculino. Se o espermatozoide for 22 + X, o zigoto será 44 + XX, e o indivíduo, feminino. Os principais tempos de fecundação são: • O espermatozoide atravessa a coroa radiada e penetra na zona pelúcida, auxiliado pela ação das enzimas liberadas no acrossoma (Figura 1.19 B). Embora diversos espermatozoides possam atravessar a zona pelúcida, em condições normais apenas um atinge o óvulo e o fertiliza
Figura 1.19 ■ Esquema ilustrativo da reação acrossômica e da penetração do espermatozoide no óvulo. O detalhe ampliado da área delimitada em A vê-se em B, em que: 1, espermatozoide após a capacitação; 2, espermatozoide durante a reação acrossômica; 3, espermatozoide percorrendo seu caminho pela ação de enzimas liberadas pelo acrossoma; 4, fusão do espermatozoide com o óvulo. (id., ibid.)
• A cabeça do espermatozoide liga-se à superfície do óvulo (Figura 1.19 B); a união da membrana celular é de tal ordem que as duas células ficam conjugadas dentro de envoltório único • A célula sexual feminina reage ao contato do espermatozoide de duas maneiras: (1) ocorrem alterações na zona pelúcida e na membrana celular que inibem a entrada de outros espermatozoides (liberação de grânulos pelo citoplasma ovular); (2) o oócito II completa a segunda divisão de maturação e expele o segundo corpúsculo polar (Figura 1.20 B). O óvulo está, então, maduro, e seu núcleo é conhecido como pronúcleo feminino (Figura 1.20 B) • Uma vez no interior do citoplasma ovular, o espermatozoide rapidamente perde a cauda e sua cabeça aumenta de tamanho para formar o pronúcleo masculino (Figura 1.20 C). O oócito contendo dois pronúcleos haploides é chamado de oótide • Os pronúcleos feminino e masculino se aproximam no centro do óvulo, onde ficam em contato, perdem as membranas nucleares e fusionam seus cromossomos (Figura 1.20 D), constituindo o ovo (Figura 1.20 E).
Figura 1.20 ■ Esquema ilustrativo da fecundação. A. Oócito II prestes a ser fecundado (são vistos apenas 6 dos 23 pares cromossômicos). B. A coroa radiada desapareceu; um dos espermatozoides penetrou no óvulo e a segunda divisão de maturação ocorreu. C. A cabeça do espermatozoide constitui o pronúcleo masculino. D. Os pronúcleos se fundem. E. Formação do ovo que se prepara para a segmentação. (id., ibid.)
■ Pontos-chave O sistema genital feminino é dividido em genitália externa e interna. A genitália externa ou vulva pode ser estudada em conjunto com o períneo, constituindo a região vulvoperineal. A genitália externa feminina inclui a vulva e as seguintes estruturas: monte de vênus, grandes e pequenos lábios, fenda vulvar (vestíbulo, meato uretral, introito vaginal, hímen), órgãos eréteis (clitóris e órgãos bulbovestibulares) e glândulas acessórias (de Skene e de Bartholin). O períneo é o conjunto de partes moles (músculos e aponeuroses) que fecha inferiormente a cavidade pelviana e é atravessado pelo reto, vagina e uretra. A genitália interna feminina se compõe essencialmente da vagina, útero, tubas uterinas e ovários. O sistema genital masculino é composto por: testículos, bolsas escrotais, vias espermáticas, pênis, próstata e glândulas de Cowper. Tendo início na puberdade e continuando pelos anos reprodutores até a menopausa, a mulher apresenta os ciclos sexuais que envolvem especialmente o sistema hipotálamo-hipofisário, ovário, útero e outros órgãos de participação menor. O sistema hipotálamo-hipofisário exerce o controle neuroendócrino da ovulação e se conecta por feedback com os ovários. O hormônio liberador da gonadotrofina (GnRH) é produzido pelo hipotálamo e, através do sistema porta-hipofisário, estimula a adeno-hipófise a secretar
o hormônio foliculestimulante (FSH) e o hormônio luteinizante (LH). O ciclo ovariano corresponde ao desenvolvimento dos folículos que produzem estrogênios sob o estímulo do FSH, ovulação (pico do LH) e formação do corpo lúteo, com secreção de progesterona. O ciclo menstrual corresponde às alterações cíclicas que ocorrem no endométrio e pode ser dividido em quatro fases: menstrual, proliferativa, secretória e pré-menstrual. A fecundação (fertilização ou concepção) é a fusão dos gametas (óvulo e espermatozoide), células haploides, restabelecendo o número diploide de cromossomos e constituindo o ovo ou zigoto.
_________ *Os valores médios de progesterona em plena fase luteínica chegam a 7 ng/mℓ, e quantidades de 10 a 12 ng/mℓ são, com frequência, encontradas. Nível de progesterona no plasma superior a 5 ng/mℓ é indício quase certo de ovulação.
■ Primeira semana ■ Segunda semana. Formação do disco embrionário didérmico (bilaminar) ■ Terceira semana. Gastrulação. Formação do disco embrionário tridérmico (trilaminar) ■ Quarta a oitava semana. Período embrionário ■ Nona semana ao nascimento. Período fetal ■ Alguns aspectos da fisiologia fetal
O desenvolvimento inicia-se com a fecundação, quando o espermatozoide se funde com o óvulo para dar origem ao ovo, célula que representa o surgimento do novo ser. Os 23 estágios Carnegie do desenvolvimento embrionário humano refletem as alterações na aparência externa do embrião durante as primeiras 8 semanas do desenvolvimento (Figura 2.1). Clínicos e embriologistas continuam a diferir nas suas marcações de tempo: para o obstetra a gravidez se inicia no último período menstrual e para o embriologista, 2 semanas após, ao tempo de fertilização. Apenas neste capítulo a idade gestacional, a menos se especifique ao contrário, é contada a partir da fertilização.
■ Primeira semana À medida que o ovo passa pela tuba uterina, em direção ao útero, sofre rápidas divisões mitóticas – segmentação – responsáveis pela formação de blastômeros (Figuras 2.2 e 2.3). No 3o dia após a fertilização, o ovo com 16 ou mais blastômeros é denominado mórula e penetra na cavidade uterina (Figura 2.2). No 4o dia, uma cavidade se forma na mórula, que se converte em blástula ou blastocisto. O blastocisto é assim constituído (Figura 2.3): (1) um grupo de células internas, embrioblasto, em um dos polos do ovo (nó embrionário) que dará origem ao embrião; (2) a cavidade blastocística ou blastocele; (3) uma camada de células externas, o trofoblasto, que engloba a blastocele e o embrioblasto. No 4o e no 5o dia, o blastocisto está livre na cavidade do útero (Figura 2.2). No 5o dia, a zona pelúcida se degenera e acaba por desaparecer. As células do trofoblasto começam a invadir o epitélio do endométrio no 7o dia, quando se inicia a sua diferenciação em duas camadas: uma interna, o citotrofoblasto ou células de Langhans, e outra externa, o sinciciotrofoblasto, formado por massas protoplasmáticas multinucleadas, nas quais faltam os limites celulares. Elas penetram no epitélio do endométrio e invadem-lhe o estroma. Concomitantemente com a implantação do blastocisto, o embrioblasto inicia a formação do endoderma embrionário, na sua superfície ventral, constituindo-se na primeira das três camadas germinativas primárias do embrião. No fim da 1a semana, o ovo está superficialmente implantado no endométrio.
Figura 2.1 ■ Estágios Carnegie representativos do desenvolvimento humano nas suas primeiras 8 semanas (a barra branca é escala de 5 mm, e todos os embriões estão em proporção). (Adaptada de Hill, 2007.)
Figura 2.2 ■ Postura do oócito (ovulação), fertilização, transporte e divisão em blastômeros.
Figura 2.3 ■ Estágios que ilustram a clivagem do zigoto e a formação do embrião. O estágio da mórula se inicia quando o ovo tem 12 a 16 células e termina quando se forma o blastocisto. A zona pelúcida desaparece no estágio de blastocisto tardio (5 dias). A clivagem do zigoto e a formação da mórula ocorrem quando o zigoto em divisão passa pela tuba uterina. A formação do blastocisto se origina no útero.
■ Segunda semana. Formação do disco embrionário didérmico (bilaminar) No trofoblasto ocorrem rápidas transformações: • Organizam-se, definitivamente, duas camadas, bem diferenciadas: o citotrofoblasto e o sinciciotrofoblasto (Figura 2.4) • Lacunas se desenvolvem no sinciciotrofoblasto e, logo, fusionam-se para formar a rede lacunar (Figuras 2.5 e 2.6) • O trofoblasto erode os sinusoides maternos (Figura 2.6) • O sangue flui para o interior da rede lacunar e forma a circulação uteroplacentária primitiva (Figura 2.6) • As vilosidades primárias originam-se na face externa do saco coriônico (Figura 2.7) • A implantação se completa, e o ovo está totalmente mergulhado no endométrio. As várias alterações endometriais resultantes da adaptação dos tecidos maternos à implantação são conhecidas como reação decidual. Concomitantemente, o mesoderma extraembrionário origina-se da superfície interna do trofoblasto, reduzindo o tamanho relativo da cavidade blastocística, que passa a se chamar vesícula vitelina primitiva (Figura 2.5). Quando se forma o celoma extraembrionário (Figura 2.6), proveniente de espaços criados no mesoderma extraembrionário, a vesícula vitelina
primitiva torna-se menor e origina a vesícula vitelina secundária, constituindo o restante o saco vitelino (Figura 2.8). O celoma extraembrionário se converte na cavidade coriônica.
Figura 2.4 ■ Ovo de 8 dias parcialmente implantado no endométrio.
Figura 2.5 ■ Ovo de 9 dias.
Figura 2.6 ■ Ovo de 12 dias completamente implantado. Note que o epitélio endometrial está refeito e algumas glândulas e sinusoides comunicam-se com a rede lacunar.
Figura 2.7 ■ Desenvolvimento das vilosidades primárias. A. Detalhe ampliado da área delimitada em B, mostrando a parede do saco coriônico com as vilosidades primárias. B. Ovo de 14 dias. C. Secção transversal de uma vilosidade primária.
À medida que essas alterações ocorrem: • Aparece um pequeno espaço no epiblasto, que é o primórdio da cavidade amniótica (Figura 2.4). Logo os amnioblastos, formadores do âmnio, separam-se do epiblasto e revestem a cavidade amniótica • O embrioblasto se diferencia no disco bilaminar, constituído pelo epiblasto (ectoderma embrionário), relacionado com a cavidade amniótica, e o hipoblasto (endoderma embrionário), adjacente à cavidade exocelômica (Figuras 2.4 e 2.5) • O hipoblasto forma o teto da cavidade exocelômica e é contínuo com a delgada membrana exocelômica. Essa membrana, junto com o hipoblasto, forma a vesícula vitelina primitiva (Figura 2.5) • As células do endoderma (hipoblasto) da vesícula vitelina formam camada de tecido conjuntivo, o mesoderma extraembrionário (Figura 2.5), que circunda a cavidade amniótica e a vesícula vitelina • No interior do mesoderma extraembrionário surgem espaços celômicos extraembrionários isolados, que rapidamente se fundem, formando uma grande cavidade isolada, o celoma extraembrionário (Figura 2.6). Essa cavidade, cheia de fluido, envolve a cavidade amniótica e a vesícula vitelina, exceto onde eles estão aderidos ao cório pelo pedículo embrionário • Com a formação do celoma extraembrionário, a vesícula vitelina primitiva diminui de tamanho, e se forma uma pequena vesícula vitelina secundária (Figura 2.8). A vesícula vitelina não contém vitelo; entretanto, ela exerce importantes funções; ela poderá desempenhar papel na
transferência seletiva de nutrientes para o embrião • O mesoderma somático extraembrionário e as duas camadas do trofoblasto (cito e sincício) formam o cório (Figura 2.7). O cório constitui a parede da vesícula amniótica, dentro do qual o embrião e as vesículas vitelina e amniótica estão suspensos pelo pedículo. O celoma extraembrionário é, então, chamado de cavidade coriônica (na gravidez, e a ultrassonografia, denominado saco gestacional) • O embrião de 14 dias ainda apresenta a forma de um disco bilaminar; nas células hipoblásticas, em uma área localizada, forma a placa precordal (Figura 2.8), futuro local da boca e importante organizador da região da cabeça.
■ Terceira semana. Gastrulação. Formação do disco embrionário tridérmico (trilaminar) É um período de rápido desenvolvimento, coincidindo com a época da primeira menstruação frustrada. A parada do sangramento menstrual é o primeiro sinal de gravidez, embora possam ocorrer, eventualmente, perdas hemorrágicas provenientes do local de implantação. As alterações conspícuas, referidas sucintamente na 3a semana, são: • Aparecimento do mesoderma intraembrionário, a 3a camada germinativa, a partir de células mesoblásticas originárias do epiblasto (Figura 2.9). O mesênquima forma os tecidos de sustentação do embrião, tais como a maior parte dos tecidos conjuntivos do corpo e a trama do tecido conjuntivo das glândulas. Células do epiblasto deslocam o hipoblasto, formando o endoderma embrionário, no teto da vesícula vitelina. As células que permanecem no epiblasto formam o ectoderma embrionário. Em resumo, por meio do processo de gastrulação, as células do epiblasto dão origem a todas as três camadas germinativas • Células mesenquimais provenientes do nó primitivo da linha primitiva situada no epiblasto formam o notocórdio, eixo principal do embrião em torno do qual se forma o esqueleto axial • Formação do tubo neural, primórdio do sistema nervoso central a partir de um espessamento do ectoderma. Concomitantemente, células neuroectodérmicas migram para formar a crista neural, origem dos gânglios sensoriais dos nervos cranianos e espinais • Constituição dos somitos, originados do mesoderma paraxial intraembrionário. Os somitos são agregados de células mesenquimais, a partir dos quais as células migram e dão origem às vértebras, às costelas e à musculatura axial. Durante a 3a semana, o número de somitos constitui indicador da idade do embrião
Figura 2.8 ■ Ovo de 14 dias. Formação da vesícula vitelina secundária.
• Surgimento do celoma intraembrionário, que aparece como espaços isolados no mesoderma lateral e no cardiogênico. As vesículas celômicas coalescem subsequentemente, formando uma cavidade única, em forma de ferradura, que dará origem às futuras cavidades do organismo: pericárdica (que contém o coração), pleural (os pulmões) e peritoneal (as vísceras abaixo do diafragma) • Origem dos vasos sanguíneos e do sangue. Os vasos sanguíneos aparecem primeiro no mesoderma extraembrionário da vesícula vitelina, do pedículo embrionário e do cório; os vasos embrionários só se desenvolvem 2 dias mais tarde. Ilhotas sanguíneas constituem-se, originalmente, de agregados de células mesenquimais, chamadas hemangioblastos. Espaços organizam-se dentro dessas ilhotas, as quais, cedo, tornam-se revestidas pelo endotélio e se unem com outros espaços para formar o sistema cardiovascular primitivo. De maneira similar, no fim da 3a semana, a partir de células mesenquimais na área cardiogênica, surgem os tubos cardíacos, que logo se fundem em estrutura única – o coração primitivo –, ligando os vasos sanguíneos do embrião aos extraembrionários (Figura 2.10). As células sanguíneas primitivas são derivadas, principalmente, dos hemangioblastos agrupados na vesícula vitelina e na alantoide (Figura 2.10). A formação do sangue, no embrião, somente se inicia no 2o mês, e ocorre no fígado, mais tarde no baço, na medula óssea e nos gânglios linfáticos. A circulação sanguínea tem início no fim da 3a semana, sendo, por conseguinte, o sistema cardiovascular o primeiro do organismo a alcançar estado funcional
Figura 2.9 ■ O corte transversal do disco embrionário mostra a sua transformação de bilaminar (A) para trilaminar (C); e a migração das células do epiblasto (B).
Figura 2.10 ■ Circulações vitelina e alantocorial em embrião de 21 dias.
• Desenvolvimento posterior das vilosidades (Figura 2.11). As vilosidades primárias tornam-se secundárias quando adquirem mesoderma no seu interior. Antes do fim da 3a semana, capilares se desenvolvem no interior delas, que se transformam, então, em terciárias. As células citotrofoblásticas, na parte distal das vilosidades, proliferam e formam colunas que atravessam o sinciciotrofoblasto e se fixam ao estroma endometrial (vilosidades ancorantes). Essas células citotrofoblásticas juntam-se umas às outras para compor o manto citotrofoblástico, apoiando firmemente o saco coriônico ao endométrio. O rápido desenvolvimento das vilosidades durante a 3a semana aumenta acentuadamente a superfície do cório e favorece as trocas maternoembrionárias.
■ Quarta a oitava semana. Período embrionário Durante essas 5 semanas, todos os principais órgãos e sistemas do corpo são formados a partir das três camadas germinativas. Logo ao se iniciar a 4a semana, curvaturas longitudinais (cefálica e caudal) e laterais (direita
e esquerda) convertem o disco embrionário, achatado, em um embrião cilíndrico, em forma de “C”. A formação das curvaturas cefálica, caudal e laterais é sequência contínua de eventos que termina por circunscrever o embrião na vesícula vitelina. Parte dela é incorporada ao embrião durante a curvatura, dando origem ao intestino primitivo, e o restante constitui o remanescente da vesícula vitelina secundária. Das curvaturas laterais emanam as paredes laterais e ventral do corpo. A conexão do intestino com a vesícula vitelina fica reduzida ao pedículo ou canal vitelino (Figura 2.12).
Figura 2.11 ■ Desenvolvimento posterior das vilosidades coriônicas e da placenta. A. Embrião de 17 dias completamente implantado no endométrio. B. Secção de uma vilosidade secundária. C. Embrião de 21 dias. D. Secção de uma vilosidade terciária.
O conjunto constituído pelo pedículo embrionário primitivo, com os vasos sanguíneos e a alantoide, é o pedículo vitelino, que, revestido pelo âmnio, forma o cordão umbilical (Figura 2.10). A curvatura cefálica determina que o coração situe-se ventralmente e o cérebro torne-se a parte mais cranial do embrião. A curvatura caudal obriga o pedículo do embrião, então chamado umbilical, a mover-se para a região ventral (Figura 2.12). Os três folhetos germinativos primários se diferenciam nos vários tecidos e órgãos (Figura
2.13). No fim da 7a semana quase todos os principais sistemas do organismo estão formados. A ultrassonografia pode exibir saco gestacional desde 5 semanas (Figura 2.14), e a técnica tridimensional impressiona pela imagem do concepto (idade menstrual).
Figura 2.12 ■ Curvaturas do embrião (4 semanas). A1. Visão dorsal de embrião de 22 dias. A continuidade dos celomas intra e extraembrionário é ilustrada pela retirada de porção do ecto e do mesoderma embrionários. B1, C1 e D1. Aspectos laterais do embrião de 24, 26 e 28 dias, respectivamente. A2-D2. Secções longitudinais dos planos mostrados em A1. A3-D3. Secções transversais dos níveis indicados em A1-D1.
Figura 2.13 ■ Origem e derivados das três camadas germinativas primárias.
Figura 2.14 ■ A. Gestação de 5 semanas (idade menstrual). SG, saco gestacional. B. Embriofetoscopia virtual – ultrassonografia 3D. Gestação normal de 12 semanas (idade menstrual). (Adaptada de Montenegro, C.A.B. & Rezende Filho, J. Ultrassom Tridimensional. Atlas Comentado. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001.)
A morfologia externa do embrião está bastante influenciada pela formação do cérebro, dos membros, das orelhas, do nariz e dos olhos. À medida que essas estruturas se desenvolvem, elas
afetam a imagem do concepto, que vai adquirindo figura humana (Figura 2.15). Como o início de todas as estruturas essenciais ocorre durante o período embrionário, as 4 semanas aludidas constituem a fase crítica do desenvolvimento, na qual podem surgir as diversas malformações congênitas, quando exposto o embrião a agentes teratogênicos (fármacos, infecções, radiações etc.).
Figura 2.15 ■ Embrião de 7 semanas.
■ Nona semana ao nascimento. Período fetal Em torno da 9a semana da gestação, já tendo o embrião aparência humana, inicia-se o período fetal. A organogênese está quase completa, e o desenvolvimento fundamentalmente voltado para o crescimento e a maturação de tecidos e órgãos formados na fase embrionária, uma vez que poucas estruturas novas surgem durante o período fetal (Figura 2.16). Os vários órgãos e tecidos não se desenvolvem com ritmo idêntico, nem alcançam, contemporaneamente, determinado grau de maturação. O feto a termo tem os aparelhos digestivo, respiratório, circulatório e urinário praticamente prontos para a vida extrauterina, enquanto os tecidos nervosos e ósseos permanecem imaturos, e sua diferenciação prossegue por muito tempo após o nascimento. Pode-se destacar os seguintes fatos acerca do período fetal: • 9a a 12a semana: há relativa diminuição do crescimento da cabeça em relação ao corpo (Figura 2.17). A genitália externa de fetos dos sexos masculino e feminino ainda aparece indiferenciada até o fim da 9a semana, e sua forma madura se estabelece apenas na 12a • 13a a 16a semana: crescimento muito rápido, especialmente do corpo. Aparecimento dos centros de ossificação aos raios X, iniciada à 16a semana • 16a a 20a semana: a mãe começa a perceber os movimentos fetais, na realidade originados entre 8 e 12 semanas. Ao início da 20a semana surgem lanugem e cabelos, e a pele está coberta
de verniz caseoso, material constituído pela secreção gordurosa das glândulas sebáceas, e que tem por fim proteger a delicada epiderme fetal.
Figura 2.16 ■ Concepto de 8 semanas ao termo. A idade da gravidez é dada em semanas, a partir da fertilização.
Figura 2.17 ■ Alterações de proporção do corpo durante o período fetal. Todos os estágios estão ilustrados do mesmo tamanho. A idade da gestação é dada em semanas a partir da fertilização.
• Até 22 a 24 semanas, embora todos os órgãos estejam desenvolvidos, o feto é incapaz de existência extrauterina, principalmente pela imaturidade do sistema respiratório. Entretanto, a moderna assistência aos conceptos pré-termo tem aumentado a sobrevivência de produtos de idade gestacional muito pequena, cada dia reduzida com o aprimoramento dos cuidados pediátricos. O tecido adiposo se desenvolve rapidamente durante as 6 a 8 últimas semanas, fase dedicada, principalmente, ao crescimento de tecidos e à preparação dos sistemas envolvidos na transição da vida intrauterina para a extrauterina. No período fetal, o concepto é menos vulnerável aos efeitos teratogênicos, embora possa haver interferência com o desenvolvimento funcional, especialmente do cérebro.
■ Alguns aspectos da fisiologia fetal ■ Respiração* Com 28 semanas, quando o feto tem aproximadamente 1.000 g, os pulmões estão suficientemente desenvolvidos de modo a tornar possível a sobrevida do recém-nascido prétermo. Antes disso, são incapazes de proporcionar trocas gasosas adequadas: a superfície alveolar e a vascularização são insuficientes. O desenvolvimento do aparelho respiratório fetal está caracterizado pelo incremento da área alveolar e do número de capilares que estabelecem contato íntimo com aquelas estruturas. ▶ Síntese da lecitina (surfactante-ativo). O complexo surfactante, segregado pelas células epiteliais tipo II dos alvéolos pulmonares, parece capaz de reduzir a tensão superficial da interface ar-líquido e assim manter o lúmen dos alvéolos, evitando o seu colapso após o nascimento. Cerca de 90% do complexo surfactante estão compostos por fosfolipídios, dos quais a lecitina representa 80% e o fosfatidilglicerol (FG), 10%. A lecitina é sintetizada por duas vias principais: • Via cistidina-difosfocolina (CDF-colina), com formação de lecitina constituída por cadeias de ácidos graxos α-palmítico/β-palmítico • Via fosfatidiletanolamina, com reação de metilação e elaboração de lecitina composta por cadeias de ácidos graxos α-palmítico/β-mirístico. De 22 a 24 semanas até 35 semanas de gestação, a reação de metilação é a principal via de síntese da lecitina. A lecitina formada pela via CDF-colina, embora operante desde 18 semanas, somente torna-se expressiva após 36 semanas. A lecitina α-palmítica/β-palmítica é muito estável e, portanto, mais efetiva como surfactante. O FG funciona como potencializador da ação surfactante da lecitina e aparece em quantidades apreciáveis na gestação de 37,5 semanas, crescendo sua produção até o termo. ▶ Início da respiração. Antes do nascimento, os pulmões estão cheios de líquido (estágio secretório do pulmão fetal). Consequentemente, o arejamento do pulmão não se restringe à insuflação de órgão colapsado. Há a eliminação prévia de fluido por três vias: (1) um terço é expelido pela pressão exercida no tórax durante o parto; (2) outro terço é absorvido pelos capilares pulmonares; e (3) o restante passa para os linfáticos que drenam os brônquios e os vasos sanguíneos. Quando os pulmões se inflam após o parto, forma-se interface ar-líquido na superfície da membrana alveolar. A camada líquida produz força que tende a colapsar os alvéolos. O complexo surfactante reduz a tensão superficial nos alvéolos, mantendo quantidade apreciável de ar residual nos pulmões após a expiração (40% do volume total), prevenindo a atelectasia. O início dos movimentos respiratórios está filiado a estímulos térmicos e táteis, além da asfixia (diminuição do PO2 e do pH e aumento do PCO2) que ocorre no processo natural do
nascimento. Por fim, a adequada respiração no período neonatal depende das alterações circulatórias que surgem no recém-nascido.
■ Circulação Uma vez que o ovo humano não tem mais que pequenas reservas nutritivas, sua sobrevivência depende da precoce nidificação. A nutrição, inicialmente subordinada a materiais existentes nos lumens tubário e uterino, é substituída por outra, condicionada à sua implantação no endométrio. A formação das vilosidades representa aperfeiçoamento, por expandir a superfície de trocas; penetrando nos capilares, inicia-se a nutrição hemotrófica. Ela torna-se, entretanto, insuficiente à crescente massa ovular, pela falta de sistema eficaz de intercâmbio entre as vilosidades e o concepto. Por volta da 3a semana, inicia-se a formação do sistema vascular no embrião, e, simultaneamente, nas vilosidades que já contêm um eixo de tecido mesenquimatoso, diferenciamse elementos que constituirão os capilares. A junção dos vasos do embrião com os do cório dá-se ao completar a 3a semana. Por transitar junto à vesícula, essa circulação é denominada alantocorial e permanece durante toda a vida intrauterina. É a única importante, não representando, todavia, a primeira que se estabelece. Durante a 3a semana formam-se os vasos do embrião, entre os quais as duas aortas primitivas. Na porção cefálica elas constituem os tubos cardíacos que irão se fundir no coração primitivo. Das aortas, originam-se ramos – artérias vitelinas ou onfalomesentéricas – que alcançam, ventralmente, a vesícula vitelina. Pelas veias ocorre o retorno, fechando-se o circuito da circulação vitelina, que é diminuta e fugaz, traduzindo somente vestígio filogenético. Na Figura 2.10 estão representadas as duas circulações, tendo-se, para maior clareza, exagerado a importância da vitelina. À medida que a primitiva circulação regride, formam-se, na porção caudal das aortas, as artérias alantoide. Seguindo a orientação da alantoide (Figura 2.10), essas artérias alcançam os vasos que no cório foram, simultaneamente, diferenciando-se. Por veias homônimas das artérias, dá-se o retorno. Há, nessa fase do ovo, três circulações: uma própria do embrião e duas extraembrionárias (circulações vitelina e alantocorial). Com a regressão de um dos circuitos, permanecem dois e, somente na vida neonatal, um. No concepto mais desenvolvido, os vasos alantocoriais passam a ser nomeados vasos umbilicais, e a circulação alantocorial irá denominar-se, mais adequadamente, circulação fetoplacentária. As artérias vitelinas constituirão, fundidas, a artéria mesentérica superior, e as veias, a veia hepática. As artérias umbilicais, originando-se de porção da aorta que não vem a se fundir – artérias ilíacas primitivas – continuam duplas, muito calibrosas na vida fetal, atrofiadas na extrauterina, em que se reconhecem como cordões fibrosos. As veias umbilicais, ao contrário das artérias, também se fundem. A Tabela 2.1 indica, de modo esquemático, as fases da nutrição do ovo.
▶ Circulação fetal (Figura 2.18). A veia umbilical transporta sangue rico em oxigênio e nutrientes provenientes da placenta, alcançando o fígado fetal. Assim, o sangue da veia umbilical é distribuído via seio portal para o fígado (55% para o lobo esquerdo, 20% para o direito) e via ducto venoso em direção ao coração (25% do fluxo). Assim, o ducto venoso age como o primeiro shunt que determina a proporção do sangue umbilical que é direcionado para o coração, por mecanismo ainda indefinido.
Tabela 2.1 ■ Fases da nutrição do concepto. Idade (semanas)
Condições morfológicas
Fonte do material nutritivo
1a semana
Ovo livre na tuba uterina e na cavidade uterina
O existente nos lumens tubário e uterino
2a semana
Ovo recém-nidificado, inicialmente sem vilosidades e depois com vilosidades avasculares
Muco das glândulas endometriais. A penetração dos capilares inicia a nutrição hemotrófica
3a semana
Circulação vitelina, fugaz e sem importância
Reservas da vesícula vitelina
Circulação alantocorial, depois denominada fetoplacentária (nutrição transplacentária)
Sangue materno
Nutrição transamniótica: através do âmnio placentário
Líquido amniótico
a
Após a 4 semana
Na verdade, até 10 semanas ainda não há fluxo de sangue ostensivo no espaço interviloso, e a placenta não pode ser considerada hemocorial nessa fase.
O gradiente de pressão venosa e o pequeno diâmetro relativo elevam a velocidade sanguínea através do ducto venoso diversas vezes. Essa corrente sanguínea acelerada se junta à veia cava e três veias hepáticas em uma estrutura afunilada subdiafragmática, o vestíbulo venoso. Assim, o átrio direito recebe sangue com elevado O2 (e nutrientes) do ducto venoso e da veia hepática esquerda, e sangue menos saturado proveniente da veia cava, das veias hepáticas remanescentes e do seio coronário. Diferenças na direção e na velocidade separam o sangue de tal modo que o mais bem oxigenado, do ducto venoso, tende a se situar ao longo da posição média da veia cava inferior. Esse sangue é preferencialmente dirigido pela crista dividens, através do forame oval (buraco de Botallo) para o átrio esquerdo, o ventrículo esquerdo, a aorta ascendente, suprindo os órgãos predutais, como o coração e o cérebro.
Figura 2.18 ■ Circulação fetal. Note, pela mudança de cor, as diferentes saturações de oxigênio. As setas indicam a direção do fluxo. No alto, à esquerda, mostra-se como a crista dividens separa o sangue proveniente da veia cava inferior em duas correntes. A maior passa através do forame oval diretamente para a aurícula esquerda e a menor permanece na aurícula direita.
Os outros contribuintes do sistema venoso de retorno ao coração, que carreiam sangue com menos oxigênio e nutrientes, fluem através do átrio direito, do ventrículo direito e da artéria pulmonar, com cerca de 90% do fluxo dirigido ao ductus arteriosus e à aorta descendente em razão da resistência vascular pulmonar elevada.
Em acréscimo ao fluxo sanguíneo proveniente do coração direito via ductus arteriosus, o sangue na aorta descendente tem componente do coração esquerdo via aorta predutal. Esse sangue misturado supre o tronco cardíaco e as artérias mesentéricas e renais, que são os reguladores primários do suprimento de sangue a fígado, baço, intestinos e rins. As artérias hepáticas (em paralelo com o sangue do seio portal) irrigam o fígado. As artérias ilíacas comuns, que nutrem os órgãos pélvicos e as extremidades inferiores, direcionam sangue à placenta via artérias umbilicais. A circulação fetal é capaz de ajustes regulatórios dinâmicos. Na hipoxia, alterações vasculares divergem grande proporção de sangue da veia umbilical através do ducto venoso, o que ajuda a manter o suprimento de oxigênio para o coração, o cérebro e outros órgãos a expensas do lobo hepático esquerdo. O inverso é verdadeiro quando ocorre má nutrição materna. Nessas condições, uma proporção elevada de sangue da veia umbilical é dirigida para os sinusoides hepáticos em detrimento da circulação central. ▶ Circulação neonatal (Figura 2.19). Modificações circulatórias importantes ocorrem ao nascimento, quando cessa a circulação fetoplacentária e os pulmões tornam-se funcionantes. O forame oval, o ductus arteriosus, o ductus venosus e os vasos umbilicais se tornam inoperantes. A inexistência da circulação placentária determina imediata queda na pressão sanguínea da veia cava inferior e do átrio direito. A ventilação pulmonar também participa ao provocar redução drástica na resistência vascular do órgão, com o consequente aumento do fluxo sanguíneo. Como resultado da maior chegada de sangue aos pulmões, a pressão no átrio esquerdo ultrapassa a do átrio direito, o que determina o fechamento da válvula do forame oval. O ductus arteriosus, que tem espessa parede muscular lisa, assim como os vasos umbilicais, contrai-se ao nascimento, embora possa subsistir pequena derivação de sangue da aorta para a artéria pulmonar, por alguns poucos dias. A obturação do ductus arteriosus parece estar mediada pela bradicinina, substância liberada pelos pulmões durante sua insuflação inicial. A ação da bradicinina depende da grande concentração de oxigênio existente no sangue aórtico, consequência da ventilação pulmonar. Da mesma maneira, as artérias umbilicais se contraem após o parto, impedindo perdas sanguíneas no recém-nascido. Se o cordão não for laqueado, apenas por um minuto ou mais, o fluxo de sangue persistirá através da veia umbilical. O fechamento do forame oval e dos vasos fetais é, inicialmente, alteração funcional, seguido de, mais tarde, oclusão anatômica pela proliferação de tecido endotelial e fibroso. As estruturas adultas derivadas são: • Ligamento redondo, resultante da porção intra-abdominal da veia umbilical • Ligamento venoso proveniente do ductus venosus • A maior parte do segmento abdominal das artérias umbilicais forma os ligamentos umbilicais laterais; porções desses vasos persistem e constituem as artérias vesicais superiores • O ductus arteriosus forma o ligamento arterial; o fechamento anatômico ocorre apenas no final do 3o mês pós-natal
• O forame oval cerra-se ao nascimento, embora a obturação definitiva só se desenvolva ulteriormente, como já citado.
■ Hemoglobina fetal A eritropoese, já mencionada, inicia-se à 3a semana, no mesoderma extraembrionário da vesícula vitelina, do pedículo embrionário e do cório. A formação de sangue no embrião só ocorre no 2o mês, principalmente no fígado. O baço é órgão eritropoético entre o 3o e o 7o mês e, no 5o, a medula óssea começa a sua atividade, tornando-se no 7o a sede principal da elaboração dos glóbulos vermelhos. No início do desenvolvimento, todos os eritrócitos são nucleados. Em torno do 3o mês, entretanto, somente 10% deles retêm seus núcleos, e, no termo, apenas 5 a 8%. Há muito se sabe que o sangue fetal tem maior afinidade pelo oxigênio do que o do adulto. A diferença é em geral atribuída à hemoglobina F (HbF) sintetizada pelo feto, diferente da hemoglobina A (HbA), do adulto. A HbA é composta de duas cadeias polipeptídicas α e duas β, cada uma delas com o seu próprio grupo heme responsável pela combinação reversível com o oxigênio. A HbF tem também duas cadeias α, mas, em vez da β, contém duas γ, com composição de aminoácidos diferente. A despeito da diferença observada na afinidade pelo oxigênio entre as hemoglobinas fetal e adulta, sabe-se que o fenômeno não depende da molécula da hemoglobina em si, mas do meio químico existente no interior da hemácia. A transição da hemoglobina fetal para a adulta in utero inicia-se no 2o trimestre. Antes desse prazo, quase 100% da Hb é do tipo fetal. O porcentual permanece próximo de 90% até as 4 a 5 últimas semanas de gestação, quando há uma queda repentina. Ao nascimento, existem apenas 20% de HbF e a baixa persiste até 12 semanas pós-natais. Em geral, a HbF não é mais encontrada com 2 anos e meio de idade.
Figura 2.19 ■ Circulação neonatal e os derivados adultos.
■ Função urinária Como a placenta depura adequadamente o sangue fetal de catabólitos e mantém (via pulmões e rins maternos) o equilíbrio hídrico, eletrolítico e acidobásico, não há necessidade da função renal para o concepto. Todavia, o rim deve ser capaz de assumi-la adequadamente desde o nascimento. O rim definitivo (metanefro) começa a se desenvolver no início da 5a semana e funciona 2 a 3 semanas mais tarde. A urina fetal é hipotônica em relação ao plasma, pela baixa concentração de eletrólitos; mistura-se com o líquido amniótico e desempenha papel importante no seu volume do
2o trimestre em diante.
Metabolismo do surfactante O determinante crítico da sobrevida extrauterina é a formação da fina barreira ar-sangue no pulmão e a produção do surfactante. Ao tempo do nascimento, a cobertura epitelial da superfície de troca de gases é fina e contínua, com dois tipos de células alveolares: tipos I e II. As células tipo I contêm poucas organelas subcelulares, enquanto as do tipo II são providas de abundantes mitocôndrias, retículo endoplásmico rugoso, aparelho de Golgi e corpos lamelares que acondicionam o surfactante (Figura 2.20). Os lipídios surfactantes são processados no aparelho de Golgi e transportados para os corpos multivesiculares, associando-se às proteínas surfactantes A, B e C. Este complexo é armazenado em estruturas envoltas por membranas denominadas corpos lamelares. O surfactante é secretado por exocitose dos corpos lamelares. A mielina tubular é uma malha frouxa de fosfolipídios e de proteínas surfactantes. O componente ativo de superfície do surfactante é, então, alinhado em camada lipídica única da interface ar-líquido do alvéolo. Com a repetida expansão e a compressão da superfície lipídica, o material é eliminado e depurado pelos macrófagos alveolares ou retomados pelas células tipo II para serem reciclados de volta para os corpos lamelares.
Figura 2.20 ■ Metabolismo do surfactante. O surfactante mantém a expansão do pulmão na expiração, baixando a tensão superficial na interface ar-líquido do alvéolo. Diversos hormônios e fatores do crescimento contribuem para regular o metabolismo dos fosfolipídios pulmonares e o amadurecimento do pulmão. Os glicocorticoides são os mais importantes elementos de estimulação.
■ Pontos-chave O desenvolvimento inicia-se com a fecundação, quando o espermatozoide se funde com o óvulo para dar origem ao ovo ou zigoto. Na 1a semana do desenvolvimento, o zigoto, por segmentação, dá origem a vários blastômeros (mórula) e depois ao blastocisto. O blastocisto é basicamente constituído pelo nó embrionário (que dá origem ao embrião), trofoblasto (que depois se diferencia em cito e sinciciotrofoblasto) e
blastocisto (cavidade). A 2a semana do desenvolvimento compreende a formação do disco embrionário bilaminar: ectoderma (epiblasto) e endoderma (hipoblasto). Da 3a semana até a 8a semana compreende o período embrionário. A 3a semana é caracterizada pelo embrião trilaminar (acrescido do mesoderma intraembrionário) e a 4a semana pelas curvaturas que o convertem de disco embrionário ao feitio cilíndrico, em forma de “C”. O período embrionário constitui fase crítica do desenvolvimento, em que podem surgir as diversas malformações congênitas, quando o embrião é exposto a agentes teratogênicos. Da 9a semana ao nascimento, o desenvolvimento fundamentalmente se volta para o crescimento e a maturação dos tecidos e órgãos formados na fase embrionária. Com 26 a 28 semanas, os pulmões estão significativamente desenvolvidos, de modo a possibilitar a sobrevida do recém-nascido. O complexo surfactante (lecitina), maduro com 36 semanas, é responsável por evitar o colapso dos pulmões após o nascimento. A circulação fetal é diferente da do adulto e está basicamente caracterizada por três shunts: ductus venosus, forame oval, ductus arteriosus. O ductus venosus assegura o sangue mais oxigenado do feto (veia umbilical) para o seu cérebro (centralização). A hemoglobina fetal (HbF) é diferente da do adulto (HbA), no sentido de ser maior a afinidade daquela ao oxigênio. Como a placenta depura adequadamente o sangue fetal de catabólitos e assegura o equilíbrio hídrico, eletrolítico e acidobásico do concepto, a função renal só deve ser plenamente exigida após o nascimento. A urina fetal é hipotônica em relação ao plasma, e tem importante papel no volume do líquido amniótico.
_________ *Texto e iconograifa apoiados, com muitas modificações, na obra de Moore, K.L., Persaud, T.V.N. Embriologia Clínica. 7a ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. *A idade da gravidez está aqui calculada a partir da última menstruação.
■ Decídua. Reação decidual ■ Implantação ■ Placenta ■ Cordão umbilical ■ Sistema amniótico ■ Vesícula vitelina ■ Alantoide
Para o embriologista, quatro são os anexos do embrião e do feto: cório, âmnio, vesícula vitelina e alantoide. Essas estruturas se desenvolvem no ovo, mas não estão relacionadas com a formação do concepto, exceto algumas porções da vesícula vitelina e da alantoide. Têm por função assegurar proteção, nutrição, respiração e excreção do concepto. As confusões resultam da dualidade de conceitos. Deve-se estabelecer a equivalência entre os anexos do embriologista e os do obstetra (Figura 3.1). Para o obstetra, três são os anexos do feto: a placenta, o cordão umbilical e as membranas. Essas, em número de duas, costumam ser consideradas, em geral, como constituídas pelo cório e pelo âmnio, o que é falso: do cório, somente a porção lisa, e do âmnio, apenas o membranoso. Há quem admita a existência de três membranas: o cório liso, o âmnio membranoso e as decíduas capsular e parietal, acoladas. Haveria, portanto, duas membranas ovulares e uma só materna. Na placenta delivrada, o obstetra considera duas membranas ovulares aderidas; das decíduas parietal e capsular, permanecem apenas fragmentos, parcelas diminutas, acoladas. A maior parte, entretanto, mantém-se in utero, auxilia a regeneração do endométrio ou se elimina no sobreparto, e é componente dos lóquios. A placenta é considerada um órgão misto, a um tempo materno e ovular (fetal). Denomina-se placenta ovular (placenta fetal) a porção constituída por elementos do ovo: toda a placa corial e as estruturas arboriformes coriais. É placenta materna a fração que tem origem decidual: decídua basal e septos. Ao completar-se o parto pelo secundamento, elimina-se toda a placenta ovular e a maior parte da materna. A rigor, portanto, a dequitadura não é o descolamento da placenta, mas sua cisão. A quase totalidade se elimina; uma pequena porção fica retida. O parto é, na verdade, a expulsão de todo o ovo e de fração do organismo da gestante. A superfície materna da placenta, como vista no órgão delivrado, é o plano de clivagem, na porção esponjosa da decídua basal. Os elementos deciduais remanescentes destinam-se à reconstituição do endométrio.
■ Decídua. Reação decidual Pela nidificação o ovo penetra completamente na mucosa; nela, como sepultado, desenvolvese. A camada funcional do endométrio, modificado pela gravidez, denomina-se decídua ou caduca, indicando que será eliminada à parturição. A invasão do trofoblasto no leito placentário é precedida pela remodelação decidual (decidualização) dos tecidos maternos, processo que se inicia no endométrio e se estende à zona de junção miometrial (terço interno do miométrio). A decidualização é processo complexo que se inicia na fase secretória do ciclo menstrual, regulada pelos hormônios ovarianos e pelas citocinas deciduais. Parece ser o principal regulador na invasão do trofoblasto, no qual tomariam parte a decídua, através das células imunes uterinas (linfócitos T, células NK [natural killer], macrófagos etc.). A distribuição espaço-temporal das células imunes uterinas é regulada pelos hormônios
ovarianos. As células imunes maternas secretam citocinas (TNF-α, IL-1) e fatores do crescimento que promovem a remodelação decidual. Na fase de implantação (8o ao 13o dia pós-ovulação), o endométrio se diferencia em três zonas distintas. Menos de 1/4 do tecido está representado pela camada basal alimentada pelas artérias retas. A porção média do endométrio (aproximadamente 50% do total) corresponde à camada esponjosa, composta de estroma frouxo edematoso com vasos espiralados tortuosos e glândulas dilatadas e exaustas. Acima da esponjosa está o estrato superficial do endométrio (cerca de 25% da sua altura), denominado camada compacta. Aqui a característica histológica proeminente são as células do estroma muito próximas umas das outras, por isso o termo stratum compacto. Os ductos glandulares que atravessam esse segmento estão comprimidos, e os capilares e vasos espiralados, ingurgitados.
Figura 3.1 ■ Correspondência entre os anexos embrionários ou fetais, sob os pontos de vista embriológico e obstétrico.
Ao nidar, o ovo normalmente se detém na camada esponjosa, rica em glândulas e em vasos sanguíneos, local de sua nutrição. Essa camada desempenha também papel no momento do secundamento, pois, constituída por tecido frouxo, facilita o descolamento da placenta logo após o parto. A camada fibrinoide de Nitabuch não é o local de separação da placenta do seu leito; na verdade, ela ocorre mais profundamente. Até o 3o/4o mês, topograficamente, distinguem-se três porções na decídua (Figura 3.2): • Decídua basal, correspondente à zona de implantação, ricamente vascularizada e que constitui a parte materna da placenta • Decídua capsular ou reflexa, levantada pelo desenvolvimento do ovo, fina e mal irrigada, o que condiciona a atrofia do cório correspondente • Decídua parietal ou vera, aquela que atapeta toda a cavidade uterina, à exceção da zona correspondente à implantação. A expansão do ovo aproxima a decídua capsular da parietal; a cavidade uterina torna-se cada vez menor, até desaparecer no final do 3o mês. Obliterada, as três porções da decídua se reduzem
a duas (Figura 3.2 F): • Decídua basal • Decíduas capsular e parietal, intimamente acoladas. Posteriormente, o suprimento sanguíneo inadequado determina a degeneração e o desaparecimento da decídua capsular. As células do estroma do endométrio assumem, durante a gravidez, isto é, na decídua, aspecto peculiar e são chamadas deciduais. Têm tamanho grande, com quantidade aumentada de glicogênio e de lipídios. Essas células deciduais começam a desaparecer em torno do ovo recém-nidificado, embora ainda notadas depois em toda a decídua. Observam-se, também, em graus variáveis, no estroma de outros órgãos pélvicos. São assim encontradas na cérvice (deciduose do colo), nas tubas uterinas e no peritônio pélvico. Reciprocamente, na implantação ectópica, o endométrio decidua. A reação decidual é resposta do organismo à existência do ovo. No final do ciclo menstrual há aspecto deciduoide, vigente também quando se administram altas doses de progestogênios.
Figura 3.2 ■ Decíduas basal, parietal e capsular. A. Útero fora do ciclo gestatório; ilustrado em cor mais escura, o endométrio. B. Ovo recém-nidificado. C a E. Fases do desenvolvimento uterino e ovular; oblitera-se, progressivamente, a cavidade uterina, pelo acolamento das decíduas capsular e parietal, o que está por completar-se em E (3o/4o mês). F. Útero e ovo do 4o mês até o termo. Não se distinguem a decídua capsular e a parietal. Note a participação da decídua basal na formação da placenta.
Embora a importância da reação decidual não esteja totalmente desvendada, parece ligada à nutrição do embrião e à proteção do tecido materno contra a invasão desordenada do trofoblasto. ▶ Membrana amniocoriônica. A cavidade amniótica cresce mais rapidamente que a coriônica, e suas paredes se fundem para formar a membrana amniocoriônica, desaparecendo a cavidade coriônica. As duas membranas acoladas se fundem com a decídua capsular e, depois do
desaparecimento dessa, com a parietal (Figura 3.2 F).
■ Placentação humana normal A placenta, suas membranas e a decídua (endométrio materno transformado) contêm diferentes subtipos de células trofoblásticas que desempenham diversas funções. Todos esses subtipos trofoblásticos se diferenciam das células trofoectodérmicas do blastocisto. Uma vez tenha o blastocisto se implantado no útero, as células trofoectodérmicas mudam sua denominação para citotrofoblasto.
■ Origem das células trofoectodérmicas Durante o desenvolvimento embrionário, a divisão mitótica dos blastômeros dá origem à mórula, compreendendo cerca de 16 a 32 células fetais, e mais tarde ao blastocisto (32 a 64 blastômeros). Até o estágio de 4 ou 8 células, os blastômeros são distintos e facilmente contados; o embrião não tem polaridade (Figura 3.3). Após o estágio de 8 células, cada blastômero interage com os seus vizinhos por meio das típicas moléculas de adesão da superfície celular, tais como a caderina-E, conhecida como compactação (Figura 3.3). As células trofoectodérmicas adquirem características epiteliais, achatadas e ligadas entre si por junções oclusivas complexas. Quando o embrião alcança o estágio de 32 células, a camada trofoectodérmica provavelmente bombeia fluido para o espaço extracelular, formando a cavidade blastocística (Figura 3.3), uma característica do blastocisto tardio. É neste estágio que o embrião, que começa a sua clivagem na tuba uterina, alcança a cavidade uterina. Para entender os passos da diferenciação que transforma as células trofoectodérmicas em diversas linhagens de células citotrofoblásticas (Figura 3.4) é necessário descrever a implantação do ponto de vista histológico.
■ Implantação A interação blastocisto-endométrio requer a perfeita sincronização entre o desenvolvimento do embrião e a maturação do endométrio (Figura 3.5). Não apenas isso, mas também a sincronização da hipófise e dos ovários maternos, os quais, através da secreção hormonal, estabelecem a diferenciação endometrial. O embrião expressa potencial invasivo intrínseco que não está relacionado com a natureza celular ou bioquímica de tecido hospedeiro invadido nem com o seu estado hormonal. Na verdade, na maior parte do tempo o epitélio se protege da implantação, exceto no período limitado conhecido como fase receptiva ou janela da implantação. Essa receptividade limitada parece ser propriedade da cobertura epitelial do endométrio.
Figura 3.3 ■ Processo de compactação durante o desenvolvimento embrionário. A compactação resulta na aquisição da polaridade celular com uma borda apical coberta por microvilosidades e uma borda basolateral caracterizada por apresentar junções de comunicação e expressão de moléculas de adesão (caderina-E). A compactação é o primeiro evento na diferenciação morfológica celular. O aspecto mais significante que ocorre durante a compactação é a emergência de duas populações distintas de células: os blastômeros que permanecem em contato com a parte externa (zona pelúcida) e são destinados a formar a linhagem trofoectodérmica (futura placenta e membranas) e os blastômeros internos que constituirão a massa celular interna e, mais tarde, o próprio embrião. (Adaptada de Bischof & IrmingerFinger, 2005.)
Figura 3.4 ■ Diferentes subtipos da linhagem de células citotrofoblásticas. 1, Células citotrofoblásticas intersticiais (inCTB) proliferativas são células epiteliais polarizadas descamando da membrana basal da vilosidade. Essas células estão em intensa atividade mitótica. 2, As células inCTB iniciais pós-proliferativas são a primeira geração de células filhas formando as quatro a seis camadas de células seguintes. Elas
são células proliferativas apolares que formam conglomerados compactos, sem matriz extracelular entre elas. Elas constituem a maior parte da coluna de células (CC). 3, As células inCTB grandes, poligonais, são células que não se dividem, com núcleo grande e irregular formando um padrão frouxo. Elas são cercadas por abundante matriz extracelular composta principalmente de laminina e colágeno IV. Esse subtipo inCTB é relativamente raro no início da gravidez, mas aumenta com o avançar da gestação. 4, Pequenas células inCTB, fusiformes, são altamente invasivas, não proliferativas, orientadas principalmente de forma radial. 5, Elas são caracterizadas por núcleos pequenos, ovoides e corpo celular alongado. Elas são abundantes no início da gestação, enquanto seu número declina com a idade da gravidez. Essas células são encontradas da parte distal da CC até um terço do miométrio, onde formam padrão frouxo. Elas são cercadas por fibronectina e vitronectina. Células gigantes multinucleadas constituem sincício não proliferativo presentes na parte profunda da decídua e no miométrio proximal, onde formam “camada fina” bem definida. (Adaptada de Bischof & Irminger-Finger, 2005.)
■ Invasão do trofoblasto extraviloso na zona de junção miometrial Considera-se que o endométrio decidualizado possa modular a função trofoblástica, alternando a expressão de fatores regulatórios, tais como citocinas, metaloproteinases, integrinas de superfície e moléculas complexas maiores de histocompatibilidade. Nos estágios pós-ovulatórios, a invasão intersticial do trofoblasto extraviloso provém da coluna de células (Figura 3.4) situadas nas extremidades das vilosidades ancorantes, e muitas se fundem para formar as células gigantes multinucleadas. De 8 semanas em diante, o miométrio é invadido pelo citotrofoblasto; esta invasão alcança o seu máximo entre 9 e 12 semanas e é restrita à zona de junção, que então é caracterizada por grande número de células gigantes. A invasão pelo citotrofoblasto extravilositário intersticial do leito placentário ocorre de 6 a 12 semanas da gravidez e parece também “preparar” as artérias espiraladas para a sua posterior remodelação.
Figura 3.5 ■ Estágios da implantação do blastocisto humano. Uma vez tenha o blastocisto alcançado a cavidade uterina, ele orienta seu polo embrionário (massa celular interna) em direção ao epitélio uterino e abandona a zona pelúcida (eclosão). A exposição das células trofoectodérmicas, altamente adesivas e invasivas, permite a sua ligação e invasão da cobertura epitelial do endométrio. A invasão começa pela formação dos invadopódios, que progridem entre as células epiteliais adjacentes para alcançar a membrana basal. A membrana basal é digerida, permitindo que as células trofoectodérmicas alcancem o estroma endotelial. Algumas células citotrofoblásticas (CTB) se fundem para formar o sinciciotrofoblasto (sincicialização), que invade o endométrio. (Adaptada de Bischof & Irminger-Finger, 2005.)
O período seguinte é a invasão pelo citotrofoblasto extravilositário endovascular nas artérias espiraladas e sua conseguinte remodelação – substituição da estrutura – musculoelástica do vaso por material fibrinoide (com trofoblasto embebido) e reendotelização. A invasão intravascular se faz em dois estágios: 1a onda de migração, alcançando apenas o segmento decidual nas artérias espiraladas (a partir de 8 semanas), e 2a onda de migração, alcançando a zona de junção miometrial (iniciando com 14 semanas); por volta de 18 semanas, as artérias espiraladas apresentam trofoblasto endovascular incorporado na parede do vaso (Figura 3.6). As artérias espiraladas decidualizadas se convertem em artérias uteroplacentárias, o que resulta em circuito hemodinâmico de baixa resistência entre as artérias radiais e o espaço interviloso. A remodelação das artérias espiraladas ocorre em 95% dos vasos existentes no leito placentário e em menor número na periferia. Como resultado de todo esse processo, forma-se a placenta hemocorial profunda humana.
Na toxemia e no crescimento intrauterino restrito (CIR) há invasão trofoblástica deficiente que não atinge a zona de junção miometrial (ausência da 2a onda de migração), deixando aí intocada a estrutura arterial, predispondo-a à aterose aguda, com grande limitação do fluxo uteroplacentário. Apenas 10% das artérias espiraladas sofrem remodelação completa na toxemia: é a placentação anômala superficial.
Figura 3.6 ■ Invasão do leito placentário pelo trofoblasto extraviloso. (Adaptada de Montenegro, C.A.B. & Rezende Filho, J. Medicina Fetal. Atlas Comentado, Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1998.)
■ Placenta No Capítulo 2 foi descrito o desenvolvimento da cavidade coriônica e das vilosidades e neste capítulo ele pode ser visto na Figura 3.7. A porção do ovo que estabelece intercâmbio com o ambiente é o trofoblasto. Após a nidificação ele prolifera e, dotado de grande poder invasor, penetra pelos capilares e dá início à nutrição hemotrófica, isto é, à custa do sangue materno. O trofoblasto e o tecido de conexão correspondente constituem o cório. Pela emissão de prolongamentos, aumenta a superfície de trocas. São as vilosidades coriais, inicialmente compostas exclusivamente pelo trofoblasto, e depois contendo eixo de tecido conectivo com rede capilar (Figura 3.8). No princípio da 4a semana, todos os arranjos para as trocas definitivas entre a mãe e o embrião estão finalizados. Até a 8a semana as vilosidades cobrem inteiramente o cório. Com o crescimento, as porções do cório em correspondência com a decídua basal, mais vascularizadas e diretamente conectadas com o embrião pela circulação alantocorial, desenvolvem-se de modo considerável, constituindo o cório frondoso, que é o principal componente da fração ovular da placenta; é, por essa razão, denominado também cório placentário. Os demais segmentos do cório correspondem à decídua capsular, e as vilosidades logo regridem, permanecendo algumas vestigiais. É o cório liso, que acolado ao âmnio membranoso, formará as membranas do ovo; é, por isso, nomeado cório membranoso.
A diferenciação entre o cório liso e o frondoso completa-se ao longo da 12a semana. Cinco tipos de vilosidades podem ser distintas, levando em conta calibre, características do estroma e estrutura dos vasos (Figuras 3.9 e 3.10): • Vilosidades-tronco: representam as primeiras 5 a 30 gerações de vilosidades e servem de suporte à árvore vilosa. Elas variam de 100 µm a diversos milímetros em diâmetro e são caracterizadas por estroma compacto fibroso que contêm no centro artérias ou arteríolas, veias ou vênulas • Vilosidades intermediárias maduras: com diâmetro que varia de 80 a 120 µm, originam-se da última geração de vilosidades-tronco. De sua superfície convexa emergem as vilosidades terminais. Internamente, consistem em estroma frouxo, onde estão embebidas arteríolas caracterizadas por simples camada de células contráteis que conduzem a longos capilares • Vilosidades terminais: representam os ramos finais da árvore vilosa, e do ponto de vista fisiológico são o componente mais importante. Representam protuberâncias curtas de 200 µm de diâmetro e 50 a 100 µm de largura, que se originam das vilosidades intermediárias maduras. Sua principal característica é o elevado grau de capilarização – mais de 50% do volume das vilosidades terminais está representado por capilares. A espessura do sinciciotrofoblasto não é uniforme na superfície das vilosidades terminais; ao contrário, há áreas em que o trofoblasto é extremamente fino, desprovido de núcleos sinciciais, conhecidas como membranas vasculossinciciais (MVS). Subjacentes a essas áreas, há capilares fetais dilatados, referidos como sinusoides, em que a distância para a difusão entre o sangue materno e o fetal está reduzida para apenas 0,5 a 2,0 µm. A proporção da superfície vilosa ocupada pelas MVS aumenta à medida que a gravidez prossegue para o termo. Em outros pontos da superfície vilosa o sinciciotrofoblasto é relativamente espesso e contém aglomerado de núcleos, caracterizando os nós sinciciais, locais mais importantes das atividades metabólica e endócrina
Figura 3.7 ■ Desenvolvimento da placenta e das membranas fetais. A e B. Embrião de 4 semanas implantado na parede posterior do endométrio. C a F. Cortes longitudinais do útero gravídico da 5a à 22a semana. (Adaptada de Moore, K.L.)
Figura 3.8 ■ Formação das vilosidades coriais. A. Vilosidade primária. B. Vilosidade secundária. C e D. Vilosidades terciárias. (Adaptada de Moore, K.L. The Developing Human, Philadelphia, Saunders, 1973.)
Figura 3.9 ■ Tipos de vilosidades coriais. (Adaptada de Benirschke & Kaufmann, 1995.)
• Vilosidades intermediárias imaturas: representam continuações periféricas dos troncos vilosos e estão em processo de desenvolvimento. Muito comuns nas placentas imaturas, sua distribuição no órgão maduro está geralmente limitada a regiões centrais dos lóbulos, caracterizadas por serem desprovidas de vilosidades terminais. Seu estroma é reticular frouxo, onde são encontrados inúmeros macrófagos (células de Hofbauer). Embebidas nas células do estroma estão arteríolas e vênulas • Vilosidades mesenquimais: novamente população transitória vista nos estágios iniciais da gravidez, em que são as precursoras das vilosidades intermediárias imaturas. São inconspícuas nas placentas maduras, onde representam zonas de desenvolvimento viloso.
■ Circulação placentária A placenta provê área extensa na qual substâncias podem ser intercambiadas entre a mãe e o
feto. As circulações materna e fetal são independentes, não havendo, em condições normais, comunicação alguma entre elas. Devem ser estudadas, portanto, a circulação materna da placenta ou uteroplacentária e a circulação fetal da placenta ou fetoplacentária. ▶ Circulação placentária materna ou uteroplacentária. O sangue, no espaço interviloso, está temporariamente fora do sistema circulatório materno; penetra, na área, através de 80 a 100 artérias espiraladas endometriais (Figuras 3.11 e 3.12). O fluxo desses vasos é pulsátil e propulsionado em jatos ou correntes pela pressão sanguínea materna. O sangue que entra está submetido a uma pressão muito mais alta do que a existente no espaço interviloso e, por isso, dirige-se para a placa corial. Quando a pressão se dissipa, o sangue flui, vagarosamente, em volta e sobre a superfície das vilosidades, possibilitando a troca de produtos metabólicos e gasosos com o sangue fetal. O sangue materno alcança o assoalho do espaço interviloso, no qual ingressa nas veias endometriais (Figura 3.12). O sangue que deixa o espaço interviloso tem pressão bem superior à das veias endometriais. O espaço interviloso contém cerca de 150 mℓ de sangue, quantidade substituída 3 a 4 vezes por minuto. O fluxo sanguíneo durante a gestação cresce de 50 mℓ/min, na 10a semana, para 500 mℓ/min no termo. A nutrição da placenta, tanto na parte materna como na ovular, depende essencialmente da circulação materna.
Figura 3.10 ■ A. Tronco de vilosidade coriônica mostrando o sistema arteriocapilar-venoso. B. Corte transversal da vilosidade terminal com 10 semanas. C. Corte transversal da vilosidade terminal a termo. Note a membrana vasculossincicial placentária.
Figura 3.11 ■ Circulações materna e fetal da placenta. (Adaptada de David, G. & Haegel, P. Embryologie, Paris: Masson, 2a ed., 1970.)
Figura 3.12 ■ Esquema da placenta, onde são vistas as circulações uteroplacentária e fetoplacentária. O desenho não ilustra, exatamente, qualquer das concepções propostas, amiúde contraditórias.
▶ Circulação placentária fetal ou fetoplacentária. O sangue, pobre em oxigênio, deixa o feto e, pelas artérias umbilicais, segue em direção à placenta. O cordão umbilical, ao se inserir
na placenta, tem suas artérias divididas em alguns vasos, dispostos de modo radiado, e que se ramificam livremente na placa coriônica. Os vasos sanguíneos compõem extenso sistema arteriolocapilar-venoso dentro das vilosidades, colocando o sangue fetal muito perto do materno (Figuras 3.13 e 3.14). Não há, em condições normais, mistura entre o sangue materno e o fetal. O sangue fetal oxigenado passa através de veias que têm o mesmo trajeto das artérias, em sentido contrário, para o cordão umbilical, sendo coletado pela veia umbilical. Esse calibroso vaso carreia o sangue oxigenado para o feto. O fluxo fetal que se dirige à placenta é determinado pelo débito cardíaco do concepto e pela resistência vascular umbilical, que é a exercida pelas arteríolas do sistema viloso terminal. No termo, a placenta recebe aproximadamente 40% do débito cardíaco fetal combinado (de ambos os ventrículos). No 3o trimestre o fluxo sanguíneo umbilical permanece aproximadamente constante entre 110 e 125 mℓ/min/kg. Na ausência de inervação autônoma, a resistência vascular na circulação fetal da placenta é exercida localmente pela ação de autocoides que promovem a vasoconstrição ou a vasodilatação. Entre os principais vasodilatadores estão o óxido nítrico (NO) e a prostaciclina (PGI2). Entre os vasoconstritores, a antitrombina III (AT III) e as endotelinas 1 (ET-1) e 3 (ET-3).
Figura 3.13 ■ Circulação da vilosidade corial.
Figura 3.14 ■ Vilosidade corial. (Adaptada de Corner, G. W. Ourselves unborn, New Haven Yale University, 1944.)
■ Vilosidade corial
São as vilosidades coriais digitiformes (Figuras 3.13 e 3.14); em cortes, têm o aspecto arredondado, nelas se descrevendo o revestimento trofoblástico e um eixo de tecido conjuntivo rico em capilares. Imutável a morfologia geral, ocorrem, entretanto, no curso da gravidez, numerosas modificações: altera-se o tamanho, modificam-se o aspecto e a quantidade do trofoblasto, do tecido conjuntivo e da vascularização. O uso consagrou as denominações: vilosidades tipo primeiro trimestre, tipo segundo trimestre e tipo terceiro trimestre. Entre a vilosidade corial agressiva do ovo jovem e a da placenta senil, sucedem-se, de modo gradual, inúmeros quadros transicionais, não sendo possível estabelecer limites cronológicos para separá-los. A divisão adotada em trimestres é, todavia, vantajosa, sob o prisma didático. No 1o trimestre a membrana placentária consta de quatro camadas (Figura 3.15 A): • Sinciciotrofoblasto • Citotrofoblasto • Tecido de conexão • Endotélio do capilar fetal. No 2o trimestre (Figura 3.15 B): • O citotrofoblasto não mais forma camada contínua • A quantidade relativa de tecido conjuntivo se reduz • O número e o tamanho dos capilares aumentam. No 3o trimestre, à medida que a gravidez se desenvolve, a membrana placentária torna-se progressivamente mais fina e uma quantidade maior de capilares intravilosos se aproxima do sinciciotrofoblasto (Figura 3.15 C). Em alguns locais, os núcleos do sinciciotrofoblasto formam agrupados nucleares, os nós sinciciais, que costumam se destacar e são carreados para a circulação materna, depositando-se na circulação pulmonar, na qual, logo, degeneram e desaparecem.
Figura 3.15 ■ Secções transversais das vilosidades coriais, do primeiro (A), do segundo (B) e do terceiro (C) trimestres.
Próximo ao fim da gestação, material fibrinoide dispõe-se na superfície das vilosidades (Figura 3.15 C), contendo, além da fibrina, outras substâncias não identificadas que se coram intensamente pela eosina. Através da superfície das vilosidades efetuam-se as trocas transplacentárias. A soma das superfícies de todas as vilosidades constitui a superfície placentária de trocas. Fotomicrografias eletrônicas do sincício mostram sua superfície repleta de microvilosidades, o que aumenta muito a zona de trocas. No decurso da gravidez, há ampliação gradativa de massa placentária, o que, por si só, representa incremento da mencionada superfície placentária de trocas. Vale salientar que a massa do feto cresce em maior velocidade que a da placenta. Fora o aumento da superfície de trocas apenas decorrente do acréscimo de massa, resultaria, e rapidamente, em grave insuficiência placentária, retardada, no entanto, por diferentes mecanismos de adaptação, por exemplo, a redução do diâmetro das vilosidades coriais (Figura 3.15), possibilitando que maior número delas seja contido na unidade de massa, aumentando consequentemente a superfície de trocas. Espelhando a senilidade do órgão, a fibrina se deposita na periferia das vilosidades, reduzindolhes a superfície útil, o que se acentua e cresce ao final da gestação, a contrastar com necessidades fetais, cada dia, multiplicadas.
■ Funções da placenta A placenta desempenha inúmeras funções de notável magnitude durante curto espaço de tempo, que, no adulto, são cumpridas por diversos órgãos. A placenta serve como transporte de gases respiratórios, nutrientes e produtos de degradação entre a mãe e o concepto. É órgão endócrino de grande atividade, secretando ampla gama de hormônios esteroides e peptídicos, necessários para a manutenção da gravidez e o controle do crescimento e do amadurecimento fetal. Além disso, também atua como interface imunológica entre a mãe e o aloenxerto fetal. A placenta tem quatro funções principais: • Metabólica • Endócrina • De trocas • Imunológica. Todas essas funções são essenciais para a manutenção da gravidez e o desenvolvimento normal do embrião. O citotrofoblasto se diferencia para formar o sinciciotrofoblasto, que desempenha as funções endócrina, epitelial e endotelial da placenta.
■ Metabolismo placentário Principalmente no início da gestação, a placenta sintetiza glicogênio, colesterol e ácidos graxos, e, muito provavelmente, funciona como reservatório de nutrientes e de energia para o embrião. Seu papel metabólico está vinculado às outras funções primordiais, endócrinas e de trocas. As funções endócrina e de trocas serão estudadas no Capítulo 4.
■ Imunologia da gravidez Há mais de 50 anos, Sir Peter Medawar (1952), renomado imunologista de transplante, em um trabalho original, descreveu a “analogia do aloenxerto fetal”, no qual o feto era visto como semialogênico (formado por antígeno paterno e, por isso, estranho ao sistema imune materno), que, por mecanismo desconhecido, estava livre de rejeição pela mãe.
■ Transferência citocínica Os linfócitos T helper imaturos (THO) originados do timo desempenham papel relevante imunológico ao criarem microambiente específico na periferia, que depende da célula na qual ele se diferencia. Se a célula THO se diferencia em TH1 ela produz (IL-2) e interferon-γ (INF-γ). Por outro lado, os linfócitos TH2 secretam IL-4, IL-6 e IL-10, que produzem um ambiente antiinflamatório. O postulado de que a gravidez é um estado de supressão imunológica sistêmica e assim não rejeita o feto não mais se sustenta hoje em dia. Na verdade, o que ocorre são transferências citocínicas que se sucedem nos diversos trimestres da gestação. A implantação e a placentação que caracterizam o 1o trimestre da gestação representam uma “ferida aberta” e necessitam de forte resposta inflamatória (TH1). Nessa fase inicial, a grávida sente mal-estar resultante da resposta imunológica e do ambiente hormonal (p. ex., níveis elevados de hCG). Assim, o 1o trimestre da gravidez é uma fase inflamatória. A segunda fase imunológica da gravidez é período de rápido crescimento e desenvolvimento. A mãe, a placenta e o feto se apresentam simbióticos, e cessam os sintomas inflamatórios da 1a fase (náuseas, fadiga extrema), caracterizando estado anti-inflamatório (TH2). Durante a última fase imunológica da gravidez a mãe precisa expulsar o concepto, e isso só pode ser obtido por meio de novo estado inflamatório. O parto se caracteriza pelo influxo de células imunológicas no miométrio, que criam ambiente proinflamatório, determinando contratilidade uterina, expulsão do feto e rejeição da placenta. Em conclusão, a gravidez é estado proinflamatório e anti-inflamatório, dependendo da época avaliada (Figura 3.16).
■ Supressão imune local
Estudos recentes têm descrito um subtipo de linfócitos conhecido como células T regulatórias (Treg), capazes de inibir as ações das células T alorreativas, promovendo a imunotolerância paternofetal (ver Capítulo 19).
■ Placenta após o parto Depois do nascimento do concepto, a placenta, o cordão umbilical e as membranas (âmnio e cório liso) são expulsos do útero, durante o secundamento. ▶ Forma, aspecto e dimensões (Figuras 3.17, 3.18 e 3.19). A forma placentária é variável: achatada, em geral circular ou discoide ovalada. A placenta in situ apresenta uma face fetal, em correspondência com a cavidade amniótica e o cordão umbilical, e outra, face materna, que se confunde com a decídua; no órgão delivrado, o que se denomina face materna não corresponde exatamente ao limite da placenta, pois pequena porção, decidual, permaneceu in utero. A face fetal é recoberta pelo âmnio, que a torna lisa e brilhante. Aí se insere o cordão umbilical, do qual emergem as ramificações das artérias umbilicais, dispostas em raios, ou para o qual convergem os componentes da veia umbilical. Ocasionalmente, encontram-se granulações e pequenas formações císticas, remanescentes da vesícula vitelina e da alantoide.
Figura 3.16 ■ Inflamação e gravidez. Cada estágio representa um estado inflamatório (TH1) ou antiinflamatório (TH2). (Adaptada de Mor & Abrahams, 2009.)
Na face materna, como vista no órgão delivrado, notam-se 15 a 30 cotilédones. Os sulcos intercotiledonários correspondem a septos deciduais, dilacerados pela dequitadura. A superfície dos cotilédones está coberta por fragmentos de material fino, acinzentado, da decídua basal, embora a maior parte dela fique retida no útero para ser eliminada posteriormente, com os lóquios. As dimensões da placenta variam necessariamente com sua forma, seu peso e sua espessura. Em placentas a termo, delivradas, os diâmetros principais oscilam de 15 a 20 cm, e a espessura, de 1 a 3 cm.
Figura 3.17 ■ Esquema da placenta e das membranas fetais.
Figura 3.18 ■ Faces fetal (A) e materna (B) da placenta.
Figura 3.19 ■ Crescimento ponderal do feto e da placenta. (Adaptada de Javert, C.T. Spontaneous and Habitual Abortion, New York, McGraw-Hill, 1957.)
▶ Peso. O peso placentário médio de 450 g, no termo, representa 1/6 do peso do concepto. A evolução ponderal da placenta durante a gravidez mostra que, inicialmente, seu peso é superior ao do concepto, igualando-se em torno de 14 semanas; torna-se, adiante, cada vez maior a diferença entre ambos (Figura 3.19). ▶ Topografia da inserção da placenta. É a implantação corporal na grande maioria dos casos, podendo expandir-se parcialmente ao segmento inferior. As inserções corporais dão-se, sobretudo, nas faces ventral e dorsal, alongando-se, eventualmente. A implantação fúndica é observada algumas vezes, havendo também locações angulares.
■ Cordão umbilical Normalmente, está inserido no centro da placenta. Seu diâmetro mede de 1 a 2 cm, e o comprimento de 50 a 60 cm. O cordão é formado de tecido conjuntivo indiferenciado – geleia de Wharton –, no qual correm os vasos umbilicais e onde se encontram, amiúde, remanescentes da alantoide e da vesícula vitelina; o todo é revestido pelo âmnio funicular (Figura 3.20). São duas as artérias do cordão umbilical continuando os vasos homônimos do feto, ramos das artérias ilíacas internas; na vida neonatal constituem dois cordões fibrosos. A veia é a raiz da cava inferior e única.
Figura 3.20 ■ Útero e ovo a partir de 12 a 14 semanas. AP, âmnio placentário; AF, âmnio funicular; AM, âmnio membranoso.
■ Sistema amniótico O sistema amniótico é a unidade morfológica e, sobretudo, funcional entre o âmnio e o líquido amniótico, o continente e o conteúdo, indissoluvelmente ligados.
■ Âmnio A formação da cavidade amniótica e o desenvolvimento do âmnio foram descritos no Capítulo 1. Sem prejuízo de sua unidade embriológica, histológica e funcional, descreve-se no âmnio a porção membranosa, acolada ao cório membranoso, a placentária, recobrindo o cório placentário, e outra, funicular, em torno do cordão (Figura 3.20). Em virtude de estar o âmnio inserido na margem do disco embrionário (Figura 3.21 A), sua junção com o embrião torna-se ventral quando das curvaturas (Figura 3.21 B). À medida que a cavidade amniótica cresce, oblitera gradualmente a cavidade coriônica e reveste o cordão umbilical, formando-lhe a cobertura epitelial (Figura 3.21 C e D). Cortes do útero gravídico, ao nível do âmnio membranoso, revelam, de dentro para fora (Figura 3.22): (1) o âmnio; (2) o cório; (3) as decíduas capsular e parietal (separadas antes do 4o mês, acoladas após); e (4) o miométrio. As membranas em volta da cavidade amniótica são compostas pelo âmnio e pelo cório, cujas
camadas estão intimamente aderidas. Elas retêm o líquido amniótico. As membranas normalmente se rompem durante o parto. O âmnio é composto de cinco camadas distintas (Figura 3.22). Ele não contém vasos sanguíneos nem nervos; seus nutrientes são supridos pelo líquido amniótico. A camada mais interna, perto do feto, é o epitélio amniótico, que secreta colágeno tipos III e IV e glicoproteínas não colágenas (laminina, nidogina e fibronectina) que elaboram a membrana basal, a próxima camada do âmnio. A camada compacta de tecido conjuntivo, adjacente à membrana basal, forma o principal esqueleto fibroso do âmnio. O colágeno da camada compacta (colágeno intersticial tipos I e III e colágenos filamentosos tipos V e VI) é secretado pelas células mesenquimais da camada fibroblástica. Não há interposição de substância amorfa entre as fibrilas de colágeno no tecido conjuntivo amniótico a termo; assim, o âmnio mantém toda a sua capacidade de estiramento durante o final da gestação normal. A camada fibroblástica é a mais espessa das camadas amnióticas e consiste em células mesenquimais e macrófagos no interior da matriz extracelular. A camada intermediária (camada ou zona esponjosa) situa-se entre o âmnio e o cório. Seu abundante conteúdo de proteoglicanos hidratados e de glicoproteínas proporciona a essa camada a aparência “esponjosa” nas preparações histológicas. Ela contém também colágeno tipo III. A camada intermediária absorve o estresse físico, possibilitando que o âmnio deslize sob o cório subjacente, que está firmemente aderido à decídua. Embora o cório seja mais espesso que o âmnio, este tem mais elasticidade. À medida que a gravidez progride, as vilosidades coriônicas das membranas fetais refletidas regridem (cório liso). Abaixo da camada citotrofoblástica (perto do feto) estão a membrana basal e o tecido conjuntivo coriônico, que é rico em fibrilas colágenas. Ao examinar as membranas, reconstituindo o ovo na sua morfologia intrauterina, a face interna é lisa e brilhante, e a externa, despolida e irregular. A primeira é o âmnio, a segunda, o cório, com fragmentos de decídua.
■ Líquido amniótico ▶ Volume amniótico. Não deve ser confundido com o volume da cavidade amniótica, que é o volume amniótico acrescido do volume fetal, nem com volume da cavidade uterina (volume intrauterino), que é o volume da cavidade amniótica somado ao volume placentário. O volume amniótico é muito variável de um ovo a outro e, na mesma gestante, oscilante, embora com tendência geral ao aumento progressivo. Nos primórdios da gravidez, é maior o volume amniótico que o do concepto. Sendo mais acentuado o desenvolvimento do feto que o do âmnio, igualam-se, em torno do 5o mês, os volumes fetal e amniótico, invertendo-se a proporção ao final do ciclo gravídico, ocupando o nascituro, em geral, a maior parte do ovo. Em média, o líquido amniótico tem 30 mℓ na 10a semana, aumenta para 350 mℓ na 20a, próximo ao termo alcança 1.000 mℓ, para depois diminuir 150 mℓ/semana. Encontram-se em suspensão, no líquido amniótico, células esfoliadas do âmnio e do feto,
assim como lanugem e gotículas de gordura. As células esfoliadas do feto provêm, principalmente, da epiderme. Há também elementos das vias urinárias que alcançam o líquido amniótico pelas micções intrauterinas; outros, da cavidade oral e das vias respiratórias, trazidos ao líquido pelos movimentos respiratórios e, nos conceptos femininos, células da vagina.
Figura 3.21 ■ A e B. Desenvolvimento das vesículas amniótica e vitelina. Indica-se como o âmnio forma a cobertura externa do cordão umbilical e como a vesícula vitelina é parcialmente incorporada ao embrião, para constituir o intestino primitivo. C e D. Desenvolvimento das vesículas amniótica e vitelina. (Adaptada de Moore, K.L., 2004.)
Figura 3.22 ■ Representação esquemática das estruturas das membranas fetais a termo. (Adaptada de Parry & Strauss III, 1998.)
No ovo jovem o líquido amniótico é cristalino, tornando-se progressivamente opalescente e grumoso. As colorações amareladas, esverdeadas ou castanhas são anômalas e podem significar doença hemolítica, sofrimento e morte do feto. Ao secar, o líquido cristaliza-se, assumindo o aspecto arborescente comum a outros fluidos do organismo. ▶ Funções do líquido amniótico. Tem-se afirmado que o líquido amniótico (LA) pode: • Proteger o feto da lesão mecânica • Possibilitar o movimento do feto, prevenindo a contratura dos membros • Prevenir adesões entre o concepto e o âmnio • Possibilitar o desenvolvimento do pulmão fetal, no qual há movimento de vaivém do líquido para os bronquíolos. A ausência de LA está associada à hipoplasia pulmonar.
■ Vesícula vitelina O desenvolvimento inicial da vesícula foi descrito no Capítulo 2. Cerca de 9 semanas pósconcepção, a vesícula vitelina constitui órgão rudimentar conectado ao intestino primitivo (Figura 3.21 C). ▶ Significado da vesícula vitelina. Embora na espécie humana não desempenhe funções de armazenamento de material nutritivo, seu crescimento e diferenciação são essenciais para os seguintes fatores: • Transferir esse material nutritivo para o embrião durante a 2a e a 3a semana, quando não há ainda a circulação uteroplacentária, apenas a vitelina • O sangue se desenvolve em suas paredes desde a 3a semana até a 6a, quando a atividade
hematopoiética se inicia no fígado • Durante a 4a semana, a parte dorsal da vesícula vitelina se incorpora ao embrião, constituindo o tubo endodérmico, o intestino primitivo; além do sistema digestivo, esse endoderma dará origem ao epitélio da traqueia, dos brônquios e dos pulmões • As células germinativas primitivas aparecem na vesícula vitelina ao início da 3a semana e subsequentemente migram para desenvolver as gônadas, onde constituem as espermatogônias ou as oogônias. ▶ Destino da vesícula vitelina. Em torno da 12a semana, a pequena vesícula vitelina jaz na cavidade coriônica entre as vesículas amniótica e a coriônica (Figura 3.21 C). Tipicamente, no fim da 5a semana, ela se separa do intestino primitivo. Com o evoluir da gravidez, reduz-se, tornando-se sólida e bem diminuta. Pode persistir durante toda a gravidez e ser reconhecida na superfície fetal da placenta, embaixo do âmnio, perto da inserção do cordão umbilical (Figura 3.21 C). Em cerca de 2% dos adultos, a porção intra-abdominal proximal da vesícula vitelina persiste como um divertículo do íleo (divertículo de Meckel).
■ Alantoide A alantoide aparece no 16o dia após a fertilização, também como divertículo na zona caudal da vesícula vitelina (Figura 3.23 A). Durante o 2o mês, a porção extraembrionária degenera, embora traços possam ser vistos entre as artérias umbilicais, em local próximo ao cordão, por algum tempo.
Figura 3.23 ■ Desenvolvimento e destino da alantoide. A. Três semanas pós-concepção. B. Doze semanas pós-concepção. C. Adulto. (Adaptada de Moore, K.L., 2004.)
▶ Significado da alantoide. Sua função no embrião é importante por duas razões:
• Durante os dois primeiros meses há formação de sangue em suas paredes • Seus vasos sanguíneos se transformam nas artérias e veias umbilicais. ▶ Destino da alantoide. A porção intraembrionária se estende do umbigo à bexiga, com a qual mantém continuidade. Quando a bexiga se desenvolve, a alantoide regride para formar tubo espesso, o úraco (Figura 3.23 B). Depois do nascimento, o úraco se transforma em cordão fibroso, ligamento umbilical mediano, que vai do fundo vesical ao umbigo (Figura 3.23 C).
■ Pontos-chave Para o obstetra os anexos do feto são três: placenta, cordão umbilical e membranas (âmnio e cório). A camada funcional do endométrio, modificada pela gravidez, se denomina decídua ou caduca, indicando que será eliminada após o parto. As células do estroma do endométrio são chamadas de células deciduais, ricas em glicogênio e lipídios. Até o 4o mês de gestação distinguem-se três porções na decídua: basal (corresponde à zona de inserção), capsular (ligada às membranas) e parietal ou vera (restante da cavidade uterina). Após o 4o mês, com o desaparecimento da cavidade uterina, há apenas duas porções: decídua basal e capsularparietal, indiretamente acoladas. O trofoblasto constitui o cório, que pode ser dividido em cório liso ou membranoso (logo regride) e frondoso ou placentário (vilosidades coriônicas). A placenta definitivamente formada após o 5o mês é constituída por placa corial, septos (que a dividem em lóbulos ou cotilédones), vilosidades coriais, placa basal (é a própria decídua basal) e espaço interviloso. Chama-se remodelação das artérias espiraladas a sua transformação nas artérias uteroplacentárias pelo trofoblasto invasivo. O endotélio e a capa musculoelástica são removidos e substituídos por trofoblasto e material fibrinoide em duas ondas de migração: 1a onda (porção decidual) e 2a onda (porção miometrial). A circulação placentária pode ser dividida em fetoplacentária e uteroplacentária. A circulação placentária materna é feita por 80 a 100 artérias espiraladas que derramam sangue bem oxigenado no espaço interviloso. A circulação placentária fetal é feita pelas artérias umbilicais, que carreiam sangue pobre em oxigênio em direção à placenta, e pela veia umbilical, que retorna ao concepto o sangue bem oxigenado. A placenta tem quatro funções principais: metabólica, endócrina, de trocas e imunológica. O cordão umbilical normalmente inserido no centro da placenta é formado por tecido conjuntivo (geleia de Wharton), no qual correm os vasos umbilicais (duas artérias e uma veia) e os remanescentes da vesícula alantóidea e da vitelina; é todo revestido pelo âmnio funicular. O sistema amniótico é a unidade morfofuncional formada pelo âmnio e pelo líquido amniótico, cujo volume pode atingir 1.000 mℓ próximo do termo. O concepto suspenso pelo cordão umbilical flutua livremente no líquido amniótico, o que lhe permite o crescimento e o desenvolvimento, livre de aderências anômalas.
■ A. Endocrinologia da Gravidez ■ Secreção endócrina placentária
■ B. Trocas Materno-ovulares ■ Trocas transplacentárias ■ Trocas amnióticas
A. Endocrinologia da Gravidez Dentro do útero gravídico, a unidade decíduofetoplacentária produz uma quantidade extraordinária de hormônios esteroides, proteicos e neuropeptídios. Essas novas unidades conduzem ao fluxo unidirecional de nutrientes da mãe para o concepto, facultam ambiente favorável para o desenvolvimento in utero, o crescimento celular e o amadurecimento, além de sinalizarem o momento em que o produto está pronto para a vida extrauterina. Em outras palavras, os eventos neuroendócrinos que se desenrolam dentro e entre os compartimentos (materno, fetoplacentário e amniótico) são críticos para o apropriado amadurecimento fetal, o início do parto e a lactação. Didaticamente, costuma-se dividir a endocrinologia da gravidez em duas fases: • Ovariana: corresponde às primeiras 8 a 9 semanas da gravidez, quando o corpo amarelo gravídico, estimulado pela gonadotrofina coriônica humana (hCG), é o principal responsável pela secreção de esteroides (Figura 4.1) • Placentária: a partir de 8 a 9 semanas, quando a placenta se incumbe da produção de esteroides em quantidades crescentes. O ovário também produz a relaxina, peptídio cuja principal função é, juntamente com a progesterona, inibir a contratilidade espontânea do útero, o que é útil para a manutenção inicial da gravidez.
■ Secreção endócrina placentária A placenta humana produz grande quantidade de esteroides – progesterona e estrogênio. O lugar da esteroidogênese é o sinciciotrofoblasto. Como a placenta tem capacidade muito limitada de sintetizar o colesterol de novo a partir de acetato, o lipídio tem de ser suprido pelo fígado materno. A placenta humana também está desprovida de 17α-hidroxilase e, assim, não pode converter os esteroides C21 (pregnenolona e progesterona) nos produtos C19 (androgênios), que são precursores dos estrogênios (Figura 4.2). Dessa maneira, ao contrário das gônadas e das suprarrenais, a placenta é um órgão incompleto no que diz respeito à elaboração dos esteroides. Para a formação dos estrogênios, ela necessita, fundamentalmente, de precursores fetais; para a síntese de progesterona, de substâncias provenientes da mãe. É o conceito da unidade fetoplacentária, ou melhor, da unidade maternofetoplacentária.
■ Hormônios esteroides
■ Progesterona O colesterol-LDL materno é ligado a um receptor específico no sinciciotrofoblasto, transportado por endocitose e hidrolisado em colesterol livre dentro dos lisossomos. No sinciciotrofoblasto, o colesterol é, então, convertido em pregnenolona pela enzima mitocondrial 20,22 desmolase. A pregnenolona é posteriormente transformada em progesterona pela enzima 3β-hidroxiesteroide-deidrogenase. A maioria dessa progesterona (90%) é secretada na circulação materna, e o restante (10%), na circulação fetal. Embora a placenta comece a sintetizar progesterona bem no início da gestação, antes de 8 a 9 semanas, a progesterona produzida pelo corpo amarelo gravídico é indispensável para o êxito da implantação e da placentação e, portanto, para a manutenção da gravidez. Após essa época, a progesterona placentária é suficiente para manter a gravidez, mesmo na ausência do ovário (transferência luteoplacentária) (Figura 4.1).
Figura 4.1 ■ A transferência na produção de progesterona do corpo lúteo para a placenta ocorre entre 8 e 9 semanas de gestação. A área vermelha representa a duração estimada dessa transição funcional. (Adaptada de Yen, SSC. Endocrine Physiology of Pregnancy. In Danforth, DN. & Scott Jr. eds. Obstetrics & Gynecology, 5th ed., Philadelphia, Lippincott, 1986;340.)
Figura 4.2 ■ Síntese da esteroidogênese placentária. A placenta necessita de LDL-colesterol materno para sintetizar pregnenolona, precursor da progesterona. Como não tem 17α-hidroxilase, também não é capaz de utilizar os esteroides C21 (progesterona, pregnenolona) para elaborar os esteroides C19 (androgênios) precursores da biossíntese dos estrogênios. DHEAS, sulfato de deidroepiandrosterona; LDL, lipoproteína de baixa densidade.
A progesterona produzida pelo trofoblasto é fundamental para a quiescência do miométrio ao reduzir o número de junções comunicantes existentes entre as células miometriais, indispensáveis para o sincronismo da contratilidade uterina, assim como para inibir a síntese de prostaglandinas. A produção de progesterona aumenta progressivamente com a evolução da gravidez, alcançado o seu máximo (300 mg/dia) poucas semanas antes do parto (Figura 4.3).
■ Estrogênios A produção de estrogênios aumenta muito durante a gravidez (1.000 vezes), alcançando níveis de 80 mg/dia próximo ao termo. A maior quantidade de estrogênio produzida pela placenta é de estriol, um esteroide fraco encontrado na mulher não grávida como metabólito hepático do estradiol (Figura 4.3). Como a placenta não tem a enzima 17α-hidroxilase, ela não pode sintetizar os esteroides C19 a partir dos precursores C21, pregnenolona e progesterona; por isso, a zona fetal da suprarrenal do concepto, a partir do colesterol-LDL, sintetiza a pregnenolona e, por fim, o esteroide C19 sulfato de deidroepiandrosterona (DHEAS) pela ação da enzima 17α-hidroxilase. O DHEAS, uma vez na placenta, sofre a ação da sulfatase, transformando-se em androstenediona e, a seguir, em estrona, após a ação da enzima aromatase (Figura 4.4). O DHEAS é secretado em grande quantidade pela suprarrenal fetal e convertido em sulfato de 16α-hidroxideidroepiandrosterona (16α-OHDHEAS) no fígado do concepto (Figura 4.3). Esses esteroides, DHEAS e 16α-OHDHEAS, são convertidos na placenta nos estrogênios, respectivamente, 17β-estradiol (E2) e estriol (E3), também sob a ação da aromatase. Perto do termo, metade do E2 é derivada do DHEAS proveniente da suprarrenal fetal e metade do DHEAS materno. Por outro lado, 90% do E3 na placenta origina-se do 16α-OHDHEAS fetal, e apenas 10% de outras fontes. Como os estrogênios, particularmente o estriol, originam-se, fundamentalmente, de precursor do concepto, esse hormônio foi usado no passado como teste de bem-estar fetal. Os estrogênios desempenham papel relevante na implantação da placenta ao induzirem uma vasodilatação do leito vascular uterino materno. Desse modo, atuam promovendo o crescimento uterino e o aumento do fluxo sanguíneo uteroplacentário. Os estrogênios da gravidez determinam a proliferação do sistema ductal mamário e, em conjunto com a progesterona, promovem o desenvolvimento do tecido glandular. Após o parto, a súbita cessação do estímulo estrogênio-progesterona possibilita o estabelecimento da lactação.
Figura 4.3 ■ Evolução das concentrações plasmáticas maternas de 17β-estradiol (ng/mℓ), progesterona (ng/mℓ), hormônio lactogênio placentário (hPL) (ng/mℓ) e da gonadotrofina coriônica (hCG) (UI/mℓ ao longo da gestação). (Adaptada de Hirlesse et al., Ped Research, 1993.)
Figura 4.4 ■ Biossíntese dos esteroides da placenta humana. LDL, lipoproteína de baixa densidade; DHEAS, sulfato de deidroepiandrosterona. (Adaptada de Cedard, 1997.)
■ Hormônios polipeptídios
O hCG, o hormônio lactogênio placentário (hPL), o hormônio de crescimento placentário (GH placentário), a ativina e a inibina são os homônios polipeptídios secretados pela placenta, mais especificamente pelo sinciciotrofoblasto.
■ Gonadotrofina coriônica humana O hCG foi descoberto por Ascheim & Zondek, em 1927, mostrando que a grávida produzia uma substância que injetada em fêmeas de camundongo provocava a ovulação. O hCG é uma glicoproteína produzida pela placenta e formada por duas subunidades, α e β, ligadas por forças iônicas e hidrofóbicas (Figura 4.5). A subunidade α é idêntica às subunidades α dos hormônios glicoproteicos hipofisários: hormônio foliculestimulante (FSH), hormônio luteinizante (LH) e hormônio tireoide-estimulante (TSH). As subunidades β dos hormônios glicoproteicos são únicas e conferem a eles as suas propriedades biológicas e imunológicas.
Figura 4.5 ■ Molécula do hCG com as subunidades α e β. (Adaptada de USA hCG Reference Service. Synthesis and Degradation of hCG, 2008.)
Os níveis circulantes do hCG aumentam rapidamente 4 semanas após a implantação, dobram seus valores após 2 a 3 dias, atingem um pico por volta de 10 semanas e, depois da queda, se nivelam até o termo (Figura 4.6). O hCG refere-se, na verdade, a 4 moléculas independentes produzidas por células distintas e cada uma delas com função própria (Figura 4.7). O hCG (regular) é produzido pelo sinciciotrofoblasto, o hCG-hiperglicosilado (hCG-H) pelo citotrofoblasto, o hCG-β-livre por múltiplos tumores malignos não trofoblásticos e o hCG hipofisário pelas células gonadotróficas da hipófise anterior. O hCG tem inúmeras funções mas a principal é promover a produção de progesterona pelo corpo lúteo gravídico, até 3 a 4 semanas após a implantação. Depois desse prazo as células do sinciciotrofoblasto na placenta passam a assumir a produção de progesterona, até então realizada pelo corpo lúteo gravídico (transferência lúteo-placentária). O hCG-H promove a implantação normal pelo citotrofoblasto e o crescimento e a invasão das células do coriocarcinoma. A detecção de hCG-β-livre elevado é considerado sinal de mau prognóstico, vale dizer, de
crescimento tumoral não trofoblástico. O hCG hipofisário é variante do hCG placentário, produzido em baixos níveis no ciclo menstrual. O hCG hipofisário mimetiza a ação do LH durante o ciclo menstrual estimulando o corpo amarelo.
■ Lactogênio placentário humano O hPL, também denominado somatomamotropina coriônica humana (hCS), é um polipeptídio, membro da família gênica do hormônio do crescimento/prolactina, com 96% de homologia com o hormônio de crescimento humano (GH) e 67% com a prolactina (PRL). A despeito de sua homologia ao GH e à PRL, o hPL tem atividade lactogênica e, no crescimento, muito reduzida. Na espécie humana, parece constituir-se em redundância evolucionária do GH e da PRL.
Figura 4.6 ■ Representação esquemática dos níveis sanguíneos dos principais hormônios envolvidos na unidade maternofetoplacentária.
Figura 4.7 ■ Os quatro tipos de gonadotrofina coriônica humana (hCG), locais de produção e suas principais funções. hCG-H, hCG-hiperglicosilado. (Adaptada de Cole, LA. Biological function of hCG and hCG-related molecules. Reprod Biol Endocrinol, 2010; 8:102.)
O hPL é produzido pelo sinciciotrofoblasto e pode ser detectado no plasma materno com 3
semanas de gestação, crescendo sua concentração até o termo, quando atinge níveis de 10 a 16 µg/mℓ. É o maior hormônio secretado pela placenta, atingindo a produção de 1 g/dia no termo. Seu aumento ao longo da gestação segue a evolução da massa placentária. Os seus genes estão localizados no cromossomo 17, enquanto o gene da prolactina está localizado no cromossomo 6. O hPL pode modular o metabolismo materno e o fetal ao agir no fígado de ambos os organismos, assim como em outros tecidos. O hPL funciona como antagonista da insulina, induzindo resistência periférica a esse hormônio, e aumenta a lipólise e a proteólise da mãe, promovendo fonte adicional de glicose e aminoácidos para serem transportados para o feto.
■ Ativina e inibina A ativina e a inibina são membros da superfamília de glicoproteínas do fator de crescimento transformador-β (TGF-β). A inibina é um heterodímero composto de duas subunidades diferentes α e β ligadas por pontes dissulfeto, com peso molecular de 32 kD. Há apenas uma subunidade α de 133 aminoácidos, mas existem duas subunidades β, βA com 116 aminoácidos e βB com 115 aminoácidos; existem, portanto, duas possíveis formas de inibina, a inibina A (αβA) e a inibina B (αβB). A ativina é um homodímero da subunidade inibina B, ligada por ponte dissulfeto, e, por isso, existem três formas: A, B e AB. A placenta sintetiza tanto a inibina como a ativina. O citotrofoblasto sintetiza a subunidade α, enquanto o sinciciotrofoblasto produz a subunidade βB. A subunidade βA é sintetizada tanto pelo cito como pelo sinciciotrofoblasto. A ativina circula no sangue materno ligada à proteína folistatina. A ativina no sangue materno aumenta a sua concentração significativamente após 20 semanas, mas a grande elevação ocorre antes do início do parto, a termo ou de pré-termo. Seu papel no início da parturição humana por estimulação da produção de prostaglandinas pelas membranas fetais é aventado. A inibina e a ativina também exercem funções parácrinas na placenta. Enquanto a inibina susta a estimulação do hormônio liberador da gonadotrofina (GnRH) no sinciciotrofoblasto para a produção de hCG, a ativina potencializa a secreção de hCG GnRHestimulada. A ativina parece aumentar a liberação de hCG e de progesterona, enquanto a inibina exerce efeito contrário sobre esses hormônios. Esses eventos regulatórios parecem ser paralelos àqueles da hipófise, onde a ativina promove a liberação do FSH, enquanto a inibina apresenta efeito contrário.
■ Hormônio do crescimento placentário humano e fator de crescimento insulina-like 1 Codificado pelo gene GH-V, o hormônio do crescimento placentário humano (hPGH) é produzido no primeiro trimestre pelo trofoblasto e estimula de forma autócrina a invasão da placenta. No segundo trimestre, ele é secretado de forma contínua pelo sinciciotrofoblasto, ao contrário do GH hipofisário, secretado de forma pulsátil. Parece que o hPGH tem como função estimular a produção de fator de crescimento insulinalike 1 (IGF-1), que, por sua vez, suprime o GH hipofisário na 2a metade da gravidez (Figura 4.8).
O IGF-1 tem importante papel modulador no crescimento fetal ao aumentar o transporte de aminoácidos e glicose (Figura 4.8). A secreção de GH placentário é inibida pela glicose. In vivo, o GH placentário está reduzido no sangue materno durante a subida da glicemia pós-prandial e nos casos de diabetes gestacional. Isso sugere um papel metabólico visto exclusivamente no compartimento materno, mas não detectável na circulação fetal. Em caso de queda da glicemia materna, os níveis de GH placentário aumentam, garantindo o aporte energético ao feto.
Figura 4.8 ■ Níveis sanguíneos maternos do hormônio de crescimento placentário humano e do hormônio de crescimento hipofisário ao longo da gestação (n = 186). (Adaptada de Hirlesse et al. Ped Research, 1993.)
■ Relaxina A relaxina é hormônio peptídio que pertence à família da insulina (Figura 4.9). É produzida pelo corpo lúteo, pela placenta e pela decídua. Durante a gravidez, toda a relaxina circulante na mãe parece ser originada do corpo lúteo. Entre as atividades biológicas da relaxina destacam-se: remodelação do colágeno, amolecimento da cérvice materna e do sistema reprodutivo inferior e inibição da contratilidade uterina. Todavia, a relaxina circulante não demonstra ser necessária para a manutenção da gestação ou do parto normal.
■ Hormônios neuropeptídios A placenta humana produz diversos neuropeptídios similares àqueles elaborados pelo hipotálamo. Por analogia com o sistema hipotálamo-hipofisário, sugere-se que a célula citotrofoblástica corresponda ao local da síntese dos neuropeptídios, enquanto o sinciciotrofoblasto produza o hormônio proteico.
Figura 4.9 ■ Hormônios da família da insulina: relaxina, insulina e fator de crescimento insulina-like (IGF).
■ Hormônio liberador da gonadotrofina A regulação do hormônio liberador da gonadotrofina (GnRH) pela placenta humana do termo está ilustrada na Figura 4.10. Secretado pelo citotrofoblasto, esse hormônio estimula o sincício a produzir hCG e esteroides que, por sua vez, inibem a sua produção por feedback negativo.
■ Hormônio liberador da corticotrofina O hormônio liberador da corticotrofina (CRH), um neurormônio hipotalâmico que modula a função hipofisária e suprarrenal (eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal), é produzido pela placenta. O CRH pode ser detectado no plasma materno com 20 semanas da gestação, e seus níveis aumentam nas fases finais da gravidez, com acréscimo rápido nas semanas que precedem o parto. É também relatado que os níveis de CRH crescem precocemente na gravidez complicada pelo parto pré-termo. Todos esses dados sugerem que o CRH placentário possa estar envolvido no determinismo do parto e que o “relógio placentário” controla a duração da gravidez humana (Capítulo 12).
■ Proteínas placentárias A placenta sintetiza inúmeras proteínas, tanto aquelas produzidas exclusivamente na gravidez, como outras também encontradas fora do estado gravídico. No que concerne às proteínas específicas da gravidez, são elas as proteínas plasmáticas associadas à gravidez (PAPP), A, B, C e D, cujas funções não estão ainda desvendadas. A PAPPA tem sido utilizada no 1o trimestre para o rastreamento bioquímico de aneuploidias fetais (Capítulo 60).
Figura 4.10 ■ Ilustração esquemática da regulação da secreção do GnRH pela placenta humana a termo. O GnRH secretado pelo citotrofoblasto é estimulado por alguns fatores e inibido por outros, tais como o hCG produzido pelo sinciciotrofoblasto. (Adaptada de Cedard, 1997.)
B. Trocas Materno-ovulares As trocas materno-ovulares realizam-se entre três compartimentos: a mãe, o feto e o líquido amniótico (LA). As trocas diretas entre a mãe e o concepto (trocas maternofetais) são as trocas transplacentárias. As trocas que envolvem o LA podem ocorrer com a mãe (trocas materno-amnióticas) ou com o feto (trocas amniofetais), e constituem, em conjunto, as trocas amnióticas (Figuras 4.11 e 4.12). Do ponto de vista didático, é conveniente classificar as trocas materno-ovulares em dois grandes tópicos: trocas transplacentárias e trocas amnióticas.
■ Trocas transplacentárias A placenta dos mamíferos é estrutura biológica única, constituindo interface entre a circulação materna e a fetal. Sob a perspectiva do feto, a placenta apresenta funções similares àquelas do pulmão, rim e sistema digestivo na vida pós-natal. As funções fundamentais da placenta são: • Prover barreira imunológica entre a mãe e o concepto • Promover produção hormonal que altere o metabolismo materno • Transportar nutrientes, gases respiratórios, íons e água para o feto • Transportar produtos de excreção do feto para a mãe.
Figura 4.11 ■ Sistema de três compartimentos, materno (M), fetal (F) e amniótico (LA), que se comunicam entre si. Há, portanto, três tipos de trocas e seis de transferências.
Figura 4.12 ■ Trocas materno-ovulares. A espessura das setas, grosso modo, é proporcional à intensidade das trocas realizadas. As maternofetais são, todas, transplacentárias. As materno-amnióticas dão-se no âmnio membranoso. As amniofetais ocorrem, então, no âmnio placentário e no funicular, bem como no tegumento e nos sistemas respiratório, digestivo e urinário fetais.
O crescimento e o desenvolvimento adequado do feto dependem diretamente das trocas maternofetais realizadas na placenta, sugerindo que alterações nesse transporte sejam fatores determinantes envolvidos no crescimento intrauterino restrito (CIR) e na macrossomia fetal.
■ Membrana placentária As circulações sanguíneas materna e fetal, mantidas separadas todo o tempo, devem, no entanto, estar bastante próximas para tornar possível o transporte eficiente de nutrientes, gases respiratórios, íons e água. A placenta humana é do tipo hemocorial; vale dizer, o sangue materno conduzido pelas artérias espiraladas para o espaço interviloso está em contato direto com as vilosidades coriônicas que contêm os capilares fetais. Há somente duas camadas de células que separam as circulações
materna e fetal na placenta humana a termo – o endotélio do capilar fetal e o sinciciotrofoblasto –, que constituem a chamada membrana vasculossincicial (Figura 4.13). Os capilares fetais são do tipo contínuo, e possibilitam apenas a passagem de pequenas moléculas, mas restringem o transporte das maiores. O sinciciotrofoblasto está sustentado pela membrana basal. Essas três estruturas constituem a “membrana placentária”. O sinciciotrofoblasto é o epitélio de transporte da placenta humana e constitui sincício verdadeiro formado pela fusão de células citotrofoblásticas adjacentes. No início da gravidez, as células do citotrofoblasto são abundantes, criando camadas de células contínuas entre o sincício e o capilar fetal; na gravidez tardia, elas tornam-se mais escassas. O sinciciotrofoblasto apresenta duas membranas plasmáticas polarizadas: a membrana plasmática apical ou membrana microvilosa (MMV), dirigida para o sangue materno no espaço interviloso, e a membrana plasmática basal, vis à vis com o capilar fetal. A natureza sincicial do sinciciotrofoblasto provê membrana relativamente justa, já que não há espaços intercelulares disponíveis para o transporte de moléculas maiores ou de grandes quantidades de líquidos. Todavia, atualmente se aceita a presença de canais paracelulares ou transtrofoblásticos, que constituem meio de transporte para determinadas moléculas, como, por exemplo, a alfafetoproteína. Ademais, soluções de continuidade ocasionalmente ocorrem nessa membrana, o que explica a existência de hemácias na circulação materna (hemorragia fetomaterna). As microvilosidades da membrana plasmática apical do sinciciotrofoblasto aumentam consideravelmente a superfície de trocas, até então estimada em aproximadamente 50 m2. Isso, associado às taxas elevadas do fluxo sanguíneo materno e fetal e à pequena distância para a difusão entre esses compartimentos (tão pequena quanto poucos micrômetros [µm] em algumas regiões da membrana), é crucial para as trocas eficientes entre a mãe e o feto.
Figura 4.13 ■ A membrana placentária consiste no sinciciotrofoblasto e no endotélio do capilar fetal. Dessas estruturas, duas membranas plasmáticas polarizadas, a membrana microvilosa (MMV) e a membrana plasmática basal do sinciciotrofoblasto, restringem a transferência de moléculas. (Adaptada de Jansson & Powell, 2009.)
▶ Pressão. A pressão nos vasos arteriais que alcançam os lagos placentários é aproximadamente de 70 a 80 mmHg, e, nas veias, 8 mmHg (Figura 4.14). No espaço interviloso é variável: 5 a 8 mmHg, no curso da gravidez; 8 a 12 mmHg durante as diástoles do trabalho de parto; muito acima, na vigência de sístoles (30 a 50 mmHg). Do lado fetal, a pressão nas artérias umbilicais é avaliada em 50 mmHg, e a venosa, 25 mmHg. A pressão nos capilares das vilosidades nunca foi determinada, sendo, necessariamente, intermediária à das artérias e da veia. O valor aceitável é 30 mmHg, muito superior ao do lado materno. Explica-se assim, nas lesões de continuidade da membrana, a passagem preferencial no sentido do feto para a mãe (hemorragia fetal para dentro da circulação materna, patogenia da aloimunização, que leva à doença hemolítica perinatal). ▶ Pressões osmótica e oncótica. Feita a abstração de interferência direta e específica da membrana, as trocas de substâncias dependem das concentrações de cada lado da membrana placentária. ▶ Débitos sanguíneos uteroplacentário e fetoplacentário. São de determinação difícil. Não parece despropositado estipular o débito placentário materno, na gravidez a termo, em 500 mℓ/min. O débito fetoplacentário é ainda menos conhecido, por mais complexos que sejam os problemas de experimentação. Seria de 110 a 125 mℓ/min/kg do peso fetal no 3o trimestre da
gestação. É importante notar que a nutrição da placenta, mesmo da porção fetal (especialmente do trofoblasto), ocorre à custa do sangue materno. A morte do concepto não condiciona a necrose das vilosidades; ao contrário, impedimentos circulatórios maternoplacentários acarretam enfartes.
■ Mecanismos das trocas placentárias Vários mecanismos contribuem para a passagem das substâncias de um a outro compartimento. Até para cada uma delas, as trocas são regidas por processos diversos, nessa ou naquela fase da gravidez.
Figura 4.14 ■ Hemodinâmica da circulação uteroplacentária. As setas vermelhas indicam o jato de Borrel, dirigido para a placa corial. (Adaptada de Snoeck, J. Le placenta humain, Paris, Masson, 1958.)
Tais mecanismos devem ser, assim, considerados: • Difusão simples (Figura 4.15): a maioria das pequenas moléculas atravessa segundo gradientes químicos ou eletroquímicos, como ocorre com o O2 e o CO2. Quando o gradiente deixa de existir, a taxa de trocas através da membrana torna-se igual em ambas as direções • Difusão facilitada (Figura 4.16): certas moléculas transitam após conjugar-se, em uma face da membrana, com outras, carreadoras, existentes na própria membrana, e que as veiculam mais rapidamente para a outra face, na qual são libertadas (p. ex., glicose) • Transporte ativo (Figura 4.17): quando a transferência de uma substância dá-se contra gradiente químico, admite-se que requeira dispêndio de energia • Ultrafiltração (Figura 4.18): é a variedade de filtração na qual a pressão hidrostática força a
passagem de líquido através de membrana semipermeável. Sólidos ou solutos de alto peso molecular são retidos, mas a água ou os solutos de baixo peso molecular atravessam a membrana. O resultado é o transporte muito mais rápido de água e/ou de solutos do que aquele previsto pela simples difusão • Pinocitose (ou endocitose na escala da microscopia eletrônica) (Figuras 4.19 e 4.20): por esse processo, a membrana celular invagina-se, englobando pequenas partículas que cruzam a célula e são liberadas do outro lado. Embora o processo seja lento, é responsável pela transferência de imunoglobulinas e grandes moléculas proteicas, lipoproteínas e ferro.
Figura 4.15 ■ Difusão simples. A substância (s) se difunde do organismo materno, no qual tem maior concentração [s]1, passando pela membrana placentária, para o feto, no qual aquela é menor [s]2. É a taxa de difusão proporcional ao gradiente de concentração através da membrana, além de determinadas características que lhe são próprias (área, espessura, permeabilidade etc.). (Adaptada de Assali, NS. Pathophysiology of gestation, vol. II, New York, Academic Press, 1972.)
Figura 4.16 ■ Difusão facilitada. A. A molécula carreadora (C) tem a mesma afinidade para a substância em ambos os lados da membrana. O complexo – substância-molécula carreadora (SC) – difunde-se através da membrana, com maior velocidade do que a substância isolada; daí a concentração no feto equilibrar-se mais rapidamente com a mãe do que no caso da difusão simples. Todavia, a concentração da substância no concepto alcança grau idêntico ao da difusão simples, e não pode ultrapassar a materna. B. Em decorrência, a difusão facilitada dá-se também, favoravelmente, de cima para baixo, embora em uma taxa mais rápida do que a prevista em bases fisioquímicas, como indicam as setas grossas. (Adaptada de Assali, NS. – op. cit.)
Figura 4.17 ■ Transporte ativo. A. A principal diferença entre esse tipo de transporte e o ilustrado na Figura 4.16 (difusão facilitada) é que a molécula carreadora sofre modificação na superfície interna da membrana de uma forma X (com grande afinidade para a substância) para outra Y, que a tem menor. Há dispêndio energético nas transformações reversíveis entre X e Y, sempre fornecida pelo ATP. B. O transporte ativo ocorre, assim, ao arrepio, de baixo para cima, contra um gradiente químico, ou seja, a maior concentração no compartimento fetal. (Adaptada de Assali, NS. – op. cit.)
Figura 4.18 ■ Ultrafiltração. O aumento da pressão hidrostática, representado pelo pistão no compartimento materno, resulta em maior quantidade de solvente cruzando a membrana placentária no sentido do organismo fetal, e superior ao previsto pelas leis da difusão simples. Moléculas como o ionte sódico podem ser carreadas juntamente com o solvente. (Adaptada de Assali, NS. – op. cit.)
Figura 4.19 ■ Mecanismo do transporte por endocitose.
Figura 4.20 ■ Mecanismo do transporte por endocitose receptor-mediada.
Há outras possibilidades de trocas que funcionam em condições de exceção: • É fato inquestionável a verificação de lesões vilosas, a possibilitar a passagem de macromoléculas e de células (hemácias, germes) através da barreira, dependendo do sentido da transferência das pressões hidrostáticas existentes de um e de outro lado, pelo geral ou sempre, maiores no capilar viloso do que no espaço interviloso • Outras células, por exemplo, leucócitos maternos, Treponema pallidum, atravessam por meio de sua própria motilidade.
■ Ciclo respiratório maternofetal É estudo que compreende: • Penetração do ar, pelas vias respiratórias, até os alvéolos • Passagem do oxigênio através da superfície pulmonar de trocas • Veiculação do oxigênio, dissolvido no plasma, e principalmente carreado pelas hemácias, como oxiemoglobina, alcançando, assim, todo o organismo, inclusive o espaço interviloso. O oxigênio em solução física no plasma representa apenas 3% do total carreado; 97% estão ligados quimicamente à hemoglobina. Em condições normais, portanto, é fração muito pequena; sob inalação de oxigênio, torna-se significativa • Libertação do oxigênio da hemácia materna, difusão pela membrana placentária e combinação com a hemoglobina do feto
• Transporte do oxigênio por intermédio das hemácias do feto • Utilização do oxigênio com formação de anidrido carbônico – respiração interna • Condução para a placenta do anidrido carbônico (dissolvido no plasma, combinado com o ácido carbônico ou sob forma de bicarbonatos) • Transferência do anidrido carbônico do sangue fetal ou materno através da membrana placentária • Traslado do anidrido carbônico à superfície pulmonar de trocas • Libertação do anidrido carbônico para o ar alveolar • Eliminação para o exterior. ▶ Oxigênio no sangue materno. O PO2 no ar atmosférico é, aproximadamente, de 160 mmHg (21% da pressão atmosférica, considerada ao nível do mar, igual a 760 mmHg). No ar alveolar, sendo a porcentagem de oxigênio de 14%, o PO2 decresce para 100 mmHg (Figura 4.21). O oxigênio atravessa, por difusão simples, a delicada parede alveolar e o endotélio dos capilares pulmonares. O sangue do adulto, ao alcançar o pulmão, tem saturação de 75% e PO2 de 40 mmHg. Ao se arterializar, saturase quase completamente, alcançando cerca de 98% com o PO2 de 100 mmHg. O sangue das artérias uteroplacentárias tem, portanto, essas características; o mesmo não sucede com o do espaço interviloso, mistura de sangue arterial e venoso, cuja saturação é, em média, 70%, com PO2 de 35 mmHg. É o sangue que oxigenará o feto.
Figura 4.21 ■ Ciclo respiratório maternofetal (anotados somente os valores do oxigênio).
▶ Passagem transplacentária do oxigênio. A exemplo do ocorrido nos alvéolos pulmonares, a passagem transplacentária de oxigênio dá-se por difusão simples. Enquanto a diferença entre PO2 no ar alveolar e no sangue materno venoso é de cerca de 60 mmHg, na placenta, entre o sangue interviloso e o fetal a oxigenar, é de somente 20 mmHg (Figura 4.21). Deve-se ressaltar que, sendo de 1 a 2 mm a espessura da superfície pulmonar de trocas, a da barreira placentária é muito maior – 25 mm na gestação incipiente, 3,7 quando a termo. Assim mesmo, transita o oxigênio, que, de sua combinação com a hemoglobina da gestante (oxiemoglobina materna), alcança a hemácia fetal, onde forma, com a hemoglobina do concepto, novo composto (oxiemoglobina fetal). ▶ Oxigênio nos vasos umbilicais. A termo, e em circunstâncias ideais, encontra-se o sangue venoso (artéria umbilical) com a saturação de 25% e PO2 de 15 mmHg. Os valores respectivos para o sangue arterial (veia umbilical) são 70% e 30 mmHg. ▶ Consumo fetal de oxigênio. A taxa de utilização de O2 pelo concepto é cerca de 4 a 5 mℓ/kg do peso, e suas reservas desse elemento são bem pequenas. O suprimento ininterrupto de oxigênio para o feto é indispensável à sua sobrevida, aparecendo lesões irreversíveis do sistema nervoso central após 7 a 10 min de anoxia.
O consumo uterino representa a soma do oxigênio gasto com o feto (60%) mais o utilizado pelo miométrio e, sobretudo, pela placenta. Nutre-se ela, como sabemos, mesmo na sua parte fetal, do sangue materno.
■ Mecanismos de adaptação do feto às condições carentes de oxigênio Duas características expressivas da vida intrauterina são a baixa do PO2 e a grande afinidade pelo oxigênio existente no sangue fetal. O sangue materno se renova de oxigênio no alvéolo pulmonar, no qual o PO2 é calculado em torno de 100 mmHg, enquanto o do feto cumpre fenômeno idêntico à custa do sangue interviloso, cujo PO2 é de cerca de 35 mmHg (Figura 4.21), a mesma existente nas grandes altitudes (Mount Everest in utero). Para PO2 idênticos, é maior a saturação no sangue do concepto que no da gestante, pela existência de diferenças qualitativas entre as afinidades das hemácias materna e fetal (vale dizer, hemoglobina fetal [HbF]) (Figura 4.22). Muitos estudos têm mostrado ser elevada a taxa de consumo de oxigênio pelo concepto (maior do que a do adulto em condições basais). Não há confirmação de que vias importantes anaeróbias de liberação de energia funcionem em estado normal. O ácido lático, antes de se constituir em produto final do metabolismo fetal, atua como substrato.
Figura 4.22 ■ Curvas de dissociação do oxigênio: sangue humano, materno e fetal. Para a mesma tensão parcial de oxigênio, é a saturação do sangue fetal maior que a do sangue materno. (Adaptada de Eastman, NJ. et al. Bull. Johns Hopkins Hosp., 1932, 53:39.)
▶ Passagem transplacentária do CO2. As trocas de anidrido carbônico se fazem em sentido inverso das que ocorrem para o oxigênio. As pressões parciais de CO2 nos vasos uterinos e umbilicais são demonstradas a seguir: Uterina
PCO2 (mmHg)
Umbilical
Artéria
Veia
Artéria
Veia
32
40
48
43
Uma vez que o PCO2 materno diminui cerca de 10 mmHg em consequência da hiperventilação, o seu gradiente transplacentário nos estágios finais da gravidez é de cerca de 10 mmHg. Por outro lado, a hemoglobina materna tem maior afinidade ao CO2 do que a hemoglobina fetal. O CO2 é carreado no sangue predominantemente como bicarbonato, com alguma porção ligada à hemoglobina, formando a carboemoglobina. A maior concentração de hemoglobina no sangue fetal, comparada ao materno, possibilita ao concepto carrear mais CO2 para determinado PCO2. À medida que o CO2 é produzido pelo metabolismo fetal, elevando os níveis sanguíneos de PCO2, ele se difunde através da placenta para o organismo materno, desde que o PCO2 fetal exceda o materno.
■ Passagem transplacentária de outras substâncias ■ Ferro Durante a gravidez, a transferina diférrica (Fe+3) no sangue materno se liga ao receptor da transferina na MMV do sinciciotrofoblasto e é internalizada por endocitose clatrina-mediada. O ferro é reduzido (Fe+2) e liberado no endossomo acidificado, e a apotransferina materna retorna à membrana plasmática para ser secretada. O efluxo de ferro do endossomo é mediado pela proteína transportadora de metal divalente (DMT1). Uma vez no citoplasma, o ferro é usado em vias biossintéticas, armazenado (ligado à ferritina ou como ferro livre) ou transportado através da membrana plasmática basal para o feto. Uma vez liberado no citoplasma do sinciciotrofoblasto, o ferro é oxidado pela ferroxidase endógena antes de ser transportado pela ferroportina, também conhecida como proteína de transporte de metal (MTP1), através da membrana plasmática basal, para o feto.
■ Imunoglobulina Os anticorpos maternos, na verdade os IgG, são transportados pela placenta humana e medeiam a imunidade passiva no feto e no recém-nascido. O transporte placentário de IgG tornase significativo no meio da gravidez e aumenta no 3o trimestre. O IgG-1 é a subclasse preferencialmente transportada. A termo, os níveis de IgG no feto excedem àqueles do sangue materno, sugerindo transporte contra gradiente. O transporte através da membrana plasmática microvilosa se faz por meio de endocitose em fase líquida, em endossomo previamente acidificado, mais do que por endocitose receptor-mediada FcRIII. Outro receptor Fc, o receptor Fcr neonatal humano (hFcRn), com pH ótimo igual a 6 para a ligação com o IgG, parece ter atuação relevante. Uma vez transposta a membrana plasmática basal, o IgG, para alcançar o espaço intersticial, tem de atravessar a membrana basal e o endotélio do capilar fetal. A membrana basal não é obstáculo significativo, mas, para atravessar o endotélio, é necessária a transcitose por vesículas.
■ Glicose A glicose é substrato energético primário do metabolismo do feto e da placenta. Do total de glicose captada pela placenta do sangue materno, 30 a 40% são consumidos pela própria placenta. A força atuante para a transferência de glicose da mãe para o feto é a sua maior concentração no sangue materno comparada à do sangue fetal. O transporte de glicose se faz por difusão facilitada através dos transportadores de glicose (GLUT) expressos nas duas membranas plasmáticas polarizadas do sinciciotrofoblasto (Figura 4.23). No 1o trimestre estão expressas, no mínimo, quatro isoformas diferentes no sinciciotrofoblasto: GLUT1, 3, 4 e 12. Todavia, na gravidez tardia, o GLUT1 é a isoforma mais importante para o transporte de glicose através da placenta. O GLUT1 está especialmente expresso na membrana plasmática microvilosa, mais do que na membrana plasmática basal.
Figura 4.23 ■ Transporte placentário de glicose por difusão facilitada primariamente mediada pelo transportador de glicose 1 (GLUT1). A concentração de glicose na veia umbilical é apenas 1 mM inferior à do espaço interviloso, indicando a grande capacidade placentária de transporte da glicose. (Adaptada de Jansson & Powell, 2009.)
■ Aminoácidos O transporte de aminoácidos (AA) através da membrana placentária é processo ativo com gasto de energia gerado pela Na+,K+ ATPase, resultando em concentração muito maior no sangue fetal do que no materno. O transporte de AA pela placenta é complexo, e o sinciciotrofoblasto expressa no mínimo 15 transportadores diferentes de AA, cada transportador mediando o transporte de vários AA e cada AA utilizando diversos transportadores. O transporte ativo através da MMV concentra os AA no citosol do sinciciotrofoblasto (Figura 4.24). Uma vez concentrados no citosol do sinciciotrofoblasto, os AA atravessam a membrana plasmática basal em direção à circulação fetal, utilizando o grande gradiente de concentração existente direcionado para o feto (Figura 4.24).
■ Lipídios Entre os mamíferos, o recém-nascido humano é o que contém maior proporção de gordura; em média 15% do peso corporal. Isso indica que, no final da gestação, grande parte dos nutrientes transferidos para o concepto é armazenada como gordura. Os triglicerídios não atravessam a placenta, mas os ácidos graxos livres (AGL) o fazem por difusão simples. A lipoproteína lipase (LPL), encontrada no lado materno da placenta, mas não no fetal, favorece a hidrólise dos triglicerídios no espaço interviloso. As partículas de LDL do plasma materno se ligam a receptores específicos na MMV do sinciciotrofoblasto e são transportadas por endocitose receptor-mediada. No lisossomo do sincício, os LDL são hidrolisados por enzima, dando origem ao(s): (1) colesterol para a síntese da progesterona; (2) AGL, incluindo os essenciais, como o ácido linoleico. No plasma materno, os AGL são transportados de duas maneiras (Figura 4.25): (1) ligados à albumina, formando o complexo albumina-AGL; (2) através dos triglicerídios (TG) existentes nas lipoproteínas maternas, em especial o VLDL, que é hidrolisado em AGL pela LPL expressa pela MMV. Os AGL alcançam o compartimento intracelular por difusão simples. Alternativamente as lipoproteínas maternas (VLDL/LDL) interagem com receptores clatrina-mediados e são internalizadas por endocitose. As vesículas são acidificadas e os receptores liberam a partícula de lipoproteína e retornam para a membrana apical. As lipoproteínas são processadas nos endossomos e nos lisossomos, e eventualmente os TG são hidrolisados pelas lipases intracelulares. Os AGL no citoplasma sincicial são transportados para o feto através da membrana plasmática basal por mecanismo ainda mal elucidado. A síntese da passagem transplacentária é observada na Figura 4.26. O transporte transplacentário de glicose, aminoácidos e ácidos graxos está assegurado no cenário de oxigenação adequada (Figura 4.27). Em condições fisiológicas, a placenta consome 40% do O2 e 70% da glicose fornecida pela mãe. A glicose e os aminoácidos são os principais estimuladores da insulina e do fator de crescimento insulina-símile (IGF) e, por certo, do crescimento fetal. Ademais, os aminoácidos são utilizados para a síntese proteica e contribuem para a massa muscular. Os ácidos graxos desempenham papel de precursores dos eicosanoides, componentes estruturais das membranas fetais e das bainhas de mielina. No 3o trimestre, o armazenamento do tecido adiposo provê reserva para os ácidos graxos essenciais. O eixo endócrino inclui hormônios como cortisol, tireoxina e leptina, que modulam a diferenciação e a maturação do concepto de acordo com a disponibilidade de substrato, o que pode ter impacto significante na programação fetal.
Figura 4.24 ■ Transporte ativo de aminoácidos (AA) através da placenta, que resulta em concentração mais elevada no sangue fetal comparada à existente no sangue materno. O transporte ativo através da membrana microvilosa é energizado pela Na+,K+ ATPase. A concentração de AA no citoplasma do sinciciotrofoblasto é muito superior às existentes nos sangues materno e fetal. O transporte através da membrana plasmática basal é facilitado por transportadores específicos. (Adaptada de Jansson & Powell, 2009.)
Figura 4.25 ■ Transporte placentário de lipídios. No sangue materno há duas maiores fontes de ácidos graxos livres (AGL) que podem ser transportadas para o feto: (a) AGL ligado à albumina, formando o complexo albumina-AGL que pode interagir com a proteína de membrana de ligação ao AGL resultando na transferência do AGL através da membrana microvilosa (MMV), (b) através dos triglicerídios existentes nas lipoproteínas maternas, especialmente a lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL), que é hidrolisada em AGL pela lipoproteína lipase (LPL) expressa na MMV. Por outro lado, as lipoproteínas maternas interagem com os receptores LDL/VLDL na MMV, resultando em endocitose e hidrólise intracelular, com liberação de AGL. Intracelularmente, os AGL são transportados por proteínas de ligação. O transporte através da membrana plasmática basal não é conhecido. (Adaptada de Jansson & Powell, 2009.)
Figura 4.26 ■ Passagem transplacentária. (Adaptada de Moore, KL. The developing human, Philadelphia, Saunders, 1973.)
Figura 4.27 ■ Transporte de glicose, aminoácidos e ácidos graxos. (Adaptada de Baschat, 2004.)
■ Trocas amnióticas Tem-se afirmado que o líquido amniótico (LA) possibilita os movimentos do feto, protegendo a grávida dele e, desse modo, amparando o concepto dos traumatismos que atingem a mãe. O fluido amniótico favorece o equilíbrio térmico, possibilita o desenvolvimento adequado do pulmão fetal, age como barreira contra a infecção, e, ao formar-se a bolsa d’água, distribui homogeneamente a pressão resultante das metrossístoles, auxiliando, pela sua viscosidade, a expulsão fetal. ▶ Mecanismos biológicos básicos envolvidos nas trocas de água. Não há evidência de existir transporte ativo de água ou secreção em qualquer parte do organismo. A água
atravessa as membranas em resposta somente a gradientes osmóticos ou hidrostáticos; na ausência deles, não se movimenta. Assim, a “secreção” de água pelo tecido amniocorial simplesmente não ocorre, e sua movimentação através dessas membranas, no 3o trimestre, se fará de modo passivo ou por osmose, da cavidade amniótica para o compartimento fetal, mediante potencial de gradiente químico entre o líquido amniótico hipotônico e os fluidos fetais isotônicos. Os mecanismos fundamentais que participam no transporte de água são: • Fluxo em massa: na presença de gradiente, a água move-se através de camadas de tecidos porosos multicelulares, como o âmnio, por processo não difusional conhecido como fluxo em massa. O movimento de água assim realizado depende do gradiente, mas excede o que ocorreria por difusão simples na membrana amniótica em 100 a 200 vezes. O movimento em massa é não difusional e é produzido sem dispêndio de energia; tampouco envolve transporte ativo. O movimento passivo de moléculas de água torna-se aumentado porque a membrana de trocas contém poros ou canais em que a água existe em forma de solvente. Ao contrário, a transferência da água através de membrana não porosa (p. ex., membrana bilipídica artificial ou celular), em resposta a gradiente osmótico ou hidrostático, ocorre em taxas equivalentes à da difusão simples • Fluxo através de membrana semipermeável: o âmnio é altamente permeável à água, mas totalmente impérvio a muitos compostos com peso molecular acima de 1.000 (albumina). Outras substâncias menores (ureia, glicose, cloreto de sódio etc.) difundem-se rapidamente pelo âmnio, mas, ainda assim, manifestam alguma força osmótica, isto é, a membrana de trocas se comporta de modo semipermeável a esses solutos. Vale dizer que as grandes moléculas, como a albumina, exercem força osmótica ideal para a transferência de água. As moléculas pequenas se difundem celeremente através das membranas, determinando, todavia, efeito osmótico mínimo, quando comparado ao promovido pelas macromoléculas.
■ Origem e reabsorção do líquido amniótico ▶ Volume e composição do líquido amniótico. Durante o 1o trimestre, o LA é isotônico com o plasma materno e o fetal, mas contém pouquíssima proteína, e a tensão de O2 é extremamente baixa. O LA, nessa fase, origina-se do transudato do plasma do feto através da pele não queratinizada. Com o desenvolvimento da gestação, a composição do LA diverge daquela do plasma. A sua osmolaridade, assim como a concentração de sódio, decresce, efeito decorrente da urina fetal diluída. Em comparação com a primeira metade da gestação, a osmolaridade do LA diminui de 20 a 30 mOsm/kg com o avanço da gestação para aproximadamente 85 a 90% da osmolaridade do plasma materno. Em contrapartida, ureia, creatinina e ácido úrico no LA aumentam durante a 2a metade da gestação, alcançando concentração duas a três vezes maior do que a do plasma fetal. Com o progredir da gravidez, o volume do LA experimenta alterações notáveis (Figura 4.28):
aumenta progressivamente (10 semanas: 30 mℓ; 20 semanas: 300 mℓ; 30 semanas: 600 mℓ; 38 semanas: 1.000 mℓ), mas, a partir do termo, há queda rápida (40 semanas: 800 mℓ; 42 semanas: 350 mℓ), compatível com a elevada incidência de oligoidramnia observada na gestação pósmadura. Durante a última metade da gestação, a fonte principal do LA inclui a produção de urina fetal e a secreção do líquido pelos pulmões do concepto. As principais vias de remoção do LA são a deglutição fetal e, possivelmente, a absorção intramembranosa para o sangue do feto. A urina fetal forma a maior parte do LA, que é ultrafiltrado do plasma do concepto, sem proteína ou glicose.
■ Produção de líquido amniótico ▶ Primeiro trimestre. O líquido amniótico, no início da gravidez, é isomolar com o plasma fetal e o materno, como já mencionado. Água e eletrólitos transitam livremente através da pele antes da queratinização epitelial, e essa trajetória representa a maior rota de formação do líquido amniótico na primeira metade da gravidez. Os rins começam a excretar urina com cerca de 10 a 11 semanas de vida. Após esse período, desempenham papel importante na composição do líquido amniótico.
Figura 4.28 ■ Volume do líquido amniótico (vLA) de 8 a 44 semanas da gestação. Os pontos representam os valores médios por cada intervalo de 2 semanas; a área azulada cobre o intervalo de confiança a 95% (2,5 e 97,5 percentis). (Adaptada de Brace & Wolf, 1989.)
▶ Segundo e terceiro trimestres. Caracteriza-se por produção de urina. Durante o restante da gravidez, os rins do feto são a maior fonte de líquido que entra no saco amniótico (Figura 4.29). Anormalidades na produção de urina determinam alteração no volume de líquido amniótico. Completa a obstrução da excreção de urina, instala-se oligoidramnia grave (síndrome de Potter), que é invariavelmente letal para o concepto. Quando o feto sofre acentuada hipoxia, redistribui-se o sangue de órgãos não essenciais, como a carcaça e os rins, incrementando o afluxo ao cérebro, ao coração e às suprarrenais. Essa redução do fluxo sanguíneo renal pode determinar diminuição no volume urinário, a explicar o desenvolvimento de oligoidramnia, pontual no CIR.
Observa-se débito urinário de 5 mℓ/h (120 mℓ/dia) na gravidez de 20 semanas, aumentando para 51 mℓ/h (1.224 mℓ/dia) no termo. Surpreendentemente, a osmolaridade do líquido amniótico diminui muito pouco apesar do grande afluxo de urina diluída, sugerindo mecanismo regulatório dessa osmolaridade intramniótica ou via alternativa que torna possível grandes trocas de gradiente osmótico, isto é, a via intramembranosa, descrita adiante. ▶ Líquido pulmonar. Os pulmões fetais contribuem significativamente para a formação do líquido amniótico. A partir de 7 semanas, a traqueia está aberta na faringe posterior e o fluido se move para fora dos pulmões em direção à garganta, na qual é deglutido ou deixa a boca para alcançar o líquido amniótico. Teste bastante conhecido que comprova ser o movimento resultante de líquido pulmonar em direção ao líquido amniótico é a dosagem dos fosfolipídios pulmonares (surfactantes), por meio da amniocentese. Outro exemplo que confirma a direção do movimento do líquido pulmonar é o fato comum de se encontrar mecônio no líquido amniótico, que raramente é visto nos pulmões fetais, a não ser quando há asfixia, quando o concepto apresenta movimentos conhecidos como gasping.
Figura 4.29 ■ Trocas amniofetais.
No final da gravidez, cerca de 340 mℓ/dia de líquido deixam os pulmões fetais pela traqueia. Parte é deglutida (170 mℓ), e o restante vai para o líquido amniótico; assim, o total da produção de líquido pulmonar (340 mℓ) equivale a um terço da produção de urina fetal, mas, na verdade, só 1/6 alcança o LA. O concepto apresenta movimentos respiratórios em cerca de 30 a 40% do tempo. Essas contrações do diafragma estão associadas a incursões bidirecionais de líquido através da traqueia.
■ Reabsorção do líquido amniótico ▶ Deglutição. Fluido é retirado do líquido amniótico pela deglutição fetal, maior via de reabsorção na segunda metade da gravidez. Impossibilitado o concepto de deglutir, por exemplo, por obstrução no aparelho gastrintestinal, em geral, desenvolve-se o polidrâmnio. O volume de líquido amniótico deglutido é significativamente inferior à produção de urina fetal e, no entanto, em condições normais, não ocorre o polidrâmnio. ▶ Via intramembranosa. A quantidade de líquido deglutida pelo feto não se iguala àquela produzida pelos rins e pelos pulmões. Como o vLA não se modifica expressivamente durante a segunda metade da gestação, outra rota de reabsorção do LA está implicada – a mais provável é a via intramembranosa. A via intramembranosa refere-se à rota de absorção do LA através do âmnio placentário, para os vasos fetais da placa corial. Por outro lado, a via transmembranosa, entre o âmnio membranoso e os vasos maternos deciduais, é desprezível. A passagem de água através de membrana biológica é uma característica do fluxo transcelular, processo mediado por canais de água da membrana celular, chamados aquaporinas (AQP), na verdade proteínas hidrofílicas intramembranosas (Figura 4.30). Elas se organizam na membrana celular como tetrâmeros, mas cada monômero forma um poro hidrofílico que funciona independentemente como canal de água. A AQP mais importante nas membranas fetais é a AQP1, mas também a 3, 8 e 9. A estrutura de todas as AQP (1 a 13) é similar, embora algumas AQP também possibilitem, além da água, a passagem de glicerol, ureia e outras moléculas maiores. ▶ Via transmembranosa. Outra via de absorção do LA tem sido investigada. Em particular, a via transmembranosa (LA em direção ao sangue materno através do âmnio membranoso) é extremamente pequena em relação à via intramembranosa, apenas 10 mℓ/dia no termo. A Figura 4.31 ilustra a soma de todas as vias de movimento do LA, materno-amnióticas e amniofetais. A observação atenta da lâmina mostra que o movimento de trocas no LA está em equilíbrio, explicando o não desenvolvimento de poli e oligoidramnia. A Tabela 4.1 sumariza as possibilidades de trocas materno-ovulares.
Tabela 4.1 ■ Trocas materno-ovulares. Trocas maternofetais ou transplacentárias Trocas amnióticas • Trocas materno-amnióticas ○ Âmnio membranoso (transmembranosa – desprezível) • Trocas amniofetais ○ Epiderme (1o trimestre) ○ Urina ○ Líquido pulmonar ○ Deglutição ○ Âmnio placentário (intramembranosa) ○ Âmnio funicular (desprezível)
Figura 4.30 ■ Representação esquemática da aquaporina (AQP).
Figura 4.31 ■ Esquema representativo das trocas amnióticas próximo ao termo. O tamanho das setas é diretamente proporcional à taxa associada de fluxo. As setas cheias representam fluxos cujos valores já são conhecidos e as setas hachuradas, valores estimados. Os números indicam o volume do fluxo em mℓ/dia. A urina fetal é a principal fonte de líquido amniótico e a deglutição, a via primordial de absorção. Cerca de 50% do líquido pulmonar é deglutido após deixar a traqueia (seta curva). A via intramembranosa se realiza na superfície fetal da placenta entre o âmnio placentário e a rede capilar da placa corial. A via transmembranosa é desprezível e se realiza através do âmnio membranoso e a circulação materna da parede uterina.
■ Pontos-chave A transferência luteoplacentária sinala a produção de progesterona pela placenta, o que ocorre entre 8 e 9 semanas de gestação. A placenta humana não pode converter os esteroides C21, pregnenolona e progesterona, em precursores C19 dos estrogênios, pois é desprovida de 17αhidroxilase. O feto supre esses precursores para a síntese de estrogênios na placenta (unidade fetoplacentária). O papel principal do hCG na gravidez é o estímulo para a produção continuada de progesterona pelo corpo lúteo, essencial para a manutenção da gravidez inicial. O hPL tem vinculações metabólicas importantes, relacionadas a seus efeitos contrainsulínicos e lipolíticos. Dessa maneira, a placenta dirige nutrientes maternos continuamente para o feto, assegurando suprimento ininterrupto de glicose. O hormônio liberador da gonadotrofina (GnRH) é secretado pelo citotrofoblasto e estimula a produção de hCG pelo sinciciotrofoblasto.
As trocas transplacentárias podem ser por: difusão simples (O2), difusão facilitada (glicose), transporte ativo (aminoácidos), ultrafiltração (água e sódio) e endocitose (IgG). O feto, embora viva em regime de “carência de O2”, tem mecanismos defensivos (HbF, aumento do hematócrito, circulação fetal). As trocas materno-amnióticas são desprezíveis (via transmembranosa), mas as amniofetais, muito importantes. As fontes de líquido amniótico são a urina fetal e o líquido pulmonar; as de absorção, a deglutição fetal e a via intramembranosa. A aquaporina 1 desempenha papel relevante no transporte de água através do âmnio.
5 Modificações do Organismo Materno
6 Propedêutica da Gravidez 7 Diagnóstico da Gravidez 8 Idade da Gestação e Data Provável do Parto 9 Estática Fetal 10 Estudo da Bacia 11 Assistência Pré-natal 12 Contratilidade Uterina 13 Mecanismo do Parto 14 Parto. Estudo Clínico e Assistência 15 Puerpério 16 Lactação
■ Modificações sistêmicas ■ Modificações dos órgãos genitais
As alterações fisiológicas observadas na gestação são decorrentes, principalmente, de fatores hormonais e mecânicos, e os ajustes verificados no organismo da mulher devem ser considerados normais durante o estado gravídico, embora determinem, por vezes, pequenos sintomas que afetam a saúde da paciente. Para que essas modificações experimentadas pela gestante sejam mais bem compreendidas, é conveniente distingui-las em sistêmicas e dos órgãos genitais.
■ Modificações sistêmicas ■ Postura e deambulação A postura da gestante se altera, precedendo mesmo a expansão de volume do útero gestante. Quando, porém, a matriz, evadida da pelve, apoia-se à parede abdominal, e as mamas, dilatadas e engrandecidas, pesam no tórax, o centro de gravidade se desvia para frente, e todo o corpo, em compensação, projeta-se para trás. A atitude adotada então é, de modo involuntário, a de quem carrega objeto pesado, mantendo-o, com as duas mãos, na frente do abdome. Essa situação torna-se mais nítida quando a gestante está de pé, visto que, para manter o equilíbrio, empina o ventre, provocando a lordose da coluna lombar (Figura 5.1). Amplia-se a base do polígono de sustentação, os pés se afastam, e as espáduas se projetam para trás. Grupamentos musculares que ordinariamente não têm função nítida ou constante passam a atuar, estirando-se e contraindo-se, e sua fadiga responde pelas dores cervicais e lombares, queixa comum. A gestante, ao andar, lembra, com seus passos oscilantes e mais curtos, a deambulação dos gansos – marcha anserina. A base de sustentação ampliada e os ângulos que formam os pés com a linha mediana aumentados, principalmente à direita, por conta do dextrodesvio uterino, conferem peculiaridades à sua movimentação. As articulações apresentam maior mobilidade durante a gestação, notadamente as sacroilíacas e a sínfise pubiana. Atribui-se à relaxina, secretada pela placenta, a frouxidão dos ligamentos, especialmente da sínfise pubiana, que pode alargar cerca de 4 mm nas primíparas e 4,5 mm nas multíparas. A principal resultante dessas modificações é o aumento da capacidade pélvica, favorecendo a disjunção sinfisária e os movimentos de nutação do sacro. Essa crescente mobilidade das articulações contribui para transformar a postura materna e a sua marcha, como já relatado anteriormente. É a ostentação da gravidez, pride of pregnancy, epíteto shakesperiano que fez fortuna.
Figura 5.1 ■ Centro de gravidade na gestante. As setas mostram a tendência do seu deslocamento, compensado pela lordose. (Adaptada de Greenhill, JP. Obstetrics 13th ed., Philadelphia, Saunders, 1966.)
■ Metabolismo As alterações no metabolismo materno são necessárias para suprir as exigências suscitadas pelo rápido crescimento e desenvolvimento do concepto durante a gravidez. Grandes modificações no metabolismo de energia e no acúmulo de gordura têm sido documentadas. As alterações do metabolismo basal na gravidez são complexas e estão descritas no Capítulo 11. ▶ Metabolismo glicídico. Na gravidez, as alterações do metabolismo glicídico são notáveis: • Em razão de outra estrutura ter sido associada, o concepto, consumidor de glicose, a mãe vê-se submetida à permanente demanda de glicose. Diante de período prolongado de jejum, o feto continua a extrair glicose e aminoácidos da gestante, em taxas idênticas às observadas nos períodos de alimentação (parasitismo verdadeiro) • A fim de prover suprimento ininterrupto de glicose e de aminoácidos para o concepto, a gestante faz ajustes importantes: não consome mais indiscriminadamente a glicose como antes, e, à medida que a gravidez se desenvolve, a sua utilização periférica diminui, graças à elaboração de hormônios contrainsulares pela placenta.
A glicose é transferida rapidamente ao feto, por difusão facilitada, embora seja pequeno o gradiente de concentração (os níveis fetais de glicose são cerca de 20 mg/dℓ inferiores aos da mãe). O consumo contínuo de glicose pelo concepto e seu rápido transporte através da placenta influenciam profundamente o metabolismo dos carboidratos na gestante. Em todos os estágios da gestação, depois de uma noite de jejum, os níveis de glicemia são 15 a 20 mg/dℓ inferiores aos sinalados fora da gravidez. A gravidez exibe aumento na resistência à insulina ao final do 2o trimestre podendo chegar à aproximadamente 80% no termo. Níveis elevados de hormônio lactogênio placentário humano (hPL), hormônio do crescimento placentário humano (hPGH) e adipocinas (leptina, adiponectina, TNF-α, IL-6) estão todos implicados no processo. Os níveis de hPL elevam-se rapidamente no 1o e no 2o trimestre e alcançam o seu máximo nas últimas 4 semanas da gravidez. O efeito diabetogênico do hPL resulta na mobilização de lipídios na forma de ácidos graxos livres (AGL). Esses AGL serviriam como fonte de energia, poupando glicose e aminoácidos, que estarão disponíveis para o feto. No 3o trimestre, após a administração de glicose, observa-se hiperinsulinismo pós-prandial, à conta dos fatores contrainsulares já aludidos. Não há hiperinsulinismo nas pacientes com limitada capacidade de elaborar o hormônio e que irão apresentar o diabetes gestacional (Capítulo 33). O efeito inibitório da insulina na lipólise é significativamente reduzido durante o 3o trimestre quando comparado ao de outras fases do ciclo gestatório. Em resumo, a gravidez avançada caracteriza-se por mudanças em seu metabolismo, no que se refere à preservação de glicose à custa da utilização dos lipídios. A liberação excessiva de ácidos graxos também contribui na redução da utilização da glicose materna. ▶ Metabolismo lipídico. Durante a gestação, a mãe tem de adaptar o seu metabolismo para fazer frente à contínua demanda fetal de nutrientes através da placenta, a fim de suprir o seu desenvolvimento. Quantitativamente, a glicose e os aminoácidos são os nutrientes mais abundantes que atravessam a placenta, e a dependência do feto a essas substâncias é bem conhecida. Todavia, a placenta é praticamente impermeável aos lipídios, exceto aos AGL e aos corpos cetônicos. Não obstante, alterações marcantes no metabolismo lipídico materno durante a gestação têm importantes implicações no crescimento fetal. Duas alterações consistentes no metabolismo materno durante a gestação são o acúmulo de lipídios nos tecidos da gestante e a hiperlipidemia gestacional.
■ Metabolismo do tecido adiposo materno O aumento do peso materno durante a gestação corresponde ao crescimento da unidade fetoplacentária e ao acúmulo dos seus próprios tecidos, especialmente o relacionado com a elevação de lipídios nos depósitos de gordura. Esse fenômeno, comum na gravidez humana e de alguns animais, ocorre durante os primeiros 2/3 da gestação e é responsável pela maior parte do acréscimo de peso materno, excluindo o decorrente do concepto, e parece estar diretamente
relacionado com a hiperfagia, pois desaparece com a restrição alimentar. Esse aumento nos depósitos de gordura maternos é especialmente decorrente da lipogênese aumentada; ele corresponde à elevação na síntese de ácidos graxos e do glicerídio glicerol, indicando que a formação dos triglicerídios está exaltada. A tendência de acumular gordura cessa durante o último trimestre da gravidez, quando o metabolismo lipídico se transmuda para estado catabólico, em virtude de diversas alterações coincidentes que ocorrem no tecido adiposo, como: • O aumento da atividade lipogênica diminui rapidamente • A atividade lipolítica torna-se exaltada talvez comandada pelo hPL em razão de sua ação similar à do hormônio do crescimento. O aumento da atividade lipolítica do tecido adiposo eleva a liberação de AGL e de glicerol na circulação materna, na qual eles alcançam grandes concentrações no plasma. A transferência placentária desses dois produtos lipolíticos é baixa, e o fígado materno é o principal receptor. Como se observa na Figura 5.2, após serem convertidos no fígado em suas respectivas formas ativas, AGL em acil-CoA e glicerol no glicerol-3-fosfato, eles podem ser utilizados para a esterificação, na síntese dos triglicerídios, produção de corpos cetônicos, por meio da utilização do AGL, ou formação de glicose no que concerne ao glicerol. No final da gestação, a transferência aumentada de AGL e de glicerol ao fígado em decorrência da lipólise nos tecidos adiposos justifica a exaltada esterificação e a subsequente liberação hepática na forma de triglicerídios da lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL). A síntese de corpos cetônicos torna-se altamente incrementada durante o final da gestação sob condições de jejum, e o uso desses produtos pelos tecidos maternos reduz o consumo de glicose, que assim fica disponível de ser transferida para o feto. No final da gravidez, a gliconeogênese a partir do glicerol está aumentada, poupando aquela proveniente dos aminoácidos, que são transportados para o feto (Figura 5.2). Conclui-se que o feto se beneficia dos produtos finais do metabolismo decorrente da atividade lipolítica do tecido adiposo materno. Os corpos cetônicos cruzam livremente a placenta e podem ser utilizados como combustível fetal ou mesmo como substratos para a síntese de lipídios no cérebro. Finalmente, a atividade lipolítica intensa do tecido adiposo durante o final da gestação também favorece os tecidos maternos, pois nesse estágio a utilização periférica de glicose é bastante diminuída pela resistência à insulina, e os produtos lipolíticos – especialmente AGL e corpos cetônicos – podem ser utilizados como combustíveis alternativos, poupando a glicose.
Figura 5.2 ■ Maiores alterações que ocorrem no metabolismo lipídico no final da gestação. Nesse estágio, a lipólise do tecido adiposo torna-se a maior fonte de substratos para a gliconeogênese e a síntese de triglicerídios. A glicose e os aminoácidos são metabólitos essenciais para o concepto e continuamente atravessam a placenta, enquanto os corpos cetônicos difundem-se para o feto apenas em condições de jejum, quando a cetogênese torna-se altamente acelerada. +, via aumentada; –, via inibida; TG, triglicerídio; Apo B-100, apoproteína B-100; VLDL, lipoproteína de muito baixa densidade.
■ Hiperlipidemia materna Durante a gravidez normal há aumento constante nos triglicerídios plasmáticos e pequeno acréscimo no colesterol. Essa hiperlipidemia corresponde ao enriquecimento proporcional de triglicerídios nas frações lipoproteínas, mesmo naquelas que os transportam em baixas concentrações, tais como a lipoproteína de baixa densidade (LDL) e a lipoproteína de alta densidade (HDL). O maior acúmulo absoluto nos triglicerídios no plasma, contudo, corresponde ao VLDL. Essas lipoproteínas são utilizadas no fígado, e os triglicerídios que elas carregam são derivados do AGL e do glicerol, que também são sintetizados no próprio órgão ou o alcançam a partir da circulação, na qual são liberados pela lipólise do tecido adiposo (Figura 5.2), que está muito aumentada no final da gestação, conforme descrito. A produção acentuada dos triglicerídios VLDL e sua remoção diminuída da circulação em decorrência da menor atividade da lipoproteína lipase (LPL) no tecido adiposo são os principais fatores responsáveis pelo aumento dos triglicerídios VLDL durante a gestação. A abundância de triglicerídios VLDL no plasma materno, assim como de outros fatores sumarizados na Figura 5.3, contribui para o acúmulo de triglicerídios nas outras lipoproteínas. Um
desses fatores é o aumento da atividade da proteína de transferência do éster de colesterol (CETP), que catalisa a transferência de triglicerídios do VLDL para as lipoproteínas pobres nesses lipídios, LDL e HDL, enquanto a de éster de colesterol ocorre no sentido contrário. Outro fator contribuinte para o mesmo efeito é a diminuição da atividade da lipase hepática (HL) que também é observada no final da gravidez. A HL controla a conversão do HDL2b no final da gestação.
Figura 5.3 ■ Fatores propostos para o acúmulo de triglicerídios (TG) nas principais lipoproteínas circulantes durante o final da gestação. A produção elevada de VLDL é o principal fator para explicar o aumento dos níveis plasmáticos dessa lipoproteína. A atividade CETP elevada observada na gestação facilita a transferência (setas de ponta única hachuradas) de triglicerídios por ésteres de colesterol (CE) do VLDL para o LDL e o HDL que são pobres em TG. Além disso, o LDL e o HDL podem trocar TG e CE (setas de ponta dupla hachuradas) sem modificações significantes. Em virtude de a atividade de lipase hepática (HL) catalisar a conversão da subfração HDL2b, rica em triglicerídios, para a HDL3, que é pobre, a diminuição dessa enzima durante a gravidez facilita o acúmulo do HDL2b.
■ Benefícios da hipertrigliceridemia materna para o feto Muito embora os triglicerídios não cruzem a barreira placentária, o feto se beneficia da hipertrigliceridemia materna: • Sob condições de jejum, o fígado materno mostra aumento da atividade da LPL, tornando-se órgão receptor de triglicerídios circulantes que são usados como substrato para a síntese de corpos cetônicos, e esses compostos rapidamente se difundem pela placenta e são utilizados pelo feto • A atividade da lipase na placenta torna ácidos graxos essenciais provenientes dos triglicerídios maternos disponíveis para o feto. A lipase da placenta hidrolisa os triglicerídios
maternos, e os AGL liberados podem alcançar o feto para serem reconvertidos em triglicerídios • A indução da LPL nas mamas por volta do parto dirige triglicerídios circulantes para essa glândula, visando à produção de leite (Figura 5.2). Por esse mecanismo, ácidos graxos essenciais da dieta materna que circulam na forma de triglicerídios podem se tornar disponíveis para o lactente.
■ Ácidos graxos essenciais Os ácidos graxos essenciais (AGE) referem-se a lipídios que não podem ser sintetizados pelo organismo e devem provir da alimentação. As duas famílias de ácidos graxos essenciais – ômega3 e ômega-6 – são requeridas para funções fisiológicas, incluindo transporte de oxigênio, armazenamento de energia, papel na membrana celular e regulação da inflamação e da proliferação celular. Na gravidez, os AGE são necessários para o desenvolvimento da unidade fetoplacentária no início da gestação, e o ácido docosaexanoico (DHA), um tipo de ômega-3 derivado de peixe marinho, é vital para a homeóstase materna, assim como o desenvolvimento do cérebro e da retina fetal durante todo o 3o trimestre. Os AGE, como já se referiu anteriormente, são aqueles não sintetizados pelo organismo, sendo incorporados pela alimentação: ácido linolênico (ômega-3) e ácido linoleico (ômega-6). Os AGE são benéficos para a mãe, prevenindo doenças cardiovasculares, câncer do colo e doenças imunológicas, assim como são indispensáveis para o desenvolvimento cerebral e visual do concepto. Os ácidos ômega-3 e ômega-6 são precursores dos ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa (AGPICL): ácido araquidônico, da série ômega-6; ácido eicosapentanoico (EPA) e ácido docosaexanoico (DHA), da série ômega-3. O feto não tem capacidade de sintetizar os AGPICL por meio dos seus precursores ômega-3 e ômega-6, sendo suas necessidades supridas pela placenta e pelas reservas tissulares da mãe, principalmente do tecido adiposo. As principais fontes de ômega-3 são peixes gordurosos de água fria (salmão, atum), truta, sardinha, ostra, mariscos, óleos de linhaça e de canola, nozes e rúcula. A dieta moderna proporciona 7 a 10 vezes mais ômega-6 do que ômega-3, quando o correto seria 5:1. Os ácidos graxos trans (AGT) são também prejudiciais para a saúde, pois inibem a formação dos AGPICL. ▶ Metabolismo proteico. Este tema é mal estudado; a concentração da maioria dos aminoácidos está reduzida na gravidez. As proteínas totais, embora aumentem em valores absolutos pela hemodiluição plasmática, têm suas concentrações diminuídas. As de albumina sofrem redução nítida, enquanto é menor a queda das gamaglobulinas. Os teores de alfa e de betaglobulinas e os de fibrinogênio, ao contrário, ascendem. Aspectos relacionados com as necessidades calóricas de vitaminas e sais minerais na gestação, assim como o aumento ponderal da gestante, por serem tópicos de grande importância na
assistência pré-natal, serão analisados quando este tema for abordado (Capítulo 11). ▶ Metabolismo hidreletrolítico. Uma das alterações sistêmicas mais notáveis observadas na gravidez é a retenção de líquido (8 a 10 ℓ), intra e extracelular, mas especialmente responsável pelo aumento do volume plasmático. Essa alteração hidreletrolítica é decisiva para que ocorram outras modificações importantes, tais como o aumento do débito cardíaco e o do fluxo plasmático renal. Consequência direta do acúmulo do volume plasmático é observada na interpretação dos exames hematológicos na gravidez. O acréscimo do volume plasmático é maior na gravidez gemelar e menor naquela complicada pelo crescimento intrauterino restrito (CIR) e pela préeclâmpsia. O provável mecanismo para essa adaptação é a retenção de sódio, determinada principalmente pela maior secreção de aldosterona pela suprarrenal, a despeito do efeito natriurético da progesterona. Para conservar o sódio, quando a taxa de filtração glomerular aumenta em torno de 50%, surge na gravidez mecanismo compensatório representado pelo sistema renina-angiotensina (Figura 5.4 A e B). A renina é elaborada pelo aparelho justaglomerular renal e age, em última análise, estimulando a secreção de aldosterona pelo córtex suprarrenal, via angiotensina. A aldosterona é responsável pelo aumento da reabsorção tubular de sódio, preservando a homeóstase materna. Não seria despropositado denominar essa peculiar situação hormonal de “hiperaldosteronismo secundário da gravidez”. Aceitando-se que o ganho total de peso na gravidez seja de cerca de 11 kg, dos quais 70% são de água, para manter a isotonicidade, tornam-se necessários 25 g de sódio ou 60 g de cloreto de sódio. Concluindo, o sódio deverá ser conservado para prover quantidade adicional indispensável à expansão tecidual e dos compartimentos líquidos, durante a gestação. Na verdade, a concentração de sódio plasmática encontra-se ligeiramente diminuída na gestação, assim como a osmolaridade total. A gestante parece aceitar esse nível de osmolaridade, sem elevar a diurese. Por outro lado, o limiar de sede na gravidez está alterado de tal sorte que a gestante sente vontade de ingerir líquido com nível mais baixo de osmolaridade do que a não gestante. Do mesmo modo, há redução acentuada também da pressão oncótica (pressão coloidosmótica), determinada principalmente pela queda na concentração de albumina plasmática de cerca de 20% (níveis gravídicos: 2,8 a 3,7 g/dℓ). O significado dessa alteração é o de que a pressão oncótica é o fator mais relevante para o equilíbrio de Starling, vale dizer, o grau de passagem de líquido através dos capilares (inclusive dos capilares glomerulares). Assim, a diminuição da pressão oncótica do plasma é responsável pelo aumento da taxa de filtração glomerular renal (TFG) observada na gravidez, além de contribuir para o desenvolvimento do edema periférico, trivial até mesmo na gravidez normal. Em resumo, os fatores responsáveis pela retenção de líquido estão descritos a seguir:
• Retenção de sódio • Novo nível de osmolaridade • Diminuição do limiar da sede • Redução da pressão oncótica.
Figura 5.4 ■ Representação esquemática (A) e visão clássica (B) do sistema renina-angiotensina. ECA, enzima conversora de angiotensina.
As consequências da retenção de líquido são: • Redução na concentração de hemoglobina • Redução do hematócrito • Diminuição da concentração de albumina • Aumento do débito cardíaco
• Elevação do fluxo plasmático renal • Edema periférico. ▶ Metabolismo do cálcio. O nível de cálcio no soro é rigorosamente regulado e mantido nos limites normais pelo hormônio da paratireoide ou paratormônio (PTH) e pela vitamina D. O precursor da vitamina D na pele é o 7-deidrocolesterol, que, sob a ação dos raios ultravioletas solares, transforma-se no colecalciferol (pré-vitamina D3), também encontrado em alimentos e suplementos. O colecalciferol sofre duas hidroxilações no organismo: uma 25-hidroxilação no fígado (calcidiol) e outra 1-hidroxilação no rim (calcitriol ou 1 a 25-di-hidroxicolecalciferol), constituindo a vitamina D3 ativada, responsável por suas ações biológicas. A vitamina D2 é o ergocalciferol sintetizado no laboratório. O PTH é estimulado pela hipocalcemia e inibido pela hipercalcemia. O PTH influencia o metabolismo do cálcio diretamente pela reabsorção óssea e pela formação de vitamina D3. ▶ Na gravidez. Grande quantidade de cálcio (e de fósforo) é transferida contra gradiente de concentração da mãe para o feto (transporte ativo), com acúmulo de 25 a 30 g de cálcio no termo (Figura 5.5). Para isso, a absorção de cálcio no intestino dobra na gravidez, consequência também do nível duplamente elevado de vitamina D3 de origem placentária e materna renal. A vitamina D3 elevada abre os canais de cálcio voltagemdependentes na membrana dos enterócitos e é, dessa maneira, responsável pela maior absorção do elemento. Na verdade, o nível de PTH no soro diminui na gestação, o que é compensado pelo acréscimo do peptídio relacionado com a paratireoide (PTHrP) de origem fetal e placentária. O PTHrP elevado na gravidez, produzido pela paratireoide fetal e pela placenta, contribui para o aumento da vitamina D3, o decréscimo da concentração de PTH e a regulação do transporte transplacentário da mãe para o feto. O transporte de cálcio pelo trofoblasto também depende do aumento da concentração da proteína de ligação ao cálcio que atinge máxima concentração no 3o trimestre, quando é marcante o crescimento fetal. A calcitonina é um hormônio peptídico de 32 aminoácidos elaborado pelas células parafoliculares da tireoide. A calcitonina age como antagonista fisiológico de PTH, impedindo que o cálcio se eleve acima dos níveis normais. ▶ Na lactação. Durante a lactação, a perda diária de cálcio pelo leite de 220 a 340 mg (Figura 5.5). Os níveis de PTHrP de origem mamária estão significativamente elevados na lactante e são responsáveis pela desmineralização do seu esqueleto, por estímulo à reabsorção tubular renal de cálcio e por supressão do PTH.
Figura 5.5 ■ Metabolismo do cálcio. Na gravidez, o aumento do Ca++ no esqueleto fetal se faz principalmente à custa da maior absorção de Ca++ no intestino da mãe, consequência da ação direta do aumento da vitamina D3 de origem placentária e materna (renal) no enterócito. Na lactação, o aumento do Ca++ no esqueleto do bebê obtido através do leite materno é possível porque o Ca++ é mobilizado do esqueleto da lactante, assim como é maior a sua reabsorção tubular renal, ambos mecanismos dependentes da elevação do PTHrP de origem mamária (PTH).
■ Alterações hemodinâmicas no sistema cardiovascular As maiores alterações hemodinâmicas vistas na gravidez incluem o aumento do débito cardíaco, do volume sanguíneo, por causa principalmente do volume plasmático, da redução da resistência vascular periférica e da pressão sanguínea. Essas alterações já aparentes no início da gravidez alcançam o seu máximo no 3o trimestre (28 a 32 semanas) e permanecem relativamente constantes até o parto (Figura 5.6). Elas contribuem para o ótimo crescimento e desenvolvimento do feto e protegem a mãe das perdas fisiológicas de sangue no parto. O conhecimento dessas alterações hemodinâmicas é indispensável para prever os seus efeitos na grávida cardiopata. O início da gravidez é caracterizado por vasodilatação periférica, provavelmente consequência do aumento do óxido nítrico, fator vasoativo, relaxante, elaborado pelo endotélio vascular. O acréscimo significativo da frequência cardíaca já pode ser observado na gestação de 5 semanas, e isso contribui para a elevação do débito cardíaco (débito cardíaco = volume sistólico × frequência cardíaca). Todavia, a elevação do volume sistólico apenas é observada
várias semanas depois, possivelmente pela expansão do volume plasmático. A elevação progressiva na frequência cardíaca materna prossegue até 28 a 32 semanas, com um acréscimo de 10 a 15 bpm (10 a 20%), se comparado ao ritmo existente fora da gravidez (Figura 5.6). Há igualmente aumento progressivo no volume sistólico durante a primeira metade da gestação em razão do maior volume plasmático, como já foi relatado. Em consequência, o débito cardíaco, que em média era de 5 ℓ/min fora gravidez, eleva-se para aproximadamente 7 ℓ/min em torno de 28 a 32 semanas da gestação (acréscimo de 40 a 50%), estabilizando-se até o parto (Figura 5.6). A partir de 20 semanas de gestação, o útero gravídico impede o retorno venoso ao coração, quando a gestante assume a posição supina (Figura 5.7). Muitas mulheres experimentam, em consequência, a chamada síndrome de hipotensão supina, às vezes apresentando até perda da consciência. Adotando o decúbito lateral esquerdo, o débito cardíaco é restaurado quase automaticamente. A despeito do aumento acentuado do volume sanguíneo e do débito cardíaco, há redução da pressão arterial, em virtude do decréscimo da resistência vascular periférica. A pressão arterial sistólica e a diastólica estão diminuídas de 5 a 10 mmHg no 2o trimestre, atingindo valores médios de 105/60 mmHg. No 3o trimestre, a pressão se eleva e se normaliza no termo. A aferição precisa da pressão diastólica é fundamental para caracterizar os distúrbios hipertensivos da gravidez, e a técnica correta é aquela que utiliza como ponto de referência o desaparecimento do som (5o som de Korotkoff). A pressão venosa nos membros inferiores aumenta cerca de três vezes, em virtude da compressão que o útero determina nas veias pélvicas, em particular na posição de pé, parada, quando há maior aprisionamento de sangue nas pernas e nas coxas. Há, na gravidez, tendência à hipotensão, lipotimia, ortostática, edema dos membros inferiores, varicosidades e hemorroidas. Alterações hemodinâmicas também ocorrem durante o parto, quando cada contração uterina leva à autotransfusão de 300 a 500 mℓ de sangue de volta para o sistema circulatório. O débito cardíaco aumenta cerca de 35% durante as contrações e 10% nos intervalos. No período expulsivo, por ocasião dos puxos, o débito cardíaco aumenta ainda mais, cerca de 50%. A resposta simpática à dor e à ansiedade durante o parto causa maior elevação na frequência cardíaca e na pressão arterial.
Figura 5.6 ■ Alterações do volume sanguíneo e do débito cardíaco.
Figura 5.7 ■ Síndrome de hipotensão supina.
No pós-parto imediato, o útero se contrai firmemente, e mais uma vez há autotransfusão sanguínea (aproximadamente 300 mℓ), que aumenta o débito cardíaco em 60 a 80%. De fato, a partir de 6 a 8 semanas de pós-parto o débito cardíaco reassume seus valores não gravídicos. Constituem as alterações cardiovasculares mais relevantes: • Aumento da frequência cardíaca (10 a 20%) • Aumento do volume sistólico (10%) • Aumento do débito cardíaco (40 a 50%) • Diminuição da pressão arterial média (10%) • Diminuição da resistência vascular periférica (35%).
■ Sistema sanguíneo A alteração marcante no volume plasmático observada na gravidez normal causa diluição da maioria dos fatores circulantes. De particular interesse é a hemodiluição das hemácias. Embora a
produção de eritrócitos esteja elevada na gravidez, com pico de cerca de 15% em torno de 32 semanas, ela é ofuscada pela elevação de 40% do volume plasmático (Figura 5.6). Assim, os índices hematológicos que dependem do volume plasmático tendem a decrescer: contagem de hemácias, hematócrito, concentração de hemoglobina. A concentração de hemoglobina reduz de 13,3 g/dℓ, valor médio não gravídico, para 11 g/dℓ, no 3o trimestre da gravidez. É a clássica “anemia fisiológica da gravidez”, confundida frequentemente com o estado de anemia ferropriva (Capítulo 41). A gestante requer maior quantidade de ferro alimentar para suprir as suas necessidades e as do feto, e, na verdade, há aumento na absorção desse elemento no intestino. A gravidez impõe solicitações acentuadas no sistema hematológico materno, tendo o ferro expressão maior na síntese da hemoglobina. Assim, na gravidez, deve-se contabilizar a quantidade de ferro que o feto a termo necessita, que é da ordem de 300 mg, mais o indispensável para o acréscimo da eritropoiese materna e a prevenção da anemia consequente às perdas hemorrágicas do parto. Tendo-se em conta as eliminações excretórias normais e a demanda materna, placentária e fetal, calcula-se que as necessidades de ferro durante toda a gravidez sejam de 1 a 1,3 g (Tabela 5.1). Durante a gravidez, as necessidades de ácido fólico estão aumentadas de 50 para 400 µg por dia [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2008]. Há pesquisas comprovadas de que a suplementação de ácido fólico (0,4 mg/dia) 1 mês antes da gravidez e no 1o trimestre reduz expressivamente os defeitos do tubo neural (DTN) e outras malformações. A suplementação universal de ácido fólico também é proposta para prevenir a anemia megaloblástica. Ao contrário das hemácias, os leucócitos têm a sua concentração majorada na gestação, podendo alcançar, no termo, até 20 mil/mm3. A concentração de plaquetas exibe, por outro lado, pequeno decréscimo (250 para 210 mil/mm3, valores médios). Fala-se inclusive em trombocitopenia gestacional, no 3o trimestre, com níveis de 80 a 150 mil/mm3. Há igualmente alterações importantes na coagulação sanguínea durante a gravidez e, nesse contexto, caracterizadas por estado de hipercoagulabilidade. Ocorre aumento significante de diversos fatores da coagulação, notadamente do fibrinogênio, que pode atingir 400 a 600 mg/dℓ, no 3o trimestre, e redução da atividade fibrinolítica (Tabela 5.2). Essas modificações são responsáveis pela hemostasia fisiológica ao tempo da separação da placenta no secundamento. Na verdade, a contração miometrial é o principal mecanismo de defesa, comprimindo os vasos sanguíneos no leito placentário. Mas quase imediatamente, há depósito de fibrina na ferida placentária, consumindo 5 a 10% de todo o fibrinogênio circulante. Essa hipercoagulabilidade fisiológica da gravidez, em contrapartida, é responsável pelo risco aumentado de trombose que a grávida apresenta.
Tabela 5.1 ■ Necessidades de ferro na gravidez normal. Origem
Quantidade de ferro (mg)
Perdas excretórias
180-300
Demanda fetal
250-300
Demanda placentária
75
Perdas sanguíneas pós-parto
200
Produção aumentada de hemácias
300-400
Total no termo
1.005-1.275
Tabela 5.2 ■ Sistema de coagulação na gravidez. Fator
Nome
Efeitos da gravidez
I
Fibrinogênio
Aumento
II
Protrombina
Aumento discreto
III
Tromboplastina (fator tecidual)
–
IV
Cálcio
–
V
Proacelerina
Nenhuma alteração
VII
Proconvertina
Aumento
VIII
Globulina antiemofílica
Aumento
IX
Componente tromboplastínico do plasma
Nenhuma alteração
X
Fator Stuart
Aumento
XI
Antecedente tromboplastínico do plasma
Diminuição
XII
Fator de Hageman
Aumento
XIII
Fator estabilizante da fibrina
Diminuição
Portanto, as principais alterações hematológicas ocorridas na gestação são: • Diminuição: ○ Número de hemácias ○ Concentração de hemoglobina ○ Hematócrito • Aumento: ○ Leucócitos
○ Concentração de fibrinogênio.
■ Sistema urinário Tanto o sistema urinário superior como o inferior sofrem diversas modificações anatômicas e fisiológicas durante a gravidez.
■ Modificações anatômicas Os rins se deslocam para cima pelo aumento do volume uterino e aumentam em tamanho cerca de 1 cm em virtude do acréscimo do volume vascular renal e do espaço intersticial. Uma das mais significantes alterações do sistema urinário observadas na gravidez é a dilatação da sua porção superior que já ocorre a partir de 7 semanas em até 90% das gestantes e pode persistir até 6 semanas do pós-parto (Figura 5.8). Considera-se que essa hidronefrose fisiológica resulte tanto de fatores hormonais quanto mecânicos. O útero expandido diretamente comprime os ureteres, enquanto a progesterona inibe a musculatura lisa ureteral, determinando ureteroectasia. A dilatação ureteral é mais pronunciada à direita em virtude da dextrorrotação uterina, estando o ureter esquerdo relativamente protegido pela sigmoide. A dilatação do sistema urinário superior pode aumentar a estase urinária, predispondo a gestante a infecções urinárias, pielonefrite e nefrolitíase. Não obstante essa hidronefrose possa, por vezes, causar dor, exigindo analgésicos e até colocação de stents, ela é considerada fisiológica.
Figura 5.8 ■ Hidronefrose à direita.
No sistema urinário inferior, a anatomia da bexiga está distorcida pela compressão direta do útero gravídico. A bexiga é deslocada anteriormente, com expansão lateral, pari passu com a compressão do útero aumentado na cúpula vesical. Além disso, os níveis circulantes elevados de estrogênios determinam hiperemia e congestão da mucosa uretral e vesical. Há também redução da
resposta contrátil do colo vesical a estímulos alfa-adrenérgicos e diminuição do suporte pélvico da parede vaginal anterior e da uretra, alterações que podem contribuir para a incidência elevada de incontinência urinária na gravidez.
■ Modificações fisiológicas Com o aumento do débito cardíaco e a diminuição da resistência vascular sistêmica observados na gestação, há concomitante aumento do fluxo plasmático renal e da TFG, que podem estar aumentados, respectivamente, de 50 a 85% e 40,65%, quando comparados a valores não gravídicos. A elevação da TFG resulta em diminuição da creatinina plasmática, que alcança em média valores de 0,5 a 0,8 mg/dℓ. Isso causa repercussões importantes, uma vez que a excreção renal de determinados medicamentos pode estar alterada e os valores de cretinina no soro indicativos de insuficiência renal podem ser mais baixos. A concentração de ácido úrico, de valores não gravídicos de 4 mg/dℓ, cai para ≤ 3mg/dℓ no 1o trimestre da gravidez, devido à ação uricosúrica dos estrogênios e do aumento da taxa de FGR; eleva-se depois, a partir do 3o trimestre, até atingir 4 a 5 mg/dℓ no termo da gestação. A hipercalciúria também é comum na gravidez pelo aumento da absorção do cálcio intestinal. Todavia, a taxa de formação de cálculos renais permanece inalterada, à medida que fatores inibidores na sua produção, tais como citrato, magnésio e glicoproteínas, também estão aumentados. A glicosúria é fisiológica na gravidez e se deve ao aumento da TFG que excede o limite da reabsorção tubular da glicose. Desse modo, não é indicativa de diabetes na gestação, assim como não serve para o seu rastreamento. Igualmente, a proteinúria (microalbuminúria) é fisiológica na gravidez, sendo normais valores de proteína na urina de até 300 mg/dia. A despeito do enorme trabalho urinário na gravidez, o volume urinário não está acrescido. Até 80% da urina filtrada é absorvida nos túbulos proximais. A frequência urinária decorre da compressão do útero gravídico na bexiga. Por fim, entram em jogo os mecanismos compensatórios (sistema renina-angiotensina) responsáveis pela retenção de sódio observada na gravidez.
■ Sistema respiratório A expansão do volume sanguíneo e a vasodilatação da gravidez resultam em hiperemia e edema da mucosa do sistema respiratório superior. Essas alterações predispõem a gestante a congestão nasal, epistaxe e até mesmo a alterações da voz. O uso prolongado de descongestionantes deve ser desencorajado para o edema nasal fisiológico, pois resulta em rinite medicamentosa. Medicação não teratogênica está disponível para sintomas intoleráveis. Alterações marcantes na caixa torácica e no diafragma caracterizam a gravidez. Com o relaxamento dos ligamentos das costelas, o ângulo subcostal aumenta de 68 para 103°. Os
diâmetros anteroposterior e transverso do tórax aumentam 2 cm cada um, resultando na expansão da circunferência torácica de 5 a 7 cm. Embora o diafragma se eleve aproximadamente 4 cm pelo aumento do útero gravídico, sua função não é comprometida; na verdade, sua excursão está incrementada de 1 a 2 cm (Figuras 5.9 e 5.10). A complacência da parede torácica, todavia, diminui com o evoluir da gestação, aumentando o trabalho da respiração. Estudos radiológicos realizados no início da gravidez já atestam essas alterações anatômicas, muito antes que ocorra qualquer pressão mecânica do útero engrandecido. Já no 1o trimestre da gestação o volume-minuto, o produto do volume-corrente (tidal volume) pela frequência respiratória, aumenta 30 a 40%, refletindo a elevação do volume-corrente, pois a frequência respiratória não se altera. A expansão da caixa torácica e o aumento do estímulo respiratório criam o volume-corrente elevado (Figura 5.11). A progesterona parece desempenhar papel fundamental no estímulo do centro respiratório no sistema nervoso central. Pela elevação da cúpula do diafragma estão diminuídos o volume de reserva expiratório e o volume residual, em cerca de 20%, o que se reflete na capacidade residual funcional, também reduzida em 20%.
Figura 5.9 ■ Efeito do útero gravídico na elevação do diafragma e no alargamento do tórax. A. Mulher não gestante. B. Gestante no 3o trimestre. (Adaptada de Dombrowski, 2006.)
Figura 5.10 ■ Alterações respiratórias durante a gravidez. (Adaptada de Bonica, 1967.)
Figura 5.11 ■ Alterações fisiológicas respiratórias na gravidez. Pela elevação da cúpula do diafragma no final da gravidez estão diminuídos o volume residual e o volume de reserva expiratório, o que reflete na capacidade residual funcional. O aumento do volume-corrente (tidal volume) eleva o volume-minuto, mas a frequência respiratória não se altera. Essa hiperventilação é fisiológica desde o início da gravidez, provavelmente por causa da ação da progesterona no centro respiratório.
Tabela 5.3 ■ Equilíbrio acidobásico e gasometria na gravidez. Não gestante
Gestante
P O 2 (mmHg)
98-100
101-104
P CO 2 (mmHg)
35-40
25-30
pH arterial
7,38-7,44
7,40-7,45
Bicarbonato (mEq/ℓ)
24-30
18-21
Déficit de base (mEq/ℓ)
0,07
3-4
A hiperventilação da gravidez facilita as trocas gasosas nos pulmões. Tanto o PO2 no ar alveolar quanto o no sangue arterial se elevam. O consumo de oxigênio aumenta de 15 a 20% para fazer frente à massa materno-fetal adicional e ao trabalho cardiorrespiratório da gestação. A já referida hiperventilação da gravidez ocasiona alcalose respiratória compensada, com diminuição do PCO2 < 30 mmHg, embora haja modesto aumento no PO2 (101 a 104 mmHg). A diminuição do PCO2 é compensada pelo aumento da excreção urinária de bicarbonato, cuja concentração diminui no plasma; por isso, o pH arterial não sofre alteração significativa (pH = 7,4), caracterizando a alcalose respiratória compensada (Tabela 5.3). Cerca de 60 a 70% das gestantes livres de doença respiratória experimentam dispneia. Como os sintomas começam no 1o ou no 2o trimestre e se estabilizam no 3o, não é provável qualquer papel determinante do útero aumentado de tamanho. A dispneia parece decorrer da percepção da paciente à hiperventilação da gravidez. O exercício acarreta aumento compensatório na frequência respiratória, volume-corrente e consumo de oxigênio. Essa resposta adaptativa ao aumento do trabalho respiratório está amortecida na gestante em comparação a controles não gravídicos. Por isso, recomenda-se reduzir a intensidade do exercício aeróbio na gravidez. Durante o parto, as contrações uterinas dolorosas estão acompanhadas por resposta similar, que pode ser atenuada pela administração de analgésicos. Em decorrência do aumento do consumo de oxigênio materno e da diminuição da capacidade residual funcional, gestantes com asma, pneumonia ou outras doenças respiratórias estão mais suscetíveis à descompensação rápida. A resolução das alterações respiratórias induzidas pela gravidez começa 24 a 48 h após o parto e está completa com 7 semanas do puerpério. Portanto, as principais modificações respiratórias (Tabela 5.4) são: • Frequência respiratória sem alteração • Volume-corrente e volume-minuto aumentados cerca de 30 a 40% • Capacidade residual funcional diminui 20% • Hiperventilação fisiológica • Dispneia (em 60 a 70% das gestantes).
■ Sistema digestivo No 1o trimestre é frequente o aparecimento de náuseas e vômitos (50 a 90% das gestantes), levando, em geral, à anorexia, embora uma quantidade equivalente de mulheres relate melhora no apetite e parcela considerável admita “desejos” por certos alimentos. A base fisiológica das náuseas, habitualmente matinais, é desconhecida, embora possa estar relacionada com níveis crescentes de gonadotrofina coriônica humana (hCG) e de estrogênios. A gengivite, no ciclo gestatório, assim como fora dele, é consequente ao acúmulo da placa bacteriana na margem gengival, e se apresenta com eritema, sangramento e intumescimento da zona afetada, bem como extremo desconforto para a paciente. Quando essas alterações periodontais são muito intensas, podem deflagrar parto pré-termo, o que é discutível.
Tabela 5.4 ■ Parâmetros respiratórios na gravidez. Parâmetro
Definição
Alteração na gravidez
Frequência respiratória
N o de respirações/min
Inalterada
Capacidade vital
Quantidade máxima de ar que pode ser forçadamente expirado após máxima inspiração
Inalterada
Volume-corrente (tidal volume)
Quantidade de ar inspirado e expirado com a respiração normal
Aumento de 30 a 40%
Volume-minuto
Produto do volume-corrente pela frequência
Aumento de 30 a 40%
Capacidade residual funcional
Quantidade de ar nos pulmões durante o nível de repouso expiratório
Diminuição de 20%
Volume de reserva expiratório
Máxima quantidade de ar que pode ser expirado a partir do nível de repouso expiratório
Diminuição de 20%
Volume residual
Quantidade de ar nos pulmões após a expiração máxima
Diminuição de 20%
Capacidade pulmonar total
Quantidade total de ar nos pulmões após inspiração máxima
Diminuição de 5%
As gengivas estão comumente edemaciadas, hiperêmicas, e sangram com facilidade. Não se provou, contudo, tendência para o aparecimento de cáries dentárias na gestação, nem, tampouco, que a hiperêmese gravídica e o vômito matinal, provocando queda no pH bucal, aumentariam o risco de cáries. Durante os dois primeiros trimestres há redução na secreção gástrica de ácidos, explicando a incidência reduzida de úlcera péptica e a remissão das porventura preexistentes. O sistema gastrintestinal (esôfago, estômago, vesícula, intestino) permanece atônico durante toda a gestação. Os fatores determinantes são hormonais, os mesmos que relaxam a musculatura de artérias, veias e ureteres. Uma consequência imediata é a alta incidência de pirose, combinação do relaxamento do esfíncter gastresofágico ao aumento de pressão intra-abdominal, essa
condicionada pela presença do útero gravídico. A atonia do cólon explica a grande frequência da constipação intestinal. A vesícula fica hipotônica, distendida, com bile viscosa e com grande tendência de formar cálculo. A colecistectomia é a segunda causa de cirurgia não obstétrica na gravidez (1 a 8:10.000 gestações).
■ Sistema endócrino As complexas alterações endócrinas ocorridas na gravidez foram amplamente discutidas no Capítulo 4. Aqui, tão somente, trataremos da glândula tireoide.
■ Tireoide As alterações fisiológicas da gravidez determinam aumento de 40 a 100% na produção dos hormônios tireoidianos para atender às necessidades maternas e fetais. Anatomicamente, a tireoide sofre moderado aumento de volume de 10 a 20% causado por hiperplasia e maior vascularidade. Não há bócio, pois esse aumento é fisiológico. As principais alterações da fisiologia da tireoide na gravidez são observadas nas Figuras 5.12 e 5.13. Três séries de eventos ocorrem na tireoide materna. Durante o 1o trimestre e como consequência da estimulação da tireoide pela concentração elevada do hCG há inibição da hipófise e queda transitória do hormônio estimulante da tireoide (TSH) ou tireotrofina, entre 8 e 14 semanas. Em 20% das mulheres o TSH decresce abaixo do limite da normalidade. Iniciando na primeira metade da gestação e continuando até o termo, há aumento da globulina de ligação da tireotoxina (TBG), efeito direto da concentração elevada de estrogênios. Esse aumento é acompanhado pela queda marginal (10 a 15%) na concentração dos hormônios livre da tireoide (tri-iodotironina [T3]) e (tireotoxina [T4]), no que resulta estimulação do eixo hipotálamohipófise-tireoide e tendência a ligeiro acréscimo no TSH entre o início do 2o trimestre e o termo. A terceira série de eventos se desenrola no metabolismo periférico dos hormônios da tireoide e é mais proeminente na segunda metade da gestação. A placenta produz três enzimas deiodinases: tipos I, II e III. A tipo I não se modifica significativamente. A tipo II, expressa na placenta, converte T4 para T3. A tipo III, também encontrada em abundância na placenta, catalisa T4 em T3 reversa (rT3).
Figura 5.12 ■ Alterações relativas dos hormônios tireoidianos durante a gravidez. Há aumento marcante e precoce da globulina de ligação da tireoxina (TBG) produzida pelo fígado e da gonadotrofina coriônica humana (hCG) pela placenta. O nível elevado de TBG aumenta a concentração de tireoxina total (T4) no soro; o hCG tem ação tireotrófica e estimula a produção materna de T4. A indução transitória pelo hCG aumenta a concentração de T4 livre que inibe a secreção do hormônio estimulante da tireoide (TSH). (Adaptada de Nader, 2009.)
Figura 5.13 ■ Alterações fisiológicas da tireoide na gravidez. São eventos marcantes a elevação da concentração da globulina de ligação da tireoxina (TBG) e da gonadotrofina coriônica humana (hCG) com sua ação tireotrófica, mas também alterações periféricas nos hormônios tireoidianos. (TRH, hormônio
liberador de tireotrofina; TSH, hormônio estimulante da tireoide; T4, tireoxina; T3, triiodotironina. (Adaptada de Nader, 2009.)
▶ Iodo e bócio. A tireoide materna mostra aumento da vascularidade e alguma hiperplasia, mas bócio declarado não ocorre, a menos que haja deficiência de iodo na alimentação ou doença da tireoide. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a ingesta de 150 µg de iodo/dia para adultos e 200 µg/dia para gestantes. O aumento da depuração renal de iodo na gravidez e a quantidade significativa de iodo transferida para o feto, que no final da gravidez passa a produzir seus próprios hormônios, causa mínima hipotireoxinemia, mas não bócio, em áreas de suficiência de iodo. A carência de iodo se manifesta por elevada hipotireoxinemia, com aumento de TSH e da tireoglobulina (TBG), com significativa hipertrofia da tireoide. ▶ Exames de laboratório. Aumento sustentado do T4 total e queda do TSH caracterizam o início da gravidez. Cerca de 99,7% do T4 estão ligados à TBG, que tem seus níveis majorados na gestação pela ação dos estrogênios. Na gravidez, a medida do T4 total é recomendada em substituição ao T4 livre. O T4 total aumenta durante o 1o trimestre e o valor de referência é aproximadamente 1,5 vez maior do que o não gravídico, e assim permanece por toda a gestação. Os níveis de TSH decrescem no 1o trimestre durante o pico do hCG (que tem alguma ação tireotrófica) e depois se elevam. Os limites superiores do TSH na gravidez são de 2,5 mUI/mℓ no 1o trimestre e 3,0 mUI/mℓ no 2o e no 3o trimestre.
■ Pele e fâneros Cerca de 50% das gestantes exibem estrias no abdome, no decurso do último trimestre, por vezes encontradas também nos seios (estrias gravídicas ou víbices). Inicialmente vermelhas, tornam-se, mais tarde, brancas ou nacaradas, persistindo indelevelmente. Há aumento na pigmentação da linha alva do abdome inferior (linea nigra), da vulva, das aréolas mamárias e da face (cloasma). É habitual o aparecimento de telangiectasias, a traduzirem os altos níveis estrogênicos. É provável que o hormônio melanotrófico da hipófise atue também sobre os melanoblastos epidérmicos, acentuando a pigmentação, e o sistema nervoso autônomo influencie a formação do pigmento nas gestantes. A hipertricose é fenômeno fisiológico durante a gravidez (pelos na face e em outras regiões, crescimento mais acentuado dos cabelos), com unhas muito quebradiças e surgimento do eritema palmar e da hipertrofia das glândulas sudoríparas e sebáceas.
■ Modificações dos órgãos genitais ■ Vulva e vagina Sob a influência dos estrogênios, o epitélio vaginal se espessa durante a gravidez e há aumento da sua descamação, o que resulta maior secreção vaginal. Essa secreção tem pH mais ácido do que o existente na mulher não gestante (4,5 a 5,0), para proteger contra a infecção ascendente. A
vagina também aumenta a sua vascularização com a gravidez. A vulva e a vagina tumefazem-se, experimentam amolecimento e têm sua coloração alterada. A vulva pigmenta-se e o sítio lindeiro à extremidade inferior da vagina perde o róseo característico, tomando a cor vermelho-vinhosa, entreabertos ninfas e grandes lábios (sinal de Jacquemier). O conteúdo da vagina altera-se basicamente, e o estudo da citologia esfoliativa rastreou peculiaridades significativas. O epitélio vaginal, durante a vida da mulher, é sede de importantes alterações, cuja apreciação, pelos esfregaços, permite inferências acerca do endocrinismo sexual (Figura 5.14).
■ Útero O útero é formado pela fusão na linha média dos dois ductos müllerianos. O útero é composto de três camadas separadas e distintas: (1) serosa, cobertura peritoneal externa; (2) miométrio, camada de músculo liso; (3) endométrio, membrana mucosa que reveste a cavidade uterina. Órgão simples, na aparência, o útero apresenta características histológicas e funcionais peculiares. Nem é de se estranhar sua complexidade: destinado a reter e abrigar o concepto e seus anexos; gravídico, em pouquíssimo tempo se modifica fundamentalmente. Com extrema sensibilidade a estímulos hormonais e nervosos, é dotado da capacidade de adaptar-se a desmesurado crescimento e de proporcionar ao ovo considerável afluxo sanguíneo; sãolhe inerentes, ainda, as propriedades de impedir a interrupção prematura da gravidez e, chegado o termo, de transformar, a curto prazo, a capacidade de retenção em eficaz motor expulsivo.
Figura 5.14 ■ Esquema da mucosa vaginal na menacma. Nos esfregaços, as células basais são pequenas
e arredondadas; seus núcleos, volumosos, e o citoplasma é, em geral, basófilo (A e B). As células intermediárias, também basófilas, têm conformação variável consoante as condições hormonais vigentes (C). As células superficiais são achatadas, poligonais, de núcleo picnótico, em geral, acidófilas; traduzem efeitos estrogênicos, e a contagem de células cariopicnóticas e acidófilas possibilitam estabelecer índices numéricos normativos de picnose e acidofilia (D).
Processam-se, logo após a nidificação, inúmeras modificações na consistência, na forma, no volume, na capacidade, na posição, no peso e na espessura do útero. A essas transformações macroscópicas correspondem outras, microscópicas e funcionais. Nos últimos anos, pesquisas diversas tornaram possível considerar o útero como órgão endócrino, de importância similar à das glândulas de secreção interna da mulher. As substâncias nele produzidas têm efeito local e sistêmico. Durante e fora do ciclo gestativo, é indiscutida a produção e síntese de prostaglandinas. Há de diferenciar-se, no útero, corpo, istmo e colo; a morfologia da víscera se modifica, de modo considerável nas diversas fases da vida (Figura 5.15).
Figura 5.15 ■ O útero nas diversas fases da vida. A. Feto a termo: o colo é maior do que o corpo. B. Recém-nascido e infância; carente de estímulos hormonais, o útero regride, de modo mais acentuado no corpo. C. Puberdade: a atividade ovariana provoca o desenvolvimento de órgão. D. Menacma: útero não gravídico de nuligesta. E. Menacma: útero não gravídico, de multigesta. F. Senilidade: há involução de todo o órgão, especialmente do corpo. G. Na gestante.
■ Útero na gravidez Há imediato amolecimento na região correspondente ao local da implantação, progredindo por todo o órgão e pelas outras estruturas pélvicas. É a diminuição da consistência subordinada à embebição gravídica e à redução do tônus, precocemente notadas especialmente no istmo, determinando o sinal de Hegar.
Simultaneamente o órgão aumenta, inicialmente de modo desigual, mais acentuada a expansão na zona de implantação, o que lhe impõe forma assimétrica (sinal de Piskacek). A matriz de piriforme passa a globosa, e o toque dos fundos de saco laterais revela essa morfologia (sinal de Nobile-Budin), enquanto o pulso da artéria uterina pode ser percebido. De volume crescente, o corpo do útero mantém a configuração esférica até o 4o a 5o mês, quando o alongamento predomina sobre os diâmetros transversos, conferindo à víscera forma cilíndrica. A expansão do istmo, levando à incorporação de sua cavidade à do corpo, acentua, nos últimos meses, a cilindrificação da matriz. Nos primeiros 2 meses o útero é órgão exclusivamente pélvico; com 12 semanas torna-se perceptível ao palpar abdominal, o que depende do panículo adiposo e da musculatura da parede. O crescimento subsequente pode ser acompanhado, mês a mês, delimitando-se o fundus e medindo-se a altura em relação à sínfise púbica. O útero sofre aumento dramático no seu peso (de 4 a 70 g na não gestante, para 1.100 a 1.200 g na gestante a termo) e no seu volume (de 10 mℓ para 5 ℓ) durante a gravidez. O número de células miometriais aumenta no início da gestação (hiperplasia) e, depois, permanece estável. O crescimento miometrial na segunda metade da gestação resulta primariamente do aumento no tamanho da célula (hipertrofia) que ocorre sob a influência dos hormônios esteroides, principalmente os estrogênios. Ainda na segunda metade da gestação, a distensão que a matriz sofre pelo aumento do seu conteúdo determina afinamento gradual da parede uterina, especialmente no istmo, que não sofre hipertrofia e, então, constitui o segmento inferior do útero. O aumento do tamanho do útero é acompanhado por elevação de 10 vezes no seu fluxo sanguíneo – de 2% do débito cardíaco fora da gravidez, para 17% no termo. Além disso, há redistribuição do fluxo sanguíneo dentro do útero, antes igualmente repartido para o miométrio e o endométrio, e agora 80 a 90% dirigidos para a placenta. Esse aumento marcante do fluxo uteroplacentário é consequência da diminuição da resistência vascular placentária, vale dizer, remodelação das artérias espiraladas pelo trofoblasto extraviloso. No início da gestação avigora-se a anteversoflexão, o que motiva polaciúria, elemento semiótico no diagnóstico da gravidez. O crescimento subsequente ameniza e depois elimina a pressão sobre a bexiga, substituída pelo apoio do órgão, engrandecido e pesado, sobre a parede abdominal. Em 80% dos casos a matriz está desviada para o lado direito e torcida no mesmo sentido (dextrodesvio e dextrotorção). A espessura do miométrio, de 7 a 12 mm antes da gravidez, alcança nos primeiros meses cerca de 25 mm; assim se mantém até o 4o a 5o mês. A subsecutiva ampliação da cavidade uterina dá-se por crescimento de todo o órgão e afinamento do miométrio, que no corpo e a termo tem somente 4 a 10 mm. São fenômenos contemporâneos: • Estabilização do peso • Início do afinamento da parede • Cilindrificação.
Nos primeiros meses da gravidez é pequena a participação do istmo uterino nas modificações do útero. Sua cavidade ainda é continuação direta do canal cervical, e o orifício interno do canal do istmo é, de fato, o orifício interno anatômico. A abertura desse orifício e o crescente desenvolvimento do istmo incorporam, gradativamente, a cavidade do istmo à cavidade do corpo, constituindo, o conjunto, a cavidade do útero. À conta disso, o orifício interno do canal cervical passa a denominar-se também orifício interno obstétrico. Há quem considere, no conjunto assim formado, corpo e istmo, três porções: os segmentos superior, médio e inferior. O segmento superior é a porção do corpo situada acima de um plano passando pela inserção uterina dos ligamentos redondos. O segmento médio estende-se desse ponto até o segmento inferior. O segmento inferior corresponde ao istmo. O uso não consagrou a divisão do corpo em segmentos superior e médio, mas sancionou, para o inferior, a denominação abreviada de segmento.
■ Miométrio O aumento da massa do miométrio, na gravidez, decorre de: • Hipertrofia dos elementos musculares: aumento de volume dos preexistentes. É a hipertrofia menos nítida na cérvice • Hiperplasia dos elementos musculares: aumento quantitativo de miócitos, atribuído primeiramente à divisão das miocélulas, mas, na realidade, proveniente da metaplasia de elementos indiferenciados • Aumento do tecido conectivo (ou conjuntivo), assim das células como das fibras, e dos líquidos intersticiais (embebição gravídica). É também muito maior a vascularização. O miométrio é constituído, essencialmente, pelo entrelaçamento de dois sistemas de fibras simétricas, que se correspondem, como em química duas substâncias estereoisômeras. As fibras circulares das tubas uterinas continuam-se pelo útero, em espirais amplas, descendentes, cujo encontro se dá em ângulo aproximadamente reto na porção fúndica e, em ângulos mais abertos, nas zonas inferiores do útero. As fibras alcançam o istmo e a cérvice pela porção intravaginal (Figura 5.16). Superficialmente, sob o peritônio, há feixes musculares, de menor importância, diferente orientação e proveniência. Alguns continuam a musculatura longitudinal das tubas uterinas e da vagina; outros prolongam os ligamentos, sobretudo os redondos e os uterossacros, não avançando além da linha mediana (Figura 5.16). A gravidez não modifica a estrutura descrita (Figura 5.17). Pelo grande desenvolvimento do órgão e apesar da hipertrofia das fibras musculares, elas se desenrolam parcialmente, fenômeno que se acentua no istmo, quando da formação e expansão do segmento inferior. Atualmente, de acordo com essa concepção clássica do miométrio, acredita-se que ele seja constituído basicamente por três camadas musculares: uma fina, interna, de fibras musculares circulares; outra, igualmente delgada, externa de fibras musculares predominantemente
longitudinais, e uma central, a mais grossa, de fibras que se entrelaçam (Figura 5.18).
Figura 5.16 ■ Estrutura muscular e fibrosa do útero. Esquema de Görttler. A. São observadas: 1, as fibras longitudinais que prolongam as da tuba uterina e as da vagina; 2, as provenientes dos ligamentos redondos e uterossacros; 3, as que continuam as fibras circulares das tubas uterinas. B. Curso espiralado e decrescente das fibras que constituem a maior parte da massa miometrial. (Adaptada de O útero, edição de C.H. Boe BoehringerSohn, Ingelheim am Rheim.)
Figura 5.17 ■ Útero gravídico. Esquema de Görttler. Observe a formação do segmento inferior e a sua expansão. (id., ibid.)
A relação fibra muscular/tecido conjuntivo aumenta das partes inferiores do útero em direção ao fundo. Os níveis elevados de estrogênios estimulam a hipertrofia e a hiperplasia das células
miometriais, aumentando o peso do útero de 50 a 60 g, antes da gravidez, para 1.000 g no termo. No início da gravidez, o crescimento do útero é independente do feto. À medida que a gravidez progride, as divisões das células miometriais se tornam menos expressivas e a musculatura cresce por estiramento determinado pelo conteúdo uterino, o que aumenta em 15 vezes o comprimento das fibras musculares. Simultaneamente, com as alterações das células miometriais, conexões celulares especializadas se desenvolvem continuamente, as chamadas junções comunicantes. Essas junções comunicantes possibilitam que as alterações de potencial da membrana se espalhem rapidamente de uma célula a outra, facilitando a despolarização e, subsequentemente, a contração miometrial. Inicialmente, as contrações são indolores, e as mais generalizadas são denominadas de BraxtonHicks; posteriormente a atividade do marca-passo localizado ao fundo uterino promove as contrações coordenadas com dominância fúndica. Cerca de 100 bilhões de células musculares lisas compõem o miométrio. As junções comunicantes tornam possível a comunicação elétrica e metabólica entre grande grupo de células.
Figura 5.18 ■ Anatomia do útero. O miométrio se compõe de três camadas musculares. A camada interna está arranjada predominantemente no padrão circular. A camada intermediária, a mais grossa, é composta de fibras que se entrelaçam. Na camada externa as fibras correm longitudinalmente.
O segmento inferior contém menos músculos e vasos sanguíneos, é fino, e o local da incisão na imensa maioria das operações cesarianas. Imediatamente após o descolamento da placenta da parede uterina, as fibras entrelaçadas do miométrio se contraem (Figura 5.18). Isso oclui os vasos sanguíneos, que suprem a placenta, e reduz o sangramento. Se a placenta se insere no segmento inferior, deficiente de músculo, a hemostasia não será eficaz e poderá ocorrer sangramento copioso.
■ Endométrio As modificações do endométrio, que culminam na formação da decídua, de vital importância para a implantação e o desenvolvimento do ovo, foram descritas no Capítulo 2.
■ Colo Sob a influência dos estrogênios e da progesterona, o colo torna-se amolecido durante a gravidez. O estrogênio estimula o crescimento do epitélio colunar (ou glandular) do canal cervical, torna-se visível na ectocérvice e é denominado ectrópio ou eversão. Esse epitélio mais frágil está sujeito a sangramento. O colo fica azulado na gravidez em razão da sua maior vascularização. As prostaglandinas induzem a remodelação do colágeno cervical, particularmente no final da gestação, enquanto a colagenase produzida pelos leucócitos também contribui para o amolecimento do colo. Ao colo corresponde o canal cervical, e ao istmo, o canal do istmo. Fora da gravidez, o limite inferior do colo é o orifício externo do colo ou orifício externo do útero (Figura 5.19). A extremidade superior do colo é o orifício interno do colo, orifício externo do istmo ou orifício interno histológico. O limite superior do istmo é o orifício interno do istmo ou orifício interno anatômico. Na gravidez, o istmo desenvolvido e incorporado à cavidade do corpo sinala muito bem o limite superior do colo, denominado orifício interno obstétrico, em contrapartida ao orifício externo obstétrico, que é o orifício externo do colo (Figura 5.19). O amolecimento, notado ao exame da genitália interna, é precoce e constitui sinal de probabilidade no diagnóstico da gravidez. Modifica-se a posição do colo. Na decorrência do crescimento do corpo, a cérvice eleva-se e se orienta na vagina, situando-se posteriormente, em direção ao côncavo sacro. É de difícil acesso, tanto ao toque como ao exame especular. Quando a insinuação da cabeça ocorre, no final da gravidez, desce o colo e centraliza-se no eixo vaginal. Torna-se o orifício externo, ao termo, e até na nulípara, permeável ao dedo ou apenas à polpa digital; na multípara, e, sobretudo, quando há antecedentes de lacerações cervicais, é, desde cedo, franqueável por um ou dois dedos; no pré-parto dilata-se mais o orifício externo, que costuma, na multípara, mostrar-se entreaberto. O canal cervical é obliterado por secreção mucosa espessada – tampão mucoso –, dito de proteção ao ovo (Figura 5.20). A eliminação dele, nas proximidades do parto, à medida que o colo se encurta, constitui o sinal de tão grande importância clínica. O encurtamento do colo também é prenúncio do parto, acentuando-se até o completo apagamento, na verdade, fenômeno observado apenas em primíparas (Figura 5.20). O apagamento do colo é consequência da remodelação cervical, com quebra e rearranjo do colágeno pelas metaloproteinases da matriz, reação inflamatória mediada por citocinas e prostaglandinas, mas também da ação exercida pelas contrações de Braxton-Hicks do final da gravidez e dos ligamentos redondos, que empurram a apresentação para o canal do parto (insinuação), exercendo pressão mecânica na cérvice.
Este apagamento só ocorre em primíparas porque os ligamentos uterossacros que fixam o útero à pelve estão firmes e tensos na primeira gravidez (Figura 5.21). Nas multíparas, ao contrário, na dependência de gestações anteriores, os ligamentos se encontram frouxos, de tal modo que as contrações uterinas fracas da gravidez já não pressionam mais a apresentação o suficiente para o apagamento do colo, o que só ocorrerá em pleno trabalho de parto, quando as metrossístoles assumem caráter mais intenso.
Figura 5.19 ■ São sinônimos: 1, orifício interno do istmo e orifício interno anatômico; 2, orifício externo do istmo, orifício interno do colo, orifício interno histológico e orifício interno obstétrico; 3, orifício externo do colo, orifício externo do útero e orifício externo obstétrico.
Figura 5.20 ■ Apagamento do colo no pré-parto em primíparas.
Figura 5.21 ■ Apagamento do colo em primíparas pela ação das contrações de Braxton-Hicks e dos ligamentos redondos que exercem pressão mecância na apresentação fetal.
■ Pontos-chave O volume sanguíneo total e o débito cardíaco maternos aumentam em 40 a 50% na gravidez. Durante a gestação ocorre anemia fisiológica porque o aumento do volume plasmático é maior do que o de hemácias. A pressão sanguínea normalmente diminui durante o 2o tirmestre da gravidez e retorna a níveis pré-gravídicos próximo ao termo. Durante a gravidez a leucocitose é fisiológica. A gravidez é estado de hipercoagulabilidade e está associada a risco elevado de doença tromboembólica venosa. A alteração respiratória mais importante é a hiperventilação em decorrência do aumento do volume-corrente. O consumo de oxigênio na gravidez aumenta cerca de 15 a 20% para fazer jus ao acréscimo nas necessidades metabólicas. O hidroureter e a hidronefrose fisiológicos se desenvolvem durante a gestação, principalmente à direita, determinando estase urinária que predispõe à infecção. A filtração glomerular renal e o fluxo plasmático renal aumentam acentuadamente durante a gravidez, determinando redução nos níveis sanguíneos de ureia e de creatinina e presença de glicose na urina (glicosúria fisiológica). O aumento dos níveis de progesterona ocasiona esvaziamento gástrico mais lento, diminuição da motilidade intestinal, relaxamento do esfíncter esofágico e redução do tônus venoso, fatores que contribuem para a pirose, dor retroesternal, constipação, hemorroidas e varizes.
■ Anamnese e exame físico ■ Procedimentos complementares ■ Procedimentos eletrônicos
■ Anamnese e exame físico Os princípios gerais são os mesmos da semiologia médica, embora, do ponto de vista obstétrico, seja necessário detalhar inúmeras particularidades.
■ Identificação ▶ Idade. Embora o início da fertilidade possa ocorrer já aos 10 anos de idade, do ponto de vista biológico, as melhores condições para a gravidez ocorrem a partir de 18 a 20 anos. O período do mais perfeito desempenho dura cerca de uma década, até os 30 anos, quando os riscos para a mãe e para a criança começam a aumentar. Acima dos 35 anos, há aumento expressivo de anomalias fetais e distocias. ▶ Etnia. É necessário levar em consideração, pelo fato de o vício pélvico ser mais comum nas negras e nas mestiças. ▶ Profissão. As intoxicações decorrentes da prática profissional, de ação lenta, comprometem a evolução gravídica (p. ex., exposição a álcool, chumbo, fósforo, nicotina etc.). É importante informar-se a respeito da profissão da gestante, principalmente quando ela é predisposta a abortamento, a fim de que seja possível orientá-la quanto à conveniência de absterse de esforço físico. ▶ Estado civil. A influência dessa condição pode ser observada, visto que existem estatísticas que mostram maior morbidade e mortalidade materna e fetal entre as solteiras. ▶ Nacionalidade e domicílio. Dado importante, mesmo se considerado apenas o território nacional. Conforme a origem da paciente, haverá orientação no sentido de rastrear a possibilidade de enfermidades que poderão influenciar de maneira significativa na gestação (p. ex., doença de Chagas, esquistossomose, malária).
■ Anamnese geral ▶ Antecedentes familiares. É fundamental a investigação sobre a ocorrência de estados mórbidos nos ascendentes e colaterais (p. ex., diabetes, toxemia). A história do parceiro não deve ser omitida, bem como a possível ocorrência de malformações em ambas as famílias. ▶ Antecedentes pessoais. Vale conhecer o desenvolvimento da paciente nos primeiros anos de vida (p. ex., quando começou a andar, as condições de nutrição na infância etc.). A partir dessas informações, é possível analisar a existência ou não de deficiências alimentares no desenvolvimento ou que tenham causado raquitismo, com influência na formação do esqueleto, especialmente na constituição da pelve. Com relação ao período da puberdade, são solicitadas informações como a data da menarca e as características dos ciclos menstruais sucessivos, que orientam o obstetra sobre possíveis
deficiências endócrinas e fatores de hipodesenvolvimento genital. Além disso, é necessário pesquisar os antecedentes pessoais patológicos relacionados com enfermidades anteriores (p. ex., poliomielite, doenças ósseas, cardiopatias, nefropatias e pneumopatias) e operações pelas quais a gestante passou (principalmente as realizadas sobre o sistema genital: miomectomias, fístulas genitais, perineoplastias).
■ Anamnese obstétrica São investigados os antecedentes obstétricos e as informações da gravidez vigente.
■ Antecedentes obstétricos ▶ Gesta e para. Primigrávida ou primigesta é a mulher que concebe pela primeira vez; a primípara pariu em uma oportunidade ou está na iminência de fazê-lo (p. ex., a parturiente do primeiro concepto). O termo multigesta ou multigrávida aplica-se à mulher que gestou muitas vezes, independentemente da duração da gravidez. Secundi, terci ou quartigesta, para evitar a imprecisão, antepondo-se o algarismo romano correspondente ao sufixo gesta, em abreviação (IIgesta, IIIgesta etc.); se o resultado da gravidez foi parto, prematuro ou a termo, usa-se a terminação para e os mesmos prefixos (IIpara, IIIpara etc.), sendo consideradas essas pacientes multíparas. Paucípara é a mulher que pariu poucas vezes (até três). Nulípara é a que jamais deu à luz; nuligesta, a que nunca esteve grávida. Grávida, gesta e para, como sufixos, referem-se às gestações e partos ocorridos e não aos conceptos. Exemplificando: após a primeira parturição, gemelar, a paciente continua Igesta e Ipara; houve dois abortamentos e está em curso a terceira gestação, trata-se de IIIgesta, 0para. ▶ Paridade. Os perigos para a mãe e para o concepto, na gravidez e no parto, são maiores nas primíparas e naquelas que pariram mais de 4 vezes. ▶ Intervalo interpartal. Os riscos reprodutivos são reduzidos quando o intervalo entre os partos é de, no mínimo, 2 anos. ▶ Evolução dos ciclos gravídico-puerperais anteriores. Serão coletadas informações a respeito de gestações, partos e puerpérios anteriores, e a existência de abortamentos, toxemias e condições de aleitamento.
■ História da gravidez vigente Com relação à gravidez vigente, será questionada a data da última menstruação, os sinais subjetivos e objetivos, as alterações dos diversos órgãos e aparelhos e, em especial, a época em que foram percebidos os movimentos ativos do feto e a ocasião em que se deu a chamada queda do ventre, fatores que auxiliam na determinação da idade da gravidez e da proximidade do parto.
■ Exame físico obstétrico
Na semiótica geral, é necessário examinar o coração, os pulmões, as mamas, o abdome e as extremidades. O obstetra faz, minuciosamente, a inspeção obstétrica propriamente – palpação, ausculta e toque. A atitude e a marcha foram estudadas no Capítulo 5, dedicado às modificações do organismo materno.
■ Inspeção ▶ Cabeça. Junto aos limites do couro cabeludo, ocorre a formação de lanugem, bastante evidente, em consequência da intensificação da nutrição dos folículos pilosos, reflexos do metabolismo próprio da grávida e principalmente das influências hormonais, o que constitui o sinal de Halban. Em muitas gestantes, nota-se pigmentação difusa ou circunscrita, mais nítida nas zonas muito expostas à luz (fronte, nariz e região zigomática), de tonalidade escura, manchando a pele, denominada cloasma ou máscara gravídica. Essa alteração da deposição do pigmento será amenizada ao poupar a pele da insolação. A hiperpigmentação da gestante pode ser consequência da hiperfunção do lobo anterior da hipófise, por intermédio de suas células basófilas que, secretando hormônio melanotrófico, exageram a pigmentação, com preferência pelas regiões nas quais, na vida embrionária, foi realizada a oclusão da cavidade abdominal. ▶ Pescoço. Em virtude da hipertrofia da tireoide, sua circunferência aumenta, ficando mais evidente por volta do quinto ou sexto mês. ▶ Glândula mamária. A inspeção mostra as mamas com volume maior, em consequência da hipertrofia e das modificações que gradativamente vão ocorrendo para prepará-las à amamentação. A partir de 16 semanas, aparece secreção de colostro, que pode ser percebido pela expressão da base, na direção dos canais galactóforos (nessa pesquisa, deve-se proceder corretamente, evitando fazer apenas a compressão da região justamamilar que, além de infrutífera, poderia constranger a paciente). A aréola primitiva, com cor mais escura que fora da gestação, apresenta, ao redor, a aréola secundária, menos pigmentada, de limites imprecisos, chamada também aréola gravídica (sinal de Hunter). A melhor circulação que acompanha o desenvolvimento das mamas deixa perceber uma trama de vasos venosos na pele: é a rede de Haller. Na aréola primitiva, durante a gestação, aparecem os tubérculos de Montgomery, em número de 12 a 15, que costumam regredir no puerpério e são de duas naturezas: glândulas mamárias acessórias, ou sebáceas, hipertrofiadas. O exame das mamas, além de mostrar essas características que traduzem modificações gravídicas, e, portanto, orientam no diagnóstico, deve ser feito a fim de verificar malformações do mamilo (umbilicação ou inversão) que mostrem a dificuldade ou incapacidade para a amamentação. ▶ Abdome. Globoso ou ovoide, o abdome exibe as resultantes da distensão de sua parede pelo útero gravídico em crescimento. A cicatriz umbilical, anteriormente apresentada como depressão, passa a ser plana e, por vezes, até saliente. Nas primigestas, a musculatura da parede, conservando sua capacidade de contenção, mantém o útero em boa posição; contudo, nas
multíparas, fica comprometida a tonicidade da aponeurose e das fibras musculares, geralmente estabelecendo-se a diástase dos retos anteriores, o que condiciona o ventre pêndulo, sendo a causa comum de vícios de apresentação e de distocia pela falta de coincidência do eixo do útero com o do feto e o da bacia. Nas mulheres de pele mais escura, em especial, evidencia-se a hiperpigmentação da linha alva (linea nigra). Na gestante, a inspeção também mostra o aparecimento de estrias ou víbices, produzidas pela sobredistensão do retículo de fibras elásticas. Ao fim do ciclo gravídico-puerperal, esmaecem; no entanto, persistem na maioria das vezes. Há dois tipos de estrias: “recentes”, da gravidez atual, com cor violácea e fundo azulado; e “antigas”, brancas ou nacaradas, com aspecto perláceo. ▶ Membros inferiores. Costumam apresentar dilatação circunscrita de vasos sanguíneos, exagerados pela influência da gestação, ou até mesmo varizes aumentadas. No final da gravidez, em muitos casos, observa-se o edema. ▶ Aparelho genital externo. A pigmentação da pele mostra-se mais carregada, formandose aréola escura em torno do ânus. A influência hormonal da gestação e, mais adiante, o fator mecânico modificam a mucosa, que se mostra hiperpigmentada, tumefeita e com coloração alterada. De rosada torna-se cianótica, violácea ou azulada. Essas alterações são percebidas muito precocemente no vestíbulo e nas proximidades do meato urinário e se intensificam à medida que a gravidez progride, sendo conhecidas como sinal de Jacquemier, pelos europeus, e sinal de Chadwick entre os norteamericanos.
■ Palpação A palpação obstétrica é feita a partir do útero e de seu conteúdo. A altura uterina é estimada tendo-se o cuidado de reconhecer a resistência óssea do púbis e delimitar, sem comprimir, o fundo do útero, com a borda cubical da mão. A fita métrica mede o arco uterino, o que torna possível calcular a idade da gravidez, acompanhar o crescimento fetal, assim como suspeitar da gemelidade e do excesso de líquido amniótico (polidramnia). A circunferência abdominal é avaliada ao nível da cicatriz umbilical; na gestante a termo, tem em torno de 90 a 92 cm, em mulher não obesa. ▶ Consistência uterina. A palpação reconhece a consistência elástica-pastoso-cística (característica do amolecimento da parede uterina da gestante) e, devido à quantidade de líquido amniótico, sua maior ou menor tensão. Por meio dela, é possível determinar a existência de polidrâmnio. Durante a gestação, notam-se as contrações de Braxton-Hicks e, no decurso da dilatação e da expulsão, metrossístoles regulares, traduzindo a atividade uterina do trabalho de parto. ▶ Regularidade da superfície uterina. A palpação possibilita identificar a superfície lisa e regular da parede do útero gravídico normal ou a existência de nódulos e saliências, denunciando tumores miomatosos, de natureza variada. É necessário ter atenção para não
confundir o achado com o que se nota ao palpar das pequenas partes fetais (pés, mãos, cotovelos e joelhos), em contato íntimo com a parede do órgão gestatório, principalmente se ela estiver adelgaçada. ▶ Conteúdo uterino. Observado por meio do método palpatório, visa o reconhecimento do feto nele contido, além de sua apresentação e posição. Sistematizando a técnica da palpação, consideraremos a seguir suas diversas fases (manobras de Leopold-Zweifel). ▶ Primeiro tempo. Delimita-se o fundo do útero (Figura 6.1), com ambas as mãos comprimindo a parede abdominal com as bordas cubitais, tendo contato, quanto possível, com a sua face posterior e anterior. As mãos se dispõem encurvadas, procurando reconhecer, com a face palmar, o contorno do fundo do útero e a parte fetal que o ocupa. Na maioria dos casos, sente-se aí o polo pélvico, com a característica de ser mais volumoso que a cabeça, esferoide, de superfície irregular, resistente, mas redutível, deixando perceber, eventualmente, as cristas ilíacas como duas proeminências. No caso de o polo cefálico estar nesse ponto, verifica-se corpo de superfície regular, resistente e irredutível, com duas regiões características – o occipital e a fronte. Havendo quantidade suficiente de líquido, anota-se o “rechaço”. Uma das mãos imprime súbito impulso ao polo fetal que, deslocado, desaparece, denominando-se rechaço simples; quando ele volta à situação primitiva e é percebido pela palpação, trata-se de rechaço duplo. Com as duas mãos, também é possível verificar esse rechaço, jogando o polo de uma contra a outra. Em comparação com as nádegas, o rechaço é muito mais nítido com a cabeça, posto que seu formato, sua consistência e sua mobilidade, relativamente à coluna, conferem tal qualidade.
Figura 6.1 ■ Manobras de Leopold-Zweifel.
▶ Segundo tempo. Procura-se deslizar as mãos, do fundo uterino em direção ao polo inferior do órgão, com o cuidado de sentir o dorso fetal e as pequenas partes ou membros, de um ou outro lado do útero. A região dorsal do feto apresenta-se como superfície resistente e contínua, plana (no sentido longitudinal) e convexa (no transversal). É mais facilmente percebida nas variedades anteriores. Quando o dorso se orienta para trás, ficam mais perceptíveis as pequenas partes fetais que tomam contato mais direto com a parede anterior; caso elas estejam à esquerda, aquele ficará à direita e vice-versa. ▶ Terceiro tempo. Conhecida, mais particularmente, por manobra de Leopold ou Pawlick, tem como objetivo a exploração da mobilidade do polo que se apresenta com relação ao estreito superior. Seria um dos tempos da técnica sistematizada por Leopold, e nela procura-se apreender o polo entre o polegar e o dedo médio da mão direita, imprimindolhe movimentos de lateralidade que indicam o grau de penetração da apresentação na bacia. Quando ela está alta e móvel, esse polo balança de um lado para outro. ▶ Quarto tempo. Deve-se explorar a escava em último lugar. Nesse ponto, o polo cefálico é frequentemente encontrado e, ao palpar, apresenta caracteres mais nítidos. O examinador volta suas costas para a cabeça da paciente, colocando as mãos sobre as fossas ilíacas, caminhando em direção ao hipogástrio, paralelas à arcada crural, afastadas uma da outra cerca de 10 cm. Com as extremidades dos dedos, procura penetrar na pelve. Ao abranger o polo que aí se apresenta, verifica pelas suas características se é cefálico (menor, liso, consistente, irredutível) ou pélvico (maior, irregular, amolecido e deixando-se deprimir). Trata-se, respectivamente, de apresentação cefálica ou pélvica. Na córmica (situação transversa), a escava está vazia. A entrada dos dedos exploradores na bacia depende do grau de insinuação do polo apresentado. Quando móvel, os dedos quase se tocam pelas extremidades e descem por igual. Cogitando-se de cabeça encaixada, e devido à flexão cefálica, os dedos, em correspondência com o occipital, mergulham mais profundamente que os postos em relação à fronte. Sente-se, então, com consistência dura, a saliência da fronte, que ascende. Na apresentação pélvica, mesmo insinuada, os dedos de um lado e de outro penetram igualmente. Nas situações transversas, a cabeça fetal estará locada em uma fossa ilíaca, o polo pélvico na oposta e o dorso disposto em sentido transverso ou oblíquo.
■ Ausculta Pretende-se ouvir os batimentos cardiofetais (bcf), os quais informam, durante a gestação, se o concepto está vivo ou morto, não sendo possível inferir com exatidão suas condições de higidez, a não ser por meio do monitoramento dos batimentos, técnica descrita mais adiante. No parto, a vitabilidade fetal pode ser razoavelmente analisada pela ausculta, embora o registro cardiotocográfico o faça mais facilmente e com apurada fidelidade.
■ Ausculta clínica Em geral, os bcf são percebidos em torno de 20 semanas de gravidez. A ausculta clínica pode ser imediata ou direta, colocando-se o ouvido sobre a parede abdominal da paciente, e mediata ou indireta, utilizando-se o estetoscópio. O usado em obstetrícia é do tipo Pinard, de alumínio ou de madeira, apresentando três partes: auricular, coletora e condutora do som. Atualmente, este está em segundo plano, substituído pela auscultação mediante o sonarDoppler, possível a partir de 10 a 12 semanas de gestação, e que faculta, demais, a audiência e a identificação do pulso do cordão umbilical ou de qualquer outro grande vaso fetal. É necessário ter atenção para a possibilidade de confusão com batimentos maternos, motivo pelo qual se preconiza, sempre, contar as pulsações da paciente, para ter a convicção de que o percebido são ruídos fetais genuínos, mediante a comparação das frequências. Os batimentos fetais nunca são isócronos com o pulso materno. Sua frequência oscila entre 110 e 160 bpm, em média 140. O número de bulhas cardíacas, no adulto, é duplo dos batimentos arteriais, ou seja, cada batimento esfígmico traduz uma revolução cardíaca, com duas bulhas (sistólica e diastólica). No feto, contudo, ouve-se uma só em cada revolução. Os batimentos são mais facilmente audíveis no chamado foco máximo de auscultação, ponto que varia, como será visto, com a apresentação. Vale notar que a audibilidade é função da vizinhança do ponto de produção sonora – isto é, o coração fetal –, e corresponde, aproximadamente, à altura da quarta vértebra dorsal (Figura 6.2). ▶ Diagnóstico de apresentação pela ausculta. No termo da gravidez ou próximo dele, pelo fato de a área cardíaca estar mais perto do polo cefálico, o foco máximo de escuta terá locação diferente conforme a apresentação. Na apresentação cefálica, esse foco fica nos quadrantes inferiores do abdome materno, à esquerda ou à direita, conforme a posição (Figura 6.2). É necessária uma ressalva com relação à descida e à rotação da cabeça fetal, no evoluir do trabalho de parto: o foco de escuta se desloca gradativamente para baixo e em direção à linha mediana.
Figura 6.2 ■ Foco máximo de ausculta na apresentação cefálica.
O foco de escuta encontra-se nos quadrantes superiores do abdome, à esquerda ou à direita, na apresentação pélvica. Na apresentação córmica, está na linha média, junto à cicatriz umbilical. ▶ Escuta na gravidez gemelar. Notam-se dois focos, cada um pertencendo a feto distinto. Não são sincrônicos, havendo diferença de características, principalmente com relação à frequência que diverge em 8 ou 10 bpm. É preciso ter atenção para que o achado comum não seja confundido com o foco propagado. Aqui, ao fazer deslizar o estetoscópio de um ponto até o outro, em nenhum momento deixamos de ouvir; na gravidez gemelar, há zona de silêncio entre os dois focos. Eventualmente, onde se deveria encontrar a zona de silêncio, identificamos batimentos com “ritmo de quatro tempos”, característico da existência de dois fetos na cavidade uterina. ▶ Ausência de batimentos e morte fetal. É sempre conveniente aguardar, para comprovação, nova oportunidade no dia seguinte ou em outra ocasião. Nesse momento, não se dispensarão os achados do sonar-Doppler e da ultrassonografia (US), decisivos na determinação diagnóstica.
■ Toque Recomenda-se fazer o toque vaginal após esvaziar a bexiga e o reto da paciente, com as mãos rigorosamente lavadas e revestidas de luvas esterilizadas, com a paciente em posição litotômica ou ginecológica, entreabrindo-se a vulva com os dedos de uma das mãos, e obedecidos os preceitos de assepsia e de antissepsia. Durante a gestação, o toque combinado possibilita estatuir o volume uterino (Figura 6.3), quando ainda não se encontra o órgão accessível à palpação abdominal, útil, portanto, ao diagnóstico da gravidez. Nas proximidades do parto, avalia-se as condições do colo, as relações
entre a apresentação e a bacia (insinuação, proporcionalidade), assim como as características do trajeto ósseo. No decurso do trabalho, para diagnosticar o início, é indispensável acompanhar a dilatação cervical, a progressão fetal e determinar o tipo de apresentação, de posição e suas variedades.
Figura 6.3 ■ Toque combinado. (Adaptada de Benson, RC. Handbook of Obstetrics & Gynecology, 3a ed., Los Altos, Lange Medical, 1968.)
■ Procedimentos complementares ■ Dosagens hormonais Com exceção da dosagem da gonadotrofina coriônica humana (hCG), a investigação hormonal em obstetrícia perdeu muito da sua importância.
■ Valores na gestação normal (Tabela 6.1) ▶ hCG. Seus números são aproximadamente paralelos na urina (em UI/dia) e no sangue (em mUI/mℓ). Descoberta na urina, confirmou-se no sangue uma elevação máxima em 10 semanas de amenorreia, denominada fenômeno apical, e que chega, em média, a valores de 50.000. No restante da gestação, exibe taxas basais entre 40.000 e 10.000. A subunidade beta da hCG (hCGβ) possibilita a dosagem mais específica, porquanto reduz ao mínimo a reação cruzada com o LH hipofisário, problema relevante na gravidez inicial, ao cogitar diagnóstico precoce.
Tabela 6.1 ■ Níveis médios das dosagens hormonais plasmáticas (RIA) durante a gravidez. Período
hCG-β (mUI/mℓ)
Progesterona (ng/mℓ)
Estriol (ng/mℓ)
hPL (mg/mℓ)
3a semana
100-500
5-10
–
–
4a semana
500-1.000
10-20
–
–
5a semana
1.000-3.000
20-30
–
–
6a/8a semana
3.000-5.000
30-40
–
–
2o/3o mês
10.000-100.000
40-80
10-50
2-3
2o trimestre
5.000-15.000
80-120
50-150
3-6
3o trimestre
5.000-50.000
120-200
150-400
6-9
▶ Progesterona. A partir do valor mínimo de 5 ng/mℓ indicativo de ciclo bifásico, eleva-se até 40 ng/mℓ na oitava semana, número que, ultrapassado, traduz função luteínica adequada. Contudo, entre 4 e 8 semanas, é possível verificar uma queda, passageira, da progesterona, decorrente da cessação da atividade do corpo amarelo com transferência da síntese do esteroide para a placenta. Posteriormente, há elevação gradual, alcançando cerca de 200 ng/mℓ no termo. ▶ Estriol. Os estrogênios principais existem na urina da mulher não grávida nas seguintes proporções: estrona = 20%; estradiol = 15%; estriol = 65%. A participação predominante de precursores fetais na produção do estriol durante a gravidez, por meio de uma via peculiar de síntese, confere ao estriol significado maior, confirmado pelo aumento progressivo de sua existência. Dos 65% iniciais, o estriol alcança, ao termo, taxas acima de 90% dos estrogênios totais. A dosagem do estriol plasmático evita os incômodos da colheita de urina, possibilita resultados no mesmo dia, embora seu emprego na avaliação da vitabilidade fetal esteja abandonado. ▶ Lactogênio placentário humano (hPL). Titulado no sangue, é irrelevante o seu uso atualmente na propedêutica obstétrica.
■ Aplicações clínicas Apenas serão enumeradas as dosagens de hCG, pois as outras dosagens hormonais não apresentam mais benefícios: • Diagnóstico da gravidez • Diagnóstico e seguimento da gravidez ectópica • Diagnóstico e seguimento da neoplasia trofoblástica gestacional.
■ Amniocentese Para o diagnóstico genético, a amniocentese é habitualmente realizada com 16 semanas de gravidez. Sob controle sonográfico, a agulha de raque calibre 20-22G é introduzida na cavidade
amniótica, evitando a placenta, o cordão umbilical e o feto (Figura 6.4). Para o estudo do cariótipo, são coletados 20 mℓ de líquido amniótico (LA). O local da punção uterina é observado para eventual sangramento, assim como o bcf. Como complicações do procedimento, mencionamse as punções hemorrágicas, o vazamento de LA e a corioamnionite. A lesão fetal pela punção é muito rara, realizado o procedimento sob controle sonográfico, e a falha na cultura é menos encontrada ainda. Estatísticas indicam que a perda fetal decorrente da amniocentese é de < 0,5%. Em casos de polidramnia, nos quais a amniocentese esteja indicada (retirada de 1.000 a 2.000 mℓ de LA), aplicam-se os mesmos cuidados, mas o calibre da agulha é maior, 18G.
Figura 6.4 ■ Amniocentese no 2o trimestre para investigação genética.
Outra aplicação relevante da amniocentese é o diagnóstico de inúmeras infecções viróticas fetais pela reação de PCR-LA. As aplicações clínicas da amniocentese diminuem cada vez mais e são substituídas por outros métodos, tais como: • Doppler da artéria cerebral média (ACM), na doença hemolítica perinatal (DHPN) • Laser-ablação fetoscópica, na síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG) • Uso de corticoide, na avaliação da maturidade fetal.
■ Microanálise do sangue fetal A microanálise do sangue fetal, ou seja, a retirada de pequena gota por meio do couro
cabeludo do concepto para a determinação do pH, PCO2, PO2 e excesso de base (BE), busca o diagnóstico da asfixia aguda durante o parto.
■ Fetoscopia A fetoscopia tem o propósito de visualizar o feto pelo endoscópio, coletar amostras no sangue do cordão umbilical, transfundir sangue por essa via e, eventualmente, biopsiar a pele, o fígado ou o músculo fetal. Com o progresso notável da tecnologia ultrassônica e do instrumental que utiliza fibra óptica, a fetoscopia foi substituída pela cordocentese (por ser um procedimento mais seguro para a mãe e para o feto) e pela embriofetoscopia (por poder ser empregada no primeiro trimestre da gravidez), tornando o diagnóstico pré-natal muito mais precoce. Além disso, o diagnóstico pré-natal de hemoglobinopatias, coagulopatias e doenças granulomatosas crônicas, que anteriormente precisava do sangue fetal, passou a ser feito por técnica de DNA, em material coletado por amniocentese ou por biopsia de vilo corial. Até mesmo a embriofetoscopia diagnóstica vem perdendo terreno para a US transvaginal de alta resolução e principalmente para a US tridimensional. O grande papel reservado para o procedimento endoscópico é a sua aplicação terapêutica, estando incluída nesse particular a fetoscopia operatória. Certamente, a maior indicação atual da fetoscopia é a laser-coagulação dos vasos placentários, em casos de STGG (Figura 6.5). Outras indicações: lise na síndrome da brida amniótica, laser-ablação das válvulas de uretra por cistoscopia na uropatia obstrutiva baixa, desvascularização endoscópica no corioangioma e recobrimento dos defeitos do tubo neural.
Figura 6.5 ■ Coagulação a laser das anastomoses da placa corial na síndrome de transfusão gêmelogemelar (STGG).
■ Embrioscopia e embriofetoscopia Essas técnicas são a variante da fetoscopia e buscam obter visão direta do concepto durante o primeiro trimestre da gravidez, antecedendo a prática daquela realizada, preferencialmente, entre 17 e 20 semanas, como já referido. A embrioscopia trata-se de uma técnica endoscópica de fibra óptica que pode ser utilizada por via transcervical ou transabdominal (Figura 6.6). A via transcervical, a primeira a ser empregada, está em desuso, tendo sido substituída pela via transabdominal, que muitos denominam embriofetoscopia. Na verdade, tal termo, antes de traduzir a via do procedimento, indica melhor o seu emprego de acordo com a idade da gravidez, englobando o primeiro e o segundo trimestres, vale dizer, o embrião e o feto. O abdome é perfurado por agulha calibre 18-19 e sob orientação ultrassonográfica, guiada até o interior do útero. Removido o estilete, um endoscópio de 0,7 mm adaptado à fonte luminosa é introduzido pela luz da agulha. As principais indicações da embriofetoscopia são: • Diagnóstico pré-natal de anomalias estruturais • Coleta de sangue precoce no cordão umbilical • Acesso ao embrião para terapia genética ou celular. A embriofetoscopia possibilita acesso ao embrião no período em que ele é “inocente” imunologicamente e, consequentemente, mais apto a receber transplantes. Nesse particular, encontra-se o transplante de células-tronco na doença granulomatosa crônica do concepto.
■ Biopsia de vilo corial A biopsia de vilo corial (BVC) envolve a coleta de material do cório frondoso, sob controle sonográfico, por via transcervical ou transabdominal. Utiliza-se apenas a via transabdominal (Figura 6.7). Na maioria dos casos, o citotrofoblasto contém complemento cromossomial idêntico ao do feto, que pode ser utilizado como fonte de tecido para o diagnóstico pré-natal bioquímico, molecular (DNA) ou citogenético. A BVC tem sido utilizada no diagnóstico prénatal do primeiro trimestre; quando realizada entre 10 e 12 semanas de gestação, é alternativa segura e aceitável à amniocentese, quando conduzida por mãos competentes. O exame ultrassonográfico prévio é indispensável para indicar a idade da gravidez e apontar o local ideal à punção, isto é, a área que corresponda à maior massa placentária. Quando localizada na face ventral do útero, o exame é realizado com a bexiga repleta; nas placentas inseridas
dorsalmente, o reservatório vesical deve estar esvaziado. Orientada pela US, a agulha é levada até a placenta e conduzida paralelamente à placa corial até penetrar no bolus placentário e aspirar os vilos coriais (Figura 6.7).
Figura 6.6 ■ Embriofetoscopia transabdominal. Orientada pela ultrassonografia, a agulha introduzida pelo embrioscópio punciona o cordão umbilical.
Figura 6.7 ■ Biopsia de vilo corial pela via transabdominal.
▶ Defeitos de redução dos membros e oromandibular. O aumento na incidência dessas raras anomalias ocorre quando a BVC é realizada antes de 10 semanas de gestação, o que deve ser evitado. Após 10 semanas, o risco não é apreciável. A BVC fornece resultados em 24 a 48 h (método direto) ou em 7 a 10 dias (cultura). As perdas fetais são pouco superiores às da amniocentese de 16 semanas (1%). ▶ Mosaicismo. Este é o grande problema com a BVC. O mosaicismo ocorre quando dois ou mais cariótipos diferentes são encontrados em mesmo espécime citogenético, com um cariótipo
aneuplódico, geralmente trissômico. O mosaicismo pode ser verdadeiro ou pseudomosaico. O pseudomosaico decorre de artifício na cultura das células, e não apresenta repercussões clínicas. Quando o mosaico verdadeiro é visto apenas nas células do cório, mas não no embrião, é denominado mosaico confinado à placenta; este incide em 1 a 2% na BVC, determina risco acrescido de crescimento intrauterino restrito (CIR) e de abortamento. Nessas condições, é necessário definir o cariótipo fetal pela amniocentese ou pela cordocentese, visto que o diagnóstico somente se configura no concepto em cerca de 10% dos casos nos quais o resultado inicial foi de mosaico confinado à placenta. Na amniocentese, ao contrário, o mosaico incide em apenas 0,1 a 0,3% das culturas, mas é confirmado no feto em 70% das vezes.
■ Cordocentese ■ Diretrizes clínicas da Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM) (2013) A punção do cordão umbilical foi inicialmente obtida por Rodeck & Campbell, em 1979, a partir da fetoscopia. A cordocentese ou a punção do cordão umbilical para a coleta de sangue fetal guiada pela US, geralmente utilizada após 18 a 20 semanas, foi introduzida por Daffos et al. (1983). Atualmente, as principais indicações da cordocentese são: • Diagnóstico pré-natal para a realização do cariótipo fetal • Determinação da anemia fetal na doença hemolítica perinatal (DHPN) e na infecção pelo eritrovírus B19 e, se necessária, a transfusão intravascular (TIV) • Diagnóstico da trombocitopenia aloimune neonatal e provável transfusão de plaquetas • Avaliação da hidropisia fetal não imune (HFNI). As indicações da cordocentese mais observadas no diagnóstico pré-natal são aquelas que procuram resolver discrepâncias dos resultados do cariótipo (p. ex., mosaicismo) ou avaliar possíveis defeitos cromossomiais em fetos com anomalias estruturais a US morfológica (20 a 23 semanas). O exame ultrassonográfico prévio deve identificar, precisamente, o cordão umbilical e a sua inserção placentária, o que determina a melhor via de acesso à punção, praticada após anestesia local. Nas placentas de inserção ventral ou lateral, a agulha de raque calibre 20-22G é introduzida pela via transplacentária até que a sua extremidade chegue à veia umbilical, preferível por apresentar maior calibre e parede mais delgada que a artéria (Figura 6.8); nas placentas de implantação dorsal, a agulha segue a via transamniótica, para alcançar a veia umbilical próxima à sua inserção na placenta (Maternidade-Escola, UFRJ, 2013). O índice de sucesso com a cordocentese é elevado e, em 98% dos casos, é possível obter a amostra sanguínea.
Figura 6.8 ■ Cordocentese.
Os riscos da cordocentese estão limitados a sangramento no local da punção (20 a 30%), bradicardia fetal (5 a 10%), perda fetal (1,3%, na ausência de anomalias estruturais, hidropisia ou penetração na placenta) e transmissão vertical das hepatites B e C e do HIV. A SMFM (2013) contesta a via transplacentária (adotada por nós), que causaria maior taxa de perda fetal (3,6 vs. 1,3%).
■ Procedimentos eletrônicos Os principais procedimentos eletrônicos empregados durante a gestação são: ultrassonografia, cardiotocografia, pH contínuo tissular e ressonância nuclear magnética.
■ Ultrassonografia e tipos de ecografia O sinal ecográfico pode ser conduzido de várias maneiras e a cada uma delas corresponde técnica ultrassônica diferente: unidimensional (A-scan), bidimensional (B-scan), M-mode (movement mode) e dinâmica (real time). Na US unidimensional (A-scan), os ecos são mostrados como deflexões em uma base de tempo horizontal (Figura 6.9). O intervalo entre qualquer uma dessas duas deflexões representa o tempo gasto pelo ultrassom para atravessar o tecido localizado entre as interfaces. Conhecida a velocidade do ultrassom nesse tecido, é possível determinar, com exatidão, as distâncias entre as superfícies refletoras. Na US bidimensional (B-scan), os ecos de cada intervalo aparecem como pontos brilhantes no osciloscópio. Inversamente ao que ocorre com a radiografia, em que toda a área do corpo dentro do campo de irradiação e a totalidade de sua profundidade aparecem na chapa radiológica, na US, somente uma porção do abdome, subjacente ao transdutor, é “insonada” a cada instante (Figura
6.9). Pelo método M-mode (movement mode), é possível captar o movimento de uma estrutura em escala de tempo, desenhando-se no osciloscópio padrões que representam, por exemplo, os batimentos cardiofetais (Figura 6.10) ou os movimentos respiratórios do concepto. Na técnica dinâmica (real time), por meio de um transdutor, que se move rapidamente (setorial), ou de vários, estimulados em uma sequência ordenada (linear),é possível captar as estruturas em movimento. Atualmente, o procedimento é universal em obstetrícia, substituindo a antiga técnica estática, obsoleta.
■ Ultrassonografia 3D/4D A US 3D/4D tem o seu lugar assegurado no campo da imagenologia, tal o seu desenvolvimento nos últimos anos. Já existe aparelho 4D que fornece 20 volumes/segundo, o que corresponde ao exame quase em tempo real. A US 3D/4D utiliza sondas abdominais e vaginais. Selecionada a área de interesse, aciona-se o transdutor, que varre o local em aproximadamente 4 s, sendo as estruturas insonadas armazenadas em computador. Em um primeiro passo, o aparelho exibe três planos ortogonais entre si da área insonada, constituindo a US multiplanar. Após a obtenção das imagens multiplanares, o tratamento tridimensional pode ser de dois tipos: reconstrução de superfície ou modo de transparência. Na reconstrução de superfície, delimita-se nas imagens multiplanares a área do concepto a ser reconstruída; eliminam-se os ecos fracos pelo sistema cartesiano e aciona-se o sistema tridimensional e ato contínuo, obtendo a imagem 3D da estrutura fetal: face, orelha, mão, pé etc.
Figura 6.9 ■ A e B-scan. Representação esquemática mostrando como aparecem as interfaces (1, 2, 3 e 4) em ambos os sistemas ultrassônicos. (De Donald, I. & Brown, T.G. Brit. J. Radiol. 34:539, 1961.)
Figura 6.10 ■ M-mode. Representação ecográfica dos movimentos cardíacos. O transdutor está colocado à direita do esterno, entre duas costelas. O feixe ultrassônico atravessa as estruturas subjacentes que fornecem os ecos representados à direita: 1, Complexo sondaparede anterior do tórax; 2, Parede anterior do coração (face externa); 3, Parede anterior do coração (face interna); 4, Parede posterior do coração (face interna); 5, Parede posterior do coração (face externa); 6, Parede posterior do tórax. A posição dos ecos 1 e 6 não varia praticamente com o tempo, e a dos ecos 2, 3, 4 e 5 depende do movimento das paredes cardíacas. (De Levi, S. Diagnostic par Ultrasons en Gynécologie et en Obstétrique, Paris, Masson, 1972.)
Na US 3D de transparência, geralmente utiliza-se o modo máximo que realça os ecos fortes fetais, ou seja, suas estruturas ósseas. A técnica é excepcional para o estudo da coluna vertebral fetal. Atualmente, as indicações da US 3D são amplas na obstetrícia, em quase todos os seus campos (Figura 2.14 B).
■ Aplicações clínicas Em obstetrícia, são muitas as utilidades da US na prática clínica, as quais estão indicadas no Capítulo 58.
■ Sonar-Doppler O sonar-Doppler identifica os batimentos do coração fetal, ou de qualquer grande vaso, a partir de 10 a 12 semanas de gravidez. O sonar utiliza o Doppler-contínuo quando o transdutor de onda emprega dois cristais piezoelétricos – um emite a onda sonora e outro capta a onda refletida. A diferença de frequência refletida é o somatório das frequências de todos os vasos da área estudada, o que impede qualquer amostra específica de um único vaso.
■ Dopplervelocimetria Os erros na medida absoluta do volume do fluxo sanguíneo com o Doppler conduziram a outra técnica de informação: a análise do tipo da onda da velocidade do fluxo. O procedimento é de onda pulsátil e utiliza um único cristal piezoelétrico que emite e capta as ondas sonoras. A detecção da diferença de frequência (ΔF), produzida pelas hemácias em movimento, pode ser obtida no interior de qualquer área do vaso estudado – volume da amostra – promovida eletronicamente, ao longo do feixe sonoro pulsátil. O volume da amostra pode ser
colocado no local desejável no interior do vaso visto à US bidimensional (duplex). A velocidade do tipo da onda do fluxo mostra a frequência máxima da envolvente obtida pelo ciclo cardíaco, exibindo um pico sistólico e outro diastólico (Figura 6.11). A razão entre esses picos independe do ângulo de insonação; a velocidade do fluxo na diástole reflete a resistência do vaso – quanto mais elevada a velocidade do fluxo, menor a resistência periférica. As investigações têm envolvido, particularmente, a mensuração das velocidades do fluxo das artérias uterinas (circulação uteroplacentária), artéria umbilical (circulação fetoplacentária), artérias cerebrais e Doppler venoso (veia cava inferior, ducto venoso, veia umbilical). A alteração na velocidade do fluxo na artéria umbilical reflete, com extrema acuidade, a resistência existente na placenta (arteríolas do sistema viloso terciário). O procedimento fluxométrico é o melhor método para avaliar a vitalidade no modelo de crescimento intrauterino restrito (CIR) toxêmico (Capítulo 29).
Figura 6.11 ■ Doppler da velocidade do fluxo no sangue da artéria umbilical.
A medida não invasiva do fluxo de sangue na circulação uteroplacentária (artéria uterina) tem aplicação ampla nas gestações complicadas por toxemia hipertensiva (Capítulo 18).
■ Doppler colorido Também denominado Doppler de fluxo colorido ou Doppler de mapeamento colorido, esse procedimento exibe os fluxos sanguíneos nas cores vermelho e azul, nas suas diversas tonalidades, conforme a direção do movimento do sangue, respectivamente, ao se aproximar ou se afastar do transdutor. Muito utilizado na ecocardiografia fetal, o Doppler colorido certamente traz subsídios na US obstétrica, sempre que for importante caracterizar e localizar o fluxo sanguíneo (cordão, placenta, circulação renal e cerebral fetais, neoplasias trofoblásticas gestacionais, tumores fetais etc.) (Figura 6.12).
Figura 6.12 ■ Doppler colorido da artéria cerebral média (ACM) fetal.
■ Ecocardiografia fetal A ecocardiografia fetal é o estudo anatômico e funcional do coração fetal e divide-se em nível I e nível II. A ecocardiografia fetal de nível I tem como objetivo o reconhecimento da normalidade cardíaca e o rastreamento básico das cardiopatias por meio da obtenção de três cortes básicos do coração fetal durante a realização da US morfológica. A ecocardiografia fetal de nível II, ou seja, a ecocardiografia fetal propriamente dita, consiste em exame especializado que utiliza todas as modalidades de US e todos os planos de cortes existentes para a análise cardíaca. Deve ser realizada por cardiologista treinado em ecocardiografia pediátrica e fetal, e tem como objetivo a definição da anatomia pela obtenção de imagens bidimensionais de alta resolução, como a análise hemodinâmica e funcional pelo M-mode, Doppler pulsátil, contínuo e mapeamento de fluxo em cores 3D e 4D. A ecocardiografia fetal de nível II pode ser realizada a partir de 18 semanas, sendo a 28a semana o período ideal em termos de resolução de imagem. No caso de gestantes que apresentam risco muito alto, é possível realizar a ecocardiografia fetal precoce transvaginal, entre 12 e 16 semanas de gestação. Dentro dessas indicações, destacam-se: translucência nucal aumentada, filho anterior com cardiopatia, diabetes pré-gestacional e pais com cardiopatia congênita.
■ Planos de corte
• Posição de quatro câmaras: analisar as quatro cavidades cardíacas, átrio direito e esquerdo, ventrículo direito e esquerdo. As mesmas deverão ter dimensões e espessura proporcionais (Figura 6.13) • Posição de saída da aorta ou eixo longo: analisar a aorta emergindo do ventrículo esquerdo. Para facilitar a memorização, essa posição pode ser assimilada a um “pé de bailarina”, em que a sapatilha representa o ventrículo esquerdo e o tornozelo, a aorta (Figura 6.14) • Posição de saída da artéria pulmonar ou eixo curto: é possível comparar essa posição a uma “margarida”, em que o miolo representaria a aorta em corte transversal, que é o centro do corte, e a artéria pulmonar ao lado, vista longitudinalmente (Figura 6.15). Uma variação muito utilizada desse corte ocorre pela báscula discreta do transdutor, obtendo-se a artéria pulmonar emergindo do ventrículo direito em 90°.
■ Cardiotocografia A cardiotocografia (CTG) é o registro contínuo da frequência cardíaca fetal (FCF) instantânea (cardiotacometria) e da contratilidade uterina. No monitoramento externo, tanto o transdutor para o registro das contrações uterinas e dos movimentos fetais como o que possibilita captar a FCF são colocados no ventre materno (monitoramento abdominal, indireto ou não invasivo). A FCF é obtida por métodos eletrocardiográficos, fonocardiográficos ou ultrassônicos.
Figura 6.13 ■ Ecocardiografia fetal – exame de quatro câmaras. AD, átrio direito; FO, foramen ovale; AE, átrio esquerdo; VD, ventrículo direito; VE, ventrículo esquerdo.
Figura 6.14 ■ Posição de saída da aorta.
Figura 6.15 ■ Posição de saída da artéria pulmonar.
Na gravidez, o procedimento externo é o escolhido, por não ser invasivo, embora tenha como principal inconveniente fornecer traçados menos fidedignos. O monitoramento interno (direto ou invasivo) é utilizado, basicamente, no parto, quando o implante de eletrodo no concepto torna fácil a obtenção de seu eletrocardiograma (ECG), particularmente a onda R. A atividade uterina é captada com cateter ou balão intrauterino. A técnica transabdominal está em desuso, assim como a transcervical, quando tanto o eletrodo quanto o cateter ou balão são introduzidos per vaginam.
■ Sonar-Doppler Trata-se do procedimento mais empregado para captar a FCF quando se utiliza a via abdominal (Figura 6.16). O registro da FCF por meio da US é estável desde que a paciente e o feto não estejam em movimentação excessiva. É um problema a ser reduzido utilizando-se transdutor com múltiplos cristais que cobrem grandes áreas do abdome materno (multidirecional ou broad beam). Infelizmente, ocorrem mais artefatos na linha de base (jitter), os quais, no entanto, são quase completamente resolvidos pela última geração de cardiotocógrafos: por meio do uso de microprocessadores, eles possibilitam a análise do sinal pela autocorrelação. Além disso, empregam como transdutor o sonar-Doppler pulsátil direcional, que elimina a ambiguidade entre os movimentos de aproximação e de afastamento das estruturas cardíacas, presente no Dopplercontínuo, convencional.
■ Tocodinamometria
No monitoramento externo, o transdutor (essencialmente um strain gauge) é colocado diretamente sobre o abdome materno, na região do fundo uterino (Figura 6.16). De fato, não mede variações de pressão no momento da contração uterina ou de movimentos fetais. Consequentemente, não é possível determinar a intensidade da metrossístole e o tônus uterino. No sistema, a frequência e a duração das contrações encontram representação precisa. No monitoramento interno, o cateter ou balão, para o registro das contrações, também é transcervical.
■ Eletrocardiografia interna O implante do eletrodo no concepto facilita a obtenção de seu ECG. O contato elétrico entre o eletrodo e o cloreto de sódio do sangue circulante é quase perfeito, obtendo-se sinal de grande intensidade (500 microvolts). Na cardiotacometria, buscase o registro contínuo da FCF instantânea, batida por batida, sendo indispensável o uso de computador (tacômetro), que, automaticamente, ao receber os sinais correspondentes aos batimentos fetais (ondas R do ECG), inscreve o ritmo do coração. No procedimento per vaginam, o eletrodo, em espiral, é aplicado na apresentação fetal, exigindose dilatação cervical mínima de 1 cm e ruptura prévia das membranas. A técnica não é mais utilizada na prática clínica.
■ Cardiotocografia computadorizada Atualmente, a análise computadorizada da CTG é feita com o sistema 8002 da Sonicaid e apenas durante o período anteparto. Todos os parâmetros são obtidos sem a interpretação subjetiva do examinador, assim como o laudo também é computadorizado. Aparentemente, a CTG convencional passou a ser colocada em segundo plano.
■ Ressonância magnética e tomografia computadorizada É consensual que a US é o principal método de imagem em obstetrícia, especialmente agora, que a modalidade 3D/4D passou a ser aplicada. Tratando-se de informações adicionais necessárias para o acompanhamento da paciente, é possível utilizar as características da ressonância magnética (RM) e da tomografia computadorizada (TC). Essas duas modalidades propiciam a visualização da anatomia materna e fetal quando a sonografia é insuficiente para o adequado diagnóstico. No entanto, como a exposição à radiação está contraindicada na gravidez, a TC geralmente é reservada para avaliar o quadro de abdome agudo materno.
Figura 6.16 ■ Sistema de monitoramento externo pelo ultrassom-Doppler.
Na gravidez, a RM é mais indicada que a TC por não apresentar riscos biológicos.
■ Imagem materna ▶ Dor abdominal aguda. O caso clássico que requer a realização de TC é de paciente com dor no lado direito, com suspeita de apendicite. A RM pode ser útil na gravidez abdominal, ruptura uterina, trombose nas veias pélvicas, doença biliar e obstrução do intestino delgado. ▶ Hidronefrose. Aplicação promissora da RM, é a avaliação da anatomia materna do sistema urinário. A hidronefrose fisiológica da gravidez é a causa mais comum de dilatação do sistema urinário; contudo, a cólica renal também pode decorrer de litíase. Aqui, a US ainda é o método inicial de rastreamento. ▶ Tumores anexiais. Igualmente, a RM é procedimento secundário quando a US não fornece subsídios adequados. ▶ Placenta. Na placenta prévia, a US é suficiente na maioria dos casos. A RM terá indicação no acretismo placentário com placenta posterior.
■ Imagem fetal Estudos iniciais tornaram a RM indicada na gravidez avançada e na oligoidramnia, visto que a visualização do feto em outras entidades clínicas era prejudicada pela sua movimentação. Com a RM rápida, esse problema parece estar superado (Figura 6.17). ▶ Sistema nervoso central (SNC). Área de especial interesse, trata-se da caracterização das anomalias dos SNC que não ficaram bem visualizadas à US. Em mais de 50% dos casos em que anormalidade do SNC foi identificada à US, a RM foi capaz de fornecer informações que alteram o acompanhamento obstétrico como: síndrome de Dandy-Walker e suas variantes; agenesia do corpo caloso; ventriculomegalia (grau e causas); cisto aracnoide; desenvolvimento da córtex cerebral (lissencefalia).
Figura 6.17 ■ Ressonância magnética. Gravidez gemelar da 39a semana, vendo-se, nitidamente, os dois fetos, um em apresentação cefálica e o outro em pélvica. (Cortesia do Prof. Luiz Felippe Mattoso. Paciente da 33a Enfermaria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro.)
▶ Outras anomalias. É importante a correta avaliação do concepto que será submetido à cirurgia in utero: hérnia diafragmática (posição do fígado); tumores gigantes do pescoço (que podem obstruir as vias aéreas); definição de massas abdominais, pulmonares ou pélvicas fetais (pseudocisto meconial, duplicação gástrica cística, onfalocele, gastrosquise, malformação cloacal); doença policística renal autossômica recessiva; teratoma cerebral e malformação linfática.
■ Conclusão Em obstetrícia, a US continua a ser o método de imagem de escolha no rastreio inicial, devido ao seu baixo custo, acuidade e simplicidade. O uso da TC costuma ser limitado à paciente com dor abdominal e suspeita de apendicite, pelos riscos de ionização para o concepto. As indicações da RM são crescentes, principalmente agora com a RM rápida que prescinde da sedação materna e fetal: tumores anexiais, hidroureteronefroses da gravidez, anomalias fetais especialmente do SNC. A grande desvantagem da RM é o seu custo elevado.
■ Pontos-chave A propedêutica da gravidez inclui a anamnese/exame físico e os procedimentos complementares. A anamnese comporta a identificação (idade, etnia, profissão, estado civil, domicílio, nacionalidade), anamnese geral (antecedentes familiares e
pessoais) e anamnese obstétrica (antecedentes obstétricos – gesta, para, evolução dos ciclos grávido-puerperais anteriores – e história da gravidez vigente). O exame físico obstétrico, além da semiótica geral, inclui a inspeção (cabeça, pescoço, glândula mamária, abdome, membros inferiores, aparelho genital externo), palpação (manobras de Leopold-Zweifel), ausculta e toque. Os procedimentos complementares principais estão representados pelas dosagens hormonais, amniocentese, embriofetoscopia, biopsia de vilo corial, cordocentese, ultrassonografia, cardiotocografia, ressonância magnética (RM) e tomografia computadorizada (TC). Os procedimentos hormonais se restrigem praticamente à dosagem da gonadotrofina coriônica humana (hCG), de grande importância no diagnóstico da gravidez, da gravidez ectópica e no diagnóstico e no seguimento da neoplasia trofoblástica gestacional. A amniocentese é considerada o padrão-ouro no diagnóstico pré-natal quando realizada habitualmente com 16 semanas de gravidez. A biopsia de vilo corial pode ser utilizada no diagnóstico pré-natal de primeiro trimestre, sempre por via abdominal. A principal indicação da fetoscopia é a laser-coagulação no tratamento da síndrome de transfusão gêmelo-gemelar. Atualmente, a cordocentese utilizada após 18 a 20 semanas de gravidez é muito indicada na doença hemolítica perinatal, por meio da transfusão intravascular (TIV). A US revolucionou a propedêutica fetal e o diagnóstico por imagem na gravidez. Apenas excepcionalmente são utilizadas a RM e a TC. A cardiotocografia (CTG) é um procedimento de grande importância na avaliação da vitabilidade fetal na gestação e no parto.
■ Diagnóstico clínico ■ Diagnóstico hormonal ■ Diagnóstico ultrassonográfico
Na prática clínica, é muito importante o diagnóstico precoce da gravidez, o que tantas vezes coloca em risco o prestígio do médico. Esse diagnóstico pode ser clínico, hormonal ou ultrassônico.
■ Diagnóstico clínico Os sintomas da gravidez são classificados em de presunção, de probabilidade e de certeza.
■ Sinais de presunção ■ Quatro semanas ■ Amenorreia É o sinal mais precoce. Em mulheres jovens, com ciclos menstruais regulares e vida sexual ativa, a ausência da menstruação pressupõe gravidez.
■ Cinco semanas ■ Náuseas Durante o primeiro trimestre da gestação, mais de 50% das mulheres sofrem de náuseas, geralmente matutinas, tendo como consequência imediata vômitos e anorexia. Outras, ao contrário, apresentam maior apetite, não sendo rara sua perversão (pica ou malácia) ou extravagância alimentar.
■ Congestão mamária Com 5 semanas, as pacientes relatam que as mamas estão congestas e doloridas. Na 8a semana, a aréola primária torna-se mais pigmentada e surgem os tubérculos de Montgomery; em torno de 16 semanas, é produzida secreção amarela (colostro), e pode ser obtida por expressão mamária correta. Além disso, o aumento da circulação venosa é comum – rede de Haller. Em torno da 20a semana, surge a aréola secundária, que aumenta a pigmentação em volta do mamilo.
■ Seis semanas ■ Polaciúria No segundo e no terceiro mês de gestação, o útero, com maior volume e em anteflexão acentuada, comprime a bexiga, levando à micção frequente, com emissão de quantidade reduzida de urina. No segundo trimestre, tal sintomatologia cessa, retornando nas duas últimas semanas, ao
insinuar a apresentação fetal.
■ Sinais de probabilidade ■ Seis semanas ■ Amenorreia Após 10 a 14 dias de atraso menstrual, considera-se provável sinal de amenorreia, o que nem sempre indica gravidez, pois esse sintoma também ocorre em diversas circunstâncias fisiológicas e patológicas. O aleitamento e a menopausa determinam amenorreia; contudo, muitas mulheres concebem durante o aleitamento ao se intercalar o ciclo ovulatório. Há pacientes que gestam sucessivamente, ano após ano, sem ter restabelecido o ciclo menstrual. A fecundação após alguns meses de amenorreia climatérica é difícil, embora não seja impossível. Dentre as amenorreias patológicas, destacam-se as de origem emocional e as vigentes durante o uso dos anovulatórios. Embora seja mais escassa, a perda sanguínea cíclica semelhante à menstruação não exclui gravidez, pois isso pode ocorrer nos primeiros meses (hemorragia de implantação ovular).
■ Aumento do volume uterino O toque combinado infere as alterações que a gravidez imprime ao útero. Fora da gestação, o órgão é intrapélvico, localizado abaixo do estreito superior; na gravidez, expande-se; com 6 semanas, apresenta volume de tangerina; com 10 semanas, de uma laranja; e com 12 semanas, o tamanho da cabeça fetal a termo, sendo palpável logo acima da sínfise púbica.
■ Oito semanas ■ Alteração da consistência uterina O útero vazio é firme; na gravidez, com 8 semanas, adquire consistência cística, elásticopastosa, principalmente no istmo (sinal de Hegar) (Figura 7.1 C e D). Por vezes, o amolecimento intenso dessa região faz parecer que o corpo está separado do colo.
■ Alteração do formato uterino Inicialmente, o útero cresce de modo assimétrico, desenvolvendo-se mais acentuadamente na zona de implantação. A sensação tátil é de abaulamento e amolecimento no local, sendo possível notar, eventualmente, sulco separando as duas regiões (sinal de Piskacek) (Figura 7.1 B). Na ausência de gravidez, em geral, os fundos de saco estão vazios; a partir de 8 semanas, quando a matriz de piriforme assume o formato globoso, o dedo que examina encontra-os ocupados pelo corpo uterino (sinal de Nobile-Budin) (Figura 7.1 B). Há percepção dos batimentos do pulso vaginal nos fundos de saco (sinal de Osiander) devido à hipertrofia do sistema vascular.
O procedimento do toque é completado pelo exame especular, que poderá precedê-lo de acordo com a rotina estabelecida. Ao entreabrir a vulva, destaca-se a coloração violácea da sua mucosa (vestíbulo e meato uretral), denominada sinal de Jacquemier ou de Chadwick; a mesma tonalidade da mucosa vaginal constitui o sinal de Kluge.
Figura 7.1 ■ Diagnóstico clínico da gravidez. A. Relações do útero com a bexiga. B. Formato assimétrico do útero, conforme o local da nidificação (sinal de Piskacek). Com o desenvolvimento subsequente, a matriz se torna globosa, o que é revelado por meio de toque combinado e palpar profundo dos fundos de saco laterais (sinal de Nobile-Budin). C e D. Amolecimento do istmo: o toque combinado o evidencia (sinal de Hegar).
■ Dezesseis semanas ■ Aumento do volume abdominal Conforme já mencionado, o útero torna-se palpável com 12 semanas e nota-se o aumento do volume abdominal progressivo em torno de 16 semanas.
■ Sinais de certeza São dados pela existência do concepto, anunciada pelos batimentos cardiofetais e pela sua movimentação ativa; a ultrassonografia é capaz de rastreá-los com 7 a 8 semanas.
■ Catorze semanas ■ Sinal de Puzos Trata-se do rechaço fetal intrauterino, que se obtém ao impulsionar o feto com os dedos dispostos no fundo de saco anterior. Dessa maneira, ocorre impressão de rechaço quando o concepto se afasta e quando ele retorna (Figura 7.2).
■ Dezoito semanas ■ Percepção e palpação dos movimentos ativos do feto Inicialmente discretos, tornam-se vigorosos com o evoluir da gestação.
■ Palpação dos segmentos fetais Nesse período, o volume do feto é maior e começa-se a palpar cabeça e membros.
■ De vinte a vinte e uma semanas ■ Auscultação Trata-se da identificação dos batimentos cardíacos fetais (bcf), o mais fidedigno dos sinais de gravidez. Sua comprovação, com o estetoscópio de Pinard, atualmente é obtida com sonarDoppler.
Figura 7.2 ■ Rechaço fetal (sinal de Puzos).
■ Diagnóstico hormonal Constitui, atualmente, o melhor parâmetro para o diagnóstico de gravidez incipiente, de acordo
com sua precocidade e exatidão. Apoia-se na produção de gonadotrofina coriônica humana (hCG) pelo ovo. Uma semana após a fertilização, o trofoblasto, implantado no endométrio, começa a produzir a hCG em quantidades crescentes, que podem ser encontradas no plasma ou na urina maternos. Há basicamente três tipos de testes para a identificação de hCG: imunológico, radioimunológico (RIA) e enzima-imunoensaio (ELISA).
■ Testes imunológicos O hCG é uma proteína e, como tal, induz à formação de anticorpos (antissoro) em outros animais (p. ex., coelho). O antissoro é utilizado para identificar hormônios na urina a ser examinada, embora seja necessário tornar visível a reação; isso é possível, basicamente, com hemácias ou partículas de látex. É necessário observar se a urina está bastante concentrada, a fim de melhorar a sensibilidade dos testes. ▶ Prova de inibição da aglutinação do látex. Denominada teste de lâmina, é de leitura rápida, com duração de poucos minutos. Apresenta dois inconvenientes: a imagem do resultado pode ser discutível e a sensibilidade é menor (1.500 a 3.500 UI/ℓ). ▶ Prova de inibição da hemaglutinação. Chamada teste de tubo, oferece leituras em 2 h, raramente de interpretação duvidosa, e com mais sensibilidade (750 a 1.000 UI/ℓ). Recentemente, foi lançada uma variante, na qual o antissoro (e não as hemácias) tem o hCG ligado, o que inverte a imagem dos resultados. Denomina-se hemaglutinação passiva reversa, utiliza dois anticorpos monoclonais (camundongo) e oferece sensibilidade desde o nível de 75 UI/ℓ. Na prática, para que o exame seja realizado, aconselha-se que o atraso menstrual ultrapasse 10 a 14 dias. Assim, a prova de inibição da hemaglutinação oferece sensibilidade de 97 a 99%. Com a nova modalidade, afirma-se que o mesmo pode ser obtido com 1 a 3 dias de amenorreia. Medicamentos psicotrópicos, proteinúria e mulheres no climatério (reação cruzada com o LH, neste caso, em teor bem mais elevado) podem determinar resultados falso-positivos; os falsonegativos ocorrem em urinas de baixa densidade (grandes volumes nicteméricos, acima de 2 ℓ), na primeira ou na segunda semana do atraso menstrual e, ocasionalmente, durante o segundo trimestre, quando é mais baixo o limite inferior dos níveis de hCG.
■ Testes radioimunológicos Testes radioimunológicos consistem na dosagem de hCG por método radioimunológico (RIA), com base na competição do hormônio em questão com traçador adequado (o próprio hormônio marcado com radioiodo), conforme a quantidade fixa de antissoro. A dificuldade nesse procedimento é a reação cruzada com LH hipofisário, que é corrigida ao fazer a dosagem da subunidade beta do hCG, que é mais específica e, atualmente, é a única de uso corrente. A dosagem de hCG-β possibilita diagnóstico precoce, com 10 a 18 dias da concepção, e
sensibilidade de 5 mUI/mℓ. Os resultados são obtidos em aproximadamente 4 h, o que torna possível aos laboratórios especializados o fornecimento de duas séries por dia.
■ Teste ELISA O enzima-imunoensaio (ELISA) apresenta a mesma base teórica do RIA; contudo, substitui o hormônio marcado com radioisótopo por enzima, capaz de atuar sobre um substrato incolor e originar produto colorido. A intensidade da cor obtida é proporcional à quantidade de hormônio. Sua principal vantagem é o maior tempo de vida útil, pois não contém radioisótopos (de atividade limitada). Para dosar o hCG-β, sua sensibilidade é de 25 mUI/mℓ 14 a 17 dias após a concepção.
■ Diagnóstico ultrassonográfico Atualmente, é obrigatório o uso da ultrassonografia transvaginal no primeiro trimestre da gravidez. Com 4 a 5 semanas, na parte superior do útero, começa a aparecer formação arredondada, anelar, de contornos nítidos, que corresponde à estrutura ovular, denominada, em ultrassonografia, saco gestacional (SG) (Figura 7.3). A partir de 5 semanas, é possível visualizar a vesícula vitelina e, com 6 semanas, o eco embrionário e a sua pulsação cardíaca bcf (Figura 7.4).
Figura 7.3 ■ Gestação de 5 semanas. SG, saco gestacional.
Em torno de 10 a 12 semanas, nota-se espessamento no SG, que representa a placenta em desenvolvimento e seu local de implantação no útero. Com 12 semanas, a placenta pode ser facilmente identificada e apresenta estrutura definida com 16 semanas. A Tabela 7.1 mostra marcos importantes ocorridos à ultrassonografia transvaginal no primeiro trimestre.
Figura 7.4 ■ Gestação de 8 semanas (ultrassonografia 3D). E, embrião; VV, vesícula vitelina.
Tabela 7.1 ■ Marcos importantes à ultrassonografia transvaginal no primeiro trimestre. Marcos
Época (semanas)
Saco gestacional
4
Vesícula vitelina
5-6
Eco fetal com bcf
6-7
Cabeça fetal
11-12
Placenta
12
■ Pontos-chave O diagnóstico da gravidez pode ser clínico, hormonal e ultrassônico. O diagnóstico clínico apresenta sinais de presunção, de probabilidade e de certeza. São sinais de presunção: amenorreia (4 semanas), náuseas (5 semanas), mamas congestas e doloridas (5 semanas), aréola primária e tubérculos de Montgomery (8 semanas), colostro (16 semanas), rede de Haller (16 semanas) e aréola secundária (20 semanas). Os principais sinais de probabilidade são: amenorreia (10 a 14 dias de atraso), aumento do volume uterino ao toque (6 semanas), amolecimento do istmo uterino (sinal de Hegar) (8 semanas), útero globoso (sinal de Nobile-Budin) (8 semanas), pulso vaginal (sinal de Osiander) (8 semanas) e vestíbulo azulado (sinal de Jacquemier) (8 semanas). Os sinais de certeza são aqueles decorrentes do concepto: rechaço fetal intrauterino (sinal de Puzos) (14 semanas), percepção e palpação de movimentos ativos do feto (18 semanas) e ausculta clínica (20 semanas). O diagnóstico hormonal é feito pela detecção da gonadotrofina coriônica humana (hCG) na urina (testes imunológicos) ou no sangue (testes radioimunológicos [RIA], ELISA). Os testes RIA e ELISA dosam o hCG-b, não apresentando reação cruzada com o LH. Os testes hormonais modernos que dosam o hCG-β no sangue são capazes de diagnosticar a gravidez 1 a 3 dias antes do atraso menstrual. Atualmente, a ultrassonografia transvaginal é obrigatória no primeiro trimestre da gravidez. Os marcos importantes do ultrassonografia transvaginal no primeiro trimestre da gravidez são: saco gestacional (4 semanas), vesícula vitelina (5 semanas), eco fetal com bcf (6 semanas), cabeça fetal (11 a 12 semanas) e placenta (12 semanas).
■ Última menstruação ■ Aumento do volume uterino ■ Ausculta fetal ■ Movimentos fetais ■ Ultrassonografia ■ Redefinição do “termo” da gravidez
■ Última menstruação A gravidez é datada do 1o dia do último período menstrual.* A duração média da gestação é de 280 dias (40 semanas), e isso fornece a data provável do parto, assumindo que: • O ciclo é de 28 dias • A ovulação ocorreu geralmente no 14o dia do ciclo • O ciclo foi normal, ou seja, não ocorreu imediatamente após a parada de contracepção oral ou após gravidez anterior. Na prática usa-se a regra de Nägele, que consiste em adicionar à data da última menstruação 7 dias e mais 9 meses (ou menos 3 meses, quando se faz o cálculo retrógrado). Por exemplo, se a última menstruação foi em 10 de novembro (mês 11), temos 10 + 7 = 17, e 11 – 3 = 8, portanto, 17 de agosto (mês 8) será a data provável do parto. Aparentemente, a gravidez, assim avaliada, não teria os 280 dias de duração média que lhe foram atribuídos (9 × 30 = 270 + 7 = 277). No entanto, há correspondência perfeita: no decurso de 9 meses, como norma, 3 ou 4 têm 31 dias e essa diferença (de 1 dia) torna a regra de Nägele a mais aproximada dos referidos 280 dias. Knaus estabelece que a duração habitual da gravidez humana é de 273 dias, a partir da ovulação. A época provável do parto deveria ser calculada acrescentando-se 14 dias ao primeiro dia do último catamênio, mais 9 meses (ou menos 3), nas mulheres com o ciclo regular de 28 dias. Nas que o têm mais longo ou mais curto, deve-se alterar a contagem, com base na presunção de dar-se a ovulação, aproximadamente, 15 dias antes do início da menstruação seguinte, que marca, quando presente, a fecundação que se não realizou.
■ Aumento do volume uterino O útero pode ser palpado no abdome, a partir de 12 semanas. À medida que a gestação avança, o fundo uterino mostra-se gradativamente mais alto, distanciando-se da sínfise púbica. Na primeira metade da gestação, a mensuração do fundo de útero é bom indicador para o cálculo da idade da gravidez (Figura 8.2). Na segunda metade, embora ele cresça cerca de 4 cm/mês, as variações são maiores e os erros, mais comuns. Com 16 semanas, o fundo de útero estará a meia distância entre a sínfise púbica e o umbigo; com 20 semanas, nesse, e ao termo, próximo das rebordas costais. Nas primíparas, 2 semanas antes do parto, em decorrência da queda do ventre, pela insinuação da cabeça fetal, o fundo baixa cerca de 2 cm sendo um indício de que o parto deverá iniciar-se nos próximos 15 dias. Com isso, ocorrem melhores condições para a gestante, que respira mais facilmente, embora reapareçam as queixas urinárias do 1o trimestre.
Figura 8.1 ■ Duração da idade gestacional de acordo com os diversos critérios. Na coluna da direita, a duração da gravidez em dias, semanas, meses lunares (28 dias) e meses solares (30 dias) foi estimada tendo como ponto de reparo a fecundação. Na coluna da esquerda, a idade da gravidez se avalia em relação ao 1o dia da última menstruação, correspondendo ao habitualmente feito na clínica obstétrica. Note que, pelo último processo, a idade da gravidez está aumentada de 14 dias em relação à idade embriológica.
■ Ausculta fetal A ausculta com o estetoscópio de Pinard pode ser feita a partir de 20 semanas de gravidez; contudo, essa prática foi substituída pelos procedimentos eletrônicos. O sonar-Doppler identifica o pulso fetal desde 10 a 12 semanas. É excepcional a escuta antes dessa idade gestacional.
Figura 8.2 ■ A altura do fundo de útero durante o evoluir da gestação. Depois de 20 semanas são grandes as variações, embora o órgão cresça, aproximadamente, 4 cm/mês.
■ Movimentos fetais Aproximadamente com 18 semanas de gravidez, indistintamente, primíparas e multíparas começam a perceber os movimentos fetais (MF), que constituem, na ausência de informações sobre a última menstruação, outro elemento clínico para o cálculo da idade da gravidez.
■ Ultrassonografia Em cerca de 20 a 30% das grávidas, a idade da gravidez não pode ser calculada pela última menstruação devido à imprecisão do registro, ciclos irregulares, amenorreia pós-parto ou pósanovulatórios, “hemorragia de implantação”. Nesses casos, só o exame ultrassonográfico possibilita estimar, com precisão, a idade gestacional. No 1o trimestre a idade da gravidez é estimada pela medida do comprimento cabeça-nádega (CCN) com precisão de aproximadamente 5 dias; de 12 até 20 semanas, o diâmetro biparietal (DBP) fornece precisão de ± 10 dias. Após 20 semanas as medidas sonográficas são imprecisas. Se houver diferença entre a idade da gravidez obtida pela última menstruação e a avaliada pelo ultrassom, prevalece a estimada pela sonografia (Figura 8.3).
Figura 8.3 ■ Determinação da idade da gravidez. A ultrassonografia (US) de 1o trimestre é a mais fidedigna, portanto a gravidez não deve ser redatada pela US de 2o trimestre. FIV, fertilização in vitro; DUM, data da última menstruação; d, dias.
■ Redefinição do “termo” da gravidez* Considerando o atual conceito do termo da gravidez – 37 semanas + 0 dia a 41 semanas + 6 dias – adotado pela WHO (1970, 2013), seguem as novas definições sobre o tema (Figura 8.4): • Termo-precoce: 37 semanas + 0 dia a 38 semanas + 6 dias • Termo-completo: 39 semanas + 0 dia a 40 semanas + 6 dias • Termo-tardio: 41 semanas + 0 dia a 41 semanas + 6 dias • Pós-termo: ≥ 42 semanas.
Figura 8.4 ■ Redefinição do “termo” da gravidez. s, semanas; d, dias. (NICHD, ACOG, AAP, SMFM, MOD, WHO, 2013).
■ Pontos-chave A idade da gestação é calculada a partir do 1o dia do último período menstrual, sendo expressa em semanas ou dias completos. Na realidade, a idade da gestação está aumentada de 14 dias em relação à idade do embrião. A data provável do parto será, em média, 280 dias após o 1o dia do último período menstrual. A data provável do parto é calculada, na prática, pela regra de Nägele: adicionar à data da última menstruação 7 dias e mais 9 meses (ou menos 3 meses quando se faz o cálculo retrógrado). A idade da gravidez pode ser aproximada pelo volume uterino: palpado na sínfise (12 semanas), meia distância entre a sínfise e o umbigo (16 semanas), umbigo (20 semanas), meia distância entre o umbigo e o apêndice xifoide (28 semanas) e apêndice xifoide (38 semanas). Nas primíparas há a “queda do ventre” 15 dias antes da data de parto pela insinuação da cabeça fetal. A ausculta clínica com o estetoscópio de Pinard é obtida a partir de 20 semanas; com o sonar-Doppler entre 10 e 12 semanas. Os movimentos fetais são percebidos pela gestante e palpados pelo obstetra com 18 semanas. Em cerca de 20 a 30% das mulheres a idade da gravidez não pode ser calculada pela última menstruação devido a dados imprecisos, sendo então estimada pela ultrassonografia por meio da medida do comprimento cabeça-nádega (CCN) do embrião, com precisão de ± 5 dias ou pelo diâmetro biparietal (DBP), com precisão de ± 10 dias. Se houver diferença entre a idade da gravidez obtida pela última regra e a avaliada pela ultrassonografia, prevalece a estimada pela sonografia.
_________ *A idade do ovo é contada a partir da concepção. Na prática obstétrica, todavia, não sendo conhecida a data provável da ovulação nem da fertilização, recorre-se ao único episódio objetivo, a última regra. Na realidade, a idade “clínica” da gestação está aumentada de 14 dias em relação à idade “embriológica” (Figura 8.1). *Grupo de trabalho: National Institute of Health and Human Development (NICHD), American Congress of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), American Academy of Pediatrics (AAP), Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM), March of Dimes (MOD) e World Health Organization (WHO) (2013).
■ Atitude ■ Situação ■ Apresentação ■ Posição ■ Nomenclatura ■ Frequência da situação e da apresentação
Neste capítulo, são analisadas as relações do produto conceptual com a bacia e com o útero. Trata-se do estudo que possibilita o conhecimento da nomenclatura obstétrica, fundamental para o tocólogo cultivado.
■ Atitude ▶ Durante a gestação. O continente uterino, ao termo da gravidez, mede, na maior de suas dimensões, 30 cm. O feto, com 50 cm de comprimento, deve adaptar-se a tais condições de espaço, flexionando-se. Dessa maneira, o seu eixo longitudinal (do lâmbda ao cóccix) fica reduzido a 25 cm. Denomina-se atitude ou hábito fetal a relação das diversas partes do feto entre si. Graças à flexibilidade da coluna vertebral e à articulação occipitovertebral, o feto se aloja na cavidade uterina em atitude de flexão generalizada, isso é, a coluna vertebral encurvada no seu todo e a cabeça com o mento aproximado da face anterior do tórax, o que dá ao concepto a forma ovoide, o ovoide fetal, que apresenta então dois polos: o cefálico e o pélvico, esse maior que aquele (Figura 9.1). Nos membros inferiores, as coxas se fletem sobre a bacia e as pernas, na mesma atitude, sobre as coxas. Nos membros superiores, os braços se locam na face anterior do tórax bem como os antebraços, também fletidos. O conjunto do tronco com os membros denomina-se ovoide córmico. Na apresentação pélvica a atitude da cabeça fetal é das mais variáveis: de regra ligeiramente fletida, com o mento próximo ao manúbrio; pode, no entanto, ficar em atitude indiferente ou em deflexão; pode apresentar-se, ainda, lateralmente inclinada, com ou sem rotação. Essa atitude da cabeça, durante a gravidez, não tem significação prognóstica para o parto, à vista da correção espontânea que ocorre no decurso do trabalho. ▶ No parto. Ao iniciar-se o trabalho de parto, e principalmente após a amniorrexe, a atitude do feto se modifica. Nessas condições, devido à expansão do segmento inferior e à incorporação da cérvice, que ascende, o útero toma forma diversa daquela anteriormente guardada, passando de globosa a cilindroide, o que obriga o feto a endireitar o tronco, diminuindo sua flexão de maneira a se constituir em um cilindro, o cilindro fetal, formado pela cabeça fletida sobre o tronco, com as pequenas partes a ele mais aconchegadas. O polo cefálico é a parte do feto que merece o estudo mais minucioso, por ser o segmento menos redutível e desempenhar papel da maior importância no processo de adaptação ao trajeto pelviperineal. Enquanto o perímetro occipitofrontal é de 35 cm, o torácico, menor, mede 33 cm, uma peculiaridade que perdura, proporcionalmente, até o início do segundo ano de vida. O perímetro abdominal é ainda mais reduzido, medindo 28 cm.
Figura 9.1 ■ Ovoide fetal.
▶ Cabeça. Entre as duas partes que a compõem – crânio e face –, é a primeira que se reveste de importância obstétrica, devido às pequenas proporções de tamanho da segunda. O crânio é constituído de dois ossos frontais, dois parietais, dois temporais, um occipital, um esfenoide e um etmoide. Enquanto os ossos da abóbada craniana são separados por tecidos membranosos – suturas e fontanelas –, possibilitando a redução de seu volume durante o parto, os ossos da base compõem bloco indeformável. As suturas mais importantes são: • Sutura sagital, entre os parietais • Sutura metópica, interfrontal ou frontal média • Sutura coronária, entre os frontais e os parietais • Sutura lambdoide, entre os parietais e o occipital • Sutura temporal, entre os parietais e os temporais. As fontanelas, descritas a seguir, são zonas membranosas, nos pontos de convergência de 3 ou 4 ossos e delas partem as suturas: • Fontanela bregmática (anterior, ou grande fontanela): tem configuração losangular, com os lados formados pelos frontais e parietais, e de cujos vértices saem as suturas sagital, metópica e coronária. Constitui valioso ponto de referência para o diagnóstico de posição, obtido com o toque digital ou manual • Fontanela lambdoide (posterior ou pequena fontanela): limitada pelo occipital e pelos parietais, apresenta morfologia relativamente triangular, e dos seus vértices saem as suturas sagital e lambdoide • Fontanelas ptéricas ou ptérios (lateroanteriores): no total são duas (uma de cada lado) e têm como limites o temporal, o frontal, o parietal e o esfenoide • Fontanelas astéricas ou astérios (lateroposteriores): também são duas e têm como limites o occipital, o temporal e o parietal.
Os ptérios e os astérios são fontanelas que carecem de expressão obstétrica. A média dos diâmetros e das circunferências cefálicas está apresentada na Tabela 9.1 e na Figura 9.2.
Tabela 9.1 ■ Diâmetros e circunferências da cabeça fetal. Diâmetro (cm)
Circunferência (cm)
Occipitofrontal
12
34
Occipitomentoniano
13,5
36
Suboccipitobregmático
9,5
32
Suboccipitofrontal
11
33
Submentobregmático ou hiobregmático
9,5
32
Biparietal
9,5
–
Bitemporal
8
–
▶ Tronco. Os diâmetros e circunferências do tronco que importam ao obstetra são: • Diâmetro biacromial: 12 cm • Circunferência biacromial: 35 cm • Diâmetro bitrocanteriano: 9,5 cm • Circunferência bitrocanteriana (variável de acordo com a posição do feto): ○ Pernas estendidas: 27 cm ○ Pernas flexionadas (apresentação pélvica, modo de nádegas): 35 cm. Nas apresentações de vértice ou de occipital, partindo da atitude inicial indiferente ou de rápida flexão, a cabeça se flete gradualmente, substituindo-se diâmetros maiores por outros menores: occipitofrontal (12 cm) pelo suboccipitofrontal (11 cm) e, finalmente, pelo suboccipitobregmático (9,5 cm). Nas apresentações com deflexão cefálica, esta se acentua, substituindo-se o occipitomentoniano (13 cm) pelo submentobregmático (9,5 cm), diâmetro de insinuação das apresentações de face. Nas apresentações pélvicas, os diâmetros fetais do cinto pélvico se reduzem por aconchegamento.
■ Situação
Denomina-se situação a relação entre os grandes eixos longitudinais fetal e uterino. Quando ambos se coincidem, a situação será longitudinal; quando perpendiculares, a situação é transversa; e, se cruzados, a situação será oblíqua ou inclinada. A primeira ocorre em 99,5% das vezes, e a última representa fase de transição da situação fetal, que no momento do parto se estabilizará em longitudinal ou transversa.
■ Apresentação É a região fetal que se localiza na área do estreito superior, ocupando-a em seu todo, e aí tende a insinuar-se. Durante o parto, é sede de mecanismo bem determinado. É necessário ter precisão terminológica: encontrando-se no estreito superior segmentos fetais, como pequenas partes e funículo, não há elementos para caracterização de apresentação; constituem apenas procidências. Em decorrência dos fatores determinantes da acomodação fetal, pode-se observar transformação de uma apresentação por outra, fenômeno chamado de mutação ou versão, e está ligado à rotação axial do feto. Até o 6o mês de gestação a cabeça é encontrada no fundo uterino, e depois, graças a essa rotação axial, o feto, por “cambalhota”, orienta o polo cefálico para as porções inferiores do órgão, e aí se mantém.
Figura 9.2 ■ Diâmetros principais do crânio fetal.
Ao plano circunferencial da apresentação, que se põe em relação com o estreito superior, chama-se plano de contato da apresentação. À situação transversa corresponde sempre a apresentação córmica. Duas apresentações podem ocorrer na situação longitudinal – a do polo cefálico e a do polo pélvico –, e se denominam, respectivamente, apresentação cefálica e apresentação pélvica. O polo cefálico pode apresentar-se fletido, com o mento próximo à face anterior do tórax ou dele se afastar em graus diversos de extensão. No primeiro caso, têm-se as apresentações cefálicas fletidas, e no segundo caso, as apresentações cefálicas defletidas: de 1o grau ou bregmáticas, de 2o grau ou de fronte, e na
deflexão máxima, as de 3o grau ou apresentação de face (Figura 9.3). Encontrando-se o polo pélvico no estreito superior, duas apresentações podem ocorrer: a apresentação pélvica completa (pelvipodálica), se as coxas e as pernas estão fletidas, e a apresentação pélvica incompleta (pélvica simples), também chamada modo de nádegas, quando, fletidas as coxas contra a bacia, as pernas se acham estendidas sobre a face anterior do tronco (Tabela 9.2). Ao descrever as apresentações pélvicas incompletas, alguns autores consideram ainda outras modalidades, tais como o modo de joelhos e o de pés, quando essas regiões ocupam o estreito superior, o que pode ser dispensado, pois o pequeno volume delas não impõe característica especial aos fenômenos mecânicos do ato da parturição. Assim, modalidades acidentais sucedem se um membro inferior fica estendido sobre a face anterior do tronco e o outro fletido.
Tabela 9.2 ■ Equivalência da nomenclatura nas apresentações. Pélvica completa
Pelvipodálica
Pélvica incompleta, modo de nádegas
Pélvica simples
■ Altura da apresentação Durante a gravidez a apresentação fica afastada do estreito superior, não tendo relação direta com a bacia. No início do trabalho ou mesmo nos dias que o precedem, essa relação com a pelve materna manifesta-se e distinguem-se os seguintes graus evolutivos da altura da apresentação: • Alta e móvel quando a apresentação não toma contato com o estreito superior • Ajustada se ocupa a área desse estreito • Fixa quando, pelo palpar, não se consegue mobilizá-la • Insinuada quando a maior circunferência da apresentação transpõe a área do estreito superior. Chama-se, assim, insinuação ou encaixamento a passagem, pelo estreito superior, do maior plano perpendicular à linha da orientação, isto é, passagem do biparietal nas apresentações cefálicas e do bitrocanteriano nas apresentações pélvicas. A travessia dessa região estreita da bacia se obtém pela redução dimensória sinalada, e por movimento de inclinação lateral da apresentação a que se denomina assinclitismo. A ausência da flexão lateral, mantendo-se a sutura sagital equidistante do sacro e do púbis, condiciona o sinclitismo (Figura 9.4 A).
Figura 9.3 ■ Atitude da cabeça fetal na apresentação fletida (A), na de bregma (B), na de fronte (C) e na de face (D).
O assinclitismo posterior (obliquidade de Litzmann) caracteriza-se quando a sutura sagital está próxima do púbis e o parietal posterior é o primeiro a penetrar na escavação (Figura 9.4 B). Diz-se que o assinclitismo é anterior (obliquidade de Nägele), quando a sutura sagital está mais aproximada do sacro e o parietal anterior desce em primeiro lugar (Figura 9.4 C). Para expressar a altura da apresentação aconselha-se adotar o critério de DeLee: considerar o diâmetro biespinha ciática ou linha interespinhosa, como plano de referência “0” (zero). Quando a parte baixa da apresentação estiver a 1 cm acima do plano “0”, a altura é expressa como “–1”; 2 cm acima, como “–2” e assim sucessivamente até “–5”. Quando a parte mais baixa da apresentação ultrapassar de 1 cm o plano “0”, sua altura será “+1”; quando de 2 cm, “+2”, nomeando-se assim até “+5” (Figura 9.5).
■ Posição De acordo com a escola alemã, é posição a relação do dorso fetal com o lado direito ou esquerdo materno, dificilmente podendo essa região fetal localizar-se francamente para a frente ou para trás em virtude da lordose lombar materna. Assim, teremos posição esquerda ou 1a posição, quando o dorso fetal se acha voltado para o lado esquerdo materno, e posição direita ou 2a posição, quando o dorso se orienta para o lado direito. A escola francesa conceitua a posição relacionando não o dorso fetal mas o ponto de referência da apresentação com o lado esquerdo ou direito materno. As duas definições nem sempre se correspondem: nas apresentações cefálicas fletidas, o dorso e o ponto de referência da apresentação se encontram no mesmo lado, ao passo que, nas defletidas, o dorso está em plano oposto ao ponto de referência fetal. Posições que merecem ser salientadas, embora raras, são as diretas, a occipitossacra e a occipitopúbica, quando no início do trabalho de parto, e, no estreito superior, o occipital se encontra voltado para a frente ou para trás e a sutura sagital ocupa o
diâmetro anteroposterior do estreito superior.
Figura 9.4 ■ Inclinação lateral da cabeça. A. Sinclitismo. B. Assinclitismo posterior (obliquidade de Litzmann). C. Assinclitismo anterior (obliquidade de Nägele).
Figura 9.5 ■ Esquema de DeLee para a avaliação da altura da apresentação.
■ Variedade de posição Feito o diagnóstico da apresentação e da posição, ele ainda não está completo, sendo necessário acrescentar a variedade de posição, que se define como a relação dos pontos de referência maternos e fetais. ▶ Maternos. O púbis, as eminências ileopectíneas, as extremidades do diâmetro transverso máximo, a sinostose sacroilíaca e o sacro (Figura 9.6). ▶ Fetais. São variáveis com as apresentações: • Lâmbda, nas apresentações cefálicas fletidas • Extremidade anterior do bregma, nas apresentações cefálicas defletidas de 1o grau (bregmáticas) • Glabela ou raiz do nariz, nas de 2o grau (fronte)
• Mento nas de 3o grau (face) • Sacro, nas apresentações pélvicas. Na situação transversa, impropriamente denominada apresentação transversa, a apresentação é córmica. A variedade mais frequente é a de ombro e o ponto de referência fetal é o acrômio. ▶ Linha de orientação. É importante ter conhecimento da linha de orientação. É a linha fetal que se põe em relação com o diâmetro materno de insinuação e possibilitar acompanhar os movimentos da apresentação durante o trabalho de parto.
Figura 9.6 ■ Pontos de referência maternos e seus símbolos: 1, púbis; 2, eminência ileopectínea; 3, extremidades do diâmetro transverso; 4, sinostose sacroilíaca; 5, sacro.
As linhas de orientação são: • Sutura sagital, na apresentação cefálica fletida • Sutura sagital e metópica, na apresentação cefálica defletida de 1o grau • Sutura metópica, na apresentação cefálica defletida de 2o grau • Linha facial, isto é, linha mediana que a partir da raiz do nariz atinge o mento, na apresentação cefálica defletida do 3o grau • Sulco interglúteo, na apresentação pélvica. As situações transversas não têm linha de orientação, pois são impeditivas de expulsão espontânea, a não ser em casos especiais de fetos pequenos ou macerados.
■ Nomenclatura Com a nomenclatura obstétrica, designam-se, de maneira exata, a situação, a apresentação, a posição e a variedade de posição, tendo-se perfeito conhecimento da estática fetal (Figuras 9.7 e 9.8). ▶ Nomenclatura na situação longitudinal. Nomeiam-se pelo emprego de duas ou três letras: a primeira, indicativa da apresentação, é símbolo da região que a caracteriza; as demais correspondem ao ponto de referência ao nível do estreito superior. Exemplos: OEA significa que a
apresentação é de occipital (O) e o ponto de referência, o lâmbda, está em correspondência com o estreito superior, à esquerda (E) e anteriormente (A) (ponto EA da Figura 9.6); MDP significa que a apresentação é de face e o ponto de referência, o mento (M), está em relação com o estreito superior, à direita (D) e posteriormente (P) (ponto DP da Figura 9.6). Tomando como exemplo a apresentação cefálica fletida, em occipital, as variedades de posição são: • OP: occipitopubiana • OEA: occípito-esquerda-anterior • OET: occípito-esquerda-transversa • OEP: occípito-esquerda-posterior • OS: occipitossacra • ODP: occípito-direita-posterior • ODT: occípito-direita-transversa • ODA: occípito-direita-anterior. ▶ Nomenclatura na situação transversa. Na nomenclatura da situação transversa não há uniformidade na designação; para a escola francesa a localização do dorso define a posição: anterior, quando o dorso está voltado para a frente; posterior quando voltado para a coluna vertebral materna; e o acrômio, direito ou esquerdo, que se põe em relação com o estreito superior, define a apresentação. Exemplo: posição acromiodireita-anterior (ADA) significa que o acrômio direito está na área do estreito superior e o dorso voltado para a frente; por acromioesquerda-posterior (AEP) entende-se que no estreito superior se acha o acrômio esquerdo e o dorso está voltado para trás (Figura 9.7).
Figura 9.7 ■ Situação, apresentação e posição do feto. A. Situação longitudinal, apresentação cefálica, de vértice. Occípito-esquerda-anterior (OEA). B. Situação longitudinal, apresentação cefálica, de vértice. Occípito-direitaanterior (ODA). C. Situação longitudinal, apresentação cefálica, de vértice. Occípitodireita-posterior (ODP). D. Situação longitudinal, apresentação cefálica, de fronte. Nasodireita-anterior (NDA). E. Situação longitudinal, apresentação pélvica completa (pelvipodálica). Sacro-direita-posterior (SDP). F. Situação longitudinal, apresentação pélvica incompleta (modo de nádegas). Sacro-direitaposterior (SDP). G. Situação oblíqua. H. Situação transversa, apresentação córmica. Acromioesquerdaposterior (AEP). I. Situação transversa, apresentação córmica. Acromiodireita-anterior (ADA).
Figura 9.8 ■ Pontos de referência fetais e linhas de orientação (impressão ao toque). A. Lâmbda e sutura sagital. B. Extremidade anterior do bregma e sutura sagitometópica. C. Glabela e sutura metópica. D. Mento e linha facial. E. Sacro e sulco interglúteo. F. Gradeado costal e acrômio.
Para a escola alemã a posição é determinada pela localização do ovoide cefálico nas fossas ilíacas, chamando-se primeira posição quando a cabeça está no lado esquerdo, segunda posição quando no lado direito, distinguindo-se as variedades anteriores e posteriores de acordo com a orientação do dorso, e de maneira idêntica à escola francesa. Exemplo: cefálico-esquerda dorso anterior significa que a cabeça está na fossa ilíaca esquerda e o dorso voltado para a frente, e cefálico-direita-dorso posterior, quando a cabeça está na fossa ilíaca direita, o dorso se acha voltado para trás. Para a escola norte-americana a posição é indicada pelo lado materno onde se encontra o acrômio; assim, acromioesquerda-anterior (AEA) representa que o acrômio está em relação com o lado esquerdo materno e o dorso voltado para frente. Corresponde à acromiodireita-anterior da escola francesa. Às vezes, na situação transversa, o dorso fetal se orienta nitidamente para cima (dorsosuperiores) ou para baixo (dorso-inferiores). Portanto, não havendo uniformidade na nomenclatura da situação transversa, é preciso ficar atento a trabalhos originados desta ou daquela fonte. A classificação americana merece as nossas preferências. Permite, sem esforço mental,
informar a localização do ovoide cefálico, o que importa para a execução da versão por manobras internas. Na Tabela 9.3 evidenciam-se as várias apresentações e posições, bem como seu símbolo indicativo e as respectivas linhas de orientação.
■ Frequência da situação e da apresentação A frequência da situação e da apresentação pode ser vista na Tabela 9.4.
Tabela 9.3 ■ Pontos de referência, linhas de orientação e símbolos nas diversas apresentações. Situação
Ponto de referência
Linha de orientação
Símbolo
Vértice ou de occipital
Lâmbda
Sutura sagital
O
Bregma
Bregma
Sutura sagitometópica
B
Fronte
Glabela
Linha metópica
N
Face
Mento
Linha facial
M
Pélvica
Sacro
Sulco interglúteo
S
Córmica
Acrômio
Dorso
A
Apresentação
Fletida
Cefálica Longitudinal
Transversa
Defletida
Tabela 9.4 ■ Frequência da situação e da apresentação. Situação longitudinal – 99,5%
Situação transversa – 0,5%
Apresentação cefálica –
96,5%
Fletida – 95,5%
Defletida – 1%
Apresentação pélvica – 3%
Apresentação córmica
■ Pontos-chave Denomina-se atitude ou hábito fetal a relação das diversas partes do feto entre si, como flexão generalizada, constituindo o ovoide fetal, com dois polos – o cefálico e o pélvico. Entre as partes que compõem a cabeça – crânio e face – é a primeira que se reveste de importância obstétrica. Os ossos da abóbada craniana são separados por tecido membranoso – suturas e fontanelas –, possibilitando a redução de seu volume durante o parto. A sutura sagital é a mais importante e, entre as fontanelas, a bregmática (ou grande fontanela) e a lambdoide (ou pequena fontanela). Os diâmetros mais importantes para o parto são: occipitofrontal (12 cm), suboccipitofrontal (11 cm), suboccipitobregmático (9,5 cm), biparietal (9,5 cm) e biacromial (12 cm). Denomina-se situação a relação entre os grandes eixos longitudinais fetal e uterino. Coincidentes os dois, a situação será longitudinal, e quando
perpendiculares, transversa. Apresentação é a região fetal que se localiza na área do estreito superior, ocupando-a em seu todo e aí tende a se insinuar. Durante o parto, é sede de mecanismo bem determinado. Pode ser cefálica, pélvica ou córmica. As apresentações cefálicas podem ser fletidas ou defletidas (de 1o grau ou bregmática, 2o grau ou de fronte, 3o grau ou de face). A apresentação pélvica pode ser completa (ou pelvipodálica) ou incompleta (pélvica simples). Para expressar a altura da apresentação, ou seja, sua distância ao estreito superior, é útil o critério de DeLee: considerar o diâmetro biespinha ciática como plano de referência “0” (zero). Acima desse plano a altura será negativa em centímetros, e abaixo, positiva em centímetros. Posição é a relação do dorso fetal com o lado materno, direito ou esquerdo. Variedade de posição é a relação de pontos de referência fetais e maternos. A variedade de posição mais comum é a occípito-esquerda-anterior (OEA), quando o lâmbda se relaciona com a eminência ileopectínea esquerda materna.
■ Anatomia ■ Exame da bacia
O trajeto, ou canal da parturição, estende-se do útero à fenda vulvar. Nele, há três estreitamentos anulares: o orifício cervical, o diafragma pélvico (urogenital) e o óstio vaginal (fenda vulvovaginal). Constituído de formações de diversas naturezas – partes moles do canal do parto –, é sustentado entre a sua porção superior, o corpo do útero e a inferior, perineovulvar, por cintura óssea, que se designa pelo nome de pequena pelve, pequena bacia ou escavação. Alterações marcantes na morfologia da pelve feminina, com a adoção da postura ereta pelos nossos ancestrais australopithecus, e o aumento do crânio no ser humano moderno trouxeram consequências notáveis para a parturição (Figura 10.1). Uma teoria sugere que a adaptação pélvica à postura ereta (estreitando a bacia e possibilitando unir as pernas abaixo da coluna vertebral, o que facilita a transferência da força originada do fêmur) foi contemporânea à grande limitação do tamanho da cabeça do feto ao nascimento, até que o mecanismo de rotação cefálico tenha surgido ao final do período do Pleistocênico Médio.
Figura 10.1 ■ Pelves do chimpanzé, australopithecus e homem. A. A grande amplitude da pelve do chimpanzé possibilita sem dificuldade a passagem da cabeça fetal relativamente pequena na posição occipitoposterior. B. No australopithecus, a largura do íleo, associada à postura ereta e ao estreitamento da abertura pélvica, condiciona o parto em posição lateral. C. A pelve humana tem a abertura apenas o suficiente para possibilitar a passagem da cabeça na posição occipitoanterior. (De Smith, 2007.)
Nota-se o conflito entre o feto e sua mãe: ele sobrevive melhor se nascer maior, mas o parto
seria mais fácil se ele nascesse menor. O trabalho de parto não pode ser visto como um processo harmonioso, somente por ser natural. Ao contrário, trata-se de uma solução imperfeita para problema complexo, ainda em evolução – conflito crescente representado pela cabeça fetal, que precisa passar através da pelve, durante o trabalho de parto, e que a necessidade de andar exigiria que a cabeça fosse estreita, e a necessidade de pensar, inseparável de cérebro desenvolvido, somente acomodado em crânio volumoso, levando, consequentemente, ao parto distócico. A solução na evolução natural é: nascem os humanos cada vez mais cedo. Fora exigida maturidade funcional idêntica à do chimpanzé, a gravidez da mulher duraria cerca de 17 meses.
■ Anatomia A bacia (ou pelve) constitui o canal ósseo, formado pelos dois ilíacos – o sacro e o cóccix –, com as respectivas articulações (sínfise púbica, sacroilíacas, sacrococcígea) (Figuras 10.2 a 10.4). Entre o sacro e a 5a vértebra lombar, é possível acrescentar a articulação lombossacra, cujo vértice constitui o promontório. A pelve divide-se em grande e pequena bacia ou escavação; a primeira apresenta reduzida expressão obstétrica e a última ainda requer estudo (trajeto duro do parto). A grande bacia (ou pelve falsa) é limitada, lateralmente, pelas fossas ilíacas internas, e, posteriormente, pela coluna vertebral; os limites anteriores são representados pelo espaço que os músculos abdominais mais fortes demarcam. Superiormente, assinala-se circunferência, ou contorno, formada, na parte de trás, pela base do sacro; lateralmente, pelas cristas ilíacas; à frente, pela borda anterior do osso ilíaco. Na obstetrícia, ainda que não apresente grande relevância, seu formato e suas dimensões oferecem noções relacionadas com a escavação (Figura 10.3). Continuada na parte inferior pela escavação, a separação da grande bacia ocorre pelo anel do estreito superior. A pequena bacia, escavação pélvica ou simplesmente escavação, limita-se, na parte de cima, pelo estreito superior; abaixo, pelo inferior. O estreito superior é constituído (de trás para a frente) de saliência do promontório, borda anterior da asa do sacro, articulação sacroilíaca, linha inominada, eminência ileopectínea e borda superior do corpo do púbis e da sínfise púbica.
Figura 10.2 ■ Osso ilíaco (face externa).
O estreito inferior é composto de borda inferior dos dois púbis (revestidos pelo ligamento arcuatum), ramos isquiopúbicos (ramos descendentes do púbis e ascendentes do ísquio), tuberosidades isquiáticas, borda medial ou interna dos grandes ligamentos sacrociáticos e extremidade do cóccix (articulação sacrococcígea, depois da retropulsão do cóccix); é, portanto, ósseo e ligamentoso. Entre os dois estreitos está a escavação, em que há quatro paredes: anterior, posterior e duas laterais. A parede anterior é constituída de: face posterior ou pélvica do corpo do púbis e do seu ramo horizontal; lado interno do buraco obturado e face interna da respectiva membrana; face interna do ramo isquiopúbico e de parte da tuberosidade isquiática. Em linha reta, a porção posterior mede em torno de 11 a 12 cm de altura, do promontório ao ápice do cóccix, e, seguindo o encurvamento do sacro, de 15 a 16 cm. É constituída de face anterior ou pélvica do sacro e do cóccix, medindo na parte superior aproximadamente 11 cm de largura, no nível da articulação lombossacra. O grau de concavidade da parede posterior da escavação varia, naturalmente, com o formato do sacro e é mais acentuado na mulher.
Figura 10.3 ■ Osso ilíaco (face interna).
Figura 10.4 ■ Bacia vista de cima (A) e em corte sagital (B).
O estreito médio começa atrás, no ápice do sacro, passa pelas apófises transversas da 5a vértebra sacra, pela borda inferior dos pequenos ligamentos sacrociáticos, pelas espinhas ciáticas, pelos arcos tendíneos do elevador do ânus e, finalmente, termina à frente de seus feixes pubococcígeos, na face posterior do púbis. ▶ Dimensões. Na grande bacia, é possível considerar diâmetros transversos e um anteroposterior. De uma espinha ilíaca anterossuperior à do lado oposto, obtém-se o diâmetro biespinha (BE), que mede aproximadamente 24 cm; da parte mais saliente, de uma crista ilíaca, à do lado oposto, tem-se o diâmetro bicrista (BC) que mede, em geral, 28 cm (Figura 10.5 A). Traça-se o diâmetro anteroposterior da fosseta localizada abaixo da apófise espinhosa da última vértebra lombar (base do sacro), à borda superior da sínfise púbica; é chamado também diâmetro sacropúbico externo (SPE), de Baudelocque ou conjugata externa, medindo, em geral, 20 cm (Figura 10.5 B). Na pequena bacia, serão descritos, sucessivamente, os diâmetros dos estreitos superior, médio e inferior (Figuras 10.6 e 10.7). No estreito superior, há um diâmetro anteroposterior, traçado do promontório à borda superior
da sínfise púbica, chamado conjugata vera anatômica, medindo 11 cm. Do mesmo promontório à face posterior do púbis, traça-se a conjugata vera obstétrica (10,5 cm) e, ainda, a conjugata diagonalis, que não é do estreito superior nem do inferior, sendo apenas recurso clínico para avaliar os mencionados diâmetros anteroposteriores do estreito superior; sua extensão é, em geral, de 12 cm. O diâmetro transverso máximo vai do ponto mais afastado da linha inominada ao ponto do lado oposto, localizado, em geral, na junção do terço posterior com os dois terços anteriores do diâmetro anteroposterior, medindo de 13 a 13,5 cm.
Figura 10.5 ■ Pelvimetria externa. Representação dos principais diâmetros. BT, bitrocanteriano.
Figura 10.6 ■ A. Estreito superior da bacia, visto de cima. B. Plano de maiores dimensões da escavação, visto de baixo. C. Plano de menores dimensões, estreito médio, visto de baixo. D. Estreito inferior, visto de baixo. No centro, corte sagital indicando os planos sinalados em A, B, C e D. (Adaptada de Beck, AC e Rosenthal, AH. Obstetrical practice, 6a ed., Baltimore, Williams & Wilkins, 1955.)
Os diâmetros oblíquos, chamados anteriormente de insinuação, vão de um ponto correspondente à eminência ileopectínea de um lado à sínfise sacroilíaca do lado oposto. Recebem, dos autores franceses, o nome de esquerdo e direito, de acordo com a eminência ileopectínea de onde partem; dos germânicos, ganham a designação de direito e esquerdo, conforme procedam da sínfise sacroilíaca de um lado ou de outro; assim, o diâmetro oblíquo esquerdo dos franceses é o direito dos alemães e vice-versa. Para dirimir a divergência de nomenclatura, Bar (1902) propôs que se chamasse primeiro diâmetro oblíquo ao que parte da eminência ileopectínea esquerda e vai à sínfise sacroilíaca direita; e segundo diâmetro oblíquo ao que se origina da eminência ileopectínea direita e se encaminha à sínfise sacroilíaca esquerda. Suas medidas são de 12 cm a 12,75 cm e o primeiro é ligeiramente maior que o segundo. No estreito médio, consideramos um diâmetro anteroposterior, medindo 12 cm, e outro transverso, biespinha ciática, com 10,5 cm. No estreito inferior, há um diâmetro anteroposterior (conjugata exitus), cóccix subpúbico, medindo 9,5 cm; esse diâmetro é substituído pelo subsacro subpúbico, medindo 11 cm, após a retropulsão do cóccix. O diâmetro transverso é o bi-isquiático, medindo 11 cm. ▶ Morfologia. Há quatro tipos fundamentais de bacia (Figura 10.8): ginecoide, antropoide, androide e platipeloide. O elemento dominante na determinação do tipo de bacia é fornecido pela porção posterior do estreito superior, limitada pelo diâmetro transverso máximo, enquanto a região anterior tem importância secundária. Os tipos puros ocorrem menos frequentemente que os mistos, originados de combinações entre os vários grupos fundamentais. As principais características desses tipos de bacia são mostradas na Tabela 10.1 e nas Figuras 10.9 a 10.13.
Figura 10.7 ■ Corte sagital da bacia, mostrando de cima para baixo, e com os valores normais: conjugata vera anatômica, conjugata vera obstétrica, conjugata diagonalis, conjugata exitus, antes e depois da
retropulsão do cóccix.
Figura 10.8 ■ Morfologia da pelve. Os quatro tipos fundamentais de bacia.
Tabela 10.1 ■ Principais características dos quatro tipos pélvicos fundamentais. Tipo de pelve
Ginecoide (bacia normal feminina)
Antropoide (bacia dos macacos)
Androide (bacia masculina)
Platipeloide (bacia achatada)
Frequência
50%
25%
20%
5%
Estreito superior
Arredondado
Elíptico, alongado no sentido anteroposterior
Levemente triangular
Ovalado com diâmetro anteroposterior reduzido
Diâmetro transverso máximo
Afastado do promontório e do púbis (porção posterior da bacia espaçosa)
Diminuído e próximo do púbis
Perto do sacro (porção posterior da bacia estreita)
Aumentado e equidistante do sacro e do púbis
Chanfradura ciática
Ampla, pouco profunda
Mais ampla, pouco profunda
Estreitada, profunda
Ampla, pouco profunda
Não proeminentes
Muito proeminentes
Proeminentes
Espinhas ciáticas
Sacro
Largo, côncavo, inclinação média
Estreito, longo
Estreitado, plano, longo, inclinado para a frente
Largo, curto, côncavo
Paredes da escavação
–
Paralelas
Convergentes
Divergentes
Ângulo subpúbico
Médio
Levemente estreitado
Estreitado
Muito amplo
Diâmetro bi-isquiático
Grande
Menor
Reduzido
Aumentado
Diâmetro anteroposterior do estreito inferior
Grande
Maior
Pequeno
Menos reduzido
Aumento na incidência de
Pouco aumento da incidência
Insinuação, em geral, nos
Prognóstico
Muito bom
posteriores (oblíquas e diretas) Se não houver distocia no estreito superior, não haverá no restante da bacia
Pouco aumento da incidência de posteriores oblíquas e diretas Distocias crescentes com a progressão da apresentação
Insinuação, em geral, nos diâmetros transversos Distocia maior na insinuação, amenizando posteriormente
Figura 10.9 ■ O formato da bacia é mais importante que os seus diâmetros; conforme as medidas, a morfologia pode ser diferente. Em traço cheio, o estreito superior da bacia ginecoide; em pontilhado, o estreito superior da bacia androide. (Adaptada de Moloy, HC. Evaluation of the pelvis in obstetrics, Philadelphia, Saunders, 1951.)
Figura 10.10 ■ A. Osso ilíaco típico da bacia ginecoide. Chanfradura ciática ampla, espinha ciática romba. B. Osso ilíaco peculiar à bacia androide. Chanfradura ciática estreita, espinhas ciáticas proeminentes. (Adaptada de Moloy, HC. – op. cit.)
Figura 10.11 ■ Sacro. A. Encontrado na bacia ginecoide: curto, largo, composto de cinco vértebras. B. Característico da bacia antropoide: estreito, longo, composto de seis vértebras. (Adaptada de Moloy, HC. – op. cit.)
Figura 10.12 ■ Curvatura e inclinação do sacro influindo na capacidade da escavação. (Adaptada de Moloy, HC. – op. cit.)
▶ Planos da bacia. São imaginários, traçados na entrada, na saída e em várias alturas da escavação pélvica. Merecem referência os planos paralelos de Hodge (Figura 10.14): o primeiro plano paralelo passa pela borda superior do púbis e pelo promontório; o segundo corresponde à borda inferior do púbis; o terceiro é traçado nas espinhas ciáticas; e o quarto parte da ponta do cóccix e mistura-se com o assoalho pélvico.
Figura 10.13 ■ Abertura do arco subpúbico, variável com a morfologia da pelve. A. Na bacia ginecoide. B.
Na bacia antropoide. C. Na bacia androide. As relações com a cabeça do feto, no período final do parto, estão igualmente figuradas. (Adaptada de Wilson, JR. Management of obstetrics difficulties, St. Louis, Mosby, 1961.)
Figura 10.14 ■ Planos de Hodge.
▶ Eixos da bacia. Em obstetrícia, eixos são as perpendiculares baixadas ao centro de cada plano. Há um eixo do plano do estreito superior, que passa no meio da conjugata anatômica e se prolonga, para cima e para a frente, pela cicatriz umbilical, e, para trás e para baixo, pelo cóccix. O eixo do plano do estreito inferior, prolongado, passaria pela superfície do promontório e, embaixo, perfuraria o períneo, um pouco à frente do ânus. O canal ósseo do parto divide-se, de acordo com Sellheim, em três espaços ou segmentos; um superior, reto, de secção oval – o espaço de estreito superior –; outro médio, reto, de secção transversal circular – a escavação –; e, finalmente, outro inferior. O primeiro compreende o espaço entre o plano que passa pelas espinhas do púbis e o promontório, até o plano das linhas inominadas; o segundo vai desse último até o plano que passa pela borda inferior da sínfise púbica e das espinhas ciáticas; o terceiro, entre esse plano até o da arcada do púbis. O eixo dos dois primeiros prossegue em linha reta; o do último é côncavo, em torno da borda inferior da sínfise, formando, com o estreito superior, ângulo obtuso, aberto para a frente. Os eixos têm grande valor prático: orientam o obstetra sobre a direção a dar às trações, tanto no parto a fórceps e na grande extração quanto nas embriotomias. Estando a paciente posicionada na borda do leito ou de mesa adequada, a direção do eixo de entrada é traçada de trás para a frente e de cima para baixo, no sentido do cóccix (ou dos pés do obstetra). Quase paralelo ao plano de apoio da paciente, está o eixo do estreito inferior (para os joelhos e depois para o peito do profissional); e, orientado para cima, está o eixo do estreito vulvar (no sentido da face do operador).
■ Exame da bacia A semiologia da pelve é fundamental. Em seu aspecto mecânico, o prognóstico do parto pode ser razoavelmente percebido, sendo concluído por meio da utilização correta dos métodos
habituais de exame da bacia. O estudo da capacidade da bacia é realizado por meio da pelvimetria, que procura estimar os diâmetros, ora medindo-os externamente (pelvimetria externa), ora internamente (pelvimetria interna). Para definir o formato, realiza-se pelvigrafia, que analisa os elementos constituintes da bacia, em sua regularidade individual e no conjunto. ▶ Pelvimetria externa. Executa-se por meio de instrumentos, geralmente compassos, chamados pelvímetros (de Baudelocque, de Budin, de Thoms etc.), que são aplicados sobre os diversos extremos dos diâmetros da bacia (Figura 10.5), incluindo a delimitação do quadrilátero de Michaelis (Figura 10.15). Atualmente, na assistência moderna ao parto, a pelvimetria externa da grande bacia está praticamente abandonada, devido ao seu reduzido valor semiótico. Na pelvimetria externa do estreito inferior, é útil o diâmetro bi-isquiático (ou intertuberoso), medido com o pelvímetro de Thoms, e em geral, medindo 9 cm ou mais (Figura 10.16).
Figura 10.15 ■ Quadrilátero de Michaelis. Seus pontos de reparo são: superiormente, a apófise espinhosa da 5a vértebra lombar; inferiormente, a extremidade superior da cissura interglútea; lateralmente, de um e de outro lado, as espinhas ilíacas posterossuperiores. A deformação da figura geométrica, representada pelo quadrilátero (projeção cutânea do sacro), exibe o vício pélvico.
Figura 10.16 ■ Medida do diâmetro bi-isquiático com o pelvímetro de Thoms. (Adaptada de Benson, RC. Handbook of obstetrics and gynecology, 3a ed., Los Altos, Lange Medical, 1968.)
▶ Pelvimetria interna. Na prática obstétrica atual, a avaliação das mensurações internas da bacia é superficial. Pelo fato de o estreito superior ser inacessível, procura-se medir a chamada conjugata oblíqua ou diagonalis, cujo valor é deduzido em 1,5 cm, a fim de se obter a conjugata vera obstétrica.
Ao introduzir o dedo, procura-se aplicar seu extremo (do índice, no toque unidigital, e do médio, no bidigital) sobre a saliência do promontório, e duas hipóteses podem ocorrer: ou ele é inatingível ou está acessível. Com o dedo explorador sobre o promontório, a borda radial do índice posiciona-se sob o ligamento arcuatum e, com o índice da outra mão, marca-se o ponto de encontro da face anterior do púbis com a mão que toca. A seguir, mede-se a distância entre esse ponto e a polpa digital do dedo que se aplicou no promontório, obtendo-se o valor da conjugata diagonalis (Figura 10.17). Nos casos de promontório inatingível, conclui-se que o diâmetro anteroposterior é amplo. No entanto, para considerar a bacia normal ou espaçosa, não basta que esse diâmetro tenha grandes proporções, pois o vício pélvico pode se localizar em outros pontos. Se percebermos não ser a conjugata diagonalis que desejamos avaliar, mas a conjugata vera obstétrica, e que a diferença entre ambas não é constante como se supunha (1,5 cm), podendo variar de 0 a 3 cm, pois cumpre considerar a situação do promontório, mais baixa ou mais elevada, a altura, a inclinação e a espessura de sínfise púbica, verificaremos que o problema não está resolvido.
Figura 10.17 ■ Medida da conjugata diagonalis. A cabeça da gestante deve ficar baixa, e as coxas, ligeiramente fletidas sobre a bacia e em abdução. (Adaptada de Benson, RC. – op. cit.)
Além disso, é possível medir a conjugata exitus com a mão, empregando-se técnica semelhante à da mensuração da conjugata diagonalis. ▶ Pelvigrafia externa. Neste caso, procura-se conhecer o comprimento e a espessura da sínfise e definir o ângulo de abertura da arcada púbica (estreito: menor que 90°; médio: igual a 90°; e largo: maior que 90°). ▶ Pelvigrafia interna. Tem início com o exame do arco subpúbico e continua seguindo o estreito superior até o promontório. As bacias de paredes convergentes, arco subpúbico estreito e diâmetros transversais reduzidos restringem os movimentos laterais dos dedos exploradores (Figura 10.18 A). Localiza-se a espinha ciática de um dos lados (Figura 10.18 B), passando-se à apreciação da oposta, com movimentos de pronação e supinação da mão. O exame clínico da porção média e inferior da pelve busca a localização da ponta do sacro e da extremidade do cóccix (Figura 10.18 C), apreciação das espinhas ciáticas e investigação dos ramos púbicos, pela
face posterior. Com os dedos exploradores, mede-se a conjugata exitus (Figura 10.18 D); eles sobem, delicadamente, pelas paredes pélvicas, avaliando o paralelismo ou a convergência, a posição e o relevo das espinhas ciáticas e, posteriormente, das peculiaridades do sacro e sua inclinação, comprimento e curvatura. A fase subsequente deve ser a medida da conjugata diagonalis (Figura 10.18 E).
Figura 10.18 ■ Tempos principais da pelvigrafia interna. (Adaptada de Moloy, HC. – op. cit.)
▶ Radiopelvimetria. Atribui-se ao emprego da radiografia uma série de inconvenientes ligados aos riscos de sua ação sobre o feto. Entre nós, está praticamente abandonado o uso da radiopelvimetria, nas últimas semanas de gestação, para apreciar, além da bacia, a natureza e as dimensões da apresentação. ▶ Pelvimetria ultrassonográfica. Aplicação restrita. Possibilita obter, com precisão, as medidas da conjugata vera obstétrica e do diâmetro biespinha ciática, além do diâmetro biparietal (DBP) do concepto.
■ Pontos-chave É a bacia, ou pelve, o canal ósseo do parto constituído de ilíacos, sacro e cóccix, com as respectivas articulações (sínfise púbica, sacroilíacas e sacrococcígea). O plano do estreito superior divide a pelve em grande e pequena bacia ou escavação, esta sendo o verdadeiro trajeto duro do parto. Os diâmetros mais importantes da grande bacia são o diâmetro biespinha (24 cm), bicrista (28 cm), sacropúbico externo ou de Baudelocque (20 cm). Os diâmetros mais relevantes da pequena bacia são, no estreito superior, conjugata vera anatômica (11 cm), conjugata vera obstétrica (10,5 cm), conjugata diagonalis (12 cm), diâmetro transverso máximo (13 a 13,5 cm); no estreito médio, biespinha ciática (10,5 cm); no estreito inferior, conjugata externa (9,5 a 11 cm) e bi-isquiático (11 cm). Há quatro tipos fundamentais de bacia: ginecoide (feminina, 50%), antropoide (dos macacos, 25%), androide (masculina, 20%) e platipeloide (achatada, 5%). São quatro os planos paralelos de Hodge: o primeiro passa pela borda superior do púbis e pelo promontório; o segundo corresponde à borda inferior do púbis; o terceiro é traçado nas espinhas ciáticas; e o quarto parte da ponta do cóccix e mistura-se com o assoalho pélvico.
Os eixos da bacia são as perpendiculares ao centro de cada plano. Apresentam grande valor para auxiliar o obstetra sobre a direção a dar às trações, como, por exemplo, na extração a fórceps. O exame da bacia compreende a pelvimetria externa, incluindo a delimitação do quadrante de Michaelis, e a interna, ambas realizadas com os pelvímetros. Na pelvimetria interna, é útil a medida da conjugata diagonalis, de cujo valor se deduz 1,5 cm para se obter a conjugata vera obstétrica. A radiopelvimetria, devido aos seus riscos, não é mais praticada nas últimas semanas da gravidez, a fim de se obter as dimensões da bacia. A pelvimetria sonográfica tem aplicação muito restrita: medida da conjugata vera obstétrica, diâmetro biespinha ciática e diâmetro biparietal (DBP) do feto.
■ A. Cuidados Pré-natais ■ Consultas pré-natais ■ Higiene pré-natal
■ B. Aspectos Nutricionais ■ Trocas materno-ovulares ■ Aconselhamento pré-concepcional ■ Vacinação ■ Pequenos distúrbios da gravidez e seus tratamentos ■ Efeitos no feto decorrentes de medicamentos administrados à mãe ■ Exames de imagem ■ Aspectos emocionais da gravidez e preparação para o parto
Os objetivos básicos da assistência pré-natal são: • Orientar os hábitos de vida (higiene pré-natal) • Assistir psicologicamente a gestante • Preparar a gestante para a maternidade: instruíla sobre o parto (parto humanizado), dando-lhe noções de puericultura • Evitar o uso de medicação e de medidas que se tornem prejudiciais para o feto (anomalias congênitas) • Tratar os pequenos distúrbios da gravidez • Realizar a profilaxia, o diagnóstico e o tratamento das doenças inerentes à gravidez ou dela intercorrentes.
A. Cuidados Pré-natais ■ Consultas pré-natais ■ Primeira consulta A primeira consulta deve ser no início da gravidez (antes de 12 semanas); e, em virtude da grande quantidade de informações, pode ser necessária uma segunda consulta inicial. Na primeira consulta pré-natal, é necessário considerar: • Data da última menstruação (DUM), para o cálculo da idade da gravidez e da época provável do parto • Ultrassonografia transvaginal de primeiro trimestre (11-13+6 semanas). Atualmente, costuma ser oferecido o Modelo Piramidal de assistência pré-natal como o mais importante da gravidez: certifica ou corrige a idade menstrual (datação), diagnostica gravidez gemelar, identifica algumas malformações, rastreia aneuploidias, prediz toxemia e parto pré-termo (Capítulo 60). No primeiro trimestre, estima-se a idade da gravidez pela medida do comprimento cabeçanádega (CCN) do embrião, com precisão de ± 5 dias. Após 14 semanas, a idade da gestação é calculada pela medida do diâmetro biparietal (DBP) ou do comprimento do fêmur (CF), com precisão de ± 10 dias • DNA fetal livre no sangue materno (cffDNA): realizado com 9 semanas de gestação, rastreia aneuploidias, diagnostica o sexo fetal e determina o Rh fetal (Capítulo 60) ○ Sexagem fetal, realizado a partir de 9 semanas da gravidez, é o teste-padrão no sangue materno por meio da técnica de biologia molecular (PCR). O exame baseia-se na
identificação de partes do cromossomo Y do feto. A taxa de acerto é de 99% e o teste, na verdade, não diagnostica gravidez; assim, se a mulher não estiver grávida, o resultado apontará falsamente uma menina, pois apenas constatará a ausência do DNA masculino • Peso e pressão arterial (PA) • Ausculta fetal com o sonar-Doppler é positiva entre 10 e 12 semanas; com o estetoscópio de Pinard, somente após 20 semanas • Exames complementares essenciais: ○ Urina (EAS e cultura para rastrear bacteriúria assintomática) ○ Grupo sanguíneo e fator Rh ○ Hemograma completo (rastrear anemia) ○ Glicemia de jejum (estudo HAPO, 2008) ○ Reações sorológicas: sífilis (VDRL), toxoplasmose, HIV, hepatite B (HBsAg) ○ Rastreamento de clamídia e gonococo [Centers for Disease Control (CDC), 2010] ○ Citologia cervicovaginal (pelo menos cinco sociedades americanas não recomendam a citologia de rotina na gravidez, a menos que a grávida esteja qualificada pelas diretrizes de rastreamento correntes, explicitadas no Capítulo 40) • Identificação da mulher que necessita de cuidados adicionais • Exame das mamas visando à promoção do aleitamento não está mais indicado na gravidez. Feito o exame inicial, a gestante retornará após 1 semana, com as análises clínicas solicitadas, quando lhe será prescrita eventual medicação e as instruções sobre a dieta a ser seguida.
■ Consultas subsequentes As consultas subsequentes serão mensais até 32 semanas; quinzenais, de 32 a 36 semanas; e semanais, de 36 semanas até o parto. A cada consulta, serão avaliados: peso, PA, batimentos cardiofetais (bcf) e fundo do útero. Constituem consultas especiais: • 20 a 24 semanas: ultrassonografia abdominal morfológica, para avaliar as estruturas fetais, localizar a placenta e avaliar o Doppler das artérias uterinas. Aconselha-se, nessa oportunidade, medir o colo uterino pela ultrassonografia transvaginal, visando à predição do parto pré-termo • 24 a 28 semanas: teste oral de tolerância à glicose de 75 g (TOTG-75), para o diagnóstico de diabetes melito gestacional (DMG), interpretado de acordo com o estudo HAPO-2008 (Capítulo 33) • 26 a 32 semanas: a grávida deve ser conscientizada do significado do movimento fetal • 28 semanas: repetir a dosagem da hemoglobina e ministrar a primeira dose da imunoglobulina anti-D para mulheres Rh-negativo não sensibilizadas com fetos Rh-positivo (cffDNA); repetir
o VDRL • 35 a 37 semanas: cultura vaginorretal para estreptococo do grupo B (GBS) • 36 semanas: determinar a posição fetal; para fetos em apresentação pélvica (confirmada pela ultrassonografia), oferecer a versão externa • 41 semanas: propor o descolamento das membranas e a indução do parto.
■ Higiene pré-natal ▶ Asseio corporal. A gestação não contraindica o banho diário e outras medidas de higiene pessoal. O banho recomendado é o de chuveiro; pois o de imersão, quente, prolongado, predispõe a desmaios e vertigens. Irrigações vaginais estão proibidas. A região genitoanal merece especial atenção em virtude do aumento natural de umidade. A higiene dos dentes e das gengivas é obrigatória. Se necessário, a extração dentária pode ser realizada, evitando-se, por precaução, os anestésicos com adrenalina. ▶ Vestuário. As roupas devem ser folgadas, confortáveis e compatíveis com o clima; quando há grande desenvolvimento mamário, o uso de sutiã é obrigatório. Deve-se estimular o uso de meia-calça elástica de média compressão para gestantes, a fim de evitar as varizes e diminuir a dor por estase nos membros inferiores. Os sapatos mais indicados são os do tipo “anabela”, com solado antiderrapante, pois, ao caminhar, estimulam naturalmente a circulação sanguínea nos membros inferiores, colaborando para o bom funcionamento da bomba muscular venosa, além de diminuírem dor nas pernas, edema e formação de varizes. ▶ Trabalho. A atividade doméstica ou profissional não exagerada é permitida. No último mês, recomenda-se a interrupção das atividades fora de casa. Contudo, devemos ressaltar que o trabalho doméstico também deve ser diminuído, visto que, muitas vezes, é tão ou mais cansativo. Em geral, a licença-maternidade de 120 dias deve ser concedida por volta da 36a semana de gravidez. ▶ Esportes. O CDC e o Colégio Americano de Medicina do Esporte, ambos dos Estados Unidos, recomendam, para indivíduos saudáveis, 30 min ou mais de exercício moderado, todos os dias da semana. Na ausência de complicações médicas ou obstétricas, é possível adotar a mesma recomendação às grávidas. Nos casos de diabetes gestacional, quando não se consegue a euglicemia pela dieta, o exercício pode funcionar como terapia coadjuvante. Por outro lado, existe possível relação entre a atividade física extenuante, a dieta deficiente e o desenvolvimento do crescimento intrauterino restrito (CIR). A segurança de cada modalidade esportiva é determinada principalmente pelo movimento específico necessário para o seu desempenho. Atividades de risco extremo de queda ou de trauma abdominal devem ser evitadas na gravidez. Do mesmo modo, está proibido o mergulho em profundidade que exija descompressão, porque pode causar abortamento, parto pré-termo ou CIR. O ACOG (1994) recomenda caminhada acelerada, natação e ciclismo. Corrida, tênis e treinamento de força também podem ser realizados com moderação para aquelas que regularmente
já praticavam essas modalidades. Outras recomendações: • Após o primeiro trimestre, evitar exercícios que necessitem do decúbito dorsal • Evitar exercícios em ambiente quente e úmido ou em caso de febre • Utilizar roupas confortáveis e sutiãs adequados • Beber água durante o exercício, para evitar desidratação • Parar o exercício caso ocorra sangramento vaginal, tontura, dor no peito, cefaleia, fraqueza muscular, dor ou edema na panturrilha, contrações uterinas, diminuição da movimentação fetal ou perda de líquido pela vagina. ▶ Atividade sexual. Nos casos de gravidez normal, fica a critério do casal; na ameaça de abortamento e de parto pré-termo, deve ser evitada. No último trimestre, o crescimento do ventre dificulta a atividade sexual. ▶ Fumo e álcool. O tabagismo, ou seja, o consumo diário de cigarros superior a 10, é causa de hipodesenvolvimento fetal e parto pré-termo, elevando, por conseguinte, a mortalidade perinatal. A grávida deve ser encorajada a não fumar. O alcoolismo crônico é determinante de malformações congênitas em cerca de 30% dos casos (p. ex., microcefalia, desenvolvimento intelectual retardado). A síndrome fetal alcoólica pode ser reconhecida no recém-nascido ou demorar a se manifestar (1 a 2 anos). ▶ Viagens aéreas. Os voos comerciais costumam ser seguros para a grávida e seu concepto; no entanto, muitas companhias aéreas restringem o transporte de grávidas. Em geral, mulheres com gestações únicas, não complicadas, podem voar longas distâncias até 36 semanas de gravidez; e após 28 semanas, pode ser exigido um atestado do médico que confirme a normalidade da gestação e a data provável do parto. As grávidas devem ser informadas de que longas viagens aéreas estão associadas a maior risco de trombose venosa, muito embora ainda não haja confirmação de que a gravidez agrave essa complicação. Na população geral, o uso de meias compressivas é efetivo na redução da trombose venosa. ▶ Tintura de cabelo. Não há contraindicação para a utilização das tinturas industrializadas; misturas oficinais não são recomendadas e é preferencial o uso de produtos à base de água. São proibidos alisantes, produtos para os tratamentos chamados de “permanentes” (encacheamento) e descolorantes. ▶ Adoçantes. O uso de adoçantes durante a gestação deve ser reservado para pacientes que precisam controlar o seu ganho de peso e para as diabéticas. O mais seguro é a estévia pura.
B. Aspectos Nutricionais ■ Trocas materno-ovulares
A homeostase dos níveis de nutrientes está alterada na gravidez e, como regra geral, aqueles solúveis em água ocorrem em concentrações plasmáticas na mãe em níveis mais baixos em comparação com as mulheres que não estão grávidas, o contrário acontecendo para os lipossolúveis. A glicose atravessa a placenta por difusão facilitada e provê, no mínimo, 75% das necessidades energéticas fetais. Os aminoácidos são transportados pela placenta por transporte ativo, contra gradiente de concentração, e os ácidos graxos livres transitam pela placenta por difusão simples; a síntese dos lipídios ocorre no compartimento fetal. Os corpos cetônicos produzidos pela lipólise materna, que está exaltada na gravidez em especial após uma noite de jejum, atravessam a placenta livremente por difusão. O carbono dos corpos cetônicos é incorporado aos tecidos fetais e estes ainda são fonte de energia.
■ Micronutrientes ▶ Vitaminas. As vitaminas lipossolúveis A e D franqueiam a placenta livremente por difusão. As vitaminas E e K atravessam com dificuldade a placenta e seus níveis no feto e no recém-nascido são inferiores aos da mãe, o que aparentemente está desprovido de significado. Para as vitaminas solúveis em água, a C é transportada pela placenta por difusão facilitada e compete com a glicose, pois apresenta os mesmos receptores. Até mesmo na hiperglicemia materna não há evidência de hipovitaminose C no concepto. As vitaminas do complexo B são conduzidas pela placenta de diferentes maneiras. O folato se liga a receptores e o transporte é feito seguindo gradiente de concentração, da mãe para o feto. Há também receptores placentários para a vitamina B12. A piridoxina (vitamina B6) é transportada passivamente, mas a tiamina (vitamina B1) e a riboflavina (vitamina B2) sofrem transporte ativo, alcançando maiores concentrações no feto que na mãe. É conhecida a relação entre a deficiência grave de vitamina D na gravidez e o raquitismo congênito. Recentemente, a deficiência de vitamina D na gravidez, avaliada pelos níveis plasmáticos maternos de 25-hidroxivitamina D (25OHD), tem sido associada a risco aumentado de DMG, pré-eclâmpsia, vaginose bacteriana e recém-nascido de baixo peso. O rastreamento universal dos níveis de vitamina D na grávida ainda não é recomendado, assim como a suplementação em doses acima daquelas existentes em multivitamínicos (ACOG, 2011). O Institute of Medicine (IOM) (2011), dos Estados Unidos, recomenda a dose diária de 600 UI de vitamina D e de 1.000 mg de cálcio para grávidas e lactantes; para grávidas e lactantes de 14 a 18 anos, a dose diária de vitamina D é a mesma e a de cálcio é de 1.300 mg. Essa dose diária recomendada de vitamina D corresponde ao nível mínimo no soro de 20 ng/mℓ de 25OHD. O nível no soro de 25OHD considerado normal pelo IOM é o de 20 a 50 ng/mℓ. Uma pesquisa recente (2014) mostrou que a suplementação diária de vitamina D durante a gravidez e a infância com 1.000/400 UI ou 2.000/800 UI aumentou a proporção de bebês com 25OHD ≥ 20 ng/mℓ, com a dose maior sustentando essa elevação por mais tempo. Embora 80 a 90% de toda a vitamina D seja adquirida pela síntese cutânea, alguns alimentos
são ricos desse micronutriente: salmão, sardinha, leite e derivados e gema de ovo. Para indivíduo saudável, a dose tradicional de vitamina D recomendada é de 400 a 600 UI/dia. Estima-se que os multivitamínicos que contenham essa posologia atendam apenas a 40% das necessidades corporais. O objetivo atual é alcançar 1.000 UI/dia por meio da alimentação rica em vitamina D e, em alguns casos, com a suplementação. ▶ Minerais e oligoelementos. O cálcio é ativamente transportado pela placenta e, no feto, seus níveis são maiores que na mãe. Igualmente, o magnésio é ativamente transportado, mas não há clara relação entre os níveis maternos e os fetais. O zinco sofre transporte ativo ligado à albumina e é encontrado de maneira significativa em maior concentração na circulação fetal que na materna. O transporte de ferro para o feto é relevante, principalmente na gravidez tardia (quando a demanda fetal é máxima), e, na placenta, há receptores transferrina que facilitam o transporte por endocitose do ferro ligado à transferrina. A demanda máxima fetal para a construção de tecidos ocorre no fim do segundo e início do terceiro trimestre, mas os ajustes necessários para facilitar o transporte de nutrientes já estão estabelecidos entre 10 e 12 semanas da gravidez. A dose de ferro elementar recomendada pela OMS (2007) é de 60 mg/dia, e pelo IOM (2001) é de 45 mg/dia, pois quantidades superiores podem causar efeitos colaterais gastrintestinais (pirose e constipação). Com relação a esse assunto, uma investigação sueca da década de 2000 mostrou que níveis maternos de Hb > 14 g/dℓ, na primeira consulta pré-natal, estavam associados à natimortalidade, especialmente de recém-nascidos pequenos para a idade gestacional (PIG), em virtude, provavelmente, da maior viscosidade sanguínea. Nesses casos, a gravidez seria considerada de alto risco e estaria indicado o monitoramento seriado fetal. Mulheres em idade fértil devem ter aporte diário de 150 µg de iodo, assim como durante o período da gravidez e no pós-parto. As vitaminas pré-natais que contêm 150 a 200 µg de iodo estão indicadas em tomadas diárias; durante o aleitamento, a dose será de 250 µg/dia (Sociedade de Endocrinologia, dos Estados Unidos, 2012). Preparados que contenham ferro devem ser espaçados em, no mínimo, 4 h, para não interferirem na absorção do iodo. ▶ Suplementação com ferro não é benéfica à grávida não anêmica. A diminuição relativa dos valores da hemoglobina no segundo trimestre da gravidez surge como uma das adaptações fisiológicas do organismo feminino à gestação. Na tentativa de corrigir essa diminuição, alguns clínicos afirmam que é imprescindível a prescrição de suplemento de ferro a todas as grávidas, a partir do segundo trimestre. A questão clínica é constatar se existem vantagens nessa suplementação de ferro em mulheres não anêmicas. A revisão Cochrane 2000 já alegava que a suplementação com ferro pode induzir macrocitose, fator determinante de aumento da viscosidade sanguínea, capaz de causar diminuição no fluxo uteroplacentário e infartos placentários. Além de não trazer benefícios, a suplementação de ferro universal na gravidez pode ser prejudicial à sua evolução.
Na gravidez normal, a mulher precisa de 1.000 mg de ferro para suprir as necessidades maternas e fetais. O aumento da massa eritrocitária de cerca de 450 mℓ solicita 500 mg de ferro; o feto requer outros 300 mg. A quantidade de ferro na dieta e as reservas maternas não são suficientes para as necessidades da gravidez, especialmente durante a segunda metade; a suplementação diária de ferro elementar deverá ser de 60 mg. Para a reposição em casos de anemia (hemoglobina < 10,5 g/dℓ), aconselha-se, por ter melhor absorção e menos efeitos colaterais, Neutrofer® 300 mg (ferro quelato glicinato 300 mg), em comprimidos, que devem ser ingeridos preferencialmente 30 min antes do almoço, bebendo-se um copo de suco de limão ou laranja para aumentar a absorção.
■ Aconselhamento pré-concepcional Uma gestação saudável pode depender da dieta pré-concepcional, da composição relativa do corpo, assim como dos nutrientes consumidos na gravidez (RCOG, 2009). Mulheres com menos de 22% de gordura na sua composição corporal raramente ovulam; aquelas com índice de massa corporal (IMC) normal expostas à fome aguda também deixam de ovular prontamente. A infertilidade ovulatória costuma ser característica de mulheres com subpeso, mas também é vista com elevada frequência naquelas com sobrepeso no período préconcepcional; na verdade, o prognóstico da gravidez segue curva em formato de “U”, com resultados adversos nas mulheres entrando na gestação com subpeso e naquelas com sobrepeso/obesidade. Nesse contexto, o aconselhamento pré-concepcional inclui a manipulação dietética no sentido de aumentar ou reduzir o IMC, particularmente nas mulheres com infertilidade anovulatória.
■ Ácido fólico Tem sido estimado de que cerca da metade de todos os defeitos congênitos pode ser evitada se mulheres em idade de gravidez consumirem quantidade adequada de ácido fólico, seja pela ingesta de alimentos fortificados com a substância ou pela suplementação com multivitaminas. Os defeitos do tubo neural (DTN) são anomalias congênitas graves decorrentes da falta de fechamento do tubo neural da terceira à quarta semana após a concepção (dia 26 ao dia 28 pósconcepção). A incidência dos DTN nos Estados Unidos varia de acordo com a região de 0,5 a 4,0/1.000 nascimentos. A suplementação com ácido fólico diminui a incidência dos DTN de 1,58/1.000 nascimentos para 0,86/1.000 nascimentos. As mulheres são consideradas de alto risco caso apresentem história de: • Bebê anterior com DTN • Parente de 1o, 2o ou 3o grau com DTN • Diabetes pré-gestacional insulinodependente
• Epilepsia e ingesta de ácido valproico ou carbamazepina para o controle da convulsão • Uso de antagonistas do ácido fólico (metotrexato, aminopterina). O uso do suplemento periconcepcional reduz tanto o risco da ocorrência dos DTN (primeira gestação afetada) como de recorrência. O risco da recorrência é reduzido de 3,5% para 1% em mulheres recebendo 4 mg/dia de ácido fólico antes da gravidez e nas primeiras semanas após a concepção. Suplementos combinando ácido fólico e multivitaminas também reduzem a incidência de outras anomalias congênitas: defeitos cardiovasculares e dos membros, fenda labiopalatina, anomalias urinárias e hidrocefalia. Além disso, está igualmente diminuído o risco para neuroblastoma e leucemia na infância. Sugere-se Natele®, polivitamínico moderno em cápsula (poucos efeitos colaterais), com baixa dose de ferro (administrar 1 cápsula meia hora antes do almoço). Recomendações da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Canadá (SOGC, 2007) estão descritas a seguir: • Mulheres em idade reprodutora devem ser avisadas para os benefícios da ingesta do ácido fólico em suplementos multivitamínicos • É necessário orientá-las a manter dieta adequada com alimentos ricos em ácido fólico: grãos fortificados, espinafre, lentilha, ervilha, aspargo, brócolis, milho, laranja • Mulheres com suplementação multivitamínica contendo ácido fólico devem ser alertadas a não ingerir mais de uma dose diária, como indicado pelo produto • A suplementação de 5 mg de ácido fólico não mascara a deficiência de vitamina B12 (anemia perniciosa) • Mulheres que pretendem engravidar devem ingerir dieta rica em folato e suplementação diária de multivitaminas com ácido fólico (0,4 a 1,0 mg) por, no mínimo, 2 a 3 meses antes da concepção e por toda a gravidez, período pós-parto (4 a 6 semanas) e por quanto tempo durar a amamentação • Pacientes com epilepsia, diabetes insulinodependente, obesidade (IMC > 35 kg/m2), história familiar ou pessoal de DTN requerem a ingesta de alimentos ricos em folato e suplementação diária de 5 mg de ácido fólico em multivitamínicos, iniciando ao menos 3 meses antes da concepção e nas 10 a 12 semanas iniciais da gravidez. Após 12 semanas e por toda a gestação até o período pós-parto (4 a 6 semanas ou enquanto durar a amamentação), é necessária a suplementação de multivitaminas com ácido fólico (0,4 a 1,0 mg).
■ Gasto energético na gravidez É motivo de preocupação de nutricionistas e de obstetras a relação entre o consumo de energia e o crescimento e o desenvolvimento fetal; vale dizer, entre o ganho de peso na gravidez e o seu prognóstico.
O IOM aconselha o aumento de peso na gravidez de acordo com o IMC pré-concepcional referido pela Tabela 11.1.
Tabela 11.1 ■ Recomendações para o ganho de peso total na gravidez. IMC pré-concepcional (kg/m2)
Ganho de peso total (kg)
Baixo peso (< 18,5)
12,5-18
Peso normal (18,5 a 24,9)
11,5-16
Sobrepeso (25 a 29,9)
7-11,5
Obeso (≥ 30,0)
5-9
IMC, índice de massa corporal. Institute of Medicine (IOM), 2009.
O National Institutes of Health (NIH) postula relação entre o ganho de peso gestacional e a morbidade e mortalidade perinatal, aconselhando a pesagem regular da grávida no pré-natal e a manipulação dietética adequada para mais ou para menos, de tal modo a manter a normalidade ponderal, o que seria benéfico para o prognóstico da gestação. Infelizmente, nenhum estudo controlado randomizado provou ser verdadeiro esse tipo de monitoramento do ganho de peso na gravidez (RCOG, 2009). Contudo, baixo ganho de peso pode estar relacionado com CIR e pequeno volume do líquido amniótico. Hytten estabeleceu o ganho de peso médio na gravidez compartimentalizado: • Útero: 0,9 kg • Mamas: 0,4 kg • Sangue: 1,2 kg • Líquido extracelular: 1,2 kg • Gordura: 3,5 kg. Combinando esse acréscimo dos tecidos maternos ao peso médio do concepto, chegaríamos a ganho de peso médio na gravidez de 13 kg, embora a amplitude de variação seja muito grande (12 a 16 kg) e, ainda assim, o prognóstico da gravidez seja satisfatório. Estudos calorimétricos têm mostrado ser extrema a variação do metabolismo basal e do gasto de energia total da não grávida para a grávida. Na verdade, as grávidas podem ser categorizadas em “gastadoras” e “poupadoras” de energia. As “gastadoras” requerem, em média, acréscimo de 80.000 kcal para fazer frente ao aumento do gasto energético na gravidez; por outro lado, as “poupadoras” teriam uma redução calórica de 13.000 kcal, principalmente pela queda significativa do metabolismo basal nos primeiros dois trimestres. Na ausência de teste prático de gasto calórico, vale o conselho: “coma de acordo com sua
fome”. A Tabela 11.2 mostra a ingesta média de nutrientes para mulheres normais entre 19 e 50 anos, no Reino Unido, e o acréscimo modesto na gravidez e na lactação. A ingesta nutricional de referência (INR) representa o consumo nutricional no qual 97% da população obtém as suas necessidades diárias.
Tabela 11.2 ■ Ingesta nutricional de referência (INR) para mulheres no Reino Unido. Nutrientes/dia
Mulheres (19 a 50 anos)
Gravidez
Lactação
Proteína (g)
45
+6
+11
Tiamina – B 1 (mg)
0,8
+0,1*
+0,2
Riboflavina – B 2 (mg)
1,1
+0,3
+0,5
Niacina (mg)
13
–
+0,2
Vitamina B 6 (mg)
1,2
–
–
Vitamina B 12 (µg)
600
+100
+350
Folato (µg)
200
+100
+60
Vitamina C (mg)
40
+10
+30
Vitamina A (µg)
600
+100
+350
Vitamina D (µg)
–
10
10
Cálcio (mg)
700
–
+550
Fósforo (mg)
550
–
+440
Magnésio (mg)
270
–
+50
Sódio (mg)
1.600
–
–
Potássio (mg)
3.500
–
–
Cloreto (mg)
2.500
–
–
Ferro (mg)
14,48
–
–
Zinco (mg)
7,0
–
+0,6
Cobre (mg)
1,2
–
+0,3
Selênio (µg)
60
–
+15
Iodo (µg)
140
–
–
–, sem acréscimo; *acréscimo apenas no 3o trimestre. Adaptada do RCOG, 2009.
■ Alimentação saudável São sugeridos cinco grupos de alimentos com recomendações (Tabela 11.3). Na gravidez, há recomendações especiais para excluir alimentos que possam conter teratógenos, como o retinol, ou que estejam contaminados por listeriose (leite não pasteurizado, queijos fermentados, patê) ou toxoplasmose (carne malcozida ou vegetais contaminados pelo solo). Um dilema: o que recomendar para os óleos de peixe? Embora sejam considerados uma fonte importante de ácidos graxos essenciais, também podem estar contaminados com mercúrio, que pode ser nocivo para o cérebro fetal.
Tabela 11.3 ■ Cinco grupos de alimentos. Grupo de alimento
Recomendação
Pão, outros cereais e batatas
Comer à vontade
Frutas e vegetais
Comer à vontade: no mínimo 5 porções/dia
Leite e derivados
Porções moderadas e com baixo teor de gordura
Carne, peixe etc.
Porções moderadas e de baixo teor de gordura
Alimentos contendo gordura e alimentos e bebidas contendo açúcar
Ingerir com muita parcimônia
Adaptada do RCOG, 2009.
■ Dieta na gravidez As dietas de restrição calórica, principalmente em obesas, são preocupantes com relação ao desenvolvimento fetal. Embora possam ser inofensivas para o feto na primeira metade, podem ser danosas na segunda metade, visto que a restrição calórica pode levar à lipólise com cetonemia relativa e prejuízo no desenvolvimento mental do concepto. A cetonemia relativa da gravidez tardia, demonstrada pelos níveis de hidroxibutirato-β, pode ser evitada pela adoção da dieta rica em carboidratos de baixo índice glicêmico. A partir do momento que a lipólise é suprimida pelo aumento da sensibilidade à insulina (induzida pelo padrão dietético), essa dieta pode ser recomendada em grávidas com sobrepeso ou obesas, evitando, assim, o aparecimento do diabetes melito gestacional.
■ Ácidos graxos ômega-3 Na gravidez, a dieta costuma estar desbalanceada com relação à quantidade de ômega-3 e deficitária quando comparada à de ômega-6. Esse desequilíbrio pode levar a estado
proinflamatório, que contribui para inúmeras complicações, incluindo parto pré-termo, préeclâmpsia e depressão pós-parto. A deficiência dos ácidos graxos ômega-3 no feto coloca esses bebês sob o risco de doenças alérgicas e desenvolvimento psiquiátrico subótimo. O consumo de peixes ricos em ômega-3 é objeto de grande preocupação pela contaminação industrial (mercúrio e bifenis), e a suplementação com óleos de peixe na dieta não definiu ainda seu real benefício para a grávida.
■ Nomenclatura Os ácidos graxos poli-insaturados de cadeia-longa (LC-PUFA) apresentam 20 ou mais átomos de carbono e podem ser classificados em ômega-3 e ômega-6 (Tabela 11.4). Os LC-PUFA ômega-3 e ômega-6 são sintetizados, respectivamente, dos ácidos graxos essenciais (AGE), ácido α-linolênico e ácido linoleico. Na série ômega-3, o ácido α-linolênico é convertido nos LC-PUFA ácido eicosapentaenoico (EPA), que, por sua vez, é transformado no ácido docosaexaenoico (DHA). Similarmente, na série ômega-6, o ácido linolênico é convertido no ácido araquidônico (Tabela 11.4). Os ácidos α-linolênico e linoleico são AGE, ou seja, não podem ser sintetizados pelo organismo.
Tabela 11.4 ■ Ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa (LC-PUFA). Série
Ácidos graxos essenciais
LC-PUFA
Ômega-3
Ácido α-linolênico
Ácido eicosapentaenoico (EPA) Ácido docosaexaenoico (DHA)
Ômega-6
Ácido linoleico
Ácido araquidônico
■ Atividades biológicas As principais atividades biológicas dos ácidos graxos ômega-3 estão demonstradas na Tabela 11.5.
■ Dieta As principais fontes de ômega-3 são os peixes gordurosos de água fria (p. ex., salmão, atum), bem como truta, sardinha, ostra e mariscos, além do óleo de linhaça e de canola, nozes e vegetais de folhas verdes (rúcula). A dieta moderna proporciona 7 a 10 vezes mais ômega-6 de que ômega3, quando o correto seria 5:1. Os ácidos graxos trans são também prejudiciais para a saúde, pois inibem a formação dos LC-PUFA.
■ Suplementação
Algumas autoridades têm sugerido a suplementação na gravidez com óleo de peixe altamente purificado. O único benefício realmente comprovado foi a redução significativa na incidência de parto pré-termo antes de 34 semanas em mulheres com história de interrupção prematura. A dose do suplemento de óleo de peixe também não está estabelecida: 1 a 3 g/dia.
■ Necessidades fetais O feto não tem capacidade de sintetizar os LC-PUFA por meio dos seus precursores ômega-3 e ômega-6, sendo suas necessidades supridas pela reserva do tecido adiposo materno, cruzando a placenta por difusão simples. O ácido ômega-3 é indispensável para o desenvolvimento do cérebro e da retina fetal durante todo o terceiro trimestre.
Tabela 11.5 ■ Atividades biológicas dos ácidos graxos ômega-3. Diminuem a produção de citocinas pró-inflamatórias Precursores de resolvinas e neuroprotectinas Melhoram a fluidez da membrana celular Regulam a apoptose Regulam a expressão do gene Agem como antioxidantes Aceleram a neurotransmissão Modulam a sinalização intracelular
■ Intolerância Muitas mulheres referem intolerância (azia, “gosto de peixe”) com a suplementação de óleo de peixe; o processo de purificação utilizado pelo fabricante pode reduzir esses inconvenientes.
■ Conclusão Em população de países desenvolvidos, a dieta durante a gravidez deve alcançar, no mínimo, 1.600 kcal/dia para que não haja prejuízo no desenvolvimento fetal. Em populações de países em desenvolvimento, deficiências nutricionais podem ser identificadas, tais como de ferro e de iodo.
■ Vacinação Algumas das recomendações da Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC) (2009) são:
• Antes da vacinação, todas as mulheres em idade fértil devem ser avaliadas sobre a possibilidade de estarem grávidas • As vacinas com vírus vivos ou vivos atenuados (rubéola, sarampo, caxumba, pólio-oral [Sabin], varicela, febre amarela) estão contraindicadas na gravidez, devido ao risco teórico ao feto • Grávidas inadvertidamente vacinadas com vírus vivos ou vivos atenuados não devem ser aconselhadas a abortar • Mulheres vacinadas com vírus vivos ou vivos atenuados devem ser aconselhadas a evitar a gravidez por pelo menos 1 mês • Vacinas com vírus inativos (hepatites A e B, gripe [inclusive a H1N1], pólio-Sallk, raiva, vacinas bacterianas e toxoides [tétano, difteria]) podem ser seguramente aplicadas • Mulheres amamentando podem ser vacinadas; as vacinas obrigatórias na gravidez são: ○ dTpa (tríplice bacteriana acelular – difteria, tétano, pertussis): deve ser administrada no terceiro trimestre da gravidez (30 a 32 semanas) e repetida a cada gestação [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2012; MS, 2012) ○ Gripe trivalente (2 cepas da gripe sazonal A e B + H1N1): esta vacina evita comprovadamente a gripe suína (redução de 70%) e não causa mortalidade fetal; ao contrário, a evita, pois a natimortalidade está aumentada de 2 vezes na vigência da virose (Medscape, 2013).
■ Pequenos distúrbios da gravidez e seus tratamentos No Capítulo 5, foram referidos os pequenos distúrbios decorrentes de modificações fisiológicas do organismo materno. Grande parte deles não necessita de tratamento, apenas esclarecimento à paciente, que, a princípio, não costuma compreender a ausência de gravidade. ▶ Náuseas. Estima-se que 70 a 85% das grávidas relatam náuseas e vômitos durante a gravidez, sintomatologia que geralmente cessa com 20 semanas. Intimamente relacionada com hiperêmese gravídica, vômitos incoercíveis, será discutida no Capítulo 17, destinado ao tema. ▶ Sialorreia ou ptialismo. No início da gravidez, a salivação excessiva pode ser um incômodo, especialmente quando associada à náusea. Nesses casos, a medicação não obtém resultados satisfatórios. Além do fator psicogênico, a bromoprida também colabora para alguma melhora; a ingesta de alimentos cítricos e gelados pode ajudar bastante. ▶ Pirose. Queixa comum nas últimas semanas de gestação e consequente ao refluxo do conteúdo estomacal para o esôfago (doença do refluxo gastroesofágico – DRGE) e à pressão do útero gravídico sobre o estômago, determinando certo grau de hérnia de hiato. Antiácidos devem ser evitados por levarem ao efeito rebote. A utilização de bromoprida 10 mg por via oral de 8/8 h melhora substancialmente os refluxos. Em casos graves, no final da gestação, é possível utilizar ranitidina 150 mg (Zylium®), 1 comprimido VO de 12/12 h por, no máximo, 14 dias.
▶ Constipação. Trata-se de um distúrbio trivial na gravidez, que decorre da diminuição da motilidade intestinal, pela ação dos hormônios esteroides e pressão com deslocamento dos intestinos, pelo útero cheio. A conduta terapêutica consiste em: • Dieta: consumir alimentos que formam resíduo (legumes e vegetais folhosos, substâncias ricas em fibras, frutas cítricas, ameixa, mamão) e ingesta liberada de água • Medicamentos: caso a dieta e os exercícios físicos não sejam suficientes, prescrever laxativos como o Tamarine® (Cassia angustifolia-sene), 1 cápsula à noite; ou bisacodil 5 mg (Dulcolax®), 1 comprimido à noite. Em casos de formação de bolus fecal baixo (reto-anal), pode-se prescrever sorbitol (Minilax®), 1 frasco por via retal. Contudo, o uso regular e crônico desses medicamentos deve ser evitado. Aumentar a ingesta de aveia e de farinha de linhaça pode ser boa profilaxia da constipação crônica. ▶ Hemorroidas. Combater a constipação é a melhor maneira de prevenção, assim como evitar atrito anal com utilização de papel higiênico. É muito importante a utilização de duchas higiênicas para lavagem do ânus após as evacuações. Em casos necessários com extrusão hemorroidária ou fissuras, podem ser utilizadas pomadas proctológicas à base de policresuleno e cloridrato de cinchocaína (Proctyl®), um supositório ou uma bisnaga por via retal, de 8/8 h, após as evacuações e antes de dormir à noite. ▶ Edema. Na avaliação do edema na gravidez, é importante diferenciar o generalizado do gravitacional. O edema gravitacional está limitado aos tornozelos e decorre do aumento de pressão nos capilares dos membros inferiores. Quando cessa a pressão na veia cava inferior pelo útero gravídico, por exemplo, no momento em que a paciente fica em decúbito lateral, o edema cede, como habitualmente ocorre à noite. Não apresenta qualquer conotação com o acúmulo de sódio e de água e está destituído de importância clínica. O edema generalizado, que se anuncia pelo súbito aumento de peso, engrossamento dos dedos, face vultosa e deposição de água na metade superior do corpo, é visto em 25 a 30% das gestantes. Apenas 10% das primíparas, e talvez um percentual menor de multíparas, têm esse tipo de edema acompanhado de hipertensão e proteinúria, configurando estado patológico específico da gravidez, a toxemia gravídica. O edema generalizado, na ausência de hipertensão e proteinúria, representa simples exagero do processo fisiológico de retenção de sódio (sistema renina-angiotensina-aldosterona), agravado pela queda de pressão oncótica plasmática, decorrente da relativa hipoalbuminemia gravídica. Os diuréticos e a dieta hipossódica não são indicados na gravidez. ▶ Varicosidades. Complicações mais comuns nas multíparas e decorrem da fraqueza congênita das paredes musculares das veias, aumento da pressão venosa nos membros inferiores, inatividade e mau tônus muscular. Embora possam ser assintomáticas, as varicosidades dos membros inferiores determinam, em geral, dor, edema, ulceração e graves complicações, tais
como tromboflebite e flebotrombose. As varizes vulvovaginais, por vezes, sangram profusamente no parto, obrigando a operação cesariana; o tratamento esclerosante e o cirúrgico estão contraindicados na gravidez. As medidas paliativas são: • Evitar ortostatismo prolongado e, quando a paciente se sentar ou deitar, é necessário suspender as pernas acima do nível do corpo • Meias elásticas de média compressão para gestantes devem ser colocadas com as pernas elevadas, após o esvaziamento das veias por alguns minutos. São utilizadas durante todo o período de deambulação, embora possam ser retiradas por 30 min, diversas vezes ao dia, durante o descanso. Para alívio das dores, do edema e da estase, prescreve-se Venalot H® creme (cumarina 200 mg e heparina 2.000 UI), aplicado de 8/8 h e sempre antes de dormir, à noite. ▶ Cãibras. Incidem, especialmente nos músculos da panturrilha, no segundo ou no terceiro trimestre de gravidez, enquanto a paciente dorme ou está apenas deitada. A etiologia é desconhecida, mas a fadiga das extremidades pode ser importante. O único tratamento que se mostrou relevante foi a administração de magnésio: 100 mg pela manhã e 200 mg à tarde (Cochrane Datebase, 2002). ▶ Sintomas urinários. A frequência e a urgência são comuns no início e no final da gestação. Os fatores relacionados são: no primeiro trimestre – a pressão exercida pelo útero gestante, em anteflexão exagerada, sobre a bexiga; nas duas últimas semanas da gravidez – o contato da apresentação fetal. ▶ Tonteiras e vertigens. A instabilidade vasimotora, geralmente associada à hipotensão ortostática, determina insuficiência sanguínea cerebral transitória em virtude do acúmulo de sangue das pernas, nos territórios esplâncnico e pélvico. Outro fator sinalado é a tendência hipoglicemizante no intervalo das refeições. É necessário lembrar-se de que a síndrome de hipotensão supina (Capítulo 5), que ocorre no último trimestre da gestação, tem mecanismo diverso. ▶ Fadiga. A grávida está predisposta à fadiga no último trimestre, em consequência das alterações da postura e do aumento de peso. A anemia deve ser combatida e períodos frequentes de repouso são recomendados. ▶ Síndrome dolorosa. Pode ser abdominal baixa ou lombossacra. A primeira é descrita como sensação de peso no baixo-ventre, na prega inguinal, em virtude da pressão do útero gravídico nas estruturas pélvicas de sustentação e na parede abdominal, tensão dos ligamentos redondos, relaxamento das articulações da bacia, contrações uterinas (Braxton-Hicks), além de gases, distensão e cólicas intestinais. O segundo tipo é muito comum no último trimestre; tem origem na embebição das articulações sacroilíacas, fadiga, espasmo muscular decorrente de alterações posturais (lordose exagerada) e ventre pêndulo. É possível atenuar os eventos dolorosos por meio de repouso no leito, cintas para gestantes e analgésicos. ▶ Leucorreia. Durante a gestação, é comum o aumento da secreção vaginal (produção
exacerbada de muco cervical, maior descamação do epitélio e transudação elevada pelo incremento da vascularização); trata-se de um corrimento branco, leitoso e não produz irritação. Diante das modificações na acidez vaginal ocorridas na gravidez, é muito frequente a inflamação por cândida. O corrimento está associado à coceira e ocorre dor à micção. O tratamento é feito com Gyno-Icaden® (nitrato de isoconazol) – 1 aplicador (5 g) intravaginal ao deitar, por 7 noites. Em torno de 10 a 30% das grávidas apresentam vaginose bacteriana resultante de deficiência da flora normal de Lactobacillus sp. na vagina e crescimento relativo de bactérias anaeróbias, incluindo Mobiluncus sp., Gardnerella vaginalis, Prevotella sp. e Mycoplasma hominis. Isso provoca redução da acidez vaginal, com mau cheiro, embora 50% das mulheres com vaginose bacteriana sejam assintomáticas. A vaginose bacteriana é causa de parto prétermo (Capítulo 28); em geral, o tratamento está reservado às grávidas sintomáticas, embora estudos recentes tenham sugerido que a erradicação da infecção reduziria a taxa de parto pré-termo em mulheres com história de interrupção. Nos casos de mulher com risco de parto pré-termo, há indicação, na gravidez (12 a 16 semanas), de rastreamento para vaginose bacteriana e, nessas condições, o tratamento deve ser oral (SOGC, 2008): preferencialmente com clindamicina, 300 mg, 2 vezes/dia, durante 7 dias. A tricomoníase é tratada com metronidazol geleia vaginal (Flagyl® geleia vaginal) – 1 aplicador intravaginal ao deitar, à noite, por 10 dias.
■ Efeitos no feto decorrentes de medicamentos administrados à mãe Durante a gravidez, especialmente no primeiro trimestre, é prudente evitar qualquer medicação, a menos haja indicação absoluta para a sua administração. A Tabela 11.6 relaciona algumas substâncias comprovadamente teratogênicas na gestação.
■ Exames de imagem Várias modalidades de imagem estão disponíveis para o uso na gravidez, incluindo radiografia, ressonância magnética nuclear (RM) e procedimentos de medicina nuclear. Desses exames, a radiografia é o que causa mais preocupação ao médico e à paciente, devido à possibilidade de a radiação iônica causar malformação ou carcinogênese no feto. Contudo, um exame simples radiográfico diagnóstico não resulta em exposição radioativa suficiente para ameaçar o desenvolvimento do feto e não é indicação para o abortamento terapêutico. O risco fetal de anomalia, CIR ou abortamento não aumenta com exposição à radiação < 5 rad, nível bem acima da faixa a que o feto está exposto nos procedimentos diagnósticos (Tabela 11.7). Além disso, durante a gravidez, é necessário proteger o útero gravídico com placa de chumbo em procedimentos extrapélvicos. O risco de leucemia infantil também é pequeno, e não excede 1 em 1.000 crianças por rad. Quando múltiplos procedimentos diagnósticos de radiografia forem antecipados na gravidez, devem ser preferidos, quando possível, aqueles não associados à
radiação ionizante, tais como ultrassonografia e RM. A utilização de isótopos radioativos de iodo está contraindicada para uso terapêutico na gravidez (p. ex., tratamento de hipertireoidismo).
Tabela 11.6 ■ Substâncias comprovadamente teratogênicas na gestação. Substâncias
Efeitos sobre o feto
Ácido valproico (D)
Defeitos do tubo neural
Álcool (D/X)
Síndrome alcoólica fetal (anomalias no SNC, malformações craniofaciais, restrição no crescimento intrauterino e pós-natal, abortamento e distúrbio comportamental na infância)
Aminopterina, metotrexato (D)
Malformação de membros e no SNC
Anti-inflamatórios não hormonais (D)
Malformações no ductus arteriosus e enterocolite necrotizante
Carbamazepina (C/D)
Defeitos no tubo neural
Ciclofosfamida (D)
Malformações no SNC
Danazol e outros androgênicos (X)
Masculinização de fetos femininos
Dietilestilbestrol (X)
Carcinoma vaginal e outros defeitos geniturinários nas progênies masculina e feminina
Substâncias psicoativas (p. ex., barbitúricos, opioides e benzodiazepínicos) (D)
Síndrome de abstinência neonatal (fase tardia da gestação)
Fenitoína (D)
Restrição de crescimento pré-natal e pós-natal, deficiência motora e mental, malformações craniofaciais
Inibidores da enzima de conversão da angiotensina (ECA) (D)
Insuficiência renal crônica em recém-nascidos; diminuição na ossificação craniana; disgenesia tubular renal
Lítio (D)
Anomalia de Ebstein (anomalia congênita da valva tricúspide)
Misoprostol (X)
Sequência de Moebius (malformações faciais relacionadas com paralisia do sexto a sétimo pares de nervos cranianos)
Parametadiona (D)
Defeitos faciais e no SNC
Retinoides sistêmicos (isotretinoína* e etritinato†) (X)
Defeitos no SNC, craniofaciais, cardiovasculares e outros
Talidomida (X)
Encurtamento de membros e defeitos de órgãos internos
Tetraciclina (D)
Anomalias de dentes e ossos
Warfarina (D/X)
Defeitos no esqueleto e SNC; síndrome de Dandy-Walker (agenesia do verme cerebelar com dilatação do quarto ventrículo)
*Interromper o uso pelo menos 1 mês antes da concepção. †Pode ser acumulado em tecido gorduroso por até 2 anos. Obs.: As letras entre parênteses correspondem à categoria a que pertence o fármaco de acordo com o FDA.
Outros agentes com contrastes radiopacos e paramagnéticos são improváveis de causar dano
ao feto. No entanto, essas técnicas de imagem diagnósticas somente devem ser utilizadas durante a gravidez se os benefícios justificarem os riscos potenciais ao feto.
Tabela 11.7 ■ Exposição fetal estimada para alguns procedimentos radiodiagnósticos mais comuns. Procedimento
Exposição fetal
Radiografia de tórax (2 imagens)
0,02 a 0,07 mrad
Radiografia simples de abdome (1 imagem)
100 mrad
Pielografia intravenosa
≥ 1 rad*
Radiografia do quadril (1 imagem)
200 mrad
Mamografia
7 a 20 mrad
Enema baritado ou seriado de intestino delgado
2 a 4 rad
TC da cabeça ou do tórax
< 1 rad
TC do abdome e da coluna lombar
3,5 rad
TC pelvimétrica
250 mrad
*A exposição depende do número de filmes. TC, tomografia computadorizada.
■ Aspectos emocionais da gravidez e preparação para o parto É imprescindível que o obstetra, durante a assistência pré-natal, esteja ciente dos conflitos emocionais da gestante, geralmente exacerbados durante a gravidez. Ouvir, explicar, aconselhar e apoiar são as atitudes esperadas do médico no relacionamento com a sua paciente. Para uma gestação tranquila, são fundamentais o planejamento e a aceitação da gravidez pela mulher, além da estrutura emocional (pacientes imaturas não se adaptam ao novo estado, exibindo episódios agudos de ansiedade e depressão). Preparar a mulher para o parto humanizado, se assim for o seu desejo, constitui outro dos objetivos da assistência pré-natal.
■ Pontos-chave A data da última menstruação (DUM) é a referência utilizada para calcular a idade da gravidez e a época provável do parto. Os exames obrigatórios na primeira consulta pré-natal são: grupo sanguíneo e fator Rh; hemograma completo (Hb); glicemia de jejum; EAS e cultura de urina; sorologia para sífilis (VDRL), toxoplasmose, hepatite B (HBsAg) e HIV; rastreamento de clamídia e de gonococo e citologia cervicovaginal. Na gravidez, aconselha-se a vacinação para a gripe (inclusive a H1N1) e a dTpa. A ultrassonografia transvaginal no primeiro trimestre é obrigatória (11 a 13+6 semanas), para confirmar a data da gravidez, rastrear aneuploidia,
diagnosticar a gravidez gemelar e predizer a toxemia. A ultrassonografia transabdominal morfológica (20 a 23 semanas) é obrigatória para diagnosticar malformações, localizar a placenta e avaliar o Doppler uterino. Na ocasião, é aconselhável a ultrassonografia transvaginal para medir o colo uterino. A cada consulta pré-natal, são avaliados peso, PA, bcf e fundo do útero. O rastreamento do diabetes deve ser realizado na primeira consulta pré-natal (glicemia de jejum) e entre 24 e 28 semanas da gestação (TOTG-75). A grávida deve ser conscientizada do significado do movimento fetal, a partir de 26 a 32 semanas da gestação. É aconselhada a cultura vaginorretal para GBS entre 35 e 37 semanas da gestação. É universal a suplementação multivitamínica diária, contendo 0,4 a 1,0 mg de ácido fólico, especialmente no período periconcepcional.
■ Principais procedimentos tocométricos ■ Análise da pressão intrauterina ■ Evolução da contratilidade uterina no ciclo gestatório ■ Propagação da onda contrátil no útero gravídico ■ Funções da contratilidade uterina ■ Correlações clínicas ■ Estrutura da proteína contrátil ■ Determinismo do parto ■ Indução do parto
A contratilidade uterina é o fenômeno mais importante do trabalho de parto, indispensável para fazer dilatar o colo e expulsar o concepto. O seu registro em gráfico (tocometria) serve ao diagnóstico e ao tratamento dos desvios dinâmicos da matriz, assim como à interpretação dos padrões de frequência cardíaca fetal no parto. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que todos os fundamentos da fisiologia da contratilidade uterina foram assentados pela escola uruguaia de Alvarez & Caldeyro-Barcia, obstetra e fisiologista, respectivamente, irmanados no Centro Latino-americano de Perinatologia (CLAP) de Montevidéu.
■ Principais procedimentos tocométricos Os procedimentos mais precisos para avaliar a atividade do útero gravídico humano são os que registram as pressões intrauterinas: amniótica, intramiometrial, placentária e puerperal.
■ Registro da pressão amniótica A pressão amniótica informa sobre a contratilidade do útero como um todo, sem fornecer dados específicos de cada segmento funcional da matriz (Figura 12.1).
■ Registro da pressão intramiometrial A pressão intramiometrial é obtida pelo uso de microbalões (0,02 mℓ) inseridos na espessura da parede uterina, em três ou quatro regiões funcionalmente distintas (Figura 12.1).
■ Registro da pressão placentária A dinâmica do útero no secundamento é conhecida pela aferição da pressão sanguínea na veia umbilical, chamada pressão placentária (Figura 12.2). A técnica serve, igualmente, para registrar a pressão intrauterina logo após o parto do primeiro concepto de gravidez múltipla.
■ Registro da pressão intrauterina puerperal Os traçados de pressão intrauterina no pós-parto são obtidos introduzindo-se, pela vagina, dentro do útero, balão com 100 mℓ de água conectado a manômetro registrador (Figura 12.3). Com o objetivo de simplificar a tocometria e ampliar a sua aplicação clínica, o sistema habitualmente hidráulico pode ser substituído pelo de transmissão pneumática (Rodrigues Lima & Montenegro, 1971) (Figura 12.4).
Figura 12.1 ■ Método para registrar a pressão amniótica (via transabdominal) e a pressão intramiometrial. A pressão amniótica é obtida por cateter introduzido na cavidade amniótica e conectado ao eletromanômetro no 3. A pressão intramiometrial é registrada simultaneamente no fundo uterino, na porção média do corpo e no segmento inferior, por meio de três microbalões introduzidos no miométrio, cada um ligado aos eletromanômetros restantes, nos 1, 2 e 4. Abaixo e à esquerda, é mostrado, em detalhe, um microbalão inserido no miométrio. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R & Alvarez, H J. Obst. Gynaec. Brit. Emp. 1952, 59:646.)
Figura 12.2 ■ Método para registrar a pressão intrauterina no secundamento. (Adaptada de CaldeyroBarcia, R. In Rezende, J. Obstetrícia, 1a ed., Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, vol. 1, 1962.)
Figura 12.3 ■ Registro da pressão intrauterina puerperal com balão de água de 100 mℓ.
■ Análise da pressão intrauterina Alvarez & Caldeyro-Barcia (1948) medem a pressão amniótica a partir do nível da pressão intra-abdominal, considerada o “zero” na escala de pressões. O tônus uterino representa o menor valor registrado entre duas contrações (Figura 12.5). A intensidade de cada contração é dada pela elevação que ela determina na pressão amniótica, acima do tônus; a frequência compreende o número de contrações em 10 min. Conceitua, ainda, a atividade uterina como o produto da intensidade das contrações pela sua frequência, expressando o resultado em mmHg/10 min ou Unidades Montevidéu (UM); e o trabalho uterino para realizar certa função, como, por exemplo, dilatar o colo de 2 para 10 cm, corresponde à soma das intensidades de todas as contrações responsáveis por essa tarefa (mmHg).
Figura 12.4 ■ Método para registrar a pressão amniótica com balão, pela via transcervical. O balão é colocado, pela face anterior do útero, de preferência no espaço extraovular, profundamente, de modo a ultrapassar a apresentação fetal.
A intensidade da pressão intracavitária nem sempre reflete a dinâmica uterina global, não informando se pequena ou grande porção da matriz foi excitada, nem a direção de propagação da onda contrátil. Estudos elétricos e mecânicos possibilitaram estabelecer que somente pelos métodos invasivos intramiometrais pode-se ajuizar a extensão da propagação e a sincronia da atividade uterina.
Figura 12.5 ■ Análise quantitativa da pressão amniótica de acordo com a escola de Montevidéu. O esquema mostra como se mede o tônus uterino, a intensidade e a frequência das contrações e a atividade uterina. O nível “zero” corresponde à pressão abdominal. (Adaptada de Sica-Blanco, Y & Sala, NL. In Caldeyro-Barcia, R & Heller, H. Oxytocin, London, Pergamon Press, 1961.)
■ Evolução da contratilidade uterina no ciclo gestatório ■ Gravidez Até 30 semanas de gestação, a atividade uterina é muito pequena, inferior a 20 UM (Figura 12.6 A). Os registros de pressão amniótica evidenciam contrações reduzidas, frequentes, cerca de 1 por minuto, que permanecem restritas a diminutas áreas do útero. De vez em quando surgem contrações de Braxton-Hicks (Figura 12.7). Têm frequência muito baixa, em torno de 28 a 32 semanas, até 2 contrações/h. O tônus uterino permanece entre 3 e 8 mmHg. As contrações de Braxton-Hicks resultam mais da soma de metrossístoles assincrônicas, parcialmente propagadas, do que de atividade bem coordenada.
■ Pré-parto Após 30 semanas, a atividade uterina aumenta vagarosa e progressivamente (Figura 12.6 B e C). Nas últimas 4 semanas (pré-parto) a atividade é acentuada, observando-se, em geral, contrações de Braxton-Hicks mais intensas e frequentes, que melhoram a sua coordenação e se difundem a áreas cada vez maiores da matriz (até 3 contrações/h). As pequenas contrações, embora diminuídas em número, permanecem nos traçados obtidos nessa época. O tônus se aproxima de 8 mmHg. Em menor quantidade de casos, a transformação da atividade uterina no pré-parto se faz pelo aumento progressivo da intensidade das pequenas contrações, que se tornam
mais expansivas, enquanto sua frequência diminui gradativamente.
■ Parto Clinicamente, o parto está associado ao desenvolvimento de contrações dolorosas e rítmicas, que condicionam dilatação do colo uterino. Arbitrariamente, considera-se seu início quando a dilatação cervical chega a 2 cm, estando a atividade uterina compreendida entre 80 e 120 UM (em média 100 UM). Não há demarcação nítida entre o pré-parto e o parto, mas, sim transição gradual, insensível, o que torna difícil caracterizar a atividade do começo da dilatação. As pequenas contrações localizadas tendem a desaparecer, estando ausentes nos partos normais, em que os registros exibem apenas metrossístoles fortes e regulares. Na dilatação, as contrações têm intensidade de 30 mmHg e frequência de 2 a 3/10 min (Figura 12.6 D), para alcançar, no final desse período, valores respectivos de 40 mmHg e 4/10 min (Figura 12.6 E). A postura assumida pela paciente tem importância expressiva na contratilidade uterina. O decúbito lateral, em 90% dos casos, aumenta a intensidade e diminui a frequência (Figura 12.8). A atividade contrátil exibida na posição lateral sugere sua maior eficiência para a progressão do parto, embora não haja provas concretas nesse sentido. No período expulsivo, a frequência atinge 5 contrações em 10 min e a intensidade 50 mmHg (Figura 12.6 F). São próprias dessa fase as contrações da musculatura abdominal com a glote fechada, esforços respiratórios verdadeiros, chamados puxos. Eles causam acréscimos súbitos e de curta duração da pressão abdominal, que se sobrepõem às elevações determinadas pelas metrossístoles (Figura 12.9). Os puxos têm intensidade média de 50 mmHg, de tal modo que, somados à pressão intrauterina, neste caso também de 50 mmHg, condicionam pressão amniótica de 100 mmHg. Em partos normais a atividade uterina varia de 100 a 250 UM.
■ Secundamento Após o nascimento do concepto, o útero continua a produzir contrações rítmicas (Figura 12.6 G). As 2 ou 3 primeiras usualmente descolam a placenta de sua inserção uterina e a impelem para o canal do parto. As contrações, agora indolores, proporcionam alívio imediato às pacientes, por isso foram responsáveis pelo chamado período de repouso fisiológico, que hoje se sabe não existir, em termos de dinâmica uterina.
Figura 12.6 ■ Evolução da contratilidade uterina no ciclo gestatório. A área em vermelho indica a atividade uterina espontânea, normal (valores médios em Unidades Montevidéu). Registros típicos e esquemáticos da pressão amniótica ilustram a contratilidade nas diversas fases; a atividade uterina, correspondente a cada traçado, está indicada na curva por um círculo. A atividade uterina aumenta progressivamente após 30 semanas, especialmente ao se aproximar o termo; durante o parto, o acréscimo é acelerado e atinge o máximo no período expulsivo. No secundamento e no puerpério, são expressivas as quedas da atividade uterina. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R & Poseiro, JJ. Ann. New York Acad. Sc., 75:813, 1959.)
Figura 12.7 ■ Contratilidade uterina em gestação de 30 semanas. O registro da pressão amniótica mostra as pequenas contrações na gravidez (intensidade média de 2 mmHg e frequência de 1 contração por minuto). No traçado, apenas se vê uma grande contração, de Braxton-Hicks. O tônus uterino oscila
suavemente. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R & Alvarez, H. An. Fac. Méd. Montevidéu, 38:383, 1953.)
Figura 12.8 ■ Influência do decúbito na contratilidade do parto. Quando a parturiente troca o decúbito dorsal pelo lateral, aumenta a intensidade e diminui a frequência das contrações uterinas (CU).
Figura 12.9 ■ Registro da pressão amniótica no período expulsivo. Estão representadas, esquematicamente, 2 contrações uterinas com esforços expulsivos sobrepostos. A maior velocidade do traçado (cinco vezes), no registro da contração da direita, evidencia melhor as elevações súbitas da pressão, causadas pelas contrações dos músculos abdominais. (Adaptada de Caldeyro-Barcia R. In Rezende, J. Obstetrícia, 1a ed., Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, vol. 1, 1962.)
▶ Puerpério. Os gráficos mostram contrações cuja frequência vai diminuindo, até atingir 1 em cada 10 min, decorridas 12 h de puerpério (Figura 12.6 H e I). Nos dias que se seguem, a intensidade e o número das contrações estão mais reduzidos (Figura 12.6 J). Quando o bebê suga o seio materno, pode haver aumento nítido na atividade uterina, que desaparece ao final da mamada. As contrações do secundamento e do puerpério, apesar de mais intensas do que as do parto, não exprimem aumento real na força muscular, como foi mencionado.
■ Propagação da onda contrátil no útero gravídico Na gravidez, a quase totalidade das metrossístoles permanece circunscrita a pequenas áreas do útero, causando elevação de pouca ampliação na pressão amniótica (Figura 12.10). Ocasionalmente, contrações de Braxton-Hicks mais intensas e menos frequentes se espalham para
áreas maiores do órgão. No parto normal, a onda contrátil tem sua origem em dois marca-passos, direito e esquerdo, situados perto das implantações das tubas. O marca-passo direito seria predominante; em algumas mulheres, o esquerdo, o principal. Ainda se admite o funcionamento alternado: certas ondas nascem do direito e outras, do esquerdo, sem que haja, todavia, interferência entre eles.
Figura 12.10 ■ Contratilidade uterina em gestação de 36 semanas. Registro da pressão amniótica e, simultaneamente, da pressão intramiometrial no fundo uterino e na parte interior do corpo. As pequenas oscilações da pressão amniótica provêm de contrações localizadas, enquanto as grandes elevações decorrem de contrações generalizadas que se difundem por grande parte do útero (contrações de Braxton-Hicks). (Adaptada de Alvarez, H & Caldeyro-Barcia, R. 1o Congr. Mund. Fertil. Esteril., vol. 2, New York, 1953.)
Do marca-passo a onda se propaga ao resto do útero na velocidade de 2 cm/s, percorrendo todo o órgão em 15 s. O sentido de propagação da onda é predominantemente descendente; apenas em um pequeno trajeto, que se dirige ao fundo, é ascendente. A intensidade das contrações diminui das partes altas do útero para as baixas. No colo, somente a zona próxima ao orifício interno tem tecido muscular liso e pode se contrair, não obstante com força menor que a do segmento e muito inferior à do corpo; o tecido que circunda o orifício externo é desprovido de músculo, sendo, portanto, incontrátil. Diz-se, então, que a onda de contração do parto normal tem triplo gradiente descendente: as metrossístoles começam primeiro, são mais intensas e têm maior duração nas partes altas da matriz do que nas baixas (Figura 12.11). Essa coordenação do útero parturiente normal determina a soma de efeitos, com elevação regular, de pico único, intensa, da pressão amniótica. Como todas as regiões do órgão se relaxam ao mesmo tempo, a pressão amniótica pode descer ao tônus normal
entre as contrações. No útero puerperal, a velocidade de propagação diminui muito (0,2 a 0,5 cm/s), gastando a onda contrátil 1 min para percorrer o trajeto que vai do marca-passo até o segmento inferior. Como consequência, as diferentes partes do útero alcançam de modo sucessivo, e não simultaneamente, como no parto, o máximo de contração, dando características peristálticas às metrossístoles aqui encontradas (Figura 12.12).
■ Funções da contratilidade uterina ■ Manutenção da gravidez Durante a gestação, o útero não está inativo, mas sua atividade é bastante reduzida, irregular, localizada e sem significado funcional expulsivo. A gravidez provavelmente se mantém pelo chamado bloqueio progesterônico. A progesterona tem a propriedade de diminuir a sensibilidade da célula miometrial ao estímulo contrátil, por hiperpolarização da membrana, bloqueando a condução da atividade elétrica de uma célula muscular a outra. Grande parte da progesterona placentária alcança o miométrio antes de ser carreada pela circulação sistêmica. Esse componente local determina o gradiente de concentração progesterônica no útero, função da distância à placenta.
Figura 12.11 ■ Representação esquemática da onda contrátil do parto normal, com o triplo gradiente descendente. No útero grande, à esquerda, estão assinalados os pontos em que a pressão intramiometrial foi registrada com microbalões. Os quatro traçados correspondentes estão cronologicamente relacionados entre si, com o registro da pressão amniótica e com a propagação da onda contrátil, indicada pelo pontilhado nos úteros pequenos (acima). Os traços grossos nos registros representam a fase de contração, e os finos, a de relaxamento. Pelo triplo gradiente descendente, as contrações começam primeiro, são mais intensas e têm maior duração nas partes altas do útero do que nas baixas. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R, Alvarez, H & Poseiro, JJ. Triângulo, 2:41, 1955.)
Figura 12.12 ■ Onda peristáltica no puerpério. Ilustração esquemática da propagação da onda contrátil no puerpério de 20 h. Em virtude do deslocamento vagaroso e da curta duração da onda, quando o máximo de contração alcança o segmento inferior, o fundo uterino já está relaxando. (Adaptada de CaldeyroBarcia, R & Alvarez, H. An. Fac. Méd. Montevidéu, 38:383, 1953.)
O bloqueio progesterônico efetivo impede o descolamento da placenta, não só durante a
gravidez, como também no ambiente hostil, da parturição.
■ Dilatação do istmo e do colo uterino No pré-parto, a contração encurta o corpo uterino e exerce tração longitudinal no segmento inferior, que se expande, e no colo, que progressivamente se apaga e se dilata (amadurecimento). A tração pode ser transmitida com eficiência ao colo porque o segmento também se contrai, embora com força menor que o corpo. Ao termo da gravidez, o orifício externo cervical atinge, em média, 1,8 cm nas nulíparas e 2,2 cm nas multíparas; o colo se apaga, respectivamente, cerca de 70 e 60%. No parto, essas alterações se intensificam; depois de cada metrossístole o corpo fica mais curto e mais espesso (braquiestase ou retração), e o colo uterino fica mais dilatado. O istmo é tracionado para cima, deslizando sobre o polo inferior do feto, experimentando dilatação no sentido circular; apenas no período expulsivo produz-se certo estiramento longitudinal do segmento. A pressão exercida pela apresentação fetal ou pela bolsa das águas, atuando em forma de cunha, constitui o segundo fator responsável pela dilatação das porções baixas do útero (Figura 12.13). O progresso da dilatação cervical depende da contratilidade uterina propagada, coordenada e com tríplice gradiente descendente, embora a resistência oposta pelo colo desempenhe papel relevante. A duração do parto normal é muito variável, completando-se a dilatação, nas primíparas, após 10 a 12 h, e, nas multíparas, decorridas 6 a 8 h.
■ Descida e expulsão do feto As metrossístoles, ao encurtarem o corpo uterino, empurram o feto através da pelve e o expulsam para o exterior, estando a parte inferior do útero presa à pelve, principalmente pelos ligamentos uterossacros (Figura 12.14). Embora a parte mais importante se desenvolva no período expulsivo, são as contrações do pré-parto que começam a adaptar e a insinuar a apresentação fetal na bacia. No segundo período do parto, o segmento inferior é estirado no sentido longitudinal, em cada contração do corpo, com o consequente adelgaçamento de suas paredes. As contrações dos ligamentos redondos, sincrônicas com as do útero, tracionam o fundo para frente, colocando o eixo longitudinal da matriz na direção do eixo da escavação pélvica, facilitando a progressão do feto. Os ligamentos redondos, ao se encurtarem nas contrações, tendem a aproximar o fundo uterino da pelve, somando-se à força que no mesmo sentido exercem as contrações do corpo (Figura 12.14).
Figura 12.13 ■ Mecanismo da dilatação do colo no parto normal. Os quatro úteros esquematizados correspondem a estágios sucessivos que vão do início ao ápice da contração (A a D). O pontilhado indica a zona contraída, e a densidade representa a intensidade da contração. As setas externas mostram como a tração longitudinal é exercida pelas partes em contração. As setas na cabeça do feto representam a pressão exercida pela apresentação, ou pela bolsa das águas, no segmento inferior e no colo. O segmento inferior, ainda relaxado, transmite mal ao colo a tração exercida pelo corpo (A e B); somente após a onda contrátil ter atingido o segmento (C e D) é que a tração se comunica eficientemente com o colo. (Adaptada de Alvarez, H & Caldeyro-Barcia, R. Gynec. 138:190, 1954.)
Figura 12.14 ■ Mecanismo pelo qual as contrações uterinas determinam a descida e a expulsão do feto. Estando o útero preso à pelve, principalmente pelos ligamentos uterossacros, ao se contrair suas paredes se encurtam e impulsionam o feto. As contrações dos ligamentos redondos tracionam o fundo uterino para frente, colocando o eixo longitudinal da matriz no eixo da escavação pélvica, e para baixo, aproximando o fundo da pelve. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R. In Rezende, J. Obstetrícia, Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, vol. 1, 1962.)
A contribuição mais expressiva, todavia, é dada pelos puxos. O desejo de esforçar-se é desenvolvido pela distensão da vagina e do períneo, produzida pelo polo inferior do feto, impulsionado pela contração uterina. É por esse motivo que os puxos ocorrem durante a metrossístole, o que é conveniente para se obter a eficiente soma de pressão desenvolvida pelos músculos abdominais e pelo miométrio (Figura 12.15).
■ Descolamento da placenta Com a expulsão do feto, o corpo do útero, adaptando-se à grande redução volumétrica, se retrai muito. O acentuado encurtamento é responsável pela desinserção placentária, bastando geralmente 2 a 3 contrações para descolá-la do corpo para o canal do parto (segmento inferior,
colo e vagina). Esses 6 a 10 primeiros minutos do secundamento constituem o tempo corporal, porque a placenta permanece dentro do corpo uterino (Figura 12.16). Uma vez no canal do parto, a pequena contratilidade exercida pelo segmento inferior é incapaz de expulsar a placenta para o exterior, o que só ocorrerá após esforços expulsivos da paciente ou com a intervenção do tocólogo.
Figura 12.15 ■ Funções da contratilidade uterina no pré-parto e no parto. Acima, os esquemas mostram a anatomia funcional do útero, a posição e a altura do feto no pré-parto durante o período de dilatação e de expulsão. Abaixo, estão indicados os registros respectivos da pressão amniótica. No pré-parto, as contrações expandem o istmo e encurtam a cérvice. No período de dilatação, as duas estruturas se dilatam circularmente. No período expulsivo, o corpo se encurta muito, distendendo o segmento inferior longitudinalmente, e o feto é empurrado para a pelve, ajudado pela contração dos músculos abdominais – puxos. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R. 12o Congr. Inter. Ginec. Obst. Montreal, vol. 1, 1958.)
■ Hemóstase puerperal A atividade do útero no pós-parto é indispensável para coibir a hemorragia no sítio placentário, quando a hemóstase depende fundamentalmente do tônus uterino, das contrações e da retração das fibras musculares. Mais tarde, o modo de propagação peristáltica, que caracteriza o útero puerperal, é eficaz para eliminar os coágulos e os lóquios do interior da matriz. No período expulsivo, no secundamento e no puerpério, embora ocorram acentuadas e progressivas reduções volumétricas, o miométrio tem grande capacidade para encurtar-se e, portanto, adaptar-se às enormes e rápidas diminuições do conteúdo uterino, mantendo o mesmo tônus.
■ Correlações clínicas
As contrações só são percebidas à palpação abdominal, depois que sua intensidade ultrapassa 10 mmHg. Como o início e o fim da onda contrátil não podem ser palpados, a duração clínica da metrossístole é mais curta (70 s) que a real, obtida pelo registro da pressão amniótica (200 s) (Figura 12.17). A palpação das contrações torna-se muito difícil quando o tônus uterino está acima de 30 mmHg, e além de 40 mmHg não mais se consegue deprimir a parede uterina. As contrações são habitualmente indolores até que sua intensidade ultrapasse 15 mmHg (valor médio para parturientes sem analgotocia) (Figura 12.17). Essa é a pressão mínima para distender o segmento inferior e o colo na fase de dilatação; ou a vagina e o períneo, na fase expulsiva. A duração da dor (60 s) é ligeiramente menor que a permanência da onda contrátil, tal qual é percebida pela palpação. A metrossístole normal é indolor quando não produz distensão do conduto genital – contrações da gravidez, do secundamento e do puerpério (Figura 12.18). Em algumas puérperas, geralmente multíparas, as contrações uterinas, principalmente na ocasião da mamada, provocam dor (tortos) de mecanismo desconhecido.
Figura 12.16 ■ Funções de contratilidade uterina no secundamento. Estando a placenta no corpo da matriz (tempo corporal), bastam 2 a 3 contrações para desprendê-la e expulsá-la para o canal do parto. Uma vez neste local, a placenta não mais sofre a ação da contratilidade do corpo e só pode ser expulsa para o exterior pela expressão manual, ficando posicionada no plano horizontal que passa pela parede anterior do abdome e corresponde ao nível da pressão abdominal; o traçado registra uma linha “zero” da escala de pressões. (Adaptada de Alvarez, H, Caldeyro-Barcia, R, Guevara, A, Albenas, S & Ruoco, G. Obst. Gynec. 4:105, 1954.)
Figura 12.17 ■ Correlação entre os dados clínicos e o registro da pressão amniótica. A contração é inicialmente indolor e não percebida ao palpar. Sua duração clínica à palpação é de 70 s, mais curta que a duração real (200 s) e mais longa que a permanência da dor (60 s). (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R. 12o Congr. Inter. Ginec. Obstet., Montreal, vol. 1, 1958.)
Figura 12.18 ■ Contratilidade uterina no ciclo gestatório e o sintoma dor. As contrações do secundamento e do puerpério, embora muito intensas, são indolores, porque não distendem o canal do parto. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R. In Rezende J. Obstetrícia, Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, vol. 1, 1962.)
■ Estrutura da proteína contrátil ■ Músculo liso As células musculares lisas (miócitos) são fusiformes, alongadas e têm apenas um núcleo (Figura 12.19). O citoplasma exibe corpos densos aderentes ao aspecto citoplasmático da membrana celular e estriações longitudinais evidentes no sarcoplasma, representando associações de miofilamentos; mas, ao contrário dos músculos estriados, não têm estrias transversais. As células musculares se comunicam umas com as outras pelas conexões denominadas junções comunicantes – contatos célula-célula que, acredita-se, facilitem a sincronização da função miometrial na condução dos estímulos eletrofisiológicos. Embora existam poucas junções comunicantes no miométrio de mulheres não grávidas e em gestantes no início da gravidez, essas estruturas tornam-se maiores e aumentam sua quantidade com a proximidade do termo, quando a frequência das contrações de Braxton-Hicks cresce até culminar com o parto. O aumento dos estrogênios é a causa do acréscimo das junções comunicantes. O processo de formação das junções comunicantes é visto como característica essencial do determinismo do parto. A questão da atividade de marca-passo no miométrio não está definida no momento presente; nenhum local específico foi ainda identificado no útero humano.
Figura 12.19 ■ Músculo liso.
■ Estrutura fina do músculo liso O citoplasma perinuclear das células musculares lisas, especialmente na região adjacente aos polos dos núcleos, contém grande quantidade de mitocôndrias, aparelho de Golgi, retículo endoplasmático liso e rugoso e inclusões tais como glicogênio. Adicionalmente, extensa rede de filamentos finos (7 nm) e grossos (15 nm) está presente. Os filamentos finos são compostos de actina (com sua associada tropomiosina, mas com a ausência notável da troponina, apenas encontrada no músculo estriado), enquanto os filamentos grossos são compostos de miosina.
■ Filamento grosso Cada filamento grosso é composto por 200 a 300 moléculas de miosina. Cada molécula de miosina é composta por duas cadeias pesadas idênticas e dois pares de cadeias leves (Figura 12.20). As cadeias pesadas são constituídas pelas cabeças globulares e pelas caudas helicoidais, enroladas. A cauda helicoidal integra o arcabouço do miofilamento e transmite a força produzida na cabeça da molécula. A cabeça globular contém: • O sítio ATPase, ao qual o ATP se liga e sofre hidrólise, liberando energia química • O sítio actina-combinante • Um par de miosina de cadeia leve (MLC) que, quando fosforilada, permite a interação actinamiosina. Assim, para cada cadeia pesada existem duas cadeias leves, e a molécula de miosina é composta de duas cadeias pesadas e de quatro cadeias leves.
■ Filamento fino O componente principal de cada filamento fino é a actina-F fibrilar, um polímero de unidades da actina-G globular (Figura 12.20). Cada molécula de actina-G contém um local ativo que se liga à cabeça da miosina. Duas cadeias de actina-F estão enroladas uma na outra, formando uma hélice apertada. Ao longo da hélice da molécula da actina-F duplamente enrolada há duas depressões pouco profundas ocupadas pelas moléculas de tropomiosina. A ligação da tropomiosina encobre os locais ativos da molécula de actina.
■ Filamento intermediário e corpo denso As forças contráteis são reforçadas, intracelularmente, por sistema adicional de filamentos intermediários (denina) que, juntamente com os filamentos finos, se inserem nos corpos densos, formados por actinina-α e outras proteínas associadas ao disco Z dos músculos estriados. Os corpos densos, localizados no citoplasma subjacente ao sarcolema, funcionam à semelhança dos discos Z na musculatura estriada. A força da contração mediante associação dos miofilamentos, dos corpos densos e dos filamentos intermediários age encurtando e torcendo a célula ao longo do seu eixo longitudinal (Figura 12.21). Ressalta-se no miócito a existência do retículo sarcoplasmático, cuja função é armazenar e liberar o cálcio intracelular.
Figura 12.20 ■ Moléculas da actina e da miosina no músculo estriado. No músculo liso, as moléculas são similares, apenas não há troponina.
■ Bioquímica molecular de contração do músculo liso Embora a regulação da contração do músculo liso dependa do cálcio, o mecanismo de controle difere do encontrado no músculo estriado porque a actina do músculo liso não tem troponina. Além disso, a molécula de miosina assume configuração diferente porque seu local de ligação à actina (cabeça globular) está encoberto pela cauda da miosina. Outra diferença entre o músculo liso e o estriado é que o liso contém miosina de cadeia leve (MLC) diversa. Na verdade, em cada cabeça existem duas MLC: essencial e regulatória. A MLC regulatória é fosforilada por outra proteína dependente da cálcio-calmodulina (Ca-CaM), a miosina de cadeia leve cinase (MLCK), uma atividade ATPase. A elevação da concentração do complexo Ca-CaM, motivada pela entrada de cálcio na célula, induz a atividade da MLCK, que hidrolisa o ATP e fosforiliza a MLC regulatória. A fosforilação da MLC equivale à incorporação de fosfato inorgânico (Pi) e de energia. A fosforilação produz alteração conformacional na cabeça da miosina e expande o sítio actinacombinante. A fosforilação também libera a cauda da miosina de sua ligação com a cabeça (Figura 12.22), permitindo assim que as moléculas de miosina assumam o aspecto de filamento bipolar, à semelhança do ocorrido no músculo estriado.
Figura 12.21 ■ Ilustração que representa a célula muscular lisa relaxada e contraída.
Outra proteína de ligação do complexo Ca-CaM, conhecida como caldesmon (Cald), está envolvida na regulação do movimento da tropomiosina habitualmente localizada na ranhura helicoidal da actina-F, obstruindo os sítios de ligação à miosina. Com a elevação da concentração do complexo Ca-CaM, ele se liga à Cald, removendo-a dos seus locais na actina. Concomitantemente, observa-se alteração na localização da tropomiosina, expondo nesse momento, no filamento da actina, os sítios de ligação à miosina, propiciando a formação da actomiosina. Em essência, a Cald substitui a troponina do músculo estriado, como reguladora cálcio-dependente da tropomiosina no filamento da actina. Tanto a fosforilação da MLC como a remoção da Cald na actina são indispensáveis para a contração do músculo liso. Em resumo, a contração do músculo liso se processa como se segue (Tabela 12.1): • Aumento do cálcio intracelular proveniente do exterior ou do retículo sarcoplasmático • Quatro íons de cálcio (Ca++) se ligam à calmodulina (CaM), proteína reguladora universal nos organismos vivos, alterando a sua conformação. O complexo Ca-CaM então desdobra e ativa a MLCK • A fosforilação da MLC pela MLCK é etapa crítica para a contração do músculo liso: ○ Libera a cauda da miosina de sua ligação com a cabeça, que passa a assumir o formato de taco de golfe (Figura 12.22), possibilitando que a molécula de miosina se disponha em filamentos bipolares ○ Determina alteração estrutural na cabeça da miosina, expondo o sítio actina-combinante ○ Possibilita a formação de pontes cruzadas entre a cabeça da miosina e a actina (actomiosina) ○ Estimula a atividade ATPase • É importante salientar que, precedendo a interação entre a actina e a miosina, há mudança conformacional da tropomiosina, pela ação da Cald-Ca-CaM, expondo os locais ativos da actina por ela bloqueados • Formação das pontes cruzadas, na verdade extensões da cabeça das moléculas de miosina que se projetam em ângulo reto do filamento grosso e se ligam à actina (Figura 12.20) • O modelo de contração molecular de deslizamento ocorre quando a molécula de miosina (cabeça) se liga à actina e produz o movimento do filamento fino em relação ao grosso (power stroke) • A força da contração por meio da associação de miofilamentos, filamentos intermediários e corpos densos age encurtando e torcendo a célula ao longo do seu eixo longitudinal (Figura 12.21)
Tabela 12.1 ■Principais etapas da contração uterina.
1. Liberação do cálcio armazenado no retículo sarcoplasmático 2. Ligação do cálcio à calmodulina (CaM) com formação do complexo Ca-CaM 3. Ativação da miosina de cadeia leve cinase (MLCK) pelo complexo Ca-CaM 4. A MLCK em presença do ATP fosforiliza uma das miosinas de cadeia leve (MLC), que é ativada 5. Liberação da cauda da miosina e mudança conformacional da cabeça expondo o sítio actina-combinante 6. Ligação do complexo Ca-CaM à caldesmon (Cald) que movimenta a tropomiosina, liberando os locais de ligação à miosina 7. Ligação da cabeça globular da miosina à actina (ponte cruzada) 8. Movimento da cabeça da miosina promovendo o deslizamento da actina sobre a miosina (power stroke) 9. Encurtamento do sarcômero 10. Contração 11. Quando cai o nível de cálcio citosólico, a MLC é defosforilada pela miosina de cadeia leve fosfatase (MLCP) 12. A MLC fica inativa e o músculo relaxa
• A subsequente desfosforilação da MLC pela miosina de cadeia leve fosfatase (MLCP) transforma a miosina de modo a encobrir novamente o local de ligação à actina, causando o relaxamento do músculo • A exportação do cálcio para fora da célula pela bomba de cálcio (Ca-ATPase de membrana) retorna o cálcio citosólico ao nível de repouso, desativando a MLCK • Do mesmo modo, a via adenilatociclase pode ser iniciada pela ligação de hormônio ou agonista no seu receptor. O receptor ativado transforma o ATP em AMP cíclica (cAMP), o 2o mensageiro. A cAMP ativa a proteína cinase A (PKA), que fosforiliza a MLCK. A MLCK fosforilada tem pouca afinidade pelo complexo Ca-CaM, e assim é fisiologicamente inativa. A fosforilação da MLC é bloqueada, ocorrendo o relaxamento.
■ Ciclo contrátil O entendimento dos eventos moleculares que levam à contração muscular está embasado no modelo de deslizamento do filamento. Esse modelo é aplicável tanto ao músculo liso quanto ao esquelético ou ao cardíaco.
Figura 12.22 ■ Esquema da ativação da molécula de miosina no músculo liso.
Tabela 12.2 ■ Palavras-chave. Ponte cruzada: ligação da cabeça da miosina à actina formando a actomiosina Posição energizada da cabeça da miosina Power stroke: movimento da cabeça da miosina translocando o filamento de actina Atividade ATPase: hidrólise do ATP catalisada por enzima (adenilatociclase), que é transformado em ADP e fosfato inorgânico (P i) com liberação de energia.
Um ciclo contrátil se inicia estando a cabeça globular da miosina firmemente ligada ao filamento da actina, em configuração de rigidez (rigor). Esse estado é rapidamente terminado quando uma molécula de ATP se liga à cabeça da miosina (Figura 12.23). O ATP causa mudança na cabeça da miosina, que possibilita liberá-la da actina. Ocorre hidrólise do ATP, mas o ADP e o Pi ainda permanecem ligados. A energia liberada pela hidrólise do ATP é usada para transformar a miosina de estado de baixa energia para o de alta energia. Quando o cálcio citosólico aumenta, os locais de ligação à miosina na actina tornam-se disponíveis pelo afastamento da tropomiosina, e a cabeça da miosina se liga a novo local no
filamento de actina e libera o Pi. A ligação da actina produzindo o complexo actomiosina (ponte cruzada), seguida da dissociação do Pi, determina o power stroke. O power stroke consiste na translocação do filamento fino pela cabeça da miosina, na verdade, o deslizamento da actina sobre a miosina, o que ocasiona o encurtamento do sarcômero e, consequentemente, a contração. Em seguida, o power stroke é liberado o ADP. A dissociação sequencial do Pi e do ADP converte a miosina em estado conformacional de baixa energia.
Figura 12.23 ■ Mecanismo do ciclo contrátil. 1, o ATP se liga à cabeça da miosina promovendo a sua liberação da actina. 2, o ATP é hidrolisado, determinando mudança conformacional da cabeça da miosina, que assume posição energizada. ADP e fosfato inorgânico (Pi) permanecem associados à cabeça da miosina. 3, a cabeça da miosina se liga ao filamento de actina (ponte cruzada) e o Pi é dissociado. 4, a dissociação do Pi aciona o power stroke, uma mudança conformacional na cabeça da miosina que
ocasiona o movimento do filamento de actina, fazendo-o deslizar sobre o da miosina, encurtando a fibra muscular e determinando a contração. O ADP é liberado no processo.
A energia para a realização do power stroke foi derivada do ATP. O ciclo da contração está terminado e a cabeça da miosina está, embora em outro local, firmemente ligada à actina em configuração de rigidez (rigor).
■ Determinismo do parto* A parturição no ser humano é um evento único, distinto, a dificultar ilações da investigação no modelo animal, inclusive dos primatas mais próximos.
■ Hormônio liberador de corticotrofina e “relógio” placentário A época do parto está associada com o desenvolvimento da placenta, mais especificamente, com a expressão do gene que regula a produção do hormônio liberador da corticotrofina (CRH), também denominado fator liberador da corticotrofina (CRF), sintetizado pelo trofoblasto.
■ CRH na mãe O CRH placentário circula no plasma materno, no qual se eleva exponencialmente à medida que a gestação avança, atingindo seu máximo no momento do parto. Em mulheres com parto prétermo, o aumento exponencial é rápido, enquanto naquelas cuja parturição ocorre após a data estimada, a elevação é lenta. Esses achados corroboram a teoria do “relógio” placentário. Os corticoides aceleram a expressão do gene CRH e, consequentemente, a produção do hormônio pela placenta. Por sua vez, o CRH estimula a hipófise a secretar o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), ou corticotrofina, que age no córtex suprarrenal liberando o cortisol. Os níveis elevados de CRH e de ACTH agindo nas glândulas suprarrenais maternas promovem a produção não somente de cortisol como também de deidroepiandrosterona (DHEA), substrato para a síntese dos estrogênios placentários.
■ CRH no feto O CRH é secretado pela placenta predominantemente no sangue materno, mas alcança também a circulação fetal (Figura 12.24). O estímulo da hipófise fetal pelo CRH eleva a produção de ACTH e, consequentemente, a síntese de cortisol pela suprarrenal e o amadurecimento do pulmão. Concomitantemente, o aumento do cortisol promove a produção do CRH placentário, em mecanismo de feedback positivo. O amadurecimento do pulmão fetal como resultado de elevação da concentração de cortisol está associado à produção acrescida da proteína surfactante A e de fosfolipídios, ambos responsáveis por ações pró-inflamatórias que podem determinar a contração miometrial por meio do aumento na elaboração de prostaglandinas (PG) pelas membranas (âmnio)
fetais (PGE2) e pelo próprio miométrio (PGF2α).
Figura 12.24 ■ Hormônio liberador da corticotrofina (CRH) e “relógio” placentário. No espaço interviloso, o sinciciotrofoblasto libera CRH, progesterona e estrogênios no sangue materno e no sangue fetal. O cortisol circula pela artéria materna e alcança o espaço interviloso, onde promove a produção de CRH pelo sinciciotrofoblasto. A veia umbilical carreia CRH para a circulação fetal, estimulando a hipófise a sintetizar o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), que age na suprarrenal promovendo a secreção de cortisol e de deidroepiandrosterona (DHEA). O cortisol ativa o pulmão fetal a produzir a proteína surfactante A, que se desloca do líquido amniótico para o âmnio, onde atua na síntese de cicloxigenase-2 (COX-2) e de prostaglandina E2 (PGE2). A PGE2 e a COX-2 atravessam o cório e a decídua e direcionam as células miometriais a sintetizarem COX-2 adicional e PGF2α. (De Smith, 2007.)
Assim, o CRH pode estimular a esteroidogênese, provendo o substrato (DHEA) para a produção de estrogênios pela placenta, que favorece a formação de junções comunicantes entre as células miometriais, possibilitando a melhor condução elétrica e, por conseguinte, contrações uterinas regulares (ver adiante a formação das junções comunicantes).
■ Ativação do miométrio a termo ■ Proteínas que aumentam a excitabilidade do miométrio Os miócitos mantêm gradiente de potencial eletroquímico por meio da membrana plasmática, com o interior negativo em relação ao exterior, na dependência da ação da bomba de sódiopotássio. Um componente desse processo é o canal de potássio, que pode ser cálcio ou voltagem-regulado, e possibilita o efluxo de potássio, consequentemente aumentando a diferença de potencial através da membrana celular, tornando-a mais refratária à despolarização (Figura 12.25). Ao tempo do parto, mudanças na distribuição e na função desses canais reduzem a intensidade do estímulo necessário para despolarizar os miócitos e produzir o associado influxo de cálcio para produzir as contrações. Receptores simpaticomiméticos β2 que aumentam a abertura dos canais de potássio, reduzindo assim a excitabilidade da célula, também declinam no parto.
■ Proteínas que promovem a condutibilidade intercelular. Junções comunicantes Aspecto fundamental na atividade miometrial é o desenvolvimento da sincronia. A atividade sincrônica das células miometriais provoca contrações fortes, necessárias para expulsar o concepto. Igualmente importante é o período de relaxamento que possibilita o fluxo de sangue ao feto, bastante prejudicado durante a contração. Não há no útero marca-passo clássico que regule as contrações, embora células especializadas assemelhadas tenham sido identificadas. De qualquer modo, à medida que a parturição progride, aumenta a sincronização da atividade elétrica no útero. No nível molecular, os miócitos são conectados por canais ou junções comunicantes (junções gap). No miométrio, as junções comunicantes são formadas por membros da família das conexinas (a conexina 43 [CX-43] é a mais importante), através das quais atravessam íons e certos metabólitos celulares. Essas junções comunicantes entre os miócitos aumentam em quantidade com a proximidade do parto, provavelmente por estímulo estrogênico e pelo estiramento uterino (Figura 12.26). Essa extrema conectividade física e bioquímica possibilita que a despolarização dos miócitos individuais atinja as células vizinhas, assim formando extensas ondas de despolarização e de contração, alcançando grandes áreas do útero. Isso determina elevação da pressão intrauterina, progressiva dilatação do colo e expulsão do feto. ▶ Estrutura molecular. A junção comunicante é uma conexão intracelular especializada que liga duas células, composta de duas conexonas (hemicanais), uma para cada célula, que se comunicam através do espaço intercelular de 4 ηm. Cada conexona é formada por seis subunidades proteicas chamadas conexinas (Figura 12.27), formando o hemicanal homoexâmero, localizado na membrana da célula. Uma conexina tem quatro domínios transmembranais, duas alças extracelulares (EL-1 e EL-2) e duas terminações citoplasmáticas intracelulares (C e N) (Figura 12.28). Destarte, seis conexinas formam uma conexona (hemicanal) e duas conexonas juntas constituem a junção comunicante.
■ Proteínas que promovem a contração do miócito A interação entre a actina e a miosina determina a contração do miócito. Para que ocorra essa interação, a actina deve alterar a sua conformação original globular em fibrilar. A actina também deve ligar-se ao citoesqueleto pelos corpos densos (actinina-α), situados na membrana celular, possibilitando o desenvolvimento da tensão durante a contração. A miosina, parceira da actina, é ativada quando fosforilada pela MLCK. A CaM e a elevação do cálcio intracelular ativam essa enzima (Figura 12.25).
■ Via da ativação miometrial ■ Participação fetal Durante a gravidez, o crescimento do útero sob ação dos estrogênios fornece espaço para o desenvolvimento do feto. Porém, no final da gestação, quando cessa o crescimento do útero, o aumento da tensão nas paredes uterinas sinaliza para o início do parto. Por essa razão, o parto se inicia antes na gravidez gemelar, na macrossomia fetal e no polidrâmnio, conduzindo à prematuridade. Esses eventos estão relacionados provavelmente com a sobredistensão do miométrio, que ocorre na multiplicidade ou na macrossomia fetal, e no excesso de líquido amniótico. Na maioria das estruturas musculares lisas, o estiramento determina a contração. À medida que o termo se aproxima, há elevação da concentração do CRH placentário, estímulo para a produção de ACTH pela hipófise fetal e de estrogênios pela suprarrenal. O DHEA elaborado em quantidades crescentes pela zona fetal da suprarrenal é rapidamente metabolizado na placenta em estrogênios. A concentração elevada de cortisol induz a maturação dos pulmões, elevando a produção da proteína surfactante A e dos fosfolipídios que são críticos para a função pulmonar. No líquido amniótico, a proteína surfactante A pode promover a inflamação, que é observada em membranas fetais, colo e miométrio. Há considerável evidência de que esse processo inflamatório (COX-2, interleucina-8) seja um dos elementos que conduzem ao início do parto.
Figura 12.25 ■ A. Antes do parto, o miócito mantém sua eletronegatividade interior, reduzindo assim a possibilidade de despolarização e contração (hiperpolarizado-refratário). O potencial de repouso da membrana é criado pela bomba de sódio-potássio ATPase-regulada que expulsa 3 íons de sódio para cada 2 íons de potássio que são transportados para a célula. Os canais de potássio abertos, mantidos pelos simpaticomiméticos β2, permitem que o potássio deixe a célula, seguindo o gradiente de concentração, o que aumenta ainda mais a eletronegatividade intracelular. No momento do parto, a despolarização do miócito ocorre quando a PGF2α e a ocitocina se ligam aos seus receptores de membrana, provocando a abertura dos canais de cálcio ligante-regulados (despolarizado-excitatório). A ativação desses receptores também determina a liberação de íons de cálcio armazenados no retículo sarcoplasmático. À medida que o cálcio entra na célula, promove a abertura de muitos canais de cálcio voltagem-regulados, produzindo elevada concentração de cálcio intracelular e consequente despolarização. B. Antes do parto, os miócitos são mantidos relaxados por muitos fatores (p. ex., simpaticomiméticos β2, PGF2) que aumentam a concentração da AMP cíclica (cAMP) (relaxamento). O aumento da cAMP ativa a proteína cinase A (PKA), que promove a atividade fosfodiesterase e a defosforilação da miosina de cadeia leve (a fosforilação da miosina de cadeia leve é crítica para a contração do miócito). O relaxamento do miócito também é conduzido pelo processo que mantém a actina na sua forma globular, impedindo a geração da actina fibrilar requerida para a contração. Ao tempo do parto, esses processos são revertidos (contração). A actina assume a forma globular. O cálcio entra na célula despolarizada e se combina com a calmodulina para formar o complexo cálcio-calmodulina, que ativa a miosina de cadeia leve cinase, que, por sua vez, fosforiliza a miosina de cadeia leve. A fosforilação da miosina de cadeia leve motiva a produção da atividade ATPase, que promove o deslizamento dos
filamentos de actina sobre os da miosina, e esse movimento constitui a contração. R-PKA, PKA inativa; IP3, inositol trifosfato; PIP3, fosfatidilinositol trifosfato; PLC, fosfolipase C; DAG, diacilglicerol; miosina LC20, miosina de cadeia leve.
Figura 12.26 ■ Formação das junções comunicantes. Durante o parto, o miométrio se converte de tecido com relativa baixa condutividade entre os miócitos (A) em estrutura com extensa rede de conexões (B). As conexões físicas ocorrem por meio das junções comunicantes, que são formadas por multímeros da conexina 43. As conexões entre os miócitos durante o parto são criadas pela liberação parácrina de PGF2α e de cálcio (Ca++).
Figura 12.27 ■ Estrutura molecular da junção comunicante.
■ Ativação da membrana (âmnio) fetal O âmnio está em contato direto com o líquido amniótico, possibilitando que os constituintes do líquido amniótico tenham acesso irrestrito a ele (Figura 12.24). A produção de proteína surfactante A, fosfolipídios e citocinas inflamatórias no líquido amniótico eleva a atividade da cicloxigenase-2 (COX-2) e a produção da PGE2 no âmnio e de PGF2α no miométrio. As prostaglandinas medeiam a liberação de metaloproteinases da matriz (MMP), que enfraquecem as membranas fetais, facilitando a sua ruptura.
Figura 12.28 ■ Estrutura molecular pormenorizada da junção comunicante.
■ Amadurecimento cervical O processo de amadurecimento cervical precede o início das contrações uterinas de várias
semanas. Isso envolve alterações morfológicas no colo, que se transforma de barreira rígida, a qual isola o ambiente intrauterino da infecção ascendente, em órgão amolecido, distensível, dando passagem ao feto durante a parturição. A concentração de colágeno no colo diminui durante o seu amadurecimento, e as glicosaminoglicanas hidrofóbicas dentro do tecido conjuntivo são substituídas pelo ácido hialurônico hidrófilo. A concentração total de água no colo cresce, e a de colágeno diminui. O amadurecimento do colo é processo inflamatório conduzido por macrófagos e neutrófilos que infiltram a cérvice nas proximidades do termo; o influxo de neutrófilos é conduzido pela interleucina-8 (IL-8). Além de produzirem citocinas, macrófagos e neutrófilos elaboram metaloproteinases da matriz (MMP) que digerem as proteínas da matriz extracelular, o que é necessário para o amadurecimento cervical.
■ Papel das prostaglandinas As PG são produzidas pelo miométrio e pelas membranas fetais, especialmente o âmnio. Elas são cadeias de ácidos graxos com 20 átomos de carbono. A liberação do ácido araquidônico (AA) dos fosfolipídios constituintes de todas as membranas celulares é a fase inicial na síntese das PG. Isso é assegurado pela ação direta da fosfolipase A2 (PLA2) ou indireta, da fosfolipase C (PLC) (Figura 12.29).
Figura 12.29 ■ Síntese das principais prostaglandinas (PG) naturais – cascata do ácido araquidônico.
O segundo estágio é a oxigenação e a redução do AA pela ação da enzima cicloxigenase (COX). Existem dois tipos de COX: COX-1 e COX-2. A COX-1, produzida constantemente durante toda a gravidez, é encontrada na maioria dos tecidos, por isso chamada “constitutiva”. Por outro lado, a COX-2 aumenta a sua concentração durante toda a gestação, e principalmente com o parto, em resposta à ação de citocinas e fatores do crescimento, por isso é denominada “induzível”. A COX-2 é a responsável pela liberação de PG das membranas fetais.
O terceiro período enzimático na síntese das PG é a conversão da PGH2 em uma PG das biologicamente ativas: PGI2, PGE2, PGF2α e TxA2. As PG produzidas nas membranas fetais interagem com os receptores locais ou, por difusão, alcançam o miométrio. Nas membranas, as PG ativam e promovem a degeneração do colágeno, favorecendo a sua ruptura. As PG atuam em receptores específicos e existe um para cada PGF2α (FP), I2 (IP), TxA2 (TP) – e quatro para a PGE2 (EP1-4). De modo geral, os receptores das PG podem ser divididos em dois grupos: estimulantes (EP1, EP3, FP e TP) e relaxantes (EP2, EP4 e IP) da contração. A PGF2α estimula a contração uterina pela produção de IP3 e a conseguinte liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático (Figura 12.25). A ação da PGE2 no miométrio é complexa, em virtude da existência de quatro receptores: dois estimulantes (EP1 e EP3) e dois relaxantes (EP2 e EP4). A sinalização da PGE2 por EP1 e EP3 estimula a liberação de cálcio via IP3, enquanto EP2 e EP4 ativam a adenilatociclase (Figura 12.25). A ativação da adenosina monofosfato cíclica (cAMP) pela adenilatociclase é uma das vias principais de relaxamento do músculo liso. A expressão dos receptores de PG varia de acordo com o estágio da gravidez, e o nível ou o tipo de receptor dita o grau de quiescência ou de contratilidade uterina.
■ Retirada da progesterona A progesterona desempenha papel fundamental no desenvolvimento do endométrio por possibilitar a implantação e, posteriormente, por manter o miométrio quiescente – bloqueio miometrial progesterônico. Em muitos mamíferos, a queda da progesterona circulante precipita o parto. Uma característica da gravidez humana é que o nível da progesterona circulante não cai com o início do parto. A procura do mecanismo que explicasse a retirada funcional da progesterona identificou diversos tipos de receptores da progesterona (A, B e C). O receptor B é o mais comum e medeia as ações da progesterona; os receptores variantes A e C funcionam como repressores da função do receptor B da progesterona. Com o início do parto, a proporção dos receptores A, B e C se altera de modo a constituir mecanismo de retirada da progesterona. Outros mecanismos têm sido aventados para explicar a “queda local” de progesterona no ambiente miometrial.
■ Papel da ocitocina A ocitocina não tem papel atuante no determinismo do parto. Sua participação é importante no período expulsivo e no secundamento, quando o estímulo da dilatação cervical ocasiona a sua secreção em pulsos pela neuro-hipófise materna. Sabe-se que a concentração de ocitocina não aumenta com a proximidade do parto; em vez disso, os receptores de ocitocina nas células miometriais sofrem acréscimo notável no termo, o que se deve muito provavelmente à ação dos estrogênios. A ação da ocitocina no miócito é mediada pela ativação do receptor de ocitocina (OTR) proteína-G acoplado. A ligação da ocitocina ao OTR na membrana plasmática dissocia
subunidades da proteína-G, o que acaba por liberar IP3. O IP3 então mobiliza o cálcio armazenado no retículo sarcoplasmático (Figura 12.25).
■ Inflamação e início do parto O aumento nos fatores inflamatórios, tais como COX-2 e interleucina-8, se constituem em eventos iniciais para a progressão do parto ativo (Figura 12.30).
Figura 12.30 ■ Visão panorâmica do mecanismo do parto. O aumento na síntese do hormônio liberador da corticotrofina (CRH) condiciona a produção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) e de cortisol na mãe e no feto. O aumento do cortisol estimula a produção de CRH, gerando feedback positivo e consequente aumento exponencial na síntese do CRH. O aumento no cortisol fetal leva à maturação pulmonar e elevação da proteína surfactante A e dos fosfolipídios. O cortisol e a proteína surfactante A ativam vias inflamatórias no âmnio, determinando o amadurecimento cervical e a excitação miometrial. A estimulação miometrial envolve a retirada progesterônica e a elevação na produção da cicloxigenase-2 (COX-2), que sintetiza prostaglandinas (PG) e promove a contração. O crescimento fetal e o consequente estiramento do miométrio, combinados com a retirada da progesterona, promovem a contratilidade uterina.
■ Indução do parto O American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) (2013) assim tipifica: • Indução indicada não médica (indução eletiva) • Indução indicada médica.
▶ Indução indicada não médica. O parto não deve ser induzido eletivamente antes de 39 semanas de gestação, no chamado período termo precoce (37+0-38+6 semanas). Inúmeras são as morbidades neonatais sinaladas (Tabela 12.3). ▶ Indução indicada médica. Diversas são as condições médicas que indicam a interrupção da gravidez em benefício fetal ou materno, nos períodos pré-termo tardio (34+0-36+6 semanas) e termo precoce (37+0-38+6 semanas) (Tabela 12.4).
Tabela 12.3 ■ Morbidades neonatais associadas ao parto a termo precoce (37+0-38+6 semanas). Síndrome de angústia respiratória (SAR) Taquipneia transitória Uso de ventilador pulmonar Pneumonia Insuficiência respiratória Admissão em UTI neonatal Hipoglicemia Apgar 5o minuto < 7 Mortalidade neonatal
ACOG, 2013.
Tabela 12.4 ■ Indicações médicas para o parto pré-termo-tardio (34+0-36+6 semanas) e a termo precoce (37+0-38+6 semanas). Pré-eclâmpsia, eclâmpsia, hipertensão gestacional e hipertensão crônica complicada Oligoidramnia Cesárea clássica ou miomectomia anteriores Placenta prévia, acreta Gestação gemelar Crescimento intrauterino restrito (CIR) Diabetes pré-gestacional com doença vascular Diabetes gestacional ou pré-gestacional mal-controlados
Descolamento prematuro da placenta (DPP) Ruptura prematura das membranas Colestase da gravidez Doença hemolítica perinatal (DHPN) Malformações congênitas fetais
ACOG, 2013.
A seguir são citados outros métodos de indução do parto. ▶ Descolamento das membranas. Especialmente indicado na gravidez com ≥ 41 semanas, com o colo desfavorável. Por certo, deve haver certa dilatação cervical para a introdução do dedo (Figura 12.31). ▶ Métodos de indução. Os métodos de indução do parto podem ser divididos em dois grupos (ACOG, 2009): • Indutores da contração uterina: ○ Ocitocina ○ Amniotomia ○ Descolamento das membranas ○ Estimulação dos mamilos • Promotores do amadurecimento cervical: ○ Sonda de Foley, com ou sem infusão salina extra-amniótica (ISEA) ○ PGE2: dinoprostano ○ Análogo da PGE1: misoprostol. ▶ Índice de Bishop. Se a indução estiver indicada e o estado do colo for desfavorável (imaturo), agentes devem ser utilizados para o seu amadurecimento. As condições do colo podem ser determinadas pelo índice de Bishop (Tabela 12.5). O colo é considerado desfavorável se o índice for ≤ 6; se o índice totalizar > 8 a probabilidade do parto vaginal após a indução é similar à do parto espontâneo. ▶ Misoprostol. O misoprostol é o fármaco habitualmente utilizado para o amadurecimento do colo. O esquema preferente é o da dose de 25 µg vaginal, a cada 3 a 6 h, até o amadurecimento cervical ou a indução do parto (ACOG, 2009). A OMS (2011) recomenda misoprostol oral, 25 µg de 2/2 h, como agente de escolha, e como alternativa o vaginal, 25 µg de 6/6 h.
Figura 12.31 ■ Descolamento das membranas.
Tabela 12.5 ■ Índice de Bishop. Índice Parâmetros 0
1
2
3
Dilatação (cm)
0
1-2
3-4
5
Apagamento (%)
0-30
40-50
60-70
80
Altura
–3
–2
–1 ou 0
+1
Consistência
Firme
Média
Mole
2
Posição
Posterior
Média
Anterior
2
▶ Ocitocina. Em continuação ao misoprostol utiliza-se a ocitocina sob bomba de infusão venosa, na dose de 1 a 8 mU/min, respeitando-se o intervalo mínimo de 4 h entre o seu início e a última administração do misoprostol. Se ao momento da indução o colo já estiver maduro, a ocitocina será a única medicação utilizada. ▶ Contratilidade uterina. O parto induzido deve ser sempre monitorado (ACOG, 2009). O ideal é obter-se até 5 contrações/10 min. É considerada taquissistolia a ocorrência de > 5 contrações/10 min, que pode estar associada a alterações desfavoráveis da frequência cardíaca fetal (fcf): ausência de oscilação, dips tardios ou umbilicais recorrentes, bradicardia [National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), 2008]. Nessas condições, se não houver resposta às medidas corretivas de rotina (mudança do decúbito, administração de oxigênio), a cesárea estará indicada. A terbutalina subcutânea também pode ser tentada (Capítulo 43). ▶ Amniotomia. Pode ser utilizada para induzir o parto especialmente quando o colo é favorável. Empregada isoladamente é o pior dos procedimentos pela possibilidade de longo
intervalo entre a ruptura e o início das contrações (ACOG, 2009). Sua principal indicação é no DPP com o feto morto. ▶ Indução com o feto morto. Até 28 semanas o misoprostol vaginal pode ser utilizado na dose de 200 µg, de 12/12 h durante 48 h (SOGC, 2006), mesmo em mulheres com cesárea prévia. Após 28 semanas, em mulheres com cesárea anterior, a melhor opção é a sonda de Foley transcervical (ACOG, 2009) (Figura 12.32). ▶ Complicações. Principalmente parto cesáreo, corioamnionite e atonia uterina.
Figura 12.32 ■ Mecânica de indução do parto: sonda de Foley com infusão salina extra-amniótica. (Adaptada de Cunningham et al., 2005, op. cit.)
■ Pontos-chave Embora o diagnóstico clínico do parto se faça por três elementos distintos – contratilidade uterina, apagamento e dilatação do colo e ruptura das membranas –, a atividade do útero é o fenômeno mais saliente. A contratilidade uterina não é privativa do parto, estando presente em qualquer fase do ciclo gestatório. Não obstante os fatores responsáveis pelo início da parturição e sua manutenção sejam elusivos, é provável que o feto desempenhe papel importante no determinismo do seu próprio parto. O determinismo do parto pode ser visto como a conjugação de dois grupos de fatores: liberação de mecanismos inibitórios do miométrio, atuantes durante a gravidez, e processo ativo mediado por estimulantes uterinos (uterotônicos). Embora a contratilidade uterina seja o elemento mais visível do parto, nada assegura que a sua qualidade ou quantidade estejam relacionadas ao prognóstico da parturição. As prostaglandinas (especialmente a PGF2α elaborada pela decídua) desempenham papel central no determinismo do parto; outros hormônios são coadjuvantes: ocitocina, esteroides sexuais, glicocorticoides, relaxina etc. O amadurecimento do colo é indispensável para o êxito da indução do parto quando a cérvice está desfavorável. No procedimento de eleição para o amadurecimento do colo é fundamental a utilização de prostaglandina (misoprostol). A ocitocina é utilizada para indução do parto com o colo maduro, além de aumentar a contratilidade da parturição já iniciada. A ruptura das membranas só está indicada no termo, quando o colo estiver maduro e a apresentação insinuada.
_________ *Texto e ilustrações apoiados na revisão de Smith, 2007.
■ Tempos do mecanismo do parto
Sob o ponto de vista do mecanismo do parto, o feto é o móvel ou objeto, que percorre o trajeto (bacia), impulsionado por um motor (contração uterina). Na sua atitude habitual de flexão da cabeça sobre o tronco e de entrecruzamento dos membros, que também se dobram, o móvel assemelha-se a um ovoide – o ovoide fetal (Figura 13.1). Esse, por sua vez, é composto por dois segmentos semidependentes: o ovoide cefálico (cabeça) e o córmico (tronco e membros). Embora o ovoide córmico seja maior, seus diâmetros são facilmente redutíveis, tornando o polo cefálico mais importante durante a parturição. O estudo da mecânica do parto, na generalidade dos casos, e em essência, analisa os movimentos da cabeça, sob ação das contrações uterinas, a transitar pelo desfiladeiro pelvigenital. O trajeto, ou canal da parturição, estende-se do útero à fenda vulvar (Figura 13.2). Constituído por formações de diversas naturezas, partes moles do canal do parto (segmento inferior, cérvice, vagina, região vulvoperineal), o canal da parturição é sustentado por cintura óssea, também chamada de pequena pelve, pequena bacia ou escavação. No seu transcurso através do canal parturitivo, impulsionado pela contratilidade uterina e pelos músculos da parede abdominal, o feto é compelido a executar certo número de movimentos, denominados mecanismo do parto. São movimentos puramente passivos, e procuram adaptar o feto às exiguidades e às diferenças de forma do canal. Com esses movimentos, os diâmetros fetais se reduzem e se acomodam aos pélvicos. O mecanismo do parto tem características gerais constantes, que variam em seus pormenores de acordo com o tipo de apresentação e a morfologia da pelve. Em 95 a 96% dos casos, o parto processa-se com o feto em apresentação cefálica fletida – apresentação de vértice. De todas as apresentações, esta é a menos sujeita a perturbações do mecanismo. Será estudado aqui apenas o mecanismo do parto fisiológico: apresentação cefálica fletida em bacia ginecoide.
Figura 13.1 ■ Cilindrificação do feto.
Figura 13.2 ■ Canal do parto.
■ Tempos do mecanismo do parto Embora os movimentos desse mecanismo sejam contínuos e entrelaçados, para facilitar sua descrição, costuma-se dividi-los em vários tempos, com análise minuciosa de cada fase. Fernando Magalhães encarava-os com mais simplicidade, dividindo-os apenas em três: insinuação, descida e desprendimento.
■ Insinuação A insinuação (ou encaixamento) é a passagem da maior circunferência da apresentação através do anel do estreito superior (Figura 13.3). Nessas condições, e pelo geral, está o ponto mais baixo da apresentação à altura das espinhas ciáticas (plano “O” de DeLee) (Capítulo 9). Tem como tempo preliminar a redução dos diâmetros, o que, nas apresentações cefálicas, é conseguido pela flexão (apresentação de vértice), ou deflexão (apresentação de face). Na apresentação pélvica, a redução dos diâmetros é obtida aconchegando-se os membros inferiores sobre o tronco ou desdobrando-se os mesmos, para baixo ou para cima.
Figura 13.3 ■ Cabeça insinuada.
Nas apresentações córmicas, a insinuação não ocorre com feto de tamanho normal, em decorrência da grande dimensão dos diâmetros. Por isso, o parto pela via vaginal é impossível. Mecanismos atípicos que promovem o parto transpélvico espontâneo podem ser processados somente nos fetos mortos, ou de pequenas dimensões. Para que se processe a insinuação, é necessário haver redução dos diâmetros da cabeça, o que será obtido pela orientação de diâmetros e por flexão (Figura 13.4). No início dessa fase, a cabeça fetal encontra-se acima do estreito superior da bacia, em flexão moderada, com a sutura sagital orientada no sentido do diâmetro oblíquo esquerdo ou do transverso e com a pequena fontanela (fontanela lambdoide) voltada para esquerda (Figura 13.5). Os autores franceses, no que têm sido seguidos pelos demais latinos, consideram a variedade de posição mais frequente (60%) a occípito-esquerda-anterior (OEA), que designam de primeira posição. Seguem-se, em ordem decrescente de frequência, a occípito-direita-posterior (ODP) (32%), segunda posição; a occípito-esquerda-posterior (OEP) (6%); e, bem rara, a occípitodireita-anterior (ODA) (1%).
Figura 13.4 ■ Redução dos diâmetros cefálicos, por flexão.
Já os autores anglo-saxões, fundamentados em estudos radiográficos, opinam que a variedade de posição mais frequente, na insinuação, é a transversa (60 a 70%), a esquerda superando
numericamente a direita. Na realidade, o encaixamento depende, essencialmente, da morfologia da pelve. Nas de tipo ginecoide, ele se dá, preferencialmente, pelo diâmetro transverso; nas androides, as posições transversas são cerca de 3 vezes mais comuns que as anteriores e as posteriores reunidas, sendo essas últimas as de maior incidência; nas antropoides é menor a frequência do encaixamento pelo diâmetro transverso; alguns autores estabeleceram que esse tipo de bacia predispõe às posições posteriores, embora as posições diretas também sejam comuns. Nas bacias platipeloides, a cabeça deve ser encaixada quase obrigatoriamente através dos diâmetros transversos. De qualquer maneira, o aproveitamento dos diâmetros oblíquos ou transversos (os mais amplos do estreito superior) é indispensável para a passagem do diâmetro anteropostorior, o maior da circunferência de encaixamento. A atitude de moderada flexão (atitude indiferente), em que se encontra a cabeça no início do mecanismo do parto, apresenta ao estreito superior da bacia o diâmetro occipitofrontal, maior do que o suboccipitobregmático, que mede 9,5 cm. Para apresentar esse último diâmetro, mais favorável, a cabeça sofre um 1o movimento de flexão. O eixo maior do ovoide cefálico toma a direção do eixo do canal. A flexão da cabeça pode ser explicada por três teorias, descritas a seguir. De acordo com a teoria de Zweifel, a implantação da coluna cervical na base do crânio se faz mais para o lado occipital do que da face, criando a condição de uma alavanca de braços desiguais. A contrapressão exercida pelo contato das bordas da pelve, representando forças iguais nos dois extremos da alavanca, domina o braço mais longo, que corresponde à face, por isso esse extremo sobe e o outro desce. A teoria de Lahs define que as pressões laterais exercidas sobre a cabeça pelo canal do parto alcançam níveis diferentes, sendo o mais baixo o lado occipital. A ação das linhas de força em sentido oposto resulta no abaixamento do occipital. A teoria de Sellheim explica que mediante uma diferença de pressão atmosférica, quando um elipsoide de rotação, colocado obliquamente ao seu eixo, progride através de um tubo reto, igual ao canal do parto, o elipsoide dispõe-se de modo que seu eixo maior coincida com o eixo do tubo.
Figura 13.5 ■ Mecanismo do parto em posição occípito-esquerda-anterior (OEA). A e B. Insinuação, pelo diâmetro oblíquo esquerdo da bacia, flexão e descida. C e D. Rotação para posição occipitoposterior; completa-se a descida e ocorre o desprendimento cefálico.
Essas três teorias não se contradizem: explicam o mesmo fenômeno de maneiras diferentes. Apenas Zweifel deixa entender que as forças atuantes na flexão da cabeça resultam do contato com a reborda óssea da pelve, enquanto as outras duas teorias sugerem pressões laterais das porções altas do canal mole (segmento inferior do útero). Reduzindo os seus diâmetros, pelos movimentos apontados, a cabeça fetal transpõe o estreito
superior da bacia. A insinuação ocorre por dois processos diferentes: • Insinuação estática, processada na gravidez, em mais de 50% das primigestas. Flexão por aconchego no segmento inferior e na descida, conjuntamente com o útero, por tração dos ligamentos sustentadores do órgão e pressão das paredes abdominais • Insinuação dinâmica, que surge no fim da dilatação cervical ou no início do período expulsivo nas multíparas. Flexão por contato com o estreito superior da bacia e descida à custa das contrações expulsivas. A insinuação estática é considerada prognóstico favorável para o parto, desde que proporcione boa proporção cefalopélvica. A recíproca, porém, não é correta. O simples fato de não se ter verificado, não autoriza concluir pela existência de desproporção cefalopélvica ou de qualquer outra razão de mau prognóstico.
■ Descida Completando a insinuação, a cabeça migra até as proximidades do assoalho pélvico, onde começa o cotovelo do canal (Figura 13.5). Até aí mantém a mesma atitude e conserva o mesmo sentido, apenas exagerando um pouco a flexão. O ápice do ovoide cefálico atinge o assoalho pélvico, e a circunferência máxima encontra-se na altura do estreito médio da bacia. A descida, na realidade, ocorre desde o início do trabalho de parto e só termina com a expulsão total do feto. Seu estudo, como tempo autônomo, tem apenas propósito didático, facilitando a descrição. Durante esse mecanismo do parto, o movimento da cabeça é turbinal: à medida que o polo cefálico roda, vai progredindo no seu trajeto descendente. É a penetração rotativa, de Fernando Magalhães. ▶ Rotação interna da cabeça. Uma vez que a extremidade cefálica distenda e dilate, o conjunto musculoaponeurótico que compõe o diafragma pélvico sofre movimento de rotação que levará a sutura sagital a se orientar no sentido anteroposterior da saída do canal (Figura 13.5). A interpretação desse tempo do mecanismo do parto tem sido motivo de grandes discussões. Por ser insubsistente, a ideia de que a mudança de orientação da cabeça pudesse advir da forma e das dimensões do estreito médio e inferior da bacia está praticamente abandonada. As explicações a seguir são mais compreensíveis: • O assoalho pélvico, principalmente depois de distendido pela cabeça fetal, é côncavo para cima e para diante, escavado em forma de goteira. Apresenta planos inclinados laterais por onde o feto desliza ao nascer. A fenda vulvar limitada, em cima, pelo arco inferior do púbis e para os lados e para baixo pelo diafragma pélvico, apresenta forma ovalar, com o eixo maior no sentido anteroposterior, quando totalmente distendida. Ao forçar a distensão do assoalho pélvico, a cabeça fetal desliza nas paredes laterais (planos inclinados) e roda para acomodar seus maiores diâmetros aos mais amplos da fenda vulvar
•
Segundo Sellheim, sob a ação das pressões da parede uterina no período expulsivo, o feto fica transformado em cilindro, com flexibilidade variável, em seus diversos segmentos, cada um dos quais apresenta um facilimum e um dificilimum de flexão. Para a cabeça, o facilimum de flexão é em direção do dorso (occipital) e o dificilimum no sentido da face, porque o mento relaciona-se com o manúbrio esternal. O facilimum de flexão dos segmentos torácico e pélvico corresponde às faces laterais do corpo.
Com base em experiências feitas com um aparelho idealizado por ele, Sellheim estabeleceu a seguinte lei: “Um cilindro dotado de flexibilidade desigual e posto de modo a que possa girar sobre seu eixo, ao ser submetido a uma força que lhe determine o encurvamento, realizará movimento de rotação até dispor o plano mais flexível na direção em que tem de se realizar dito encurvamento.” Aplicada esta lei ao trabalho de parto, verifica-se que o cilindroide fetal, para transpor o cotovelo do canal de parto, quer o occipital esteja orientado no sentido oblíquo ou transverso da pelve, será compelido a sofrer movimento de rotação, capaz de dirigir o seu facilimum de flexão de modo que o occipital entre em contato com a sínfise pubiana. Segundo a mesma lei, a passagem das espáduas só se fará com movimento de rotação que oriente o facilimum de flexão desse segmento também no rumo da curvatura do canal, o que forçará as espáduas a se orientarem no sentido anteroposterior, já que o facilimum de flexão desse segmento é lateral. ▶ Insinuação das espáduas. Simultaneamente com a rotação interna da cabeça, e com sua progressão no canal, verifica-se penetração das espáduas através do estreito superior da bacia (Figura 13.5). O diâmetro biacromial, que mede 12 cm, é incompatível com os diâmetros do estreito superior, porém, no período expulsivo, sofre redução apreciável porque os ombros se aconchegam, forçados pela constrição do canal, e se orienta no sentido de um dos diâmetros oblíquos ou do transverso daquele estreito. À medida que a cabeça progride, as espáduas descem até o assoalho pélvico.
■ Desprendimento Terminado o movimento de rotação, o suboccipital coloca-se sob a arcada púbica; a sutura sagital orienta-se em sentido anteroposterior (Figura 13.5). Dada a curvatura inferior do canal do parto, o desprendimento ocorre por movimento de deflexão. A nuca do feto apoia-se na arcada púbica e a cabeça oscila em torno desse ponto, em um movimento de bisagra. Com o maior diâmetro do ovoide cefálico (occipitomentoniano) continuando orientado no sentido do eixo do canal, a passagem da cabeça através do anel vulvar deve ser feita pelos diâmetros anteroposteriores, de menores dimensões originados do suboccipital. Essa região acomodase, assim, à arcada inferior da sínfise, em redor da qual a cabeça vai bascular para o desprendimento (Figura 13.5). Com o movimento de deflexão, estando o suboccipital colocado sob a arcada púbica, liberta-se o diâmetro suboccipitobregmático, seguido pelo suboccipitofrontal, suboccipitonasal e, assim por diante, até o completo desprendimento.
▶ Rotação externa da cabeça. Imediatamente após desvencilhar-se, livre agora no exterior, a cabeça sofre novo e ligeiro movimento de flexão, pelo seu próprio peso, e executa rotação de 1/4 a 1/8 de circunferência, voltando o occipital para o lado onde se encontrava na bacia (Figura 13.6 A e B). É um movimento simultâneo à rotação interna das espáduas, por ela causado, e conhecido como restituição (faz restituir o occipital à orientação primitiva). ▶ Rotação interna das espáduas. Desde sua passagem pelo estreito superior da bacia, as espáduas estão com o biacromial orientado no sentido do oblíquo direito ou do transverso da bacia. Ao chegarem ao assoalho pélvico, e por motivos idênticos aos que causaram a rotação interna da cabeça, as espáduas também sofrem movimento de rotação, até orientarem o biacromial na direção anteroposterior da saída do canal. O ombro anterior coloca-se sobre a arcada púbica; o posterior, em relação com o assoalho pélvico, impelindo para trás o cóccix materno. ▶ Desprendimento das espáduas. Nessa altura, tendo o feto os braços cruzados para diante do tórax, a espádua anterior transpõe a arcada púbica e aparece através do orifício vulvar, onde ainda se encontra parcialmente recoberta pelas partes moles (Figura 13.6 C e D).
Figura 13.6 ■ Mecanismo do parto em posição occípito-esquerda-anterior. A e B. Movimento de restituição da cabeça ou rotação externa. C e D. Desprendimento do ombro anterior e do posterior, respectivamente.
Para libertar o ombro posterior, e tendo de acompanhar a curvatura do canal, o tronco sofre movimento de flexão lateral, pois o facilimum de flexão desse segmento é no sentido lateral do corpo. Continuando a progredir em direção à saída, com o tronco fletido lateralmente, desprendese a espádua posterior (Figura 13.6).
O restante do feto não oferece resistência para o nascimento, embora possa obedecer ao mesmo mecanismo dos primeiros segmentos fetais.
■ Insinuação cefálica pelos diâmetros transversos da bacia Com base em dados radiológicos, a incidência de insinuação pelos diâmetros transversos da bacia e por movimentos de assinclitismo foi estimada em 60 a 70%. A cabeça, antes da insinuação, é observada em posição transversa, com o parietal posterior apresentando-se sobre a região anterior da pelve (obliquidade de Litzmann). A sutura sagital permanece horizontalmente sobre a sínfise, ligeiramente por detrás dela (Figura 13.7). A insinuação ocorre por mecanismo de alavanca: flexão lateral da cabeça para o lado oposto, ficando a sutura sagital no diâmetro transverso da bacia (sinclitismo). Simultaneamente, começa a descida, e logo a apresentação do parietal posterior, no estreito superior, é substituída pela apresentação do parietal anterior, na escavação (obliquidade de Nägele). A superfície lateral do parietal posterior fica quase paralela à superfície anterior do sacro. A descida ulterior, até o plano sacrococcígeo, ocorre ao longo de uma linha dirigida para baixo e para trás, e mais ou menos paralela à superfície anterior do sacro. A cabeça permanece em posição transversa até as espinhas ciáticas ou um pouco acima, com o parietal anterior apresentado (Figura 13.7). O vértice continua a mover-se para trás, na direção do plano sacrococcígeo. Ocorre aí a flexão lateral que precede a rotação interna. Então, a bossa do parietal posterior choca-se com a espinha ciática esquerda, como na situação esquematizada na Figura 13.7. O occipital roda para frente, ao longo da discreta curvatura do ramo isquiopubiano, em ângulo de 90°. A descida ulterior dá-se durante a rotação, permanecendo a cabeça fortemente fletida. Finalmente, a extensão do occipital começa debaixo das espinhas ciáticas e é seguida do movimento de expulsão (Figura 13.7). As posições transversas persistentes no estreito superior não apresentam inconvenientes, transformadas ou não em oblíquas anteriores, ao penetrarem a bacia. Em plena escavação, o significado dessas posições é diverso. Podem ser resultantes de alteração da forma da cabeça ou da bacia. Se as contrações uterinas são fortes, conseguem vencer a dificuldade, cabeça roda para frente e tudo termina como nas oblíquas anteriores. Entretanto, se a despeito de contrações satisfatórias não há progressão, constitui-se a distocia genuína, distocia de rotação. Quando, ao lado disso, também existe assinclitismo, o que costuma acontecer nas bacias achatadas, a cabeça fica encravada e o parto estaciona.
Figura 13.7 ■ Mecanismo do parto em posição occípito-esquerdo-transversa. A e B. Insinuação e descida da cabeça por movimentos de assinclitismo. C e D. Rotação interna e desprendimento cefálicos.
Do exposto, depreende-se que os autores latinos acreditam que a posição esquerda anterior seja a frequente para a insinuação da apresentação de vértice, enquanto os autores anglo-saxões consideram ser as transversas.
■ Oblíquas posteriores Em proporção bem menor, a cabeça pode encaixar-se nas posições posteriores, direita ou esquerda, sendo mais rara a última. Tudo leva a crer que a causa principal do encaixamento, em variedade de posição posterior, é a exiguidade do sacro. As posições posteriores são mais comuns nas bacias de tipo androide, onde podem ser consideradas a variedade típica. Quando a cabeça se insinua em posterior, geralmente se apresenta com flexão incompleta, o que tem sido consignado por todos os autores. O parto geralmente é mais lento, pois a rotação cefálica ocorre em arco de círculo de 135°, em vez de 45° como nas anteriores, e 90°, nas transversas.
■ Pontos-chave Sob o ponto de vista do mecanismo do parto, o feto é o móvel ou o objeto que percorre o trajeto (bacia), impulsionado pelo motor (contração uterina). O estudo do mecanismo de parto é, em essência, o dos movimentos que a cabeça descreve, sob a ação das contrações uterinas, a transitar pelo desfiladeiro pelvigenital. O trajeto ou canal do parto estende-se do útero à fenda vulvar – partes moles (segmento inferior do útero, cérvice, vagina, região vulvoperineal) –, sustentado pela cintura óssea – pequena bacia ou escavação. O mecanismo do parto tem características próprias, que variam em seus pormenores de acordo com o tipo de apresentação e a morfologia da pelve. O único mecanismo fisiológico é o da apresentação cefálica fletida em bacia ginecoide. Os tempos do mecanismo do parto são basicamente: insinuação, descida e desprendimento.
A insinuação é a passagem da maior circunferência da apresentação pelo estreito superior. Nessas condições, o ponto mais baixo da apresentação está à altura das espinhas ciáticas (plano “O” de DeLee). A variedade de posição mais frequente de insinuação para os autores franceses é a occípito-esquerda-anterior (OEA); para os anglo-saxões, a occípitoesquerda transversa (OET). Na descida, a cabeça migra até as proximidades do assoalho pélvico, onde ocorre a rotação interna para occípitopúbica (OP); concomitantemente há a insinuação das espáduas. Uma vez colocado o suboccipital sob a arcada púbica, o desprendimento da cabeça ocorre por movimento de deflexão. O tempo imediato é a rotação externa da cabeça. Durante a descida das espáduas, há a sua rotação interna, colocando o ombro anterior sob a arcada púbica, ocorrendo, em seguida, o seu desprendimento.
■ A. Dilatação e Expulsão ■ Estudo clínico ■ Assistência ao parto
■ B. Secundamento ■ Fisiologia ■ Assistência: conduta ativa no secundamento
■ C. Assistência ao Recém-nascido na Sala de Parto
A. Dilatação e Expulsão ■ Estudo clínico Clinicamente, o estudo do parto analisa três fases principais (dilatação, expulsão e secundamento), precedidas de estágio preliminar, o período premunitório (pré-parto). Há tendência a considerar um 4o período, que compreenderia a hora imediata à saída da placenta; por ser uma fase de riscos inerentes, geralmente é ignorada pelo obstetra. O conjunto desses episódios constitui os fenômenos passivos do parto, que se completam com a análise dos movimentos executados pelo feto, na sua penetração rotativa pelo canal parturitivo, impulsionado pelas contrações uterinas (mecanismo do parto). Na realidade, os fenômenos clínicos e mecânicos do parto mantêm unidade, completando-se ou ocorrendo no ritmo comandado apenas pela contratilidade uterina. Resumem-se na abertura de dois diafragmas, o cervicossegmentário (colo do útero) e o vulvoperineal, através dos quais o feto passa. Do ponto de vista clínico, a ampliação do diafragma cervicossegmentário corresponde ao 1o período do parto (fase de dilatação), e a passagem do feto pelo diafragma vulvoperineal corresponde ao 2o período (fase de expulsão). Os autores latinos não englobam, geralmente, sob a epígrafe de parto, a expulsão dos anexos fetais (placenta e páreas), que constitui o secundamento (dequitadura, delivramento, ou dequitação); nos livros de língua inglesa, contudo, as fases clínicas do parto, divididas em 1o, 2o e 3o período, abrangemno. Após o secundamento (ou 3o período), nomease 4o período a primeira hora do pós-parto, assim individualizada, como anteriormente referido, por apresentar muitos riscos para a paciente.
■ Período premunitório (pré-parto) O período premunitório é caracterizado principalmente pela descida do fundo uterino. A cúpula do útero gravídico, localizada nas proximidades do apêndice xifoide, baixa de 2 a 4 cm, condicionando maior amplitude à ventilação pulmonar, a qual está dificultada, até esse momento, pela compressão diafragmática. A adaptação do polo proximal do feto ao estreito superior traz consigo, no entanto, a incidência de dores lombares, o estiramento das articulações da cintura pélvica e distúrbios circulatórios decorrentes dos novos contatos. Há grande quantidade de secreções das glândulas cervicais, com eliminação de muco e, eventualmente, mesclado de sangue; encurta-se a porção vaginal do colo; inicia-se a percepção, por vezes dolorosa, das metrossístoles intermitentes do útero, com espaços que passam a ser frequentes e contrações que se intensificam, prenunciando a deflagração do parto (dolores praeparantes). A atividade uterina, presente desde o início da
gravidez, se mantém reduzida até 30 semanas, ficando, sobretudo, limitada a pequenas áreas da matriz. Passado esse período, vai crescendo paulatinamente, com aumento gradual, especialmente após 36 semanas, como consequência do incremento, na intensidade e na frequência das contrações de Braxton-Hicks, apresentando melhor coordenação e envolvendo áreas cada vez maiores. No pré-parto, acentua-se o amolecimento do colo, combinado ao apagamento, que anuncia a incorporação da cérvice ao segmento inferior, e caracteriza-se a maturidade, a ser avaliada clinicamente com a rotina dos exames vaginais. No amadurecimento da cérvice, a relaxina apresenta função relevante; trata-se de um polipeptídio hormonal produzido pelo corpo lúteo, pela decídua e pelo cório. Em todo o curso da gravidez, a relaxina também auxilia as transformações do tecido de conexão, peculiares ao ciclo gestativo, consignadas em muitos locais anatômicos, servindo também de mediador da dilatação cervical e das alterações histológicas coincidentes com o amadurecimento progressivo do colo, e que não se distinguem das induzidas artificialmente pelas prostaglandinas. Além disso, é importante ressaltar a orientação e o abaixamento do colo, posto que o parto só tem início com essa porção da matriz posicionada no centro do eixo vaginal, após ou no momento de sua descida em relação à fenda vulvar. O falso trabalho de parto e as contrações dolorosas do pré-parto são quadros clínicos frequentes no final da gravidez; apresentam em comum as metrossístoles, de ritmo irregular e sem coordenação, que, pelo fato de não produzirem modificações do colo, são um diferencial no diagnóstico do verdadeiro trabalho. Assim, é difícil e, muitas vezes, até mesmo impossível determinar o exato momento do início do parto, que poderá começar de modo gradual, quase insensível. Há quem chame fase latente o final do pré-parto ou o início do trabalho, quando as contrações uterinas, embora rítmicas, não determinam ainda a dilatação progressiva do colo.
■ Diagnóstico do trabalho de parto Clinicamente, o diagnóstico do início real do parto nem sempre será estabelecido facilmente. É necessário considerar o trabalho parturiente como síndrome: os elementos que a compõem não têm, isoladamente, valor absoluto e somente o conjunto deles é fiador da precisão. De maneira esquemática, podem ser considerados: • Contrações dolorosas, rítmicas (no mínimo, duas em 10 min), que se estendem a todo o útero e têm duração de 50 a 60 s. Doze contrações por hora (2/10 min) é sinal importante de trabalho de parto verdadeiro ou iminente • A fase ativa do parto pode não ter se iniciado com 5 cm de dilatação em multíparas e até com dilatação maior em nulíparas • Formação da bolsa-das-águas • Perda do tampão mucoso, denunciando o apagamento do colo; são subsídios diagnósticos a
serem discutidos adiante.
■ Fase de dilatação (ou 1o período) Inicia-se a fase de dilatação com as contrações uterinas dolorosas (que começam a modificar ativamente a cérvice) e termina quando a sua ampliação está completa (10 cm). Cerca de 70% das parturientes referem dor da contração uterina no hipogástrio, 20% na região sacra e 10% em ambos os lugares. O colo dilata-se graças ao efeito de tração das fibras longitudinais do corpo, que se encurta durante as contrações uterinas, e de outros fatores convergentes (bolsa das águas e apresentação) (Figura 14.1). Às dolores praeparantes (dores preparatórias) do período premunitório sucedem-se as dolores praesagiantes (dores de presságio ou sinalização) da fase de dilatação, quando o trabalho de parto desencadeado é visível até para aqueles sem experiência diagnóstica. Durante o 1o período, abre-se o diafragma cervicossegmentário e o canal do parto se forma, isto é, a continuidade do trajeto uterovaginal, com dois fenômenos a predominar: o apagamento do colo (ou desaparecimento do espaço cervical), incorporado à cavidade uterina, e a dilatação da cérvice, ao fim da qual as suas bordas limitantes ficam reduzidas a simples relevos, aplicados às paredes vaginais. Portanto, o apagamento e a dilatação são fenômenos distintos, que, nas primíparas, se processam nessa ordem sucessiva (Figura 14.2). Nas multíparas, ocorre a simultaneidade dos dois: o colo se desmancha em sincronismo com a dilatação. O orifício externo do colo vai se ampliando, pouco e pouco, de modo a criar espaço em que o líquido amniótico será coletado, tumefazendo as membranas ovulares (âmnio e cório), descoladas do istmo. A bolsa das águas é o polo inferior do óvulo; a princípio, ela se insinua pelo orifício interno do colo, cujos lábios transmitem a onda contratural, mantém-se tensa no momento da contração, relaxando-se nos intervalos. Ao iniciar-se o 1o período, passa a ter contato cada vez mais direto com a cérvice e, à semelhança de cone, interpõe-se entre as bordas.
Figura 14.1 ■ Dilatação do colo. Representou-se, esquematicamente, a convergência dos fatores que a condicionam: tracionamento do segmento inferior e do colo pela contração do corpo do útero; ação direta da apresentação, recoberta ou não pela bolsa das águas.
Em 80% dos casos, a ruptura (amniotomia), com evasão parcial do conteúdo líquido do óvulo, ocorre no final da dilatação ou no início da expulsão. Com relação à cronologia, as rupturas âmnicas são consideradas prematuras quando não houver trabalho de parto; precoces, no início do parto; oportunas, quando ocorrem ao final da dilatação; e tardias, quando sobrevêm concomitantes à expulsão do feto, que, ao nascer envolto pelas membranas, é chamado feto empelicado. Ainda com relação às rupturas, é possível classificá-las como espontâneas, quando ocorrem sem envolvimento médico; provocadas ou artificiais, quando decorrem da ação direta do parteiro (utilizando dedo ou instrumentos); e intempestivas, quando acarretam prolapsos, procidências ou escape quase total do líquido amniótico. A ruptura das membranas que ocorre no parto pode ser atribuída ao enfraquecimento generalizado, atuando as contrações uterinas e o repetido estiramento.
■ Fase de expulsão (ou 2o período) Inicia-se quando a dilatação está completa e se encerra com a saída do feto. Caracteriza-se, fundamentalmente, pela associação sincrônica às metrossístoles, da força contrátil do diafragma e da parede abdominal, cujas formações musculoaponeuróticas, ao se retesarem, formam cinta muscular forte, que comprime o útero de cima para baixo e de frente para trás. No curso do 2o período, ocorre a sucessão das contrações uterinas, cada vez mais intensas e frequentes, com intervalos progressivamente menores, até adquirirem o aspecto subintrante de cinco contrações em cada 10 min. Por efeito das metrossístoles, o feto é propelido através do canal do parto, franqueia o colo dilatado e passa a distender lenta e progressivamente a parede inferior do diafragma vulvoperineal, depois de palmilhar a vagina (Figura 14.3). São movimentos de reptação, de vaivém, que a apresentação descreve ao impulso das metrossístoles e da musculatura do abdome. Ao comprimir as paredes vaginais, o reto e a bexiga, o polo inferior do feto provoca, por via reflexa, o aparecimento das contrações voluntárias da prensa abdominal. Assim, origina-se a “vontade de espremer”, os puxos, movimentos enérgicos da parede do ventre, semelhantes aos suscitados pela evacuação ou micção penosas.
Figura 14.2 ■ A. Apagamento do colo em primíparas nas proximidades do parto (1, 2, 3 e 4) e apagamento e dilatação do colo em multíparas em pleno trabalho de parto (5, 6, 7 e 8). B. Apagamento e dilatação do colo em multíparas durante o trabalho de parto.
Para maior eficiência do período expulsivo, é necessário que dois fatores estejam presentes e somados: sístole involuntária do útero e contração voluntária da prensa abdominal. A parturiente imobiliza o tórax, firmando os braços em pontos de apoio no leito; interrompe a respiração e abaixa o diafragma como nos movimentos expiratórios violentos, executando forte contração da musculatura abdominal. Por efeito de tal esforço, a apresentação desce pelo canal do parto, cumprindo os tempos preliminares do mecanismo de expulsão; passa a pressionar o períneo, que se deixa distender, encosta-se às paredes do reto, elimina o conteúdo ocasional e turgesce o ânus. Além disso, a urina flui, aos jatos, pelo meato. Inter faeces et urinas nascimur (o nascimento se dá entre fezes e urina).
Figura 14.3 ■ A expulsão.
Aos poucos, a vulva se entreabre, dilata-se lentamente e se deixa penetrar pela apresentação, coifada ou não; após muito esforço, o feto se desprende do leito materno, ao qual ficará ligado unicamente pelo cordão umbilical. Ocorre a eliminação do líquido amniótico remanescente na cavidade uterina, mesclado a uma quantidade pequena de sangue, decorrentes do parto. Em seguida, o útero se retrai, ficando o seu fundus na cicatriz umbilical. A parturiente, exausta pelos esforços despendidos, sente uma euforia compensadora após o trabalho de parto, seguida de relaxamento geral (fase de repouso clínico), apesar da coexistência de contrações uterinas, que persistem com a mesma intensidade e frequência, mas indolores.
■ Duração normal do trabalho de parto Na primíparas, a fase latente dura, em média, 20 h; nas multíparas, 14 h. O parto propriamente dito (fase ativa) tem o período de dilatação completo em torno de 12 h, nas primíparas, e de 7 h nas multíparas; a expulsão leva, respectivamente, 50 e 20 min. Contudo, com a assistência ativa à parturição (descrita a seguir), a maioria dos partos normais ocorre dentro de 6 h. Em mulheres sem analgesia, por exemplo, é normal considerar a duração do período expulsivo de até 2 h em primíparas e 1 h em multíparas. Sob anestesia peridural, essa duração se eleva para 3 h em primíparas e 2 h em multíparas. [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2003].
■ Assistência ao parto A assistência ao parto em domicílio não é recomendável, pelo fato de ser aleatória, cheia de riscos imanentes e incapaz de alcançar, por falta de recursos imediatos, os objetivos básicos da Obstetrícia: amparar, com razoável segurança, o binômio materno-fetal. A espera resignada e fatalista do parto vaginal pôde ser modificada com o desenvolvimento da fisiopatologia da contração uterina, que possibilitou governá-lo, encurtar-lhe as fases, monitorá-lo
e induzi-lo; com o aperfeiçoamento da anestesiologia, passou a ser indolor e, por meio dos préstimos da operação cesariana, cristalizada em técnica de simplicidade extrema e resultados insuperáveis. A clássica arte dos partos transfigurou-se e, tendo-se despojado da operatória de extração, sua característica única, os atos extrativos foram limitados, disciplinados e amenizados. Non vis sed arte (a arte em detrimento da força). Mais de 5 milênios decorreram até que a Obstetrícia moderna pudesse sublimar-se ao que atualmente é na mulher civilizada: a proteção integral à grávida e a seu concepto, em todo o ciclo gestatório e na assistência ao parto.
■ Assistência à dilatação ▶ Cuidados iniciais. Serão dispensados cuidados imediatos à parturiente, incluindo higiene corporal e fornecimento de vestuário apropriado. Anteriormente, recomendava-se tricoxisma do monte de Vênus e da genitália externa, bem como enema intestinal. A tricotomia era ultimada, a fim de reduzir-se a incidência de infecções na episiotomia, bem como para facilitar a episiorrafia e propiciar melhor higiene no pós-parto. Por não haver aumento da morbidade nas pacientes não submetidas a esse procedimento, recomendase que ele apenas seja realizado com a solicitação da parturiente. Da mesma maneira, o enteroclisma, que era realizado para diminuir o risco de infecção perineal e neonatal e exercer efeito benéfico junto às contrações uterinas e à descida do feto pelo desfiladeiro pélvico, mostrou ser incapaz de diminuir a incidência de infecções maternas ou fetais, além de propiciar desconforto às pacientes e onerar a assistência médica prestada, devendo ser realizado quando acertado previamente com a paciente. Reconhecemos que durante o trabalho de parto, o parto e o puerpério, em toda a estada na maternidade, a presença de um acompanhante à escolha da parturiente oferece conforto psíquico, segurança e estímulo, além de ser um elemento alentador, contribuindo na assistência ao parto. As maternidades devem se adequar física e logisticamente para a recepção desse acompanhante, com a elaboração de protocolos que discriminem a atuação desse novo participante na assistência ao parto. ▶ Toque vaginal. Trata-se do toque vaginal uni ou bidigital. Para efetuá-lo – e jamais dispensando os cuidados prévios de antissepsia e de assepsia, da região vulvoperineal e das mãos do parteiro, essas corretamente enluvadas – afastam-se as ninfas e introduzem-se na vagina os dedos indicador e médio, ou apenas o primeiro, untados em vaselina esterilizada ou sabão líquido. O exame procurará explorar sucessivamente: o colo (apagamento, dilatação, orientação e consistência), a bolsa das águas e a apresentação (posição, variedade, altura e proporcionalidade à bacia, além de outros detalhes como a flexão e o assinclitismo). Ao toque, as diversas partes fetais apresentam caracteres específicos, o que possibilita sua identificação. A apresentação cefálica mostra-se como corpo duro, arredondado e liso, em que se percebem as suturas e fontanelas.
No decurso do trabalho de parto, os ossos da abóbada craniana se sobrepõem, uns acavalando os outros, as suturas não são percebidas como espaço membranoso, mas se exibem como cristas ósseas; das fontanelas, apenas a bregmática tem essas características de espaço membranoso, sentindo-se o lâmbda como superfície angular. São considerados fenômenos plásticos, fisiológicos, de redução de diâmetros, favorecendo a acomodação e a migração do polo cefálico. O dedo explorador percorre a área ocupada pela região fetal que se apresenta até encontrar a linha de orientação, que varia com o caso: sutura sagital, nas apresentações de cabeça fletida. Em seguida, procura-se reconhecer o ponto de referência fetal, que, nas cefálicas fletidas, é o lâmbda ou pequena fontanela. Aos mais jovens na área de Obstetrícia, serve de alento a sentença: os dedos, com o hábito, se alongam. Do mesmo modo, o número de toques deve ser reduzido ao mínimo necessário, sendo difícil estabelecer regras para todos os casos. A evolução clínica da parturição ditará a conduta dos exames vaginais e os intervalos entre eles. Toques frequentes e sem apuro técnico são traumatizantes para os tecidos maternos, provocam edema da cérvice e propiciam a infecção ovular e da genitália. ▶ Altura da apresentação. No acompanhamento da evolução do parto, é importante observar, juntamente com a dilatação cervical, a altura da apresentação. Nas primíparas, ao início do trabalho, a apresentação está no nível das espinhas ciáticas (nível “0”) e diz-se que está insinuada. Nas multíparas, a insinuação ocorre somente no fim da dilatação ou no começo da expulsão; durante a maior parte do trabalho, a apresentação permanece alta; e está baixa quando, após ter sofrido a rotação interna (sutura sagital no eixo anteroposterior da bacia), tem contato com o períneo, o que ocorrerá no período de expulsão (Figura 14.4).
Figura 14.4 ■ A altura da apresentação. A primeira cabeça não está insinuada (alta), a segunda está insinuada e a terceira é considerada baixa. (Adaptada de Greenhill, J. P. Obstetrics, 13th ed., Philadelphia, Saunders, 1966.)
Após o toque, retirados os dedos, é sempre recomendável verificar as secreções que tingem a luva nas extremidades digitais, visto que, assim, será possível identificar líquido meconial ou sangue com odor diverso, o que possibilitará o diagnóstico do sofrimento fetal, de síndromes hemorrágicas ou de infecção. ▶ Bolsa das águas. Em geral, é fácil diagnosticar a ruptura das membranas. A gestante,
nesse caso, percebe a perda líquida pela vagina, acusando-a, de maneira incisiva, quando surge antes do início do trabalho de parto. Empurrando-se levemente a apresentação para cima, durante o toque, jorra o líquido amniótico nas amniorrexes consumadas; se as membranas estiverem intactas, ele se acumula entre essas e o polo fetal, ficando mais tensas durante as contrações uterinas. Por meio do tato, é possível distinguir a superfície do couro cabeludo ou as pregas genitais (na apresentação pélvica), da superfície lisa das membranas. As dificuldades despontam se ela é chata, diretamente aplicada contra a apresentação ou presente a bossa serossanguínea. O obstetra deve certificar a integridade das páreas, examinando-as durante as metrossístoles, antes de praticar a amniotomia, sobretudo a instrumental, causadora de incidentais tocotraumatismos do concepto. É nossa opinião contrária à generalização da amniotomia. A ruptura das membranas deve ser realizada apenas quando houver alguma indicação formal como: na necessidade de finalizar o parto; nas distocias funcionais; ao avaliar o líquido amniótico e a variedade de posição (quando não se consegue fazê-lo estando a bolsa íntegra) ou programando-se parto operatório (como deverá ocorrer nas cardiopatas, por exemplo). De acordo com a evidência atual, a ruptura artificial não deve ser realizada de rotina, visto que a amniotomia isolada não se mostrou efetiva para acelerar o parto que progride lentamente, bem como aumentou a incidência de cesariana e de cardiotocografia anormal. Indicada a amniotomia, será realizada durante a contração uterina, quando a bolsa das águas retesar-se. Na falta do instrumento próprio (amniótomo), é possível utilizar um dos ramos da pinça de Pozzi, que se introduz cuidadosamente protegido pelo dedo e deve romper o saco âmnico o mais altamente possível, principalmente quando houver bolsa volumosa, muito tensa, ou a apresentação estiver móvel, acima do estreito superior. Nessa oportunidade, é útil fixá-la, pressionando o fundo do útero ou imobilizando o polo apresentado, enquanto o dedo permanece junto ao orifício da ruptura, para impedir o deflúvio precipitado do líquido amniótico, a carrear, em alude, cordão ou membros do feto. O líquido amniótico que escoa deve ser convenientemente examinado. Corado por mecônio, esverdeado, indica sofrimento do feto, presente ou já ocorrido. ▶ Vitalidade do concepto. A auscultação dos batimentos cardíacos do feto (bcf) é um procedimento indispensável para examinar a vitabilidade durante o trabalho de parto. Os ruídos do coração constituem a única manifestação clínica objetiva de funcionamento do aparelho circulatório do concepto; vigiando-os, será possível diagnosticar o sofrimento e instituir as medidas pertinentes (Capítulo 43). Em geral, para a percepção e a contagem das revoluções cardíacas do concepto, empregava-se o estetoscópio de Pinard, atualmente em desuso, substituído pelo sonar-Doppler, e a ausculta é feita, na fase de dilatação, 30 s após o término da contração, a cada 30 min. Na pausa intercontrátil, o número de ruídos mantém-se, em geral, entre 110 e 160 bpm, em média 140 bpm. ▶ Alimentação. Durante o pré-natal, a paciente deve ser orientada a perceber a sintomatologia clínica da chegada do trabalho de parto. Em geral, as dolores praeparantes deveriam sinalizar a proximidade do parto e a necessidade de ingerir apenas alimentos leves,
devendo-se abster de grandes refeições. No momento do trabalho de parto, os alimentos sólidos ficam proibidos, devidos aos riscos inerentes às anestesias em tais condições. Nas gestantes de baixo risco, poderá ser permitida a ingesta de pequenas quantidades de líquidos claros (água, sucos de fruta sem polpa e chás), em comum acordo entre o obstetra e o anestesista. Contudo, nos casos com maior risco para cesariana (obesas, diabéticas, com via aérea difícil), o jejum parece ser a melhor opção. Se houver necessidade de hidratação (dias quentes, muitas horas de trabalho de parto), são utilizadas soluções glicosadas a 5 ou 10%, por via venosa. Não há, contudo, evidência que suporte o jejum universal nas parturientes. ▶ Deambulação. A parturiente poderá locomover-se durante o período de dilatação, até a ruptura das membranas, e desde que não esteja sob analgotocia. Depois, será mais prudente permanecer no leito, em decúbito lateral, para melhoria das contrações uterinas e da oxigenação fetal. ▶ Cateterismo vesical. Impossível a micção espontânea e se houver presunção de bexiga repleta. Não esquecer os rigores da assepsia e da antissepsia (perigo de infecção ascendente). A bexiga cheia, que aumenta a dor durante as contrações, ocasiona distocias e várias dificuldades durante os atos operatórios e no decurso do parto espontâneo. ▶ Faixas abdominais. São benéficas quando é necessário corrigir posições uterinas anômalas; nas multíparas, em maior número, a matriz fica frequentemente desviada para os lados, o que provoca a falta de convergência entre o seu eixo longitudinal e o canal da parturição. ▶ Ocitocina. Embora acelere o trabalho de parto, aumentando a intensidade e a frequência das contrações uterinas, seu uso deve ser limitado aos casos em que está hipoativa a dinâmica da matriz; são recomendações do Centro Latino-Americano de Perinatologia e Desenvolvimento Humano, que visam preservar a vitabilidade fetal durante o parto. A perfusão venosa é a única a ser utilizada. Se diluirmos 2 U de ocitocina, ou seja, 2.000 mU em 1.000 mℓ (ou 1 U em 500 mℓ) e da solução administrarmos 10 gotas (1/2 mℓ) por minuto, daremos 1 mU/min, isto é, 1 U de perfusão. Qualquer perfusão venosa deve ser iniciada com 1 mU/min, passando-se, decorrido algum tempo, e se necessário, para 2 mU/min (20 gotas), 4 (40 gotas) e até 8 mU/min (80 gotas); doses maiores são consideradas imprudentes. A resposta do útero à ocitocina, no período de dilatação, é quase imediata. Nunca será irrelevante insistir sobre a necessidade imprescindível de observação atenta da perfusão, repetindo-se periodicamente a contagem do gotejo, a variar constantemente; é fundamental averiguar, repetidamente, a frequência das contrações e sua duração, bem como auscultar, cuidadosamente, os bcf. A sensibilidade da matriz varia muito, individualmente. Caso não seja possível registrar a pressão amniótica, pode-se inferir da contratilidade, anotando o número e a duração das contrações. Sua frequência possibilita avaliar a eficácia da perfusão venosa de ocitocina; impedindo-se elevação superior a 4/10 min faz-se, contemporaneamente, a profilaxia do sofrimento do concepto. Pela duração da metrossístole, avalia-se, indiretamente, a intensidade contratural (normal: 50 a 60 s). A coordenação é o elemento mais difícil de deduzir pela observação clínica, sem o auxílio do
registro gráfico da pressão amniótica. Contudo, será rastreada a incoordenação, pelas contrações curtas e de frequência irregular. É sempre válido relembrar o preceito de Greenhill se tratando de ocitócico: “é uma substância mais perigosa que a dinamite.” ▶ Meperidina. A meperidina ou petidina é utilizada preferentemente pela via intramuscular, na dose de 50 mg, com um intervalo de, no mínimo, 2 h. Ao contrário do que se pensava, a depressão do recém-nascido torna-se maior quando o medicamento é empregado distante do nascimento. As repercussões ominosas no recém-nascido são menores se a administração da meperidina for efetuada nas duas últimas horas que antecedem o final do parto. De qualquer modo, não perturbam metabolicamente o nascituro, embora, nos casos em que a dose do fármaco utilizado foi em grande volume, possa haver comprometimento na função respiratória. A meperidina, que não tem qualquer ação inibidora na contratilidade uterina, pode, ao contrário, coordená-la, pela sedação que determina. ▶ Bloqueio combinado raquidiano-peridural (BCRP). Consiste na injeção de opioide subaracnóideo e a passagem de cateter peridural no mesmo procedimento e, de preferência, por uma única punção (técnica conhecida como agulha através de agulha ou coaxial) (Figura 14.5). Em geral, inicia-se com 4 a 5 cm de dilatação. O BCRP reúne o início rápido da raquidiana com a extensão e a duração do bloqueio por intermédio do cateter peridural. A adição de pequeno volume de bupivacaína melhora a qualidade do bloqueio e possibilita a redução do opioide da mistura analgésica raquidiana, mas pode impedir a deambulação. Classificam-se como complicações do BCRP: vômito, prurido, hipotensão, retenção urinária e o período expulsivo prolongado, exigindo maior emprego do fórceps.
■ Assistência à expulsão Ao iniciar o 2o período, a parturiente, em geral, fica agitada e a maioria delas apresenta o desejo de defecar; modifica-se o caráter das metrossístoles, que aumentam de frequência e de intensidade, somando-se ainda a contração voluntária da prensa abdominal. Quando a mulher se esforça espontaneamente, a dilatação se completa e a apresentação fica bem penetrada na escavação. Como se originam de músculos estriados da parede do abdome, as contrações expulsivas estão, em parte, submetidas à vontade; assim, no começo do 2o período, a parturiente é capaz de comandá-las, intensificando ou abrandando-as.
Figura 14.5 ■ Vias nervosas da dor, no parto, e as anestesias de condução.
Se, no 1o período, a paciente pode assumir a posição que melhor lhe convier, deambular, sentar-se ou recostar-se, isso não ocorre no 2o período. Tem-se tentado reinventar anacronismo, usando, por ocasião da expulsão, posição sentada, em cadeira obstétrica, ou até colocando a paciente de cócoras. Nada justifica o modismo, que atrapalha a assistência correta da expulsão, dificultando, ao extremo, o emprego do monitoramento e da episiotomia. É, de resto, procurar imitar a assistência ao parto nas sociedades primitivas, em que a mulher paria em posição vertical e, posteriormente, nas cadeiras obstétricas, o que tanto condenou Mauriceau, o maior parteiro de seu tempo. Embora evidências mostrem que os partos de cócoras e na água não cursem com maior índice de lacerações perineais, não os recomendamos. Por ocasião da expulsão, a paciente deverá ser colocada na posição de dar à luz; decúbito dorsal com flexão máxima das coxas sobre o abdome e abdução dos joelhos (Figura 14.6). Tratase da postura de Laborie-Duncan, que objetiva ampliar o estreito inferior e, escancarando o períneo e a vulva, vai favorecer a libertação do concepto e as intervenções obstétricas vaginais. Nas bordas laterais, as mesas de parto contêm braçadeiras, para apoio das mãos, e perneiras metálicas, providas de estribos, destinadas à sustentação dos membros inferiores. A vitabilidade do concepto será acompanhada auscultando-lhe os batimentos cardíacos a cada 10 min. Com a parturiente em posição, é feita a antissepsia da região perineal (polivinil ou similar); a seguir, colocam-se os campos esterilizados de maneira a isolar, cobrindo-as, todas as partes maternas, exceto a vulva. O parteiro se prepara com gorro, máscara (cerrando nariz e boca), avental e luvas esterilizadas. ▶ Anestesia locorregional. Quando se pretende terminar o parto com bloqueio anestésico
locorregional, é conveniente empregar analgesia durante o 1o período, para elevar o limiar da dor (meperidina). Inicialmente, procede-se ao bloqueio troncular do nervo pudendo interno, na extremidade da espinha ciática; antes da introdução da agulha, o local é meticulosamente reparado pelo indicador, colocado na vagina; feito isso, realiza-se a deposição de 10 mℓ do anestésico; no lado oposto, procede-se da mesma maneira. É necessário infiltrar a metade inferior da vulva, a fáscia, por cima dos músculos levantadores do ânus, os próprios levantadores e a cunha perineal. A substância anestésica será distribuída nessa zona, com movimentos de avanço e recuo, rigorosamente em leque, sempre injetando a solução, conforme mostram as linhas pontilhadas da Figura 14.7. Pratica-se botão intradérmico na rafe mediana, equidistante da fúrcula e do ânus, e por ele introduz-se a agulha, protegida por dois dedos vaginais, no espaço retovaginal. A zona de incisão da episiotomia deve ser especificamente anestesiada.
Figura 14.6 ■ Posições que modificam a amplitude da bacia. I, flexão moderada da perna sobre a coxa, e dessa sobre o tronco (posição de Bonnaire-Bué). II, exagero da flexão que aumenta o diâmetro anteroposterior do estreito inferior (posição de Laborie-Duncan). III, posição de Crouzat-Walcher, que amplia o estreito superior. (Inspirada em Lorca, C. Tratado práctico de operaciones obstétricas. Madrid, Científico-Médica, 1948.)
Figura 14.7 ■ Anestesia locorregional do períneo.
Em geral, o emprego de 40 a 50 mℓ de solução de lidocaína (xilocaína) a 1% ou de cloridrato de procaína (novocaína), também a 1%, em cada lado do períneo, proporciona bloqueio anestésico satisfatório com relaxamento do assoalho pélvico. Salienta-se a importância de, antes de iniciar a infiltração anestésica, proceder-se à aspiração prévia, a fim de evitar punção acidental de vaso. ▶ Bloqueio combinado. Utilizado já no período de dilatação, serve para a anestesia do período expulsivo. ▶ Episiotomia. Proteção ao períneo. A passagem do feto pelo anel vulvoperineal será raramente possível sem lesionar a integridade dos tecidos maternos, com lacerações e rupturas das mais variadas, a condicionarem frouxidão do assoalho pélvico. Na proteção do períneo, não se deve prolongar por tempo excessivo a contrapressão sobre o polo apresentado do feto; assim, evita-se lesão aparente, mas pode-se determinar outra, oculta, igualmente grave; ficam comprometidos não apenas os músculos da região, como também o tecido conjuntivo do aparelho intrafascicular e intramuscular, parte fundamental da sustentação do aparelho genital feminino. A episiotomia é uma incisão cirúrgica vulvoperineal que tenciona impedir ou diminuir o trauma dos tecidos do canal do parto, favorecendo a descida e a liberação do feto. O momento adequado para executar a episiotomia depende de prever-se, com segurança, o fim da expulsão; o início de sua execução ocorre antes que a apresentação esteja a distender acentuadamente o períneo, evitando não apenas a lesão da pele, mas dos planos musculoaponeuróticos comprometidos pelas soluções de continuidade efetuadas de dentro para fora.
Figura 14.8 ■ Episiotomia em suas principais modalidades: mediana (perineotomia) e mediolateral.
A episiotomia, quase sempre, é indispensável nas primiparturientes e nas multíparas nas quais tenha sido anteriormente praticada. Feita com tesoura ou bisturi, poderá ser mediana (perineotomia) e mediolateral, sendo esta a de nossa preferência (Figura 14.8); a ferida incisa, de mais fácil e segura recomposição, substitui-se à lesão contusa da ruptura. Caso a previsão esteja correta, o parto deve ser feito logo após a episiotomia. Durante a espera, é necessário comprimir as bordas da ferida para evitar perdas sanguíneas; os vasos calibrosos seccionados sofrerão laqueadura imediata. Evita-se o prolongamento da episiotomia e sua extensão a órgãos vizinhos, impondo a lenta e progressiva saída da apresentação (Figura 14.9). Procedimento denominado manobra de Ritgen, que consiste na aplicação de pressão moderada ao queixo fetal (nas apresentações em OP) pela mão esquerda do parteiro, coberta com uma compressa estéril, enquanto a região suboccipital da cabeça fetal é segurada contra a sínfise pela mão direita, a fim de evitar movimento abrupto de desprendimento cefálico e lesão nos órgãos maternos. Estudos norte-americanos recentes mostraram que a episiotomia não diminui o risco de incontinência urinária nem assegura efeito protetor ao recém-nascido. A episiotomia mediana eleva o risco de extensão para o reto e o comprometimento do esfíncter externo do ânus (laceração do 3o e do 4o grau), e, portanto, de incontinência fecal tardia.
Figura 14.9 ■ Proteção ao períneo.
Tanto a episiotomia mediana quanto a mediolateral aumentam a dispareunia quando comparadas a lacerações espontâneas. A episiotomia mediolateral pode diminuir o risco de lacerações perineais graves. Não há nada conclusivo a respeito da episiotomia mediolateral com relação à disfunção do assoalho pélvico ou ao prolapso. Enquanto o declínio da episiotomia mediana é evidente, nada é conclusivo com relação à mediolateral. A episiotomia está indicada por razões maternas ou fetais, para evitar lacerações do trajeto e facilitar ou agilizar o parto difícil; é, por certo, obrigatória no parto operatório. Estatística recente mostra que, nos EUA, a episiotomia mediana é utilizada em apenas 30 a 35% dos partos vaginais. ▶ Manobra de Kristeller. Por vezes, a expressão do fundo do útero poderá ser efetuada por ajudante qualificado. Esta técnica é denominada manobra de Kristeller. Não é o procedimento inofensivo. Desarranja a contratilidade uterina, produz hipertonia, repercutindo ominosamente na vitabilidade fetal; pode culminar inclusive com descolamento prematuro de placenta e embolia amniótica. ▶ Fórceps de alívio. Havendo o menor impedimento à progressão da cabeça, é aconselhável terminar o parto a fórceps, uma intervenção profilática cujos benefícios serão apontados no Capítulo 52, dedicado à tocurgia, fórceps de alívio, complementar ou de desprendimento. Ao final da expulsão, por estar extremamente difundida a administração de analgotocia que afasta ou estorva a possibilidade de esforços expulsivos maternos, passou a ser muito frequente o emprego do fórceps baixo.
Figura 14.10 ■ Assistência ao desprendimento dos ombros. Libertação do ombro anterior (A) e do ombro posterior (B). Não é necessário acentuar que as trações devem ser delicadas para não traumatizar o nascituro. (Adaptada de Greenhill, J. P. – op. cit.)
▶ Assistência ao desprendimento dos ombros. Após o nascimento do polo cefálico, explorase a região cervical do concepto em busca de circulares do cordão que, presentes, serão desfeitas ou seccionadas. Finalizada a rotação externa da cabeça, o parteiro apreende com ambas as mãos a apresentação, traciona para baixo – com objetivo de liberar o ombro anterior (Figura 14.10 A) – e depois para cima, auxiliando a saída do posterior (Figura 14.10 B). Durante a expulsão do ombro anterior, ou logo que for possível, eis o momento adequado para a injeção IM de 10 UI de ocitocina, com o que se consegue reduzir as perdas sanguíneas no secundamento, apressando a dequitação. ▶ Revisão da vagina e do colo. Deve ser sistemática e não apenas quando o parto for cirúrgico ou ocorrer sangramento anormal. Em geral, a revisão é realizada quando o secundamento é finalizado. Se não houver hemorragia ou ruptura de extensão considerável, rasgaduras pequenas não requerem maiores cuidados, visto que, em geral, ficam muito reduzidas quando são superados o edema e a congestão das primeiras 24 h. É aconselhável, no entanto, nas de maior importância, que mesmo exangues, seja feita a síntese no momento da revisão do colo, sendo boa prática procedida imediatamente depois de completado o parto, como profilaxia de futuras lesões. ▶ Episiorrafia. Em geral, o reparo da episiotomia é feito após o secundamento, evitando que os pontos sejam rompidos durante o parto da placenta, especialmente ao utilizar a extração manual. A sutura inicia pelo ângulo superior da ferida, na vagina (Figura 14.11); usamos pontos
separados de categute no 2-0, cromado, na mucosa vaginal, no plano muscular e no tecido conjuntivo difuso. A pele é aproximada por pontos simples ou de Donati, do mesmo fio, que se soltam espontaneamente em alguns dias.
■ Partograma Partograma é a representação gráfica do trabalho de parto que possibilita acompanhar a sua evolução, documentar, diagnosticar alterações e indicar a tomada de condutas apropriadas para a correção dos desvios, evitando intervenções desnecessárias. A curva de dilatação cervical se processa de forma ascendente, com menor velocidade de dilatação inicialmente. No final, após 4 cm de dilatação, a velocidade aumenta espontaneamente. Essa diferenciação na velocidade da cervicodilatação caracteriza a fase latente (inicial) e a fase ativa (final) (Figuras 14.12 e 14.13). Na fase latente do trabalho de parto, a conduta é expectante. Em muitas mulheres, a duração é superior a 20 h e os ocitócicos devem ser evitados pelo risco aumentado de cesárea, decorrente do colo desfavorável. Na forma mais comum de montagem do partograma, utiliza-se papel quadriculado, colocando nas abscissas (eixo X) o tempo em horas e, nas ordenadas (eixo Y), em centímetros, a dilatação cervical à esquerda e a descida da apresentação à direita. Para a descida da apresentação, considera-se o plano zero de DeLee ou o correspondente plano III de Hodge – espinhas ciáticas do estreito médio da bacia; acima desse ponto, estão os valores negativos e, abaixo, os positivos (Figura 14.14). Na construção do partograma, existem duas linhas paralelas denominadas linhas de alerta e de ação. Quando a dilatação atinge ou cruza a linha de alerta, isso significa a necessidade de melhor observação clínica; a intervenção médica torna-se necessária somente quando a curva de dilatação cervical atinge a linha de ação, o que não significa conduta cirúrgica. Para a construção do partograma, algumas observações são necessárias: • No partograma, cada divisória corresponde a 1 h na abscissa (eixo X) e 1 cm de dilatação cervical e de descida da apresentação na ordenada (eixo Y) • Inicia-se o registro gráfico quando a parturiente estiver na fase ativa do trabalho de parto (2 a 3 contrações generalizadas em 10 min, dilatação cervical mínima de 3 a 4 cm)
Figura 14.11 ■ Episiorrafia. A. Incisão, entreaberta, mostrando os diversos planos a suturar. B. Sutura da mucosa vaginal, em pontos separados, principiando pelo ângulo superior. C. É o tempo seguinte à síntese muscular, não representada, e ao fechamento do tecido subcutâneo, também em pontos separados. D. Sutura da pele com pontos simples ou de Donati.
Figura 14.12 ■ Curva de Friedman de evolução do parto: dilatação/tempo. Valores médios normais em primíparas. (De Friedman, E.A. In Reid, D. E. & Barton, T. C. Controversy in Obstetrics and Gynecology. Philadelphia, Saunders, 1969.)
Figura 14.13 ■ Curva de evolução da cervicodilatação. (Ministério da Saúde, 2001.)
Figura 14.14 ■ Modelo da ficha do partograma, respectivas linhas de alerta e de ação e outros registros de interesse no acompanhamento do trabalho de parto. (Ministério da Saúde, 2001.)
• Os toques vaginais são realizados a cada 2 h. Em cada toque, deve-se anotar a dilatação cervical, a altura da apresentação, a variedade de posição e as condições da bolsa das águas e
do líquido amniótico; quando a bolsa estiver rompida, por convenção, registra-se a dilatação cervical com um triângulo e a apresentação e a respectiva variedade de posição são representadas por uma circunferência • O padrão das contrações uterinas e dos bcf, a infusão de líquidos, fármacos e o uso de analgesia devem ser devidamente registrados • A dilatação cervical inicial é marcada no ponto correspondente do gráfico, traçando-se na hora imediatamente seguinte a linha de alerta e, em paralelo, 4 h após, sinala-se a linha de ação, desde que a parturiente esteja na fase ativa de parto (no mínimo, 1 cm/h de dilatação). As principais características do parto normal são: • Início espontâneo • Apresentação cefálica de vértice, única • Gravidez a termo (37 a 42 semanas) • Nenhuma intervenção artificial • Duração < 12 h em primíparas e < 8 h em multíparas. Na evolução normal do trabalho de parto, a curva de dilatação cervical se processa à esquerda da linha de ação; quando essa curva ultrapassa a linha de ação, trata-se de parto disfuncional (Capítulo 42).
■ Partograma de Zhang O partograma de Zhang (2010) foi construído para nulíparas. A duração cumulativa do parto desde a admissão até 10 cm de dilatação é mostrada por linhas em escada conectadas, representando o 95o porcentil (Figura 14.15). Cada dilatação específica na admissão (2, 3, 4, e 5 cm) apresenta a sua linha correspondente. Se a qualquer momento do 1o período a dilatação cruza para o lado direito do seu correspondente 95o porcentil, o parto pode ser considerado como protraído. O partograma de Zhang, ao contrário do partograma clássico (OMS), mostra que a duração do parto antes de 6 cm de dilatação é muito mais longa; no entanto, por outro lado, muito mais curta que 4 h após 6 cm. Os 95o porcentis para o 2o período do parto, em nulíparas, com ou sem anestesia peridural, são, respectivamente, de 3,6 e 2,8 h.
Figura 14.15 ■ Partograma de Zhang. Os 95o porcentis da duração do parto desde a admissão, em nulíparas, com feto único, a termo, com início espontâneo, desfecho vaginal e prognóstico neonatal normal. (De Zhang et al., 2010.)
Conclui-se: deixar a mulher em trabalho de parto por período mais longo que o estabelecido antes de 6 cm de dilatação pode concorrer para diminuir a incidência de cesárea.
■ Parto – 2013. A nova fronteira • Trabalhos recentes contestam a curva de Friedman, que estaria incorreta por décadas, no sentido de que a fase ativa do parto teria início, na maioria das multíparas, com 5 cm de dilatação e, nas nulíparas, um pouco mais tarde (Figura 14.16) • A duração do parto até 6 cm de dilatação é muito mais longa que no partograma clássico. Em consequência, com até 6 cm de dilatação, não procederia o toque vaginal a cada 2 h, uma vez que diagnosticar a parada da dilatação nesse pequeno intervalo de tempo pode ser incorreto • É ainda incerta a hora oportuna para a ruptura artificial das membranas (certamente, nunca antes de 6 cm) e não está ainda definida a segurança dos diversos protocolos de administração de ocitocina • Prolongar a duração normal do 2o período do parto por mais 1 h além do já estabelecido (3 h, para nulíparas; 2 h, para multíparas) tem sido criticado pelo risco de aumentar o prognóstico adverso materno e o fetal. O momento de iniciar os puxos maternos e o modo como realizá-los também são questões indefinidas.
Figura 14.16 ■ Curvas médias do parto por paridade em mulheres com gestação única, início espontâneo do parto, apresentação de vértice, que completaram o 1o período e os recém-nascidos foram vigorosos no Apgar de 5 min. (De Zhang et al., 2010.)
B. Secundamento Secundamento, ou 3o período do parto, também chamado decedura e delivramento, é o estágio da parturição que se processa após o nascimento do feto e se caracteriza pelo descolamento (dequitação ou dequitadura), descida e expulsão ou desprendimento da placenta e de suas páreas para fora das vias genitais. Quando as três fases que o constituem se processam de modo regular, é bem característico seu mecanismo.
■ Fisiologia O secundamento consta de três tempos fundamentais, os quais são descritos a seguir. ▶ Descolamento. Decorre, essencialmente, da retração do músculo uterino, após o parto fetal, e em consequência de suas contrações. Assim, reduz-se de maneira acentuada a superfície interna do útero, pregueando-se a zona de inserção da placenta, o que vai ocasionar o seu descolamento (Figura 14.17). A placenta se descola como se destacaria um selo colado a uma superfície elástica, previamente distendida, quando essa se retraísse. A decídua não fica passiva a esses fenômenos contráteis; cede, e se descola ao nível da zona não resistente (camada esponjosa). A separação da placenta nos limites da esponjosa se explica por esse mecanismo e também pela existência de processos degenerativos e necróticos que aí se iniciaram nas últimas semanas da gravidez. A clivagem tem continuidade em plena espessura da decídua parietal, que se destaca e sai com as membranas ovulares. No ponto em que se iniciou o descolamento, forma-se o hematoma retroplacentário, que não é indispensável nem a causa do fenômeno, e sim sua consequência. Expande-se por entre as paredes do útero e os cotilédones e poderá, em certas circunstâncias, favorecer a dequitadura da placenta a cada onda contrátil.
O descolamento da placenta ocorre de acordo com dois tipos de mecanismos: mecanismo de Baudelocque-Schultze e mecanismo de Baudelocque-Duncan. O mecanismo de Baudelocque-Schultze, cuja frequência é de 75%, ocorre quando a placenta inserida na parte superior do útero inverte-se, e se desprende pela face fetal, em formato de guardachuva (Figura 14.18). Nesse caso, o hematoma retroplacentário inicia-se no centro da inserção e fica prisioneiro da massa placentária, o que explica sua saída ulterior.
Figura 14.17 ■ Redução do local placentário após o parto do concepto. Acima, relações da placenta antes do parto fetal. Abaixo, depois da saída do concepto. (Adaptada de Hellman, L. M. & Pritchard, H. A. Williams Obstetrics, 15th ed., New York, Appleton, 1976.)
No mecanismo de Baudelocque-Duncan (25% dos casos), se a placenta estiver localizada na parede lateral do útero, a desinserção começa pela borda inferior. Aqui, o sangue se exterioriza antes da placenta, que, por deslizamento, se apresenta ao colo pela borda ou pela face materna (Figura 14.19).
Figura 14.18 ■ Mecanismo da dequitação, de acordo com Baudelocque-Schultze.
Figura 14.19 ■ Mecanismo da dequitação, de acordo com Baudelocque-Duncan.
Dessa maneira, a placenta se separa e cai no segmento inferior, sequência que se completa com a descida. O descolamento das membranas ocorre, também, pelas contrações e pregueamento do útero e, subsequentemente, pela queda e descida da placenta. ▶ Descida. As contrações uterinas, que não cessam, e a possível ação da gravidade condicionam a migração da placenta, que se cumpre de acordo com a modalidade do descolamento, a locação placentária e a maior ou menor facilidade com que se desprendem as membranas. Do corpo uterino, a placenta passa ao segmento inferior, que então se distende; percorre a cérvice e cai na vagina. ▶ Expulsão ou desprendimento. No canal vaginal, a placenta provoca nova sensação de puxo, determinando esforços abdominais semelhantes aos do 2o período do parto, responsáveis pela expulsão do órgão para o exterior. Se o descolamento da placenta for fenômeno normal e ativo, nem sempre a sua expulsão é pela vagina, na mulher civilizada, que dá à luz em decúbito dorsal e sob analgotocia. Nessas condições, ela permanece retida, criando dificuldades, sendo necessária, quase sempre, a intervenção do obstetra. No antigo local de inserção da placenta, forma-se ferida viva, com os seus vasos abertos, dando saída a certa quantidade de sangue, até que se obliterem, pelo mecanismo descrito por Pinard (ligaduras vivas), subsecutivo à retração uterina.
■ Quarto período É também chamado de período de Greenberg, que considera a primeira hora após a saída da placenta um momento tão importante, que lhe reserva uma das fases do parto, pelos riscos
imanentes de hemorragia e pelo descuido quase universal daqueles que acompanham nossas puérperas. É necessário salientar-se a importância da boa compreensão do mecanismo da retração uterina e de formação normal de coágulos na superfície interna da matriz, que ficou aberta e sangrante após a expulsão da placenta. A seguir, estão listadas as fases típicas que caracterizam o 4o período. ▶ Miotamponagem. Imediatamente após a expulsão da placenta, o útero se contrai e é palpável em um ponto intermediário entre o púbis e o umbigo. A retração inicial determina a laqueadura viva dos vasos uterinos, constituindo a primeira linha de defesa contra a hemorragia. ▶ Trombotamponagem. Trata-se da formação de trombos nos grandes vasos uteroplacentários, constituindo hematoma intrauterino que recobre, de modo contínuo, a ferida aberta no local placentário. Esses trombos são aderentes, pois os coágulos continuam com os mencionados trombos dos grandes vasos sanguíneos uteroplacentários. Os coágulos enchem a cavidade uterina, à medida que a matriz gradualmente se relaxa e alcança, ao fim de 1 h, o nível do umbigo; é a segunda linha de defesa contra a hemorragia, quando o estágio de contração fixa do útero ainda não foi alcançado. A contração do miométrio e a pressão do trombo determinam o equilíbrio miotrombótico. ▶ Indiferença miouterina. O útero se torna “apático” e, do ponto de vista dinâmico, apresenta fases de contração e de relaxamento, com o perigo de encher-se progressivamente de sangue. Maior a paridade ou mais prolongados os três primeiros estágios da parturição, tende a crescer o tempo de indiferença miouterina. O mesmo ocorreria após partos excessivamente rápidos, polidrâmnio, gravidez múltipla e feto macrossômico, devido à excessiva distensão da matriz. ▶ Contração uterina fixa. Normalmente, após 1 h, o útero adquire maior tônus e assim se mantém.
■ Clínica Os fenômenos estudados traduzem-se em sinais clínicos perfeitamente interpretáveis. Servem para acompanhar o secundamento em suas diversas fases, vez que são patentes as alterações de volume, forma, situação e consistência do útero. Após a expulsão do feto, a mulher experimenta período de euforia e bem-estar, que é atribuído ao desaparecimento das contrações uterinas e conhecido como o repouso fisiológico do útero. No entanto, a víscera continua a se contrair após a expulsão do concepto, a fim de dar prosseguimento à terceira fase do parto. São contrações de baixa frequência e alta intensidade, embora indolores. O fundo uterino, que atinge a cicatriz umbilical após a expulsão do feto, baixa durante as contrações da dequitadura, voltando à altura anterior no intervalo entre elas (Figura 14.20). A cada onda contrátil, observa-se a elevação progressiva da matriz, traduzindo, gradativamente, o descolamento, a descida e a chegada da placenta ao segmento inferior, que se distende. Quando a passagem dos anexos através desse segmento inferior é lenta, a subida do fundo uterino ocorre vagarosamente; na migração rápida, a elevação é súbita. O formato do órgão, piriforme e achatado
ao terminar o 2o período, passa a globoso ou ovoide, no curso do delivramento, não sendo raro observarem-se os dextro e sinistro-desvios, mais acentuados quando o segmento inferior é ocupado pelas secundinas em trânsito.
Figura 14.20 ■ Alterações processadas no útero durante o 3o período. À esquerda – preto (traço cheio): imediatamente após o parto do feto; traço cinza: desceu a placenta e ocupa o segmento inferior; traço pontilhado: secundamento completado. Observar a correspondência com os esquemas da direita. (Adaptada de Greenhill, J. P., Obstetrics, 11th ed. Philadelphia, Saunders, 1960.)
Abandonando a cavidade do útero, placenta e membranas caem na vulva, passando pela vagina, determinando a sensação de “puxo” na parturiente. A saída da placenta ocasionará nova descida do fundo, agora definitiva, pois o órgão está vazio. A altura do útero deve ser anotada no decorrer do secundamento e ulteriormente, porque representa dado de importância clínica primordial, podendo exprimir fenômenos normais ou patológicos. Sua consistência também representa elemento digno de atenção, principalmente até sentir-se o que Pinard chamou globo de segurança, útero de consistência lenhosa permanente. Outros sinais clínicos ainda poderão ser observados com vantagem: • Pinçamento ou ligadura do funículo, próximo à vulva, da qual se distancia com o progresso da migração placentária • O descolamento completo da placenta pode ser apreciado pela transmissão (presente ou ausente) de ligeiros movimentos de percussão do fundo do útero, ao cordão umbilical, constituindo, em sentido inverso, o sinal do pescador de Fabre
• Anotar a maneira de comportar-se o funículo, situado diante da vulva, após compressão da parede abdominal (sinal de Küstner), ou esforço voluntário da paciente • A espoliação sanguínea do secundamento, variável de 300 a 500 mℓ, proporciona outro sinal, se considerarmos o momento em que faz o seu aparecimento: no mecanismo de BaudelocqueSchultze, todas as fases do secundamento se sucedem sem hemorragia externa, que surgirá ao se completar a expulsão placentária; no mecanismo de Baudelocque-Duncan, a exteriorização do sangue é contínua, insidiosa, acompanhando o descolamento e continuando durante a descida da placenta. Em suma, os sinais de descolamento placentário são: • Alongamento do cordão protruso através da vulva • Elevação do fundo do útero acima do umbigo, que se torna duro e globular • Hemorragia de pequena monta (300 a 500 mℓ) devido à separação da placenta, que normalmente cessa rapidamente na dependência da retração das fibras miometriais.
■ Assistência: conduta ativa no secundamento Normalmente, o secundamento dura entre 5 e 10 minutos. Se a duração exceder 30 minutos, considera-se secundamento prolongado. A International Confederation of Midwives (ICM) e a Federação Internacional de Ginecologia e de Obstetrícia (FIGO) (2006) estabeleceram proposições conjuntas, recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (2009), para evitar a he-morragia pós-parto por atonia uterina, uma das principais causas de mortalidade materna, consagradas sobre a denominação de conduta ativa no secundamento. A conduta ativa no secundamento consiste em intervenções dirigidas para facilitar o parto da placenta pelo aumento da contratilidade uterina e para evitar a hemorragia pós-parto, ao impedir a atonia uterina. Os componentes fundamentais da conduta ativa no secundamento são administração de agente uterotônico, tração controlada do cordão e massagem uterina, os quais são descritos a seguir (Figura 14.21): • O agente uterotônico para administração deve ser, preferencialmente, a ocitocina, 10 UI por via IM, após o parto fetal • A tração controlada do cordão, após o clampeamento, uma vez cessada a sua pulsação (no recém-nascido vigoroso), juntamente com a contrapressão do útero, deve ser realizada acima da sínfise pubiana (Figura 14.22). Ambos os procedimentos só devem ser realizados durante a contração uterina. Se a placenta não se desprender após 30 a 40 s de tração controlada e contrapressão uterina, esperar nova contração e repetir a manobra. A tração controlada do cordão deve ser realizada de modo a descolar e expulsar a placenta gentilmente, com o cuidado de não romper as membranas, geralmente exercendo movimento de torção das páreas
(manobra de Jacob-Dublin) (Figura 14.23)
Figura 14.21 ■ Conduta ativa no secundamento. (ICM, FIGO, 2006.)
• A massagem do fundo uterino após o parto da placenta, se apropriada. A palpação do útero deve ser realizada a cada 15 min nas próximas 2 h e, se necessário, a massagem deve ser repetida. Certifique-se de que o útero não fique amolecido após a massagem, e se está formado o globo de segurança de Pinard, a indicar boa retração uterina.
Figura 14.22 ■ Assistência ativa ao secundamento.
A conduta ativa no secundamento está associada a significativa redução da duração do 3o período e de hemorragia no pós-parto. Após completado o 3o período, a placenta deve ser inspecionada para atestar a sua integridade, ou seja, a existência de todos os cotilédones. Expelida a placenta, deve-se fazer a antissepssia dos genitais externos, inspecionando-se cuidadosamente a vulva, a vagina e o colo, procurando-se descobrir rupturas ou dilacerações que devem ser imediatamente suturadas, assepticamente e sob anestesia, se o não foram antes, apenas havido o parto fetal.
■ Exame da placenta e dos anexos ovulares
Como nem sempre é fácil comprovar a integridade da placenta e dos anexos ovulares, há vários processos para sua verificação, quase todos precários. A inspeção da placenta deve ser feita após o secundamento, colocando-se a placenta sobre a mesa; com face materna voltada para cima, afastam-se as membranas que podem mascarar o exame e removem-se todos os coágulos de sua superfície. ▶ Face materna. Apresenta-se com aspecto brilhante, corresponde à decídua compacta que saiu aderida aos cotilédones; as áreas sem brilho decorrem da ausência de decídua que ficou no útero. A retenção de um ou mais cotilédones traduz-se por falha na massa placentária, com nítida depressão. É importante verificar, com cuidado, a zona suspeita e averiguar se ela não representa a parte profunda de um sulco intercotiledoniano que se separou das vilosidades coriais e se encontra invertido. Para esclarecer a dúvida, basta reconstituir a massa total da placenta. Não devemos deixar de observar as suas bordas, com o objetivo de descobrir a ruptura do seio marginal e a existência de cotilédones suplementares. Em geral, a margem placentária termina de modo abrupto.
Figura 14.23 ■ Manobra de Jacob-Dublin para a recepção da placenta. Tração leve da placenta, para descolar as membranas, seguida de torção das páreas, o que as engrossa e fortifica. (Adaptada de Kerr, J.M. & Moir J.C. Operative Obstetrics, 5th ed., London, Baillière, 1949.)
Em seguida, anotam-se a cor, a consistência, as deposições calcárias, os enfartes brancos ou vermelhos, os concentrados de fibrina e o que mais julgar importante. Além da inspeção rigorosa, outros procedimentos podem ser empregados para comprovação da integridade da placenta. Pode-se injetar leite ou qualquer corante líquido pela artéria ou veia umbilical. Se a placenta não estiver íntegra, haverá saída do material pela zona em que tiver perdido substância. ▶ Face fetal. É necessário verificar o ponto de inserção do cordão e a integridade do âmnio que, quando desprendido, deve ser reconstituído até cobrir totalmente a massa placentária. Os
vasos umbilicais desaparecem gradualmente perto da borda da placenta; a interrupção de vaso de grosso calibre, nessa região, significa a falta de fragmento da placenta (sucenturiada). ▶ Membranas. Deve-se pesquisar o orifício da ruptura, apreendendo com a mão o cordão e suspendendo a massa placentária, para desprendê-la invertida. Em seguida, aprecia-se o diâmetro do orifício, assim como a distância que o separa, em todo o contorno, da borda da placenta. Esse exame torna possível, eventualmente, identificar em que zona da parede uterina se encontrava inserida a placenta. Quando as membranas têm, em qualquer parte do seu contorno, extensão menor de 10 cm, suspeita-se de inserção no segmento inferior do útero (placenta baixa). Se o orifício se apresenta amplo, com as bordas dilaceradas em fragmentos, o número deles está relacionado com as múltiplas rupturas ocorridas. Com a reunião dos fragmentos das membranas, quase sempre se reconstrói o orifício. Caso não seja possível, ainda há, provavelmente, restos retidos.
C. Assistência ao Recém-nascido na Sala de Parto A assistência imediata ao recém-nascido começa com o desprendimento da cabeça, quando se procede à limpeza da face. Logo após o nascimento, a primeira atenção é tomada quanto ao estabelecimento da respiração; o recém-nascido normal respira e chora logo após o parto. ▶ Aspiração das mucosidades. Com gaze esterilizada, completa-se a limpeza do rosto da criança e, se houver secreções, a boca e as narinas serão cuidadosamente aspiradas com sonda de borracha mole para evitar traumatismo das mucosas. O recém-nascido será colocado com a cabeça mais baixa que o corpo, a fim de facilitar o escoamento das secreções. ▶ Índice de Apgar. Em 1952, Virginia Apgar, médica anestesista norte-americana, propôs novo método de avaliação clínica do recém-nascido com 1 min de vida. O índice de Apgar comporta cinco variáveis (Tabela 14.1): frequência cardíaca, esforço respiratório, tônus muscular, irritabilidade reflexa e cor, cada uma recebendo nota 0, 1 e 2. Atualmente, o índice de Apgar é computado no 1o e no 5o min após o nascimento. O índice de Apgar de 5 min de 7 a 10 é normal; o de 4, 5 e 6 min ≤ 3 foi considerado indicador de asfixia intraparto. A asfixia intraparto implica hipoxemia e hipercarbia que, se prolongadas, determinam acidemia metabólica. Contudo, o índice de Apgar sofre influência de muitos outros fatores, tais como imaturidade fisiológica, medicações maternas e existência de malformações congênitas. O índice de Apgar de 5 min 0 a 3 isoladamente não é preditivo de disfunção neurológica. Outros fatores, incluindo os traçados patológicos no monitoramento intraparto, anormalidades na gasometria no sangue da artéria umbilical, exame clínico da função cerebral, estudos de neuroimagem, eletroencefalografia neonatal, patologia placentária, investigações hematológicas e disfunção orgânica multissistêmica devem ser considerados para definir evento hipóxico-isquêmico intraparto como causa de paralisia cerebral (ACOG, 2006).
Tabela 14.1 ■ Contagem do índice de Apgar. Nota Sinal
0
1
2
Frequência (bat/min)
Ausente
< 100
> 100
Respiração
Ausente
Fraca, irregular (choro débil)
Forte, regular (choro vigoroso)
Tônus muscular
Flacidez
Flexão pequena das extremidades
Movimentos ativos generalizados
Irritabilidade reflexa*
Ausente
Caretas
Choro
Cor
Azul, pálido
Corpo róseo, extremidades azuis
Corpo todo róseo
*Aspiração oronasofaríngea ou estímulo plantar.
▶ Ligadura do cordão. Faz-se o esmagamento do cordão com duas pinças, em torno de 4 cm de distância do abdome. Antes do pinçamento, deve-se proceder ao exame do funículo, para que se não esmague parte do conteúdo abdominal caso esteja ali localizada (hérnias). O retardo na ligadura do cordão até 180 s após o nascimento, além de não estar associado a prognóstico adverso para o recém-nascido, é benéfico para aumentar as reservas de ferro do bebê até 6 meses de idade ou mais. A ligadura precoce do cordão também não faz parte da conduta ativa no secundamento para evitar a hemorragia pós-parto (FIGO/ICM, 2004). O cordão é seccionado entre as duas pinças e a ligadura se faz com fio esterilizado, ou com um pequeno anel de borracha que constringe a extremidade distal do coto umbilical (Figura 14.24).
Figura 14.24 ■ Clamp de plástico constringindo o coto umbilical.
▶ Profilaxia da oftalmia gonocócica. A ophtalmia neonatorum contraída durante o parto é atualmente ocorrência rara, graças à profilaxia sistemática com colírio. O método de Credè (nitrato de prata) está obsoleto pois é irritativo para a conjuntiva. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) (2013) recomenda a instilação de solução aquosa de iodopovidona a 2,5% no olho do recém-nascido. ▶ Identificação. A identificação será realizada na sala de parto, quando mãe e filho ainda estiverem nela. Será utilizado bracelete nos punhos ou tornozelos, confeccionado com material à prova de água ou de óleos. No bracelete, será escrito, com tinta indelével, o nome completo da mãe, o sexo da criança, a data e a hora de nascimento. É aconselhável que a maternidade, além do sistema de identificação descrito, colete também as impressões plantares da criança e digitais da mãe, na mesma papeleta do registro de parto. No recém-nascido, a impressão plantar é mais fácil de ser coletada que a palmar. A atual legislação torna obrigatória essa obtenção das impressões plantares do recém-nascido. ▶ Fenômenos plásticos no concepto. Sofre a apresentação, com frequência, e para melhor se adaptar ao canal do parto, as mais variadas deformações e moldagens, de acordo com o tipo e as particularidades do polo, os contatos estabelecidos e as impulsões que recebe. As transformações da estrutura tegumentar surgem nos vários segmentos do feto: cabeça, nádegas, ombros etc. A infiltração dos tegumentos do polo apresentado, invadido o tecido conjuntivo difuso por serosidade e sangue, chama-se bossa serossanguínea. A pele é rósea ou violácea e limitada por tecido anormal; forma-se pelas diferenças de pressão ocorridas, com dificuldades opostas à circulação de retorno nos tecidos que a compõem. As bossas são: saliência mole, pastosa, algumas vezes mais consistente, quase dura; quando cefálicas, seus limites não se detêm nas fontanelas ou suturas, invadindo inteiramente a apresentação e configurando, pelo inusitado tamanho, outra cabeça (caput succedaneum), a mascarar os pontos de reparo dela, com os inevitáveis erros de diagnóstico decorrentes (Figura 14.25). Os infiltrados serossanguíneos, independentemente de sua localização, reabsorvem-se, em geral, 48 h após o parto. ▶ Cefalematoma. Trata-se do acúmulo de sangue entre a superfície dos ossos do crânio e o periósteo, causado pelas rupturas vasculares em consequência de fricções da cabeça do feto contra as proeminências da pelve materna. Geralmente solitários, às vezes múltiplos, têm consistência mole no centro, endurecida nas bordas, contornos nítidos e, por não excederem os limites do osso craniano em que se encontram, essas características possibilitam diferenciá-los do caput succedaneum.
Figura 14.25 ■ Bossa serossanguínea na apresentação cefálica fletida (caput succedaneum).
■ Pontos-chave O diagnóstico do trabalho de parto (fase ativa) é feito pela ocorrência de contrações uterinas dolorosas, rítmicas (no mínimo 2 em 10 min), com duração de 50 a 60 s, colo com dilatação de 5 cm em multíparas e até maior em nulíparas e formação da bolsa das águas. As primíparas já entram em trabalho de parto com o colo apagado; nas multíparas, ele se apaga e se dilata simultaneamente até 5 cm, para, em seguida, completar a dilatação total (10 cm). A ruptura da bolsa das águas, quando espontânea, ocorre em 80% das vezes na fase final da dilatação ou no início da expulsão. Para a expulsão do feto, devem estar presentes e somados dois fatores: sístole involuntária do útero e contração voluntária da prensa abdominal (puxo). A assistência durante a dilatação engloba o toque vaginal (colo, bolsa das águas, apresentação), ausculta dos bcf, amniotomia, anestesia (bloqueio combinado). A assistência à expulsão compreende: posição de Laborie-Duncan, anestesia locorregional do períneo (ou bloqueio combinado, iniciado durante a dilatação), episiotomia, manobra de Kristeller ou fórceps de alívio. Embora ainda seja alvo de críticas, o partograma tem sido utilizado na assistência ao parto. Os componentes fundamentais na conduta ativa no secundamento são: administração de agente uterotônico, tração controlada do cordão e massagem uterina. Após o secundamento, realizam-se a revisão do colo, a episiorrafia e o exame da placenta. A assistência ao recém-nascido comporta: aspiração de secreções, determinação do índice de Apgar, ligadura do cordão, profilaxia da oftalmia neonatal.
■ Fisiologia ■ Assistência pós-natal
Puerpério, sobreparto ou pós-parto, é um período cronologicamente variável, de definição imprecisa, durante o qual se desenrolam todas as manifestações involutivas e de recuperação da genitália materna após o parto. Registra-se a ocorrência de importantes modificações gerais, que perduram até o retorno do organismo às condições vigentes antes da gravidez. A relevância e a extensão desses processos são proporcionais à importância das transformações gestativas experimentadas e diretamente subordinadas à duração da gravidez. Em geral, a involução puerperal completa-se no prazo de 6 semanas e o período que se sucede ao parto pode ser dividido em: • Pós-parto imediato (do 1o ao 10o dia) • Pós-parto tardio (do 10o ao 45o dia) • Pós-parto remoto (além do 45o dia).
■ Fisiologia ■ Involução e recuperação da genitália ■ Pós-parto imediato (do 1o ao 10o dia) No pós-parto imediato, a crise genital predomina; prevalecem os fenômenos catabólicos e involutivos das estruturas hipertrofiadas ou hiperplasiadas pela gravidez, notadamente das que abrigavam o concepto, ao lado de alterações gerais e, sobretudo endócrinas, quase todas relacionadas com a regressão das modificações gestacionais do organismo. ▶ Útero. O abdome está descaído, e a musculatura, flácida; o fundo uterino que se encontrava à altura do escavado epigástrico situa-se um pouco acima da cicatriz umbilical, firmemente contraído. A atividade contrátil rítmica da matriz, embora inaparente, indolor, prossegue por certo tempo; às vezes ocasiona cólicas muito dolorosas, notadamente nas multíparas (tortos). O útero deve manter sua porção corporal firmemente contraída, e o segmento inferior acotovela-se ao limitar-se com o anel de contração do corpo da matriz na parte superior (Figura 15.1 A). A hemóstase da ferida placentária é assegurada pela retração e contração do miométrio, com contribuição do colapso parcial da circulação da artéria e da veia ovarianas e da redução ponderável do fluxo dos vasos uterinos, ocasionado pelo acotovelamento dos pedículos vasculares, e por modificações hemodinâmicas posteriores à eliminação da fístula arteriovenosa representada pela circulação uteroplacentária. A trombose dos orifícios vasculares abertos na região placentária completa o mecanismo de hemóstase fisiológica. No útero de consistência firme, o elemento primordial da hemóstase é o chamado globo de segurança, que promove as ligaduras vivas, de Pinard, relacionadas com a constrição dos vasos parietais pelo miométrio bem contraído, fenômeno que surge com a saída da placenta.
Nas primeiras 12 h do sobreparto, estando a bexiga vazia, o útero, por seu fundo, coloca-se próximo à cicatriz umbilical. Em virtude do extraordinário relaxamento dos elementos de sustentação e de fixação da matriz, a bexiga pode ser largamente deslocada para cima e para baixo. O ritmo da involução não é constante. Entre o 3o e o 10o dia, os processos regressivos desenrolam-se em compasso acelerado, alentecendo-se depois. A partir do 4o ou 5o dia, a zona palpada como fundus uteri não mais corresponde, estritamente, à designação anatômica. A anteversoflexão faz com que a região se relacione com a parede abdominal e a reborda púbica. O limite superior, perceptível, da matriz, é a região posterior do fundo, e, parcialmente, a parede, também posterior, do corpo (Figura 15.1 B). Até o 10o dia, a matriz é órgão abdominal; depois retorna à pelve.
Figura 15.1 ■ Corte sagital da recém-parida (A) e da puérpera (B) entre o 8o e o 10o dia.
O colo uterino, ou cérvice, inicialmente, aparece como estrutura flácida de bordas distensíveis, denteadas, irregulares, na porção posterior da vagina. É comum observá-lo dilacerado nas porções laterais, causa do aspecto em fenda transversal que o orifício externo exibe posteriormente, atestando a paridade da mulher (Figura 15.2). A reconstituição dessa portio vaginalis é relativamente rápida; com 12 h de puerpério ela readquire seu formato em focinho de tenca, embora o orifício externo apresente-se amplamente aberto, com o canal dando passagem a 2 ou 3 dedos exploradores. A cérvice, a 3 dias após o parto, está anatomicamente reconstituída. Embora amplamente permeável ao dedo, é possível distinguir os limites do canal cervical; o segmento inferior parturiente não mais subsiste. Entre o 9o e o 10o dia, apenas o orifício externo dá passagem à polpa digital. Na lactante, a involução uterina é mais rápida, em decorrência da exacerbação da retração e contratilidade uterinas a cada amamentação. O reflexo uteromamário diz respeito à estimulação dos mamilos e da árvore galactófora que desperta as contrações uterinas, acusadas pela paciente como cólicas. Em função de sua matriz muito volumosa, as primíparas apresentam ritmo da involução uterina aparentemente mais rápido que as multíparas.
As seguintes causas de involução uterina devem ser procuradas: • Colapso parcial da circulação ovariana e uterina, mencionado anteriormente, ocasionado por importantes modificações hemodinâmicas subordinadas ao desaparecimento da fístula arteriovenosa, representada pela circulação uteroplacentária, e ao acotovelamento dos pedículos vasculares que irrigam a matriz • Retração e contração uterinas, condicionando anemia acentuada do miométrio e consequente má nutrição celular, ao lado de trombose e obliteração dos vasos parietais noviformados • Desaparecimento súbito, em crise, dos hormônios esteroides placentários. O processamento da involução e da regeneração da ferida placentária, da caduca parietal e das demais soluções de continuidade sofridas pela genitália no parto, vincula-se à produção e à eliminação de considerável quantidade de exsudatos e transudados, os quais, misturados com elementos celulares descamados e sangue, são conhecidos pela designação de lóquios.
Figura 15.2 ■ Cérvice na nulípara (A) e na mulher que já pariu (B).
Nos primeiros 3 ou 4 dias, os lóquios são sanguíneos (lochia cruenta, lochia rubra), depois tornam-se serossanguíneos (lochia fusca), de coloração acastanhada. ▶ Vagina. Também sofre importantes alterações involutivas no pós-parto imediato. As transformações regressivas de maior evidência desenrolam-se no epitélio escamoso de revestimento. É a crise vaginal do pós-parto. A partir do 3o ou 4o dia os esfregaços vaginais vão se tornando nitidamente atróficos e, ao final do pós-parto imediato (10o dia), à metade, ou menos, o epitélio fica abreviado das 30 a 35 carreiras celulares achadas à ocasião do parto. Nessa fase, o comportamento é absolutamente idêntico na nutriz e na mulher que não amamenta.
■ Pós-parto tardio (do 10o ao 45o dia) É o período de transição no qual a recuperação genital toma impulso e se completa a crise, ainda mal esboçada nos derradeiros dias da fase anterior. É o circuito biológico em que todas as funções começam de ser influenciadas pela lactação, que no estádio seguinte, pós-parto remoto, domina francamente o panorama puerperal. ▶ Útero. Continua a regredir, porém muito lentamente até 6 semanas, sem retornar, nunca mais, às proporções encontradas nas nulíparas (Figura 15.3).
A desagregação da decídua está praticamente consumada, notando-se regeneração do estroma e das glândulas endometriais. A cavidade uterina acha-se inteiramente epitelizada ao fim do 25o dia do pós-parto. O corrimento loquial prossegue comumente até meados do pós-parto tardio, passando de serossanguíneo a seroso (lochia flava). O comportamento posterior do endométrio difere quando há lactação. Nas mulheres que não amamentam, apesar da regressão miometrial mais lenta, o endométrio tende a proliferar nos moldes conhecidos, alcançando, no término do pós-parto tardio, estádio semelhante à fase proliferativa do ciclo menstrual. Nas nutrizes, tudo se passa como se os estímulos reguladores endócrinos se encontrassem em recesso ocasional. ▶ Vagina. O desempenho da mucosa vaginal também varia de acordo com a lactação. Objetivada pela descamação do epitélio, reduzido às camadas profundas, a crise vaginal alcança, pelo geral, sua regressão máxima em torno do 15o dia pós-parto; a partir de então se esboçam as primeiras manifestações regenerativas. Até aproximar-se o 25o dia, embora haja grandes variações individuais no evoluir da recuperação vaginal, é difícil a distinção entre casos com lactação ou sem ela. O comportamento, no entanto, segue padrões e rumos diferentes haja ou não aleitamento. Nas mulheres que não amamentam, a citologia mostra aceleração do processo vaginal evolutivo, quando comparadas às nutrizes.
Figura 15.3 ■ Proporções uterinas na nulípara (A) e na mulher parida (B).
■ Pós-parto remoto (além do 45o dia) Trata-se de um período de duração imprecisa, que varia com a presença ou não de lactação. Nas mulheres que não amamentam, a menstruação retorna, em média, com 1,5 mês (Tabela 15.1), e precedida de ovulação, ao contrário do que se pensava anteriormente. Nas lactantes os prazos dependem da duração do aleitamento.
Tabela 15.1 Relação entre a duração da lactação e o tempo médio decorrido para o
aparecimento da 1a menstruação e da 1a ovulação. Tempo decorrido para o aparecimento da Duração da lactação (meses) 1a menstruação (meses)
1a ovulação (meses)
0
1,5
1,3
1
2,1
1,9
2
2,7
2,6
3
3,3
3,2
4
3,9
3,9
5
4,5
4,5
6
5,1
5,2
7
5,7
5,8
8
6,3
6,5
9
6,9
7,1
10
7,5
7,8
11
8,1
8,4
12
8,7
9,1
■ Involução dos sistemas extragenitais ■ Sistema endócrino No fim da gestação, os níveis de estrogênio e de progesterona estão muito elevados, assim como os de prolactina (PRL). Com a saída da placenta, ocorre queda imediata dos esteroides placentários a níveis muito baixos e leve diminuição dos valores de PRL, que permanecem ainda bastante elevados. Na ausência da lactação, nas primeiras semanas pós-parto, tanto o hormônio luteinizante (LH) como o foliculoestimulante (FSH) mantêm-se com valores muito baixos, para logo começarem a se elevar lentamente. No puerpério inicial, os níveis de estrogênio mantêm-se baixos e a progesterona não é detectável. A recuperação das gonadotrofinas aos níveis pré-gravidez depende da ocorrência ou não da amamentação. A amamentação pode impedir a fertilidade pela ação direta do estímulo do mamilo sobre o hipotálamo por via neuroendócrina, inibindo o fator inibidor da prolactina (PIF) e o hormônio liberador da gonadotrofina (GnRH), acarretando, respectivamente, elevação da PRL e inibição do FSH e do LH hipofisários.
■ Sistema cardiovascular O débito cardíaco está aumentado na 1a hora do pós-parto (10%), permanecendo assim durante 1 semana. A pressão venosa dos membros inferiores, elevada durante a gravidez, normaliza-se imediatamente. As varizes, se presentes, tornam-se murchas, e os edemas desaparecem.
■ Sistema sanguíneo Não há mudanças da série vermelha próprias do puerpério. Na branca, nota-se, imediatamente após o parto, leucocitose de até 25 mil glóbulos, à custa principalmente dos granulócitos neutrófilos. Em condições normais, a hiperleucocitose fica reduzida à metade nas primeiras 48 h, e ao fim do 5o ou 6o dia o quadro retorna às taxas habituais. A velocidade de eritrossedimentação, acelerada na gravidez, sofre novo incremento no puerpério, regularizando-se somente entre a 5a e a 7a semana. A concentração de hemoglobina volta a níveis não gravídicos em 6 semanas do parto. A tendência à coagulação no puerpério está aumentada.
■ Sistema urinário Em função do acentuado relaxamento do diafragma urogenital, consignado após o parto, a parede anterior da vagina tende a prolabar entre os grandes lábios, sobretudo nas multíparas, esboçando-se cistocele. A bexiga, livre das peias do útero gravídico e conservando ainda as faculdades de expansão estruturais que a embebição lhe proporcionara, tem sua capacidade consideravelmente aumentada. Em razão da desidratação no trabalho de parto, a diurese inicialmente é escassa. Do 2o ao 6o dia estabelece-se abundante excreção urinária, que elimina a água acumulada durante a gestação. A exoneração vesical incompleta explica as retenções de 1 ℓ ou mais de urina, configurando a iscuria paradoxa. Há repleção da bexiga e incapacidade de eliminação espontânea, que por fim ocorre, gota a gota, de modo intermitente e involuntário, penosamente (estranguria), agravada a incapacidade esfincteriana pelos tocotraumatismos e pelas lesões da uretra, do meato e do vestíbulo.
■ Sistema digestivo Com o esvaziamento uterino, as vísceras abdominais retornam, vagarosamente, às disposições anatômicas. Há redução da motilidade intestinal. A constipação da puérpera, indefectível nas pacientes que se mantinham no leito de 1 a 2 semanas, hoje é menos frequente, com o levantar precoce, e observada unicamente nas que têm obstipação crônica. O funcionamento fisiológico dos intestinos costuma ser restaurado no 3o ou 4o dia.
■ Pele
As estriações do abdome e das mamas, quando acontecem, perdem a cor vermelho-arroxeada e ficam pálidas, transformando-se, em algumas semanas, em estrias branco-nacaradas. As modificações do tipo de implantação dos pelos pubianos e as hiperpigmentações da pele do rosto, do abdome e das mamas, regridem. Algumas ficam indeléveis.
■ Peso Habitualmente há perda acentuada nos primeiros 10 dias, atribuída à maior diurese, à secreção láctea e à eliminação loquial.
■ Assistência pós-natal ■ Normas higiênicas e dietéticas. Exercícios. Deambulação A vulva e o períneo devem ser higienizados várias vezes ao dia, após as micções e evacuações, utilizando-se, por exemplo, triclosana. A genitália externa deve ser sempre protegida por absorvente higiênico pós-parto descartável, a ser substituído sempre que necessário. O banho de aspersão, assistido pela enfermagem, deve ser estimulado após o levantar em tempo não inferior a 6 h pós-parto. As normas dietéticas são as mesmas da gravidez, um pouco alteradas nas lactantes, com maior liberdade, sobretudo, na ingesta líquida. Deve-se estimular a paciente a mover-se livremente no leito, logo após o parto, e a exercitar os membros inferiores com frequência. Deambular, preferencialmente, 6 h após o parto vaginal evita riscos de tromboembolismo e acelera a recuperação puerperal.
■ Cuidados com as mamas Recomenda-se o uso de sutiãs apropriados. No 3o dia pós-parto, é comum ocorrer apojadura, com desconforto considerável às pacientes. As mamas ficam ingurgitadas e dolorosas. Nesse caso, é possível aliviá-las suspendendo-as, aplicando-lhes bolsa de gelo e administrando ocitocina por via nasal, que provoca ejeção láctea, amenizando a congestão. Deve-se administrar ocitocina spray nasal – 1 jato em cada narina 30 min antes das mamadas. Durante todo o período de aleitamento, as mamas devem ser mantidas bem elevadas pelo sutiã, para evitar acotovelamentos vasculares responsáveis pela congestão sanguínea e pela galactoestase.
■ Micção e função intestinal A micção merece ser vigiada atentamente nas primeiras 48 ou 72 h, devendo-se cuidar do esvaziamento da bexiga a intervalo de 6 a 8 h. Ao início, muitas pacientes têm dificuldades na micção, que podem ser, por vezes, superadas, recorrendo-se a meios simples (irrigação externa com água morna ou posição semissentada sobre a comadre). Na impossibilidade de exoneração
espontânea e antes de recorrer-se ao cateterismo, com os mais rigorosos cuidados de assepsia e antissepsia, deve-se possibilitar a ida ao banheiro, o que muitas vezes favorece a micção espontânea. A constipação intestinal é frequente, principalmente, quando não há o levantar precoce, ou a paciente permanece por longo período em jejum ou já tem constipação crônica. Após o 3o dia sem evacuação espontânea, deve-se prescrever laxativos como sorbitol + laurilsulfato de sódio, 1 bisnaga por via retal, ou bisacodil, 1 comprimido por via oral. Ingesta de líquidos (2.000 mℓ/dia) e dieta rica em frutas e fibras vegetais devem ser estimuladas.
■ Vida sexual No puerpério imediato, como nas últimas semanas da gravidez, a libido está, em geral, adormecida. Atualmente, há uma tendência a admitir o coito durante todo o ciclo gestativo e ultrapassado o sobreparto imediato. A resposta sexual, 6 a 8 semanas após o parto, ainda não é satisfatória, pois há congestão vascular lenta após o estímulo, subordinada à turgência da vulva e à lubrificação excessiva da vagina, com distensão concomitante desse órgão, rugosidades ausentes e constricção muscular reduzida. No pós-parto imediato, além de ausência de atração sexual e dispareunia – sequela habitual das episiotomias e dos diversos tocotraumatismos resultantes da passagem do feto –, muitas pacientes têm elemento negativo na amamentação. Entretanto, há respostas fisiológicas comuns à cópula e à lactação, como ereção do mamilo, dilatação venosa e temperatura elevada da mama, contrações uterinas, aumento da lubrificação vaginal e turgência do clitóris.
■ Exames diários (até o 2o dia) Os exames físicos indispensáveis a serem realizados pela manhã e à tarde no puerpério de evolução normal são apresentados a seguir. ▶ Temperatura, pulso e pressão. A temperatura no pós-parto não deve ser interpretada pelos critérios normativos estabelecidos para condições extrapuerperais. Exceto para as primeiras 24 h, quando pode haver certa pirexia, o normal é a ausência de febre, caracterizada pela temperatura abaixo de 38°C. A chamada “febre do leite”, concomitantemente com a apojadura, no 3o dia, é considerada fisiológica por alguns, embora outros a encarem como resultante da ascensão de germes vaginais à cavidade uterina, habitual nessa época. O pulso tende a ser bradicárdico, 60 a 70 bpm, em virtude, provavelmente, do repouso experimentado pela puérpera. ▶ Palpação do útero e da bexiga. O útero puerperal tem consistência firme, é indolor e altamente móvel decorrente da flacidez dos seus elementos de fixação. Ao examiná-lo, é necessário palpar sempre a bexiga; em razão de suas conexões anatômicas com a matriz, a bexiga cheia pode deslocar o útero para cima, falseando o resultado das medidas. Nas primeiras 12 h do sobreparto, a altura do fundus uteri está ao redor da cicatriz umbilical.
Do 2o dia em diante, diminui progressivamente, na média de 1 cm (Figura 15.4). Impõe-se a administração de ocitócicos, de preferência derivados ergóticos, para corrigir contrações deficientes e retração insatisfatória da matriz. ▶ Exame dos lóquios. A inspeção diária dos lóquios é valiosa para se avaliar a involução uterina. Nos primeiros 3 ou 4 dias, observa-se corrimento abundante e sanguíneo. Os absorventes higiênicos pós-parto ficam embebidos de fluxo vermelhoescuro. O encarnado rutilante evidencia perda hemorrágica, que é anômala. Os lóquios serossanguíneos têm coloração acastanhada. Quando normais, seu cheiro é peculiar; a fetidez sugere decomposição do conteúdo vaginal por anaeróbios, e a parada do fluxo na 1a semana do pós-parto, loquiometria, é sinal ominoso, indicativo de infecção. ▶ Inspeção do períneo. A inspeção do períneo é sempre indicada para se fiscalizar a cicatrização das eventuais suturas de episotomia ou de perineorrafia, além de se verificar a existência de hemorroidas. A aplicação de bolsa de gelo serve para aliviar o edema e o desconforto. Podem ser indicadas soluções anestésicas e antissépticas locais (benzocaína + cloreto de benzetônio + benzoquina + mentol) e também analgésicos orais, como dipirona ou paracetamol.
Figura 15.4 ■ Involução uterina no pós-parto imediato. Mostra-se a altura do fundo uterino, de acordo com os dias de puerpério.
▶ Exame dos membros inferiores. Importantíssimo, objetiva reconhecer o aparecimento precoce das tromboses venosas.
■ Exame com 6 semanas Não se dispensa cuidadoso exame com 6 semanas de puerpério, quando se conclui a involução genital. Este exame é útil para averiguar eventuais perturbações dos processos involutivos genitais e para possibilitar o reconhecimento precoce de ginecopatias e outros distúrbios resultantes das contingências da gravidez e da parturição. O exame físico constará de parte clínica sumária e especializada, que se inicia pelas mamas,
verificando-se também a estática abdominal. O exame ginecológico terá em vista as distopias e o colo uterino. Nessa época também é indicada a citologia cervicovaginal. Na ocasião deve-se orientar a puérpera sobre métodos anticoncepcionais. Podem ser estimulados métodos de barreira, como o condom e o dispositivo intrauterino (DIU), como também hormonais, contendo apenas progestágenos, como o desogestrel 75 mg por via oral em administração contínua (sem intervalos entre as cartelas) ou por via intramuscular como o acetato de medroxiprogesterona 150 mg por via intramuscular 90/90 dias. Métodos hormonais combinados com estrogênios não devem ser utilizados, a fim de não prejudicar a amamentação.
■ Pontos-chave Em geral, a involução puerperal completa-se no prazo de 6 semanas, e o período que se sucede ao parto pode ser dividido em: pós-parto imediato (1o ao 10o dia), pós-parto tardio (10o ao 45o dia) e pós-parto remoto (além do 45o dia). No pós-parto imediato (1o ao 10o dia) domina a crise genital; prevalecem os fenômenos catabólicos e involutivos das estruturas hipertrofiadas ou hiperplasiadas pela gravidez. No útero de consistência firme, o elemento primordial da hemóstase é o chamado globo de segurança, que promove as ligaduras vivas, de Pinard, relacionadas com a constrição dos vasos parietais pelo miométrio bem contraído, fenômeno que surge com a saída da placenta. Nos primeiros 3 ou 4 dias, os lóquios são sanguíneos (lochia cruenta, lochia rubra), depois tornam-se serossanguíneos (lochia fusca), de coloração acastanhada. No pós-parto tardio (10o ao 45o dia) o útero já retornou à pelve, o endométrio acha-se inteiramente epitelizado no 25o dia do pós-parto. Os lóquios são serosos (lochia flava). O pós-parto remoto (além do 45o dia) trata-se de um período de duração imprecisa, que varia com a ocorrência ou não de lactação. Nas mulheres que não amamentam, a menstruação retorna, em média, com 1,5 mês, e precedida de ovulação, ao contrário do que se pensava anteriormente. Nas lactantes os prazos dependem da duração do aleitamento. Os exames da puérpera serão diários até o 2o dia: temperatura, pulso, pressão, palpação do útero e da bexiga, exame dos lóquios, inspeção do períneo, da vulva e dos membros inferiores. Merecem cuidados especiais os banhos de asseio da vulva e do períneo depois das micções e das evacuações. Deambulação e banho de chuveiro após o 1o dia são recomendados. Os cuidados com as mamas deverão ser redobrados. Não se dispensa cuidadoso exame com 6 semanas de puerpério, quando se conclui a involução genital. O exame físico constará de parte clínica sumária e especializada, que se inicia pelas mamas, verificando-se também a estática abdominal. O exame ginecológico terá em vista as distopias e o colo uterino. Nessa época também é indicada a citologia cervicovaginal. Por essa época (6 semanas) deve-se orientar a puérpera sobre métodos anticoncepcionais.
■ Fisiologia da lactação ■ Inibição da lactação
Estima-se que o aleitamento natural esteja declinando apesar de cerca de 2/3 das mães em todo o mundo amamentarem seus bebês pelo menos durante 3 meses. A incidência da amamentação varia de taxas tão baixas quanto 25% nos EUA, para quase 100% nas áreas rurais dos países em desenvolvimento. As mulheres do campo, nessas regiões, frequentemente aleitam por 18 a 24 meses, enquanto as lactantes nos países desenvolvidos o fazem por apenas 2 a 3 meses. A amamentação natural apresenta inúmeras vantagens para a mãe e para o filho, dentre elas: • O leite materno é altamente nutritivo e pode suprir todas as necessidades alimentares do bebê durante os 4 a 6 primeiros meses de vida. De 6 a 12 meses, fornece 3/4 das proteínas de que carece a criança e daí em diante permanece como valioso suplemento proteico à dieta infantil. Além desses elementos, o leite materno contém açúcar, gorduras, sais minerais e vitaminas. Exceto para gorduras e vitaminas, sua composição é relativamente independente da nutrição materna • Devido à sua composição e, principalmente, ao seu conteúdo em substâncias imunológicas, o leite materno protege o recém-nascido contra infecções bacterianas do sistema gastrintestinal, poliomielite, alergias, obesidade e certos distúrbios metabólicos • O leite materno é isento de bactérias e não estraga, exceto na amamentação artificial em áreas tropicais, onde a esterilização e a refrigeração dos alimentos são deficientes ou inexistentes • É econômica e conveniente desde que a mãe possa alimentar o filho quando queira, não havendo necessidade de preparo • Psicologicamente recompensadora para a mãe e para o bebê • Relativamente efetiva como método anticoncepcional, pois as lactantes, enquanto amenorreicas, não costumam conceber. A lactação faz demandas fisiológicas nutricionais expressivas à mãe. A quantidade adicional de calorias e de nutrientes requeridos foi tratada no capítulo sobre nutrição (Capítulo 11). Nessa fase, é importante considerar a possibilidade de diversos medicamentos, a nicotina, o álcool e outras substâncias, como será visto adiante, serem eliminados pela secreção láctea, em face de possíveis efeitos ominosos para o recém-nascido.
■ Fisiologia da lactação A fisiologia mamária está intimamente relacionada com a esfera neuroendócrina e pode ser dividida, fundamentalmente, em três processos: • Mamogênese, o desenvolvimento da glândula mamária • Lactogênese, o início da lactação
• Lactopoese, a manutenção da lactação.
■ Mamogênese ▶ Anatomia. A unidade morfofuncional das mamas é o ácino mamário, forrado por camada única de células epiteliais secretoras de leite (Figura 16.1). Cada ácino está envolvido por células mioepiteliais e rede capilar encorpada. Células contráteis musculares abraçam os canais intralobulares que se relacionam com o lúmen dos ácinos e alcançam o mamilo pelos canais galactóforos. O desenvolvimento da glândula mamária inicia-se com a puberdade e termina com o climatério ou com a castração. Na gravidez, o crescimento é acelerado. A seguir são apresentados os efeitos dos diversos hormônios sobre a mamogênese (Figura 16.2). ▶ Esteroides sexuais. Na menácma, os esteroides sexuais ovarianos exercem, por meio dos estrogênios, efeitos proliferativos nos canais mamários, enquanto a progesterona, em atuação conjunta com aqueles, produz o crescimento e a expansão dos ácinos. ▶ Complexo lactogênico. A diferenciação completa do tecido funcional da mama requer, além dos esteroides sexuais, a participação de diversos outros hormônios que constituem o complexo lactogênico: prolactina (PRL), hormônio do crescimento (GH), cortisol e, secundariamente, tireoxina e insulina. ▶ Gestação. Com a produção acentuada de estrogênios e de progesterona, acentua-se o crescimento das estruturas glandulares mamárias.
Figura 16.1 ■ Unidade morfofuncional da glândula mamária.
Figura 16.2 ■ Fisiologia da mama.
A elevação dos níveis de PRL na gravidez ocorre à custa da hiperplasia e da hipertrofia das células lactóforas situadas na adeno-hipófise. A elevação dos níveis de PRL parece ter íntima relação com a menor produção de dopamina hipotalâmica, o fator inibidor da prolactina (PIF).
■ Lactogênese Durante os primeiros 2 dias do pós-parto há poucas transformações nas mamas. É possível observar apenas secreção de colostro, substância amarelada já existente na gravidez, com grande concentração de proteínas (Tabela 16.1), anticorpos e células tímicas, que ajudam a imunizar o bebê contra infecções, particularmente gastrintestinais. Pelo 3o dia de pós-parto, todavia, ocorre aumento na consistência das mamas, que se tornam pesadas, congestas e dolorosas. Algumas pacientes chegam a referir a sensação de “formigamento”. É a “subida do leite”, ou apojadura. O aumento do fluxo sanguíneo local e a intensificação dos fenômenos secretórios produzem calor na região, que pode ser confundido com elevação térmica patológica (“febre do leite”). O leite materno é constituído por proteínas, carboidratos, lipídios, sais minerais e vitaminas (Tabela 16.1). A lactogênese é considerada o início da produção láctea, que não ocorre na gravidez em função do efeito inibitório da progesterona, que impede a atuação da PRL nos seus receptores nas células mamárias. Após o parto, com o declínio acentuado dos esteroides ovarianos placentários, desaparecem os efeitos inibidores sobre os receptores de PRL, que se constitui como o principal
hormônio da lactogênese. A produção láctea adequada pressupõe que a glândula mamária esteja plenamente desenvolvida, sendo relevante a contribuição de outros hormônios, como insulina, corticoides, tireoxina. Os mecanismos neuroendócrinos envolvidos na lactação são complexos. A progesterona, o estrogênio e o lactogênio placentário humano (hPL), assim como a PRL, o cortisol, a tireoxina e a insulina, agem em conjunto para estimular o crescimento e o desenvolvimento do aparelho lácteosecretor da glândula mamária. Após o parto há queda abrupta e profunda dos níveis de progesterona e de estrogênio, o que remove a influência inibitória da progesterona na produção da lactalbumina-α pelo retículo endoplasmático, promovendo a ação da PRL. O aumento da lactalbumina-α estimula a secreção da lactose láctea.
Tabela 16.1 ■ Composição do colostro e do leite humano. Colostro
Leite
Proteínas
6%
1%
Lipídios
2,5%
3,5%
Glicídios
3,0%
7,0%
■ Lactopoese Iniciada a lactação (lactogênese), ela é mantida (lactopoese) pela existência do reflexo neuroendócrino da sucção (Figura 16.2) do mamilo pelo lactente, que age no eixo hipotalâmicohipofisário e culmina por determinar a liberação de PRL (aumento dos níveis de 6 a 9 vezes) e de ocitocina. O ato da sucção por via medular inibe a dopamina hipotalâmica, aqui chamada PIF, promovendo, em última análise, a liberação da PRL (Figura 16.3). A PRL mantém a secreção láctea (proteínas, caseína, ácidos graxos, lactose) e a ocitocina age nas células mioepiteliais e musculares situadas, respectivamente, ao redor dos ácinos e dos canais intralobulares e determina a contração deles com a consequente ejeção láctea. A solicitação repetida do mamilo, com o esvaziamento continuado dos ácinos, resulta em intensificação da produção de leite. A intensidade e a duração da lactação são controladas, em parte, pelo estímulo repetitivo da amamentação. A PRL é essencial para a lactação. Embora, após o parto, a PRL plasmática caia a níveis inferiores aos da gravidez, cada ato de sucção do mamilo estimula a sua produção. Provavelmente o estímulo do mamilo refreia a PIF hipotalâmica, possibilitando o aumento da secreção de PRL. A neuro-hipófise também secreta ocitocina em pulsos. Isso estimula a ejeção do leite ao
causar a contração das células mioepiteliais do alvéolo mamário.
Figura 16.3 ■ Lactopoese. A sucção do mamilo determina a inibição (setas vermelhas) da dopamina hipotalâmica, liberando a secreção da prolactina. PIF, fator liberador da prolactina. (Adaptada de Gadelha, MR.)
O leite é produzido no intervalo das mamadas, de forma a ficar armazenado na glândula mamária. A síntese do leite é um processo lento e não poderia completar-se no decurso da amamentação, episódio fisiológico relativamente rápido. Na 1a semana pós-parto (colostro), após a secreção da glândula mamária, segue-se um “leite de transição”, por 2 a 3 semanas, para, finalmente, surgir o “leite maduro”, definitivo. Metade do conteúdo proteico elevado do colostro é composto de globulinas, que parecem idênticas às gamaglobulinas do plasma. Por esse meio, há proteção imunológica pós-natal, posto que anticorpos maternos assim veiculados são absorvidos no intestino sem digestão (presença de inibidor da tripsina). Os corpúsculos de Donné, compostos de leucócitos, histiócitos, linfócitos e células epiteliais descamados, são típicos do colostro.
■ Ato da amamentação A amamentação será iniciada quando completadas as primeiras horas, ou antes mesmo, e embora as características nutritivas do leite (colostro) ainda sejam imperfeitas, ele deve ser ministrado para a hidratação adequada do recém-nascido, visando, também, como foi referido, à proteção contra determinadas infecções, em virtude da ação de anticorpos nele presentes. A mãe inicia a amamentação colocando o mamilo na boca do bebê que, ao sugá-lo, comprime a aréola com o seu maxilar de maneira a forçar para o exterior o leite acumulado nos canais galactóforos subareolares. Depois de a criança ter sugado um dos seios por 10 min, o processo deve ser repetido no outro. Na próxima mamada a ordem deve ser invertida a fim de facilitar o esvaziamento das mamas. A paciente deve ser orientada a não aplicar nenhum tipo de creme nem pomada na área aréolomamilar, durante toda a gestação e no período do aleitamento, pois sua utilização aumenta o risco de traumas mamilares. Além disso, a higiene dos mamilos com água ou qualquer outra substância, antes e depois das mamadas, está contraindicada porque remove a camada
hidrolipídica, formada naturalmente pela secreção das glândulas sudoríparas, sebáceas, pelos tubérculos de Montgomery e pelo leite materno. Essa camada tem como finalidade lubrificar a região mamilo-areolar. As mamas devem ser lavadas apenas no banho diário. A mulher que amamenta toda vez que o recém-nascido solicita tem melhor lactação do que aquela que só atende a um esquema rígido – a amamentação incrementa a lactação. O esvaziamento incompleto dos seios determina produção láctea inadequada; o leite elaborado em excesso, além das necessidades do bebê, deve ser eliminado manualmente ou com bomba de sucção.
■ Quantidade normal de leite produzida Varia de acordo com a mulher e as necessidades do bebê. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima em 850 mℓ (600 kcal) por dia, valor médio satisfatório nos 6 primeiros meses de amamentação. Todavia, pondera-se que a melhor maneira de avaliar a lactação adequada é pelo crescimento do bebê: ganho de 800 g ± 20% ao mês durante os 6 primeiros meses de vida, ou a duplicação do peso do nascimento à altura do 4o mês são parâmetros satisfatórios.
■ Lactação e fertilidade A lactação condiciona efeito contraceptivo temporário. Da mesma maneira que a sucção do mamilo inibe a liberação da PIF hipotalâmica, com elevação da PRL, o hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH) está reduzido a níveis não ovulatórios. As mães que amamentam integralmente podem ficar amenorreicas no pós-parto por 8 a 12 meses, enquanto as não lactantes, por menos de 2 meses. A amamentação de curta duração (poucas semanas) ou parcial é menos eficiente em prolongar a amenorreia pós-parto. Cerca de 80% das puérperas ovulam antes da 1a menstruação. Nas que o fazem entre 1 e 2 meses, 65% dos catamênios foram precedidos de ovulação, e naquelas que sangram após 2 meses, a taxa aumenta para 85%. No fim de 6 meses de puerpério, 90% das pacientes já ovularam. As mulheres que amamentarem integralmente, enquanto amenorreicas, não conceberão (3 a 10% de falhas). A fim de se evitar a gravidez, aconselha-se o uso de proteção anticoncepcional às não lactantes, 30 a 40 dias, e às lactantes, após 3 a 6 meses, se ainda amenorreicas, ou indistintamente após o retorno das menstruações. Os anovulatórios orais combinados podem inibir a produção láctea e devem ser evitados. Nas nutrizes são preferidos os métodos físicos (dispositivo intrauterino, diafragma, condom, esponjas), sendo permitidos os progestógenos em microdoses. Aparentemente, os hormônios elaborados pela lactante não são capazes de atuar na criança através do leite. Entretanto, atribuiu-se aos esteroides das pílulas anticoncepcionais a possibilidade de causar icterícia. Nada foi comprovado, e a ação inibidora sobre a própria lactação somente é verificada se instituída precocemente. Os agentes farmacológicos cruzam a membrana celular por microporos, por difusão ou por transporte ativo; e, ainda, vão diretamente ao leite via espaços intercelulares do epitélio alveolar.
Em maioria, os medicamentos ingeridos aparecem no leite, em concentração que usualmente não excede 1% da dose, e é independente do volume da secreção. Na Tabela 16.2 resumem-se alguns medicamentos que impedem a amamentação por interferirem no lactente.
Tabela 16.2 ■ Medicamentos que contraindicam o aleitamento materno. Amiodarona Androgênios Antitireoidianos (exceto propiltiouracila) Antimetabólitos Fenindiona Brometos Contraceptivos hormonais combinados Sais de ouro Tetraciclina Cloranfenicol Primidona Preparações radioativas (apenas temporariamente)
■ Término da lactação A secreção láctea finda quando cessa a amamentação. A falta de estímulo mamilar impede a liberação de ocitocina e, em consequência, não há ejeção láctea. A produção de leite pelo ácino túrgido é reduzida por efeito local do aumento da pressão. A ausência de sucção reativa a produção de PIF de modo a impedir a secreção de PRL. Com a reabsorção do leite no lúmen do ácino mamário, esse acaba por “secar”.
■ Inibição da lactação As medidas adequadas são: • Mamas suspensas por sutiãs ajustados, durante 3 a 10 dias • Bolsa de gelo por 10 min, 4/dia • Não possibilitar a sucção pelo recém-nascido ou a expressão dos mamilos • Utilização de cabergolina
o ○ Inibição da lactação: dose única de 1 mg (2 comprimidos de 0,5 mg), via oral, no 1 dia do pós-parto
○ Suspenção da lactação: 0,25 mg (1 comprimido de 0,25 mg) 2/dia, via oral, por 2 dias.
■ Pontos-chave A amamentação natural apresenta inúmeras vantagens para a mãe e para o filho: o leite materno é altamente nutritivo, podendo suprir todas as necessidades alimentares do bebê durante os 4 a 6 primeiros meses de vida. Devido à sua composição e, principalmente, ao seu conteúdo em substâncias imunológicas, o leite materno protege o recém-nascido contra infecções bacterianas do sistema gastrintestinal, poliomielite, alergias, obesidade e certos distúrbios metabólicos. O leite materno é isento de bactérias e não se estraga. A amamentação natural é econômica e conveniente psicologicamente desde que a mãe possa alimentar o filho quando queira, não havendo necessidade de preparo. A amamentação só funciona com segurança (90%) como método contraceptivo se forem atendidas três condições (OMS, 2000): amamentação exclusiva + 6 meses iniciais + amenorreia. Aspecto relevante a ser considerado é a possibilidade de medicamentos, nicotina e álcool e outras substâncias, serem eliminados pela secreção láctea e prejudicarem o recém-nascido. A fisiologia mamária está intimamente relacionada com a esfera neurendócrina e pode ser dividida, fundamentalmente, em três processos: mamogênese (desenvolvimento da glândula mamária), lactogênese (início da lactação) e lactopoese (manutenção da lactação). O desenvolvimento da glândula mamária inicia-se na puberdade, se faz durante toda a menácma e especialmente durante a gravidez. A diferenciação completa do tecido funcional da mama requer, além dos esteroides sexuais, a participação de diversos outros hormônios que constituem o complexo lactogênico: prolactina (PRL), hormônio do crescimento (GH), cortisol, tireoxina e insulina. A lactogênese, na verdade, é determinada pela ação da PRL nas mamas, posto que, em virtude da queda acentuada dos estrogênios e da progesterona após o parto, cessa a inibição do receptor mamário. Nos primeiros 2 dias do pós-parto há apenas secreção de colostro (leite com grande concentração de proteína) e a apojadura só se dá habitualmente no 3o dia. A lactação é mantida (lactopoese) pelo reflexo neuroendócrino da estimulação do mamilo pelo lactente, que por meio do eixo hipotalâmico-hipofisário culmina por determinar a liberação de PRL e de ocitocina. A PRL mantém a secreção láctea, e a ocitocina age nas células mioepiteliais e musculares ao redor de ácinos e de canais intralobulares e determina a ejeção láctea. Para impedir a lactação são indicadas as seguintes medidas: mamas suspensas por sutiãs ajustados, bolsa de gelo e cabergolina. O ideal é não esvaziar manualmente as mamas, pois pode estimular a secreção láctea.
17 Hiperêmese Gravídica
18 Toxemia Gravídica: Pré-eclâmpsia/Eclâmpsia 19 Abortamento 20 Gravidez Ectópica 21 Doença Trofoblástica Gestacional 22 Placenta Prévia 23 Descolamento Prematuro da Placenta 24 Coagulação Intravascular Disseminada. Choque. Reanimação Cardiopulmonar. Reanimação Neonatal 25 Polidramnia. Oligoidramnia 26 Ruptura Prematura das Membranas 27 Gravidez Gemelar 28 Parto Pré-termo 29 Crescimento Intrauterino Restrito 30 Gravidez Prolongada 31 Doença Hemolítica Perinatal 32 Obesidade 33 Diabetes Melito 34 Lúpus Eritematoso Sistêmico e Trombofilias 35 Cardiopatias 36 Hipertensão Crônica 37 Infecção Urinária e Doença Renal Crônica 38 Doença Tromboembólica Venosa 39 Doenças Infecciosas 40 Câncer Genital e Indicações da Cirurgia Não Obstétrica 41 Anemia 42 Discinesias 43 Sofrimento Fetal Agudo 44 Distocias do Trajeto, Desproporção Cefalopélvica e Distocia de Ombros 45 Apresentações Anômalas
46 Distocias do Cordão Umbilical 47 Ruptura Uterina e Laceração do Trajeto 48 Secundamento Patológico 49 Infecção Puerperal 50 Hemorragia Pós-parto 51 Patologia da Lactação
■ Definição e incidência ■ Etiologia e fatores de risco ■ Quadro clínico ■ Diagnóstico diferencial ■ Repercussões na gravidez ■ Diagnóstico laboratorial e ultrassonográfico ■ Tratamento
■ Definição e incidência A êmese gravídica, vômitos simples do início da gestação, e a hiperêmese gravídica, vômitos incoercíveis da gravidez, diferem apenas na intensidade e na repercussão clínica de seus efeitos. Tratam-se do mesmo processo, no entanto, a hiperêmese configura a forma grave (Figura 17.1). Náuseas e vômitos da gravidez são condições comuns que afetam 70 a 85% das grávidas. Em 60% dos casos, cessam ao fim do 1o trimestre; em 90% dos casos, com 20 semanas. Do ponto de vista epidemiológico, a hiperêmese gravídica é cada vez mais rara, e ocorre em 0,5 a 2% das gestações (American College of Obstetricians and Gynecologists — ACOG, 2004). Não há definição única para a hiperêmese gravídica, sendo a mais aceita aquela que considera a perda ponderal de, no mínimo, 5% do peso prégravídico; anormalidades como desidratação e desnutrição (cetonúria) costumam estar presentes. A hiperêmese gravídica é a segunda causa mais frequente de internação hospitalar; a primeira é o parto pré-termo.
■ Etiologia e fatores de risco A etiologia de náuseas e vômitos da gravidez ainda é imprecisa. Especula-se como candidatos prováveis os hormônios placentários, gonadotrofina coriônica humana (hCG) e estrogênios, talvez interrelacionados. Sabe-se, com certeza, que o pico dos sintomas de náuseas e vômitos da gravidez está associado ao da hCG (Figura 17.2). Além disso, hCG e estrogênios têm seus níveis elevados nas gestações gemelar e molar, reconhecidamente relacionadas com o exagero de náuseas e vômitos da gestação.
Figura 17.1 ■ História natural de náuseas e vômitos da gravidez.
Entre os fatores de risco, podem ser citadas a história de hiperêmese gravídica em gestação anterior, a história familiar (mãe, irmã) e a gravidez de feto feminino. É provável que o conceito de que náuseas e vômitos da gravidez represente conflito psicológico tenha impedido o progresso para o conhecimento da verdadeira causa da doença (ACOG, 2004).
Figura 17.2 ■ Relação entre o pico da gonadotrofina coriônica humana (hCG) e o pico dos sintomas das náuseas e dos vômitos da gravidez.
■ Quadro clínico O quadro clínico decorre, inicialmente, de perdas hidreletrolíticas; mais tarde, da desnutrição. Nas pacientes negligenciadas, a deficiência de carboidratos acelera o metabolismo dos lipídios, resultando no aparecimento de corpos cetônicos na urina: quadro denominado cetonúria. Quando a desnutrição está muito avançada, ocorre deficiência de tiamina (vitamina B1), que conduz ao quadro neurológico/psiquiátrico da síndrome de Wernicke-Korsakoff. A separação da hiperêmese gravídica em duas formas clínicas, de média e de grave intensidade, é clássica: • Formas médias: pacientes abandonadas na êmese simples, por 2 a 4 semanas, com perda ponderal discreta, de 5% do peso pré-gravídico; o pulso mantém-se abaixo de 100 bpm • Formas graves: a perda ponderal é acentuada, 6 a 8%, e o pulso mostra-se rápido, acima de 100 bpm; cetonúria pontual.
■ Diagnóstico diferencial Náuseas e vômitos nas primeiras 9 semanas da gravidez acometem quase todas as grávidas. Quando a paciente experimenta náuseas e vômitos após 9 semanas, outras condições, em sua maioria intercorrentes na gravidez, devem ser cogitadas (Tabela 17.1) (ACOG, 2004).
■ Repercussões na gravidez
A encefalopatia de Wernicke, a síndrome de Mallory-Weiss, a ruptura do esôfago, o pneumomediastino e a necrose tubular aguda são importantes repercussões na gravidez (ACOG, 2004). Embora seja rara hoje em dia, a morte por hiperêmese gravídica tem sido associada à síndrome de Wernicke-Korsakoff. A síndrome de Wernicke corresponde à instalação de sintomas agudos como ataxia (predominantemente da marcha), disfunção vestibular, confusão e uma variedade de anormalidades da motilidade ocular frequentemente bilaterais. O quadro evolui para a condição crônica, chamada de síndrome de Korsakoff, caracterizada por perda da memória de fixação e desorientação temporoespacial, podendo ou não haver confabulações associadas. A síndrome negligenciada evolui com sequelas, por vezes, irreversíveis. O tratamento imediato com tiamina na síndrome de Wernicke é eficaz em dias a poucas semanas.
Tabela 17.1 ■ Diagnóstico diferencial de náuseas e vômitos da gravidez. Doenças gastrintestinais • Gastroenterite • Hepatite • Obstrução intestinal • Úlcera péptica • Pancreatite • Colecistite • Apendicite Doenças do sistema genitourinário • Pielonefrite • Cálculo renal • Uremia • Torsão do ovário • Degeneração miomatosa Doenças metabólicas • Cetoacidose diabética • Porfiria • Doença de Addison • Hipertireoidismo
Doenças neurológicas • Lesões vestibulares • Enxaqueca • Tumores do SNC Outras • Intoxicação/Intolerância medicamentosa • Psiquiátricas Condições relacionadas com a gravidez • Esteatose hepática aguda da gravidez • Pré-eclâmpsia
Simplificada do ACOG, 2004.
A morbidade psicossocial associada à hiperêmese gravídica pode resultar em indicação para a interrupção da gravidez. Em relação ao feto, tem-se observado menor incidência de abortamento e risco aumentado de recém-nascido pequeno para a idade gestacional (PIG). No entanto, a paciente deve ser informada de que a ocorrência de náuseas e vômitos da gravidez, e mesmo da hiperêmese gravídica, na maioria das vezes, evolui com bom prognóstico materno e fetal (ACOG, 2004).
■ Tireotoxicose gestacional O hipertireoidismo transitório da hiperêmese gravídica acompanha o quadro de náuseas e vômitos incoercíveis da gravidez e caracteriza-se por níveis de T4 livre e total elevados, hormônio estimulante da tireoide (TSH) não detectável e testes de tireoide para autoanticorpos negativos; não há oftalmopatia, nem bócio. A história médica não revela hipertireoidismo antecedendo a gravidez, o que caracterizaria a doença de Graves. Frequentemente há relato da tireotoxicose em gravidez anterior, assim como história familiar. A normalização da hipertireotoxinemia ocorre espontaneamente por volta de 14 a 20 semanas, paralelamente com a melhora do quadro da hiperêmese. Não há indicação de antitireoidianos, mas um β-adrenérgico pode ser recomendado. A tireotoxicose gestacional também é comum na gravidez múltipla e na doença trofoblástica gestacional.
■ Diagnóstico laboratorial e ultrassonográfico A maioria das pacientes com náuseas e vômitos não necessita de avaliação laboratorial. Em
casos de hiperêmese gravídica, podem ser requisitados exames laboratoriais para avaliar a gravidade da doença e estabelecer o diagnóstico diferencial. Anormalidades laboratoriais na hiperêmese gravídica incluem: aumento das enzimas hepáticas (< 300 UI/ℓ) bilirrubina sérica (< 4 mg/dℓ) e amilase e lipase séricas (aumento de até 5 vezes o limite normal). O exame de urina pode revelar aumento da densidade e cetonúria. Nos casos de hiperêmese gravídica, a ultrassonografia é útil para identificar gestação gemelar ou molar.
■ Tratamento O uso de suplemento multivitamínico no início da gravidez pode reduzir a intensidade de náuseas e vômitos, e simples mudanças alimentares (refeições fracionadas e ricas em proteínas) podem resolver casos leves. O tratamento de náuseas e vômitos na gravidez está hierarquizado na Figura 17.3 e as doses de medicação são apresentadas na Tabela 17.2. Deve ser considerada de 1a linha a associação piridoxina (vitamina B6) e doxilamina (anti-histamínico H1). O uso do gengibre, em doses de até 250 mg 4 vezes/dia, tem sido efetivo para reduzir a frequência dos vômitos (ACOG, 2004; Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia [FEBRASGO], 2013). Na hiperêmese gravídica é mandatória a hospitalização. A paciente deve ser pesada e o quadro clínico é muito importante para avaliar a gravidade do caso; os exames laboratoriais, em geral, não são obrigatórios. A alimentação oral é suspensa. O antiemético de eleição é a ondansetrona, na dose de 4 mg por via intravenosa de 12/12 h. Este fármaco foi recentemente liberado para uso na gravidez. A administração de corticoide na hiperêmese gravídica deve ser cautelosa, respeitando-se o 1o trimestre da gravidez. O esquema usual é a metilprednisolona, na dose de 16 mg por via oral ou intravenosa de 8/8 h, por 3 dias. Para aquelas que respondem ao tratamento, a dose deve ser reduzida, progressivamente, no prazo de 2 semanas. É razoável tentar inicialmente a alimentação enteral (ACOG, 2004). A hidratação intravenosa é indicada para pacientes que não toleram a alimentação oral ou com sinais clínicos de desidratação. A hidratação intravenosa é feita com solução fisiológica ou lactato de Ringer, com aporte de glicose e de vitaminas, especialmente tiamina (vitamina B1) (100 mg de tiamina/litro de solução). A reposição de potássio raramente é necessária. A nutrição parenteral causa risco significativo de 25% de infecção no cateter de administração. A retomada da alimentação oral deve ser gradual, e após cessados os vômitos por, no mínimo, 48 h. Atualmente, o abortamento terapêutico tem indicação excepcional, apenas nos casos não responsivos ao tratamento clínico adequado, e para salvar a vida da paciente.
Figura 17.3 ■ Tratamento hierarquizado de náuseas e vômitos na gravidez.
Tabela 17.2 ■ Tratamento farmacológico das náuseas e dos vômitos na gravidez. Medicação
Dose oral
Comentário
Vitamina B 6 (piridoxina) + doxilamina
Piridoxina 10 a 25 mg 8/8 h + doxilamina 25 mg ao deitar; 12,5 mg pela manhã e à noite, se necessário
Medicação de 1a linha
Doxilamina (anti-histamínico)
12,5 a 25 mg 8/8 h
–
Prometazina (fenotiazínico)
25 mg 4/4 h ou 8/8 h
–
Metoclopramida
10 mg 6/6 h
–
Ondansetrona
4 a 8 mg 6/6 h
–
Metilprednisolona
16 mg 8/8 h por 3 dias; reduzir durante 2 semanas
Proibida no 1o trimestre; VO ou IV
Gengibre
125 a 250 mg 6/6 h
–
■ Pontos-chave Entre a êmese gravídica, vômitos simples do início da gravidez, e a hiperêmese gravidíca, vômitos incoercíveis, existe apenas diferença de intensidade, assim como a repercussão clínica de seus efeitos. Do ponto de vista epidemiológico, a hiperêmese gravídica é cada vez mais rara, e ocorre em 0,5 a 2% das gestações. O uso de suplemento multivitamínico no início da gravidez pode reduzir a intensidade das náuseas e vômitos, e simples mudanças alimentares (refeições fracionadas e ricas em proteínas) podem resolver casos leves. O tratamento de náuseas e vômitos com piridoxina (vitamina B6) e doxilamina (anti-histamínico H1) é seguro, e deve ser considerado como de 1a linha. O uso do gengibre pode ser uma opção efetiva não farmacológica para tratar náuseas e vômitos da gravidez. Em casos reincidentes de náuseas e vômitos, podem ser utilizados: fenotiazínicos, metoclopramida e ondansetrona. A metilprednisolona pode ser eficaz em casos refratários de hiperêmese gravídica. É razoável tentar inicialmente a alimentação enteral. A hidratação intravenosa é indicada para pacientes que não toleram a alimentação oral, cuidando-se do aporte de glicose e de vitaminas, especialmente a tiamina (vitamina B1). Atualmente abortamento terapêutico tem indicação excepcional, apenas nos casos não responsivos ao tratamento clínico adequado, e para salvar a vida
da paciente.
■ Classificação da hipertensão na gravidez ■ Etiopatogenia ■ Fisiopatologia ■ Diagnóstico ■ Predição ■ Prevenção ■ Prognóstico ■ Tratamento
A toxemia gravídica é uma doença multissistêmica que costuma ocorrer na 2a metade da gestação, caracterizada classicamente por hipertensão e proteinúria. Nas suas formas graves, instala-se a convulsão, e a doença antes chamada pré-eclâmpsia, passa a ser denominada eclâmpsia. A pré-eclâmpsia é um processo dinâmico; a caracterização de “pré-eclâmpsia leve” aplica-se apenas ao momento do diagnóstico, pois a toxemia, por natureza, é progressiva, embora possa se apresentar com taxas diversas. Para o tratamento adequado da doença, é mandatória a reavaliação frequente para surpreender sinais graves de comprometimento. Além disso, sabe-se que a préeclâmpsia pode piorar ou se apresentar pela 1a vez no pós-parto, tornando-se cenário maior para efeitos adversos maternos. A toxemia gravídica é a doença mais importante em Obstetrícia. Entre nós, incide em cerca de 10% das grávidas, principalmente primíparas, sendo a maior causa de mortalidade materna e perinatal. Nos países desenvolvidos, a incidência da toxemia é de 3 a 5%. Aproximadamente 70% dos distúrbios hipertensivos na gravidez são provenientes da toxemia e 30% são decorrentes de hipertensão crônica. A hipertensão crônica incide em 5% das gestações e está associada à morbidade fetal na forma do crescimento intrauterino restrito (CIR) e à morbidade materna manifesta por grave elevação da pressão sanguínea. Todavia, as morbidades materna e fetal aumentam dramaticamente quando a pré-eclâmpsia é superajuntada à hipertensão crônica. A hipertensão crônica tem particularidades próprias e será tratada em capítulo exclusivo (Capítulo 36). Na América Latina e no Caribe, incluindo o Brasil, os distúrbios hipertensivos destacam-se como a principal causa de mortalidade materna (~ 26%), e nos países desenvolvidos, a 2a mais importante (~ 16%) (OMS, 2006). Uma publicação mais recente (2014) revela que a préeclâmpsia/eclâmpsia é mais comum e mais grave em mulheres de descendência africana. Hoje também há evidências claras de que a préeclâmpsia está associada a doença cardiovascular (DCV) mais tarde na vida.
■ Classificação da hipertensão na gravidez Será adotada a classificação da Força-tarefa sobre Hipertensão na Gravidez, registrada pelo American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), em 2013. A hipertensão na gravidez é classificada em apenas 4 categorias: (1) préeclâmpsia/eclâmpsia; (2) hipertensão crônica (de qualquer causa); (3) hipertensão crônica com pré-eclâmpsia superajuntada; e (4) hipertensão gestacional. A Força-tarefa eliminou a dependência de proteinúria para o diagnóstico de pré-eclâmpsia grave. Na ausência de proteinúria, a pré-eclâmpsia grave é diagnosticada como hipertensão associada a trombocitopenia (contagem de plaquetas < 100.000/mm3), alteração na função hepática (elevação das enzimas transaminases de 2 vezes a concentração normal),
desenvolvimento de insuficiência renal (creatinina no soro > 1,1 mg/dℓ ou sua duplicação, inexistente outra doença renal), edema de pulmão e distúrbios cerebrais ou visuais (Tabela 18.1). A hipertensão gestacional é a elevação da pressão sanguínea após 20 semanas de gestação, na ausência de proteinúria ou das alterações sistêmicas já descritas. A hipertensão crônica é aquela que antecede a gravidez; e, a pré-eclâmpsia superajuntada é a hipertensão crônica associada à préeclâmpsia.
Tabela 18.1 ■ Critérios diagnósticos de pré-eclâmpsia. Pressão sanguínea
Sistólica ≥ 140 mmHg ou diastólica ≥ 90 mmHg, em duas ocasiões espaçadas de no mínimo 4 h, após 20 semanas da gravidez, em mulher com pressão arterial prévia normal Sistólica ≥ 160 mmHg ou diastólica ≥ 110 mmHg, confirmada em intervalo curto (minutos) para iniciar a terapia anti-hipertensiva imediata
E
Proteinúria
≥ 300 mg/24 h Relação proteína/creatinina ≥ 0,3 (ambas em mg/dℓ) Fita = 1+ (utilizada apenas ausentes os métodos quantitativos)
OU Na ausência de proteinúria, qualquer um dos seguintes: Trombocitopenia
Contagem de plaquetas < 100.000/mm 3
Insuficiência renal
Creatinina no soro > 1,1 mg/dℓ ou a sua duplicação, na ausência de outras doenças renais
Comprometimento da função hepática
Elevação das transaminases de duas vezes a concentração
Edema de pulmão Sintomas cerebrais ou visuais
ACOG, 2013.
■ Etiopatogenia ■ Doença em três estágios É proposto um mecanismo imune da pré-eclâmpsia em 3 estágios (Figura 18.1). A princípio haveria um estágio 0, pré-concepcional, no qual se acentua a importância do sêmen paterno. A exposição préconcepcional ao sêmen/líquido seminal apresenta antígenos paternos ao complexo MHC, induzindo a acumulação de células T regulatórias e tornando a mãe tolerante aos aloantígenos feto-paternos. A incapacidade dessa imunorregulação aumentaria o risco de préeclâmpsia. Essa teoria explicaria porque a pré-eclâmpsia é mais comum na 1a gravidez e porque gestações subsequentes com o mesmo parceiro oferecem proteção à doença.
O estágio 1 é o da desregulação imunológica, resposta parcial da tolerância materna ao trofoblasto. O estágio 2 caracteriza a placentação defeituosa, na qual tomariam parte, além do trofoblasto extravilositário, as células natural killer (NK) e os macrófagos. A placentação defeituosa conduz ao estresse oxidativo e à liberação aumentada na circulação materna de diversos fatores. Finalmente, o estágio 3 é o da reação inflamatória materna sistêmica exaltada e o da disfunção endotelial, que conduzem ao diagnóstico clínico da pré-eclâmpsia – hipertensão e proteinúria.
■ Placentação defeituosa ■ Desenvolvimento da circulação uteroplacentária Até pouco tempo, não havia consenso a respeito da origem das artérias basais – na decídua ou no miométrio –, pois esse ponto é considerado a linha de demarcação entre as artérias radiais e as espiraladas (Figura 18.2). Contudo, observações decorrentes de biopsias de leito placentário confirmaram a origem miometrial das artérias basais, que nutriam tanto a porção interna do miométrio como o endométrio basal. Por conseguinte, passou-se a adotar a designação espiraladas para as artérias miometriais internas. As artérias do endométrio e do terço superficial do miométrio, que formam o suprimento final de sangue à placenta, são as artérias espiraladas (Figura 18.3). As paredes das artérias espiraladas têm constituição normal, com tecido elástico e muscular similar ao de outras artérias médias/pequenas do restante do corpo, e são vasoativas. Para conduzir o aumento do fluxo sanguíneo uterino 10 vezes maior que ocorre na gravidez, essas artérias são transformadas em vasos não complacentes, de baixa resistência. É o que se chama de alterações vasculares fisiológicas ou remodelação vascular, fenômeno resultante da interação entre o trofoblasto extravilositário e os vasos maternos, processo fundamental para o desenvolvimento adequado da gestação.
Figura 18.1 ■ Teoria imunológica da pré-eclâmpsia. A pré-eclâmpsia desenvolve-se em estágios e apenas o último revela a doença clínica, gerada por resposta inflamatória sistêmica materna, não específica, secundária ao estresse oxidativo placentário. A adaptação materna aos aloantígenos fetopaternos é comum nos estágios iniciais. Após a concepção, células T regulatórias que interagem com a indoleamina 2,3-dioxigenase, junto com o reconhecimento pelas células NK deciduais do HLA-C fetal situado no trofoblasto extravilositário, podem, pela imunorregulação, facilitar a placentação. A falência parcial desse mecanismo (desregulação imunológica) é capaz de determinar placentação defeituosa e perfusão uteroplacentária insuficiente. (Adaptada de Redman e Sargent, 2010.)
Figura 18.2 ■ Anatomia vascular do útero grávido de acordo com Ramsey e Donner (1980) e Brosens et al. (1967). Em virtude da incerteza sobre o local da origem das artérias basais, Ramsey considerava todo o segmento miometrial como artéria radial. Após confirmação posterior da origem profunda das artérias basais, as artérias espiraladas foram reconhecidas como portadoras de segmentos tanto miometriais como deciduais. (Adaptada de Pijnenborg et al., 2006.)
Figura 18.3 ■ Anatomia da circulação uteroplacentária. (Adaptada de Romero, R., Gonçalves, L.F., Ghezzi, F. et al., 2000.)
Esse processo de remodelação vascular fisiológica das artérias espiraladas durante a gestação envolve segmentos da decídua da zona de junção (ZJ) miometrial. A placentação profunda defeituosa, descrita primeiramente na pré-eclâmpsia e no crescimento intrauterino restrito (CIR), foi caracterizada por remodelação ausente ou incompleta do segmento da ZJ das artérias espiraladas. Nos últimos anos, a placentação profunda defeituosa passou a ser associada a inúmeras doenças obstétricas, tais como pré-eclâmpsia, CIR, parto pré-termo, ruptura prematura das membranas prétermo (RPMP), descolamento prematuro da placenta (DPP) e abortamento tardio, que compõem o capítulo das grandes síndromes obstétricas.
■ Remodelação fisiológica das artérias espiraladas Identificadas as alterações fisiológicas das artérias espiraladas no leito placentário, atribui-se ao trofoblasto a ação destruidora na musculatura vascular e na membrana elástica do vaso. Embora o músculo liso vascular torne-se desorganizado antes da chegada do trofoblasto endovascular, essa desorganização é estimulada pelo trofoblasto intersticial. Outro aspecto relevante a se considerar é a invasão endovascular na ZJ miometrial, considerada a 2a onda de migração trofoblástica, que ocorre 4 semanas após a 1a. As 5 fases da remodelação vascular das artérias espiraladas podem ser resumidas da seguinte maneira (Figura 18.4): • Fase 1: início da remodelação vascular com vacuolização do endotélio e tumescência das
células musculares lisas • Fase 2: invasão do trofoblasto intersticial no estroma e no tecido perivascular, induzindo desorganização na camada vascular e fragilidade na lâmina elástica das artérias espiraladas • Fase 3: ondas de migração do trofoblasto endovascular que invadem o lúmen das artérias espiraladas • Fase 4: modificações fisiológicas caracterizadas pela incorporação das células trofoblásticas na parede vascular, juntamente com substância fibrinoide, substituindo a camada muscular e a lâmina elástica • Fase 5: regeneração vascular com reendotelização e espessamento subintimal, determinado pela presença das células miointimais (miofibroblastos) actina-α-imunopositivas.
Figura 18.4 ■ Diversos estágios da remodelação da artéria uterina a partir do estado não gravídico. O estágio inicial na remodelação vascular (fase 1) consiste na vacuolização endotelial e na tumescência de algumas células musculares. A invasão do estroma e do tecido perivascular pelo trofoblasto intersticial está associada a posterior desorganização das células musculares lisas vasculares (fase 2). Apenas o trofoblasto endovascular aparece (fase 3). O trofoblasto torna-se embebido dentro da parede vascular pela substância fibrinoide, que substitui o músculo liso vascular original (fase 4). Finalmente, ocorre a reendotelização, que é acompanhada pelo “acolchoamento” subintimal, determinado pelo aparecimento das células miointimais (miofibroblastos) alfa-actinaimunopositivas (fase 5). (Adaptada de Pijnenborg et al., 2006 e Staff et al., 2010.)
A 1a onda de migração trofoblástica, iniciada com 6 semanas, completa-se por volta de 10 semanas da gravidez e a 2a onda não se inicia antes de 14 a 15 semanas, de maneira que o trofoblasto endovascular ativo é visto na vasculatura espiralada até 22 semanas.
■ Placentação defeituosa Na pré-eclâmpsia, pouquíssimas artérias espiraladas exibem transformação completa no seu segmento miometrial, ou seja, está ausente a 2a onda de migração trofoblástica (Figura 18.5). Além disso, especialmente na pré-eclâmpsia com CIR, muitas artérias espiraladas miometriais não transformadas exibem lesões obstrutivas de aterose aguda, levando a maior estreitamento do lúmen do vaso e a risco aumentado de trombose, com consequente infarto de áreas placentárias.
■ Disfunção endotelial O 3o estágio na etiopatogênese da pré-eclâmpsia envolve resposta materna com ativação global do sistema inflamatório e disfunção da célula endotelial. A disfunção endotelial sistêmica é a causa de outras condições que caracterizam a pré-eclâmpsia, como hipertensão e a proteinúria. Especificamente, o vasospasmo determina a hipertensão, o aumento da permeabilidade capilar glomerular causa a proteinúria, os distúrbios na expressão endotelial de fatores da coagulação resultam em coagulopatias, e a vasoconstrição e a isquemia da lesão endotelial podem conduzir à disfunção hepática. A biopsia renal das pacientes toxêmicas revela o edema difuso da célula endotelial glomerular conhecido como endoteliose capilar glomerular, expressão da disfunção endotelial glomerular considerada por muitos a lesão patognomônica da toxemia. Evidências indicam que o estresse oxidativo pode representar um ponto de convergência para diversos fatores potencialmente determinantes da disfunção endotelial. Há indícios de que a placenta seja a principal fonte das espécies reativas de oxigênio (ROS) que inicia os eventos fisiopatológicos. O perfil lipídico das mulheres com pré-eclâmpsia também predispõe ao estresse oxidativo. Ácidos graxos livres, triglicerídios e lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL) estão elevados. A lipoproteína de baixa densidade (LDL) na sua fração pequena (LDL-pequeno) também está aumentada, o que favorece a sua oxidação (oxLDL). Fatores antiangiogênicos placentários, como o FMC-like tirosinocinase-1 solúvel (sFlt-1), estão superexpressados na toxemia. O sFlt-1 é uma variante do Flt-1, que é receptor do fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF) e do fator de crescimento placentário (PlGF). O sFlt1, por meio de seu domínio ligante, interage com o VEGF e o PlGF na corrente sanguínea, impedindo a ligação desses fatores angiogênicos com os seus receptores de membrana do endotélio (Figura 18.6). Assim, o sFlt-1 age como antagonista dos fatores do crescimento e sua concentração encontra-se elevada 5 a 6 semanas antes da toxemia.
Figura 18.5 ■ Placentação normal e defeituosa na pré-eclâmpsia, com ausência da 2a onda de migração trofoblástica.
Figura 18.6 ■ Pré-eclâmpsia e fatores angiogênicos. O Flt-1 solúvel (sFlt-1), fator antiangiogênico secretado pela placenta pré-eclâmptica em grande quantidade, causa disfunção endotelial por antagonizar o fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF) e o fator do crescimento placentário (PIGF). (Adaptada de Karumanchi et al.)
O VEGF é bem conhecido por suas propriedades pró-angiogênicas e vasodilatadoras, estando a última associada à produção aumentada de óxido nítrico (NO) e de prostaciclina (PGI2), moléculas de sinalização diminuídas na pré-eclâmpsia. O VEGF mantém a saúde da célula endotelial glomerular e sua diminuição explicaria a endoteliose capilar glomerular. Por isso, neutralizando VEGF e PlGF, o sFlt-1 em excesso pode contribuir para a patogênese da síndrome
materna da pré-eclâmpsia. A endoglina solúvel (sEng) seria outro fator que poderia agir em conjunto com o sFlt-1, amplificando a disfunção endotelial ao inibir, além do VEGF, o fator de crescimento transformador β (TGF-β (Figura 18.7). A produção privilegiada de tromboxano A2 (TxA2) na gravidez toxêmica é tradicionalmente descrita. O TxA2 é um vasoconstritor potente, que estimula a agregação plaquetária e a contração uterina, reduzindo o fluxo sanguíneo uteroplacentário. O PGI2, por sua vez, é vasodilatador, inibidor da agregação plaquetária e da contratilidade uterina, promovendo aumento da circulação uteroplacentária. Em suma, enquanto na gravidez normal há predomínio do PGI2 em relação ao TxA2, na gravidez toxêmica a situação inverte-se.
Figura 18.7 ■ A pré-eclâmpsia é um “estado antiangiogênico”. Durante a gravidez normal, a saúde vascular é mantida por meio da atuação do fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF) e do fator de crescimento transformador β (TGF-β) sobre a vasculatura. Na pré-eclâmpsia, a secreção de sFlt-1 e sEng inibe o VEGF e o TGF-β, impedindo-os de atuar no endotélio, o que resulta em disfunção endotelial com produção diminuída de prostaciclina, óxido nítrico e secreção de proteínas pró-coagulantes. (Adaptada de Karumanchi et al., 2007.)
Figura 18.8 ■ As três fases da pré eclâmpsia. As fases 1 e 2 levam a perfusão uteroplacentária deficiente e estresse oxidativo. O estresse oxidativo e a resposta inflamatória associada (fase 3) levam às manifestações clínicas da pré-eclâmpsia. (Adaptada de Redman e Sargent, 2010.)
Por fim, é no 3o estágio que aparecem as manifestações clínicas da síndrome da préeclâmpsia, que possibilitam o seu diagnóstico: TxA2, hipertensão e proteinúria. Esse estágio representa a resposta sistêmica materna à placentação defeituosa gerada pela falha na invasão trofoblástica, mediada pela desregulação imunológica (Figura 18.8).
■ Teoria genética da pré-eclâmpsia focada na placentação defeituosa A Figura 18.9 explica as interações KIR materno (killer-cell immunoglobulin-like receptors)/HLA-C fetal (human leucocyte antigen), no local da placentação, que podem levar à remodelação defeituosa das artérias espiraladas pelo trofoblasto.
■ Fisiopatologia ■ Alterações renais Na gravidez normal, a taxa de filtração glomerular renal (TFG) aumenta cerca de 40 a 60% no 1 trimestre, resultando em queda nos níveis de ureia, creatinina e ácido úrico sanguíneos. Na préeclâmpsia, a TFG diminui entre 30 e 40% em relação aos valores não gravídicos. o
Conforme mencionado anteriormente, a endoteliose capilar glomerular é a lesão mais característica da toxemia. A microscopia eletrônica revela acentuada tumefação das células endoteliais, praticamente obliterando o lúmen dos capilares. O citoplasma mostra deposição de fibrina que se dirige à membrana basal, resultante do lento e prolongado processo de coagulação intravascular disseminada (CID). A patogênese da proteinúria envolve essencialmente a endoteliose capilar glomerular. A elevação do ácido úrico (> 5,5 a 6,0 mg/dℓ) é constante a partir do 3o trimestre, e muitos a consideram indicadora de gravidade da doença, tema ainda polêmico na literatura. A insuficiência renal do tipo necrose tubular aguda é rara, e quando ocorre geralmente está associada ao DPP ou à síndrome HELLP. A oligúria (< 500 mℓ/24 h) é secundária à hemoconcentração e à diminuição do fluxo sanguíneo renal.
■ Alterações vasculares A prinicpal alteração vascular é a disfunção endotelial, que condiciona o vasospasmo, provavelmente, em decorrência da menor biodisponibilidade de NO e de PGI2, outra substância vasodilatadora. Apesar dessa redução, há acréscimo de TxA2, fator vasoconstritor.
Figura 18.9 ■ Interações KIR materno (killer-cell immunoglobulin-like receptors)/HLA-C fetal (human leucocyte antigen) no local da implantação. Nesses 2 cenários, a mãe é HLA-C1 homozigota e o feto tem
um alelo HLA-C2 proveniente do pai. Se a mãe tem o genótipo KIR AA, com forte KIR inibidor para HLAC2 (KIR2DL1), a placentação será defeituosa. No entanto, se a mãe tem genótipo KIR AB ou BB, contendo KIR ativador para HLA-C2 (KIR2DS1), as células natural killer (NK) são ativadas a produzir quantidades elevadas de citocinas e quimiocinas (p. ex., fator estimulador de colônias de granulócitos/macrófagos – G-CSF) que reforçam a remodelação das artérias espiraladas pelo trofoblasto. (De Nakimuli et al., 2014.)
Também há registro de maior sensibilidade à angiotensina II na toxemia, ao contrário do que ocorre na gravidez normal, quando há menor reatividade a essa substância. O vasospasmo é o responsável pela hipertensão e leva à lesão vascular generalizada, que, junto à hipoxia, dos tecidos, conduz à necrose hemorrágica de diversos órgãos.
■ Alterações cardíacas A atividade contrátil do miocárdio raramente está alterada. Nas pacientes com pré-eclâmpsia grave, a hipertensão pode se exacerbar e há risco de edema do pulmão, especialmente quando se faz administração vigorosa de líquidos intravenosos.
■ Alterações hepáticas Particularmente na síndrome HELLP, caracterizada posteriormente, há necrose hemorrágica periportal, com depósitos de material fibrinoide nos sinusoides hepáticos e aumento das enzimas hepáticas. Raramente ocorre hemorragia intra-hepática, com hematoma subcapsular, responsável pela dor no quadrante superior do abdome, e que dificilmente se rompe.
■ Alterações cerebrais Apesar de o aparecimento da convulsão ser relacionado com a gravidade do processo toxêmico, muitas mulheres têm predisposição à eclâmpsia. Até pouco tempo, considerava-se a convulsão da eclâmpsia algo decorrente de vasospasmo cerebral e isquemia. Atualmente, sabe-se que a causa primária da lesão cerebral é a pressão de perfusão elevada (encefalopatia hipertensiva). Esse aumento da perfusão cerebral conduz a barotrauma cerebral e edema vasogênico. A necropsia dos casos fatais revela, ao se analisar o cérebro, edema, necrose hemorrágica e hemorragia difusa, além de trombos plaquetários intravasculares. A hemorragia cerebral é a causa mais importante de morte materna na toxemia. O edema subcortical, mais bem visualizado por ressonância magnética (RM), acomete tipicamente a matéria branca dos lobos parietal e occiptal, e tem sido referido como (leuco)encefalopatia posterior reversível. Embora os distúrbios visuais sejam comuns na préeclâmpsia grave, a amaurose é rara. O descolamento da retina costuma ser unilateral e dificilmente causa perda total da visão. Tanto a amaurose como o descolamento da retina regridem espontaneamente dentro de 1 semana de pós-parto.
■ Alterações sanguíneas O desenvolvimento de trombocitopenia (< 100.000/mm3) é sugestivo de síndrome HELLP, podendo acarretar hemorragia cerebral e hepática, assim como sangramento excessivo no parto, especialmente quando cesariano. Especula-se que a causa da trombocitopenia seja a deposição acentuada de plaquetas nos locais de lesão endotelial. Na síndrome HELLP, há ativação intravascular das plaquetas e lesão endotelial, com ativação de TxA2 e queda de PGI2. A hemólise microangiopática, marca registrada da síndrome, revela-se no esfregaço do sangue periférico. Ao atravessarem vasos com a íntima lesionada por depósitos de fibrina, as hemácias mostram alterações na sua forma, sendo então conhecidas como esquizócitos. Na pré-eclâmpsia a hemoconcentração é pontual; mulheres com pré-eclâmpsia não apresentam hipervolemia fisiológica da gravidez, mas contração do espaço intravascular. O hematócrito, por isso, é habitualmente elevado pela hemoconcentração, mas pode ser baixo se houver hemólise na síndrome HELLP.
■ Alterações hidreletrolíticas A gestante toxêmica retém sódio e água em quantidades superiores às da grávida normal, mas a concentração sanguínea de eletrólitos não está alterada. Na gestação normal, é observado edema gravitacional na região perimaleolar, especialmente no final do dia, estando relacionado com o aumento da pressão venosa dos membros inferiores. O edema cessa durante a noite, quando a gestante, ao se posicionar em decúbito lateral esquerdo, faz desaparecer a compressão da veia cava inferior pelo útero grávido. O edema generalizado é o habitualmente associado ao processo toxêmico. Precede-o o aumento insólito de peso e é mais comum nos dedos das mãos e na face. Embora típico nas pacientes com toxemia, é visto em grávidas normais também. Estudos em mulheres não toxêmicas mostram que metade delas relata edema em alguma fase da gravidez, sendo generalizado em um terço dos casos. Por esse motivo, o edema não é mais visto como critério para a caracterização da pré-eclâmpsia.
■ Alterações uteroplacentárias A circulação uteroplacentária está reduzida na toxemia de 40 a 60%, o que explica a incidência expressiva de grandes infartos placentários (> 3 cm), pequeno crescimento da placenta e seu descolamento prematuro, determinantes do sofrimento fetal crônico e da elevada mortalidade perinatal. Além da já mencionada ausência da 2a onda de migração placentária, a placenta na préeclâmpsia exibe alterações vasculares com intrigantes similaridades às da doença ateroesclerótica. No endotélio vascular das artérias espiraladas que não sofreram alterações fisiológicas, há lesões típicas conhecidas como aterose aguda, com necrose fibrinoide, disrupção
do endotélio, agregação plaquetária e acúmulo de macrófagos cheios de lipídios. O DPP incide em 1:20 casos de pré-eclâmpsia, e em apenas 1:130 casos nas gestantes normotensas. Quanto mais intenso o processo toxêmico, maior é a possibilidade de acidente hemorrágico grave, conhecido como apoplexia uteroplacentária (Capítulo 23). Na pré-eclâmpsia, a atividade uterina está aumentada e é responsável pela maior incidência de parto pré-termo. A sensibilidade do útero à ocitocina também se mostra elevada. Durante o parto, é comum a hipersistolia.
■ Alterações fetais Em decorrência da redução do fluxo sanguíneo uteroplacentário ou do infarto, o feto pode apresentar CIR e sinais de sofrimento, e há registros pontuais de oligoidramnia. A associação toxemia/CIR constitui o chamado modelo toxêmico, caracterizado por constrição das arteríolas do sistema viloso terminal, com repercussões evidentes no Doppler da artéria umbilical (diástole zero/reversa) (Capítulo 29). A Figura 18.10 resume os principais aspectos fisiopatogênicos encontrados na toxemia gravídica.
Figura 18.10 ■ Sumário da patogênese da pré-eclâmpsia. Fatores imunológicos e outros podem causar placentação defeituosa, que, por sua vez, libera fatores antiangiogênicos (como sFlt1 e sEng) e outros mediadores inflamatórios que induzem hipertensão, proteinúria e outras complicações. (Adaptada de Karumanchi et al.)
■ Diagnóstico Ainda é válido o critério da pressão sanguínea registrado em recomendações anteriores (ACOG, 2002). A Força-tarefa (ACOG, 2013) define proteinúria como a excreção de proteína ≥ 300 mg/24 h de urina ou a relação proteína/creatinina ≥ 0,3 (ambas medidas em mg/dℓ). O diagnóstico de fita da proteinúria deve ser desencorajado, a menos que não se disponha de métodos quantitativos; o ponto de corte é o de 1+ (Tabela 18.2). Em função de investigações recentes que evidenciam a
mínima correlação entre a quantidade de proteína na urina e o prognóstico da pré-eclâmpsia, a proteína maciça (> 5 g/24 h) foi eliminada do diagnóstico da préeclâmpsia grave. O CIR também foi desconsiderado como sinal indicativo de pré-eclâmpsia grave.
■ Pré-eclâmpsia superajuntada Em mulheres com hipertensão crônica, o maior desafio talvez seja reconhecer a pré-eclâmpsia superajuntada, condição geralmente associada a desfechos maternos e fetais adversos (ACOG, 2013). Além disso, é preciso distinguir mulheres com pré-eclâmpsia superajuntada sem sinais graves (apenas hipertensão e proteinúria), que necessitam apenas de observação, daquelas com pré-eclâmpsia superajuntada grave (envolvimento sistêmico, além de hipertensão e proteinúria), nas quais está indicada a intervenção.
Tabela 18.2 ■ Caracterização da pré-eclâmpsia grave (qualquer um desses sinais). Pressão sistólica (PS) ≥ 160 mmHg ou pressão diastólica (PD) ≥ 110 mmHg, em duas ocasiões espaçadas de no mínimo 4 h, com a paciente em repouso no leito (a menos tenha sido iniciado o anti-hipertensivo) Trombocitopenia (contagem de plaquetas < 100.000/mm 3) Comprometimento da função hepática caracterizada por aumento anormal das enzimas hepáticas (duas vezes a concentração normal), dor intensa no quadrante superior direito ou no epigástrio (não responsiva à medicação e/ou não explicada por outros diagnósticos) Insuficiência renal progressiva (creatinina no soro > 1,1 mg/dℓ ou a sua duplicação, na ausência de outras doenças renais) Edema de pulmão Sintomas cerebrais ou visuais
ACOG, 2013.
A seguir são apresentados sinais que caracterizam a pré-eclâmpsia superajuntada: • Proteinúria • Hemólise, aumento das enzimas hepáticas, trombocitopenia (síndrome HELLP) • Doppler das artérias uterinas anormal (incisura bilateral).
■ Síndrome HELLP Trata-se de uma forma grave de pré-eclâmpsia, caracterizada por hemólise (H – hemolysis), elevação das enzimas hepáticas (EL – elevated liver) e baixa de plaquetas (LP – low platelets). A síndrome HELLP costuma desenvolver-se de maneira repentina durante a gravidez e em cerca de 20% dos casos de pré-eclâmpsia grave. ▶ Quadro clínico. O quadro clínico típico é o da grávida na 2a metade da gestação com dor epigástrica ou no quadrante superior direito, particularmente se associada a náuseas e vômitos.
Hipertensão e proteinúria podem não estar presentes. ▶ Diagnóstico. O diagnóstico da síndrome HELLP é mais fácil em grávidas com o quadro clínico de pré-eclâmpsia grave que apresentem a tríade laboratorial de anormalidades sugerindo lesão eritrocitária, disfunção/dano hepático e trombocitopenia. O nível adotado para caracterizar a trombocitopenia é de < 100.000/mm3. A lesão/disfunção hepática é avaliada pelo aumento no soro das transaminases hepáticas (2 vezes a concentração normal). A mais grave complicação hepática é o hematoma subcapsular do fígado, especialmente quando ocorre sua ruptura. O diagnóstico é confirmado por ultrassonografia ou tomografia computadorizada (TC). Por fim, a lesão eritrocitária evidenciada pela hemólise é o 3o critério laboratorial da síndrome HELLP. O valor da desidrogenase láctica (LDH) > 600 UI/ℓ e o esfregaço sanguíneo periférico exibindo hemácias fragmentadas, com formas bizarras (esquizócitos), caracterizam o quadro laboratorial de anemia hemolítica microangiopática. ▶ Prognóstico. A mortalidade materna pode chegar a 20% e a perinatal, a 35%. Pelo menos 20% das mulheres com síndrome HELLP exibirão alguma forma de toxemia em gravidez futura.
■ Eclâmpsia Nos casos de eclâmpsia, além da sintomatologia descrita para a pré-eclâmpsia grave, observa-se convulsão seguida de coma. A incidência de eclâmpsia nos países em desenvolvimento ainda é elevada: 0,1 a 0,8% das gestações (OMS, 2003). Sintomas que prenunciam a convulsão são a cefaleia frontal (60 a 70%) e os distúrbios visuais (20 a 30%), como escotomas e visão turva. A crise convulsiva pode desencadear-se durante a gestação (50%), no decurso do parto (25%) ou do puerpério (25%). No pós-parto, após 48 h, a crise convulsiva caracteriza a eclâmpsia pósparto tardia. Nos casos graves, com lesões hepáticas, depois da convulsão e do coma surge a icterícia, e nas pacientes com insuficiência renal aguda, despontam anúria, hematúria e hemoglobinúria.
■ Redefinição da pré-eclâmpsia Pela redefinição, a pré-eclâmpsia poderia ser placentária (precoce) ou materna (tardia) (Figura 18.11). Não haveria pré-eclâmpsia sem disfunção endotelial, mas na forma materna estaria ausente a placentação defeituosa. Por outro lado, a placentação defeituosa poderia determinar préeclâmpsia placentária ou CIR/DPP, respectivamente, com ou sem disfunção endotelial. O PlGF, biomarcador produzido pelo sinciciotrofoblasto, estaria diminuído na pré-eclâmpsia placentária (e no CIR/DPP), ou seja, na placentação defeituosa, e normal na préeclâmpsia materna.
Figura 18.11 ■ Redefinição da pré-eclâmpsia – placentária e materna. CIR, crescimento intrauterino restrito; DPP, descolamento prematuro da placenta; PlGF, fator de crescimento placentário.
■ Predição ■ Doppler da artéria uterina A identificação de incisura bilateral no início da diástole, no Doppler das artérias uterinas no 2 trimestre da gestação (20 a 24 semanas), é sinal de toxemia, com valor preditivo positivo de 20% e valor preditivo negativo de quase 100% (Figuras 18.12 e 18.13). Se for associada a relação A/B > 2,6 ou índice de resistência (RI) > 0,58 (média das duas uterinas) à observação de incisura bilateral, o valor preditivo positivo eleva-se para 60% e o negativo permanece o mesmo. A incisura traduz a ausência da 2a onda de migração trofoblástica. Outros utilizam igualmente o índice de pulsatilidade (PI) > 1,45 no 2o trimestre como preditivo de toxemia. As artérias uterinas das grávidas com hipertensão crônica que não desenvolvem toxemia não apresentam incisura após 24 semanas, embora o RI possa estar elevado. Por outro lado, os casos de préeclâmpsia superajuntada exibem incisura bilateral no Doppler das artérias uterinas. o
Figura 18.12 ■ Doppler das artérias uterinas normal. Identifica-se o local de insonação da artéria uterina no seu cruzamento com a artéria ilíaca externa pelo Doppler colorido.
Figura 18.13 ■ Incisura bilateral das artérias uterinas na pré-eclâmpsia.
O Doppler de uterinas no 1o trimestre (11 a 13 semanas) tem sido o mais valorizado, por atender aos apelos da prevenção como se discutirá posteriormente. A incisura bilateral ocorre em cerca de 65% dos casos de gestações normais e não serve como sinal preditivo de toxemia. O PI da média das duas uterinas preditivo de toxemia não está bem definido, mas há indícios de que seja > 2,50.
■ Dilatação fluxomediada da artéria braquial A dilatação fluxomediada da artéria braquial (DILA) consiste na medida do diâmetro da artéria braquial em repouso e após 5 min de compressão, com ultrassonografia de alta resolução (Figura 18.14). Cessada a compressão, ocorre hiperemia reativa, com aumento do fluxo sanguíneo local, que excita o endotélio (shear stress), e o faz liberar NO, ou outros vasodilatadores (Figura
18.15). Tem-se considerado DILA diminuída (< 10 a 15%), no 2o trimestre da gestação, como sinal preditivo de toxemia. A DILA realizada no 1o trimestre da gravidez e a sua importância na predição da préeclâmpsia merecem especial atenção, assim como o estudo da elasticidade da carótida.
■ Marcadores bioquímicos Na ultrassonografia piramidal de 1o trimestre (11 a 13 semanas), o algoritmo que combina características maternas (PA) e marcadores biofísicos (Doppler da artéria uterina) e bioquímicos (PAPP-A, PlGF e outros) foi capaz de identificar cerca de 90, 80 e 60% de gestações que subsequentemente desenvolveram, respectivamente, pré-eclâmpsia precoce (< 34 semanas), intermediária (34 a 37 semanas) e tardia (> 37 semanas), com taxa de falso-positivo de 5%.
Figura 18.14 ■ Dilatação fluxomediada da artéria braquial (DILA). (Adaptada de Correti et al., 2002.)
Figura 18.15 ■ O endotélio normal libera óxido nítrico (NO), e outros vasodilatadores, uma vez estimulado pelo shear stress.
■ Prevenção A Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC, 2008) e a OMS (2011) recomendam a prevenção da pré-eclâmpsia com uso do ácido acetilsalicílico em baixa dose (100 mg/dia, à noite), com início antes de 16 semanas, de preferência antes de 12 semanas (NICE, 2010/2012). A pré-eclâmpsia deve ser prevenida levando-se em consideração fatores de risco clínicos e exames de predição (Figura 18.16). Três estudos recentes de metanálise (2012, 2013) revelaram que o ácido acetilsalicílico administrado em baixa dose, antes de 16 semanas, para mulheres de alto risco, reduziu a incidência de pré-eclâmpsia grave em 80 a 90%, mas não a de pré-eclâmpsia leve. Também houve queda de 60% na mortalidade perinatal, de 50% no CIR e de 65% no parto pré-termo. Como o ácido acetilsalicílico age ao melhorar a remodelação vascular, sugere-se que seja iniciado mais cedo, entre 8 e 12 semanas.
Figura 18.16 ■ Prevenção da toxemia no 1o trimestre da gravidez com ácido acetilsalicílico. CIR, crescimento intrauterino restrito; DILA, dilatação fluxomediada da artéria braquial.
A OMS (2011) também recomenda para a prevenção da pré-eclâmpsia a suplementação com cálcio durante a gestação (1,5 a 2,0 g/dia), mas apenas em áreas de baixa ingesta desse elemento, conforme referendado pelo ACOG (2013). O repouso no leito e a restrição de sódio não devem ser aconselhados (ACOG, 2013).
■ Prognóstico ■ Materno A hipertensão (crônica ou toxêmica) é a maior causa de morte materna no Brasil, responsável
por 26% do total. O prognóstico da gestante costuma estar vinculado à crise convulsiva. Enquanto a mortalidade materna na eclâmpsia é elevada (10 a 15% em países em desenvolvimento), no decurso da préeclâmpsia mostra-se excepcional, a não ser quando sobrevém a síndrome HELLP. A hemorragia cerebral é a principal causa de morte na eclâmpsia (60%); a 2a causa é o edema de pulmão. A pré-eclâmpsia precoce (< 34 semanas) apresenta mortalidade 20 vezes maior do que a préeclâmpsia tardia; mulheres com essa forma da doença necessitam de tratamento em centros terciários, e um terço delas, de tratamento intensivo. A morbidade materna está representada por DPP, CID, insuficiência renal aguda, edema agudo do pulmão, pneumonia aspirativa e parada cardiorrespiratória. Complicações como amaurose, decorrente do descolamento da retina, e psicose puerperal cedem espontaneamente após o parto, em prazo variável. As sequelas da toxemia costumam desaparecer em 6 a 12 semanas do pós-parto. A recorrência da pré-eclâmpsia em nova gravidez se dá em 60% das formas precoces e em 10 a 20% das formas tardias. A pré-eclâmpsia é fator de risco para DCV futura (ACOG, 2013). Esse aumento do risco varia de 2 vezes para todos os casos e de 8 a 9 vezes para mulheres com pré-eclâmpsia que deram à luz antes de 34 semanas. Mulheres com história de pré-eclâmpsia que tiveram parto pré-termo (< 37 semanas) ou com história de pré-eclâmpsia recorrente devem ser avaliadas anualmente para pressão sanguínea, lipídios, glicemia de jejum e índice de massa corporal (IMC).
■ Fetal A mortalidade perinatal está elevada por prematuridade, DPP e CIR (modelo toxêmico). A mortalidade perinatal está aumentada em 5 vezes no global: pré-eclâmpsia precoce-grave, 5 a 15%; síndrome HELLP, 35%; eclâmpsia, 30 a 35%.
■ Tratamento O tratamento será dividido aqui em 2 cenários (Figura 18.17): pré-eclâmpsia leve e préeclâmpsia grave/eclâmpsia.
Figura 18.17 ■ Conduta na toxemia gravídica.
■ Pré-eclâmpsia leve Na pré-eclâmpsia leve (e na hipertensão gestacional), deve-se realizar tratamento conservador até o feto atingir 37 semanas (ACOG, 2013). Qualquer forma clínica de toxemia com o feto a termo obriga a interrupção da gravidez. O processo toxêmico só se cura com o parto. Mesmo normalizada a PA, após o desaparecimento da proteinúria e do edema, o feto está em perigo, pois a depuração placentária é 50% inferior à normal. Nesse caso, devem ser adotadas as seguintes medidas: • Tratamento ambulatorial com consultas semanais (day care) • Avaliação da sintomatologia materna para surpreender o agravamento da doença, e dos movimentos fetais (diariamente pela paciente), mensuração da pressão sanguínea (2 vezes/semana) e contagem de plaquetas e enzimas hepáticas (semanalmente) (ACOG, 2013). Na hipertensão gestacional, deve-se realizar também a pesquisa de proteinúria (semanal). A ultrassonografia seriada visa diagnosticar o CIR e o Doppler da artéria umbilical, o sofrimento fetal. As medidas proscritas que não interferem no curso clínico da doença e podem até ser nocivas são as seguintes: • Repouso prolongado no leito (predispõe à trombose) • Diuréticos e dieta hipossódica. A grávida toxêmica é hemoconcentrada e os diuréticos podem precipitar a doença tromboembólica venosa (DTV)
•
Hipotensores orais também não devem ser utilizados, pois reduzem a perfusão uteroplacentária.
■ Pré-eclâmpsia grave/eclâmpsia Nos casos pré-eclâmpsia grave/eclâmpsia, qualquer que seja a idade da gravidez, está indicada a sua interrupção. As medidas pertinentes podem ser vistas na Figura 18.18 e são descritas a seguir: • Em caso de eclâmpsia ou síndrome HELLP, a paciente deve ser imediatamente transferida para centro de unidade intensiva. Durante ou logo após a convulsão, deve-se evitar a lesão materna (protetor de língua e contenção física) e a aspiração de vômitos (decúbito lateral), assegurar vias respiratórias livres e suprir a oxigenação (8 a 10 ℓ de oxigênio sob máscara). Após a convulsão, a paciente passa a respirar e a oxigenação raramente constitui problema. Todavia, hipoxemia e acidose materna podem se desenvolver em mulheres com convulsões repetidas, assim como pneumonia aspirativa ou edema de pulmão. Recomenda-se evitar o monitoramento compulsivo (ACOG, 2013) • Antes de interromper a gravidez, é fundamental estabilizar o quadro clínico por 4 a 6 h com o sulfato de magnésio. O sulfato de magnésio, para prevenir ou tratar a convulsão, só deve ser utilizado se houver decisão para o parto, sendo o tratamento de eleição em todo o mundo. A dose é de 4 a 6 g por via intravenosa, diluída em 100 mℓ de soro glicosado a 5%, em bolus de 20 min; depois, 1 a 2 g/h, para a manutenção. É fundamental observar alguns parâmetros clínicos que, uma vez ausentes, indicam a suspensão do medicamento: ○ Reflexo tendinoso presente (embora hipoativo) ○ Diurese > 25 a 30 mℓ/h ○ Frequência respiratória ≥ 16 movimentos/min Em doses tóxicas, o sulfato de magnésio é um medicamento perigoso para a mãe: deprime a respiração e causa parada cardíaca. Em casos de depressão respiratória, deve-se administrar 1 a 2 g de gliconato de cálcio por via intravenosa (10 mℓ de solução a 10%), em cerca de 3 min para combater os efeitos tóxicos do sulfato de magnésio • Cerca de 10% das mulheres com eclâmpsia têm recorrência das convulsões; se as convulsões não cederem com a administração de sulfato de magnésio, está indicado o amobarbital de sódio (250 mg IV, em 3 a 5 min) ou o diazepam, em infusão venosa (10 mg/h) • No tratamento da crise hipertensiva (pressão arterial ≥ 160/110), podem ser utilizados hidralazina, 5 a 10 mg intravenosa a cada 20 min (dose máxima de 30 mg) ou nifedipina, 10 a 20 mg oral a cada 30 min (dose máxima de 50 mg em 1 h) (ACOG, 2012). O objetivo não é normalizar a pressão, mas mantê-la em níveis de 140 a 155/90 a 105 mmHg. Em casos raros não responsivos pode ser administrado o nitroprussiato de sódio (2 a 10 µg/kg/min) pelo menor tempo possível (até 4 h), pois a substância pode apresentar efeitos colaterais
importantes à mãe e ao concepto (intoxicação pelo cianeto). Em caso de edema agudo de pulmão, sugere-se o tratamento com furosemida intravenosa, sulfato de morfina intravenoso e ventilação assistida • A Força-tarefa (ACOG, 2013) tem considerado a possibilidade do tratamento conservador da préeclâmpsia grave em gestações entre 24 e 34 semanas para melhorar o prognóstico perinatal. Antes da viabilidade fetal (< 24 semanas) o tratamento conservador não está indicado e sim a interrupção da gravidez. Estudo randomizado multicêntrico, em 8 hospitais terciários de ensino de países da América Latina (estudo latino MEXPRE) (2013), mostrou que o tratamento expectante na préeclâmpsia grave com < 34 semanas não trouxe nenhum benefício (mortalidade perinatal, morbidade neonatal e materna) em relação ao parto imediato (após 24 a 72 h de corticoide). Ao contrário, no grupo expectante a incidência de feto pequeno para a idade gestacional (PIG) foi 2 vezes maior e a de DPP, 5 vezes mais elevada • Nos casos de pré-eclâmpsia grave, aceita-se a interrupção da gravidez após 24 a 48 h de corticoide em hospitais terciários • Síndrome HELLP ○ A mesma conduta da pré-eclâmpsia grave ○ Ultrassonografia e TC selam o diagnóstico do hematoma subcapsular hepático. O tratamento é conservador no hematoma íntegro; na sua ruptura, impõem-se transfusão maciça e laparotomia imediata ○ Em caso de CID, administra-se plasma fresco congelado e concentrado de hemácias; se a trombocitopenia for próxima de 20.000/mm3, utilizam-se 6 a 10 unidades de concentrado de plaquetas, especialmente antes de cirurgia • Pré-eclâmpsia superajuntada ○ Devem ser seguidas as orientações gerais do tratamento da pré-eclâmpsia leve ou da grave, de acordo com o quadro clínico (ACOG, 2013).
Figura 18.18 ■ Tratamento da eclâmpsia. CID, coagulação intravascular disseminada.
■ Parto Opta-se pela operação cesariana, embora convenha lembrar que a indução pode ter bom êxito mesmo com o colo desfavorável. A cesárea é mandatória em fetos de menos de 1.500 g. Atualmente, opta-se pela anestesia neuroaxial (raquianestesia ou peridural) em mulheres cujo quadro clínico possibilite tempo suficiente de estabilização (ACOG, 2013), exceto na síndrome HELLP, quando há possibilidade de hematoma se a queda de plaquetas for inferior a 50.000 ou 75.000/mm3, quando se recomenda a anestesia geral.
■ Pós-parto O tratamento com sulfato de magnésio deve ser mantido no mínimo por 24 h após o nascimento e/ou após a última convulsão. Aconselha-se monitoramento da pressão sanguínea no hospital por, no mínimo, 72 h e novamente com 7 a 10 dias de pós-parto (ACOG, 2013). Para mulheres com hipertensão pós-parto persistente ≥ 150/100 mmHg, indica-se a terapia anti-hipertensiva ao menos em 2 ocasiões espaçadas de 4 a 6 h. A pressão sanguínea persistente ≥ 160/110 mmHg deve ser tratada em 1 h. O fármaco de escolha é a nifedipina, 10 mg 4/dia, respeitando-se a dose máxima de 120 mg/dia. Mulheres com pré-eclâmpsia grave de início no pós-parto devem ser medicadas com sulfato de magnésio (ACOG, 2013). Os anti-inflamatórios não esteroides (AINE) elevam a pressão sanguínea e, por isso, devem
ser substituídos por outros analgésicos no pós-parto de mulheres toxêmicas (ACOG, 2013).
■ Pontos-chave No Brasil, a toxemia gravídica incide em 10% das grávidas, principalmente primíparas, sendo a maior causa de mortalidade materna e perinatal. Na etiopatogenia da toxemia sobressaem a placentação defeituosa e a disfunção endotelial. Constituem formas clínicas da toxemia: hipertensão gestacional, pré-eclâmpsia (leve e grave), síndrome HELLP, pré-eclâmpsia superajuntada e eclâmpsia. A síndrome HELLP é caracterizada por hemólise, elevação das enzimas hepáticas e trombocitopenia. A predição da toxemia pode ser feita na ultrassonografia de 1o trimestre pelo Doppler das artérias uterinas, pelo PAPP-A/plGF e, possivelmente, pela DILA. A toxemia pode ser prevenida com ácido acetilsalicílico em baixa dose (100 mg/dia), de acordo com fatores de risco e exames preditivos, antes de 12 e até 36 semanas de gestação. A pré-eclâmpsia leve pode ser acompanhada em consultas semanais para avaliar as condições clinicolaboratoriais da mãe e a vitalidade do feto (Doppler umbilical). O tratamento de pré-eclâmpsia grave/eclâmpsia é realizado pela interrupção da gravidez, após a estabilização do quadro por 4 a 6 h. As medicações utilizadas na pré-eclâmpsia grave/eclâmpsia são sulfato de magnésio e hidralazina venosa (ou nifedipina oral). Mulheres com história de toxemia gravídica têm maior risco a longo prazo de doença cardiovascular e morte prematura, necessitando de aconselhamento pós-concepcional.
■ Epidemiologia ■ Etiologia ■ Formas clínicas ■ Ameaça de abortamento
O abortamento é a expulsão de feto pesando < 500 g ou com < 20 semanas de gestação [Organização Mundial da Saúde (OMS), 1976; International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO), 1976], podendo ser espontâneo ou provocado. No entanto, este capítulo tratará apenas do abortamento espontâneo. Os aspectos médicolegais do abortamento provocado serão tratados no Capítulo 64, e os procedimentos para consumá-lo, no Capítulo 55.
■ Epidemiologia Cerca de 75% dos ovos fertilizados são abortados, e em mais da metade deles isso ocorre antes da 1a falha menstrual. Em gestações diagnosticadas clinicamente, 10 a 25% terminam espontaneamente, e 80% delas ocorrem no 1o trimestre (abortamento clínico).
■ Etiologia A incidência de alterações cromossômicas em abortamentos esporádicos de 1o trimestre é de 60%. Analisando abortos com cariótipo anormal, a síndrome de Turner (45,X0) é a alteração mais frequente com incidência de 19% (Tabela 19.1). Abortos trissômicos são vistos para todos os autossomos, exceto para os cromossomos 1, 5, 11, 12, 17 e 19. Trissomia 16, triploidia e tetraploidia são as anormalidades autossômicas mais comuns. Aproximadamente 80% das trissomias 21 terminam em abortamento. Qualquer doença materna grave, traumatismo ou intoxicação, além de inúmeras infecções, podem levar ao abortamento. O risco de abortamento é maior em mulheres ≥ 35 anos, mas esse risco se eleva consideravelmente se a mulher tiver ≥ 35 e o homem ≥ 40 anos (odds ratio = 6,73).
Tabela 19.1 ■ Frequência de anormalidades cromossômicas em abortamento com cariótipo anormal. Tipo
Frequência aproximada (%)
Aneuploidia Trissomia autossômica Monossomia autossômica 45,X0
52 20 mm sem embrião
Abortamento retido
CCN > 5 mm sem atividade cardíaca
SG, saco gestacional; CCN, comprimento cabeça-nádega.
■ Ameaça de abortamento ■ Quadro clínico Consiste, fundamentalmente, em hemorragia, que traduz anomalia decidual e/ou descolamento do ovo, e dor, sinal de contração uterina. ▶ Hemorragia. É o elemento mais comum e costuma ser o 1o a revelar distúrbios na evolução da gravidez (Figura 19.1). De modo geral, o fluxo sanguíneo na fase de ameaça é menor do que na interrupção inevitável. Os sangramentos precoces, de longa duração, escuros e do tipo “borra de café” são considerados mais sérios. Aproximadamente 30% das gestações apresentam sangramento no 1o trimestre, e metade delas resultam em aborto. ▶ Dores. Precedem, acompanham e geralmente sucedem a hemorragia. São provocadas por metrossístoles fugazes e intermitentes. Contrações regulares, como as do trabalho de parto, espelham processo irreversível. Deve ser lembrado que o abortamento, muitas vezes, é precedido pela morte do embrião, e as perdas sanguíneas e as cólicas, antes de constituírem ameaça, anunciam interrupção inevitável. ▶ Exame físico. Confirma, exceto nas primeiras semanas, o útero aumentado, cujo volume é proporcional à data da amenorreia. O toque não é esclarecedor, pois não existem modificações cervicais. O exame especular pode afastar causas ginecológicas da hemorragia.
■ Ultrassonografia e abortamento ■ Fluxo interviloso na gravidez normal Na gravidez inicial não ocorre fluxo sanguíneo interviloso até aproximadamente 10 semanas de gestação, particularmente nas áreas centrais da placenta, uma vez que nas áreas periféricas há fluxo a partir de 8 a 9 semanas. Esse impedimento ao fluxo sanguíneo placentário está intimamente relacionado com a migração do trofoblasto extravilositário, pois no início da gravidez agregados dessas células efetivamente formam tampões (plugs) nas saídas das artérias espiraladas, criando um verdadeiro manto trofoblástico entre as extremidades desses vasos e o espaço interviloso (Figura 19.2 A). Por volta de 10 semanas, os tampões começam a se dissipar, estabelecendo comunicação livre entre as artérias espiraladas e a placenta. Desse modo, se esses tampões evitam o fluxo contínuo de sangue materno para o espaço interviloso na gravidez inicial de 1o trimestre, a placenta humana não pode ser considerada verdadeiramente hemocorial.
■ Fluxo interviloso no abortamento Diante da ameaça de abortamento, os sintomas decorrem da hemorragia nas áreas periféricas
em que está o fluxo interviloso. Nos abortamentos inevitáveis, todavia, o fluxo interviloso é bastante comum nas áreas centrais da placenta (Figura 19.2 B). Em cerca de dois terços dos casos de abortamento há placentação defeituosa, caracterizada, principalmente, por manto trofoblástico fino e fragmentado e invasão reduzida do trofoblasto extravilositário situado na extremidade do lúmen das artérias espiraladas (Figura 19.2 B). Na maioria dos casos de abortamento, essa invasão está associada ao início prematuro da circulação materna por toda a placenta. A entrada excessiva de sangue materno no espaço interviloso tem efeito mecânico direto no tecido viloso e indireto no estresse oxidativo, que contribuem para a disfunção e a lesão celular.
Figura 19.1 ■ Ameaça de abortamento.
Figura 19.2 ■ Esquema que representa a placentação no 1o trimestre da gravidez normal (A) e no abortamento (B). Note os tampões (plugs) trofoblásticos nas artérias espiraladas e a invasão trofoblástica da decídua e do miométrio superficial na área central da placenta na gestação normal. Já no abortamento, a invasão trofoblástica é superficial e os tampões são frouxos, o que possibilita a entrada prematura de sangue materno no espaço interviloso (setas). (Adaptada de Jauniaux et al. The role of ultrasound imaging in diagnosting and investigating of early pregnancy failure. Ultrasound Obstet Gynecol, 2005;25:613.)
■ Diagnóstico sonográfico de gravidez inviável
São considerados sinais diagnósticos de gravidez inviável: comprimento cabeça-nádega (CCN) ≥ 7 mm e ausência de batimento cardiofetal (bcf), diâmetro médio do saco gestacional (SG) ≥ 25 mm e embrião ausente [Society of Radiologists in Ultrasound (SRU), 2013]. Valores do CCN < 7 mm sem bcf e do SG de 16 a 24 mm sem embrião são considerados suspeitos, mas não diagnósticos. Nesse cenário, pode ser útil repetir a ultrassonografia 7 a 10 dias mais tarde. O hematoma intrauterino é outro sinal de abortamento (Figura 19.3). Hematomas intrauterinos muito grandes (> 50% do SG) e de aparecimento muito precoce na gestação estão associados a prognóstico adverso em quase 50% dos casos. O risco de abortamento é 4 vezes maior quando se observa, antes de 10 semanas de gravidez, fluxo interviloso (intraplacentário) ao Doppler colorido na área central da placenta.
■ Tratamento Algumas recomendações que devem ser seguidas no período da ameaça de abortamento são: • Repouso relativo; não tendo fundamento a obrigatoriedade de acamar-se • O coito deve ser proibido enquanto perdurar a ameaça • Tranquilizar a gestante, sem, contudo, exibir demasiado otimismo (metade aborta); consumada a interrupção, mostre não haver, em geral, tendência a repetição • Administrar antiespasmódicos e analgésicos nas pacientes com cólicas • A progesterona vaginal não está recomendada no abortamento esporádico.
Figura 19.3 ■ Hematoma intrauterino. SG = saco gestacional; H = hematoma.
■ Abortamento inevitável ■ Quadro clínico
Nas amenorreias de curta duração em que o ovo é pequeno, o processo pode ser confundido com menstruação, diferenciando-se dela pela maior quantidade de sangue; pela presença de embrião e decídua ao exame do material eliminado. Esse mecanismo é raro após 8 semanas. O cório frondoso bem desenvolvido fixa o ovo à decídua. A partir de 8 semanas, o processo de abortamento adquire, progressivamente, as características do trabalho de parto. O diagnóstico não oferece dificuldades. O episódio é, quase sempre, precedido por período de ameaça de abortamento; excepcionalmente, pode manifestar-se pela 1a vez no estágio de iminente expulsão. As hemorragias tendem a ser mais abundantes que as da fase de ameaça, e o sangue apresenta cor viva. O volume do útero corresponde à data da amenorreia, exceto quando a morte do ovo é antiga. O colo mostra-se permeável, notando-se as membranas herniadas pelo orifício externo na cavidade uterina. O quadro clínico inconfundível dispensa exames complementares.
■ Tratamento A conduta depende da idade da gravidez: • Até 12 semanas são procedimentos de escolha a dilatação seguida de aspiração a vácuo ou de curetagem • De 12 semanas em diante o ovo está muito desenvolvido, e a cavidade uterina, volumosa. Por serem suas paredes finas e moles, o esvaziamento instrumental torna-se perigoso. A expulsão é acelerada pela administração de ocitocina em grandes doses: perfusão venosa de solução de 10 unidades em 500 mℓ de soluto glicosado ou misoprostol, por via vaginal, 400 µg a cada 4 h. Eliminado o ovo, e se a expulsão não foi completa, o remanescente é extraído com pinça adequada. O material de abortamento deve ser enviado para estudo histopatológico.
■ Abortamento completo É frequente até 8 semanas de gestação. Considera-se abortamento completo quando, após a expulsão do ovo (Figura 19.4), cessam as cólicas e o sangramento reduz-se a perdas muito discretas. Só a evolução do caso confirma o diagnóstico. ▶ Ultrassonografia. “Útero vazio” é indicação certa de abortamento completo. Ecos intrauterinos centrais e escassos ou moderados podem representar coágulos sanguíneos, decídua, glândulas endometriais e placenta. A espessura anteroposterior do endométrio é < 8 a 10 mm. O fluxo colorido é discreto ao Doppler. Esses casos evoluem satisfatoriamente e não necessitam de
esvaziamento cirúrgico.
Figura 19.4 ■ Abortamento completo. (Adaptada de Benson R. C. Handbook of obstetrics & ginecology, 3. ed., Los Altos: Lange Medical, 1968.)
■ Abortamento incompleto ■ Quadro clínico Está relacionado com a eliminação parcial do ovo, que causa hemorragia persistente e é terreno propício à infecção. O abortamento incompleto é comum após 8 semanas de gestação, quando as vilosidades coriônicas ficam aderidas ao útero. Nos abortamentos tardios, a paciente consegue distinguir páreas e o concepto e, geralmente, informa a eliminação apenas do feto (Figura 19.5). O sangramento não cessa, é intermitente, pode ser intenso, e ocorre porque os restos ovulares impedem a contração uterina adequada. As cólicas persistem. O útero, amolecido, tem volume aumentado, mas o escoamento do líquido amniótico e, comumente do feto, reduz suas dimensões, que não são as previstas pela idade da gravidez. O colo está entreaberto. ▶ Ultrassonografia. Massa focal ecogênica e espessura anteroposterior do endométrio > 8 a 10 mm caracterizam o diagnóstico de restos ovulares (Figura 19.6).
Figura 19.5 ■ Abortamento incompleto. (id., ibid.)
Figura 19.6 ■ Restos ovulares após abortamento incompleto.
■ Tratamento O melhor tratamento para o abortamento incompleto é o esvaziamento cirúrgico, e nesse particular, a aspiração a vácuo. O tratamento expectante não é o mais indicado.
■ Abortamento infectado ■ Quadro clínico O abortamento infectado sucede, quase sempre, à interrupção provocada em más condições técnicas, mas esta não é sua única origem. Espontâneo ou intencional, há sempre antecedentes que
a anamnese esclarece: abortamento incompleto, manipulação instrumental cavitária, introdução de sondas, laminárias, soluções diversas. Os microrganismos causadores são os existentes na flora normal do sistema genital e dos intestinos: cocos anaeróbios (peptococos, peptoestreptococos), E. coli, bacteroides, Clostridium perfringens. A classificação clínica mais utilizada é feita em três formas: I, II e III. ▶ I – Endo(mio)metrite. É o tipo mais comum. A infecção é limitada ao conteúdo da cavidade uterina, à decídua e, provavelmente ao miométrio. A sintomatologia é semelhante à do abortamento completo ou incompleto. A elevação térmica é pequena (pouco acima de 38°C), e o estado geral é bom; as dores são discretas. Não há sinais de irritação peritoneal, e tanto a palpação do abdome como o toque vaginal são tolerados. Hemorragia escassa é a regra. ▶ II – Pelveperitonite. Em função da virulência do microrganismo e, sobretudo, do terreno, a infecção progride, agora localizada no miométrio, nos paramétrios e anexos, comprometendo o peritônio pélvico. Todavia, a hemorragia não é sinal relevante. O sangue escorre mesclado a líquido sanioso, cujo odor é fecaloide, com presença de anaeróbios. Se um abortamento incompleto suceder à infecção, como é usual, eliminam-se fragmentos do ovo. A temperatura está em torno de 39°C e o estado geral está afetado, com taquicardia, desidratação, paresia intestinal, anemia. As dores são constantes e espontâneas. A defesa abdominal está limitada ao hipogástrio e não se estende ao andar superior do abdome. O exame pélvico é praticamente impossível, tal a dor despertada. Feito muito delicadamente, nota-se útero amolecido, mobilidade reduzida e paramétrios empastados. O colo costuma estar entreaberto. ▶ III – Peritonite. Trata-se da forma extremamente grave, da infecção generalizada. As condições da genitália repetem as da forma anterior. Há peritonite, septicemia e choque séptico, decorrentes, em geral, do acometimento por gram-negativos (E. coli), mas também de bacteroides e Clostridium. A infecção por Clostridium piora o prognóstico. Temperatura elevada, mas, nem sempre, pulso rápido, filiforme, hipotensão arterial, abdome distendido, desidratação acentuada, oligúria e icterícia, são sinais gerais. Em outras pacientes, há endocardite, miocardite e subsequente falência do órgão. Tromboflebite pélvica e embolia pulmonar podem ser encontradas. As condições hemodinâmicas e infecciosas conduzem à infecção renal aguda. São comuns abscessos no fundo de saco posterior, entre as alças e o epíplon, retroperitoneais, sub-hepáticos e subdiafragmáticos. Em casos de abortamento provocado por substâncias injetadas no útero, considera-se o quadro do infarto uteroanexial. Os órgãos genitais alojam lesões necróticas, semelhantes às da apoplexia uteroplacentária, e, como nessa entidade, são comuns os distúrbios da hemocoagulação.
■ Tratamento
São concomitantes ao esvaziamento uterino: • A terapêutica anti-infecciosa de largo espectro feita associando-se clindamicina, 800 a 900 mg por via intravenosa (IV) de 8/8 h, e gentamicina, 1,5 mg/kg IV de 8/8 h. Se não resolver em cerca de 24 a 48 h, deve-se associar ampicilina, 1 g IV de 4/4 h • Ocitócicos: ocitocina, derivados ergóticos • Sangue, solutos glicosados ou salinos, Ringer com lactato, em função de anemia, desidratação, condições circulatórias, depleção de eletrólitos • Nos casos graves com choque séptico, deve-se seguir o tratamento descrito no Capítulo 24, seção B • Na peritonite, os abscessos devem ser drenados pelo fundo de saco posterior ou pela via alta, dependendo da localização. O diagnóstico ultrassonográfico dos abscessos resolve controvérsias sobre sua sede e extensão • Na infecção causada por Clostridium, está indicada, por vezes, a histerectomia total com anexectomia bilateral, sendo inoperante o esvaziamento.
■ Abortamento retido ■ Quadro clínico No abortamento retido, o útero retém o ovo morto por dias ou semanas (Figura 19.7). Após a morte fetal, pode ou não haver sangramento vaginal. O útero mantém-se estacionário e pode até diminuir. A ultrassonografia não exibe bcf após o embrião ter atingido ≥ 7 mm. Nas retenções prolongadas do ovo morto (> 4 semanas), os distúrbios da hemocoagulação constituem a complicação mais temida. Chama-se ovo anembrionado o tipo de abortamento retido no qual a ultrassonografia não identifica o embrião, estando o SG ≥ 25 mm [SRU, 2013; American College of Radiology (ACR), 2013] (Figura 19.8). O diagnóstico definitivo de abortamento retido deve ser sempre confirmado por duas ultrassonografias espaçadas de 7 a 10 dias.
Figura 19.7 ■ Ovo morto retido. US de 6 semanas – multiplanar e superfície. Batimento cardiofetal ausente. (Adaptada de Montenegro, CAB; Rezende Filho, J. Ultrassom tridimensional. Atlas comentado. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998.)
Figura 19.8 ■ Ovo anembrionado.
■ Tratamento
A despeito da conduta expectante e médica (misoprostol) para o abortamento retido no 1o trimestre, a intervenção cirúrgica ainda representa 90% dos desfechos no Reino Unido.
■ Abortamento habitual O abortamento habitual (ou recorrente) é definido como a perda de duas ou mais gestações [American Society for Reproductive Medicine (ASRM), 2013]. Esse conceito é considerado inovador, haja vista que a maioria dos autores continua definindo abortamento habitual como a perda de três ou mais gestações consecutivas.
■ Etiologia ■ Fatores epidemiológicos O abortamento habitual, definido como duas ou mais interrupções, afeta cerca de 5% dos casais tentando conceber; para três ou mais interrupções, a incidência é de 1% (ASRM, 2012). A idade materna e o número de abortamentos anteriores são dois fatores de risco independentes para uma nova interrupção. A idade materna avançada está associada a declínio tanto no número como na qualidade dos oócitos remanescentes. A idade paterna também tem sido reconhecida como fator de risco.
■ Alterações cromossômicas Em aproximadamente 5% dos casais com dois ou mais abortamentos recorrentes, pelo menos um dos parceiros, especialmente a mulher, é portador de anomalia estrutural balanceada, na maioria das vezes, uma translocação. Muito embora os portadores de translocações balanceadas sejam fenotipicamente normais, a perda fetal ocorre porque a segregação durante a meiose resulta em gametas com duplicação ou falta de segmentos nos cromossomos (Figura 19.9). Além da incidência maior de abortamento, essas gestações carreiam risco de crianças malformadas. A cada gestação, a chance de abortamento é de 20 a 30%, às vezes de 50%. Isso significa que cerca de dois terços dos casais com translocação balanceada e abortamento recorrente têm recémnascidos normais na gestação seguinte.
■ Síndrome antifosfolipídio A síndrome antifosfolipídio (SAF) talvez seja a causa mais importante de abortamento habitual. A SAF refere-se à associação entre anticorpos antifosfolipídio – lúpus anticoagulante (LAC) e anticardiolipina (aCL) – e trombose vascular ou prognóstico adverso na gravidez (Capítulo 34, Seção B). Dos abortamentos habituais, 3 a 15% são causados por SAF. Mulheres com abortamento recorrente por SAF, sem tratamento, têm chance de apenas 10% de feto vivo.
Figura 19.9 ■ Risco reprodutivo em pais com translocação balanceada.
■ Doenças endócrinas Estão relacionadas: deficiência luteínica, hipotireoidismo (doenças autoimunes – Hashimoto) e síndrome do ovário policístico (SOP). A tireoidite de Hashimoto é 10 vezes mais frequente em mulheres do que em homens e está associada aos anticorpos antitireoperoxidase (anti-TPO) e antitireoglobulina (anti-Tg). A SOP é uma síndrome metabólica que envolve ovário policístico, disfunção ovariana, androgenismo e resistência à insulina, incidindo em 5 a 7% das mulheres em idade de conceber (Tabela 19.4). Já o ovário policístico (OP) é uma entidade discreta, vista em 15 a 25% das mulheres com ciclos regulares ovulatórios, representando uma forma leve de hiperandrogenismo ovariano, também associada a maior resistência à insulina. Segundo algumas instituições de referência, todas essas doenças teriam associação elusiva com o abortamento habitual (ACOG, 2001; ASRM, 2008; RCOG, 2011; Sociedade de Endocrinologia dos Estados Unidos, 2013). Todavia, a Sociedade de Endocrinologia (2012) refere que mulheres com anti-TPO positivo e hipotireoidismo (TSH > 2,5 mUI/ℓ) têm indicação de levotiroxina para tratar o abortamento habitual (outros referem que o nível de TSH deva ser > 3,0 mUI/ℓ no 2o e no 3o trimestre).
Tabela 19.4 ■ Incidência de abortamento esporádico e de abortamento habitual, de acordo com o grupo etário. Grupo etário (anos)
Abortamento esporádico (%)
Abortamento habitual (%)
20-24
11
–
25-29
12
~ 0,4
30-34
15
~1
35-39
25
~3
40-44
51
–
Adaptada de Saravelos & Li, 2012.
■ Fatores anatômicos ▶ Malformações uterinas. Tem incidência de 10 a 15% no abortamento habitual (Figura 19.10). As malformações uterinas deformam a cavidade uterina e prejudicam o desempenho reprodutivo, acentuando a incidência de abortamentos, parto pré-termo, crescimento intrauterino restrito (CIR), ruptura uterina e apresentações anômalas. A insuficiência cervical está frequentemente associada aos defeitos congênitos uterinos, o que explica por que o útero arqueado, a malformação mais leve, também ocasiona mau prognóstico obstétrico. O útero septado é o de pior prognóstico em virtude da má vascularização do septo (Figura 19.11).
Figura 19.10 ■ Classificação das principais anomalias uterinas pela ultrassonografia 3D.
Os úteros didelfo, bicorno e septado estão associados a taxas de parto pré-termo 2 a 3 vezes mais elevadas do que na população geral. ▶ Insuficiência cervical. Determina, tipicamente, abortamentos de 2o trimestre, e o diagnóstico é feito pela história clínica de ruptura espontânea das membranas e dilatação sem dor. Dada sua importância no abortamento habitual, a insuficiência cervical será analisada separadamente, mais adiante.
Figura 19.11 ■ Gravidez em útero septado.
▶ Miomas. Os miomas que distorcem a cavidade intrauterina podem determinar abortamento habitual de 2o trimestre.
■ Fatores imunológicos Células T regulatórias (Treg) são um subtipo de célula T auxiliar CD4+ que funciona para inibir a resposta imunológica decorrente de infecção, inflamação e autoimunidade (Figura 19.12). O FOXP3, fator de transcrição expresso pelas Treg, medeia essa função supressora. Na verdade existem dois tipos de Treg: tímico (tTreg) e periférico (pTreg). Recentemente, identicou-se um elemento genético móvel que exalta o gene FOXP3, o CNS1, que existe nas pTreg mas não nas tTreg. Desse modo, apenas as pTreg são capazes de refrear a resposta imunológica induzida pela gravidez, de reconhecer os antígenos paternos. Essas pTreg suprimem as células T efetoras maternas e mitigam o conflito materno-fetal causado pelos aloantígenos paternos. A deficiência de CNS1 conduz à inabilidade de induzir pTreg na mãe, resultando em infiltração de célula T ativada na placenta e consequente abortamento de repetição.
■ Exames diagnósticos
Podem ser assim enumerados (ACOG, 2001; RCOG, 2011): • Cariótipo do casal • Avaliação citogenética no material de abortamento • Ultrassonografia transvaginal 3D
Figura 19.12 ■ Células T reguladoras e abortamento. Antígenos fetais, incluindo os aloantígenos paternos, deparam-se com o sistema imunológico materno na placenta e nos nódulos linfáticos proximais. A inserção de um elemento genético móvel contendo CNS1 próximo ao gene FOXP3 possibilita a emergência de células T reguladoras periféricas (pTreg) na placenta de mamíferos (A). O antígeno paterno ativa as células T efetoras e, ao ser fagocitado pelas células dendríticas, é apresentado a células T imaturas para gerar pTreg. As pTreg suprimem as células T efetoras, mitigando o conflito imunológico materno-fetal. Quando as pTreg estão ausentes, as células T efetoras respondem ao aloantígeno paterno, infiltram a placenta, e determinam alterações inflamatórias que culminam no abortamento (B).
• Dosagem dos anticorpos LAC e aCL • Dosagem de TSH e de anti-TPO • Dosagem de testosterona livre/total. Não se consegue reconhecer a causa de mais de 50% dos casos de abortamento habitual.
■ Tratamento As principais medidas terapêuticas são: • Fertilização in vitro (FIV) com diagnóstico préimplantação (DPI) nas alterações cromossomiais do casal • Na insuficiência luteínica, deve-se administrar progesterona vaginal, 200 mg/dia, 2 a 3 dias após a ovulação até a transferência luteoplacentária entre 7 e 9 semanas • Administração de levotiroxina no hipotireoidismo (Hashimoto), desde que o TSH esteja > 2,5 mUI/mℓ • Redução de peso e metformina na SOP • Administração de heparina e ácido acetilsalicílico (AAS) infantil na SAF (70% de tratamento bem-sucedido) • Resecção histeroscópica no útero septado e no mioma intracavitário. A ASRM (2012) não recomenda o tratamento da mulher contra antileucócitos paternos, nem a administração de imunoglobulina intravenosa. O casal com abortamento habitual de causa inexplicável deve ser confortado, comunicando-se a chance de êxito de 70% em uma próxima gravidez (ASRM, 2012). Antes de uma nova concepção, recomendam-se: mudança no estilo de vida com exercícios moderados e perda de peso, suplementação de ácido fólico, cessação do tabagismo, moderação no consumo de cafeína e de álcool.
■ Abortamento habitual inexplicável: explicação do paradoxo O abortamento habitual é considerado como casos em que há ≥ 3 interrupções, e sua taxa de ocorrência varia com a idade materna. Em mulheres da população geral na faixa etária de 25 a 39 anos, a taxa de abortamento esporádico é de 12 a 25%, e a de abortamento habitual, de 0,4 a 3% (Tabela 19.4). Cerca de 70% das mulheres com abortamento habitual inexplicável não apresentam nenhuma doença e têm excelente prognóstico, não necessitando de nenhum tratamento. Estudos epidemiológicos sugerem que a maioria dessas mulheres com abortamento habitual inexplicável seja de fato saudável, sem patologia de base, e tenha sofrido essas três interrupções por chance, ao acaso. Se isso for verdadeiro, em cerca de duas em três mulheres não tratadas (tipo I), o prognóstico para a próxima gestação será bom, igual ao da população geral. Entretanto, cerca de 1 em 3 das mulheres com abortamento habitual inexplicável (tipo II) apresenta fatores de risco ambientais/estilo de vida ou endógenos não detectados na investigação inicial rotineira, e o prognóstico é ruim. ▶ Cariotipagem do material de aborto. Uma investigação recente (2013) mostrou que a taxa de anomalias cromossomiais no abortamento habitual (≥ 3) é de cerca de 60%, muito
semelhante à do abortamento esporádico. Caso o cariótipo do material de aborto seja normal, é improvável que o abortamento habitual tenha ocorrido por chance. Nessas mulheres (tipo II), o prognóstico para futuras gestações é adverso, com número elevado de interrupções. O estudo do cariótipo tem sido tão relevante que, em face das dificuldades de obtê-lo em material de aborto, se propõe a realização de biopsia de vilo corial (BVC) transcervical antes do esvaziamento, o que exclui a possibilidade de alterações cromossomiais estruturais (translocações), evitando a investigação do cariótipo dos pais. Concluindo, estudos epidemiológicos sugerem que a maioria das mulheres mais idosas com abortamento habitual inexplicável (tipo I) não apresenta patologia de base, o que pode explicar o bom prognóstico desse grupo em futuras gestações (Figura 19.13). Por outro lado, o grupo de mulheres geralmente jovens (tipo II) provavelmente apresenta patologia de base ainda não identificada, responsável pelas perdas repetidas. Nesse caso, o cariótipo do material de abortamento será normal. O melhor entendimento desses dois grupos de mulheres com abortamento habitual inexplicável (tipo I e tipo II) pode levar a diferentes tratamentos e estratégias de conduta, inclusive com redução de custos.
Figura 19.13 ■ Abortamento habitual inexplicável: tipo I e tipo II. (Adaptada de Saravelos & Li, 2012.)
■ Insuficiência cervical O termo insuficiência cervical é utilizado para descrever a incapacidade do colo uterino em reter o produto da concepção no 2o trimestre da gravidez, na ausência de sinais e sintomas de contrações e/ou parto (ACOG, 2014). A insuficiência cervical tem incidência de 1:1.000 partos e representa 8% dos casos de abortamento habitual [Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), 2013].
■ Quadro clínico e diagnóstico Exibindo quadro clínico característico, a insuficiência cervical é uma das principais causas de abortamento habitual tardio ou de parto pré-termo extremo. A “dilatação cervical é sem dor” e o feto nasce vivo e morfologicamente normal. A insuficiência cervical costuma ser precedida por história de traumatismo cervical causado por conização, laceração cervical no parto ou dilatação exagerada do colo em casos de interrupção provocada da gravidez e defeitos müllerianos (Tabela 19.5). Secreção mucoide vaginal e dilatação de 4 a 6 cm sem desconforto apreciável ou percepção de contrações reforçam o diagnóstico. A dilatação cervical com herniação das membranas visualizadas ao exame especular configura o quadro de insuficiência cervical aguda (Figura 19.14). As perdas gestacionais ocorrem tipicamente no 2o ou no início do 3o trimestre, com cada interrupção ocorrendo mais cedo do que a anterior. Não há nenhum teste diagnóstico preconcepcional recomendado para confirmar insuficiência cervical. O achado sonográfico de colo curto no 2o trimestre, embora esteja associado a risco aumentado de parto pré-termo, não é suficiente para diagnosticar a insuficiência cervical, quando está ausente a história clínica (ACOG, 2014).
■ Tratamento O tratamento é cirúrgico por meio da circlagem do colo uterino, realizada na gravidez. Há duas técnicas de circlagem vaginal, Shirodkar e McDonald, e uma de circlagem transabdominal. Apesar de não haver comprovação da superioridade de uma técnica sobre a outra (ACOG, 2014), a técnica de Shirodkar (Figura 19.15) está praticamente em desuso e a de McDonald, mais simples, é o procedimento de escolha. A técnica McDonald consiste em uma sutura em bolsa no nível da junção cervicovaginal com fio Ethibond 5 (Figura 19.16).
Tabela 19.5 ■ Características da história de insuficiência cervical. História de ≥ 1 abortamento no 2o trimestre História de perdas fetais cada vez mais precoces História de dilatação cervical indolor até 4 a 6 cm História de lesão cervical causada por: • Conização do colo • Lacerações cervicais intraparto ou por dilatação traumática para abortamento provocado
Figura 19.14 ■ Insuficiência cervical aguda com dilatação do colo e herniação das membranas.
A circlagem deve ser limitada a gestações no 2o trimestre (até 24 semanas), antes da viabilidade fetal (ACOG, 2014). Nem antibióticos nem tocolíticos profiláticos melhoram a eficácia da circlagem (ACOG, 2014). Certas condutas não cirúrgicas, incluindo restrição da atividade física e repouso no leito e pélvico, não são efetivas para o tratamento da insuficiência cervical e devem ser desencorajadas (ACOG, 2014). ▶ Circlagem história-indicada. A história de uma ou mais perdas gestacionais, com quadro clinico de insuficiência cervical, compõe o grupo de mulheres que se beneficiarão da circlagem história-indicada (ACOG, 2014) (Figura 19.17). A cirurgia deve ser realizada entre 12 e 14 semanas de gravidez, após a ultrassonografia revelar feto vivo e sem anomalias (SOGC, 2013). ▶ Circlagem ultrassonografia-indicada. Após uma perda fetal, com o quadro clínico de insuficiência cervical, está indicado o exame transvaginal do colo uterino a partir de 16 a 24 semanas da gravidez. O colo < 25 mm indica a circlagem ultrassonografia-indicada, também denominada terapêutica (SOGC, 2013; ACOG, 2014) (Figura 19.17). ▶ Circlagem de emergência. Está indicada, até 24 semanas da gestação, em pacientes com dilatação cervical < 4 cm e herniação das membranas, sem contração e/ou parto, afastada a infecção intramniótica (circlagem exame-indicada) (SOGC, 2013; ACOG, 2014) (Figura 19.17). ▶ Circlagem transabdominal. Tem como principal indicação a falência da circlagem transvaginal, mas também quando a cirurgia extensa do colo tenha deixado pouco tecido cervical para realização do procedimento baixo (ACOG, 2004) (Figura 19.17).
Figura 19.15 ■ Operação de Shirodkar para o tratamento da insuficência cervical durante a gravidez. A. Incisão anterior da mucosa vaginal na altura do orifício interno da cérvice. B. Bexiga descolada. C. Pequena incisão posterior da mucosa vaginal. D. A agulha de Deschamps, ou de modelo semelhante, é introduzida sob a mucosa, da porção anterior para a posterior; pela extremidade fenestrada é amarrada à fita cardíaca. E. A retirada da agulha traz a fita cardíaca que contorna a metade da região cervical. F. Repete-se a manobra do outro lado, fixada a agulha à outra extremidade da tira. G. Retirada a agulha, toda a região cervical é circundada pela fáscia. H. Um ou dois pontos fixam a tira, ancorando-a na porção posterior. I. O mesmo, anteriormente. A figura não mostra o último tempo, a síntese da mucosa. (Adaptada de Barter, RH et al. Surgical closure of the incompetent cervix during pregnancy. Am J Obstet Gynecol, 1958;75:511-21.)
A circlagem transabdominal exige duas laparotomias; uma para a inserção, com 11 semanas, e outra para a operação cesariana (Figura 19.18). Tem-se proposto a circlagem transabdominal por laparoscopia na gravidez como também fora dela.
■ Contraindicações para a circlagem Na ausência de parto pré-termo anterior, colo curto identificado no 2o trimestre não é diagnóstico de insuficiência cervical e a circlagem não está indicada nesse cenário. A
progesterona vaginal é recomendada como opção para reduzir o risco de parto pré-termo em mulheres assintomáticas com gravidez única, sem história de parto pré-termo e colo ≤ 20 mm identificado entre 16 e 24 semanas (ACOG, 2014). Na gravidez gemelar, a circlagem pode aumentar o risco de parto pré-termo e, mesmo que a ultrassonografia identifique colo < 25 mm, ela deve ser evitada (ACOG, 2014). Não há evidências do benefício da circlagem, exceto no caso das seguintes indicações: conização anterior, anomalias müllerianas (ACOG, 2014).
Figura 19.16 ■ A técnica de McDonald para a cura cirúrgica da insuficiência cervical durante a gravidez. Sutura em bolsa, à altura da junção cervicovaginal com fio Ethibond 5.
Figura 19.17 ■ Indicações da circlagem.
■ Complicações No geral, o risco de complicações com a circlagem é pequeno. São relacionados: ruptura das membranas, corioamnionite, laceração cervical e deslocamento da sutura (ACOG, 2014). Comparada com a circlagem transvaginal, a transabdominal apresenta maior risco de hemorragia que pode ameaçar a vida da paciente, além de outras complicações inerentes à cirurgia abdominal.
■ Remoção da circlagem A circlagem deve ser removida com 36 a 37 semanas de gravidez (ACOG, 2014). A sutura de McDonald pode ser removida no consultório. Para mulheres com indicação de cesárea com 39 semanas ou mais, a circlagem deve ser removida no momento do parto (ACOG, 2014). Em mulheres com circlagem e ruptura prematura das membranas pré-termo (RPMP), há indefinição quanto à retirada ou à permanência da sutura (ACOG, 2014). A permanência da sutura não é recomendação para que se prolongue o antibiótico profilático por mais de 7 dias. Por outro lado, a circlagem deve ser retirada em mulheres com trabalho de parto pré-termo. Após a circlagem transabdominal, a sutura só pode ser removida por ocasião da cesárea; todavia, ela pode permanecer no local, visando a uma nova gravidez.
■ Recomendações finais (2013) sobre a circlagem • Deve-se sugerir uma ultrassonografia antes da circlagem para assegurar a viabilidade fetal, confirmar a idade da gravidez e avaliar a anatomia do feto para afastar anomalias estruturais
maiores • Utilize anestesia espinal e não geral • Proceda à técnica de McDonald com a colocação da sutura a mais elevada possível • Realize a cirurgia com a alta da paciente no mesmo dia • Nos casos de conização extensa do colo do útero, pode estar indicado o pessário de Arabin associado à progesterona, tendo em vista que a circlagem não trouxe resultados animadores.
Figura 19.18 ■ Circlagem transabdominal (esquemática). A. Anatomia da região. B. Fita cardíaca pela zona avasculada, mostrando-se esboçado o nó de aproximação. (Adaptada de O’Grady, JP; Gimovsky, ML Operative Obstetrics. Baltimore: Williams & Wilkins, 1995.)
■ Pontos-chave O abortamento esporádico ocorre em 10 a 25% de todas as gestações clinicamente reconhecidas (abortamento clínico). As cromossopatias são responsáveis por 60% dos abortamentos esporádicos do 1o trimestre; a anormalidade mais comum é a síndrome de Turner (45,X0), com incidência de 19%. Metade das mulheres com ameaça de abortamento aborta. O diagnóstico definitivo de gravidez inviável é realizado quando o CCN for ≥ 7 mm e não houver bcf ou o SG for ≥ 25 mm e não estiver presente embrião. O abortamento habitual tem sido definido recentemente como a perda de duas ou mais gestações. 6. Entre as causas do abortamento habitual estão: alterações cromossômicas, SAF, doenças endócrinas, fatores anatômicos, fatores imunológicos e cariótipo anormal do embrião.
Em mais de 50% das vezes não se consegue identificar a causa do abortamento habitual, e mesmo assim, a probabilidade de uma nova gravidez normal é da ordem de 70%. O tratamento da SAF com heparina e AAS é bem-sucedido em 70% dos casos. O cariótipo anormal do embrião no material de abortamento habitual é indicativo de que essas mulheres abortam por acaso. O tratamento da insuficiência cervical é feito com a circlagem do colo uterino.
■ Etiologia ■ Patologia ■ Quadro clínico e diagnóstico
A gravidez ectópica (ectociese) pode ser reconhecida quando o ovo se implanta fora do útero, sendo também denominada gravidez extrauterina (tubária, ovariana, abdominal). A gravidez tubária representa mais de 95% das ectópicas. Apesar de ser um tipo de gravidez heterotópica, a gravidez cervical apresenta quadro clínico e tratamento com alguma semelhança com a gravidez ectópica. Por isso, tendem a ser estudadas juntas. O abortamento é a complicação mais frequente do início da gravidez e ocorre em 15 a 20% das gestações clinicamente evidentes. Já a gravidez ectópica incide 10 vezes menos, em 1,5 a 2% das gestações, mas é uma patologia potencialmente fatal para a paciente. Nos EUA, em 2 décadas (1970-1990), a incidência de gravidez ectópica aumentou 6 vezes, mas tem se mantido estável. A mortalidade caiu drasticamente para 0,5 por 1.000 gestações, graças, principalmente, ao diagnóstico precoce antes da ruptura tubária. Mesmo assim, a gravidez ectópica ainda é responsável por 6% de todas as mortes maternas nesse país.
■ Etiologia Lesão das tubas uterinas, doença inflamatória pélvica (DIP), cirurgia tubária prévia ou gravidez ectópica anterior são importantes fatores de risco para a ectopia (Tabela 20.1). A concepção com o dispositivo intrauterino (DIU) ou após a ligadura tubária é rara, mas estima-se que 25 a 50% dessas gestações sejam ectópicas. Tem-se atribuído ao uso do DIU o incremento verificado na incidência de gravidez ectópica nos últimos anos. O DIU, provavelmente, não é fator causal direto, mas ao não proteger a paciente da ectopia, como o faz para a gravidez intrauterina, aumenta, indiretamente, a incidência da afecção. Em pacientes usuárias de DIU, a proporção de gravidez ectópica/intrauterina é de 1:10, muito mais elevada do que na população geral; a relação gravidez ovariana/tubária também está aumentada, 1:10 (esperada 1:200).
Tabela 20.1 ■ Fatores de risco para gravidez ectópica. Cirurgia tubária prévia Gravidez tubária anterior Exposição in utero ao dietilestilbestrol (DES) História de doença inflamatória pélvica (DIP) História de infertilidade História de cervicite para clamídia ou gonococo Anormalidade tubária documentada
Ligadura tubária Uso atual de dispositivo intrauterino
Mulheres subférteis têm risco aumentado para gravidez ectópica pela alteração na integridade ou na função tubária. A fertilização in vitro (FIV) também eleva o risco de ectopia mesmo em mulheres sem lesão tubária. Assim, se o risco de gravidez ectópica é de 1:4.000 na população geral, ele será de 1:100 no grupo submetido à FIV. A gravidez ectópica que envolve a implantação na cérvice uterina, na porção intersticial da tuba uterina, no ovário, no abdome ou na cicatriz de cesárea é responsável por menos de 10% de todas as gestações ectópicas. Esses casos atípicos e raros de ectopia são de difícil diagnóstico e estão associados a elevada morbidade. O risco de recorrência da gravidez ectópica é de cerca de 10% em mulheres com uma ectopia anterior e ascende para no mínimo 25% naquelas com duas ou mais acidentes. Mulheres com uma das tubas uterinas removida apresentam risco aumentado para gravidez ectópica na tuba remanescente. Aproximadamente 60% das mulheres que tiveram gravidez ectópica são capazes de apresentar gravidez intrauterina.
■ Patologia Do ponto de vista anatomopatológico, a gravidez ectópica pode ser primitiva ou secundária. É primitiva quando a nidificação ocorre e prossegue em zona única do aparelho genital, e secundária quando, após implantar-se em um lugar, o ovo se desprende do aparelho genital e continua o desenvolvimento em outro local. As principais formas anatomopatológicas são descritas seguir.
■ Gravidez tubária Representa mais de 95% das gestações ectópicas. O ovo fertilizado pode se alocar em qualquer posição da tuba uterina, dando origem às gestações tubárias ampular, ístmica e intersticial; poucas vezes (11%) o ovo fertilizado pode se implantar na extremidade fimbrial (gravidez fimbriária) (Figura 20.1). A ampola é o local mais frequente (80%) (Figura 20.2), depois o istmo (12%). A gravidez intersticial (ou cornual) representa apenas 2 a 3% das gestações tubárias. ▶ Abortamento ou ruptura tubária. O abortamento tubário depende, em parte, do local de implantação; é comum na gravidez tubária ampular, enquanto a ruptura é usual na gravidez ístmica (Figura 20.3). ▶ Gravidez intraligamentar. Quando a ruptura ocorre na posição da tuba uterina não coberta pelo peritônio, o saco gestacional (SG) pode se desenvolver entre os folhetos do ligamento largo, constituindo gravidez intraligamentar (Figura 20.3). ▶ Gravidez intersticial. A implantação dentro do segmento tubário que penetra a parede
uterina resulta em gravidez intersticial ou cornual. A ruptura ocorre com sangramento massivo, e muitos casos são fatais. ▶ Gravidez heterotópica. A gravidez tubária, quando coexiste com gestação intrauterina, é chamada de heterotópica (ou combinada). Até recentemente era muito rara, com incidência de 1:30.000 gestações. Atualmente, com as técnicas de fertilização in vitro e de indução da ovulação, sua incidência é elevada, de 1:500.
■ Gravidez abdominal Constitui cerca de 1% das ectocieses. Representa risco de morte materna 7,7 vezes superior ao da gravidez tubária e 90 vezes mais elevado do que o da gestação uterina. Classicamente, separa-se uma forma primitiva, posta em dúvida por diversos autores; sendo muito mais frequente a secundária. O ovo pode implantar-se em qualquer ponto do abdome e nos diferentes órgãos revestidos pelo peritônio visceral. A gravidez abdominal primitiva é rara; a maioria é secundária à ruptura ou ao abortamento tubário. Poucas sobrevivem na cavidade abdominal e avançam além do 2o trimestre de gestação. As dificuldades diagnósticas e terapêuticas são notáveis qualquer que seja o local de implantação da gravidez abdominal avançada. A pré-eclâmpsia ocorre em cerca de 1/3 das gestações abdominais e a sobrevida perinatal é a exceção, com 80 a 90% de mortalidade.
Figura 20.1 ■ Possibilidades da gravidez ectópica. (Adaptada de Cunningham, FG et al. Williams Obstetrics, 23 ed. New York: McGraw-Hill; 2010.)
Figura 20.2 ■ Ultrassonografia 3D de gravidez tubária íntegra com 12 semanas. (De Montenegro, CAB; Rezende Filho, J; Lima, MLA. Ultrassom tridimensional – Atlas Comentado. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2001.)
Figura 20.3 ■ Principais acidentes da gravidez tubária. (Modificada de Parsons, L; Sommers, SC. Gynecology. Philadelphia, Saunders; 1962.)
A sobrevida fetal na gravidez abdominal é exceção e não a regra, e o feto que nasce vivo frequentemente é malformado. A retenção prolongada, com conservação de certa quantidade de líquido amniótico, é conhecida como “cisto fetal”. Com o tempo, o feto macera-se pela reabsorção progressiva de líquido amniótico, desseca-se por desidratação (mumificação), e pode sofrer saponificação, isto é, transformação de músculos e partes moles em massa constituída por ácidos graxos, sabões (lipocere ou adipocere). A reabsorção total das partes moles (esqueletização) e a deposição calcária no feto (litopédio) e nas membranas (litoquélifo) são as etapas finais do processo.
■ Gravidez ovariana Representa 3% das gestações ectópicas, sendo sua forma primitiva muito rara (Figura 20.4). A gravidez ovariana pode ser resultante de: • Ruptura com reabsorção ovular; evolução mais frequente • Ruptura evoluindo para um tipo secundário: abdominal.
■ Gravidez cervical É uma forma pouco usual de ectopia, representando menos de 1% dos casos. Sua incidência oscila entre 1:2.500 e 1:50.000 gestações (Figuras 20.5 e 20.6).
Figura 20.4 ■ Gravidez ovariana primitiva.
Figura 20.5 ■ Gravidez cervical de 9 semanas com batimento cardiofetal.
Figura 20.6 ■ Tratamento da gravidez cervical. USTV, ultrassonografia transvaginal; SG, saco gestacional; bcf, batimento cardiofetal; MTX, metotrexato.
A ultrassonografia revela útero vazio, canal cervical aumentado com imagem de SG exibindo embrião em seu interior, com ou sem batimentos cardíacos.
■ Gravidez ectópica em cicatriz de cesárea Constitui a forma mais rara de ectopia (Figura 20.1). Em mulheres com história de cesárea, impõe-se o diagnóstico por meio da ultrassonografia quando: • A cavidade uterina e o canal cervical estiverem vazios • O desenvolvimento do SG ocorrer na porção anterior do segmento inferior do útero • Houver ausência de miométrio saudável entre a bexiga e o SG. As opções terapêuticas cirúrgicas ou médicas dependem do quadro clínico. A laparotomia com histerotomia ou histerectomia está indicada nas pacientes com hemorragia ativa. Alternativa endoscópica, laparoscópica ou histeroscópica pode ser utilizada na paciente estável. Finalmente, o tratamento médico com MTX intramuscular também pode ser utilizado em pacientes estáveis, embora essa estratégia requeira seguimento cuidadoso e possa estar associada a falha terapêutica.
■ Quadro clínico e diagnóstico Pacientes com gravidez tubária rota exibem quadro clínico de choque, incluindo hipotensão, taquicardia e dor à palpação e devem ser tratadas em bases emergenciais. Todavia, antes da ruptura, a maioria das pacientes apresenta-se com manifestações
inespecíficas que podem mimetizar quadro de abortamento. Esses sinais e sintomas incluem hemorragia de 1o trimestre (de sangue escuro ou claro, que raramente excede o fluxo menstrual normal), dor abdominal ou pélvica que pode ser leve a debilitante. Mulheres com esse quadro clínico devem ser consideradas altamente suspeitas de gravidez ectópica, sendo necessário o diagnóstico definitivo. O diagnóstico de pacientes com gravidez ectópica deve ser rapidamente confirmado por ultrassonografia transvaginal e dosagem do hCG. O diagnóstico diferencial que se impõe é entre gestação intrauterina viável, abortamento e gravidez ectópica. O desfecho da gravidez ectópica depende, principalmente, de sua localização. Embora as formas clínicas possam ser bastante variadas, as principais são: • Subaguda • Aguda • Abdominal.
■ Subaguda É a forma clínica mais comum (70% dos casos), com o ovo, habitualmente, localizado na ampola tubária. Quando o saco ovular distende a porção ampular da tuba uterina, ocorre separação parcial do trofoblasto, e mais tarde da placenta, com perdas sanguíneas intermitentes, que atravessam o óstio e alcançam a cavidade abdominal, fenômeno que se prolonga, por vezes, durante muitos dias (abortamento tubário). O hematoma formado na ampola tubária pode determinar abortamento completo, com eliminação do ovo; entretanto, é mais comum a ocorrência de expulsão incompleta, porque o trofoblasto invade a camada muscular da tuba uterina e fica aderido nela. Nesses casos, trata-se de hemorragia intraperitoneal persistente. Ao se coagular o sangue intraperitoneal, uma substância irritante, possivelmente a serotonina, é liberada e provoca dor abdominal baixa (hipogástrio). Constituem outros sinais de irritação peritoneal: náuseas e vômitos, estado subfebril, distensão do ventre, leucocitose moderada (10 a 12 mil/mm3) e abdome doloroso à palpação. A paciente exibe quadro clínico compatível com discreta hemorragia interna: lipotimia, taquisfigmia moderada (até 90 bpm), mucosas descoradas, pressão arterial ainda normal. Em 1/3 das histórias de pacientes com gravidez ectópica não existe referência à amenorreia. O atraso menstrual é encoberto por hemorragia vaginal, concomitante com morte ovular e início de separação da decídua. O exame ginecológico (toque combinado) revela ocupação (sangue coletado) e dor à pressão do fundo de saco posterior (grito do Douglas), além da moléstia e desconforto decorrentes da manipulação da cérvice. A ocorrência de tumor anexial não é uma constante. Aproximadamente 95% das tumorações anexiais palpáveis em mulheres jovens estão representadas por cistos ovarianos fisiológicos.
Quase todos resolvem-se, espontaneamente, em prazo de 3 semanas a 3 meses e não requerem terapia nem qualquer investigação que não seja o reexame. Uma pequena minoria resulta em hemorragia ou sofre torção do pedículo, com sintomatologia aguda que obriga a intervenção cirúrgica. Os 5% dos tumores anexiais restantes são consequentes a gravidez ectópica, inflamação, patologia ovariana e cistos embriológicos, necessitando de cirurgia quase sempre conservadora. Nessas condições, o diagnóstico da forma subaguda não é fácil. Mais de 20% das pacientes com indicação para laparotomia, por gravidez ectópica, são operadas desnecessariamente.
■ Ultrassonografia A gravidez tubária pode apresentar diversos aspectos à ultrassonografia (Tabela 20.2): • Massa complexa: 60% (Figura 20.7) • Anel tubário: 20% (Figuras 20.8 e 20.9) • Anel tubário com embrião e com ou sem batimentos cardiofetais (bcf): 13%.
Tabela 20.2 ■ Diagnóstico da gravidez ectópica à ultrassonografia. Achado à US
Probabilidade de ectopia
SG intrauterino
Virtualmente nenhuma (0%)
Ausência de SG intrauterino • Exame normal/cisto simples anexial
Baixa (5%)
• Massa complexa anexial/líquido livre
Alta (> 90%)
• Anel tubário
Alta (> 95%)
• Embrião vivo extrauterino (bcf)
Certa (100%)
SG, saco gestacional; bcf, batimento cardiofetal; US, ultrassonografia.
Figura 20.7 ■ Massa complexa.
Figura 20.8 ■ Gravidez tubária (7 semanas) – ultrassonografia 3D. SG, saco gestacional. (Clínica de Ultrassonografia Botafogo, RJ.)
Figura 20.9 ■ Anel tubário.
A identificação pela ultrassonografia transvaginal de SG intrauterino praticamente afasta a gravidez ectópica, exceto em pacientes com ovulação induzida e concepção assistida, nas quais há risco de gravidez heterotópica* (ovos dizigóticos, um intra e outro extrauterino) (Figura 20.10). Esse fenômeno, muito raro na população geral (1:30.000 gestações), é comum na reprodução assistida (1:100-500 gestações). O pseudossaco gestacional é encontrado em cerca de 5 a 10% das pacientes com gravidez ectópica e representa reação decidual exuberante circundando líquido de localização central no endométrio; o Doppler colorido é negativo nesses casos. O achado de líquido livre na pelve só é relevante quando intenso e associado à instabilidade hemodinâmica da paciente. O Doppler colorido da massa anexial mostra fluxo moderado/acentuado com índice de resistência (RI) < 0,45 em 80 a 85% dos casos. O corpo lúteo gravídico que também exibe fluxo colorido é ipsilateral em 75% das vezes.
Figura 20.10 ■ Gravidez heterotópica: tópica, ovo vivo (A); ectópica, ovo morto (B).
■ Gravidez de localização desconhecida Em 8 a 30% das mulheres com suspeita de gravidez ectópica, o exame sonográfico inicial não exibe gravidez intrauterina nem na tuba uterina (gravidez de localização desconhecida). A gestação intrauterina pode não ser localizada em virtude de o SG ser muito incipiente, ter colapsado, ou a gravidez tubária, muito precoce, sem hemorragia, pode não ser facilmente visualizada à ultrassonografia. Se a ultrassonografia não foi definitiva para o diagnóstico de gravidez ectópica, sua repetição após 7 dias identifica 90% das ectopias. Em caso de útero vazio com hCG de 2.000 a 3.000 mUI/mℓ, a chance de gravidez ectópica é 19 vezes maior do que a de gravidez viável intrauterina, cuja probabilidade é de apenas 2%. Se o valor do hCG for > 3.000 mUI/mℓ, esses números são, respectivamente, de 70 vezes e 0,5% [Society of Radiologists in Ultrasound (SRU), 2013]. Levando em conta essas novas considerações, o limite discriminatório mais fidedigno para diagnosticar a ectopia em gravidez de localização desconhecida é o valor do hCG > 3.000 mUI/mℓ, tornando imprudente, por exemplo, indicar o tratamento médico com MTX se o valor do hCG for de 2.000 a 3.000 mUI/mℓ (Figura 20.11) (SRU, 2013).
■ Diagnóstico cirúrgico ▶ Laparoscopia. A visualização direta das tubas uterinas e da pelve pela laparoscopia oferece o diagnóstico adequado da suspeita de gravidez ectópica, inconclusiva à ultrassonografia (Figura 20.12). ▶ Laparotomia. A cirurgia abdominal aberta é preferida quando a mulher está hemodinamicamente instável ou a laparoscopia não está prontamente disponível.
Figura 20.11 ■ Gravidez de localização desconhecida. (SRU, 2013.)
Figura 20.12 ■ Visão laparoscópica da gravidez tubária.
■ Aguda Com a localização habitual do ovo no istmo da tuba uterina, a ruptura ocorre com intensa hemorragia intraperitoneal. Geralmente, a forma aguda corresponde à ruptura tubária (30% dos casos). A paciente refere dor violenta, em punhalada, na fossa ilíaca ou no hipogástrio. Ao deitar-se, o sangue intra-abdominal pode ascender ao diafragma, irritar o nervo frênico e determinar dor escapular, sinal expressivo e constante, geralmente no lado direito. A paciente, nesse caso, apresenta-se em estado de choque: palidez, sudorese, extremidades frias, pulso fino e rápido, hipotensão. O sangue intra-abdominal acumula-se no fundo de saco posterior (hematocele de Douglas), causando sensação de peso no reto e na bexiga e dor à defecação e à micção. A palpação do abdome é dolorosa, com Blumberg positivo. O exame ginecológico revela aspectos semelhantes aos do abortamento tubário, embora mais exaltados. Nessas circunstâncias, são poucas as dúvidas diagnósticas. A punção do Douglas só traz subsídios quando positiva e perdeu sua importância com o uso da ultrassonografia (Figura 20.13).
■ Gravidez abdominal Como a gravidez tubária pode ser um antecedente comum da gravidez abdominal, deve-se tentar identificar história sugestiva em retrospecto. O diagnóstico de gravidez abdominal é difícil. A paciente queixa-se de dor abdominal, náuseas e vômitos; a palpação revela apresentação transversa, oligoidrâmnia, colo deslocado. O diagnóstico é confirmado por exame de imagem. A ultrassonografia revela útero vazio, separado do feto, e placenta ectópica intra-abdominal. A ressonância magnética (RM) é decisiva para confirmar o diagnóstico e identificar a implantação placentária sobre grandes vasos, intestinos ou outras vísceras (Figura 20.14). Embora a placenta possa inserir-se em qualquer lugar do abdome, ela geralmente está confinada às estruturas
pélvicas.
Figura 20.13 ■ Punção do fundo de saco posterior.
Figura 20.14 ■ Ressonância magnética de gravidez abdominal. (Caso da Ultrassonografia Botafogo, RJ.)
■ Tratamento ■ Gravidez tubária O tratamento da gravidez tubária pode ser: • Cirúrgico • Médico • Expectante.
■ Tratamento cirúrgico ▶ Laparotomia. Reservada para os casos agudos (1/3 dos casos), pacientes hemodinamicamente instáveis e com hemoperitônio. Além do tratamento do choque, a cirurgia tubária radical por meio da salpingectomia (com conservação da porção intersticial da trompa) é indicada (Figura 20.15). ▶ Laparoscopia. A laparoscopia é o padrão-ouro na maioria dos casos, e o tratamento cirúrgico da trompa pode ser conservador (salpingostomia) ou radical (salpingectomia). ▶ Salpingostomia. A salpingostomia linear consiste na enucleação da ectopia com conservação da trompa que é deixada aberta para que a cicatrização ocorra por segunda intenção (Figura 20.16). A salpingostomia está indicada: • Como primeira opção para a paciente que apresentar trompa contralateral doente • Para a paciente que quiser ter filhos futuramente • Na ectopia tubária de pequenas dimensões, usualmente localizada na porção ampolar da trompa e que se apresenta íntegra.
Figura 20.15 ■ Salpingectomia na gravidez tubária.
Figura 20.16 ■ Salpingostomia linear. (Adaptada de Cunningham, FG et al. Williams Obstetrics 22 ed. New York: McGraw-Hill; 2005.)
Após a salpingostomia, quase 10% das pacientes apresentam o quadro de gravidez ectópica persistente, e, por isso, devem ser seguidas até o valor do hCG-β atingir 5 mUI/mℓ.
▶ Salpingectomia. A salpingectomia pode ser necessária em mulheres: • Com sangramento incontrolável • Com gravidez ectópica recorrente na mesma tuba. • Com trompa uterina muito lesada ou saco gestacional (SG) > 5 cm. A salpingectomia é a melhor indicação para mulheres nas quais a trompa contralateral é normal, pois determina menos complicações que a salpingostomia e a fertilidade futura é a mesma em ambos os procedimentos cirúrgicos.
■ Tratamento médico O tratamento médico é feito com metotrexato (MTX) sistêmico por via intramuscular. Os critérios de inclusão podem ser vistos na Tabela 20.3 e o protocolo de tratamento com o MTX em dose única segue as orientações mostradas na Tabela 20.4.
■ Tratamento expectante Este tratamento está reservado para um grupo seleto de pacientes (10-15%), com quadro clínico estável, hCG-β declinante e com nível inicial de < 1.000-1.500 mUI/mℓ. Muitos desses casos correspondem à gravidez ectópica de localização desconhecida.
Tabela 20.3 ■ Indicações para o tratamento médico. Quadro clínico estável Diagnóstico definitivo hCG < 5.000 mUI/mℓ Aumento de hCG < 50% em 48 h Saco gestacional < 3,5 cm Atividade cardíaca fetal ausente Líquido livre no peritônio ausente/moderado
A Figura 20.17 procura sumarizar o diagnóstico e o tratamento da gravidez tubária.
■ Gravidez cervical ■ Quadro clínico instável
Se o quadro clínico for instável, hemorrágico, é válido tamponar a vagina ou colocar cateter de Foley de 30 mℓ insuflando para 100 mℓ, enquanto se aguarda a histerectomia, único tratamento possível (Figura 20.6).
■ Quadro clínico estável Para este quadro, existem duas possibilidades: • MTX sistêmico IM, 1 mg/kg caso não houver bcf • MTX intraovular, na mesma dose, quando houver bcf. O acompanhamento será feito com a dosagem do hCG-β no 4o e no 7o dias, depois semanalmente até a negativação, seguindo as mesmas orientações do tratamento com MTX na gravidez tubária.
■ Gravidez abdominal Como a sobrevida fetal é a exceção, muitos desaconselham a conduta expectante hospitalar para aguardar a viabilidade do feto. Além disso, o risco de hemorragia que ameace a vida da paciente é elevado. O ideal é o diagnóstico antenatal da gravidez abdominal, com localização precisa da placenta pela ressonância magnética (RM), e cuidados pré-operatórios de valia, como inserção de cateteres ureterais, preparação do intestino, reserva de sangue para transfusão e equipe multidisciplinar. Em contrapartida, se o diagnóstico tiver sido feito por ocasião da cesárea, muitos aconselham que o concepto seja extraído, que o abdome com a placenta deixada no lugar, se não houver hemorragia, seja fechado e que a paciente seja transferida para centro terciário.
Figura 20.17 ■ Diagnóstico e tratamento da gravidez tubária.
Tabela 20.4 ■ Protocolo de tratamento com o metotrexato (MTX) em dose única. Dose única de MTX 50 mg/m 2 IM (dia 1) Mensuração do hCG-β nos dias 4 e 7 pós-tratamento Verificação da queda do hCG-β ≥ 15% entre os dias 4 e 7 Mensuração semanal do hCG-β até atingir o nível não gravídico (< 5 mUI/mℓ) Se a queda do hCG-β for < 15%, deve-se administrar a 2a dose de MTX (50 mg/m 2 IM) e realizar o hCG-β nos dias 4 e 7 após a repetição do MTX. Isso pode ser repetido se necessário Se durante o seguimento semanal com o hCG-β o nível se elevar ou estacionar, deve-se considerar a repetição do MTX
ACOG, 2008.
O que fazer com a placenta? Desenseri-la? Abandoná-la sem executar qualquer tentativa de dequitação? Se retirá-la assegura morbidade pós-operatória baixa, as manobras extrativas fazem ascender a mortalidade materna. Com a experiência, evidencia-se que se o sangramento puder ser dominado, deve-se optar pela dequitação completa. A placenta retida no abdome é fonte de supuração, especialmente se o MTX tiver sido administrado no pós-operatório, procedimento que condenamos, pois predispõe ao acúmulo de material necrosado e à infecção.
■ Pontos-chave A gravidez tubária representa mais de 95% das ectopias e as ístmicas/ampulares constituem 90% das tubárias. A evolução da gravidez tubária pode ser: abortamento tubário, ruptura tubária, resolução espontânea (1/3 dos casos), evolução para forma secundária (abdominal). A gravidez abdominal constitui cerca de 1% das ectocieses e pode evoluir para: morte ovular com reabsorção precoce, evolução avançada com morte fetal (retenção) ou feto vivo alcançando o termo (50% de malformações). A gravidez ovariana é incomum, representando 3% das ectópicas. Pode ser resultante de: ruptura com reabsorção ovular, ruptura evoluindo para a abdominal. O quadro clínico mais comum da gravidez tubária é o subagudo (70%), e o diagnóstico costuma ser feito por ultrassonografia transvaginal e hCG-β. A forma aguda (30%) corresponde à ruptura tubária no istmo da tuba uterina, com intensa hemorragia intraperitoneal. Até 30% dos casos de gravidez ectópica é de localização desconhecida, a ser resolvida pelo limite discriminatório do hCG. Na forma aguda da gravidez tubária o tratamento é cirúrgico, conservando-se a porção intersticial da tuba uterina e o ovário. Se o quadro clínico for estável e o nível de hCG-β for de 5.000 mUI/mℓ, o tratamento médico com metotrexato (MTX) é o procedimento de eleição: 50 mg IM. O tratamento da gravidez abdominal é a laparotomia. Se possível, o mais indicado é retirar a placenta.
_________ *Não confundir com heterotopia, cujo exemplo maior é a placenta prévia (Capítulo 22). A associação de ovo intra e extrauterino poderia ser mais bem denominada como gravidez combinada.
■ Conceituação ■ Mola hidatiforme ■ Neoplasia trofoblástica gestacional
A doença trofoblástica gestacional (DTG) é um evento patológico relacionado com fertilização aberrante, representado por formas clínicas distintas, geralmente evolutivas, sistematizadas em: • Mola hidatiforme • Mola invasora • Coriocarcinoma. Essas formas clínicas são blastomas originários do tecido de revestimento das vilosidades coriais (cito e sinciciotrofoblasto) caracterizados por aspectos degenerativos (hidropisia do estroma) e proliferativos (hiperplasia/anaplasia). O tumor trofoblástico do sítio placentário (PSTT – placental site trophoblastic tumor) é uma forma rara da doença, originária do trofoblasto intermediário. As formas malignas (mola invasora, coriocarcinoma e PSTT) são denominadas neoplasia trofoblástica gestacional (NTG).
■ Conceituação DTG é o termo abrangente para nomear os tumores do trofoblasto viloso placentário, englobando as várias formas de mola hidatiforme, mola invasora, coriocarcinoma e PSTT. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 1983) e o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG, 2004) também utilizam essa terminologia. O ACOG ainda refere como sinônimos NTG e tumor trofoblástico gestacional (TTG). O ACOG divide o estudo da DTG em 2 grandes tópicos: mola hidatiforme e DTG maligna (mola invasora, coriocarcinoma e PSTT). Nos EUA, a mola hidatiforme é observada em 1:1.500 gestações. Aproximadamente 20% das pacientes com mola hidatiforme após o esvaziamento desenvolvem NTG, requerendo a administração de quimioterapia. A maioria das pacientes com NTG pós-molar apresenta a forma não metastática ou mola invasora, mas o coriocarcinoma pode ocorrer nesse cenário. O coriocarcinoma incide em 1:20.000 a 1:40.000 gestações: 50% após gravidez a termo, 25% de mola hidatiforme, 25% de abortamento e até de gravidez ectópica. O PSTT é uma forma muito mais rara, que pode desenvolver-se após qualquer tipo de gravidez (Figura 21.1). A neoplasia trofoblástica é um tumor funcionante produtor de gonadotrofina coriônica humana (hCG). Atualmente, na dependência da utilização rotineira dos testes de grande sensibilidade de hCG e do emprego eficaz da quimioterapia, pode-se dizer que, de todos os cânceres humanos, a neoplasia trofoblástica é a que apresenta maior taxa de cura.
■ Mola completa
▶ Macroscopia. Feto, cordão e membranas sempre ausentes. As vilosidades de 1o trimestre medem entre 1 e 88 mm de diâmetro e as de 2o trimestre, entre 1,5 e 20 mm, sem registro de vilosidades normais (Figura 21.2). ▶ Histopatologia. O trofoblasto – sincício e citotrofoblasto – mostra acentuada e sistemática hiperplasia com anaplasia celular. Observam-se, em certos exemplos, vilosidades atróficas e hiperplasia trofoblástica discreta. Excepcionalmente notam-se capilares e, nesses raros casos, os vasos assemelham-se aos existentes nas vilosidades primordiais de ovos muito jovens. Quando há vasos, nunca se visualizam neles hemácias fetais nucleadas; se o estroma da vilosidade estiver preservado, assemelha-se a mesênquima imaturo. ▶ Citogenética. É o cariótipo, invariavelmente, feminino: 46,XX. A mola completa originase de um equívoco da fertilização. Por alguma razão desconhecida, o óvulo perde sua carga genética haploide, “esvazia-se”, sendo fecundado por espermatozoide aparentemente normal, cromossomialmente 23,X. Em seguida, ocorre a duplicação dos cromossomos paternos sem a concomitante divisão celular, proporcionando zigoto com o número normal, diploide, 46,XX de cromossomos (Figura 21.3). O genoma originado é homozigoto, sendo sua constituição cromossômica sexual obrigatoriamente 46,XX, pois a fertilização por espermatozoide contendo Y resultaria em célula YY, não vital. As poucas molas completas de composição masculina XY, cerca de 5 a 10%, são produtos da fertilização de “óvulo vazio” por 2 espermatozoides contendo cromossomos X e Y, respectivamente (Figura 21.3).
■ Mola parcial As molas hidatiformes parciais apresentam degeneração limitada da placenta, que exibe vilosidades anormais e distendidas, hidrópicas. Existe feto, cuja presença é caracterizada pelos ruídos cardíacos e certificada pela ultrassonografia. O cariótipo é triploide, com o par adicional de cromossomos de origem paterna. ▶ Macroscopia. Feto, cordão e membrana amniótica frequentemente presentes. Na maioria das vezes os vilos dilatados não medem mais de 5 mm de diâmetro, porém, em alguns exemplos, quando a gravidez se desenvolve até a sua metade, alcançam cerca de 20 mm. Registram-se vilosidades normais (Figura 21.4). ▶ Histopatologia. As vilosidades hidrópicas exibem hiperplasia moderada, sem anaplasia celular. São, sistematicamente, evidenciadas vilosidades normais nas quais, quando preservadas, se verificam vasos. Também não costumam faltar fragmentos de membranas. ▶ Citogenética. Predominam casos com anomalia cromossomial, incluindo trissomias, triploidias e tetraploidias (Figura 21.5).
Figura 21.1 ■ Incidência de doença trofoblástica gestacional. Note que a mola invasora provém, exclusivamente, de mola hidatiforme, enquanto o coriocarcinoma pode originar-se, além da mola, de gestação normal, abortamento simples e de gravidez ectópica. Quanto mais anormal for a gestação, maior a probabilidade de coriocarcinoma. (Adaptada de Herting, AT; Gore, HM. Tumors of the female sex organ. Part 2. Tumors of the vulva, vagina and uterus, fasc 33. In: Atlas of Tumor Pathology. Washington: Armed Forces Institute of Pathology; 1960.)
Figura 21.2 ■ Macroscopia de mola hidatiforme completa.
Figura 21.3 ■ Citogenética da mola hidatiforme completa. Pode-se visualizar o fenômeno da partenogênese, característica desta forma clínica da doença trofoblástica gestacional.
Figura 21.4 ■ Macroscopia de mola hidatiforme parcial. Há feto malformado, anexos (cordão e membrana), placenta com área normal, entremeada por vesículas, pelo geral, de menor diâmetro do que as da mola hidatiforme completa. (Cortesia do Prof. Antônio Braga.)
Figura 21.5 ■ Citogenética da mola hidatiforme parcial. É possível observar o componente paterno extra na formação desta entidade clínica.
■ Mola hidatiforme
■ Classificação das síndromes da mola hidatiforme As molas hidatiformes, completa e parcial, constituem 2 doenças distintas, com características citogenéticas, histológicas e clínicas próprias (Tabela 21.1), embora o tratamento seja similar. O volume e a proliferação trofoblástica da mola completa no geral excedem os da mola parcial, o que se reflete nas características clínicas. Os títulos iniciais de hCG tendem a ser mais elevados em pacientes com mola completa. O aumento uterino além do esperado para a idade da gravidez ocorre em até 50% dos casos de mola completa. Complicações médicas da gravidez molar, incluindo pré-eclâmpsia, hipertireoidismo, anemia e hiperêmese gravídica, são mais frequentes nos casos de mola completa. Aproximadamente 15 a 25% das pacientes com mola completa apresentam cistos tecaluteínicos, com aumento ovariano > 6 cm. Sequelas malignas ocorrem em menos de 5% das pacientes com mola parcial, mas em cerca de 20% naquelas com mola completa.
■ Diagnóstico O diagnóstico de mola hidatiforme pode ser feito no 1o trimestre da gravidez. O sinal mais comum é o sangramento, muitas vezes acompanhado da expulsão das vesículas molares (“eis a assinatura da mola”). Outros sinais e sintomas incluem aumento do útero maior que o esperado para a idade da gravidez, ausência de batimentos cardiofetais (bcf), cistos tecaluteínicos (Figura 21.6), hiperêmese gravídica e nível anormalmente elevado de hCG. Embora seja incomum, a préeclâmpsia na 1a metade da gestação é sugestiva de mola hidatiforme.
Tabela 21.1 ■ Características das molas hidatiformes parcial e completa. Características
Mola parcial
Mola completa
Cariótipo
Mais comum 69,XXX ou 69,XXY
Mais comum 46,XX ou 46,XY
Patologia Feto Âmnio, hemácias
Frequente Em geral
Ausente Ausente
Vilosidades fetais hidrópicas
Variável, focal
Difusa
Proliferação trofoblástica
Focal, leve a moderada
Difusa, leve a acentuada
Aborto retido
Gestação molar
Tamanho uterino
Pequeno para a idade gestacional
50% grande para a idade gestacional
Cistos tecaluteínicos
Raros
15 a 25%
Complicações médicas
Raras
< 25%
Clínica Diagnóstico
Sequelas malignas pós-molares
< 5%
20%
ACOG, 2004.
Figura 21.6 ■ Cistos tecaluteínicos gigantes. (Cortesia da Prof. Nazaré da Serra-Freire.)
▶ Ultrassonografia. Superou todos os métodos não invasivos para o diagnóstico da mola. Apesar de uma grande proporção de molas ser diagnosticada como aborto retido a partir de um exame rotineiro de 1o trimestre de ultrassonografia, muitas pacientes com mola completa exibem imagens típicas (Figura 21.7): útero cheio de material ecogênico, contendo múltiplas vesículas anecoicas de diferentes tamanhos, sem fluxo intrauterino; não há feto nem bcf. Na mola parcial, observa-se placenta grande de aspecto normal com lesões intraplacentárias anecoicas difusas (Figura 21.8).
Figura 21.7 ■ Ultrassonografia de mola hidatiforme completa. Há ausência de embrião/feto ou anexos, identificando-se apenas vesículas anecoicas avasculares ao Doppler.
Com grande frequência o diagnóstico de mola completa ou parcial vem sendo realizado em material de curetagem indicada para abortamento incompleto. ▶ Mola e feto coexistente. A coexistência do feto com degeneração molar é relativamente rara, ocorrendo em 1:22.000 a 100.000 gestações. O achado é mais frequente na mola parcial e pode ocorrer na gestação gemelar (Figura 21.9). Na maioria dessas gestações gemelares molares, o diagnóstico é feito por ultrassonografia, que mostra massa cística, complexa, distinta da unidade
fetoplacentária.
Figura 21.8 ■ Ultrassonografia de mola hidatiforme parcial. Note a presença de embrião e placenta com áreas sonolucentes, correspondendo às vesículas.
Figura 21.9 ■ A. Gravidez gemelar e mola completa à ressonância magnética. B. Placenta do feto normal e da mola.
■ Tratamento Para pacientes nas quais há suspeita de gestação molar, antes do esvaziamento, os seguintes exames são recomendados: • Hemograma completo • Grupo sanguíneo e fator Rh • Determinação do nível de hCG • Radiografia de tórax. ▶ Aspiração a vácuo. É o método de eleição para o esvaziamento molar. Em úteros grandes (14 a 16 semanas ou mais) deve-se ter cuidado redobrado. O procedimento inclui a dilatação cervical e costuma ser realizado sob anestesia geral. Ocitocina intravenosa deve ser infundida após a dilatação do colo pré-esvaziamento e mantida por muitas horas no pós-operatório. Pacientes Rh-negativas devem ser tratadas com a imunoglobulina anti-D após o esvaziamento, muito embora hemácias fetais não estejam presentes na mola completa.
▶ Complicações médicas. As complicações médicas da mola hidatiforme são observadas em aproximadamente 25% das pacientes com útero maior do que 14 a 16 semanas e são menos frequentes em grávidas com úteros menores. As complicações médicas mais encontradas incluem anemia, infecção, hipertireoidismo, pré-eclâmpsia, coagulopatia e problemas pulmonares. Fala-se em síndrome de embolização trofoblástica após o esvaziamento molar, mas a etiologia da angústia respiratória é multifária: insuficiência cardíaca e sobrecarga congestiva de débito alto por anemia, hipertireoidismo, pré-eclâmpsia e sobrecarga iatrogênica por fluidos. O hipertireoidismo e a pré-eclâmpsia melhoram rapidamente após o esvaziamento e podem não necessitar de tratamento específico. Os cistos tecaluteínicos estão associados à hiperestimulação dos ovários por hCG em níveis exagerados. Podem demorar vários meses para regredir após o esvaziamento molar e não devem ser removidos. A cirurgia está reservada para acidentes de ruptura e de torção, que são raros. ▶ Histerectomia. A histerectomia com conservação dos anexos pode ser uma alternativa para a aspiração a vácuo em mulheres que não querem mais ter filhos. A histerectomia reduz o risco de NTG pós-molar quando comparada ao esvaziamento por aspiração. Todavia, ainda há risco de NTG pós-molar em torno de 3 a 5%, e essas pacientes não estão isentas de monitoramento com hCG após a histerectomia.
■ Seguimento pós-molar Depois do esvaziamento molar, é indispensável monitorar cuidadosamente todas as pacientes para diagnosticar e tratar de imediato possíveis sequelas malignas (Tabela 21.2). A maioria dos episódios de malignização ocorre dentro de 6 meses do esvaziamento. Após o esvaziamento da mola hidatiforme, o diagnóstico de NTG pós-molar inclui estabilização ou aumento dos níveis de hCG, caracterização histológica de mola invasora ou coriocarcinoma no material de curetagem. A imagem sonográfica de mola invasora não é indicação para recuretagem porque não induz à remissão da doença ou influencia o tratamento e pode resultar em hemorragia e perfuração uterina. A hipótese de uma nova gravidez deve ser afastada por meio de ultrassonografia e hCG, especialmente após longo seguimento em pacientes não cooperativas. ▶ hCG. Deve-se determinar quantitativamente os níveis de hCG no soro materno até 48 h após o esvaziamento molar com teste comercial que apresenta sensibilidade de 5 mUI/mℓ. Após 3 dosagens consecutivas normais, dosa-se o hormônio mensalmente até completar 6 meses, quando as pacientes são liberadas para engravidar. Enquanto os níveis de hCG estiverem decrescentes após o esvaziamento molar não há necessidade de quimioterapia. Todavia, se os níveis de hCG se estabilizarem ou se elevarem por 3 semanas, a avaliação imediata e o tratamento de NTG pósmolar se impõe. A seguir, apresenta-se o critério da International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO) para o diagnóstico da NTG molar por meio da dosagem de hCG:
Tabela 21.2 ■ Protocolo de seguimento pós-molar.
1. Devem-se obter dosagens semanais de hCG-β após o esvaziamento da mola 2. Quando o nível de hCG-β for negativo por 3 semanas consecutivas, deve-se dosá-lo mensalmente por 6 meses 3. Deve-se evitar a gravidez com anticoncepcionais orais durante o seguimento 4. Deve-se descontinuar o seguimento após 6 meses consecutivos de negativação de hCG-β. A gravidez pode ser permitida neste momento 5. Deve-se utilizar a quimioterapia se o nível de hCG-β estacionar por 3 semanas consecutivas, aumentar ou aparecerem metástases
• Estabilização de 4 valores (± 10%) de hCG, dosados no período de 3 semanas (dias 1, 7, 14 e 21) • Aumento do nível de hCG > 10% a partir de 3 valores obtidos no período de 2 semanas (dias 1, 7 e 14) • Persistência de hCG detectável por mais de 6 meses após o esvaziamento molar. ▶ “hCG fantasma”. Ocasionalmente, os níveis persistentes elevados de hCG são consequentes a resultado laboratorial falso-positivo conhecido como “hCG fantasma”, causado por anticorpos heterofílicos que cruzam com o teste do hCG. Esse hCG falso-positivo é raro e apresenta níveis baixos que, embora por vezes sejam superiores a 300 mUI/mℓ, estabilizam-se em níveis relativamente baixos e não respondem aos esforços terapêuticos, tais como a quimioterapia administrada para a mola persistente ou a gravidez ectópica presumida. A estratégia nesses casos é utilizar várias técnicas de exame de hCG com diferentes diluições do soro da paciente, combinadas com um teste urinário. Os testes falso-positivos serão afastados pela diluição do soro materno e mostrarão grande variabilidade com as diferentes técnicas, muitas delas exibindo níveis não detectáveis de hCG. Os anticorpos heterofílicos não são excretados na urina e por isso o teste urinário será negativo. Enquanto o hCG estiver sendo monitorado, são recomendados exames pélvicos e ultrassonográficos para ajudar na identificação de metástases vaginais e acompanhar a involução dos cistos tecaluteínicos. ▶ Ultrassonografia. Com a persistência de lesão molar uterina após o esvaziamento, o que sugere malignização, a ultrassonografia transvaginal pode mostrar tecido ecogênico na cavidade uterina que se estende ao miométrio com fluxo exuberante ao mapeamento colorido, de baixa resistência [índice de resistência (RI) < 0,40 a 0,50). Na ultrassonografia pélvica são mostrados também os cistos tecaluteínicos. ▶ Anticoncepção. Durante o monitoramento por hCG costumam-se utilizar anticoncepcionais orais. Embora as gestações após mola hidatiforme sejam normais, sua ocorrência dificulta o seguimento pós-molar, pois prejudica a análise do marcador tumoral – hCG. Anticoncepcionais orais não aumentam a incidência de NTG pós-molar nem afetam o padrão de regressão de hCG. Após remissão documentada por 6 a 12 meses, a anticoncepção pode ser descontinuada (Tabela 21.2).
■ Neoplasia trofoblástica gestacional ■ Classificação histológica A apresentação clínica da NTG é mais importante do ponto de vista do tratamento e do prognóstico do que o diagnóstico preciso histológico. A NTG pode ser dividida em: mola invasora, coriocarcinoma e PSTT.
■ Mola invasora Outrora também denominada corioadenoma destruens, é uma doença confinada ao útero, caracterizada por vilosidades coriônicas hidrópicas com proliferação trofoblástica que invadem diretamente o miométrio (Figura 21.10). Raramente alcançam locais extrauterinos. A mola invasora é sempre sequela da mola hidatiforme. Pacientes com mola invasora podem apresentar resolução espontânea em 40% das vezes. O diagnóstico da mola invasora habitualmente é clínico (NTG não metastática), e não histológico. A ultrassonografia fornece subsídios de valor ao mapear pelo Doppler colorido a invasão do miométrio pelo trofoblasto (Figura 21.11). A dilatação e curetagem (D&C) diagnóstica deve ser evitada pela possibilidade de perfuração uterina.
■ Coriocarcinoma A constituição celular do coriocarcinoma é dimórfica, com sincício e citotrofoblasto, mas não forma estrutura vilosa (Figura 21.12). O coriocarcinoma é muito invasivo e metastático. Procede de qualquer tipo de gravidez: 50% de gestação normal, 25% de mola hidatiforme, 25% de abortamento e até de gravidez ectópica.
Figura 21.10 ■ Mola invasora. Note a natureza invasiva desta entidade na intimidade miometrial. (Cortesia
da Prof. Nazaré da Serra-Freire.)
■ Morfologia Os coriocarcinomas localizam-se em qualquer parte do útero e têm superfície vermelhoescura (devido a hemorragias frequentes, repetidas, e à destruição de vasos). As dimensões variam de exíguas a volumosas massas, que deformam o órgão, e podem ser únicas ou múltiplas, irrompendo ou não para o peritônio (Figura 21.12). Algumas vezes mantêm relação com a cavidade do órgão; em outras oportunidades isso não ocorre, e é impossível o diagnóstico por curetagem. A consistência é diminuída (necrose em graus variados), e os tumores podem desagregar-se à realização do estudo anatomopatológico.
Figura 21.11 ■ Útero de aspecto heterogêneo, apresentando exuberante vascularização no miométrio, de baixa resistência, característica de mola invasora.
Figura 21.12 ■ Coriocarcinoma. Note as múltiplas lesões no miométrio. (Cortesia da Prof. Nazaré da Serra-Freire.)
O exame microscópico não costuma revelar vilosidades, e o trofoblasto é acentuadamente anaplásico. Entremeiam-se coágulos e áreas de necrose com zonas de trofoblasto acentuadamente atípico e, de regra, em disposição plexiforme; a mesma configuração é observada nos locais de
metástase, nos quais é comum a proliferação no interior de vasos sanguíneos, via transitada pelo tecido corial. As lesões uterinas costumam ficar volumosas e maiores que as metastáticas; excepcionalmente, invertem-se os termos e não é possível assegurar a existência da lesão primitiva.
■ Diagnóstico O coriocarcinoma apresenta sintomas muito variados e discordantes. Poucos elementos têm valor para o seu reconhecimento, o que se torna ainda mais difícil quando o blastoma não é precedido por mola hidatiforme. Surgem perdas de sangue per vaginam, hemoptises, hematúria, sinais de acidente vascular cerebral, ou de hemorragia interna abdominal. O quadro clínico é diverso, variando de acordo com a localização do tumor. O coriocarcinoma intracavitário pouco difere da mola em sua sintomatologia: hemorragia, aumento de volume e amolecimento do útero, dor, anemia, anorexia, vômitos, subicterícia. As curetagens repetidas não fazem cessar as metrorragias. Nas localizações cervicais, raras, o colo apresentase ulcerado ou poliposo e a biopsia pode levar ao diagnóstico. A titulação elevada de hCG, decorridos 100 dias de gestação, aparentemente normal, tem significado patológico, embora haja casos com a concentração hormonal apenas suficiente para produzir reação imunológica positiva de gravidez, que já apresentam metástases.
■ Tumor trofoblástico do sítio placentário O PSTT, forma bastante rara de DTG que se origina do trofoblasto intermediário, pode ocorrer após gravidez normal, abortamento, gravidez ectópica ou mola hidatiforme. As células do trofoblasto intermediário invadem o miométrio e produzem hCG (níveis baixos) e lactogênio placentário humano (hPL). O quadro clínico mais comum é o de amenorreia, seguida de sangramento vaginal e aumento do volume uterino. Macroscopicamente, o PSTT forma massa branco-amarelada que invade o miométrio, podendo projetar-se para a cavidade uterina, assumindo aspecto polipoide. O número de células de sinciciotrofoblasto está diminuído no PSTT, o que se reflete nos baixos níveis de hCG encontrados. Em geral, o PSTT não é sensível à quimioterapia como as outras formas de NTG, sendo importante sua distinção histológica. É valiosa a sua caracterização imuno-histoquímica com positividade para hPL (Figura 21.13). A cirurgia assume papel crítico nesses casos e, felizmente, na maioria das pacientes a doença está confinada ao útero e é curada pela histerectomia.
Figura 21.13 ■ Lobo pulmonar com áreas necro-hemorrágicas (A e B), que à histopatologia exibe proliferação do trofoblasto intermediário (C) e que à imuno-histoquímica provou tratar-se de tumor trofoblástico do sítio placentário ao detectar-se o lactogênio placentário humano – hPL (D). (Foto gentilmente cedida pela Prof. Dra. Izildinha Maestá, da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista.)
■ Diagnóstico clínico A NTG pós-molar é diagnosticada habitualmente pelos níveis de hCG que permanecem estabilizados ou ascendentes. Pacientes com NTG após gestações não molares apresentam quadro clínico de difícil diagnóstico. Sangramento anormal por mais de 6 semanas após uma gravidez deve ser avaliado por dosagem de hCG e ultrassonografia para excluir nova gestação ou NTG. Metástases originárias do coriocarcinoma estão relatadas em qualquer lugar do organismo, embora as mais comuns sejam as de vagina, pulmão, fígado e cérebro; todavia, a biopsia nesses locais raramente está indicada e é causa de sangramento copioso. Metástases no sistema nervoso central podem produzir sintomas neurológicos, hemorragias intracranianas ou lesões expansivas. O coriocarcinoma deve ser considerado em qualquer mulher em idade reprodutiva com doença metastática cuja localização primária seja desconhecida. Nessas circunstâncias, dosagem de hCG e exclusão da gravidez são necessárias para o diagnóstico de NTG metastática.
■ Estadiamento A classificação da FIGO para a NTG foi estabelecida em 2000, combinando o estadiamento anatômico com o sistema de contagem de fator de risco da OMS (1983) modificado. Espera-se que a combinação do sistema de estadiamento/escore forneça descrição mais precisa da extensão
da doença e dos fatores de risco presentes na DTG. ▶ Estadiamento anatômico (FIGO, 2000). O PSTT deve ser classificado como entidade separada de outras NTG. O termo neoplasia trofoblástica deve ser usado para o tumor trofoblástico maligno. É apropriado, portanto, considerar DTG como o nome geral para a mola hidatiforme e a neoplasia trofoblástica. Em resumo, o estadiamento anatômico (I, II, III e IV) refere-se apenas à NTG (Tabela 21.3). As pacientes que requerem quimioterapia ou cirurgia em virtude da persistência de hCG após o esvaziamento da mola e aquelas que apresentam metástases têm neoplasia trofoblástica. ▶ Escore de risco (FIGO, 2000). Os escores prognósticos dos fatores de risco de cada categoria são 0, 1, 2 e 4 (Tabela 21.4). As pacientes são divididas em 2 grupos: baixo risco (0 a 6) e alto risco (≥ 7). ▶ Estadiamento: escore (FIGO, 2000). É expresso por numeral em romano para o estadiamento e numeral em arábico para o escore de risco, separados por dois-pontos. Por exemplo, II:7. ▶ Diagnóstico de NTG após o esvaziamento molar. Requer os seguintes parâmetros: • Quatro valores ou mais de estabilização (platô) de hCG em um prazo de, no mínimo, 3 semanas (dias 1, 7, 14 e 21) • Aumento de hCG ≥ 10% para 3 valores ou mais em um prazo mínimo de 2 semanas (dias 1, 7 e 14)
Tabela 21.3 ■ Estadiamento anatômico da neoplasia trofoblástica gestacional. Estádio
Características
I
Tumor confinado ao útero
II
Tumor estende-se a outras estruturas genitais: vagina, ovário, ligamento largo e tuba uterina (por metástase ou extensão direta)
III
Metástase para pulmão, com ou sem envolvimento do sistema genital
IV
Outras metástases a distância (cérebro, fígado), com ou sem envolvimento pulmonar
FIGO, 2000.
Tabela 21.4 ■ Sistema de contagem revisado da International Federation of Gynecology and Obstetrics (2000). Fatores de risco Variáveis
Idade (anos)
0
1
2
4
< 39
> 39
–
–
Gestação antecedente
Mola
Aborto
Gestação a termo
–
Intervalo da gravidez antecedente (meses)
12
Nível de hCG pré-tratamento (mUI/mℓ)
< 1.000
1.000 a 10.000
> 10.000 a 100.000
> 100.000
Tamanho do maior tumor incluindo o útero (cum)
–
3a4
5
–
Local das metástases
Pulmão, vagina
Baço, rim
Gastrintestinal
Cérebro, fígado
Número de metástases
0
1a4
4a8
>8
Falha na quimioterapia
–
–
Agente único
≥ 2 agentes
Índice total: 0 a 6 = baixo risco; ≥ 7 = alto risco.
• Diagnóstico de coriocarcinoma na anatomia patológica • Persistência de hCG por 6 meses após o esvaziamento da mola. ▶ Diagnóstico das metástases. Os pré-requisitos são apresentados a seguir: • Para metástases do pulmão, a radiografia do tórax é adequada, e a tomografia computadorizada (TC) é aceitável. Para contar o número de metástases para definir o escore de risco deve ser utilizada a radiografia • Para o diagnóstico das metástases abdominais, a TC deve ser preferida; muitos utilizam ultrassonografia para diagnosticar as metástases no fígado • Para o diagnóstico das metástases cerebrais, a ressonância magnética (RM) é o procedimento superior.
■ Tratamento ■ Neoplasia trofoblástica gestacional de baixo risco As pacientes de baixo risco são tratadas por agente único. Em virtude de sua eficácia e segurança, o tratamento com metotrexato (MTX) e o resgate com o ácido folínico é o esquema mais utilizado (Tabela 21.5). A histerectomia é complementar à quimioterapia para pacientes mais idosas, que tenham completado a sua família e se situem no estádio I. Em pacientes de baixo risco resistentes ao MTX, a medicação de 2a linha é a actinomicina-D (0,5 mg/dia intravenosa, repetida por 5 vezes a cada 2 semanas) ou o esquema EMA-CO (hCG > 100 mUI/mℓ). ▶ Prognóstico. A taxa de recidiva é < 5% em pacientes tratadas com êxito na NTG de baixo risco.
Tabela 21.5 ■ Esquema de metotrexato para o tratamento da neoplasia trofoblástica gestacional de baixo risco. Dia 1
MTX 50 mg IM às 12 h
Dia 2
Ácido folínico 15 mg VO às 12 h
Dia 3
MTX 50 mg IM às 12 h
Dia 4
Ácido folínico 15 mg VO às 12 h
Dia 5
MTX 50 mg IM às 12 h
Dia 6
Ácido folínico 15 mg VO às 12 h
Dia 7
MTX 50 mg IM às 12 h
Dia 8
Ácido folínico 15 mg VO às 12 h
MTX, metotrexato; IM, intramuscular; VO, via oral. Os ciclos sáo repetidos após intervalo de 6 dias até a normalização dos níveis de hCG.
■ Neoplasia trofoblástica gestacional de alto risco O esquema EMA-CO está mais bem detalhado na Tabela 21.6. Os ciclos são alternados dentro do menor intervalo possível, normalmente definido por mielossupressão. Para se avaliar a resposta ao tratamento quimioterápico, a melhor orientação é a dosagem do hCG. A resposta ideal é a queda do hCG sérico de 10 vezes a cada ciclo completo. Os ciclos devem ser administrados até a normalização de hCG, sendo ainda recomendado o emprego de 2 a 3 ciclos adicionais, de acordo com o risco da paciente (quimioterapia de consolidação). Devem ser consideradas resistentes ao regime descrito as pacientes que apresentarem níveis estáveis de hCG após a realização de 3 ciclos, assim como as que exibirem elevação durante a administração de 1 ciclo. Nesses casos, muda-se o esquema para outro mais agressivo: EP-EMA. Os ciclos são repetidos após intervalo de 6 dias até a normalização dos níveis de hCG. ▶ PSTT. A doença localizada no útero deve ser tratada por histerectomia. O PSTT metastático é conduzido pelo esquema EP-EMA, embora os resultados sejam incertos. A sobrevida das pacientes depende muito do intervalo entre o tratamento e a gestação de origem. O esquema de tratamento da DTG encontra-se sumarizado na Figura 21.14. ▶ Prognóstico. A despeito de testes sensíveis de hCG e da quimioterapia combinada, até 13% das pacientes com doença de alto risco desenvolvem recidiva após alcançarem a remissão. As taxas de sobrevida relatadas pelos Centros de Doença Trofoblástica podem atingir 84% na doença de alto risco.
Tabela 21.6 ■ Esquema EMA-CO para tratamento da neoplasia trofoblástica
gestacional de alto risco. Semana 1
Dia 1
Etoposide 100 mg/m 2 em 30 min Metotrexato 100 mg/m 2 IV em bolus 200 mg/m 2 IV em 12 h Actinomicina-D 0,5 mg IV em bolus
Dia 2
Etoposide 100 mg/m 2 em 30 min Actinomicina-D 0,5 mg IV em bolus Ácido folínico, 15 mg VO ou IM a cada 12 h, por 4 doses, iniciando-se 24 h após o começo do metotrexato
Semana 2
Dia 1
Ciclofosfamida 600 mg/m 2 IV em 30 min Oncovin ® 1,0 mg/m2 em bolus (máximo de 2,0 mg)
Semana 3 Dia 1
Iniciar novo ciclo
IV, intravenoso; VO, via oral; IM, intramuscular. Repete-se o esquema até a negativação dos níveis de hCG.
Figura 21.14 ■ Fluxograma do tratamento da doença trofoblástica gestacional.
A quimioterapia combinada determina risco aumentado de tumores secundários: leucemia mieloide, colo, mama. A maioria das gestações subsequentes é normal. Tanto o esquema de agente único como de agentes múltiplos antecipa a menopausa.
■ Remissão Após a remissão da NTG, avaliada pelos níveis de hCG, essas pacientes devem repetir os exames a cada 2 semanas durante os 3 primeiros meses e depois 1 vez por mês até completar 1
ano de hCG normal. A taxa de recidiva após 1 ano de remissão é < 1%, mas recorrências tardias podem ser observadas raramente.
■ Aconselhamento As pacientes são aconselhadas a usar anticoncepcionais hormonais durante o 1o ano de remissão. Pacientes com mola completa ou parcial têm chance 10 vezes maior de nova mola em gravidez subsequente. Parece não haver risco aumentado de malformações congênitas ou de outras complicações relacionadas com a gravidez. Esquemas que incorporam etoposide com ou sem cisplatina podem elevar o risco de leucemia nas sobreviventes. Além do índice de abortamento 11 vezes maior naquelas que engravidaram nos primeiros 6 meses após a quimioterapia, nenhuma outra complicação foi referida. Conclui-se que a concepção deve ser postergada por no mínimo 6 meses após a quimioterapia, ainda que desejável seja engravidar apenas após 12 meses do último ciclo de quimioterapia.
■ Pontos-chave A doença trofoblástica gestacional (DTG) pode ser de 4 tipos: mola hidatiforme, mola invasora (corioadenoma destruens), coriocarcinoma e tumor trofoblástico do sítio placentário (PSTT). A mola completa é sempre diploide e tem maior probabilidade de transformar-se em coriocarcinoma (2,5%). A mola parcial é triploide (componente paterno extra) e raramente evolui para as formas malignas. As molas determinam hemorragia indolor na 1a metade da gestação. O diagnóstico de mola hidatiforme é feito por ultrassonografia e dosagem de hCG-β (> 100.000 mUI/mℓ). A mola invasora sempre provém da mola hidatiforme mas o coriocarcinoma só em 50% dos casos; nos 50% restantes, sucedem abortamento molar (25%), gravidez normal (22,5%) e gravidez ectópica (2,5%). O tratamento da mola hidatiforme é feito com aspiração a vácuo. O seguimento pós-molar pode ser descontinuado após 6 meses consecutivos de negativação de hCG-β (< 5 mUI/mℓ). O diagnóstico da neoplasia trofoblástica gestacional (NTG persistente é feito no seguimento pós-molar: exame clínico, principalmente hormonal (hCG-β) e ultrassonográfico. No seguimento pós-molar, sempre que os níveis de hCG-β estacionarem por 3 semanas consecutivas, aumentarem ou aparecerem metástases é realizado o tratamento quimioterápico com metotrexato (MTX). O tratamento com a quimioterapia combinada (EMA-CO) é feito quando a quimioterapia simples falhar e nas formas de neoplasia trofoblástica gestacional (NTG) persistente de alto risco.
■ Classificação ■ Fatores de risco ■ Quadro clínico e diagnóstico ■ Placenta acreta e vasa prévia
Considera-se placenta prévia aquela situada total ou parcialmente no segmento inferior do útero [Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG), 2011]. Sua incidência no termo da gravidez é de 0,5 a 1,0%.
■ Classificação Atualmente adota-se a classificação do RCOG (2011), com modificações, que classifica a placenta prévia em menor (baixa) e maior (marginal, parcial, total) (Tabela 22.1) (Figura 22.1).
Tabela 22.1 ■ Classificação da placenta prévia. Menor Baixa Maior
Quando não alcança o OI do colo Margem da placenta à < 2 cm do OI Quando alcança o OI do colo
Marginal
Margem da placenta alcança o OI mas não o ultrapassa
Parcial
Placenta recobre parcialmente o OI
Total
Placenta recobre totalmente o OI
OI, orifício interno. Com base nas diretrizes do RCOG, 2011.
Figura 22.1 ■ Tipos de placenta prévia. A. Central. B. Parcial. C. Marginal. D. Baixa.
■ Fatores de risco A cesárea anterior constitui o fator de risco mais importante para a placenta prévia e o risco aumenta progressivamente com o número de procedimentos. Constituem outros fatores de risco: qualquer cicatriz uterina, idade materna avançada, multiparidade, tabagismo e gravidez gemelar.
■ Quadro clínico e diagnóstico ▶ Hemorragia. Sem dúvida, é um sinal pontual e o mais importante. A hemorragia indolor, de sangue vermelho, brilhante, desvinculada de quaisquer esforços ou traumatismos, ocorre em mais de 90% dos casos, via de regra despontando no último trimestre. Habitualmente, as perdas se sucedem, hemorragias cada vez mais importantes, pausas que se amiúdam, espoliação maciça pela intensidade ou que, somadas as crises, exsanguinam lentamente a gestante. ▶ Exame físico. A palpação é capaz de identificar a estática fetal alterada: situações oblíquas e transversas (15%), apresentação pélvica (15%) e cefálicas altas, por motivo da interposição da placenta entre a cabeça e o andar superior da bacia. A ausculta do abdome revela batimentos cardíacos e a cardiotocografia (CTG) demonstra ser boa a vitalidade fetal. A exploração digital do canal cervical está proscrita, pois há muito perdeu validade em face da precisão do diagnóstico ultrassonográfico. ▶ Exame especular. Confirma, sob visão direta, que a hemorragia tem origem no canal
cervical. ▶ Parto. A hemorragia tende a crescer de intensidade com o progresso da dilatação, que é proporcional à superfície da placenta descolada. Nas placentas baixas, o sangue tende a deter-se quando se realiza a amniotomia. ▶ Secundamento. O acretismo é comum; as retenções placentárias são habituais; a deficiente miocontração do segmento inferior é outro fator a provocar dificuldades nos 3o e 4o períodos (atonia e hemorragia) (Capítulo 48). ▶ Puerpério. Restos placentários podem permanecer aderidos e se infectar, especialmente pela proximidade entre a zona de inserção e a vagina. A subinvolução uterina e a anemia favorecem o aparecimento da infecção puerperal.
■ Ultrassonografia O diagnóstico da placenta prévia deve ser realizado por ultrassonografia transabdominal de 20 a 24 semanas (Figura 22.2), mas a confirmação é feita pela ultrassonografia transvaginal, muito mais precisa que a abdominal, bem aceita pela paciente e segura, pois não causa sangramento. Estima-se que cerca de 90% das placentas prévias diagnosticadas na ultrassonografia de 2o trimestre resolvam-se na ultrassonografia de 36 semanas, pela expansão do segmento inferior no 2o e no 3o trimestre, fenômeno conhecido como “migração placentária”.
Figura 22.2 ■ História natural da placenta prévia diagnosticada à ultrassonografia (US) transabdominal. OI, orifício interno; RM, ressonância magnética.
A despeito de 2/3 das mulheres com placenta prévia sangrarem no período anteparto, esses raramente são episódios graves a ponto de exigirem interrupção da gravidez. Acredita-se que as mulheres com placenta prévia que apresentam sangramento (sintomáticas) e que permaneçam hemodinamicamente estáveis possam ser conduzidas ambulatorialmente. O achado de área sonolucente na margem placentária que recobre o orifício interno (OI) do colo (seio marginal) eleva em 10 vezes o risco de hemorragia grave anteparto. O colo com comprimento < 3 cm, pela ultrassonografia de 3o trimestre, indica possibilidade elevada de cesárea de emergência, antes de 34 semanas, por sangramento importante anteparto. Pacientes que apresentam distância entre a borda da placenta e o OI ≥ 2 cm podem ser candidatas ao parto vaginal. Aquelas com essa distância < 4 cm (placenta baixa) apresentarão sangramento intenso no pós-parto.
■ Placenta acreta e vasa prévia Duas condições estão intimamente associadas à placenta prévia: placenta acreta e vasa
prévia. Elas elevam sobremaneira a morbiletalidade materna e fetal; a acreta, a da mãe; e a vasa prévia, a do feto. Nos últimos 50 anos houve aumento dramático, de até 10 vezes, na ocorrência da placenta acreta (aderência anormal da placenta) (Capítulo 48), de maneira que sua incidência é de 1 em 2.500 partos. Estudos maiores nos Estados Unidos têm revelado que a prevalência da placenta acreta possa ser até mais elevada: aproximadamente 1 em 500 partos. O fator de risco mais importante para o acretismo é a placenta prévia em mulheres cesareadas (placenta prévia-cesárea); e o risco aumenta com o número de procedimentos. A placenta prévia-acreta-cesárea ocorre pela deficiência de decídua basal na zona da cicatriz uterina. A incidência de placenta prévia no termo da gravidez é de 0,5 a 1,0%. A elevação do número de cesáreas aumenta a taxa de placenta prévia, e a de acreta acompanha. Em pacientes com placenta prévia, 3% sem história de cesárea têm placenta acreta, comparadas com 11% naquelas com cesárea anterior. Quanto maior o número de cesáreas anteriores, maior o risco de placenta acreta. Entre mulheres com placenta prévia, 40% delas com 2 cesáreas anteriores, 61% com 3 cesáreas anteriores, e 67% com 4 ou mais cesáreas anteriores desenvolvem placenta acreta [National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), 2006] (Tabela 22.2). Os principais achados sonográficos sugestivos de acretismo incluem: perda da zona hipoecoica retroplacentária, adelgaçamento do miométrio, lagos placentários anômalos com fluxo turbulento ao Doppler colorido, hipervascularização ou disrupção da interface serosa-parede vesical com protrusão do tecido placentário para dentro da bexiga (Figura 22.3). Tanto a ultrassonografia quanto a ressonância magnética (RM) são altamente sensíveis (83 vs. 82%) e específicas (95 vs. 88%) para diagnosticar ou excluir a placenta acreta. A ultrassonografia é o procedimento de escolha pela praticidade e pelo baixo custo. A RM seria especialmente útil para caracterizar o tipo de acretismo (acreta, increta, percreta), assim como a invasão de estruturas vizinhas (bexiga e paramétrios) (American College of Radiology [ACR], 2013). Na condição conhecida como vasa prévia, os vasos umbilicais cursam através das membranas sobre o orifício interno do colo e à frente da apresentação fetal, desprotegidos da estrutura placentária e do cordão umbilical (RCOG, 2011). Existem 2 variantes de vasa prévia: tipo 1, resultante da inserção velamentosa do cordão (Figura 22.4), e tipo 2, decorrente de vasos caminhando entre os lobos de uma placenta sucenturiada/bilobada (Figura 22.5).
Tabela 22.2 ■ Incidência de acretismo em mulheres com placenta prévia de acordo com o número de cesáreas anteriores. No de cesáreas anteriores
Risco de acretismo com placenta prévia (%)
0
3
1
11
2
40
3
61
≥4
67
Adaptada do NICHD, 2006.
Figura 22.3 ■ Acretismo. Lacunas vasculares e hipervascularização da interface serosa-parede vesical (setas) ao Doppler colorido.
A incidência de vasa prévia é de 1:2.000 a 1:6.000 gestações (RCOG, 2011). Em 2/3 dos casos a vasa prévia no 2o trimestre da gravidez está associada à placenta baixa. Em cerca de 30% dos casos a vasa prévia relaciona-se com a placenta sucenturiada/bilobada. Os fatores de risco para vasa prévia são fertilização in vitro, placenta sucenturiada/bilobada e placenta prévia no 2o trimestre, com odds ratio aproximado de, respectivamente, 8, 22 e 23. Pouco mais de 35% dos casos de vasa prévia sangram no 3o trimestre da gravidez. O quadro clínico de vasa prévia no parto, após a ruptura das membranas, é o de exsanguinação fetal; a hemorragia de apenas 100 mℓ é suficiente para determinar choque e morte do feto. O traçado sinusoidal da frequência cardíaca fetal (fcf) pode ser o evento terminal, a indicar o óbito iminente do feto. É possível identificar o local de inserção do cordão umbilical na placenta em quase 100% dos
exames sonográficos de 20 a 24 semanas. O diagnóstico antenatal de vasa prévia, pelo Doppler colorido transvaginal no 3o trimestre (Figura 22.6), assegura a sobrevida de quase 100% dos fetos, enquanto o diagnóstico no parto, de apenas 40 a 50%.
■ Exame da placenta Torna possível o diagnóstico retrospectivo da placenta prévia. As membranas apresentam-se rompidas junto à borda da placenta, que apresenta coágulos, a denunciar o descolamento. Por outro lado, esse exame identifica a inserção velamentosa do cordão e a placenta bilobada/sucenturiada.
Figura 22.4 ■ Inserção velamentosa.
Figura 22.5 ■ Placenta sucenturiada (A) e bilobada (B).
■ Diagnóstico diferencial Deve ser realizado, especialmente, com as outras causas de hemorragia da 2a metade da gestação: descolamento prematuro da placenta (DPP) e ruptura uterina (Tabela 22.3).
■ Tratamento Adotam-se as diretrizes da Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC, 2009), do RCOG (2011), do American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG, 2012) e do Grupo PACCRETA (2013).
■ Tratamento da placenta prévia e acreta Pacientes com cesárea anterior constituem classe especial, pois apresentam dois problemas a serem excluídos: placenta prévia e placenta acreta. Se a placenta é prévia e anterior, a implantação na cicatriz uterina constitui a placenta prévia-cesárea, com elevado risco de ser também placenta prévia-acreta-cesárea. Pacientes que sangram (sintomáticas) devem ter conduta individualizada e não há regras sobre como conduzi-las. O prosseguimento da gravidez depende principalmente da estabilidade hemodinâmica. Pacientes de risco para parto pré-termo devem receber corticoide profilático. Pacientes assintomáticas com placenta prévia menor (baixa) devem ser reexaminadas por meio da ultrassonografia apenas com 36 semanas de gestação. Aquelas com placenta prévia maior ou com suspeita de placenta acreta devem realizar novo exame sonográfico com 32 semanas, para que o planejamento no 3o trimestre seja mais bem conduzido.
Figura 22.6 ■ Vasa prévia ao Doppler colorido.
Tabela 22.3 ■ Diagnóstico diferencial entre a placenta prévia e o descolamento prematuro da placenta (DPP) normalmente inserida. Placenta prévia
Descolamento prematuro da placenta
Instalação insidiosa, gravidade progressiva
Começo tempestuoso. Instalação frequentemente súbita
Hemorragia indolor, exceto durante as contrações uterinas do trabalho de parto
Dor forte no local placentário, usualmente de consistência menor que a do resto do útero
Hemorragia externa, sangue vermelho-rutilante
Hemorragia inicialmente interna, depois exteriorizada, sangue escuro
Primeira hemorragia geralmente moderada
Primeira hemorragia habitualmente grave
Hemorragia de repetição
Hemorragia única, por via de regra
Hemorragia de surgimento inesperado, sem causa aparente
Hemorragia comumente vinculada à toxemia ou ao traumatismo
Sinais de anemia proporcionais às perdas sanguíneas externas
Os sinais de anemia grave não mantêm relação com as perdas sanguíneas externas
A hemorragia cessa após a amniotomia e aumenta com as metrossístoles
A hemorragia continua após a amniotomia, detendo-se, não raro, durante as metrossístoles
Útero mole, tônus normal
Útero hipertônico, lenhoso, exceto e ocasionalmente no local placentário
Contorno uterino conservado durante o trabalho de parto
Útero engrandecido, contorno modificado na dependência do grau da hemorragia oculta, retroplacentária
Apresentação frequentemente não insinuada. Situações anômalas comuns
Altura da apresentação e situações anômalas não têm significado no quadro clínico
Batimentos cardiofetais presentes e cardiotocografia, por via de regra, normal
Batimentos cardiofetais presentes ou ausentes e cardiotocografia, por via de regra, anormal
A ultrassonografia abona o diagnóstico
A ultrassonografia mostra coágulo retroplacentário (apenas em 50% dos casos)
Exame de urina normal
Exame de urina revela proteinúria
Pacientes com placenta prévia definitiva no 3o trimestre devem ser informadas de que apresentam risco elevado de parto pré-termo e sangramento. As sintomáticas com placenta prévia maior devem ser hospitalizadas com 34 semanas, e as assintomáticas ou com placenta prévia menor podem ser conduzidas ambulatorialmente. A boa conduta na paciente com placenta acreta demanda identificação dos fatores de risco (história de cesárea ou de miomectomia, placenta prévia), correto diagnóstico pré-operatório (ultrassonografia e RM) e tratamento adequado no parto (histerectomia-cesárea) (Figura 22.7). A época adequada para o parto deve ser individualizada, mas a cesárea costuma ser planejada para ocorrer com 34 semanas. O tratamento da placenta acreta deve ser realizado em centros terciários e por equipe multiprofissional. Deve-se operar tendo à mão 10 unidades de concentrado de hemácias e 10 unidades de plasma fresco congelado, que serão utilizados na proporção 1:1. Vale lembrar que 90% dessas pacientes serão transfundidas e 40% necessitarão de > 10 unidades.
Figura 22.7 ■ Conduta na placenta acreta. US, ultrassonografia; RM, ressonância magnética.
■ Parto O parto vaginal pode ser tentado na placenta baixa, quando a borda placentária está a mais de 2 cm do OI do colo. Mulheres com placenta prévia cuja margem placentária está a mais de 2 cm do OI no 3o trimestre devem ser operadas por cesárea. A cesárea eletiva deve ser realizada com 38 a 39 semanas, nas assintomáticas com placenta prévia menor e com 36 a 37 semanas nas assintomáticas com placenta prévia maior. As pacientes com placenta acreta assintomáticas serão operadas com 34 semanas. Particularidades da operação cesariana relacionadas com placenta prévia-cesárea podem ser vistas no Capítulo 56. A placenta acreta é a maior indicação (38%) de histerectomia-cesárea (NICHD, 2009). A histerectomia-cesárea tem particularidades: cesárea clássica (incisão corporal longitudinal), nenhuma tentativa de retirada da placenta e histerectomia com a placenta in situ. É válida a espera pelo secundamento espontâneo, face à possível imprecisão do diagnóstico sonográfico. Quando a contratilidade uterina estiver prejudicada, são recomendadas 3 ordenhas do cordão para evitar a anemia do bebê. Muitas pacientes com placenta percreta e invasão da bexiga necessitam de cistectomia parcial. Em caso de placenta acreta-cesárea, abre-se o útero longe da placenta (cesárea clássica) e extrai-se o feto sem tentar descolar a placenta; ato contínuo procede-se à histerectomia-cesárea com a placenta in situ. Graças à radiologia intervencionista, tem-se proposto a conduta conservadora na placenta acreta. A placenta é deixada in situ após a cesárea e a embolização da artéria uterina é realizada
no pós-operatório imediato. As vantagens de deixar a placenta in situ são o menor risco de hemorragia e de lesões em órgãos vizinhos, assim como a redução no tempo operatório. As desvantagens são o rigoroso acompanhamento da involução placentária no pós-operatório, com ultrassonografia e dosagem dos níveis de hCG-β, e o risco de hemorragia e de infecção. O tratamento conservador da placenta percreta, com a placenta deixada in situ para ser reabsorvida, está associada a graves complicações tardias – infecção e hemorragia – incluindo o risco de histerectomia, em quase 60% dos casos, até 9 meses do parto. Em muitos casos, o diagnóstico de acretismo só é feito no 3o período do parto, quando na ausência de plano de clivagem entre o útero e a placenta, a qual fica retida (Capítulo 48); qualquer tentativa de extração da placenta pode levar à hemorragia massiva. O tratamento é a histerectomia. Enquanto se aguarda a histerectomia, pode ser tentada a colocação do cateterbalão de Bakri para interromper o sangramento (ACOG, 2012) (Figura 22.8).
■ Tratamento da vasa prévia Via de regra, a vasa prévia apresenta-se no parto, com sangramento vaginal após a ruptura das membranas e anormalidades na fcf, tais como bradicardia, desaceleração tardia e traçado sinusoide. Em casos de vasa prévia identificados no 2o trimestre, o exame transvaginal com Doppler colorido no 3o trimestre deve confirmar o diagnóstico.
■ Parto Diagnosticada a vasa prévia no parto, pelo quadro clínico já descrito, indica-se a cesárea de emergência (Figura 22.9). Confirmada a vasa prévia no 3o trimestre, a paciente deve ser internada, iniciando-se o corticoide com 28 a 32 semanas, sendo a cesárea eletiva por volta de 35 a 37 semanas (Figura 22.9).
Figura 22.8 ■ Cateter-balão de Bakri.
Figura 22.9 ■ Tratamento de vasa prévia. (Adaptada de SOGC, 2009; RCOG, 2011.)
■ Pontos-chave A placenta prévia é classificada em menor (baixa) e maior (marginal, parcial, total). A incidência de placenta prévia no termo da gravidez é de 0,5 a 1,0%. Hemorragia indolor no 3o trimestre é o sinal mais importante da placenta prévia. O diagnóstico diferencial é feito principalmente com o descolamento prematuro da placenta (DPP). Na ultrassonografia abdominal morfológica de 2o trimestre, é obrigatória a localização da placenta; quando houver suspeita de placenta prévia, deve-se realizar a ultrassonografia transvaginal. Placenta acreta e vasa prévia são importantes complicações da placenta prévia. O tratamento da placenta prévia pode ser expectante até 36 a 37 semanas, se o estado hemodinâmico da paciente assim o permitir. Na placenta prévia a cesárea é o procedimento de eleição para a interrupção da gravidez. Se a borda inferior da placenta estiver a mais de 2 cm do OI do colo (placenta baixa), pode ser permitido o parto vaginal. O tratamento de eleição para a placenta acreta é a histerectomia-cesárea com 34 semanas de gestação.
■ Etiologia ■ Patologia
O descolamento prematuro da placenta normalmente inserida (DPP) é a separação intempestiva da placenta implantada no corpo do útero, antes do nascimento do feto, em gestação de 20 ou mais semanas [Organização Mundial da Saúde (OMS), Federação Internacional de Obstetrícia e Ginecologia (FIGO)]. Portanto, não se trata do descolamento pós-parto, como na dequitação normal, nem se confunde com a placenta prévia, cuja inserção ocorre na região do segmento inferior. O DPP incide em 0,5 a 1% das gestações e é causa importante de sangramento vaginal na segunda metade da gravidez, especialmente entre 24 e 26 semanas. A mortalidade materna é de 1 a 3%, e a perinatal é de 12% (1/3 de todas as mortes perinatais). A mortalidade perinatal é consequência da asfixia intrauterina e da prematuridade, e 15 a 20% dos recém-nascidos podem apresentar sequelas neurológicas.
■ Etiologia Os fatores de risco para o DPP incluem a história do acidente em gravidez anterior (taxa de recorrência de 8,8%), trauma, tabagismo, uso de cocaína, gravidez múltipla, hipertensão, préeclâmpsia, idade materna avançada, ruptura prematura das membranas pré-termo (RPMP), placenta circunvalada, infecção intrauterina (corioamnionite), dengue, polidramnia e Doppler de uterina anormal. A hipertensão está relacionada com 20 a 30% dos casos de DPP. A associação DPP e toxemia é denominada gestose hemorrágica. O DPP tem sido recentemente associado ao uso de cocaína, que é conhecida por apresentar efeitos hipertensivos e vasoconstritivos.
■ Patologia ■ Alterações uteroplacentárias Não importa a etiologia do DPP, o sangue chega à zona de clivagem deciduoplacentária e inicia a separação; vasos maternos se abrem e o espaço retroplacentário é invadido. O útero, que reage com hipertonia, aumenta a tensão no local da coleção sanguínea, provocando o descolamento de novas áreas. Parte do sangue coagula, fica aprisionada atrás da placenta e será eliminada somente após o parto, constituindo o hematoma retroplacentário. Outra parte descola as membranas e flui para o exterior, configurando a hemorragia externa, que ocorre em 80% dos casos (Figura 23.1); nos 20% restantes, o sangue fica totalmente retido, determinando a hemorragia oculta (Figura 23.1). Ocasionalmente, o sangue pode alcançar a cavidade amniótica, por soluções de continuidade das membranas, e causar o hemoâmnio (Figura 23.2 A). Quando as membranas permanecem íntegras e se encontram totalmente descoladas pelo sangue, o peso do hematoma retroplacentário e o da própria placenta podem determinar a rotação intrauterina do ovo, constituindo a
eventualidade rara do prolapso da placenta (Figura 23.2 B).
Figura 23.1 ■ Tipos de descolamento prematuro da placenta (DPP): com hemorragia oculta (A) e com hemorragia externa (B).
Figura 23.2 ■ Modalidades anatomoclínicas do descolamento prematuro da placenta. A. Havendo solução de continuidade nas membranas, o sangue materno pode derramar-se na cavidade amniótica, configurando o hemoâmnio. B. O hematoma retroplacentário descolou as membranas, acarretando o prolapso da placenta.
Em 10 a 20% dos casos de DPP, a hemorragia oculta é intensa; as hemácias e o soro, provenientes do coágulo retroplacentário, são impulsionados pelo miométrio, em que dissociam o sistema de miofibrilas. Trata-se do quadro da apoplexia uteroplacentária ou útero de Couvelaire
(Figura 23.3). O útero, as tubas uterinas, os ovários e os ligamentos largos, à conta das efusões sanguíneas ou equimoses que se assestam sob a serosa, mostram coloração azulada marmórea característica. A atonia uterina que se observa no pós-parto é, em grande parte, proveniente dessa desorganização da estrutura miometrial. O DPP, em última análise, decorre da hemorragia na interface decíduo-placentária. Atualmente, sabe-se que o DPP pode ter a sua origem no primeiro trimestre da gravidez, pela placentação defeituosa, em que é deficiente a invasão trofoblástica, com remodelação incompleta das artérias espiraladas – como mostram as biópsias do leito placentário e o Doppler da artéria uterina anormal no exame realizado entre 20 e 24 semanas de gestação. O DPP, o crescimento intrauterino restrito (CIR), a toxemia, o parto pré-termo, a RPMP e o abortamento tardio teriam o mesmo modelo etiopatogênico, constituindo as grandes síndromes obstétricas. Certamente, em alguns casos, o DPP é processo agudo, como costuma ocorrer no trauma e na descompressão súbita que resulta da ruptura das membranas no polidrâmnio ou após o parto do primeiro gemelar. A separação aguda da placenta corta o suprimento fetal de oxigênio e de nutrientes, e o feto geralmente morre quando o descolamento é maior que 50%. Em casos de DPP recente, o exame da placenta delivrada revela coágulo aderido à sua face materna (Figura 23.4); nos casos antigos, no local do descolamento, há depósitos de fibrina, infartos e depressão característica, conhecida como cratera. Como referido, a incidência de placenta circunvalada é elevada (Figura 23.5).
Figura 23.3 ■ Útero de Couvelaire.
Figura 23.4 ■ Coágulo fresco aderido à face materna da placenta.
Figura 23.5 ■ Placenta circunvalada. É possível ver a borda do órgão, recoberta por lâmina de decídua, e as membranas inserindo-se longe da borda; assim, cria-se porção de placenta periférica à placa corial (porção extraplaca corial).
■ Alterações renais O DPP é a causa mais comum de necrose cortical aguda na gravidez. Graus incompletos da afecção, a necrose tubular aguda, provocam oligúria temporária, com eventual recuperação; manifestações graves, responsáveis pela anúria completa, são raras.
■ Síndrome de Sheehan A síndrome de Sheehan (ou necrose hipofisária pós-parto) é outra complicação importante do DPP, principalmente nos casos com grande sangramento, choque e coagulação intravascular disseminada (CID). Além dos fatores de risco para a necrose hipofisária, a adeno-hipófise sofre
hipertrofia na gravidez, devido ao aumento das células lactóforas, produtoras de prolactina (PRL), pelo estímulo estrogênico, o que demanda maior afluxo sanguíneo. No pós-parto, a mulher tem agalactia, amenorreia e, com o tempo, insuficiência da suprarrenal e hipotireoidismo. A ressonância magnética mostra imagem característica de “sela vazia”.
■ Alterações da hemocoagulação A cascata da coagulação é ativada pela liberação de tromboplastina (fator tecidual) na circulação materna, proveniente do hematoma, com o consumo dos fatores da coagulação determinando a CID. A CID está presente em 10% dos casos de DPP, especialmente nos graves, suficientes para determinar o óbito fetal. Por sua importância e caráter sindrômico, os distúrbios da hemocoagulação constituem tema relevante em Obstetrícia, que será estudado no Capítulo 24, Seção A.
■ Quadro clínico O quadro clínico do DPP é variável, podendo haver desde casos assintomáticos até aqueles nos quais há morte fetal e grave morbidade materna. Os sintomas clássicos são sangramento vaginal e dor abdominal. O volume da hemorragia vaginal tem pouca correlação com o grau do DPP. Por outro lado, a extensão do descolamento está associada ao óbito fetal: separação > 50% leva à natimortalidade com frequência. A hipertonia uterina é pontual, acompanhada de contrações de elevada frequência e de baixa intensidade. À palpação, o útero é duro e doloroso. A convergência de tantos fatores adversos à vitalidade fetal – diminuição da superfície de trocas placentárias, hipertonia uterina, hipotensão arterial, eventual toxemia associada – deflagra sinais de sofrimento no feto; ou em caso de óbito, a ausência dos batimentos cardíacos. Em 50% dos casos, a cardiotocografia (CTG) revela traçados característicos de sofrimento fetal: desaceleração tardia, variabilidade reduzida, bradicardia. Menos frequentemente, e em especial nos casos de DPP com hemorragia oculta e morte fetal, o primeiro sinal clínico é a coagulopatia. Nesse cenário, é comum o choque hipovolêmico materno. A necrose tubular ou a cortical, consequentes à hipovolemia e à CID, conduzem à oligúria e à insuficiência renal aguda. Estágios iniciais de isquemia renal determinam a necrose tubular, que é reversível; a necrose cortical, por sua vez, é irreversível. O toque no início do DPP mostra colo imaturo, longo e com dilatação mínima; a bolsa das águas está tensa (pela hipertonia uterina) e, apenas rompida, despeja, em jato forte, o líquido amniótico, em um ou outro caso hemorrágico (hemoâmnio). A cervicodilatação pode ser completada com rapidez surpreendente, e a expulsão fetal costuma ocorrer com a mesma agilidade. A placenta, já descolada, é expelida logo a seguir, juntamente com o hematoma retroplacentário; na face materna, mostra a cratera característica. Na oportunidade, é comum
observar o parto em alude: feto, placenta e páreas, expulsos em turbilhão, com coágulo apegado. No pós-parto, especialmente nas formas apopléticas, são frequentes as hemorragias incoercíveis, atribuídas não apenas à atonia uterina, mas associadas aos distúrbios da hemocoagulação, que não são privativos do quarto período ou do puerpério. Já nas primeiras horas de evolução do descolamento, sobretudo quando a sintomatologia é mais ostensiva e grave, podem surgir os primeiros sinais da discrasia (sangue vaginal que não coagula, hematomas nos locais de punção, gengivorragias etc.), cujo diagnóstico pode ser confirmado por meio de testes específicos (Capítulo 24, Seção A). O desenvolvimento da sintomatologia do DPP é gradual e ocorre em algumas horas, acompanhando, juntamente, o aumento da área placentária descolada e a intensidade da hemorragia oculta. O DPP pode ser classificado em quatro graus: • Grau 0 – assintomático: o diagnóstico é retrospectivo, pelo exame da placenta que mostra o hematoma retroplacentário • Grau 1 – leve: há sangramento vaginal, mas a paciente não relata dor ou age com discrição; mãe e feto estáveis • Grau 2 – intermediário: caracterizado por sangramento vaginal, dor abdominal intensa, hipertonia uterina; feto em sofrimento, mas vivo • Grau 3 – grave: associado ao óbito fetal. Esse tipo pode ser subdividido em grau 3A, sem coagulopatia, e grau 3B, com coagulopatia.
■ Diagnóstico O diagnóstico pode ser clínico ou obtido por meio de ultrassonografia ou ressonância magnética.
■ Clínico O diagnóstico do DPP é eminentemente clínico: sangramento e dor abdominal, por vezes história de trauma ou RPMP. A sintomatologia é inconfundível e, em geral, torna o diagnóstico incontroverso; no entanto, há de ser afastada a placenta prévia, cuja diferença com o DPP é vista na Tabela 23.1.
Tabela 23.1 ■ Diagnóstico diferencial entre a placenta prévia e o descolamento prematuro da placenta normalmente inserida (DPP). Placenta prévia
1. Instalação insidiosa, gravidade progressiva. 2. Hemorragia indolor, exceto durante as contrações uterinas do trabalho de parto.
Descolamento prematuro da placenta 1. Começo tempestuoso. Instalação frequentemente súbita. 2. Dor forte no local placentário, geralmente de consistência menor que a do resto do
3. Hemorragia externa, sangue vermelho-rutilante. 4. Primeira hemorragia geralmente moderada. 5. Hemorragia de repetição.
6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14.
Hemorragia de surgimento inesperado, sem causa aparente. Sinais de anemia, decorrentes de perdas sanguíneas externas. A hemorragia cessa após a amniotomia e aumenta com as metrossístoles. Útero mole, tônus normal. Contorno uterino conservado durante o trabalho. Apresentação frequentemente não insinuada. Situações anômalas comuns. Batimentos cardiofetais presentes e cardiotocografia, em geral, normal. A ultrassonografia abona o diagnóstico. Exame de urina normal.
útero. 3. Hemorragia inicialmente interna, depois exteriorizada; sangue escuro. 4. Primeira hemorragia geralmente grave. 5. Hemorragia única, na maioria das vezes. 6. Hemorragia comumente vinculada a toxemia ou traumatismo. 7. Os sinais de anemia grave não mantêm relação com as perdas sanguíneas externas. 8. A hemorragia continua após a amniotomia, detendo-se, não raro, durante as metrossístoles. 9. Útero hipertônico, lenhoso, exceto e ocasionalmente no local placentário. 10. Útero engrandecido, contorno modificado de acordo com o grau da hemorragia oculta, retroplacentária. 11. No quadro clínico, a altura da apresentação e as situações anômalas não têm significado. 12. Batimentos cardiofetais presentes ou ausentes e cardiotocografia geralmente anormal. 13. A ultrassonografia mostra coágulo retroplacentário (apenas em 50% dos casos). 14. Exame de urina: proteinúria.
Quando o descolamento se limita à pequena porção da placenta, pode confundir-se, uma vez afastadas possíveis lesões do colo uterino, com a ruptura do seio marginal. As dúvidas somente se resolvem pelo exame pós-parto dos anexos, que mostra a existência de trombo escuro, firme, organizado e aderente à luz do seio marginal.
■ Ultrassonografia O coágulo é identificado apenas à ultrassonografia em 25 a 50% dos casos. A imagem sonográfica no DPP depende da extensão e da localização do coágulo, assim como da duração do acidente (Figura 23.6). A localização mais frequente do hematoma é a subcoriônica. Na fase aguda, o hematoma costuma ser hiper/isoecoico comparado com a placenta; nesses casos, a ultrassonografia pode mostrar apenas placenta heterogênea e espessada (> 5 cm). Posteriormente, dentro de 1 semana, o hematoma torna-se hipoecoico e, após 2 semanas, sonolucente (Figura 23.7). Casos com separação > 50% ou coágulo > 50 ml oneram o prognóstico, determinando sofrimento e morte fetal.
Figura 23.6 ■ Esquema mostrando os principais locais do hematoma no descolamento prematuro da placenta. (Adaptada de Oyelese e Ananth, 2006.)
Figura 23.7 ■ Hematoma retroplacentário anecoico à ultrassonografia.
■ Ressonância magnética A ressonância magnética (RM) diagnostica 100% dos casos de DPP. A intensidade do sinal do hematoma pode ser correlacionada com o prognóstico clínico do DPP. As imagens magnéticas podem ser classificadas em quatro tipos: hiperaguda, aguda, subaguda precoce e subaguda tardia. As imagens hiperaguda/aguda estão associadas aos quadros de DPP instável (graus 2 e 3) (Figura 23.8); e as imagens subagudas precoce/tardia, ao DPP estável (grau 1). Do nosso ponto de vista, a RM estaria particularmente indicada nos casos de DPP “crônico”, que será comentado adiante.
Figura 23.8 ■ Intensidade do sinal hiperintenso, sugerindo um hematoma hiperagudo. (Adaptada de Masselli et al., 2011.)
■ Tratamento O tratamento depende da extensão do DPP, do comprometimento materno e fetal e da idade da gravidez (Figura 23.9):
• Em casos de DPP com feto vivo e viável (> 24 semanas), está indicada a interrupção da gravidez, de preferência pela operação cesariana. Embora o útero de Couvelaire, por si só, não seja indicação de histerectomia (subtotal), a atonia uterina intratável pode indicá-la. Antes, a massagem uterina, o uso de ocitócicos (ocitocina, misoprostol) e a chamada “prova da sutura” são procedimentos válidos; então, inicia-se a síntese do miométrio e aguarda-se o resultado • Em casos de DPP grave com morte fetal ou feto inviável, o parto vaginal é o indicado. Em geral, após a amniotomia, o útero se contrai vigorosamente e o parto progride de maneira muito rápida. Há risco iminente de coagulopatia e de choque hipovolêmicos que, caso ocorram, devem ser tratados. Muitos casos de DPP estão associados à pré-eclâmpsia grave, que também deve ser medicada.
Figura 23.9 ■ Tratamento do descolamento prematuro da placenta (DPP). RM, ressonância magnética. CID, coagulação intravascular disseminada.
Após o parto, a paciente deve ser meticulosamente monitorada pela grande incidência da atonia pós-parto • Em gestações pré-termo (< 34 semanas), quando o quadro do DPP não é grave (“crônico”) e os estados materno e fetal estão estáveis, pode-se recomendar a conduta conservadora. Entre 24 e 34 semanas, prescreve-se o corticoide para amadurecer o pulmão fetal, muitas vezes associado a tocolítico. Hospitalização prolongada e monitoramento materno e fetal (CTG) são necessários. A RM seriada avalia a evolução do hematoma (as imagens subagudas, especialmente a tardia, indicam um hematoma estável). A alta da paciente poderá ser cogitada se o feto estiver em boas condições de vitalidade. ▶ Trauma na gravidez. No caso de mulheres que sofreram trauma na gravidez, como acidente grave de carro, em até 40% das vezes está associado o DPP. O American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) (1999) recomenda que todas as mulheres envolvidas
em trauma devem ter seu feto monitorado por pelo menos 4 h. O traçado anormal é indicação de DPP e de interrupção da gravidez.
■ Aconselhamento pós-concepcional Mulheres com DPP apresentam risco aumentado em 10 a 15 vezes de repetir o acidente na próxima gestação. Aquelas que fumam ou fazem uso de cocaína devem ser aconselhadas a parar; é necessário controlar a hipertensão.
■ Pontos-chave O DPP é a principal causa de CID na gravidez. A mortalidade materna no DPP é de 1 a 3%, e a perinatal é de 12% (1/3 de todas as mortes perinatais). Em 80% dos casos de DPP, a hemorragia é externa; nos 20% restantes, é oculta. O diagnóstico do DPP é essencialmente clínico, e o diferencial será feito essencialmente com a placenta prévia. Nos casos de DPP com hemorragia oculta, o sangue pode dissociar o sistema de miofibrilas do miométrio, configurando o quadro da apoplexia uteroplacentária (útero de Couvelaire). Em apenas 25% dos casos a ultrassonografia revela hematoma retroplacentário. Quando a área da placenta descolada for > 50%, a morte fetal será inevitável. No DPP com o feto morto, indica-se a interrupção da gravidez pela amniotomia. No DPP com o feto vivo, a interrupção da gravidez será feita pela operação cesariana. Em gestações de < 34 semanas, com mãe e feto em boas condições (DPP “crônico”), pode ser adotada a conduta conservadora.
■ A. Coagulação Intravascular Disseminada ■ Introdução ■ Fisiologia da coagulação ■ Sistema de coagulação ■ Sistemas reguladores da coagulação ■ Hemostasia na gravidez ■ Etiopatogenia ■ Quadro clínico ■ Testes diagnósticos ■ Tratamento
■ B. Choque ■ Classificação do choque em obstetrícia ■ Bases fisiopatológicas do choque ■ Modificações do organismo materno com efeitos no choque ■ Efeitos do choque no organismo ■ Quadro clínico e diagnóstico
■ Sequelas ■ Tratamento ■ Choque séptico
■ C. Reanimação Cardiopulmonar ■ Suporte básico de vida para a grávida ■ Suporte avançado de vida na grávida ■ Cesárea perimortem: regra dos 4 min ■ Cuidados pós-parada cardíaca na grávida
■ D. Reanimação Neonatal ■ Considerações importantes
A. Coagulação Intravascular Disseminada ■ Introdução Coagulação intravascular disseminada (CID) é a aceleração do processo de coagulação com utilização dos diversos fatores plasmáticos e das plaquetas, obstrução da microcirculação por trombos de fibrina e ativação secundária do sistema fibrinolítico.
■ Fisiologia da coagulação A hemóstase representa equilíbrio dinâmico entre o mecanismo de coagulação e o de fibrinólise, podendo ser definida como processo no qual o sangue é mantido em estado fluido dentro dos vasos. Por outro lado, uma vez acometidos esses vasos, o processo hemorrágico é prontamente interrompido. Trata-se de um mecanismo complexo, do qual participam a parede vascular, as plaquetas e as proteínas plasmáticas. A hemóstase pode ser dividida em 2 fases: primária e secundária. A hemóstase primária está representada pela vasoconstrição temporária e pela formação de trombo plaquetário no local do vaso lesado, que constituem as primeiras modificações para deter perdas hemorrágicas após traumatismo vascular. A hemóstase secundária compreende o sistema de coagulação responsável pela formação do trombo de fibrina, proteína insolúvel que estabiliza e reforça o trombo plaquetário e o sistema regulador da coagulação (antitrombina III, proteína C, sistema fibrinolítico), que impede a extensão da trombose além do local lesado.
■ Sistema de coagulação A formação do coágulo de fibrina como produto final do sistema de coagulação é uma sequência complexa de reações enzimáticas, em “cascata” (Figura 24.1). Podem ser descritos 2 estágios fundamentais na formação do trombo de fibrina: a gênese da trombina e a polimerização dos monômeros de fibrina. A formação de trombina ocorre predominantemente na superfície fosfolipídica das plaquetas; a gênese de fibrina e a sua polimerização ocorrem no plasma. A trombina pode ser gerada por 2 mecanismos básicos: intrínseco e extrínseco. No sistema intrínseco, todos os componentes necessários estão presentes no plasma normal; no sistema extrínseco, elemento estranho ao plasma, o fator tecidual (tromboplastina), é necessário para iniciar o processo. O sistema intrínseco inicia-se pela superfície de contato carregada negativamente que ativa o fator XI (XIa). O fator XII e a pré-calicreína são relevantes provavelmente apenas na coagulação
in vitro. O sistema extrínseco começa quando o fator tecidual (FT) é ativado na superfície das células lesadas e liga-se ao fator VII e o ativa (VIIa); o complexo TF:VIIa ativa o fator IX, que, com o cofator VIIIa, ativa o fator X (Xa).
Figura 24.1 ■ Cascata de coagulação.
As plaquetas aceleram o processso de coagulação promovendo o fosfolipídio de membrana (PF3). O complexo Xa:Va age na protrombina (fator II) para gerar a trombina. A trombina, então, converte o fibrinogênio (fator I) em monômeros de fibrina, com liberação dos fibrinopeptídios A e B. Os monômeros de fibrina combinam-se para formar o coágulo constituído de fibrina. O fator XIII estabiliza o coágulo formando ligações cruzadas no polímero. A trombina desempenha inúmeros papéis fundamentais na coagulação: • Converte o fibrinogênio em fibrina • Amplifica a coagulação: ○ ativando o fator XI que aumenta a produção do fator IXa ○ clivando o fator VIII da sua molécula carreadora, o fator de von Willebrand (vWF), para ativá-lo e aumentar a produção do fator Xa • Ativa o fator XIIIa, que estabiliza o coágulo de fibrina • Potencializa a agregação das plaquetas • Liga-se à trombomodulina na superfície da célula endotelial para formar complexo que ativa a proteína C envolvida na regulação da coagulação (ver adiante).
■ Sistemas reguladores da coagulação ▶ Complexo proteína C/proteína S. A proteína C é ativada pelo complexo de trombomodulina-trombina na superfície das células endoteliais lesadas. O complexo proteína C/proteína S ativado inativa os fatores VIIIa e Va, cofatores, respectivamente, dos fatores IXa e Xa (Figura 24.2). Ambas as proteínas são produzidas pelos hepatócitos e são vitamina K-dependentes. A proteína S é um cofator necessário para que a proteína C inative os fatores Va e VIIIa. ▶ Antitrombina III. O mais notável sistema anticoagulante endógeno envolve a antitrombina III (AT III), glicoproteína sintetizada pelo fígado e pelas células endoteliais, cujo principal papel fisiológico é ligar-se à trombina, gerando complexo estável. A AT III é exaltada 5.000 a 40.000 vezes pela heparina.
Figura 24.2 ■ Papel antitrombogênico do endotélio via secreção de trombomodulina. As proteínas C/S são produzidas no fígado. EPCR, receptor da proteína C endotelial. (Adaptada de Johnson & Samuels, 2001.)
▶ Sistema fibrinolítico. O sistema fibrinolítico é responsável pela dissolução ordenada dos trombos hemostáticos. Consiste no plasminogênio – proenzima inativa convertida na enzima ativa, plasmina – e outras proteínas reguladoras (Figura 24.3). O principal ativador fisiológico do plasminogênio é o ativador do plasminogênio tecidual (tPA). Regulação inibidora da atividade fibrinolítica ocorre no nível da atividade do plasminogênio tecidual pelo inibidor do ativador do plasminogênio-1 (PAI-1). A plasmina só é produzida em presença da fibrina e converte a fibrina insolúvel em seus
produtos de degradação da fibrina (PDF). A plasmina circulante quando não se liga à fibrina é inibida pela antiplasmina-α2, formando o complexo plasminaantiplasmina-α2. O processo de quebra da fibrina leva posteriormente à produção dos fragmentos D e E, PDF. Pelo fato de o mecanismo de ativação do sistema fibrinolítico depender da fibrina como cofator e de se limitar ao local da formação do coágulo, não ocorre fibrinólise sistêmica.
Figura 24.3 ■ Sistema fibrinolítico (simplificado).
■ Hemostasia na gravidez A gravidez normal está acompanhada por alterações dramáticas nos sistemas de coagulação e no fibrinolítico, nos quais se comprovam aumento em alguns dos fatores pró-coagulantes, particularmente o fibrinogênio, e supressão na fibrinólise. Essas alterações, associadas ao acréscimo no volume sanguíneo, ajudam a combater os malefícios da hemorragia decorrente da separação da placenta, mas são secundárias ao processo da contratura miometrial que interrompe o sangramento na ferida placentária. Por outro lado, a gravidez torna-se vulnerável ao estado de coagulação intravascular e ao tromboembolismo.
■ Etiopatogenia Em obstetrícia, a CID pode apresentar 2 formas clínicas: 1. aguda, relacionada com descolamento prematuro da placenta (DPP), embolia por líquido amniótico (ELA), retenção de ovo morto e infecção intrauterina; 2. crônica, relacionada com préeclâmpsia. Há registros de ocorrência constante, nas coagulopatias, de depleção do fibrinogênio plasmático, proteína de alto peso molecular cuja síntese se realiza no fígado. A fibrinogenemia da gestante normal varia, no termo, entre 300 e 600 mg/dℓ. Em torno de 100 mg/dℓ situa-se o nível crítico, abaixo do qual a coagulação torna-se defeituosa. A falta de fibrinogênio circulante é apenas um dos aspectos da síndrome que compromete quase todos os fatores da coagulação. A CID jamais é um processo primário, mas sempre secundário a estímulo geral do sistema de
coagulação, ativado pela liberação de substâncias pró-coagulantes no sangue (Figuras 24.4 a 24.6). A liberação de FT ou de líquido amniótico (LA) ocorre em casos de DPP, ELA, ovo morto retido ou aborto séptico. A lesão endotelial, por outro lado, pode concorrer na CID ou suceder na préeclâmpsia e também na septicemia pela liberação de endotoxicinas bacterianas. Há amplo espectro de gravidade na CID, desde estágio compensatório sem manifestação clínica e com evidência de fibrinólise até a eclosão de hemorragia maciça com concentrações muito baixas de fibrinogênio, níveis patologicamente elevados de PDF e graus variáveis de trombocitopenia.
Figura 24.4 ■ Coagulação intravascular disseminada (CID): fatores obstétricos desencadeantes e possíveis consequências. Os produtos de degradação da fibrina (PDF) desempenham intensa atividade anticoagulante, assim como depressora do coração e do miométrio. DPP, descolamento prematuro da placenta; ELA, embolia por líquido amniótico.
Figura 24.5 ■ Descolamento prematuro da placenta (DPP). Esquema explicativo da penetração do fator tecidual (tromboplastina) na circulação materna.
A fibrinólise é secundária à CID, e os PDF resultantes do processo impedem a formação dos coágulos de fibrina, causando círculo vicioso que agrava o sangramento incoercível.
Figura 24.6 ■ Embolia por líquido amniótico (ELA). Indica-se a passagem do líquido amniótico para a circulação sistêmica materna.
Os PDF também interferem na contratilidade miometrial e possivelmente na função cardíaca, comprometendo tanto a hemorragia como o débito cardíaco. A seguir são apresentadas particularidades de algumas eventualidades clínicas: ▶ Descolamento prematuro da placenta. O DPP é a causa mais frequente de CID. A incidência de CID está relacionada com o tipo e o grau da separação placentária, sendo frequente
na variedade grave, com hemorragia oculta. Apenas 10% dos casos de DPP cursam com CID. Quando o útero está tenso e doloroso e o feto está inaudível, o coágulo retroplacentário deve ser extenso. O sangramento vaginal não é informativo da gravidade da hemorragia oculta nem do distúrbio da hemocoagulação. Pode não haver sangramento vaginal com hematoma retroplacentário de até 5 ℓ, sangue circulante incoagulável e choque hipovolêmico. Há consumo elevado do fator VIII e de fibrinogênio, baixa de plaquetas e aumento de PDF. ▶ Ovo morto e retido. Em 85 a 95% dos casos de morte fetal, a gravidez é interrompida espontaneamente, 3 a 4 semanas do decesso, sem qualquer anomalia grave na hemóstase. Embora a depleção de fibrinogênio ocorra inicialmente após o óbito do feto, ela é gradual, discreta, e os distúrbios na coagulação só se evidenciam, clinicamente, 5 semanas após a morte e em apenas 1/3 dos casos. A autólise da placenta, que se mostra às vezes em estado de liquefação, demanda tempo. Nessas condições, a penetração da tromboplastina seria desencadeada pelas contrações de Braxton-Hicks ou pelas do trabalho de parto. O mecanismo proposto para o entendimento da CID no ovo morto retido é a liberação da tromboplastina (que é um FT) dos tecidos ovulares, ativando o sistema extrínseco da coagulação. Na maioria das vezes a fibrinólise é um fenômeno secundário, decorrente do processo de CID. A síndrome de ovo morto retido tornou-se fenômeno raro, graças ao diagnóstico precoce, ao decesso fetal pela ultrassonografia, e às facilidades da indução de parto em qualquer idade gestacional. ▶ Embolia por líquido amniótico. A ELA é considerada uma das mais devastadoras condições na prática obstétrica, com incidência aproximada de 1 em 40.000 partos e mortalidade materna variando entre 20 e 60%. Constitui a principal causa de morte materna nos países desenvolvidos – 5 % [Centers for Disease Control and Prevention (CDC), 2010]. Historicamente, o 1o relato de ELA foi o do brasileiro Juvenal Ricardo Meyer, em 1926, mas o estudo sistemático seminal, que inclusive deu nome à síndrome, foi o de Stein e Luchbaug, em 1941. Dados relacionados com fatores de risco para a ELA são inconsistentes e contraditórios. A fisiopatologia parece envolver resposta materna anormal pela entrada de LA através das veias cervicais ou disrupção no local de inserção da placenta, durante o parto. A resposta materna e a lesão subsequente envolvem a ativação de mediadores proinflamatórios, caracterizando a síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS). A sintomatologia inicial clássica é a tríade hipotensão, hipoxia e coagulopatia. Depois sobrevém o colapso materno (parada cardiorrespiratória – PCR), sangramento por CID e atonia uterina e sofrimento fetal. Aproximadamente 80% das pacientes experimentam PCR. Das que sobrevivem, 45 a 50% exibem coagulopatia grave, 30 min a 4 h mais tarde, acompanhada por atonia uterina. A causa da coagulopatia é múltipla. O LA tem propriedades prócoagulantes, em particular, de ativação do fator X. A excessiva produção de fatores de degradação da fibrina está implicada na diminuição da contratilidade uterina responsável pela atonia. ▶ Infecção intrauterina. O choque endotoxêmico associado ao abortamento infectado ou à
infecção intrauterina antes ou após o parto pode determinar CID. A infecção costuma ser causada por germes gram-negativos. A fibrina é depositada na microvasculatura em decorrência da lesão endotelial pela endotoxicina e é secundária à hemólise intravascular das hemácias, a chamada hemólise microangiopática, característica dessa condição. ▶ Pré-eclâmpsia. A síndrome HELLP é agravada em 4 a 21% por CID.
■ Quadro clínico É dominado por hemorragia vaginal contínua, intensa ou moderada, durante ou após o parto. Concomitantemente, podem aparecer gengivorragias, epistaxes, hemorragias do tubo digestório, equimoses, hematomas ou sangramento nos locais de punção. A hemorragia é de tipo peculiar, porque não se formam os habituais coágulos, mantendo-se o sangue liquefeito. A incoagulabilidade só pode ser observada no ato cirúrgico, sobretudo no decurso da cesárea, pelo sangramento abundante, em lençol, dos pequenos vasos e dos pontos de penetração da agulha de sutura. Em pouco tempo, instala-se o estado de choque hemorrágico, com suas características consequências sintomatológicas.
■ Testes diagnósticos Os testes de rastreamento rápidos da falência hemostática incluem teste de observação do coágulo (teste de Weiner), tempo de trombina, dosagem de fibrinogênio e contagem de plaquetas. ▶ Teste de observação do coágulo. Avalia com singeleza o nível de fibrinogênio [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2006]. Consiste em retirar 5 mℓ de sangue do paciente e colocá-lo em tubo de ensaio. Normalmente o sangue coagula-se em 8 a 10 min e permanece intacto. Se a concentração de fibrinogênio for baixa, geralmente menor de 150 mg/dℓ, o sangue não se coagulará ou, se o fizer, sofrerá lise parcial ou completa em 30 a 60 min. ▶ Critério da ISTH. O critério diagnóstico da CID proposto pela International Society of Thrombosis and Haemostasis (ISTH) é apresentado na Tabela 24.1. Dentro do sistema de contagem são utilizados os exames tempo de protrombina (TP), contagem de plaquetas, fibrinogênio e D-dímero, que são avaliados e recebem pontuação de 0 a 3. A contagem total < 5 representa CID não declarada e a contagem ≥ 5, CID declarada. ▶ Relação fibrinogênio/proteína C reativa. A relação fibrinogênio/proteína C reativa tem sido considerada o melhor teste para o diagnóstico da CID, particularmente na síndrome HELLP. O valor da relação fibrinogênio/proteína C reativa < 104 está associado a odds ratio de 7 para CID.
Tabela 24.1 ■ Critério da ISTH para predizer a CID declarada. Variável
Valores de referência
Pontuação
Tempo de protrombina (TP)
Contagem de plaquetas
D-dímero
Normal
0
Prolongado (3 a 6 s)
1
Muito prolongado (> 6 s)
2
> 100 mil/mm 3
0
50 a 100 mil/mm 3
1
< 50 mil/mm 3
2
Normal (< 0,4 µg/mℓ)
0
Elevado (0,4 a 4,0 µg/mℓ)
2
Muito elevado (> 4,0 µg/mℓ)
3
> 100 mg/dℓ
0
< 100 mg/dℓ
1
Fibrinogênio
ISTH, International Society of Thrombosis and Haemostasis; CID, coagulação intravascular disseminada. Contagem ≥ 5: CID declarada. Adaptada de Windesperger & Lehner, 2013.
■ Tratamento ■ Controle da hemorragia O estado circulatório da paciente é mais importante que as alterações da coagulação na grande maioria dos casos de CID de pequena e média gravidade. O 1o cuidado é, assim, prevenir ou combater o choque e repor, em volume adequado, o sangue perdido. ▶ Substitutos do plasma. Soluções cristaloides (lactato de Ringer), 2 a 3 vezes o volume estimado das perdas sanguíneas, porque os cristaloides permanecem menos tempo no compartimento vascular. Este tratamento é emergencial, enquanto se aguarda a administração dos componentes sanguíneos. ▶ Sangue total. Não é possível obter o sangue total fresco (12 a 24 h), dada sua dificuldade de obtenção. ▶ Plasma fresco congelado. O plasma fresco congelado contém todos os fatores da coagulação necessários e pode ser armazenado por até 1 ano (Tabela 24.2). ▶ Concentrado de hemácias. Para cada 1 unidade de plasma fresco congelado são dadas 4 a 6 unidades de concentrado de hemácias. ▶ Concentrado de plaquetas. Pode ser utilizado em situações de muito baixa concentração (< 20.000 mil/mm3), embora raramente seja requerido em adição ao plasma fresco congelado.
Tabela 24.2 ■ Tratamento com derivados sanguíneos. Derivado
Volume (mℓ)
Efeito (por unidade)
Concentrado de hemácias
240
Aumento do Htc de 3% e da Hb de 1 g/dℓ
Plaquetas
50
Aumento das plaquetas de 5.000 a 10.000/mm 3
Plasma fresco congelado
250
Aumento do fibrinogênio de 10 mg/dℓ
Crioprecipitado
40
Aumento do fibrinogênio de 10 mg/dℓ
Htc, hematócrito; Hb, hemoglobina. Adaptada de ACOG, 2006.
▶ Crioprecipitado. Embora mais rico em fibrinogênio do que o plasma fresco congelado, está desprovido de antitrombina e expõe a paciente a mais doadores, com seus possíveis efeitos ominosos. Há quem o proponha se o fibrinogênio for < 100 mg/dℓ e houver indicação de cirurgia. Todavia, o mais importante componente hemostático do parto é a contração do miométrio. Vale lembrar que o parto vaginal exige menos dos mecanismos hemostáticos do que a cesárea.
■ Tratamento particularizado ▶ Descolamento prematuro da placenta. Em caso de feto morto no DPP, o parto vaginal deve ser induzido rapidamente. Se o parto não puder ser estimulado, mesmo com o feto morto pode-se indicar a cesárea que seria realizada não sem antes recuperar a hemóstase materna. Se o DPP for pequeno e o feto ainda estiver vivo, impõe-se a cesárea. Mesmo nos casos de extravasamento de sangue pelo útero (útero de Couvelaire), o miométrio geralmente não está comprometido e a contração é eficiente após a retirada do feto, placenta e coágulo retroplacentário. As anestesias de condução estão contraindicadas: agravam a hipotensão e podem determinar sangramentos. ▶ Embolia por líquido amniótico. O tratamento da ELA é puramente de suporte e consiste na administração de solução de cristaloides, agentes pressores (noradrenalina IV), reanimação cardiopulmonar, plasma fresco congelado, concentrado de hemácias, uterotônicos (derivados do ergot, misoprostol retal), tamponamento e balão intrauterino. Em caso de PCR está indicado o parto imediato para melhorar o prognóstico neonatal. Se o tempo decorrido entre a parada cardíaca e o parto for de até 5 min, 90% dos recém-nascidos nascem sem comprometimento neurológico. ▶ Retenção de ovo morto. Quando o parto está indicado, recomenda-se a ruptura das membranas, em função do risco de parto precipitado e de ELA. ▶ Infecção intrauterina. A transfusão de sangue tem pequeno ou nenhum efeito na hipotensão em comparação com os benefícios vistos nas emergências obstétricas complicadas pela CID e acompanhadas de choque hipovolêmico. A eliminação da infecção uterina permanece como o agente mais importante do tratamento, vale dizer, terapia antibiótica intensa acompanhada
por esvaziamento do conteúdo uterino. Se o útero estiver vazio e contraído não há risco indevido de sangramento importante do local placentário. Aqui, também, se houver evidência de CID, a heparina pode ser útil, mas seu uso é controverso.
B. Choque O choque, particularmente o hemorrágico, é uma das principais causas de mortalidade materna, especialmente nos países em desenvolvimento. O choque é uma condição de profundo distúrbio hemodinâmico e metabólico, caracterizada por insuficiência do sistema circulatório em manter adequada perfusão aos tecidos.
■ Classificação do choque em obstetrícia Uma classificação etiopatogênica do choque em obstetrícia pode ser esquematizada da seguinte maneira (Figura 24.7): • Choque hipovolêmico ○ Por perda de sangue: gravidez ectópica, DPP, placenta prévia/acreta, ruptura uterina, lacerações do trajeto, retenção placentária, inversão uterina aguda ○ Por perda de líquido extracelular: hiperêmese gravídica, íleo paralítico • Choque distribuitivo ○ Sepse: abortamento infectado, infecção puerperal, pielonefrite ○ Anafilaxia: ELA, reações de hipersensibilização ○ Neurogênico: inversão uterina aguda (fase inicial) • Choque cardiogênico: infarto agudo do miocárdio, cardiomiopatia periparto • Choque obstrutivo: tromboembolia pulmonar A incidência de hemorragia massiva (≥ 10 unidades de sangue, durante a internação para o parto) é de 6: 10.000 partos (Estado de Nova Iorque, 1998-2007). A etiologia é: placentação anormal (26,6%), atonia uterina (21,2%), DPP (16,7%) e CID (15%). Na ELA, embora o termo sugira embolia dos pulmões, os distúrbios fisiopatológicos parecem ser aqueles da anafilaxia. Mais tarde, quando vigentes os defeitos da coagulação sanguínea, instala-se o choque do tipo hemorrágico. Na inversão uterina aguda pode ocorrer inicialmente hipotensão grave sem perda de sangue considerável. Nesse cenário, o choque é rotulado de neurogênico de origem vagal com bradicardia por estiramento dos ligamentos uterinos, embora o comum seja o sangramento desde o início do acidente, configurando choque hipovolêmico.
■ Bases fisiopatológicas do choque Na fisiopatologia do choque a vasoconstrição se sobressai como modificação hemodinâmica fundamental. No choque hemorrágico, a vasoconstrição é uma resposta simpática apropriada em face ao decréscimo no volume circulante. Na variedade séptica, a endotoxicina é vasodilatadora e talvez seja o único tipo de choque sem vasoconstrição inicial. Se a vasoconstrição não se prolongar, seus efeitos são benéficos; quando persistente, determina hipoperfusão tecidual. Nessas condições, a estimulação simpática protege o coração, o cérebro e as suprarrenais, que têm fluxo sanguíneo preservado pela vasodilatação. Esses órgãos só começam a sofrer hipoperfusão quando a pressão sistólica diminui para menos de 70 mmHg. Em condições normais, apenas 1/4 da rede capilar recebe sangue (Figura 24.8 A). Essa porção funcionante não é sempre a mesma, mas se altera continuamente, de acordo com as necessidades teciduais, por meio de mecanismo autorregulador. As concentrações locais de metabólitos e de oxigênio são responsáveis pela dilatação capilar, selecionando, por conseguinte, os vasos que serão perfundidos. A vasoconstrição duradoura leva à hipoperfusão tecidual com anoxia e acúmulo de metabólitos ao redor dos capilares (Figura 24.8 B). Esses respondem com dilatação que, generalizada, caracteriza o estágio de dilatação holocapilar (Figura 24.8 C). À medida que os capilares se ampliam, aumentam em número, acentuando-se a disparidade entre o volume do compartimento vascular e o volume sanguíneo. A dilatação holocapilar termina por agravar a perfusão nos tecidos.
Figura 24.7 ■ Avaliação inicial dos estados de choque. A. Avaliação inicial da paciente. B. Principais causas de choque em obstetrícia. C. Representação esquemática dos 4 principais tipos de choque. O algoritmo inicia-se com a forma mais comum de apresentação (i. e., a hipotensão arterial), mas muitas vezes ela é mínima ou mesmo inexistente. PVC, pressão venosa central; SVO2, saturação de oxigênio venoso misto. (Adaptada de Vincent & De Backer, 2013.)
Figura 24.8 ■ Estágios fisiopatológicos do choque. (Adaptada de Roberts, JM; Laros, RK Jr. Hemorrhagic and endotoxic shock: a pathophysiologic approach to diagnosis and management. Am J Obstet Gynecol. 1971;110:1041-9.)
Do acúmulo de metabólitos advém hipotonia no esfíncter arteriolar (ou esfíncter pré-capilar), não observada no lado venoso. Em consequência, o sangue torna-se estagnado nos capilares, e cresce a pressão hidrostática, que, associada à lesão do endotélio por metabólitos, e no choque séptico pela endotoxicina, leva ao extravasamento do fluido circulante (Figura 24.8 D), diminuindo, ainda mais, a volemia. O estágio seguinte é o da coagulação intravascular (Figura 24.8 E), com formação de microtrombos que comprometem, de vez, a perfusão. A coagulação intravascular tem, na sua origem, fatores múltiplos, dentre os quais a estagnação sanguínea, a ação de produtos metabólicos de atividade tromboplástica e, no choque séptico, a endotoxicina.
■ Modificações do organismo materno com efeitos no choque A gravidez é sede de importantes modificações fisiológicas, que alteram, entre outros, a intimidade da dinâmica dos sistemas respiratório e cardiovascular. É essencial que os envolvidos no processo de reanimação em gestantes conheçam esses pormenores e, principalmente, os meios de minimizá-los, a fim de retardar fenômenos anóxicos como hipoxia e acidose – lesivos para a mãe, devastadores para o concepto. Na gravidez, há hiperdinamia circulatória, com elevação de 15 a 20 bpm, bem como elevação de 40% do débito cardíaco, o que pode determinar perdas sanguíneas mais exuberantes. Ademais, o volume plasmático sofre acréscimo de aproximadamente 50%, desproporcionalmente ao volume globular, que só aumenta cerca de 25%, levando a “anemia fisiológica da gravidez”, diminuindo a capacidade de transporte de oxigênio tecidual. Essa anemia contribui para que a anoxia durante o colapso materno surja precocemente e as perdas sanguíneas sejam menos toleradas. O aumento dos níveis de progesterona, responsável pelo relaxamento do esfíncter esofagiano inferior e pelo retardamento do esvaziamento gástrico, somado ao aumento da pressão intraabdominal causado pelo útero gravídico, fazem com que a grávida tenha maior risco de aspiração
broncopulmonar. Não são apenas as alterações hormonais que influem na dinâmica do organismo materno; fatores mecânicos também são responsáveis por mudanças, principalmente no que se refere aos volumes pulmonares. O aumento do volume uterino, resultando em elevação do diafragma, leva à diminuição da capacidade residual funcional. O relaxamento dos ligamentos das costelas aumenta os diâmetros do tórax, possibilitando maior volume-corrente. Além disso, a progesterona diminui a sensibilidade do centro respiratório ao oxigênio, o que acaba levando à hiperventilação na gestante. Essa hiperventilação, somada à maior excreção de bicarbonato pelo sistema urinário, resulta em alcalose respiratória compensada fisiológica da gestação. Todas essas alterações tornam possível o equilíbrio no organismo da grávida, para que a maior parte da necessidade de oxigênio seja suprida. Todavia, quando a grávida desenvolve estado de hipoventilação (como no colapso materno), toda essa dinâmica é alterada, acelerando o surgimento de anoxia, hipoxia e acidose nessa paciente. A partir da 20a semana de gestação, na posição supina, o útero comprime a veia cava inferior e a aorta, causando diminuição no retorno venoso, determinando hipotensão supina. A própria hipotensão postural pode precipitar o colapso materno que, neste caso, é revertido quando o útero se desloca desses grandes vasos mediante mudança da paciente para decúbito lateral esquerdo. Essa compressão aortocava diminui em pelo menos 50% a eficácia das compressões realizadas durante a reanimação cardiopulmonar (RCP) feita na paciente.
■ Efeitos do choque no organismo A diminuição do débito cardíaco leva ao desarranjo do metabolismo nas diferentes células do organismo. Quando a pressão arterial diminui exageradamente, o fluxo coronariano apresenta-se abaixo do requerido para a nutrição adequada do miocárdio. Isso resulta em depressão do coração, maior redução do débito cardíaco e da pressão arterial. A diminuição de sangue aos intestinos exalta a absorção das endotoxinas liberadas pelas bactérias gram-negativas mortas. O débito urinário reduz-se pelo baixo fluxo sanguíneo renal. Na gravidez, o choque causa diminuição da perfusão e da oxigenação placentária, levando a sofrimento e morte fetal. No processo final do choque, em decorrência da hipoperfusão, há insuficiente liberação de oxigênio e de nutrientes a células e tecidos, associada a inadequada depuração dos catabólitos. A resultante hipoxia celular induz mudança no metabolismo aeróbio para anaeróbio, resultando em produção aumentada de lactato e consequente acidose lática. Persistência e piora do choque acabam por comprometer a integridade celular por falência dos sistemas liberadores de energia, com ruptura dos lisossomos e liberação de enzimas, que contribuem para a digestão intracelular e morte.
■ Quadro clínico e diagnóstico
É muito importante reconhecer precocemente o choque, pois a recuperação do equilíbrio fisiológico só é possível nas primeiras fases. Ultrapassados esses estágios, as alterações se tornam irreversíveis, rebeldes a toda terapêutica. No parto vaginal normal a paciente perde cerca de 500 mℓ de sangue e na cesárea, 1.000 mℓ. A grávida, saudável, a termo, pode perder 1.000 mℓ de sangue sem distúrbio hemodinâmico significante nem redução subsequente dos níveis de hemoglobina. O diagnóstico do choque hemorrágico é óbvio quando a hemorragia é externa. A estimativa visual, todavia, não é adequada, pois subestima 50% do sangramento. A hemorragia interna é muito mais difícil de apurar. Metade a 2/3 dos casos de hemorragia anteparto são decorrentes de DPP ou placenta prévia. Os sinais e sintomas clínicos da paciente dão indícios da quantidade de sangue perdido e da sua capacidade em lidar com o sangramento. Perda de 10 a 15% do volume sanguíneo geralmente não altera a pressão sanguínea, mas pode causar leve taquicardia e hipotensão ortostática (choque leve). Há vasoconstrição do leito vascular do tegumento e da musculatura, e a paciente torna-se pálida, sente-se fraca e apresenta a pele fria. Quando a perda sanguínea alcança 15 a 30% do volume sanguíneo, há ligeira queda da pressão sistólica, taquicardia e sensação de sede, em adição à fraqueza (choque moderado). O corpo responde pela redução do fluxo de sangue aos intestinos e aos rins, resultando em oligúria. Perda de sangue maior que 30 a 40% pode determinar diminuição da pressão sistólica para 60 a 80 mmHg ou menos. A hipotensão resulta em perfusão deficiente do coração e do sistema nervoso central. Além de palidez e oligúria, a paciente apresenta-se confusa, inquieta e exibe alterações no eletrocardiograma (choque grave). Além da pressão arterial, do pulso e do volume urinário, a pressão venosa central (PVC) é um parâmetro muito utilizado para caracterizar o quadro de choque e avaliar os resultados terapêuticos. A medida da pressão existente nas grandes veias de retorno ao coração é importante para avaliar a hemodinâmica dos pacientes em choque, pois reflete o estado da volemia em relação à bomba cardíaca. A PVC varia diretamente com o volume sanguíneo e indiretamente com a eficácia da bomba cardíaca. PVC abaixo de 8 cmH2O já indica hipovolemia, e níveis superiores a 14 a 15 cmH2O podem significar bomba cardíaca insuficiente ou hipervolemia. O conhecimento do volume urinário é fundamental, constituindo-se no melhor sinal para avaliar a perfusão de sangue nos tecidos. Diurese menor que 25 a 30 mℓ/h indica oligúria e reflete hipoperfusão visceral. Não se deve confundir a oligúria do choque com a da insuficiência renal aguda. A necrose tubular dos rins é tardia, muitas vezes 24 h após o acidente isquêmico. Na insuficiência renal aguda, a oligúria não cede, mesmo após correção do distúrbio hemodinâmico. Outros exames complementares auxiliam o diagnóstico e orientam o tratamento. Os mais utilizados são descritos a seguir. Ecocardiograma abdominal materno (avaliação do débito cardíaco), PVC e saturação de oxigênio venoso (SvO2) são fundamentais para individualizar os tipos de choque e orientar o
tratamento. A ultrassonografia de emergência é muito útil para diagnosticar a placenta prévia; no DPP, o coágulo retroplacentário só é visualizado em 25% dos casos. A ultrassonografia abdominal pode diagnosticar o hematoma subcapsular do fígado (síndrome HELLP) e a hemorragia intraperitoneal. Dentre os exames hematológicos estão: hemograma completo, hematócrito, prova cruzada e testes de coagulação; e os bioquímicos: creatinina, lactato e eletrólitos plasmáticos. A cardiotografia (CTG) normal é indicativa de que a paciente não apresenta choque grave.
■ Sequelas No primeiro plano dos efeitos patológicos está o rim. Com a diminuição da pressão sanguínea, abaixo de 80 mmHg, instala-se oligúria, causada pela pressão de filtração insuficiente. A anoxia dos rins é tão acentuada que determina necrose tubular, sobrevindo a insuficiência renal aguda. Descrevem-se, nas mesmas circunstâncias, lesão isquêmica e necrose do lobo anterior da hipófise, o que constitui a síndrome de Sheehan. A hipófise normal aumenta de volume na gravidez, à conta da hiperplasia das células lactóforas, e por isso é suscetível à lesão após grave hemorragia do pós-parto. Classicamente, o principal sintoma é a incapacidade de lactação/amenorreia e graus variáveis de insuficiência hipofisária anterior. O diabetes insípido não é usual. No pulmão observa-se o quadro denominado síndrome de angústia respiratória aguda (SARA). Na gravidez, o choque determina redução na perfusão e na oxigenação placentária, levando a sofrimento e morte fetal. A ausência do sofrimento fetal é sinal de que o choque materno não é muito acentuado.
■ Tratamento Dois aspectos fundamentais norteiam o tratamento do choque obstétrico: 1. atender à regra VIP: Ventilation (administração de oxigênio), Infusion (reanimação líquida), Pump (administração de agentes vasoativos); 2. assegurar a hemóstase tratando a causa cirúrgica do sangramento ou corrigindo a coagulação com fatores da coagulação. Outras características do tratamento são discutidas a seguir: • Acesso venoso com agulha de grosso calibre (14G) e cateter venoso central, para infusão de líquidos e de agentes vasoativos • A reanimação líquida é a mais importante indicação terapêutica do choque hemorrágico e deve ser imediatamente iniciada por meio de soluções cristaloides: Ringer com lactato e solução salina fisiológica (0,9%). A reposição será generosa, sabendo-se que apenas 20% da solução cristaloide permanece na circulação. Restituir a pressão arterial média a nível de 60 a 70 mmHg é o objetivo inicial, mas o nível deve ser ajustado para restaurar a perfusão tecidual medida pelo estado mental e pela aparência da pele. O volume e a velocidade da reposição
volêmica também podem ser avaliados por PVC de 6 a 10 cmH2O (ou 3 a 6 mmHg com transdutor eletrônico), hematócrito ≥ 30% e volume urinário > 30 mℓ/h. A principal complicação da reposição líquida excessiva é o edema de pulmão • Os componentes sanguíneos devem suceder imediatamente às soluções cristaloide por meio do plasma fresco congelado (fatores da coagulação) e do concentrado de hemácias. Muitas vezes, na emergência extrema, administra-se o sangue de doador universal (O Rh negativo), o que não está isento de complicação • Vasoconstritor: se a hipotensão for grave e não ceder mesmo após a administração de líquidos, o uso de vasopressor pode estar indicado, pelo menos temporariamente, sendo retirado quando a hipovolemia for corrigida. A preferência é pela noradrenalina, predominantemente um α-adrenérgico, com modesta ação β-adrenérgica capaz de ajudar a manter o débito cardíaco. A dose é de 0,1 a 2,0 µg/kg/min • Agentes inotrópicos: dobutamina • Ventilação assistida (intubação endotraqueal) e oxigenioterapia, monitoradas pelo lactato sanguíneo < 1,5 mmol/ℓ e pela SvO2 > 70% • Posição da paciente: em decúbito lateral de 15 a 30o para evitar a compressão da veia cava inferior e da aorta pelo útero grávido • Tratamento da condição subjacente: se o sangramento é da cavidade uterina e o suficiente para determinar hipovolemia, o parto deve ser deflagrado independentemente da maturidade fetal. No caso de DPP com feto morto, o melhor é o parto vaginal, acelerado pela amniotomia. Se a cesárea for a exigência, no caso de placenta prévia ou de sofrimento fetal, é preciso corrigir possíveis defeitos da coagulação.
■ Choque séptico Em obstetrícia o choque séptico está associado a quadros infecciosos específicos: abortamento séptico, endometrite, corioamnionite e pielonefrite aguda. Felizmente, menos de 5% das pacientes com esses tipos de infecção desenvolvem choque séptico. Os principais organismos responsáveis são os bacilos gram-negativos aeróbios, por exemplo, Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae e Proteus sp. Os bacilos gram-negativos aeróbios têm um lipopolissacarídio complexo em sua parede celular denominado endotoxina, que, ao ser liberado na circulação sanguínea sistêmica, determina inúmeras alterações imunológicas, hematológicas, neurormonais e hemodinâmicas, culminando na disfunção multiorgânica. Pacientes nos estágios iniciais do choque séptico costumam estar inquietas, desorientadas, taquicárdicas e hipotensas. Embora a hipotermia possa ocorrer, a maioria das pacientes está febril (39 a 40°C). A pele está quente e hiperperfundida pela fase inicial de vasodilatação (choque quente) e logo torna-se fria e viscosa pela vasoconstrição. Arritmias cardíacas podem ocorrer, assim como sinais de isquemia miocárdica; icterícia por hemólise pode ser evidente; oligúria ou anúria; hemorragia espontânea do sistema geniturinário ou em locais de venopunção pela CID; a
SARA é comum com dispneia, tosse, estridor, taquipneia etc. Ademais, a paciente pode apresentar sinais relacionados com o foco primário da infecção: lóquios purulentos, peritonite, dor à palpação uterina ou nos flancos. O prognóstico das pacientes com choque séptico depende do estado de saúde prévio à infecção. Em pacientes saudáveis, o prognóstico não é desalentador, com registro de apenas 15% de mortalidade.
■ Tratamento particularizado do choque séptico Além das medidas gerais pertinentes a qualquer tipo de choque, podem ser particularizados: • Os corticoides não são mais utilizados • Esquemas antibióticos preferenciais: ○ ampicilina (2 g IV a cada 6 h) mais clindamicina (900 mg IV a cada 8 h) ○ gentamicina (1,5 mg/kg IV a cada 8 h) mais metronidazol (500 mg IV a cada 8 h) • As pacientes podem necessitar de cirurgia, que não deve ser postergada, para esvaziar possível conteúdo ovular (aspiração-curetagem), devendo-se drenar o abscesso pélvico (colpotomia) ou extirpar o órgão infectado (histerectomia).
■ Síntese: as 4 fases do tratamento do choque Essencialmente, há 4 fases no tratamento do choque e os objetivos terapêuticos e o monitoramento necessariamente devem ser adaptados a essas fases (Figura 24.9). A fase de sobrevivência tem como principal objetivo atingir pressão arterial e débito cardíaco compatíveis com a sobrevida materna imediata, incluindo o monitoramento invasivo mínimo, quase sempre necessário. A fase de otimização foca a disponibilidade de oxigênio celular, o monitoramento do débito cardíaco, a saturação do oxigênio venoso misto e o nível de lactato no sangue. A estabilização objetiva prevenir a disfunção orgânica, mesmo após se obter estabilização hemodinâmica. O foco da fase de descalonamento é descontinuar paulatinamente os agentes vasoativos e promover medidas para alcançar balanço hídrico negativo.
Figura 24.9 ■ As 4 fases do tratamento do choque. (Adaptada de Vincent & De Backer, 2013.)
C. Reanimação Cardiopulmonar ■ Suporte básico de vida para a grávida As condutas preconizadas em gestantes com PCR seguem a mesma doutrina recomendada às não grávidas. Todavia, deve-se atentar a algumas particularidades, dependendo das alterações fisiológicas determinadas pela gravidez. A primeira etapa do suporte básico de vida (SBV) inclui contatar o serviço de emergência após o rápido reconhecimento da PCR. Após o diagnóstico da grávida com PCR, recomenda-se a inclinação da paciente à esquerda com coxim ou o deslocamento manual do útero para o mesmo lado, a fim de prover melhor retorno sanguíneo ao coração direito (Figura 24.10).
Figura 24.10 ■ Deslocamento manual uterino.
As diretrizes da American Heart Association (AHA, 2010) para a RCP recomendam a sequência C-A-B (compressão torácica, avaliação das vias respiratórias e respiração) (Figuras 24.11 e 24.12). Uma RCP de alta qualidade inclui: • 30 compressões torácicas para 2 ventilações (30:2), o que caracteriza 1 ciclo de RCP • mínimo de 100 compressões por minuto • profundidade de 5 cm de afundamento da caixa torácica • retorno do tórax à posição inicial após a compressão • minimização das interrupções durante a massagem cardíaca. Caso já exista um desfibrilador automático externo (DAE) no momento do colapso, a RCP deve ser realizada por 1,5 a 3 min antes da desfibrilação. Iniciar imediatamente as manobras de reanimação e desfibrilar até 3 a 5 min da PCR pode aumentar a sobrevida em até 75%. Não se deve alterar a voltagem do choque em pacientes grávidas, utilizando-se 360 J com um
desfibrilador monofásico, e 120 a 200 J com o bifásico. A desfibrilação só está indicada nos chamados ritmos cardíacos chocáveis: fibrilação ventricular (FV) ou taquicardia ventricular (TV) (Figura 24.13). São ritmos cardíacos não chocáveis: a assistolia e a atividade elétrica sem pulso (AESP).
Figura 24.11 ■ Precedendo a ventilação, a cabeça deve ser inclinada para trás, com o nariz apontando para o teto, evitando-se a hiperextensão do pescoço. (MS, 2000.)
Figura 24.12 ■ Massagem cardíaca externa. (MS, 2000.)
Após a realização de um único choque, são realizados 5 ciclos (2 min) de RCP (30:2), e o ritmo é verificado novamente (Figura 24.14).
Figura 24.13 ■ Ritmos cardíacos na parada cardiorrespiratória na gestante. AESP, atividade elétrica sem pulso.
Figura 24.14 ■ Fluxograma do suporte básico de vida (SBV), RCP, reanimação cardiopulmonar. DAE, desfibrilador automático externo.
■ Suporte avançado de vida na grávida O suporte avançado de vida (SAV) inclui medidas invasivas, como a obtenção de via respiratória por meio da intubação orotraqueal (IOT), e uso de medicamentos. Ao contrário do SBV, não existe ordem a ser seguida no SAV. Equipe de vários profissionais trabalha
simultaneamente. Após a IOT, deve ser iniciada a ventilação com ambu, utilizando oxigênio a 100%. A capnografia quantitativa contínua está indicada: além de confirmar a posição correta do tubo traqueal, monitora a qualidade da RCP e pode detectar o retorno da circulação espontânea com base nos valores do CO2 no final de expiração. Duas veias periféricas calibrosas devem ser puncionadas para ser realizada a reposição da volemia vigorosa em caso de choque hipovolêmico. O uso de fármacos está indicado após a ineficácia do 1o choque seguido de 2 min de RCP, e pode ser feita por 3 vias: intraóssea (IO), intravenosa (IV) e endotraqueal. Utilizada a via endotraqueal, a dose deve ser dobrada e a medicação, diluída em 5 a 10 mℓ de água destilada. A escolha do medicamento depende do ritmo cardíaco apresentado. Na FV/TV sem pulso as substâncias utilizadas são: adrenalina (1 mg IV ou IO ou 2 a 2,5 mg endotraqueal a cada 3 a 5 min) ou vasopressina (40 U IV ou IO ou 80 U endotraqueal); amiodarona (300 mg bolus IV ou IO, na 1a dose, e 150 mg na 2a) para os casos refratários. Já nas grávidas com AESP e assistolia, para as quais não está indicada a cardioversão, prima-se pelo uso dos vasopressores, adrenalina ou vasopressina. Após a administração dos medicamentos, recomenda-se infusão de 20 mℓ de soro fisiológico ou água destilada, a fim de auxiliar a sua distribuição, assim como se deve elevar o membro no qual foi infundida a medicação.
■ Cesárea perimortem: regra dos 4 min Quando o útero gravídico é grande a ponto de influenciar a hemodinâmica materna, a cesárea perimortem deve ser cogitada, independentemente da viabilidade fetal. Recomenda-se sua indicação no 4o min da RCP sem pulso materno e consumada, no máximo, no 5o min de colapso, a fim de garantir melhores resultados perinatais (Figura 24.15). Não é necessária técnica estéril ou ambiente cirúrgico: a cesárea perimortem é feita na sala de reanimação. Sem circulação, a perda sanguínea é mínima e a anestesia não é necessária, sendo o bisturi o único instrumento necessário.
Figura 24.15 ■ Regra dos 4 min para realização da cesárea perimortem.
Por outro lado, se a meta da cesárea perimortem não for atingida no 5o min, os esforços devem continuar, a fim de ultimar o parto, uma vez que há relatos de sobrevida materna até o 15o min após o colapso, a despeito de piores resultados perinatais.
■ Cuidados pós-parada cardíaca na grávida Os 5 pontos principais dessa conduta são apresentados na Tabela 24.3.
Tabela 24.3 ■ Cuidados pós-parada cardíaca na gravidez. Eletrocardiograma (12 derivações) Perfusão/reperfusão Oxigenação/ventilação Hipotermia terapêutica Tratamento das causas do colapso materno
A ventilação deve começar na frequência de 10 a 12/min, para manter a pressão parcial de CO2 na expiração em 35 a 40 mmHg. É de extrema importância evitar-se a hiperventilação. O2 antes usado a 100%, em função de sua toxicidade, deve ser mantido no menor nível possível capaz de promover saturação ≥ 94%. A hipotensão arterial deve ser tratada quando o valor sistólico < 90 mmHg, com a administração de fluidos em bolus e, quando necessário, vasopressores. A via de administração aqui é a IV. A realização de eletrocardiograma 12-derivações é indispensável, uma vez que doenças cardiovasculares podem ser a causa do colapso materno. A hipotermia terapêutica é a única intervenção que demonstrou prover recuperação neurológica e deve ser considerada na gestante comatosa após o retorno da circulação espontânea. Recomenda-se manter a temperatura entre 32 e 34°C por 12 a 14 h. Finalmente, devem ser tratadas as causas reversíveis do colapso materno (Figura 24.16).
Figura 24.16 ■ Causas do colapso materno.
D. Reanimação Neonatal A Figura 24.17 sintetiza as etapas fundamentais da reanimação neonatal.
Figura 24.17 ■ Fluxograma para reanimação neonatal. (Adaptada da SBP, 2011.)
■ Considerações importantes • A temperatura ambiente na sala de parto deve ser em torno de 26°C • A aspiração das vias respiratórias dos recém-nascidos pelos obstetras, logo após a saída dos
ombros, não é mais recomendada: não diminui a aspiração de mecônio • Não é necessário aspirar a traqueia de recém-nascido com líquido meconial, desde que ele esteja ativo e vigoroso. Porém, caso se mostre deprimido, em apneia, ou com frequência cardíaca abaixo de 100 bpm, a traqueia deve ser aspirada antes de qualquer manobra • Na ventilação com pressão positiva (VPP), use sempre balão ou ventilador mecânico manual. Nunca use borracha de látex apertada nas narinas do recém-nascido. Essa manobra é perigosa e pode causar pneumotoráx • O oxigênio suplementar deve ser evitado (use oxigênio a 21%) • A massagem cardíaca sempre segue a VPP, diferentemente do que ocorre com o adulto, no qual a massagem é o 1o procedimento. O bebê deve estar intubado antes do início da massagem cardíaca • A melhor maneira de realizar a massagem cardíaca é usando os polegares com as mãos envolvendo o tórax • No recém-nascido, a ventilação e a massagem cardíaca devem ser realizadas de maneira sincrônica na proporção de 3:1 • A melhor via para a administração de fármacos na sala de parto é a veia umbilical, de fácil acesso.
■ Pontos-chave Em obstetrícia, a coagulação intravascular disseminada (CID) pode apresentar-se de 2 maneiras distintas: aguda [descolamento prematuro da placenta (DPP), embolia por líquida amniótico (ELA), retenção de ovo morto, infecção intrauterina] e crônica (pré-eclâmpsia). A CID é sempre fenômeno secundário ao evento obstétrico que a determinou. Há consumo de fibrinogênio e de inúmeros fatores de coagulação, assim como das plaquetas. A fibrinólise é consequência da coagulação exaltada. O quadro clínico é dominado por hemorragia vaginal contínua, intensa ou moderada, durante ou após o parto. Concomitantemente podem aparecer gengivorragias, epistaxes, equimoses, hematomas ou sangramento nos locais da punção. A hemorragia é do tipo peculiar porque não se acompanha dos habituais coágulos. Na CID aguda, os testes diagnósticos indicados são contagem de plaquetas, tempo de trombina, concentração de fibrinogênio e teste de observação do coágulo. O tratamento da CID depende fundamentalmente da resolução do problema obstétrico. A terapia de reposição é idêntica à da hemorragia obstétrica maciça, haja ou não CID. O tratamento dos distúrbios da coagulação é feito, fundamentalmente, com concentrado de hemácias e plasma fresco congelado. Eventualmente, quando indicada intervenção cirúrgica, deve-se administrar concentrado de plaquetas (trombocitopenia, 20.000 mℓ/mm3). O tratamento com fator VIIa recombinante é excepcional e deve ser realizado apenas em casos de ELA.
■ A. Polidramnia ■ Etiopatogenia ■ Quadro clínico. Diagnóstico ■ Prognóstico ■ Tratamento
■ B. Oligoidramnia ■ Prognóstico
A. Polidramnia Clinicamente, polidrâmnio ou hiperidrâmnio é o acentuado excesso de líquido aminiótico, reconhecido ao exame físico – útero grande para a idade gestacional – e, eventualmente, confirmado por generosa aspiração de fluido à amniocentese transabdominal, ou pelo escoamento desmedido no momento do parto. Antes do advento da ultrassonografia, a polidramnia era definida como o volume de líquido amniótico maior de 2 ℓ, o que ocorreria em 0,1 a 3% das gestações. Atualmente, e com maior precisão, define-se a polidramnia quando há bolsão de líquido amniótico com diâmetro vertical > 8 cm.
■ Etiopatogenia É conhecida a relação entre a polidramnia e as anomalias congênitas fetais, presentes em cerca de 60% dos casos, especialmente as do sistema nervoso central (anencefalia, defeitos do tubo neural [DTN]) e as atresias altas do tubo digestivo (esôfago e duodeno) (Figura 25.1). O excesso de fluido decorre do desequilíbrio resultante da falta de deglutição fetal, visto que a excreção urinária, fonte produtora, continua normalmente. Há grande incidência de polidrâmnio nos casos de hidropisia fetal não imune, diabetes melito, doença hemolítica perinatal (DHPN), gemelidade (monocoriônica) e patologia placentária (corioangioma, placenta circunvalada). As infecções fetais associadas à polidramnia incluem: parvovírus B19, citomegalovírus (CMV), toxoplasmose e sífilis. A Tabela 25.1 resume essas anomalias e enumera outras. Em 1/3 dos casos de polidrâmnio, no entanto, mãe e feto são normais (polidramnia idiopática); atualmente, sabe-se que não é comum a recorrência dessa apresentação idiopática em gestações subsequentes (5%). Quanto maior o grau de polidramnia, mais elevada a possibilidade de malformações fetais. O estudo genético é obrigatório (cariótipo), em quase todos os casos de polidramnia geralmente por meio da cordocentese, pela idade avançada da gravidez.
Figura 25.1 ■ Prevalência das malformações fetais nos casos de polidramnia (em porcentagem).
Tabela 25.1 ■ Alterações comumente associadas à polidramnia. Diabetes melito Doença hemolítica perinatal (DHPN) Gemelidade (monocoriônica) Hidropisia fetal não imune Anomalias do SNC • Anencefalia • Defeitos do tubo neural (DTN) • Holoprosencefalia Anomalias gastrintestinais • Atresia do esôfago • Atresia do duodeno Anomalias cardíacas • Arritmias Anomalias torácicas • Malformação adenomatóidea cística • Sequestração broncopulmonar • Hérnia diafragmática • Quilotórax Anomalias esqueléticas • Acondroplasia • Osteogênese imperfeita • Displasia tanotofórica Anomalias neuromusculares • Distrofia neurotônica • Artrogripose Tumores fetais • Higroma cístico • Teratoma cervical • Teratoma sacrococcígeo Aneuploidias • Trissomias 18 e 21 • Turner Patologia placentária • Corioangioma • Placenta circunvalada
■ Quadro clínico. Diagnóstico Distingue-se forma aguda de crônica. A forma aguda é rara (5%) e precoce, característica do segundo trimestre. O aumento
volumétrico, de instalação rápida, agrava-se dia a dia, alcançando, após poucas semanas, volume considerável (3, 4, 5 ℓ ou mais). Os sinais são comuns às formas crônicas, mas são graves os sintomas decorrentes do súbito crescimento do útero. As condições maternas podem exigir a interrupção da gravidez ou a expulsão ocorre após amniorrexe espontânea. Provocada ou não, a interrupção, antes do termo, é o desfecho habitual, sendo considerados como exceções os casos de normalização e prosseguimento da gravidez. A forma crônica, mais frequente, inicia-se nos últimos meses. A expansão do útero é gradativa, mas pode alcançar volume considerável. O prognóstico fetal é melhor, embora ainda seja ruim. O sofrimento materno pode ser intenso, devido à pressão do útero, muito desenvolvido, sobre o diafragma, com dispneia acentuada, alentecendo a circulação venosa de retorno dos membros inferiores, provocando edema, varizes e hemorroidas, e comprimindo o sistema gastrintestinal; além disso, há dores difusas, abdominais e lombares. O aumento da matriz ocorre em ritmo variável, rápido ou lento, com surtos e períodos de estabilização ou mesmo de decréscimo; há remissões definitivas, espontâneas. O exame revela o grande volume do útero, em desproporção com a idade gestacional; há edema nas porções baixas do ventre, como em todo o crescimento desmesurado do útero, e a pele do abdome distendida, lisa e brilhante, apresenta extensas estrias. À palpação, nota-se a consistência cística e, muitas vezes, não se percebe o feto, nem mesmo a sensação de “rechaço”. A comprovação clínica de hipertonia é a palpação, mais acentuada nos polidrâmnios volumosos. O feto, quando reconhecido, é extremamente móvel, com apresentação indefinida. Os batimentos cardiofetais, rastreados pelo estetoscópio de Pinard, são surdos ou até mesmo imperceptíveis, o que se liga à massa líquida interposta. É fundamental não se precipitar afirmando a morte do concepto antes que se tenha certeza. Em geral, com o sonar-Doppler, não há dificuldades na escuta. ▶ Atividade uterina. São distintos dois tipos de polidrâmnio: os de baixa contratilidade e os de alta contratilidade (Capítulo 42). No polidrâmnio de baixa contratilidade, espera-se a atividade uterina para a idade gestacional. A hipertonia é pequena ou não ocorre, e a palpação do abdome revela a consistência normal do útero. A diminuição do volume amniótico por aspiração transabdominal de fluido normaliza o tônus e não aumenta a atividade. A resposta à perfusão de ocitocina é fisiológica. No polidrâmnio de alta contratilidade, a atividade uterina mais elevada corresponde à idade da gravidez. Há hipertonia e hipossistolia. À palpação abdominal, nota-se o útero duro e tenso. A contratilidade elevada é responsável pela antecipação do parto, mas trata-se do amadurecimento do corpo e, em particular, do colo, relativamente lento, pois diminui a eficiência das contrações. A redução do volume amniótico, por amniocentese transabdominal, faz descer o tônus e eleva a intensidade das contrações, acelerando a transformação da contratilidade de tipo pré-parto em tipo parto; iniciado o trabalho, ele é acelerado. Esses casos não respondem à perfusão de ocitocina. ▶ Ultrassonografia. Confirma o diagnóstico e é indispensável para reconhecer a
gemelidade e revelar algumas das anomalias congênitas frequentemente associadas. Quando a ultrassonografia mostra bolsão de líquido amniótico > 8 cm no seu diâmetro vertical, confirma-se o diagnóstico de polidramnia (Figura 25.2).
Figura 25.2 ■ Polidramnia: líquido amniótico abundante entre as partes fetais, feto com movimentos amplos e irrestritos; maior bolsão vertical (MBV) > 8 cm.
■ Prognóstico O prognóstico materno é bom, apenas agravado por algumas complicações da gravidez e do parto. O mesmo não ocorre com o feto: são muito frequentes as malformações, a prematuridade e as lesões anóxicas e traumáticas. A mortalidade perinatal ocorre em aproximadamente 50% dos casos. Nas formas agudas, a interrupção é a menstruação, e como o episódio é característico do segundo trimestre, é comum a perda do feto nesse período. Observam-se as seguintes complicações da gravidez e do parto: • O parto pré-termo é o desfecho de quase todas as formas agudas e é muito frequente também nas crônicas • Nas formas agudas, as insuficiências cardíaca e renal são características. A oportuna interrupção provocada da gravidez evita estas ocorrências • A ocorrência de diabetes é comum • O parto prolongado é frequente, consequência da hipertonia e da hipossistolia. A normalização do volume amniótico, pela aspiração transabdominal e pela amniotomia, corrige a discinesia • A amniorrexe espontânea ou artificial abrevia o parto, mas é acompanhada de grande incidência de prolapso funicular; o deflúvio rápido favorece também as apresentações distócicas • A gemelidade e a anencefalia complicam igualmente o parto • Há relatos de choque, atribuídos à descompressão súbita após amniorrexe ou à rápida aspiração subsecutiva à paracentese. Alguns casos de descolamento prematuro de placenta normalmente inserida estariam relacionados com o mesmo motivo
• Foram observadas hemorragias no pós-parto, devido à atonia por sobredistensão. Com relação ao feto, pode-se observar: • Alta incidência de prematuridade • Lesões anóxicas e traumáticas, em consequência de hipertonia, parto prolongado, prolapso do cordão, manobras e operações decorrentes desse prolapso, gemelidade e apresentações anômalas • Incidência de malformações congênitas em 60% dos casos; a anomalia mais comum é a anencefalia e muitas outras já foram enumeradas.
■ Tratamento No feto normal (à ultrassonografia e ao cariótipo), não havendo evidência de malformação, a conduta é procurar prolongar a gravidez, aliviando, simultaneamente, os sintomas decorrentes do excessivo volume amniótico. As duas indicações se superpõem, pois a sobredistensão é responsável por maior amadurecimento da cinética uterina. Na forma aguda, clinicamente, dominam os sintomas decorrentes do aumento rápido de volume da matriz. As condições maternas se agravam e exigem, muitas vezes, o esvaziamento do excesso de líquido, que pode ser obtido por amniocentese transabdominal, seguida de aspiração; trata-se, teoricamente, de um procedimento conservador. O volume amniótico volta rapidamente à quantidade primitiva, renovando-se a punção; por outro lado, elevada a contratilidade uterina, a expulsão do feto costuma ser o fim do polidrâmnio agudo. Na forma crônica, o prognóstico é reservado, mas não são poucas as possibilidades de a gravidez alcançar o termo ou suas proximidades. Entre 24 e 34 semanas de gravidez, diante da possibilidade do parto pré-termo, o uso de corticoide está indicado. No feto malformado e/ou cariótipo anormal, o reconhecimento de malformação torna inútil o prosseguimento da gravidez, e é autorizada a interrupção. A indução será realizada com perfusão de ocitocina e com amniotomia; também é útil o misoprostol vaginal. ▶ Amniocentese transabdominal. O procedimento foi descrito no Capítulo 6. A amniocentese para aspiração de grande quantidade de líquido será feita com agulha de grosso calibre (18 G), de modo a possibilitar a colocação de cateter de polietileno. A aspiração deve ser lenta, durando algumas horas para a retirada de 1.000 a 1.500 mℓ. O esvaziamento rápido pode propiciar fenômenos de descompressão e, certamente, o aumento da atividade uterina. Recomenda-se a administração simultânea de tocolíticos. A amniocentese pode ser repetida uma ou mais vezes. Os cuidados de assepsia e de antissepsia devem ser redobrados e completados pela administração de antibiótico de largo espectro e de imunoglobulina anti-Rh, nas pacientes Rh-negativo, não imunizadas. A amniocentese tem por indicação:
•
Diminuir o desconforto da paciente e atender à sintomatologia grave nos polidrâmnios muito caudalosos
• Favorecer a evolução da gravidez • Acelerar a transformação da contratilidade uterina na fase de pré-parto ou, se iniciado o parto, encurtá-lo. ▶ Indometacina. O fármaco é capaz de normalizar o volume do líquido amniótico em casos de polidramnia, de acordo com a capacidade de reduzir o fluxo sanguíneo renal e a diurese fetal. Seu emprego deve ser limitado a 34 semanas de gravidez, visto que a indometacina pode fechar, posteriormente, o canal arterial. A dose recomendada é 1 comprimido (25 mg), 4 vezes/dia. Iniciado o parto (ou antes de induzi-lo), recomenda-se normalizar o volume amniótico por aspiração transabdominal, que apresenta, nessa indicação, vantagens inequívocas: diminui a hipertonia e melhora a oxigenação do feto; corrige a hipossistolia, aumentando a atividade uterina; e evita, no caso da amniorrexe, o deflúvio repentino de grande massa de líquido, ensejando apresentações anômalas e o prolapso do cordão umbilical. A amniotomia realizada após normalização do volume amniótico não apresenta peculiaridades; quando executada antes, o ovo deve ser aberto delicadamente, estando a paciente com as nádegas elevadas para evitar o prolapso funicular; os dedos serão mantidos até que, lentamente, escoe o excesso de fluido. A paciente será atentamente observada durante o secundamento e o 4o período, pois são frequentes as hemorragias. É necessário utilizar profilaticamente 10 UI de ocitocina em 500 mℓ de solução glicosada. O pediatra terá ciência das condições obstétricas, com atenção à possibilidade de malformações do tubo digestivo.
B. Oligoidramnia A diminuição significativa do volume de líquido amniótico sempre trará consequências ominosas ao feto. A oligoidramnia é responsável pela complicação de 4% de todas as gestações. A quantidade adequada do líquido amniótico é indispensável para o desenvolvimento do pulmão fetal, possibilita o livre movimento do concepto, e ainda atua como barreira contra a infecção. Embora o diagnóstico de oligoidramnia seja suspeitado clinicamente, na maioria das vezes (útero pequeno para a idade gestacional), sua confirmação é feita à ultrassonografia, que mostra o maior bolsão de líquido amniótico < 2 cm no seu diâmetro vertical. Outros critérios são: ausência óbvia de líquido amniótico; pequena interface líquido/feto; aconchegamento exagerado das pequenas partes fetais. Ao tornar-se extremamente escasso (300 a 400 mℓ), o líquido amniótico fica espesso, viscoso e turvo. Nos casos mais acentuados, fala-se em adramnia (Figura 25.3). Condições fetais graves estão associadas à oligoidramnia: doença renal, crescimento intrauterino restrito (CIR) (Capítulo 29), amniorrexe prematura (Capítulo 26) e pós-maturidade
(Capítulo 30). No 2o trimestre, 50% dos casos de oligoidramnia são por amniorrexe prematura; 15%, por malformações fetais; 5%, por anormalidades da gravidez gemelar; 7%, por descolamento prematuro da placenta; 18%, por CIR; e 5%, de causa idiopática.
Figura 25.3 ■ Adramnia: não visualização de líquido amniótico entre as partes fetais, o cordão umbilical e a placenta.
▶ Doença renal fetal. Quando há evidências sonográficas de oligoidramnia e a bexiga fetal não é identificada, é necessário investigar os rins do feto. Somente o defeito renal bilateral determina oligoidramnia: agenesia renal bilateral, displasia multicística e rim policístico infantil. A doença renal obstrutiva baixa (valvular ou uretral) é outra causa impeditiva e única com megabexiga, além da oligoidramnia. ▶ Crescimento intrauterino restrito. No CIR, a hipoxia crônica condiciona redistribuição do débito cardíaco com consequente diminuição do fluxo sanguíneo renal e do volume urinário fetal. ▶ Gravidez gemelar. A oligoidramnia está associada à síndrome de transfusão gêmelogemelar (STGG), na placentação monocoriônica ou ao CIR de um dos gêmeos, na variedade dicoriônica. O âmnio nodoso é outra condição patológica associada à oligoidramnia. O parto, na oligoidramnia, costuma ser antecipado e transcorre com anomalias contraturais. O pequeno escoamento de líquido configura o chamado “parto seco”. ▶ Amnioinfusão. Trata-se da infusão de solução fisiológica na câmara amniótica, monitorada pela ultrassonografia. O líquido será injetado em quantidade suficiente para melhorar a visão ultrassonográfica, propiciar a obtenção de amostra para investigação citogenética e confirmar o diagnóstico de malformação do feto.
■ Prognóstico Independentemente da causa da oligoidramnia, as possíveis complicações fetais incluem: morte do feto, hipoplasia pulmonar (antes de 24 semanas), diversas anormalidades esqueléticas e faciais (síndrome de Potter). Oligoidramnia acentuada no 2o trimestre de gravidez é sinal de
péssimo prognóstico, com morte fetal in utero ou no período neonatal por hipoplasia pulmonar. Em casos de ausência de doença materna e resultados normais de testes de vitalidade fetal (perfil biofísico, Doppler), a oligoidramnia, em geral, está associada a doenças renais do feto.
■ Pontos-chave A ultrassonografia é fundamental para o diagnóstico da polidramnia e da oligoidramnia, por meio da mensuração do diâmetro vertical do bolsão do líquido amniótico, respectivamente, > 8 cm e < 2 cm. A incidência de malformações fetais na polidramnia é de cerca de 60%. Outras anomalias fetais são as infecções congênitas e as aneuploidias (trissomia 18, 21 e Turner). Dentre as causas maternas de polidramnia, sobressaem diabetes, doença hemolítica perinatal (DHPN) e gemelidade. A forma aguda de polidramnia não é comum (5%) e pode comprometer o estado geral materno, exigindo a interrupção da gravidez. Com relação à atividade uterina, o polidrâmnio pode ser de alta ou de baixa contratilidade; se alta, há hipertonia e hipossistolia e a amniodrenagem pode desencadear o trabalho de parto e o útero não responde à ocitocina. A mortalidade perinatal na polidramnia ocorre em aproximadamente 50% dos casos, sendo provocada especialmente pela prematuridade e pelas malformações fetais. Na polidramnia, a normalização do volume de líquido amniótico pode ser obtida com a amniodrenagem ou com a administração de indometacina. A oligoidramnia acentuada e precoce, de 2o trimestre, é de péssimo prognóstico fetal, com morte in utero ou no período neonatal, por hipoplasia pulmonar. Está associada a amniorrexe prematura, anomalias renais do feto ou insuficiência placentária/CIR. Na oligoidramnia, a amnioinfusão com salina pode estar indicada para melhorar a visão ultrassonográfica, propiciando a obtenção de amostra para investigação citogenética (cordocentese), ou para confirmar o diagnóstico da malformação fetal. Assim, é muito frequente a investigação do cariótipo fetal tanto na polidramnia como na oligoidramnia.
■ Etiologia ■ História natural ■ Diagnóstico ■ Tratamento
A ruptura prematura das membranas (RPM) é a amniorrexe espontânea que ocorre antes do início do parto. No termo, 8% das gestantes apresentam RPM. A ruptura prematura das membranas prétermo (RPMP), definida como a amniorrexe ocorrida antes de 37 semanas, incide em 3% de todas as gestações e é responsável por aproximadamente 30% dos partos pré-termo [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2013]. A RPM é caracterizada, em geral, por breve período de latência, tempo transcorrido entre a ruptura e o início do parto. A morbidade materna está associada à infecção intrauterina (corioamnionite) e ao descolamento prematuro da placenta (DPP). A morbimortalidade perinatal é consequência de infecção (sepse neonatal), sofrimento fetal (compressão do cordão umbilical pelo oligoidrâmnio, DPP) e prematuridade – síndrome de angústia respiratória (SAR), enterocolite necrotizante e hemorragia intraventricular.
■ Etiologia A RPM tem sido tradicionalmente atribuída ao estresse físico que produz estiramento das membranas, como, por exemplo, o associado a polidrâmnio, gravidez gemelar e contrações uterinas sintomáticas. Todavia, evidências recentes sugerem que a ruptura das membranas está também relacionada a processos bioquímicos, incluindo a disrupção do colágeno dentro da matriz extracelular do âmnio e do cório. A infecção intrauterina (corioamnionite) tem papel relevante em cerca de 50% dos casos de RPMP/parto pré-termo, especialmente em idades gestacionais precoces, atuando por meio de diversos mecanismos, como, por exemplo, citocinas próinflamatórias (TNFα, IL-1, IL-6), metaloproteinases da matriz (MMP) e produção de prostaglandinas (PGE2, PGF2α) pelas membranas fetais. A síndrome de Ehlers-Danlos, distúrbio hereditário do tecido conjuntivo, é caracterizada por vários defeitos na estrutura da síntese do colágeno e constitui exemplo drástico de doença genética associada à RPM. Outros fatores de risco aventados são o sangramento vaginal no 2o e no 3o trimestre, tabagismo, uso de drogas ilícitas, baixo nível socioeconômico, conização ou circlagem cervical, colo curto (< 25 mm) no 2o trimestre e amniocentese. Na maioria dos casos não se identifica o fator etiológico da RPM. O fator de risco mais importante é a história de ruptura em gravidez anterior, com taxa de recorrência de aproximadamente 15 a 30%.
■ História natural ▶ Ruptura prematura das membranas a termo. A RPM a termo ocorre em 8% das gestações, e é geralmente seguida pelo início imediato do parto, 50% dentro de 5 h e 95% após 28 h (ACOG, 2013). A principal consequência da RPM a termo é a infecção intrauterina, que aumenta
com a duração entre o tempo de ruptura e o início do parto (> 18 h). ▶ Ruptura prematura das membranas prétermo (< 37 semanas). A RPMP ocorre em 3% das gestações e, no mínimo, em 50% dos casos a gestante entra em trabalho de parto no prazo de 1 semana; quanto menor é a idade gestacional, maior é o tempo de latência (ACOG, 2013). Com o tratamento expectante, 2,8 a 13% das gestantes podem parar de perder líquido, restaurando o volume do líquido amniótico (LA) à normalidade, caracterizando um prognóstico favorável. A infecção intrauterina clínica ocorre em 15 a 25% dos casos e a infecção pós-parto em 15 a 20%; a incidência da infecção é maior em idades mais precoces da ruptura; o DPP incide em 2 a 5% dessas gestações. Embora seja evidente o risco de infecção fetal pela corioamnionite, a complicação mais importante para o feto é a prematuridade – SAR, enterocolite necrotizante, hemorragia intraventricular e paralisia cerebral. Após a RPMP, a infecção e os acidentes do cordão umbilical são responsáveis por 1 a 2% da morte antenatal. ▶ Ruptura prematura das membranas pré-viável (< 24 semanas). A RPM préviável (< 24 semanas) incide em menos de 1% das gestações (ACOG, 2013). Cerca de 40 a 50% das grávidas com RPM pré-viável dão à luz na primeira semana após a ruptura e 70 a 80% dentro de 2 a 5 semanas. Com o tratamento expectante, a taxa de sobrevida fetal com a ruptura após 22 semanas é de aproximadamente 55%, e antes de 22 semanas de apenas 15%. A incidência de hipoplasia pulmonar após a RPMP de < 24 semanas é de 10 a 20%. A hipoplasia pulmonar está associada a alta mortalidade, mas é raramente letal quando a ruptura ocorre com 23 a 24 semanas de gestação, provavelmente porque o crescimento alveolar adequado para suportar o desenvolvimento pós-natal já ocorreu. Rupturas em idades gestacionais precoces e com pouco volume residual de LA são determinantes primários de hipoplasia pulmonar. A oligoidramnia acentuada e precoce é responsável ainda pela síndrome de Potter: fácies de Potter (implantação baixa das orelhas e prega nos epicantos), contratura dos membros e hipoplasia pulmonar. As complicações maternas significantes são: infecção intramniótica, endometrite, DPP e retenção placentária. A sepse tem sido observada em aproximadamente 1% dos casos, por vezes levando ao óbito materno (ACOG, 2013). ▶ Vazamento de líquido após amniocentese. O vazamento de LA após amniocentese, em geral realizada para estudo genético no diagnóstico prénatal, ocorre em 1% dos casos e o de perda fetal em < 0,5%. Na maioria das vezes, há resselagem das membranas, com normalização do volume do LA em 70% dos casos dentro de 1 mês da amniocentese.
■ Diagnóstico ▶ História e exame clínico. Em aproximadamente 90% dos casos, o diagnóstico da RPM é feito pela história da paciente, que revela deflúvio abundante de líquido pela vagina. O exame com espéculo estéril confirma o diagnóstico ao visualizar líquido escorrendo pelo orifício cervical. O toque vaginal aumenta o risco de infecção e nada acrescenta ao diagnóstico; deve ser
evitado, a menos que a paciente esteja em pleno trabalho de parto. ▶ Testes laboratoriais. Recomendam-se dois testes simples, de leitura imediata, no líquido vaginal coletado de preferência no fundo de saco posterior: papel de nitrazina (para a determinação do pH) e cristalização. Enquanto o pH da secreção vaginal é ácido e varia entre 4,5 e 6,0, o do LA é alcalino e se situa entre 7,1 e 7,3 (ACOG, 2013). Na ruptura, o papel de nitrazina assume a coloração azul (pH > 6,5). Informação adicional pode ser obtida pela coleta de líquido vaginal, secado por 10 min em lâmina e observado ao microscópio; arborização (cristalização) define a amniorrexe. Recentemente incorporado à prática obstétrica, o AmniSure® é um teste rápido, imunocromatográfico, que detecta a proteína microglobulinaalfa-1 placentária (PAMG-1) no meio vaginal (MEUFRJ, 2013). O exame é simples e sua interpretação pode ser verificada na Figura 26.1. ▶ Ultrassonografia. A ultrassonografia é utilíssima para confirmar a oligoidramnia (maior bolsão de líquido amniótico < 2 cm), mas não é diagnóstico da ruptura – cerca de 50% das amniorrexes ocorrem sem oligoidramnia. Do mesmo modo, o diagnóstico pela ultrassonografia (e pela ressonância magnética) de hipoplasia pulmonar nas RPMP de < 24 semanas não tem sido efetivo. Afastadas as malformações urinárias fetais (ultrassonografia morfológica) e a insuficiência placentária (Doppler umbilical), a hipótese de RPM é muito sugestiva para explicar a oligoidramnia.
Figura 26.1 ■ Interpretação do teste AmniSure®. RPM, ruptura prematura das membranas.
▶ Dificuldades no diagnóstico. Na fissura alta das membranas, o escoamento é habitualmente escasso e persistente. A integridade do polo inferior do ovo possibilitará, no parto, a formação da bolsa das águas e o falso diagnóstico de não ter havido amniorrexe (Figura 26.2).
Figura 26.2 ■ A. Ruptura habitual das membranas. B. Fissura alta das membranas.
■ Tratamento ■ Medidas gerais O tratamento da RPM está fundamentalmente calcado na idade da gravidez na qual ocorreu o acidente e na existência de complicações, tais como infecção, DPP, sofrimento fetal e início do parto. Em qualquer idade gestacional, a evidência de trabalho de parto, infecção intrauterina, DPP ou de comprometimento da vitalidade fetal é indicação para a pronta interrupção da gravidez. ▶ Hospitalização. O tratamento ambulatorial não é recomendado em pacientes com RPMP e feto viável, tornando obrigatória a hospitalização (ACOG, 2013). ▶ Monitoramento eletrônico. Pacientes com RPMP devem ser submetidas ao monitoramento eletrônico para avaliar o bem-estar fetal, especialmente a desaceleração umbilical, indicativa de compressão de cordão. ▶ Cultura de estreptococo do grupo B. A coleta de material da vagina e do reto para a cultura de estreptococo do grupo B (GBS) será indicada se o tratamento for expectante. Recomendações para a profilaxia antibiótica intraparto do GBS na vigência da RPMP podem ser vistas na Figura 26.3. O uso do antibiótico profilático na conduta expectante não exclui a profilaxia antibiótica intraparto para GBS, por ventura indicada (ACOG, 2013).
Figura 26.3 ■ Profilaxia para estreptococos β-hemolíticos em pacientes com ruptura prematura de membranas pré-termo.
No termo (≥ 37 semanas), se o intervalo entre a amniorrexe e o parto é prolongado (≥ 18 h) está também aumentado o risco de sepse neonatal precoce por GBS e indicada a profilaxia antibiótica intraparto (Centers of Disease Control and Prevention [CDC], 2010). ▶ Monitoramento da infecção. Na paciente com RPMP, a temperatura > 38°C pode indicar infecção amniótica ou corioamnionite (Figura 26.4), embora a dor à palpação uterina e a taquicardia fetal possam ser indicadores melhores, em face da possibilidade da corioamnionite subclínica. A contagem de leucócitos não é específica e a oligoidramnia (maior bolsão < 2 cm) revela antes a probabilidade de morbidade neonatal por SAR do que o risco de infecção materna e fetal. Recentemente, tem-se apontado a concentração de PCR ≥ 5 mg/ℓ (durante a admissão de gestante com RPMP após 34 semanas) como o melhor indicador de infecção neonatal precoce (Figura 26.5).
■ Corioamnionite Uma vez diagnosticada a corioamnionite, a conduta, qualquer que seja a idade gestacional, é induzir o parto e administrar antibióticos. O regime preferencial é a clindamicina, 900 mg IV, a cada 6 h, associada à gentamicina, 240 mg IV, 1/dia (Maternidade-Escola, UFRJ, 2013). A antibioticoterapia na corioamnionite deve continuar até que a paciente esteja afebril e assintomática por 24 a 48 h, após o parto. Se a paciente continuar febril, apesar do tratamento antibiótico, devem ser procuradas outras fontes de infecção: tromboflebite pélvica, infecção de parede, retenção de restos ovulares e
infecção do sistema urinário.
Figura 26.4 ■ Vias da infecção amniótica. A infecção é habitualmente ascendente (setas). Nesse caso, há prévia deciduíte e, ocasionalmente, placentite (na borda inferior do órgão). O líquido infectado acarreta amnionite no âmnio membranoso, no placentário e no funicular. Os germes contidos no líquido amniótico também infectam o tegumento e os orifícios naturais, provocando otites e conjuntivites. Ao alcançarem as vias respiratórias e os pulmões, assim como o tubo digestivo, surgem broncopneumonias, esofagites etc. (setas).
Figura 26.5 ■ Curva ROC da PCR como indicadora de infecção neonatal precoce na ruptura prematura de membranas pré-termo após 34 semanas. (Adaptada de Powski et al., 2009.)
▶ Circlagem. A RPM complica cerca de uma em cada quatro gestações com circlagem e metade após a circlagem de emergência. Não há recomendação estabelecida sobre a permanência ou a retirada da circlagem (ACOG, 2013). Se a opção for pela permanência da circlagem, não há indicação para que se prolongue o tratamento antibiótico profilático por mais de 7 dias. ▶ Herpes simples. O risco da prematuridade deve ser avaliado contra o risco da infecção neonatal (ACOG, 2013). A paciente com herpes simples na gravidez deve ser tratada com aciclovir. Se a doença estiver ativa no momento do parto, a cesárea estará indicada.
■ RPM a termo O monitoramento eletrônico deverá ser prontamente utilizado para avaliar a vitalidade fetal (ACOG, 2013). A RPM a termo é indicação para a indução do parto com ocitocina/misoprostol, nas doses habituais, para reduzir a morbidade infecciosa materna, sem elevar os riscos de cesárea ou de operatória transpélvica (Cochrane Database, 2006) (Figura 26.6). A profilaxia intraparto GBS será indicada se a cultura previamente realizada for positiva ou se houver indicadores de risco.
■ RPMP após 34 semanas À semelhança do que ocorre para a RPM a termo, o melhor tratamento para a RPMP após 34 semanas é o parto imediato (Figura 26.6).
■ RPMP entre 24 e 34 semanas Entre 24 e 34 semanas, na ausência de complicações, o melhor tratamento é o expectante com a paciente hospitalizada (Figura 26.6). A paciente deve manter o repouso relativo no leito (evitar atividade física) e pélvico (proibido o coito e o toque vaginal) e, concomitantemente, a gestante deve ser observada para a evidência de infecção, DPP, compressão do cordão umbilical, sofrimento fetal e início do parto. A avaliação fetal é feita pelo monitoramento eletrônico de seus batimentos cardíacos e pelo perfil biofísico fetal (PBF) simplificado. A frequência desses testes pode ser diária ou 2/semana, dependendo do resultado. É razoável considerar a indução do parto quando a gravidez chegar a 34 semanas.
Figura 26.6 ■ Tratamento da ruptura prematura das membranas (RPM). US, ultrassonografia; vLA, volume do líquido amniótico; oligo, oligoidramnia. (Com base no ACOG, 2013.)
▶ Antibió tico profilático. A administração de antibiótico profilático após a RPMP visa à postergação do parto e à redução da morbidade neonatal. O retardo esperado no parto fornece tempo suficiente para que o corticoide exerça os seus efeitos. Prefere-se a ampicilina IV, 1 g de 6/6 h por 48 h, associada à azitromicina, 1 g VO, dose única (trata micoplasma e clamídia, causas de corioamnionite e de pneumonite e conjuntivite neonatal). Depois, amoxicilina, 500 mg VO, de 8/8 h, por 5 dias (Maternidade-Escola, UFRJ, 2013). ▶ Corticoide. Um único curso de corticoide é recomendado para gestantes com RPMP entre 24 e 34 semanas com risco de parto iminente (ACOG, 2013). Cursos múltiplos de corticoide ou um de resgate ainda mostram evidências insuficientes de benefícios. ▶ Tocólise. Não há indicação de tocólise terapêutica no tratamento expectante da RPMP (ACOG, 2013). ▶ Neuroproteção fetal. Mulheres com RPMP antes de 32 semanas e risco de parto iminente são candidatas ao tratamento com sulfato de magnésio para a neuroproteção fetal (ACOG, 2013).
■ RPMP pré-viável (< 24 semanas) As pacientes com RPMP antes da viabilidade fetal devem ser aconselhadas em relação aos riscos e benefícios do tratamento expectante versus o parto imediato (ACOG, 2013). O tratamento expectante ambulatorial pode ser tentado com monitoramento da infecção, DPP e parto, e ultrassonografia seriada para avaliar a oligoidramnia, na esperança da resselagem das membranas e restauração do volume amniótico, o que só parece ocorrer em 8% dos casos. Se houver oligoidramnia persistente, a interrupção da gravidez pode ser oferecida à paciente (Figura 26.6).
■ Vazamento de líquido amniótico após amniocentese O tratamento expectante ambulatorial é o recomendado, com vigilância atenta para a infecção e a interrupção da gravidez (ACOG, 2013). Estão indicados exames periódicos de ultrassonografia para avaliar a normalização do volume do LA.
■ Conduta em próxima gravidez Para reduzir o risco de recorrência, a suplementação com progesterona vaginal, com início entre 16 e 24 semanas, deve ser oferecida a mulheres com história de RPM (ACOG, 2013). Mulheres com história de ruptura e colo curto (< 25 mm) antes de 24 semanas são candidatas à circlagem cervical.
■ Pontos-chave A ruptura prematura das membranas (RPM) é a amniorrexe espontânea que ocorre antes do parto; antes de 37 semanas configura a ruptura prematura das membranas pré-termo (RPMP), sendo responsável por cerca de 30% dos partos pré-termo. Habitualmente, em 90% das vezes, o diagnóstico é clínico, muito embora possa ser feito hoje com apuro por swab vaginal (AmniSure®). O toque vaginal está formalmente contraindicado. O diagnóstico diferencial da oligoidramnia de 2o trimestre será realizado entre a RPMP, malformação renal fetal e insuficiência placentária grave. A RPM está associada à infecção da mãe (corioamnionite) e do feto, compressão do cordão umbilical e descolamento prematuro da placenta (DPP). A RPM é tipicamente caracterizada por breve período de latência (entre a ruptura e o início do parto): quanto maior a idade gestacional, menor o período de latência. O óbito neonatal está mais associado à hipoplasia pulmonar (ruptura < 24 semanas) e à prematuridade (ruptura < 34 semanas) do que à infecção. O tratamento da RPM depende fundamentalmente da idade gestacional, existência de corioamnionite, DPP, comprometimento fetal e início do parto. Na vigência de complicações ou de ruptura após 34 semanas, o tratamento é a indução do parto; entre 24 e 34 semanas o tratamento é expectante; e com < 24 semanas é apropriado o aconselhamento com possível interrupção da gravidez. Eis as medidas pertinentes no tratamento expectante (24 a 34 semanas): antibiótico profilático, corticoide, repouso relativo e pélvico, neuroproteção fetal com sulfato de magnésio, monitoramento de parto, infecção, sangramento, vitalidade fetal e GBS. Em geral, no tratamento expectante com feto viável, aconselha-se a hospitalização; a segurança do tratamento ambulatorial ainda não foi estabelecida.
■ Incidência. Etiologia ■ Classificação ■ Diagnóstico da gemelidade ■ Ultrassonografia na gravidez gemelar ■ Complicações da gravidez gemelar ■ Prognóstico fetal ■ Crescimento fetal discordante ■ Malformação fetal discordante ■ Morte unifetal ■ Gemelidade monocoriônica ■ Gemelidade monoamniótica ■ Gemelidade imperfeita ■ Gemelidade multifetal ■ Síndrome de transfusão gêmelo-gemelar ■ Sequência de perfusão arterial reversa do gemelar
■ Sequência anemia-policitemia do gemelar ■ Parto gemelar
A gravidez gemelar é definida pela presença simultânea de 2 ou mais gestações, dentro do útero ou fora dele, podendo ser classificada em dupla, tripla e múltipla de elevada ordem: quádrupla, quíntupla, sêxtupla etc. [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2014]. Cada produto da gravidez gemelar é considerado um gêmeo. As principais complicações encontradas nesse tipo de gravidez são o parto pré-termo e a elevada morbidade e mortalidade fetal e neonatal. Há risco de natimortalidade aumentado em 5 vezes e de mortalidade neonatal em 7 vezes, principalmente quando associada a complicações da prematuridade. Comparadas a mulheres com gravidez única, aquelas com gravidez gemelar têm risco 6 vezes maior de parto pré-termo e 13 vezes maior de dar à luz antes de 32 semanas da gestação. O risco de paralisia cerebral é maior nos nascidos antes de 32 semanas do que naqueles de mesma idade gestacional, mas provenientes de gestação única. A morbidade e a mortalidade materna também estão elevadas na gravidez gemelar: hiperêmese, diabetes melito gestacional, hipertensão, anemia, hemorragia, parto cesáreo e depressão pós-parto. A pré-eclâmpsia na gravidez gemelar apresenta risco relativo 2,6 vezes maior do que na gravidez única e a doença tende a ocorrer mais cedo. A probabilidade de gestação gemelar aumenta com a idade materna. Assim, eleva-se, aproximadamente, de 16:1.000 nascidos vivos em mulheres jovens de 20 anos, para 70:1.000 nascidos vivos em mulheres de 40 anos. Os maiores contribuintes, todavia, para a gravidez gemelar são a reprodução assistida, a hiperestimulação ovariana nos ciclos induzidos com gonadotrofinas e a fertilização in vitro (FIV). Em 2010, nos Estados Unidos, 26% das gestações após FIV foram gemelares e 1,3% foram multifetais de elevada ordem.
■ Incidência. Etiologia Os gêmeos dizigóticos (DZ) originam-se a partir de 2 óvulos na ovulação. A tendência para liberar mais de 1 óvulo espontaneamente pode ser familiar ou racial e aumenta com a idade. Nas técnicas de fertilização assistida, 2 ou mais embriões fertilizados em laboratório podem ser colocados no útero. Os gêmeos DZ têm incidência média de 1:80 gestações, embora seja variável de acordo com os países. A incidência mais elevada é a registrada na Nigéria, 45:1.000 nascimentos, e a mais baixa, na população da Ásia, 6:1.000 nascimentos. Nos Estados Unidos é intermediária, de 12:1.000 nascimentos. Ao contrário dos DZ, os gêmeos monozigóticos (MZ), ou idênticos, têm taxa mais ou menos constante de 1:250 nascimentos, que não está influenciada por raça, família ou idade. Evidências recentes sugerem aumento discreto dos MZ após FIV.
■ Classificação A classificação da gravidez gemelar baseia-se na: • Quantidade de fetos: dupla, tripla, quádrupla etc. • Quantidade de ovos fertilizados: zigotia • Quantidade de placentas: corionia • Quantidade de cavidades amnióticas: amnionia.
■ Zigotia Em relação à quantidade de ovos fertilizados, os gêmeos podem ser MZ ou DZ (Figura 27.1). Os MZ, ou gêmeos verdadeiros, uniovulares ou univitelinos, cerca de 1/3 dos gemelares, resultam da fertilização de um óvulo por um único espermatozoide. Os MZ podem corresponder a qualquer tipo de placentação, monocoriônica (MC) ou dicoriônica (DC). Os gêmeos MZ têm o mesmo genótipo: o sexo é obrigatoriamente igual, como também são os grupos sanguíneos, as características físicas e as tendências patológicas. Os gêmeos DZ, ao contrário, são o resultado de 2 ovos fertilizados por 2 espermatozoides e representam 2/3 dos gemelares. São também denominados fraternos, biovulares ou bivitelinos. A placentação é obrigatoriamente DC, embora a placenta possa estar fusionada.
■ Corionia/amnionia (placentação) No que se refere ao tipo de placentação (corionia ou corionicidade) os gêmeos DZ são sempre DC: 2 placentas, embora possam estar fusionadas, uma só massa placentária (Figura 27.1). A placentação nos MZ pode ser de qualquer tipo e depende da época, em relação à fertilização, na qual ocorre a divisão do zigoto (Figura 27.1). Quando a divisão ocorre muito precocemente, durante os 3 primeiros dias após a fertilização, pela divisão da mórula, formam-se 2 blastocistos e os gêmeos serão DC, diamnióticos (DA) (30% dos MZ). Quando a divisão ocorre entre o 3o e o 8o dia após a fertilização, por divisão do embrioblasto, antes da formação do âmnio, o resultado será a placentação MCDA (70% dos MZ). Se a divisão sucede entre o 8o e o 13o dia após a fertilização, por divisão completa do disco embrionário, depois da formação do âmnio, a placentação é MC monoamniótica (MA) (1% dos MZ). Quando a divisão ocorre após o 13o dia da fertilização, a separação do disco embrionário será incompleta, resultando em gemelidade imperfeita (rara); a placentação será obrigatoriamente MCMA.
Figura 27.1 ■ A. Na gemelidade dizigótica (2 óvulos fertilizados por 2 espermatozoides), a placentação é sempre dicoriônica diamniótica, muito embora as placentas possam estar fusionadas. B. Na gemelidade monozigótica (1 óvulo fertilizado por 2 espermatozoides) pode haver qualquer tipo de placentação, dependendo da época da divisão do zigoto. Entre o 1o e o 3o dia, a gemelidade é dicoriônica diamniótica; entre o 4o e o 8o dia, monocoriônica diamniótica; entre o 8o e o 12o dia, monocoriônica monoamniótica; e entre os dias 13 e 15, a gemelidade é imperfeita, com os gêmeos acolados. C. História natural da gemelidade.
■ Diagnóstico da gemelidade Suspeita-se de gravidez gemelar quando o tamanho uterino está muito aumentado, em discordância com a idade da gestação. O diagnóstico clínico da gemelidade está superado em face da precocidade e da certeza da ultrassonografia. ▶ Ultrassonografia. Ainda é singela a distinção entre a presença de 1 ou mais sacos gestacionais (SG) (Figura 27.2). Os ecos fetais também são identificados, assim como os batimentos cardíacos. É trivial a associação de ovo anembrionado coexistindo com gestação normal (gêmeo evanescente). Apesar da maior frequência de sangramento no 1o trimestre, o prognóstico é bom.
Em vista disso, embora a incidência clínica de gravidez gemelar ao momento do parto seja de 1:90, a frequência real, obtida pela ultrassonografia no início da gravidez, parece ser de 1:60. Aproximadamente 14% das gestações gemelares são reduzidas espontaneamente a gestação única até o final do 1o trimestre. É estimado que apenas 50% das gestações gemelares diagnosticadas no 1o trimestre terminem em parto gemelar.
■ Diagnóstico da zigotia O diagnóstico da zigotia tem muito menos importância do que o da corionia. Em 35% dos gemelares, a zigotia pode ser definida como DZ por achado de sexo discordante e placenta DC. Em 20% dos casos, é certa a MZ pelo achado de placenta MC. Por outro lado, em 45% dos gemelares, a zigotia é indeterminada, pois embora o sexo seja concordante, a placenta é DC (Figura 27.3).
■ Diagnóstico da corionia/amnionia Será amplamente discutido no item seguinte, sobre ultrassonografia.
Figura 27.2 ■ Gravidez gemelar (8 semanas). Dois sacos gestacionais. VV, vesícula vitelina; I, feto; II, feto. (Adaptada de Montenegro; Rezende, 2001.)
Figura 27.3 ■ Determinação da zigotia.
■ Ultrassonografia na gravidez gemelar ■ Diretrizes da Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (2011) Do 1o trimestre da gravidez até o parto do 2o gemelar, a utilização da ultrassonografia no acompanhamento da gravidez gemelar é onipresente e indispensável. Entre as aplicações clínicas mais comuns estão a determinação de corioamnionicidade; a confirmação da idade da gravidez; o diagnóstico de anomalias e de complicações; o exame do colo; a avaliação do crescimento fetal e do volume do líquido amniótico (LA); a localização da placenta; e a posição fetal para a conduta no parto. Apesar da falta de evidência nível I, praticamente todos os gemelares são mais criteriosamente acompanhados pela ultrassonografia do que os fetos de gestações únicas.
■ Corioamnionicidade A fase ideal para se determinar a corioamniocidade é o 1o trimestre da gravidez. Antes de 10 semanas da gravidez há inúmeros sinais sonográficos que tornam possível a determinação da corioamnionicidade: • Número de sacos gestacionais: cada SG forma a própria placenta. Assim, a presença de 2 SG implica uma gravidez DC, enquanto SG único com 2 batimentos cardiofetais (bcf) identificados atesta gemelaridade MC • Número de cavidades amnióticas: quando os gêmeos DA são identificados antes de 10 semanas, âmnios separados e distintos podem ser vistos pela ultrassonografia transvaginal (UST). Antes de 10 semanas, os 2 âmnios separados da gravidez DA ainda não se expandiram o suficiente para entrarem em contato e criarem a membrana (ou septo) intergemelar. Os 2
âmnios são extremamente finos e delicados, mas podem ser identificados como estruturas separadas na UST • Número de vesículas vitelinas: o número de vesículas vitelinas (VV) é útil para o diagnóstico da amniocidade. Quando 2 VV são vistas, a gravidez é DA, enquanto uma única VV, na maioria dos casos, indica gêmeos MA. Uma única VV com 2 embriões obriga a um seguimento sonográfico para determinar definitivamente a amniocidade. Depois de 10 semanas, esses sinais sonográficos já não estão mais presentes: os SG já não são mais distintamente separáveis, e a membrana intergemelar está formada. Nesse estágio, novos sinais sonográficos para determinar amniocidade/corionicidade são procurados: (1) genitália fetal; (2) quantidade de placentas; (3) sinal twin peak ou lambda; e (4) características do septo intergemelar. • Discordância sexual: não é rotineiramente utilizada na ultrassonografia de 10 a 14 semanas. A discordância entre os sexos identifica a dicorionicidade; mas a concordância não a afasta • Número de placentas: duas placentas separadas, distintas, sugerem dicorionicidade, mas uma única massa placentária pode ser indicativa de 2 placentas fusionadas • Sinal twin peak ou lambda: esse sinal representa uma projeção do tecido corial placentário estendendo-se entre o septo intergemelar e representa a gemelidade DC (Figura 27.4). Também é denominado sinal lambda pela semelhança com essa letra grega. A monocorionicidade pode ser determinada pela ausência do sinal twin peak (mas também pelo sinal T) (Figura 27.4). O sinal twin peak ausente após 16 a 20 semanas não exclui a dicorionicidade, daí a importância da sua caracterização no 1o trimestre da gestação
Figura 27.4 ■ Sinal lambda (A) e sinal T (B).
• Características do septo intergemelar: o septo intergemelar da variedade dicoriônica é formado por 4 membranas, 2 âmnios e 2 córios, por certo mais ecogênico que o septo MCDA, constituído apenas por 2 âmnios. A espessura do septo intergemelar > 2 mm identifica a dicorionicidade com valor preditivo positivo de 95%, enquanto o valor preditivo positivo da espessura ≤ 2 mm é de 90%. No 2o trimestre, a quantidade de membranas pode ser contada e se houver mais de 2, a dicorionicidade é fortemente sugerida. Se não for detectado o septo intergemelar, há de se excluir a possibilidade da gravidez gemelar MCMA, que é rara. Nessa eventualidade, o sinal mais definitivo de monoamniocidade é o entrelaçamento dos cordões, mais bem identificado ao Doppler colorido. O uso da UST pode ajudar a visualizar septo muito fino despercebido na via abdominal.
■ Recomendação Todo o esforço deve ser feito para diagnosticar a corioamnionicidade na gravidez gemelar antes de 14 semanas.
■ Determinação da idade da gravidez O comprimento cabeça-nádega (CCN) no 1o trimestre e o diâmetro biparietal (DBP), no 2o
trimestre, indicam a idade da gravidez com erro de mais ou menos 7 dias, e a precisão de ambos é muito similar. No 2o trimestre ainda podem ser utilizados circunferência cefálica, circunferência abdominal (CA) e comprimento do fêmur. Na gravidez gemelar modesta, é possível ocorrer discordância de tamanho e a melhor conduta é considerar o maior dos gêmeos para efeitos de datação, pois o menor deles pode apresentar crescimento intrauterino restrito (CIR), considerando-se melhor superestimar a data do que omitir possível CIR.
■ Recomendações Embora a acurácia da estimativa da idade da gravidez no 1o e no 2o trimestre seja similar, o melhor é utilizar a 1a ultrassonografia. No 2o trimestre, a idade da gravidez deve ser determinada por uma combinação de parâmetros sonográficos. Quando houver discordância de tamanho entre os gêmeos, o melhor para efeito de datação é considerar o maior deles, evitando-se que se omita possível diagnóstico de CIR precoce.
■ Rastreamento de aneuploidias ■ Recomendação O rastreamento de aneuploidias no 1o trimestre é feito pela determinação da translucência nucal (TN).
■ Rastreamento de anomalias As anomalias congênitas na gravidez gemelar, excluídas aquelas próprias da gemelaridade, são 2 a 3 vezes mais frequentes no do que no concepto de gravidez única, particularmente no monozigótico: cardíacas, defeitos do tubo neural (DTN), gastrintestinais e defeitos da parede abdominal anterior. Existem também anomalias próprias da gravidez gemelar, como a gemelidade imperfeita ou gêmeos acolados.
■ Recomendação A melhor época para o rastreamento das anomalias fetais é entre 18 e 22 semanas da gravidez (ultrassonografia morfológica preferentemente entre 20 e 24 semanas).
■ Rastreamento do parto pré-termo O parto pré-termo é a maior causa de morbiletalidade na gravidez gemelar. O comprimento do colo > 35 mm, medido por volta de 18 a 24 semanas, é altamente indicativo
(88 a 98%) de que a gravidez alcançará 34 a 35 semanas. Em grávidas com ameaça de parto prétermo, o colo > 25 mm indica que a interrupção não ocorrerá no prazo de 1 semana; ao contrário, estando o colo ≤ 15 mm, em 44% dos casos o parto ocorre em 1 semana.
■ Recomendações Ainda não existem dados suficientes para se recomendar o exame universal do colo uterino na gravidez gemelar. Para medir o comprimento do colo uterino, deve ser utilizada a UST.
■ Avaliação do crescimento fetal O crescimento dos gêmeos no 1o e no 2o trimestre não é diferente daquele de fetos de gestações únicas. Mas a partir de 30 a 32 semanas, há alentecimento no crescimento dos gemelares. É necessário rastrear o crescimento fetal discordante que necessita de acompanhamento sonográfico intensivo para prevenir complicações fetais/neonatais.
■ Recomendações Para avaliar o crescimento de gêmeos, devem ser utilizadas curvas da gravidez única. A discordância de crescimento na gravidez gemelar é definida quando houver diferença > 20 mm na CA ou diferença > 20% no peso estimado.
■ Avaliação do bem-estar fetal ■ Recomendações A ultrassonografia seriada na gravidez gemelar MC deve ser realizada a cada 2 a 3 semanas, a partir de 16 semanas da gestação, e na DC, a cada 3 a 4 semanas, com início na ultrassonografia morfológica em 18 a 22 semanas. O acompanhamento fetal deve ser intensificado quando houver CIR em 1 dos gemelares ou crescimento discordante significativo. Quando não há complicações, o Doppler da artéria umbilical não deve ser oferecido de rotina na gravidez gemelar. O Doppler da artéria umbilical pode ser útil, caso haja CIR em um dos fetos ou crescimento discordante entre os gemelares. Para definir oligoidrâmnio ou polidrâmnio, o ultrassonografista deve utilizar o maior bolsão vertical em cada saco: < 2 cm para oligoidrâmnio e > 8 cm para polidrâmnio.
■ Complicações da gravidez gemelar Em 1990, o Institute of Medicine (IOM) dos Estados Unidos estabeleceu normas de ganho de
peso para a gestação única e a gemelar. Para a gestação gemelar, sugeriu no termo ganho de peso de 16 a 20 kg, logo modificado por pesquisadores que ajustaram essa recomendação para 12 a 20 kg. A gemelidade está associada a inúmeras complicações maternas e fetais. Registra-se a maior incidência de: • Êmese e hiperêmese gravídica • Dispneia • Edema suprapúbico e dos membros inferiores • Varizes nas pernas e na vulva • Estrias gravídicas • Abortamento • Pré-eclâmpsia (gêmeos: aumento de 3 vezes; múltiplos: aumento de 9 vezes) • Polidrâmnio (aumento de 10 vezes, agravando os fenômenos compressivos e aumentando a incidência de parto pré-termo) • Parto pré-termo (gêmeos: 50%; múltiplos: quase universal) • Placenta prévia (por ser maior a área placentária, é dupla a incidência) • Hemorragia pós-parto • Doença tromboembólica venosa (DTV) • Recém-nascido de baixo peso (média de peso em gêmeos: 2.500 g; trigêmeos: 2.000 g; quadrigêmeos: 1.500 g) • CIR (aumento de 2 vezes) • Anomalias congênitas (especialmente na variedade MC).
■ Prognóstico fetal A taxa de morbiletalidade fetal na gestação MC antes de 24 semanas da gravidez é cerca de 9 vezes maior do que na DC, e 3 vezes maior após 24 semanas, em decorrência, principalmente, da síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG) e do crescimento fetal discordante.
■ Crescimento fetal discordante O crescimento fetal na gestação gemelar é paralelo com o da gravidez única até 32 semanas; depois, a taxa de crescimento é menor. A taxa de crescimento fetal discordante é de 16%. O diagnóstico da discordância fetal é fundamentado na diferença entre as CA > 20 cm ou entre os pesos fetais estimados > 20%. Quando o crescimento fetal discordante é diagnosticado, deve-se considerar a possibilidade de aneuploidia, anomalia congênita ou síndrome viral estar afetando apenas um feto. Na variedade MC, o crescimento fetal discordante deve-se ao compartilhamento placentário desigual.
Para se identificar o crescimento fetal discordante na placenta MC, aconselha-se o rastreamento a cada 2 semanas (a partir de 16 semanas) e, na DC, a cada 4 semanas (a partir de 24 semanas). Na variedade MA, a ultrassonografia será ainda mais frequente, semanal após 16 semanas. Confirmada a discordância, a avaliação fetal é feita pelo Doppler da artéria umbilical (Figura 27.5). A interrupção da gravidez no crescimento fetal discordante é feita habitualmente com 32 a 34 semanas. Quando o feto comprometido apresenta diástole zero/reversa, parada de crescimento, anúria/anidramnia, antes de 26 semanas, está indicada a redução seletiva (coagulação bipolar).
■ Malformação fetal discordante Na gravidez gemelar, a malformação discordante tem conduta que objetiva minimizar a probabilidade de morte do gêmeo normal e prevenir o parto pré-termo no caso dos anencéfalos. Na gemelidade DC, o feticídio terapêutico é feito com injeção intracardíaca de KCl. Na MC, o feticídio não pode ser feito com KCl porque a substância entra na circulação do feto normal, devendo ser realizada coagulação bipolar do cordão guiada por ultrassonografia.
Figura 27.5 ■ Conduta no crescimento fetal discordante.
Na gravidez DC, o risco de abortamento após o feticídio terapêutico é de 5% se o procedimento for realizado antes de 16 semanas, e de 15% após essa época. Na variedade MC, a taxa de sobrevida perinatal no cogêmeo é maior quando o feticídio seletivo é realizado após 18 semanas da gravidez.
Em casos de gemelidade discordante para anencefalia, na variedade DC, o polidrâmnio complica 55% dos casos, podendo-se realizar a amniodrenagem seriada.
■ Diagnóstico pré-natal As chances de uma mulher de 32 anos com gestação gemelar e zigotia desconhecida ter ao menos um bebê com síndrome de Down são equivalentes ao risco de uma grávida de 35 anos com gestação única. Por isso, ela deve ser referida para os testes invasivos de cariotipagem fetal. O rastreamento de aneuploidias na gravidez gemelar deve ser feito pela medida da TN, pois os testes bioquímicos não são fidedignos. Na gravidez gemelar DC, cada feto terá o seu risco individualizado; na variedade MC, afere-se o risco pelo concepto que apresentar a maior TN e, na maioria dos casos, quando presente aneuploidia, ambos os fetos estão afetados. A determinação do carótipo deve ser realizada por amniocentese ou biopsia de vilo corial (BVC). Na gemelidade DC há de se cariotipar ambos os fetos, o que aumenta as dificuldades e as complicações do procedimento (ACOG, 2004). Na amniocentese, tem-se proposto uma única entrada da agulha, por certo com 2 coletas. Na gemelidade MC, caso a placenta seja única e os gêmeos, MZ, a opção de escolha é a BVC, pois o cariótipo único representa ambos os fetos.
■ Morte unifetal A morte unifetal até o fim do 1o trimestre está associada à completa reabsorção do ovo, não havendo, no parto, qualquer evidência de gravidez gemelar. Se o óbito fetal for mais tardio, mas ainda longe do termo, a gravidez pode continuar e, no parto, o feto morto será facilmente identificado juntamente com a placenta e as membranas (fetus compressus ou papyraceus). A morte unifetal ocorre 2 vezes mais na variedade MC e na STGG. Na gravidez DC, a morte unifetal representa risco para o feto remanescente, principalmente quando relacionada com o parto pré-termo, e decorre da liberação de citocinas e de prostaglandinas pela placenta em autólise. Na variedade MC, em virtude das comunicações vasculares placentárias entre os gêmeos, com a morte de um dos fetos, o cogêmeo vivo sofre desequilíbrio hemodinâmico agudo (STGG aguda perimortem). É como se ele “dessangrasse” no gêmeo morto, de modo a sofrer hipoperfusão, que pode ocasionar lesão neurológica (20%) ou mesmo óbito (10%). O seguimento no feto vivo deve ser feito por ultrassonografia, após 4 semanas do óbito, ou por ressonância magnética para avaliar possível sequela neurológica. Propõe-se, também, o Doppler da artéria cerebral média (ACM) seriado para rastrear anemia.
■ Gemelidade monoamniôtica Já se discutiu o papel da reprodução assistida no aumento da incidência da gemelidade DC. Uma complicação inesperada da FIV é a de que ela aumenta também a frequência da gemelidade MC: 1 em cada 20 gemelares após FIV são MC (Figura 27.6).
▶ Monitoramento anteparto. A avaliação anteparto da gemelidade MC deve ser mais rigorosa do que a da DC. A rotina sonográfica deve-se iniciar com 16 semanas, a cada 2 semanas, para se identificar a STGG, a mais comum das complicações, assim como o crescimento fetal discordante. O aumento repentino do volume abdominal é indicativo de STGG em evolução.
Figura 27.6 ■ Gravidez gemelar monocoriônica.
▶ Translucência nucal (TN). A discordância na TN em gêmeos MC é importante para predizer o prognóstico. A discordância da TN > 20% ocorre em 1:4 gestações MC. Nesse grupo, o risco de morte fetal precoce (≤ 20 semanas) foi > 60% e o de STGG grave, > 50%. ▶ Morte unifetal. Já foi descrita anteriormente neste capítulo.
■ Gemelidade monocoriónica A divisão do embrião a partir do 8o dia da fertilização determina a gemelidade MA que corresponde a 1% das MZ. Há apenas 1 cavidade amniótica, 1 única placenta e 2 cordões umbilicais que se inserem na placa corial muito próximos um do outro (Figura 27.7). ▶ Ultrassonografia. A ultrassonografia mostra 1 SG, 2 fetos separados sem membrana divisória e habitualmente 1 única VV, embora o achado de 2 não exclua a gemelidade MA. Antes de 9 semanas, a ausência da membrana intergemelar não afasta a gemelidade MA, pois o septo pode ser muito fino a essa época.
Figura 27.7 ■ Gravidez gemelar monoamniótica.
Após o 1o trimestre, 1 única placenta, ausência do septo intergemelar e fetos do mesmo sexo movendo-se livremente em volume de LA normal suportam o diagnóstico da amnionia. É muito frequente o entrelaçamento dos cordões na amnionia: massa comum de vasos umbilicais que ao Doppler exibem 2 padrões distintos de ondas arteriais, com frequências cardíacas também diferentes. A sensibilidade da ultrassonografia com Doppler colorido para o diagnóstico do entrelaçamento dos cordões é de 90%. ▶ Prognóstico. Enquanto a STGG é vista em 10 a 15% dos gêmeos MCDA, nos MCMA ela é menos frequente – 5%. Isso reflete a presença de anastomoses arterioarteriais (AAA) na variedade MA que protege contra o desenvolvimento da STGG. O diagnóstico da STGG na variedade MCMA não pode ser feito pela discordância dos volumes dos líquidos amnióticos. O entrelaçamento dos cordões ocorre em 55 e 74% dos casos e é indicativo de mau prognóstico quando revela na artéria umbilical incisura, relação A/B elevada, diástole zero/reversa e pulsação na veia umbilical. O entrelaçamento dos cordões é uma complicação menor na gravidez MA. São mais comuns as anomalias congênitas, a sequência de perfusão arterial reversa do gemelar (TRAP) e o parto prétermo. Em aproximadamente 90% dos casos há sobrevida de pelo menos 1 feto, e em 84%, de ambos os gêmeos. Embora a mortalidade perinatal seja de 10%, poucas mortes são atribuídas ao entrelaçamento dos cordões. Os melhores resultados obtidos na gemelidade MA devem-se ao rigoroso monitoramento fetal após 26 a 28 semanas (ultrassonografia com Doppler colorido, perfil biofísico fetal, cardiotocografia basal) e à interrupção da gestação com 32 semanas (Figura 27.8).
■ Gemelidade imperfeita Incide em 1:50.000 a 1:100.000 partos, correspondendo a cerca de de 1:600 do total dos gemelares ou 1% dos MA – gêmeos acolados (gemelidade imperfeita). A gemelogênese favorece anomalias do desenvolvimento, pricipalmente quando tardias, nos
tipos MA, entre os dias 13 e 15 da fertilização. A principal modalidade é constituída pelos gêmeos acolados, mas há outros tipos que sugerem classificações inúmeras, arbitrárias e defeituosas. Em 70% dos casos, os gêmeos acolados são toracópagos, apresentando fusão do tórax. Os 30% restantes são onfalópagos, apresentando fusão do abdome; pigópagos, fusão da pelve; cefalópagos, fusão do crânio. O diagnóstico é prontamente feito pela ultrassonografia (Figura 27.9).
Figura 27.8 ■ Conduta na gravidez monoamniótica. (Adaptada de Allen et al., 2001; SOGC, 2011.)
Cerca de 30% dos gêmeos acolados são natimortos e 1/3 dos nascidos vivos têm defeitos que não são suscetíveis de cirurgia e por isso morrem no período neonatal. Naqueles nascidos vivos que suportam a cirurgia, 60% sobrevivem. Se houver possibilidade de separação pós-natal, os gêmeos devem ser monitorados com atenção, especialmente para sinais de insuficiência cardíaca; o parto, em geral, é por cesárea clássica.
■ Gemelidade multifetal
A seguir, apresenta-se incidência de gemelidade multifetal em concepções espontâneas. • Dupla: 1:90 • Tripla: 1:8.000 • Quádrupla: 1:700.000 • Quíntupla: 1:60.000.000.
Figura 27.9 ■ Toracópagos com coração único ao Doppler colorido.
O Comitê de Ética do ACOG (2013) refere que a FIV aumentou a taxa de gravidez multifetal dupla em 22 vezes e a tripla, em 100 vezes. Contudo, restrições no número de transferência de embriões nos anos de 1998 a 2009 possibilitaram uma redução de quase 30% na incidência de gravidez multifetal. Os indutores de ovulação e a FIV são os principais responsáveis pela elevada incidência de gravidez multifetal. Nos Estados Unidos o número de embriões transferidos é discutido entre o médico e a paciente. Na Inglaterra, no máximo 2 são transferidos e no Canadá, no máximo 3. O grande objetivo da FIV é alcançar taxa elevada de gravidez com a transferência de apenas 1 embrião [American Society for Reproductive Medicine (ASRM), 2012]. A gemelidade multifetal cria problemas de ordem médica e ética. O ACOG (2013) lembra que o risco de perda fetal total espontânea é de 25% na gravidez multifetal quádrupla, 15% na tripla e 8% na dupla. Redução multifetal é o termo adotado pela International Society of Twin Studies (ISTS) para nomear o feticídio terapêutico na gemelidade multifetal. A redução multifetal é realizada pela injeção de KCl no coração fetal, guiada por ultrassonografia abdominal. É preferível executá-la entre 11 e 14 semanas, pois nessa fase da gravidez é possível diagnosticar algumas malformações e realizar a TN para rastrear
aneuploidias. Se todos os fetos parecerem normais, a redução deve ser feita no concepto mais distante do colo uterino, para evitar o risco potencial de amniorrexe e de infecção ascendente da vagina. A redução fetal mais comum é de tripla para dupla; jamais deve ser feita a redução multifetal de dupla para única. A redução multifetal aumenta a taxa de abortamento mas reduz a de parto pré-termo.
■ Síndrome de transfusão gêmelo-gemelar A STGG pode ser classificada em: • STGG propriamente dita, sequência oligoidrâmnio-polidrâmnio do gemelar • STGG aguda perimortem • STGG aguda perinatal • Sequência de perfusão arterial reversa do gemelar • Sequência anemia-policitemia do gemelar. A STGG aguda perimortem é a que foi descrita na morte unifetal e a STGG perinatal é o acidente semelhante durante o parto. A STGG é uma complicação grave que ocorre em 10 a 15% das gemelidades MCDA e 5% das MCMA, com morbiletalidade muito elevada mesmo nos casos adequadamente tratados. Na STGG há transfusão de sangue de um dos fetos (doador) para o outro (receptor) por meio de anastomoses vasculares existentes na placenta. O gêmeo doador fica hipovolêmico e desenvolve oligúria, oligoidrâmnio e CIR, enquanto o receptor manifesta poliúria, polidrâmnio e hidropisia. O critério adotado para o diagnóstico é a discordância de LA existente nas 2 cavidades – bolsão > 8 cm na cavidade do receptor e bolsão < 2 cm na cavidade do doador. A gravidade da STGG costuma ser classificada em estágios de Quintero que levam em conta critérios clínicos e sonográficos (Tabela 27.1). A angioarquitetura da placenta MC mostra 3 tipos de anastomoses: arteriovenosas (AAV), arterioarteriais (AAA) e venovenosas (AVV) (Figuras 27.10 e 27.11). As AAV são profundas dentro da placenta e unidirecionais; as AAA e a AVV são superficiais e bidirecionais. Comunicações vasculares MC existem praticamente em todas as gestações mas somente certos padrões conduzem à STGG. Assim, em 80% das placentas MCDA há uma AAA, em 20 a 25%, uma AVV e em 90 a 95%, várias AAV. Já nas placentas MC com STGG há uma AAA em apenas 25% delas. Pode-se concluir que as AAA são, de algum modo, protetoras, compensando o desequilíbrio hemodinâmico determinado pelo shunt arteriovenoso.
Tabela 27.1 ■ Estágios de Quintero (1999) na síndrome de transfusão gêmelo-gemelar.
Estágios
Parâmetros de ultrassonografia
Critérios
I
Bolsão de líquido amniótico
Bolsão < 2 cm no doador e > 8 cm no receptor
II
Bexiga fetal
Não visualização no doador por 60 min
III
Doppler da artéria umbilical, ducto venoso e veia umbilical
Artéria umbilical zero/reversa, ducto venoso reverso e veia umbilical pulsátil
IV
Hidropisia fetal
Em um ou ambos os fetos
V
Morte fetal
Em um ou ambos os fetos
Figura 27.10 ■ Comunicações vasculares na placenta monocoriônica. AA, arterioarterial; VV, venovenosa; AV, arteriovenosa. (Adaptada de Machin, Keith, 1999.)
Figura 27.11 ■ Fisiopatologia da síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG). Quando a resistência de perfusão placentária alcança certo limiar, o shunt vascular placentário torna-se funcional à medida que passa a constituir via de menor resistência para o fluxo arterial do gêmeo doador. (Adaptada de Bruner et al., 1998.) (Adaptada de Montenegro & Rezende, 2001.)
A combinação arteriovenosa não representa anastomose real do ponto de vista anatômico, mas cotilédone que é alimentado por uma artéria do doador e drenado por veia do receptor (3a circulação) (Figura 27.11). Os ramos aferente e eferente, compartilhados por ambos fetos, correm superficialmente na placa corial e se aprofundam visa-vis para se dirigirem ao cotilédone. Como esses vasos podem ser identificados por fetoscopia, sua interrupção resultaria na eliminação da circulação compartilhada e, em consequência, na resolução da transferência anormal de sangue entre os gêmeos. ▶ Ultrassonografia. A ultrassonografia de 11 a 13+6 semanas pode entrever a possibilidade de STGG pelo achado de TN > 2,5 mm em um dos gêmeos, discordância > 0,5 mm entre as 2 TN ou ducto venoso zero/reverso. ▶ Tratamento. O tratamento da STGG pode ser feito por: amniodrenagem, lasercoagulação fetoscópica (técnica introduzida por De Lia, em 1990) e coagulação bipolar do cordão (feticídio terapêutico) (Figuras 27.12 e 27.13). A remoção de grandes quantidades de LA visa prevenir o parto pré-termo secundário ao polidrâmnio e melhorar a circulação fetal pela redução da pressão na placa corial da placenta. Por outro lado, a terapia a laser, indicada na gestação até 26 semanas, tem como objetivo ocluir as anastomoses vasculares, interrompendo a troca de sangue intergemelar. Os resultados da laser-coagulacão são bastante superiores aos da amniodrenagem. Outra opção para o tratamento da STGG é o feticídio terapêutico de um dos fetos agônicos, geralmente o receptor hidrópico, pela coagulação bipolar do seu cordão.
Figura 27.12 ■ Amniocentese seriada na síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG).
Figura 27.13 ■ Laser-fetoscopia na síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG).
A laser-coagulação atualmente proposta coagula todas as anastomoses individuais, incluindo todo o equador vascular entre elas na placa corial, e é denominada de laser-coagulação de Solomon (dicorionização equatorial) (Figura 27.14). Os resultados da laser-coagulação equatorial são superiores aos da seletiva, com sobrevida de ambos os gêmeos até os 6 meses de idade em 70% das pacientes e de no mínimo um dos gêmeos em 90% das pacientes. Na verdade, no estágio I de Quintero é proposta a conduta expectante com ótimos resultados e nos estágios II-IV, a laser-coagulação (Figura 27.15).
Figura 27.14 ■ Laser-coagulação seletiva e de Solomon. AAA, anastomose arterioarterial; AVV, anastomose venovenosa.
Figura 27.15 ■ Conduta na síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG).
■ Sequência de perfusão arterial reversa do gemelar A sequência de perfusão arterial reversa do gemelar (sequência TRAP, twin reversed arterial perfusion sequence), também conhecida como malformação acardíaca, ocorre em 1:35.000 gestações ou 1% dos gemelares MC. O mecanismo dessa anormalidade envolve a placenta MC com grande AAA entre a circulação dos 2 fetos, um deles estruturalmente normal (bomba) e o outro muito malformado, o acardíaco (receptor) (Figuras 27.16 e 27.17). Sangue de baixa pressão, desoxigenado, flui pela artéria umbilical do feto bomba, via AAA, e
retrogadamente alcança a artéria umbilical do acardíaco e os vasos ilíacos, e perfunde preferentemente a parte inferior do corpo em detrimento da superior. Isso determina anomalias de redução e morfogênese incompleta dos tecidos da parte superior do corpo (Figura 27.18). O gêmeo bomba pode estar comprometido e sob o risco de insuficiência cardíaca congestiva, em função do crescimento contínuo do acardíaco, cujos tecidos devem ser perfundidos pelo coração normal que acaba insuficiente.
Figura 27.16 ■ Sequência de perfusão arterial reversa do gemelar (TRAP).
Figura 27.17 ■ Hemodinâmica da sequência de perfusão arterial reversa do gemelar (TRAP). O sangue do feto acardíaco praticamente não tem conexão direta com a placenta. Anastomose arterioarterial (AAA) faz o sangue circular do feto doador para o acardíaco (receptor) em direção retrógrada. O sangue retorna ao doador através da anastomose venovenosa (AVV), sem passar pela placenta. (Adaptada de Machin e Keith, 1999.)
▶ Ultrassonografia. O feto acardíaco aparece como massa disforme, com membros inferiores deformados, membros superiores e cabeça rudimentares ou quase sempre ausentes e cordão com 2 vasos. O gêmeo bomba é morfologicamente normal mas pode exibir cardiomegalia, polidrâmnio, hidropisia e derrame pleural e pericárdico. O diagnóstico definitivo da sequência TRAP é obtido com auxílio do Doppler colorido que mostra parodoxalmente o fluxo arterial em direção do acardíaco.
Figura 27.18 ■ Feto acardíaco. (Cortesia do Dr. Fernando Guerra – Instituto Fernandes Figueira.)
▶ Prognóstico. Se nada for feito, o feto bomba morre por insuficiência cardíaca em 50% dos casos. São sinais de insuficiência cardíaca: hidropisia, regurgitação tricúspide, Doppler venoso anormal. O polidrâmnio resulta no parto pré-termo em 90% das vezes. ▶ Tratamento. O acompanhamento sonográfico visa evitar a insuficiência cardíaca e o polidrâmnio. Aconselha-se intervir profilaticamente, entre 16 e 18 semanas, pela anormalidade do Doppler do ducto venoso, por meio da coagulação bipolar do cordão do feto acardíaco ou ablação por radiofrequência (RFA) realizada nos vasos umbilicais na saída do abdome do malformado (Figura 27.19). Atualmente há nítida preferência pela RFA com sobrevida de 85% dos fetos. Uma pesquisa mais atual (2014) propõe conduta profilática – intervenção minimamente invasiva, guiada por ultrassonografia, que utiliza o laser intrafetal a partir de 12 semanas da gravidez. É realizada laser-coagulação com agulha colocada próximo a cada uma das artérias umbilicais localizadas na região vesical do acardíaco.
Figura 27.19 ■ Tratamento do acardíaco com a ablação por radiofrequência (RFA).
■ Sequência anemia-policitemia do gemelar A sequência anemia-policitemia do gemelar (twin anemia-polycythemia sequence – TAPS) é caracterizada pela diferença de Hb nos fetos na ausência de discordância de volume do LA (twin oligo-polydramnios sequence – TOPS). A placenta MC mostra AAV minúsculas < 1 mm (Figura 27.20). A TAPS ocorre expontaneamente em 5% das placentas MC e em 13% após o tratamento a laser da STGG. Nessa última eventualidade, o doador anêmico torna-se policitêmico e o receptor policitêmico torna-se anêmico (STGG reversa). O diagnóstico antenatal é feito pelo Doppler da ACM (VSmáx) que mostra discordância: VSmáx > 1,5 MoM no gêmeo anêmico e VSmáx < 1,0 MoM no gêmeo policitêmico. Nas placentas MC, o acompanhamento pelo Doppler da ACM a cada 2 semanas após 16 semanas é necessário para identificar os casos espontâneos; após o laser na STGG, o Doppler da ACM tem a mesma indicação (Figura 27.21). Antes de 30 semanas o tratamento é feito por transfusão intravascular (TIV) no feto anêmico e depois desse período, pela interrupção da gravidez. O prognóstico da TAPS é bom, constituindo, geralmente, apenas um problema neonatal.
Figura 27.20 ■ Sequência anemia-policitemia do gemelar (TAPS). Placenta e feto anêmicos e policitêmicos.
Figura 27.21 ■ Conduta na sequência anemia-policitemia do gemelar (TAPS).
■ Parto gemelar A elevada frequência de complicações, incluindo prematuridade, discinesias, apresentações anômalas, prolapso do cordão, descolamento prematuro da placenta (DPP), piora o prognóstico fetal no parto gemelar. Além dos acidentes e das complicações comuns aos demais partos, o gemelar apresenta algumas específicas e raras, caracterizadas pela maior gravidade (Figura 27.22). O algoritmo da Figura 27.23 mostra as diversas possibilidades para o parto gemelar – vaginal ou cesáreo. Sugere-se a operação cesariana universal.
Figura 27.22 ■ Distocias específicas do gemelar.
Figura 27.23 ■ Algoritmo da via de parto na gravidez gemelar (diamniótica).
■ Pontos-chave A incidência da gravidez gemelar tem aumentado significativamente nas últimas décadas, em função dos indutores de ovulação, de técnicas de reprodução assistida e da maior idade materna. Embora seja responsável por apenas 3% de todos os nascidos vivos, a gravidez gemelar representa 20 a 25% de todos os nascimentos pré-termo. Todos os gêmeos dizigóticos (DZ) têm placenta dicoriônica, enquanto os monozigóticos (MZ) podem ser dicoriônicos (30%), monocoriônicos (70%) ou monoamnióticos (1%), dependendo da época da divisão. Na ultrassonografia de 1o trimestre, o tipo de inserção do septo intergemelar na placenta confirma a corionia: sinal lambda na dicorionia e sinal T na monocorionia.
Na gravidez gemelar, a mortalidade materna é 2,5 vezes a da na gestação única. A gravidez gemelar monocoriônica tem morbiletalidade perinatal 3 a 5 vezes maior do que a dicoriônica. O rastreamento de aneuploidias na gravidez gemelar é feito pela medida da translucência nucal. O feticídio terapêutico pode estar indicado em caso de malformação discordante. A síndrome de transfusão gêmelo-gemelar é uma complicação importante da variedade monocoriônica (10 a 15%), tratada preferentemente pela lasercoagulação fetoscópica. Na gravidez gemelar, indica-se a operação cesariana como via de parto.
■ Determinismo ■ Etiologia ■ Exames de avaliação da maturidade fetal ■ Prognóstico ■ Predição ■ Ameaça de parto pré-termo ■ Prevenção e tratamento ■ Assistência imediata ao recém-nascido pré-termo
Denomina-se parto pré-termo aquele ocorrido antes de 37 semanas de gestação (259 dias) [Organização Mundial de Saúde (OMS), 2006]. Concomitantemente, considera-se recém-nascido (RN) de baixo peso aquele com peso inferior a 2.500 g. No ano de 2010, ocorreram 14,9 milhões de partos pré-termo no mundo, o que corresponde a 11,9% dos nascidos vivos; nos Estados Unidos, a incidência foi de 12,0% dos nascidos vivos e vem aumentando nas duas últimas décadas. Na América Latina e no Caribe, também em 2010, a taxa foi de 8,6% dos nascidos vivos. O parto pré-termo é um problema de saúde pública e representa a causa principal de morbidade e de mortalidade neonatal precoce e tardia, em face do risco aumentado de complicações no neurodesenvolvimento, respiratórias e gastrintestinais, como síndrome de angústia respiratória (SAR), doença pulmonar crônica, enterocolite necrosante, hemorragia intraventricular e paralisia cerebral. A prematuridade superou os defeitos congênitos como a principal causa de mortalidade neonatal. O prognóstico tardio dos RN de baixo peso é comprometido pelo risco elevado de doença cardiovascular (infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e hipertensão arterial), diabetes melito do tipo 2 e, possivelmente, câncer. Para a mãe, o parto pré-termo aumenta o risco de nova interrupção em gravidez subsequente. Em 2005, o Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development (NICHD) do National Institutes of Health (NIH) estabeleceu um consenso definindo o pré-termo tardio como aquele nascido entre 34+0 e 36+6 semanas. Mais tarde, foi criada a expressão a termo precoce para se referir àquele nascido entre 37+0 e 38+6 semanas. Recém-nascidos pré-termo tardios (PTT) ou a termo precoces (TP) (Figura 28.1) constituem um grupo especial de RN que apresentam morbidade (Tabela 28.1) e mortalidade neonatais mais altas (Figura 28.2). O RN pré-termo (< 37 semanas) pode ser categorizado em 4 subgrupos: • Pré-termo extremo: < 28 semanas (5%) • Muito pré-termo: 28 a 30+6 semanas (15%) • Pré-termo precoce: 31 a 33+6 semanas (20%) • Pré-termo tardio: 34 a 36+6 semanas (60%). As categorias para baixo peso ao nascimento são: • Baixo peso (< 2.500 g) • Muito baixo peso (< 1.500 g) • Baixo peso extremo (< 1.000 g). Cerca de 2/3 dos RN de baixo peso são pré-termo. Os RN a termo de baixo peso são chamados de pequenos para a idade gestacional (PIG), porque nascem com o peso abaixo do 10o percentil. Os RN pré-termo também podem ser PIG e têm o prognóstico agravado particularmente
se sofreram crescimento intrauterino restrito (CIR). Os problemas perinatais relacionados com CIR incluem: morte perinatal, sofrimento fetal crônico, síndrome de aspiração de mecônio, hipoglicemia/hiperviscosidade e hipotermia (Capítulo 29).
Tabela 28.1 ■ Mortalidade neonatal em pré-termo tardio e a termo precoce. Semanas de gestação
Taxa de mortalidade neonatal/1.000 nascidos vivos
Risco relativo (RR)
34
7,1
9,5
35
4,8
6,4
36
2,8
3,7
37
1,7
2,3
38
1,0
1,4
39
0,8
1,0 (referência)
40
0,8
1,0
41
0,8
1,1
Adaptada de Engle et al., 2011.
Figura 28.1 ■ Definições do parto pré-termo tardio (PTT), a termo precoce (TP) e a termo. (Adaptada de Engle et al., 2011.)
Figura 28.2 ■ Morbidade neonatal de acordo com a idade gestacional. (Adaptada de Engle et al., 2011.)
■ Determinismo O determinismo do parto pré-termo é o mesmo da parturição a termo, exceto pela idade da gravidez na qual ocorre. Assim, os componentes uterinos incluem exacerbação da contratilidade uterina, amadurecimento do colo do útero (apagamento e dilatação) e ativação membrana/decidual. O determinismo do parto pré-termo também está relacionado com colonização bacteriana coriodecidual com liberação de endo e exotoxinas que iniciam o processo (Figura 28.3).
■ Etiologia Etiologicamente, os partos pré-termo podem ser inicialmente classificados em 2 grupos: o 1o está constituído pelo parto pré-termo espontâneo, associado (25%) ou não à ruptura prematura das membranas pré-termo (RPMP) (45%); o 2o grupo está representado pelo parto pré-termo indicado (30%), decorrente da interrupção provocada da gravidez ditada por complicações maternas ou fetais (Figura 28.4). O aumento da incidência de parto pré-termo deve-se muito ao parto pré-termo indicado. Outro fator contribuinte importante é a gravidez múltipla, resultante de técnicas de reprodução assistida. A RPMP é definida como a amniorrexe espontânea ocorrida antes de 37 semanas, precedendo, no mínimo, em 1 h o início das contrações. As causas mais comuns associadas ao parto prétermo indicado são os distúrbios hipertensivos, hemorragia e sofrimento fetal (CIR).
Figura 28.3 ■ Vias hipotéticas da colonização bacteriana coriodecidual do parto pré-termo. (Adaptada de Goldenberg et al., 2000.)
Figura 28.4 ■ Etiologia do pré-termo tardio. RPMP, ruptura prematura das membrana pré-termo. (Adaptada de Mohan & Jain, 2011.)
■ Fatores de risco O fator de risco mais importante para o pré-termo tardio é a história pregressa de parto prétermo. Outros fatores arrolados são: fatores demográficos (baixo nível socioeconômico e educacional, etnia, idade materna < 18 ou > 35 anos), hábitos de vida (tabagismo, uso de drogas ilícitas, estresse, abuso físico), assistência pré-natal deficiente, baixo peso pré-gravídico e ganho de peso inadequado na gestação.
■ Complicações da gravidez
Os processos patológicos implicados no parto pré-termo incluem infecção intrauterina, isquemia uterina, sobredistensão uterina, reação anormal ao aloenxerto, fenômeno alérgico, distúrbios do colo uterino e doenças endócrinas (Figura 28.5).
Figura 28.5 ■ Causas do parto pré-termo. Múltiplos processos patológicos podem levar à ativação da via comum da parturição. (Adaptada de Romero & Lockwood, 2009.)
▶ Vaginose bacteriana. Condição clínica caraterizada por corrimento vaginal de odor fétido, pH vaginal > 4,5 e alteração na flora vaginal normal lactobacilo-dominante para outra com predomínio de Gardnerella vaginalis, Prevotella sp. e Atopobium sp. A coloração de Gram no esfregaço vaginal mostra células indicadoras (Figura 28.6). A vaginose bacteriana assintomática (rastreada no pré-natal com 16 semanas) é considerada causa de parto pré-termo, abortamento e infecção materna. ▶ Infecções não genitais. Diversas infecções maternas não genitais, como pielonefrite, pneumonia, apendicite e doença periodontal, podem estar associadas ao parto pré-termo.
Figura 28.6 ■ Coloração de Gram de vaginose bacteriana mostrando células indicadoras (colonizadas por
Gardnerella vaginalis) no esfregaço vaginal.
▶ Infecção intrauterina. A corioamnionite é responsável por > 30% de todos os partos pré-termo. Na verdade, o exame da placenta tem mostrado corioamnionite aguda no parto prétermo de < 28 semanas e corioamnionite crônica (subclínica) no parto pré-termo tardio. A cavidade amniótica normalmente é estéril. Na infecção intrauterina ou corioamnionite são encontrados microrganismos no líquido amniótico. A via de infecção mais comum é a ascendente (Figura 28.7) e os microrganismos mais encontrados são Mycoplasma spp. genitais e, particularmente, Ureaplasma urealyticum, mas muitos outros podem ser identificados. Esses microrganismos são tipicamente de baixa virulência, o que explica provavelmente a cronicidade da infecção intrauterina e a ausência frequente de sinais clínicos de infecção no parto pré-termo tardio. ▶ Citocinas pró-inflamatórias. A inflamação e seus mediadores, quimiocinas tais como a IL-8, citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6 e TNF-α) e outros [fator ativador de plaquetas (PAF), prostaglandinas] estão implicados no parto pré-termo infeccioso (Figura 28.8). Por outro lado, a IL-10 tem papel importante na manutenção da gravidez, pois bloqueia a resposta inflamatória.
Figura 28.7 ■ Locais de infecção intrauterina. (Adaptada de Goldenberg et al., 2000.)
▶ Sobredistensão uterina. Ocorre em casos de malformações uterinas, polidrâmnia e
gravidez gemelar, sendo dependente da exacerbação da contratilidade uterina, do amadurecimento do colo do útero e da ruptura das membranas. ▶ Gravidez gemelar. O mecanismo do parto pré-termo é a sobredistensão uterina, muito embora o parto pré-termo indicado também seja um fator. Apesar de representar em apenas 2 a 3% das gestações, a gravidez gemelar é responsável por 13 a 20% de todos os partos pré-termo. Aproximadamente 60% dos gêmeos nascem pré-termo e nas gestações múltiplas (3 ou mais), quase todos. ▶ Sangramento vaginal. O sangramento vaginal, especialmente o decorrente da placenta prévia ou do descolamento prematuro da placenta (DPP), está associado a risco muito alto de parto pré-termo. ▶ Isquemia uteroplacentária. As características mais comuns na placenta de pacientes com parto pré-termo (< 28 semanas), mas sem alterações inflamatórias, são as lesões vasculares que incluem remodelação defeituosa das arteríolas espiraladas, aterose aguda e trombose dessas artérias (vasculopatia decidual), diminuição da quantidade e trombose das arteríolas nas vilosidades coriônicas. Essas alterações vasculares também são típicas da pré-eclâmpsia e do CIR e representam o substrato anatomopatológico das grandes síndromes obstétricas (Capítulo 18).
Figura 28.8 ■ Mecanismo envolvido no parto pré-termo em casos de infecção intrauterina. IL-1, interleucina-1; TNF, fator de necrose tumoral; PG, prostaglandina; PAF, fator ativador de plaquetas. (Adaptada de Romero & Lockwood, 2009.)
▶ Doenças e cirurgias maternas. Doença da tireoide, asma, diabetes melito e hipertensão arterial crônica estão associadas a taxas aumentadas de parto pré-termo, muitos dos quais
indicados por razões maternas. Por outro lado, cirurgias maternas abdominais no 2o e no 3o trimestres podem estimular as contrações uterinas, culminando no parto pré-termo. ▶ Doenças cervicais. A insuficiência cervical, causada por cirurgia, trauma ou fraqueza congênita do colo do útero determinante de abortamento tardio, tem sido implicada também como causa de parto pré-termo. A doença cervical pode resultar de alteração congênita (hipoplasia, exposição ao dietilestilbestrol in utero, útero septado), assim como de lesão traumática da estrutura cervical (conização, dilatações cervicais repetidas ou rudes para interrupção da gravidez). ▶ Distúrbios hormonais. A progesterona é o hormônio central para a manutenção da gravidez. Especificamente, a progesterona promove a quiescência uterina (bloqueio miometrial progesterônico), sub-regula a formação de junções comunicantes, inibe o amadurecimento do colo e diminui a produção de quimiocinas pelas membranas ovulares (corioâmnio), o que é importante para a não ativação membrana/decidual. Acredita-se que a deficiência da fase lútea seja causa de infertilidade e de abortamento habitual.
■ Exames de avaliação da maturidade fetal Os exames de avaliação da maturidade fetal restringem-se, quase exclusivamente, à investigação da maturidade pulmonar e não prescindem da amniocentese para coletar amostras do líquido amniótico (LA). Atualmente é rara a indicação de amniocentese para avaliar a maturidade pulmonar fetal, visto que é um procedimento invasivo e não isento de riscos. A administração universal de corticoide por 48 h entre a 24a e a 34a semana da gestação tornou obsoletos os exames de maturidade pulmonar fetal. ▶ Teste de Clements e determinação da relação lecitina/esfingomielina. Ambos os testes têm por finalidade avaliar a concentração de lecitina existente no LA, fosfolipídio de atividade surfactante a ser mais bem estudado posteriormente (Figura 28.9). A dosagem bioquímica da lecitina, trabalhosa e sujeita a erros, pela variação do volume do LA, é substituída pela determinação cromatográfica da relação lecitina/esfingomielina (relação L/E) ou pela sua avaliação qualitativa por meio do teste de Clements. A relação L/E positiva é ≥ 2,0. O teste de Clements baseia-se na propriedade da lecitina, quando misturada ao etanol, de produzir borbulhas estáveis após agitação. Para estimar a maturidade pulmonar, empregase inicialmente o teste de Clements na diluição 1:2 (Figura 28.10). Os resultados falso-positivos (relação L/E < 2,0) com o teste de Clements são raros; os falsonegativos (relação L/E ≥ 2,0), bastante comuns, chegam a mais de 40%. Nesses casos, o teste de Clements na diluiçao 1:1 é opcional e útil apenas quando não se dispõe da relação L/E. O teste de Clements na diluição 1:1 possibilita separar os casos intermediários e os negativos. Os resultados intermediários quase sempre correspondem à relação L/E ≥ 2,0, mas os falsos-negativos, mesmo na diluição 1:1, ainda são frequentes.
Figura 28.9 ■ Concentrações médias de lecitina e de esfingomielina no líquido amniótico. O notável aumento da concentração de lecitina com 35 semanas de gravidez sinala a maturidade pulmonar. (Adaptada de Gluck et al., 1971.)
▶ Determinação do fosfatidilglicerol. O fosfatidilglicerol (FG) é importante potencializador da ação surfactante da lecitina e, quando ausente, pode contribuir para o desenvolvimento da SAR, mesmo estando a relação L/E madura.
Figura 28.10 ■ Sequência adotada na avaliação da maturidade pulmonar. Os percentuais referem-se ao risco de síndrome de angústia respiratória (SAR).
■ Prognóstico A sobrevida dos RN pré-termo, que nascem após 32 semanas de gravidez, é similar à de RN a termo (Tabela 28.2). Todavia, esses prematuros também não estejam isentos de complicações, como se verá adiante. A maioria dos problemas graves está associada àqueles que nascem antes de 32 semanas (1 a 2% do total de partos), principalmente àqueles nascidos antes de 28 semanas (0,4% do total de partos). O atendimento moderno perinatal (corticoide, surfactante, centros terciários) foi importante para melhorar o prognóstico do prematuro. Todavia, o prognóstico permanece desalentador para aqueles pré-viáveis nascidos entre 22 e 25 semanas. ▶ Pré-termo pré-viável. A taxa de sobrevida é de 1, 11, 26 e 44%, respectivamente, para os RN de 22, 23, 24 e 25 semanas. No levantamento de 30 meses e de 6 anos foram expressivas as incapacidades mental, motora, sensorial (auditiva, visual) e cognitiva. ▶ Pré-termos tardio e termo precoce. A despeito de documentada a maturidade pulmonar, quando comparados àqueles nascidos com 39 semanas ou mais, os pré-termo tardio e a termo precoce apresentam morbidade neonatal mais elevada. Por isso, o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG, 2011) recomenda: a gestação não deve ser eletivamente interrompida antes de 39 semanas. Em relação aos RN pré-termo tardios, sua morbidade está elevada quando comparada aos RN a termo, por sua imaturidade fisiológica e resposta compensatória limitada ao ambiente extrauterino, vale dizer, hipotermia, dificuldades alimentar e respiratória, apneia, hiperbilirrubinemia. Além da morbidade aumentada, também há elevação da mortalidade e das sequelas tardias. Trinta e quatro semanas da gestação é a época ótima da maturidade fetal e a meta para o parto indicado, visando à segurança e à saúde da mãe e do feto, mesmo que ainda não haja urgência para a interrupção da gravidez (CIR e oligoidrâmnia isolados, pré-eclâmpsia leve).
Tabela 28.2 ■ Sobrevida neonatal por idade gestacional e melhora na sobrevida por semana. Idade gestacional (semanas)
Sobrevida (%)
Melhora na sobrevida por semana (%)
21
0
–
22
Raro
–
23
25
25
24
50
25
25
70
20
26
80
10
27
86
6
28
91
5
29
94
3
30
95
1
31
96
1
32
97
1
33
98
1
34
99
1
35
> 99
99
25 mm assegura parto a termo e aquelas com valores entre 15 e 25 mm merecem vigilância atenta pela ultrassonografia seriada. Por fim, confirmou-se o que já se sabia: em cerca de 60% das pacientes com ameaça de parto prétermo, o parto ocorre no termo.
Figura 28.13 ■ Colo uterino com comprimento normal de 36,2 mm à ultrassonografia transvaginal. (Novaes, 2010.)
Figura 28.14 ■ Colo uterino extremamente curto com 9,2 mm à ultrassonografia transvaginal. (Novaes, 2010.)
Figura 28.15 ■ Conduta na ameaça de parto prétermo. (Novaes, 2010.)
■ Prevenção e tratamento ■ Tocolíticos Os tocolíticos atualmente empregados podem ser divididos em (Figura 28.16 e Tabela 28.3): • Agonistas-β2 • Bloqueadores de canal de cálcio • Sulfato de magnésio (Mag) • Inibidores da cicloxigenase • Antagonistas do receptor de ocitocina • Doadores de óxido nítrico. O uso de tocolítico visa prolongar a gestação por 48 h enquanto se aguardam os efeitos benéficos do corticoide e se espera a transferência da paciente para um centro de atendimento terciário. A nifedipina é o fármaco de primeira escolha para inibir o parto pré-termo, por apresentar as seguintes vantagens: via oral de administração, poucos efeitos colaterais e eficácia em reduzir as complicações neonatais. Dos agonistas-β2, o salbutamol é o mais empregado no Brasil. A indometacina também pode ser utilizada, mas antes de 32 semanas e, no máximo, por 48 h.
A nifedipina e a atosibana têm efetividade comparável em prolongar a gravidez por 7 dias, mas a atosibana é quase 10 vezes mais cara que a nifedipina.
■ Circlagem Originalmente proposta para uso em pacientes com abortamento habitual de 2o trimestre, a circlagem tem sido recomendada também para aquelas com história pregressa de parto pré-termo.
Figura 28.16 ■ Locais de ação dos tocolíticos mais comumente utilizados. COX, cicloxigenase; IP3, inositoltrifosfato; cAMP, adenosina monofosfato cíclico; cGMP, guanosina monofosfato cíclico. (Adaptada de Simhan & Caritis, 2007.)
Tabela 28.3 ■ Principais classes de tocolíticos utilizados e suas respectivas doses. Tocolítico
Dose
Salbutamol
Deve-se iniciar com 5 mg/min IV, dobrando-se a dose a cada 20 min até o máximo de 40 mg/min
Terbutalina
Deve-se iniciar com 5 a 10 mg/min IV até o máximo de 80 mg/min
Ritodrina
Deve-se niciar com 50 mg/min IV até o máximo de 350 mg/min
Nifedipina
Deve-se iniciar com 10 mg VO, podendo repetir a dose a cada 15 min na 1a hora até o máximo de 40 mg. Deve-se administrar ao menos 20 mg de nifedipina de liberação lenta VO a cada 8 h após dose inicial, sendo a dose máxima 160 mg/dia
Indometacina
Deve-se iniciar com 50 mg de indometacina de liberação lenta VO, seguindo-se 25 a 50 mg a cada 6 h
IV, intravenosa; VO, via oral.
■ Ultrassonografia universal do colo: um novo paradigma A Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM), o American Institute of Ultrasound in Medicine (AIUM) e o ACOG (2012) propõem a prevenção do parto pré-termo pela ultrassonografia transvaginal universal do colo uterino, após a ultrassonografia morfológica de 2o trimestre, entre a 20a e a 24a semana. O colo ≤ 20 mm é indicação para progesterona vaginal, 200 mg/dia, até 34 a 36 semanas (Figura 28.17). O ACOG (2012) também recomenda em pacientes com história pregressa de parto pré-termo o uso de progesterona vaginal (200 mg/dia) a partir da 16a semana. Entre 16 e 24 semanas deve-se realizar a ultrassonografia transvaginal e se o colo estiver ≤ 25 mm, estaria indicada a circlagem cervical (Figura 28.18). A Revisão Cochrane (2013) afrma que o uso de pesário em colos ≤ 25 mm, entre 18 e 20 semanas da gravidez, conseguiu reduzir significativamente a ocorrência de parto pré-termo, quando comparado a grupo controle (20 vs. 60%; risco relativo = 0,36).
■ O problema do gemelar Na gravidez gemelar, o colo > 25 mm afasta a possibilidade de parto pré-termo, evitando intervenções desnecessárias. Mas nem a progesterona vaginal/intramuscular, nem a circlagem foram efetivas para evitar o parto pré-termo na gravidez gemelar. Pelo contrário, a circlagem trouxe até resultados negativos (ACOG, 2012).
Figura 28.17 ■ Prevenção do parto pré-termo por ultrassonografia transvaginal universal do colo uterino. (SMFM, AIUM e ACOG, 2012.)
Figura 28.18 ■ Prevenção do parto pré-termo em pacientes com história pregressa de parto pré-termo. (ACOG, 2012.)
Pequena casuística do Grupo Pesario Cervical para Evitar Prematuridad (PESEP, 2012), em casos de síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG) tratados com laser, revelou que o pesário de Arabin foi capaz de evitar o parto pré-termo.
■ Sulfato de magnésio na neuroproteção fetal O sulfato de magnésio (Mag) utilizado para a neuroproteção fetal está indicado na gestação entre 23 e 31+6 semanas quando o parto é iminente ou a gravidez deve ser interrompida nas 24 h seguintes [Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), 2011)] (Figura 28.19). No parto pré-termo com indicação clínica, o Mag deve ser iniciado 4 h antes da interrupção. A Revisão Cochrane (2009), avaliando o uso do Mag para a neuroproteção fetal, encontrou risco relativo de 0,71, vale dizer, redução de 30% de paralisia cerebral.
Figura 28.19 ■ Sulfato de magnésio para a neuroproteção fetal. (SOGC, 2011; Reeves et al., 2011.)
■ Assistência ao parto Pacientes em trabalho de parto pré-termo têm maior probabilidade de apresentarem fetos em apresentação pélvica do que aquelas a termo. Os RN pré-termo, especialmente com menos de 32 semanas, estão mais sujeitos a lesões traumáticas e asfíxicas no parto pélvico. Faz parte da boa prática indicar a cesariana para todos os casos de parto prétermo em apresentação pélvica. Por outro lado, os RN pré-termo em apresentação cefálica devem ser submetidos à cesariana pelas mesmas indicações daqueles a termo. Na verdade, no pré-termo entre 24 e 34 semanas em apresentação cefálica, a cesariana aumenta o risco de SAR e de baixo índice de Apgar, quando comparada ao parto vaginal. Muitas instituições com apropriada unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal oferecem a cesariana para os fetos pré-viáveis na gestação de 24 semanas e a recomendam fortemente na de 26 semanas. Mas o prognóstico dos pré-viáveis, como já mencionado, é tão desalentador que essa rotina parece ser discutível. Os RN pré-termo, especialmente aqueles extremamente pré-termo, são muito vulneráveis a lesão neurológica e hemorragia intracraniana. Rezendepai afirmava: “quanto menor o concepto, maior a episiotomia”. Ele ainda exaltava a importância do fórceps de alívio para encurtar o
período expulsivo, o que deve surpreender hoje os adeptos do parto humanizado. A escolha da anestesia não tem particularidades. A profilaxia intraparto contra estreptococos do grupo B (GBS) é obrigatória, a menos que a cultura vaginorretal tenha sido negativa nas últimas 5 semanas: penicilina G cristalina, 5 milhões de unidades em bolus, seguida de 2,5 milhões de unidades IV, a cada 4 h (Figura 28.20).
Figura 28.20 ■ Profilaxia intraparto contra estreptococos do grupo B. (CDC, 2010.)
■ Assistência imediata ao recém-nascido pré-termo É fundamental a presença de pediatra experiente na sala de parto à ocasião do nascimento. Exige-se delicadeza na manipulação do pré-termo e suavidade nas manobras de reanimação em face da fragilidade desses RN, que devem ser cuidados em unidades terciárias. ▶ Ligadura do cordão. Para o RN pré-termo que não necessite de reanimação, o clampeamento do cordão deve ser postergado por 30 a 120 s. Para o pré-termo que precisa de reanimação, não há consenso em relação ao benefício. A ordenha do cordão (4 vezes em 10 a 12 s) parece oferecer a mesma vantagem do clampeamento postergado. Esse incremento da transfusão placentária que se consegue com o clampeamento tardio ou a ordenha melhora as funções circulatória e respiratória, reduz a necessidade de transfusão e o risco de hemorragia intracerebral no RN pré-termo. ▶ Índice de Apgar. Na população de RN prétermo, em face de sua imaturidade fisiológica, o índice de Apgar não tem importância clínica (ACOG, 2006). ▶ Aspiração. A limpeza da orofaringe será imediata por meio de pera de borracha quando do desprendimento do polo cefálico. Após a secção do cordão, complementa-se o atendimento com
aspiração gástrica, utilizando-se cateteres adequados. Ao se utilizarem aspiradores mecânicos, é recomendado não ultrapassar pressões negativas de 200 mmHg. ▶ Aquecimento. Não deve ser utilizado o arcondicionado quando do nascimento do prétermo, que será imediatamente aquecido e colocado em incubadora à temperatura de 30°C. ▶ Reanimação. É indicada para conceptos deprimidos. Os procedimentos podem ser vistos no Capítulo 43.
■ Síndrome de angústia respiratória A SAR é a principal causa de morte no RN prétermo, e deve-se à deficiência de surfactante (lecitina) nos alvéolos pulmonares. Se não for tratada, cerca de 25 a 30% dos RN com SAR antes de 28 semanas morrem nos 28 dias seguintes ao parto e outros 25% desenvolvem doença crônica do pulmão, como displasia broncopulmonar. Deficiência de surfactante pulmonar está envolvida na fisiopatogenia da SAR, mas outros fatores como a imaturidade do parênquima pulmonar também são importantes.
■ Etiopatogenia No Capítulo 2 afirmou-se que o complexo surfactante é constituído principalmente por lecitina e fostatidilglicerol, indispensáveis para reduzir a tensão superficial na expiração, estabilizando os alvéolos pulmonares e impedindo o colapso deles (Figura 28.21).
Figura 28.21 ■ Ação do surfactante na redução da tensão superficial na expiração.
De 22 a 24 até 35 semanas de gestação, a reação de metilação é a principal via na formação de lecitina (α-palmítica/β-mirística). A elaboração da lecitina pela via CDF-colina (α-palmítica/ β-palmítica), embora presente desde 18 semanas, só se torna expressiva após 36 semanas. A lecitina α-palmítica/β-palmítica é muito mais estável e efetiva como agente surfactante. Em prétermos, a lecitina α-palmítica/β-mirística pode estar presente em quantidades suficientes para
manter a estabilidade alveolar até a via CDF-colina ser ativada. Mas a lecitina produzida pela reação de metilação é facilmente inibida por fatores como hipoxia, acidose, hipercapnia, hipotermia – que determinam exaustão do sistema surfactante – e possivelmente também pela operação cesariana. Em pré-termos, como não existe a via CDF-colina, a associação desses fatores leva rapidamente à SAR. Por fim, o fosfatidilglicerol funciona como potencializador da lecitina e aparece em concentrações apreciáveis na gestação de 37 semanas, tendo sua produção aumentada até o termo.
■ Quadro clínico A SAR revela-se logo após o nascimento, nos primeiros trinta minutos (cerca de 80% dos casos nas primeiras 6 h), progride por 1 a 2 dias e termina no óbito (10 a 40%) ou na recuperação, embora nem sempre completa. O RN não consegue manter adequadas a oxigenação e a eliminação de gás carbônico. A respiração torna-se laboriosa, taquipneica (> 60/min), com retração intercostal ou external, batimentos das asas do nariz e gemido expiratório, seguida por por acidoses metabólica e respiratória. O RN apresenta-se cianótico ao ar ambiente, com estertores pulmonares pela má aeração. O laboratório exibe PO2 < 65 mmHg (ar ambiente), PCO2 > 50 mmHg e pH < 7,30. A radiografia é indispensável para o diagnóstico, revelando padrão difuso reticulogranular nos pulmões. O óbito tende a ocorrer antes de 72 h. A necropsia revela atelectasia, ingurgitamento capilar e, frequentemente, depósito de fibrina nos alvéolos (membrana hialina). Se sobreviver, a recuperação ocorre em 48 h. A taquipneia transitória ocorre quando, em quadro clínico com as mesmas características da SAR, a recuperação completa se dá em 24 h, estando envolvidos, muito provavelmente, outros fatores: depuração demorada do líquido pulmonar, aspiração etc.
■ Corticoide antenatal O uso do corticoide está consagrado em obstetrícia. Foram trabalhos pioneiros os de Liggins (1969) em ovelhas, logo transpostos para a espécie humana (Liggins & Howie, 1972). O corticoide estimula a síntese e a liberação de material surfactante no alvéolo pulmonar. A betametasona e a dexametasona atravessam a barreira placentária e, por via intramuscular, são os corticoides preferidos para a corticoterapia antenatal. O corticoide é capaz não só de reduzir a incidência de SAR como também de outras complicações no bebê, tais como hemorragia intraventricular, leucomalacia periventricular, retinopatia da prematuridade, enterocolite necrosante, persistência do canal arterial e, o que é mais importante, a taxa de mortalidade neonatal. A administração do corticoide está associada à redução de 50% na incidência de SAR, e sua
eficácia fica mais evidente quando o parto ocorre após 24 h e dentro de 7 dias de sua utilização. A Revisão Cochrane (2007) recomenda um único curso de corticoide, que pode ser a betametasona, 12 mg via intramuscular repetida 2 vezes com intervalo de 24 h sempre que houver risco de parto pré-termo, incluindo: • Grávidas com ruptura das membranas • Grávidas com pré-eclâmpsia • Pacientes com gestação múltipla • Aquelas em que o parto pode ocorrer em menos de 24 h • E na prática neonatal moderna em que o surfactante é disponível. São recomendações do ACOG (2008): • Não há evidências de que a betametasona deva ser preferida em relação à dexametasona • Os seguintes esquemas podem ser utilizados: ○ Duas doses de 12 mg de betametasona por via intramuscular, espaçadas de 24 h ○ Dexametasona na dose de 6 mg por via intramuscular a cada 12 h (4 doses) • Apenas um curso de corticoide deve ser administrado em pacientes entre 24 e 34 semanas de gestação, que correm risco iminente de parto pré-termo dentro de 7 dias • Apenas um curso de corticoide deve ser utilizado em pacientes com RPMP entre 24 e 32 semanas de gestação • A eficácia do corticoide na RPMP na gestação de 32 e de 33 semanas é incerta • O corticoide não é recomendado antes da viabilidade fetal (24 semanas) • Não se aconselha a repetição dos cursos de corticoide. ▶ Cursos repetidos. O ACOG (2011), embora recomende um único curso de corticoide na gestação entre 24 e 34 semanas com risco de parto prétermo em 7 dias, admite um curso de resgate em gestações < 33 semanas, quando o 1o curso foi há mais de 2 semanas e o parto é esperado dentro de 7 dias. A Revisão Cochrane (2012) sugere cursos repetidos de corticoide em intervalos de 7 dias até 34 semanas de gestação. Um artigo recente acentua que, para serem bem-sucedidos, cursos repetidos de corticoide (no máximo 4) devem ser iniciados antes de 29 semanas de gestação. ▶ Corticoide na ameaça de parto pré-termo. Já se mencionou que em 60% dos casos de ameaça de parto pré-termo a interrupção se dá no termo da gravidez, tornando inoportuna a administração do corticoide. Nessas condições, pode-se utilizar a US transvaginal que, ao detectar colo < 15 mm, sinaliza parto dentro de 1 semana e, portanto, indicação do corticoide (Figura 28.15). O colo > 25 mm dispensaria o uso do corticoide. Valores entre 15 e 25 mm exigem acompanhamento sonográfico.
■ Pontos-chave Considera-se parto pré-termo aquele ocorrido antes de 37 semanas de gestação (259 dias). O parto pré-termo é um problema de saúde pública por sua elevada incidência (10%) e por se constituir na maior causa de morbimortalidade neonatal precoce e tardia. O parto pré-termo também pode ser categorizado em: pré-termo extremo (< 28 semanas), muito pré-termo (28 a 30+6 semanas), pré-termo precoce (31 a 33+6 semanas) e pré-termo tardio (34 a 36+6 semanas). O parto pré-termo pode ser espontâneo, com ou sem ruptura das membranas pré-termo (RPMP), e indicado por problemas maternos ou fetais. O fator de risco mais importante de parto pré-termo é a história pregressa de parto pré-termo. Em pacientes com história pregressa de parto pré-termo, há três marcadores importantes para nova interrupção prematura: vaginose bacteriana, ultrassonografia do colo do útero e fibronectina fetal. O uso de agente tocolítico é reservado para prolongar a gestação por 48 h enquanto se aguardam os efeitos do corticoide utilizado para amadurecer o pulmão fetal. Apenas um curso de corticoide deve ser administrado na gestação entre a 24a e a 34a semana quando há risco iminente de parto pré-termo dentro de 7 dias. Um novo paradigma: ultrassonografia universal do colo do útero por ocasião da ultrassonografia morfológica e progesterona vaginal para a prevenção do parto pré-termo. Sulfato de magnésio (Mag) deve ser utilizado para neuroproteção fetal na gestação entre 23 e 31+6 semanas, quando o parto é iminente ou indicado nas próximas 24 h.
■ Definição ■ Etiologia ■ Diagnóstico ■ Avaliação anteparto ■ Morbidade e mortalidade
O crescimento intrauterino restrito (CIR) é uma importante entidade mórbida em obstetrícia, haja vista que a mortalidade perinatal em fetos incluídos nessa categoria é 10 vezes maior do que em conceptos normais. Os fetos que sobrevivem estão propensos a maior morbidade neonatal imediata – hipoxia, síndrome de aspiração de mecônio, hipoglicemia –, assim como a complicações tardias, como retardo no neurodesenvolvimento, paralisia cerebral e, muito provavelmente, diabetes tipo 2 e hipertensão na vida adulta (programação fetal). Fetos com CIR representam um grupo heterogêneo, e grande parte deles corresponde a conceptos constitucionalmente pequenos, mas saudáveis (CIR constitucional).
■ Definição CIR está relacionado com o feto que não conseguiu atingir o seu potencial genético de crescimento. Pequeno para a idade gestacional (PIG) corresponde ao recém-nascido com peso abaixo do 10o porcentil para a idade gestacional. Cerca de 50 a 70% dos PIG são constitucionais, com crescimento adequado à sua herança familiar e racial. Recém-nascido de baixo peso é aquele que nasce com peso inferior a 2.500 g, mas que não necessariamente é PIG. Campbell & Thoms, em 1977, foram os primeiros a dividir o CIR em 2 grupos: simétrico e assimétrico, classificação importante do ponto de vista clínico. O padrão simétrico é caracterizado por pequenas dimensões de cabeça e abdome e indica insulto intrínseco, precoce, comprometendo o crescimento fetal, sendo determinado por anomalias estruturais e cromossomiais, infecções, drogas ilícitas e álcool. O crescimento é simétrico porque ocorreu no momento em que o feto se desenvolvia por divisão celular. O CIR assimétrico, por sua vez, é consequente a fatores extrínsecos, frequentemente à disponibilidade inadequada de substratos para o metabolismo fetal. Nesse padrão, a cabeça tem dimensões preservadas, mas o abdome está reduzido pelo menor tamanho do fígado e pela escassez de tecido adiposo abdominal. Mais comumente, o distúrbio que limita a disponibilidade de substratos para o feto é a insuficiência placentária, doença vascular materna responsável pela perfusão uteroplacentária deficiente. O CIR assimétrico geralmente ocorre mais tarde na gravidez, após 32 semanas, quando o feto cresce especialmente por hipertrofia e não mais pelo aumento do número de células. Como as causas responsáveis por esses dois padrões de CIR são diversas, sua possível distinção tem implicações no diagnóstico e no acompanhamento. ▶ Biometria sonográfica. Até o início do 3o trimestre, a cabeça fetal é relativamente grande em relação à circunferência abdominal (CA). Após 28 semanas, a CA acelera-se à medida que o feto acumula glicogênio hepático e tecido adiposo no abdome. No CIR simétrico, a circunferência cefálica (CC), a CA e o comprimento do fêmur (CF) estão todos reduzidos. No CIR assimétrico, a CC continua a crescer apropriadamente para a idade
gestacional, enquanto a CA e o CF não a acompanham. Essa assimetria torna-se pronunciada após 28 semanas. Em gestações bem datadas, o melhor critério para o diagnóstico do CIR, de ambos os tipos, é a medida da CA ou a determinação do peso fetal estimado (PFE) inferior ao 10o porcentil.
■ Etiologia Em razão de as condutas clínica e prognóstica serem altamente dependentes da etiologia, é importante encontrar a causa específica do CIR. O CIR pode ser dividido em fetal, placentário e materno. Vale lembrar que 50 a 70% dos casos de CIR são simétricos e constitucionais, sem qualquer anormalidade. Cerca de 5 a 10% são fetais e 20 a 30% têm causas vasculares.
■ Fetal ▶ Anormalidades estruturais e cromossomiais fetais. O CIR é mais comum na trissomia 18 e na triploidia, mas também ocorre nas trissomias 13 e 21. O CIR pode decorrer de anomalia de replicação celular, bem como de defeitos metabólicos e vasculares da placenta aneuplóidica. Fetos com malformações estruturais e cariótipo normal também podem exibir CIR. Anomalias comumente associadas são: defeitos cardíacos, agenesia renal, gastrosquise, displasia esquelética, anencefalia. É relevante a associação entre intestino hiperecogênico e CIR, presente em 15% dos casos. No total, os distúrbios cromossomiais e as anomalias estruturais são responsáveis por, aproximadamente, 5 a 10% dos fetos com CIR. Via de regra, o CIR é precoce (antes de 20 a 24 semanas) e simétrico. ▶ Infecções congênitas. Quando atingem o concepto de até 16 a 20 semanas, as infecções congênitas determinam CIR simétrico. As infecções habitualmente associadas ao CIR são citomegalovírus (CMV), toxoplasmose, sífilis e malária [Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG), 2013]. ▶ Gravidez gemelar. A gravidez gemelar está associada não apenas ao parto pré-termo como também ao CIR. Pelo geral, a taxa de crescimento de gêmeos é igual à de fetos de gravidez única até 32 semanas; após essa data, o crescimento fetal em gemelares difere de maneira significativa, provavelmente em virtude da insuficiência relativa da placenta. O CIR pode ocorrer tanto na variedade monocoriônica como na dicoriônica, mas é mais comum e grave na monocoriônica. O crescimento discordante (diferença de peso > 20% entre os gêmeos) incide em um quarto a um terço das gestações gemelares, especialmente nas múltiplas (tripla, quádrupla etc.).
■ Placentário ▶ Insuficiência placentária. O CIR está incluído nas grandes síndromes obstétricas, caracterizadas por remodelação placentária defeituosa das artérias espiraladas; há placentação defeituosa, mas a grávida não desenvolve disfunção endotelial como na toxemia (Capítulo 18). ▶ Anormalidades estruturais. A associação da placenta ao CIR é primária, predispondo as anormalidades estruturais à implantação defeituosa, que reduz o fluxo umbilical ou diminui a superfície de trocas. As alterações estruturais placentárias mais importantes são: placenta pequena (mau desenvolvimento viloso terminal), placenta prévia, placenta circunvalada, inserção velamentosa do cordão, corioangioma e artéria umbilical única.
■ Materno ▶ Má nutrição. Se for muito grave pode determinar CIR. Estudos do cerco de Leningrado, na Segunda Guerra Mundial, e da fome na Holanda, no mesmo período, sugerem que a ingesta calórica deve ser menor que 1.500 kcal/dia para tornar evidente o baixo peso fetal. ▶ Doença vascular. Está associada à diminuição da perfusão uteroplacentária e representa 20 a 30% de todos os fetos com CIR. As afecções mais frequentes são pré-eclâmpsia grave precoce, hipertensão crônica com pré-eclâmpsia superajuntada, doença renal crônica e doença vascular do colágeno. ▶ Trombofilias. Especialmente a síndrome antifosfolipídio (SAF), que está associada a diversas complicações na gravidez, como trombose vascular, perda fetal, abortamento, préeclâmpsia, parto prétermo, assim como também ao CIR. ▶ Abuso de substâncias e estilo de vida. O tabagismo materno pode diminuir o peso fetal em 135 a 300 g. Consumo de cafeína ≥ 300 mg/dia no 3o trimestre, drogas como cocaína, heroína e álcool (síndrome alcoólica fetal), e fármacos como anticonvulsivantes (trimetadiona, fenitoína) e varfarina também podem determinar CIR.
■ Diagnóstico A seguir são apresentadas as recomendações do RCOG (2013) e da Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC, 2013) para a investigação e conduta nos casos de PIG/CIR (Figura 29.1). ▶ História. Todas as mulheres na 1a consulta prénatal devem ser avaliadas para fatores de risco de CIR (Tabela 29.1). Aquelas com fatores de risco maiores (odds ratio > 2) devem ser referidas para a mensuração seriada da CA e a realização do Doppler da artéria umbilical, a partir de 26 a 28 semanas.
Figura 29.1 ■ Conduta no crescimento intrauterino restrito (CIR). US, ultrassonografia; CA, circunferência abdominal.
Tabela 29.1 ■ Fatores de risco maiores* para crescimento intrauterino restrito (CIR). Idade materna > 40 anos Baixo ganho de peso materno Mãe/pai nascidos com CIR Tabagismo (> 10 cigarros/dia) Uso de cocaína Exercício vigoroso diário História de CIR História de natimorto Hipertensão crônica Diabetes com complicação vascular Doença renal com hipertensão Síndrome antifosfolipídio (SAF) Hemorragia** Intestino hiperecogênico
*Odds ratio > 2. **Ameaça de abortamento e inexplicável. Adaptada de RCOG, 2013.
▶ Medida do fundo do útero. A medida seriada do fundo do útero a partir de 20 semanas deve ser recomendada a cada consulta pré-natal (Figura 29.2). O retardo de 3 a 4 cm de uma medida para outra, espaçada de 1 mês, faz suspeitar de CIR. ▶ Biometria fetal. A CA e o PFE são as medidas mais precisas para o diagnóstico do CIR. Fala-se em CIR quando a CA ou o PFE são < 10o porcentil (Figura 29.3). Quando indicada a avaliação seriada do crescimento fetal, essas medidas devem ser feitas em intervalos de 3 semanas. ▶ Doppler de artéria uterina. Pacientes com Doppler anormal das artérias uterinas entre 20 e 24 semanas [definido como índice de resistência (RI) > 0,58, índice de pulsatilidade (PI) > 1,45 ou incisura bilateral] devem ser referidas para avaliação seriada sonográfica do crescimento fetal pela CA e do seu bem-estar pelo Doppler da artéria umbilical, a partir de 26 a 28 semanas. Se o Doppler de artéria uterina for normal será oferecida uma reavaliação da CA e do Doppler umbilical no 3o trimestre (28 a 32 semanas). ▶ Diagnóstico do CIR fetal. Se o diagnóstico do CIR for precoce, especialmente se o Doppler de artéria uterina e o volume do líquido amniótico forem normais, estarão indicados a ultrassonografia morfológica e o cariótipo fetal, particularmente em casos de anomalia estrutural, assim como o rastreamento de infecção congênita para CMV e toxoplasmose [sorologia materna e reação em cadeia da polimerase (PCR) no líquido amniótico] (Figura 29.4). ▶ Dosagem do fator de crescimento placentário. O fator de crescimento placentário (PlGF) é um biomarcador produzido pela placenta, mais especificamente pelo sinciciotrofoblasto. Na gravidez normal, os níveis de PlGF elevam-se até o fim do 2o trimestre, depois gradualmente decrescem até o parto. A dosagem do PlGF, que já era utilizada como biomarcador de préeclâmpsia, também pode identificar CIR placentário. O teste é considerado positivo quando o valor do PlGF está abaixo do limite de detecção do ensaio (< 12 pg/mℓ), caracterizando CIR placentário.
Figura 29.2 ■ Curvas porcentílicas da altura uterina (AU) durante a gravidez normal. IG, idade gestacional.
Figura 29.3 ■ Diagnóstico do crescimento intrauterino restrito pela medida da circunferência abdominal (CA) à ultrassonografia. VU, veia umbilical; E, estômago.
Figura 29.4 ■ Diagnóstico de crescimento intrauterino restrito (CIR). ACM, artéria cerebral média; vLA, volume do líquido amniótico; PCR-LA, reação em cadeia da polimerase no líquido amniótico; C/P, relação cérebro/placenta. (Adaptada de Baschat et al., 2007.)
■ Avaliação anteparto Excluindo-se os casos de aneuploidias, anomalias estruturais e infecção fetal, o restante dos fetos com CIR, dito placentário, existe em estado de privação leve/moderada crônica de oxigênio e de substratos, que pode resultar em hipoxia anteparto, intraparto e neonatal, encefalopatia isquêmica, aspiração de mecônio, policitemia, hipoglicemia e outras anormalidades metabólicas. Em consequência, torna-se imperativo otimizar a época da interrupção, evitar a hipoxia durante o parto e providenciar cuidados imediatos neonatais. A cardiotocografia (CTG) e o volume do líquido amniótico (vLA) não são bons procedimentos para avaliar o feto com CIR (RCOG, 2013); oligoidrâmnio isolado (maior bolsão < 2 cm) não é critério para a interrupção da gravidez. Nesse contexto, apenas a CTG computadorizada por meio do estudo das microscilações é capaz de se correlacionar à acidemia fetal. Todavia, trata-se de um sinal tardio que só se evidencia após as alterações velocimétricas do Doppler. Pelo tempo que a CTG computadorizada está anormal, mais de 60% dos fetos já estão hipoxêmicos e acidêmicos. O Doppler é o método de eleição para avaliar a vitalidade fetal no CIR [SOGC, 2007, 2013; Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM), 2012; RCOG, 2013]. As alterações no Doppler podem ser divididas em precoces [artéria umbilical, artéria cerebral média (ACM)] e tardias (ducto venoso, veia umbilical), e elas estão espaçadas por muitos dias (Figura 29.5). A utilização de uma combinação de vasos arteriais e venosos é capaz de demonstrar o grau da insuficiência placentária, o nível de redistribuição da circulação fetal (centralização) e o comprometimento da função cardíaca. A insuficiência placentária é avaliada pelo Doppler da artéria uterina e da umbilical; a centralização, pelo Doppler da ACM (Figura
29.6); e o comprometimento cardíaco, pelo Doppler do ducto venoso e da veia umbilical. São recomendações da SOGC (2007) a respeito do Doppler: • Doppler uterino anormal (RI > 0,58 e incisura diastólica) está associado a risco 4 a 8 vezes maior de CIR/pré-eclâmpsia • Doppler uterino normal, ao contrário, mostra valor preditivo negativo de 99%, excluindo essas complicações • Doppler da artéria umbilical é o procedimento de eleição para avaliar a insuficiência placentária no CIR • Doppler da artéria umbilical zero/reverso é indicação para outros estudos complementares ou o parto médico indicado
Figura 29.5 ■ Alterações do Doppler no crescimento intrauterino restrito (modelo obstrutivo/toxêmico). A/B, sístole/diástole; C/P, relação cérebro/placenta.
Figura 29.6 ■ Centralização fetal. C, índice pulsátil da artéria cerebral média; P,índice pulsátil da artéria umbilical.
• Outros parâmetros do Doppler, especialmente o Doppler do ducto venoso (zero/reverso na contração atrial) ou da veia umbilical (pulsação) podem predizer melhor o comprometimento iminente da função cardíaca e a urgente necessidade do parto. A SMFM (2012) não legitima o uso do Doppler da ACM e do ducto venoso no CIR. ▶ Novos paradigmas. Na vigência de CIR, o Doppler da artéria umbilical é realizado a partir de 26 semanas de gravidez (Figura 29.7). A ocorrência de diástole no Doppler da artéria umbilical, mesmo anormal (relação A/B > 3), autoriza o exame 1 a 2/semana e a interrupção com 37 semanas. A diástole reversa é indicação de parto imediato. No caso de diástole zero, deve-se acompanhar o feto 3 vezes por semana e interromper a gravidez com 32 a 34 semanas ou quando da pulsação da veia umbilical. O Doppler anormal do ducto venoso na ausência da pulsação umbilical não traduz comprometimento fetal, não havendo mais motivo para sua realização (vale lembrar que o ducto venoso zero/reverso, após a diástole zero na artéria umbilical, era uma das indicações para interromper a gravidez). O corticoide antenatal é obrigatório se o parto for esperado entre 24 e 34 semanas. O risco de morte fetal no CIR é 2 vezes maior após 37 semanas quando comparado a gestações interrompidas antes dessa data. Com 39 e 40 semanas, o risco é ainda maior, respectivamente, 3 a 7 vezes mais elevado. Conclui-se que no CIR, mesmo com os exames de vitalidade normais, a melhor conduta é interromper a gravidez com 37 semanas.
Figura 29.7 ■ Acompanhamento fetal: indicação para o parto.
Por outro lado, vigente o CIR tardio (> 34 semanas), o Doppler da artéria umbilical parece não se alterar, o que não ocorre com a ACM que exibe aumento do fluxo, traduzindo uma centralização tardia [relação cérebro/placenta (C/P) < 1]. ▶ Tratamento. Um recente trabalho de metanálise mostrou que a profilaxia com ácido acetilsalicílico em baixa dose utilizada antes de 16 semanas foi capaz de reduzir a incidência de mortalidade perinatal em 60% e a de CIR em 50%. Pacientes com história prévia de CIR e com alto risco para pré-eclâmpsia também farão uso de ácido acetilsalicílico com início entre 12 e 16 semanas, até 36 semanas de gestação (RCOG, 2013; SOGC, 2013). Em casos de SAF, a associação de ácido acetilsalicílico (100 mg/dia) com heparina de baixo peso molecular (enoxaparina 40 mg/dia subcutânea) seria eficiente para aumentar o peso do feto ao nascimento. ▶ Conduta obstétrica. O melhor método para interromper a gestação com CIR é a operação cesariana. Quando não houver sofrimento fetal, é permitido o parto vaginal, desde que sempre monitorado. Durante o parto, 50% dos fetos com CIR exibem traçados cardiotocográficos anormais, especialmente desacelerações umbilicais. Não se aconselha a indução no alto risco.
■ Morbidade e mortalidade ▶ Fetal. A mortalidade perinatal é 10 vezes maior do que a observada em fetos com o peso adequado, especialmente nos PIG abaixo do 3o porcentil. Cerca de 25% de todos os natimortos são PIG. ▶ Neonatal. As complicações do recém-nascido PIG incluem policitemia, hiperbilirrubinemia, hipoglicemia, hipotermia, episódios de apneia, baixo índice de Apgar, pH da artéria umbilical do cordão < 7,0, intubação endotraqueal, convulsões, sepse e morte neonatal (Tabela 29.2). Por fim, há hipótese consistente (programação fetal) de que fetos submetidos a insultos in
utero (p. ex., CIR) possam manifestar doença na vida adulta. Há registros de associação entre o baixo peso ao nascer e a doença cardiovascular e diabetes tipo 2 na vida adulta.
Tabela 29.2 ■ Principais morbidades neonatais determinadas por complicações da gravidez e do parto. Morbidade neonatal
Etiologia principal
Problemas respiratórios Taquipneia transitória
Cesárea eletiva (< 39 semanas)
Síndrome da angústia respiratória (SAR)
Prematuridade
Hipoplasia pulmonar
Compressão extrínseca (< 24 semanas) Oligoidrâmnio Hérnia diafragmática congênita
Displasia broncopulmonar
Ventilação mecânica (volutrauma e hiperoxia)
Hipertensão pulmonar
Volutrauma Estresse hipóxico
Síndrome de aspiração de mecônio (SAM)
Pós-maturidade
Problemas gastrintestinais Enterocolite necrosante
Prematuridade
Problemas neurológicos Encefalopatia hipóxico-isquêmica
Insuficiência placentária (apenas 10% intraparto)
Hemorragia intraventricular (HIV)
Prematuridade
Leucomalacia periventricular (LPV)
Prematuridade
Paralisia cerebral
Prematuridade (35%) Infecções perinatais – toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, sífilis, herpes simples, corioamnionite (5-10%) Encefalopatia hipóxico-isquêmica intraparto (10%) Pós-natal – meningite, trauma cefálico (10%)
Problemas infecciosos
Sepse, meningite
Estreptococo do grupo B (GBS) Corioamnionite
■ Pontos-chave O crescimento intrauterino restrito tem causa heterogênea – constitucional, fetal, materno e placentário.
A mortalidade perinatal é 10 vezes maior do que a observada em fetos normais, e cerca de 25% dos natimortos são PIG. A maioria dos fetos com crescimento intrauterino restrito (50 a 70%) é constitucional, sem nenhuma anormalidade, nem qualquer indicação de intervenção na gravidez. O crescimento intrauterino restrito fetal é simétrico e precoce, e decorre de anomalias cromossomiais, malformações estruturais e infecções congênitas; o seu prognóstico é sombrio. O crescimento intrauterino restrito placentário, especificamente o modelo toxêmico, está associado à placentação defeituosa. O crescimento intrauterino restrito materno de causa vascular confunde-se com o crescimento intrauterino restrito placentário. O procedimento mais simples para diagnosticar o crescimento intrauterino restrito é a circunferência abdominal determinada pela ultrassonografia. O biomarcador fator de crescimento placentário tem sido proposto para diagnosticar o crescimento intrauterino restrito placentário. O Doppler umbilical é o método de eleição para avaliar a vitalidade fetal no crescimento intrauterino restrito placentário. Recém-nacidos pequenos para a idade gestacional apresentam elevada morbimortalidade neonatal e doença na vida adulta (cardiovascular e diabetes do tipo 2).
■ Incidência ■ Etiologia ■ Avaliação da idade da gravidez pela ultrassonografia ■ Riscos fetais ■ Riscos maternos ■ Tratamento ■ Síndrome de aspiração de mecônio ■ Pós-maduro
A gravidez prolongada é definida internacionalmente como aquela que alcança ou ultrapassa 42 semanas (294 dias), contadas a partir do 1o dia da última menstruação [Organização Mundial da Saúde (OMS), 2006].
■ Incidência A incidência notificada de gravidez prolongada é de 7% [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2004]. Entretanto, quando se tem como rotina datar a gravidez pela ultrassonografia de 1o trimestre, essa incidência se reduz para 2 a 3%.
■ Etiologia A causa mais comum é o erro no cálculo da idade da gravidez avaliada pela última menstruação informada (ACOG, 2004). Quando a gravidez prolongada é verdadeira, a etiologia em geral é desconhecida. Os fatores de risco mais frequentemente identificados são primiparidade e gravidez prolongada em gestação anterior. Raramente a gravidez prolongada pode estar associada à deficiência de sulfatase placentária (doença genética ligada ao cromossomo X, caracterizada por baixos níveis de estriol circulante), à insuficiência ou hipoplasia da suprarrenal fetal, ou à anencefalia (sem polidrâmnio). Também há associação com o sexo masculino do bebê, ou seja, predisposição genética materna (história familiar).
■ Avaliação da idade da gravidez pela ultrassonografia A idade precisa da gravidez é importante para minimizar o falso diagnóstico de gravidez prolongada (ACOG, 2004). A mensuração do comprimento cabeça-nádega (CCN) realizada no 1o trimestre da gestação é o modo mais preciso de avaliação. Nessa época, o erro na estimativa da idade da gravidez pelo CCN é de ± 5 dias. No 2o trimestre, a idade da gravidez é estimada pela medida do diâmetro biparietal (DBP) ou do comprimento do fêmur (CF), com precisão de ± 10 dias. Se a idade da gravidez fornecida pela última menstruação diferir da estimada pela ultrassonografia e suas variações, vale o cálculo realizado pela sonografia.
■ Riscos fetais A gravidez prolongada está associada a riscos importantes para o feto. A taxa de mortalidade perinatal (natimortalidade + neomortalidade precoce) com gravidez de mais de 42 semanas é 2 vezes maior do que com gravidez a termo (4 a 7 vs. 2 a 3 por 1.000 partos), e aumenta para 6 vezes ou mais nas gestações que atingem ou ultrapassam 43 semanas (ACOG, 2004). A incidência de macrossomia é elevada (20 a 25%), assim como de suas complicações
associadas, como distocia de ombros, lesões ortopédicas e neurológicas (Figura 30.1). Aproximadamente, 20 a 25% das gestações prolongadas evoluem com insuficiência placentária, oligoidrâmnia, compressão do cordão umbilical e eliminação de mecônio (Figura 30.1). O recém-nascido, com características de crescimento intrauterino restrito, a atestar o longo processo de insuficiência placentária, é dito pós-maduro. Os testes de avaliação da vitalidade fetal anteparto e intraparto costumam ser anormais. O mecônio raramente é eliminado no líquido amniótico antes de 32 semanas de gestação; no termo, sua frequência é de 10 a 15%. Com 42 semanas essas taxas ascendem para 25 a 30%, e o mecônio associado à oligoidrâmnia forma o “mecônio espesso”, fator agravante da síndrome de aspiração de mecônio (SAM).
Figura 30.1 ■ Evolução da gravidez prolongada.
■ Riscos maternos A gravidez prolongada também está associada a riscos significantes na grávida, incluindo distocia no parto, aumento nas lesões perineais e na incidência de cesárea, todos decorrentes da macrossomia fetal (ACOG, 2004).
■ Tratamento As grávidas com condições de alto risco, como diabetes, hipertensão e idade materna avançada (> 35 anos), devem ter a gestação interrompida com 39 semanas. Do mesmo modo, na gravidez gemelar, todo o esforço deve ser dirigido para interromper a gravidez com 40 semanas (idade considerada prolongada para gemelares). Não há diferença no prognóstico fetal em relação à conduta expectante ou intervencionista até 41 semanas. Nessa fase da gravidez, a única avaliação anteparto pertinente seria a contagem dos movimentos fetais (Capítulo 59). Todas as evidências atuais sugerem que a indução do parto com ≥ 41 semanas na gravidez de
baixo risco apresenta ganho significante para o feto, sem elevar a taxa de cesarianas ou os riscos maternos. Após 41 semanas, os seguintes e sucessivos estágios parecem pertinentes (Figura 30.2): • Cardiotocografia (CTG) e volume do líquido amniótico (vLA). O Doppler não tem utilidade nesse cenário (ACOG, 2004) • Exame pélvico • Indução do parto. Se os exames de avaliação fetal estiverem normais e o índice de Bishop for ≥ 6 (colo maduro), está indicada a indução do parto com ocitocina. Diante de propedêutica fetal normal e índice de Bishop < 6, as opções são o descolamento das membranas ou o uso do misoprostol vaginal, visando o amadurecimento cervical (ACOG, 2004). Em caso de sofrimento fetal, identificado por CTG ou vLA, a interrupção da gravidez deve ser feita pela operação cesariana (Figura 30.2). ▶ Descolamento das membranas. A morbidade materna está relacionada principalmente com desconforto significante ou dor durante o descolamento, sangramento e contrações que não conduzem ao parto em 24 h (ver Figura 12.31). Alguns autores propõem que o descolamento das membranas seja oferecido à paciente a partir de 39 semanas de gestação, para evitar que a gestação alcance 41 semanas. A gravidez prolongada apresenta risco elevado de anormalidades da frequência cardíaca fetal (fcf) no parto e eliminação de mecônio. O monitoramento fetal contínuo está recomendado nessas gestações.
Figura 30.2 ■ Conduta na gravidez prolongada. vLA, volume do líquido amniótico; CTG, cardiotocografia; US, ultrassonografia.
■ Síndrome de aspiração de mecônio A insuficiência respiratória que o recém-nascido apresenta na SAM decorre de pneumonite química, obstrução das vias respiratórias, disfunção do sistema surfactante e hipertensão pulmonar. A SAM é sempre consequência da hipoxia intrauterina, que aumenta a peristalse, relaxa o esfíncter anal e provoca gasping respiratório no feto. Em 2006, a American Academy of Pediatrics (AAP) e a American Heart Association (AHA) publicaram novas normas para a reanimação neonatal. A mensagem mais significante dessas novas orientações para o obstetra diz respeito à conduta no parto para o recém-nascido com líquido amniótico tinto de mecônio. A conduta então vigente, a aspiração intraparto, incluía a aspiração da orofaringe e da nasofaringe após o parto da cabeça, e antes da expulsão dos ombros. As evidências recentes não indicam essa prática, porque a aspiração intraparto não previne ou altera o curso da SAM. O ACOG (2007) concorda com essas instituições e não mais recomenda a aspiração intraparto de rotina nos recém-nascidos com líquido amniótico tinto de mecônio. Se o mecônio estiver presente e o recém-nascido deprimido, o médico deve intubar a traqueia e aspirar o mecônio abaixo da glote. Se o recém-nascido for vigoroso e estiver apresentando esforços respiratórios fortes, bom tônus muscular e fcf > 100, não há evidência que justifique a aspiração da traqueia. A lesão das cordas vocais é muito mais provável de ocorrer ao se tentar intubar um bebê vigoroso.
■ Pós-maduro A caracterização do recém-nascido pós-maduro é feita pela escala de Clifford. Os recém-nascidos do grau I de pós-maturidade geralmente apresentam todos ou vários dos seguintes sinais (Figura 30.3): • Pele seca, apergaminhada, com descamação; dobras cutâneas excessivas, principalmente nas nádegas e nas coxas, conferindo ao recém-nascido aspecto emagrecido • Unhas longas • Cabelo abundante • Escassez ou ausência de lanugo • Ossos cranianos mais duros do que os do recém-nascido a termo • Vivacidade maior do que a esperada para a idade pós-natal. No grau II, além dos sinais clínicos descritos anteriormente, encontram-se líquido amniótico, pele, verniz caseoso, cordão umbilical e membranas corados de mecônio. Os recém-nascidos do grau III têm as alterações referidas para os graus I e II, e apresentam pele e unhas intensamente coradas de amarelo e o cordão umbilical, de amarelo-esverdeado.
Figura 30.3 ■ Recém-nascido de gravidez prolongada. A. Aspecto de “idoso” e de “preocupação”. B. Além da expressão fisionômica, note a extensa descamação epidérmica e o pequeno panículo adiposo. (Arq. 33a Enf.) C e D. Descamação das faces plantar e palmar (“mãos de lavadeira”). E. Unhas crescidas, ultrapassando a polpa digital. F. Descamação epidérmica na região inguinal; pele apergaminhada. (Arq. 33a Enf.)
■ Pontos-chave Considera-se gravidez prolongada aquela que atinge ou ultrapassa 42 semanas (294 dias), contadas a partir do 1o dia da última menstruação. Cerca de 7% das gestações são prolongadas, embora um número expressivo delas seja decorrente de erro de data. Toda gestação deve ter sua data confirmada pela ultrassonografia de 1o trimestre. Cerca de 20 a 25% das gestações prolongadas cursam com macrossomia fetal e possível distocia no parto. Outros 20 a 25% evoluem com insuficiência placentária e apresentam risco de oligoidrâmnia, compressão do cordão umbilical e síndrome de aspiração de mecônio. Os recém-nascidos pós-maduros podem ser classificados em 3 graus pela escala de Clifford. A partir de 41 semanas da gravidez está indicada a indução do parto. A avaliação da vitalidade fetal na gravidez prolongada é feita pela cardiotocografia e pelo volume de líquido amniótico. Estando alterada a vitalidade fetal, a interrupção da gravidez deve ser feita pela operação cesariana. Na síndrome de aspiração de mecônio, a intubação só está indicada no bebê deprimido.
■ Incidência ■ Etiopatogenia ■ Quadro clínico ■ Acompanhamento na gravidez ■ Provas imunoematológicas no recém-nascido ■ Prevenção ■ Tratamento ■ Prognóstico ■ DHPN não D
A doença hemolítica perinatal (DHPN), ou eritroblastose fetal e do recém-nascido, é uma afecção generalizada, acompanhada de anemia, destruição das hemácias e aparecimento de suas formas jovens ou imaturas (eritroblastos) na circulação periférica, com atividade persistente e anômala de focos extramedulares de hematopoese. Decorre, originariamente, de incompatibilidade sanguínea maternofetal. Os anticorpos da gestante, específicos para antígeno localizado nas hemácias do concepto, intervêm como elementos desencadeantes. Em 98% dos casos de DHPN, a incompatibilidade entre a mãe e o feto é atribuída aos sistemas Rh e ABO. Nos 2% restantes, está em jogo um grupo variado e incomum de anticorpos denominados irregulares. A incompatibilidade pelo sistema ABO é responsável pela maioria dos casos de DHPN; todavia, como são de pequena gravidade clínica, esses casos tendem a passar despercebidos. À discordância de Rh atribui-se contingente expressivo de conceptos seriamente afetados. A DHPN determinada por anticorpos irregulares traz consequências variáveis para o feto, dependendo do fator sanguíneo envolvido. Devido aos efeitos prejudiciais sobre o feto e o recém-nascido, a DHPN, até pouco tempo de importância notável em obstetrícia, pôde ser reduzida a níveis mínimos de incidência com o emprego de medidas profiláticas adequadas.
■ Incidência A incidência da DHPN após a universalização de sua profilaxia com uso da imunoglobulina anti-D adquiriu novo perfil. Mesmo nos Estados Unidos, onde a profilaxia é universal, o último dado demográfico do National Center for Health Statistics, em 2003, relatou incidência de DHPN em 6,8 para 1.000 nascimentos vivos.
Figura 31.1 ■ Mecanismo da aloimunização materna. A. Mãe Rh-negativa e feto Rh-positivo. B. Passagem da hemácia fetal Rh-positiva e produção de anticorpos pela mãe. C. Passagem do anticorpo para o feto e reação com a hemácia fetal.
■ Etiopatogenia Estão relacionados com a ocorrência de doença hemolítica os seguintes aspectos (Figura 31.1): • Incompatibilidade sanguínea maternofetal • Aloimunização materna • Passagem de anticorpos da gestante para o organismo do feto • Ação desses anticorpos maternos no concepto.
■ Incompatibilidade sanguínea maternofetal A DHPN é decorrente de incompatibilidade sanguínea maternofetal. Nesse caso, o concepto apresenta fator hemático de herança paterna, ausente no organismo da gestante e capaz de imunizála, produzindo anticorpos específicos ao referido fator. ▶ Sistema Rh. Em 1946, Fisher e Race propuseram o conceito de que três genes seriam responsáveis pela codificação dos três maiores antígenos do sistema Rh – D, C/c e E/e. Quase 50 anos mais tarde, o locus Rh foi localizado no braço pequeno do cromossomo 1, mas somente dois genes foram identificados – D e CE (Figura 31.2). Aproximadamente 55% dos indivíduos são heterozigotos para o locus D. Nesse caso, apenas 50% dos fetos são Rh-positivos e, assim, passíveis de serem atingidos pelo anticorpo materno (Figura 31.3). Por outro lado, os fetos Rh-negativos não são afetados.
Figura 31.2 ■ Loci dos genes Rhesus – cromossomo 1p34-36.
Para fins práticos, os indivíduos D são considerados Rh-positivos e os desprovidos de D, Rhnegativos. O soro anti-D corresponde ao inicialmente nomeado anti-Rh, sendo o antígeno D o mais importante do sistema Rh. Os indivíduos chamados Rh-positivos são os portadores de D, e podem ser homozigotos, quando herdam dois cromossomos com D (são DD, e transmitem apenas D), ou
heterozigotos, quando recebem um cromossomo com D e outro com d (Dd, transmitindo tanto D como d). Os desprovidos de D são Rh-negativos e sempre homozigotos para d. O antígeno D das hemácias Rh-positivo apresenta uma variante denominada D-fraco (antigo Du de Stratton). Alguns portadores do antígeno D-fraco são capazes de produzir o antígeno anti-D, embora a aloimunização raramente ocorra.
Figura 31.3 ■ Representação esquemática do cruzamento de mulher Rh-negativa (constituição sempre homozigótica) com indivíduo Rh-positivo (heterozigoto, em cima, e homozigoto, embaixo). No 1o caso, é a progênie de indivíduos Rh-positivos e Rh-negativos em proporções iguais; no 2o, a descendência é, obrigatoriamente, Rh-positiva.
O percentual de Rh-negativos varia segundo a raça, alcançando 15% nos caucasoides, 3 a 5% nos negroides e raro nos mongoloides. Considerando os 3 pares em conjunto, aceita-se que os seus 3 loci estão próximos e talvez absolutamente ligados, transmitindo-se sempre reunidos. ▶ Outros sistemas. Outros sistemas de grupos sanguíneos são capazes de aloimunização. Entre os de maior antigenicidade destacam-se Kell, Duff e Kidd.
■ Aloimunização materna
Na DHPN, a aloimunização materna é ocasionada: • Pela administração de sangue incompatível produzida por hemotransfusão como na antiga prática da heteroemoterapia; em ambas, o que há de danoso e altamente condenável é o desconhecimento do fator Rh da receptora antes da aplicação do sangue (Figura 31.4)
Figura 31.4 ■ Vias de aloimunização materna: hemotransfusão, heteroemoterapia (hoje excepcional) e gravidez.
• Subsecutivamente à gestação de produtos Rh-discordantes, sendo produzida pela passagem de hemácias fetais, que são as únicas células com antígeno Rh, durante a gestação ou no momento do parto. Hemorragias fetomaternas espontâneas ocorrem com frequência e volume acentuados durante a evolução da gravidez. Na maioria dos casos, a carga antigênica do antígeno D das hemácias fetais é insuficiente para estimular o sistema imunológico materno. Todavia, no caso da hemorragia fetomaterna do parto ou, excepcionalmente, vigente grande hemorragia fetomaterna antenatal, os linfócitos B maternos passam a reconhecer o antígeno D. A produção de anti-D materno é inicialmente de IgM, de curta duração, com rápida mudança para a resposta IgG. A memória dos
linfócitos B, então, espera nova exposição antigênica que ocorrerá na gravidez subsequente. Se estimulados pelo antígeno D das hemácias fetais, esses linfócitos rapidamente se proliferam e produzem anticorpos IgG que elevam os títulos maternos. Cerca de metade das mulheres sensibiliza-se na 1a gravidez e ⅓ na 2a gestação. Em 70% dos casos, a sensibilização ocorre no 2o ou no 3o trimestre e, em 20% dos casos, no termo ou no pósparto.
■ Passagem de anticorpos da gestante para o organismo fetal Os anticorpos dos vários sistemas de grupos sanguíneos que se encontram na fração IgG (nomeados imunes, incompletos ou bloqueadores) atravessam a placenta. Os IgM e IgA, chamados anticorpos naturais ou completos, não passam para o organismo fetal. A transferência de anticorpos da mãe para o filho é feita pela placenta e pelo IgG, o qual se liga ao receptor Fc da membrana plasmática do trofoblasto. O transporte é realizado por endocitose receptor-mediada (Figura 31.5). Quando decorre de incompatibilidade com o sistema ABO, a DHPN tem como anticorpos responsáveis os imunes anti-A e anti-B, pois os naturais anti-A e anti-B não franqueiam a placenta, como anteriormente afirmado.
■ Ação dos anticorpos maternos no organismo fetal Os anticorpos maternos que passam para o feto, em virtude da reação específica antígenoanticorpo, irão produzir hemólise de suas hemácias e, depois, a das hemácias do recém-nascido e, segundo a subclasse de IgG e a intensidade do fenômeno, condicionam os diferentes quadros clínicos da doença.
Figura 31.5 ■ Passagem de anticorpos maternos IgG através do trofoblasto por meio de endocitose receptor-mediada. No esquema ilustrado são visualizadas as seguintes etapas: 1, ligação de IgG ao receptor Fc; 2, formação do vacúolo endocitário; 3, transporte através do trofoblasto; 4, exocitose no lado fetal do trofoblasto.
Esses anticorpos maternos, quando ingressam no organismo do feto, combinam-se com suas hemácias; os macrófagos (SRE esplênico) reconhecem a porção Fc do anticorpo e a fagocitam, o que gera bilirrubina. É a hemólise lato sensu. Sabe-se que as formas clínicas da DHPN (ictéricas, anêmicas e hidrópicas) decorrem da intensidade do processo de destruição e formação das hemácias e consoante a predominância de IgG1 ou de IgG3. O IgG1 migra mais cedo, tem teor elevado, e a regeneração (formação de novas hemácias – eritroblastose) leva ao empobrecimento proteico do feto, o que causa edema, ascite e hidropisia. Se prevalecer o IgG3, cuja passagem é tardia, os níveis, menores, só ascendem após 28 semanas. Em geral, o feto nasce anêmico; a icterícia só irrompe depois do parto; se não tratada, progride e pode chegar a kernicterus.
■ Quadro clínico ■ Diagnóstico anteparto Na gravidez, a incompatibilidade pelo sistema Rh poucas vezes acomete o 1o filho (5%), exceto se houver referência à hemotransfusão sem o conhecimento prévio do fator Rh (Tabela 31.1). O histórico de um ou dois filhos normais, seguidos de recém-nascidos com icterícia grave e
persistente, manifesta nas primeiras horas de vida, anemia e morte nos casos de maior agravo clínico sugerem aloimunização Rh.
Tabela 31.1 ■ Comparação entre a incompatibilidade Rh e a ABO. Rh
ABO
Mãe
Negativo
O
Feto
Positivo
A ou B
Ocorrência no 1o filho
5%
40-50%
Gravidade progressiva em gravidezes subsequentes
Usualmente
Não
Natimorto/hidrópico
Frequente
Raro
Anemia grave
Frequente
Rara
Anemia tardia
Frequente
Rara
Icterícia (grau)
+++
+
Hepatoesplenomegalia
+++
+
Teste de Coombs direto (bebê)
+
+ ou –
Anticorpos maternos
Sempre presentes
Não detectáveis
Esferocitose
Ausente
Presente
Antenatal
Sim
Não
Transfusão complementar
Sim
Rara
Tipo de sangue
Rh-negativo; grupo-específico (se possível)
Rh igual ao do bebê; somente grupo O
Profilaxia
Sim
Não
Grupo sanguíneo
Aspectos clínicos
Exames de laboratório
Tratamento
Em outros casos, há natimortos e hidrópicos que se repetem, encerrando gravidezes de curso normal. Em mulheres com história clínica de 1 natimorto por incompatibilidade Rh, a probabilidade
de se reproduzir o acidente é de 75%, que ascende para 90% quando o histórico é de 2 natimortos. A incompatibilidade ABO ocorre, na 1a gravidez, em 40 a 50% dos casos (Tabela 31.1). Em história obstétrica pregressa expressiva de DHPN, há sempre discordância Rh ou ABO entre os genitores. Nas síndromes ocasionadas pelo sistema ABO, porém, é que a história muda.
■ Ultrassonografia A ultrassonografia é extremamente importante para o seguimento fetal na DHPN. Além de possibilitar o monitoramento de procedimentos invasivos, a ultrassonografia pode orientar a identificação dos fetos mais gravemente atingidos por anemia hemolítica, o que possibilita assentar o grau de seu comprometimento. Sinais sonográficos de descompensação fetal, de hidropisia, representam grave anemia do concepto, com hematócrito inferior a 20% e hemoglobinometria com menos de 7 g/dℓ (Figuras 31.6 e 31.7). Diante da ausência de hidropisia do concepto, na fase compensada do seu comprometimento, outros sinais sonográficos têm muito menor importância. O aumento da espessura placentária (maior que 4 cm), perda de sua arquitetura e maior homogeneidade parecem ser os primeiros indicadores da doença. Polidrâmnio e aumento da circunferência abdominal do feto, medida seriadamente, correspondem ao agravamento do processo hemolítico.
Figura 31.6 ■ Ultrassonografia 3D de feto hidrópico, com reconstrução de superfície mostrando intenso edema facial (fácies de Buda). (Cortesia da Clínica de Ultrassonografia Botafogo, RJ.)
Figura 31.7 ■ Ultrassonografia 3D de tórax fetal, em que se observa derrame pleural bilateral e edema subcutâneo. (Cortesia da Clínica de Ultrassonografia Botafogo, RJ.)
■ Cordocentese Considerada o método de eleição para determinar o hematócrito, a hemoglobina e o grupo sanguíneo fetal, a cordocentese tem sido substituída pelo Doppler da artéria cerebral média (ACM) do concepto, como será visto adiante.
■ Diagnóstico pós-parto no recém-nascido O exame do recém-nascido tem características peculiares ao tipo de incompatibilidade e à forma clínica da enfermidade. ▶ Incompatibilidade Rh. Verifica-se que 10 a 15% de todos os casos são hidrópicos; outros 10 a 15% estão constituídos de formas leves, sem sintomatologia (eritroblastose de laboratório); finalmente, 70 a 80%, formas icteroanêmicas, têm gravidade variável e exigem tratamento. ▶ Hidropisia fetal. Os recém-nascidos com esta condição apresentam-se muito deformados pela infiltração edematosa que lhes invade o corpo inteiro. O abdome de batráquio, condicionado pela ascite, caracteriza-se por fígado e baço enormes (Figura 31.8). Em geral natimortos, a sobrevivência desses bebês era exceção. As transfusões intrauterinas têm impedido a morte de muitos bebês hidrópicos. A hidropisia fetal geralmente ocorre quando a hemoglobina fetal é < 7 g/dℓ ou o hematócrito < 20% [Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM), 2013]. ▶ Icterícia grave. Pode-se observar icterícia, instalada precocemente, nas primeiras horas de vida. O aumento de volume do fígado e do baço é pontual. O diagnóstico diferencial deve ser feito com outras icterícias do recém-nascido, como a chamada fisiológica ou benigna: esta tem início tardio (2o ou 3o dia), acomete 50% dos recémnascidos, cede espontaneamente, sendo rara a persistência além de 2 semanas.
Figura 31.8 ■ Feto hidrópico na doença hemolítica perinatal.
A sonolência brutal seria patognomônica do kernicterus, a icterícia nuclear, quando estão associados à DHPN distúrbios nervosos centrais, decorrentes da impregnação dos núcleos da base pela bilirrubina. Os sinais aparecem muitas horas depois do surgimento da icterícia. No período de estado, há hipertonia generalizada, cãibras e espasmos, com predileção destes pela musculatura da face (riso sardônico). A icterícia nuclear é de prognose sombria, em função das sequelas neurológicas, muito prejudiciais, que eclodem ao fim do 1o ano. ▶ Anemia grave. É a modalidade menos expressiva, clinicamente, de DHPN; há espleno e hepatomegalia, extrema palidez e anemia, com descoramento intenso das mucosas visíveis. O exame de sangue é fundamental. A icterícia, em geral presente, mascara a identificação dos sinais clínicos. No hemograma dos primeiros dias, a anemia constitui descoberta acidental; alcança seu máximo durante a 3a semana, sem relação com a icterícia e o grau de eritroblastose. ▶ Incompatibilidade ABO. Embora seja a mais frequente causa de DHPN, a anemia resultante costuma ser leve. Cerca de 20% de todos os bebês apresentam incompatibilidade ABO, mas apenas 5% são clinicamente afetados: • A doença ABO é frequentemente vista no 1o filho (40 a 50% dos casos) porque muitas mulheres do grupo O apresentam isoaglutininas anti-A e antedatam a gravidez. Esses anticorpos imunes são atribuídos à exposição a bactérias que exibem antígenos similares • Grande parte dos anticorpos anti-A e anti-B são IgM que não atravessam a placenta e, por isso, não têm acesso às hemácias fetais. Além disso, as hemácias fetais têm menos locais antigênicos A e B do que as células adultas e são, assim, menos imunogênicas. Não há necessidade de monitoramento da gravidez nem justificativa para o parto antecipado • A doença ABO é invariavelmente muito mais leve do que a aloimunização D e raramente
determina anemia significante. Os bebês afetados tipicamente apresentam anemia/icterícia neonatal que pode ser tratada com fototerapia (5% dos casos) • Em conclusão, a aloimunização ABO é uma doença pediátrica e não merece maiores preocupações obstétricas. A aloimunização ABO pode comprometer gestações futuras, mas raramente é progressiva como a Rh. O critério usual para a hemólise neonatal por incompatibilidade ABO é: • Mãe do grupo O e feto A, B ou AB • Icterícia que se desenvolve nas primeiras 24 h • Vários graus de anemia, com reticulocitose e esferocitose • Teste de Coombs direto positivo, mas nem sempre • Exclusão de outras causas de hemólise no bebê.
■ Acompanhamento na gravidez A anamnese deve ser minuciosa. São fundamentais a história das gestações anteriores, o desfecho de cada uma delas e os possíveis eventos hemoterápicos. A assistência processa-se em três fases: • Evidenciação da incompatibilidade sanguínea entre o casal • Determinação da possível aloimunização materna. Se presente, deve-se monitorar seu comportamento durante a gestação atual • Avaliação das condições do concepto pela dosagem espectrofotométrica da bilirrubina no líquido amniótico e, mais recentemente, por ultrassonografia, Doppler e cordocentese. ▶ Incompatibilidade sanguínea do casal. No sistema Rh, a discordância principal, gestante Rh-negativa e marido Rh-positivo, responde por mais de 90% das histórias clínicas de DHPN, embora se declare aloimunização materna em apenas 1:20 casos. É significativa a proteção determinada pela incompatibilidade ABO. Quando o pai biológico é Rh-positivo homozigoto, todos os filhos serão Rh-positivos; se heterozigoto, apenas 50%. ▶ Aloimunização materna (teste de Coombs). Os anticorpos anti-Rh são identificados por meio de exame imunoematológico no período pré-natal (teste de Coombs indireto). A determinação da sorologia materna é o primeiro passo para determinar sua aloimunização e, para esse objetivo, é utilizado o teste de Coombs indireto. Considera-se o título do teste de Coombs anormal quando associado a risco elevado de determinar hidropisia fetal. Esse valor varia de acordo com a experiência da instituição, mas em geral se situa entre 1:16 e 1:32. À 1a consulta de gestante Rh-negativa (com marido Rh-positivo), deve-se realizar pesquisa de
anticorpos anti-Rh. Resultado negativo obriga à repetição do teste com 28 semanas. Se os teores dos anticorpos aumentam em cada determinação, é provável que esteja sendo gerado um feto Rh-positivo, que sofrerá de DHPN. Se o título é > 1:8 até o final da gravidez, praticamente se exclui a possibilidade de nati ou neomorto. Nessas condições, o teste de Coombs é repetido mensalmente. ▶ Ultrassonografia. Tem sido proposta uma classificação biofísica do feto na DHPN. Sua hidropisia é subdividida em leve, grave e terminal (Tabela 31.2). A classificação, além de indicar o grau de comprometimento fetal, teria algum valor prognóstico. ▶ Cardiotocografia. Não tem se mostrado de grande valia na DHPN, pois só se altera em fetos gravemente anemiados, hidrópicos, nos quais as medidas terapêuticas já não seriam tão eficazes para reduzir-lhes a morbiletalidade. Traçados terminais (lisos, sinusoides, com dips tardios) correspondem a fetos gravemente atingidos por DHPN. Em contrapartida, não é raro encontrar conceptos com traçados do tipo reativo e já gravemente acometidos pela DHPN. ▶ Doppler. Método não invasivo atualmente consagrado na avaliação do grau de anemia fetal. Parâmetros ultrassonográficos ou cardiotocográficos jamais se correlacionaram adequadamente com o prognóstico fetal. A hidropisia fetal pode ser diagnosticada facilmente pela ultrassonografia, mas é sinal tardio de anemia, indicativo de nível de hemoglobina de mais de 7 g/d abaixo do valor médio para a idade da gravidez. Mari et al. (1995, 2000) foram os primeiros a propor a avaliação da anemia fetal na DHPN pelo Doppler da ACM. Valores da velocidade sistólica máxima (VSmáx) acima de 1,5 múltiplo da mediana (MoM) são indicativos de anemia fetal, e na maioria dos casos o teste apresentou sensibilidade de 88% e especificidade de 82%. ▶ Técnica. Inicialmente, localiza-se a asa anterior do osso esfenoide na base do crânio fetal. O Doppler colorido é acionado para localizar a ACM (Figuras 31.9, 31.10 e 31.11); o ângulo da insonação é mantido próximo a zero. Em geral, a ACM proximal é insonada imediatamente após sua saída do polígono de Willis, pois no seu segmento distal falseia os resultados. Vale lembrar que o feto deve ser examinado em período de repouso. As medidas da ACM podem ser iniciadas já a partir de 18 semanas da gravidez e são repetidas a intervalos de 1 ou 2 semanas. Como a VSmáx varia de acordo com a evolução da gravidez, os dados são apresentados em curvas padronizadas (Figura 31.12). Após 35 semanas de gestação, há taxa elevada de resultados falso-positivos. Por isso, na gestação tardia, apenas os valores normais podem ser considerados e repetidos; um valor elevado é indicativo de interrupção da gravidez ou de amniocentese. A fluxometria da ACM do concepto exibe síndrome hipercinética, privativa da anemia fetal, e há relação entre a VSmáx e o grau de anemia fetal. A VSmáx, quando > 1,5 MoM, sugere anemia grave/moderada, indicando a oportunidade para possível transfusão intravascular (TIV) e poupando grande número de cordocenteses.
Tabela 31.2 ■ Classificação biofísica do feto na doença hemolítica perinatal (DHPN).
Ultrassonografia
Classe
Placentomegalia e/ou polidrâmnio
Ascite
Derrame pleural pericárdico/Anasarca
CTG anormal*
Zero
–
–
–
–
1 (anêmico)
–
–
–
–
2 (hidropisia leve)
+
+
–
–
3 (hidropisia grave)
+
+
+
–
4 (terminal)
+
+
+
+
*Oscilação lisa/sinusoide, dip tardio. CTG, cardiotocografia. Adaptada de Harman, 1991.
Figura 31.9 ■ Mecanismo da hiperdinamia fetal. O Doppler da artéria cerebral média (ACM) fetal avalia a velocidade do fluxo sanguíneo.
Figura 31.10 ■ Doppler da artéria cerebral média (ACM) fetal. (Adaptada de Moise, 2008.)
Figura 31.11 ■ Doppler colorido da artéria cerebral média (ACM) fetal. A seta indica o local correto da janela do Doppler pulsátil. (Adaptada de Moise, 2008.)
▶ Cordocentese. A cordocentese promove o acesso direto à circulação fetal, especialmente para detectar o seu grau de anemia. Como o procedimento está relacionado com 1 a 2% de taxa de óbito fetal, sua indicação está reservada para a eventualidade de a VSmáx mostrar resultado > 1,5 MoM. Utilizado nesse contexto, o sangue fetal com hematócrito < 30% é indicativo de TIV. ▶ Dosagem espectrofotométrica da bilirrubina. Com o uso alargado do Doppler seriado da ACM, a dosagem espectrofotométrica da bilirrubina para diagnosticar a anemia fetal ficou relegada a 2o plano. A espectrofotometria do líquido amniótico é feita entre os comprimentos de onda de 350 a 550 mm. Nos casos normais, uma linha reta é observada; em caso de teor elevado de bilirrubina nos conceptos afetados, há deflexão ou pico no nível de 450 mm, cuja altura é a diferença de densidade ótica (ΔDO450) (Figura 31.13). O prognóstico fetal e a consequente conduta terapêutica são conhecidos transportando-se a ΔDO450 para gráficos elaborados com objetivo prognóstico (Figura 31.14).
Figura 31.12 ■ Valores da artéria cerebral média (ACM) de acordo com a idade gestacional. VSmáx, velocidade máxima sistólica; MoM, múltiplos da mediana. (Adaptada de Moise, 2002.)
Figura 31.13 ■ Dosagem espectrofotométrica da bilirrubina no líquido amniótico. A linha reta liga os pontos obtidos em 350 a 550 mµ. A diferença de densidade ótica é medida a 450 mµ (ΔDO450). (Adaptada de Page et al. Human Reproduction. Filadélfia: Saunders, 1973.)
▶ Protocolo de acompanhamento. O protocolo de acompanhamento do feto na DHPN baseia-se na história materna e no resultado dos exames (Figura 31.15). Como regra geral, a 1a gravidez sensibilizada envolve risco mínimo fetal/neonatal; gestações subsequentes estão associadas à piora do grau de anemia fetal.
Figura 31.14 ■ Valores de ΔDO450 na doença hemolítica perinatal (DHPN) – curva de Queenan. (Adaptada de Queenan et al., 1993 – Am J Obstet Gynecol; 168:1370.)
▶ Primeira gestação afetada. Estando a grávida sensibilizada, o teste de Coombs é repetido mensalmente. Atingido o título > 1:8, a partir de 24 semanas de gestação dá-se início ao Doppler da ACM, que será repetido a cada 1 a 2 semanas. Valor da ACM > 1,5 MoM em qualquer época entre 24 e 35 semanas é indicação para cordocentese, determinação do hematócrito fetal e TIV, se necessária. Valores da ACM ≤ 1,5 MoM possibilitam o prolongamento da gravidez até 38 semanas e sua interrupção ao atingir essa data. Valores > 1,5 MoM após 35 semanas não são confiáveis e sugere-se interromper a gestação. Todavia, um protocolo recente propõe a realização da amniocentese para avaliar a maturidade fetal e a ΔDO450 nesses casos. As seguintes eventualidades são possíveis: • Maturidade pulmonar e ΔDO450 na curva de Queenan (Figura 31.15) fora da zona afetada Rhpositiva de TIV – parto com 38 semanas para dar oportunidade para o amadurecimento hepático fetal; esta conduta evita a necessidade de exsanguinotransfusão e de fototerapia prolongada neonatal • Maturidade pulmonar e ΔDO450 na zona de TIV – interrupção da gravidez • Imaturidade pulmonar e ΔDO450 na zona de TIV – administração de corticoide e de fenobarbital oral (30 mg, 3 vezes/dia) por 7 dias, também reduzindo a necessidade de exsanguinotransfusão neonatal; parto após 7 dias • Imaturidade pulmonar e ΔDO450 fora da zona de TIV – repetição da amniocentese em 10 a 14 dias. ▶ Gestação anterior com feto/bebê afetado. Nessa eventualidade, o teste de Coombs materno é desnecessário, pois não é mais preditivo do grau de anemia fetal. A maioria dos centros especializados indica o Doppler seriado da ACM após 18 semanas e a sua repetição a cada 1 a 2 semanas. Nos casos raros que não necessitam de TIV, o acompanhamento é o mesmo utilizado para a 1a gravidez afetada.
Figura 31.15 ■ Protocolo de acompanhamento na doença hemolítica perinatal. Htc, hematócrito; TIV, transfusão intravascular; MoM, múltiplo de mediana; VSmáx., velocidade sistólica máxima.
▶ Determinação do Rh fetal. Em mulher Rh-positiva, com o teste de Coombs > 1:8, é útil conhecer o Rh fetal, não sem antes determinar a zigotia paterna. Se o pai é Rh-negativo, nada deve ser feito porque todos os conceptos serão Rh-negativos. Se a zigotia paterna revelar marido homozigoto para antígeno D, não é necessário determinar o Rh fetal, pois todos os conceptos serão Rh-positivos. Apenas na eventualidade de o marido ser heterozigoto para o antígeno D pode-se optar pela avaliação do Rh fetal.
A determinação não invasiva do Rh fetal pode ser realizada utilizando-se a técnica PCR real time do DNA fetal livre (cffDNA) no plasma materno. A estrutura do gene Rh está localizada no cromossomo 1p36-34. Antígenos do sistema Rh estão codificados por apenas dois genes: RhD e RhCE. A principal característica molecular do indivíduo Rh-negativo é o fato de o gene D ter sido deletado. A genotipagem do grupo sanguíneo fetal no sangue materno pode ser realizada para os tipos D, C, E e K em mulheres aloimunizadas, substituindo com vantagens a avaliação por PCR (DNA) no líquido amniótico. No geral, o teste foi conclusivo em 97% dos casos, com 100% de sensibilidade e especifidade.
■ Provas imunoematológicas no recém-nascido São indispensáveis: a determinação do grupo sanguíneo e do fator Rh e o teste de Coombs direto. ▶ Teste de Coombs direto. Avalia a sensibilização das hemácias do recém-nascido pelos anticorpos maternos. Deve ser feito, sistematicamente, no sangue do cordão umbilical dos bebês nascidos de mulher Rh-negativa, com ou sem aloimunização, e mesmo se ausente história sugestiva de DHPN. As reações negativas não afastam, definitivamente, a doença; nos tipos clínicos ocasionados pelo sistema ABO, elas costumam ser negativas. Se houver incompatibilidade ABO, é comum a ocorrência de esferocitose (ver Tabela 31.1). ▶ Subsídio anatomopatológico. Embora recentemente o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists [(RCOG), 2011] tenha publicado recomendações sobre a prevenção da DHPN, são mantidas aqui as da Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), que acrescentam ao diagnóstico dados de grande valor. Os focos de hematopoese extramedular (eritroblastos), encontrados em muitos órgãos (fígado, baço, placenta), são da maior relevância. Hepatoesplenomegalia está sempre presente. No icterus gravis os núcleos da base do cérebro podem tornar-se amarelo-esverdeados, o que constitui a icterícia nuclear ou kernicterus* (Figura 31.16). A pigmentação ictérica parece poupar o córtex e nunca é observada em natimortos nem em bebês falecidos nas primeiras 24 h de vida; depende do nível de bilirrubina indireta plasmática, além do aumento da permeabilidade da barreira hematencefálica. Se a bilirrubina exceder 30 mg/dℓ, cerca de 50% dos casos apresentarão o kernicterus. O estudo da placenta mostra sua invasão pelo edema, apresentando-se 2 a 3 vezes aumentada ponderalmente e no volume, a face fetal e as membranas frequentemente amareladas.
Figura 31.16 ■ Kernicterus. (Arquivo da 33a Enfermaria Santa Casa.)
As lesões microscópicas são edema, raridade relativa das vilosidades e células de Langhans em uma fase da gestação em que estão habitualmente desaparecidas, além de ilhotas de hematopoese com eritroblastos.
■ Prevenção A imunoprofilaxia anti-D tornou a eritroblastose fetal determinada pela sensibilização ao antígeno D uma doença prevenível, de modo que a mortalidade perinatal pela aloimunização demonstrou diminuição de 100 vezes. Todavia, mesmo nos países desenvolvidos (Reino Unido, Canadá), a aloimunização materna ainda persiste em 0,4:1.000 nascimentos, ou aproximadamente 1 a 2% das mulheres D-negativas, na maioria das vezes por falhas na profilaxia. ▶ Imunoglobulina anti-D. A imunoglobulina anti-D é um produto sanguíneo que contém títulos elevados de anticorpos que neutralizam o antígeno RhD das hemácias fetais e, assim, é efetiva na prevenção da aloimunização RhD [National Institute for Clinical Excellence (NICE), 2008]. As vias de administração podem ser intravenosa (IV) ou intramuscular (IM). Após a administração da anti-D, o rastreamento para anticorpos apresenta resultado fracamente reativo, com título baixo. O anti-D atravessa a placenta e se liga às hemácias fetais, sem causar hemólise, anemia ou icterícia. As preparações canadenses não têm produzido infecções de origem sanguínea, como HIV, hepatites B e C. Reações adversas são raras e costumam ser leves, tais como inchaço local, dor de cabeça, calafrios. Também são pouco frequentes reações de hipersensibilidade – urticária, coceira, exantema maculopapular – que não resistem a antialérgicos. Embora seja muito rara a ocorrência de anafilaxia após o uso da IgG anti-D, recomenda-se ter à mão solução de adrenalina. ▶ Profilaxia pós-parto. Se a mulher Rh-negativa não receber profilaxia IgG anti-D no pósparto após o nascimento de bebê Rh-positivo, a incidência de sensibilização na vigência de nova gravidez será de 12 a 16%, em comparação com 1,6 a 1,9% se tiver havido a prevenção. ▶ Recomendações da SOGC (2003) • Devem ser utilizados 300 μg de IgG anti-D dentro de 72 h do parto para mulheres Rh-negativas não sensibilizadas, com bebês Rh-positivos. IgG anti-D adicional deve ser administrado para
hemorragia fetomaterna (HFM) com mais de 15 mℓ de hemácias fetais (30 mℓ de sangue) • Se o anti-D IgG não tiver sido utilizado dentro de 72 h do parto ou de qualquer evento potencialmente sensibilizante, ele poderá ser empregado em até 28 dias com algum efeito protetor • Não há evidências que indiquem ou contraindiquem a utilização rotineira do teste de HFM (Kleihauer) no pós-parto. ▶ Profilaxia anteparto. Sem a profilaxia antenatal anti-D, 1,6 a 1,9% das mulheres Rhnegativas tornam-se sensibilizadas. A profilaxia antenatal rotineira reduz a taxa de sensibilização durante a gravidez para 0,2%. Em pelo menos 50% dos casos, a sensibilização poderia ser evitada pela profilaxia anti-D de rotina com 28 semanas da gestação. Nesse sentido, está indicado no 1o trimestre da gravidez o teste de cfDNA no sangue materno para a tipagem Rh do feto. ▶ Rastreamento sorológico antenatal. Todas as pacientes devem ser rastreadas na 1a consulta pré-natal para anticorpos com o teste da antiglobulina indireta (teste de Coombs indireto), desde que 1,5 a 2,0% exibam anticorpos atípicos ou irregulares. Não há consenso sobre se o rastreamento deve ser repetido com 28 semanas para identificar o resultado de 0,18% que se aloimuniza após a consulta inaugural. ▶ Recomendações • 300 μg de IgG anti-D devem ser administrados a grávidas Rh-negativo não sensibilizadas com 28 semanas de gestação quando o grupo sanguíneo fetal for Rh-positivo ou desconhecido • Todas as grávidas (D-negativas ou D-positivas) devem ser rastreadas pelo teste de Coombs indireto para aloanticorpos na 1a consulta pré-natal e novamente com 28 semanas • Quando a paternidade do bebê for assegurada e a mãe for Rh-negativa, o pai deve ser submetido à tipagem Rh para eliminar a administração desnecessária de produto sanguíneo • A mulher com “D-fraco” (Du-positivo) não deve receber IgG anti-D. ▶ Abortamento, gravidez ectópica e mola hidatiforme. O antígeno D pode ser detectado nas hemácias embrionárias a partir de 38 dias da concepção. A mola completa é avascular ou com vascularização incompleta, o que não acontece com a mola parcial. ▶ Recomendações • Após abortamento ou gravidez ectópica, há indicação para o anti-D em mulheres Rh-negativas não sensibilizadas: 120 μg até 12 semanas e 300 μg após esse período • O anti-D deve ser utilizado após a gravidez molar em mulheres Rh-negativas não sensibilizadas pela possibilidade de mola parcial. Se o diagnóstico de mola completa for certo, não há necessidade da prevenção. ▶ Procedimentos diagnósticos fetais invasivos. A amniocentese, a biopsia de vilo corial (BVC) e, especialmente, a cordocentese são procedimentos utilizados no diagnóstico pré-
natal causadores de HFM. A amniocentese determina HFM (> 0,1 mℓ) em 2% dos casos e BVC, em 14%. ▶ Recomendações • Dose de 300 μg de anti-D deve ser administrada após a amniocentese e a cordocentese em mulheres Rh-negativas não sensibilizadas • Na BVC, a dose de anti-D será de 120 μg nas primeiras 12 semanas de gestação e de 300 μg após esse prazo em mulheres Rh-negativas não sensibilizadas. ▶ Hemorragia anteparto, trauma abdominal, versão externa. Podem determinar trauma placentário ou disrupção da interface fetomaterna com resultante HFM e sensibilização da gestante Rh-negativa. ▶ Recomendações • Anti-D na dose de 120 a 300 μg é recomendado, assim como teste de Kleihauer (eluição das hemácias) em condições associadas a possível trauma placentário (descolamento prematuro da placenta, placenta prévia, traumatismo no abdome, versão externa). Se a HFM estimada for além daquela coberta pela dose de anti-D administrada (6 a 15 mℓ de hemácias fetais), uma dose adicional de 10 μg de anti-D deve ser utilizada para cada 0,5 mℓ de hemácias fetais excedente. ▶ Consentimento informado. O consentimento informado deve ser obtido para a administração de qualquer produto sanguíneo. ▶ Recomendação • Consentimento informado, verbal ou escrito, deve ser obtido antes da administração de imunoglobulina Rh.
■ Tratamento ▶ Transfusão intravascular. Historicamente, a transfusão intraperitoneal foi o tratamento de escolha durante quase 20 anos após ter sido introduzida por Liley em 1963. Com o advento da cordocentese guiada pela ultrassonografia, a TIV tornou-se universal. As hemácias para TIV são do grupo O, Rh-negativo, citomegalovírus-negativo e coletadas nas últimas 72 h. O local ótimo de punção da veia umbilical é próximo da sua inserção na placenta; na impossibilidade, vale a punção em alça livre (Figura 31.17). Muitos utilizam agente curarizante para paralisar a movimentação fetal. Ao início da TIV, determina-se o hematócrito fetal e, como já se disse, o valor < 30% é indicação para o tratamento. A quantidade de sangue a ser transfundido depende desse hematócrito inicial, do peso estimado fetal e do hematócrito do doador. Se o sangue do doador tem hematócrito aproximado de 75%, o peso estimado fetal pela ultrassonografia pode ser multiplicado por 0,02 para determinar o valor de sangue a ser transfundido para atingir aumento no hematócrito de 10%. Procura-se atingir hematócrito final de 40 a 50%, e declínio de cerca de 1% por dia do hematócrito pode ser antecipado após a TIV.
No concepto extremamente anemiado, em especial no hidrópico, o hematócrito não deve ser acrescido em mais de 4 vezes para não sobrecarregar o sistema cardiovascular fetal pelo aumento agudo da viscosidade sanguínea. A TIV deve ser repetida após 48 h para normalizar o hematócrito. Após atingido o hematócrito de 40 a 50%, nova TIV deve ser programada para depois de 14 dias. Após a 1a TIV, o Doppler da ACM tem sido utilizado para indicar a época da 2a intervenção. Nesse caso, o valor > 1,32 MoM (em vez de 1,5 MoM) é o melhor critério para detectar anemia grave/moderada fetal. Após a 2a transfusão, não há dados suficientes para guiar o clínico com o Doppler da ACM fetal. Declínios diários estimados de 0,4, 0,3 e 0,2 g/dℓ do nível de hemoglobina, respectivamente para o 1o, 2o e 3o intervalos pós-transfusão, podem ser utilizados para indicar nova TIV. A última TIV deve ser realizada com 35 semanas de gestação e o parto deve ser antecipado para 37 a 38 semanas. Essa prática possibilita o amadurecimento do pulmão e do fígado fetal, virtualmente eliminando a necessidade de exsanguinotransfusão neonatal. Nesse particular, a predição da anemia fetal grave após transfusão é menos precisa do que em fetos não transfundidos. Após a 2a TIV, a VSmáx da ACM não é útil para prever a anemia fetal. ▶ Fenobarbital. A administração de fenobarbital oral à mãe (30 mg, 3 vezes/dia) pode ser considerada nos últimos 7 a 10 dias antes do parto com o objetivo de induzir a maturidade hepática e, por conseguinte, melhorar a conjugação da bilirrubina. O tratamento de pacientes com perdas recorrentes de 2o e de 3o trimestres é um grande problema. Cordocentese antes de 20 semanas da gestação está associada a elevada perda fetal. Opções terapêuticas são a transfusão intraperitoneal precoce (15 a 16 semanas), plasmaférese (3 procedimentos com 12 semanas) e imunoglobulina intravenosa (semanalmente até 20 semanas). ▶ Transfusão neonatal. A supressão da eritropoese não é incomum após diversas TIV. Esses fetos nascem com possível ausência de reticulócitos, com suas hemácias quase inteiramente constituídas de células do doador. Como as exanguineotransfusões raramente são necessárias, os anticorpos maternos passivamente adquiridos ficam na circulação neonatal por semanas. Como consequência, durante o período de 1 a 3 meses o recém-nascido pode necessitar de várias transfusões complementares. O hematócrito e a contagem de reticulócitos neonatais devem ser realizados semanalmente, e o hematócrito < 30% no bebê sintomático ou < 20% no assintomático é indicação de transfusão. ▶ Fototerapia. A molécula da bilirrubina, fotossensível, quando exposta a lúmen (radiação de 420 a 460 mÅ), transforma-se na atóxica biliverdina; esse achado possibilitou o emprego da superiluminação como recurso para o tratamento das hiperbilirrubinemias do recém-nascido (Figura 31.18).
Figura 31.17 ■ Transfusão intravascular (TIV).
Figura 31.18 ■ Fototerapia no recém-nascido ictérico com doença hemolítica perinatal (DHPN).
Em virtude da ação exclusiva sobre a bilirrubina, a fototerapia tem emprego menor no tratamento da DHPN, apenas coadjuvante. Na incompatibilidade ABO, a fototerapia reduz a necessidade de transfusão complementar.
■ Prognóstico As séries mais encorpadas relatam sobrevida de quase 90%; no hidrópico a sobrevida é pior, menor que 80%, e especialmente na hidropisia grave, de somente 55%. O prognóstico tardio pode estar onerado pela ocorrência de paralisia cerebral ou de comprometimento no desenvolvimento, mas 90% dos bebês apresentam-se normais.
■ DHPN não D Mais de 50 diferentes antígenos hemáticos têm sido associados à DHPN. Todavia, somente
três anticorpos estão relacionados com a doença grave: anti-D, anti-c e anti-Kell (K1). Assim, em um centro de referência na Holanda, em casos que envolveram TIV, 85% foram pela aloimunização D, 10% pelo anti-K1 e 3,5% pelo anti-c. ▶ Kell. Foram identificados 24 antígenos hemáticos do sistema Kell e o mais importante é o K1, encontrado em 9% dos caucasianos e em 2% dos descendentes da população africana. Essas frequências gênicas tornam possível calcular risco de aproximadamente 5% de feto acometido na gravidez Kell aloimunizada se o antígeno materno e a zigotia forem desconhecidos. Um novo mecanismo de depressão da medula óssea fetal é proposto como possível fator contribuinte da anemia do concepto em casos de aloimunização Kell. Diversos autores têm advertido que a DHPN grave pode ocorrer com títulos de anticorpos maternos menores do que na doença Rh, de modo que o teste de Coombs ≤ 1:8 já é suspeito de anemia fetal. Da mesma maneira, o uso da curva de Liley, que expressa apenas o grau de hemólise fetal, também não é verossímil. Alternativas mais recentes são a cordocentese e a VSmáx da ACM para acompanhar esses conceptos. Propõe-se o monitoramento fetal intensivo com o Doppler da ACM em mulheres com o título anti-Kell ≥ 1:2, na idade gestacional de 16 a 17 semanas, qualquer que seja a história obstétrica e a sorologia materna.
■ Pontos-chave A doença hemolítica perinatal (DHPN) é uma afecção generalizada, acompanhada de anemia, destruição das hemácias e presença de suas formas jovens (eritroblastos) na circulação periférica, com atividade persistente e anômala de focos extramedulares de hematopoese. A DHPN decorre, originariamente, da incompatibilidade sanguínea maternofetal; anticorpos da gestante, específicos para antígeno localizado na hemácia do feto, intervêm como elementos desencadeantes. Em 98% dos casos, a DHPN é atribuída aos sistemas Rh e ABO, nos restantes 2% está em jogo um grupo variado e incomum de anticorpos denominados irregulares. A incompatibilidade pelo sistema Rh raramente atinge o 1o filho (5%), a não ser que haja histórico de hemotransfusão primária discordante. A ultrassonografia é extremamente importante para o seguimento fetal na DHPN e para assessorar os procedimentos invasivos. A hidropisia fetal sugere grande anemia do concepto, com hematócrito inferior a 15% e hemoglobina menor de 5 g/dℓ. A profilaxia com imunoglobulina humana anti-Rh (D), dose única de 300 mg, intramuscular, é obrigatória em gestante não aloimunizada, com 28 semanas de gravidez e nas primeiras 72 h do pós-parto. Grávidas com teste de Coombs ≤ 1:8 devem submeter-se a repetição mensal do exame até o parto. Grávidas com teste de Coombs > 1:8 serão avaliadas a partir de 18 a 20 semanas por meio de Doppler da artéria cerebral média (ACM) e da ultrassonografia. Grávidas com velocidade sistólica máxima (VSmáx ) da ACM normal terão o exame repetido a intervalos de 7 a 14 dias. Aquelas com a VSmáx da ACM > 1,5 MoM serão submetidas à cordocentese com vistas à transfusão intravascular (TIV) se a gravidez for < 35 semanas ou terão o parto induzido se a gravidez for > 35 semanas. O tratamento do bebê é feito atualmente com transfusões complementares; raramente há indicação para a exsanguinotransfusão.
_________ *Kern, núcleo, e icterus, icterícia (do grego ikteros, pelo latim icteritia) constituem a palavra kernicterus, criada por Schmorl.
■ Complicações na gravidez ■ Anestesia ■ Operação cesariana ■ Cirurgia bariátrica
Nos Estados Unidos, mais de um terço das mulheres são obesas, mais da metade das grávidas têm sobrepeso, e 8% das mulheres em idade reprodutiva são extremamente obesas, todas apresentando alto risco de complicações na gravidez [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2013]. Consequentemente, o aconselhamento preconcepcional é altamente recomendado para mulheres obesas, visando informá-las sobre o risco da obesidade em determinar complicações maternas e fetais, assim como encorajá-las a adotar programas de redução de peso. Na 1a consulta pré-natal, a altura e o peso são avaliados para se calcular do índice de massa corporal (IMC) – peso em kg/altura em m2 – revisto periodicamente em consultas subsequentes. Às muito obesas deve ser oferecida orientação nutricional com especialista e programa de exercícios. Em 2009, o Institute of Medicine (IOM) dos Estados Unidos revisou recomendações para o ganho de peso na gravidez de acordo com o IMC definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (Tabela 32.1). Para a gravidez gemelar, o IOM recomenda ganho de peso gestacional de 16,8 a 24,5 kg para mulheres com peso normal, 14,1 a 22,7 kg para as com sobrepeso, e 11,3 a 19,1 kg para as obesas.
Tabela 32.1 ■ Recomendações para o ganho de peso total na gravidez. IMC pré-concepcional (kg/m2)
Ganho de peso corporal
Baixo peso (< 18,5)
12,5-18
Peso normal (18,5-24,9)
11,5-16
Sobrepeso (25-29,9)
7-11,5
Obeso (≥ 30)
5-9
IMC, índice de massa corporal. (Adaptada de Institute of Medicine, 2009.)
■ Complicações na gravidez Mulheres com sobrepeso ou obesas têm risco elevado de diversas complicações na gestação, incluindo diabetes melito gestacional (DMG), hipertensão (crônica e gestacional), pré-eclâmpsia, parto pré-termo indicado, cesárea, doença tromboembólica venosa (DTV) e dificuldades de perda de peso no pós-parto. O feto dessas mulheres apresenta risco acentuado de abortamento, prematuridade, natimortalidade, anomalias congênitas [principalmente defeitos do tubo neural (DTN)], macrossomia (com possível lesão no parto), e obesidade na infância e na adolescência. Preocupações adicionais incluem complicações operatórias e pós-operatórias na cesárea, assim como na anestesia. Mulheres obesas também têm dificuldades em iniciar e manter o
aleitamento. O risco de DTN entre as grávidas obesas é o dobro daquele de mulheres de peso normal. Embora se recomende que a dose de ácido fólico em obesas deva ser maior que 400 µg/dia (cerca de 4 a 5 mg/dia), isso não está confirmado em mulheres obesas sem diabetes (ACOG, 2013). O diagnóstico de macrossomia fetal pela ultrassonografia é impreciso, especialmente na obesa, mas o parto cesáreo deve ser indicado se o peso fetal estimado for > 5.000 g na grávida sem diabetes ou > 4.500 g na grávida com diabetes. ▶ Ganho de peso na gestação. O prognóstico gestacional depende do peso prégravídico, mas também do ganho de peso na gestação. O ganho de peso exagerado na gravidez, em todas as categorias de IMC, esteve associado a desempenho desfavorável na gestação – hipertensão gestacional, préeclâmpsia, recém-nascido grande para a idade gestacional e parto cesáreo. Conduta individualizada deve ser tomada em obesas que desejem ganhar peso abaixo do limite recomendado, observando, todavia, que o crescimento fetal esteja ocorrendo adequadamente (ACOG, 2013).
■ Anestesia As anestesias de condução são as recomendadas na grávida obesa, embora cercadas de dificuldades, por vezes intransponíveis, decorrentes do excessivo tecido adiposo. Por outro lado, o uso de anestesia geral pode ser problemático em face das dificuldades na intubação endotraqueal.
■ Operação cesariana Complicações operatórias ou pós-operatórias da grávida obesa incluem perda excessiva de sangue, tempo de cirurgia > 2 h, infecção de parede com deiscência da cicatriz, endometrite e apneia do sono. Há que se dar especial atenção ao local da incisão abdominal para evitar o panículo adiposo excessivo. Em mulheres obesas cesareadas, é recomendável a sutura do tecido subcutâneo, habitualmente dispensável (ACOG, 2005), mas a colocação de drenos não está respaldada pela literatura (Revisão Cochrane, 2005). Pelo maior risco de DTV, estão recomendados os aparelhos de compressão pneumática antes da cesárea; no pós-operatório, a tromboprofilaxia com heparina de baixo peso molecular (HBPM) está indicada (ACOG, 2013).
■ Cirurgia bariátrica O número de mulheres obesas em idade reprodutiva recorrendo à cirurgia bariátrica está aumentando (ACOG, 2013). A banda gástrica tem sido abandonada pela elevada taxa de insucessos (ACOG, 2009). A gastroplastia em Y de Roux por laparoscopia é a operação mais
utilizada no Brasil atualmente. Recomenda-se que a paciente submetida à cirurgia bariátrica espere 12 a 24 meses para engravidar, de maneira que o feto não se exponha à rápida perda de peso após a operação que ocorreria em plena gravidez (ACOG, 2009). A cirurgia bariátrica não deve ser realizada durante a gestação. Embora o desempenho da gravidez após a cirurgia bariátrica seja favorável, inclusive com menor probabilidade de DMG, hipertensão crônica e gestacional, pré-eclâmpsia e macrossomia, podem surgir complicações cirúrgicas que comprometam a mãe e o feto (ACOG, 2009). Mulheres com banda gástrica devem ser monitoradas durante a gravidez pelo seu cirurgião-geral, pois pode ser necessário o ajuste da banda (ACOG, 2013). Grávidas submetidas à cirurgia bariátrica devem ser avaliadas para a necessidade de suplementação vitamínica, porque há elevado risco de deficiência de vitamina B12, folato, vitamina D, cálcio e ferro. Essas mulheres devem ser consideradas de alto risco para parto prétermo e crescimento intrauterino restrito (CIR) e, por isso, devem ser avaliadas adequadamente durante a gestação.
■ Pontos-chave Mais de um terço das mulheres são obesas, cerca de metade das grávidas tem sobrepeso, e 8% das mulheres em idade reprodutiva são extremamente obesas, todas com alto risco de complicações na gravidez. A avaliação pré-concepcional é fortemente encorajada e inclui a informação sobre os riscos maternos e fetais da obesidade na gravidez e o apoio para que a mulher se engaje em programa de redução de peso. Na 1a consulta pré-natal devem ser avaliados o peso e a altura, sendo calculado o índice de massa corporal, para que sejam sugeridas as recomendações sobre o ganho de peso ideal na gravidez, que deve ser verificado periodicamente. Deve ser oferecida à grávida com sobrepeso/obesa consulta com especialista em nutrição e programa de exercícios. Mulheres que realizaram cirurgia bariátrica devem ser avaliadas para carências nutricionais e necessidade de suplementação de ferro, vitamina B12, folato, vitamina D e cálcio. A operação cesariana em grávidas obesas, pelo risco adicional de tromboembolismo, deve ser conduzida sob tromboprofilaxia com aparelhos de compressão pneumática e no pós-operatório com heparina de baixo peso molecular. O antibiótico utilizado no pré-operatório de grávida obesa submetida à cesariana deve ter sua dose aumentada. No início do parto deve-se consultar um anestesiologista. Na cesárea em pacientes obesas, o tecido subcutâneo deve ser suturado com o objetivo de impedir a deiscência da cicatriz no pós-operatório. Antes de nova gravidez, a grávida obesa deve consultar um especialista em nutrição.
■ Conceito ■ Classificação do diabetes ■ Alterações metabólicas na gravidez normal ■ Classificação do diabetes na gravidez segundo White ■ Diabetes melito gestacional ■ Diabetes tipo 1 e tipo 2 ■ Infante de mãe diabética
O diabetes melito é um distúrbio do metabolismo dos carboidratos que, na forma crônica, cursa com complicações vasculares, incluindo retinopatia, nefropatia, neuropatia e doença cardiovascular. Na gravidez, é importante distinguir o diabetes melito pré-gestacional (tipo 1 ou tipo 2) do diabetes melito gestacional (DMG). O diabetes melito afeta 8,3% da população dos Estados Unidos: 5 a 10% do tipo 1 e 90 a 95% do tipo 2 [Centers for Disease Control and Prevention (CDC), 2011]. Tem sido estimado que aproximadamente 6 a 7% das gestações são complicadas pelo diabetes e 90% desses casos representam DMG [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2013]. Com o aumento da obesidade e do sedentarismo, a prevalência do diabetes em mulheres em idade reprodutiva está aumentando globalmente. O principal problema do diabetes na gravidez ainda é o número elevado de malformações congênitas – 10% no diabetes vs. 3% na população geral.
■ Conceito O diabetes melito constitui um grupo de doenças metabólicas caracterizadas por hiperglicemia, resultante de defeitos na secreção e/ou na ação da insulina [American Diabetes Association (ADA), 2014]. A hiperglicemia crônica está associada a lesão, disfunção e insuficiência tardias de diversos órgãos, especialmente, olhos, rins, nervos, coração e vasos sanguíneos.
■ Classificação do diabetes ■ Diabetes tipo 1 e tipo 2 A maioria dos casos de diabetes corresponde a duas grandes categorias – diabetes tipo 1 e diabetes tipo 2 (ADA, 2014) (Tabela 33.1). No diabetes tipo 1, a causa é a absoluta deficiência de secreção de insulina, decorrente de processo patológico autoimune ocorrido nas ilhotas pancreáticas. Na outra categoria, muito mais frequente, o diabetes tipo 2, a causa é a combinação da resistência à ação da insulina e a inadequada resposta compensatória na secreção de insulina.
■ Diabetes melito gestacional O diabetes melito gestacional (DMG) é aquele que tem início na gravidez e, nesse sentido, deve ser diferenciado do diabetes pré-gestacional, que antecede a gestação e persiste quando ela termina (ADA, 2014). O DMG complica 7% de todas as gestações (1 a 14%, dependendo da população estudada) (ADA, 2014) e representa aproximadamente 90% dos casos de diabetes na gravidez.
Tabela 33.1 ■ Classificação etiológica do diabetes melito. I – Diabetes tipo 1
Destruição da célula β levando usualmente à deficiência absoluta de insulina
II – Diabetes tipo 2
Pode variar de predominantemente resistência à insulina com deficiência relativa de hormônio a predominantemente deficiência secretória de insulina com resistência a ela
III – Outros tipos específicos
Defeitos genéticos, doenças do pâncreas exócrino, endocrinopatias, induzido por fármacos ou químico, infecções, síndromes genéticas etc.
IV – Diabetes melito gestacional (DMG)
■ Outros tipos de diabetes Outros tipos pouco comuns do diabetes podem ser vistos na Tabela 33.1 e não serão tratados aqui.
■ Pré-diabetes Indivíduos situados em grupo intermediário, embora ainda não apresentando critérios para classificá-los como diabéticos, pode apresentar níveis glicêmicos elevados para serem considerados normais. No diabetes tipo 2, grau de hiperglicemia suficiente para causar alterações funcionais e patológicas em vários tecidos-alvo, mas sem sintomas clínicos, pode estar presente por longos períodos de tempo antes de a doença ser diagnosticada. Durante esse período assintomático, é possível demonstrar anormalidade do metabolismo dos carboidratos pela medida da glicemia de jejum ou após teste oral de tolerância à glicose (TOTG), caracterizando, respectivamente, a glicemia de jejum alterada e a tolerância à glicose alterada, ambos estados de pré-diabetes, indicando alto risco para o desenvolvimento da doença (Tabela 33.2).
Tabela 33.2 ■ Categorias de risco aumentado para diabetes (pré-diabetes). Glicose de jejum alterada: 100 a 125 mg/dℓ Ou Intolerância à glicose de 2 h (TOTG-75 g): 140-199 mg/dℓ Ou A1c: 5,7 a 6,4%
TOTG, teste oral de tolerância à glicose. (Adaptada de ADA, 2014.)
■ Alterações metabólicas na gravidez normal Durante a gravidez normal ocorrem grandes modificações na produção de energia e no acúmulo de gordura. O depósito de gordura se faz especialmente nos dois terços iniciais da
gestação, enquanto no seu um terço final há aumento do gasto metabólico (Capítulo 5). As modificações no metabolismo materno são necessárias para alcançar as demandas determinadas pelo rápido crescimento e desenvolvimento do feto. Essas alterações incluem hipoglicemia de jejum, catabolismo exagerado dos lipídios com formação de corpos cetônicos e progressiva resistência à insulina, tudo comandado pelos hormônios placentários. O desenvolvimento da resistência à insulina a partir do 2o trimestre da gestação é uma adaptação fisiológica que visa transferir o metabolismo de energia materna da oxidação dos carboidratos para o de lipídios, preservando a glicose a ser fornecida ao feto em acelerado crescimento. Cerca de 80% do gasto energético fetal é feito pelo metabolismo da glicose. A gravidez é uma condição caracterizada por resistência à insulina, com aumento compensatório na resposta das células β e hiperinsulinismo. A resistência à insulina costuma começar no 2o trimestre e progride durante toda a gestação, com a sensibilidade à insulina chegando à redução de aproximadamente 80% no termo. Os hormônios placentários contrainsulínicos – lactogênio placentário humano (hPL) e hormônio do crescimento placentário humano (hPGH) – são os fatores que contribuem para a resistência à insulina vista na gravidez. Fala-se, também, no aumento de adipocinas na gravidez – leptina, adiponectina, fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e interleucina 6 (IL-6). Na mulher com DMG, não é a resistência à insulina que está elevada, quando comparada à da gravidez normal, e sim o mau funcionamento das células β pancreáticas que secretam insulina insuficiente para vencer esse aumento da resistência (Figura 33.1).
■ Classificação do diabetes na gravidez segundo White É clássica a separação do diabetes na gravidez em classes (A-H) (Classificação de Priscilla White), tornando possível estabelecer o prognóstico materno e o fetal, e instituir as medidas terapêuticas pertinentes (Tabela 33.3).
Figura 33.1 ■ Esquema ilustrando a relação entre a secreção e as necessidades de insulina. A. Na gestação normal. B. No diabetes gestacional. (Adaptada de Fuchs F., Kloopper A. Endocrinology of Pregnancy. New York: Harper & Row, 1971.)
Tabela 33.3 ■ Classificação do diabetes na gravidez. Classe
Início (idade em anos)
Duração (anos)
Complicação vascular
Insulina
A
Qualquer
A da gravidez
Ausente
Não
B
≥ 20
< 10
Ausente
Sim
C
10 a 19
ou
10 a 19
Ausente
Sim
D
< 10
ou
≥ 20
Retinopatia benigna ou hipertensão
Sim
F
Indiferente
Indiferente
Nefropatia
Sim
R
Indiferente
Indiferente
Retinopatia proliferativa
Sim
H
Indiferente
Indiferente
Doença cardíaca isquêmica
Sim
T
Indiferente
Indiferente
Transplante renal
Sim
ou
Outros subdividem a classe A em A1 e A2; a 1a não necessita de insulina, a 2a, sim. (Adaptada de White.)
Na gravidez, cerca de 90% das diabéticas são classe A, e as 10% restantes, classes B-H. ▶ Classe A. Corresponde ao DMG. A intolerância à glicose só é anormal durante a gestação, retornando à normalidade ao fim a gravidez. Aproximadamente 10 a 20% das diabéticas classe A necessitam de insulina ao longo da gestação, passando, por conseguinte, para a classe A2. ▶ Classes B e C. Pacientes com diabetes pré-gestacional relativamente recente e sem complicação vascular. Na classe B, o início da doença ocorre com 20 anos ou mais e tem duração menor que 10 anos. Na classe C, o diabetes tem início entre 10 e 19 anos de idade ou tem duração entre 10 e 19 anos. ▶ Classes D-T. Diabéticas com complicação vascular. Na classe D, a doença tem duração de 20 anos ou mais ou início antes dos 10 anos ou exibe retinopatia benigna ou hipertensão. A classe F apresenta nefropatia com protenúria e redução da depuração da creatinina. A classe R mostra retinopatia maligna (proliferativa); a H, doença cardíaca isquêmica; e, na T, a paciente sofreu transplante renal.
■ Diabetes melito gestacional ■ Patogênese A resistência à insulina na gravidez normal está presente já a partir do 2o trimestre e aumenta progressivamente até o fim da gestação. Essa resistência à insulina atende às necessidade metabólicas do feto (maior disponibilidade de glicose) e é consequência da ação dos hormônios placentários contrainsulínicos.
O defeito metabólico nas mulheres com o DMG é sua incapacidade de secretar insulina em níveis necessários para atender à demanda que é máxima no 3o trimestre (Figura 33.1). Isso leva ao aumento da concentração da glicose pós-prandial, capaz de determinar efeitos adversos no feto (macrossomia e hipoglicemia neonatal), pelo excessivo transporte transplacentário de glicose.
■ Diagnóstico O Estudo HAPO-2008 (Hyperglicemia and Adverse Pregnancy Outcome) realizado pelo International Association of Diabetes and Pregnancy Study Group (IADPSG) (2010) propõe que a glicemia de jejum seja realizada na 1a consulta pré-natal. Esse exame serviria para identificar os casos normais (< 92 mg/dℓ), os de DMG (92 a 125 mg/dℓ) e os de diabetes pré-gestacional (≥ 126 mg/dℓ) (Figura 33.2). O diabetes pré-gestacional pode, ainda, ser diagnosticado pela HbA1c ≥ 6,5% ou pela glicemia ao acaso ≥ 200 mg/dℓ (esta última confirmada pela glicemia de jejum ou pela HbA1c). Investigação posterior mostrou que a HbA1c não deve ser utilizada na gravidez (HAPO, 2012). Os casos normais na glicemia de jejum (< 92 mg/dℓ) devem ser submetidos ao TOTG de 75 g de 2 h (TOTG-75) entre 24 e 28 semanas de gravidez. O TOTG-75 pretende ser diagnóstico e exige dieta livre 3 dias antes. Os valores já anormais são jejum ≥ 92 mg/dℓ, 1 h ≥ 180 mg/dℓ e 2 h ≥ 153 mg/dℓ. Basta um valor alterado para o teste ser considerado positivo. Se o valor de jejum for ≥ 126 mg/dℓ, o diabetes é considerado pré-gestacional.
Figura 33.2 ■ Diagnóstico do diabetes na gravidez pelo estudo HAPO-2008. (Adaptada de IADPSG, 2010.)
Utilizando esse novo critério, o estudo HAPO-2008 mostrou incidência do DMG de quase
18%, cifra criticada recentemente. Em nenhuma oportunidade o estudo HAPO-2008 refere-se ao grupo de alto risco para DMG – história de macrossomia (> 4,5 kg), história familiar de diabetes (parente de 1o grau), história de DMG, obesidade (índice de massa corpórea ≥ 30 kg/m2) e origem étnica de alta prevalência de diabetes [National Institute for Care and Health Excellence (NICE), 2008]. O diabetes pré-gestacional merece ser identificado na 1a consulta pré-natal, pois compromete a mãe e o feto, diferentemente do DMG. ▶ Recomendações da ADA (2014). Previamente, a ADA (2013) aceitou o diagnóstico do DMG em 1 etapa (IADPSG, 2010). Agora, a ADA (2014) afirma que não há evidência suficiente para recomendar o critério em 1 etapa em detrimento do diagnóstico em 2 etapas (TOTG-50 g e TOTG-100 g entre 24 e 28 semanas) proposto pelo National Institutes of Health (NIH) (2013) e pelo ACOG (2013). O ADA (2014) refere que mulheres com o diagnóstico de diabetes no 1o trimestre da gravidez devem receber a rubrica de diabetes pré-gestacional e não de DMG. Ademais, o rastreamento de 1o trimestre deve ser oferecido apenas às grávidas com história de alto risco para diabetes.
■ Complicações para a mãe e para o feto Pacientes com DMG têm risco elevado de hipertensão, pré-eclâmpsia e parto cesáreo e suas consequentes morbidades (ACOG, 2013). O feto da mãe com DMG apresenta risco elevado de macrossomia, distocia de ombros, tocotraumatismo, hipoglicemia e hiperbilirrubinemia neonatais (Figura 33.3).
■ Tratamento O aumento de peso ideal de diabéticas na gravidez segue as recomendações gerais do Institute of Medicine (IOM) (2009). Veja a Tabela 32.1 no Capítulo 32. Cerca de 80 a 90% das mulheres são tratadas apenas com a mudança de estilo de vida (ADA, 2014): dieta e exercícios. Todavia, 10 a 20% das diabéticas necessitam de insulina, indicada quando o nível glicêmico préprandial for > 95 mg/dℓ, ou o pós-prandial de 1 h > 140 mg/dℓ ou o de 2 h > 120 mg/dℓ (ADA, 2014). Se a insulina for utilizada, a dose inicial recomendada é a de 0,7 a 1,0 unidades/kg/dia, administrada em doses divididas (ACOG, 2013). A ADA (2014) não recomenda o uso de hipoglicemiantes orais, como metformina e gliburida, na gravidez, mas o ACOG (2013) afirma que o tratamento oral e insulínico são equivalentes. The Endocrine Society (2013) também aceita a gliburida e a metformina, mas adverte que se o nível da glicemia de jejum for > 110 mg/dℓ, é preferível o tratamento com insulina.
Figura 33.3 ■ Complicações fetais no diabetes melito gestacional (DMG).
O tratamento do DMG é capaz de reduzir a incidência de hipertensão em 40% e da distocia de ombros em 60% (NIH, 2013). Em um estudo, grávidas com um progenitor com diabetes tipo 2 foram tratadas a partir do 1o trimestre com 2 g de mioinositol e 200 μg de ácido fólico. A incidência de DMG foi significativamente reduzida no grupo mioinositol: 6 vs. 15% (odds ratio = 0,35). Do mesmo modo, houve redução significativa da macrossomia fetal.
■ Conduta obstétrica Tem como objetivo surpreender a macrossomia fetal por meio da ultrassonografia seriada de 28 até 36 semanas. Aquelas que fazem uso de insulina necessitam de cardiotocografia (CTG) e avaliação do volume do líquido amniótico (vLA) a partir de 32 semanas. O parto só deve ser indicado após 39 semanas para evitar complicações respiratórias no recém-nascido, embora o ACOG (2013) reconheça que não há evidências para essa recomendação.
■ Aconselhamento pós-concepcional Pacientes com história de DMG apresentam risco 7 vezes maior de desenvolver diabetes tipo 2 do que aquelas sem esse comemorativo (ACOG, 2013). Assim, a recorrência do DMG em nova gravidez será de 35 a 40% e, em aproximadamente 20 a 30 anos, 50% dessas mulheres se tornarão diabéticas. A progressão é ainda maior na etnia latina – 60% das mulheres com DMG desenvolverão diabetes tipo 2 em 5 anos.
Estabelecer o diagnóstico do DMG oferece a oportunidade não apenas de melhorar o prognóstico da gravidez, mas também de reduzir os fatores de risco associados ao desenvolvimento subsequente do diabetes tipo 2. O ACOG (2013) recomenda que toda mulher com DMG seja rastreada com 6 a 12 semanas de pós-parto pelo TOTG-75 g de 2 h e conduzida apropriadamente (Tabela 33.4 e Figura 33.4). A ADA (2014) não aconselha o rastreamento pela A1c. Deve ser realizado tratamento na diabética, TOTG-75 g anual na paciente com pré-diabetes e exame a cada 3 anos naquela sem alteração.
Tabela 33.4 ■ Avaliação pós-parto do estado glicêmico em mulheres com diabetes melito gestacional. Normal (mg/dℓ)
Intolerância à glicose (pré-diabetes) (mg/dℓ)
Diabetes (mg/dℓ)
Jejum
< 100
100 a 125
≥ 126
2 h*
< 140
140 a 199
≥ 200
*Teste oral de tolerância à glicose de 75 g, 6 a 12 semanas após o parto.
Figura 33.4 ■ Conduta no aconselhamento pós-parto do diabetes melito gestacional. (Adaptada de ACOG, 2013.)
Mulheres que amamentam por mais de 3 meses apresentam menor incidência de diabetes tipo 2. A aderência a um padrão dietético saudável em mulheres com história de DMG está associada a um risco 40 a 60% menor de diabetes tipo 2 (Nursers’ Health Study II, 2012).
■ Diabetes tipo 1 e tipo 2
■ Incidência Nos Estados Unidos, 8,3% da população é diabética: 5 a 10% do tipo 1 e aproximadamente 90 a 95% do tipo 2 (CDC, 2011; ADA, 2014).
■ Diagnóstico Os critérios para o diagnóstico do diabetes podem ser vistos Tabela 33.5.
Tabela 33.5 ■ Critérios para o dignóstico do diabetes. A1c ≥ 6,5%* Ou Glicose de jejum ≥ 126 mg/dℓ* Ou Glicose de 2 h ≥ 200 mg/dℓ (TOTG-75 g – OMS)* Ou Glicose ao acaso ≥ 200 mg/dℓ (paciente com sintomas clínicos de hiperglicemia)
*Na ausência de sinais inequívocos de hiperglicemia, repetir o teste. TOTG, teste oral de tolerância à glicose. (Adaptada de ADA, 2014.)
■ Influência do diabetes sobre a gestação ■ Malformação fetal As malformações fetais constituem as causas mais importantes de mortalidade perinatal em gestações complicadas por diabetes melito. As anomalias congênitas têm incidência de 10%, cerca de 3 vezes maior do que na população geral. O fator etiológico responsável é o mau controle glicêmico no período crítico da organogênese [sistema nervoso central (SNC)], que corresponde às primeiras 6 a 8 semanas da gravidez. A incidência de malformações está fortemente associada aos níveis de A1c no 1o trimestre da gestação (ADA, 2014). As anomalias mais comuns incluem defeitos cardíacos complexos, anomalias do SNC, tais como anencefalia e espinha bífida, anomalias craniofaciais e esqueléticas, incluindo regressão caudal/agenesia do sacro.
■ Macrossomia fetal A difusão facilitada de glicose através da placenta determina hiperglicemia/hiperinsulinemia fetal com consequências importantes para o feto e o recém-nascido (Figura 33.5). A insulina determina excessivo crescimento fetal, especialmente do tecido adiposo. O feto da mulher diabética mal controlada tem risco elevado de macrossomia (> 4.000 g), com concentração desproporcional de tecido adiposo nos ombros e no tórax, dobrando o risco de distocia no parto. Também é frequente a ocorrência de polidrâmnio, pois o feto macrossômico é poliúrico.
■ Maturidade fetal O feto de mãe diabética mal controlada tem maior chance de apresentar síndrome de angústia respiratória (SAR) do que o da não diabética. O retardo no amadurecimento pulmonar fetal no diabetes se deve à demora na produção do fosfatidilglicerol, que só atinge níveis > 3% 1,5 semana mais tarde do que ocorre na gestação normal, em que são vistos com 37 semanas. No diabetes, a maturidade pulmonar do feto só está garantida com 38,5 semanas, por isso qualquer interrupção eletiva da gravidez só deve ser realizada com 39 semanas. Na verdade, esse retardo na maturidade pulmonar também só é encontrado nos diabetes classes A, B e C, pois nos demais, com comprometimento vascular (classes D, F, R), a maturidade pulmonar pode estar acelerada.
■ Abortamento e parto pré-termo O abortamento tem taxas 2 vezes maiores com o mau controle glicêmico. A incidência de parto pré-termo (espontâneo e indicado) está aumentada em até 5 vezes no diabetes, especialmente nos casos que cursam com polidrâmnio. Não há contraindicação para o uso de corticoides, mas os betamiméticos devem ser evitados. Durante o uso de corticoide, a dose de insulina deve ser aumentada.
■ Pré-eclâmpsia A pré-eclâmpsia é observada em 15 a 20% das mulheres com diabetes tipo 1 e em 50% daquelas com nefropatia/hipertensão/proteinúria associadas.
Figura 33.5 ■ Mecanismo da macrossomia fetal no diabetes.
■ Morte fetal A taxa de mortalidade perinatal no diabetes é aproximadamente o dobro da vigente na população não diabética (Tabela 33.6). A morte fetal continua a ser uma preocupação obstétrica, mesmo na grávida bem controlada. Os extremos de crescimento fetal podem ocorrer nos dois cenários oferecidos pelo diabetes materno: macrossomia e crescimento intrauterino restrito (CIR). A morte fetal é observada mais frequentemente nas últimas semanas da gravidez em pacientes com controle glicêmico deficiente, polidrâmnio e macrossomia fetal. O mecanismo do óbito fetal na gravidez complicada por macrossomia pode ser consequência do aumento do consumo de oxigênio fetal de cerca de 30%. Já em diabéticas com doença vascular, a morte fetal por insuficiência placentária pode ocorrer tão cedo quanto ao fim do 2o trimestre.
Tabela 33.6 ■ Mortalidade perinatal no diabetes (a cada 1.000 nascidos vivos). Grupo
Diabetes melito gestacional
Diabetes
Normal
Mortalidade fetal
4,7
10,4
5,7
Mortalidade neonatal
3,3
12,2
4,7
Mortalidade perinatal
8,0
22,6
10,4
■ Influência da gestação sobre o diabetes A gravidez está associada à exacerbação de muitas complicações relacionadas com o diabetes: nefropatia, retinopatia, doença coronária, hipertensão crônica, cetoacidose.
■ Dificuldades no acompanhamento do diabetes ▶ 1o trimestre. Diante da transferência de glicose para o feto, a hipoglicemia materna pode ser sintomática e, em geral, obriga à diminuição na dose de insulina. As náuseas e os vômitos do 1o trimestre, que perturbam a ingesta de alimentos, também podem contribuir para nova redução da posologia. ▶ 2o e 3o trimestres. A secreção crescente dos hormônios contrainsulínicos placentários (hPL, hPGH) explica as anormalidades exibidas no TOTG e obriga à elevação progressiva da dose de insulina. Por motivo da glicosúria renal gravídica, a excreção de glicose pela urina não é sinal de descontrole do diabetes. ▶ Pós-parto. Nos primeiros 7 a 10 dias do puerpério, eliminados os fatores contrainsulares e ainda sem a secreção do hormônio do crescimento (GH), o que vinha ocorrendo durante a gravidez, há redução na dose de insulina para valores similares aos do 1o trimestre. Ao fim desse
período inicial, as necessidades de insulina retornam aos valores prégestacionais. ▶ Cetoacidose diabética e cetose de jejum. A cetoacidose diabética ocorre principalmente no diabetes mal controlado. A cetose é uma emergência grave que acomete 1 a 3% de todas as grávidas diabéticas, especialmente as do tipo 1. Embora a mortalidade materna seja rara, a fetal pode ocorrer em 10 a 35% dos casos. O diagnóstico da cetoacidose diabética pode ser feito por hiperventilação, hálito cetônico, desidratação, coma, glicosúria (4+), cetonúria e hiperglicemia. É preciso distinguir a cetose de jejum prolongado (com hipoglicemia) da cetoacidose diabética. As crises de hipoglicemia, pelo rígido controle glicêmico hoje proposto, constituem problema da maior importância (ADA, 2013). Até 70% das mulheres relatam episódios de hipoglicemia na gravidez, sendo um terço deles grave, com convulsões e perda da consciência, necessitando de terapia com glicose intravenosa. Como discutido anteriormente, a utilização de glicose pelo feto, associada à diminuição da ingesta subsequente a náuseas e vômitos, determina que os níveis de corpos cetônicos no sangue das grávidas, após uma noite de jejum, estejam aumentados de 2 a 3 vezes em relação a valores não gravídicos. Não há hiperglicemia na cetose de jejum, e o tratamento é feito com solução de glicose, jamais administrando-se insulina, reservada para a cetoacidose diabética, que está sempre acompanhada por hiperglicemia e glicosúria. As reações metabólicas para o fornecimento de energia na cetoacidose caracterizam-se não pelo uso de glicose, mas, principalmente, dos lipídios. Tem-se observado associação entre a cetose e o déficit intelectual do bebê. Um método prático para diferenciar a cetoacidose do coma hipoglicêmico é a administração de duas ampolas de 50 mℓ de glicose intravenosa a 50% rapidamente, o que resolve o coma hipoglicêmico e não afeta a cetoacidose diabética. O tratamento de escolha da hipoglicemia em pacientes conscientes é feito com glicose oral (10 a 20 g) (ACOG, 2011). Se após 15 min a glicemia ainda estiver baixa, a mesma dose de glicose deve ser repetida. Após a normalização da crise hipoglicêmica, deve-se consumir uma refeição ou um lanche. Em casos graves, pode estar indicado o uso do glucagon (kit). As mulheres com DMG ou as do tipo 2 que mudaram para a terapia insulínica devem ser especialmente alertadas. Se necessário (crises ou ausências repetidas), devem-se elevar as metas do controle glicêmico.
■ Nefropatia diabética A nefropatia diabética tem incidência estimada em 5 a 10% das gestações e especialmente no diabetes tipo 1 (Tabela 33.7 e Figura 33.6). As gestações complicadas por nefropatia diabética apresentam risco elevado de morbidade materna e fetal, incluindo hipertensão, pré-eclâmpsia, CIR e parto pré-termo indicado. A ADA (2014) revisou o tópico sobre nefropatia e removeu os termos “microalbuminúria” e “macroalbuminúria”, que foram substituídos, respectivamente, por proteinúria de 30 a 299 mg/24
h e proteinúria ≥ 300 mg/24 h. O nível normal de proteína na urina é < 30 mg/24 h. Embora a proteinúria piore na gravidez, o dano renal não é permanente, exceto em um pequeno grupo de mulheres com doença avançada e creatinina > 1,5 mg/dℓ, em que a gravidez pode acelerar a progressão da nefropatia para o estado terminal. Todas as nefropatas diabéticas com doença há mais de 10 anos, proteinúria > 3 g/24 h ou creatinina > 1,5 mg/dℓ avaliadas há mais de 1 ano, devem ser encaminhadas ao nefrologista ao início do pré-natal.
Tabela 33.7 ■ Estágios da nefropatia diabética. Estágio
Característica
Tempo após o início da doença (anos)
Inicial (silencioso)
–
0a5
Incipiente
Microalbuminúria (> 30 mg/24 h)
5 a 15
Nefropatia diabética
Proteinúria (> 300 mg/24 h)
15 a 25
Terminal (ESRD)
Uremia (TFG < 10 mℓ/min)
25 a 30
ESRD, doença renal em estágio final; TFG, taxa de filtração glomerular.
■ Retinopatia diabética A retinopatia diabética é a principal causa de cegueira entre os 24 e os 64 anos de idade; ela pode ser classificada em: (1) retinopatia benigna, caracterizada por microaneurisma, hemorragia e exsudato; (2) retinopatia maligna ou proliferativa, com acentuada neovascularização (Tabela 33.8 e Figura 33.7). Em cada seis mulheres sem retinopatia, uma pode desenvolver sinais do processo proliferativo durante a gestação, embora só 2% requeiram tratamento. A fotocoagulação a laser está indicada para reduzir o risco de perda da visão em pacientes de alto risco, com retinopatia proliferativa, edema macular clinicamente significante e em alguns casos de retinopatia benigna grave. Aquelas com lesões moderadas/graves podem ter progressão durante a gestação; no entanto, deve-se esclarecer que a gravidez não afeta a visão a longo prazo. Mulheres com diabetes pré-gestacional que planejam uma gravidez, ou aquelas já grávidas, devem ser submetidas a exame oftalmológico e avisadas do risco de desenvolverem e/ou progredirem para a retinopatia diabética (ADA, 2014). O exame do fundo de olho deve ocorrer no 1o trimestre, com acompanhamento durante toda a gravidez (no mínimo um exame de retina a cada trimestre) e até 1 ano após o parto.
Figura 33.6 ■ Lesão renal do diabetes.
Tabela 33.8 ■ Classificação da retinopatia diabética. Classificação
Exame de retina
Complicações
Benigna
Hemorragia Microaneurisma Exsudato
–
Proliferativa
Neovascularização
Hemorragia do vítreo Descolamento da retina Amaurose
Figura 33.7 ■ A. Retinopatia benigna do diabetes. B. Retinopatia benigna e proliferativa no diabetes.
■ Hipertensão crônica A hipertensão crônica (≥ 130/80 mmHg) é observada em 70% das grávidas com diabetes. A hipertensão, especialmente a associada à nefropatia, aumenta o risco de pré-eclâmpsia, CIR e natimortalidade. O Doppler de artéria uterina é um importante sinal preditivo de toxemia.
■ Doença coronária Mulheres diabéticas, especialmente com nefropatia e hipertensão, apresentam risco elevado de infarto do miocárdio e morte. A doença coronária é contraindicação para a gravidez.
■ Tratamento ■ Dieta Para mulheres com o peso normal, a dieta usual é de 30 a 35 kcal/kg, com aumento para 40 kcal/kg para aquelas com menos de 90% do peso ideal e redução para 24 kcal/kg para outras com mais de 120% do peso ideal. A composição calórica inclui 40 a 50% de carboidratos complexos, com alto teor de fibra, 20% de proteínas e 30 a 40% de gorduras insaturadas. Adoçantes artificiais podem ser utlizados sem doses moderadas, incluindo sacarina, aspartame e acessulfame-K.
■ Insulina Em mulheres com diabetes pré-gestacional, a insulina é o cerne do tratamento. Mulheres com diabetes tipo 2 controladas pelos hipoglicemiantes orais devem passar para insulina. As necessidades de insulina são crescentes durante a gravidez. No 1o trimestre, 0,8 U/kg/dia; no 2o trimestre, 1,0 U/kg/dia e no 3o trimestre, 1,2 U/kg/dia. Os níveis glicêmicos monitorados devem permanecer normalizados, incluindo o de jejum ≤ 95 mg/dℓ, o de 1 h ≤ 140 mg/dℓ, e o de 2 h ≤ 120 mg/dℓ (The Endocrine Society, 2013; ADA, 2014). Durante a noite, a glicemia não deve baixar de 60 mg/dℓ. Os esquemas de administração de insulina são os usuais. Devem ser utilizados os análogos da insulina de ação rápida (aspart e lispro) e de ação prolongada (determir e glargina) (The Endocrine Society, 2013). Por maior que seja o controle da glicemia, a hipoglicemia é uma complicação frequente, especialmente a noturna.
■ Tratamento da hipertensão Diabéticas hipertensas com nefropatia devem ter rígido controle da pressão arterial a níveis < 130/80 mmHg (The Endocrine Society, 2013; ADA, 2014). São contraindicados os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) e os bloqueadores do receptor da angiotensina (BRA), os hipotensores de escolha são a metildopa e o nifedipino; os betabloqueadores devem ser evitados pelos seus efeitos no metabolismo da glicose.
■ Rastreamento das malformações fetais O rastreamento das malformações fetais é o principal objetivo do acompanhamento pré-natal. Já se mencionou a importância da HbA1c no período periconcepcional para mostrar o risco das malformações fetais. A translucência nucal (TN) > 3 mm e o Doppler do ducto venoso anormal podem sugerir malformações cardíacas. A ultrassonografia morfológica do 2o trimestre, obrigatória em toda gravidez, é especialmente dirigida para surpreender os defeitos do tubo neural (DTN), agenesia sacral e defeitos renais. A ecocardiografia fetal é mandatória entre 18 e 20 semanas para diagnosticar os defeitos cardíacos complexos (NICE, 2008) (Figura 33.8).
■ Monitoramento do crescimento fetal Vale lembrar que mulheres diabéticas têm maior risco de gerar fetos macrossômicos (> 4.000 g), responsáveis pela distocia de ombros no parto, com possível lesão do plexo braquial e parto operatório. No entanto, pouco se menciona que o diabetes com complicação vascular, em vez de determinar macrossomia, é reponsável por fetos com CIR, que também apresentam maior risco de morbiletalidade perinatal.
A ultrassonografia seriada, a cada 4 semanas, a partir de 28 semanas, para avaliar a circunferência abdominal (CA) e o vLA, rastreia, respectivamente, a macrossomia fetal e o polidrâmnio (NICE, 2008) (Figura 33.8).
■ Avaliação da vitalidade fetal O monitoramento fetal no feto macrossômico é feito por CTG e pelo perfil biofísico fetal (PBF), a partir de 38 semanas (NICE, 2008) (Figura 33.8). No CIR, deve-se optar pelo Doppler da artéria umbilical, a partir de 26 semanas.
■ Parto A prevenção da morte fetal e da macrossomia é uma razão para induzir o parto a termo na diabética. Porém, a indução jamais será feita antes de 39 semanas, evitando problemas respiratórios no recém-nascido.
Figura 33.8 ■ Acompanhamento fetal no diabetes pré-gestacional. Eco, ecocardiografia; CA, circunferência abdominal; vLA, volume do líquido amniótico; CIR, crescimento intrauterino restrito; CTG, cardiotocografia; PBF, perfil biofísico fetal.
A cesárea deve ser considerada se o peso fetal estimado pela ultrassonografia for > 4.500 g (NICE, 2008). Durante o parto, a glicemia deve ser controlada por infusão intravenosa de insulina regular ajustada para manter a glicemia < 110 mg/dℓ, evitando-se a hipoglicemia neonatal. Nas pacientes submetidas à cesariana, a insulina de ação rápida deve ser utilizada para tratar valores de glicose > 140 a 150 mg/dℓ, até que seja estabelecido o padrão alimentar regular (NICE, 2008).
■ Avaliação preconcepcional A seguir são apresentadas as recomendações da ADA (2014) e da Endocrine Society (2013):
• Os níveis de hemoglobina glicada devem ser < 7 antes de se tentar a gravidez. Aquelas com HbA1c > 10% devem ser fortemente desencorajadas a engravidar • Diabéticas que planejam a gravidez devem ser aconselhadas a utilizar suplementação com ácido fólico (5 g/dia) 3 meses antes da concepção e por 12 semanas depois para evitar os defeitos do tubo neural. Após 12 semanas de gravidez, a dose pode ser reduzida para 0,4 a 1,0 mg/dia, que será mantida até o fim da gestação e por toda a lactação • Mulheres diabéticas que contemplam a gravidez devem ser avaliadas para retinopatia, nefropatia [proteinúria, creatinina plasmática e taxa de filtração glomerular (TFG)], neuropatia e doença cardiovascular (risco coronário) • Medicamentos usualmente utilizados em diabéticas são contraindicados na gravidez, tais como estatinas, IECA e BRA. Ao contrário da ADA (2014), a Endocrine Society (2013) libera o uso de hipoglicemiantes orais (gliburida e metformina), particularmente no DMG • Mulheres com diabetes tipo 1 que pretendam engravidar devem passar por avaliação da tireoide pela determinação do TSH e do anticorpo antitireoperoxidase (anti-TPO). A tireoidite pós-parto também deve ser procurada nesse grupo de mulheres (The Endocrine Society, 2013).
■ Infante de mãe diabética O infante de mãe diabética (IMD) está sujeito a inúmeras complicações ao nascimento, como policitemia/hiperviscosidade, hipoglicemia, hipocalcemia, hiperbilirrubinemia, cardiomiopatia hipertrófica/congestiva, SAR e morbidade tardia. ▶ Policitemia e hiperviscosidade. A policitemia (concentração de Hb > 20 g/dℓ e hematócrito > 65%) ocorre em 5 a 10% dos IMD e está aparentemente relacionada com o controle glicêmico. A hiperglicemia é um estímulo poderoso para a produção de eritropoetina, provavelmente mediada pela diminuição da PO2. A policitemia/hiperviscosidade pode evoluir para obstrução vscular, isquemia e infarto de órgãos vitais, incluindo rins e SNC. ▶ Hipoglicemia. Aproximadamente 15 a 20% dos bebês de mães diabéticas desenvolvem hipoglicemia durante o período neonatal imediato. O nível de glicemia materna durante o parto é altamente preditivo da hipoglicemia neonatal e por isso deve ser controlado. Acostumado a conviver com altas taxas de glicose, consequentemente, hiperinsulinismo, após o nascimento, interrompido subitamente o aporte de glicose materna pela placenta, e ainda presente o hiperinsulinismo, o IMD é candidato à hipoglicemia que pode levar à convulsão, com sequela neurológica. ▶ Hipocalcemia e hiperbilirrubinemia. A hipocalcemia neonatal (cálcio plasmático < 7 mg/dℓ) em séries recentes de gestações diabéticas bem controladas ocorre em 5% ou menos de casos. A hiperbilirrubinemia neonatal incide em aproximadamente 25% dos IMD, taxa 2 vezes maior do que em bebês normais, sendo a prematuridade e a policitemia os principais fatores determinantes. O monitoramento rigoroso do IMD é necessário para evitar a morbidade decorrente de kernicterus, convulsão e lesão neurológica.
▶ Cardiomiopatia hipertrófica/congestiva. Em alguns bebês macrossômicos, pletóricos, o miocárdio se espessa, produzindo hipertrofia septal assimétrica significativa. Hipertrofia septal assimétrica em IMD tem sido estimada em taxa tão elevada quanto 30% ao nascimento, com resolução por volta de 1 ano de vida. IMD que manifestam disfunção cardíaca no período neonatal podem apresentar cardiomiopatia hipertrófica/congestiva. Essa condição é frequentemente assintomática mas de fácil diagnóstico à ecocardiografia fetal realizada na gestação.
■ Pontos-chave O diabetes na gravidez pode ser pré-gestacional ou diabetes melito gestacional (DMG) (iniciado na gestação). O diagnóstico do diabetes na gravidez é feito atualmente pelo critério do Estudo HAPO-2008. De acordo com o critério HAPO são utilizados glicemia de jejum na 1a consulta pré-natal e teste oral de tolerância à glicose de 75 g (TOTG-75) entre 24 e 28 semanas. As maiores complicações do diabetes melito gestacional são a macrossomia fetal e a hipoglicemia neonatal. O tratamento do diabetes melito gestacional é feito com dieta e exercícios; a insulina só está indicada se a glicemia de jejum e a pós-prandial não forem controladas. Mulheres com diabetes melito gestacional devem ser investigadas por teste oral de tolerância à glicose de 75 g (TOTG-75) (classificação da American Diabetes Association) nas 6 a 12 semanas do pós-parto. Grávidas com diabetes melito gestacional têm risco de 50% de desenvolver diabetes em 20 a 30 anos e a chance de recorrência em nova gravidez é de 35 a 40%. O grande problema do diabetes pré-gestacional (tipo 1 ou tipo 2) é a elevada incidência de malformações fetais (10%). O objetivo principal do tratamento do diabetes pré-gestacional é o rígido controle metabólico, por meio da administração de insulina e de ácido fólico no período periconcepcional, para evitar as malformações. A avaliação da vitalidade fetal é feita no diabetes pré-gestacional, a partir de 38 semanas, por cardiotocografia e perfil biofísico fetal; o Doppler umbilical é utilizado a partir de 26 semanas nos casos de crescimento intrauterino restrito.
■ A. Lúpus Eritematoso Sistêmico ■ Clínica ■ Achados laboratoriais ■ Diagnóstico ■ Conduta na gravidez ■ Prognóstico tardio e anticoncepção ■ Efeitos do lúpus no feto e no recém-nascido
■ B. Trombofilias ■ Trombofilias hereditárias ■ Síndrome antifosfolipídio
A. Lúpus Eritematoso Sistêmico O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é um tipo de colagenose – disfunção do tecido conectivo – com patogênese complexa, mediada por diversos autoanticorpos. As anormalidades do sistema imunológico incluem a superatividade dos linfócitos B, responsável pelos autoanticorpos. Isso resulta em dano celular e tecidual, quando os autoanticorpos ou os complexos imunes ligam-se a um ou mais componentes nucleares. Quase 90% dos casos de LES ocorrem no sexo feminino, e a prevalência em mulheres em idade de gravidez é de cerca de 1:500. A sobrevida de 10 e de 20 anos é de 75 e 50%, respectivamente. Infecção, exacerbação do lúpus, falência orgânica-terminal e doença cardiovascular são as principais causas de óbito. Especificamente na gravidez, deve-se procurar o acometimento renal, porque, com frequência, essa complicação afeta desfavoravelmente o seu desenrolar. A hipertensão também é comum, e sua exacerbação pode levar ao parto pré-termo. A síndrome antifosfolipídio é outra complicação, que, ao agir na vasculatura materna e placentária, dificulta o prognóstico gravídico.
■ Clínica O LES apresenta quadro clínico, evolução e prognóstico variados. As manifestações clínicas mais frequentes são multissistêmicas: mal-estar, febre, artrite, eritema, pleuropericardite, fotossensibilidade, anemia, disfunção cognitiva e nefrite (metade dos pacientes apresenta envolvimento renal).
■ Achados laboratoriais A identificação de anticorpos antinucleares (ANA) é o melhor teste de rastreamento, mas o teste positivo não é específico para lúpus. São relativamente específicos para o lúpus o anticorpo DNA-dupla-hélice (antidsDNA) e o anti-Smith (anti-Sm). Outras alterações são a leucopenia, trombocitopenia e proteinúria.
■ Diagnóstico O American College of Rheumatology (ACR) postulou critérios para a classificação de LES e determina definitivamente a doença pela identificação de quatro ou mais dos 11 critérios descritos na Tabela 34.1.
Tabela 34.1 ■ Critérios do American College of Rheumatology para lúpus eritematoso
sistêmico. 1. Eritema malar
Eritema fixo, plano ou elevado, sobre as eminências malares
2. Lesão discoide
Placas eritematosas com descamação ceratótica e rolhas foliculares Cicatrização atrófica pode ocorrer
3. Fotossensibilidade
Eritema com exposição a lúmen ultravioleta
4. Úlceras orais
Úlceras orais e nasofaríngeas observadas pelo médico
5. Artrite
Artrite não erosiva acometendo duas ou mais articulações periféricas, caracterizada por dor, aumento de volume ou derrame
6. Serosite
Pleurite ou pericardite documentada por eletrocardiograma ou atrito ou evidência de derrame pericárdico
7. Alterações renais
Proteinúria > 500 mg/dia ou > 3+, ou cilindros celulares
8. Alterações neurológicas
Convulsões ou psicose sem outra causa evidente
9. Alterações hematológicas
Anemia hemolítica ou leucopenia (< 4.000/mm 3) ou linfopenia (< 1.500/mm 3) ou trombocitopenia (< 100.000/mm 3) na ausência de fármacos que possam causá-las
10. Alterações imunológicas
Anti-DNA de dupla hélice, anti-Sm e/ou antifosfolipídio
11. Anticorpos antinucleares
Título anormal de fator antinuclear por imunofluorescência ou ensaio equivalente, na ausência de fármacos que induzam fator antinuclear
Durante a gravidez, o LES melhora em ⅓ das mulheres, permanece imutável em outro ⅓ e piora no ⅓ restante. O 1o trimestre e o pós-parto são fases nas quais a exacerbação da doença ocorre com mais frequência. O lúpus pode ameaçar a vida da mãe e do feto. O prognóstico da gravidez é melhor se: • A atividade do lúpus estiver quiescente por, no mínimo, 6 meses antes da concepção • Não houver comprometimento renal ativo manifestado por proteinúria ou insuficiência renal • Não se desenvolver quadro de pré-eclâmpsia • Não houver anticorpos antifosfolipídios.
■ Nefropatia lúpica A doença renal é mais comum se houver anticorpos antifosfolipídios. Mulheres com nefropatia cujo LES esteja em remissão têm melhor prognóstico. A hipertensão desenvolve-se, e a proteinúria piora em cerca de metade das pacientes com nefrite. A reativação da nefrite lúpica, denominada exacerbação renal, pode ser diagnosticada por quadro laboratorial típico de diminuição dos componentes de complemento (C3, C4 e CH50) e elevação dos títulos anti-DNA, pois, na maioria das vezes, esses casos não são acompanhados de
hipertensão.
■ Pré-eclâmpsia A pré-eclâmpsia está frequentemente associada ao LES. Por vezes fica muito difícil, se não impossível, diferenciar a pré-eclâmpsia grave da nefropatia lúpica.
■ Conduta na gravidez A conduta na gravidez consiste primariamente em monitorar as condições clínicas da mãe e do feto, assim como dos exames laboratoriais maternos. A queda dos complementos e o aumento do anti-DNA refletem a exacerbação do lúpus. Estudos hematológicos seriados podem detectar a atividade da doença, tais como trombocitopenia e leucopenia. A trombocitopenia no início da gravidez pode decorrer dos anticorpos antifosfolipídios e, no final, pode indicar pré-eclâmpsia. A elevação das transaminases e da bilirrubina no soro refletem comprometimento hepático. A proteinúria é sinal de mau prognóstico, especialmente se acompanhada por outras evidências de síndrome nefrótica ou níveis elevados de creatinina no soro. ▶ Monitoramento fetal. O crescimento fetal deve ser monitorado semanalmente por ultrassonografia, e a vitalidade, por Doppler umbilical. Se houver anticorpos anti-SS-A (anti-Ro) ou anti-SS-B (anti-La), a função cardíaca fetal (ecocardiografia) tem de ser avaliada a partir de 24 semanas de gravidez e, depois, mensalmente. A menos que haja hipertensão ou comprometimento fetal, a gravidez pode ir a termo.
■ Prognóstico tardio e anticoncepção Em geral, mulheres com lúpus e doença vascular crônica ou renal devem limitar sua prole. A esterilização tubária é vantajosa e tem indicação no pós-parto ou sempre que a doença estiver em remissão. A anticoncepção oral com estrogênio tem restrições e as injeções ou implantes de progesterona podem ser utilizados, assim como os dispositivos intrauterinos (DIU).
■ Efeitos do lúpus no feto e no recém-nascido Na gravidez complicada pelo lúpus, a morbidade e a mortalidade perinatal são elevadas significativamente (Tabela 34.2). O prognóstico é pior quando há proteinúria, insuficiência renal, hipertensão e pré-eclâmpsia. ▶ Lúpus neonatal. Essa síndrome é caracterizada por lesões na pele, lúpus cutâneo, diversas alterações hematológicas (trombocitopenia) e, ocasionalmente, bloqueio cardíaco congênito. A incidência do lúpus cutâneo é de 5 a 10% e a taxa de recorrência é de 25%. O lúpus cutâneo e a trombocitopenia são curados em poucos meses. ▶ Bloqueio cardíaco congênito. É consequência da miocardite difusa e da fibrose na
região entre o nodo atrioventricular e o feixe de His por ação dos anticorpos SS-A (Ro) e SS-B (La). Esses anticorpos podem explicar o óbito intrauterino, embora mesmo na sua existência a arritmia fetal só ocorra em 3% dos casos. A lesão cardíaca é permanente e geralmente há necessidade de marca-passo. O prognóstico tardio não é bom; um terço dos fetos acometidos morre em 3 anos. O bloqueio cardíaco congênito é recorrente em 10 a 15% das vezes.
Tabela 34.2 ■ Prognóstico materno e fetal no lúpus eritematoso sistêmico. Prognóstico
Descrição
Exacerbação lúpica Materno
No total, 1/3 exacerba na gravidez A exacerbação pode ser fatal (1 em 20) Exacerbações estão associadas a pior prognóstico perinatal Prognóstico pior se houver anticorpos antifosfolipídios Nefrite aumenta a incidência de exacerbação
Pré-eclâmpsia
Aumento da incidência (controverso)
Parto pré-termo
Aumento da incidência
Parto pré-termo
Aumento com a pré-eclâmpsia
Natimortalidade
Aumentada, especialmente com anticorpos antifosfolipídios
Crescimento intrauterino
Aumento
Lúpus neonatal
Incidência de 10% (transitória exceto para o bloqueio cardíaco)
Perinatal
B. Trombofilias As trombofilias podem ser divididas em hereditárias e adquiridas, estas últimas sendo representadas pela síndrome antifosfolipídio (SAF).
■ Trombofilias hereditárias* A gravidez caracteriza-se por elevado potencial coagulante, traduzido por exaltação da coagulação e diminuição da fibrinólise (Tabela 34.3 e Figura 34.1). O potencial trombogênico da gravidez também está aumentado pela estase venosa nas extremidades inferiores decorrente da compressão na veia cava inferior e nas veias pélvicas pelo útero gravídico. Assim, não será surpresa que a doença tromboembólica venosa (DTV) complique aproximadamente 1:1.600 nascimentos, constituindo a principal causa de morbidade materna nos Estados Unidos. Existe forte associação entre as trombofilias hereditárias e a DTV, o que torna relevante a detecção dessas mutações para que sejam tomadas medidas profiláticas adequadas (Capítulo 38). Todavia, é ainda controversa a associação entre as trombofilias hereditárias e a trombose
uteroplacentária – perda fetal, pré-eclâmpsia, crescimento intrauterino restrito (CIR) e descolamento prematuro da placenta (DPP) –, de maneira que não é recomendado o seu rastreamento na gravidez nessas condições. O rastreamento só estaria indicado em caso de história de evento tromboembólico ou história familiar de parente de 1o grau (pais, irmãos) com trombofilia hereditária de alto risco. As trombofilias hereditárias podem ser divididas de acordo com a gravidade, em de baixo e de alto risco (Figura 34.2), o que é fundamental para estabelecer o seu potencial trombogênico e sua tromboprofilaxia na gravidez (Figura 34.3).
Tabela 34.3 ■ Alterações do sistema de coagulação na gravidez. Fatores da coagulação
Alterações na gravidez
Fatores pró-coagulantes Fibrinogênio
Aumentado
Fator VII
Aumentado
Fator VIII
Aumentado
Fator X
Aumentado
Fator Von Willebrand
Aumentado
Inibidor do ativador de plasminogênio-1
Aumentado
Inibidor do ativador de plasminogênio-2
Aumentado
Fator II
Nenhuma alteração
Fator V
Nenhuma alteração
Fator IX
Nenhuma alteração
Fatores anticoagulantes Proteína S (livre)
Reduzida
Proteína C
Nenhuma alteração
Antitrombina III
Nenhuma alteração
Adaptada de American College of Obstetricians and Gynecologists. Antiphospholipid syndrome. Practice Bulletin, n. 132. Obstet Gynecol, 2012;120:1514.
Figura 34.1 ■ Visão geral das trombofilias hereditárias e seus efeitos na cascata de coagulação.
Figura 34.2 ■ Gravidade das trombofilias hereditárias: de baixo e alto risco. (Adaptada de American College of Obstetricians and Gynecologists. Inherited thrombophilias in pregnancy. Practice Bulletin, n. 138. Obstet Gynecol, 2013;122:706.)
Figura 34.3 ■ Tromboprofilaxia das trombofilias hereditárias na gravidez. (Adaptada de American College of Obstetricians and Gynecologists. Inherited thrombophilias in pregnancy. Practice Bulletin, n. 138. Obstet Gynecol, 2013;122:706.)
■ Síndrome antifosfolipídio A SAF é um distúrbio autoimune definido por características clínicas e laboratoriais, estas últimas representadas por níveis aumentados de anticorpos antifosfolipídios (Tabelas 34.4 e 34.5). O diagnóstico da SAF requer que ao menos um critério clínico e um laboratorial sejam preenchidos. Como aproximadamente 70% dos indivíduos com SAF são do sexo feminino, a doença é bastante prevalente em mulheres em idade de conceber. Os anticorpos antifosfolipídios constituem uma classe diversa de anticorpos com especificidade de ligação a fosfolipídios de carga negativa encontrados nas superfícies das células.
Tabela 34.4 ■ Critério laboratorial para o diagnóstico da síndrome antifosfolipídio (SAF). 1. Lúpus anticoagulante no plasma em duas ou mais ocasiões espaçadas de, no mínimo, 12 semanas. O resultado é apresentado como positivo ou negativo. O teste deve ser, idealmente, realizado antes do tratamento anticoagulante 2. Anticorpo anticardiolipina IgG e/ou IgM no soro ou no plasma em títulos médio-altos (i. e., > 40 GPL ou MPL, ou > 99o centil), em duas ou mais ocasiões espaçadas de, no mínimo, 12 semanas 3. Glicoproteína-β 2 I IgG e/ou IgM no soro ou no plasma (em títulos > 99o centil), em duas ou mais ocasiões espaçadas de, no mínimo, 12 semanas
Adaptada de American College of Obstetricians and Gynecologists. Antiphospholipid syndrome. Practice
Bulletin, n. 132. Obstet Gynecol, 2012;120:1514.
Tabela 34.5 ■ Critério clínico para o diagnóstico da síndrome antifosfolipídio (SAF). 1. Trombose vascular • Um ou mais episódios clínicos de trombose venosa, arterial ou de pequenos vasos, em qualquer tecido ou órgão 2. Morbidade obstétrica • Uma ou mais mortes inexplicadas de feto morfologicamente normal, com 10 ou mais semanas de gestação, morfologia documentada por ultrassonografia de 2o trimestre ou por exame após o nascimento • Um ou mais nascimentos prematuros de bebês morfologicamente normais antes de 34 semanas da gestação, em virtude de pré-eclâmpsia grave/eclâmpsia ou com características consistentes de insuficiência placentária • Uma ou mais perdas fetais consecutivas inexplicadas antes de 10 semanas de gestação, excluídas causas maternas anatômicas ou hormonais, assim como anomalias cromossômicas no casal
Adaptada de American College of Obstetricians and Gynecologists. Antiphospholipid syndrome. Practice Bulletin, n. 132. Obstet Gynecol, 2012;120:1514.
Existem evidências de que o elemento antigênico dos anticorpos antifosfolipídios é a glicoproteína-β2 I, que é uma proteína plasmática com afinidade para fosfolipídios de carga negativa (Figura 34.4), tendo papel regulatório na coagulação, fibrinólise e outros sistemas fisiológicos. Os anticorpos antifosfolipídios estão associados a diversos problemas médicos, incluindo a trombose arterial e a venosa, trombocitopenia autoimune e algumas complicações obstétricas, como perda fetal, pré-eclâmpsia, insuficiência placentária, CIR e parto pré-termo.
■ Anticorpos antifosfolipídios São três os anticorpos antifosfolipídios que contribuem para o diagnóstico da SAF: lúpus anticoagulante (LAC), anticardiolipina (aCL) e antiglicoproteína-β2 I. Muitas pacientes com SAF têm os três anticorpos. Os testes positivos para esses anticorpos podem ser transitórios e, por isso, o diagnóstico de SAF requer dois testes positivos espaçados de, no mínimo, 12 semanas.
■ Lúpus anticoagulante O LAC pode ser encontrado em muitos indivíduos com LES e está associado a trombose, e não a anticoagulação, como sugere o seu nome. Qualquer que seja o exame utilizado para a sua identificação, e todos eles são indiretos, o LAC não pode ser quantificado e o resultado é expresso como positivo ou negativo.
■ Anticardiolipina Os aCL, comumente identificados por meio de métodos imunoenzimáticos, constituem os dois isótipos – imunoglobulina G (IgG) e imunoglobulina M (IgM).
Historicamente, devido à pouca concordância entre os laboratórios, foi difícil estabelecer a padronização desses anticorpos. Por isso, os resultados eram expressos em negativo, baixo, médio e alto. Atualmente, os resultados dos testes são apresentados em unidades padronizadas internacionais, designadas como GPL para o IgG e MPL para o IgM. A despeito de divergências na interpretação dos testes, diretrizes recentes identificam como positivo o resultado > 40 GPL ou MPL (i. e., maior que o 99o centil).
■ Antiglicoproteína-β2 I Assim como para os anticorpos anticardiolipina, os antiglicoproteína-β2 I são comumente detectados por meio de técnica imunoenzimática, e os resultados são fornecidos para os dois isótipos, os do IgG em unidades internacionais padronizadas SGU e os do IgM em SMU. O resultado positivo é aquele > 99o centil.
■ Complicações médicas As complicações mais comuns e sérias associadas à SAF são as tromboses venosas e as arteriais. A maioria das tromboses (65 a 70%) é venosa. Embora o local mais frequente da trombose venosa seja a extremidade inferior, a trombose pode ocorrer em qualquer vaso sanguíneo do organismo.
Figura 34.4 ■ Glicoproteína-β2 I dimérica ligada aos receptores de membrana. (Adaptada de Branch e Eller, 2006.)
Em pacientes com SAF, o risco de trombose está aumentado na gestação. Até 25% dos acidentes trombóticos associados à SAF ocorrem durante a gravidez e o pós-parto.
O derrame é a consequência mais frequente da oclusão arterial. Indivíduos com episódios de trombose arterial inexplicada, livedo reticularis (Figura 34.5), derrame, amaurose fugax ou isquemia transitória, devem ser tratados para anticorpos antifosfolipídios. Uma condição denominada SAF catastrófica ocorre em algumas pacientes que desenvolvem trombose progressiva e insuficiência multissistêmica. Outras apresentam doença grave no pósparto, insuficiência cardiopulmonar, insuficiência renal, febre e múltiplas tromboses.
■ Complicações obstétricas O efeito negativo da SAF na gravidez, em casos de perda fetal, muito provavelmente está relacionado com a função placentária anormal – estreitamento das artérias espiraladas, espessamento intimal, aterose aguda, necrose fibrinoide. Extensas tromboses, infartos e necroses placentárias também podem ocorrer pontualmente. O mecanismo patogênico do CIR – sofrimento fetal crônico, perdas fetais e parto pré-termo – está associado à insuficiência placentária resultante de múltiplas tromboses e infartos concomitantes à vasculopatia das artérias espiraladas, já descrita. ▶ Perdas fetais recorrentes. Grande proporção de perdas fetais relacionadas com anticorpos antifosfolipídios ocorre no período fetal (após 10 semanas da gravidez). Níveis elevados de anticorpos antifosfolipídios (> 20 unidades) estão associados a aumento de 3 a 5 vezes na natimortalidade. Por outro lado, mulheres com abortamento recorrente exibem teste positivo para anticorpos antifosfolipídios em 5 a 20% dos casos. ▶ Pré-eclâmpsia. A pré-eclâmpsia está associada à SAF, de maneira que cerca de 11 a 17% das mulheres com pré-eclâmpsia apresentam resultado positivo para anticorpos antifosfolipídios e a associação é maior com a pré-eclâmpsia grave-precoce (antes de 34 semanas). ▶ Crescimento intrauterino restrito. Cerca de 15 a 30% dos casos de SAF cursam com CIR.
Figura 34.5 ■ Livedo reticularis em caso de síndrome antifosfolipídio (SAF).
■ Diagnóstico
As indicações para o diagnóstico da SAF estão listadas na Tabela 34.5 e os testes laboratoriais na Tabela 34.4. Os anticorpos testados são LAC, aCL, IgG e IgM, e antiglicoproteína-β2 I (anti-β2 GPI), IgG e IgM. O teste positivo inicial deve ser confirmado após 12 ou mais semanas; a persistência do resultado positivo confirma a síndrome. O teste positivo para LAC é fator de risco mais importante para o prognóstico adverso na gravidez do que a positividade do aCL e da anti-β2 GPI.
■ Tratamento Mulheres com SAF são consideradas de alto risco para pré-eclâmpsia e por isso devem receber aspirina em baixa dose (100 mg/dia), iniciada antes de 12 semanas da gravidez. Concomitantemente, devem ser tratadas com heparina profilática (enoxaparina 40 mg subcutânea por dia), durante toda a gravidez e por 6 semanas do pós-parto (American College of Obstetricians and Gynecologists [ACOG], 2011). As mulheres com história de trombose venosa devem ser tratadas da mesma maneira, à exceção da heparina, que deve ser administrada em dose terapêutica (enoxaparina 1 mg/kg subcutânea 12/12 h).
■ Avaliação fetal A SAF aumenta o risco de CIR e de morte fetal. O acompanhamento seriado com ultrassonografia para surpreender o CIR e com Doppler umbilical para avaliar a vitalidade fetal a partir do 3o trimestre constitui boa prática.
■ Anticoncepção pós-parto As pílulas com estrogênio estão proibidas, e as preparadas com progesterona, permitidas.
■ Prognóstico tardio Cerca de 50% das mulheres com SAF desenvolve trombose no período de 3 a 10 anos e 10%, LES. Essas mulheres devem ser encaminhadas a um especialista para serem tratadas e acompanhadas.
■ Pontos-chave O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é um tipo de colagenose caracterizada por anormalidades no sistema imunológico, com produção de autoanticorpos responsáveis pela destruição celular e tissular. O LES demonstra envolvimento multissistêmico: febre, artrite, eritema, pleuropericardite, fotossensibilidade, anemia, disfunção cognitiva; metade dos pacientes apresenta envolvimento renal (nefrite). Quase 90% dos casos de LES acometem mulheres: 1:500 mulheres em idade de conceber. A taxa de sobrevida de 10 e de 20 anos é de, respectivamente, 75 e 50%. Cerca de 1/3 dos casos de LES exacerba-se na gravidez, com taxa de mortalidade de 1:20 casos.
O prognóstico perinatal do LES é pior se houver hipertensão, nefrite e anticorpos antifosfolipídios, responsáveis por pré-eclâmpsia, parto pré-termo, crescimento intrauterino restrito (CIR), natimortalidade e lúpus neonatal. As trombofilias podem ser divididas em hereditárias e adquiridas. A síndrome antifosfolipídio (SAF) é um exemplo de trombofilia adquirida, determinada pelos anticorpos lúpus anticoagulante (LAC), anticardiolipina (aCL) e antiglicoproteína-β2 I (anti-β2GPI). O tratamento da SAF é feito com heparina e aspirina em baixa dose. O acompanhamento fetal na SAF é realizado por ultrassonografia e Doppler umbilical. Após a gravidez, mulheres com SAF devem ser acompanhadas por um especialista.
_________ *O aprofundamento do tema, de interesse do especialista, foge ao escopo deste livro. Por isso, o leitor interessado em conhecer melhor o assunto pode procurá-lo em Montenegro CAB, Rezende J. Rezende Obstetrícia. 12. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2013.
■ Diagnóstico ■ Classificação ■ Aconselhamento preconcepcional ■ Principais cardiopatias ■ Prótese valvar cardíaca ■ Conduta geral ■ Prognóstico
O espectro da doença cardíaca está mudando na mulher em idade reprodutiva. A doença cardíaca congênita nos países desenvolvidos representa mais de 50% das cardiopatias durante a gravidez. Com os avanços da cirurgia cardíaca, 85% das crianças tratadas com cardiopatia congênita sobrevivem até a idade adulta. Em países em desenvolvimento, a doença cardíaca reumática ainda é um problema de saúde pública, sendo a estenose mitral de origem reumática a forma mais frequente de lesão cardíaca associada à gestação, registrada em aproximadamente 7 em cada 10 gestantes cardiopatas antes dos 30 anos de idade. Atualmente se observa incidência crescente de infarto do miocárdio na gravidez, o que se deve a obesidade, hipertensão, diabetes e concepção em idade tardia. Embora a doença cardíaca incida em pouco mais de 1% das grávidas, ela é responsável por 20% das mortes maternas obstétricas indiretas em países desenvolvidos. Além dos riscos maternos, a doença cardíaca afeta o desenvolvimento, o crescimento e a sobrevida do feto.
■ Diagnóstico Na gestação, o diagnóstico das cardiopatias é dificultado, porque a maioria dos sintomas confunde-se com os exibidos por algumas pacientes na vigência de gravidez normal (dispneia, taquicardia, palpitação, síncope, sopro sistólico, edema dos membros inferiores), todos condicionados por acréscimo de velocidade circulatória, elevação da cúpula diafragmática e aumento da pressão venosa. O edema dos membros inferiores resulta da combinação de obstrução venosa pelo útero gravídico e de queda da pressão coloidosmótica; é achado frequente na gravidez normal e não deve ser considerado sinal de doença cardíaca. Há, porém, elementos decisivos para caracterizar a doença cardíaca na gestante: arritmias, sopro diastólico, sopro sistólico de no mínimo 3 cruzes e aumento indiscutível da área cardíaca. Aproximadamente 10 a 15% das pacientes com doença cardíaca na gravidez não têm história prévia da condição. A ecocardiografia da grávida é fundamental para a avaliação da anatomia e da fisiologia do coração e, por isso, é o exame principal para o diagnóstico da cardiopatia. Vale destacar que na gravidez normal há aumento de pré-carga, débito cardíaco e consumo de O2. Por outro lado, a póscarga está diminuída.
■ Classificação Para serem estabelecidos o prognóstico materno e a terapêutica, é importante separar funcionalmente a grávida cardiopata em quatro classes (Tabela 35.1). Dentre as grávidas cardiopatas, 50% pertencem à classe I e têm excelente prognóstico; 10% distribuem-se nas classes III e IV, das quais a maioria precisa ser hospitalizada para evitar a
insuficiência cardíaca.
Tabela 35.1 ■ Classificação funcional da cardiopata. Classe funcional
Características clínicas
Classe I
Paciente assintomática, sem limitação da atividade física
Classe II
Paciente levemente comprometida, com limitação discreta da atividade física ordinária
Classe III
Paciente acentuadamente comprometida, confortável ao repouso, mas com grande limitação da atividade física mesmo leve
Classe IV
Paciente sintomática mesmo no repouso com inabilidade de desempenhar qualquer atividade física sem desconforto
Adaptada de New York Heart Association (NYHA).
■ Aconselhamento preconcepcional Existem diversas condições que contraindicam a gravidez: • Classificação III/IV da New York Heart Association (NYHA) • Algumas doenças cardíacas (mortalidade 25 a 50%) (Tabela 35.2) • Diversas alterações cardíacas: ○ Disfunção ventricular sistêmica grave ○ Lesão obstrutiva esquerda grave ○ Cardiopatias cianóticas com saturação de oxigênio (SaO2) < 85%. Deve-se eclarecer à grávida que o prognóstico fetal é adverso em cerca de 30% dos casos, com risco aumentado de abortamento, crescimento intrauterino restrito (CIR) e prematuridade. Além disso, o risco de cardiopatia congênita no recém-nascido está aumentado: 0,8% na população geral e 5% em mães cardiopatas. A Figura 35.1 esquematiza o aconselhamento preconcepcional na cardiopata.
Figura 35.1 ■ Aconselhamento preconcepcional na cardiopata.
■ Principais cardiopatias ■ Doença cardíaca reumática Por sua incidência e gravidade, a estenose mitral é a doença cardíaca reumática mais importante na gravidez e pode determinar morte materna de até 5% nas pacientes com complicações (50%). Como na história natural da estenose mitral há um período assintomático de 10 a 20 anos, não é raro que a grávida com essa cardiopatia permaneça não diagnosticada e exiba dispneia pela 1a vez na gravidez. A combinação de taquicardia, aumento do volume sanguíneo e do débito cardíaco fisiológicos na gravidez são predisponentes à descompensação cardíaca. Graus de estenose mitral não problemáticos fora da gravidez podem ser mal tolerados após a concepção. Betabloqueadores podem ser úteis para reduzir a frequência cardíaca nesses casos. As complicações da estenose mitral são edema agudo de pulmão e fibrilação atrial. A descompensação ocorre especialmente em períodos nos quais são máximas as alterações hemodinâmicas que determinam a sobrecarga cardíaca: final do 2o e 3o trimestres e período periparto.
A fibrilação atrial é a principal arritmia que acomete a mulher com estenose mitral e deve ser imediatamente tratada com antiarrítmicos e anticoagulantes para evitar complicações tromboembólicas. As cirurgias abertas de prótese valvar causam maior mortalidade materna e fetal. O prognóstico da valvotomia fechada (valvotomia percutânea por balão) é consideravelmente melhor, com taxa de mortalidade materna inferior a 3% e de mortalidade perinatal de 5% (seis vezes menor do que na cirurgia aberta). Procedimento seguro e efetivo, a valvotomia percutânea é uma alternativa à intervenção cirúrgica em casos nos quais a ecocardiografia apresenta elementos favoráveis: valvas não calcificadas e regurgitação mitral mínima. A cirurgia da estenose mitral está indicada em pacientes que se tornaram sintomáticas, com área calculada em derredor de 1,0 a 1,2 cm2. A valvopatia com cateter-balão é o procedimento de escolha, devendo ser praticada, preferencialmente, no 2o trimestre da gravidez. O risco para a mãe é de 1 a 2%, e para o concepto, de 10%.
■ Doença cardíaca congênita As doenças cardíacas congênitas cianóticas ocasionam risco elevado para a mãe e para o concepto. Na gravidez, a cianose piora em função do aumento do shunt direita-esquerda e da policitemia, decorrente da hipoxia, aumentando os riscos de tromboembolismo. A cianose é muito mal tolerada pelo feto e está associada a elevada incidência de abortamento, morte intrauterina, CIR e parto prétermo. Fatores de mau prognóstico incluem saturação do sangue arterial < 80%, hematócrito > 60% e síncope. Na síndrome de Eisenmenger, cardiopatia congênita com hipertensão pulmonar, a tolerância é mínima para a mãe e para o feto. A mortalidade materna é de 40 a 50%, e a fetal, de 40%. Nesse caso, está indicado o abortamento terapêutico. Na síndrome de Marfan, anomalia intrínseca da capa média aórtica, o parto é, eventualmente, o fator precipitante de dissecção aórtica (25% dos casos). A síndrome de Marfan é autossômicodominante, de modo que há risco de transmissão genética para o feto. Mulheres com síndrome de Marfan ou operadas de coarctação da aorta devem ser avisadas da possibilidade da dissecção aguda do vaso e, ao menor sintoma, devem procurar auxílio urgente. Grávidas com doença cardíaca congênita apresentam risco elevado de transmissão ao feto e, por essa razão, devem ser submetidas à ecocardiografia fetal. Um marcador de cardiopatia fetal é a translucência nucal (TN) aumentada (> 3,5 cm) na ultrassonografia de 1o trimestre. Especial atenção deve ser dada à ultrassonografia morfológica de 20 a 23 semanas.
■ Prolapso da valva mitral É uma das complicações mais frequentes na gravidez. A maioria das pacientes é assintomática e a gravidez é bem tolerada.
■ Profilaxia secundária na febre reumática Toda mulher com história de febre reumática, apresentando ou não cardite, deve ser orientada para o risco da recidiva. A antibioticoterapia profilática deve ser continuada durante a gestação, conforme os critérios descritos na Figura 35.2.
■ Endocardite infecciosa É uma complicação rara na gravidez, mas com mortalidade de 10 a 30%. Segundo as recomendações da American Heart Association (AHA, 2007), a profilaxia da endocardite infecciosa está reservada apenas a pacientes de alto risco, portadoras de valvas cardíacas, com antecedentes da doença ou certos tipos de cardiopatias congênitas (excluído o prolapso da mitral). A profilaxia deve ser prescrita em qualquer intervenção com risco significante de bacteremia, como tratamento dentário que envolva a manipulação da gengiva, da região periapical do dente ou a abertura da mucosa bucal; cirurgia ou biopsia do sistema respiratório (incluindo amídalas e adenoide); e, finalmente, cirurgia infectada da pele e musculoesquelética (p. ex., osteomielite). Em cirurgias do sistema gastrintestinal e do geniturinário, não há mais indicação da profilaxia. O antibiótico recomendado é a amoxicilina, 2 g por via oral, dose única, 1 h antes do procedimento. O Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG, 2006) refere não haver evidências de que o antibiótico profilático seja necessário para prevenir a endocardite infecciosa no parto vaginal não complicado. Todavia, o antibiótico profilático deve ser administrado em todos os casos de parto cesáreo, quando o tratamento preventivo já é universal.
■ Infarto do miocárdio Incidência na gravidez de 1:10.000 gestações. A mortalidade materna é elevada, 10 a 20%, e o diagnóstico feito pelo eletrocardiograma (ECG) e pela elevação das enzimas cardíacas, especialmente a troponina I, é, atualmente, o melhor marcador.
■ Hipertensão arterial pulmonar A hipertensão pulmonar, de qualquer etiologia, confere à gravidez o rótulo de risco muito elevado (mortalidade de 30 a 50%), e mulheres com esta afecção não deveriam sequer engravidar. Se utilizado na gravidez e no puerpério, o tratamento com vasidilatador arterial pulmonar pode melhorar as chances de sobrevida materna.
■ Cardiomiopatia periparto A cardiomiopatia periparto é um tipo raro de cardiomiopatia dilatada relacionada com a gravidez em mulheres sem história de doença cardíaca. Sua incidência estimada é de 1:2.500 a
4.000 nascimentos vivos. Está associada a elevada mortalidade materna em decorrência de insuficiência cardíaca, arritmia ou embolia.
Figura 35.2 ■ Diretrizes para a profilaxia secundária da febre reumática.
São critérios para caracterizar a cardiomiopatia periparto: insuficiência cardíaca no último mês da gravidez ou nos primeiros 5 meses do pós-parto, ausência de outra causa identificável de insuficiência cardíaca e disfunção ventricular esquerda à ecocardiografia (fração de ejeção [FE] < 45%). Os fatores de risco para a cardiomiopatia periparto são: idade materna avançada (> 35 anos), multiparidade (> 3 partos), gravidez gemelar, afrodescendência e uso de tocolíticos. Cerca de 50% das pacientes recuperam-se da insuficiência cardíaca (FE > 45%) em 6 meses com o tratamento atual, especialmente betabloqueadores e inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA), estes últimos permissíveis apenas no pós-parto. Mulheres com FE < 30% devem receber anticoagulação plena para evitar tromboembolia cardíaca. Dessas, 25% têm insuficiência cardíaca persistente, mas permanecem estáveis com a medicação e 25% evoluem para o óbito. Mulheres com redução persistente da FE apresentam risco de recorrência da insuficiência
cardíaca em nova gravidez e, inclusive, de morte. Para aquelas que recuperam a função cardíaca, avaliada sob ecocardiografia de esforço, o risco em futura gestação é mínimo. A FE < 25%, por ocasião do diagnóstico da cardiomiopatia periparto, tem sido considerada sinal de mau prognóstico para uma nova gravidez e um indicador importante para transplante cardíaco, mesmo para aquelas que eventualmente recuperam a FE. ▶ Considerações recentes. A prolactina (PRL) é um hormônio secretado pela adenohipófise na gravidez e no pós-parto que estimula a produção de leite. Recentemente, a PRL, na verdade o seu fragmento prolactina 16 kDa, tem sido considerada na etiopatogenia da cardiomiopatia periparto (Figura 35.3). A bromocriptina é um medicamento que inibe a secreção hipofisária de PRL e, por esse motivo, vem sendo indicada no tratamento da cardiomiopatia periparto.
Figura 35.3 ■ Esquema hipotético da etiopatogenia da cardiomiopatia periparto. STAT3, transdutor de sinal e ativador de transcrição 3; MnSOD, manganês-superóxido dismutase; ROS, espécies reativas de oxigênio; MMP, metaloproteinase da matriz.
■ Arritmia Em função da baixa prevalência das cardiopatias na gravidez, as arritmias não são comuns. A arritmia pode ser o 1o sinal de doença cardíaca na gravidez, merecendo investigação criteriosa. Substâncias antiarrítmicas podem ser utilizadas: digoxina, guanidina, procainamida. A restauração do ritmo sinusal é altamente aconselhável em mulheres com taquiarritmias por doença cardíaca. O tratamento com betabloqueadores pode determinar CIR; nessas condições, o feto deve ser avaliado por ultrassonografia seriada, observando-se especialmante a medida da circunferência abdominal para avaliar o desvio do crescimento. A cardioversão com corrente direta é segura desde que se preste atenção à possibilidade de aspiração/regurgitação de conteúdo gástrico e à posição supina determinante da hipotensão por compressão aortocava. É recomendado o monitoramento fetal.
■ Prótese valvar cardíaca O tipo ideal de prótese valvar cardíaca em mulheres jovens e seu acompanhamento durante a gravidez é um tema controverso. As valvas biológicas não necessitam de tratamento anticoagulante e o prognóstico na gravidez é excelente. Todavia, as válvulas mecânicas têm prognóstico melhor a longo prazo. O tratamento anticoagulante da gravidez com prótese mecânica é bastante problemático, em função da necessidade de se manter elevado o nível de anticoagulação para prevenir complicações tromboembólicas. Além das portadoras de valvas metálicas, são candidatas à anticoagulação profilática as pacientes que apresentam fibrilação atrial, história de embolia e disfunção ventricular esquerda. Não há regime ideal de anticoagulação em mulheres com valvas cardíacas mecânicas na gravidez. A varfarina é o melhor medicamento para a prevenção de complicações trombóticas em grávidas com prótese valvar cardíaca, mas ela atravessa a placenta e é teratogênica. O esquema terapêutico ideal é a enoxaparina (1 mg/kg de peso, 2 vezes/dia, subcutânea). Porém, para evitar complicações trombóticas, deve haver grande adesão ao tratamento, feito por equipe multidisciplinar com controle rigoroso dos testes laboratoriais, particularmente o anti-Xa. Nessas condições, há registro de recém-nascido vivo em cerca de 95% dos casos e poucos acidentes trombóticos. Outra opção é a enoxaparina no 1o trimestre e no periparto, e a varfarina no restante do tempo da gravidez. Se eleita a heparina de baixo peso molecular (HBPM), a dose deve ser terapêutica e, de preferência, monitorada pela atividade do antifator Xa, ao menos mensalmente. Sugere-se um pico de no mínimo 1,0 UI/mℓ (3 a 4 h pós-dose) e nível de 0,5 UI/mℓ nos intervalos.
A aspirina em baixa dose (75 a 100 mg/dia) é segura e pode ser efetiva como medicação adjunta em grávidas com valvas cardíacas mecânicas ou em qualquer outra possibilidade de risco elevado de trombose intracardíaca. ▶ Embriopatia varfarínica. A varfarina é teratogênica e causa embriopatia varfarínica (5 a 10%), caracterizada por defeitos craniofaciais (hipoplasia nasal) e esqueléticos (alterações ósseas epifisárias e rizomelia de fêmur e de úmero), particularmente se a exposição ocorrer entre 6 e 9 semanas da gravidez. A continuação da varfarina no 2o e no 3o trimestre também pode ocasionar graves hemorragias fetais e placentárias (5 a 10%) com morbidade e mortalidade fetais expressivas. São comuns falhas no sistema nervoso central, por comprometimento do tecido cerebral pela hemorragia e sequela cicatricial. Essas falhas incluem agenesia do corpo caloso, síndrome de Dandy-Walker, atrofia cerebelar da linha média e atrofia óptica.
■ Conduta geral Os procedimentos de conduta são: • Consulta a cada 2 semanas com obstetra e cardiologista • Deve-se evitar anemia (suplementação de ferro e de folatos) e a atividade física; restringir o sódio (4 g/dia) • Monitoramento cuidadoso do digitálico, diurético e betabloqueador • A ecocardiografia fetal (18 a 20 semanas) está indicada pela possibilidade de transmissão congênita • A cirurgia cardíaca aberta é de indicação excepcional na gravidez; deve-se optar pela valvotomia fechada. A angiografia é um método apropriado de diagnóstico de insuficiência coronária aguda. As intervenções percutâneas por cateter são seguras e efetivas no tratamento da doença coronária (angioplastia) e na estenose das valvas mitral e pulmonar (dilatação por balão). Já a dilatação por balão na estenose aórtica deve ser apenas considerada em casos muito selecionados, pois carreia risco elevado de mortalidade e de insucesso. Indicada a cirurgia cardíaca extracorpórea, a hipotermia profunda e a baixa pressão de perfusão, usuais na técnica padrão, estão associadas a risco de 30% de mortalidade fetal. A mortalidade de concepto pode ser tão baixa quanto 10% ao se evitar a hipotermia e manter-se a pressão de perfusão no nível mais alto possível • A gravidez está contraindicada nas classes III e IV, e no 1o trimestre pode estar prescrito o abortamento terapêutico, acompanhado de esterilização cirúrgica, pois os riscos maternos são elevados. Em geral, a gravidez está contraindicada na síndrome de Eisenmenger, na síndrome de Marfan, cardiomiopatia dilatada com disfunção ventricular esquerda grave (fração de ejeção < 35%) e na doença cardíaca congênita cianótica (hematócrito elevado > 65%).
■ Parto O objetivo principal é minimizar qualquer sobrecarga adicional no sistema cardiovascular determinada pelo parto. Costuma-se alcançar esse objetivo com início espontâneo do parto, controle da dor com anestesia de condução e, se necessário, utilizando-se a via vaginal assistida pelo uso de fórceps baixo ou de alívio, limitando ou evitando os esforços expulsivos maternos. Durante a fase de dilatação, a parturiente deve assumir o decúbito lateral esquerdo para não agravar o débito cardíaco já elevado pela contratilidade uterina. A anestesia de condução é problemática na gravidez com doença congênita quando a hipotensão pode reverter o shunt intracardíaco. Todavia, a indução do parto pode ser apropriada para otimizar sua época em relação ao esquema de anticoagulação ou em função da deterioração da função cardíaca materna. Vale lembrar que a indução do parto, especialmente em nulíparas, representa risco elevado de operação cesariana. Na condução do secundamento em mulheres com doença cardíaca, a administração de ocitocina em bolus intravenoso pode causar hipotensão grave e deve ser evitada; infusão de metilergonovina está contraindicada na maioria dos casos, pois pode determinar hipertensão aguda. O misoprostol pode ser seguro, embora cause problemas como a hipertermia.
■ Pós-parto Até que as alterações hemodinâmicas ocorridas no parto ou no puerpério desapareçam, é aconselhável solicitar rigorosa vigilância materna. Para condições cardíacas particularmente instáveis (tais como hipertensão pulmonar ou cardiomiopatia) esta vigilância pode estender-se até 2 semanas do pós-parto. A cardiopata grávida deve ser avaliada, no mínimo, com 6 semanas após o parto. Os inibidores das enzimas conversoras da angiotensina (ECA) são seguros e podem ser administrados em mulheres que amamentam. Pelo risco elevado de hemorragia pós-parto em grávidas com doença cardíaca anticoagulada, a introdução ou a reintrodução da varfarina deve ser adiada até, no mínimo, 2 dias do pós-parto, sempre atentando para o monitoramento rigoroso da anticoagulação.
■ Prognóstico A gravidez, como já mencionado anteriormente, impõe elevada sobrecarga ao trabalho do coração. A insuficiência cardíaca é o risco mais importante a que está exposta a gestante cardiopata: representa aproximadamente 70% das complicações. A época de maior incidência é o início do 2o trimestre. A mortalidade materna é de 0 a 1% no Grupo 1 – baixo risco, 5 a 15% no Grupo 2 – médio risco e 25 a 50% no Grupo 3 – alto risco (Tabela 35.2). A gravidez não está recomendada nas pacientes do Grupo 3.
Em geral, regurgitações valvares são mais bem toleradas que as estenoses; as lesões do coração direito, exceto se associadas à hipertensão pulmonar, cursam melhor na gravidez que as do coração esquerdo. Lesões associadas a risco elevado de trombose (p. ex., fibrilação atrial, valvas mecânicas) tornam-se ainda mais perigosas, em face do estado fisiológico de hipercoagulabilidade da gravidez. Se a cardiopata leva a bom termo a gravidez e o parto, a gestação parece não afetar o curso de sua doença, nem lhe diminuir a longevidade.
Tabela 35.2 ■ Risco de mortalidade materna na grávida cardiopata.
Baixo risco: < 1%
Defeito septal atrial (DSA), defeito septal ventricular (DSV), canal arterial persistente Doença pulmonar ou tricúspide Prolapso da valva mitral Estenose mitral leve/moderada (≤ 1,5 cm 2) ou NYHA classes I e II Doença congênita corrigida sem disfunção cardíaca residual Valva porcina
Médio risco: 5 a 15%
Estenose mitral com fibrilação atrial Estenose aórtica Valva mecânica Coarctação da aorta Síndrome de Marfan com aorta normal Cardiomiopatia periparto sem disfunção ventricular residual Infarto do miocárdio
Alto risco: 25 a 50%
Síndrome de Eisenmenger Hipertensão pulmonar Doença congênita complexa cianótica (tetralogia de Fallot) Síndrome de Marfan com envolvimento da aorta Qualquer doença com NYHA classes III e IV Cardiomiopatia periparto com disfunção ventricular residual
Adaptada de New York Heart Association (NYHA).
■ Pontos-chave Tem sido observada nítida tendência à redução da incidência de lesões cardíacas de origem reumática e, paralelamente, ascensão de cardiopatias congênitas. A lesão cardíaca mais frequente na gravidez é a estenose mitral, de origem reumática. O débito cardíaco na gravidez começa a sofrer acréscimo já no 1o trimestre; o aumento é de 30 a 50% e alcança o seu máximo com 24 semanas, e assim se mantém até o termo. A gestação em cardiopata representa uma associação a ser temida: a sobrecarga imposta fisiologicamente ao coração, capaz de levar à insuficiência cardíaca aquelas que apresentam reserva do coração diminuída. O diagnóstico da cardiopatia na gravidez está dificultado pela sintomatologia da gravidez normal. A ecocardiografia da mãe é o procedimento de eleição. Para se estabelecer o prognóstico, é útil classificar as cardiopatias em 4 classes de gravidade crescente: classes I, II, III e IV. A cardiomiopatia periparto é uma disfunção de etiologia desconhecida, própria da gravidez avançada e do puerpério e de prognóstico reservado. No caso de estenose mitral acentuada, pode estar indicada a valvotomia fechada (percutânea). Mulheres com prótese valvar mecânica devem receber anticoagulantes. Nas portadoras de prótese valvar mecânica, a varfarina é indicada, respeitando-se o 1o trimestre, pois ela é teratogênica.
O parto de eleição é o transpélvico assistido (anestesia de condução e fórceps de alívio). Nas cardiopatas classes III e IV pode estar indicado o abortamento terapêutico, no 1o trimestre, com esterilização cirúrgica. Essas mulheres não devem conceber.
■ Definição ■ Etiologia ■ Classificação ■ Prognóstico ■ Tratamento ■ Recomendações da Força-tarefa sobre hipertensão na gravidez
A hipertensão crônica ocorre em 5% das grávidas; as taxas variam de acordo com a população estudada e os critérios para estatuir o diagnóstico [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2012]. A hipertensão crônica na gravidez pode resultar em significativa morbiletalidade materna e perinatal.
■ Definição A hipertensão crônica é aquela que está presente antes de 20 semanas da gravidez, e pode persistir até 12 semanas de pós-parto (ACOG, 2012). Hipertensão é definida como pressão sistólica ≥ 140 mmHg e/ou pressão diastólica ≥ 90 mmHg (Tabela 36.1). Para estabelecer o diagnóstico de hipertensão, os níveis de pressão sanguínea que atingem o critério devem ser documentados em mais de uma ocasião, no mínimo com 4 a 6 h de intervalo. A paciente deve estar sentada, após 10 min de repouso, e o manguito ao nível do coração. Para a pressão diastólica é considerado o desaparecimento do som (fase V de Korotkoff).
Tabela 36.1 ■ Diagnóstico da hipertensão crônica na gravidez. Uso de medicação anti-hipertensiva antes de gravidez Início da hipertensão antes de 20 semanas da gravidez Persistência da hipertensão após 12 semanas de pós-parto Critério Leve: pressão sistólica de 140 a 159 mmHg ou diastólica de 90 a 109 mmHg Grave: pressão sistólica ≥ 160 mmHg ou diastólica ≥ 110 mmHg
Adaptada de ACOG, 2012.
■ Etiologia Do ponto de vista etiológico, a hipertensão crônica pode ser dividida em primária (essencial) e secundária. A hipertensão primária é, sem dúvida, a mais frequente na gravidez (90%). Em menor número de casos (10%) a hipertensão crônica é secundária a outros distúrbios, como doença renal (glomerulonefrite, estenose da artéria renal), doenças vasculares do colágeno (lúpus, esclerodermia), doenças endócrinas (diabetes melito, feocromocitoma, tireotoxicose, doença de Cushing, hiperaldosteronismo primário) e coarctação da aorta.
■ Classificação
A hipertensão crônica durante a gravidez é atualmente classificada em leve (pressão sistólica de 140 a 159 mmHg ou pressão diastólica de 90 a 109 mmHg) e grave (pressão sistólica ≥ 160 mmHg ou pressão diastólica ≥ 110 mmHg) (Tabela 36.1) [Society of Obstetricians and Gynecologists of Canada (SOGC), 2008; ACOG, 2012]. Por outro lado, na gravidez, a hipertensão crônica também pode ser classificada em de baixo risco e de alto risco. São de baixo risco as hipertensas leves, sem lesão em órgãos-alvo ou perdas fetais anteriores. São de alto risco aquelas com hipertensão secundária, grave (níveis tensionais ≥ 160/110 mmHg), lesão em órgãos-alvo (disfunção ventricular esquerda, retinopatia, dislipidemia, acidente vascular cerebral) e história de perdas fetais. As gestantes de baixo risco que têm seus níveis tensionais agravados (≥ 160/110 mmHg) ou apresentam pré-eclâmpsia superajuntada passam para a categoria de alto risco (Figura 36.1). A hipertensão crônica pode usualmente ser distinta da pré-eclâmpsia porque a toxemia tipicamente aparece após 20 semanas da gravidez, acompanhada de proteinúria. Na pré-eclâmpsia grave estão presentes vários sinais de envolvimento em outros órgãos, notadamente, hemólise, elevação de enzimas hepáticas, queda de plaquetas (síndrome HELLP) além de cefaleia, escotomas e dor epigástrica.
Figura 36.1 ■ Avaliação inicial da grávida com hipertensão crônica. *Hipertrofia ventricular esquerda, retinopatia, lesão renal, acidente vascular cerebral, dislipidemia, idade materna > 40 anos. (Adaptada de Sibai, 2002.)
Quando a hipertensão se desenvolve durante a gravidez tipicamente no 3o trimestre, na
ausência de sinais de pré-eclâmpsia (especialmente proteinúria), o diagnóstico de hipertensão gestacional é apropriado. Todavia, 30% ou mais das grávidas com hipertensão crônica podem desenvolver préeclâmpsia, configurando o quadro de pré-eclâmpsia superajuntada, complicação que não é de fácil diagnóstico. O tema foi amplamente discutido no Capítulo 18. Nesse particular, temos grande apreço pelo Doppler da artéria uterina que, na vigência de préeclâmpsia superajuntada, mostra incisura bilateral após 24 semanas da gravidez (SOGC, 2008). As mulheres com hipertensão crônica isolada não apresentam incisura bilateral, embora possam exibir índices fluxométricos elevados.
■ Prognóstico Em que pese a maioria das mulheres com hipertensão crônica engravidem enquanto a doença é ainda leve, com mínimas repercussões na gravidez, a sua forma grave está associada a prognóstico adverso materno. A incidência desses efeitos adversos está relacionada fundamentalmente com a duração da doença (lesão de órgãos-alvo, por exemplo, coração, rim), gravidade da hipertensão e pré-eclâmpsia superajuntada (ACOG, 2012). Notadamente, a hipertensão crônica na gravidez eleva os riscos de pré-eclâmpsia e de descolamento prematuro da placenta (DPP). Mulheres com hipertensão crônica leve têm risco de pré-eclâmpsia de 20%, mas naquelas com a forma grave o risco se eleva para 50%; em mulheres com hipertensão grave e lesão de órgãos-alvo ou hipertensão secundária, o risco pode ser tão elevado quanto 75%. A taxa de DPP é, aproximadamente, 1% na forma leve e 8% na forma grave. Acresce a isso o fato de que mulheres com hipertensão crônica de alto risco apresentam taxas aumentadas de complicações que ameaçam a sua vida (mortalidade materna 5 vezes maior): edema de pulmão, encefalopatia hipertensiva, hemorragia cerebral, infarto agudo do miocárdio e insuficiência renal terminal. A mortalidade perinatal está aumentada de 2 a 4 vezes em relação à população normal, assim como as taxas de parto pré-termo e de crescimento intrauterino restrito (CIR).
■ Tratamento Idealmente, a mulher com hipertensão crônica deveria ser avaliada antes da gravidez para diagnosticar possível envolvimento de órgãos-alvo (ACOG, 2012). O objetivo primordial no tratamento da gravidez com hipertensão crônica é reduzir os riscos maternos e alcançar a sobrevida fetal com qualidade. A avaliação da grávida hipertensa crônica começa pelos comemorativos: duração da hipertensão, uso de medicação anti-hipertensiva, doença renal, diabetes, doença da tireoide, história de acidente vascular cerebral e de insuficiência cardíaca. A história obstétrica deve incluir o prognóstico materno e o fetal de gestações anteriores, vale dizer, DPP, pré-eclâmpsia superajuntada, parto prétermo, CIR, morte fetal, morbidade neonatal. Os exames laboratoriais básicos estão dirigidos para a avaliação da função renal: ureia e
creatinina sanguíneos, urina de 24 h para a dosagem de proteína e a determinação da depuração de creatinina. A dosagem periódica da proteína na urina é indispensável para surpreender a piora da função renal ou a associação com a toxemia. Mulheres com hipertensão de longa duração devem ser investigadas para lesões em órgãosalvo: hipertrofia ventricular esquerda, retinopatia e lesão renal. Essas mulheres deverão fazer eletrocardiograma (ECG), ecocardiografia, exame oftalmológico e depuração da creatinina. Grávidas jovens (< 30 anos), sem história familiar, com hipertensão crônica grave (≥ 160/110 mmHg) são grandes candidatas ao tipo secundário de hipertensão crônica: feocromocitoma, doença de Cushing (adenoma de suprarrenal). A tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM) são recomendadas após o 1o trimestre. O tratamento a ser seguido depende da classificação da paciente em baixo e alto risco.
■ Hipertensão de baixo risco Mulheres com hipertensão de baixo risco usualmente têm prognóstico obstétrico igual ao da população geral. O tratamento anti-hipertensivo será descontinuado na gravidez pois não afeta a incidência de pré-eclâmpsia, DPP e parto pré-termo. Do mesmo passo, o uso do diurético não é aconselhado. A ingesta de sódio deve ser de no máximo 2,4 g/dia. A mulher deve ser aconselhada também a não consumir álcool e a abandonar o tabagismo, pois podem agravar o risco de DPP e de CIR.
■ Hipertensão de alto risco Mulheres com insuficiência renal significante (creatinina ≥ 1,5 mg/dℓ), diabetes melito com complicação vascular (classes D, F, R), doença vascular do colágeno grave, cardiomiopatia ou coarctação da aorta devem ter aconselhamento por especialista e cuidados redobrados. O ideal é hospitalizar essas pacientes na consulta inicial para avaliar as funções cardíaca e renal, aventar o tratamento anti-hipertensivo e de outra medicação (insulina, medicamentos cardíacos e da tireoide etc.). O atenolol, beta-antagonista puro, mostrou-se responsável por CIR ao reduzir o fluxo uteroplacentário; portanto não deve ser utilizado na gravidez. Os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) administrados no 1o trimestre estão associados a anomalias fetais graves, em particular, malformações cardiovasculares e do sistema nervoso central (SNC), assim como prognóstico fetal adverso – CIR, oligoidramnia, morte fetal e neonatal. Igualmente os bloqueadores do receptor de angiotensina (BRA) têm sido associados a anomalias renais, dismorfismo e natimortalidade. Os IECA e os BRA estão formalmente contraindicados em todos os trimestres da gravidez. A terapia anti-hipertensiva dará preferência aos fármacos mostrados na Tabela 36.2 e será utilizada em mulheres com pressão arterial ≥ 160/110 mmHg. O objetivo do tratamento antihipertensivo é manter a pressão sistólica < 150/100 mmHg, de modo a assegurar o fluxo sanguíneo
uteroplacentário. Fica a mãe protegida contra acidentes vasculares e cerebrais, embora pareça não haver nenhuma melhora no prognóstico fetal. Em mulheres com lesão em órgãos-alvo, como hipertrofia ventricular esquerda ou insuficiência renal, o objetivo é estabilizar a pressão sanguínea em níveis normais, assim reduzindo o risco de comprometimento de outros órgãos-alvo. Mulheres com hipertensão leve, mas com lesão em órgãos-alvo (portanto de alto risco), terão também terapia anti-hipertensiva pois há benefícios imediatos em baixar a pressão arterial nesse grupo de pacientes.
Tabela 36.2 ■ Hipertensão crônica e gravidez: anti-hipertensivos. Anti-hipertensivos
Dose inicial
Dose máxima
Hidralazina
5 a 10 mg intravenosa a cada 20 min
30 mg
Nifedipina
10 a 20 mg oral a cada 30 min
50 mg
Metildopa
250 mg, 2 vezes/dia
2g
Nifedipina
10 mg, 2 vezes/dia
180 mg/dia
Tratamento agudo
Tratamento crônico
No tratamento da crise hipertensiva (pressão arterial ≥ 160/110 mmHg) podem ser utilizados a hidralazina, 5 a 10 mg IV a cada 20 min (dose máxima de 30 mg) ou a nifedipina, 10 a 20 mg oral a cada 30 min (dose máxima de 50 mg). A menos que haja lesão em órgãos-alvo, o objetivo não é normalizar a pressão, mas mantê-la em níveis de 140 a 160/90 a 100 mmHg. Em casos não responsivos poderá ser administrado o nitroprussiato de sódio (2 a 10 µg/kg/min) pelo menor tempo possível (até 4 h), pois este fármaco pode causar efeitos colaterais significativos na mãe e no feto (intoxicação pelo cianeto). Ocorrendo edema de pulmão, o tratamento será furosemida IV, sulfato de morfina IV e ventilação assistida. A manutenção do tratamento hipertensivo será feita com metildopa (250 mg, 2 vezes/dia, via oral) ou nifedipina (10 mg, 2 vezes/dia) (Tabela 36.2). A ultrassonografia realizada mensalmente após 26 semanas é útil para monitorar o crescimento fetal e surpreender o CIR. Em caso de CIR e/ou préeclâmpsia superajuntada, a avaliação do feto pelo Doppler da artéria umbilical será obrigatória, 2/semana (Capítulo 29) (SOGC, 2008).
■ Interrupção da gravidez Grávidas com hipertensão leve sem complicações geralmente são candidatas ao parto vaginal a termo (após 39 semanas) porque a maioria mostra prognóstico favorável materno e neonatal
(ACOG, 2012). A cesárea estará indicada por razões obstétricas. Mulheres controladas com medicação devem parir entre 37 e 39 semanas e naquelas com hipertensão grave de difícil controle a gestação deve ser interrompida com 36 a 37 semanas. A pré-eclâmpsia superajuntada equivale à préeclâmpsia grave, e a nosso ver a gestação deve ser interrompida imediatamente, embora muitos indiquem a conduta conservadora até 34 semanas em benefício fetal.
■ Conduta no pós-parto No pós-parto, não se deve usar ergoderivados que podem agravar a hipertensão; recomendase optar pela ocitocina. Mulheres com hipertensão crônica de alto risco têm predisposição para outras complicações: edema de pulmão, encefalopatia hipertensiva, infarto agudo do miocárdio e insuficiência renal. Nesse grupo, a pressão arterial será rigidamente controlada, no mínimo por 48 h, com o uso da hidralazina intravenosa. Em mulheres que estão amamentando, o fármaco ideal é ainda a metildopa, que parece ser a mais segura, pois é excretada no leite em baixas concentrações. A necessidade de instituir os IECA/BRA nesta fase não está contraindicada. Mulheres com doença hipertensiva na gravidez, de qualquer tipo, apresentam risco aproximadamente 10 vezes mais elevado de doença renal terminal após o parto do que as grávidas sem hipertensão. O risco é maior (aproximadamente 44 vezes) na pré-eclâmpsia superajuntada. Aconselha-se que mulheres com história de hipertensão na gravidez, principalmente aquelas com ≥ 35 anos e hipertensão crônica, façam avaliações regulares após o parto, especialmente da função renal.
■ Recomendações da Força-tarefa sobre hipertensão na gravidez De acordo com o ACOG (2013), as recomendações sobre hipertensão na gravidez estão descritas a seguir: • Hipertensão crônica é aquela que antecede a gravidez • Uma vez confirmada a hipertensão crônica na gravidez a mulher deve ser prontamente avaliada para a possibilidade de hipertensão secundária e lesões em órgãos-alvo • A escolha da grávida a ser tratada requer especial consideração em vista dos dados emergentes de que a excessiva redução da pressão sanguínea pode determinar efeitos adversos no feto • Talvez o maior desafio seja reconhecer a préeclâmpsia superajuntada, condição sabidamente associada a efeitos nocivos maternos e fetais • Para mulheres com hipertensão secundária, a recomendação é a referência a especialista em hipertensão
• As grávidas com controle deficiente da pressão sanguínea devem utilizar monitor em casa • Sugere-se que a perda de peso e a dieta muito rigorosa de sal (< 100 mEq/ℓ) não devam ser utilizadas para controlar a hipertensão crônica na gravidez • Àquelas hipertensas crônicas acostumadas a atividade física, e com pressão bem controlada, está recomendado o exercício moderado na gravidez • O tratamento anti-hipertensivo será prescrito em grávidas com pressão sanguínea ≥ 160/105 mmHg • Sugere-se que os níveis sanguíneos devam ser mantidos: a pressão sistólica entre 160 e 120 mmHg e a diastólica entre 105 e 80 mmHg • Os hipotensores inicialmente propostos são a nifedipina e a metildopa • Não se recomenda o uso dos IECA, BRA e antagonistas dos receptores de mineralocorticoides (diuréticos) • A ultrassonografia deve ser utilizada para rastrear o CIR e a vitalidade fetal será avaliada pelo Doppler da artéria umbilical • Mulheres com hipertensão crônica, sem complicações maternas ou fetais, não devem ter a gestação interrompida antes de 38 semanas.
■ Pontos-chave A hipertensão crônica ocorre em 5% das grávidas. Mulheres com hipertensão crônica devem ser avaliadas para possíveis etiologias reversíveis, de preferência antes da gravidez. Mulheres com hipertensão de longa duração devem ser investigadas para acometimento de órgãos-alvo, por exemplo, cardiomegalia, insuficiência renal, retinopatia, de preferência antes da gravidez. Em mulheres com hipertensão crônica grave (PA ≥ 160/110), mais de 50% desenvolverão pré-eclâmpsia superajuntada. O tratamento de grávidas com hipertensão crônica leve não é recomendado porque não melhora o prognóstico materno nem o perinatal. O tratamento hipotensor deve ser utilizado em grávidas com hipertensão crônica grave (≥ 160/105 mmHg) visando o benefício materno. Os IECA e os BRA estão contraindicados na gravidez pois estão associados à insuficiência renal e à morte perinatal. Não é usual a utilização dos diuréticos na grávida hipertensa. Quando a hipertensão crônica está complicada por CIR ou pré-eclâmpsia, o acompanhamento fetal pelo Doppler umbilical é indispensável. No pós-parto não se deve utilizar ergoderivados (agravamento da hipertensão) e recomenda-se optar pela ocitocina.
■ Alterações fisiológicas ■ Infecção urinária ■ Bacteriúria assintomática ■ Cistite ■ Pielonefrite ■ Nefrolitíase ■ Doença renal crônica ■ Repercussões na gravidez ■ Tratamento
■ Alterações fisiológicas As alterações do sistema urinário em resposta à gravidez são notáveis (Tabela 37.1) e foram amplamente abordadas no Capítulo 5. Os aumentos da taxa de filtração glomerular (TFG) e do fluxo plasmático renal que ocorrem logo ao início da gestação e excedem os níveis pré-gravídicos em 50%, a elevação da depuração da creatinina (110 a 150 mℓ/min) e a diminuição da creatinina (0,5 a 0,8 mg/dℓ) e da ureia (9 a 12 mg/dℓ) séricas são algumas dessas alterações. Anatomicamente, em decorrência da compressão do útero gravídico nos ureteres, principalmente à direita pela dextrorrotação uterina, ocorre discreto aumento dos rins e dilatação acentuada das pelves renais, dos cálices e ureteres. Além disso, ocorre relaxamento da musculatura lisa determinado pela progesterona. A hidronefrose fisiológica da gravidez pode persistir por até 6 semanas do pós-parto.
Tabela 37.1 ■ Alterações fisiológicas do sistema urinário. Aumento do volume sanguíneo Aumento da taxa de filtração glomerular (TFG) Queda das creatinina e ureia séricas Alcalose respiratória compensada Hiponatremia Hiposmolalidade Glicosúria fisiológica Microalbuminúria (< 300 mg/dℓ)
■ Infecção urinária A infecção urinária costuma ser dividida em bacteriúria assintomática, cistite e pielonefrite. A infecção urinária é uma das mais comuns complicações médicas da gestação e de internações não obstétricas. Em virtude das modificações fisiológicas da gravidez, pouco descritas, a grávida com bacteriúria assintomática é especialmente suscetível à pielonefrite.
■ Bacteriúria assintomática Em virtude da predisposição da grávida de desenvolver pielonefrite aguda se for portadora de bacteriúria assintomática, a cultura de urina é um exame obrigatório na 1a consulta pré-natal
[American Academy of Pediatrics (AAP), 2007; American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2007]. A bacteriúria assintomática ocorre em 2 a 7% das grávidas, a mesma incidência de não grávidas. Mulheres com bacteriúria assintomática na gravidez têm risco aumentado de 20 a 30 vezes de desenvolver pielonefrite. O tratamento da bacteriúria assintomática na gravidez diminui o risco de pielonefrite de 20 a 35% para 1 a 4% (Cochrane Review, 2007). A bacteriúria assintomática é definida como a presença de ≥ 100.000 colônias/mℓ de um único agente patogênico, em duas amostras de urina coletadas adequadamente (jato médio), em mulher sem sintomatologia urinária. A necessidade da 2a amostra não é um critério aceito por todos. Os agentes patógenos são os mesmos da não grávida: Escherichia coli, o principal (80%), mas também Klebsiella, Proteus, Enterobacter e estreptococo do grupo B.
■ Cistite A cistite aguda ocorre em aproximadamente 1 a 2% das grávidas. O quadro clínico de frequência e de urgência pode ser confundido com aquele próprio da gravidez, decorrente de modificações funcionais e anatômicas do sistema urinário. As sulfonamidas, a nitrofurantoína e as quinolonas estão liberadas na gravidez, inclusive no 1o trimestre (ACOG, 2011). O tratamento da bacteriúria assintomática e o da cistite são similares e empíricos, não exigindo antibiograma. O tratamento de escolha é com nitrofurantoína, por via oral, 100 mg, 4 vezes/dia, em esquema de 3 ou de 7 dias; outra opção é a fosfomicina, 3 g em dose única. Está indicada cultura após 2 semanas para assegurar a eficácia da medicação. Além disso, há quem recomende culturas repetidas, mensais, ao longo da gestação, pois as infecções seriam recorrentes em ⅓ dos casos. Em casos de infecções recorrentes, pode ser considerado o uso profilático da nitrofurantoína, 50 a 100 mg/dia à noite, durante toda a gravidez.
■ Pielonefrite A pielonefrite aguda incide em 2% das grávidas, e a maioria das infecções (80 a 90%) ocorre no 2o e no 3o trimestre, quando a hidronefrose fisiológica e a estase urinária são mais pronunciadas. São mais comuns à direita (50%); em 25% dos casos são bilaterais, e nos 25% restantes são à esquerda. A pielonefrite é a principal causa de choque séptico na gravidez. Os sintomas de pielonefrite aguda são febre, calafrios, náuseas e vômitos, e dor à punhopercussão no ângulo costovertebral. A pielonefrite pode levar à insuficiência renal aguda, síndrome de angústia respiratória aguda (SARA), septicemia e parto pré-termo. As pacientes devem ser hospitalizadas, monitoradas para eventual sepse, choque e parto prétermo, e tratadas (empricamente até o resultado da cultura) com antibiótico venoso, cefalosporina de 2a ou de 3a geração, sendo boa opção a ceftriaxona, 1 a 2 g/dia por via intravenosa (Figura 37.1). Após resposta adequada ao tratamento antibiótico e 24 a 48 h afebril, a
grávida pode ter alta hospitalar e seguir regime de 10 dias com antibiótico oral, a amoxicilina 500 mg de 8/8 h. Mulheres que não respondem à antibioticoterapia intravenosa em 72 h devem ser investigadas para obstrução do sistema urinário, em especial nefrolitíase. Em seguida, está indicada a cultura mensal da urina. Pacientes com infecção recorrente devem receber nitrofurantoína profilática por toda a gravidez.
■ Nefrolitíase A nefrolitíase ocorre em 1:1.500 gestações. A despeito da hipercalciúria própria da gravidez, a taxa de formação de cálculos renais na gestação é similar à da não grávida. Isso se deve, em parte, às alterações metabólicas caracterizadas pelo aumento do citrato, magnésio e glicosaminoglicanos urinários. A maioria dos episódios de nefrolitíase ocorre no 2o ou no 3o trimestre, quando se acentua a compressão do ureter pelo útero gravídico. O episódio agudo de cólica renal é caracterizado por dor lombar, náuseas e vômitos, hematúria e piúria. O diagnóstico por imagem é obrigatório, e o exame inicial de escolha é a ultrassonografia abdominal (taxa de detecção de 40 a 60%) (Figura 37.2). Pieloectasia/ureteroectasia fisiológicas da gravidez confundem o diagnóstico da dilatação pela nefrolitíase. O cálculo ureteral é de mais difícil visualização do que o renal. A ultrassonografia transvaginal pode estar indicada na suspeita de cálculo ureteral distal. A ultrassonografia inconclusiva obriga a realização de tomografia computadorizada (TC). O tratamento inicial é conservador, pois cerca de 70% das pacientes eliminam o cálculo espontaneamente, apenas com medidas de suporte: analgésicos e hidratação. A intervenção cirúrgica está reservada aos casos caracterizados por dor intratável, febre ou obstrução urinária (Figura 37.2). A drenagem temporária da urina por cateter ureteral (duplo-J), introduzido por cistoscopia, pode ser considerada, mas a retirada do cálculo por ureteroscopia (laser-ablação) é bem-sucedida em quase 100% dos casos. Deve-se ter cuidado redobrado com o tempo de permanência do duplo-J, que jamais poderá ser superior a 4 a 8 semanas, pela tendência à incrustação com grande deposição de material no cateter. Por isso, muitos preferem a nefrostomia percutânea.
Figura 37.1 ■ Tratamento da infecção urinária na gravidez.
Figura 37.2 ■ Conduta em casos de nefrolitíase durante a gravidez.
■ Doença renal crônica
A doença renal crônica não é comum na gravidez, incidindo em 0,03 a 0,12% de todas as gestações. Entre as principais causas estão nefropatia diabética, glomerulonefrite crônica, nefropatia hipertensiva, nefrite lúpica, pielonefrite crônica e doença renal policística. A insuficiência renal na gravidez pode ser classificada em: • Leve: creatinina entre 0,9 a 1,5 mg/dℓ • Moderada: creatinina entre 1,5 a 2,0 mg/dℓ • Grave: creatinina > 2,0 mg/dℓ.
■ Repercussões na gravidez Se a grávida apresenta insuficiência renal leve e pressão arterial normal, o prognóstico da gravidez é bom em 90% dos casos. A doença renal crônica com insuficiência renal moderada/grave está associada a préeclâmpsia, parto pré-termo, agravamento da função renal, anemia e hipertensão crônica. Hipertensão e proteinúria são outros indicadores de mau prognóstico. A proteinúria denuncia nefropatia crônica até então desconhecida, e cerca de 20% das mulheres com proteinúria têm doença renal terminal no prazo de 5 anos. Nas mulheres com insuficiência renal moderada/grave, o risco de progressão acelerada para doença renal terminal é elevado quando a creatinina está > 2,0 mg/dℓ no início da gravidez; dentro de 6 meses do parto, quase 25% dessas mulheres apresentarão doença renal terminal.
■ Tratamento Mulheres com doença renal crônica devem ter pressão sanguínea < 130/80 mmHg. Infelizmente, os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) e os bloqueadores do receptor de angiotensina (BRA), que são os anti-hipertensivos mais indicados, estão formalmente proibidos na gravidez por serem altamente teratogênicos. São utilizados a metildopa e o nifedipino. No pré-natal, grávidas com doença renal crônica devem ser agendadas a cada 2 semanas até 30 a 32 semanas da gestação, e depois, semanalmente. Os exames básicos de função renal devem ser solicitados a cada 4 a 6 semanas: creatinina, ureia, eletrólitos, hemoglobina, hematócrito, exame e cultura de urina. A anemia deve ser combatida inicialmente com ferro oral, podendo estar indicados eritropoetina, ferro intravenoso e transfusão de sangue. A diálise tem indicação na gravidez quando a creatinina excede de 5 a 7 mg/dℓ (ou a ureia atinge ou ultrapassa 60 a 80 mg/dℓ). O feto deve ser monitorado após 30 a 32 semanas para avaliar o seu crescimento e a sua vitalidade.
■ Pontos-chave A infecção urinária é uma das mais comuns complicações médicas da gravidez. A bacteriúria assintomática ocorre em 2 a 7% das gestações, a mesma incidência de não grávidas. O rastreamento e o tratamento da bacteriúria assintomática é muito importante na gravidez – reduz em 10 vezes a progressão para pielonefrite. É comum a realização de cultura de urina após o tratamento da bacteriúria assintomática; se a cultura for positiva, pode ser necessário o tratamento profilático por toda a gravidez. O tratamento da cistite aguda segue a mesma orientação feita para a bacteriúria assintomática. A pielonefrite aguda é a principal causa de choque séptico na gravidez. O tratamento da pielonefrite aguda costuma ser feito por 12 dias; 2 dias por via intravenosa com cefalosporina de 3a geração (ceftriaxona) e mais 10 dias com amoxicilina por via oral. Os casos não responsivos ao esquema habitual devem ser investigados para a obstrução do sistema urinário, em especial a nefrolitíase. O tratamento inicial da nefrolitíase na gravidez é conservador, uma vez que 70% das pacientes eliminam o cálculo espontaneamente. Os elementos indicativos de mau prognóstico da doença renal crônica na gravidez são: hipertensão (130/80 mmHg), insuficiência renal moderada/grave (creatinina > 1,5 mg/dℓ) e proteinúria (> 3 g/dia).
■ Alterações fisiológicas ■ Fatores de risco ■ Diagnóstico ■ Tratamento
A trombose venosa profunda (TVP) e a tromboembolia pulmonar (TEP) são coletivamente referidas como doença tromboembólica venosa (DTV). A DTV é uma das principais causas de morbidade e mortalidade materna. Nos países desenvolvidos, cerca de 15% dos óbitos maternos são por embolia pulmonar. Em mulheres em idade reprodutiva, aproximadamente metade de todos os eventos trombóticos ocorre na gravidez. A incidência de DTV na gravidez é de 3,2: 1.000 mulheres, com 2,5:1.000 para TVP e 0,8:1.000 para TEP.
■ Alterações fisiológicas Os elementos da tríade de Virchow – hipercoagulabilidade, estase venosa e lesão vascular – estão presentes durante o ciclo grávido-puerperal (Figura 38.1). A estase venosa, que se inicia já no 1o trimestre, é, com toda certeza, determinada pela venodilatação progesterona-induzida, mas também pela compressão venosa pélvica determinada pelo útero gravídico e aquela pulsátil pela artéria ilíaca comum direita na veia ilíaca comum esquerda (síndrome de May-Thurner ou de Cockett). A síndrome de May-Thurner explica porque a TVP associada à gravidez ocorre no membro inferior esquerdo em 85% dos casos (Figura 38.1). Lesão adicional às veias pélvicas pode ocorrer também no parto vaginal assistido ou operatório com DTV no puerpério imediato. A gravidez altera os níveis dos fatores da coagulação normalmente responsáveis pela hemóstase. O efeito resultante de todas essas alterações é o aumento do estado trombogênico (Tabela 38.1). Decorridas 6 semanas do pós-parto, o estado materno pró-coagulante retorna às condições prégravídicas, diminuindo o risco de trombose.
Figura 38.1 ■ Tríade de Virchow na gravidez: estase venosa, lesão vascular e hipercoagulabilidade sanguínea. A compressão é maior na veia ilíaca esquerda pela artéria ilíaca direita (síndrome de MayThurner ou de Cockett). (Adaptada de Bourjeily et al., 2010.)
Tabela 38.1 ■ Alterações do sistema de coagulação na gravidez. Fatores da coagulação
Alterações na gravidez
Pró-coagulantes Fibrinogênio
Aumentado
Fator VII
Aumentado
Fator X
Aumentado
Fator VIII
Aumentado
Fator de Von Willebrand
Aumentado
Inibidor do ativador do fibrinogênio-1
Aumentado
Inibidor do ativador do fibrinogênio-2
Aumentado
Fator II
Nenhuma alteração
Fator V
Nenhuma alteração
Fator IX
Nenhuma alteração
Anticoagulantes Proteína S (livre)
Diminuição
Proteína C
Nenhuma alteração
Antitrombina III
Nenhuma alteração
American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2011.
■ Fatores de risco O risco de DTV na gestação está aumentado de 5 a 60 vezes no pós-parto (até 3 meses), perfazendo um aumento do risco global de 10 vezes no ciclo grávido-puerperal. O risco de TVP na gravidez é 14 vezes maior e o de TEP é 6 vezes. O risco de TVP é mais elevado no 3o trimestre (9 vezes) e nas primeiras 6 semanas do pós-parto (85 vezes). Mulheres cesareadas apresentam risco adicional 2 vezes maior de DTV do que as que pariram pela via vaginal. O fator de risco mais importante na gravidez para DTV é a história pessoal de trombose (Tabela 38.2). O risco de DTV recorrente durante a gravidez está aumentado de 3 a 4 vezes e 15 a 25% de todos os casos de DTV na gestação são de repetição. O segundo fator mais importante de DTV na gravidez é a trombofilia, tanto hereditária como adquirida (Capítulo 34). A trombofilia ocorre em 20 a 50% das mulheres que apresentam DTV durante a gravidez e o pós-parto. Recentemente, a fertilização in vitro (FIV) foi responsabilizada por determinar risco aumentado de DTV de 1,7 vez durante toda a gravidez quando comparada à concepção espontânea; no 1o trimestre o risco seria ainda maior, de aproximadamente 4 vezes para DTV e de aproximadamente 7 vezes para TEP.
Tabela 38.2 ■ Fatores de risco para doença tromboembólica venosa na gravidez e no pós-parto. Fator
Risco (odds ratio)
IMC > 25 kg/m 2 e imobilização anteparto
62,3
Trombofilia
51,8
DTV prévia
24,8
Infecção pós-parto (vaginal)
20,2
Hemorragia pós-parto (cirurgia)
12,1
Trombose venosa superficial
10,0
Pré-eclâmpsia e CIR
5,8
História familiar de DTV
3,9
Cesárea (emergência)
2,7
IMC, índice de massa corporal na 1a consulta pré-natal; DTV, doença tromboembólica venosa; CIR, crescimento intrauterino restrito. (Adaptada de Bourjeily et al., 2010.)
■ Diagnóstico ▶ História. Mulheres com história de trombose que não foram completamente investigadas devem ser avaliadas para síndrome antifosfolipídio (SAF) e trombofilias hereditárias. O resultado desses testes é importante para definir o esquema de tratamento heparínico na gravidez – terapêutico ou profilático. ▶ Tromboflebite superficial. Ocorre nas veias varicosas, o que explica o nome varicoflebites, e apresenta-se sob a forma de cordões ou novelos venosos, avermelhados, doloridos espontaneamente ou ao palpar. Mais comuns do que as profundas, principalmente no último trimestre da gestação, as tromboflebites superficiais (TFS) evoluem em 2 a 3 semanas e deixam representativa sequela: nódulos ou cordões endurecidos. Raramente elas se estendem às veias profundas e é excepcional que determinem embolia pulmonar. ▶ Trombose venosa profunda. A TVP pode ser oligossintomática ou apresentar quadro clínico exuberante. O acometimento do sistema profundo tende a ocorrer nos membros inferiores, em locais sujeitos a fenômenos compressivos e estagnação sanguínea, como panturrilha (veia poplítea) e face interna da coxa (veia femoral comum). Classicamente, a dor e o edema, em 85% dos casos no membro inferior esquerdo, caracterizam quadro clínico de TVP (Figura 38.2). Na TVP da panturrilha, a dor pode ser provocada mediante a execução da dorsiflexão do pé (sinal de Homans). Uma diferença na circunferência das panturrilhas > 2 cm sugere TVP. Nas tromboses venosas pélvicas (veia ilíaca comum), além da dor à palpação do baixo ventre e ao toque vaginal, podem ocorrer disúria, retenção de urina, tenesmo e desconforto à defecação. Além de o edema ter início na raiz da coxa (rizomélico), a extremidade pode apresentar aspecto pálido, por vezes com manchas azuladas entremeadas, quadros clínicos conhecidos como phlegmatia alba dolens e phlegmatia coerulea dolens, e descritos com frequência no período puerperal, quando ainda era norma manter a puérpera em repouso prolongado no leito. O diagnóstico clínico deve ser sempre confirmado por exame de imagem no membro inferior, no caso, ultrassonografia compressiva ou duplex venoso (Figura 38.3). A confirmação da DTV à ultrassonografia já conduz imediatamente ao tratamento anticoagulante, dispensando outros
procedimentos de imagem. Na suspeita de trombose venosa pélvica, com o resultado do duplex negativo/equivocado, o exame de eleição será a angiorressonância magnética pélvica (Figura 38.4). ▶ Tromboembolia pulmonar. A TEP é de ocorrência variável, surgindo, por vezes, antes de se terem verificados os sinais periféricos de trombose, ou mesmo na ausência deles. Ocorre em 30% das pacientes com TVP não medicadas e em 5% daquelas tratadas com anticoagulantes. Em casos de TEP em que a paciente vai a óbito, 65% delas morrem na 1a hora após o início dos sintomas. Cerca de 40 a 60% das DTV no pós-parto são TEP; porção substancial decorre de trombose venosa pélvica.
Figura 38.2 ■ Edema de membro inferior esquerdo por TVP, trombose venosa profunda. (Adaptada de Medina et al. Síndrome tromboembólica venosa. In: Montenegro CAB, Rezende Filho J. Rezende – Obstetrícia. 11. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010.)
Figura 38.3 ■ Visualização direta do trombo na veia poplítea com interrupção do fluxo sanguíneo ao Doppler-colorido. (Adaptada de Medina et al., 2010 – id., ibid.)
Manifestações sistêmicas – mal-estar, inquietação, febre, taquicardia, dispneia, tosse recorrente, escarros hemoptoicos e dor torácica – caracterizam o quadro clínico da TEP. O diagnóstico da TEP pode ser confirmado pela angiotomografia computadorizada (angioTC), com baixa radiação, caso o resultado da ultrassonografia não seja conclusivo para TVP (Figura 38.4).
Figura 38.4 ■ Diagnóstico da doença tromboembólica venosa (DTV) na gravidez. (Adaptada de ACOG, 2011.)
A American Thoracic Society [(ATS), 2012] é mais conservadora, e tem sugerido, inicialmente, o exame de raios X simples de tórax para os casos suspeitos de TEP, seguido pela cintigrafia de ventilação/perfusão e, apenas em última instância, se realizaria a angio-TC.
■ Tratamento ▶ Tromboflebite superficial. Deambulação e repouso em posição de Trendelenburg são de fácil aplicação e aceitação. Recomenda-se anti-inflamatório (sistêmico ou tópico), especialmente diclofenaco (oral ou gel). A eficácia de gel ou de pomada à base de heparinoides é discutida, embora pareçam exercer algum alívio nas manifestações inflamatórias. A aplicação de calor úmido, compressas mornas e bolsas térmicas também é analgésica e anti-inflamatória. ▶ Doença tromboembólica venosa. O tratamento de eleição da DTV na gravidez é a
heparina de baixo peso molecular (HBPM), de modo que a heparina não fracionada (HNF) deve ser utilizada apenas na inexistência da primeira. Atualmente, a HBPM é a substância de escolha para o tratamento da DTV porque sua dose e seu monitoramento são de mais fácil controle, e porque ela determina menos risco de osteoporose e trombocitopenia do que a heparina regular. Além do seu alto custo, outra desvantagem da HBPM é a de que ao tempo do parto, sua maior meia-vida é uma inquietante preocupação para a utilização da anestesia de condução e para o risco de sangramento no pós-parto. Os esquemas do tratamento anticoagulante na gravidez estão apresentados na Figura 38.5. Os anticoagulantes orais (varfarina) estão formalmente contraindicados na gravidez, pois, diferentemente da heparina, atravessam a placenta e estão associados à embriopatia varfarínica. Esta é caracterizada por malformações fetais similares à condrodisplasia punctata, com hipoplasia nasal e calcificação puntiforme das cartilagens epifisárias dos ossos longos (observada em 5 a 10% dos fetos expostos entre 6 e 9 semanas da gravidez). Além disso, há o risco de hemorragia fetal, que persiste durante toda a gestação, com sequelas importantes no sistema nervoso central (SNC). A única exceção é a sua utilização em grávidas com prótese valvular cardíaca mecânica, em função do maior risco de TEP que essas mulheres apresentam quando medicadas apenas com heparina; mesmo assim, a varfarina não deve ser utilizada no 1o trimestre da gestação. Apesar do risco aumentado de DTV na gravidez, a terapia anticoagulante universal não está indicada. Muitas mulheres que necessitam de terapia anticoagulante antes da gravidez devem permanecer medicadas durante a gestação e o pós-parto. Em geral, estão credenciadas para a anticoagulação profilática as grávidas com história de DTV, ou de trombofilia adquirida ou hereditária – enoxaparina 40 mg por via subcutânea 1/dia [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2011]. Como já se referiu neste capítulo, a gravidez após FIV apresenta risco aumentado para DTV, mas ainda não há recomendação consubstanciada para sua tromboprofilaxia. A anticoagulação terapêutica com a HBPM – enoxaparina 1 mg/kg por via subcutânea 12/12 h – está recomendada para todas as mulheres com episódio agudo de DTV durante a gravidez. A heparinoterapia intravenosa com HNF pode ser necessária como tratamento inicial em situações que ameaçam a vida da mulher como a TEP ou a perda de membro da paciente. A heparina é administrada em bolus intravenoso na dose de 5.000 UI; depois, 20 UI/kg/h, por bomba de infusão contínua, de modo a manter o tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) entre 1,5 e 2,5 vezes o normal, por 5 a 10 dias. Quando a paciente estiver estável, deve-se substituir HNF intravenosa por HBPM subcutânea em dose plena, terapêutica. Episódio agudo de DTV na gravidez pode exigir 6 meses de tratamento anticoagulante.
Figura 38.5 ■ Esquemas de anticoagulação na gravidez. (ACOG, 2011.)
Discute-se a necessidade de monitorar a enoxaparina, sob uso terapêutico, pelo antifator Xa, cujos níveis devem atingir 0,6 a 1,0 U/mℓ, 4 a 6 h após a última injeção (ACOG, 2011). A HNF deve ser monitorada pelo TTPa – 1,5 a 2,5 vezes o normal, após 6 h da sua última administração. Pacientes com esquema profilático não necessitam de monitoramento. Mulheres com DTV 2 a 4 semanas antes do parto ou com episódios trombóticos recorrentes podem ser candidatas à colocação de filtro optativo na veia cava inferior, com retirada no pósparto. Nesse cenário de DTV recente, a reversão da anticoagulação no parto é fortemente desencorajada sem a proteção do filtro. Outras candidatas ao filtro são aquelas com episódios trombóticos recorrentes, a despeito da anticoagulação terapêutica. ▶ Parto. Mulheres recebendo anticoagulação terapêutica ou profilática com a HBPM devem substituí-la pela HNF, de meia-vida mais curta, no último mês da gravidez ou na iminência do parto. No parto induzido, o tratamento anticoagulante deve ser suspenso 24 h antes. Se o parto ocorreu espontaneamente, a reversão com o sulfato de protamina (1 mℓ neutraliza 1.000 UI de HNF) raramente é necessária e não será cogitada no esquema profilático. Para as mulheres nas quais a terapia anticoagulante foi temporariamente descontinuada, estão indicadas as meias elásticas de compressão graduada. O bloqueio neuroaxial não deve ser realizado antes de 10 a 12 h após a última dose profilática de HBPM e antes de 24 h após a última dose terapêutica. A cesárea dobra o risco de DTV, por isso todas as mulheres cesareadas devem utilizar profilaxia mecânica (meias de compressão graduada ou aparelhos de compressão pneumática) caso não estejam sob o uso de profilaxia farmacológica; muitas com risco elevado devem manter ambos os procedimentos (ACOG, 2011). ▶ Pós-parto. O tratamento anticoagulante deve ser reiniciado após o controle razoável da hemorragia – 4 a 6 h após o parto vaginal e 6 a 12 h após o cesáreo. Nesse intervalo, devem-se utilizar meias elásticas. Enoxaparina ou HNF deve ser administrada por no mínimo 5 dias, concomitantemente com a varfarina, e depois descontinuada, quando se atingir a relação normatizada internacional (INR ou RNI) terapêutica para anticoagulantes orais, entre 2,0 e 3,0. Para tratamento de 4 a 6 semanas, o usual quando se utiliza heparinoterapia profilática na
gestação, a substituição pela varfarina pode ser dispensada, pois sua dose leva até 2 semanas para ser ajustada. Embora a HFN, a HBPM e a varfarina sejam excretadas no leite, a exposição ao recém-nascido é baixa e não altera o seu perfil coagulante, sendo compatíveis com o aleitamento natural. Mulheres que tiveram DTV na gravidez em curso, especialmente no 3o trimestre, podem necessitar de varfarina por 3 a 6 meses. ▶ Contracepção hormonal. O risco de DTV em mulheres sob o uso de pílula anticoncepcional contendo estrogênio aumenta de 35 a 99 vezes, por isso esse método contraceptivo está contraindicado no puerpério imediato, sejam as pacientes trombofílicas ou não. Métodos alternativos devem ser procurados – pílulas apenas de progesterona e implantes, dispositivo intrauterino, inclusive com progesterona e métodos de barreira.
■ Pontos-chave A doença tromboembólica venosa (DTV) compreende a trombose venosa profunda (TVP) e a tromboembolia pulmonar (TEP). O ciclo grávido-puerperal tem risco aumentado de 10 vezes para doença tromboembólica venosa: 5 vezes maior na gestação e 60 vezes no pós-parto. Cerca de 85% das tromboses venosas profundas ocorrem no membro inferior esquerdo (síndrome de May-Thurner ou de Cockett). A ultrassonografia duplex é o procedimento de eleição para o diagnóstico da trombose venosa profunda, embora muitos prefiram a ultrassonografia de compressão. Caso o resultado da ultrassonografia seja inconclusivo, a angiorressonância magnética está indicada quando há suspeita de trombose pélvica, e a angiotomografia computadorizada, quando a suspeita é de tromboembolia pulmonar. O tratamento de escolha para doença tromboembólica venosa na gravidez é a heparina de baixo peso molecular (HBPM). A varfarina é teratogênica e está formalmente contraindicada na gravidez, exceto em mulheres com prótese valvular cardíaca mecânica. A anticoagulação terapêutica é obrigatória quando o episódio agudo de DTV ocorre na gravidez em curso ou a mulher é portadora de prótese valvular cardíaca mecânica; a profilática, na história de DTV e de trombofilia. Tromboprofilaxia mecânica é recomendada em todos os casos de operação cesariana. Quando o tratamento anticoagulante é interrompido temporariamente no pós-parto, a tromboprofilaxia mecânica deve ser utilizada até que a mulher esteja deambulando ou a anticoagulação seja restaurada.
■ Patogenia das infecções congênitas ■ Rubéola ■ Hepatite B ■ AIDS ■ Toxoplasmose ■ Sífilis ■ Gonorreia e clamídia ■ Estreptococo do grupo B (GBS) ■ Dengue ■ Gripe suína (influenza H1N1) ■ Citomegalovírus ■ Herpes simples genital ■ Varicela-zóster
Ao contrário das evidências significativas para o aumento da gravidade de certas infecções na gravidez (influenza, hepatite E, herpes simples e malária), dados a respeito de uma maior susceptibilidade são fracos e apenas demonstrados para malária e listeriose [Centers for Disease Control (CDC), 2014]. Fenômenos fisiológicos próprios da gravidez podem concorrer para o aumento da gravidade de certas doenças (diminuição da capacidade residual pulmonar, estase urinária). Nos Estados Unidos, na pandemia da infecção pelo H1N1 em 2009, 5% das mortes foram na gravidez, não obstante as grávidas representassem apenas 1% da população, vale dizer, aumento de 5 vezes do risco de mortalidade. Esse risco elevado parecia ocorrer no 3o trimestre da gravidez. A infecção pelo vírus da hepatite E é mais grave na gestação e a maior incidência de mortalidade ocorre no 3o trimestre (risco relativo de insuficiência hepática fulminante de 2,7 e de morte de 6,0). As grávidas com infecção primária pelo vírus do herpes simples têm risco elevado de disseminação e de hepatite, também especialmente no 3o trimestre. Do mesmo modo, a infecção herpética genital tem recorrência mais frequente na gravidez.
■ Patogenia das infecções congênitas As infecções congênitas podem ocorrer durante a gestação (pré-natais) ou durante o parto (paranatais). Do ponto de vista epidemiológico, as infecções congênitas são chamadas de transmissão vertical (materno-fetal), em oposição às infecções da vida extrauterina, denominadas transmissão horizontal.
■ Infecção pré-natal As relações entre o feto e a mãe são necessariamente feitas pelas membranas placentária e amniótica. Assim, as vias de penetração dos germes são divididas em dois grupos: • Via transplacentária • Via transamniótica. ▶ Infecção transplacentária. Os microrganismos procedentes do sangue materno cruzam a placenta, alcançam a circulação fetal e se disseminam (Figura 39.1 A). ▶ Infecção transamniótica. Os germes da vagina e do colo acometem a cavidade amniótica e o feto (Figura 39.1 B). A via transamniótica é ascendente, geralmente após a ruptura das membranas, e não será aqui tratada; o Capítulo 26, no entanto, é especialmente dedicado a esse tema.
Figura 39.1 ■ A. Infecção transplacentária. B. Infecção transamniótica. Ambas detalhadas no texto.
■ Infecção paranatal É adquirida por contato direto com as secreções maternas, no momento da passagem do feto pelo canal do parto; o mesmo ocorre com relação à infecção pelo herpes simples genital, hepatite B, estreptococo do grupo B (GBS) – condicionam infecção neonatal.
■ Consequências das infecções congênitas Muito embora a infecção possa acometer a mãe, o ovo pode não apresentar lesões e a gravidez prosseguir normalmente até o termo. Se o feto for acometido pela infecção, as consequências vão depender do período da gestação (Figura 39.2): • Período pré-implantação: da fertilização até a nidação (2 semanas pós-concepção) • Período embrionário: da segunda semana até a nona semana pós-concepção • Período fetal: da nona semana até o termo. ▶ Período pré-implantação. Aplica-se aqui a lei do “tudo ou nada”. Se o número de células afetadas pela infecção for grande, ocorrerá o abortamento; caso seja pequeno, ocorre o fenômeno da compensação. A maioria das células não afetadas protege o embrião, que segue o seu curso, sem malformação. ▶ Período embrionário. É o período mais vulnerável (a drogas e infecções). Embora os agentes infecciosos possam ser letais, na maioria das vezes, produzem anomalias congênitas. Cada órgão tem seu período crítico, durante o qual o seu desenvolvimento será lesado (Figura 39.2).
Figura 39.2 ■ Fases cíclicas no desenvolvimento humano. Retângulos coloridos indicam os períodos mais sensíveis aos agentes teratogênicos (fármacos, infecção etc.); retângulos claros, estágios menos sensíveis. A idade da gravidez é contada a partir da fecundação. (Adaptada de Moore KL, Persaud TVN. Embriologia Clínica, São Paulo, Elsevier, 2004.)
▶ Perío do fetal. Caso a infecção seja muito grave, há morte fetal com a consequente interrupção da gravidez; nesta fase, ocorrem as anomalias congênitas menores e os defeitos funcionais, especialmente do SNC. No caso de a infecção materna surgir próximo ao parto, o recém-nascido pode apresentar a infecção em estágio evolutivo, exibindo seu quadro clínico agudo.
■ Diagnóstico da infecção A infecção primária materna é diagnosticada no pré-natal pela sorologia dos anticorpos IgG e IgM. A existência dos anticorpos IgM não pode ser considerada fidedigna para o diagnóstico da infecção primária (Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada [SOGC], 2013). Em geral, os títulos de IgM aumentam a partir de 5 dias da infecção aguda, alcançam um máximo com 1 a 2 semanas e, depois, declinam; ocasionalmente, no entanto, podem permanecer positivos anos após a infecção aguda. Os anticorpos IgG aparecem mais tarde, e são detectados 1 a 2 semanas após a infecção, alcançam um máximo com 12 semanas a 6 meses. São detectados por anos e, em geral, por toda a vida. Se IgG e IgM forem ambos negativos, isso significa ausência de infecção; se IgG for positivo e
IgM negativo, a infecção é antiga (há mais de 1 ano); se tanto IgG como IgM forem positivos, a infecção é recente ou o resultado do teste IgM é falso-positivo, o que não é incomum. A repetição da sorologia, 2 a 3 semanas mais tarde, confirma a infecção aguda quando os títulos de IgG se elevam, no mínimo, 4 vezes. A soroconversão de mulheres com a sorologia negativa na primeira consulta pré-natal atesta a infecção primária em bases mais sólidas. Para avaliar o risco de infecção fetal, é muito importante identificar quando a infecção ocorreu na gravidez. O teste de avidez IgG é um procedimento muito utilizado atualmente para mulheres com IgM positivo no primeiro trimestre. Ao fornecer resultado alta avidez (> 60%), indicaria infecção antiga (há mais de 3 meses), ocorrida, portanto, fora da gestação. Existem testes comercializados de avidez IgG para toxoplasmose, rubéola e citomegalovírus (CMV). Contudo, o padrão-ouro para o diagnóstico da infecção fetal é a reação em cadeia da polimerase no líquido amniótico (PCR-LA). A PCR-LA geralmente está indicada após 18 semanas de gestação e decorridas 4 semanas da infecção materna, pois somente nessas condições mostraria boa sensibilidade (SOGC, 2013). A ultrassonografia é útil para avaliar a gravidade da doença, mas não é diagnóstica: crescimento intrauterino restrito (CIR), calcificação cerebral e hepática, hepatoesplenomegalia, intestino hiperecogênico, ventriculomegalia, hidrocefalia, microcefalia, ascite, hidrotórax e derrame pericárdico isolados, hidropisia fetal não imune (HFNI) e placentomegalia. A cordocentese, para o diagnóstico de infecção fetal, é procedimento ultrapassado.
■ Rubéola Após período de incubação de 14 a 21 dias, a rubéola exterioriza-se como doença de pequena gravidade, caracterizada por linfadenopatia pósauricular (precede de 5 dias o exantema); exantema maculopapular, que se inicia na parte superior do tórax, estendendo-se depois por todo o corpo; e febrícula. As complicações são mais comuns no adulto e incluem artralgia, artrite, encefalite, neurite e púrpura trombocitopênica (SOGC, 2009). A excreção do vírus pela faringe pode ser detectada 7 dias antes do exantema ou até 7 a 12 dias após o seu início (Figura 39.3); assim, o paciente é potencialmente infectante por mais de 2 semanas.
■ Diagnóstico ■ Diagnóstico laboratorial na grávida A sorologia para rubéola não é mais exame de rotina no pré-natal para detectar as pacientes suscetíveis, exceto em grávidas com manifestações clínicas e/ou vínculo epidemiológico (Ministério da Saúde, 2011). Em 20 a 50% dos casos de rubéola, o paciente não apresenta exantema, o que dificulta o diagnóstico; quando feito pelo teste ELISA, o diagnóstico deve ser realizado em duas situações
distintas (Figura 39.4): • Nas grávidas com exantema, os seguintes resultados indicam infeção: ○ Soroconversão (caso a paciente tenha feito teste sorológico) ○ Aumento do título de IgG de, no mínimo, 4 vezes em dois exames espaçados de 2 a 3 semanas (fase aguda exantemática e convalescença) ○ IgM positivo • Nas grávidas que tiveram contato com a rubéola aplicam-se os mesmos critérios, apenas o intervalo dos exames pareados será de 4 a 5 semanas.
■ Diagnóstico da infecção fetal Realizada por PCR no líquido amniótico. Para reduzir os resultados falso-negativos, é necessário esperar 6 a 8 semanas após a infecção materna e 21 semanas de gestação, quando a excreção urinária fetal é maior.
■ Síndrome da rubéola congênita Na gravidez, a infecção nas primeiras 16 semanas, em especial nas 12 iniciais, determina abortamento, natimortalidade e defeitos congênitos que constituem a síndrome da rubéola congênita (SRC) (Figura 39.5).
Figura 39.3 ■ Diagrama esquemático do quadro clínico, achados virológicos e respostas imunológicas na infecção por rubéola. (Adaptada de Horstmann D.M. Viral infections. In Burrouw GN, Ferris TF (eds.). Medical Complications During Pregnancy, Saunders, 1975.)
Figura 39.4 ■ Diagnóstico de rubéola na grávida. (Dontingny et al., 2008.)
Figura 39.5 ■ Diagnóstico da síndrome da rubéola congênita (SRC). (Strebel et al., 2009.)
Se a infecção ocorrer no primeiro trimestre, o risco da SRC está estimado em > 90%; entre 16 e 20 semanas, o risco é muito pequeno (< 1%) e quase sempre associado à surdez; após 20 semanas, é praticamente inexistente. A tríade da SRC está representada por surdez, catarata e defeito cardíaco (especialmente a persistência do canal arterial) e ocorre em cerca de 50% das crianças acometidas (Figura 39.6). Outras manifestações: CIR, púrpura, icterícia, hepatoesplenomegalia, microcefalia e retardamento mental, meningoencefalite e doença óssea radiolucente.
■ Vacina A vacinação contra a rubéola faz parte do calendário vacinal do Sistema Único de Saúde (SUS) e é indicada, atualmente, para crianças com 1 ano de idade e reforço entre os 4 e os 6 anos. A ocorrência de rubéola e, consequentemente, da SRC tem sido reduzida dramaticamente nos países que implantaram o programa de vacinação. A taxa de soroconversão é de 95% após uma dose da vacina, mas a persistência da imunidade apresenta resultados controversos: 75 a 90%.
Figura 39.6 ■ Síndrome da rubéola congênita.
A vacinação é recomendada para mulheres em idade fértil e no pós-parto, e está proibida na gravidez. Mulheres vacinadas deverão aguardar 1 mês para engravidar [Centers for Disease Control and Prevention (CDC), 2010]. O abortamento provocado não está indicado em mulheres acidentalmente vacinadas durante a gravidez ou que não esperaram os 30 dias para engravidar.
■ Hepatite B Dentre as hepatites virais, a hepatite B é de grande importância obstétrica pelas elevadas taxas de transmissão vertical, gravidade da infecção neonatal e possibilidade de prevenção.
■ Diagnóstico laboratorial É possível identificar o HBssAg na infecção aguda e ele pode ser marcador de infecção crônica quando presente por mais de 6 meses no indivíduo contaminado. O HBeAg, quando positivo, indica replicação viral. Em geral, o anti-HBs é indicador de recuperação e de imunidade à infecção. A sorologia para HBsAg é exame de rotina no pré-natal (MS, 2005).
■ Transmissão A via de transmissão ao recém-nascido é o parto (paranatal). Se a mãe for HBsAg e HBeAgpositiva, a taxa de transmissão ao bebê é de 90%; se for positiva apenas para o HBsAg, a taxa cai para 15%. Cerca de 70 a 90% dos recém-nascidos infectados desenvolverão infecção crônica, com potencial para a cirrose e o câncer de fígado.
■ Profilaxia Embora a infecção seja paranatal, não há indicação de cesárea. A vacina para hepatite B é obrigatória para evitar a infecção no recém-nascido: a primeira dose é feita com menos de 12 h do nascimento; a segunda, 1 mês após a primeira; e a terceira dose, 6 meses após a inicial (Figura 39.7). Aqueles com mãe HBsAg-positiva receberão, nas primeiras 12 h, além da vacina, uma dose (0,5 mℓ IM) de imunoglobulina hiperimune anti-hepatite B (IGHAHB) (MS, 2008).
Figura 39.7 ■ Recomendações para a imunoprofilaxia de recém-nascidos contra a infecção pelo vírus da hepatite B. (MS, 2008.)
■ AIDS AIDS (acquired immune deficiency syndrome) é a doença causada pelo vírus HIV (vírus da imunodeficiência humana), retrovírus RNA, linfotrópico, que pode permanecer por um longo período no corpo (fase assintomática) antes que danos causados por ele apareçam como sintomas visíveis; quando a enfermidade surge, caracteriza a AIDS doença. A AIDS tem o seu aspecto principal na imunossupressão da resposta imune mediada pelos linfócitos T-CD4, que o vírus ataca, parasita e inutiliza, diretamente. Os anticorpos HIV, embora ineficazes para neutralizar o vírus, são utilizados nos exames para determinar se a pessoa é portadora do vírus HIV (soropositivo).
■ A doença O vírus HIV desarma gradualmente o sistema imunológico, tornando o doente cada vez mais vulnerável a qualquer infecção ocasionada por outro vírus, bactéria, fungo ou parasita. Essas infestações oportunistas ocorrem principalmente na pele, nos pulmões, no sistema digestivo, nos nervos e no cérebro. A pessoa infectada pelo HIV padece durante longo período; o paciente sem tratamento geralmente morre 2 a 3 anos após o diagnóstico (Figura 39.8). ▶ Contaminação pelo HIV. A principal fonte de contágio do HIV é feita pelas células infectadas por ele – transmissão por celularidade. Os linfócitos CD4 geralmente são parasitados pelo HIV existente no sangue e no esperma, sendo os elementos contaminantes – transfusão de sangue, compartilhamento de seringas por usuários de drogas ilícitas e relações sexuais (especialmente o coito anal).
Figura 39.8 ■ Evolução clínica da infecção pelo HIV.
■ Exames diagnósticos O mais utilizado é o teste ELISA, atualmente de quarta geração, que detecta anticorpos HIV-1 e HIV-2 no sangue, em menos de 2 semanas da contaminação. O resultado positivo deverá ser sempre confirmado pelo Western blot, que é definitivo. Há também o teste rápido, que apresenta o resultado em menos de 30 min.
■ AIDS e gravidez No Brasil, a infecção pelo HIV, entre as mulheres, evolui de maneira acelerada (feminilização), constituindo problema de saúde pública. Estima-se que a incidência de infecção pelo vírus HIV na gravidez seja de 0,6% da população de gestantes. A sorologia para HIV é exame de rotina na primeira consulta pré-natal. Grávidas que não realizaram a sorologia na gestação serão submetidas ao teste rápido no parto. As vias de transmissão na gravidez são: transplacentária, paranatal e amamentação. A transmissão vertical da AIDS está estimada em 25% caso nenhuma medida preventiva seja tomada (Figura 39.9). Desse total, 20% da transmissão ocorrem antes de 36 semanas; 50%, entre 36 semanas e o parto; e 30%, durante o parto. O risco de transmissão do aleitamento natural pode ser tão elevado quanto 15%, quando continuado por 2 anos. Totalizando a gravidez e a amamentação, o risco de transmissão vertical da AIDS é de 40%. Com o uso da terapia antirretroviral na gestação, a prática da cesárea e a proibição da amamentação, a transmissão vertical do HIV ficou reduzida a < 2% (AIDSinfo-2013).
Figura 39.9 ■ Risco hipotético de transmissão do HIV durante a gravidez e o parto, sem levar em conta a amamentação. A transmissão está estimada em 25 por 100 e, desse total, 20% ocorrem antes de 36 semanas; 50% entre 36 semanas e o parto; e 30%, durante o parto.
■ Exames de laboratório específicos Na gestante infectada pelo HIV, está indicada na primeira consulta pré-natal a determinação de CD4 e da carga viral, que será repetida 4 a 6 semanas após o início do tratamento; depois, com 34 semanas, é feita a última determinação para escolher a via de parto (MS, 2010). Além dos exames de laboratório habituais na gravidez, são recomendados: exame para vaginose bacteriana (Gram), sorologia para hepatites B e C e o PPD (MS, 2010).
■ Uso da terapia antirretroviral na gestação Na gravidez utiliza-se a TARV combinada – zidovudina (AZT), lamivudina (3TC) e lopinavir/ritonavir (LPV/r) (MS, 2010). O efavirenz é teratogênico e não deve ser usado. Para evitar a transmissão vertical, as grávidas assintomáticas, mesmo aquelas com CD4 ≥ 500 células/mm3, que fora da gravidez não necessitariam de tratamento, serão obrigatoriamente tratadas, não sem antes fazer um teste de genotipagem para verificar possível resistência a medicamentos; após o parto mantém-se a TARV indefinidamente (MS, 2013), o que não é consenso na literatura (AIDSinfo-2013) (Figura 39.10).
Figura 39.10 ■ Tratamento antirretroviral (TARV) na gravidez. (MS, 2010, 2013.)
No parto vaginal, o AZT será venoso até a ligadura do cordão e não será interrompida a medicação oral; na cesárea indicada, o AZT IV será iniciado 3 h antes. O bebê receberá o AZT por solução oral nas primeiras 8 h após o nascimento, permanecendo o tratamento por 6 semanas; também estão recomendadas três doses de nevirapina na primeira semana (AIDSinfo-2013).
■ Via de parto Cesárea eletiva com 38 semanas de gravidez se a carga viral for ≥ 1.000 cópias/mℓ ou desconhecida, estando a gestação com 34 semanas na época da aferição. A cesárea somente terá indicação se não houver ruptura das membranas e a dilatação for inferior a 3 a 4 cm. Nos casos em que a carga viral for < 1.000 cópias/mℓ e a paciente foi tratada com TARV, o parto vaginal pode ser realizado. Esse valor de carga viral < 1.000 cópias/mℓ também é o utilizado nos EUA, no Canadá e na Espanha; na França, é < 400 cópias/mℓ; e no Reino Unido, < 50 cópias/mℓ. No parto cesáreo, a taxa de complicações é maior em comparação com o vaginal. No parto, não proceder a ruptura artificial das membranas, colocação de eletrodo no escalpo para o monitoramento fetal e fórceps (AIDSinfo-2013).
■ Aleitamento natural Não será permitido, pois trata-se de via de transmissão do HIV.
■ Toxoplasmose ■ Ciclo de vida do Toxoplasma gondii O T. gondii é protozoário intracelular obrigatório, distribuído em quase todas as partes do mundo, e capaz de infectar diversas células do hospedeiro. O toxoplasma se apresenta de diversas maneiras, a depender do hospedeiro: oocisto, taquizoíto e cisto (Figura 39.11). Os hospedeiros intermediários são principalmente o porco, a ovelha e o ser humano; os hospedeiros definitivos são membros da família Felidae, e o exemplo típico é o gato doméstico. As três principais formas de transmissão da toxoplasmose são a ingesta de carne crua ou malcozida, a exposição a fezes de gatos contaminadas com oocistos e a transmissão vertical. A incidência de toxoplasmose congênita no Brasil é de 3:10.000 nascidos vivos.
Figura 39.11 ■ Ciclo de vida do Toxoplasma gondii. (Adaptada de Hill & Dubey J.P. Toxoplasma gondii: transmission and prevention. Clin Microbiol Infect. 8: 634-640, 2002.)
■ Transmissão congênita A infecção primária adquirida antes da gravidez não afeta o concepto, exceto em mulher imunodeprimida. No entanto, é aconselhável que, após infecção por toxoplasmose, a mulher espere 6 meses para engravidar (SOGC, 2013). A infecção primária ocorrida na gestação pode ser transmitida ao feto pela via transplacentária. A invasão da placenta pelos taquizoítos e a
multiplicação dos parasitas neste local é um cenário provável. Eventualmente, taquizoítos atravessam a placenta e alcançam a circulação e os tecidos fetais (Figura 39.12). A toxoplasmose congênita pode determinar abortamento e malformação fetal, com graves repercussões no recémnascido, inclusive levando ao óbito. A incidência da infecção na gravidez, dependendo do país, varia de 1:100 a 1:1.000 nascimentos. Cerca de 90% das grávidas infectadas não apresentam sintomas e aquelas porventura sintomáticas exibem quadro clínico inespecífico, influenza-símile (SOGC, 2013). Enquanto o risco de transmissão para o feto aumenta com a duração da gravidez – 15% no primeiro trimestre, 30% no segundo e 60% no terceiro –, a sua gravidade diminui (MaternidadeEscola, UFRJ, 2013). Globalmente, a transmissão congênita ocorre em 30% das grávidas infectadas e não tratadas. Cerca de 10% das infecções resultam em abortamento; apenas 10 a 15% dos recém-nascidos infectados in utero mostram sinais de toxoplasmose ao nascimento. Os sinais clássicos da tríade toxoplasmósica são: coriorretinite, calcificações intracerebrais e hidrocefalia (Figura 39.12). Outros recém-nascidos exibem variedade de sintomas da infecção aguda – convulsões, esplenomegalia, febre, anemia, icterícia e linfadenopatia. Dentre os recém-nascidos infectados sintomáticos, aproximadamente 10 a 15% morrem da doença; os recém-nascidos que sobrevivem sofrem de progressivo retardamento mental ou de outras deficiências neurológicas. No entanto, se a transmissão ocorrer mais tarde na gravidez, especialmente após 20 semanas, ela é muito menos grave. A maioria das crianças infectadas (85 a 90%) não apresenta sintomas ao nascimento – infecção subclínica ou assintomática – e somente serão diagnosticadas por exames laboratoriais (sorologia IgM). Embora possam parecer saudáveis ao nascimento, podem demonstrar sintomas clínicos e deficiências na segunda ou terceira década da vida (coriorretinite, problemas neurológicos e psicomotores, convulsões, retardamento mental). Estima-se que cerca de 1/3 das crianças infectadas na gravidez desenvolvem coriorretinite ao longo da vida.
Figura 39.12 ■ História natural da toxoplasmose congênita com os respectivos exames diagnósticos: soroconversão, PCR no líquido amniótico (PCR-LA), sorologia IgM e ultrassonografia.
■ Diagnóstico da infecção na mãe A sorologia IgG e IgM para toxoplasmose é obrigatória na primeira consulta pré-natal (Figura 39.13); no Rio de Janeiro, 46% das grávidas são suscetíveis. A soroconversão para IgG e IgM preenche os requisitos para o diagnóstico. Mulheres soronegativas serão examinadas mensalmente, e não trimestralmente, por motivos que serão explicitados mais adiante. O grande problema é que, na primeira consulta pré-natal, 5% das grávidas exibem IgM positivo e, destas, a minoria (< 5%) apresentará recém-nascido com infecção congênita. Baixos níveis de IgM podem permanecer por diversos anos. Exames pareados, com intervalo de 2 a 3 semanas, com aumento do título de IgG de pelo menos 4 vezes, indicam infecção aguda. Assim, passa a ser fundamental identificar quais dessas mulheres com IgM positivo foram infectadas antes ou durante a gravidez. O teste de avidez IgG é muito útil para esse propósito, e separa a infecção antiga da recente. A alta avidez (> 60%) no primeiro trimestre significa infecção há > 3 a 4 meses; portanto, antes da gravidez. Ao contrário, a baixa avidez (< 30%) indica infecção recente (< 3 meses); o resultado intermediário (30 a 60%) é inconclusivo. O valor preditivo positivo do teste de avidez é muito superior ao valor preditivo negativo, ou seja, a baixa avidez não assegura a infecção fetal e a alta avidez praticamente a afasta. Por fim, se houver titulação IgG positiva e IgM negativa, a infecção é considerada antiga e o
feto, protegido.
■ Diagnóstico da infecção fetal É realizado por PCR no líquido amniótico. O teste só deve ser oferecido após 18 semanas da gestação e decorridas 4 semanas da infecção materna (soroconversão), para reduzir a taxa de resultados falso-negativos (SOGC, 2013). Eventualmente, o diagnóstico pode ser feito por ultrassonografia, que mostra calcificações intracerebrais, ventriculomegalia, hidrocefalia, microcefalia, ascite, hepatoesplenomegalia, CIR acentuado e placentomegalia.
Figura 39.13 ■ Diagnóstico e tratamento da toxoplasmose na gravidez. *Calcificação intracerebral e ventriculomegalia. Rx, tratamento; ESP, espiramicina; SUL, sulfadiazina; PIR, pirimetamina.
■ Diagnóstico da infecção no recém-nascido É feito por meio da dosagem do IgM que não atravessa a placenta.
■ Tratamento
O tratamento da infecção na gravidez é realizado imediatamente após a soroconversão com a espiramicina (3 g/dia), a fim de reduzir a transmissão fetal (profilaxia secundária), o que se consegue em 60% dos casos (Figura 71.2 no capítulo correspondente). Estima-se que, para alcançar esse objetivo, o tratamento deva ser iniciado dentro de 3 semanas da soroconversão (janela da espiramicina), motivo pelo qual a sorologia nas mulheres negativas será mensal, e não trimestral como aconselha o Ministério da Saúde. Caso seja confirmada a infecção fetal por PCR-LA ou ultrassonografia, é iniciado o tratamento com a pirimetamina/sulfadiazina – pirimetamina, 50 mg/dia; sulfadiazina, 3 g/dia; e ácido folínico, 15 mg/dia, por 3 semanas – alternando com a espiramicina, também por 3 semanas. A pirimetamina/sulfadiazina está contraindicada no primeiro trimestre da gravidez, período no qual será mantida apenas a espiramicina. A espiramicina, mesmo se a PCR-LA for negativa, não será interrompida, mas mantida durante toda a gestação (SOGC, 2013). O tratamento dos recém-nascidos infectados assintomáticos é muito recomendado para reduzir a gravidade das sequelas (SOGC, 2013). Embora o tratamento na gravidez pareça ter grande impacto em reduzir as lesões intracranianas e o desenvolvimento neurológico da criança, até mesmo se associado à medicação após o nascimento não traria grandes benefícios na coriorretinite.
■ Prevenção primária Para a prevenção primária da infecção em mulheres soronegativas, aconselha-se que as mãos de pessoas que lidam com carne devam ser lavadas com água e sabão antes de assumirem outras tarefas (Tabela 39.1). Todo o material de corte em contato com carne crua deve também ser lavado com água e sabão. O toxoplasma na carne (cistos) é morto na exposição ao calor e ao frio extremos. A grávida deve evitar contato com gatos ou qualquer objeto contaminado com as suas fezes (caixas de areia), assim como é obrigatória a prática de jardinagem com luvas. Os vegetais e as frutas devem ser bem lavados antes de ingeridos, pois podem estar contaminados por fezes de gato.
Tabela 39.1 ■ Prevenção primária da toxoplasmose na gravidez: medidas higienodietéticas. Não comer carnes cruas ou malcozidas Ao manipular carnes cruas, não tocar a mucosa dos olhos e da boca Lavar bem frutas e verduras antes de ingeri-las Evitar contato com gatos ou qualquer objeto contaminado com as suas fezes Usar luvas no manuseio da terra (jardinagem)
■ Sífilis A sífilis é doença venérea sistêmica causada pelo Treponema pallidum.
■ A doença A infecção sifilítica pode ser dividida em diversos estágios: incubação, primária, secundária, latente inicial, latente tardia e terciária. A classificação mais recente é em: sífilis inicial (primária, secundária e latente até 1 ano) e tardia (latente após 1 ano e terciária). A sífilis primária é caracterizada pelo cancro sifilítico na genitália (lábios), duro, indolor e linfadenopatia, geralmente 3 semanas após o contato. O estágio secundário ocorre de 6 semanas a 6 meses após a lesão primária; a espiroquetemia determina exantema maculopapular envolvendo todo o corpo, especialmente mãos e pés. Sintomas não específicos como febre, perda de peso e mal-estar ocorrem em 50% dos pacientes. A fase secundária é seguida pela fase latente, caracterizada pela falta de lesões clínicas aparentes e teste sorológico positivo. A doença pode ser comunicável nos 4 anos iniciais da fase latente e geralmente não é transmissível após esse prazo, com exceção da infecção fetal transplacentária. A fase terciária ou tardia é o estágio de destruição tecidual que aparece 10 a 25 anos após a fase inicial em quase 35% dos pacientes não tratados. As lesões granulomatosas (gomas) podem ocorrer em qualquer órgão, sendo muito mais dependentes da resposta local imune que da ação direta do organismo. As manifestações mais graves da sífilis terciária incluem o sistema cardiovascular e o SNC: insuficiência aórtica, estenose do óstio coronário, tabes dorsalis, demência e morte. Estudos longitudinais em pacientes não tratados indicam que aproximadamente 1/3 dos indivíduos infectados permanece em estágio latente por toda a vida; 1/3 sofre cura espontânea e o 1/3 restante desenvolve manifestações tardias.
■ Sorologia Existem dois tipos de testes: • Testes não específicos: VDRL (venereal disease research laboratory) • Testes específicos (treponêmicos): FTA-Abs (fluorescent treponemal antibody absorption). O rastreamento é feito com o VDRL, mas a ocorrência de falso-positivo obriga que seja feita a confirmação com o FTA-Abs. Em geral, o VDRL se torna positivo 1 a 3 semanas após o aparecimento do cancro duro (Tabela 39.2). O VDRL quantitativo também é o teste de escolha para seguir os casos após o tratamento, uma vez que o FTA-Abs permanece positivo após a infecção sifilítica inicial.
Tabela 39.2 ■ Frequência da sorologia positiva na sífilis não tratada. Sorologia positiva Fase clínica
VDRL
Primária
FTA-Abs 85
Início do cancro
25
–
Cancro de 1 semana
50
–
Cancro de 3 semanas
75
–
Secundária
100
100
Latente
70
95
Terciária
70
97
■ Sífilis congênita A transmissão vertical da sífilis permanece sendo um problema de saúde pública no Brasil (MS, 2006). Das várias doenças que podem ser transmitidas durante a gravidez, a sífilis é a que tem a maior taxa de transmissão. No Brasil, em 2004, a prevalência na gestação foi de 1,6%, representando cerca de 50 mil parturientes com sífilis ativa. A sorologia VDRL na primeira consulta pré-natal é a medida mais importante para identificar os fetos de risco para a sífilis congênita. O MS (2006) recomenda ainda a repetição do teste no terceiro trimestre (28 semanas). A infecção transplacentária pode ocorrer durante quaisquer estágios da doença e idade da gravidez; o comprometimento fetal depende particularmente da treponemia materna. Assim, a taxa de transmissão em mulheres não tratadas será de 70 a 100% nas fases primária, secundária e latente inicial; e de 30% nas fases latente tardia e terciária (MS, 2006). A infecção in utero pode determinar abortamento, natimortalidade, hidropisia fetal não imune (HFNI), placentomegalia e parto pré-termo; aproximadamente 50% dos fetos escapam da infecção. A transmissão da infecção no final da gravidez está associada a maior dano fetal, paradoxalmente quando é maior a sua competência imunológica. Os cerca de 50% dos recém-nascidos infectados apresentam sífilis congênita precoce se os sintomas aparecem nos primeiros 2 anos de vida, ou sífilis congênita tardia se os sintomas se desenvolvem após os 2 anos de idade. A hepatoesplenomegalia e o exantema são as manifestações iniciais mais comuns da sífilis congênita precoce, que geralmente se manifesta ao nascimento ou dentro de 3 a 7 semanas do parto. As manifestações tardias resultam principalmente da infecção crônica dos ossos (nariz em sela, fronte olímpica), dentes e SNC.
■ Tratamento O tratamento é feito com penicilina G benzatina por via intramuscular, em esquemas que dependem da fase clinica da infecção (Tabela 39.3). O parceiro também deverá ser tratado. Considera-se a sífilis inadequadamente tratada na gravidez se: • O tratamento foi feito de maneira incompleta • O tratamento foi feito com fármaco diferente da penicilina • A mãe completar o tratamento a menos de 30 dias do parto • O parceiro sexual não foi tratado ou não houver documentação do tratamento e ocorrer queda dos títulos após a terapia. Neste caso, o recém-nascido deve ser tratado para a sífilis congênita. Não há alternativa satisfatória à penicilina na gravidez; as pacientes alérgicas deverão ser dessensibilizadas. Recém-nascidos sintomáticos são avaliados e tratados; os assintomáticos são considerados de risco se a mãe apresentar sorologia positiva. Se o tratamento materno foi adequado e finalizado mais de 1 mês antes do parto, a sorologia positiva do bebê é passiva e ele não necessita de tratamento. No entanto, essas crianças devem ser acompanhadas pelo VDRL até a sua negativação, a fim de confirmar a soroconversão. O tratamento da sífilis congênita requer 10 dias de tratamento.
■ Normas da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro A Secretaria Municipal de Saúde (SMS-RJ, 2013) realiza o teste rápido de sífilis na primeira consulta pré-natal e trata imediatamente a gestante positiva e o parceiro com o esquema usual de penicilina por 3 semanas (Figura 39.14). O teste rápido é treponêmico, por isso não negativa após o tratamento, sendo a gestante acompanhada pelo VDRL mensal.
■ Gonorreia e clamídia A gonorreia é causada pela bactéria Neisseria gonorrhoeae e a clamídia, pela bactéria Chlamydia trachomatis. Em grávidas com < 25 anos, a incidência de clamídia varia de 3 a 14%; dentre os casos, 80% são assintomáticos. Se não tratadas na gravidez, a gonorreia e a clamídia podem ocasionar parto prétermo, infecção intrauterina ou infecção congênita na forma de conjuntivite, pneumonia e doença disseminada.
Figura 39.14 ■ Conduta na sífilis e gravidez. (SMS-RJ.)
Tabela 39.3 ■ Tratamento da sífilis na gravidez. Estadiamento
Penicilina G benzatina
Intervalo entre séries
Controle de cura
Sífilis primária
1 série: 2,4 milhões UI
Dose única
VDRL mensal
Sífilis secundária, latente < 1 ano
2 séries: 2,4 milhões UI
Semanal
VDRL mensal
Sífilis terciária, latente > 1 ano, desconhecido
3 séries: 2,4 milhões UI
Semanal
VDRL mensal
1 série = 1 ampola de 1,2 milhão UI em cada glúteo. (Ministério da Saúde [MS], 2006.)
O CDC (2010) aconselha o rastreamento de todas as mulheres na primeira consulta pré-natal para clamídia e gonococo, por meio de swab de material endocervical, o que não é referendado pelo National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE, 2010). O Royal Australian and New Zealand College of Obstetricians and Gynaecologists (RANZCOG, 2013) recomenda o rastreamento para clamídia em todas as grávidas com < 25 anos. O tratamento corrente recomendado da gonorreia é feito com uma única dose de ceftriaxona de 250 mg IM, em combinação com a azitromicina 1 g VO, dose única (geralmente indicada para tratar a clamídia, mesmo que o exame tenha sido negativo) (CDC, 2012). O controle de cura para clamídia deve ser feito após 3 semanas do tratamento; para a gonorreia, é desnecessário.
■ Estreptococo do grupo B (GBS) A infecção por GBS (Streptococcus agalactiae) é a principal causa de infecção neonatal precoce e a maior causa de sepse no recém-nascido. Ela também é reconhecida como importante agente etiológico de infecção materna – corioamnionite, endometrite, infecção urinária e septicemia. As recomendações dos organismos responsáveis norte-americanos são de que todas as grávidas (entre 35 e 37 semanas da gestação) sejam rastreadas pela cultura vaginorretal para
colonização por GBS (CDC, 2010) (Tabela 39.4). Cerca de 10 a 30% das grávidas estão colonizadas por GBS na vagina ou no reto, 50% dos recém-nascidos serão colonizados e 2% terão a infecção neonatal precoce (sepse, pneumonia, meningite). Essas mulheres colonizadas deverão receber profilaxia antibiótica intraparto (PAI) para a prevenção da infecção perinatal pelo GBS. Por outro lado, mulheres cujos resultados da cultura forem desconhecidos devem ser tratadas de acordo com os critérios de risco no parto (Tabela 39.4): gestação com < 37 semanas, duração da ruptura das membranas ≥ 18 h ou temperatura ≥ 38°C. A profilaxia intraparto também está indicada para mulheres com bacteriúria por GBS na gravidez atual ou naquelas com bebê prévio com doença GBS invasiva. O fármaco escolhido para a PAI é a penicilina G, na dose de 5 milhões de UI IV, seguidas de 2,5 milhões de UI a cada 4 h até o nascimento. A ampicilina, 2 g IV, seguidos por 1 g a cada 4 h, é alternativa aceitável. Para aquelas alérgicas à penicilina, é indicada a cefazolina, 2 g IV, depois 1 g a cada 8 h até o nascimento. O MS (2012) e o RCOG (2012) não recomendam a cultura vaginorretal para GBS de rotina na gravidez.
■ Dengue Conforme o novo Protocolo de Manejo Clínico: Plano Estadual de Controle e Prevenção da Dengue (2010/2011), da Secretaria de Atenção à Saúde/Secretaria Estadual de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro (SAS/SESDESC – RJ, 2010/2011), os casos de dengue são classificados em verde (sem sinais de alarme), amarelo (com sinais de alarme) e vermelho (grave).
Tabela 39.4 ■ Indicações e contraindicações para a profilaxia antibiótica intraparto (PAI) para a prevenção do GBS precoce. Indicações
Contraindicações
Bebê de gestação anterior com doença por GBS invasiva
Colonização por GBS em gravidez anterior (a menos que haja indicação na gravidez atual)
Bacteriúria por GBS em qualquer trimestre da gravidez
Bacteriúria por GBS em gravidez anterior (a menos que haja indicação na gravidez atual)
Rastreamento de GBS vaginorretal positivo entre 35 e 37 semanas
Cultura vaginorretal de GBS negativa entre 35 e 37 semanas na gravidez atual, independentemente dos fatores de risco intraparto
Estado GBS desconhecido ao início do parto (cultura não realizada, incompleta ou resultado desconhecido) e qualquer um dos fatores de risco: • Parto < 37 semanas • Amniorrexe ≥ 18 h • Temperatura intraparto ≥ 38°C
GBS, estreptococo do grupo B.
Cesárea realizada antes do início do parto em mulher com membranas íntegras, independentemente do estado da colonização por GBS na gravidez atual
Classificação e tratamento ■ Vermelho – Dengue grave Uma ou mais das seguintes complicações: • •
Choque compensado ou não Extravasamento plasmático mesmo sem choque (ascite, derrame pleural etc.)
• • •
Hemorragia, hematêmese, melena Comprometimento sistêmico grave (fígado, SNC, coração e outros) Comprometimento respiratório. ▶ Classificação de risco → Avaliação médica imediata. Internação hospitalar. Cuidados de terapia intensiva, se indicados.
■ Avaliação História, exame clínico e investigação laboratorial básica (hemograma com contagem de plaquetas antes de iniciada hidratação). Glicemia e outros exames específicos, conforme avaliação clínica. Atentar para sinais de choque hipovolêmico: • • •
Pulso rápido e fino Extremidades frias Pele pálida e úmida (paciente sudorético)
• • •
Enchimento capilar lento > 2 s Pressão arterial convergente (PA diferencial < 20 mmHg) Hipotensão postural (queda > 30 mmHg na aferição de pé em relação à aferição sentado)
• •
Agitação ou prostração importante Hipotermia.
■ Tratamento •
Reposição volêmica
• • •
Dois acessos venosos calibrosos. Evitar punção de vasos profundos, preferir vasos compressíveis Cautela ao instalar cateter nasogástrico Hematócrito (hemoconcentração) a cada 2 h
• •
Rigorosa observação de enfermagem e reavaliação clínica constante na fase de expansão Avaliar necessidade de UTI (hematócrito em queda e choque, gravidade do comprometimento clínico, insuficiência respiratória etc.)
•
Havendo melhora clínica e laboratorial, tratar paciente como amarelo.
■ Reposição volêmica Fase de expansão (sob rigorosa observação clínica) • Soro fisiológico a 0,9% ou solução de Ringer: 20 mℓ/kg em 30 min (adulto e criança), máximo de 2.000 mℓ por etapa, podendo ser repetida até 3 vezes ou mais a critério clínico
Se a resposta for inadequada, avaliar hemoconcentração. Se o hematócrito estiver em ascensão e houver choque persistente apesar da reposição • volêmica adequada, utilizar expansores → coloide sintético (Hisocel® ou similar) – 10 mℓ/kg/h • Hematócrito em queda e choque: iniciar cuidados intensivos; investigar possível quadro hemorrágico associado • Atenção na fase de reabsorção do volume extravasado: ○ Considerar a possibilidade de hiper-hidratação ○ Reduzir a velocidade e o volume infundido, de acordo com a avaliação clínica e laboratorial • Monitorar hiponatremia e hipocalemia • Depois da internação, seguir o protocolo do hospital.
■ Amarelo Dengue com sinais de alarme ou que pertença a grupo de risco clínico ou social para complicações (sinais de alarme assistenciais). ▶ Sinais de alarme. Dor abdominal intensa e contínua; vômito persistente; hipotensão postural ou lipotimia; sonolência, agitação ou irritabilidade; hepatomegalia; sangramento espontâneo das mucosas; diminuição da diurese (geralmente o paciente deverá urinar pelo menos 1 vez a cada 6 h); aumento do hematócrito concomitante a queda rápida das plaquetas. ▶ Grupos de risco. Menores de 15 anos de idade; adultos com mais de 60 anos de idade; grávidas; adultos e crianças com hipertensão, obesidade, diabetes ou doenças crônicas; incapazes de autocuidado, que morem sozinhos ou que não tenham alguém que lhes preste cuidado; dificuldade de acesso aos serviços de saúde. ▶ Classificação de risco → alta prioridade para avaliação médica.
■ Avaliação História, exame clínico e investigação laboratorial básica (hemograma com contagem de plaquetas antes de iniciada hidratação). Glicemia e outros exames específicos, conforme avaliação clínica. Volume urinário horário nas primeiras 4 h.
■ Tratamento • Manter em leito de observação (cadeira de hidratação ou maca em unidade com médico e enfermagem de plantão 24 h) • Hidratação oral enquanto aguarda avaliação médica • Hidratação oral nos pacientes dos grupos de risco sem sinais de alarme • Reposição volêmica em todos os pacientes com sinais de alarme, depois da avaliação clínica e do hemograma • Reposição volêmica conforme fase de manutenção nos pacientes sem sinais de alarme que não consigam ingerir líquidos • Avaliação da necessidade de internação.
■ Reposição volêmica ▶ 1. Fase de expansão (sob rigorosa observação clínica) • Soro fisiológico a 0,9% ou solução de Ringer: 20 mℓ/kg em 30 min (adulto e criança), máximo de 2.000 mℓ por etapa, podendo ser repetida até 3 vezes ou mais, a critério clínico • Reavaliação clínica constante, incluindo sinais vitais e perfusão periférica • Repetir o hematócrito ao fim da fase de expansão e a cada 2 h, na fase de manutenção • Manter sob rigorosa observação de enfermagem e clínica. ▶ 2. Fase de manutenção. Iniciar depois de observada melhora clínica e laboratorial com a fase de expansão. Reduzir gradualmente a infusão venosa.
Sinais de melhora clínica: • Volume urinário adequado • Queda do hematócrito abaixo do valor de base em paciente estável Se não houver melhora, classificar como vermelho – dengue grave • Adulto – 25 mℓ/kg, de 6 em 6 h ou, a critério clínico, de 8 em 8 h ou de 12 em 12 h → A hidratação de manutenção deve ser realizada com solução glicosada a 5% (3/4 ou 2/3 da quantidade total) e soro fisiológico a 0,9% (1/4 ou 1/3 da quantidade total). → Acrescentar ao volume de manutenção de 20 a 50 mℓ/kg/dia se houver perdas anormais (metade com soro glicosado e metade com soro fisiológico). ▶ Eletrólitos de manutenção • Sódio: 2 a 3 mEq/kg/dia. Cada 20 mℓ de soro fisiológico a 0,9% contêm 3 mEq de sódio. Com a composição 1/4 ou 1/3 de soro fisiológico, oferece-se o sódio basal • Potássio: 2 a 3 mEq/kg/dia, com o máximo de 5 mEq em cada 100 mℓ de solução.
■ Acompanhamento • Avaliação dos sinais vitais e perfusão periférica (de hora em hora até o final da fase de expansão, passando para 4 em 4 h na fase de manutenção) • Hemograma de controle a cada 4 h e antes da alta da observação • Contagem de plaquetas a cada 12 h, glicemia e demais exames a critério clínico • Avaliar volume urinário horário pelo menos nas primeiras 4 h • A hidratação venosa pode ser substituída pela via oral após normalização do hematócrito, sinais vitais e débito urinário.
■ Critérios de alta dos leitos de observação • Pacientes dos grupos de risco com hematócrito e quadro clínico estáveis, sem sinais de alarme, podem ser liberados para tratamento ambulatorial depois de período de observação de pelo menos 4 h • Na gestante, observar especialmente a tolerância à ingesta de líquidos e alimentos. Em caso de intolerância, manter em leito de observação • Pacientes submetidos à reposição volêmica, depois de compensados, se não tiverem indicação de internação, devem ser mantidos em observação em leito ou cadeira de hidratação por pelo menos 6 h antes da liberação para tratamento ambulatorial • O tratamento ambulatorial deve ser conduzido da maneira descrita para os pacientes verdes.
■ Sinais e sintomas de hidratação excessiva • Dispneia • Ortopneia/taquipneia/Cheyne-Stokes • Tosse de início súbito • Terceira bulha (galope) • Estertores crepitantes basais • Edema pulmonar • Edema periorbitário bilateral em crianças.
■ Critérios de internação hospitalar • Dengue grave: extravasamento plasmático (ascite, derrame pleural etc.), hipovolemia, comprometimento orgânico grave, comprometimento respiratório, hemorragia, hematêmese, melena • Recusa ou dificuldade de ingesta de líquidos e alimentos • Plaquetas inferiores a 20.000/mm3 independentemente de manifestações hemorrágicas • Outros sinais de comprometimento de órgãos • Impossibilidade de seguimento do paciente ou de seu retorno na unidade de saúde • Doença de base descompensada.
■ Critérios de alta hospitalar • Mais de 24 h em estado afebril, com hematócrito normal e hemodinamicamente estável • Plaquetas em elevação ou > 20.000/mm3 • Ausência de sintomas respiratórios.
■ Verde Dengue sem sinais de alarme e que não pertença a grupo de risco clínico e social para complicações (sinais de alarme assistenciais). Capazes de ingerir líquidos e que tenham urinado pelo menos uma vez nas últimas 6 h. ▶ Classificação de risco → baixa prioridade para avaliação médica Obs.: Neste grupo estão os pacientes que faziam parte do grupo amarelo e que foram liberados para tratamento ambulatorial.
■ Avaliação História, exame clínico e investigação laboratorial básica (hemograma com contagem de plaquetas).
■ Tratamento ambulatorial • Hidratação oral: ○ Adulto: 60 a 80 mℓ/kg/dia, sendo 1/3 deste volume por soro de hidratação oral e 2/3 de líquidos variados. Oferecer os líquidos na proporção de 50% do volume diário pela manhã, 35% no período da tarde e 15% no período noturno • Repouso • Sintomáticos: paracetamol ou dipirona. Não utilizar ibuprofeno, anti-inflamatórios não hormonais e corticoides. Não aplicar medicação pela via intramuscular • Orientar pacientes e familiares: repouso, meios de disseminação e prevenção, sinais de alarme para gravidade, especialmente no primeiro dia da redução da febre (defervescência) • Em pacientes incapazes do autocuidado, incluindo a dificuldade de ingesta de líquidos, avaliar internação • Pacientes com hematócrito estável e sem sinais de gravidade podem ser liberados para acompanhamento ambulatorial • Monitoramento com revisão diária para avaliação da progressão da doença, atentando-se para: ○ Realizar hemograma com contagem de plaquetas no primeiro atendimento e a cada 48 h ou a critério clínico ○ Hemoconcentração (aumento do hematócrito) ○ Defervescência da febre (queda abrupta da temperatura) ○ Sinais de alarme (mesmo fora da fase crítica) ○ Retorno imediato à unidade de saúde caso ocorra qualquer um dos sinais de alarme ou em caso de desaparecimento da febre
○ Instruções escritas para casa (p. ex., usando o cartão de dengue).
■ Conduta obstétrica • A grávida é considerada grupo de risco (no mínimo, cor amarela) • Ultrassonografia abdominal: possível descolamento prematuro da placenta (DPP) • Cardiotocografia (CTG) e perfil biofísico fetal (PBF) • Corticoide (48 h).
■ Gripe suína (influenza H1N1) A gravidez é fator de risco para o aumento da morbiletalidade materna e fetal na gripe suína. Na gripe suína, a mortalidade materna é 5 vezes maior que na população geral (CDC, 2009); a mortalidade fetal está aumentada de 2 vezes. Em consequência de menor capacidade residual funcional no pulmão e maior consumo de oxigênio, o risco de pneumonia grave é 7 vezes maior na gravidez e, após 20 semanas, é 13 vezes mais elevado. A mortalidade materna nos casos de síndrome da angústia respiratória aguda (SARA) é de 10%, e a fetal também. Toda grávida deverá tomar a vacina contra a gripe, inclusive a H1N1. Não há risco para o feto quando a vacina for de vírus inativado, bacteriana ou de toxoide (ACOG, 2013). Além disso, é importante vacinar o pessoal de saúde para a sua própria proteção, assim como para reduzir a transmissão no cenário epidemiológico. O Tamiflu® (oseltamivir), administrado nas primeiras 48 h do início dos sintomas em grávidas suspeitas ou comprovadas da doença, na dose de 75 mg 2/dia durante 5 dias, tem ação poderosa para evitar a morte materna (CDC, 2009) (Figura 39.15).
Figura 39.15 ■ Conduta na gripe durante a gravidez. SatO2, saturação de O2.
A interrupção da gravidez, pela operação cesariana, pode ser necessária em mulheres com SARA, para assegurar o suporte ventilatório (Capítulo 24).
■ Citomegalovírus O citomegalovírus (CMV) é um herpes-vírus. Este grupo inclui os vírus herpes simples (HSV) dos tipos 1 e 2, o vírus varicela-zóster (VZV) e o vírus Epstein-Barr (EBV). No caso específico do homem, provoca a doença de inclusão citomegálica. Todos esses vírus mantêm a característica de ficarem adormecidos, latentes nas células, para sempre. Para a maioria das pessoas que adquirem a infecção pelo CMV após o nascimento, a sintomatologia é pobre, síndrome mononucleose-símile, com febre prolongada e hepatite leve, com testes para mononucleose e hepatite negativos.
■ Infecção congênita Para a grávida, as duas vias mais comuns de exposição ao CMV são o contato sexual (sêmen)
e o contato com a saliva e a urina de bebês infectados. A infecção congênita pelo CMV é responsável por sequelas definitivas e morte na infância em maior número de casos que a síndrome de Down, síndrome alcoólica fetal e defeitos do tubo neural (CDC, 2010) (Figura 39.16). A citomegalovirose é a infecção virótica congênita mais comum nos EUA, incidindo em 8:1.000 nascidos vivos. Cerca de 80% das crianças com infecção congênita nunca apresentam sequelas. A incidência de crianças com sequelas definitivas é de 1:5 (20%) dos nascidos com infecção congênita ou 1 a 2:1.000 (0,1%) do total de nascidos vivos. O CMV é causa importante de surdez neurossensorial e de retardamento mental. Em torno de 1 a 4% das mulheres soronegativas apresentam infecção primária pelo CMV e a taxa de transmissão fetal é de 30% (Figura 39.17). Aproximadamente 50 a 80% das mulheres em idade fértil (até 40 anos) são soropositivas e passíveis de infecção secundária ou recorrente; neste grupo, a taxa de transmissão fetal é de apenas 1% e é pequeno o risco de sequela definitiva no bebê infectado. A infecção primária por CMV no primeiro e no segundo trimestres da gravidez é responsável por 5 a 10% de recém-nascidos infectados sintomáticos e, desses, 30% morrem; dos que sobrevivem, 90% apresentam sequelas definitivas (perda da audição e comprometimento neurológico) (Figura 39.17). Dos 90 a 95% assintomáticos, 10 a 15% desenvolvem sequelas (perda auditiva neurossensorial). A infecção pelo CMV no terceiro trimestre da gravidez traz riscos mínimos de sequelas nos fetos infectados. Uma estatística francesa recente mostrou que, nos casos em que a infecção materna primária ocorreu após 14 semanas da gestação, não foi observada a ocorrência de infecção congênita grave. A história natural da infecção congênita pelo CMV pode ser vista na Figura 39.18 (CDC, 2010). Para cada 1.000 mulheres cuja gravidez resulte em nascimento vivo, cerca de 400 não tiveram infecção pelo CMV; das 400, sete serão infectadas na gravidez e duas transmitirão o CMV para o feto. Por outro lado, das 600 que tiveram a infecção antes da gravidez, seis transmitirão a infecção para o feto (infecção secundária). É importante informar que o risco é de apenas 1% e a ocorrência de sequelas definitivas no recém-nascido é pequena. No aspecto global, de cada 1.000 nascimentos vivos, cerca de oito bebês (< 1%) apresentarão infecção congênita, dos quais um a dois (0,1%) mostrarão sequelas definitivas.
Figura 39.16 ■ Impacto da infecção congênita pelo CMV. (CDC, 2010.)
Figura 39.17 ■ Infecção congênita pelo CMV.
Figura 39.18 ■ História natural da infecção congênita pelo CMV.
■ Diagnóstico da infecção materna Não está recomendado o rastreamento universal do CMV no pré-natal (ACOG, 2000; CDC, 2010; SOGC, 2010). O diagnóstico laboratorial na gravidez somente está indicado quando a gestante apresentar sintomatologia semelhante à da mononucleose ou à da influenza, ou sinais ultrassonográficos sugestivos de infecção fetal pelo CMV. A paciente é assintomática em cerca de 80% dos casos de CMV. ▶ Diagnóstico da infecção materna primária. O diagnóstico nessas condições pode ser realizado quando a grávida sabidamente soronegativa apresentar reação positiva para IgG (soroconversão) (Figura 39.19). Como o rastreamento universal para CMV não é realizado na gravidez, a infecção materna primária baseia-se na detecção do anticorpo IgM específico (SOGC, 2010). No entanto, o anticorpo IgM pode ser encontrado em 10% das infecções secundárias, assim como é capaz de permanecer por muitos meses após a infecção primária. O teste de avidez IgG separa uma infecção materna primária recente de uma primária antiga/recorrente. Um índice de baixa avidez é muito sugestivo de infecção primária recente (< 3 a 5 meses). Em suma, o diagnóstico da infecção materna primária recente é feito pela soroconversão ou pelo aparecimento do anticorpo IgM específico associado à baixa avidez IgG. ▶ Diagnóstico da infecção materna antiga. Em mulheres com IgM positivo no primeiro trimestre da gravidez, a alta avidez IgG indica infecção antiga (> 3 a 5 meses) (Figura 39.19). ▶ Diagnóstico sorológico de rotina. Um trabalho recente francês aconselha sorologia materna de rotina na primeira consulta pré-natal para surpreender a infeção preconcepcional (3 semanas antes da última menstruação). Se essa sorologia der negativa, estará indicado novo
exame com 20 semanas.
■ Diagnóstico da infecção fetal Como o risco de infecção intrauterina pelo CMV ocorre em 30% das gestações de mulheres com a infecção primária e em apenas 1% daquelas com infecção secundária, é necessário diagnosticar a transmissão fetal. Os achados ultrassonográficos são importantes, mas não diagnósticos, pois são comuns a outras doenças fetais. Além disso, as alterações sonográficas somente são observadas em não mais de 25% dos fetos infectados (SOGC, 2010). As mais frequentes incluem crescimento intrauterino restrito (CIR) (cerca de 10%), ventriculomegalia, calcificações intracerebrais periventriculares e hepáticas, microcefalia, intestino hiperecogênico (Figura 39.20) e ascite (Tabela 39.5). Contudo, o teste usual para o diagnóstico da infecção fetal pelo CMV é a PCR no líquido amniótico (PCR-LA). Para conseguir boa sensibilidade, a amniocentese deve ser realizada 6 semanas após o início da infecção materna e depois de 21 semanas da gravidez.
Figura 39.19 ■ Diagnóstico da infecção congênita pelo CMV.
Figura 39.20 ■ Imagem ultrassonográfica de intestino hiperecogênico em caso de infecção congênita pelo CMV.
Tabela 39.5 ■ Alterações ultrassonográficas na infecção congênita pelo citomegalovírus. Ventriculomegalia Calcificação periventricular Microcefalia Hipoplasia cerebelar Calcificação hepática Intestino hiperecogênico Oligoidramnia Crescimento intrauterino restrito
Muito embora a amniocentese esteja indicada em casos de infecção materna primária, não há consenso na secundária, por ser pequeno o risco da infecção fetal. Após o diagnóstico da infecção fetal pela amniocentese, a ultrassonografia está indicada a cada 2 semanas para a detecção de anormalidades; neste cenário, 25% dos fetos apresentarão anomalia. A ressonância magnética (RM) será realizada nos casos duvidosos à ultrassonografia. Um trabalho recente francês mostrou que a amniocentese e a ultrassonografia diagnosticaram todos os bebês sintomáticos (sensibilidade e especificidade de 100%). A interrupção da gravidez foi indicada somente nos casos anormais à ultrassonografia.
■ Diagnóstico da infecção no recém-nascido A infecção congênita pelo CMV pode ser diagnosticada se o recém-nascido apresentar o vírus na urina, na saliva, no sangue ou em qualquer outro tecido até 2 a 3 semanas após o nascimento. Se os testes virológicos forem realizados depois desse período, não há como diferenciar a infecção congênita da adquirida após o parto. Como metade das grávidas apresenta anticorpos IgG específicos para o CMV, e eles atravessam a placenta, o achado deles no recém-nascido reflete apenas imunidade passiva. Recém-nascidos saudáveis não devem ser rotineiramente testados para infecção pelo CMV, a menos que a mãe tenha tido infecção primária na gravidez. Em geral, bebês com infecção pelo CMV adquirida após o parto não apresentam problemas, a não ser quando extremamente pré-termo ou de muito baixo peso.
■ Tratamento Constituem normas registradas pelo CDC (2010):
• Nenhum tratamento está indicado para a infecção pelo CMV em pessoas saudáveis • O tratamento antivirótico é prescrito para pacientes imunodeprimidos com infecção pelo CMV potencialmente fatal • Há dados limitados sobre o emprego do ganciclovir em recém-nascidos com infecção congênita pelo CMV com envolvimento do SNC, com o propósito de evitar perda auditiva e outras sequelas neurológicas. O ganciclovir pode apresentar graves efeitos colaterais • Todas as crianças infectadas congenitamente pelo CMV devem ser submetidas regularmente a testes auditivos e visuais • Estudos recentes, ainda inconclusivos, sugerem que a administração da globulina hiperimuneCMV a mulheres com infecção primária talvez reduza o risco de infecção congênita.
■ Prevenção da infecção congênita As grávidas podem tomar medidas simples para evitar o contato com a saliva e a urina de crianças e, assim, reduzir o risco de exposição ao CMV e, consequentemente, de transmissão congênita: • Lavar as mãos frequentemente com água e sabão por 20 s, especialmente após: ○ Troca de fraldas ○ Alimentação e limpeza de nariz de bebês ○ Contato com brinquedos infantis • Não compartilhar comida, líquidos ou utensílios de alimentação com bebês pequenos • Não colocar chupetas na boca • Não compartilhar escova de dentes com crianças • Evitar contato com saliva ao beijar uma criança • Limpar brinquedos, qualquer utensílio ou superfície que ficar em contato com urina ou saliva do bebê. Por fim, atendendo à viremia da infecção pelo CMV, aconselha-se que, após a ocorrência de infecção primária, a mulher evite a gravidez por pelo menos 6 meses.
■ Vacinação Não há, até o momento, nenhuma vacina disponível para evitar a infecção pelo CMV. O Instituto de Medicina (IOM) dos EUA estabeleceu como prioridade máxima o desenvolvimento de uma vacina contra o CMV.
■ Herpes simples genital O herpes simples é uma doença infecciosa determinada pelo herpes simplex virus (HSV) com
dois tipos sorologicamente distintos: tipo 1 (HSV-1) e tipo 2 (HSV-2). O HSV-1 é o responsável pela infecção não genital (lábios, face, córnea, mucosa oral), e o HSV-2 está associado à infecção genital (pênis, uretra, vulva, vagina, cérvice, pele das coxas e das nádegas). Depois do episódio de infecção primária genital, com remissão completa, a doença pode recorrer sem qualquer relação com contágio venéreo ulterior (infecção recorrente). Durante os últimos anos, houve ascensão notável na incidência de infecções do aparelho genital por vírus herpético.
■ HSV materno A infecção genital pelo HSV é mais comum com o HSV-2 (90%), mas a doença genital pelo HSV-1 está aumentando de frequência (10 para 20%). ▶ Incidência. Aproximadamente 1/5 a 1/3 das mulheres em idade de conceber são sorologicamente negativas para HSV-1 e HSV-2 e a chance de adquirem qualquer um dos vírus durante a gestação está estimada em quase 4%. Dentre mulheres com HSV genital recorrente, aproximadamente 75% podem apresentar pelo menos um episódio de infecção na gravidez e em torno de 15% dessas pacientes exibirão recorrência clínica ou pródromos (dor/queimação vulvar) no momento do parto (ACOG, 2007). ▶ Terminologia da infecção materna. Quando um indivíduo sem anticorpo HSV-1 ou HSV-2 adquire qualquer um dos vírus no sistema genital, é estabelecida uma infecção primária primeiro episódio. Se a pessoa com anticorpo HSV-1 preexistente adquire infecção genital HSV-2 (ou vice-versa), ocorre a infecção não primária primeiro episódio. A reativação do vírus e a sua translocação para a pele e mucosas produzem a infecção recorrente. A diferenciação por sorologia e por PCR/cultura da lesão genital, entre esses três tipos clínicos, é possível e complexa, mas foge ao escopo do capítulo. Ainda, a infecção genital HSV pode ser clinicamente aparente (p. ex., lesões genitais) ou inaparente (assintomática ou subclínica), localizando-se o vírus na cérvice uterina. Cerca de 2/3 das mulheres que adquirem o herpes genital durante a gravidez permanecem assintomáticas. Isso é consistente com o achado de que 60 a 80% das mulheres cujos bebês foram infectados pelo HSV não apresentam qualquer lesão durante o parto, nem referem história de herpes genital. A transmissão para o recém-nascido ocorre com qualquer tipo de infecção materna, mas, certamente, com taxas individualizadas que serão mostradas a seguir. ▶ Tratamento. O tratamento da lesão herpética na gravidez é feito com aciclovir em esquemas mostrados na Tabela 39.6 (ACOG, 2007).
■ Infecção neonatal ▶ Tipos. A infecção HSV do recém-nascido pode ser adquirida de três maneiras: intrauterina, intraparto (paranatal) ou pós-natal.
A época da transmissão na gravidez na maioria dos casos, cerca de 85%, ocorre durante o parto. Cifra adicional de 10% dos recém-nascidos adquire HSV-1 pós-natal da mãe ou de qualquer outro contato e, finalmente, 5% são infectados pelo HSV-1/HSV-2 in utero. As manifestações da infecção congênita intrauterina são muito graves e incluem microcefalia, hepatoesplenomegalia, CIR e natimortalidade. ▶ Riscos. Bebês nascidos de mães que apresentam infecção primária genital de HSV próxima do termo e estejam eliminando o vírus no momento do parto apresentam risco 10 a 30 vezes maior de desenvolverem a doença em comparação com aqueles de mães com infecção recorrente, apesar de também estarem eliminando o vírus no parto. Isso se deve, em parte, à significativa transferência de anticorpos protetores maternos a partir do sétimo mês de gravidez. A incidência de herpes neonatal varia conforme o tipo de infecção materna (Figura 39.21): 57% na mulher com infecção primária primeiro episódio; 25% naquelas com infecção não primária primeiro episódio; 2% naquelas com infecção recorrente. ▶ Tipos clínicos. O diagnóstico da infecção herpética neonatal pode ser realizado levandose em conta o quadro clínico e/ou a cultura positiva, presentes 48 h após o parto. A infecção HSV adquirida intraparto ou pós-natal pode assumir três tipos clínicos (Figura 39.22): • Disseminado: envolvimento de múltiplos órgãos (pulmão, fígado, suprarrenal, pele, olhos, cérebro) (presente em 25% dos casos) • Herpes do SNC (30% dos casos) • Localizado (SEM): pele, olhos e boca (45% dos casos). Esta classificação é preditiva de morbidade e de mortalidade: no tipo disseminado, a mortalidade é de 30%, mesmo com o uso do antiviral. Em geral, aproximadamente 50% de todos os bebês com HSV neonatal têm envolvimento do SNC, e cerca de 70% mostram lesões vesiculares características na pele.
Tabela 39.6 ■ Doses recomendadas da medicação antiviral para o herpes na gravidez. Indicação
Aciclovir
Infecção primária
400 mg oral, 3/dia, por 7 a 10 dias
Infecção recorrente sintomática
400 mg oral, 3/dia, por 5 dias, ou 800 mg oral, 2/dia, por 5 dias
Supressiva
400 mg oral, 3/dia, a partir de 36 semanas até o parto
Doença grave ou disseminada
5 a 10 mg/kg IV, cada 8 h por 2 a 7 dias; depois, terapia oral para infecção primária, até completar 10 dias
Adaptada de ACOG, 2007.
Figura 39.21 ■ Incidência de herpes neonatal de acordo com o tipo clínico materno.
▶ Procedimentos invasivos. Em mulheres com história de HSV recorrente, estarão contraindicados os eletrodos no escalpo e a microanálise do sangue fetal (SOGC, 2008). Ao contrário, é possível realizar procedimentos transabdominais invasivos (tais como a biopsia de vilo corial, amniocentese e cordocentese), mesmo se houver lesões genitais. ▶ Prevenção. Em mulheres com lesão genital ativa, a cesárea pode reduzir o risco de o bebê adquirir a infecção pelo HSV. A cesárea está indicada em mulheres que apresentaram a infecção primária com lesão ativa/pródromos no momento do parto ou que referem no terceiro trimestre da gravidez, e será realizada até 4 h após a ruptura das membranas (ACOG, 2007; SOGC, 2008) (Figura 39.23). Para as mulheres com diagnóstico prévio de herpes genital (infecção recorrente), a cesárea para evitar a infecção neonatal pelo HSV somente estará indicada se houver lesão genital no momento do parto. Se não houver lesão, poderá ser permitido o parto vaginal se a mulher fez uso oral de aciclovir, a partir de 36 semanas da gravidez, por pelo menos 4 semanas, para suprimir o aparecimento da lesão genital ativa ou a eliminação do vírus na época do parto (ACOG, 2007) (Tabela 39.6).
Figura 39.22 ■ Tipos clínicos do herpes neonatal.
Figura 39.23 ■ Prevenção do herpes neonatal.
▶ Tratamento. O tratamento do recém-nascido de risco assintomático e do sintomático é feito com aciclovir em esquemas que dependem da gravidade do caso. A mortalidade no tipo disseminado sem tratamento é de 85%, caindo para cerca de 30% com o uso de aciclovir; na forma neurológica, essas taxas são, respectivamente, de 50% e 6%.
■ Varicela-zóster A varicela-zóster (VZ) é uma virose causada pelo vírus varicela-zóster (VVZ), vírus DNA da família dos herpes-vírus. O VVZ no organismo causa a varicela ou catapora (infecção primária) e o herpes-zóster (infecção recorrente). A varicela é de grande importância na gravidez, pois acomete a mãe, o feto e o recém-nascido. O herpes-zóster, embora bastante doloroso, e por vezes debilitante em indivíduos imunodeprimidos, por estar associado a anticorpos contra o VVZ, não afeta o feto. A varicela-zóster não é comum na gravidez; 2 a 3:1.000 gestações no Canadá, mas a morbiletalidade materna e fetal é muito importante (SOGC, 2012).
■ A doença A varicela é caracterizada por febre, mal-estar, exantema maculopapular pruriginoso, que evolui para vesícula, pústula e, finalmente, crosta (após 5 dias do início do exantema). O contágio ocorre 48 h antes do exantema até a formação da crosta e se dá pelas gotículas respiratórias (fômites) e pelo contato pessoal com o fluido vesicular. Considera-se exposição significativa o contato direto por 1 h ou mais com uma pessoa infectada. Após a infecção primária, o vírus pode permanecer adormecido no gânglio das raízes de nervos sensoriais, mas pode ser reativado, causando herpes-zóster, exantema vesicular na pele,
doloroso, limitado ao dermátomo.
■ Varicela-zóster materna A taxa de mortalidade da catapora aumenta com a idade. Assim, no adulto, ela está associada a mortalidade 15 vezes maior que na criança. A varicela na gravidez pode determinar grave morbidade e mortalidade materna: pneumonia em 10% dos casos, com SARA necessitando frequentemente de ventilação assistida. Nesses casos, a mortalidade é de 20 a 45%, e mesmo com o tratamento antiviral pode chegar a 3 a 14% (RCOG, 2007) (Figura 39.24). A mortalidade materna é particularmente privativa do terceiro trimestre, muito provavelmente em virtude da elevação do diafragma pelo útero grávido, o que ocasiona diminuição da capacidade residual funcional.
■ Varicela-zóster fetal Os efeitos fetais da varicela podem se manifestar pela varicela congênita (síndrome varicélica fetal) ou varicela neonatal, infecção varicélica dentro dos primeiros 10 dias de vida. ▶ Varicela congênita. A varicela materna durante as primeiras 20 semanas da gestação pode causar malformações fetais pela infecção transplacentária, com sequelas graves no feto, tais como atrofia cerebral cortical, retardamento mental e anormalidades dos membros, representadas especialmente por redução parcial.
Figura 39.24 ■ História natural da varicela-zóster (VZ) na gravidez.
O risco de transmissão fetal é de 0,7% no primeiro trimestre, 2% no segundo e 0% no terceiro (SOGC, 2012). Na maioria das casuísticas, não há relato de varicela congênita caso a infecção materna tenha ocorrido entre 20 e 28 semanas da gravidez, embora há quem considere a possibilidade (RCOG, 2007). O diagnóstico da infecção fetal pode ser feito por PCR-LA, com as restrições impostas às outras viroses, e por ultrassonografia (RCOG, 2007). A ultrassonografia pode mostrar
deformidade dos membros, microcefalia, hidrocefalia e CIR. PCR-LA positivo e ultrassonografia normal, no morfológico de 20 a 24 semanas, atestam ausência de malformações (RCOG, 2007). ▶ Varicela neonatal. A exposição da criança ao vírus no período perinatal constitui séria ameaça ao recém-nascido, que pode desenvolver infecção fulminante. A varicela neonatal ocorre, particularmente, quando os sintomas da infecção materna manifestam-se a menos de 5 dias antes do parto e 2 dias após (janela dos 7 dias). Esse período se correlaciona com o início da produção de IgG materno e, por isso, não há tempo para a passagem transplacentária desses anticorpos e consequente imunização passiva do feto/recém-nascido. Nessas condições, a varicela neonatal ocorre em 17 a 30% dos casos, com mortalidade de 30%. ▶ Zóster infantil. Há relato de que a varicela materna após 20 semanas da gestação possa determinar o zóster infantil no primeiro ou no segundo ano de vida.
■ Tratamento ▶ Vacina. A vacina tetraviral (SCRV) – sarampo/caxumba/rubéola/varicela – deve ser dada na criança de 1 ano e a segunda dose com 4 anos de idade (Calendário vacinal do SUS, 2013). A vacina varicélica é produzida com vírus vivo atenuado e, por isso, está contraindicada na gravidez. No entanto, se administrada inadvertidamente, não há indicação para a interrupção. Grávidas suscetíveis no pós-parto recebem duas doses espaçadas de 6 a 8 semanas, e deverão esperar 3 meses para nova gravidez. Não há contraindicação para o uso da vacina durante a amamentação. ▶ Imunoglobulina varicela-zóster (IGVZ). A IGVZ é importante estratégia para evitar a infecção materna em grávidas suscetíveis que tiveram contato com a varicela. Para ser eficaz, a IGVZ deve ser administrada até 72 a 96 h da exposição e a sua proteção é de 3 semanas. Mesmo para a mãe que desenvolve a varicela, a IGVZ parece determinar algum grau de proteção para o feto. A dose é de 125 U/10 kg IM, respeitando a dose máxima de 625 U. ▶ Aciclovir. O aciclovir oral deve ser utilizado dentro de 24 h do início do exantema, na dose de 800 mg 5/dia, durante 7 dias; não deve ser usado como profilático (SOGC, 2012). Na pneumonia, encefalite, infecção disseminada, utilizar o aciclovir IV na dose de 10 mg/kg, infudido em 1 h, a cada 8 h. ▶ Parto. Há restrições quanto ao uso da anestesia geral para a cesárea (pneumonia) e da raquianestesia (contaminação) (RCOG, 2007). O melhor seria administrar a peridural, que não penetra a dura-máter, procurando escolher, para o local da punção, área livre de lesões cutâneas. ▶ Recém-nascido. Está indicada a profilaxia IGVZ em recém-nascidos assintomáticos, cujas mães tiveram varicela no período perinatal (5 dias antes e 2 dias depois do parto). A varicela neonatal deve ser tratada prontamente com o aciclovir IV. A Figura 39.25 procura sintetizar o que foi descrito para o tratamento da varicela na mãe e no recém-nascido.
Figura 39.25 ■ Tratamento da varicela-zóster (VZ) na gravidez. (SOGC, 2012.)
■ Pontos-chave Constituem sorologias obrigatórias na primeira consulta pré-natal: toxoplasmose, HIV, VDRL, HBsAg. A sorologia para rubéola não é mais compulsória na gestação. A infecção por rubéola nas 16 primeiras semanas da gravidez determina infecção congênita em > 90% dos casos – entre 16 e 20 semanas, é desprezível (< 1%); e após 20 semanas, inexistente. Feito o diagnóstico laboratorial da toxoplasmose na grávida, o tratamento com espiramicina deve ser iniciado prontamente, a fim de evitar a infecção fetal. Confirmada a infecção fetal para toxoplasmose (PCR-LA), o tratamento será feito com pirimetamina/sulfadiazina, alternando com a espiramicina. Após o parto, todos os recém-nascidos devem ser vacinados para hepatite B; aqueles nas quais a grávida era positiva para HBsAg ainda receberão a imunoglobulina contra hepatite B. A transmissão vertical do HIV está praticamente prevenida (< 1%) com o uso de TARV, cesárea e proibição da amamentação natural. A profilaxia antibiótica intraparto (PAI) para GBS deve ser feita em todas as mulheres com cultura positiva (35 a 37 semanas) ou com fatores de risco. Toda grávida deve ser vacinada contra a gripe, estando também indicada a vacina DTPa (difteria, tétano, pertússis). Na gravidez, há aumento na gravidade de algumas infecções, como: influenza, hepatite E, herpes simples e malária.
■ A. Câncer Genital ■ Mama ■ Colo
■ B. Indicações da Cirurgia Não Obstétrica ■ Apendicite ■ Colecistite ■ Miomas ■ Massas anexiais ■ Diretrizes e Recomendações da Society of American Gastrointestinal Endoscopic Surgeons (SAGES, 2009)
A. Câncer Genital A incidência de todos os tipos de câncer na gravidez é de 0,02 a 0,1% das gestações e vem crescendo com o aumento da concepção em mulheres mais idosas. Os cânceres mais comuns diagnosticados são os de mama, colo e tireoide. A transmissão do câncer materno ao feto e à placenta é excepcional, todavia, possível. No câncer de mama, metástases para a placenta são raras e para o feto nunca foram encontradas. Há registro de apenas 1 caso de carcinoma do colo com metástases ao concepto e invasão da placenta.
■ Mama O câncer de mama associado à gravidez é aquele diagnosticado durante a gestação ou no 1o ano do pós-parto. É o tumor maligno mais frequente na gravidez e sua incidência está estimada em 1:3.000 gestações [National Cancer Institute (NCI), 2011]. Mulheres com mais de 35 anos estão com o risco acrescido, e na medida em que tem se tornado mais frequente a gravidez na população com essa faixa etária, a incidência de câncer de mama na gestação tende a se elevar.
■ Diagnóstico O diagnóstico do câncer de mama na gravidez está dificultado em face das modificações fisiológicas que ocorrem na mama gravídica, vale dizer, hipertrofia, ingurgitamento, nodularidade e descarga mamilar. Em função dessas alterações fisiológicas, há retardo no diagnóstico, de modo que a identificação do câncer de mama na gravidez tende a ser realizada em estágios mais avançados, piorando o prognóstico. A apresentação típica do câncer de mama na gravidez é a de massa palpável indolor. A existência de massa palpável indolor por mais de 2 semanas faz com que se necessite complementar a investigação por exames de imagem e biopsia, embora cerca de 80% das massas mamárias na gravidez sejam benignas. Ultrassonografia e mamografia são exames complementares no diagnóstico do câncer de mama na gravidez, e é razoável iniciar a avaliação pela ultrassonografia; se houver suspeita de malignidade, deve-se prosseguir com a mamografia (Figura 40.1). A ultrassonografia 3D é notável para o diagnóstico do câncer de mama e a mamografia realizada com proteção do abdome expõe o feto a níveis mínimos de radiação, cerca de 0,4 mrad, muito inferior ao nível de 5 rad associado à malformação fetal.
Figura 40.1 ■ Diagnóstico do câncer de mama na gravidez. US, ultrassonografia.
A core biopsia conduzida pela ultrassonografia, e sob anestesia local, é a técnica preferida para o diagnóstico histológico.
■ Estadiamento Uma vez diagnosticado o câncer de mama, deve ser realizado o estadiamento completo, procurando expor o feto ao mínimo de radiação. A metástase do câncer de mama ocorre com maior frequência para os pulmões, fígado e ossos. Para a pesquisa de metástases estão indicados: radiografia de tórax, ultrassonografia do fígado e ressonância magnética (RM) óssea sem contraste.
■ Tratamento A cirurgia pode ser realizada em qualquer época da gestação (Figura 40.2). Como a gravidez é fator de risco para trombose – à parte da doença maligna – está indicada a tromboprofilaxia com a heparina de baixo peso molecular na cirurgia da mama. A quimioterapia deve ser efetuada após 14 semanas para evitar as malformações fetais (com preferência para as antraciclinas). A quimioterapia não deve ser realizada após 35 semanas ou dentro de 3 semanas do parto indicado, para evitar problemas associados à mielossupressão na mãe e no feto, assim como o acúmulo da substância no recém-nascido. A radioterapia é reservada para depois do parto. As indicações para o abortamento terapêutico são excepcionais, pois a interrupção da gravidez não melhora o prognóstico. O parto deve ser indicado para ≥ 37 semanas de gestação.
■ Estádios I e II São tumores operáveis. A mastectomia radical modificada é a terapia de escolha. A ressecção segmentária com dissecção axilar será restrita aos tumores de até 4 cm e
diagnosticados próximo ao termo, com radioterapia no pós-parto. Estudo de linfonodo sentinela pode ser indicado quando a axila for clinicamente negativa (não use o corante azul). A quimioterapia adjuvante, nas pacientes com linfonodos comprometidos, pode ser iniciada após 14 semanas.
■ Estádios III e IV São tumores localmente avançados ou doença sistêmica metastática. O tratamento inicial é clínico, com quimioterapia neoadjuvante. A escolha da cirurgia, mastectomia higiênica ou tumorectomia, depende da resposta ao tratamento clínico. A radioterapia deve ser reservada para o pós-parto.
Figura 40.2 ■ Tratamento do câncer de mama na gravidez.
■ Prognóstico Os resultados adversos não dependem propriamente da gravidez, mas do diagnóstico tardio, quando o câncer já se apresenta em estágios mais avançados. A idade da paciente > 35 anos é
outro fator de mau prognóstico. As grávidas com câncer de mama devem ser consideradas de alto risco. A incidência de parto pré-termo e de crescimento intrauterino restrito (CIR) está elevada, especialmente nos casos avançados e metastáticos (estádios III e IV).
■ Lactação Não há evidências de que a inibição da lactação melhore o prognóstico, mas há uma tendência para que ela seja suprimida. A inibição da lactação é obrigatória em 2 situações: nos casos de cirurgia de mama no período puerperal e quando são administrados quimioterápicos, que podem passar para o leite e causar neutropenia no recém-nascido.
■ Fertilidade e gravidez subsequente O efeito da quimioterapia na função ovariana é similar ao da radioterapia, e a probabilidade de insuficiência ovariana permanente é proporcional à dose acumulativa e à idade da paciente. As jovens têm menor tendência à insuficiência ovariana. Embora uma gestação subsequente não altere o prognóstico, recomenda-se que as pacientes evitem nova gravidez por 3 a 5 anos. O maior risco de recidiva ocorre nos 2 primeiros anos, e a recorrência do câncer em uma nova gestação seria uma dificuldade a mais para o tratamento.
■ Colo ■ Neoplasias intraepiteliais cervicais As neoplasias intraepiteliais cervicais (NIC) são alterações do processo de maturação do epitélio, com diferentes graus de gravidade, dependendo da proporção de células imaturas atípicas e da espessura de epitélio acometida. A incidência de NIC na gravidez varia entre 1,3 a 2,7:1.000 gestações. O tempo de evolução da NIC para o carcinoma invasor é tradicionalmente estimado entre 10 e 15 anos. Para o diagnóstico da NIC são utilizados citologia, colposcopia e exame histopatológico (biopsia).
■ Classificação citológica A terminologia da citologia cervical pelo Sistema Bethesda – 2001 é demonstrada na Tabela 40.1.
■ Classificação histopatológica As classificações histopatológicas das NIC são apresentadas na Tabela 40.2.
Tabela 40.1 ■ Terminologia da citologia cervical pelo Sistema Bethesda – 2001. Negativo para lesões intraepiteliais ou malignidade Célula escamosa • ASC-US: células escamosas atípicas de significado indeterminado • ASC-H: células escamosas atípicas que não podem excluir lesão de alto grau (HSIL) • LSIL: lesão escamosa intraepitelial de baixo grau (engloba papilomavírus humano, displasia leve e NIC 1) • HSIL: lesão escamosa intraepitelial de alto grau (engloba displasia moderada/grave, NIC 2,3 e carcinoma in situ) • Carcinoma de célula escamosa Célula glandular • AGC: células glandulares atípicas • AIS: adenocarcinoma endocervical in situ • Adenocarcinoma
Tabela 40.2 ■ Classificação das neoplasias intraepiteliais cervicais (NIC). Tipo de neoplasia
Classificação
Características
NIC 1
Lesão de baixo grau
Displasia leve comprometendo o terço profundo do epitélio
NIC 2
Lesão de alto grau
Displasia moderada atingindo os dois terços profundos do epitélio
NIC 3
Lesão de alto grau
Displasia grave/Carcinoma in situ abrangendo todo o epitélio
■ Evolução As lesões da célula escamosa representam a maioria dos casos de câncer de colo, com 2 estágios: LSIL, indicando microscopicamente a evidência de infecção aguda pelo papilomavírus humano (HPV); e HSIL, indicando pré-câncer ou câncer. Histologicamente, a HSIL correlacionase à NIC 3 e a muitos casos de NIC 2.
■ Conduta na gravidez As grávidas com o resultado ASC-US e LSIL devem ser avaliadas com 6 semanas de pós-parto (Figura 40.3). Os resultados ASC-H e HSIL obrigam à realização da colposcopia e da biopsia dirigida na gravidez (a curetagem endocervical está proibida). Se o resultado da biopsia for NIC 1, indica-se a colposcopia com 6 semanas de pós-parto; se for NIC 2 e 3, aponta para a realização da colposcopia e da citologia a cada 12 semanas. A conização de alta frequência (CAF) no 2o trimestre da gravidez (época ideal entre 14 e 20 semanas) só estaria indicada em caso de suspeita de microinvasão, geralmente suscitada pela colposcopia [American Society for Colposcopy and Cervical Pathology (ASCCP), 2009].
Figura 40.3 ■ Rastreamento da neoplasia intraepitelial cervical (NIC) na gravidez. *Curetagem endocervical proibida; NIC 1, lesão de baixo grau; NIC 2,3, lesão de alto grau; ASC-US, células escamosas atípicas de significado indeterminado; ASC-H, células escamosas atípicas que não podem excluir lesão de alto grau; LSIL, lesão escamosa intraepitelial de baixo grau; HSIL, lesão escamosa intraepitelial de alto grau; CAF, conização de alta frequência.
As NIC não são tratadas na gravidez e o parto deve ser vaginal. Das NIC 2 e 3, 50 a 70% regridem durante o curso da gestação, devendo ser reavaliadas pela colposcopia com 6 semanas de pós-parto (ASCCP, 2009). As NIC 2 e 3 persistentes devem ser tratadas pela CAF.
■ Câncer cervical O câncer de colo, o mais prevalente dos tumores genitais em países em desenvolvimento, é o 3o mais comum nos Estados Unidos. O câncer do colo é o 2o tumor maligno mais frequente na gravidez, com incidência estimada entre 0,1 e 12:10.000 gestações. Felizmente a taxa de sobrevida para a grávida com o câncer de colo invasivo é elevada, cerca de 80%. Virtualmente, todos os casos de câncer do colo são causados por infecção persistente por cerca de uma dúzia de genótipos HPV carcinogênicos. O HPV-16 é o tipo mais carcinogênico, representando cerca da metade dos casos de câncer do colo. O HPV-18, relacionado com muitos casos de adenocarcinoma endocervical, é o 2o mais carcinogênico, representando quase 15% de todos os casos de câncer do colo.
■ Rastreamento O rastreamento do câncer de colo na grávida deve seguir as mesmas diretrizes existentes fora
da gravidez e compreende a citologia cervical e o coteste HPV (Tabela 40.3).
■ Diagnóstico Após o teste de Shiller, as biopsias dirigidas por colposcopia na junção escamocolunar, em zonas iodo-negativas, podem ser realizadas, mas sangram mais na gravidez. Não procede a curetagem endocervical.
■ Estadiamento A avaliação do estado evolutivo da doença é o passo seguinte ao diagnóstco histopatológico e, uma vez definido o estágio clínico, este não deve ser mudado depois de iniciado o tratamento (Tabela 40.4). A RM é o método de imagem escolhido, assim como a linfadenectomia laparoscópica para a avaliação dos linfonodos pélvicos.
Tabela 40.3 ■ Diretrizes para o rastreamento do câncer do colo. Grupo etário
Rastreamento
< 21 anos
Sem rastreamento
21 a 29 anos
Citologia isolada a cada 3 anos
30 a 65 anos
Citologia e coteste de papilomavírus humano a cada 5 anos (preferência) ou citologia isolada a cada 3 anos (aceitável)
> 65 anos
Descontinuar o rastreamento (regra geral)
American Cancer Society (ACS), American Society for Colposcopy and Cervical Pathology (ASCCP), American Society for Clinical Pathology (ASCP), American College for Obstetricians and Gynecologists (ACOG) e US Preventive Services Task Force (USPSTF), 2012.
Tabela 40.4 ■ Estadiamento simplificado do câncer do colo do útero. Estádio 0: carcinoma in situ, carcinoma intraepitelial Estádio I: carcinoma restrito ao colo do útero • I a1: invasão até 3 mm em profundidade e extensão de até 7 mm • I a2: invasão entre 3 e 5 mm de profundidade e extensão de até 7 mm Estádio II: envolvimento da vagina (exceção do terço inferior) ou envolvimento dos paramétrios sem atingir a parede pélvica • II a: invasão da vagina, sem atingir seu terço inferior, e ausência de comprometimento parametrial • II b: invasão de um ou ambos paramétrios, mas sem alcançar a parede pélvica Estádio III: envolvimento do terço inferior da vagina ou extensão à parede pélvica; todos os casos de hidronefrose ou rim não funcionante devem ser incluídos, mesmo que atribuíveis a outras causas Estádio IV: extensão à bexiga ou ao reto, ou metástase a distância
Fédération Internationale de Gynécologie et d’Obstétrique (FIGO), 1995.
■ Tratamento O tratamento depende do estágio do câncer, da idade da gravidez e do desejo da paciente. ▶ Carcinoma microinvasivo ≤ 3 mm (estádio Ia1). Pacientes no estádio Ia1, diagnosticado por CAF com margens livres e sem evidência de envolvimento linfovascular, podem ser consideradas tratadas pela própria conização, e devem ser acompanhadas pelo restante da gravidez por colposcopias realizadas a cada 4 semanas. O ideal é que a CAF seja praticada entre 14 e 20 semanas da gestação. O parto deve ser vaginal e o caso, reavaliado com 6 semanas de pós-parto. ▶ Câncer invasivo. Esse tipo de câncer pode ser classificado em: • Câncer operável (estádios Ia2 e IIa): na gestação de mais de 20 semanas, o tratamento é o Werthein-Meigs com o útero cheio ou após esvaziamento por histerotomia (Figura 40.4). O tratamento conservador seria uma opção para aquelas que querem preservar a gravidez e os linfonodos forem negativos – CAF ou traquelectomia simples sem parametrectomia. Depois de 20 semanas, deve-se aguardar a viabilidade fetal e proceder a histerectomia-cesárea radical • Câncer inoperável (estádios IIb-IV): antes de 20 semanas está indicada a quimiorradioterapia que causa o abortamento. No pós-parto, quimiorradioterapia e braquiterapia (Figura 40.4). Se a gestação tiver mais de 20 semanas, deve-se aguardar a viabilidade fetal e realizar a cesárea com o tratamento habitual no pós-parto.
Figura 40.4 ■ Tratamento do câncer de colo invasivo.
■ Quimioterapia Agentes quimioterápicos para tratamento do câncer utilizados na gravidez são teratogênicos e não devem ser administrados no 1o trimestre, pois ainda podem determinar abortamento e morte fetal. A exposição a citotóxicos durante o 1o trimestre tem sido associada a risco de 10 a 20% de malformações maiores. No 2o e no 3o trimestre não estão associados a malformações, mas sim a natimortalidade, CIR e toxicidade fetal [Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), 2013]. Próximo do termo, talvez seja melhor adiar a quimioterapia para o pós-parto. Utilizada a quimioterapia, o parto deve ser postergado em cerca de 3 semanas após o tratamento, a fim de possibilitar a recuperação da medula óssea da mãe e do feto. Na lactante, o uso de quimioterápicos também é problemático porque quase todos são excretados no leite. Finalmente, quando estiver em jogo o uso de quimioterápico para o tratamento do câncer na gravidez, é importante avaliar riscos e os benefícios e discutir cada caso individualmente.
B. Indicações da Cirurgia Não Obstétrica Estão limitadas, pelo geral, às síndromes abdominais agudas, pois as operações eletivas foram afastadas, consenso geral, pelos possíveis danos ao concepto. Apendicite e colecistite constituem os problemas cirúrgicos mais comuns nas pacientes grávidas. Nesses casos é importante não retardar o diagnóstico e escolher a conduta adequada. Os acidentes sofridos pela gestante são um assunto à parte, cuja prevalência é ascensional em todo o mundo e exige quase sempre intervenção médica de urgência. Nos Estados Unidos estimase haver, anualmente, 200.000 acidentes e lesões sofridas por gestantes, o que se reflete, expressivamente, na mortalidade materna.
■ Apendicite Na gravidez a apendicite aguda tem a mesma incidência da referida na população geral; mas a apendicetomia é a 1a causa (25%) de cirurgia não obstétrica na gravidez, incidindo em 1:1.000 a 1.500 gestações. O diagnóstico é dificultado pelos seguintes fatores: • Anorexia, náuseas e vômitos são comuns no 1o trimestre • A síndrome dolorosa, na fossa ilíaca direita, não é bem caracterizada em decorrência da migração experimentada pelo apêndice, deslocado de suas relações anatômicas, e acompanhando a ascensão do útero gravídico, especialmente no 3o trimestre (Figura 40.5). Além disso, a defesa abdominal pode ser prejudicada pelo relaxamento da musculatura • Algum grau de leucocitose é a regra na gestação normal • Durante a gravidez, outras doenças podem ser confundidas com apendicite, por sua maior
incidência (pielonefrite, litíase renal, degeneração miomatosa) ou quando específicas da gestação (gravidez ectópica, descolamento prematuro da placenta, ruptura uterina). No caso de dor na fossa ilíaca direita, a ultrassonografia é útil ao diagnóstico, mostrando o espessamento do apêndice (diâmetro externo de 6 a 7 mm) [American College of Radiology (ACR), 2013], embora o exame fique prejudicado no 3o trimestre da gravidez, pela dificuldade da insonação compressiva do ceco. A tomografia computadorizada (TC) é o padrão-ouro para o diagnóstico da apendicite, mas por expor o feto à radiação, seu uso é restrito.
Figura 40.5 ■ Diversas posições do apêndice, deslocado para cima com o crescimento uterino.
Foram registrados em 2 artigos recentes (2009, 2013) excelentes resultados com a utilização de RM para o diagnóstico de apendicite na gravidez (diâmetro externo > 7 mm) quando o resultado pela ultrassonografia foi inconclusivo, reduzindo significativamente a taxa de laparotomia branca, sem elevar o risco de perfuração. Em pacientes sem apendicite aguda, a taxa de visualização de apêndice normal é muito maior com a RM (87%) do que com a ultrassonografia (< 2%), evitando a laparotomia desnecessária. A acurácia dos 2 procedimentos no diagnóstico da apendicite aguda na gravidez pode ser vista na Tabela 40.5. A apendicite aumenta a frequência de abortamento e de parto pré-termo, especialmente se a peritonite instala-se depois da perfuração do apêndice. A despeito do uso de antibióticos, a apendicite perfurada é uma complicação importante na gravidez, com perdas fetais em torno de 10% nas séries recentes. A apendicectomia laparoscópica tem sido considerada o padrão-ouro no tratamento da grávida.
■ Colecistite
Em decorrência das modificações gravídicas, a vesícula apresenta-se hipotônica, dilatada e com bile viscosa (lama biliar). Embora a grávida tenha predisposição a calculo biliar (1 a 3%), a colecistite é rara na gestação (0,1%). A colecistectomia é a 2a principal causa de cirurgia não obstétrica, com registros de 1:1.600 a 10.000 gestações. A ultrassonografia é um excelente método diagnóstico e a colecistectomia laparoscópica é o tratamento de escolha para a colecistite em qualquer trimestre da gravidez, sabendo-se que a postergação da cirurgia é agravante para o prognóstico materno.
■ Miomas São os tumores mais comumente associados à gravidez. Sua incidência varia entre 2 e 3%. O local e o tamanho do mioma têm grande valor prognóstico. Aproximadamente 10 a 30% dos miomas na gravidez desenvolvem complicações. Cerca de 20 a 30% aumentam durante a gravidez, especialmente no 1o trimestre, e os mais volumosos experimentam tendência a sofrer degeneração vermelha, que ocorre em 10% dos casos. Miomas submucosos predispõem ao abortamento e ao parto pré-termo; os cervicais podem obstruir o canal do parto (tumor prévio), impedindo o parto vaginal. Os miomas subserosos pediculados podem sofrer torção. É maior a incidência de descolamento prematuro da placenta, placenta prévia, cesárea, retenção da placenta e hemorragia pós-parto.
Tabela 40.5 ■ Acurácia diagnóstica da ultrassonografia (US) e da ressonância magnética (RM) no diagnóstico da apendicite aguda na gravidez. Exame
Sensibilidade (%)
Especifidade (%)
Valor preditivo positivo (%)
Valor preditivo negativo (%)
US
36
99
83
93
RM
100
93
61
100
Adaptada de Pedrosa et al., 2009.
A ultrassonografia é importante para embasar o diagnóstico. O tratamento do mioma na gravidez é essencialmente conservador, mesmo no mioma com degeneração: analgésicos, anti-inflamatórios, uterolíticos. Quadro abdominal agudo (dor intratável) decorrente de degeneração acentuada com necrose, infecção ou torção torna obrigatória a cirurgia. Os tumores prévios não indicam cirurgia eletiva. Sendo o parto vaginal impedido, deve-se realizar a cesárea, no termo da gravidez. A miomectomia eletiva ao tempo da operação cesariana é formalmente contraindicada, a não ser no tumor subseroso pediculado. Mulheres com miomectomia prévia devem ser cesareadas antes do início do parto, particularmente se a cavidade uterina foi invadida.
■ Massas anexiais
A incidência de massas anexiais na gravidez varia entre 1 e 4% dos nascidos vivos. Grande parte dessas massas é < 5 cm e representa o corpo lúteo ou outros cistos funcionais (cisto folicular, cisto hemorrágico), que regridem espontaneamente no 2o trimestre. A taxa de malignidade das massas anexiais é pequena, aproximadamente 5%. O câncer de ovário é o 5o tumor maligno mais frequente na gravidez. A ultrassonografia transvaginal de 1o trimestre inclui obrigatoriamente o exame dos anexos (ovário) [American Institute of Ultrasound in Medicine (AIUM), 2007; ACR, 2007; American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2009; International Society of Ultrasound in Obstetrics and Gynecology (ISUOG), 2013]. A ultrassonografia abdominal de 2o e de 3o trimestre também pode servir ao diagnóstico das massas anexiais. O principal objetivo da ultrassonografia é caracterizar as lesões benignas que podem ser tratadas conservadoramente na gravidez. Todavia, cerca de 10 a 20% de todas as massas anexiais permanecem indefinidas após o exame sonográfico. Nesse cenário, a RM pode desempenhar papel importante em prover informação adicional na caracterização e na origem da massa anexial. O Doppler colorido, ao mostrar vascularização, sugere lesão sólida com risco de malignização e não coágulo sanguíneo (cisto hemorrágico). A ocorrência de ascite em pacientes assintomáticas pode ser sugestiva de metástases e não ruptura hemorrágica ou de lesão cística. Para a condução da massa anexial na gravidez, o 1o passo é caracterizar a lesão como sintomática ou assintomática (Figura 40.6). Para grávidas sintomáticas, a intervenção será imediata, em qualquer época da gravidez – aspiração percutânea ou cirurgia – e tratamento médico. Para grávidas assintomáticas, massas anexiais de < 5 cm, diagnosticadas pela ultrassonografia de 1o trimestre, costumam ser funcionais e regridem espontaneamente. Assim, se a lesão for de cisto simples < 5 cm, consistente com tumoração benigna, o seguimento na gravidez estará concluído. Na grávida assintomática com cisto simples grande > 5 cm ou com lesões caracterizadas como massa complexa, que persistem após 16 semanas, há necessidade de nova avaliação sonográfica.
Figura 40.6 ■ Conduta nas massas anexiais na gravidez. US, ultrassonografia; RM, ressonância magnética. (Adaptada de Glanc et al., 2008.)
Após 16 semanas, cistos simples persistentes podem ser acompanhados conservadoramente (risco < 1% de malignização e de 2% de ruptura ou torsão) (ACOG, 2007). Massas complexas diagnosticadas como endometrioma ou cisto dermoide pela ultrassonografia e confirmadas pela RM são benignas, e também podem ter conduta conservadora na gravidez e ser operadas no pósparto. Por outro lado, as massas complexas suspeitas de malignidade devem ser seguidas por equipe multidisciplinar e a época preferencial para a cirurgia será o 2o trimestre ou o pós-parto. Em resumo, as únicas indicações de cirurgia na gravidez para as lesões ovarianas são as da paciente sintomática e as de massa complexa suspeita de malignidade (Figura 40.6). ▶ Massas anexiais específicas da gravidez. Estão representadas por hiperestimulação
ovariana, luteinização hiperativa, cistos tecaluteínicos e luteoma da gravidez. Na hiperestimulação ovariana, há história de indução da ovulação, especialmente em casos da síndrome do ovário policístico (SOP), e fertilização in vitro (FIV). É uma complicação típica do 1o trimestre da gravidez, com quadro clínico mais ou menos grave, e resolução em semanas. Os ovários aumentados podem predispor à ruptura e à torção. A síndrome de hiperestimulação ovariana representa o tipo grave, com desequilíbrio hidreletrolítico, hipovolemia, hemoconcentração e aumento significativo do peso. Na luteinização hiperativa há sensibilidade aumentada ao hCG, por mutação no receptor FSH (rFSH). Em 60% dos casos, os níveis de hCG estão normais e nos 40% restantes, elevados, como na gravidez gemelar e na hidropisia fetal. A virilização materna ocorre em 15 a 25% dos casos. Pode mimetizar a hiperestimulação ovariana, mas é privativa do 3o trimestre. Os cistos tecaluteínicos constituem resposta normal dos ovários a níveis muito elevados de hCG (≥ 100.000 mU/mℓ), como aqueles na doença trofoblástica gestacional (DTG), principalmente na mola completa. Finalmente, o luteoma da gravidez é um tumor benigno, sólido, raro, específico da gestação. Ao contrário das outras lesões descritas, o luteoma é unilateral. A virilização materna ocorre em 25 a 30% dos casos e a do feto feminino, em 50%. A conduta é conservadora, pois o luteoma regride no pós-parto.
■ Diretrizes e Recomendações da Society of American Gastrointestinal Endoscopic Surgeons (SAGES, 2009) ■ Raios X A dosagem da radiação e a idade da gravidez são fundamentais para avaliar as repercussões fetais. As exposições radiológicas são medidas em unidades: rad ou Grey (1 rad = 1 cGy). Os períodos mais sensíveis à teratogênese são o embriológico (até a 8a semana pós-concepção) e o período fetal até 17 semanas, especialmente no que diz respeito a lesões do sistema nervoso central. Mais tarde na gravidez a preocupação desloca-se da teratogênese para o risco de câncer hematológico na infância. Aceita-se o risco fetal negligível de até 5 rads e a possibilidade de malformação eleva-se significativamente após 15 rads. A dose aceita de radiação ionizante é de 5 a 10 rads durante toda a gravidez, com nenhum exame isolado de raios X excedendo 5 rads. TC de abdome ou da pelve alcança nível de exposição de 2 a 4 rads, abaixo, portanto, do limite máximo recomendado para um único procedimento, que é de 5 rads (ACOG, 2004) (Tabela 40.6).
■ Ultrassonografia, ressonância magnética e medicina nuclear A ultrassonografia e a RM sem uso de gadolínio são procedimentos seguros na gravidez (ACR, 2013). Os exames de medicina nuclear expõem o feto a menos de 0,5 rad, muito abaixo do
limiar de segurança.
Tabela 40.6 ■ Exposição estimada fetal para alguns procedimentos radiodiagnósticos mais comuns. Procedimento
Exposição fetal
Raios X de tórax (duas imagens)
0,02-0,07 mrad
Raios X simples de abdome (uma imagem)
100 mrad
Pielografia intravenosa
≥ 1 rad *
Raios X do quadril (uma imagem)
200 mrad
Mamografia
7-20 mrad
Enema baritado ou seriado de intestino delgado
2-4 rad
Tomografia computadorizada de cabeça ou tórax
< 1 rad
Tomografia computadorizada de abdome e coluna lombar
3,5 rad
Tomografia computadorizada pelvimétrica
250 mrad
*
A exposição depende do número de filmes. (Adaptada de ACOG, 2004.)
■ Laparoscopia A laparoscopia pode ser usada com segurança em qualquer trimestre da gravidez com mínima morbidade para a mãe e o feto, sendo capaz de reduzir o risco da irritabilidade uterina quando comparada à laparotomia e de minimizar a necessidade de manipulação do útero, pois melhora a visualização e diminui a necessidade de narcótico no pós-operatório. Em relação ao acesso, os trocanteres devem ser ajustados à anatomia alterada pelo crescimento uterino (Figura 40.7). O acesso umbilical inicial deve ser alterado para a região subcostal à medida que o útero expandese no 2o e no 3o trimestre. ▶ Posição da paciente. Quando a grávida assume a posição supina, o útero grávido comprime a veia cava inferior, disminuindo o retorno venoso ao coração com redução do débito cardíaco de 10 a 30% e da perfusão placentária. A simples colocação da paciente em decúbito lateral esquerdo desloca o útero da veia cava inferior, melhorando o retorno venoso e o débito cardíaco. ▶ Pneumoperitônio. Na grávida, o diafragma é deslocado para cima pelo crescimento do útero, no que resulta diminuição da capacidade residual funcional. Acresce a isso o maior deslocamento determinado pelo pneumoperitônio, tornando o procedimento laparoscópico mais incômodo para a grávida, que já tem restrição pulmonar fisiológica. No geral, tem sido
implementada pressão de 10 a 15 mmHg durante a laparoscopia, sem aparente prejuízo para a mãe e o feto. ▶ Trombose. O pneumoperitônio pelo CO2 pode aumentar o risco de trombose venosa. Por isso, a profilaxia com aparelhos de compressão pneumática e a deambulação precoce são recomendações obrigatórias. ▶ Monitoramento fetal. O intraoperatório é desnecessário, o pré- e pós-operatório, usuais. ▶ Parto pré-termo. Caso seja provocado pela cirurgia, deve ser tratado com as medidas expostas no Capítulo 28.
Figura 40.7 ■ A. Posição dos trocanteres para a apendicectomia. B. Na gravidez, a colocação e a direção dos cateteres em vista do deslocamento do apêndice. C. Apendicectomia por via laparoscópica. Apêndice em posição habitual.
■ Pontos-chave O câncer de mama é o tumor maligno mais frequente na gravidez (1:3.000 gestações) e vem crescendo na medida em que tem se tornado mais frequente a gravidez em idades mais avançadas.
O diagnóstico do câncer de mama na gravidez está dificultado pelas modificações fisiológicas na glândula mamária. O tratamento cirúrgico do câncer de mama na gravidez deve ser realizado em qualquer época; a quimioterapia pode ser adjuvante após 14 semanas e a radioterapia é reservada para depois do parto. A gravidez, em si, não altera o prognóstico do câncer de mama, apenas dificulta o diagnóstico. As lesões precursoras do câncer do colo do útero são denominadas neoplasia intraepitelial cervical (NIC) e classificadas em NIC 1 (baixo grau) e NIC 2 e 3 (alto grau). Os resultados da citologia cervical ASC-US e LSIL possibilitam a avaliação final por colposcopia com 6 semanas de pós-parto. Os resultados da citologia cervical ASC-H e HSIL obrigam a uma avaliação imediata pela colposcopia e pela biopsia dirigida para excluir o carcinoma cervical invasivo. As displasias do colo uterino (NIC 1, 2 e 3) nunca devem ser tratadas na gravidez; devendo ser reavaliadas com 6 semanas de pós-parto. Cerca de 10 a 30% dos miomas associados à gravidez sofrem complicação: degeneração vermelha, abortamento, parto pré-termo, descolamento prematuro da placenta, placenta prévia, distocia, cesárea, hemorragia pós-parto. As maiores indicações da cirurgia não obstétrica são a apendicectomia (25% do total) e a colecistectomia, ambas tratadas pela laparoscopia.
■ Tipos de anemia nutricional ■ Etiologia ■ Complicações na gravidez ■ Profilaxia e tratamento ■ Anemia macrocítica
A anemia nutricional, caracterizada pela queda anormal das taxas de hemoglobina no sangue, é resultante da deficiência de ferro, vitamina B12 e ácido fólico. Doenças parasitárias (malária, verminoses) e hemoglobinopatias hereditárias (talassemia) estão entre as outras causas de anemia. A incidência de anemia na grávida no mundo todo é de aproximadamente 40%, e em mais de 50% dos casos é por deficiência de ferro. Na Ásia, a anemia é a 2a causa de mortalidade materna – 14% [Organização Mundial da Saúde (OMS), 2006].
■ Tipos de anemia nutricional De acordo com o fator deficiente e responsável pela queda da hemoglobina, a anemia nutricional pode ser classificada em três tipos: • Anemia hipocrômica ferropriva: anemia por deficiência de ferro • Anemia megaloblástica: anemia por deficiência de ácido fólico • Anemia perniciosa: anemia por deficiência de vitamina B12. A anemia ferropriva é a mais comum. A anemia por deficiência de ácido fólico, embora muito frequente na gravidez, em virtude das necessidades aumentadas de folato, tende a ocorrer juntamente com a ferropriva e permanece não diagnosticada. Presume-se que em países em desenvolvimento ocorra em 20 a 25% das grávidas. A anemia por carência de vitamina B12 tem menor prevalência.
■ Etiologia A elevada incidência de anemia nos países em desenvolvimento resulta dos efeitos combinados e aditivos de: • Dieta inadequada • Doenças e infestações recorrentes • Multiparidade e pequeno intervalo interpartal. As necessidades de ferro e de ácido fólico são 6 vezes maiores no último trimestre da gravidez. Essas elevadas demandas de ferro – 1.000 a 1.300 mg por gestação – não podem ser cobertas exclusivamente pela dieta, sendo supridas parcialmente pelas reservas maternas. Como essas costumam ser respostas tão somente fora da gravidez, as mulheres que têm pequenos intervalos entre os partos sofrem de anemias crônicas e progressivas. Quando o nível de ferro da gestante está reduzido, ela não é capaz de sintetizar a hemoglobina. À conta da hemodiluição fisiológica da gravidez, os níveis de hemoglobina que configuram a
anemia são bem mais baixos que os existentes fora da gestação. Assim, a definição de anemia na gravidez recomendada pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) é o valor de hemoglobina < 11 g/dℓ no 1o trimestre da gestação, < 10,5 g/dℓ no 2o trimestre e < 11 g/dℓ no 3o trimestre [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2008]. A anemia por deficiência de ferro é particularmente definida pela hemoglobina < 11 g/dℓ e ferritina < 12 mg/ℓ. Os fatores de risco para a anemia ferropriva incluem dieta pobre em alimentos ricos em ferro (ostra, fígado, carne vermelha, camarão, cereais enriquecidos, feijão, linhaça), carente em facilitadores da absorção de ferro (suco de laranja e de limão, morango, brócolis, pimenta), rica em alimentos que dificultam a absorção de ferro (soja, chocolate, café, chá), distúrbios gastrintestinais, hipermenorreia, pequeno intervalo interpartal e perda sanguínea após o parto normal. Verminoses e malária também são causas expressivas. Estima-se, por exemplo, que na ancilostomose as perdas sanguíneas variem entre 2 e 100 mℓ, diariamente.
■ Complicações na gravidez A anemia reduz a resistência da grávida a infecções, aumenta as taxas de hemorragias ante e pós-parto e de parto pré-termo e eleva o risco de mortalidade materna.
■ Profilaxia e tratamento O ACOG (2008) afirma que uma dieta convencional contém 15 mg de ferro elementar por dia. As necessidades de ferro elementar diárias na gravidez são de 27 mg, quantidade geralmente presente nos suplementos vitamínicos. Por outro lado, a OMS (2007) recomenda 60 mg/dia de ferro elementar na gravidez e o Institute of Medicine [(IOM), 2001], 45 mg/dia. Mas a suplementação dietética no pré-natal é o principal fator profilático, sendo relevante o uso de proteína animal e de vegetais ricos em ferro. O planejamento pré-natal também é importante, espaçando os intervalos interpartais em 2 anos, e até em 3 anos quando a paciente é malnutrida. Os anticoncepcionais orais merecem considerações especiais em anêmicas crônicas, pela prevenção da gravidez e pela redução do sangramento menstrual. Nas grávidas já com anemia, o tratamento deve ser feito com sulfato ferroso, 200 a 400 mg, 3 vezes/dia, via oral; excepcionalmente se administra o ferro por via intravenosa (sacarato de hidróxido de ferro III). O tratamento das verminoses é igualmente importante. Quando a hemoglobina é < 6 a 7 g/dℓ indica-se o concentrado de hemácias.
■ Anemia macrocítica As anemias macrocíticas mais relevantes incluem a por deficiência de folato (anemia megalobástica) e de vitamina B12. A anemia macrocítica está caracterizada por volume corpuscular médio (VCM) > 100 fl. O diagnóstico pode ser confirmado pela avaliação da
concentração sérica de ácido fólico e de vitamina B12. A anemia por deficiência de ácido fólico está associada a dieta pobre em vegetais folhosos frescos, legumes e proteínas animais. Na gravidez, as necessidades de ácido fólico diárias aumentam de 50 para 400 mg. O tratamento é feito com alimentos ricos em ácido fólico e suplementação oral, 1 mg/dia. A anemia macrocítica por deficiência de vitamina B12 (anemia perniciosa) pode ser encontrada em mulheres submetidas à gastrectomia total ou com doença de Crohn. Aquelas gastromizadas podem requerer 1.000 mg de vitamina B12, a intervalos mensais.
■ Pontos-chave A incidência de anemia na gravidez é de aproximadamente 40%, e em mais de 50% das vezes é por deficiência de ferro. As necessidades de ferro são 6 vezes maiores na gravidez, e, não podendo ser cobertas pela dieta, são supridas parcialmente pelas reservas maternas. Atendendo à hemodiluição fisiológica da gravidez, a anemia é definida pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) por hemoglobina < 10,5 a 11 g/dℓ. Recomenda-se a suplementação universal na gravidez de 60 mg/dia de ferro elementar. A anemia reduz a resistência da grávida a infecções e aumenta de 2 a 3 vezes a incidência de complicações na gravidez e no parto. Em anêmicas, a taxa de partos pré-termo é 3 vezes mais frequente e está acrescida de 2 vezes a mortalidade perinatal. Hemorragias ante e pós-parto são mais comuns nas anêmicas e, frequentemente, são fatais. Na Ásia, a anemia é a 2a causa de morte materna. O tratamento da anemia ferropriva é feito com sulfato ferroso, 200 a 400 mg, 3 vezes/dia, via oral; excepcionalmente administra-se o ferro por via intravenosa. Quando a hemoglobina é < 6 a 7 g/dℓ, indica-se concentrado de hemácias.
■ Contratilidade uterina anormal ■ Caracterização clínica do parto disfuncional
São chamadas discinesias as distocias dinâmicas ou distocias funcionais: a contratilidade uterina ineficiente para dilatar o colo e fazer progredir o parto, ou, ao contrário, a atividade exagerada, capaz de determinar parturição rápida e precipitada. Os desvios dinâmicos da matriz podem existir isolados (distocia funcional idiopática) ou como decorrência de outras alterações patológicas (desproporção cefalopélvica, toxemia, polidrâmnio etc.).
■ Contratilidade uterina anormal ■ Fisiopatologia geral A onda contrátil do parto normal é caracterizada pelo triplo gradiente descendente (TGD) (Capítulo 12). As anomalias da contração podem ser quantitativas ou qualitativas. Nas alterações quantitativas, as ondas são generalizadas e mantêm o TGD, apenas seus valores são hipo ou hiperativos. Configuram anomalias qualitativas ondas generalizadas com o gradiente invertido ou ondas localizadas, assincrônicas, incoordenadas.
■ Hipoatividade Considera-se o útero hipoativo quando a contração tem intensidade inferior a 25 mmHg (hipossistolia), a frequência menor que 2 em 10 min (bradissistolia) e a atividade uterina situa-se abaixo de 100 unidades Montevidéu (UM); o tônus costuma ser menor que o normal. A hipossistolia descrita é autêntica, existindo outras decorrentes de incoordenação, sobredistensão, taquissistolia e hipertonia. O parto tem progresso muito lento ou se detém totalmente. A hipoatividade não acarreta prejuízo materno e fetal, exceto o proveniente do trabalho prolongado. Suas causas não estão bem esclarecidas, e, na maioria das vezes, o útero é capaz de se contrair normalmente quando se perfunde ocitocina intravenosa em doses fisiológicas (1 a 8 mU/min), a melhor conduta terapêutica.
■ Hiperatividade As contrações têm intensidade exagerada, superior a 50 mmHg (hipersistolia), e frequência maior que 5 em 10 min (taquissistolia ou polissistolia), de modo que a atividade uterina ultrapassa 250 UM. A hipersistolia é consequência do aumento da força contrátil das fibras uterinas; aparece sem causa evidente, após a administração de ocitocina em doses elevadas, associada à toxemia ou ao parto obstruído. A hiperatividade uterina, na ausência de entrave mecânico, produz parto precipitado com
possível laceração do trajeto, traumatismo e sofrimento fetal. O tratamento consiste na simples adoção do decúbito lateral (na taquissistolia isolada) ou no emprego de medicamentos uteroinibidores.
■ Hipotonia e hipertonia A hipotonia uterina (tônus inferior a 8 mmHg) ocorre muito raramente e, em geral, está associada à hipoatividade. A hipertonia é muito mais frequente e, de acordo com sua magnitude, divide-se em: fraca (12 a 20 mmHg), média (20 a 30 mmHg) e forte (acima de 30 mmHg). Clinicamente, é fácil distinguir “útero mole” (tônus normal, de 10 mmHg) e “duro” (palpação no momento de uma contração de intensidade entre 30 e 40 mmHg). Contrariamente, estando o tônus uterino acima de 30 mmHg, torna-se difícil perceber as contrações (“útero muito duro”); além de 40 mmHg, não se consegue deprimir a parede uterina. De acordo com o mecanismo de produção, as hipertonias são classificadas em quatro tipos: • Hipertonia por sobredistensão: existe sobredistensão quando o acréscimo anormal do conteúdo uterino não é acompanhado de crescimento progressivo da massa miometrial. Exemplo típico é o polidrâmnio, no qual o sobrestiramento determina hipertonia e hipossistolia; nas gestações gemelares, tanto o tônus como a intensidade das contrações guardam valores normais, levando a crer que o aumento volumétrico gradual é acompanhado de hiperplasia e hipertrofia do miométrio. O tônus excessivo deve-se ao fato de que as fibras uterinas foram estiradas acima do limite fisiológico, não sendo mais capazes de se adaptar às variações de comprimento. As hipertonias são fracas ou médias. O tratamento é o do polidrâmnio, corrigindo-se a discinesia pela extração do líquido amniótico excedente • Hipertonia por incoordenação: como as diferentes partes do útero relaxam-se em tempos diversos, a pressão amniótica nunca pode descer ao nível do tônus normal, havendo sempre área em contração. A incoordenação, em geral, produz hipertonias fracas • Hipertonia por taquissistolia: o aumento anormal da frequência das contrações, acima de 5 em 10 min, causa elevação do tônus porque, encurtando-se o intervalo entre as metrossístoles, o útero não tem tempo para completar o seu relaxamento (Figura 42.1). No início da fase de relaxamento, a pressão amniótica decresce rapidamente, para depois diminuir lenta e progressivamente (fase de relaxamento lento), tendendo a se aproximar de uma linha horizontal que representa o chamado tônus primário. Na taquissistolia, esse tônus primário nunca é alcançado, pois o relaxamento é interrompido pela contração seguinte. O ponto de menor pressão registado é o tônus, sempre superior ao tônus primário. As hipertonias por taquissistolia costumam ser fracas ou médias. A primeira medida terapêutica é a postura lateral da paciente completada por medicamentos inibidores da contratilidade uterina
Figura 42.1 ■ Hipertonia por taquissistolia. Mecanismo de produção (esquemático). No começo, a frequência é de 3 contrações em 10 min. A cada duas contrações, a frequência eleva-se progressivamente até alcançar 7 em 10 min. Encurta-se primeiro a fase de relaxamento lento; quando a frequência sobe acima de 6, diminui também a fase de relaxamento rápido. O tônus, no registro de pressão amniótica, sobe à medida que cresce a frequência, mesmo permanecendo invariável o tônus primário. Quanto mais curto o intervalo entre as contrações, mais precocemente interrompe-se o relaxamento pela contração seguinte. A intensidade das contrações diminui ao aumentar sua frequência porque o miométrio tem menos tempo para restaurar-se da contração precedente. (Adaptada de Alvarez H, et al. Mat Inf, 1954; 13:11.)
• Hipertonia autêntica ou essencial: aqui, a hipertonia não pode ser explicada por nenhum dos mecanismos conhecidos (sobredistensão, incoordenação, taquissistolia) e depende do aumento do tônus primário (Figura 42.2). As hipertonias são fortes e geralmente estão associadas ao descolamento prematuro da placenta, à perfusão de ocitocina em doses maciças e à hipertonia por incoordenação. Parece não haver nenhum tratamento eficaz. As hipertonias ativas (autêntica, taquissistólica e por incoordenação) são as que produzem mais hipoxia no feto, reduzindo muito o afluxo de sangue à placenta; as passivas (por sobredistensão), por sua vez, diminuem em menor grau a circulação uteroplacentária.
■ Inversão do gradiente Na inversão do gradiente, a anomalia da onda contrátil é qualitativa, predominando a atividade das partes baixas do útero sobre a do corpo. A inversão pode ser total, afetando os três componentes (intensidade, duração e propagação) do TGD (Figura 42.3). As contrações nascem
na parte inferior do útero, propagam-se para cima (ondas ascendentes), são mais fortes e a duração é maior no istmo que no corpo. Essas metrossístoles são totalmente ineficientes para dilatar o colo e, na realidade, tendem a fechá-lo (Figura 42.4), a despeito de poderem ser tão intensas quanto as do parto normal. Em alguns casos, a inversão é parcial, alterando-se um ou dois dos componentes do TGD. A inversão isolada de intensidade e a que afeta ambos os gradientes de propagação e duração são mais comuns. Nessa oportunidade, as ondas contráteis apresentam certo efeito dilatador. Os traçados de pressão amniótica não possibilitam o diagnóstico da inversão do gradiente, o que só se consegue com o registro múltiplo, intramiometrial ou eletroisterográfico. A palpação combinada, vaginal e abdominal, possibilita perceber que o orifício interno do colo se contrai muito antes do fundo uterino.
Figura 42.2 ■ Hipertonia autêntica pela elevação do tônus primário. À esquerda, está o tônus primário normal. À direita, o tônus primário está elevado para 20 mmHg. Em ambos os casos, a frequência é de 3 contrações a cada 10 min (esquemático). (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R et al. In: Rezende, J. Obstetrícia. 1a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1963, v.2.)
Figura 42.3 ■ Onda contrátil com inversão total de gradiente. O útero à esquerda indica os quatro pontos em que a pressão intramiometrial é registrada mediante microbalões. Os úteros menores, na parte superior, ilustram como a onda contrátil inicia-se e propaga-se, aumenta de intensidade, para logo decrescer até o desaparecimento. As relações cronológicas de cada um dos úteros menores com os traçados de pressão estão indicadas pelas linhas verticais pontilhadas. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R. Modern Trends in Obstetrics & Gynaecology. Montreal: Beauchemin, 1959.)
Figura 42.4 ■ Inversão de gradiente. Corte frontal de útero (esquemático). A densidade do pontilhado indica a intensidade da contração. O istmo contrai-se com maior intensidade que o corpo uterino; por esse motivo, a contração é insuficiente para distendê-lo e dilatar o colo, tendendo a cerrá-lo. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R et al. Triângulo. 1995;2:41.)
■ Incoordenação Até então, têm-se descrito contrações que se propagam por todo o útero, constituindo ondas generalizadas e bem sincronizadas. Na incoordenação, partes distintas do órgão contraem-se de maneira independente e assincrônica, impedindo que todo o útero alcance o máximo de contração
simultaneamente. As incoordenações podem ser de 1o e de 2o grau. ▶ Incoordenação de 1o grau. É uma anomalia frequente, determinada pela interferência entre a ação dos dois marca-passos normais do útero, cada um deles regulando os segmentos em que o órgão está funcionalmente dividido. Como os dois marca-passos têm ritmos distintos, suas atividades são assincrônicas, o que confere ao traçado da pressão amniótica aparência típica: pequenas contrações isoladas, alternadas com outras maiores que se espalham por zonas mais extensas da matriz (Figura 42.5). A contração de uma área muitas vezes começa antes de haver terminado o relaxamento da outra, pelo que aparecem parcialmente fusionadas, constituindo curva de pressão única, com base larga e dois vértices, cada um dos quais correspondendo ao máximo de contração em uma das áreas. O parto progride mais lentamente que o habitual; as contrações localizadas são ineficazes, e as que se difundem por áreas maiores do útero têm certa ação dilatadora do colo.
Figura 42.5 ■ Incoordenação de 1o grau (esquemático). Mesma forma de representação da Figura 42.3. As ondas que nascem do marca-passo direito ficam localizadas na zona do corno direito; causam apenas pequenas elevações (a e c) na pressão amniótica e são ineficazes para dilatar o colo. A onda que nasce do marca-passo esquerdo difunde-se por quase todo o útero, causa maior elevação (b) da pressão amniótica e tem certa ação cervicodilatadora. Não invade a zona do corno direito porque esta encontra-se no período refratário suscitado pela contração precedente (a). Como a contração (b) do lado esquerdo começa antes de terminada a do lado direito (a), a pressão amniótica não pode descer, entre ambas, até o nível do tônus normal. Fica desenhada uma elevação de forma irregular, com dois picos que correspondem às contrações assincrônicas das duas partes em que funcionalmente está dividido o útero. O assincronismo impede a soma das pressões desenvolvidas pela contração de cada zona; por isso, a elevação máxima da pressão amniótica é menor que em uma onda bem sincronizada (Figura 42.3). Nesta, a boa coordenação da atividade uterina está expressa pela forma regular e maior altura das ondas. Na incoordenação de 1o grau, o traçado da pressão amniótica é característico e possibilita o diagnóstico. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R et al. – op. cit.)
▶ Incoordenação de 2o grau. O útero está funcionalmente dividido em várias regiões que se contraem de maneira independente, assincrônica e completamente desordenada. Os limites entre as áreas mudam constantemente; dois deles próximos dos cornos uterinos estão sob o comando de dois marca-passos normais do órgão, enquanto as demais porções são reguladas por novos marca-passos ectópicos (Figura 42.6). O tônus geralmente é elevado (hipertonia por incoordenação) e sobre ele se inscrevem contrações de ritmo muito irregular, pequena intensidade e frequência alta (hipossistolia e taquissistolia por incoordenação). As contrações quase sempre não são percebidas à palpação abdominal, em função de sua pequena intensidade, acrescida da elevação discreta do tônus; tem-se a impressão clínica de um útero de tônus aumentado, sem metrossístoles. Quando a incoordenação de 2o grau se associa à hipertonia autêntica (por elevação do tônus primário), configura o tétano uterino ou distocia de Demelin. Das discinesias, a incoordenação de 2o grau é das mais anômalas para fazer progredir o parto. A gênese das incoordenações, de ambos os graus, parece estar ligada à secreção aumentada dos hormônios elaborados pela medula suprarrenal (adrenalina e noradrenalina), vigente nas situações em que dominam a dor, o medo, a emoção e a ansiedade. O tratamento das incoordenações uterinas e da inversão do gradiente é feito por meio dos seguintes procedimentos: • Colocação da paciente em decúbito lateral • Perfusão contínua de ocitocina em doses fisiológicas (1 a 8 mU/min), método que melhora sensivelmente a coordenação das metrossístoles (pelo aumento da condutividade elétrica do miométrio), aumentando a intensidade • Amniorrexe • Administração de medicamentos analgésicos e sedativos (meperidina, prometazina, clorpromazina etc.); têm efeito igualmente benéfico a psicoterapia e a hipnose • Raquianestesia e peridural também corrigem a incoordenação porque suprimem a dor, bloqueiam a inervação simpática aferente do útero e da suprarrenal com consequente diminuição da secreção de adrenalina e noradrenalina.
Figura 42.6 ■ Incoordenação de 2o grau (fibrilação uterina). Mesma forma de representação das Figuras 42.3 e 42.5. As partes do útero onde se registra a pressão intramiometrial contraem-se com ritmos diferentes (assincronicamente). A contração isolada de cada uma delas causa pequena elevação da pressão amniótica, cujo traçado adquire aspecto característico. Como as contrações sucedem-se sem qualquer ordem, é o traçado muito irregular; a coincidência da contração de duas partes causa crescimento maior. A frequência elevada resulta do grande número de partes que se contraem sucessivamente. O tônus é alto porque em momento algum todas as partes relaxam-se, ao mesmo tempo que a pressão amniótica não pode descer até o nível do tônus normal (10 mmHg) (taquissistolia e hipertonia por incoordenação). (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R et al. – op. cit.)
■ Repercussões da contratilidade uterina anormal sobre o feto As contrações uterinas, mesmo as fisiológicas, reduzem o fluxo de sangue à placenta por compressão dos vasos intramiometriais, da aorta e das artérias ilíacas. Nos distúrbios hipercontráteis da matriz (hipersistolia, taquissistolia, hipertonia) e na hipotensão arterial materna, a circulação uteroplacentária está mais comprometida, perturbando as trocas metabólicas entre mãe e concepto e determinando o sofrimento fetal.
■ Fisiopatologia especial ■ Parto obstruído Os distúrbios na contratilidade uterina decorrem de obstáculo mecânico no canal do parto (desproporção cefalopélvica, apresentações anômalas, tumores prévios), que impede a progressão do feto na pelve. Bloqueado o trânsito do concepto, o encurtamento do corpo uterino não se complementa com a descida do fundo do órgão, mas condiciona o estiramento longitudinal do segmento inferior (Figura 42.7). Cada contração torna o corpo mais curto e espesso, enquanto o istmo estira-se e
afina. O limite entre o segmento superior e o inferior torna-se muito evidente, anormalmente elevado, constituindo o chamado anel de Bandl ou anel de retração patológica, que nada mais é do que o exagero do anel de retração fisiológica. Não se deve confundir o anel de Bandl com o anel de constrição, localizado também entre o corpo uterino e o segmento (Figura 42.8). A elevação exagerada do limite segmento-corporal (sinal de Bandl) faz-se acompanhar da ascensão dos ligamentos redondos, que se tornam tensos, dolorosos e facilmente palpáveis (sinal de Frommel). No início do parto obstruído, as metrossístoles são normais (Figura 42.7 A). Porém, à medida que o útero se esforça para vencer o obstáculo mecânico (“síndrome de luta”), a intensidade e a frequência das contrações aumentam progressivamente, culminando em hipersistolia e taquissistolia (Figura 42.7 B). A partir dessa fase, o processo evolui de duas maneiras opostas: depois de algumas horas de hiperatividade, as contrações uterinas normalizam-se e tornam-se hipoativas (inércia secundária); ou as metrossístoles aumentam ainda mais sua frequência e o tônus primário eleva-se (taquissistolia e hipertonia) (Figura 42.7 C). Quando o tônus ultrapassa 30 mmHg, o útero está tão endurecido que as contrações não são percebidas à palpação do ventre, correspondendo aos erroneamente designados estágios de tétano uterino. Nessa condição, é grave o comprometimento do feto, gravemente anoxiado, e iminente a ruptura do segmento. O tratamento é a cesárea, sendo de valia, enquanto se espera, a perfusão de medicamentos uterorrelaxantes.
Figura 42.7 ■ Parto obstruído. Acima, cortes frontais esquemáticos de útero, bacia e feto em sucessivas fases do parto obstruído. Abaixo e esquematicamente, os correspondentes traçados de pressão amniótica. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R. op. cit.)
Figura 42.8 ■ Diferença entre “anel de constrição” (A), na união do corpo uterino e do segmento inferior, e “anel de retração excessiva” ou de “retração patológica” no mesmo local (B), também chamado “anel de Bandl”, que se produz no parto obstruído. (Adaptada de Jeffcoate, TNA. In: Bowes, K. Modern Trends in Obstetrics and Gynaecology. Londres: Butterworths, 1950.)
■ Distocia cervical Na distocia cervical, o colo uterino é responsável pela não progressão do parto. Pode ser classificada em ativa ou passiva. Na distocia cervical ativa (“colo ativo”) o distúrbio é funcional e restrito ao orifício interno, único setor provido de músculo. O “espasmo” funcional do orifício externo não existe, ocorrendo, nesse nível, apenas distocia cervical passiva (fibrose cicatricial, aglutinação, atresia etc.). Na distocia cervical passiva, as contrações empurram a apresentação na bacia, o colo sofre pressão e se apaga, mas não pode dilatar-se em virtude da resistência que lhe oferece o orifício externo (Figura 42.9). A luta contra o obstáculo determina alterações dinâmicas similares às descritas para o parto obstruído. A compressão exagerada da cérvice pela cabeça fetal causa isquemia com possível necrose e desprendimento anular do colo. A anomalia se resolveria seccionando-se a cicatriz fibrosa localizada no orifício externo, medida que não se aconselha, ou divulsionando a região aglutinada, fazendo com que a dilatação progrida, em geral, muito rapidamente.
Figura 42.9 ■ Distocia cervical passiva. (Adaptada de Jeffcoate, TNA – op. cit.)
Figura 42.10 ■ Anéis de constrição. No esquema da esquerda o anel está situado na união do corpo uterino e do segmento inferior. À direita, fica no nível do orifício interno do colo. (Adaptada de Jeffcoate, TNA – op. cit.)
A distocia cervical ativa caracteriza-se por apresentar vários quadros discinéticos de inversão do gradiente. Uma forma extrema é o anel de constrição situado no orifício interno (Figura 42.10), que impede a distensão do istmo, a dilatação da cérvice e a descida da apresentação. O tratamento é o da inversão do gradiente.
■ Polidrâmnio Na gestação complicada pelo polidrâmnio existem dois tipos de contratilidade: alta e baixa. Em aproximadamente 60% dos casos, o polidrâmnio é de alta contratilidade, aumentando a atividade uterina precocemente, de modo a alcançar os valores do parto muito antes de 40 semanas. É frequente a interrupção prematura da gravidez, e a extração do excesso de líquido amniótico pela amniocentese costuma induzir o parto. No polidrâmnio de alta contratilidade, a resposta do útero à ocitocina é baixa, mesmo após ter sido corrigida a sobredistensão por meio da punção abdominal. Nos 40% restantes (polidrâmnio de baixa contratilidade), a atividade uterina permanece pequena até o fim da gravidez. O útero adapta-se perfeitamente ao aumento anômalo de volume e o tônus mantém-se dentro dos valores normais. No polidrâmnio hipoativo, o parto não é induzido quando se retira o excesso de líquido, embora a resposta à ocitocina seja normal e o medicamento possa ser utilizado para interromper a gestação. Em caso de sobredistensão no parto, o tônus está elevado, a intensidade das metrossístoles diminuída e, em consequência, o progresso é lento (Figura 42.11). A retirada do excesso de líquido pela ruptura das membranas corrige a discinesia: decresce o tônus, incrementa a intensidade das contrações e o parto progride rapidamente.
Figura 42.11 ■ Efeitos da sobredistensão na contratilidade uterina. À direita, ilustram-se a hipertonia e a hipossistolia causadas pela sobredistensão no polidrâmnio. À esquerda, condições normais. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R et al. – op. cit.)
■ Toxemia gravídica A atividade uterina está usualmente elevada. Durante a gestação, a contratilidade exacerba-se prematuramente (Figura 42.12), sendo grande a ocorrência de interrupções espontâneas intempestivas. No parto, as toxêmicas apresentam hipersistolia que pode concorrer para dilatação rápida e até precipitada; são poucos os casos em que se associam taquissistolia e hipertonia. A resposta uterina à ocitocina é muito maior que a normal, e, em consequência, deve ser administrada em doses baixas (2 mU/min) para induzir o parto. A hiperatividade uterina contribui para a redução do fluxo de sangue à placenta, já diminuído pelo espasmo vascular, condicionando alta mortalidade perinatal.
■ Descolamento prematuro da placenta Em todos os casos de descolamento prematuro da placenta (DPP), há nítida hipertonia autêntica do útero pela elevação do tônus primário. O tônus está compreendido entre 20 e 40 mmHg, e, enxertado sobre a hipertonia, registram-se contrações que se filiam a dois tipos (Figura 42.13): • Tipo 1: contrações mais ou menos coordenadas cuja frequência varia entre 3 e 6 em 10 min, oscilando a intensidade e o tônus entre 20 e 30 mmHg
• Tipo 2: contrações muito incoordenadas, de altíssima frequência (8 a 10 em 10 min), intensidade muito baixa (10 a 20 mmHg) e tônus bastante elevado (30 e 40 mmHg); neste tipo, hipertonia por incoordenação ou por taquissistolia costuma estar associada à hipertonia autêntica. O tônus muito aumentado faz com que seja difícil perceber, à palpação abdominal, as contrações do tipo 1 e torna impossível averiguar as do tipo 2. O exame do ventre recolhe a sensação de “útero lenhoso”. A amniorrexe, embora não altere o tônus e a contratilidade, acelera nitidamente a dilatação cervical. A ocitocina intravenosa eleva ainda mais o tônus, pelo aumento da frequência, e reduz a intensidade das metrossístoles. Não há, até hoje, qualquer medida capaz de corrigir a distocia dinâmica encontrada no DPP.
Figura 42.12 ■ Registros típicos de pressão amniótica obtidos em duas gestações da mesma idade (30 semanas). Na toxemia, as contrações uterinas são muito mais intensas e frequentes que na gravidez normal. (Adaptada de Poseiro, JJ et al. 3o Congresso Uruguaio de Ginecotocologia, 1960.)
Figura 42.13 ■ Descolamento prematuro da placenta normalmente inserida. O caso 417 corresponde ao tipo 1 de contratilidade uterina, e o caso 520, ao tipo 2. À esquerda, estão representadas as contrações de um parto normal para cotejo. (Adaptada de Caldeyro-Barcia, R et al. In: Rezende, J. – op. cit.)
■ Caracterização clínica do parto disfuncional A identificação das distocias é feita pela observação das curvas de dilatação cervical e de descida da apresentação expressas no partograma (Capítulo 14). As distocias de cada período
funcional do parto são apresentadas na Tabela 42.1.
Tabela 42.1 ■ Distocias diagnosticadas pelo partograma. Período do parto
Distocias diagnosticadas
Dilatação
Fase ativa prolongada Parada secundária da dilatação Parto precipitado
Pélvico
Período pélvico prolongado Parada secundária da descida
▶ Fase ativa prolongada (ou distocia funcional). A dilatação do colo uterino ocorre lentamente, em velocidade menor que 1 cm/h (Figura 42.14). Essa distocia geralmente decorre da hipocinesia uterina e a correção se fará com ocitócicos e ruptura artificial das membranas. ▶ Parada secundária da dilatação. É diagnosticada por dois toques sucessivos, com intervalo de 2 h ou mais, estando a mulher em trabalho de parto ativo (Figura 42.15). Há associação frequente com sofrimento fetal. A causa principal é a desproporção cefalopélvica absoluta (tamanho de polo cefálico maior que a bacia) ou relativa (posições anômalas: defletidas, transversas, posteriores). É grande a incidência de cesárea. ▶ Parto precipitado. Também chamado de taquitócico (Figura 42.16), é diagnosticado quando a dilatação cervical e a descida/expulsão do feto ocorrem em um período de 4 h ou menos. O útero é hipercinético e pode ocorrer sofrimento fetal. Pode ser espontâneo ou consequente à administração inadequada de ocitócicos.
Figura 42.14 ■ Fase ativa prolongada.
Figura 42.15 ■ Parada secundária da dilatação.
Figura 42.16 ■ Parto precipitado (taquitócico).
▶ Período pélvico prolongado. Manifesta-se no partograma pela descida da apresentação excessivamente lenta, embora a dilatação esteja completa (Figura 42.17). Essa distocia costuma estar relacionada com contratilidade uterina deficiente e a sua correção é obtida pela administração de ocitócicos e pela ruptura artificial da bolsa das águas. Pode estar indicado o uso do fórceps, respeitadas as condições de praticabilidade. ▶ Parada secundária da descida. É diagnosticada por dois toques sucessivos com intervalo de 1 h ou mais, desde que a dilatação do colo esteja completa (Figura 42.18). É frequente nesse tipo de distocia a desproporção cefalopélvica. A incidência de cesárea é elevada. Diante de incerteza, a Figura 42.19 é uma proposta de conduta no parto espontâneo para prevenir a 1a cesariana. No 2o período do parto, pode-se suspeitar de falta de progressão (descida ou rotação) quando
a sua duração excede 3 h na nulípara ou 2 h na multípara.
Figura 42.17 ■ Período pélvico prolongado.
Figura 42.18 ■ Parada secundária da descida.
Figura 42.19 ■ Conduta no parto espontâneo. *Falso trabalho de parto, membranas íntegras e feto estável. (Adaptada de Spong et al., 2012.)
■ Pontos-chave São discinesias ou distocias dinâmicas ou funcionais a contratilidade uterina insuficiente para dilatar o colo e progredir o parto ou, ao contrário, a atividade exagerada, capaz de determinar parturição rápida e precipitada. As anomalias da contração podem ser quantitativas ou qualitativas. Nas alterações quantitativas as ondas são generalizadas e mantêm o triplo quadrante descendente (TGD), apenas seus valores são hipo ou hiperativos; configuram as anomalias qualitativas ondas generalizadas com o gradiente invertido ou ondas localizadas, assincrônicas, incoordenadas. Considera-se hipoatividade quando a contração tiver intensidade inferior a 25 mmHg (hipossistolia), frequência menor que 2 em 10 min (bradissistolia) e a atividade uterina situar-se abaixo de 100 unidades Montevidéu (UM). O parto tem progressão lenta ou se detém totalmente. Na hiperatividade, as contrações têm intervalo superior a 50 mmHg (hipersistolia), frequência maior que 5 em 10 min (taquissistolia ou polissistolia), de modo que a atividade uterina ultrapassa 250 UM. A hiperatividade uterina, na ausência de entrave mecânico, produz parto precipitado com possível laceração do trajeto, traumatismo e sofrimento fetal. A hipotonia uterina (tônus inferior a 8 mmHg) ocorre raramente e, em geral, está associada à hipoatividade. A hipertonia, de acordo com a sua magnitude, divide-se em fraca (12 a 20 mmHg), média (20 a 30 mmHg) e forte (acima de 30 mmHg). De acordo com o mecanismo de produção, as hipertonias podem ser divididas em: por sobredistensão, incoordenação, taquissistolia ou autêntica. Na inversão do gradiente, a anomalia da onda contrátil é qualitativa, predominando a atividade das partes baixas do útero sobre o corpo. A inversão do gradiente pode ser total, afetando os três componentes do TGD (intensidade, duração e propagação), ou parcial. Na incoordenação, partes distintas do útero contraem-se de maneira independente e assincrônica, impedindo que todo o útero alcance o máximo de contração simultaneamente. A incoordenação pode ser de 1o ou de 2o grau. Nos distúrbios hipercontráteis da matriz (hipersistolia, taquissistolia e hipertonias) há comprometimento da circulação uteroplacentária e, em consequência, sofrimento fetal agudo. A fisiopatologia especial das discinesias engloba o parto obstruído, a distocia cervical, assim como os padrões contráteis de polidrâmnio, toxemia gravídica e descolamento prematuro da placenta. Pelo partograma é possível identificar as seguintes distocias: no período de dilatação: fase ativa prolongada, parada secundária da dilatação e parto precipitado; no período pélvico: período pélvico prolongado e parada secundária da descida.
■ Fisiopatologia ■ Etiologia ■ Diagnóstico ■ Prognóstico ■ Tratamento
Sofrimento fetal agudo é o que ocorre durante o parto, em contraposição ao sofrimento fetal crônico, próprio da gestação complicada por feto com crescimento intrauterino restrito (CIR) (Capítulo 29). A asfixia é uma condição resultante do comprometimento da troca de gases que, quando persistente, leva a progressiva hipoxemia e hipercapnia, estado de acidose metabólica. Durante o parto vaginal, as contrações maternas causam redução temporária na troca de gases. Após a contração há recuperação fetal com autorreanimação, seguida por perfusão normal até que ocorra nova contração. Se esses mecanismos fisiológicos compensatórios forem sobrepujados, estabelece-se a acidemia hipóxica. Se houver acidemia hipóxica de grau e duração suficientes, espera-se lesão cerebral com consequentes sequelas neurológicas nos bebês sobreviventes, outros danos orgânicos ou morte intraparto ou neonatal.
■ Fisiopatologia As trocas metabólicas existentes entre o sangue materno e o fetal, realizadas na placenta, são indispensáveis para manter a homeostase do concepto. Qualquer fator que subitamente interfira nessas trocas, levando o feto a estado transitório, ou permanente, de carência de oxigênio, será causa de sofrimento fetal agudo. A redução nas trocas materno-fetais do tipo agudo é própria do parto em que a asfixia decorre da insuficiência nas circulações uteroplacentária ou fetoplacentária.
■ Insuficiência uteroplacentária aguda O fluxo de sangue materno que chega aos espaços intervilosos, pelos vasos uteroplacentários, depende, fundamentalmente, da relação entre 2 fatores: • Pressão arterial média materna: força que impulsiona o sangue • Resistência encontrada pelo sangue nos vasos uteroplacentários: elemento inversamente proporcional ao calibre desses vasos, que, por sua vez, depende do tônus vasomotor intrínseco e das contrações uterinas que comprimem, extrinsecamente, os vasos nutridores da placenta, quando atravessam o miométrio, ou seja, da pressão intramiometrial. Em determinado momento, o fluxo que chega aos espaços intervilosos é diretamente proporcional à diferença entre a pressão arterial média materna e a pressão intramiometrial, supondo-se o tônus vasomotor constante (Figura 43.1). Deve-se salientar que uma contração uterina, ao produzir pressão amniótica de 40 mmHg, exerce pressão intramiometrial entre 80 e 120 mmHg, valores que alcançam ou mesmo ultrapassam a pressão arterial média da mãe. Assim, no vértice da contração uterina normal, a circulação de sangue pelo útero e pela placenta está muito reduzida, às vezes totalmente abolida (Figura 43.2 A). Afortunadamente, na contração fisiológica essa situação é contingente, dura poucos segundos; ao relaxar-se o útero, a
pressão miometrial decresce e os vasos, concomitantemente, se reabrem, aumentando de modo progressivo o fluxo de sangue. A circulação sanguínea alcança seu máximo durante o relaxamento uterino total, quando unicamente o tônus comprime os vasos. A insuficiência uteroplacentária aguda, responsável pela hipoxia fetal no parto, está relacionada com a redução excessiva do afluxo de sangue materno, que supre os espaços intervilosos, e é determinada pela hiperatividade uterina ou pela hipotensão materna. ▶ Hipersistolia uterina. A cada contração, a pressão intramiometrial ultrapassa significativamente o valor da pressão arterial média materna (e até mesmo o valor da pressão sistólica), provocando decréscimo circulatório uteroplacentário mais acentuado e de maior duração do que se as contrações tivessem intensidade normal (Figura 43.2 B). ▶ Taquissistolia uterina. A elevada frequência das contrações encurta os intervalos entre elas e reduz o tempo que o sangue dispõe para circular (Figura 43.2 C). O National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) e a Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM) recomendam que se abandonem os termos “hipercontratilidade” e “hiperestimulação”, dando preferência a “taquissistolia”, termo conceituado como a frequência das contrações uterinas > 5/10 min, em qualquer período de 30 min. Fatores de risco para o aparecimento da taquissitolia foram: uso de ocitocina e misoprostol peridural, indução do parto e hipertensão. Embora a taquissitolia nunca estivesse associada à categoria III de FCF, ela aumentou significativamente a chance de morbidade neonatal. ▶ Hipertonia uterina. Caracterizada por exercer compressão persistente sobre os vasos sanguíneos, o que se mantém entre as contrações, reduzindo acentuadamente o gasto de sangue pela placenta. É o efeito maior nas hipertonias autênticas (Figura 43.2 D) ou por taquissistolia do que naquelas por sobredistensão ou incoordenação. ▶ Hipotensão materna. Diminui a força que impulsiona o sangue pelos vasos uteroplacentários e possibilita maior compressão desses vasos e da aorta pelo miométrio, reduzindo também o afluxo de sangue à placenta (Figura 43.2 E). Entretanto, se a hipotensão arterial for determinada por vasodilatação arteriolar, que inclui o território uteroplacentário, pode suceder que a diminuição da resistência vascular compense a queda da pressão arterial; nessa eventualidade, o afluxo de sangue uteroplacentário não estará reduzido, apesar da hipotensão arterial. No choque hemorrágico, o fenômeno parece não se apresentar por conta de vasoconstrição do território placentário,
Figura 43.1 ■ A. Representação esquemática das condições circulatórias quando o útero está relaxado. O sangue flui livremente pelo espaço interviloso. B. Estase circulatória quando o útero está contraído. (Adaptada de Poseiro et al. Perinatal factors affecting human development. Washington, DC: Pan American Health Organization, 1969, n.185.)
Figura 43.2 ■ Influência das contrações uterinas sobre o fluxo de sangue pelos vasos uteroplacentários. O gasto é proporcional à diferença entre a pressão arterial média e a pressão intramiometrial. A superfície da área colorida ilustra o fluxo de sangue por um período de 10 min. As condições são normais (A). A diminuição do fluxo de sangue pela placenta ocorre quando há hipersistolia uterina (B), taquissistolia uterina (C), hipertonia uterina, principalmente a autêntica (D), e hipotensão arterial materna (E). (Adaptada de Alvarez H. et al. Matern Inf. 1954; 13:11.)
Demais, os casos de insuficiência placentária, especialmente os que cursam com CIR
(Capítulo 29), tornam-se agudos durante a parturição, mesmo ausentes contrações uterinas anômalas ou hipotensão materna.
■ Insuficiência fetoplacentária aguda A circulação fetoplacentária é veiculada pelo cordão umbilical, outro elemento fundamental na realização das trocas metabólicas entre a mãe e o concepto. Além do oligoidrâmnio que atua na ausência de patologia funicular, certos aspectos patológicos do cordão representados, principalmente, por circulares, prolapsos, procidências e nós predispõem ou motivam a compressão dos vasos umbilicais quando da contração uterina, o que constitui obstáculo ao trânsito sanguíneo fetoplacentário. Estudos experimentais mostram que a compressão umbilical, quando tem duração maior que 30 s, repercute, pela repetição, desfavoravelmente na homeostase fetal.
■ Fatores reguladores da frequência cardíaca fetal Se a oxigenação for adequada, a análise da FCF é o meio principal pelo qual o feto é avaliado, de maneira que o estudo de suas características é fundamental na propedêutica obstétrica. A FCF, assim como a do adulto, está subordinada à atividade intrínseca do marca-passo cardíaco – nódulo sinoatrial – localizado no átrio direito, que, por ser o local de atividade contrátil mais rápida do órgão, controla o seu ritmo. O 2o local mais rápido do coração é o restante do átrio e, por último, o ventrículo. Muitos fatores fisiológicos modulam a frequência intrínseca do coração: o sistema nervoso parassimpático e o simpático. Diversos outros elementos atuam nessa frequência, como quimiorreceptores e barorreceptores, além da regulação hormonal exercida pela adrenalina e pela noradrenalina, produzidas em situações de estresse, e da sua influência múltipla no sistema cardiovascular.
■ Mecanismos defensivos fetais Basicamente, os mecanismos defensivos fetais são de 2 tipos: alterações cardiovasculares e alterações metabólicas. Importantes aspectos cardiovasculares ocorrem durante a hipoxia (ou asfixia) para preservar a oxigenação de certos órgãos nobres ou “prioritários”. Inicialmente, há vasodilatação seletiva do cérebro, do coração e da suprarrenal e vasoconstrição de outros, do que resulta acréscimo de fluxo de sangue nos primeiros e diminuição nos restantes; a placenta mantém o seu fluxo de sangue na hipoxia aguda. O rendimento cardíaco total permanece estável em níveis moderados de hipoxia, mas diminui em graus acentuados. A FCF é taquicárdica, de modo a aumentar o intercâmbio metabólico entre mãe e concepto. O consumo de oxigênio reduz-se a 50% do normal e, nessas condições, o feto pode
permanecer durante cerca de 45 min sem lesões irreversíveis. Em consequência da acentuada redução do fluxo de oxigênio a diversos órgãos nesses leitos vasculares, entra em jogo a respiração anaeróbia, via vicariante de liberação de energia, na ausência de O2. Se persistir a carência de O2, o processo de respiração anaeróbia, além de liberar pouca energia, leva à acidose metabólica, em função do acúmulo de radicais ácidos (Figura 43.3). Assim, quando há queda na oxigenação fetal, qualquer deterioração ocorre em uma sequência lógica que progride da hipoxia, a qual, se grave e de duração suficiente, pode levar à acidose metabólica. Dependendo da gravidade e duração da acidose, pode ocorrer lesão tecidual e orgânica e, finalmente, morte. Na vigência de contrações uterinas, interrompidas as trocas metabólicas, ocorrem diminuições da FCF (dips ou desacelerações) que poupam o gasto energético armazenado no miocárdio sob a forma de glicogênio. Com o progredir da hipoxia fetal, superpõe-se o acúmulo de gás carbônico, impondo componente respiratório à acidose. É esse tipo de acidose, além da hipoxia e da hipercapnia, que constitui o “substrato bioquímico” do sofrimento fetal agudo. Por meio da centralização, que favorece órgãos vitais como cérebro e coração, o feto reduz o consumo total de oxigênio e a glicólise anaeróbia. Isso lhe possibilita sobreviver por períodos moderados (até 30 min) de carência de oxigênio sem descompensação do coração e lesão cerebral. Durante a hipoxia fetal, o tônus vagal está aumentado em 3 a 5 vezes e a atividade betaadrenérgica dobra, o que resulta em diminuição da FCF. É essa atividade beta-adrenérgica elevada que mantém o débito cardíaco e o fluxo umbilical. A atividade alfa-adrenérgica, nessas condições, é importante para assegurar a redistribuição do fluxo sanguíneo pela vasoconstrição seletiva da carcaça, dos pulmões, intestinos, rins etc.
Figura 43.3 ■ Respiração aeróbia e anaeróbia.
■ Etiologia
O sofrimento fetal agudo pode ter como causas: • Hiperatividade uterina: especialmente a consequente à administração intempestiva e imprudente de ocitócicos. A espontânea, por sua vez, é encontrada no parto obstruído, no descolamento prematuro da placenta, na toxemia, no polidrâmnio e no período expulsivo prolongado • Hipotensão materna: provocada por anestesia de condução (raque, peridural etc.), hemorragias, decúbito dorsal (compressão da veia cava inferior e da aorta). Entretanto, o Doppler mostra que a anestesia peridural, durante o trabalho de parto, melhora o fluxo placentário, desde que não ocorra hipotensão materna • CIR: foram diversas as causas apresentadas no Capítulo 29 • Patologia funicular (circulares, nós, procidências e prolapsos): sem subordinação a qualquer dos acidentes anteriormente enumerados, o cordão umbilical pode ser comprimido durante o parto (especialmente após a ruptura das membranas), levando ao sofrimento fetal agudo • Parto prolongado: ocasiona, eventualmente, acidose metabólica materna que acaba por comprometer o concepto.
■ Diagnóstico O diagnóstico do sofrimento fetal intraparto é feito por meio da clínica, da cardiotocografia (CTG) e da microanálise do sangue fetal. Novas tecnologias de avaliação da vitabilidade fetal intraparto têm sido propostas e merecerão comentários.
■ Cardiotocografia A técnica foi descrita no Capítulo 6. Em 2008, o NICHD propôs normas para a definição dos traçados de frequência cardíaca fetal que foram adotadas pelo ACOG em 2010. O principal objetivo dessas normas é estabelecer os padrões da FCF intraparto, embora seja também aplicável aos traçados anteparto. Os padrões da FCF informam sobre o estado acidobásico fetal, mas não preveem o desenvolvimento de paralisia cerebral. As alterações da FCF são categorizadas em basais, periódicas ou episódicas. As alterações periódicas são decorrentes das contrações uterinas, e as episódicas não estão associadas à atividade contrátil. Não se faz distinção entre a variabilidade de longa e a de curta duração. A descrição completa do traçado cardiotocográfico envolve os seguintes parâmetros: contrações uterinas, FCF basal, variabilidade (da FCF basal), acelerações e desacelerações. A quantidade de contrações uterinas é avaliada em “janelas” de 10 min e obtida a média para 30 min. Considera-se como normal a ocorrência de até 5 contrações a cada 10 min e como taquissistolia a ocorrência de mais de 5 contrações em 10 min, e deve ser classificada também de acordo com a existência ou não de desacelerações da frequência cardíaca fetal.
Os padrões da FCF são definidos pelas características da linha de base, variabilidade, acelerações e desacelerações.
■ Alterações basais ▶ FCF basal. A linha de base na qual estão inscritas as variações tacométricas é denominada FCF basal. Seus limites normais situam-se entre 110 e 160 bpm (Figura 43.4). A FCF basal é determinada e arredondada para aumentos de 5 bpm durante uma janela de 10 min, excluindo acelerações, desacelerações e períodos de acentuada variabilidade (> 25 bpm). A FCF basal anormal é denominada bradicardia quando < 110 bpm e taquicardia quando > 160 bpm. ▶ Variabilidade ou oscilação. A variabilidade da FCF basal é determinada em janelas de 10 min, levando em conta as flutuações da FCF basal em bpm e classificadas em: • Ausente: amplitude não detectada • Mínima: amplitude < 5 bpm • Moderada: amplitude entre 6 e 25 bpm • Acentuada: amplitude > 25 bpm. A variabilidade moderada indica ausência de acidemia metabólica fetal. A variabilidade mínima ou ausente isoladamente não é indicativo confiável de hipoxemia ou acidemia metabólica. O significado da variabilidade acentuada (saltatória) não está esclarecido.
■ Alterações transitórias ▶ Aceleração. As acelerações são subidas transitórias da FCF ocasionadas pela movimentação fetal (MF) ou por sua estimulação e pela contratilidade uterina. Representam uma resposta do concepto sadio ao estímulo e ao estresse. A aceleração é um aumento súbito da FCF de amplitude ≥ 15 bpm e duração ≥ 15 s. Antes de 32 semanas de gestação, a aceleração é definida como aumento ≥ 10 bpm e duração ≥ 10 s. Nos casos em que o traçado da CTG não registrar ao menos 1 aceleração no período de 20 a 40 min, deve-se realizar estimulação fetal intraparto mediante teste vibroacústico ou teste de estimulação do escalpo. O teste vibroacústico consiste em produzir som próximo ao ventre materno a fim de obter aceleração da FCF. Já o teste de estimulação do escalpo pode ser realizado mediante estimulação digital do couro cabeludo, pinçamento com Allis ou estímulo com lanceta. Deste último salienta-se a possibilidade de realizar teste de microanálise do sangue fetal, já que estará disponível sangue do concepto, ao mesmo tempo que se recomenda singeleza do corte no couro cabeludo, tentando-se evitar estimulação vagal, que acarreta mais bradicardia.
Figura 43.4 ■ Alterações da frequência cardíaca fetal (FCF) basal (por definição duram, no mínimo, 10 min). A. FCF normal (110 a 160 bpm). B. Taquicardia moderada (161 a 180 bpm). C. Taquicardia acentuada (acima de 181 bpm). D. Bradicardia moderada (100 a 109 bpm). E. Bradicardia acentuada (inferior a 100 bpm). (Adaptada de Hon E. H. An atlas of fetal heart rate patterns. New Haven: Harty Press, 1968.)
Após essas manobras de estimulação fetal, espera-se que ocorra aceleração da FCF nos próximos 20 min. Esse sinal singelo reflete alta sensibilidade quanto à ausência de acidose fetal, atestando a boa vitabilidade do concepto. ▶ Dips ou desacelerações. Constituem quedas temporárias da FCF e podem ser classificados em tardio, precoce ou variável, de acordo com características específicas. Os dips precoces têm o seu início, máximo de queda e recuperação à linha de base coincidindo, respectivamente, com o começo, o pico e o fim da contração (Figura 43.5). A FCF basal associada situa-se nos limites da normalidade. Decorre do estímulo vagal consequente à compressão desigual da cabeça, com deformação (cavalgamento dos parietais). Sua produção está grandemente facilitada pela ruptura da bolsa das águas e pela insinuação da apresentação na pelve, o que é característico do parto, particularmente da fase final do trabalho. Por definição, ocorre na ausência de complicações do cordão umbilical (circulares, nós, prolapsos etc.). O dip tardio, ao contrário, tem princípio, máximo de queda e recuperação retardados, respectivamente, em relação ao início, ao pico e ao fim da contração uterina (Figura 43.5). O padrão tacométrico mantém-se igualmente uniforme e a FCF, pelo geral, taquicárdica. Na verdade, a definição de dip tardio nunca foi bem estabelecida. Diz-se que é retardado em relação à contração uterina, com tempo de latência (entre o começo do dip e o início da contração) igual ou maior que 30 s, mas a duração do intervalo (entre o fundo do dip e o pico da contração) tem critérios diversos – maior de 18, 20 ou 30 s (Figura 43.6). Para a caracterização da desaceleração tardia, também é importante analisar o tempo de recuperação (maior que 15 s) medido entre o fim da contração uterina e o ponto em que o dip retornou à linha de base. Os dips tardios estão associados à estase de sangue interviloso, o que justifica seu achado na asfixia fetal por insuficiência uteroplacentária aguda. A metrossístole é a responsável pela produção dos dips tardios ao reduzir os teores de oxigênio fetal abaixo de determinado nível crítico, correspondendo, aproximadamente, à PO2 de 20 mmHg (30% de saturação de oxigênio e 7,20 de pH) no sangue capilar do couro cabeludo.
Figura 43.5 ■ Os três tipos de dips. A. Dip precoce. B. Dip tardio. C. Dip variável. (Adaptada de Hon E. H. An atlas of fetal heart rate patterns. New Haven: Harty Press, 1968.)
Nos dips variáveis, o modo de desaceleração não reflete a contração uterina e as quedas variam de aspecto no correr do traçado (Figura 43.5). A queda do dip é súbita, associada à compressão funicular, por isso também é chamado dip umbilical. São fatores predisponentes ao seu aparecimento: circulares do cordão (em torno do pescoço, membros, tronco), ruptura das membranas, oligoidrâmnio, prolapso, nó ou brevidade de cordão, inserção velamentosa de funículo e parto pélvico. O intervalo e o tempo de recuperação são variáveis, o que origina desacelerações precoces ou tardias. Os dips umbilicais de curta duração (até 30 s) têm, na sua gênese, apenas o estímulo vagal, enquanto os de longa duração (mais de 30 s), além do fator nervoso, necessitam, para o seu aparecimento, de componente hipoxiante. As desacelerações são classificadas como recorrentes se acontecerem em 50% ou mais das contrações em um intervalo de 20 min.
Figura 43.6 ■ Distinção entre dip precoce e dip tardio por meio do intervalo entre o fundo do dip e o pico da contração. Considera-se dip tardio aquele com intervalo maior que 18 a 30 s.
O padrão de FCF sinusoide é definido como ondulação da linha de base, com ondas em forma de sino, lisas, com frequência de 3 a 5/min por 20 min ou mais. A Figura 43.7 ilustra, esquematicamente, os padrões de FCF em condições normais e de sofrimento, em ordem crescente de gravidade. Os padrões tacométricos que precedem a morte fetal merecem ser descritos – bradicardia profunda terminal e oscilação lisa (“silenciosa”). As alterações transitórias (dips tardios, umbilicais ou espontâneos graves) não são constantes. As indicações para a realização da CTG intraparto são: gestação de alto risco materno-fetal, indução eletiva ou aceleração do trabalho de parto, parto pré-termo, parto gemelar, desenvolvimento de fatores de risco materno-fetal intraparto, taquicardia, bradicardia ou desaceleração à ausculta clínica. ▶ Monitoramento eletrônico fetal. Estudos prospectivos que relacionaram o monitoramento fetal com a ausculta clínica não mostraram qualquer benefício do procedimento eletrônico. Os motivos apontados são os seguintes: • A asfixia perinatal intraparto como causa de paralisia cerebral ocorre em apenas 1 a 2 por 10.000 partos a termo e a tecnologia não pode fornecer resultados significantes em face desses números irrisórios • O monitoramento eletrônico não é bom procedimento preditivo da asfixia • Os acidentes agudos, como o descolamento prematuro da placenta, que determinam paralisia cerebral, surgem tão rapidamente que não há tempo para terminar o parto antes de ocorrer o dano cerebral. O monitoramento fetal eletrônico é largamente utilizado e é o melhor meio de rastreio para detecção de hipoxia fetal, mas vale destacar que as alterações da frequência cardíaca fetal são um método indireto de avaliação da oxigenação do feto e que vários outros fatores a afetam além de hipoxia e acidose.
Assim, a realização sistemática de CTG em pacientes de baixo risco, a despeito de proporcionar redução nos índices de convulsões neonatais, não determina decréscimo nos índices de mortalidade perinatal ou paralisia cerebral. Ao contrário, observou-se que a CTG universalmente empregada propiciou aumento na quantidade de cesarianas e de operatória vaginal. Assim, a CTG não é recomendadada para pacientes sem fatores de risco atendidos na admissão obstétrica ou mesmo durante o trabalho de parto, exceto nos casos em que houver indicação, já sinalados. O ACOG (2010), referendando o NICHD, no Workshop Report on Electronic Fetal Monitoring (2008), estabeleceu diretrizes para a interpretação e a classificação dos traçados da FCF no parto monitorado, assim como a conduta a ser tomada: • Foi reafirmada a nomenclatura da FCF basal, variabilidade, aceleração e desaceleração • Estabeleceu-se nova terminologia para a descrição e a quantificação da atividade uterina. A atividade uterina normal foi definida como de até 5 contrações/10 min em uma janela de 30 min. A taquissistolia foi definida como > 5 contrações/10 min, em uma janela de 30 min, e deve ser classificada pela existência ou não de desacelerações da FCF
Figura 43.7 ■ Representação esquematizada dos padrões de frequência cardíaca fetal (FCF) em condições normais e de asfixia. A. Normal. B. Taquicardia. C. Taquicardia associada a dip tardio. D. Soma de dips. E. Bradicardia sem recuperação. (Adaptada de Caldeyro-Barcia R. et al. Effects of abnormal uterine contractions of fetal heart rate during labor. Papéis principais suplementares. 5o Congresso Mundial de Ginecologia e Obstetrícia. Austrália, 1967.)
• O sistema de classificação dos traçados de FCF intraparto foi dividido em três categorias hierarquizadas: categoria I (normal), categoria II (indeterminada) e categoria III (anormal) (Figura 43.8) • Foram descritas várias medidas de reanimação intrauterina levando em conta os traçados da FCF (Figura 43.9) • Adotou-se a conduta a ser instituída de acordo com as três categorias da FCF (Figura 43.10)
• A categoria I do traçado da FCF é normal e não está associada à acidemia fetal, devendo ser conduzida da maneira habitual, contínua ou intermitente a cada 30 min no 1o estágio do parto e a cada 15 min no 2o estágio • O traçado categoria II é indeterminado e requer acompanhamento continuado; a ocorrência de aceleração (espontânea ou provocada) e de variabilidade moderada (6 a 25 bpm) é altamente preditiva de bom estado acidobásico fetal e pode ajudar a guiar o manejo clínico • O traçado categoria III da FCF é anormal e está associado a elevado risco de acidemia fetal
Figura 43.8 ■ Sistema de interpretação da frequência cardíaca fetal em 3 categorias. (Adaptada do ACOG, 2010.)
Figura 43.9 ■ Medidas de reanimação intrauterina. (Adaptada do ACOG, 2010.)
Figura 43.10 ■ Conduta no parto monitorado de acordo com as três categorias da frequência cardíaca fetal. (Adaptada do ACOG, 2010.)
• O uso em bolus de líquido intravenoso, decúbito lateral e administração de oxigênio, se empregados em conjunto (reanimação intrauterina), pode melhorar as condições fetais no parto • Estabeleceu-se a conduta diante da taquissistolia uterina. Por fim, são critérios estabelecidos para determinar asfixia intraparto: índice de Apgar 0 a 3 no 5o min; sequela neurológica (p. ex., hipotonia, convulsões, coma); disfunção sistêmica multiorgânica no período neonatal imediato; pH do sangue da artéria umbilical < 7,0. A International Cerebral Palsy Task Force, que compreende 16 organizações, incluindo o ACOG, concorda que déficit de base 12 mEq/ℓ é o nível crítico para a lesão aguda hipóxico-induzida fetal no parto. Deve-se salientar que todas essas condições deverão existir para sinalar de modo irrefutável o sofrimento fetal intraparto.
■ Microanálise do sangue fetal A técnica está praticamente em desuso. A microgota, obtida por meio de incisão praticada na apresentação fetal, ajuda a diagnosticar as alterações metabólicas caracterizadas por hipoxia, hipercapnia e acidose. É um teste contraindicado em pacientes com história familiar de hemofilia, suspeita de anomalia de coagulação fetal (p. ex., trombocitopenia), apresentação de face ou infecção materna (HIV, hepatites virais, herpes ou suspeita de corioamnionite). Nos casos de pH ≥ 7,25, a microanálise deve ser repetida se persistir o traçado anormal. Entre 7,21 e 7,24, pode-se repetir a microanálise ou ultimar-se o parto no caso de queda importante do pH. Caso o pH seja ≤ 7,20, a gestação deve ser interrompida, o parto deve ser
imediato.
■ Clínica ▶ Ausculta. Representa o principal parâmetro clínico a fim de despistar sofrimento fetal intraparto. Deve ser realizada, no período de dilatação, a cada 30 min, em pacientes de baixo risco, e a cada 15 min naquelas de alto risco. No período expulsivo, esses intervalos serão, respectivamente, de 15 e 5 min. Nos casos de analgesia peridural, recomenda-se que a auscultação clínica seja realizada com mais frequência, a cada 5 min, em função do risco iminente de hipotensão arterial e diminuição da perfusão uteroplacentária. A ausculta é feita após o fim da contração por prazo de 30 a 60 s. Bradicardia persistente (dip tardio ou umbilical) ocorre quando a FCF for menor que 110 bpm durante ao menos 10 min, indicando sofrimento fetal agudo, bem como os casos de taquicardia, estando a FCF acima de 160 bpm nas mesmas condições. É importante diferenciar a FCF dos batimentos cardíacos maternos. Se houver dúvida, deve-se comparar o ruído ao pulso materno a fim de esclarecer a celeuma. O ritmo também deve ser avaliado. Batimentos regulares ou irregulares podem ser consignados. A FCF é considerada disrítmica quando houver FCF irregular na ausência de contração, o que merece investigação específica (ultrassonografia ou ecocardiografia fetal). Também é possível identificar mudanças na FCF, detectando-se acelerações ou desacelerações da FCF, se houver variação da FCF para mais ou para menos de 15 bpm durante as contrações. Não há nenhum estudo que ateste a superioridade clínica do sonar Doppler sobre o estetoscópio de Pinard no seguimento clínico das pacientes, ainda que o sonar Doppler confira maior conforto ao médico na auscultação da FCF. ▶ Mecônio. Associado a alterações patológicas da FCF e a parto em apresentação cefálica, é sinal de sofrimento fetal. ▶ Síndrome de aspiração de mecônio (SAM). Outrora relacionada com a asfixia fetal intraparto, atualmente está associada a outros fatores: asfixia crônica e infecções congênitas. Foi discutida no Capítulo 30.
■ Significado clínico dos métodos diagnósticos A microanálise, embora seja o mais fidedigno dos procedimentos, não se generalizou devido à sua extrema complexidade. A CTG é o procedimento de escolha, não obstante algumas investigações a equiparem à vigilância clínica acurada do concepto. O monitoramento é obrigatório nos partos com CIR e no parto pré-termo. As desacelerações (tardia e variável) determinadas pelas contrações uterinas indicam estresse asfíxico intermitente no concepto (insuficiência uteroplacentária e fetoplacentária aguda), enquanto a influência cumulativa desses insultos é exteriorizada pela diminuição ou perda da oscilação na linha de base da FCF. Desse modo, a ocorrência de oscilação nos traçados de CTG indica normoxia central (sistema nervoso e miocárdio), enquanto a sua redução, no caso de desacelerações, sugere comprometimento na oxigenação desses órgãos.
A oscilação da FCF pode ser afetada por outras influências que não a asfixia, como anomalias congênitas (anencefalia, bloqueio cardíaco), substâncias (narcóticos, atropina) e estados comportamentais fetais. Durante o parto, a contração uterina, que causa diminuição transitória do fluxo sanguíneo uteroplacentário e umbilical, é capaz de determinar, respectivamente, o dip tardio ou o umbilical. Se o insulto prolonga-se, os dips caminham para sua somação, determinando a bradicardia fetal.
■ Prognóstico Historicamente, a “lesão cerebral” perinatal foi considerada causa importante de paralisia cerebral e retardo mental. Na obstetrícia moderna, o trauma físico durante o parto, como fator etiológico da lesão cerebral, virtualmente desapareceu. Atualmente registra-se que, no máximo, 10% dos casos de paralisia cerebral (e porcentual menor de retardo mental), em recém-nascidos a termo, são decorrentes de asfixia perinatal. As causas devem ser procuradas no decurso da gravidez: genéticas, bioquímicas, infecciosas, asfíxicas etc. A FCF pode ser interpretada por meio de um consenso definido por 3 conceitos centrais (Figura 43.11): • A desaceleração tardia, variável ou prolongada reflete a interrupção no transporte de oxigênio em qualquer local da sua via de transporte, da mãe ao concepto • A existência de aceleração e/ou de variabilidade moderada (6 a 25 bpm) nos traçados de FCF exclui a acidemia metabólica fetal • A lesão neurológica hipóxica fetal e a paralisia cerebral necessitam da acidemia metabólica para que se constituam e estão caracterizadas no sangue da artéria umbilical por pH < 7,0 e déficit de base ≥ 12 mEq/ℓ.
■ Tratamento Pode ser individualizado em profilático, tratamento durante o parto e reanimação do recémnascido.
■ Profilaxia São recomendações do Centro Latino-Americano de Perinatologia e Desenvolvimento Humano (CLAP): • Não romper artificialmente as membranas ovulares* • Não acelerar o parto que progride normalmente • Só utilizar a ocitocina quando a evolução do parto se detém ou se retarda por motivo de deficiência na contratilidade uterina
• Não induzir o parto eletivamente
Figura 43.11 ■ Consenso de paralisia cerebral.
• Utilizar a menor dose de ocitócito capaz de fazer o parto iniciar e progredir, se houver indicação médica para a indução do parto • Monitorar todos os partos induzidos • Monitorar todos os partos em gestação de alto risco • Não efetuar amniotomia para monitorar o parto, exceto se for necessária a análise do sangue fetal • Conhecer todos os elementos que possam influenciar a resposta do útero à ocitocina. Em caso de pacientes com indicação de indução do parto, é importante atentar que a utilização de agentes para amadurecimento cervical e aceleração do parto pode produzir quadros de taquissistolia. A taquissistolia, por sua vez, pode levar à hipoxia fetal com consequentes desfechos desfavoráveis. Assim, foram propostas algumas medidas visando diminuir o risco dessas complicações.
■ Tratamento durante o parto Diversas medidas de reanimação intrauterina podem ser tomadas durante o parto a fim de se resolver o problema fisiopatológico do sofrimento fetal agudo (Tabelas 43.1 e 43.2). Os objetivos da reanimação intrauterina são: reverter qualquer hipoxia que possa levar à deterioração adicional ou pelo menos evitar períodos de padrões tocográficos indeterminados ou anormais que
possam causar preocupação desnecessária a médicos e pacientes, levando a operações desnecessárias, ganhar tempo e otimizar o estado fetal na preparação para o parto operatório.
Tabela 43.1 ■ Algumas recomendações para a indução do parto. Evite a indução do parto antes de 39 semanas Avalie as condições materno-fetais a cada 30 min durante o amadurecimento do colo com misoprostol Avalie as condições materno-fetais a cada 15 min durante a indução do parto com ocitocina Quando se utilizar o misoprostol para o amadurecimento do colo, deve-se iniciar com a dose de 25 µg Quando se administrar ocitocina para a indução do parto, deve-se iniciar com 1 mU/min e aumentar no máximo 1 a 2 mU/min a intervalos mínimos de 30 min Desenvolva protocolo para o tratamento da taquissistolia
Tabela 43.2 ■ Medidas sugeridas para intervenção na atividade uterina excessiva. Reposicionamento materno 500 mℓ em bolus intravenoso de Ringer-lactato Descontinuação do misoprostol Redução ou descontinuação da ocitocina Exclusão de descolamento prematuro da placenta (DPP) Administração de agente tocolítico
■ Como melhorar o aporte de oxigênio Para melhorar o aporte de oxigênio, podem ser realizados os procedimentos a seguir: • Oxigenação materna: a difusão de O2 pela placenta é direcionada pela tensão de O2 e não pela sua concentração, e a PO2 materna pode ser substancialmente elevada por meio da administração sob máscara desse gás à mãe, como demonstram diversas investigações • Concentrado de hemácias: utilizado em condições excepcionais quando for grave a anemia materna (p. ex., hematócrito < 20 a 25%).
■ Como melhorar o fluxo sanguíneo uteroplacentário Para que o fluxo de sangue uteroplacentário seja otimizado, podem ser tomadas as seguintes medidas (Figura 43.9):
• Hidratação intravenosa: em mulheres em trabalho de parto, especialmente naqueles de longa duração, é aconselhável a administração de líquidos em bolus intravenoso, mesmo na ausência de alterações da FCF. A quantidade recomendada de 125 mℓ/h parece estar subestimada. Uma indicação importante é a administração de 500 a 1.000 mℓ de líquido em bolus intravenoso antes das anestesias de condução (raque e peridural), visando impedir a hipotensão materna frequente após o bloqueio anestésico. Há consenso de que o líquido a ser administrado seja a solução salina normal ou o Ringer-lactato. Outras medidas que visam reverter a hipoxia fetal secundária à hipotensão materna são a elevação dos membros inferiores, o desvio do útero para a esquerda e, em casos extremos, a administração de efedrina • Reposicionamento materno: há 2 situações primárias nas quais a mudança da posição materna pode melhorar a oxigenação do concepto e normalizar a FCF. A 1a é maximizando a perfusão placentária, ao evitar a compressão aortocava, substituindo a posição supina pelo decúbito lateral direito ou esquerdo. A 2a é quando ocorrem desacelerações variáveis desfavoráveis por compressão do cordão. Nesse caso, deve-se procurar a posição materna que alivie a compressão umbilical • Descontinuação ou diminuição da ocitocina: o exemplo mais comum de aumento da atividade uterina é a taquissistolia (> 5 contrações em 10 min por 30 min), espontânea ou decorrente do uso indevido de ocitócico. Nessas situações, é fundamental diminuir ou cessar a ocitocina • Administração de tocolítico: o tocolítico deve ser administrado quando houver contratilidade excessiva e padrões indeterminados ou anormais de FCF. O agente escolhido é a terbutalina subcutânea na dose de 0,25 mg. Indicação importante também é enquanto se espera pelo parto operatório e a demora parece excessiva. As medidas sugeridas para tratar a atividade uterina exagerada podem ser vistas na Tabela 43.2.
■ Como aliviar a compressão umbilical Para esse fim, é necessário (Figura 43.9): • Modificação dos puxos maternos: no 2o estágio do parto, é comum haver desacelerações variáveis associadas a circulares do cordão. Nessas circunstâncias, nem a mudança da posição materna nem a amnioinfusão são úteis. Via de regra, a situação é contingente e não há repercussões na vitabilidade fetal. Todavia, quando as desacelerações tornam-se muito prolongadas ou estão associadas a taquicardia ou perda da variabilidade, podem ocasionar acidose fetal. Propõe-se o cessamento ou o espaçamento dos puxos ou puxos dirigidos mais prolongados • Reposicionamento materno: já discutido anteriormente na seção Como melhorar o fluxo sanguíneo uteroplacentário • Amnioinfusão: graus leves de compressão do cordão no parto são frequentes e bem tolerados
pelo feto. No entanto, quando o cenário é o de desacelerações variáveis prolongadas e profundas, com taquicardia e perda da variabilidade, a amnioinfusão com solução de salina normal é uma intervenção bem-sucedida • Elevação da apresentação fetal: a única indicação clara para essa situação é o prolapso do cordão umbilical enquanto se aguarda o parto operatório.
■ Reanimação do recém-nascido Aproximadamente 10% dos recém-nascidos necessitarão de algum tipo de assistência para iniciar a respiração ao nascimento, manter frequência cardíaca acima de 100 bpm, boa cor e tônus muscular adequado. Uma série de ajustes fisiológicos será necessária para que a transição da vida intrauterina para a extrauterina se faça adequadamente. Atualmente, a estratégia do programa de reanimação neonatal na sala de parto da American Academy of Pediatrics (2000) tem sido adotada pela Sociedade Brasileira de Pediatria e recomendada para uso universal. ▶ Índice de Apgar. As diretrizes do Programa de Ressuscitação Neonatal da American Academy of Pediatrics/American Heart Association estabeleceram: “o índice de Apgar não deve ser utilizado para ditar normas apropriadas de reanimação, nem deverá se esperar 1 min para se tomar a atitude apropriada no recém-nascido deprimido.” Todavia, o índice de Apgar de 5 min é bom indicador da resposta à reanimação. Se o índice de Apgar for 7 com 5 min, as diretrizes de reanimação neonatal estabelecem que ele deverá ser repetido a cada 5 min até 20 min. Todavia, o índice de Apgar avaliado após manobras de reanimação neonatal não é igual àquele determinado quando o recém-nascido respira espontaneamente.
■ Procedimentos para reanimação Ao nascimento, é preciso responder às seguintes perguntas: • A gestação é a termo? • O líquido amniótico está livre de mecônio? • O recém-nascido respira ou chora? • O recém-nascido apresenta bom tônus muscular? • A cor do recém-nascido é rosada? Se a resposta para todos os itens precedentes for sim, pode-se atender o recém-nascido no colo da mãe, secando e limpando suas vias respiratórias e providenciando seu aquecimento com o contato com a mãe. Se a resposta a qualquer um dos itens precedentes for não, será preciso seguir as etapas de atendimento sintetizadas na Figura 43.12 e apresentadas a seguir: • Etapa A: estabelecimento de via respiratória pérvia; 30 s ○ Posicione o recém-nascido, aspire e desobstrua as vias respiratórias ○ Providencie aquecimento colocando o recém-nascido em berço de calor radiante, seque-o e
retire os campos úmidos
Figura 43.12 ■ Algoritmo de reanimação neonatal. *A intubação pode ser necessária nessas etapas.
○ Seque-o, estimule-o e reposicione-o ○ Ofereça oxigênio se necessário ○ Avaliação da Etapa A: ■ Respiração ■ Frequência cardíaca ■ Cor ■ Se o recém-nascido apresentar apneia ou frequência cardíaca abaixo de 100 bpm, passe para a etapa seguinte
• Etapa B: respiração ○ Providencie ventilação com pressão positiva, usando balão e oxigênio ○ Avalie novamente em 30 s ○ Considere a intubação traqueal ○ Se o recém-nascido estiver respirando e com frequência cardíaca acima de 100 bpm, siga os cuidados anteriores, pare a ventilação, forneça oxigênio suplementar e avalie a cor ○ Se, apesar da ventilação eficaz, a frequência cardíaca permanecer abaixo de 60 bpm ou próxima desse valor, sem subir, passe para a etapa seguinte • Etapa C: circulação ○ Continue ventilando ○ Inicie a massagem cardíaca ○ Reavalie em 30 s ○ Se a frequência cardíaca se mantiver abaixo de 60 bpm, passe para a etapa seguinte • Etapa D: fármacos ○ Administre adrenalina ○ Administre expansor de volume se houver choque ○ Utilize a veia umbilical para administração de medicamentos na sala de parto, pois é a melhor via e a de acesso mais fácil. Use os procedimentos padrões para cateterismo umbilical: campos e cateteres estéreis etc. ▶ Cuidados pós-reanimação. Os recém-nascidos ressuscitados podem voltar a apresentar a deterioração dos sinais vitais a qualquer momento, portanto devem ser colocados em unidades de tratamento intensivo e monitorados cuidadosamente. ▶ Não início e descontinuação da reanimação. O não início da ressuscitação assim como sua descontinuação são eticamente equivalentes, e o médico pode negar suporte quando a sobrevida for altamente improvável. As seguintes normas são recomendadas para se iniciar ou não a reanimação: • Quando tempo de gestação, peso do recém-nascido ou anomalias congênitas estão associados à morte precoce certa ou morbidade inaceitável, a ressuscitação não está indicada. Exemplos incluem prematuridade extrema (23 semanas ou peso de 400 g), anencefalia e anomalias cromossomiais incompatíveis com a vida (trissomia) • Se houver grande possibilidade de sobrevida, com morbidade aceitável, a ressuscitação está indicada. Isso inclui recém-nascido com idade gestacional de 25 semanas (a menos que haja evidências de grande comprometimento fetal, como infecção intrauterina ou hipoxia isquêmica) e a maioria das malformações congênitas • Em condições associadas a prognóstico incerto, o desejo dos pais deve ser atendido • Recém-nascidos sem sinais de vida (batimento cardíaco ou respiração espontânea) após 10
min de ressuscitação apresentam alta mortalidade ou grave comprometimento no desenvolvimento neurológico. Após 10 min de esforços de reanimação contínua e adequada, justifica-se a sua descontinuação se não houver sinais de vida.
■ Pontos-chave O sofrimento fetal agudo ocorre durante o parto e bioquimicamente está caracterizado por hipoxia, acidose e hipercapnia. A fisiopatologia do sofrimento fetal agudo decorre da insuficiência uteroplacentária aguda (hiperatividade uterina ou hipotensão materna) ou da insuficiência fetoplacentária aguda (patologia do cordão). O monitoramento do parto visando ao diagnóstico do sofrimento fetal agudo é feito pela cardiotocografia (CTG). Os padrões cardiotocográficos que exprimem o sofrimento fetal são: taquicardia, taquicardia e dips tipo II (tardio), soma de dips, bradicardia. A ausculta clínica desarmada é feita 30 a 60 segundos após o fim da contração uterina. Bradicardia menor que 110 bpm, por 3 ou mais contrações consecutivas, e taquicardia acima de 160 bpm são sinais de sofrimento fetal. A eliminação de mecônio, associada a alterações patológicas da frequência cardíaca fetal, em conceptos de apresentação cefálica, é também sinal de sofrimento fetal. São recomendações para a profilaxia do sofrimento fetal agudo: não romper artificialmente as membranas ovulares, só utilizar ocitocina quando a contratilidade uterina for insuficiente, não induzir o parto eletivamente, monitorar todos os partos induzidos ou em gestação de alto risco, dar preferência à cardiotocografia externa. O tratamento do sofrimento fetal agudo no parto tem como objetivos: procurar a posição da paciente que alivie o sofrimento fetal, correção da hipotensão materna, diminuição da atividade uterina (betamiméticos), hiperoxia materna, terminação do parto pela operação cesariana. Os recém-nascidos terão a sua vitabilidade avaliada pelo índice de Apgar e pelo pH do sangue da artéria umbilical. Os recém-nascidos deprimidos (Apgar 0 a 7) serão reanimados com procedimentos de complexidade crescente: aspiração de secreções, administração de oxigênio sob máscara, intubação endotraqueal, massagem cardíaca externa, administração de adrenalina. A reanimação pode ser descontinuada se, após 10 min de aplicação dos procedimentos adequados, não houver circulação espontânea.
_________ *A amniotomia facilitaria a deformação da cabeça fetal (efeito traumático: bossa serossanguínea e cavalgamento dos parietais) e a oclusão dos vasos umbilicais (efeito asfíxico) durante as contrações uterinas. Em consequência do efeito traumático, dips cefálicos, sequelas da compressão funicular e dips umbilicais aparecem com maior frequência. Não se procedendo à amniotomia, a fase de dilatação demora, em média, pouco mais de 50 min. Trabalhos de outros autores não têm confirmado que a amniotomia precoce seja prejudicial ao concepto.
■ A. Distocias do Trajeto ■ Distocias do trajeto mole ■ Distocias do trajeto duro (vícios pélvicos)
■ B. Desproporção Cefalopélvica ■ Avaliação clínica da insinuação da cabeça fetal
■ C. Distocia de Ombros ■ Predição e prevenção ■ Complicações ■ Tratamento
A. Distocias do Trajeto As muitas considerações patológicas do canal do parto dificultam a evolução do trabalho e constituem as distocias do trajeto, que ocorrem nas partes moles (distocia do trajeto mole) ou no arcabouço ósseo da pelve (distocia do trajeto duro – vícios pélvicos).
■ Distocias do trajeto mole Podem ser ocasionadas pelas anomalias localizadas em qualquer uma das porções do canal do parto (colo, vagina, vulva) e por tumorações prévias, genitais ou extragenitais.
■ Distocias do colo ▶ Rigidez. Caracterizada pela dureza, resistência e inextensibilidade do colo, é observada em primigestas idosas, nas pacientes de cervicites ou como consequência de operações plásticas e cauterizações. A rigidez cervical dificulta ou impede a dilatação, podendo, nos casos malconduzidos, levar à amputação espontânea do órgão. Nessa complicação, as contrações uterinas comprimem a apresentação e produzem zona isquêmica na porção intravaginal do colo. A prova de trabalho de parto é uma medida que se pode tentar; verificada a impossibilidade da dilatação, a cesariana passa a ser necessária. ▶ Aglutinação (Figura 44.1). Decorre de processos infectuosos que, destruindo os epitélios da cérvice, determinam a justaposição das bordas do orifício externo. Ao toque, no parto adiantado, percebe-se, em vez de orifício, tubérculo ou depressão punctiforme, circunscrito por anel resistente. Limitando-se a aglutinação ao orifício externo, o colo se apaga completamente; ele é delgado e, muitas vezes, são percebidas, através dele, suturas e fontanelas, o que leva o parteiro inexperiente a supor que a dilatação esteja completa.
Figura 44.1 ■ Aglutinação do colo.
A pressão do dedo, seguida de movimentos em espiral, para desfazer bridas e deslocar o polo inferior do ovo, é uma técnica singela, mas capaz de resolver a maioria dos casos. No entanto, devido a aderências mais fortes (conglutinação), essa medida pode ser ineficaz e, nesse caso, a operação cesariana é o melhor caminho; extraído o feto, é necessário, por via retrógrada, restabelecer o canal cervical. ▶ Distopias. As alterações da estática uterina, espontâneas ou determinadas pelas operações corretoras de prolapso ou retroversão, podem acarretar expansão desigual do segmento inferior, na maioria das vezes com predominância de sua parede anterior, ocasionalmente da posterior ou das laterais, originando saculação que produz desvio do colo para trás, para a frente ou para os lados. Trata-se da dilatação saciforme (Figura 44.2), confundida com a bolsa das águas e a dilatação completa. Por meio do segmento, muito fino, é possível notar suturas e fontanelas.
Figura 44.2 ■ Dilatação saciforme do segmento inferior. A. Desvio do colo para a frente. B. Desvio posterior.
▶ Edema. É observado nos partos prolongados, por compressão do colo entre a apresentação e a pelve. No geral, abrange toda a cérvice e é predominantemente encontrado no lábio anterior. A infiltração edematosa dificulta a dilatação, chegando a impedi-la; caso a situação se prolongue, pode ocorrer necrose dos tecidos cervicais.
Nos casos simples, com dilatação avançada, a conduta consiste em arregaçar o lábio anterior, levando-o para cima da apresentação. Quando a dilatação permanece estacionária, é preciso realizar operação cesariana.
■ Distocias da vagina ▶ Septos. Geralmente congênitos, podem ser longitudinais ou transversais, completos ou incompletos. Os longitudinais são mais frequentes e, muitas vezes, vêm acompanhados de outras anomalias do aparelho genital. Os septos longitudinais totais quase sempre se associam ao útero duplo, havendo dois orifícios cervicais e duas cavidades uterinas independentes. Poderá surgir gravidez em um ou em outro hemiútero (a ocorrência em ambos é rara) e o parto evoluir normalmente. Quando distocia se interpõe, geralmente é motivada pelo hemiútero vazio e não pelo septo vaginal. O septamento incompleto cria, frequentemente, obstáculo ao parto, indicando a cesariana.
■ Distocias da vulva Em geral, não causam dificuldades consideráveis ao desprendimento da apresentação, sendo, em sua maioria, resolvidas pela episiotomia. ▶ Varizes. Não acarretam maiores transtornos; no entanto, é necessário ter atenção quanto a rupturas, que ocasionam hematomas vulvovaginais, próprios do sobreparto, embora também ocorram na gravidez. ▶ Cistos e abscessos da glândula de Bartholin. Em pequenas dimensões, não costumam causar distocias; caso estejam muito desenvolvidos, devem ser extirpados ou incisados. ▶ Condilomas acuminados. Não costumam dificultar a expulsão do feto, mas acarretam rupturas complicadas, difíceis de reparar. A episiotomia será feita em local livre de vegetações; conforme a extensão, indica-se a cesárea. ▶ Linfogranulomatose venérea. Durante o período expulsivo, a infiltração e a reduzida elasticidade dos tecidos vulvoperineais e perirretais dificultam a progressão e a expulsão; esta ocorre à custa de rupturas importantes, cuja cicatrização é lenta devido à infecção. O traumatismo do parto é também desfavorável à evolução da doença, o que facilita a disseminação. A operação cesariana evita esses agravos e outras complicações. ▶ Hímen. Casos de parturiente com hímen normal e íntegro são exceções. Não há razões médicas para indicar cesariana. O hímen anormal é uma condição que oferece considerável resistência ao desprendimento da apresentação e constitui ponto de origem de grandes rupturas, sendo necessário seccionar o anel fibroso ou desinseri-lo à ponta de tesoura.
■ Tumorações prévias Denominam-se prévias as tumorações que ficam à frente da apresentação fetal e, por sua
localização, dificultam ou impedem a progressão do móvel. Distinguem-se em genitais e extragenitais, sendo as primeiras mais frequentes. ▶ Miomas uterinos. Os miomas do corpo raramente obstruem o canal do parto (Figura 44.3 A); somente os subserosos, com grande pedículo, tendem, eventualmente, a penetrar na pelve. Os nódulos que se desenvolvem no segmento inferior, por sua situação mais baixa que a apresentação, costumam prejudicar ou impedir o parto transpélvico (Figura 44.3 B).
Figura 44.3 ■ Distocia por mioma uterino. A. Neste caso, o tumor não impede a parturição. B. Neste caso, assume as características de tumor prévio.
Não é rara a ascensão do tumor durante a gravidez ou no decurso do trabalho, tornando possível a passagem da cabeça fetal. No parto, deve-se atentar para a possibilidade de ocorrer ruptura uterina quando a parturição é obstruída. Nos miomas prévios bloqueantes, a via única é a abdominal, cesárea seguida ou não de ablação do tumor (miomectomia ou histerectomia), conforme o caso. ▶ Cistos e tumores do ovário. Cistos do ovário e tumores sólidos, ocasionalmente, podem tornar-se bloqueantes, impedindo o parto pela via natural. Ao contrário dos miomas, apenas excepcionalmente sofrem deslocamento espontâneo para cima. A ruptura dos cistos papilíferos pode causar a disseminação das papilas epiteliais pela cavidade peritoneal; elas aderem ao peritônio e proliferam. A indicação adequada é a
laparotomia, para histerotomia e ooforectomia parcial.
■ Tratamento A operação cesariana resolverá os casos impeditivos do parto vaginal.
■ Distocias do trajeto duro (vícios pélvicos) A pelve viciada apresenta acentuada redução de um ou mais de seus diâmetros, ou modificação apreciável de forma. O estudo detalhado dos vícios pélvicos, que ocupava a parte nobre e mais extensa dos antigos compêndios, perdeu valimento; a operação cesariana, segura e trivial, tornou essas cogitações anacrônicas para a prática obstétrica.
■ Diagnóstico Os vícios pélvicos de grande porte são facilmente diagnosticados durante os exames prénatais, pela pelvimetria externa ou à simples inspeção; causam transtornos já durante as últimas fases da gravidez – a cabeça se mantém alta, provocando dificuldades respiratórias. Esses distúrbios são mais acentuados nas cifoescolióticas, porque o espaço abdominal apresenta-se diminuído devido à descida do tórax; não é raro o nivelamento das costelas com os rebordos da pelve. Em tais circunstâncias, há comprometimento da circulação e diminuição da ventilação pulmonar, motivos de mau prognóstico. Defeitos mais discretos costumam ser rastreados somente no decurso do trabalho, que não progride, apresenta-se distócico, sendo incapaz de se resolver pelas vias naturais.
■ Parto no vício pélvico Neste caso, é muito difícil estabelecer o prognóstico; deformidades ligeiras podem possibilitar o parto natural. O tamanho reduzido do feto, a plasticidade da cabeça (se a apresentação for cefálica) e a boa cinética uterina tornam possível a expectação armada. Os graves vícios obrigam, desde logo, à via alta. O parto prolongado e os tocotraumatismos ameaçam a higidez do feto e da mãe. Como norma, está indicada a operação cesariana; nos casos duvidosos, no entanto, pode ser tentada a prova de trabalho, comentada mais adiante.
B. Desproporção Cefalopélvica A desproporção cefalopélvica (DCP) implica a falta de proporcionalidade entre a cabeça fetal e a pelve materna (Figuras 44.4 e 44.5). Nas apresentações cefálicas, a desproporção decorre do volume demasiado ou da atitude
viciosa da cabeça. No entanto, as apresentações anômalas constituem casos particulares de desproporção, e o uso limita o estudo da proporcionalidade ao da relação cefalopélvica, excluídas, naturalmente, as atitudes defletidas (Capítulo 45). Mulheres de pequena estatura com fetos grandes correm o risco de desenvolver o problema, além de fraturas prévias da pelve ou doenças ósseas metabólicas.
■ Avaliação clínica da insinuação da cabeça fetal Na primípara, caso a cabeça não se insinue antes ou até a proximidade do parto, fica caracterizada a suspeita de desproporção cefalopélvica. Na multípara, o polo costuma se encaixar no período expulsivo, não tendo significado maior sua persistência, alta e móvel, no início do trabalho de parto. Considera-se a cabeça insinuada quando o vértice alcança ou ultrapassa a altura das espinhas ciáticas, plano “0” (zero). O aprofundamento da cabeça na escavação é anotado pelo número de centímetros que se distanciam desse ponto ao ápice da apresentação. Para cima: “–1”, “–2” etc., para baixo: “+1”, “+2” etc. Suspeita-se de desproporção cefalopélvica se: • O progresso do parto for lento e arrastado, apesar da eficiente contratilidade uterina • Não houver insinuação da cabeça fetal (nas primíparas) • O toque vaginal revelar moldagem acentuada da cabeça e bossa serossanguínea • A cabeça estiver deficientemente aplicada ao colo. ▶ Sinal de Farabeuf. Pelo toque vaginal, é possível procurar esse sinal, muito do apreço dos clássicos, mas de valor relativo, pois mostra apenas a altura do ápice da apresentação (Figura 44.6).
Figura 44.4 ■ As relações da cabeça com a sínfise púbica. A. Boa proporcionalidade cefalopélvica. B. Pequena desproporção. C. Grande desproporção.
Figura 44.5 ■ A. Cabeça passando pelo estreito inferior normal. B. Bacia afunilada: ângulo subpúbico angustiado, deslocando a cabeça para trás; o diâmetro sagital posterior do estreito inferior é amplo e possibilita a parturição. C. Ângulo subpúbico muito estreitado, não compensado pela amplitude do diâmetro sagital posterior; o parto não ocorre.
Figura 44.6 ■ Sinal de Farabeuf para o diagnóstico da insinuação. A. A cabeça está apenas adaptada ao estreito superior: três dedos podem ser introduzidos entre o vértice da apresentação, o plano do cóccix e o do períneo. B. Apresentação insinuada: apenas dois dedos podem ser colocados. C. Cabeça profundamente insinuada: somente um dedo.
■ Radiologia, ultrassonografia e diagnóstico Os possíveis efeitos ominosos decorrentes dos raios X e a constante prática da operação cesariana tornaram o método obsoleto. A ultrassonografia, inócua, fornece apenas, com exatidão, a conjugata vera e o diâmetro biparietal (DBP) do feto. Atualmente, o diagnóstico da DCP baseia-se na observação de trabalho de parto protraído ou das “paradas de progressão” durante a fase ativa. Estas, por sua vez, podem decorrer de distocias funcionais, malposições (p. ex., deflexão, assinclitismo) ou apresentações anômalas (p. ex., mento posterior, fronte), condições mais frequentes que a DCP em si. Na prática, após o diagnóstico da parada de progressão, a primeira medida deve ser otimizar a atividade uterina com amniotomia e ocitocina. Caso a contratilidade uterina já tenha sido otimizada e o parto permaneça distócico, devem ser implicadas causas mecânicas. O uso do partograma é indispensável para monitorar o progresso do parto, tornando possível a identificação de anormalidades e a realização de
intervenções adequadas. Em geral, as alterações de parada secundária da dilatação e parada secundária da descida auxiliam na suspeita da possibilidade de DCP, especialmente quando o feto não está insinuado (Capítulo 42).
■ Tratamento Pode ser permitida a prova de trabalho, embora a cesariana seja o procedimento de escolha. É importante ressaltar: o fórceps é péssimo instrumento na desproporção cefalopélvica.
C. Distocia de Ombros A distocia de ombros ocorre quando a extração dos ombros não se realiza após a tração de rotina, sendo necessárias manobras adicionais. Na maioria dos casos, a distocia ocorre no ombro anterior impactado na sínfise materna. A incidência de distocia de ombros nos EUA e no Reino Unido é de 0,6%. Trata-se de verdadeira emergência obstétrica, pois quase 50% dos fetos morrem por hipoxia/acidose dentro de 5 min da liberação da cabeça.
■ Predição e prevenção Embora haja inúmeros fatores de risco associados à distocia de ombros (Tabela 44.1), na verdade, ela é imprevisível; até mesmo a macrossomia fetal, o principal fator de risco, não é bom preditor. A maioria dos bebês > 4.500 g não desenvolve a distocia de ombros e quase 50% dos bebês com essa complicação pesam menos de 4.000 g. Além disso, a ultrassonografia de terceiro trimestre tem apenas 60% de sensibilidade para macrossomia (peso > 4.500 g). A cesárea eletiva para evitar a distocia de ombros somente está indicada em pequeno grupo de mulheres com diabetes e suspeita de macrossomia fetal (peso estimado > 4.500 g). Igualmente, a cesárea eletiva está indicada sempre que o peso estimado fetal for maior que 5.000 g.
■ Complicações A morbidade e a mortalidade perinatal estão elevadas, assim como a morbidade materna, especialmente pela hemorragia pós-parto e lacerações de períneo de 3o e de 4o graus. A complicação fetal mais frequente é a paralisia do plexo braquial, seguida da fratura de clavícula e do úmero (Figura 44.7). Praticamente todas as paralisias se resolvem em 6 a 12 meses, mas 10% se tornam definitivas.
Tabela 44.1 ■ Fatores de risco associados à distocia de ombros. Anteparto
Intraparto
Distocia de ombros prévia
Primeiro estágio do parto prolongado
Macrossomia
Parada secundária
Diabetes
Segundo estágio do parto prolongado
Índice de massa corporal materno > 30 kg/m 2
Estimulação com ocitocina
Indução do parto
Parto vaginal assistido (fórceps)
Figura 44.7 ■ Estiramento do plexo braquial por distocia de ombro.
■ Tratamento A distocia de ombros é óbvia quando a cabeça fetal se exterioriza e se retrai, o que é comumente referido como “sinal da tartaruga”. Conforme já mencionado, a distocia de ombros é emergência obstétrica e são necessárias manobras imediatas para solucioná-la. As técnicas obstétricas podem ser divididas em: 1a linha, 2a linha e 3a linha. São consideradas medidas preliminares: • Chamado para ajuda: requisição de obstetra mais experiente, auxiliares, anestesista e neonatologista • Episiotomia: a episiotomia por si só não soluciona a distocia de ombros, que é problema ósseo; no entanto, ela pode ser necessária para manobras internas discutidas adiante • Abandonar a força excessiva: não deve ser aplicada força em excesso sobre a cabeça ou o pescoço nem exercer pressão no fundo do útero, porque essas manobras não deslocam o ombro impactado e podem lesionar a mãe e o feto • Colocar as nádegas da paciente na borda da mesa.
■ Manobras de 1a linha São consideradas de 1a linha: a manobra de McRoberts e a pressão suprapúbica. ▶ Manobra de McRoberts. Flexão e abdução das coxas em direção ao abdome materno (Figura 44.8). Essa posição retifica o ângulo lombossacro e roda a sínfise púbica em direção cefálica, fazendo com que o ombro posterior caia na concavidade do sacro. A manobra de McRoberts é a intervenção isolada mais efetiva, com taxa de êxito de 90%, e deve ser a primeira a ser tentada.
Figura 44.8 ■ Posição de McRoberts.
▶ Pressão suprapúbica. Deve ser utilizada simultaneamente com a manobra de McRoberts (Figura 44.9). A pressão suprapúbica reduz o diâmetro biacromial e o roda para um dos diâmetros oblíquos da pelve; assim, o ombro é capaz de deslizar por baixo da sínfise com a ajuda da tração de rotina. A pressão suprapúbica externa é aplicada para baixo e para o lado, de modo a empurrar o ombro anterior em direção ao tórax fetal.
Figura 44.9 ■ Manobra de McRoberts. Hiperflexão e abdução das coxas sobre o abdome materno (seta horizontal) e pressão suprapúbica simultânea (seta vertical). (Adaptada de Baxley e Gobbo, 2004 – op. cit.)
■ Manobras de 2a linha Constituem as manobras internas de rotação (Rubin II e Woods) e a extração do braço posterior; além disso, também está incluída a manobra da posição de 4. ▶ Manobras de rotação interna. São manobras que tentam manipular o feto e rodar o ombro anterior para um plano oblíquo da bacia, a fim de desvencilhá-lo da sínfise materna. Compreendem a manobra de Rubin II, que consiste em inserir os dedos atrás do ombro anterior, tentando rodá-lo em direção ao tórax fetal (Figura 44.10), e a manobra de saca-rolha de Woods, na qual o parteiro coloca a mão atrás do ombro posterior do feto, tentando rodá-lo a 180° (Figura 44.11).
Figura 44.10 ■ Manobra de Rubin II. A. O diâmetro biacromial é mostrado como a distância entre as duas setas pequenas. B. O ombro anterior é empurrado em direção ao tórax fetal, reduzindo o diâmetro biacromial e liberando o ombro anterior encravado. (Adaptada de Cunningham, F. G. et al., Williams Obstetrics. 22nd ed., New York, McGraw-Hill, 2005.)
Figura 44.11 ■ Manobra de Woods. A mão é colocada atrás do ombro posterior do feto, que é então rodado progressivamente a 180°, de maneira similar ao movimento de um saca-rolha, de modo a desencravar o ombro anterior. (id., ibid.)
▶ Extração do braço posterior. A mão do operador é introduzida na vagina. O cotovelo fetal é flexionado e o antebraço é liberado em movimento de varredura sobre a parede anterior do tórax fetal (Figura 44.12). A mão é segurada e o braço é estendido ao longo da face fetal, liberando-o da vagina. Isso encurta o diâmetro biacromial e possibilita que o feto caia na concavidade sacra, liberando o ombro anterior impactado. ▶ Manobra da posição de 4. Consiste literalmente em colocar a paciente em posição de 4, resultando frequentemente no desencravamento do ombro anterior. Certamente, essa manobra é mais apropriada em mulher magra e móvel, sem o efeito de anestesias de condução.
Figura 44.12 ■ Remoção do ombro posterior. A. A mão do operador é introduzida na vagina e segura o braço posterior, mantendo o cotovelo flexionado, trazendo o braço fletido em movimento de varredura sobre o tórax. B. A mão fetal é apreendida e o braço é estendido ao longo da face. C. O braço posterior é extraído da vagina. (id., ibid.)
■ Manobras de 3a linha São manobras heroicas, de exceção, propostas na última tentativa de evitar o óbito fetal. São consideradas de 3a linha: a clidotomia (fratura deliberada da clavícula anterior), a manobra de Zavanelli (recolocação da cabeça fetal no útero, seguida de cesárea) e a sinfisiotomia (secção da cartilagem fibrosa da sínfise sob anestesia local). A manobra de Zavanelli talvez seja mais apropriada para os casos raros de distocia de ombros bilateral, quando ambos os ombros estão impactados – anteriormente acima do púbis e posteriormente sob o promontório sacro (Figura 44.13).
A Figura 44.14 é algoritmo que sintetiza a sequência de manobras utilizadas para o tratamento das distocias de ombros.
Figura 44.13 ■ Manobra de Zavanelli. Sob tocólise, é o polo cefálico rodado para OP ou OS, flexionado e impulsionado para refazer o caminho pela fieira pélvica. A cesárea é o proximo passo. (Adaptada de O’Grady, J. P. & Gimovsky, M. L., Operative Obstetrics, Baltimore, Williams & Wilkins, 1995.)
Figura 44.14 ■ Algoritmo para o tratamento da distocia de ombros. (Royal College of Obstetricians and Gynecologists. Shoulder dystocia. RCOG Guideline no. 42, 2005.)
■ Pontos-chave As distocias do trajeto podem ser do trajeto mole (colo, vagina, vulva, tumorações prévias) ou do trajeto duro (vícios pélvicos).
A pelve viciada é a que apresenta acentuada redução de um ou de mais de seus diâmetros, ou modificação apreciável de sua forma. Muito mais importante do que estudar os vícios pélvicos isoladamente é avaliar a proporcionalidade entre a bacia e o feto; o problema clínico que se configura é o da desproporção cefalopélvica. O diagnóstico da desproporção cefalopélvica pode ser feito pelos seguintes procedimentos: avaliação clínica da insinuação da cabeça fetal (sinal de Farabeuf), radiologia, ultrassonografia e prova de trabalho de parto. Prestimoso é o sinal de Farabeuf para o diagnóstico da insinuação: a cabeça está apenas adaptada ao estreito superior – três dedos podem ser introduzidos entre o vértice da apresentação e o plano do cóccix-períneo; apresentação insinuada – podem ser colocados apenas dois dedos; cabeça profundamente insinuada – somente um dedo. A prova de trabalho de parto consiste em observar a evolução do parto nas distocias relativas, acompanhando durante algum tempo (no máximo 6 h) os fenômenos mecânicos, plásticos e dinâmicos da parturição. O fórceps é um péssimo instrumento da desproporção cefalopélvica, e a cesárea é o procedimento de eleição. Com o feto morto, sua extração deve ser precedida da redução de diâmetro por meio da embriotomia. A distocia dos ombros é, em geral, consequência da macrossomia fetal. A distocia dos ombros é uma emergência obstétrica que pode levar inclusive ao óbito fetal, além de causar complicações como paralisia do plexo braquial, fratura da clavícula e do úmero. Inúmeras manobras podem ser experimentadas para desencravar os ombros da pelve, como manobra de McRoberts, pressão suprapúbica, manobras de rotação interna, extração do ombro posterior etc.
■ A. Apresentações Cefálicas ■ Occipitoposteriores ■ Diretas ■ Transversas persistentes ■ Defletidas (face, fronte, bregma)
■ B. Apresentação Pélvica ■ Incidência ■ Etiologia ■ Diagnóstico ■ Mecanismo do parto ■ Prognóstico ■ Conduta
■ C. Apresentação Córmica ■ Etiologia ■ Estática fetal ■ Diagnóstico ■ Mecanismo do parto ■ Prognóstico
■ Conduta
A. Apresentações Cefálicas ■ Occipitoposteriores Como referido no Capítulo 13, os tocólogos franceses, seguidos, principalmente, pelos latinos, consideram a posição occipitoesquerda anterior (OEA) a mais frequente (1a posição, 60%) e, em ordem decrescente, a occipitodireita posterior ([ODP], 2a posição, 32%) e a occipitoesquerda posterior ([OEP], 6% restantes). A occipitodireita anterior (ODA), “que não se encontra quase nunca” (1%), é bem mais rara. Os anglo-saxões, com base em estudos radiográficos, consideram a occipitoesquerda transversa (OET) a posição mais frequente da cabeça, ao insinuar-se. Considerando-se todos os tipos de bacia, as taxas de frequência são as seguintes: • Posição oblíqua posterior: 18,5% • Posição transversa: 60% • Posição oblíqua anterior: 16% • Posição anterior direta: 5,5%. A insinuação depende da forma da bacia e a preferência pelos diâmetros transversos é, predominantemente, no tipo ginecoide e no platipeloide. Nas pelves androides, e especialmente nas antropoides, há tendência ao encaixamento em occipitoposterior. Tudo leva a crer que a principal causa do encaixamento em variedade de posição posterior seja a exiguidade do sacro. Quando isso acontece, a cabeça geralmente se apresenta com flexão incompleta. O parto é mais lento, já que a rotação do polo cefálico ocorre em arco de círculo de 135°, em vez de 45° como nas anteriores, e 90° nas transversas (Figura 45.1). A rotação anterior (de 135°) ocorre até o fim do 1o período e até mais cedo nas multíparas; nas primiparturientes, faz-se de modo gradual, durante a fase expulsiva, e quase sempre ultrapassado o estreito inferior. Em grau de exceção, insinua-se e desce o polo em posterior, o que é mais comum nas pelves antropoides. Em 10% dos casos, a cabeça roda para trás, terminando-se o parto em occipitossacra. Esse desprendimento em occipitossacra (OS) ocorre em sentido inverso do processado em occipitopúbica (OP), por movimento de hiperflexão da cabeça (Figura 45.2). Aparece primeiramente a pequena fontanela por meio do orifício vulvar. A cabeça progride hiperfletida, até que o nariz se encontre sob a arcada pubiana. Quando o suboccipital alcança a fúrcula, a cabeça sofre movimento de báscula para trás (deflexão) e se libertam nariz, boca e mento. Os demais tempos ocorrem como no mecanismo típico. O desprendimento em OS é pouco favorável e bem mais demorado do que o processado em
OP, porque a cabeça fica em flexão incompleta, apresentando diâmetros maiores e forçando distensão mais importante do anel vulvar. Se existir flacidez de tecidos ou ruptura perineal, o parto termina sem maiores dificuldades. Do contrário, a demora na expulsão expõe a grandes rupturas, o que pode ser impedido com episiotomia profilática.
Figura 45.1 ■ Mecanismo do parto em occipitoesquerda posterior (OEP). A e B. Insinuação e flexão. C e D. Descida e rotação para occipitoesquerda transversa (OET), depois para occipitoesquerda anterior (OEA). Daí em diante o mecanismo é igual ao das occipitoanteriores (Capítulo 13).
Figura 45.2 ■ Outra modalidade do mecanismo de parto em occipitoesquerda posterior (OEP). A e B. Descida e rotação para occipitossacra (OS). C e D. Desprendimento em OS e movimento de restituição.
■ Conduta Após a dilatação total, as occipitoposteriores e as transversas ocorrem em 15% dos partos. A rotação manual da cabeça fetal para a posição anterior (Figura 45.3), realizada durante a contração uterina, e indicada quando o colo apresenta dilatação total ou após a espera de 1 a 2 h,
costuma ser bem-sucedida em 90% dos casos, com redução significativa (55%) do parto operatório. A rotação para OP com o fórceps é feita com frequência cada vez menor.
■ Diretas As apresentações de vértice, ao penetrarem no estreito superior em OP ou OS, acomodam-se, encaixam-se e progridem assim. Ocorrem nas bacias ginecoides em aproximadamente 1% dos casos e, mais raramente ainda, nas androides. Apesar de ser, então, considerada excepcional, essa ocorrência é encontrada com frequência maior (17%) nas bacias antropoides, o que pode ser explicado pela predominância do diâmetro conjugata vera sobre os demais do estreito superior.
Figura 45.3 ■ Rotação manual da cabeça em occiptoposteriores. (Adaptada de Le Ray C., DeneuxTharaux C, Khireddine I. et al. Manual rotation to decrease operative delivery in posterior or transverse positions. Obstet Gynecol, 2013; 122:634.)
O prognóstico não seria desfavorável, não fossem os demais percalços das pelves aludidas. Existindo boa proporção cefalopélvica e outras condições propícias, o parto pode terminar naturalmente, embora com os malefícios dos trabalhos demorados. A cabeça transpõe todo o canal na mesma posição do encaixamento e se desprende sem sofrer rotação interna.
■ Transversas persistentes As posições transversas transpõem o estreito superior sem óbices, transformadas ou não em oblíquas anteriores, ao penetrarem na pequena bacia. Em plena escavação, o significado delas é diverso (transversas persistentes). Podem resultar de alteração de forma da cabeça ou da pelve. Diante de contrações uterinas fortes, essas posições conseguem vencer a dificuldade, pois o polo cefálico roda para diante e tudo termina como nas
oblíquas anteriores. Entretanto, se a despeito de contrações satisfatórias não houver progressão, fica constituída distocia genuína – distocia de rotação. Quando, além disso, também ocorre assinclitismo, o que costuma acontecer nas bacias achatadas, a cabeça fica encravada e o parto estaciona. Apenas a cesárea pode ser uma solução nesses casos. Nas transversas baixas pode-se tentar o fórceps de Kielland.
■ Defletidas (face, fronte, bregma) A deflexão da cabeça condiciona apresentações defletidas de 1o, 2o e 3o graus, respectivamente, bregma, fronte e face.
■ Apresentação de face Denomina-se apresentação de face a cefálica em que o feto está com a cabeça em extensão máxima e, apoiando o occipital no dorso, fica a face voltada para o canal do parto. Sua incidência é de 1:500 partos.
■ Etiologia Na maioria dos casos, a causa da extensão é desconhecida, embora possa ser atribuída ao tônus excessivo dos músculos extensores da cabeça fetal. Raramente a extensão é decorrente de uma anomalia fetal, como tumor da tireoide.
■ Estática fetal A apresentação é cefálica com a face voltada para a área do estreito superior; o ponto de referência do feto é o mento (M). A linha de orientação é a facial, constituída por mento, boca, nariz e glabela (Figuras 45.4 e 45.5). As posições são dependentes do mento, com 8 variedades (Figura 45.4): mento-púbica (MP), mento-esquerda anterior (MEA), mento-esquerda transversa (MET), mento-esquerda posterior (MEP), mento-sacra (MS), mento-direita posterior (MDP), mento-direita transversa (MDT) e mento-direita anterior (MDA).
Figura 45.4 ■ Representação de 6 das 8 variedades de posição da apresentação de face. (Adaptada de Wilson J. R. Atlas of obstetric technic. St. Louis: Mosby, 1961.)
Figura 45.5 ■ Linha de orientação e ponto de referência na apresentação de face em mento-esquerda anterior (MEA).
A incidência das variedades de posição, nas apresentações de face, conserva a mesma ordem observada para as cefálicas fletidas, apenas com a particularidade de serem duplamente opostas em virtude do seu antagonismo. Assim, as OET quando defletidas serão, naturalmente, MDT; as OEA transformam-se em MDP etc. As mento-púbicas são apresentações de desprendimento e as mento-sacras encontram-se nas raras maneiras de encravamento pélvico.
■ Diagnóstico É feito, excepcionalmente, durante a gestação, sendo imprecisas a inspeção, a palpação e a
ausculta. O toque é o processo propedêutico clínico mais exato quando a dilatação o torna possível e a bolsa das águas está rota, o que geralmente ocorre no início de parto. Toca-se a linha facial, representada por mento, boca, nariz, glabela, sutura metópica, ficando a pirâmide nasal no centro e, nas extremidades, o mento e o bregma (Figura 45.5). No parto avançado é comum confundir-se a face com o polo pélvico. A pirâmide nasal que nunca se infiltra permanece na face.
■ Mecanismo do parto O diâmetro da apresentação é o submento bregmático (9,5 cm), cuja medida é aproximadamente igual à do suboccipito bregmático na apresentação normal de vértice. A despeito disso, a insinuação da cabeça fetal é demorada e a progressão do parto, lenta, possivelmente porque os ossos faciais não se moldam. A cabeça fletida só estaria insinuada quando o biparietal passar o estreito superior; a calota craniana dista pouco do biparietal, enquanto na face a distância é muito maior, por isso só há encaixamento com a face bem descida na escava (Figura 45.6). A insinuação nas variedades anteriores é mais fácil, enquanto nas posteriores, além de demorada, é impossível realizar-se o parto se não houver rotação do mento para a frente, o que afortunadamente sucede em dois terços dos casos. Com o mento anterior, o parto vaginal se faz por flexão da cabeça (Figuras 45.7 e 45.8); se o mento for posterior, o parto por via natural é impossível, pois a extensão sob o períneo não pode ocorrer.
■ Prognóstico O prognóstico do feto é mais sério. A deflexão facilita a procidência do cordão, e em casos de circulares cervicais elas podem ser comprimidas entre o dorso e o occipital fetais.
■ Conduta Embora o parto possa ser transpélvico, sem agravo materno e do concepto, aconselha-se a operação cesariana em função das apreensões sobre o prognóstico.
Figura 45.6 ■ A. Nas apresentações cefálicas fletidas, de occipital, quando o ápice alcança o plano das espinhas ciáticas, a insinuação está completa. B. Na de face, alcançado esse ponto, o maior diâmetro da cabeça ainda não ultrapassa o estreito superior. (Adaptada de Eastman N. J. Williams Obstetrics. 12 ed. New York: Appleton, 1961.)
Figura 45.7 ■ O mecanismo do parto na apresentação de face em mento-direita anterior (MDA). (Adaptada de Beck A., Rosenthal A. H. Obstetrical practice. 6 ed. Baltimore: Williams & Wilkins, 1955.)
Figura 45.8 ■ Continuação do representado na Figura 45.7: movimento de restituição, tendendo a orientar os membros no diâmetro anteroposterior do estreito inferior. (ibidem.)
■ Apresentação de fronte A apresentação de fronte origina-se quando a extensão é menos acentuada (deflexão de 2o grau). É a menos comum das apresentações defletidas, 1:2.000 partos. As causas são similares às da apresentação de face. O ponto de referência fetal é a raiz do nariz ou glabela (N). A linha de orientação é a sutura metópica. Pela locação da glabela, há 8 variedades de posição: nasoesquerda transversa (NET), nasodireita transversa (NDT), nasoesquerda anterior (NEA), nasoesquerda posterior (NEP), nasodireita anterior (NDA), nasodireita posterior (NDP), nasopúbica (NP) e nasossacra (NS) (Figura 45.9). O diâmetro da apresentação é o occipitomentoniano medindo 13,5 cm, incompatível com o parto vaginal. O diagnóstico é feito pelo toque, que identifica a fontanela anterior (bregmática), a órbita e a raiz do nariz (Figura 45.10). Se a apresentação for persistente, a cesárea é a única solução.
■ Apresentação de bregma É o 1o grau de deflexão, no qual a cabeça aloca a fontanela bregmática no centro do estreito superior. Orienta-se pelas suturas sagital e metópica, e tem como ponto de referência a posição anterior do bregma (Figura 45.11). A incidência é maior que a das 2 apresentações anteriores: 0,6%. A apresentação de bregma está bastante relacionada com as occipitais e evolui como tal. O trabalho é prolongado e será atendido, inclusive com tocurgia, sob os mesmos princípios que reagem a assistência da parturição em occipital.
Figura 45.9 ■ Representação de 7 das 8 variedades de posição da apresentação de fronte. (Adaptada de Wilson J. R. Atlas of obstetric technic. St. Louis: Mosby, 1961.)
Figura 45.10 ■ Linha de orientação e ponto de referência na apresentação de fronte, nasodireita anterior (NDA).
Figura 45.11 ■ Apresentação de bregma.
B. Apresentação Pélvica A apresentação pélvica é aquela em que o polo pélvico ocupa a área do estreito superior e nela se insinua. Diz-se apresentação pélvica completa (ou pelvipodálica) quando o feto flete as coxas sobre o abdome e mantém as pernas fletidas e próximas às coxas. As pélvicas incompletas (ou simples) compreendem o modo de nádegas (ou agripina), de joelhos e o modo de pés (Figura 45.12). A variedade de posição mais frequente é a sacro-esquerda anterior (SEA), e o tipo fundamental é a modalidade incompleta (Figura 45.13). A linha de orientação é o sulco interglúteo e o ponto de referência fetal, o sacro, motivo pelo qual se indica a apresentação pela letra “S”. Desse modo, são as variações: SEA, sacro-esquerda transversa (SET), sacro-esquerda posterior (SEP), sacro-direita posterior (SDP), sacro-direita transversa (SDT) e sacro-direita anterior (SDA), conforme o sacro esteja voltado para a esquerda ou para a direita, e para a frente ou para trás.
Figura 45.12 ■ Tipos de apresentação pélvica. A. Completa. B a E. Incompletas.
Figura 45.13 ■ Apresentação pélvica, na variedade de posição sacro-esquerda anterior (SEA).
■ Incidência A apresentação pélvica incide em 4% das gestações únicas: 3% nos conceptos a termo, 9% naqueles nascidos entre 33 e 36 semanas, 18% entre 28 e 32 semanas e 30% nos de menos de 28 semanas. A posição mais frequente é a esquerda, e entre as variedades encontradas preponderam as anteriores. Dos tipos fundamentais, a mais frequente é a apresentação pélvica incompleta, modo de nádegas (60 a 65%).
■ Etiologia Inúmeros fatores têm sido apontados para explicar a apresentação pélvica: • Parto pré-termo • Anencefalia e hidrocefalia • Gemelidade • Malformações e tumores uterinos • Vícios pélvicos • Inserção cornual da placenta • Polidrâmnio • Brevidade do cordão. A repetição da apresentação pélvica na mesma paciente, verificada em 8 a 10% dos casos, sugere condições maternas persistentes. Com o advento da ultrassonografia, estudos seriados têm mostrado a influência do local de inserção placentária na etiologia da apresentação pélvica, embora a maioria dos fatores causais ainda não tenha sido identificada.
■ Diagnóstico ▶ Palpação. Possibilita reconhecer o polo pélvico enchendo incompletamente a escava. Essa região, vazia, sugere situação transversa, e quando cheia, apresentação cefálica. A nádega fetal é percebida como formação irregular consistente, porém, redutível, o que a distingue do polo cefálico, mais rijo e que não se deixa reduzir. ▶ Ausculta. Durante a gestação, o foco fetal, nas apresentações pélvicas, está situado nos quadrantes superiores do abdome materno, acima da linha equatorial que passa pela cicatriz umbilical. É mais audível no quadrante homônimo à posição, ou seja, à esquerda nas sacroesquerdas, e à direita nas sacro-direitas. ▶ Toque. Instalado o trabalho, o toque identifica as formações que compõem a apresentação: nádega anterior e posterior, sulco interglúteo, orifício anal, órgãos genitais (eventualmente
favorecendo o diagnóstico do sexo), pés (quando pélvica completa) e, o que é importante, a região sacrococcígea (ponto de referência da apresentação) (Figura 45.13). Essa se mostra de consistência óssea, convexa e triangular, em continuação do sulco interglúteo. Deve-se ter a possibilidade de confundir a sensação tátil de cabeça tendo à frente a bolsa das águas íntegra, com a de nádega. Para efeito de orientação diante da possível necessidade de se ter de abaixar o membro, vale destacar a importância de distinguir, pelo toque, os pés e as mãos do feto (Figura 45.14): 1, a linha que reúne as extremidades dos dedos é reta no pé e curva na mão; 2, individualizando o calcanhar, reconhece-se o pé; 3, o polegar pode ser trazido, pela palma, até próximo do dedo mínimo, o que ajuda a identificar a mão fetal. Além do mais, a mão apresenta reflexo preensor, e o pé não. ▶ Ultrassonografia. Valida o diagnóstico, quando não o rastreia.
■ Diagnóstico diferencial No parto, a apresentação pélvica pode confundir-se com as cefálicas (de occipital, bregma, fronte e face) e as córmicas. Bossa serossanguínea volumosa e mole deforma a apresentação de vértice e pode simular a nádega. A existência de sutura e sulco retroauricular afasta suspeitas.
Figura 45.14 ■ Diferenças anatômicas úteis para diferenciar mãos e pés. Note a relação entre os dedos de mãos e pés (A), o ângulo formado entre a perna e o pé (B) e o movimento do polegar (C).
Na apresentação de face, os 2 malares e a boca ocupam os vértices de um triângulo, enquanto na apresentação de nádegas as tuberosidades isquiáticas e o ânus formam uma linha reta.
■ Mecanismo do parto O parto, na apresentação pélvica, decompõe-se em 3 parturições distintas, compreendendo, cada uma, os segmentos da distocia: cintura pélvica, cintura escapular e cabeça derradeira (Figura 45.15). Esse tipo de parto apresenta dificuldades crescentes, porque à medida que vão se desprendendo esses segmentos, maiores são os obstáculos.
■ Parto da cintura pélvica ▶ Insinuação. Na apresentação pélvica completa, a circunferência de insinuação “sacrotibial” é maior que a “sacrofemoral” da pélvica incompleta (modo de nádegas). O mecanismo é semelhante em ambas, porém, quando os membros inferiores encontram-se rebatidos sobre o tronco, dificultam a inflexão lateral, indispensável para a saída regular do polo pélvico, sendo mais demorada e difícil a progressão. ▶ Descida. Sucedendo-se às contrações, o polo pélvico desce até o estreito inferior.
Figura 45.15 ■ O mecanismo do parto na apresentação pélvica completa em sacro-direita anterior (SDA). (Adaptada de Beck AC, Rosenthal AH. Obstetrical practice. 6 ed. Baltimore: Williams & Wilkins, 1955.)
▶ Rotação interna. Ocorre simultaneamente com o tempo anterior, e o bitrocantérico roda 45°, orientando-se no sentido anteroposterior, em correspondência com a conjugata exitus. ▶ Desprendimento. A nádega imediatamente acima da crista ilíaca coloca-se por baixo do
subpube. A nádega posterior força a retropulsão do cóccix, percorre a face posterior da bacia mole e transpõe a fenda vulvar. O períneo retrai-se e assim se completa a saída do polo pélvico.
■ Parto da cintura escapular ▶ Insinuação. O diâmetro biacromial, por compressão, reduz sua dimensão e se insinua em um dos oblíquos da bacia. Os braços aconchegados diante do tórax fetal acompanham a progressão do tronco, em condições normais. ▶ Descida. Progredindo até o estreito inferior, o tórax, concomitantemente, roda. ▶ Rotação interna. O diâmetro biacromial gira 45o e se coloca em correspondência com o diâmetro anteroposterior do estreito inferior. ▶ Desprendimento. A espádua anterior aflora pela fenda vulvar, por baixo do subpube. Após retropulsão do cóccix, sai a espádua posterior. Os braços desprendem-se junto com o tórax. Esse mecanismo de parto da cintura escapular é o descrito nos moldes clássicos (Figura 45.16). Vale notar, porém, que, segundo Bracht, as espáduas saem espontaneamente, com o diâmetro biacromial em correspondência com o transverso do estreito inferior. De qualquer maneira, é importante considerar que nessa altura do parto o dorso fetal deve ser orientado para diante.
■ Parto da cabeça derradeira ▶ Insinuação. Aumentando a flexão, o ovoide cefálico procura orientar seu eixo maior de acordo com o do canal pelvigenital, a extremidade mentoniana à frente e o polo occipital para trás. Quando o equador do ovoide cefálico transpõe a área do estreito superior, está terminada a insinuação. ▶ Descida. Faz-se pela progressão da cabeça até que ela aflore à vulva, rodando concomitantemente. ▶ Rotação interna. É executada a fim de que o mento apareça na fúrcula. No caso típico das MEP e das MDP, a rotação é de 45°.
Figura 45.16 ■ Desprendimento do biacromial em relação ao diâmetro anteroposterior da bacia.
▶ Desprendimento. Recalcado o cóccix pela região frontal, a cabeça desprende-se, liberando as circunferências subocciptomentoneira, subocciptofrontal e subocciptobregmática.
■ Prognóstico O prognóstico não necessariamente é melhor nas multíparas do que nas primíparas e o pequeno tamanho do feto tampouco assegura evolução normal. No prognóstico do concepto quando do parto transpélvico: • É difícil, quase impossível, avaliar a proporcionalidade cefalopélvica antes de exteriorizada a nádega, estando já a cabeça à altura do estreito superior. Pouco valem os procedimentos clínicos, e os radiológicos apresentam erros ponderáveis • Não há condições para a prova de trabalho. Nas apresentações cefálicas, fletidas ou defletidas, sempre é tempo de indicar-se a via alta; na pélvica, salvo fetos macrossômicos e bacias exíguas, a apresentação insinua-se, desce e desprende-se, o que não implica, necessariamente, a proporcionalidade cefalopélvica • O trânsito rápido da cabeça pela fieira pélvica não possibilita moldagem • Geralmente, a cabeça não tem flexão máxima, e o diâmetro subocciptobregmático, mínimo, é substituído pelo subocciptofrontal, maior • Exteriorizado o tronco, a circulação fetoplacentária cessa ou diminui acentuadamente, pela compressão do cordão; retida a cabeça no canal parturiente, não se inicia, contudo, a respiração neonatal, embora haja movimentos respiratórios, a explicar a maior incidência da síndrome de aspiração de mecônio. Portanto, é extremamente curto o lapso de tempo disponível para completar-se o parto. Entretanto, na maioria dos casos a saída do polo cefálico ocorre de modo espontâneo, ou facilmente, por ajuda manual. Nas eventualidades em que se retarda o desprendimento, o feto sofre e falece; as manobras tentadas, não raras vezes precipitadas e mal executadas, são causa de tocotraumatismos sérios.
■ Conduta ▶ Versão externa. Procura-se inverter a polaridade do concepto durante a gravidez, sendo a melhor época 36 semanas, posto que antes pode haver volteio espontâneo (Figura 45.17). A taxa de êxito é, em média, de 60%. Muitos investigadores propõem o uso de tocolíticos, como terbutalina 250 μg subcutânea durante o procedimento. Os riscos da versão externa incluem descolamento prematuro da placenta, ruptura uterina, embolia por líquido amniótico, hemorragia fetomaterna, isoimunização, parto pré-termo, sofrimento e morte fetal. ▶ Parto dirigido. O parto pode processar-se pelas vias naturais, sobretudo em multíparas
com bacia normal, feto pequeno e cinética uterina adequada, mas a espontaneidade, stricto sensu, raramente ocorre e o trabalho acompanha-se de anomalias diversas, sendo frequentes as lesões maternas e fetais. Na apresentação pélvica, regra geral, o parto deve ser dirigido, seguindo os procedimentos comumente adotados na parturição do feto em vértice, e com assistência pela ajuda manual, ao final do período expulsivo. A episiotomia atenua os traumas cranioencefálicos, diminui ou impede a compressão do funículo, facilita o desembaraço das espáduas e da cabeça derradeira, reduz a mortalidade. O momento para praticá-la é quando se inicia o abaulamento do períneo. Tem indicação obrigatória. Iniciado o desprendimento dos quadris, deve-se abster de qualquer tração: deve-se sustentar a nádega e depois o tronco, evitando a queda sobre o plano da mesa de partos. ▶ Manobra de Bracht. Praticada a alça do cordão e antes da queda das nádegas, apreendese o polo pélvico com ambas as mãos, como representado na Figura 45.18. Desse modo, respeitase a lordose, levando-se o dorso contra a sínfise pubiana materna para facilitar o movimento giratório. Não há tração. O desprendimento é ajudado por suave manobra de Kristeller, que liberta os membros superiores no sentido transverso. Mantida a lordose do feto, de maneira que as nádegas venham quase a repousar sobre o hipogástrio da mãe, consegue-se o desembaraço progressivo do mento, da boca e das demais partes da face, que deslizam sobre o períneo, saindo o polo cefálico por flexão lenta, levemente impulsionado por meio do abdome pelo auxiliar.
Figura 45.17 ■ Versão cefálica externa. Elevação do polo pélvico e movimento do polo cefálico no sentido occipito-fronte.
Figura 45.18 ■ Manobra de Bracht. Note a maneira correta de manipular o concepto.
Para desprender a cabeça fetal derradeira, encravada, quando o feto está morto, é de uso corrente a perfuração do estojo cefálico para esvaziar-lhe o conteúdo. ▶ Cesárea. Deve ser empregada frequentemente no parto pélvico. Nos Estados Unidos, quase 90% dos partos pélvicos são resolvidos pela via alta. O parto vaginal está indicado quando já muito avançado ou iminente. A cesárea também é a escolha nos pré-termos (1.000 a 2.499 g).
■ Distocias Algumas vezes, principalmente devido a orientação não adequada do médico, ocorrem dificuldades que exigem manobras do obstetra para ultimar o parto. A seguir, serão listadas as principais dificuldades. Se a cintura escapular não se liberar, é provável que os braços estejam defletidos, impondo a realização de manobras mais agressivas. O biacromial deve ser alocado em relação ao anteroposterior da bacia, e procura-se desembaraçá-los soerguendo o polo pélvico e, com a mão oposta, liberando-se o braço posterior, tracionando-o pela flexura do cotovelo (Figura 45.19). O braço anterior é desprendido, abaixando-se o polo pélvico. Por exceção, quando não se consegue a liberação da espádua e dos braços, recorre-se à manobra de Deventer-Müller, que consiste em colocar o biacromial também em relação ao anteroposterior da bacia, tracionando-se fortemente para baixo o tronco fetal e alocando o ombro anterior no subpube. Se o braço anterior não se liberar, o tronco fetal será elevado na tentativa de desprender-se a espádua posterior. Talvez seja necssário repetir esses movimentos vigorosos, com o objetivo de substituir o diâmetro biacromial pelo cervicoacromial (Figura 45.20). Na falha da manobra de Deventer-Müller, pode-se tentar a de Rojas, que consiste na transformação da espádua posterior em anterior por meio de movimento helicoidal, com rotação, ampla translação lateral e tração axial constante do feto. Desprendido o braço anterior, a espádua posterior é novamente transformada em anterior (Figura 45.21). Essa manobra é muito traumática, podendo determinar luxação da coluna cervical com sequelas graves.
Figura 45.19 ■ Liberação dos braços, com o biacromial em relação ao anteroposterior da bacia.
Por sua vez, o desprendimento da cabeça também pode causar dificuldades, principalmente se esta estiver rodada e/ou defletida. O toque manual do obstetra deve elucidar a correta variedade de posição da cabeça fetal e, se possível, completar a sua rotação. No caso de encravamento de cabeça derradeira em feto vivo, desaconselha-se a manobra de Mauriceau, que pode ser muito traumática. Essa manobra é realizada com a introdução dos dedos indicador e médio da mão ventral na boca fetal, aplicando-os sobre a mandíbula, forçando a flexão da cabeça, enquanto os dedos indicador e médio da outra mão furculam o pescoço e tracionam a cabeça (Figura 45.22). Em feto vivo, a opção mais segura é a aplicação do fórceps de Piper (Figura 45.23). Há necessidade de que a cabeça esteja insinuada e fletida. Se estiver muito alta, a compressão do fundo do útero deve orientar a flexão e a insinuação. Na realização desse fórceps, o auxiliar apreende os membros do concepto, elevando o tronco. É preferível que a pega seja direta, verificando se a sutura sagital coincide com o anteroposterior da bacia (cabeça em mento-sacra). O ramo esquerdo é o 1o a ser introduzido, evitando-se o seu descruzamento. A tração é auxiliada pela compressão suave do fundo uterino. O fórceps de Simpson-Braun pode substituir o de Piper na sua falta.
Figura 45.20 ■ Manobra de Deventer-Müller. Movimentos vigorosos, repetitivos, tracionando-se fortemente para baixo o tronco fetal e alocando o ombro anterior no subpube.
Figura 45.21 ■ Manobra de Rojas. Abaixamento, tração e rotação axial do concepto.
Figura 45.22 ■ Manobra de Mauriceau. Note os dedos indicador e médio da mão ventral introduzidos na boca, enquanto os dedos indicador e médio da outra mão furculam o pescoço.
Figura 45.23 ■ Fórceps de Piper aplicado sobre cabeça derradeira encravada.
C. Apresentação Córmica Na apresentação córmica, o grande eixo fetal não coincide com a direção da coluna vertebral materna, cruzando-a em ângulo reto (situação transversa). A apresentação córmica tem incidência de 1:300 partos.
■ Etiologia Placenta prévia, tumores pélvicos e anomalias uterinas são as principais causas da apresentação córmica.
■ Estática fetal A situação transversa corresponde sempre à apresentação córmica. É “apresentação”, como
sabido, a região fetal que se loca na área do estreito superior, sendo inadequada a expressão “apresentação transversa”. Quando a apresentação córmica é também de espádua, o ponto de referência é o acrômio. Há 4 posições: acromiodireita anterior (ADA), acromioesquerda anterior (AEA), acromiodireita posterior (ADP) e acromioesquerda posterior (AEP). A 1a letra simboliza o acrômio (A); a 2a a orientação dele na bacia, podendo ser direita (D) ou esquerda (E); a 3a indica a orientação do dorso, anterior (A) ou posterior (P). Essa é a nomenclatura norte-americana, mas outras nomenclaturas também são utilizadas, o que já foi referido no Capítulo 9. É comum utilizar-se “apresentação de espádua” como sinônimo de “apresentação córmica” (Figura 45.24 A, C e E), mas a equivalência não é obrigatória. Às modalidades dorso anterior e dorsoposterior alguns autores acrescentam mais 2: dorsossuperior (Figura 45.24 B) e dorso inferior (Figura 45.24 D) que, posições de apresentação córmica, não são contudo de espádua.
Figura 45.24 ■ Algumas das posições da apresentação córmica. A. Acromioesquerda-anterior (AEA). B. Acromioesquerda-superior (AES). C. Acromiodireita-posterior (ADP). D. Acromiodireita-inferior (ADI). E. Acromiodireita-posterior (ADP); prolapso do braço direito. (Adaptada de Wilson JR. Atlas of obstetric technic. St. Louis: Mosby, 1961.)
■ Diagnóstico ▶ Palpação. Revela ausência do polo fetal na área do estreito superior, como no fundo
uterino (Figura 45.24). Em compensação, cabeça e pelve são reconhecidas nos 2 flancos, ao mesmo nível em situação transversa (e em alturas diferentes na oblíqua). ▶ Toque. É inútil na gravidez e no início do parto. Tendo ocorrido amniorrexe e descida a espádua, e com dilatação suficiente, o toque é característico: é possível reconhecer tanto a espádua como o patognomônico gradeado costal; o tórax dá a sensação de pequenas traves paralelas orientadas no sentido anteroposterior; nos raros casos de dorso inferior podem ser identificadas as apófises espinhosas. Distinguem-se o braço, a espádua (com pequena saliência óssea, acrômio), o côncavo axilar, e, nos casos mais favoráveis, podem ser encontradas a clavícula e a omoplata (Figura 45.25). É importante identificar esses elementos, que indicam a direção da cabeça e a orientação do dorso. ▶ Ultrassonografia. Por meio deste exame, o diagnóstico pode ser confirmado.
■ Mecanismo do parto Durante a gravidez ou iniciado o trabalho de parto, pode haver retificação espontânea do eixo fetal, transmudando-se na apresentação cefálica ou pélvica, o que ocorre em cerca de 35% dos casos.
Figura 45.25 ■ O toque vaginal possibilita reconhecer a espádua, com o acrômio, o gradeado costal, o braço e a axila. O esquema é de posição acromiodireita posterior.
A persistência da espádua a regra é indicativa de encravamento, pela impossibilidade da progressão. A parturição espontânea pode dar-se do modo atípico em fetos diminutos e, sobretudo, quando morto e macerado, mais facilmente em multíparas com a bacia ampla. É o chamado mecanismo em conduplicato corpore (Figura 45.26).
■ Prognóstico Na evolução espontânea, o feto sempre falece. A demora do diagnóstico no parto eleva os riscos de prolapso do cordão e da ruptura uterina.
■ Conduta A cesariana impõe-se como operação eletiva e exclusiva, mesmo com o feto morto. Há quem proponha a incisão segmentária vertical.
Figura 45.26 ■ Parto em conduplicato corpore.
■ Pontos-chave As apresentações cefálicas anômalas estão representadas pelas occipitoposteriores, diretas, transversas persistentes e defletidas (face, fronte e bregma). As occipitoposteriores são mais frequentes nas bacias androides e antropoides; o parto é mais lento devido à rotação anterior (135°) que ocorre em 90% dos casos. Nas occipitoposteriores que rodam para trás, o que ocorre em 10% dos casos, o desprendimento em occipitossacra é pouco favorável e bem mais demorado. A indicação de cesárea deve ser liberal. As transversas persistentes, em plena escavação, podem sofrer distocia de rotação, o que costuma acontecer nas bacias platipetoides; a cabeça fica encravada e o parto estaciona. Apenas a cesárea pode ser uma solução nesses casos. As apresentações defletidas podem ser de 1o, 2o e 3o graus, respectivamente, bregma, fronte e face. Na apresentação de face, o ponto de referência fetal é o mento (M), na de fronte, a raiz do nariz ou glabela (N) e na de bregma, a posição anterior da grande fontanela (B). O parto é sempre distócico e a indicação de cesárea é liberal. Considera-se a apresentação pélvica quando o feto em situação longitudinal está com as nádegas situadas na área do estreito superior. O ponto de referência fetal é o sacro (S). A incidência é de 3% nos conceptos a termo e de 30% naqueles com menos de 28 semanas. Existem 2 tipos fundamentais de apresentação pélvica: pélvica completa (pelvipodálica) ou pélvica incompleta (pélvica simples).
Atualmente a versão externa, realizada com 36 semanas de gestação, procurando inverter a polaridade do feto, tem sido bastante utilizada. A taxa de êxito é de 60%. Na apresentação córmica, de espáduas, o ponto de referência fetal é o acrômio (A). A única indicação para o parto transpélvico é do 2o gemelar em transversa, quando pode ser tentada a versão seguida de grande extração.
■ Procidência e prolapso ■ Incidência ■ Etiologia ■ Diagnóstico ■ Prognóstico ■ Conduta ■ Nós ■ Cordão curto ■ Cordão longo ■ Circulares de cordão ■ Rupturas ■ Inserção velamentosa
■ Procidência e prolapso Chama-se procidência ou procúbito a presença do cordão antes da apresentação, estando o saco amniótico íntegro; e prolapso se o cordão apresentar-se após a amniorrexe. A localização do funículo ao lado da apresentação configura a laterocidência (Figura 46.1).
■ Incidência Procidências e prolapsos são registrados, em média, em 0,3 a 0,6% das apresentações cefálicas, 4,5% das pélvicas e 14,2% das córmicas. Na “33a Enfermaria”, considerados todos os tipos de apresentação, foram verificados em 1:250 partos.
■ Etiologia As seguintes condições são mais frequentes nos casos de prolapso funicular: • Multiparidade; amniorrexe prematura • Vícios pélvicos • Placenta baixa (má acomodação e inserção placentária do cordão próximo do polo inferior do ovo) • Inserção velamentosa do cordão • Polidrâmnio (má acomodação, deflúvio rápido do líquido amniótico) • Gemelidade • Apresentações pélvicas, sobretudo as córmicas • Cordão longo • Prematuridade.
■ Diagnóstico O diagnóstico precoce é fundamental para evitar o óbito do recém-nascido. Na procidência, se a bolsa estiver íntegra, os dedos poderão identificar, através das membranas, pequeno corpo móvel e pulsátil. Não se deve confundir com os batimentos dos vasos uterinos. O diagnóstico separativo, nesses casos, não é fácil e será feito, sobretudo, com as pequenas partes do feto. A laterocidência só é reconhecida, eventualmente, pelo toque intrauterino; o sofrimento do feto, agravado a cada contração, poderá sugerir o diagnóstico, mas na maioria das vezes não é o cordão comprimido, e a laterocidência é fase transicional para a procidência e o prolapso, ou, inversamente, desce somente a apresentação: cura espontânea.
O diagnóstico do prolapso é mais fácil: palpa-se o cordão na vagina e, às vezes, ele ultrapassa a vulva, sendo reconhecido até pela paciente. Durante o exame é necessário não aumentar o prolapso, tracionando o funículo, na ânsia de facilitar a palpação e o reconhecimento do pulso das artérias umbilicais. Não se deve deixar de estabelecer o diagnóstico de vitalidade do feto, que, se positivo, exige imediato tratamento; ao contrário, pode-se dispensar a urgência da intervenção nos fetos mortos. Entretanto, não se há de condenar ao óbito, por omissão, recém-nascidos vivos. A determinação do procúbito por meio de ultrassonografia indica a cesárea, que previne o prolapso.
Figura 46.1 A. Laterocidência do cordão umbilical (bolsa íntegra). B. Procidência do cordão umbilical (bolsa íntegra). C. Prolapso do cordão umbilical (bolsa rota). (Adaptada de Greenhill J. P. Obstetrics, 13th ed., Philadelphia, Saunders, 1966.)
■ Prognóstico É sempre reservado; depende da cronologia do acidente, da compressão ocorrida, do comprimento da alça prolabada, das complicações concomitantes, da conduta e da possibilidade de intervir sem demora. Aceita-se que o prejuízo à circulação fetoplacentária não se liga apenas à compressão: a simples perda do ambiente intrauterino, fluido e morno, mesmo sem obstáculos mecânicos, basta para reduzir consideravelmente o débito sanguíneo.
■ Conduta Não se deve descurar a profilaxia. Na amniotomia, em casos de bolsas tensas e volumosas, apresentação mal adaptada ao estreito superior e sem solicitar o colo, deve-se moderar o deflúvio do líquido para evitar que o cordão prolabe. O dedo permanece na vagina por algum tempo até
que o feto desça e obstrua o canal cervical. Na terapêutica do acidente os cuidados variam conforme o estado do feto, vivo ou morto. Em caso de dúvida, deve-se agir considerando que está vivo. Comprovado o óbito, a complicação perde sua importância: aguardar o parto espontâneo ou, eventualmente, recorrer às operações mutiladoras e, excepcionalmente, à cesárea, indicadas, umas e outra, pela impossibilidade do parto transpélvico, jamais pela procidência. No feto vivo, a intervenção é de grande urgência. Como norma, procidência e prolapso de cordão indicam imediata cirurgia cesariana, que é recurso rápido, independentemente das condições do colo, do volume e da apresentação do feto, contorna todas as distocias associadas e não tem contraindicação alguma. Enquanto se ultimam os preparativos para a cesariana, o que em serviço bem organizado não deveria ultrapassar 5 a 10 min, a paciente deve ser mantida na posição genupeitoral ou em decúbito dorsal, e com acentuado cefalodeclive, ficando o obstetra ao seu lado, com os dedos na vagina, recalcando o polo de apresentação para evitar piora das condições do feto. Assim permanece a parturiente até o último minuto, quando, tudo preparado, deita-se na mesa de operação e, ato contínuo, é anestesiada e operada. Se impossível, em certas condições da clínica rural, a imediata terminação do parto, a única manobra aceitável, a menos nociva, é a reposição manual do cordão: com a paciente nas posições descritas anteriormente, faz-se ascender a apresentação e tenta-se levar o cordão, com delicado manuseio, a um nível superior a ela (Figura 46.2).
Figura 46.2 ■ Reposição manual do cordão prolabado, estando a paciente em posição genupeitoral.
■ Nós É o diagnóstico quase impossível. Alguns determinam o óbito do feto, outros ocorrem após o óbito, sendo a causa de morte motivada por outros fatores, mas a maioria dos nós, não demasiadamente apertados, impede pouco a circulação funicular.
A frequência dos nós verdadeiros (Figura 46.3), que se há de distinguir dos falsos (veias varicosas ou acumulação localizada da geleia de Wharton) (Figura 46.4), varia de 0,4 a 1,5%. A ultrassonografia pode contribuir para o diagnóstico dos nós e de outras anormalidades do funículo durante a gestação. Foram descritos casos de nó triplo e torção, assim rastreados. Muitos nós só assumem importância na hemodinâmica fetoplacentária durante a expulsão, quando se caracterizam. Raramente, o feto falece nessas circunstâncias, nascendo em hipoxia, de intensidade variável, pelo geral passível de reanimação.
Figura 46.3 ■ Nó verdadeiro de cordão.
Figura 46.4 ■ Nó falso de cordão.
■ Cordão curto A distinção entre a brevidade absoluta ou real e a relativa ou aparente não tem importância clínica. Em um ou outro caso favorece apresentações anômalas, motiva dificuldades no parto, prejudicando a descida do móvel, alongando sua evolução, causando descolamento prematuro da placenta, anoxia do feto, rupturas do funículo e inversão do útero. É o diagnóstico impossível. A hipótese poderá ser levantada na parturição prolongada, não explicada pelas razões que o diagnóstico diferencial suscita.
■ Cordão longo
Favorece as procidências, os nós e as circulares.
■ Circulares de cordão Ocorrem em 20 a 25% dos partos. São habitualmente cervicais, mas também podem ser encontradas no tronco e nos membros. São propiciadas pelo comprimento exagerado do cordão, a prematuridade e o excesso de líquido amniótico. As circulares de cordão podem provocar brevidade aparente e, sobre as complicações e acidentes daí decorrentes, acresce referir a possibilidade de determinarem anoxia (Figura 46.5) por compressão da circulação funicular favorecida pela contração uterina.
■ Rupturas O cordão hígido é extraordinariamente resistente a estiramentos, mas, implantado nas membranas (inserção velamentosa), rompe-se facilmente, acidente condicionado por tração na brevidade do funículo ou nas circulares. As rupturas do funículo podem ser parciais (incompletas) ou totais (completas); no primeiro caso, íntegro o revestimento amniótico, resultam hematomas; nos outros, derrama-se o sangue na cavidade ovular e o feto dessangra. A ruptura ocorrida no período expulsivo pode ser compatível com feto vivo, embora anemiado, frequentemente em choque hematogênico. O acidente ocorre, não raras vezes, quando a parturiente dá à luz de pé ou agachada.
Figura 46.5 ■ Circular de cordão; excepcionalmente, pode levar ao óbito fetal por compressão funicular.
■ Inserção velamentosa Na inserção velamentosa o cordão estende-se do feto a um ponto no âmnio, distante da borda placentária, e os vasos umbilicais, serpeando entre as membranas, alcançam a placenta por trajetos mais ou menos sinuosos (Figura 46.6). Sua incidência oscila entre 1 e 2,5%. Durante a gestação, a inserção velamentosa favorece a ruptura precoce das membranas. Sua maior importância clínica ocorre quando os vasos, em seu trajeto extraplacentário, percorrem o polo inferior do ovo, formando os vasos prévios que,
rompendo-se, ocasionam anemia aguda e morte do feto; menos grave é sua compressão pela apresentação, determinando anoxia. A ruptura de vasos prévios motiva perda sanguínea de pouca monta, mas, oriunda do feto, pode ser suficiente para torná-lo exangue; havida a amniorrexe, o sangue mescla-se ao líquido amniótico. O diagnóstico é difícil. Excepcionalmente será feito ao toque, quando se percebem pulsações nos vasos que percorrem as membranas e a rugosidade delas. O Doppler colorido sela o diagnóstico. Nos casos confirmados, o tratamento é a cirurgia cesariana.
Figura 46.6 ■ Inserção velamentosa.
■ Pontos-chave É procidência (ou procúbito) a presença do cordão umbilical antes da apresentação, estando o saco amniótico íntegro; será prolapso após a amniorrexe. A localização do funículo ao lado da apresentação configura a laterocidência. O diagnóstico da procidência habitualmente só é feito pela ultrassonografia; já o do prolapso é mais fácil: palpa-se o cordão na vagina e, às vezes, ele ultrapassa a vulva. O prognóstico fetal é sempre reservado e depende da compressão ocorrida, de complicações concomitantes, da conduta e da possibilidade de intervir rapidamente. A conduta depende de estar o feto vivo ou morto; comprovado o óbito, a complicação perde a sua importância. No feto vivo a cesárea é de grande urgência. Os nós de cordão (0,4 a 1,5%) são de diagnóstico quase impossível. Quando muito apertados podem levar o feto a óbito. O cordão curto pode favorecer as apresentações anômalas, prejudicar a descida do feto, causar descolamento prematuro da placenta, anoxia, ruptura do funículo ou inversão uterina. O cordão longo favorece procidência, nós e circulares. As circulares ocorrem em 20 a 25% dos partos, habitualmente cervicais. O diagnóstico é feito por ultrassonografia, e o prognóstico fetal é bom. A ruptura ocorrida no período expulsivo pode ser compatível com feto vivo, embora anemiado ou em choque hematogênico. Na inserção velamentosa do cordão (1 a 2,5%), ele se insere em pleno âmnio, vindo a configurar os vasos prévios, que, rompendo-se, podem ocasionar a anemia aguda e a morte do feto. O Doppler colorido sela o diagnóstico.
■ A. Ruptura Uterina ■ Ruptura uterina na gravidez ■ Ruptura uterina no parto
■ B. Laceração do Trajeto ■ Ruptura vulvoperineal e vaginal ■ Ruptura cervical
A. Ruptura Uterina A ruptura uterina, episódio obstétrico da maior gravidade, pode ocorrer durante a gravidez ou no parto. Sua frequência é inversamente proporcional à qualidade da assistência pré-natal e, sobretudo, da dispensada durante o trabalho de parto. A ruptura uterina ocorre em 5,3/1.000 casos em todo o mundo; nos países desenvolvidos, sua incidência é de 3,5/1.000 em mulheres com cesárea anterior e de 6/10.000 em grávidas sem antecedentes da operação. A ruptura uterina é a causa de morte mais relevante nos países em desenvolvimento. A etiologia principal da ruptura uterina nos países desenvolvidos é a pós-cesárea; no mundo em desenvolvimento, é o parto obstruído. Outros fatores de risco incluem grande multiparidade, uso de uterotônicos, traumatismo, placenta percreta, versão interna e grande extração.
■ Ruptura uterina na gravidez Atualmente, esta ruptura é rara; durante a gravidez, embora seja mais frequente na sua segunda metade, não é exclusiva desse período.
■ Etiologia As traumáticas são determinadas pelas quedas sobre o ventre, pancadas resultantes de acidentes de trânsito, ferimentos penetrantes de armas brancas ou de fogo, manuseio da cavidade uterina (dilatação do colo e curetagem, implantação de dispositivo intrauterino [DIU], uso de diversos objetos com fim abortivo ou propedêutico), versão por manobras externas. Outras vezes, ocorre a ruptura espontânea, geralmente de processo lento, progressivo, que prospera de modo assintomático e ocorre no final da gestação, em cicatriz de cesariana, de miomectomia, de salpingectomia (quando ressecada a porção intramural da tuba uterina), de operação para corrigir útero duplo ou em zonas patológicas da matriz com resistência diminuída (inflamação, necrose, endometriose, adenomiose, acretismo placentário). Em geral, são fúndicas, excluindo-se as deiscências de cicatriz de cesárea no segmento inferior ou na face ventral do corpo (a última é rara, visto que são excepcionais as indicações para histerotomia clássica).
■ Quadro clínico As rupturas uterinas, ocorrentes no início da gravidez, têm quadro clínico igual ao da gravidez ectópica, e o diagnóstico somente é confirmado após laparotomia. Há dor muito intensa, sinais nítidos de hemorragia interna com irritação peritoneal e sangramento vaginal. A ultrassonografia pode contribuir para o discrime diagnóstico. O choque geralmente ocorre. Na segunda metade da gravidez, a sintomatologia costuma ser mais discreta. A evolução da
ruptura é lenta e, mesmo quando completa, a extrusão do feto é progressiva no rumo da cavidade abdominal. A paciente relata dores no ventre e metrorragia; a palpação revela duas massas distintas: a matriz e o feto, este, em geral, inaudível. O choque instala-se gradativamente e, por vezes, a infecção também. O prognóstico fetal é o óbito; e o materno, muito grave.
■ Tratamento O tratamento deve ser feito com laparotomia imediata. Caso a paciente deseje ter mais filhos, pode-se tentar a regularização das bordas da ferida e a sutura ulterior, em dois planos, com chuleio. Nas multíparas, pratica-se a histerectomia subtotal ou total, procurando conservar os anexos. A antibioticoterapia profilática e a hemotransfusão completam o esquema terapêutico.
■ Ruptura uterina no parto ■ Etiopatogenia ▶ Rupturas espontâneas e provocadas. As rupturas espontâneas ocorrem sem a interferência do parteiro, que, no entanto, pode ser responsável por omissão. As rupturas provocadas, traumáticas, decorrem especialmente da tocurgia transpélvica (versão interna, extração podal, fórceps, embriotomia, delivramento artificial). Há ainda aquelas consequentes ao aumento exagerado da contratilidade uterina pela administração intempestiva de ocitócicos; embora induzidas, apresentam fisiopatologia semelhante à das espontâneas. ▶ Fatores predisponentes e determinantes. Nas rupturas espontâneas, é necessário considerar os fatores predisponentes e determinantes. Os primeiros enfraquecem a parede do útero: multiparidade, processos infecciosos, adenomiose, penetração excessiva do trofoblasto (acretismo placentário, neoplasia trofoblástica), cicatrizes (cesárea, miomectomia etc.). Os segundos configuram o parto obstruído ou bloqueado: desproporção cefalopélvica (vícios pélvicos, macrossomia fetal), apresentações anômalas, tumores prévios, malformações uterinas. Afastada a circunstância, rara, de acentuada debilidade da parede miometrial, na qual a ruptura pode ocorrer na vigência de contração normal, costumam ser observadas as contrações exageradas, tentando vencer a passagem obstruída. Na tentativa de superar o obstáculo, o útero redobra esforços com metrossístoles cada vez mais potentes. Excedese sua dinâmica e o segmento inferior, muito solicitado, distende-se até alcançar limite perigoso. ▶ Local e tipo de ruptura. Com relação ao local, a ruptura uterina será corporal, segmentária ou segmento-corporal (Figura 47.1). Completa, quando alcançar a parede uterina em todas as suas camadas; incompleta, na hipótese de permanecer intacta uma estrutura (p. ex., o revestimento peritoneal), quando pode ser rotulada também de deiscência. No que se refere à propagação, poderá alcançar órgãos convizinhos (como a bexiga, a vagina, o reto e o ureter) e, nessas hipóteses, será classificada como ruptura complicada.
Figura 47.1 ■ A. Ruptura completa segmentária. B. Ruptura completa corporal. C. Ruptura incompleta, com grande hematoma distendendo o ligamento largo.
■ Quadro clínico ■ Síndrome de distensão segmentária (ou de Bandl-Frommel) Na iminência de ruptura, a paciente fica agitada e ansiosa; as contrações são enérgicas e excessivamente dolorosas, subintrantes, exteriorizando-se em sofrimento contínuo de localização preferentemente hipogástrica. Tal fato desperta, na parturiente, o movimento inconsciente de colocar as mãos no segmento inferior do útero cada vez que o órgão se contrai. Nessa emergência, pela parede abdominal, distante da borda superior da sínfise, próximo ou já à altura da cicatriz umbilical, é possível notar o relevo do anel que separa o corpo uterino do segmento inferior (sinal de Bandl). Palpam-se, retesados, os ligamentos redondos, geralmente desviados para a face ventral do útero (sinal de Frommel), imprimindo ambos ao quadro clínico as características da síndrome de distensão segmentária (Figura 47.2). Nessa emergência, caso o socorro profissional não favoreça a parturiente com terapêutica pronta e exata ou o trabalho de parto não se paralise espontaneamente, quando o miométrio esgota, sobrevém, invariavelmente, a ruptura, geralmente dramática na exteriorização do seu quadro
clínico ou, mais raramente, silenciosa, surgindo apenas tardiamente.
Figura 47.2 ■ Síndrome de distensão segmentária. Retração patológica do anel de Bandl, com excessivo adelgaçamento do segmento inferior. Os ligamentos redondos estão retesados (sinal de Frommel). (Adaptada de Greenhill J. P. Obstetrics. 13th ed. Philadelphia: Saunders, 1966.)
■ Ruptura uterina consumada A ruptura uterina consumada pode ser caracterizada por sintomas e sinais característicos. ▶ Dor. Na sequência de contrações uterinas cada vez mais fortes, a ocorrência de dor súbita, de violência maior que as anteriores, lancinante, localizada na região hipogástrica, denuncia o acidente. ▶ Paralisação do trabalho de parto. Útero roto não se contrai. Trata-se de um sintoma precoce na ordem cronológica e segue-se à dor penetrante provocada pela ruptura. Nas lesões completas, com extrusão do feto para a cavidade abdominal, o útero se retrai como no pós-parto. De certa maneira, o parto terminou, sendo feto e placenta evadidos para o abdome (Figura 47.3). Nas rupturas incompletas, o quadro não aparece de maneira tão clara e o útero pode continuar a esboçar contrações quase imperceptíveis. ▶ Hemorragia. Discreta ou profusa, relata-se por perda vaginal ou permanece oculta, mascarada nos hematomas dissecantes dos ligamentos largos ou nas coleções intracavitárias que enchem os fundos de saco e se espalham acima da pelve, de permeio com as vísceras abdominais. Conforme a gravidade da hemorragia, sobrevém, ou não, o estado de choque. ▶ Inspeção. Nas pacientes com pequeno panículo adiposo, notam-se duas saliências – uma representada pelo útero vazio e outra constituída de feto em situação indiferente. ▶ Palpação. Esta técnica confirma e minucia a última informação e, em alguns casos, possibilita que se perceba a crepitação produzida pela passagem de ar para o peritônio, em
contiguidade com o tecido subcutâneo da parede abdominal (sinal de Clark), por meio da vagina e da solução de continuidade uterina. Nas hemorragias profusas, intracavitárias, o hemoperitônio pode se denunciar pela macicez nos flancos, que varia com a mudança de decúbito. ▶ Toque. Possibilita a revisão da cavidade uterina quando ela está vazia e evidencia a sede e a extensão da lesão, confirmando o diagnóstico. Contrastando com os exames precedentes, nos quais se consignava a apresentação fixada à área do estreito superior ou encaixada, ela não é mais perceptível, consumada a ruptura. A pelve está vazia. A ascensão do polo apresentado é sinal patognomônico. ▶ Ausculta. Eventualmente, logo após o acidente, identificam-se os batimentos cardíacos do feto, sendo este um fato mais frequente nos casos de simples deiscência e naqueles em que o óvulo se conserva na cavidade uterina. Nas rupturas de grande extensão, com extrusão do feto para o abdome ou lesões importantes comprometendo as artérias uterinas, a asculta é negativa.
Figura 47.3 ■ Ruptura completa com expulsão do feto para a cavidade abdominal.
■ Ruptura uterina pós-cesárea Atualmente, a ruptura uterina mais frequente ocorre em mulheres anteriormente cesareadas que se submetem ao parto vaginal. A ruptura uterina é sintomática quando acomete todas as camadas do útero, com sequelas adversas para a mãe ou para o feto (hemorragia, histerectomia, lesão de bexiga, extrusão de qualquer parte do feto, cordão ou placenta, sofrimento ou morte fetal). A ruptura de cicatriz uterina
prévia, assintomática, completa ou incompleta, sem sequelas para a mãe e para o concepto, é rotulada apenas como deiscência uterina (Figura 47.4). Inúmeros fatores elevam o risco da ruptura uterina no parto vaginal de mulheres que se submeteram anteriormente à cesárea: múltiplas cesáreas anteriores, principalmente com intervalo menor que 18 a 24 meses; idade materna avançada (> 30 anos); idade gestacional; peso fetal; febre pós-parto; amadurecimento do colo com prostaglandinas; indução de parto; sutura do útero em apenas uma camada; e anomalias uterinas. Pacientes que deram à luz com ≥ 42 semanas têm risco maior em comparação com aquelas que pariram com idade gestacional entre 37 e 41 semanas. Do mesmo modo, mulheres que dão à luz bebês que pesam ≥ 4.000 g ao nascer apresentam o dobro de risco de terem ruptura uterina, quando comparadas às que têm crianças com peso ≤ 4.000 g. Mulheres que tiveram o trabalho de parto induzido apresentam o dobro de risco de ruptura uterina, em comparação com mulheres cujo início do trabalho de parto foi espontâneo, com ou sem cesariana prévia. De acordo com estudos anteriores, os pesquisadores sugerem que os agentes de indução, tais como prostaglandinas e ocitocina, utilizados para aumentar as contrações uterinas, podem resultar em hiperestimulação do útero e enfraquecimento de cicatrizes de cesarianas anteriores, tornandoas mais suscetíveis à ruptura. Apesar do maior risco de ruptura, o uso de ocitocina, desde que utilizado com cautela, não é contraindicado; no entanto, o misoprostol não deve ser administrado a pacientes anteriormente cesareadas. Embora aumentado o risco de ruptura uterina, o trabalho de parto após cesariana anterior pode ser oferecido à paciente, desde que não haja contraindicações (ruptura uterina prévia, cicatriz uterina em “T” invertido, miomectomia transmural, outras contraindicações ao trabalho de parto, tais como placenta prévia maior, apresentação anômala) e que a paciente seja informada dos riscos inerentes ao ato. Diabetes, gestação múltipla e macrossomia não são contraindicações ao trabalho de parto em mulheres com cesárea anterior. No caso de mulheres com cesárea anterior, submetidas ao parto vaginal, no qual haja indicação de monitoramento, as anormalidades nos traçados de frequência cardíaca fetal são os sinais de ruptura uterina mais comumente encontrados (em torno de 55 a 87% das vezes). Outros sinais habituais às rupturas uterinas são: sangramento vaginal, dor e hipercontratilidade.
Figura 47.4 ■ Ruptura uterina na cicatriz da cesárea.
■ Prognóstico O fetal é sombrio: mortalidade perinatal entre 45 e 70%; nas deiscências, rupturas incompletas, é mais favorável. A mortalidade materna oscila em torno de 5%.
■ Tratamento ▶ Profilático. É fundamental a vigilância atenta de todas as pacientes durante o parto, para surpreender a síndrome de distensão segmentária e, assim, evitar a ruptura uterina. Quando exacerbada a atividade uterina, o emprego de tocolíticos é útil. Nas grandes multíparas, o acidente pode ocorrer sem qualquer fator determinante, configurando a ruptura espontânea. Nessas pacientes, é prudente limitar as intervenções transpélvicas (versão, extração podal, fórceps médio, embriotomia); se indicadas, serão conduzidas com extrema cautela. ▶ Curativo. A terapêutica do choque será imediata ao acidente (Capítulo 24). Concomitantemente, procede-se à intervenção abdominal. Após a abertura do ventre, é necessário realizar uma descrição detalhada das lesões: sede, extensão, propagação à bexiga, ureter, artéria uterina etc. Deve-se observar o estado da parede posterior do segmento inferior e o dos fundos de saco. Pequenas soluções de continuidade ali locadas poderiam permanecer inaparentes. É preciso desembaraçar a cavidade abdominal de todo o sangue, coágulo, líquido amniótico, induto sebáceo do feto. A lavagem deve ser feita com solução fisiológica morna, não deixando de estender esses cuidados às bordas da lesão, que, se bem identificadas, poderão indicar a orientação cirúrgica mais conveniente.
▶ Histerorrafia ou histerectomia. A indicação depende das condições das paredes uterinas lesadas, da sede de ruptura e do estado da paciente, considerando também sua idade e paridade. No tratamento da ruptura do útero, o obstetra poderá ser obrigado a complementar a intervenção realizando sutura de bexiga e de ureter – eventualidades que agravam o prognóstico e exigem cirurgião consumado. A ligadura bilateral do ramo ascendente da artéria uterina, que, na sutura, engloba o tecido da própria matriz a fim de fortalecêla, e quando há condições que lhe possibilitem a execução, deve ter primazia, por sua singeleza (Capítulo 56).
B. Laceração do Trajeto ■ Ruptura vulvoperineal e vaginal As lesões traumáticas da vulva e do períneo são observadas com extraordinária frequência, principalmente em primíparas e na ausência de episiotomia. O orifício vulvar é o ponto de predileção do acidente; em geral, a fossa navicular e a fúrcula são as sedes iniciais da solução de continuidade (Figura 47.5). As lacerações podem acometer o clitóris, o vestíbulo ou alcançar o meato e, em geral, as que ocorrem na parede anterior da vulva sangram profusamente. Quando é a solução de continuidade lateral, apresenta-se nas ninfas, propagando-se para a vagina, ou se estendendo no sentido do grande lábio. ▶ Rupturas do períneo. Podem ser incompletas, caso não alcancem o esfíncter do ânus e, conforme a extensão, classificam-se em de 1o, 2o e 3o graus. Nas de 1o grau, somente a fúrcula é lesada; nas de 2o, a laceração se propaga mais profundamente, aproxima-se da região esfincteriana, mas não a alcança; nas rupturas perineais de 3o grau, ou completas, o esfíncter anal é comprometido. A ruptura que acomete a parede anterior do reto é também denominada ruptura de 4o grau.
Figura 47.5 ■ Ruptura vulvar e da vagina. (Adaptada de Greenhill JP. – Ibidem.)
▶ Rupturas musculares e fasciais do assoalho pélvico. O elevador do ânus e suas fáscias são quase sempre acometidos quando, precedendo a expulsão do concepto, não é feito atendimento adequado. Não determinam hemorragias, embora ocasionem, posteriormente, cistocele, retocele, incontinência urinária de esforço etc. ▶ Rupturas vaginais. As rupturas dos fundos de saco costumam resultar de aplicação defeituosa do fórceps (ver Figura 47.7); por vezes, há desinserção da vagina, culporrexe, que pode se propagar até a cavidade peritoneal, alcançando órgãos convizinhos como o reto e a bexiga. Quando a laceração se localiza na parede anterior, superficial ou profunda, pode estenderse às vias urinárias.
■ Tratamento As rupturas consumadas da vagina, vulva e períneo devem ser cuidadosamente reparadas logo após o secundamento; as superficiais, limitadas à mucosa, são suturadas com categute. Nas lesões de maior extensão e profundidade, procede-se de maneira a expor os planos subjacentes, reparando os feixes puborretais dos elevadores com pontos separados, sem realizar logo sua aproximação; em seguida, pratica-se a síntese da lesão vaginal, de dentro para fora, depois de minuciosa inspeção dos fundos de saco: cerram-se os planos musculares, finalizando com o fechamento do tecido subcutâneo e da pele (Figura 47.6).
Figura 47.6 ■ Ruptura de 4o grau do períneo. A. Aspecto após o parto. O desenho faz sobressair o esfíncter que, geralmente, não é visível, retraído sob a pele. B. Sutura da mucosa retal, com pontos separados, de categute fino, montado em agulha delicada. Os fios não atravessam a mucosa, não penetram no reto, mas apenas aproximam, cuidadosamente, as bordas de laceração. C. Síntese do esfíncter com dois ou três pontos de categute fino, cromado. D. Inserido um dedo no ânus, coloca-se ponto de reforço à sutura do esfíncter. E. Sutura das lacerações da mucosa vaginal; os músculos levantadores do ânus são aproximados. A reconstituição deverá prosseguir pela síntese do plano subcutâneo e da pele. (Adaptada de Greenhill J. P. – Ibidem.)
■ Ruptura cervical As lacerações podem ser espontâneas ou traumáticas. As grandes lacerações cervicais são mais comumente observadas como sequência de intervenções obstétricas mal indicadas e executadas. As aplicações de fórceps ocupam, dentre essas causas, o primeiro lugar; além disso, complicam as grandes extrações podais, as embriotomias (instrumento e fragmentos ósseos do feto), que motivam traumatismos, não apenas do colo, como também da vagina, bexiga, paracolpo e paramétrio. A dilatação artificial do colo concorre para o aparecimento dessas lesões. De acordo com sua sede, consideramos as rupturas cervicais em dois tipos: rupturas da
porção vaginal e rupturas do segmento supravaginal. Nas primeiras, estão enquadradas as fissuras da margem do orifício externo até a lesão de toda a portio. Em geral, elas são laterais, amiúde à esquerda, não sendo raras as bilaterais. No tipo de lesão supravaginal do colo, há, mais raramente, extensão ao segmento; alcançados os paramétrios ou a cavidade peritoneal, assumem gravidade imensa. Nas rupturas da cérvice de localização lateral, a lesão da artéria uterina pode iniciar episódio de sério prognóstico, com hemorragias profusas ou hematomas dissecantes. As lacerações, às vezes silenciosas, a exemplo das lesões discretas da cérvice, costumam se denunciar pela hemorragia externa, de importância variável conforme a sede, extensão e propagação da ruptura. Expulsa a placenta, com o útero retraído, o aparecimento e a persistência de perdas hemorrágicas decorrem quase sempre da lesão do trajeto, mas não convém esperar pelo sintoma; a revisão deve ser compulsória.
■ Tratamento As rupturas cervicais discretas e assintomáticas são extremamente frequentes e somente se exibem à revisão sistemática que, nunca será demais insistir, constituirá procedimento rotineiro. Somente após o secundamento é possível fazer diagnóstico correto da topografia e extensão da ruptura. Útero bem retraído, com sangramento abundante e contínuo, impõe revisão imediata do colo e dos fundos de saco vaginais, com boa iluminação, um par de valvas tipo Doyen e auxiliar para conduzi-las. Enquanto se espera o ambiente cirúrgico, o tamponamento vaginal com gaze é uma tática útil; dessa maneira, será possível avaliar a solução de continuidade, que deve ter seu vértice superior bem localizado. A lesão é exposta com pinças de colo e a síntese é feita com pontos de categute, separados (Figura 47.7). Nas suturas de lesões da parede anterior e das laterais, cumpre evitar a bexiga e a região percorrida pelos ureteres.
Figura 47.7 ■ Revisão do colo e da vagina. A. Exposição da cérvice, com valvas e pinças atraumáticas. B.
Laceração no ângulo direito. A sutura deve começar pouco além do vértice e ser feita em pontos separados. C. Ruptura da conexão cervicovaginal. Lesão habitualmente instrumental. (Adaptada de Wilson JR. Atlas of obstetrics technic. St. Louis: Mosby, 1961.)
■ Pontos-chave Na gravidez, a ruptura uterina é rara e ocorre, quando espontânea, em cicatriz de cesárea, miomectomia, salpingectomia (com ressecção intramural), operação para corrigir útero duplo, zonas patológicas da matriz (p. ex., acretismo placentário). A ruptura uterina no início da gravidez tem quadro clínico igual ao da gravidez ectópica. Na segunda metade da gestação, a expulsão do feto para a cavidade abdominal (extrusão) acontece lentamente, o óbito do concepto costuma ocorrer e há choque materno. Na maioria das vezes, a ruptura uterina da parturição se deve ao parto obstruído e à cesárea prévia. A iminência de ruptura no parto constitui a síndrome de distensão segmentária ou de Bandl-Frommel: retração patológica do anel de Bandl com excessivo adelgamento do segmento inferior e ligamentos redondos retesados (sinal de Frommel). A ruptura uterina consumada no parto é caracterizada pela dor lancinante, subitânea, palpação do feto no abdome com batimentos cardíacos fetais (bcf) ausente, paralisação do trabalho (útero roto não se contrai) e choque. O tratamento das rupturas uterinas é a laparotomia, seguida de histerorrafia ou histerectomia. As rupturas de períneo de 3o grau ou completas acometem o esfíncter anal, que deve ser reconstituído anatomicamente; quando afeta a parede anterior do reto, a ruptura é de 4o grau. As rupturas musculares e fasciais do assoalho pélvico, quando não são evitadas pela episiotomia adequada, determinam, posteriormente, cistocele, retocele e incontinência urinária de esforço ou do esfíncter anal. A revisão sistemática do colo deve ser obrigatória após o secundamento, para surpreender eventuais lacerações, especialmente nos partos operatórios.
■ Retenção placentária ■ Inversão uterina aguda
■ Retenção placentária O conhecimento da fisiologia do secundamento possibilita considerar a placenta retida quando o terceiro período não se completou decorridos 30 min do parto fetal. Os principais fatores etiopatogênicos na retenção placentária consistem em: descolamento retardado, encarceramento da placenta e retenção de fragmentos placentários.
■ Descolamento retardado Pode ocorrer quando o útero se contrai insuficientemente (hipocinesia) ou as aderências placentárias adquirem caráter anatômico anormal (placenta acreta). Na interrupção prematura da gravidez, é frequente a demora no descolamento placentário; isso ocorre porque, na camada esponjosa, faltam os processos biológicos (degeneração hialina, calcificação), os quais são muito comuns na gestação a termo, para facilitar a dequitadura. Na atonia, caso não ocorra a contração do útero (ou se não for completa), a placenta permanece apegada ao local de implantação. O fundo uterino está elevado; à palpação, o órgão tem consistência amolecida. Em geral, reage com contração ao estímulo manual.
■ Acretismo A placenta acreta ocorre como consequência da ausência da decídua basal e deficiente formação da camada de Nitabuch (fibrinoide). Este tipo de placenta incide em torno de 1 a 5% das mulheres com placenta prévia [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2012]; em mulheres com placenta prévia, o risco de placenta acreta é muito influenciado pela ocorrência de cesáreas anteriores [National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), 2006] (Tabela 48.1). Nos últimos 50 anos, a incidência de placenta acreta cresceu dramaticamente (cerca de 10 vezes) e agora é observada em uma frequência de 1:500 partos (patologia do século 20). A mortalidade materna na placenta acreta pode ser tão elevada quanto 7%.
Tabela 48.1 ■ Acretismo de acordo com a quantidade de cesáreas realizadas. Cesárea
Acreta (%)
Prévia – % acreta
1a*
0,2
3
2a
0,3
11
3a
0,6
40
4a
2,1
61
5a
2,3
67
6a
6,7
67
*Cesárea primária. Dados do NICHD, 2006.
A classificação do acretismo baseia-se na profundidade da invasão: placenta acreta adere ao miométrio; increta invade o miométrio; e percreta perfura o peritônio, alcançando, por vezes, órgãos vizinhos como a bexiga e os paramétrios (Figura 48.1). A placenta acreta corresponde a 80% dos casos de acretismo; a increta, a 15% e a percreta, a 5%. A hemorragia varia de acordo com o grau da hipocinesia uterina e da aderência placentária. Quando a placenta é totalmente acreta, não ocorre o descolamento, ficando o órgão retido sem que haja hemorragia. Se houver acretização apenas parcial, a sintomatologia será a de placenta incompletamente descolada e retida, com provável e abundante sangramento. O grau exato da aderência placentária pode ser definido somente pelo toque manual e tentativa de descolamento, não havendo plano de clivagem no acretismo.
■ Encarceramento da placenta Acontece em casos de perturbações da contração uterina localizadas no segmento; na verdade, anéis de constrição que se formam quando há incoordenação motora da fibra uterina (Capítulo 42).
Figura 48.1 ■ Anomalias da inserção da placenta. acreta: a decídua basal está ausente e o trofoblasto adere diretamente no miométrio; increta: o tecido corial penetra no miométrio; percreta: é a invasão mais profunda, alcançando a serosa peritoneal e chegando, por vezes, a perfurá-la. (Adaptada de Beubecker et al. Obstet Gynecol, 1977;49:44.)
Em alguns casos, a contração espasmódica do orifício cervical, logo após o parto, aprisiona a placenta no corpo uterino. O toque vaginal encontra anel espessado e tenso. A hemorragia depende de a placenta estar aderida por completo, parcial ou totalmente desprendida.
■ Retenção de fragmentos placentários Caracterizada por retenção das membranas, principalmente quando o mecanismo do secundamento é do tipo Baudelocque-Schultze, ou por retenção de cotilédones. A retenção de cotilédones surge com mais frequência na extração manual da placenta, quando há zonas de acretização; os fragmentos placentários impedem a retração uterina, determinando hemorragia. Não se deve desprezar a possibilidade de cotilédones aberrantes (placenta sucenturiada). Para o diagnóstico, é fundamental o exame circunstanciado da placenta delivrada, que certifica ou não a sua integridade.
■ Tratamento É importante individualizar: tratamento da hemorragia e da retenção placentária. A reposição do volume sanguíneo perdido busca evitar a anemia aguda e o choque hipovolêmico e, junto com os procedimentos de reanimação cardiopulmonar (RCP), foram vistos no Capítulo 24. Quando não há sangramento, é prudente esperar até uma hora, para que se ultime o secundamento; entretempo, é preciso estimular o útero com massagem suave e usar ocitócicos. Se houver hemorragia abundante, impõe-se a retirada imediata da placenta retida. Os procedimentos utilizados para o descolamento da placenta são manobra de Credé e extração manual. ▶ Manobra de Credé. Quando praticada abruptamente no sentido de pistão, a manobra de Credé é lesiva aos ligamentos suspensores do útero, podendo provocar sua inversão. A expressão do útero somente deverá ser feita com o órgão contraído. Depois de praticado o cateterismo vesical, o operador coloca-se à direita da paciente e, com a mão esquerda, aposta à parede abdominal, segura o fundo do útero. Espera-se que o útero responda à excitação provocada por pequena massagem para, em seguida, comprimi-lo e empurrálo para baixo, tendo-se previamente segurado o órgão entre o polegar, que se coloca na face ventral, e os outros dedos, na face dorsal (Figura 48.2). A expressão deve ser cautelosa do fundo uterino para baixo. São realizadas duas a três tentativas; se frustradas, é preciso utilizar outro recurso, não se devendo insistir devido ao perigo de favorecer dequitação incompleta, com retenção de cotilédones ou de membranas, inversão uterina e choque.
Figura 48.2 ■ Manobra de Credé para o descolamento artificial da placenta. (Adaptada de Kerr, JM; Moir, JC. Operative Obstetrics. 5th ed. London: Ballière, 1949.)
▶ Extração manual. Com a paciente anestesiada (narcose), inicia-se a intervenção, introduzindo a mão direita na vagina até penetrar no útero e chegar à zona placentária, seguindose, para isso, o cordão umbilical; a mão esquerda é colocada, bem espalmada, no fundo do útero, através da parede abdominal (Figura 48.3). Identificada a borda da massa placentária, inicia-se a manobra do descolamento pela sua parte mais baixa, no plano de clivagem, que se busca como elemento inicial da operação. Mantendo-se perfeita coordenação entre os movimentos da mão externa e os da interna, insinuam-se progressivamente os dedos para cima, até separar completamente a placenta de toda a superfície inserida, para então extraí-la. Nem sempre a manobra é fácil e exitosa; se houver aderências anômalas parciais ou totais (sinais típicos de placenta acreta), pode ser impossível o término da manobra que se procurou executar. Diante dessa eventualidade, deve-se interromper o prosseguimento da intervenção e buscar meio mais eficiente, embora radical: a histerectomia. Outra dificuldade a aparecer é representada pelos anéis de contratura, formados em seguida às manipulações, e que geralmente cedem ao maior aprofundamento da anestesia. A curagem digital e a pinça de ovo devem ser empregadas nos casos de dúvida após o descolamento, quando surgem suspeitas de retenção de restos ovulares, suscitadas pelo exame da placenta delivrada.
Figura 48.3 ■ Extração manual da placenta. Guiada pelo cordão, a mão ascende na cavidade uterina; alcançada a placenta, procura sua borda e inicia a desinserção, desapegando-a do útero pelo plano de clivagem. O tempo seguinte, não representado, é a apreensão da placenta, dequitadura ultimada, completando a extração.
■ Inversão uterina aguda Trata-se da invaginação do fundo uterino, em formato de dedo de luva, que pode alcançar o segmento inferior, ultrapassá-lo, chegar à vagina (inversão parcial) e surgir fora da vulva (inversão total) (Figura 48.4). É um acidente de rara frequência, quase sempre inesperado e grave, que aparece antes, durante ou depois do descolamento e expulsão da placenta; pode ocorrer de maneira espontânea, embora, em geral, seja fácil de identificar erros de conduta na assistência ao terceiro período. O útero, se bem contraído, não poderia dar origem à inversão.
Figura 48.4 ■ Graus de inversão do útero. A. Depressão do fundo. B. Inversão parcial; o órgão não ultrapassa a fenda vulvar. C. Inversão completa.
■ Etiologia As causas de maior expressão para explicar a inversão uterina são: • Atonia uterina • Esvaziamento súbito da cavidade do útero, muito distendida • Expressão violenta do útero relaxado, com o objetivo de extrair a placenta • Tração exagerada do cordão umbilical com a placenta aderida. Chama-se a atenção para os casos de inversão espontânea, em partos normais, sem a interferência de manobras de qualquer natureza, e para as inversões chamadas recidivantes, que falam em favor da influência de fatores intrínsecos a predispor ao acidente.
■ Quadro clínico e diagnóstico O primeiro sinal de inversão é o fundo do útero deprimido. Com o evoluir da crise, desaparece o corpo, total ou parcialmente, do abdome, indo se locar a massa uterina na vagina, ou mesmo fora dela. São condições clássicas para o diagnóstico: a fuga da matriz (observada pela palpação do abdome), o choque e a hemorragia. Na mais comum, o corpo uterino é palpado na vagina como formação poliposa, mole, grande e regular, imediatamente para dentro do introito; em alguns casos, a placenta ainda está total ou parcialmente aderida. Quando o útero se inverte subitamente, quase sempre surge o choque; este, muitas vezes
intenso, pode não guardar relação com a perda sanguínea (choque neurogênico). É comum a ocorrência de hemorragia abundante, mas poderá faltar se a placenta ainda estiver totalmente inserida. A compressão mecânica exercida pelo útero, localizado na vagina, determina sensação de distensão vaginal, tenesmo retal e vesical.
■ Tratamento A profilaxia evita, seguramente, a maioria das inversões uterinas: a obediência aos bons preceitos de assistência ao secundamento proscreve, de maneira formal, trações exageradas sobre o cordão; recomenda-se, ainda, somente tentar a expressão da placenta quando o útero estiver contraído. ▶ Manobra da taxe. A correção manual, imediata, da inversão é a primeira medida a instituir – manobra da taxe – com medicação uterolítica e simultânea do choque, se for o caso (Figura 48.5). A mão apreende o órgão, enquanto os dedos distendem a porção constritora e a palma faz pressão ao empurrar para cima o corpo invertido, seguindo a direção do eixo da pelve. Tão logo o útero tenha reassumido a sua posição normal, suspende-se o uterolítico e, de maneira contínua, inicia-se o ocitócico, enquanto o operador mantém o fundo uterino. Caso a manobra da taxe não apresente êxito, deve-se recorrer à cirurgia, e somente depois de a paciente estar refeita do choque. ▶ Operação de Huntington. Após a laparotomia, a reposição da víscera em suas relações normais é feita pela preensão da zona invertida, por meio de pinças de garra aplicadas a cada lado do rebordo que limita a zona invaginada (Figura 48.6); traciona-se o útero para cima, colocando-se outras pinças mais embaixo, e assim sucessivamente, até a desinversão total do órgão. Conclui-se o procedimento com tamponamento (colunização) vaginal cerrado durante algumas horas.
Figura 48.5 ■ Inversão do útero e manobra da taxe para a sua correção. (Adaptada de Anderson & Etches, 2007 – op. cit.)
Figura 48.6 ■ Operação de Huntington para a correção da inversão do útero.
■ Pontos-chave Considera-se retenção placentária quando o terceiro período não se completou decorridos 30 min. A retenção placentária pode ocorrer por descolamento retardado, encarceramento da placenta ou retenção de fragmentos placentários. O descolamento retardado da placenta decorre de hipocinesia uterina ou de acretismo placentário. Nos últimos 50 anos, a incidência de placenta acreta aumentou 10 vezes (patologia do século 20). A cesárea é fator de risco para placenta prévia, e esta é fator de risco para placenta acreta. A ultrassonografia é o principal procedimento diagnóstico, com taxa de detecção de 85%; a ressonância magnética (RM) é complementar. A época do parto ideal na mulher com placenta acreta parece ser a de 34 semanas. O tratamento de preferência da placenta acreta é a histerectomia-cesárea com a placenta in situ, em centros terciários e por equipe multiprofissional. A inversão uterina aguda apresenta quadro clínico caracterizado pela fuga da matriz, hemorragia e choque. O tratamento da inversão uterina aguda é feito pela correção manual (manobra da taxe); caso não apresente resultado, recorre-se à cirurgia de Huntington.
■ Nótula histórica ■ Incidência ■ Etiopatogenia ■ Quadro clínico ■ Diagnóstico ■ Tratamento
Denomina-se infecção puerperal (febre puerperal) a que se origina no aparelho genital após parto recente. Por ser, às vezes, impossível caracterizar a infecção que ocorre após o parto, alguns preferem conceituar a morbidade febril puerperal da seguinte maneira: temperatura de, no mínimo, 38°C, durante 2 dias quaisquer, dos primeiros 10 do período pós-parto, excluídas as 24 h iniciais. Nessas condições, embora não sejam próprias da genitália, podem ser incluídas na morbidade puerperal a tromboflebite e as infecções urinária, pulmonar e das mamas. Cerca de 15% de todas as mulheres com febre puerperal apresentam apenas ingurgitamento mamário.
■ Nótula histórica A infecção ou febre puerperal é conhecida desde Hipócrates, que a estudou e descreveu sua sintomatologia, aludindo à epidemia de Tasos. Plater, em 1573, a considerou decorrente de inflamação do útero, conceito adotado por Hoffmann (1742), Denman (1768) e muitos outros. Sua incidência era muito elevada, sendo uma entidade nosológica temível em decorrência da alta mortalidade que provocava. As epidemias observadas em Lião (1750), Londres (1760), Edimburgo (1772) e, mais tarde, na França (1800) possibilitaram vislumbrar causas comuns, confirmadas pelos progressos posteriores da bacteriologia e pelo gênio de Pasteur. Tenon, em 1775, averiguou que a mortalidade por infecção atingia 70% dos casos. Na Maternidade de Viena, durante a epidemia de 1823, de 698 parturientes com febre puerperal, 133 sucumbiram. Na Maternidade de Paris, a mortalidade atingia 18,9% dos casos. Denman, na Inglaterra, em 1768, lembrou a possibilidade de a febre puerperal ser transmitida por médicos e parteiras. Watson, em 1842, em Londres, recomendava a ablução com água clorada, e Holmes, nos Estados Unidos, concluía haver contágio, recomendando a profilaxia, para que médicos e parteiras não presenciassem necropsias. Foi, porém, Inácio Felipe Semmelweis, em 1847, quem pressentiu a causa da febre puerperal e pôs em evidência a fonte de contágio. Assistente de uma clínica obstétrica em Budapeste, ele notara grande disparidade na mortalidade comparada das duas seções do Serviço. Na seção frequentada por médicos e estudantes, a letalidade por infecção puerperal subia a 11,4%; a outra, gerida pelas parteiras, apresentava taxa de 2,7%. Os recém-nascidos apresentavam-se igualmente atingidos, em proporções semelhantes. Apesar de todos os esforços empregados, a situação permanecia inalterada ano após ano e chegara ao domínio geral; as gestantes recusavam-se a serem assistidas pelos médicos do hospital. A morte de Kolletschka, contaminado em exame cadavérico que praticara e vitimado por septicemia, fez com que Semmelweis encontrasse a chave do problema ao fazer a necropsia do corpo: era patente a grande analogia das lesões com as comumente observadas em pacientes vitimadas por febre puerperal.
Semmelweis entreviu, desde logo, a causa da infecção puerperal. As mãos de médicos e estudantes carregavam os detritos dos cadáveres em decomposição às parturientes e isso ocasionava a doença. Foram instituídas, como norma, medidas profiláticas que constavam de lavagem das mãos, limpeza das unhas e uso de água clorada; experimentalmente, reproduziu-se o quadro da febre puerperal em animais de laboratório. Depois de pedir que a mesma equipe adotasse as medidas profiláticas, Semmelweis baixou a mortalidade da seção dos médicos para 1,5%, e diminuiu, igualmente, a morbimortalidade dos recém-nascidos. Depois de Semmelweis, com ideias inéditas para o século 19, passou-se a considerar que a febre puerperal é causada pela introdução, no canal genital das parturientes e puérperas, de “matéria orgânica em decomposição” ou de partículas infectadas ou gangrenadas, que seriam levadas ao sistema genital pelos dedos do parteiro, instrumentos e água das lavagens. As teorias de Semmelweis não foram aceitas pacificamente; sua definição, no entanto, seria ainda hoje perfeita se “matéria orgânica em putrefação” fosse substituída por “germes patogênicos”. Pasteur (1879) completou o extraordinário ciclo de descobertas com a teoria microbiana, Koch incriminou o estreptococo como principal responsável pela febre puerperal, e Lister, em 1876, chamou a atenção para o “ar contaminado”, lançando os fundamentos da antissepsia com o uso da nebulização de ácido fênico nos partos assistidos. Desenvolvendo os métodos de cultura de Koch, Fränkel, em 1884, encontrou, nos lóquios de puérperas febris, estreptococo semelhante àquele que determina a erisipela. Diversos autores procuraram identificar os germes dos lóquios de pacientes com febre puerperal, confirmando-lhe a etiologia microbiana.
■ Incidência No Brasil, a infecção puerperal é a 3a causa de mortalidade materna, sendo responsável por 6,3% dos óbitos (Ministério da Saúde, 2006).
■ Etiopatogenia A cavidade uterina – depois do parto e, especificamente, a área remanescente do descolamento placentário – constitui zona com grande potencial para infecção. A atividade contrátil normal do útero, depois da dequitação, e a involução puerperal, além da reação leucocitária e da hemóstase trombótica na zona de implantação da placenta, representam os mecanismos de defesa contra infecção. A parte superior da matriz, no pós-parto, provavelmente é estéril na maioria das mulheres sem febre ou outros sinais de infecção. Todavia, sabe-se que a vagina e a cérvice da puérpera contêm grande número de bactérias, algumas de potencial patogênico, e muitos desses microrganismos tornam-se virulentos no decorrer do pós-parto. Em alguma porção do útero, provavelmente na junção cervicoendometrial, a colonização bacteriana é interrompida, e a cavidade torna-se estéril.
A endometrite pós-parto tem fisiopatologia similar à da corioamnionite, envolve os mesmos microrganismos e é frequentemente precedida por infecção intra-amniótica clínica ou subclínica. Os patógenos anaeróbios desempenham papel relevante na endometrite após operação cesariana e são isolados em 40 a 60% das culturas coletadas apropriadamente. Mulheres com endometrite após o parto vaginal são candidatas à infecção por patógeno único, com destaque para o Streptococcus.
■ Fatores predisponentes A operação cesariana é o fator predisponente mais importante, aumentando significativamente a morbiletalidade puerperal. Em relação aos partos vaginais, a cesárea eleva o risco de endo(mio) metrite em 5 a 30 vezes, de bacteriemia em 2 a 10 vezes, de abscesso ou de tromboflebite pélvica em 2 vezes, e de morte por infecção em 80 vezes. Inúmeras circunstâncias podem explicar a grande incidência de infecção após parto cesáreo: bactérias em áreas de tecido cirurgicamente desvitalizado, vasos linfáticos intramiometriais expostos à invasão bacteriana, contaminação do peritônio com germes existentes na cavidade amniótica, perda moderada de sangue, diminuição da resposta imunitária (especialmente se tiver sido utilizada a narcose). Outros fatores que elevam o risco de infecção após cesariana são: parto e amniorrexe prolongados, com numerosos toques vaginais, e baixo nível socioeconômico. Diferentes estudos tornaram inconsistentes elementos inicialmente arrolados: monitoramento interno, obesidade, anemia, anestesia geral. São identificados quatro grupos de risco para infecção puerperal, de acordo com características clínicas (Tabela 49.1): muito alto (risco de infecção de 40 a 85%), alto (risco de 10 a 40%), moderado (risco de 3 a 10%) e baixo (risco de 1 a 3%).
Tabela 49.1 ■ Grupos de risco para infecção puerperal. Grupo de risco
Características clínicas
Muito alto (40 a 85%)
Operação cesariana após parto e amniorrexe de 6 a 12 h, com múltiplos exames vaginais em mulheres indigentes
Alto (10 a 40%)
Operação cesariana após parto e amniorrexe de > 6 h ou cesárea eletiva em mulheres indigentes Operação cesariana após parto e amniorrexe de qualquer duração em mulheres não indigentes
Moderado (3 a 10%)
Operação cesariana eletiva em mulheres não indigentes Parto vaginal e amniorrexe prolongados ou com grande traumatismo
Baixo (1 a 3%)
Parto vaginal não complicado
■ Infecção exógena e endógena Antes do evento dos antibióticos, a incidência de morte materna secundária à sepse era, em 75% das vezes, determinada por estreptococos beta-hemolíticos do grupo A. Após a introdução da penicilina e de técnicas mais rígidas de assepsia e de antissepsia, reduziu-se ao mínimo a infecção exógena por esse germe. As endógenas, determinadas pelos anaeróbios e por gramnegativos aeróbios, provenientes da microbiota normal da vagina, da cérvice e dos intestinos, por sua vez, passaram a ser as principais responsáveis pela infecção puerperal. Atualmente, a maioria delas é polimicrobiana, constituída por aeróbios e anaeróbios, e dentre os principais figuram os descritos a seguir.
■ Microbiologia ▶ Microbiota cervicovaginal normal na gravidez. A gravidez pode suscitar mudanças na microbiota cervicovaginal. A colonização por Lactobacillus aumenta na gravidez e existe a possibilidade de outros tipos de microrganismos serem diminuídos. Trata-se de alterações fisiológicas, destinadas a proteger o concepto, uma vez que Lactobacilli são avirulentos. Todavia, vale lembrar que a microbiota cervicovaginal da grávida pode conter espécies aeróbias e anaeróbias potencialmente perigosas e comumente associadas a infecção puerperal e pósabortamento. Os estrogênios poderiam estar comprometidos no aumento dos Lactobacilli e, juntamente com a progesterona, na redução dos anaeróbios. Depois do parto vaginal, modificações significantes verificam-se na microbiota regional, especialmente entre as espécies anaeróbias que proliferam dramaticamente no 3o dia do puerpério. O mecanismo, embora ainda não elucidado, pode decorrer do trauma relacionado com o processo do nascimento, os lóquios, a contaminação da vagina durante o parto e o término do estímulo hormonal ao epitélio vaginal. É uma situação transitória; 6 semanas depois, a microbiota vaginal está normalizada.
■ Aeróbios ▶ Estreptococos beta-hemolíticos do grupo B (S. mastitidis, S. agalactiae). Apenas recentemente começou-se a considerá-los importantes causadores de infecção puerperal precoce e neonatal. Encontrados em cerca de 30% das culturas vaginais e cervicais de grávidas, a infecção seria, portanto, endêmica, pois os estreptococos do grupo B colonizam o sistema genital materno, provenientes do reto ou do contato sexual. A infecção ocorre dentro de 24 h do parto, com rápido agravamento do estado materno. Os sintomas são febre elevada (39°C), calafrios, taquicardia e útero doloroso à palpação (endomiometrite). Consideram-se de risco as pacientes que tiveram parto disfuncional com ruptura prolongada das membranas submetidas à operação cesariana. O tratamento antibiótico deve ser imediato para evitar abscessos e endocardite. Esses estreptococos são sensíveis a penicilina, ampicilina, cefalosporinas e eritromicina. ▶ Estreptococos beta-hemolíticos do grupo D (inclui enterococos,
especialmente S. faecalis). Não são considerados patogênicos em infecções cirúrgicas, embora sejam observados em pequeno número de mulheres com endometrite pós-parto ou bacteriemia. Esses estreptococos são resistentes a penicilina, cefalosporinas, aminoglicosídios e clindamicina; a ampicilina ou o efeito sinérgico da penicilina e de um aminoglicosídio inibem os enterococos. ▶ Estreptococos beta-hemolíticos do grupo A (Streptococcus pyogenes). Não fazem parte da microbiota normal da vagina e da cérvice: a origem é exógena, em geral da nasofaringe ou de lesões da pele da paciente, do bebê ou do corpo clínico do hospital. A principal característica dessa infecção é sua enorme capacidade de invasão, com sinais mínimos de localização nos pontos lesados do canal do parto. Os microrganismos são sensíveis a penicilina, cefalosporinas e eritromicina, e a resposta ao tratamento antibiótico adequado é muito rápida. ▶ Estafilococos aeróbios (Staphylococcus epidermidis, Staphylococcus aureus). S. aureus é encontrado em apenas 2% das culturas vaginais em grávidas. Raramente determina endometrite, estando associado, mais frequentemente, a abscessos vulvovaginais e mastites. S. epidermidis é habitante normal da microbiota cervical e, quando existente no útero, faz parte da infecção polimicrobiana. É resistente a penicilina e ampicilina, sensível a oxacilina, meticilina, cloxacilina e cefalosporinas. ▶ Gram-negativos aeróbios (Escherichia coli, Klebsiella, Enterobacter, Proteus, Pseudomonas). Grandes protagonistas das infecções urinárias costumam ser encontrados nos intestinos e em incidência variável no sistema genital: E. coli em 2 a 10% das grávidas e em 33% das puérperas; outros membros da família Enterobacteriaceae raramente são encontrados. E. coli exerce papel importante na infecção puerperal. Principal responsável pelo choque septicêmico, sua sensibilidade aos antibióticos varia de hospital para hospital. Canamicina, gentamicina e cloranfenicol costumam ser efetivos contra 95% das espécies; as cefalosporinas atuam em 80 a 93%, e a ampicilina e a tetraciclina em, talvez, 80%. ▶ Haemophilus influenzae. A literatura registra 20 casos de infecção puerperal por Haemophilus influenzae a partir de 1969. Dentre essas pacientes, nove evoluíram para estado de sepse, a indicar a elevada virulência do microrganismo, que há de ser cogitada nos casos de refratariedade aos esquemas habituais de antibióticos utilizados na infecção puerperal. Haemophilus influenzae é sensível a ampicilina, cloranfenicol e tetraciclinas. ▶ Gardnerella vaginalis. Tem-se registrado um número crescente de casos relacionados com Gardnerella vaginalis em culturas sanguíneas no pós-parto, especialmente em mulheres com febre. Existe a possibilidade de que determine infecção puerperal, em associação a anaeróbios, mas é sensível à maioria dos antibióticos.
■ Anaeróbios ▶ Gram-positivos anaeróbios. Ocorrem infecções por: • Cocos anaeróbios (peptococos, peptoestreptococos): habitantes não patogênicos da vagina e
do colo costumam se tornar virulentos na presença de tecido traumatizado e desvitalizado e de sangue coagulado. Os lóquios têm cheiro pútrido. Tornaram-se comuns as infecções mistas por aeróbios (E. coli, enterococos) e outros anaeróbios (bacteroides). A penicilina é o antibiótico de escolha; secundariamente, opta-se por cefalosporinas, eritromicina e clindamicina • Bastonetes anaeróbios (clostrídios): Clostridium perfringens (antes C. welchii) tem participação em 85% das infecções. Hóspede normal da vagina e do colo, tem virulência muito pequena e poucas vezes determina infecção puerperal. Por motivos desconhecidos, pode ocasionar quadro gravíssimo (gangrena gasosa, hemólise; hipotensão, insuficiência renal) quando patogênico, com mortalidade de 50 a 85% dos casos. Os lóquios têm odor fétido e a infecção é mais encontrada no abortamento infectado. O simples isolamento do clostrídio, no sistema genital, em casos de infecção, não indica ameaça à vida da paciente. Em geral, a endometrite é discreta e cede ao tratamento antibiótico (penicilina). ▶ Gram-negativos anaeróbios. Os agentes mais comuns são: • Bacteroides (Bacteroides fragilis): agentes importantes na infecção puerperal, anaeróbios não patogênicos do canal do parto e dos intestinos, só se tornam virulentos quando há tecido necrosado, lóquios fétidos e quadro clínico prolongado, frequentemente complicado por tromboflebite pélvica séptica. Não é uma infecção trivial que ameace a vida da paciente; B. fragilis costuma ser sensível à clindamicina e ao cloranfenicol, antibióticos de escolha. Cefoxitina e metronidazol também são efetivos.
■ Micoplasma Os micoplasmas genitais são frequentemente encontrados na cérvice das gestantes. Mycoplasma hominis foi isolado em 20 a 50% das pacientes, e Ureaplasma urealyticum, em 60 a 80%. A associação entre micoplasmas genitais e febre puerperal não está ainda inteiramente esclarecida. O isolamento anteparto de micoplasma tem sido relacionado a febre puerperal em alguns estudos e contestado em outros. O micoplasma foi identificado no sangue em 3 a 8% das puérperas com febre inexplicada. Esses microrganismos determinam infecção de baixa morbidade que explica a evolução favorável mesmo sem terapia específica. Os micoplasmas genitais, encontrados no endométrio e/ou sangue em 15% das puérperas com endometrite, são sensíveis às tetraciclinas, à eritromicina e ao cloranfenicol.
■ Clamídia Chlamydia trachomatis está relacionada com a infecção puerperal, especialmente a partir do 3 dia de puerpério. Verificou-se maior incidência de infecção puerperal nas gestantes portadoras de clamídia. Em estudo similar, não foi encontrado qualquer diferença quanto à intercorrência de infecção puerperal entre as gestantes com ou sem cultura positiva para clamídia. São agentes sensíveis à tetraciclina e à eritromicina. o
A Tabela 49.2 resume as bactérias que podem ser responsabilizadas pelas infecções genitais femininas (van Dillen et al., 2010).
■ Quadro clínico A infecção local, com penetração de germes, surge, inicialmente, pela porta de entrada, frequentemente a superfície cruenta onde se assentou a placenta, o endométrio desnudo stricto sensu, a decídua ou ferida no canal cervicovaginal e na vulva. Vencida a barreira leucocitária, ela se alastra, propagando-se ou se generalizando (Figura 49.1).
Tabela 49.2 ■ Bactérias mais comuns nas infecções genitais femininas. Aeróbios Estreptococos dos grupos A, B e D Enterococcus Bactérias gram-negativas: Escherichia coli, Klebsiella, Proteus sp. Anaeróbios Peptococcus sp. Peptostreptococcus sp. Bacteroides bivius, B. fragilis, B. disiens Clostridium sp. Fusobacterium sp. Outros Mycoplasma hominis Chlamydia trachomatis
■ Perineovulvovaginite e cervicite As infecções do períneo, as vulvovaginais e as do colo uterino decorrem das inevitáveis soluções de continuidade aí produzidas pela passagem do feto, além das episiotomias. Clinicamente, caracterizam-se pelo aparecimento de dor, rubor, edema e, por vezes, secreção purulenta. A febre é moderada (38,5°C).
■ Infecção da episiotomia A despeito de ser uma ferida em região contaminada, a infecção da episiotomia não é comum, vigente em menos de 0,5% dos casos. A maioria não é grave e raramente é mortal. Essas infecções podem ser classificadas em 4 tipos, de acordo com a profundidade e a gravidade do processo inflamatório. ▶ Infecção simples. Limitada à pele e à fáscia superficial adjacente. O local apresenta edema, eritema e, posteriormente, deiscência da zona suturada. ▶ Infecção da fáscia superficial. Como a fáscia superficial dessa área tem continuidade com as da parede abdominal, região glútea e pernas, o edema e o eritema costumam estender-se,
atingindo total ou parcialmente os locais nomeados. ▶ Necrose da fáscia superficial. Infecção muito grave, com manifestações cutâneas tardias: inicialmente, há edema e eritema. A pele toma, mais tarde, cor azulada ou castanha, aspecto francamente gangrenoso, com formação de vesículas e bolhas. Sinais tóxicos de septicemia são evidentes em todas as pacientes e choque pode ocorrer. Se não houver tratamento cirúrgico, a mortalidade atinge 100% dos casos; os antibióticos e a cirurgia oportuna reduzem os óbitos para 50%. ▶ Mionecrose. Afeta os músculos do períneo e, na maior parte das vezes, é causada por infecção por Clostridium perfringens. A dor é desproporcionada aos sinais físicos.
Figura 49.1 ■ Diferentes tipos de infecção puerperal e as vias de sua propagação. (Adaptada de Hellman e Pritchard. Williams Obstetrics. 14. ed. New York: Appleton, 1971.)
■ Endometrite Endometrite é a infecção puerperal da genitália mais frequente e surge na área de implantação da placenta. Após partos vaginais, incide em 1 a 3% dos casos e tende a instalar-se no 4o ou 5o dia de pós-parto; o aparecimento mais precoce sugere maior virulência. As condições gerais se mantêm boas, a não ser nas formas muito graves. Clinicamente, a infecção inicia-se pela ascensão da temperatura, que atinge 38,5 a 39°C; os lóquios tornam-se purulentos e com mau cheiro quando anaeróbios estão envolvidos. O exame pélvico demonstra útero amolecido e doloroso, engrandecido no abdome, e colo permeável à polpa digital, que, manipulado, deixa escoar secreção purulenta. A miometrite acompanha, em geral, a endometrite, com quadro clínico similar ou mais intenso que o anterior. A endometrite após parto vaginal geralmente tem prognóstico benigno; poucos casos complicam-se por abscesso pélvico, peritonite generalizada e tromboflebite pélvica.
■ Parametrite É a infecção do tecido conectivo fibroareolar, parametrial, decorrente, na maioria das vezes, de lacerações do colo e da vagina, em que o germe se propaga pela via linfática. O local de eleição é o tecido parametrial laterocervical (unilateral em 70% dos casos), podendo haver, todavia, invasão anterior (paracistite) ou posterior (pararretite), além da incursão ao ligamento largo. Temperatura elevada que persiste por mais de 10 dias sugere parametrite. Ela aumenta gradativamente e, em pouco tempo, chega a 39 a 39,5°C, com remissões matutinas. O toque vaginal desperta dor intensa, o que revela endurecimento dos paramétrios. Se não for tratado em tempo, o processo evolve para supuração e flutuação, transformando-se em abscesso do paramétrio ou do ligamento largo. O prognóstico costuma ser favorável.
■ Anexite (salpingite e ovarite) As anexites são representadas por infecção e inflamação das tubas uterinas e dos ovários. São mais frequentes as salpingites do que as ovarites, e surgem após abortamentos infectados e partos vaginais prolongados. Na fase aguda (endossalpingite), as tubas uterinas inicialmente se apresentam endurecidas, tumefeitas, com acolamento precoce das fímbrias e obliteração tubária, daí a retenção da exsudação purulenta que forma a piossalpinge. A salpingite pode evoluir para absorção do material com recuperação parcial do órgão, comumente deixando a sequela de obstrução tubária,
ou evoluir para a forma subaguda, em que o processo organiza-se, formando o tumor inflamatório anexial. A seguir, ocorre progressão para cronicidade, podendo deixar como sequela a hidrossalpinge, ou continua a prosperar, de maneira aguda, como nas formas sépticas, atingindo a serosa peritoneal (peritonite). Além disso, a infecção pode alcançar os ovários, desencadeando a ovarite. Clinicamente, inicia-se com dor abdominal aguda, predominando nas fossas ilíacas, febre alta (39 a 39,5°C) e discreta defesa abdominal. O toque genital revela grande sensibilidade dos anexos. A palpação de tumoração anexial é notada na evolução da doença.
■ Peritonite A pelviperitonite acompanha muitas formas de infecção puerperal localizada: endomiometrite, salpingite, parametrite. Clinicamente, surge dor intensa e defesa muscular no baixo-ventre, febre alta (40°C), perturbação funcional dos intestinos, com retenção de gases e fezes (íleo paralítico), pulso a 140 e sinal de Blumberg positivo (compressão e descompressão da parede abdominal). O toque desperta intensa dor no fundo de saco vaginal posterior. Quando há coleção purulenta, nota-se abaulamento. A peritonite generalizada intercorre quando o microrganismo é muito virulento, como no caso do estreptococo beta-hemolítico.
■ Tromboflebite pélvica séptica Costuma ser o ponto de partida da pioemia (êmbolos sépticos), determinando abscessos renais, pulmonares e de outros órgãos. Não provoca embolia pulmonar maciça mortal. Os agentes infecciosos geralmente são os anaeróbios: peptococos, peptoestreptococos e Bacteroides. Cerca de dois terços das pacientes apresentam febre e calafrios, e muitas também apresentam taquicardia e taquipneia. Mais de um quinto refere dor torácica, apresenta tosse e hemoptise. Há dois quadros clínicos distintos: • Um menos ostensivo, com febre persistente apesar dos antibióticos, paciente ambulatorial, sem dor ou com dor mal localizada. Achados mínimos e vagos aos exames pélvico e abdominal. • O outro refere-se à trombose da veia ovariana. A trombose da veia ovariana complica menos de 0,05% dos partos vaginais e até 1 a 2% dos partos cesáreos. É importante notar que a trombose da veia ovariana pós-parto afeta a veia direita em mais de 90% dos casos, em decorrência da dextrorrotação fisiológica do útero durante a gravidez, que leva à compressão do vaso desse lado. Atualmente, discute-se a sua etiologia infecciosa. Os sinais/sintomas mais comuns são febre, dor pélvica e massa abdominal palpável. Na maioria dos casos, a trombose da veia ovariana não é diagnosticada até que a febre não responsiva aos antibióticos após 48 h faz suspeitar da afecção. O trombo pode levar a outras complicações, das quais a mais comum
é a embolia pulmonar, que pode ocorrer em mais de 10% dos casos. Infarto ovariano, obstrução ureteral e até o óbito da paciente também podem ocorrer. O método de eleição para o diagnóstico da trombose da veia ovariana pós-parto é a tomografia computadorizada (TC) com ou sem contraste. A ultrassonografia traz poucos subsídios; afasta apenas a possibilidade de abscessos pélvicos ou tubo-ovarianos decorrentes da infecção puerperal.
■ Choque septicêmico O principal responsável é a E. coli, raramente os clostrídios e os bacteroides. O prognóstico é grave, embora em pacientes obstétricas a mortalidade seja mais baixa, de 20 a 25%. Precede o choque a septicemia, cujos sintomas são calafrios, elevação da temperatura a 40°C, taquicardia (120 a 140 bpm) e mau estado geral. A hipertermia torna-se contínua, com poucas oscilações, o que a diferencia dos processos supurativos localizados. Paradoxalmente, o útero pode não estar doloroso nem aumentado de volume e o corrimento loquial, ausente ou discreto. Além de calafrios e febre, sudorese, sede, taquicardia, obnubilação mental e hipotensão são indicativos de choque septicêmico. Em certos casos, a ausência de hipertermia é a regra. Na infecção por Clostridium perfringens surgem gangrena gasosa (evidenciada por crepitação e nas radiografias), hemólise intravascular com hemoglobinemia (soro e urina castanho-escuros), icterícia (hiperbilirrubinemia), coagulação intravascular disseminada e insuficiência renal aguda.
■ Diagnóstico No quadro clínico, a febre ainda é o melhor sinal para o diagnóstico da infecção puerperal. O laboratório pouco oferece (a leucocitose é comum após o parto); as culturas têm pouca serventia. O diagnóstico da tromboflebite pélvica séptica é feito atualmente com TC ou ressonância magnética. Não se justifica mais o teste da heparina intravenosa para estabelecer o diagnóstico. A ultrassonografia é valiosa para o diagnóstico do abscesso pélvico e tubo-ovariano, este último geralmente presente 1 a 2 semanas após o parto.
■ Tratamento ■ Perineovulvovaginite e cervicite As pequenas lacerações perineais, vaginais e cervicais devem ser suturadas, e as episiotomias merecem cuidados constantes até sua completa cicatrização. A terapêutica das lacerações infectadas consiste na administração de antibióticos sistêmicos (cefalosporinas, oxacilina, meticilina, cloxacilina) e antissépticos locais. Abscessos devem ser abertos e drenados. A episiotomia infectada merece abertura cirúrgica e exploração instrumental sob anestesia geral, não se dispensando, concomitantemente, antibióticos sistêmicos. Pacientes com infecção de episiotomia e manifestações tóxicas que não respondam à terapia
antibiótica em 24 a 48 h além de edema e eritema em áreas que ultrapassam a perineal (abdome, coxas e região glútea) devem ser submetidas, obrigatoriamente, à exploração cirúrgica, pois é quase certa a possibilidade de necrose da fáscia superficial.
■ Endometrite e miometrite Se a metrite é leve e se desenvolve depois de a mulher receber alta após o parto vaginal, o tratamento com antibiótico oral tende a ser suficiente. Para infecções moderadas e graves, especialmente após o parto cesáreo, o tratamento intravenoso com antibióticos de largo espectro é mandatório. A melhora após 48 a 72 h ocorre em cerca de 90% das mulheres. A persistência de febre após esse prazo faz pensar em complicações: abscesso de paramétrio, de parede ou pélvico e tromboflebite pélvica séptica. O esquema antibiótico mais utilizado é clindamicina (900 mg IV cada 8 h) associada a gentamicina (1,5 mg/kg IV cada 8 h). Ampicilina (2 g IV cada 6 h) ou metronidazol (500 mg IV cada 8 h) pode ser adicionado para prover cobertura contra anaeróbios se tiver sido realizada cesárea. A intervenção na cavidade da matriz infectada só estará indicada na suspeita de retenção de restos ovulares com sangramento anormal e persistente, e deve ser feita pela curetagem com antibiótico e ocitócico.
■ Parametrite O tratamento baseia-se no emprego de antibióticos e anti-inflamatórios. Quando há formação de abscessos, deve-se drenar pela via vaginal ou pela abdominal (flegmão do ligamento largo), com mobilização da mecha no 2o ou no 3o dia, sendo retirada completamente apenas quando terminada a exsudação.
■ Anexite O tratamento é feito por antibióticos; em raros casos, por motivo da possibilidade de ruptura de piossalpinge, há necessidade de realizar a salpingectomia.
■ Tromboflebite pélvica séptica O melhor tratamento para a tromboflebite pélvica séptica, inclusive o da trombose da veia ovariana, é o antibiótico em combinação com o anticoagulante. Deve-se iniciar com heparina de baixo peso molecular (HBPM), no caso, enoxaparina em dose terapêutica: 1 mg/kg, 12/12 h, l ou 1,5 mg/kg, 24/24 h, por injeção subcutânea. Após o curso inicial com enoxaparina, associa-se o anticoagulante oral varfarina (10 mg/dia), e depois suspende-se a heparina. Nesse período, o índice normalizado internacional (INR) deve ficar entre 2,0 e 3,0. Muitos autores recomendam continuar os antibióticos por 48 a 72 h e os anticoagulantes por, no mínimo, 7 a 10 dias após a
resolução da febre. Se o trombo estender-se à veia renal ou à veia cava inferior, como mostrado por TC, a varfarina deve ser mantida por 3 meses. A colocação de filtro na veia cava inferior pode estar indicada em situações de embolização pulmonar, apesar da anticoagulação adequada.
■ Peritonite Quando há abscesso no fundo de saco de Douglas, pratica-se a colpotomia e a drenagem (Figura 49.2). Outros só indicam essa operação se a paciente estiver em bom estado geral e com o abdome flácido, ruídos intestinais presentes, optando por laparotomia nas demais oportunidades. No entanto, a mecha deve ser retirada somente quando, após 2 a 3 dias, não mais se notar a saída de material purulento ou seroso. Se depois desse período de drenagem as melhoras não se acentuarem (queda da temperatura e do pulso, alívio do estado geral), vale suspeitar de generalização do processo, possível formação de lojas purulentas em outras regiões da cavidade abdominal, tromboflebite pélvica séptica e septicemia. O tratamento da peritonite generalizada há muito baseia-se na laparotomia, que possibilita a aspiração do exsudato livre a fim de reduzir a absorção tóxica. Os focos sépticos devem ser incisados por via abdominal; a colpotomia é insuficiente, porque lojas purulentas podem surgir até no espaço subdiafragmático. Os drenos são deixados nas fossas ilíacas. Antes de se fechar a cavidade abdominal, é conveniente proceder à lavagem peritoneal com solução fisiológica e aí colocar ampicilina. Dependendo do estado geral da paciente e da precocidade da laparotomia, pode-se considerar a retirada do útero quando nele está o foco septicêmico.
■ Choque septicêmico A cultura do sangue é exame obrigatório para identificar o germe. Nos casos de infecção por Clostridium, se estiverem presentes os sinais ominosos descritos no quadro clínico, está indicada a histerectomia total com anexectomia bilateral. As transfusões sanguíneas e o tratamento da insuficiência renal aguda são medidas adicionais.
Figura 49.2 ■ Colpotomia, em abscesso no fundo de saco de Douglas, para a drenagem de coleção purulenta.
■ Pontos-chave Chama-se infecção puerperal a que se origina do aparelho genital após o parto. A cavidade uterina, depois do parto, e especialmente a área remanescente do descolamento placentário, é uma zona com grande potencial de infecção. A atividade contrátil normal do útero, depois da dequitação, e a involução puerperal, além da reação leucocitária e da hemóstase trombótica na zona de implantação da placenta, representam os mecanismos de defesa contra a infecção. A endometrite pós-parto tem fisiopatologia similar à da corioamnionite, ascensão dos germes da vagina e do colo, e é frequentemente precedida por infecção amniótica clínica ou subclínica. A operação cesariana é o fator predisponente mais importante de infecção puerperal. São identificados quatro grupos de risco para infecção puerperal: muito alto (risco de 40 a 85%), alto (risco de 10 a 40%), moderado (risco de 3 a 10%) e baixo (risco de 1 a 3%). Após a introdução da penicilina e de técnicas mais rígidas de assepsia e de antissepsia, ganham destaque as infecções endógenas, determinadas por anaeróbios e por gram-negativos aeróbios, além de micoplasmas, provenientes da flora habitual da vagina, cérvice e intestinos. O tratamento antibiótico da endometrite moderada e grave costuma ser feito com ampicilina e gentamicina intravenosas. Na endometrite pós-cesárea, associa-se a clindamicina ou o metronidazol. Se a paciente permanecer febril após 48 a 72 h do tratamento antibiótico, deve-se considerar abscesso pélvico ou tromboflebite pélvica séptica. No abscesso pélvico, o tratamento é a drenagem, na tromboflebite pélvica séptica é a administração de heparina e na peritonite generalizada, a laparotomia.
■ Hemorragias precoces
A hemorragia pós-parto é a principal causa de morte materna em todo o mundo, sendo estimadas 140 mil mortes maternas em 1 ano, o que representaria uma morte a cada 4 min, acontecendo em sua maioria nas primeiras 4 h após o parto. É usualmente definida como a perda de sangue superior a 500 mℓ após o parto vaginal ou maior que 1.000 mℓ após o parto cesáreo [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2006]. Para fins de definição clínica, qualquer perda de sangue que cause instabilidade hemodinâmica também pode ser considerada hemorragia pós-parto. A hemorragia pós-parto pode ser classificada em primária (precoce) ou secundária (tardia), sendo primária quando a hemorragia ocorre dentro de 24 h do puerpério e secundária quando o sangramento excessivo incide no período de 24 h a 6 a 12 semanas (ACOG, 2006). A prevalência da hemorragia puerperal varia de 5 a 15%, sendo reduzida significativamente com a administração profilática de substâncias uterotônicas no pós-parto imediato. Quanto à via de parto, a incidência de hemorragia pós-parto é de aproximadamente 4% dos partos vaginais e 6% das operações cesarianas. As hemorragias superiores a 500 mℓ ocorrem em cerca de 5% dos casos, e as maiores de 1.000 mℓ, em 1 a 2% dos pacientes. Além do óbito, grave morbidade pode estar associada à hemorragia pós-parto; as sequelas incluem síndrome de angústia respiratória aguda, coagulopatia, choque e necrose hipofisária (síndrome de Sheehan). A hemorragia pós-parto tardia está geralmente associada a subinvolução do leito placentário, retenção de restos ovulares, infecção (endometrite) e distúrbios hereditários da coagulação (doença de von Willebrand, púrpura trombocitopênica idiopática, púrpura trombocitopênica trombótica e hemofilia). O tratamento é multidisciplinar e começa por ações preventivas no manejo ativo do 3o período do parto e, uma vez instalada a hemorragia, por procedimentos não invasivos, pode culminar na histerectomia. O desejo de fertilidade futura da paciente também é levado em consideração.
■ Hemorragias precoces ■ Prevenção Os fatores de risco para a atonia uterina incluem multiparidade, distensão uterina exagerada pela gravidez gemelar, polidrâmnio e macrossomia, parto rápido ou prolongado, anestesia geral, sulfato de magnésio e infecção amniótica. O manejo ativo no secundamento é a maneira efetiva de prevenir a hemorragia pós-parto. Ela combina a administração de ocitocina (10 UI), por via intramuscular (IM), após o nascimento da criança [Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), 2010]. Alternativamente à administração da ocitocina IM, podem-se infundir 20 a 40 UI de ocitocina em 1.000 mℓ de soro fisiológico a 150 mℓ/h como agente uterotônico; como 2a linha, ainda há as seguintes opções: metilergonovina 0,2 mg IM ou misoprostol 400 a 800 mg via retal, seguida por ligadura e tração controlada do cordão umbilical, e extração da placenta. Esse conjunto de ações reduz em até 2/3 a ocorrência da hemorragia puerperal, sem aumentar a necessidade de remoção manual da placenta.
■ Diagnóstico e tratamento O diagnóstico da hemorragia pós-parto se inicia com o reconhecimento do sangramento excessivo e o exame pormenorizado da paciente para identificar a sua causa. A regra dos “4T” (tônus, trauma, tecido e trombina) é processo mnemônico interessante (Tabela 50.1). Quando identificado o desenvolvimento da hemorragia pós-parto, algumas medidas são prioritárias, independentemente do fator desencadeante; dentre elas, estão: chamar ajuda, avaliar vias respiratórias, respiração e circulação, fornecer oxigênio suplementar, obter acesso venoso, iniciar reposição volêmica com cristaloides, monitorar o pulso, a pressão arterial, proceder à sondagem vesical e ao controle de diurese, avaliar necessidade de transfusão de hemoderivados, solicitar exames laboratoriais (hemograma, coagulograma, prova cruzada e tipo sanguíneo), avaliar e preparar transferência da paciente para local de maior complexidade nos casos em que o controle do sangramento tenha sido ineficaz (FEBRASGO, 2010).
■ Tônus A atonia uterina é a causa mais comum de hemorragia pós-parto. Como a hemostasia associada à separação da placenta depende da contração miometrial, a atonia é tratada inicialmente com esvaziamento da bexiga, compressão bimanual do útero, infusão de ocitocina, metilergonovina e misoprostol por via retal.
Tabela 50.1 ■ Regra dos “4T” para identificar as causas de hemorragia pós-parto. 4-T
Causa
Incidência aproximada (%)
Tônus
Atonia uterina
80
Trauma
Lacerações, hematoma, ruptura, inversão
15
Tecido
Placenta retida e acreta
5
Trombina
Coagulopatia
1 cm). A mastite incide na 2a ou 3a semana do pós-parto, ocasionada por infecção estafilocócica. O tratamento da mastite é feito fundamentalmente com antibioticoterapia e esvaziamento da mama, eventualmente drenagem cirúrgica se houver formação de abscesso. Não suspender a amamentação a menos que haja formação de abscesso. A inibição da amamentação é feita com proibição das mamadas, assim como a retirada do leite, mantendo as mamas bem elevadas, com sutiãs apropriados; são utilizadas também a bromocriptina ou a cabergolina.
52 Fórceps
53 Versão e Extração Podal 54 Punção Craniana na Hidrocefalia 55 Procedimentos para a Interrupção da Gravidez 56 Operação Cesariana 57 Histerectomia-Cesárea e Esterilização Pós-parto
■ Tipos e nomenclatura ■ Ações ■ Condições de praticabilidade ■ Indicações ■ Técnica ■ Prognóstico
No âmbito obstétrico, fórceps é o instrumento destinado a apreender a cabeça do feto e a extraí-la através do canal pelvigenital.
■ Tipos e nomenclatura Embora haja inúmeros modelos de fórceps, o obstetra moderno utiliza relativamente poucos instrumentos, e tendem a usá-los cada vez menos. Com a segurança que a operação cesariana oferece, sua prática tem aumentado cada vez mais, restringindo ou eliminando certos tipos de aplicações de fórceps; algumas, anteriormente insubstituíveis, foram completamente erradicadas da prática corrente. Em nosso meio, o mais utilizado é o modelo de Simpson, modificado, dentre outros, por Barnes (Figura 52.1A) e DeLee. Os modelos Kielland (Figura 52.1B), Barton (Figura 52.1C) e Demelin (Figura 52.1D) raramente são empregados, embora tenha serventia o Piper (Figura 52.1E), com peculiaridades que o reservam às extrações da cabeça derradeira. A maioria dos fórceps, com exceção dos providos de tratores separados, consiste em dois ramos, que se dividem em colher, articulação e cabo. O ramo que colocado na metade homônima da paciente é direito ou esquerdo; nos tipos cruzados, são empunhados, correspondentemente, pela mão direita ou esquerda do obstetra, com o instrumento na seguinte posição: a face côncava para dentro, o bico das colheres para a frente, com a borda côncava para cima. Montado ou articulado o aparelho, as concavidades das colheres se defrontam e se opõem; no entanto, suas pontas (apesar de convergentes) jamais se encontram, amenizando, assim, a compressão exercida sobre a cabeça do feto. Nos fórceps de ramos paralelos ou convergentes, apresentado o instrumento à vulva, o ramo segurado pela mão esquerda é o direito, e vice-versa (o tomado pela mão direita é o esquerdo). Em geral, as colheres têm larga janela ou fenestra, o que atenua o peso, aumenta a superfície de adaptação ao segmento cefálico do concepto e, propiciando a hérnia dos tegumentos, contribui para reforçar a solidez da pega. Jumélios são as hastes que limitam as fenestras, tendo, em certos tipos (Demelin), orifícios (vigias) para a passagem dos laços tratores. Os cabos costumam ser retos, sulcados ou não, mais grossos nos aparelhos de fabricação inglesa ou alemã, e alguns com expansão lateral, asa, para apoio dos dedos. As articulações diferentes, conforme o modelo de fórceps, são: padrão francês é o ramo esquerdo provido de parafuso móvel ou de pressão (ramo macho), no qual se vem conectar o direito, que tem depressão reservada (ramo fêmea) para isso; tipo alemão é o parafuso fixo; a chamada articulação inglesa é feita por encaixe e parece de preferência ser mais sólida e determinar menor compressão da presa (Figura 52.2).
Figura 52.1 ■ A. Fórceps de Simpson-Barnes. B. Fórceps de Kielland. C. Fórceps de Barton. D. Fórceps de Demelin. E. Fórceps de Piper.
Figura 52.2 ■ Articulação inglesa.
É particular a articulação no fórceps de Demelin, obtida por intermédio de barra transversal ajustada, nos extremos, a cada um dos ramos; no de Kielland e no de Barton, é móvel, e o ramo esquerdo tem dispositivo que torna possível o deslizamento do direito, a ser locado mais alto ou mais baixo, de acordo com as exigências clínicas.
Tomado o fórceps, articulado e de perfil, identifica-se a curvatura pélvica, formada pelo encurvamento dos jumélios superiores, cujo objetivo é a concordância com a direção da bacia, e a curvatura perineal, que, como o nome indica, contorna o períneo. Visto o instrumento de cima, o espaço intercoclear limita a curvatura cefálica, constituída da concavidade da face interna das colheres, a ser ocupada pela cabeça do feto. Os fórceps de Kielland e de Barton têm a curvatura pélvica apenas esboçada, enquanto a perineal é bastante nítida.
■ Ações O fórceps será estudado, sobretudo, como agente de preensão e de tração, ocasionalmente de rotação.
■ Preensão Nas apresentações cefálicas flexionadas (vértice) ou moderadamente deflexionadas, o fórceps pode apreender a cabeça no sentido transverso e oblíquo. ▶ Pega transversa ou biauricular. É a preferida, talvez a única a ser aceita atualmente. Quando o eixo longitudinal das colheres segue o diâmetro occipitomentoniano (OM) da cabeça do feto, ficando os jumélios posteriores ou convexos com relação à face, configura-se a pega ideal, biparietomalomentoniana (Figura 52.3). É de fácil obtenção se o polo cefálico está baixo e rodado para OP, e constitui a preensão clássica em todas as occipitoanteriores. Nas OS, essa pega é quase impossível pela moderada deflexão, sempre presente: a locação das colheres costuma enquadrar as orelhas dentro das fenestras, aproximados seus bicos do ângulo da mandíbula e, da fronte, a extremidade oposta. Nessa posição, assim como nas demais occipitoposteriores, os jumélios anteriores ou côncavos relacionam-se com a face e o diâmetro occipitomentoniano pode corresponder ao eixo longitudinal das colheres. Sua inversão colocaria a curvatura pélvica do instrumento em direção contrária à da bacia, e isso deve ser evitado.
Figura 52.3 ■ Pega ideal, biparietomalomentoniana.
▶ Pega oblíqua ou frontomastóidea. Nas transversas médias e baixas, as pegas oblíquas constituem valioso recurso (não sendo possível dispor de modelos especiais – por exemplo, Barton). Uma das colheres será posicionada sobre a bossa frontal, e a outra, na apófise mastóidea oposta.
Esse modo de preensão das colheres (Figura 52.4) expõe a cabeça aos escorregamentos de tração e propicia compressões oculares e do nervo facial à altura do forame estilomastóideo. Apesar da proteção aos globos oculares assegurada pelas arcadas orbitárias, a colher pode ter sido introduzida insuficientemente ou deslizado durante a tração; assim, as lesões do olho são comuns nas pegas oblíquas, e as paralisias faciais são frequentemente observadas. As frontomastóideas devem ser abolidas devido aos sérios riscos fetais.
Figura 52.4 ■ Pega frontomastóidea. A obliquidade e as particularidades anatômicas da cabeça do feto impedem a adesão completa das colheres, apoiadas somente por um dos jumélios à fronte e à mastoide.
■ Tração Apreendida, a cabeça do feto será tracionada e extraída, o que constitui a maior função do fórceps. Tracionar o polo cefálico na direção ideal consistiria em conservá-lo equidistante das paredes pélvicas, no eixo da bacia, para eximi-lo de atritos importantes, de tocotraumatismos graves. A tração é a principal ação do fórceps; deve ser feita na linha central da bacia e na linha de direção de Selheim, isto é, obedecendo à curvatura pélvica. A melhor maneira de realizá-la, quando a cabeça ainda está na escavação, é por meio da manobra de Saxtorph-Pajot (Figuras 52.5 e 52.6), isto é, tração axial exercendo força para baixo (com uma das mãos sobre os pedículos) e tração com a outra.
■ Rotação O fórceps não é bom agente de rotação, a qual é necessária, contudo, nas posições oblíquas, anteriores ou posteriores, da cabeça fetal, levada a girar de 45 a 135°, conforme esteja relacionada com a eminência ileopectínea ou a articulação sacroilíaca. Nas transversas, é o giro de 90°. Os modelos de Demelin, Kielland e Barton, por apresentarem a curvatura pélvica suavizada ou ausente, se prestam melhor à função rotatória, que não se faz bem, e sem danos à genitália
materna, com os instrumentos do tipo Simpson e congêneres. Na maioria das vezes, o polo cefálico é tracionado até ultrapassar os limites das espinhas ciáticas, para então lhe imprimir o movimento giratório. Este será feito de modo amplo, não como se uma chave circulasse na fechadura, mas com circundução, atuando a força sobre os cabos do fórceps e permanecendo as colheres no ponto em que estavam locadas, sem desapegar-se da cabeça (Figura 52.7).
Figura 52.5 ■ Modificação da manobra de Saxtorph-Pajot, aconselhada na tração das cabeças médias. Uma das mãos, a esquerda, apoiada na articulação de fórceps cruzado, ou um pouco acima, próximo à vulva, traciona para baixo, verticalmente; a mão direita, em pronação, puxa o instrumento na horizontal, direção indicada pelas setas. Alguns sugerem, para reduzir o vigor das trações, que a mão direita fique em supinação; assim, reduzida a força, ameniza-se a compressão cefálica. (Adaptada de Douglas R. G. e Stromme W. B.)
Figura 52.6 ■ A direção a imprimir às trações, perpendiculares ao plano pélvico, e de acordo com a altura da cabeça (linha de direção de Selheim). 1. Alta. 2. Média. 3. Média-baixa. 4. Baixa. Reitera-se a advertência: as aplicações alta e média estão proscritas. (Adaptada de Dennen E. H.)
Figura 52.7 ■ A. A boa maneira de executar a rotação da cabeça fetal com o fórceps. Circundução conforme o eixo das colheres e atuação da força sobre os cabos, em movimento amplo. A base do cone corresponde à extremidade manual do instrumento. B. O fórceps gira incorretamente, sobre o eixo dos cabos, ameaçando as partes moles maternas, geralmente pinçadas e laceradas pelas colheres. Seus bicos formam a base do cone.
Com exceção da rotação de 45° nas posições anteriores, não se aconselham esses procedimentos, reservados aos especialistas.
■ Condições de praticabilidade Permeabilidade mole, dura e do ovo, isto é, permeabilidade do trajeto mole, representada pela dilatação ampla do colo, vagina bem embebida e tolerante, períneo dotado de boa elasticidade, capaz de se deixar distender; permeabilidade dura ou do trajeto ósseo, condicionada à proporção e à acomodação; permeabilidade do ovo, que estará com as membranas rotas, no ato da operação. Acessibilidade do polo cefálico à pinça extratora, traduzida na cabeça fetal próxima e firme. Em outros termos, e pormenorizando para melhor entendimento dos aprendizes, são condições de aplicação do fórceps:
■ Maternas ▶ Colo dilatado completamente. O fórceps não é empregado se a cérvice não estiver inteiramente desmanchada e aberta, com as bordas imperceptíveis ao toque digital. ▶ Não deve haver qualquer impedimento no canal mole do parto. O fórceps é contraindicado nos casos de tumores prévios, atresias da vagina, septos e tudo que não se possa facilmente eliminar ou afastar com simples exérese ou episiotomia. ▶ Deve-se considerar a proporção entre a bacia e o concepto.
■ Fetais ▶ Concepto vivo. A aplicação do fórceps, medida conservadora que preserva e protege a
vida do concepto, pode resultar em tocotraumatismo das partes moles maternas. Em feto morto, havendo condições de praticabilidade, realiza-se a embriotomia indicada, que reduz o volume do objeto e protege as vias da parturição contra riscos maiores. ▶ Cabeça insinuada. É insinuada a cabeça que passou pelo seu maior plano perpendicular à linha de orientação (biparietal), através do estreito superior. O fórceps pode ser alto, médio, médio-baixo e baixo (Figura 52.8). Atualmente, o fórceps é intervenção privativa do estreito inferior. Para os especializados, são admitidas as aplicações médio-baixas; a maioria das escolas tende a proscrevê-las, limitando a prática da operação às cabeças encaixadas profundamente. ▶ Membranas rotas. O ovo deve estar aberto ou será feita a amniotomia no momento da intervenção.
Figura 52.8 ■ Classificação dos fórceps conforme as relações da cabeça fetal com os planos pélvicos. A. Fórceps alto. B. Fórceps médio. C. Fórceps médio-baixo. D. Fórceps baixo. E. Corte sagital da bacia óssea mostrando, de cima para baixo: plano do estreito superior ou de entrada da escavação; plano de maiores dimensões pélvicas; plano de menores dimensões pélvicas; plano do estreito inferior ou de saída da escavação. (Adaptada de Dennen, E. Forceps deliveries. 2. ed. Philadelphia: Davis, 1964.)
■ Indicações A extração a fórceps é a mais comum das operações obstétricas, e suas indicações podem ser classificadas em maternas, fetais, profiláticas e de alívio. ▶ Maternas. As discinesias indicam o fórceps, e a resistência perineal, que a episiotomia não resolve, o reclama. O sofrimento materno também o justifica, além de parturições longas, estafantes, que exaurem as pacientes. Também nos casos de mulheres em desespero, agitadas, sem preparação para o parto; quando inquietas, a analgotocia não é bem-sucedida, desperdiçando as
contrações expulsivas. Seus gritos, que deixam o obstetra impaciente, levam-no a abreviar a expulsão. ▶ Fetais. A causa praticamente única é o sofrimento do concepto ou sua iminência. A procidência irredutível de membros, condição extraordinária, e a do funículo, raríssima (embora possível), quando a cabeça está insinuada, indicam extração imediata. ▶ Profiláticas. Aplica-se o fórceps nas pacientes de doenças gerais quando inconveniente ou perigoso o esforço expulsivo: pneumopatias, cardiopatias etc. ▶ De alívio. Não deve ser confundido o grupo anterior de indicações com o fórceps de alívio, expressão e conduta que revolucionaram os procedimentos obstétricos de atendimento: completada a dilatação do colo, com a cabeça baixa e rodada, no soalho pélvico, começando a apoiar-se aos pilares dos músculos levantadores do ânus (jamais antes disso), pratica-se episiotomia e retira-se o feto com o fórceps. Às vezes, há contrações tão enérgicas que, após a secção do períneo, o fórceps é desnecessário. É fundamental a interferência do obstetra nas seguintes medidas profiláticas: • Redução do estiramento dos músculos e nervos do soalho pélvico, no segundo período • Proteção dessa região e da fáscia adjacente dos inconvenientes da dilatação excessiva • Economia de sangue materno • Preservação do encéfalo fetal, eximindo-o de compressão prolongada. A prática obrigatória do fórceps de alívio (sob anestesia), aliada à episiotomia, humanizou a assistência do parto. Não importa a epígrafe que se lhe imponha (fórceps de desprendimento, eletivo), salienta-se que o emprego do instrumento, em tais circunstâncias, ficará reservado aos profissionais experientes, que dominem a técnica e conheçam as limitações e perigos da intervenção.
■ Técnica Serão apenas mencionados os preceitos basilares comuns, de modo geral, a todos os atos tocúrgicos e com particularidade às operações vaginais. A extração a fórceps é feita sob anestesia, preferencialmente, narcose, peridural, ou locorregional, admitida essa para as aplicações profiláticas e de desprendimento. A paciente deve ficar em postura adequada – posição de litotomia ou de talha (Bonnaire-Bué), eventualmente de Laborie-Duncan. Terá sido convenientemente preparada pela enfermagem (raspagem cuidadosa dos pelos do monte púbico, da vulva e do períneo; enteróclise), e o obstetra, depois de fazer a antissepsia da região, colocará os campos esterilizados e não se descuidará de efetuar o cateterismo vesical. É desejado o diagnóstico exato, morfológico e topográfico, só factível, à exceção das aplicações muito baixas, com o toque manual profundo, geralmente corretor do obtido pelo exame digital, durante as primeiras fases do trabalho de parto. Além da exploração minuciosa do trajeto
mole, é necessário confirmar o diagnóstico da variedade de posição (Figura 52.9).
Figura 52.9 ■ O diagnóstico exato, morfológico e topográfico, precede, impostergavelmente, a prática do fórceps. Pelo toque bidigital, no início, identificam-se os pontos de reparo do polo cefálico, em movimentos ordenados que a seta indica, e os relevos anatômicos sugeridos. (Adaptada de Douglas RG e Stromme WB. Operative obstetrics. 2. ed., New York: Appleton, 1965.)
Não é possível começar a aplicação do fórceps sem a certeza da variedade de posição. O diagnóstico é obrigatório, tanto para a locação correta das colheres quanto para orientar o rumo das trações; ele somente é bem-sucedido, integral e exato, atento aos detalhes, com o toque manual (Figura 52.10). Não menos importante, há o diagnóstico topográfico, que classifica a distância em que se encontra a cabeça, nas relações com a bacia. Pelo seu volume, é comum que bossas serossanguíneas encham a escavação e entreabram a vulva, enquanto a parte óssea da apresentação não se insinua. O exame profundo evita o erro diagnóstico e, principalmente, o da aplicação contraindicada e perigosa.
Figura 52.10 ■ O exame vaginal profundo é o passo seguinte, penetrando a mão suavemente até o sulco retroauricular e, depois, explorando, minuciosamente, toda a apresentação, anotando-lhe deformações, fenômenos plásticos, assinclitismo e grau de flexão. (Adaptada de Douglas e Stromme.)
Nesta obra, somente serão descritas as técnicas de aplicação do fórceps de Simpson e do de Piper, na cabeça derradeira.
■ Tempos operatórios A extração a fórceps compreende quatro fases principais: • Apresentação do instrumento à vulva • Introdução e aplicação • Preensão • Tração. ▶ Apresentação à vulva. Período prévio ou preparatório, apenas antecipado pela episiotomia, obrigatória em todas as primíparas e nas demais pacientes cujo estado perineal o indicar. Toma-se do fórceps, articulado, e sem qualquer tentativa de fazê-lo penetrar no canal do parto, figura-se a posição em que deve ficar após a localização exata dos ramos (Figura 52.11). ▶ Introdução e aplicação. Faz-se separadamente, um ramo de cada vez, precedida a inserção deles pela mão-guia ou sinaleira (antônima do ramo do fórceps), cuja penetração será parcial (dois ou quatro dedos), nas cabeças baixas, ou profunda, se o polo a preender estiver mais distante. A mão-guia protege as partes moles maternas, afastando-as e favorecendo o escorregamento das colheres, de modo a indicar o caminho a ser palmilhado. O primeiro ramo a introduzir, nas posições oblíquas ou transversas da cabeça, é o posterior, de mais segura locação, e fácil de reconhecer, apresentado o instrumento à vulva, por ser o inferiormente colocado (Figuras 52.11 e 52.12). É ainda o ramo preferido, pois é maior o espaço na parte posterior da escavação (concavidade sacrociática), zona que tolera melhor a entrada da mão-guia, sem causar deslocamento à apresentação.
Figura 52.11 ■ Aplicação em OEA. Apresentação do instrumento à vulva, figurando sua locação correta ulterior. O ramo esquerdo é introduzido em primeiro lugar, homônimo da posição cefálica e posterior (em relação à bacia e por corresponder ao parietal posterior do feto).
Completada a aplicação do primeiro ramo, e sua permanência confiada a um auxiliar, procede-se à inserção do segundo, precedido de maneira igual. Mergulhada a colher na vagina, em gradação variável, com a altura da apresentação, imprimese ao cabo do fórceps movimento tríplice, de abaixamento, translação e torção. Trata-se da espiral de Lachapelle (Figura 52.12), que varia de amplitude, em arco de círculo, de 0 a 135°, de acordo com a direitura ou obliquidade da cabeça fetal. Deve-se atentar que esse movimento espiroide “não se desenrola por iniciativa da colher, mas pelo giro largo do cabo, descrevendo círculo tanto mais favorável quanto mais amplo, visto que, sendo grande o movimento do cabo, pequena será a translação da extremidade coclear, evitando assim a possível lesão das partes moles”. ▶ Preensão. A preensão ficará assegurada pela articulação do fórceps, que varia com o modelo utilizado e ocorre por encaixe no Simpson, indicado para a generalidade das extrações baixas e médio-baixas. Nem sempre se obtém articulação fácil e suave, logo interpretada pelo obstetra competente como falha de técnica ou diagnóstico incompleto. ▶ Tração. Antes de encetá-la, deve-se comprovar a exatidão da pega; com o fórceps articulado, é necessário correr polegar e índice de cada mão, alternadamente, em toda a figura da apresentação, afastando a possibilidade de pinçamento dos tecidos maternos ou de pressão do funículo. Com pequena tração, de prova, o obstetra certifica-se de que a cabeça segue o instrumento; executa-se com uma das mãos, enquanto os dedos da outra acompanham a solidariedade que deve existir entre o instrumento e o crânio; aquela não se desfaz e esse migra.
Figura 52.12 ■ Aplicação em OEA. Posicionado o esquerdo, posterior, o segundo ramo, anterior e direito, é levado a fazer a espiral de Lachapelle pela mão-guia, antônima, dentro da qual desliza e penetra.
Sentado diante da paciente, sobrepondo as mãos, nas aplicações baixas, ou as colocando em zonas diferentes do instrumento, nas cabeças médias, e sem dar pontos de apoio aos pés, para assim diminuir o vigor das trações, o obstetra começa a efetuá-las brandamente. Buscando atenuar a redução excessiva do crânio fetal, recomenda-se dispor compressa dobrada entre os cabos do fórceps cruzado (tipo Simpson); afastá-los, sem desarticular o instrumento, após cada série de trações, tem o mesmo objetivo e auxilia nas extrações mais penosas. Pouco a pouco, alternando trações e pausas, completa-se a descida e a rotação da cabeça, ordinariamente para OP, procurando imitar-lhe os movimentos no mecanismo do parto normal (Figura 52.13). O momento oportuno para a deflexão da cabeça (obtida com a elevação dos cabos do instrumento) ocorre quando o tubérculo occipital fica sob a reborda inferior da sínfise púbica. As trações forçam a retropulsão do cóccix, ampliadora da conjugata exitus, e, nessa fase, depois das bossas parietais terem transposto, uma de cada vez, a fenda vulvar, desprende-se lentamente a cabeça. A despeito da episiotomia, é útil, para impedirlhe o prolongamento, não ultimar a liberação total do polo cefálico com o fórceps. A retirada dos ramos do instrumento, em movimento oposto ao de sua inserção, deve ser feita no instante de completar-se a saída das bossas parietais. Um depois do outro, a mão esquerda os exterioriza, enquanto a direita, protegida da contaminação do ânus dilatado por compressa ou campo pequeno, pressiona o períneo posterior, obrigando a cabeça a se deflexionar lentamente. É a manobra de Ritgen (Figura 52.14).
Figura 52.13 ■ Aplicação em OEA. Apreendida a cabeça, a rotação é executada no sentido do púbis (45° ou menos).
É preferível que a retirada dos ramos do fórceps seja feita na ordem inversa à de sua colocação; no entanto, nos casos de desinserção difícil, com as colheres apegadas ao polo cefálico e às partes moles maternas, recolhe-se o ramo que ofereça menor resistência. Com o polegar da mão direita, perineal, evita-se a saída súbita da cabeça, comum nessas tentativas, se for inusitada a solidariedade dela com o instrumento (Figura 52.14). Não raro, a preocupação de retirar o fórceps leva à desinserção prematura dos ramos, e o desprendimento da apresentação terá de rematar-se com a manobra de impulsão abdominal de Kristeller, feita por profissional auxiliar qualificado, quando for insuficiente a de Ritgen.
■ Técnica particularizada do fórceps de Simpson As técnicas são classificadas em: • Aplicações diretas ○ Em OP: é a modalidade de intervenção mais singela do fórceps, geralmente aplicação de alívio ou de desprendimento. Coloca-se o fórceps no diâmetro occipitomentoniano do feto e transversalmente, com relação à bacia. Não há necessidade de fazer a espiral de Lachapelle para a locação do segundo ramo (direito). Ao obter a preensão (Figura 52.15), tracionar, sem vigor, até a libertação do suboccipital; exteriorizadas, por assinclitismo, as bossas parietais, retiram-se os ramos do instrumento e a manobra de Ritgen ultima o desprendimento cefálico. A colher esquerda é a primeira a ser introduzida, para evitar o descruzamento dos cabos ○ Em OS: há sempre deflexão mais ou menos acentuada e a fontanela bregmática é explorada sem dificuldades. Antes da inserção do fórceps, pode-se tentar a rotação manual da cabeça
para uma posição anterior; ao falhar, faz-se a preensão direta em OS. Frequentemente, a pega biparietomalomentoniana é de difícil obtenção, à conta da deflexão; procura-se a biparietal, que poderá bastar até a extração final ou, melhor flexionada a cabeça, favorecer a preensão típica. A extração é penosa e, geralmente, a progressão é lenta, sendo a manobra de Pajot indicada. Quando o occipital encher o períneo – sob a fronte à reborda inferior do púbis –, traciona-se para cima até desprendê-lo, e depois para baixo (movimento retrógrado ou de recuo), até sair a face • Aplicações oblíquas anteriores ○ Em OEA: após apresentado o instrumento à vulva (Figura 52.11), introduz-se o ramo esquerdo, posterior e homônimo da posição. O direito será locado pelo movimento espiroide de Lachapelle (Figura 52.12) e a rotação, de 45° ou menor, ocorre no sentido da sínfise púbica (Figura 52.12) ○ Em ODA: por efeito da inserção, em primeiro lugar, do ramo direito (posterior), a articulação do fórceps não ocorre sem descruzamento dos cabos (Figura 52.16). A rotação, da esquerda para a direita (em relação ao observador), cumpre-se também para o púbis.
Figura 52.14 ■ Desinserção dos ramos do fórceps, em movimento oposto ao de sua locação e na ordem inversa em que foram introduzidos. A mão direita, protegida por compressa da contaminação propiciada pelo ânus dilatado, pressiona o períneo posterior, obrigando a cabeça a se deflexionar lentamente, e impede, com o polegar na sutura sagital, o desprendimento súbito do polo (manobra de Ritgen). (Adaptada de Dennen.)
Figura 52.15 ■ Locação correta das colheres, nas aplicações diretas em OP.
As aplicações transversas e oblíquas posteriores, muito traumáticas para o concepto e para os tecidos maternos, não serão aqui descritas, visto que não devem ser utilizadas pelo prático, reservadas aos especializados.
■ Técnica particularizada do fórceps sobre a cabeça derradeira É a aplicação de emergência, no decurso da extração podal, quando insinuada a cabeça e malsucedidos os procedimentos manuais indicados. Não se deve hesitar no uso do fórceps de Piper se a manobra de Mauriceau parecer exigir força exagerada, ou se a retração das partes moles maternas e o cansaço das mãos do obstetra lhe impedirem a destreza necessária. Trações enérgicas sobre a nuca estiram a medula, o plexo braquial, dilaceram os elementos nobres encefálicos e causam lesões irreversíveis.
Figura 52.16 ■ Aplicação em ODA. Posicionado em primeiro lugar o ramo direito, o segundo, esquerdo, não se articula ao congênere sem a manobra de descruzamento que aqui se esboça.
O fórceps é introduzido sem dificuldades, com pega direta (por debaixo do tronco do feto nas occipitoanteriores, por cima nas posteriores), sempre seguindo o plano ventral, enquanto o auxiliar suspende o concepto pelos membros, elevando-lhe o corpo (Figura 52.17). As trações serão feitas para baixo, depois de consumado, se necessário, o giro para OP, e a ascensão lenta dos cabos do instrumento desprende a cabeça em flexão.
Figura 52.17 ■ Fórceps de Piper aplicado em cabeça derradeira, OP.
Em seguida à preensão, traciona-se para baixo até submeter o mento ao púbis, passando-se ao desprendimento do occipital e da face, ordenada e lentamente. O fórceps de Piper é o modelo indicado para as aplicações sobre a cabeça derradeira. Os ramos são longos, a curvatura perineal é bem marcada e as colheres são relativamente pequenas, com a figura intercoclear e os jumélios quase retos (Figura 52.1 E). A sinuosidade dos ramos dá ensejo à preensão direta do polo cefálico, sem elevação do corpo do feto acima da horizontal, causa de lesões medulares cervicais, e não se opõe ao sentido axial das trações. A colher esquerda é a primeira a ser introduzida, para evitar o descruzamento dos cabos.
■ Prognóstico ▶ Não há fórceps inócuo. O instrumento não se liberta da condição de pinça “que magoa o que pega e contunde por onde passa”. No entanto, obedecidas as suas condições de praticabilidade, se indicada e executada com habilidade, trata-se de intervenção que comporta mínimo de riscos, não pode falhar e, caso haja eventuais danos aos tecidos maternos e ao concepto, serão inexpressivos.
■ Pontos-chave Fórceps é o instrumento destinado a apreender a cabeça do feto e extraí-la através do canal pelvigenital. Embora sejam inúmeros os modelos de fórceps, o obstetra moderno utiliza poucos: Simpson, Kielland e Piper. O fórceps compõe-se de dois ramos, que se dividem em colher, articulação e cabo. É direito ou esquerdo o ramo que se vai colocar na metade homônima da mãe. Nos tipos cruzados, são empunhados, correspondentemente, pela mão direita ou esquerda do parteiro. As ações do fórceps podem ser divididas em preensão, tração e, ocasionalmente, rotação. A pega ideal e a única utilizada é a biparietomalomentoniana. A tração será orientada no sentido da linha de direção de Sellheim: verticalmente, até completar a descida do polo, e depois para cima, em movimento circular de elevação, no desprendimento. O fórceps de Simpson não é bom agente de rotação. Com exceção da rotação de 45° nas posições anteriores, não se aconselham outros procedimentos de rotação (135° nas posteriores e 90° nas transversas). As condições de praticabilidade para o fórceps são: colo totalmente dilatado, sem impedimentos no canal do parto, bacia proporcional ao feto, concepto vivo, cabeça profundamente insinuada no estreito inferior (fórceps baixo). A maior indicação atual do fórceps é o de alívio: dilatação total, cabeça baixa e rodada para OP, no assoalho pélvico, começando a apoiar-se nos pilares dos músculos levantadores. O fórceps de Piper é o instrumento escolhido na cabeça derradeira, sendo, para muitos, melhor que a manobra de Mauriceau.
■ Versão Podal ■ Extração podal
Versão é a mudança, por manobra externa, de apresentação fundamental em outra, com circundução da coluna vertebral. Este é o conceito vigente na maioria das escolas, não sendo consideradas versões as simples manobras corretoras executadas sobre a cabeça apresentada, visando a modificarlhe a flexão ou a acentuá-la (transformação manual das apresentações bregmáticas, de fronte e de face, em cefálicas fletidas). A essas intervenções do tocólogo melhor se aplica o termo conversão. Os tipos de versão utilizados atualmente são: • Versão externa: obtida exclusivamente por manipulação através da parede do útero materno (Capítulo 45, Seção B) • Versão interna ou podal: praticada com dilatação cervical completa e seguida de extração do feto. Neste capítulo, será analisada apenas a versão podal seguida de extração.
■ Versão podal A versão podal é sempre seguida da extração do feto. Com os progressos da obstetrícia, esta técnica tem se tornado cada vez mais rara; contudo, quando indicada, é ato tocúrgico genuíno, elegante e completo, demandando destreza, precisão de movimentos e conhecimento exato deste complexo procedimento. A desobediência a seus postulados fundamentais pode criar sérios problemas e culminar na morte do concepto e até da mãe.
■ Condições de praticabilidade Como para todos os atos tocúrgicos por via vaginal, exige-se que haja condições de praticabilidade, às quais ficam sujeitas as indicações. Por motivo de seguir-se a extração podal ao volteio do concepto, não se pensa somente na possibilidade da circundução; deve-se averiguar a existência de fatores que tornem possíveis os tempos complementares. Em geral, deve haver permeabilidade conceituada, dura e mole, em lanço anterior e feto vivo. Em minúcias, as condições maternas devem ser: • Colo completamente dilatado • Inexistência de obstáculos no canal mole do parto (tumores prévios, atresias vaginais, septos) • Pelve proporcionada ao concepto • Tolerância cavitária, talvez a circunstância que mais importa na prática da versão propriamente dita.
O volteio é impraticável em útero hipertônico sobre o feto retraído. A víscera o enluva e a ele adere tão intimamente, que a insistência em fazer a mutuação artificial culminará em ruptura da matriz, irradiada a estruturas e órgãos adjacentes ou neles originada (vagina, bexiga, reto, paramétrios etc.). Em geral, a retração é companheira do chamado outrora útero enxuto, por se ter evadido a maior parte do líquido amniótico. Atribuiu-se, depois, o grau da contratura às horas decorridas da amniotomia, o que é verdadeiro em alguns casos. A questão do tempo, entretanto, não é tudo. Há úteros moles, complacentes, muito depois da abertura das membranas, enquanto outros já estão retraídos no instante do deflúvio das águas. Qualquer retração que limite a mobilidade do feto contraindica a versão. A tolerância cavitária deve combinar-se à qualidade da parede uterina. Não aceitar, senão com muita prudência e reserva, versão em útero de grande multípara, sempre frágil, e recusá-la nas que têm cicatrizes de cesárea ou de miomectomias anteriores. As condições ovulares devem ser: • A apresentação não deve estar insinuada • A bolsa das águas deve estar íntegra ou recémrompida • Não deve haver macrossomia, malformações do concepto, hidrocefalia e tumores.
■ Indicações A versão podal é indicada praticamente apenas no parto do segundo gemelar que não nasce espontaneamente.
■ Técnica Exigem-se cuidados preliminares comuns aos atos tocúrgicos vaginais: • Preparo da paciente (enteróclise e cateterismo vesical; tricoxisma do monte púbico e dos genitais; antissepsia dessa região; campos esterilizados etc.) e do tocólogo (vestuário próprio; luvas; tudo asséptico) • Anestesia geral, profunda, em plano cirúrgico • Posição adequada. No geral, a de talha ou de litotomia (Bonnaire-Bué) • Diagnóstico correto, minucioso, de situação e posição do feto. A dilatação pré-fetal é sempre recomendável, executada por movimentos de rotação, em diversos sentidos, ao começo com os dedos unidos e logo com a mão inteira • A episiotomia é obrigatória nas primiparturientes e na maioria das multíparas • A extração da cabeça fetal requer, amiúde, o emprego do fórceps de Piper. Ele deve fazer parte do instrumental, além dos apropriados à diérese e à síntese do colo, da vagina, do períneo (bisturi, tesouras, pinças hemostáticas, agulhas, valvas etc.).
■ Versão nas apresentações cefálicas Comporta três fases principais, descritas a seguir. ▶ Introdução de uma das mãos e preensão do pé. Conhecida a disposição do concepto e diagnosticada sua posição, deve escolher-se a mão ventral, isto é, a que, mantida entre a supinação e a pronação, por sua palma corresponda ao ventre do feto. Em todos os casos é homônima da locação do dorso. Nas posições esquerdas (anteriores, transversas e posteriores) é ventral a mão esquerda, e nas direitas, a mão direita (Figura 53.1 A).* Convenientemente lubrificada (vaselina ou sabão líquido, esterilizados), dedos reunidos em cone (mão de parteiro) a mão desliza pela vagina, dilata-a, ultrapassa o colo e vai em busca do bom pé, o anterior, assim nomeado porque está em relação com a face anterior do útero (plano ventral da paciente); são axiais as trações nele exercidas, obrigam o giro do dorso para frente, e coíbem o cavalgamento da nádega fetal sobre o púbis materno. O pé não será apreendido diretamente. Com frequência, os membros inferiores estão entrecruzados e o mau pé, posterior, fica para a frente. Toma-se, prevalentemente, a perna anterior, entre o dedo indicador e o médio, com o que se terá pega mais sólida, menos traumática. Estando intactas as membranas, ao chegar à cérvice presta-se a mão de guia ao instrumento destinado à amniotomia (amniótomo ou ramo de pinça de Pozzi). Punçado o saco ovular, penetra-se nele (ao fazêlo, obture a zona de abertura, impedindo a saída, em alude, do líquido amniótico), e, sem demora, procure os membros inferiores do feto. Demorar a preensão do pé, tateando indecisamente, excita o útero, reforça contrações e provoca mesmo a retração do órgão, óbice temível. A mão externa, abdominal, a essa altura no fundo do útero, deprime-o, facilitando a tomada de um ou dos dois pés. É a pega monópoda preferível à dípoda. Descido um só membro, o polo pélvico passa a ser constituído da nádega e do outro membro levantado; torna-se, desse modo, mais volumoso, dilata melhor as vias do parto e prepara o caminho à passagem da cabeça derradeira no curso da extração. A preensão do mau pé não acarreta, habitualmente, grandes problemas. Se a tendência, nesses casos, é vir a nádega anterior montar-se sobre a sínfise, estorvando os tempos ulteriores da intervenção, forçar as trações para baixo obtém, geralmente, o escorregamento e a acomodação da pelve e da coxa por detrás da arcada púbica. Ir à busca do outro membro ou imprimir movimento de torção em torno do eixo fetal (giro de 180°), transformando o mau em bom pé, são alternativas que o tocólogo utilizará segundo as circunstâncias. ▶ Evolução do feto. É obtida com trações sobre o membro inferior abaixado e movimentos combinados de ascensão da cabeça, que o manuseio abdominal faculta (Figura 53.1 B). A mão externa deixa de pressionar o fundo do útero e age sobre o polo cefálico, ajudando o volteio do feto. Se realizada a presa dípoda puxa-se, simultaneamente, pelos dois pés.
Figura 53.1 ■ Versão nas apresentações de vértice. A. Figurada uma occipito-direita-transversa (ODT), a mão ventral, sempre homônima da locação do dorso do feto (no caso a direita), vai diretamente à busca dos pés, para a preensão (monópoda ou dípoda). Bom pé é o anterior, por estar em relação com a face anterior do útero (plano ventral da paciente). B. Os movimentos conjugados da mão interna, que traciona o membro anterior, e os da externa, auxiliando a subida do polo cefálico (no sentido das setas), logram o volteio do feto.
A circundução da coluna vertebral consuma a versão, que assim transformou a apresentação primitiva de vértice em pelvipodálica. ▶ Extração. É o tempo seguinte obrigatório na versão podal tempestiva e adiante descrito.
■ Versão nas apresentações córmicas Semelhante, nos propósitos, à versão interna em vértice, aqui se intenta, com o volteio intracavitário do feto, obter apresentação pelvipodálica e subsecutiva extração. Está limitada ao parto do segundo gemelar em transversa.
■ Prognóstico A minuciosa observação dos preceitos técnicos e das condições de praticabilidade reduziu a incidência das versões, substituídas pela cesárea, e tornou assim mais raros os acidentes a ela diretamente imputáveis. A ruptura do útero é a complicação mais perigosa, e seus riscos jamais suficientemente sublinhados. São suspeitas as versões muito fáceis e, por igual, as muito difíceis. A mortalidade fetal é elevada, e em algumas estatísticas por motivo das más condições do concepto, ao momento da intervenção. A anoxia é fator tanásimo relevante.
■ Extração podal Extração podal, grande extração ou extração pélvica é o nome conferido ao conjunto de manobras que têm por objetivo a extração do concepto apresentado pela nádega, primitivamente, ou trazido a essa postura por versão.
■ Condições de praticabilidade Não será demais insistir na primazia da praticabilidade sobre as indicações, que somente subsistirão se ela existir. Não se prescinde, pois, da existência de permeabilidade, dura e mole, e de estar o concepto vivo. Como o tema já foi tratado no início do capítulo, quando estudada a versão interna, dispensamonos de voltar a ele.
■ Indicações A indicação é quase única. É tempo obrigatório, complementar à versão podal, tendo, nesse caso, as indicações a ela comuns. Aguardar o parto pélvico espontâneo, após manuseio intracavitário, condenaria o concepto à morte. Na apresentação pélvica primitiva tem ainda guarida a operação; no parto do segundo gemelar, na procidência e no prolapso funiculares.
■ Técnica Repetem-se as exigências de observância dos cuidados preliminares, também já expostos (preparo da paciente para a intervenção, anestesia geral, postura adequada, diagnóstico correto da posição do feto, pelo toque manual profundo, dilatação préfetal, episiotomia, instrumentos apropriados). Há princípios gerais que todos os textos preconizam: respeitar, durante a extração artificial, os tempos do mecanismo fisiológico do parto pélvico, e, tateando as tendências da evolução espontânea, favorecê-la; não precipitar, por movimentos súbitos ou intempestivos, as fases
operatórias; a expressão abdominal é imprescindível e se fará por assistente capacitado, intermitentemente, a imitar as contrações uterinas, as duas mãos apostas, pela face palmar, no fundo do órgão, vedada a manobra com os punhos cerrados, e, como sempre, proibidos a impulsão vigorosa e o rude manuseio. Desenvolve-se a operação, propriamente dita, em três estágios principais: • Extração das nádegas, dos membros inferiores e do segmento córmico • Extração dos ombros e dos membros superiores • Extração da cabeça derradeira.
■ Extração das nádegas, dos membros inferiores e do segmento córmico Essas extrações serão estudadas em suas diferentes modalidades, conforme descrito a seguir. ▶ Após a versão interna. Faz-se tração no membro abaixado, ou anterior, envolto em compressa, para evitar escorregamento, ou de forma direta sobre o tornozelo, fixado o pé entre o indicador e o médio, com o polegar apoiado em sua planta (Figura 53.2).
Figura 53.2 ■ Extração podal. Pega monópoda. Preendido o bom pé, anterior, as trações para baixo procuram a descida e insinuação do quadril anterior. (Adaptada de Farabeuf LH, Varnier H. Introduction à líétude clinique et à la pratique des accouchements. Paris: Masson, 1923.)
É aconselhável que a tração se faça no sentido do grande artelho, sempre para dentro e à custa do recuo do quadril anterior. Ressaltamos que a experiência mostra que não é indispensável agir dessa maneira, bastando, para obter o encaixamento do quadril anterior por trás do púbis, puxar para baixo, exageradamente, o mau pé, e quando não for factível, a busca imediata do bom. O rumo das trações será, no começo, para baixo (Figura 53.2), procurando-se a insinuação e a descida do quadril dianteiro, depois na horizontal e, chegada a nádega às adjacências da vulva, para cima (Figura 53.3), levantando acentuadamente o pé, até a liberação do quadril posterior, que se acompanha quase sempre da saída espontânea do membro correspondente. Desvencilhadas as nádegas, é o momento de envolvê-las em campo pequeno, aquecido, à feição de saiote, e de cingi-las à altura da raiz das coxas, ou mais acima, aplicando os polegares sobre as fossetas correspondentes às espinhas ilíacas posterossuperiores (Figura 53.4). A pressão das mãos sobre o abdome do feto é condenável, sob risco de causar traumatismos viscerais.
Deve-se rodar o concepto no sentido de seu eixo, orientando o biacromial em um dos diâmetros oblíquos do estreito superior. Novas trações para baixo, repetidas vezes, farão as espáduas ultrapassá-lo, e surgirá à vulva o funículo. É preciso puxá-lo, pela extremidade placentária, deixando a alça do cordão frouxa e longa, o que evitará seu estiramento ou compressão (Figura 53.5). No caso de brevidade da haste funicular impedindo desentesá-la, com risco entrevisto de ruptura na inserção cutânea, será feita, excepcionalmente, sua laqueadura e secção, pelo menos a certa distância do ventre, expediente que impõe a ultimação urgente dos demais lanços da extração.
Figura 53.3 ■ Trações para cima, levantando-se o pé lentamente e acentuando-se o rumo superior até a liberação do quadril posterior. (id., ibid.)
▶ Na apresentação pélvica completa (pelvipodálica), não insinuada ou no limiar do encaixamento. Procura-se obter o abaixamento do pé anterior, por corresponder à nádega mais próxima do arco anterior da bacia, para isso introduzindo-se na genitália a mão ventral, homônima da posição do feto (nas sacroesquerdas, a esquerda; nas sacro-direitas, a direita). Em geral, a captura e descida do bom pé é manobra simples, nas apresentações pelvipodálicas; convém, no entanto, reconhecê-lo corretamente, pela situação do grande artelho, e segurá-lo a partir da coxa ou da nádega, uma vez que os membros inferiores estão frequentemente entrecruzados, podendo-se também agir sobre a parte inferior da perna, pega mais sólida. Trazido o pé à vulva, cuidadosamente, procede-se, daí por diante, como foi antes indicado. ▶ Na apresentação pélvica incompleta, modo de nádegas (pélvicas simples), não insinuada ou no limiar do encaixamento. A aposição dos membros pélvicos, sobredistendidos, ao segmento córmico do feto, joga os pés no fundo do útero, ficando, por vezes, muito difícil alcançá-los. Há diferentes maneiras de fazê-lo, dentre as quais a manobra de Pinard. Inserida a mão ventral na genitália, vai-se em busca do côncavo poplíteo correspondente ao membro anterior. Os dedos, indicador e médio, aí se aplicam, enquanto a flexão e abdução forçadas da coxa trazem a perna à preensão dos dedos do tocólogo, que pode então abaixála (Figura 53.6).
Figura 53.4 ■ Rotação do concepto no sentido de seu eixo, orientando o biacromial em um dos diâmetros oblíquos da bacia. (Adaptada de Brindeau A, Lantuéjoul P. La pratique de líart des accouchements. Les opérations. Paris: Vigot Frères, 1937; v.4.)
Figura 53.5 ■ Alça do cordão, frouxa e longa, é obtida puxando-se o funículo, o que evitará seu estiramento ou compressão no curso dos tempos ulteriores. (id., ibid.)
Figura 53.6 ■ Manobra de Pinard, para o abaixamento do pé anterior, na apresentação pélvica incompleta, modo de nádegas.
▶ Na apresentação pélvica incompleta, modo de nádegas, profundamente insinuada. O procedimento mais empregado prescinde do abaixamento do pé, substituído por trações na prega inguinal, onde vão se apoiar os dois indicadores do obstetra, curvados em gancho. A aplicação da força será sobre a bacia do feto, fugindo-se de exercêla nos fêmures, que se fraturam com frequência (Figura 53.7). Puxa-se para baixo, até desvencilhar-se o quadril anterior, e depois para cima, com o que se desprende o posterior.
■ Extração dos ombros e dos membros superiores Feita a alça funicular, é necessário, então, puxar o feto para baixo, bem para baixo, até locarse a espádua anterior sob a reborda inferior do púbis (Figura 53.8). Em geral, essa rotação se procede espontaneamente ou com a ajuda exclusiva da impulsão abdominal, da qual não se pode privar a extração pélvica. Quanto menor a intervenção do tocólogo, mais normal a sucessão da cirurgia. Rápido movimento de recuo deve ser imprimido ao feto apenas surgido, debaixo da sínfise, o coto escapular, o que geralmente basta ao desprendimento do ombro anterior. Só então e nunca antes disso, deve-se procurar desvencilhar o braço correspondente, com a aplicação do polegar na axila, apoiados, o dedo indicador ao longo do úmero e o médio na prega do cotovelo, onde a pressão é exercida. É a manobra de Pajot (Figura 53.9). Traz-se, dessa maneira, o membro a deslizar sobre a face do feto e seu plano ventral. O roçar desse membro no nariz é
semelhante ao assoar e reproduz o jogo natural da articulação.
Figura 53.7 ■ Extração na apresentação pélvica incompleta, modo de nádegas, polo insinuado. Trações bidigitais na prega inguinal, para baixo, até a liberação do quadril anterior. (Adaptada de Brindeau A, Lantuéjoul P., op. cit.)
Com sua saída passa-se a sustentar o concepto pelos pés, com uma das mãos, que o eleva, enquanto a outra, por procedimento semelhante ao executado com o braço anterior, desliga o posterior (Figura 53.10). Segundo as tendências manifestadas pelo concepto, no curso da extração, e acentuadas por efeito da expressão abdominal, pode-se inverter a ordem de liberação dos braços e começar pelo posterior. As dificuldades no desprendimento dos membros torácicos demandam o emprego de manobras intempestivas, como as representadas nas Figuras 53.11 e 53.12, a fim de se evitarem fratura do úmero.
■ Extração da cabeça derradeira Durante a passagem das espáduas pela escavação, a cabeça costuma encaixar-se através de um dos diâmetros oblíquos ou transversos do estreito superior. Deve intervir o obstetra para ajudarlhe a descida e liberação final, utilizando a manobra de Mauriceau (chamada de Veit-Smellie pelos germânicos). Tendo como objetivo flexionar o polo cefálico, acomodá-lo ao estreito inferior, no sentido anteroposterior, e desprendê-lo, apresentam-se cinco fases:
Figura 53.8 ■ As trações para baixo tentam desprender a espádua sotoposta ao púbis e colocam o plano lateral do feto no sentido anteroposterior. (id., ibid.)
Figura 53.9 ■ Manobra de Pajot. Aplicado o polegar na axila e apoiados o dedo indicador ao longo do úmero e o médio na prega do cotovelo onde é a tração exercida, desliza o membro sobre a face do feto e seu plano ventral.
Figura 53.10 ■ Desprendimento do braço posterior. Elevado o concepto com a mão que pela face palmar lhe corresponde ao dorso, a oposta desvencilha, com a manobra de Pajot, o braço posterior. O pormenor expõe o tempo imediato, quando o membro acaba de deslizar pela face anterior do segmento córmico. (id., ibid.)
Figura 53.11 ■ Maneira incorreta de desapegar o braço, pressionando o úmero, e seguida de frequente fratura do osso. (id., ibid.)
• É o corpo do feto posto a cavalgar o antebraço da mão ventral do obstetra, inserida entre os membros pélvicos e os torácicos • Dois dedos (indicador e médio), introduzidos profundamente na boca do feto, irão pressionar a base da língua (ou toda a borda alveolar inferior) e flexionar a cabeça (Figura 53.13) • Dedos indicador e médio da mão oposta (a dorsal), estendidos, apreendem, em forquilha, o
pescoço do concepto, e colocados de cada lado dele, se apoiarão nas fossas superespinhosas (a pressão nas subclaviculares lesa o plexo braquial) (Figura 53.14)
Figura 53.12 ■ Outra maneira que se deve evitar de desvencilhar o braço, abaixado ao contrário, no sentido do occipital. É comum o traumatismo articular. (id., ibid.)
Figura 53.13 ■ Manobra de Mauriceau. A. Boa posição dos dedos na boca do feto; profundamente introduzidos é possível apoiá-los na base da língua. B. A inserção insuficiente possibilita pressionar unicamente a ponta da mandíbula, o que é perigoso, e não basta à flexão do polo cefálico. (id., ibid.)
• A ação conjugada dos dedos introduzidos na boca, aos da mão externa, procurará a flexão, trazendo o mento ao contato do manúbrio e, do mesmo passo que roda occipital e dorso para a frente, traciona para baixo, sobre as espáduas • O surgimento da região suboccipital sob a arcada púbica marca o levantamento do corpo do feto, impulsionado pelo antebraço que o sustentava (Figuras 53.15 e 53.16). A liberação da cabeça se fará suavemente, sendo aconselhável amenizar trações, substituídas por expressão transabdominal, a cargo de auxiliar. É idêntico o objetivo quando se procura forçar a flexão da cabeça com o dedo médio da mão que enlaça o pescoço, arrimado ao occipital.
Figura 53.14 ■ Manobra de Mauriceau. A maneira boa (A) e a má (B) de enforquilhar os dedos ao redor do pescoço. (id., ibid.)
Figura 53.15 ■ Manobra de Mauriceau (1o tempo).
Figura 53.16 ■ Manobra de Mauriceau (2o tempo).
■ Dificuldades da extração podal ■ Dificuldades na extração dos ombros e dos membros superiores ▶ Manobra de Deventer-Müller. Objetiva desvencilhar as espáduas, sem abaixamento dos braços, por insinuação em assinclitismo e movimentos pendulares de elevação e de descida do tronco (da maneira representada na Figura 53.8). Traciona-se o tronco fortemente para baixo,
enquanto um auxiliar faz pressão transabdominal. Essas trações são precedidas de rotação do biacromial para o diâmetro anteroposterior da bacia e se farão sempre para baixo, quase vertical, até que o ombro anterior e o braço se desprendam espontaneamente ou com pequena ajuda manual. A seguir, a oscilação do feto para cima liberará a espádua posterior (Figura 53.10).
■ Dificuldades na extração da cabeça derradeira O fórceps de Piper tem hoje preferência, inclusive sobre a manobra de Mauriceau (Capítulo 52).
■ Prognóstico A extração podal está associada à mortalidade e à morbidade perinatais expressivas. As lesões dos conceptos são frequentes e graves. Muitos bebês falecem por estiramento do bulbo (Figura 53.17), comuns as hemorragias encefálicas, não sendo raridade fraturas de diversos ossos (úmero, clavícula, tíbia), traumatismos viscerais e de importantes plexos nervosos, a condicionarem danos permanentes, causa de invalidez futura. Não tem relevância a mortalidade materna. A morbidade, representada principalmente pelas lacerações do períneo, da vagina e do colo que se podem estender aos órgãos circunfluentes, ultrapassar a abóbada vaginal e chegar ao ligamento largo, é importante. As rupturas do útero são excepcionais.
Figura 53.17 ■ Não tracionar jamais a cabeça derradeira desse modo. Perigo de estiramento bulbar e de hemorragia meníngea. (Adaptada de Lacomme, M, 1960.)
■ Pontos-chave Versão é a mudança, por manobra externa, da apresentação fundamental em outra, com circundução da coluna vertebral. Os tipos de versões são: versão externa e versão interna seguida de extração podal (a única a ser abordada).
As condições de praticabilidade para a versão podal são o colo completamente dilatado, ausentes obstáculos no trajeto mole, apresentação não insinuada, bolsa das águas íntegra ou recentemente rompida, tolerância cavitária, ausência de macrossomia, malformações, hidrocefalia e tumores do concepto. As indicações atuais da versão interna são limitadíssimas: parto do segundo gemelar em situação transversa. A versão nas apresentações cefálicas comporta três tempos principais: introdução de uma das mãos e procura do bom pé, evolução do feto e extração podal. A mão a ser introduzida é a mão ventral, aquela que mantida entre supinação e pronação por sua palma corresponde ao ventre do feto. O pé a ser apreendido será o bom pé, o anterior, assim nomeado porque está em relação à face anterior do útero. A evolução do feto é obtida com trações sobre o membro inferior e movimentos combinados de ascensão da cabeça exercidos pela mão externa, abdominal. A circundação da coluna vertebral consuma a versão, que assim transforma a apresentação cefálica em pelvipodálica. Extração podal ou grande extração é o nome conferido ao conjunto de manobras que têm por objetivo a extração do concepto apresentado pela nádega, primitivamente, ou trazido a essa postura por versão. A grande extração é tempo obrigatório complementar à versão interna. É excessiva a morbimortalidade perinatal. Na extração da cabeça derradeira, malograda a manobra da Mauriceau, está indicado o fórceps de Piper.
_________ *A inadequada escolha da mão (mão falsa) encontraria, ao inserir-se no útero, o entrave certo da nuca e do dorso do feto.
■ Técnica
Como não se pode realizar a craniotomia para reduzir a cabeça dos hidrocéfalos, quando vivos, o procedimento indicado é a punção. O uso das agulhas de calibre fino não ameaça a vida do feto, obtém drenagem, que favorece o colapso craniano, e torna possível a insinuação da cabeça e seu desprendimento. A cirurgia fetal da hidrocefalia não trouxe bons resultados e está praticamente abandonada. Na maioria das vezes, o tratamento da hidrocefalia faz-se durante o parto, com a punção craniana. Se o diagnóstico não foi estabelecido antes do trabalho, o tamanho do polo, o afastamento das suturas e a tensão das fontanelas são suficientes para confirmá-lo nas apresentações cefálicas. Não raro o concepto está em postura invertida, de nádegas, e faz-se necessário o exame pela ultrassonografia.
■ Técnica ■ Na apresentação cefálica Deve ser realizada com a bexiga e o reto protegidos, a paciente anestesiada em posição de litomia e observados os costumeiros cuidados de antissepsia e assepsia. As condições de praticabilidade exigidas não impõem a dilatação completa do colo nem o encaixamento profundo da cabeça. A bacia precisa estar proporcionada ao segmento córmico do concepto e as membranas devem estar rompidas. Colocam-se 2 valvas vaginais, mantidas por ajudante, para exporem amplamente a zona operatória (Figura 54.1). Apreende-se o couro cabeludo na região mais proeminente, com pinça de Willett ou similar. Seringa, provida de agulha, como as usadas para punção lombar (no 16 ou 18), facilita a penetração ventricular, ou, simplesmente, a da dura-máter. O caminho preferencial é por uma das suturas ou fontanelas. Retira-se o êmbolo ou toda a seringa, deixando fluir o líquido cerebroespinal. A cabeça murcha progressivamente e desce na escavação, auxiliada por tração ligeira sobre a pinça preensora (pormenor na 54.1). Terminada a cervicodilatação, a extração a fórceps pode ser indicada. Os fetos nascem vivos, e embora o decesso ocorra comumente nas horas imediatas, há casos de sobrevivência demorada, passíveis, alguns, da derivação ventriculoperitoneal.
■ Na apresentação pélvica O procedimento é semelhante. Desvencilhadas as espáduas e tracionando-se fortemente o concepto, expõe-se a base do crânio. A valva anterior protege a parede vaginal, a uretra e a bexiga. A via de acesso será o occipital ou o forame magno, penetrando a agulha na cavidade ventricular.
Colabados os ossos da abóbada, liberta-se a cabeça com a ajuda das manobras obstétricas indicadas ou com o fórceps de Piper.
Figura 54.1 ■ Punção craniana na hidrocefalia.
■ Pontos-chave A punção craniana na hidrocefalia não ameaça a vida do feto. O tratamento intrauterino da hidrocefalia não trouxe os resultados esperados e o problema que se apresenta é durante o parto. As condições de praticabilidade exigidas não impõem a dilatação completa do colo nem o encaixamento profundo da cabeça. As membranas devem estar rompidas. Utiliza-se agulha fina na punção craniana e alguma fontanela para a via de acesso; o parto pode ser complementado a fórceps. Na cabeça derradeira o procedimento é semelhante, mas com outra via de acesso; o fórceps de Piper pode ser utilizado.
■ Abortamento de 1o trimestre ■ Abortamento de 2o trimestre ■ Complicações do abortamento de 2o trimestre ■ Tratamento da hemorragia
Os procedimentos para a interrupção da gravidez podem ser cirúrgicos ou clínicos e variam com o trimestre da gravidez: 1o trimestre (até 12 semanas) e 2o trimestre (13 a 26 semanas).
■ Abortamento de 1o trimestre ■ Abortamento médico de 1o trimestre A grande descoberta que impulsionou o abortamento clínico foi o da mifepristona em 1980, fármaco de ação antiprogesterônica. A evidência de que a mifepristona aumenta a sensibilidade do miométrio gravídico às prostaglandinas torna possível o esquema combinado altamente eficaz para a indução do abortamento com poucos efeitos colaterais. O acesso limitado à mifepristona resultou em protocolos que utilizam apenas a prostaglandina (misoprostol), e isso é verdadeiro em nossa realidade. ▶ Misoprostol. É um análogo da PGE1 utilizado para induzir o abortamento. A ação do misoprostol ocorre particularmente no amadurecimento do colo, além de ter forte efeito uterotônico. O uso isolado do misoprostol é alternativa válida ao abortamento cirúrgico, embora a taxa de interrupção seja menor e a de efeitos colaterais, mais elevada. Utilizamos habitualmente o misoprostol em comprimidos vaginais. Até 12 semanas da gravidez o misoprostol é administrado na dose única de 800 μg, 400 μg de 12/12 h ou 200 μg de 6/6 h. Esse esquema pode ser mantido por 2 dias. Se ao final desses 2 dias não tiver ocorrido o abortamento, devem-se aguardar 72 h. Se ainda assim a gravidez não tiver sido interrompida, pode-se repetir o misoprostol no mesmo esquema por mais 2 dias. Os efeitos colaterais do misoprostol são vários: dor abdominal, náusea, cansaço, dor mamária e sangramento vaginal excessivo. Entre as complicações estão incluídas: continuação da gravidez, retenção de restos ovulares, hemorragia e infecção. A imunoglobulina Rh deve ser administrada para mulheres Rh-negativas. A ultrassonografia transvaginal é habitual na 1a visita de seguimento para confirmar a expulsão completa do ovo. É comum endométrio espesso e heterogêneo em mulheres com expulsão completa; por isso, os achados ultrassonográficos devem ser analisados em conjunto com os sintomas da paciente – sangramento intenso, dor pélvica persistente, febre – antes de se considerar ser necessário o esvaziamento cirúrgico. Se o quadro clínico for bom, nem o sangramento prolongado ou os achados sonográficos suspeitos de retenção de restos ovulares indicam a necessidade de intervenção cirúrgica. As mulheres podem ovular dentro de 2 semanas do abortamento de 1o trimestre e até 80% o fazem antes da 1a menstruação pós-procedimento. O início da anticoncepção hormonal deve ocorrer logo após o término da gravidez.
■ Abortamento cirúrgico de 1o trimestre Há duas opções para o abortamento cirúrgico de 1o trimestre (até 12 semanas): dilatação e aspiração-curetagem (D & C) e aspiração a vácuo mecânica, conhecida como aspiração manual intrauterina (AMIU). A curetagem clássica pode ser utilizada em substituição à aspiração para aqueles que não dispõem desse procedimento. ▶ Dilatação e aspiração-curetagem. O abortamento cirúrgico de 1o trimestre é procedimento muito eficaz (99%) e seguro. A aspiração-curetagem pode ser elétrica ou manual (AMIU), e inclui a dilatação mecânica prévia do colo (dilatadores de Hegar) e o esvaziamento uterino (Figuras 55.1 a 55.5). Mulheres nulíparas com gestação > 9 semanas, adolescentes (< 18 anos) ou todas com > 12 semanas (OMS, 2012) podem necessitar de preparação do colo com 400 μg de misoprostol vaginal 3 h antes da D & C. A ultrassonografia precedente ao esvaziamento é indispensável para confirmar a idade gestacional, atestar a localização intrauterina do ovo, diagnosticar possível mioma ou anomalia uterina que possa impossibilitar a cirurgia. À semelhança do recomendado para o abortamento clínico, mulheres Rh-negativas devem receber a imunoglobulina até 72 h após o procedimento. O abortamento provocado cirúrgico é seguro, com taxa de complicação de 0,5% para o procedimento de 1o trimestre e de 1% para a interrupção no 2o trimestre. As complicações incluem: continuação da gravidez, abortamento incompleto, hemorragia, hematometra, laceração cervical, perfuração uterina e infecção (Figura 55.6). A perfuração uterina é mais comum durante a dilatação ou a histerometria, esta última hoje dispensável, e após o acidente a aspiração há de ser monitorada com a ultrassonografia. Para pacientes assintomáticas, sem sangramento intrabdominal ou lesão visceral, a observação é medida apropriada. Para as sintomáticas, a laparotomia se impõe com o possível reparo dos intestinos ou de qualquer outra lesão intraperitoneal. Está indicada a antibioticoterapia profilática universal com a doxiciclina (ver a seção Abortamento de 2o trimestre).
Figura 55.1 ■ Diferentes tempos da aspiração a vácuo.
Figura 55.2 ■ Pormenor da curetagem.
Figura 55.3 ■ Exemplar de vela tipo Hegar, para a dilatação instrumental do canal do colo; cureta romba e cortante, com e sem fenestração; pinça de ovo tipo Kelly ou Munde.
Figura 55.4 ■ Principais procedimentos para o esvaziamento da cavidade uterina. A. Pinça de ovo. B. Curagem. C. Curetagem.
Figura 55.5 ■ Aparelho de aspiração a vácuo manual.
Figura 55.6 ■ Alguns acidentes da dilatação cervical e da curetagem. A. Útero em exagerada retroflexão. O instrumento (cureta, vela, histerômetro) perfura o útero em sua parede ventral. O acidente será evitado cuidando-se de avaliar corretamente a direção do canal da cérvice e da cavidade uterina; a tração exercida sobre o colo, para esse fim pinçado, tende a retificar o trajeto e contribui para afastar a complicação. B. Útero em acentuada anteflexão. O acidente ocorreu na parede dorsal. Essa figura representa a perfuração com histerômetro, mas ela sucede, por igual, com a cureta (A) e as velas dilatadoras. C. Após perfurar e dilacerar o útero na região fúndica, a cureta apreende e exterioriza alça intestinal.
■ Abortamento de 2o trimestre* Os procedimentos para provocar o abortamento de 2o trimestre (13 a 26 semanas) são indução com o misoprostol, dilatação e esvaziamento (D & E) e cirurgia abdominal.
■ Abortamento clínico de 2o trimestre ▶ Misoprostol. A dose inicial do misoprostol vaginal é de 600 a 800 μg, depois 400 μg de 3/3 h até no máximo cinco doses. Se o abortamento não se completar com o 1o ciclo, deve-se descansar por 12 h e repetir outro ciclo. Usualmente se espera 2 h para a saída da placenta, embora períodos mais prolongados possam ser tolerados. Quando indicada a extração cirúrgica da placenta ela será realizada por aspiração ou com pinça de ovo longa. Em casos de abortamento clínico após 20 semanas, a morte fetal indicada (feticídio terapêutico com injeção de cloreto de potássio intracardíaco guiada pela ultrassonografia) pode ser a melhor opção para a mulher e o médico, a fim de evitar a sobrevida temporária do feto após o nascimento.
■ Abortamento cirúrgico de 2o trimestre ▶ Dilatação e esvaziamento. A D & E requer a preparação prévia do colo para promover a sua dilatação e o seu amolecimento, evitando a laceração. Para essa finalidade são utilizados os dilatadores osmóticos (laminária ou sintéticos) (Figura 55.7) ou o misoprostol (400 μg na vagina 3 h antes do esvaziamento). A D & E começa com a aspiração do líquido amniótico e é seguida pela extração do feto em partes e da placenta com pinça de ovo; por fim, é completada por curetagem de sucção (Figura 55.8). ▶ Cirurgia abdominal. Procedimento de exceção, pela sua maior morbidade, consiste habitualmente na histerotomia (microcesárea) (Figura 55.9); raramente é indicada a histerectomia.
Figura 55.7 ■ Colocação de laminária para dilatação do canal cervical. A. A laminária, antes de introduzida. B. Corretamente colocada. A laminária se alarga, pela absorção de fluidos, e dilata todo o canal, inclusive os orifícios externo e interno. C e D. Procedimentos incorretos, deixando de dilatar-se uma parte do canal cervical, por introdução insuficiente ou excessiva.
Figura 55.8 ■ Dilatação e esvaziamento (D & E). Em gestações mais avançadas inicialmente, é retirado o concepto com pinça de ovo. A placenta é aspirada depois, com cureta de sucção.
Figura 55.9 ■ Descolamento digital do ovo por ocasião da microcesárea. (Adaptada de Douglas e Stromme, 1957.)
■ Complicações do abortamento de 2o trimestre A taxa de mortalidade por abortamento provocado legal é baixa (0,6:100.000 casos) e está intimamente relacionada à idade gestacional – 0,1:100.000 procedimentos com 8 ou menos semanas e 8,9:100.000 procedimentos com 21 semanas. As complicações associadas com a D & E e o abortamento clínico são raras e incluem a hemorragia, hematometra, atonia uterina, coagulação intravascular disseminada (CID), laceração cervical, retenção de restos ovulares, infecção e embolia. A perfuração uterina pode ocorrer com a D & E e a ruptura uterina com o abortamento clínico. A D & E está associada a menos complicações (até 4%) do que o abortamento clínico envolvendo o misoprostol (até 29%). ▶ Hemorragia. A hemorragia pós-abortamento será definida quando o sangramento for superior a 500 mℓ e/ou a paciente necessitar de transfusão ou internação. A hemorragia que demanda transfusão ocorre em 0,1 a 0,6% dos casos de D & E e em 0,7% após a indução clínica no 2o trimestre. Etiologias reportadas para a hemorragia pós-abortamento incluem atonia uterina, retenção de restos ovulares, laceração cervical, perfuração ou ruptura uterina, placentação anormal e CID. ▶ Hematometra. Acúmulo de sangue no útero (250 a 1.500 mℓ) minutos ou horas após o procedimento, determinando cãibra ou pressão retal, hipotensão, reflexo vagal. A ultrassonografia é diagnóstica ao revelar o coágulo intrauterino. ▶ Atonia uterina. Incide em 2,6 % dos casos de D & E. ▶ Retenção de restos ovulares. Tem sido relatada em menos de 1% dos casos de D & E, mas incide em 8% dos abortamentos clínicos. ▶ Laceração cervical. Incide em até 3,3% dos casos de abortamento de 2o trimestre e está
associada tanto à D & E, quanto ao abortamento clínico. ▶ Perfuração uterina. Tem sido relatado que a frequência da perfuração uterina no abortamento cirúrgico de 2o trimestre é de 0,2 a 0,5%. ▶ Ruptura uterina. O risco de ruptura uterina após o abortamento induzido com o misoprostol em mulheres com cesárea prévia é de 0,28%, enquanto o risco em mulheres sem antecedentes de cesárea é de 0,04%, diferença não significativa. Por isso, a indução com o misoprostol não está contraindicada em mulheres com cesárea anterior. ▶ Coagulação intravascular disseminada. A hemorragia copiosa pode conduzir a um quadro de coagulopatia (CID), especialmente se o abortamento foi indicado em caso de morte fetal no 2o trimestre. ▶ Infecção. Tem sido relatado que a prevalência de infecção no abortamento de 2o trimestre é de 0,1 a 4 %, maior no procedimento cirúrgico do que no clínico. A administração de antibiótico profilático reduz o risco de infecção após o abortamento cirúrgico em 40%, sendo, por isso, altamente recomendada em todos os casos de D & E. Um esquema bastante eficaz e barato é a doxiclina (tetraciclina), 100 mg VO, 1 h antes do procedimento, e 200 mg VO, após a intervenção. A antibioticoterapia profilática não está indicada para os casos de abortamento clínico. A infecção (abortamento infectado) é preferentemente associada à retenção de restos ovulares (abortamento incompleto), e classicamente pode ser dividida em endometrite, peritonite e sepse (o tema foi amplamente discutido no Capítulo 19). ▶ Embolia. A embolia por líquido amniótico (ELA) ocorre entre 1:10.000 a 1:80.000 gestações, e quando é consequente a abortamento de 2o trimestre a taxa de mortalidade é de 80%.
■ Tratamento da hemorragia O tratamento primário da hemorragia começa com o exame especular e digital do colo uterino para avaliar a possibilidade de laceração, exame bimanual para aferir o tônus uterino e ultrassonografia para identificar restos ovulares e o reacúmulo de sangue dentro do útero. Se houver suspeita de atonia, o tratamento inclui a massagem do útero e a administração de uterotônico. A metilergonovina é o agente uterotônico de 1a linha, a menos contraindicada em pacientes hipertensas (0,20 a 0,25 mg IM a cada 5 min até no máximo de 5 doses ou bolus intravenoso de 0,125 mg). Persistente a atonia, a substância seguinte a ser utilizada é o misoprostol, 800 a 1.000 μg por via retal. O hematometra é tratado com a reaspiração intrauterina e uterotônicos (metilergonovina). O tratamento secundário inclui a reanimação líquida, com possibilidade de hemotransfusão, dependendo do hemograma e do estado da paciente. A continuação do sangramento é tratada com sonda de Foley ou balão intrauterino. O tratamento terciário compreende a embolização da artéria uterina, laparoscopia, laparotomia e histerectomia. A histerectomia ocorre em 1,4/10.000 abortamentos, sendo a
perfuração uterina a principal causa. A laceração cervical requer reparo cirúrgico com fio absorvível. Se o sangramento persistir após a laceração cervical alta, deve ser considerada a possibilidade de ruptura da artéria uterina, e indicada a laparotomia. Em casos de placenta acreta, a embolização da artéria uterina é bem-sucedida em 40 % dos casos, mas a histerectomia pode ser o tratamento mais indicado.
■ Pontos-chave O abortamento clínico de 1o e de 2o trimestre é realizado no Brasil com o misoprostol vaginal. A aspiração manual intrauterina (AMIU) é tão eficaz quanto a aspiração elétrica no abortamento provocado de 1o trimestre, embora muitos limitem o procedimento até 8 a 10 semanas. A dilatação e aspiração-curetagem (D & C) é o procedimento padrão de abortamento de 1o trimestre (até 12 semanas). As complicações após o abortamento cirúrgico aumentam com a idade gestacional. A profilaxia antibiótica (doxiciclina) antes do procedimento deve ser obrigatória no abortamento cirúrgico. A ultrassonografia tem valor controvertido para identificar restos ovulares no abortamento de 1o trimestre. O abortamento cirúrgico de 2o trimestre (13 a 26 semanas) é realizado por dilatação e esvaziamento (D & E). É aconselhada a dilatação cervical prévia (laminária ou misoprostol) no abortamento cirúrgico de 2o trimestre. O feticídio terapêutico pode ser aconselhado nos abortamentos de mais de 20 semanas, precedendo a indução com o misoprostol, para evitar a sobrevida fetal. A histerotomia (microcesárea), pela sua elevada morbidade, raramente é indicada no abortamento de 2o trimestre.
_________ *Texto com base no American College of Obstetricians and Gynecologists. Second-trimester abortion. Practice Bulletin n. 135. Obstet Gynecol, 2013;121:1394.
■ Origem do nome ■ Indicações de cesárea ■ Descrição da técnica preferente (de Rezende) ■ Modificações da técnica ■ Antibioticoterapia profilática ■ Dificuldades, acidentes, complicações ■ Cesárea clássica ■ Operações complementares ■ Prognóstico ■ Pós-operatório ■ Cesárea a pedido
Cesariana, cesárea ou tomotocia é o ato cirúrgico que consiste em incisar o abdome e a parede do útero da gestante para libertar o concepto desenvolvido nesse local.
■ Origem do nome A origem do termo cesárea é obscura e há 3 explicações principais. A 1a está relacionada com a lenda de que Júlio César teria nascido dessa maneira e, consequentemente, o procedimento tornou-se conhecido como operação cesariana. Diversas circunstâncias depõem contra essa explicação: a mãe de Júlio César viveu durante muitos anos após o seu nascimento em 100 a.C. e até o século 17 a operação era invariavelmente fatal; a operação, realizada no vivo ou no morto, não foi sequer mencionada por nenhum escritor até a Idade Média. A 2a explicação é a de que o nome da operação tenha sido derivado da lei romana, supostamente criada no século 8 a.C. por Numa Pompilio, ordenando que o procedimento fosse realizado na mulher moribunda, nas últimas semanas da gestação, na esperança de salvar a criança. Essa lex regia – lei dos reis – tornou-se conhecida como lex caesareae sob os imperadores, e a cirurgia, como operação cesariana. O termo alemão Kaisersschnitt – corte imperial – reflete essa derivação. A 3a explicação é a de que o nome cesárea tenha se derivado na Idade Média do latim caedere, cortar. Essa explicação parece ser a mais lógica, mas é incerta a data da 1a ocorrência da operação.
■ Indicações de cesárea Na Tabela 56.1 são apresentadas as principais indicações da operação cesariana.
■ Descrição da técnica preferente (de Rezende) Na execução da cesárea, como ensinada e praticada por Rezende, é preciso ter atenção especial a 2 pormenores: a incisão arciforme do útero e a da pele, também curvilínea, em pleno monte púbico. Atualmente, a anestesia de escolha é a raquianestesia. A anestesia peridural também é apropriada nos casos em que durante o trabalho de parto houve indicação da cesárea. Em ambiente cirúrgico, após a antissepsia e a fixação dos campos, a grávida é colocada em posição de Trendelenburg moderada, inclinando-se o seu tronco e as pernas de 35° a 45°, o que deve ser rigorosamente observado. Essa postura possibilita a incisão dentro do monte púbico, facilita o descolamento aponeurótico e a retirada do feto.
Tabela 56.1 ■ Principais indicações de cesariana. Absolutas Placenta prévia total e parcial Placenta acreta Malformações genitais (i. e., atresias e septos vaginais) Tumorações prévias (p. ex., miomas prévios, câncer cervical invasivo) Desproporção cefalopélvica com feto vivo Relativas Maternas Cardiopatias específicas (i. e., síndrome de Marfan com dilatação da aorta, doença coronariana instável) Pneumopatias específicas (i. e., hipertensão pulmonar grave, síndrome de Guillain-Barré) Dissecção aórtica Condições associadas à elevação da pressão intracraniana História de fístula retovaginal Relativas Fetais Sofrimento fetal Prolapso de cordão Apresentação pélvica ou córmica Gemelidade com 1o feto não cefálico Gemelidade monoamniótica Macrossomia Malformações fetais específicas (p. ex., mielomeningocele, hidrocefalia com macrocrania etc.) Herpes genital ativo HIV com carga viral > 1.000 cópias Maternofetais Cesárea prévia Descolamento prematuro da placenta com feto vivo Placenta prévia marginal e placenta baixa distando < 2 cm do orifício interno do colo
O obstetra, colocado à esquerda, procede à abertura transversal da pele e do tecido conectivo frouxo, subcutâneo, incisão ligeiramente encurvada formando arco (cujo raio tem de 10 a 12 cm), de cavo superior, pouco acima do púbis, em plena região guarnecida de pelos, no nível das espinhas ilíacas. Os limites laterais correspondem, em geral, às bordas superoexternas do pênil (Figura 56.1). Esse, situado por diante da sínfise pubiana, é triangular, de base superior, e confinase lateralmente com a prega inguinal, não tendo limites precisos superiores e inferiores. Acima, confunde-se com o hipogástrio e, abaixo, com os grandes lábios. A espessura do monte púbico também é muito variável, podendo ultrapassar 8 a 10 cm em mulheres obesas. Estruturalmente, trata-se de uma camada célulo-adiposa, limitada entre 2 folhetos conectivos – fascia superficialis – revestida de tegumento e de pelos, contendo, no seu interior, um sistema de fibras elásticas, responsáveis tanto pela constituição do ligamento suspensor do clitóris como pela retração cutânea observada após a incisão da pele. A nutrição vascular é assegurada pelas artérias que provêm das pudendas internas, ramos da femoral; as veias orientam-se para o triângulo de Scarpa e deságuam na safena interna e, por intermédio dela, na femoral, ou diretamente na própria femoral; os nervos procedem dos ramos genitais do plexo lombar, que transitam pelo orifício externo do canal inguinal.
Figura 56.1 ■ Indicam-se a incisão da pele e a do tecido conectivo frouxo, subcutâneo, arciformes, de cavo superior, passando 2 cm acima do púbis; as extremidades do corte, e consequentemente todo ele, devem ficar, sempre que possível, dentro dos limites do monte de Vênus, e a serem recobertas, posteriormente, com o crescimento dos pelos pubianos.
Quando a incisão progride, observa-se que a ferida se abre espontaneamente, graças à distensão da parede abdominal, obtida pela postura da paciente. Após o pinçamento e a cauterização dos vasos sanguíneos, deve-se realizar secção, a bisturi, da aponeurose, bainha anterior do reto, pouco acima da incisão cutânea e também em ligeiro arco, de cavo superior, prolongando-se lateralmente, de 1 a 2 cm por baixo da pele. Sobre a borda lateral do reto, sua bainha anterior tem 2 camadas: uma superficial, de cada lado, formada pelas aponeuroses do grande e do pequeno oblíquo; e outra, profunda, vinculada à aponeurose do músculo transverso (Figura 56.2). A aponeurose deve ser bem descolada para cima, em seu retalho superior, usando-se a tesoura na linha branca e a dissecção romba lateralmente (Figura 56.3). Cada um dos retos pode ser libertado da parede anterior de sua bainha, para cima, na direção do umbigo, em uma extensão de 8 a 10 cm. As aderências costumam ser frouxas, em decorrência da embebição gravídica. Os dedos indicadores esquerdos do operador e de seu assistente levantam a parede anterior das bainhas dos retos de cada lado da linha branca, pondo-a sob tensão. Ela surge formando septo mediano tendinoso, muito curto, que divide o invólucro aponeurótico dos retos em 2 partes.
Figura 56.2 ■ Abertura da aponeurose, no mesmo sentido da cutânea, mas em nível ligeiramente superior, e prolongada 1 a 2 cm por debaixo da pele em ambos os lados.
Figura 56.3 ■ Descolamento da aponeurose. No retalho superior, extensão de 8 a 10 cm; os dedos indicadores do cirurgião e do assistente levantam a parede das bainhas dos retos, de cada lado da linha branca, pondo-a sob tensão; surge, assim, septo mediano tendinoso, curto, a ser seccionado com a tesoura.
Procede-se da mesma maneira com o retalho aponeurótico inferior; os dedos indicador e o médio do cirurgião são mergulhados nos 2 lados da linha branca (Figura 56.4), e pinças de Kocher ou de Pauchet podem servir para suspender a parede anterior da bainha dos retos. A linha branca, esticada e tensa, também é incisada, para baixo, até a sínfise. Os retos são afastados por divulsão.
Figura 56.4 ■ Descolamento do retalho aponeurótico inferior, com o septo mediano incisado até a sínfise. Tempo atualmente dispensável pela elevada incidência de hematoma.
Abre-se o peritônio parietal com incisão longitudinal (Figura 56.5). A celiotomia transversa, preconizada por alguns, apresenta vantagens em certos casos (Figura 56.6). Coloca-se a valva de Doyen supravesical. Realizam-se incisão transversa do peritônio visceral, à altura da prega vesicuterina (Figura 56.7), e desnudamento pequeno do segmento inferior, com gaze montada em pinça (Figura 56.8), ou envolvendo o dedo. Por ter ocasionado muitas lesões fetais quando praticada por cirurgiões inexperientes, a via de acesso ao útero – histerotomia –, anteriormente feita em golpe único e vigoroso, hoje pode ser praticada de 2 maneiras: • Punção do segmento inferior, na linha média, com pinça fechada (Kelly curva), aberta na sequência. A brecha possibilitará a penetração de um dos dedos indicadores, que a ampliará, para a passagem do outro. Em movimento centrífugo, a abertura é aumentada, tomando,
naturalmente, a direção curvilínea, imposta pela textura regional (Figura 56.9). A incisão é romba; não secciona, apenas separa as fibras, obedecendo à sua disposição histológica. Em decorrência da agressividade dessa dissociação, que não se detém sempre nos limites desejados, esse procedimento é desaconselhado. A literatura registra lesões da artéria uterina e dos ureteres, quando os dedos, traídos pela resistência inicial, avançam demais, chegando a degolar o útero em alguns casos. Além disso, as bordas da histerotomia, irregulares e denteadas, constituem uma ferida contusa, que dificulta uma sutura bem feita
Figura 56.5 ■ Incisão do peritônio parietal, no sentido longitudinal, segundo Pfannenstiel.
Figura 56.6 ■ A incisão transversal do peritônio parietal, no mesmo sentido da diérese dos demais planos, e pouco acima da bexiga, é a escolha de alguns cirurgiões.
• Marcação de toda a incisão a bisturi, delineando a forma desejada, arciforme, elevada nos ângulos para impedir o extravio na direção dos vasos grossos. O instrumento corta apenas a camada superficial do segmento, aprofundando-se, no centro, até atingir a câmara ovular (Figura 56.10). Pela abertura penetram os dedos que divulsionam as fibras e seguem o traço sinalado pelo escalpelo. Nas cesáreas iterativas e eletivas, os menos experientes devem ter cautela com a espessura do segmento e sua vascularização aberrante, anômala. A precaução de delimitar o rumo da incisão pelo bisturi impede as irregularidades de suas bordas, possibilitando melhor colocação dos pontos.
Figura 56.7 ■ Abertura do peritônio visceral. Coloca-se a valva suprapúbica e incisa-se, no sentido transverso, o peritônio visceral, à altura da prega vesicuterina.
Figura 56.8 ■ Descolamento do peritônio visceral. Ele é separado do útero em uma extensão de 2 a 3 cm, para baixo e para cima, com gaze montada em pinça ou envolvendo o dedo.
Ao se extrair o concepto, retira-se a valva de Doyen, preferentemente, pela manobra de Geppert: após a orientação da cabeça do feto com o occipital voltado para a incisão, coloca-se a mão esquerda entre o púbis e a apresentação (Figura 56.11), enquanto o auxiliar faz ligeira pressão no fundo do útero. Esse ato cirúrgico, obstétrico por excelência, jamais deve ser realizado com instrumentos, o que demanda presteza e combinação harmoniosa de movimentos entre o operador e seus auxiliares. A conduta expectante é aconselhada no secundamento. Após a retirada do feto, deve-se aguardar por 1 a 2 min a resposta uterina à injeção ocitócica intravenosa, auxiliando-se a dequitadura com a manobra de Credé associada à tração controlada do cordão. Caso haja demora na resposta da víscera ao ecbólico e a manobra não completar imediatamente o secundamento, deve-se recorrer à extração manual da placenta. Efetuada metodicamente, essa extração não ocasiona problemas e é preferível às demais manipulações. Como deve ser sempre a regra na cesárea, é indispensável rigorosa revisão cavitária com chumaço de gaze ou compressa pequena, montados em pinça longa, evitando-se a retenção de fragmentos cotiledonários, de membranas ovulares e remanescentes da decídua, que causa hemorragias imediatas e tardias como as de infecções.
Figura 56.9 ■ Histerotomia no segmento inferior por punção prévia do órgão com pinça de Kelly curva ou bisturi, e subsequente divulsão bidigital.
Deve-se mudar a postura da paciente, que se encontrava em moderada posição de Trendelenburg, tornando-a muito discreta. Levantam-se os lábios da histerotomia com pinças não traumatizantes do tipo Allis.
Figura 56.10 ■ A direção da abertura do útero é traçada a bisturi, que delineia a forma desejada, curvilínea, elevada nos ângulos para impedir o extravio na direção dos vasos grossos.
Enquanto o 1o auxiliar traciona as pinças colocadas nas bordas do útero, em direção à sínfise, realiza-se a sutura, em plano único, com categute cromado no 0, em pontos separados extradeciduais (Figura 56.12). Deve-se evitar atingir a mucosa, tendo cuidado para que a agulha penetre e saia das paredes do segmento inferior sem transfixar a camada interna, que fica, então, revirada para dentro e completamente fechada, à medida que se aperta a sutura.
Figura 56.11 ■ A extração do concepto é feita manualmente, de preferência pela manobra de Geppert: a cabeça fetal deve ser orientada, trazendo-se o occipital à incisão; coloca-se a mão esquerda entre o púbis e a apresentação, enquanto o auxiliar faz pressão no fundo do útero.
A histerorrafia, em pontos separados extradeciduais, tem sido abandonada, e muitos tocólogos preconizam o fechamento do útero em chuleio (Figura 56.13), abreviando-se, também, essa fase da operação. O fechamento do peritônio visceral (prega vesicuterina) é realizado com categute simples de no 2-0 em chuleio interrompido. Esse tempo da intervenção e a sutura do peritônio parietal vêm sendo omitidos por muitos cirurgiões, e considerados inúteis.
Figura 56.12 ■ Histerorrafia. É feita em plano singular, sendo desaconselhada a sutura dupla. São feitos pontos separados, extradeciduais, que não atingem a mucosa, com categute cromado no 0.
Figura 56.13 ■ Histerorrafia em chuleio.
Deve-se mudar novamente a posição da paciente movimentando-se da mesa, que lhe eleva moderadamente os membros inferiores e o tronco. Deve ser feita a limpeza da cavidade abdominal. Sutura do peritônio parietal com categute no 2-0, simples, deve ter o chuleio cruzado interrompido a cada 3 pontos. Atingido o plano muscular, aproximam-se as bordas internas dos retos com 3 pontos em U, de categute simples no 2-0 (Figura 56.14).
Fecha-se cuidadosamente a aponeurose com pontos separados, de Vicryl no 0 (Figura 56.15). O tecido subcutâneo é aproximado com categute simples no 3-0, pontos isolados (Figura 56.16). A sutura da pele em condições ideais deve ser intradérmica, mais estática, com mononáilon no 3-0 ou com o fio absorvível monocril no 3-0.
Figura 56.14 ■ Aproximação dos músculos retos com pontos separados e não muito apertados, em “U”, com fio de categute cromado no 0.
Figura 56.15 ■ Sutura das aponeuroses, em plano singular, com pontos separados de Vicryl no 0.
Figura 56.16 ■ Síntese do subcutâneo: pontos separados de categute simples no 3-0.
■ Modificações da técnica ▶ Retalho vesical. Sua realização está associada a maior tempo até a extração fetal e total de cirurgia, além de redução do nível de hemoglobina. Também está relacionada com maior incidência de micro-hematúria e maior necessidade de analgesia no pós-operatório. Atualmente se recomenda a incisão direta do útero, cerca de 1 cm acima da prega vesicuterina, sem que se realize o retalho vesical, sendo sua prática reservada aos casos em que a bexiga ocupa o segmento inferior. ▶ Extração da placenta. Na cesárea, a placenta pode ser extraída espontaneamente por tração funicular ou manualmente. Acerca desse tema, foram incluídos estudos randomizados na
revisão da Cochrane, que evidenciou maior incidência de endometrite e perda sanguínea, além de maior tempo de internação hospitalar das pacientes que tiveram extração manual da placenta, favorecendo a prática de extração espontânea por tração controlada do cordão. ▶ Histerorrafia. O National Institute for Health and Care Excellence (NICE, 2004) recomenda a sutura em 2 camadas. Essa prática tem respaldo, em especial, quando as mulheres planejam novas gestações, apoiando-se em estudos que verificaram ser maior o risco de ruptura uterina em mulheres cujo útero foi suturado em camada única. ▶ Fechamento peritoneal. Tema que já foi alvo dos mais acalorados debates, hoje parece não suscitar polêmica diante das evidências que consagram o não fechamento peritoneal. A omissão da celiorrafia reduz o tempo operatório, a ocorrência de febre puerperal, a necessidade de analgesia e o tempo de internação hospitalar. A infecção da parede abdominal também tende a estar reduzida quando os peritônios não foram fechados. Contudo, registra-se na prática maior incidência de aderência à parede uterina. ▶ Aproximação do subcutâneo. O fechamento do tecido subcutâneo com mais de 2 cm de espessura esteve associado à redução de deiscência de cicatriz e de seroma. Contudo, parece não haver benefício na aproximação do subcutâneo quando este é menor que 2 cm, não havendo recomendação para tal.
■ Antibioticoterapia profilática A antibioticoterapia profilática na cesárea é útil na prevenção da endometrite pós-parto e da infecção de parede. O esquema de escolha é a cefazolina, 2 g por via intravenosa antes da abertura da pele.
■ Dificuldades, acidentes, complicações Hemorragia, extração fetal difícil e aderências (vesicais, epiploicas, intestinais) são as principais dificuldades encontradas durante a realização da cesariana.
■ Hemorragia A operação cesariana costuma ocorrer sem grande perda sanguínea. Contudo, quando esta é considerável, deve-se buscar sua proveniência. ▶ Hemorragias por lesão dos grandes pedículos vasculares. É um acidente raramente visto. A incisão arciforme, de cavo superior, pode evitá-lo; na hipótese de prolongar-se inesperadamente, ela o fará para cima e nunca para os lados, na direção dos grandes pedículos (Figura 56.17). ▶ Hemorragias provindas dos próprios lábios da histerotomia. Tendem a ser detidas ao se efetuar a sutura do miométrio. ▶ Hemorragias originárias de anomalias vasculares regionais. É comum, nas
mulheres anteriormente cesareadas e nas parturientes idosas, a existência de vasos dispostos de forma anômala, no segmento inferior, ou emergindo debaixo da bexiga, ao se fazer o descolamento do retalho inferior da prega vesicuterina (Figura 56.18). Verdadeiramente preocupantes são as hemorragias por placenta prévia-cesárea, quando parte da inserção ocorreu na face ventral do segmento, zona da histerotomia, e em multíparas de miométrio degenerado pela repetição continuada da função parturiente. A melhor conduta é evitar a incisão da placenta, ganhando acesso à borda mais próxima e manualmente descolando a placenta, enquanto o feto será extraído, frequentemente por extração pélvica (Figura 56.19). ▶ Hemorragias por atonia uterina. Geralmente respondem à injeção intravenosa ou nos cornos uterinos de ocitócicos (ocitocina ou derivado do esporão do centeio) e à massagem da víscera. Atualmente recomenda-se o uso de misoprostol retal (800 μg).
Figura 56.17 ■ Descaminho da incisão, lesando os grandes pedículos vasculares laterais.
Figura 56.18 ■ A. Varicocele uterina. Hemorragia temível, a ser evitada, incisando-se o peritônio acima da prega vesicuterina, ou desviando-se a direção da histerotomia. B. Veias retrovesicais, que podem ser lesadas ao se proceder ao descolamento da bexiga e do peritônio visceral.
Figura 56.19 ■ Placenta prévia-cesárea. Representação esquemática da histerotomia quando coincidente com a inserção placentária (A). A incisão do útero determina hemorragia de monta que deve ser combatida com rapidez e precisão técnica: (B) seccionando a placenta, atravessando-a, ou descolando-a (C) e indo em busca do feto cuja extração demanda urgência.
Em casos extremos está indicada a ligadura da artéria uterina ou a histerectomia (Figura 56.20).
■ Extração fetal difícil Há diferentes procedimentos adequados para a rara oportunidade de não se conseguir extrair o concepto pela manobra de Geppert modificada: • A manobra clássica, que consiste em se fazer voltar a face do feto para a incisão do útero, introduzindo-lhe o indicador na boca para executar a rotação (Figuras 56.21 a 56.23), aplicando, então, o fórceps (Figura 56.24), que completa o desprendimento cefálico • Utilização de alavancas (Figura 56.25) • Embriotomias, indicadas nas cesáreas com feto morto, macrossômico, de libertação impossível sem prolongamento irregular da histerotomia. Não se detalha aqui a retirada do concepto em apresentação pélvica, pois a extração podal não apresenta particularidades relevantes.
■ Aderências À medida que as iterativas aumentam de número surgem, cada vez mais, em todas as estatísticas, pacientes operadas muitas vezes, reduzindo-se as ocorrências de complicações que dificultam o ato cirúrgico. As aderências vesicais são bem comuns, mas não menos que as do intestino, tanto à parede do ventre como à do útero, à bexiga e a órgãos vizinhos. O rompimento dessas aderências é uma tarefa delicada, que requer destreza e experiência cirúrgica e nem sempre se cumpre sem lesões acidentais daquelas vísceras. O reparo do dano deve ser feito imediatamente, consoante os procedimentos cirúrgicos aconselhados em cada caso.
Figura 56.20 ■ A. Ligadura do ramo ascendente da artéria uterina, incluindo porção substancial do miométrio. (Adaptada de O’Leary et al., op. cit.) B. Ligadura dupla, aconselhada por Clark: um dos pontos de sutura, baixo, é colocado como indicado para impedir o fluxo sanguíneo ascendente pela artéria uterina; o outro, mais alto, fica onde ela se anastomosa com a artéria ovariana. (Adaptada de Clark, op. cit.)
Figura 56.21 ■ A mão do operador começa a voltear a face do feto para a incisão. O pormenor apresenta o que se passa fora das vistas do observador.
Figura 56.22 ■ Extração do concepto pela manobra clássica. Nesse 1o momento, procura-se trazer a face do feto à incisão, introduzindo-lhe o indicador na boca.
Figura 56.23 ■ Após volteio da face, que se iniciou como representado na figura anterior, a extração cefálica deve ser realizada manualmente, forçando a flexão da cabeça, ou com o fórceps (Figura 56.24).
Figura 56.24 ■ Aplicação do fórceps para desprendimento cefálico; a manobra completa é representada nas Figuras 56.21 a 56.23.
Figura 56.25 ■ Alavanca de Torpin.
■ Cesárea clássica A operação cesariana com incisão corporal do útero (cesárea clássica) é uma intervenção obsoleta, que tem poucas e raras oportunidades. A cesárea clássica é aconselhada quando se contraindica a segmentária. Seus inconvenientes, notórios (maior perigo de infecção; incidência significativa de ruptura do útero ou de deiscência da cicatriz em gravidez subsequente; aderências, por vezes graves e sérias), não são suplantados por seu único mérito: rapidez e facilidade de execução. No entanto, pode ser excepcionalmente praticada: • Post mortem • Como procedimento para interromper a gravidez no 2o trimestre (microcesárea) • Em caso de placenta acreta-cesárea • Havendo inacessibilidade do segmento inferior (cifescoliose acentuada); abdome pêndulo, em grande multípara obesa, com feto macrossômico; aderências irredutíveis subsecutivas, em geral, a outra histerotomia corporal; segmento inferior patológico, sede de varizes extensas e calibrosas, ou de miomas; operações ginecológicas anteriores, pexias e plásticas, envolvendo fixação da bexiga ao fundus uteri, ou dela se servindo para a peritonização. A técnica da cesárea clássica é simples. Realiza-se laparotomia mediana infraumbilical, que se aumenta, quando conveniente, acima do umbigo. A histerotomia, de 10 a 12 cm, deve ser feita no local representado na Figura 56.26 A, e é comumente acompanhada de hemorragia profusa; a libertação do feto não apresenta dificuldades e quase sempre é obtida por extração podal. O momento de aplicar injeção intravenosa de ocitócico (derivado do esporão de centeio ou ocitocina) facilita a dequitadura, completada por expressão.
Figura 56.26 ■ Incisões do útero. A. Corporal, para a cesárea clássica. B. Segmentária, arciforme, a que melhor se apoia na histologia e vascularização regionais (Marshall-Fuchs). C. Segmentária, longitudinal, de Krönig.
Limpeza minuciosa da cavidade uterina, retirando-se eventuais fragmentos das membranas, e sutura do útero (Figura 56.27), tempo principal da intervenção.
Figura 56.27 ■ Peculiaridades da sutura do útero na cesárea corporal. A 1a sutura, musculomusculosa, em pontos separados, poupa cuidadosamente a mucosa; a 2a, de pontos separados, ainda é musculomusculosa e recobre a anterior; a última camada, serosserosa, é reforçada se não se ativer ao peritônio visceral e incluir pequena porção, superficial, do miométrio.
O 1o plano em pontos separados de categute no 00, cromado, não deve englobar a mucosa; o 2o e o 3o, de reforço e recobrimento, também são de pontos separados, utilizando o mesmo tipo de fio. Deve-se evitar-se o emprego de categutes grossos e os nós não devem ser muito apertados, para não desvitalizar os tecidos.
■ Operações complementares Tem-se discutido a conveniência de praticar outras operações necessárias à paciente no decurso da laparotomia para cesárea realizada. Por aumentar o tempo operatório, qualquer tipo de cirurgia complementar à tomotocia, sobretudo a intestinal, agrava o prognóstico e eleva o risco de morbidade. Admite-se somente a intervenção impostergável (hérnia estrangulada, apendicite aguda, torção de tumor genital), cujas indicações são excepcionais. A cirurgia menor (retirada da cicatriz cutânea da laparotomia anterior, rompimento de aderências) é útil na maioria dos casos e pode ser executada sem riscos adicionais. A esterilização cirúrgica por ligadura, secção ou exérese das tubas uterinas, cuja técnica é apontada em outro capítulo desta obra (Capítulo 57, Seção B) encontra sérias restrições na Lei do Planejamento Familiar (Capítulo 64). Em todas as situações, é recomendável a assinatura da paciente e/ou responsável legal do termo de consentimento para o procedimento cirúrgico proposto, no qual os riscos são explicados e formalizados.
■ Prognóstico As estatísticas que comparam a mortalidade materna na cesárea e no parto pela via vaginal, embora exprimam que ela é 4 vezes maior na primeira, devem ser interpretadas sabendo-se que o grupo tratado pelo parto abdominal está altamente selecionado no que se refere à patologia. Hoje em dia, aceita-se que a mortalidade materna na cesárea eletiva seja comparável à do parto vaginal. A morbidade ainda é grande: 5 a 20 vezes superior à do parto vaginal. As complicações mais frequentes são hematomas, abscessos de parede, deiscência da cicatriz cutânea (6%), pelviperitonite (6%), tromboflebite, íleo paralítico e acidentes anestésicos. A propósito da infecção pós-cesárea, uma complicação comum, deve-se utilizar a antibioticoterapia profilática de rotina, como sugerido anteriormente neste capítulo. São fatores de risco associados à maior morbidade febril pós-cesárea: paciente em trabalho de parto, membranas rompidas há mais de 12 h, monitoramento interno, toques vaginais repetidos, anemia, obesidade, baixo nível socioeconômico. Em caso de infecção por cesárea no local operatório, a endometrite tende a resolver-se com esquema antibiótico intravenosa que inclua medicação para anaeróbio (ampicilina, gentamicina, metronidazol ou clindamicina) (Figura 56.28). Se após 48 a 72 h de antibiótico não houver resolução da febre, devem ser considerados hematoma ou abscesso (de parede ou pélvico), restos ovulares ou tromboflebite pélvica séptica. No 1o caso está indicada a drenagem e, no 2o, a enoxiparina subcutânea. Depois de a paciente permanecer afebril por 24 a 48 h, pode-se alterar o esquema antibiótico para cefalosporina (cefalexina, 500 mg, via oral, 6/6 h, por 7 a 10 dias).
■ Pós-operatório
Após a cesariana, a paciente só deve ser retirada do centro cirúrgico com sinais vitais satisfatórios, útero contraído, lóquios e diurese compatíveis com o pós-operatório. Ela deve ser mantida em observação rigorosa na 1a hora, especialmente pelo obstetra e anestesista. Passado o período crítico, ela deve ser acompanhada por uma equipe de enfermagem treinada, sendo indispensável um enfermeiro para o correto monitoramento dos sinais vitais, dos lóquios e da contração uterina. Um médico plantonista também é indispensável.
Figura 56.28 ■ Morbidade infecciosa pós-cesárea e seu tratamento. US, ultrassonografia; TC, tomografia computadorizada.
Durante as 4 primeiras horas pós-cesariana, os sinais vitais devem ser observados e registrados a cada 30 min, a seguir, a cada hora até 8 h pós-cirurgia, quando então a avaliação passa a ser feita de 4/4 h, principalmente nas pacientes submetidas à administração de morfina no bloqueio anestésico, pelo maior risco de insuficiência respiratória. ▶ Terapia intravenosa. Durante as primeiras 12 h pós-cesariana deve-se manter hidratação venosa generosa, mínimo de 2.000 mℓ. Esta, além de necessária para repor as perdas hidreletrolíticas, é uma medida profilática da cefaleia pós-raque, conjuntamente com a utilização de agulhas finas para o bloqueio anestésico. Deve-se manter infusão venosa de ocitocina junto com a hidratação, 5 a 10 UI em cada soro, a fim de assegurar contração uterina eficaz e, consequentemente, diminuir o sangramento uterino. Caso seja utilizada morfina no bloqueio anestésico, analgésicos como dipirona, administrados
por via intravenosa a cada 6 h, geralmente são suficientes. Em casos que não seja utilizada morfina no bloqueio anestésico, opioides devem ser administrados no pós-operatório, com o intuito de aliviar a dor. A utilização de anti-inflamatórios é desaconselhável, por ser prejudicial ao fenômeno da resposta metabólica ao trauma cirúrgico, assim como à evolução do processo cicatricial. É frequente a incidência de enjoos, que costumam ser controlados com bromoprida ou ondansetrona administrada por via venosa. A diurese é um ponto importante de observação, e tanto o volume quanto a característica da urina (coloração) devem ser rigorosamente observados. Com essa avaliação é possível fazer o balanço hídrico da paciente, e hematúria maciça pode indicar lesão vesical. ▶ Dieta e função intestinal. A paciente deve permanecer em dieta zero por 6 h após a cesariana, quando se deve introduzir dieta líquida/pastosa. Após 12 h da cirurgia já se pode liberar dieta sólida. Deve-se estimular a ingesta de líquidos em abundância, e de alimentos naturalmente laxativos com o objetivo de estimular a diurese e o retorno da função intestinal, que se encontra diminuída nessa fase. A ausculta do peristaltismo intestinal deve fazer parte do exame físico pós-operatório para que haja controle rígido do retorno aos parâmetros fisiológicos. É comum alguma distensão abdominal, normalmente por flatulência e pelo reduzido peristaltismo. Por esse motivo é recomendável a prescrição de dimeticona 40 mg a cada 8 h. Em alguns casos, principalmente em constipadas crônicas, pode ser necessária administração de laxativos como o bisacodil por via oral ou sorbitol por via retal, e geralmente dose única é suficiente. Em casos sem retorno da função intestinal, deve-se considerar a possibilidade de íleo metabólico. ▶ Função vesical. A sonda vesical deve ser retirada 12 h pós-cirurgia, antes de se levantar a paciente do leito e encaminhá-la ao banho de aspersão assistido por enfermagem treinada. A micção espontânea deve ser observada com rigor, principalmente nas pacientes às quais se administrou morfina no bloqueio anestésico. Nessas pacientes, é comum a retenção urinária, sendo necessária a utilização de sonda vesical de alívio até o retorno da micção espontânea. Edemas traumáticos causados pelo cateterismo vesical peroperatório também são frequentes e dificultam as micções, por isso se recomendam a utilização de sonda de Foley no 14 e a técnica rigorosa para o cateterismo vesical, que também requer cuidados rígidos de assepsia e antissepsia para evitar infecções do sistema urinário, muito frequentes quando essas não são respeitadas. ▶ Deambulação. A deambulação assistida deve ser estimulada logo após a retirada da sonda vesical assim como o banho de aspersão. O caminhar precoce, em geral, após 12 h do procedimento cirúrgico, acelera a retomada das funções intestinais e diminui a distensão abdominal, além de prevenir tromboembolismo. A utilização de cinta elástica compressiva traz sensação de segurança e conforto para a paciente na deambulação. Deve-se ficar atento às lipotimias comuns desse período, o que justifica a recomendação de acompanhamento da deambulação e ingesta alimentar anterior ao levantar, a fim de diminuir o risco de hipoglicemia.
▶ Cuidados com a ferida operatória. O curativo deve ser retirado 24 h após a cirurgia. A ferida cirúrgica deve ser limpa com álcool a 70% ou clorexidina. A tendência atual é não cobrir a cicatriz após esse período. Contudo, deve haver inspeção diária durante a internação hospitalar e a paciente deve ser orientada a fazê-la em casa. Roupas confortáveis devem ser utilizadas, e em geral os pontos são retirados, caso realizados com fio inabsorvível, em média após 7 a 10 dias da cesariana, quando a 1a consulta puerperal deve ser agendada. ▶ Cuidados com as mamas e o aleitamento. O aleitamento deve ser estimulado precocemente, mesmo antes de se levantar a paciente do leito; em média, pode-se iniciar o aleitamento 4 h após a cirurgia. Nos casos em que o estado geral da paciente não possibilite o aleitamento, deve-se retardá-lo um pouco até que ela consiga fazê-lo com conforto. Os cuidados com as mamas devem ser respeitados, como já citado no Capítulo 16. ▶ Alta hospitalar. Em geral recomenda-se a alta hospitalar com 72 h, porém, em função da melhora das técnicas operatórias e anestésicas, e da evolução da indústria farmacêutica com a produção de analgésicos cada vez mais eficientes, esse tempo tem sido abreviado em alguns casos para 48 h de internação hospitalar, mas não antes do retorno das funções intestinais. Na alta hospitalar a paciente deve ser orientada sobre a dieta, sobre cuidados com a cicatriz e com as mamas além de ser alertada sobre as medidas de higiene pessoal e da necessidade de deambular. A 1a consulta puerperal deve ser agendada após 7 a 10 dias. Analgésicos como dipirona ou paracetamol e, caso necessário, dimeticona, devem ser prescritos para a utilização domiciliar.
■ Cesárea a pedido A cesárea a pedido é definida como aquela realizada a pedido da mãe, antes do trabalho de parto, na ausência de qualquer indicação materna ou fetal. Nesse sentido, é um tipo de cesárea eletiva. ▶ Risco materno. Há risco elevado de placenta prévia, acreta, prévia-acreta e de histerectomia-cesárea, após o 2o parto cesariano (Tabela 56.2). ▶ Risco neonatal. O risco de morbidade respiratória neonatal, incluindo taquipneia transitória e síndrome de angústia respiratória (SAR), está aumentado após a cesárea eletiva, comparado ao do parto vaginal, uma vez que a operação tenha sido realizada antes de 39 semanas. Apenas 5 variáveis mostram moderada qualidade de evidência, considerando a via de parto (cesárea ou parto planejados), em gestações a termo com apresentação de vértice (Tabela 56.3): • Tempo de internação materna • Morbidade respiratória neonatal • Placenta prévia ou acreta em gestações subsequentes • Ruptura uterina em gestação subsequente • Hemorragia materna.
O parto cesáreo é comum (cerca de 40%) entre os nascimentos a termo precoce (37+0-38+6 semanas), mas eleva o risco de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal/atendimento neonatal especializado (12%) e a morbidade (7,5%), quando comparado aos nascimentos de 39+0-41+0 semanas. ▶ Recomendações. O American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG, 2013), levando em consideração os riscos e benefícios da cesárea a pedido, recomenda: • Na ausência de indicação materna ou fetal para a cesárea, o parto vaginal planejado é seguro, apropriado e deve ser recomendado • Se a cesárea a pedido for indicada, eis as recomendações: ○ Não deve ser realizada antes de 39 semanas de gestação ○ Não deve ser motivada pela não disponibilidade de efetivo controle da dor ○ Não deve ser recomendada à mulher que deseja vários filhos, visto que os riscos de placenta prévia, acreta e histerectomia-cesárea aumentam após o 2o parto cesáreo.
Tabela 56.2 ■ Riscos de placenta acreta e de histerectomia-cesárea de acordo com o número de partos cesáreos comparados com o da 1a operação cesariana. Cesariana
Placenta acreta (%)
Odds ratio
Histerectomia-cesárea (%)
Odds ratio
1a*
0,2
−
0,7
−
2a
0,3
1,3
0,4
0,7
3a
0,6
2,4
0,9
1,4
4a
2,1
9,0
2,4
3,8
5a
2,3
9,8
3,5
5,6
≥ 6a
6,7
29,8
9,0
15
*Cesárea primária. Adaptada de ACOG (2013).
Tabela 56.3 ■ Variáveis com moderada qualidade de evidência de acordo com a via de parto em gestações a termo e apresentação de vértice. Favorável ao parto vaginal planejado Tempo de internação materna Morbidade respiratória neonatal Placenta prévia ou acreta subsequentes
Ruptura uterina subsequente Favorável à cesárea planejada Hemorragia materna
De acordo com ACOG (2013).
■ Pontos-chave Cesariana ou cesárea é o ato cirúrgico que consiste na incisão do abdome e da parede do útero para libertar o concepto aí desenvolvido. Indicações: “o parto do futuro será natural ou cesáreo”. A técnica preferencial da cesárea utiliza a anestesia raquidiana e a incisão de Pfannenstiel. A incisão do útero é segmentária, arciforme, inicialmente a bisturi e depois por divulsão digital. A extração do feto é feita manualmente, pela manobra de Geppert. À técnica estão incorporadas a não sutura dos peritônios visceral e parietal e a histerorrafia por chuleio. Constituem dificuldades, acidentes e complicações da cesárea a hemorragia, a extração fetal difícil e as aderências. Entre as hemorragias destacam-se as lesões dos grandes pedículos vasculares, a placenta prévia-cesárea e a hemorragia por atonia uterina. Operações complementares na cesárea estão contraindicadas; apenas a intervenção impostergável é permitida (hérnia estrangulada, apendicite aguda, ruptura de tumor de ovário). A antibioticoterapia profilática na cesárea foi uma das grandes realizações recentes da obstetrícia. A cesárea eletiva deve ser realizada com 39 semanas de gestação em mulheres que não desejam prole numerosa.
■ A. Histerectomia-cesárea ■ Indicações ■ Histerectomia-cesárea total ou supravaginal? ■ Técnica da histerectomia subtotal ■ Prognóstico
■ B. Esterilização Pós-parto ■ Esterilização tubária ■ Salpingectomia parcial ■ Eficiência ■ Complicações cirúrgicas ■ Complicações tardias ■ Aspectos éticos
A. Histerectomia-cesárea A histerectomia-cesárea é procedimento cirúrgico de emergência usualmente realizado para salvar a vida da paciente e assegurar o controle de hemorragia copiosa. A histerectomia-cesárea está incluída no capítulo da histerectomia pós-parto que engloba também a histerectomia realizada após o parto vaginal (Figura 57.1). A histerectomia pós-parto de emergência tem baixa incidência nos Estados Unidos, cerca de 0,8 a 2,8 por 1.000 partos, mas a morbimortalidade é elevada.
Figura 57.1 ■ Representação esquemática dos três tipos principais de histerectomia-cesárea. A. O procedimento de Porro, obsoleto, mantida a exteriorização do coto, que é fixado à parede do útero. B. Histerectomia subtotal. C. Histerectomia total.
■ Indicações As mulheres com maior risco são as multíparas com placentação anormal (prévia, acreta) e
ruptura uterina. No tocante às indicações, a placentação anormal vem superando a atonia pósparto como a causa mais importante (Tabela 57.1).
Tabela 57.1 ■ Indicações da histerectomia-cesárea. Indicações
Incidência (%)
Placenta acreta
38
Atonia uterina
29
Ruptura uterina
32
Sangramento não identificado
9
Placenta prévia
7
DPP
2
Mioma
1
Outras
4,5 kg, com taxa de prevalência em países desenvolvidos de até 1,5% de todos os nascimentos. A predição antenatal da macrossomia é realizada pela ultrassonografia, e a
melhor política é o rastreamento universal pela EPF ou pela CA. O rastreamento em 2 estágios do GIG é uma boa opção, isto é, exame com 32 a 34 semanas para identificar o grupo de alto risco, seguido pelo exame pormenorizado com 39 semanas para diagnosticar o macrossômico. A possibilidade de macrossomia deve começar na 1a consulta prénatal, quando a obesidade é o maior fator de risco – índice de massa corporal (IMC) > 30 kg/m2. A macrossomia também está associada ao aumento exagerado de peso materno na gravidez. A cesárea com 39 semanas em fetos com > 4,5 kg é custoefetiva.
■ Ultrassonografia 3D/4D A ultrassonografia 3D/4D foi um dos mais importantes avanços tecnológicos em obstetrícia. Os rápidos processadores propiciam a reconstrução da imagem 3D por meio de um número de cortes 2D adequados. O volume armazenado pode ser representado no modo multiplanar, superfície ou transparência (Figura 58.12). A ultrassonografia 4D é a 3D em tempo real.
■ Doppler Por meio da insonação de algum vaso sanguíneo, é gerada pela ultrassonografia uma onda espectral em que se obtêm índices que exprimem a resistência vascular periférica (Figura 58.13). Esses índices têm a vantagem de não dependerem do ângulo de insonação, e os diversos pontos são sempre referentes à envolvente (ou invólucro da onda) que exprime a velocidade máxima. Os índices mais utilizados são a relação A/B (ou sístole/diástole), o índice de resistência (RI) e o índice pulsátil (PI) (Figura 58.14).
Figura 58.12 ■ Multiplanar.
Figura 58.13 ■ Espectro da onda do Doppler. A onda é produzida pela sístole cardíaca, pela complacência vascular e pela resistência periférica. S, sístole; D, diástole. (De Montenegro e Rezende Filho, 1998.)
Figura 58.14 ■ Os índices velocimétricos mais utilizados no estudo do Doppler. (De Montenegro & Rezende Filho, 1998.)
As aplicações do Doppler em obstetrícia incluem a avaliação da circulação placentária (Doppler da artéria uterina) e da vitalidade fetal no 3o trimestre (Doppler da artéria umbilical, da artéria cerebral média e do duto venoso).
■ Segurança A ultrassonografia é inócua para o feto quando utilizada adequadamente, embora não se possa excluir que algum efeito biológico deletério possa ser identificado no futuro.
■ Recomendações básicas da ISUOG (2014) As recomendações básicas da ISUOG (2014) para a ultrassonografia no 1o e no 2o/3o trimestre da gravidez podem ser vistas, respectivamente, nas Tabelas 58.3 e 58.4.
Tabela 58.3 ■ Recomendações básicas da ISUOG (2014) para a ultrassonografia do 1o trimestre. Características da ultrassonografia normal do início da gravidez: descrição do saco gestacional (SG) intrauterino, vesícula vitelina (VV) e do embrião Reconhecimento da viabilidade fetal e critérios adotados para diagnosticar definitivamente a não viabilidade (abortamento) Diagnóstico da gravidez ectópica tubária e não tubária e da gravidez de localização desconhecida (GLD) Como interpretar os níveis de hCG (e de progesterona) na presença da GLD Caracterização ultrassonográfica da gravidez molar Biometria da gravidez inicial: comprimento cabeçanádega (CCN) e diâmetro médio do SG (DMS) Corionicidade e amnionicidade na gravidez gemelar Malformações fetais grosseiras que podem ser reconhecidas no 1o trimestre Associação entre a translucência nucal (TN) espessada e as anomalias cromossomiais (final do 1o trimestre)
Tabela 58.4 ■ Recomendações básicas da ISUOG (2014) para a ultrassonografia de 2o/3o trimestre (resumidas). Determinação da posição fetal Avaliação da vitalidade fetal, incluindo os movimentos fetais Estimativa do volume do líquido amniótico (vLA) e condições associadas à sua anormalidade Avaliação da placenta, incluindo sua relação com o orifício interno (OI) do colo Biometria fetal padrão: diâmetro biparietal (DBP), circunferência cefálica (CC), comprimento do fêmur (CF) e estimativa do peso fetal (EPF) Crescimento fetal e causas típicas de crescimento anormal Reconhecimento dos pontos de referência anatômicos e identificação das possíveis malformações Doppler umbilical e uterino
■ Pontos-chave Pelo modelo piramidal de assistência pré-natal, a ultrassonografia de 1o trimestre é a mais importante, servindo para: datação da gravidez, rastreamento de aneuploidias, diagnóstico de anomalias fetais, diagnóstico de gemelidade, predição de toxemia e de parto pré-termo. Na ultrassonografia transvaginal de 1o trimestre, o SG é identificado com 5 semanas, a VV com 5,5 semanas e o embrião/atividade cardíaca com 6 semanas. A ultrassonografia morfológica abdominal (20 a 24 semanas), além de diagnosticar as malformações fetais, deve ainda localizar a placenta.
A suspeita de placenta prévia na ultrassonografia transabdominal deve ser confirmada pela transvaginal. Na oportunidade da ultrassonografia morfológica pode-se avaliar o comprimento do colo, esse pela via transvaginal. A ultrassonografia é utilizada para guiar inúmeros procedimentos invasivos utilizados na propedêutica obstétrica: amniocentese, biopsia de vilo corial, cordocentese, toracocentese etc. O Doppler tem inúmeras aplicações em obstetrícia que visam avaliar a vitalidade fetal no modelo obstrutivo da asfixia fetal (CIR/toxemia) e no modelo anêmico da doença hemolítica perinatal. O Doppler de artéria umbilical é o único procedimento de avaliação da vitalidade fetal anteparto comprovado por estudos randomizados. O Doppler da artéria uterina (1o ou 2o trimestre) é teste preditivo de toxemia gravídica. A ultrassonografia é segura na gravidez, inócua para a mãe e para o feto.
■ Testes de avaliação anteparto
A avaliação anteparto da vitalidade fetal está indicada especialmente nas gestações que cursam com insuficiência placentária, capaz de determinar o sofrimento fetal crônico, muitas vezes associado ao crescimento intrauterino restrito (CIR) (Capítulo 29). A morbidade e a mortalidade perinatal decorrentes da asfixia fetal anteparto são vistas principalmente em mulheres com os distúrbios apresentados na Tabela 59.1. Durante muito tempo, essas gestações foram rotuladas de gestações de alto risco.
Tabela 59.1 ■ Condições associadas a risco elevado perinatal que necessitam de avaliação anteparto. Hipertensão Descolamento prematuro da placenta (DPP) História obstétrica Crescimento intrauterino restrito (CIR) Natimorto Gravidez prolongada Hipertensão Diabetes pré-gestacional Diabetes gestacional sob uso de insulina Gravidez atual Ruptura prematura das membranas pré-termo (RPMP) DPP “crônico” Aloimunização Rh Sangramento vaginal Obesidade mórbida Idade materna avançada Gravidez após reprodução assistida Diminuição do movimento fetal CIR Oligoidramnia/polidramnia Gestação múltipla Parto pré-termo
■ Testes de avaliação anteparto Os principais testes de avaliação anteparto podem ser enumerados da seguinte maneira: • Contagem dos movimentos fetais • Cardiotocografia (CTG) • Perfil biofísico fetal (PBF) e volume do líquido amniótico (vLA) • Doppler. O único procedimento que mostrou real benefício em investigações randomizadas controladas foi o Doppler da artéria umbilical e, mesmo assim, em gestações complicadas pelo CIR. Além de algumas evidências de que a percepção dos movimentos fetais possa ser benéfica em todas as gestações, não há dados de que qualquer dos testes antenatais deva ser aplicado de rotina em gestações consideradas de baixo risco. ▶ Início e frequência dos testes antenatais. Não há interesse em iniciar os testes de vitalidade fetal antes da viabilidade (26 semanas), assim como em conceptos com malformações incompatíveis com a vida. Em grávidas com diabetes que necessitam de insulina, mas estão controladas, os testes fetais devem ser utilizados a partir de 32 a 36 semanas. Aquelas com diabetes pouco controlado serão investigadas a partir de 26 semanas. Em mulheres com gravidez prolongada, sem outras complicações, a CTG e o vLA devem ser iniciados a partir de 41 semanas, embora seja melhor induzir o parto. Por outro lado, a frequência dos testes antenatais será de 1 a 2/semana. No entanto, excepcionalmente, na eventualidade do parto pré-termo indicado, sua frequência pode ser diária, ou até maior, para maximizar a idade gestacional e ao mesmo tempo evitar a asfixia intrauterina.
■ Contagem dos movimentos fetais Todas as mulheres com fator de risco para prognóstico perinatal adverso devem ser orientadas para a contagem dos movimentos fetais a partir de 26 a 32 semanas de gravidez [Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), 2007]. O método tende a atraí-lo, não requer qualquer tecnologia, apresenta custo zero e pode ser utilizado diariamente pela gestante. ▶ Teste do movimento fetal. Se a contagem de movimentos fetais distintos não alcançar seis movimentos a cada 2 h, o resultado deve ser considerado anormal e essas gestações deverão receber completa avaliação materna e fetal (SOGC, 2007). Não há nenhum estudo randomizado a legitimá-lo. ▶ Método da contagem dos 10. Os 90os percentis seriam de 25 min (entre 22 e 36 semanas) e de 35 min (entre 37 e 40 semanas). Se ao final desses dois prazos o feto não alcançasse 10 movimentos, o resultado seria rotulado anormal.
■ Cardiotocografia
Como foi visto no Capítulo 29, dedicado ao CIR, a CTG no chamado modelo obstrutivo/toxêmico de insuficiência placentária não tem mais valia [Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG), 2013]. A nosso ver, estaria indicada apenas no diabetes sem complicação vascular e na pós-maturidade. A frequência cardíaca fetal (FCF) basal normal está localizada entre 110 e 160 bpm; acima de 160 bpm, taquicardia, e abaixo de 110 bpm, bradicardia, ambos indicativos de sofrimento fetal.
Figura 59.1 ■ Aceleração a movimentos fetais.
A CTG pode ser classificada em reativa e não reativa. É reativa quando apresenta ≥ 2 acelerações ao movimento fetal, com amplitude ≥ 15 bpm e duração ≥ 15 s, em 20 min de traçado [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 1999] (Figura 59.1); a CTG reativa indica boa vitalidade fetal. Em particular, no pré-termo (< 32 semanas), considera-se normal a aceleração com amplitude ≥ 10 bpm e duração ≥ 10 segundos. A CTG é não reativa quando mostra < 2 acelerações em 20 min de traçado (pode ser estendido para 40 min), indicando comprometimento da vitalidade fetal. Em geral, a frequência do teste da aceleração é de 1 a 2/semana. ▶ CTG computadorizada. A análise computadorizada da CTG anteparto foi introduzida pelo sistema 8002 da Sonicaid, que mede a variabilidade da FCF de duas maneiras (Figura 59.2): • Como variações de longa duração (long-term variation – LTV) em bpm • Como variação de curta duração (short-term variation – STV) em ms. Quando alcançado, o critério de Dawes/Redman (D/R) de normalidade é dado automaticamente pelo sistema computadorizado (Figura 59.3).
Figura 59.2 ■ Sistema Sonicaid-8002 de CTG computadorizada. (Adaptada de Dawes e Redman, Oxford, 1994.)
Figura 59.3 ■ CTG reativa: critério de Dawes/Redman atingido.
A CTG computadorizada é a única legitimada pelo RCOG (2013) para ser utilizada no CIR por insuficiência placentária; nesse particular, a STV valoriza o melhor parâmetro de acidemia fetal. A STV > 4 ms afasta a acidemia fetal ou a possibilidade de morte intrauterina; STV < 4 ms indica graus variáveis de acidemia. O traçado terminal está caracterizado pela STV < 3 ms (Figura 59.4).
■ Perfil biofísico fetal e volume do líquido amniótico Assim como referimos para a CTG anteparto, o PBF e o vLA não são legitimados pelo RCOG (2013) para avaliar o sofrimento fetal no CIR placentário (Capítulo 29). Ficam assim reservados ambos os testes para avaliar o pós-maduro na gravidez prolongada e apenas o PBF para acompanhar a vitalidade fetal no diabetes sem complicação vascular que, em vez de exibir oligoidramnia, mostra polidramnia/macrossomia. O PBF, desenvolvido por Manning, em 1980, é um teste de avaliação anteparto da vitalidade fetal, que observa quatro variáveis sonográficas durante 30 min: movimento respiratório fetal (MRF) (Figura 59.5), movimento fetal, tônus e vLA. Se houver membranas intactas, rim funcionante e sistema urinário desobstruído, a diminuição
do vLA significa redução da filtração renal pela redistribuição do débito cardíaco com prejuízo do rim, em resposta à hipoxia crônica (Figura 59.6). Os componentes sonográficos do perfil e a inclusão da CTG recebem nota 2 (presente) ou 0 (ausente) (Tabela 59.2). A contagem 8 a 10 (desde que o vLA receba 2) é considerada normal; 6, equivocada e ≤ 4, anormal. O vLA avalia a existência de oligoidramnia (Figura 59.7). O diâmetro vertical do maior bolsão de LA é normal quando mede entre 2 e 8 cm; < 2 cm, configura a oligoidramnia e > 8 cm, a polidramnia.
Figura 59.4 ■ CTG terminal: short term variation (STV) de 1,4 ms.
Figura 59.5 ■ Representação esquemática dos movimentos respiratórios fetais (MRF) observados à
ultrassonografia dinâmico-linear. A. Ilustração do corte do feto in utero. B. Durante cada MRF, as paredes anterior e posterior do tórax se retraem em torno de 2,5 mm e a parede abdominal anterior se expande em aproximadamente 3 a 8 mm. t, parede anterior do tórax; a, parede anterior do abdome; c, coração. (Adaptada de Patrick et al., 1978.)
Figura 59.6 ■ Fisiopatologia da oligoidramnia. (Adaptada de Montenegro et al., 1984.)
Tabela 59.2 ■ Variáveis do perfil biofísico fetal (PBF). Variável
Critério
1. Aceleração da frequência cardíaca fetal (FCF)
2 acelerações
2. Movimento respiratório fetal (MRF)
1 episódio contínuo com 30 s de duração
3. Movimento fetal
3 movimentos do corpo ou dos membros
4. Tônus fetal
1 episódio de extensão/flexão dos membros ou de tronco ou abertura/fechamento das mãos
5. Volume do líquido amniótico (vLA)
Bolsão vertical > 2 cm
Duração do teste: 30 min. Nota da variável: presente = 2; ausente = 0. (Adaptada da SOGC, 2007.)
Figura 59.7 ■ Classificação ultrassonográfica do volume do líquido amniótico (LA). (Adaptada de Montenegro et al., 1984.)
Atualmente, tende-se a adotar o PBF simplificado, apenas a CTG e o vLA, e mesmo assim com as restrições já enumeradas.
■ Doppler ▶ Doppler da artéria uterina. O Doppler da artéria uterina avalia a resistência dos vasos que suprem a placenta, refletindo a remodelação das artérias espiraladas, comprometida na préeclâmpsia, CIR, descolamento prematuro da placenta (DPP) e morte fetal intrauterina. O Doppler da artéria uterina está totalmente incorporado à ultrassonografia de 20 a 24 semanas e foi amplamente estudado no Capítulo 29 sobre CIR. O resultado é considerado anormal quando a média das duas uterinas mostra índice de resistência (RI) > 0,58 e caso haja incisuras diastólicas em ambas as artérias (Figura 59.8). O Doppler uterino anormal está associado a risco 4 a 8 vezes maior de pré-eclâmpsia/CIR. Ao contrário, o Doppler uterino normal exibe valor preditivo negativo de 99 %, praticamente excluindo essas complicações da gravidez. ▶ Doppler da artéria umbilical. Na gestação normal, a circulação umbilical está caracterizada por baixa resistência, crescente com a evolução da gravidez, à medida que se desenvolve a arquitetura vascular das vilosidades terminais (Figura 59.9). A elevação da resistência implica redução das unidades vasculares vilosas, caracterizada por aumento da relação sístole/diástole (A/B) e do índice pulsátil (PI). A experimentação com embolização das artérias umbilicais em ovelhas mostrou que a ausência de fluxo diastólico (diástole-zero) no Doppler da artéria umbilical é alcançada quando > 80% das vilosidades funcionais estão obliteradas.
Figura 59.8 ■ Doppler da artéria uterina após 24 semanas: normal e anormal (incisura).
Figura 59.9 ■ Representação esquemática da circulação da placenta humana. (Adaptada de CohenOverbeek et al., 1985.)
Figura 59.10 ■ Classe de fluxo sanguíneo: normal, I (diástole diminuída), II (diástole-zero) e III (diástole reversa). (Adaptada de Laurin et al., 1987.)
O Doppler da artéria umbilical pode ser dividido em quatro classes (Figura 59.10): normal, classe I (diástole diminuída), classe II (diástole/zero) e classe III (diástole reversa). Como teste de vitalidade fetal, o Doppler da artéria umbilical foi o único procedimento que
melhorou a mortalidade perinatal em estudos randomizados. Por esse motivo, é o teste de eleição para avaliar a insuficiência placentária no CIR (Capítulo 29). ▶ Doppler de outros vasos. Inicialmente, pari passu com o desenvolvimento da hipoxia fetal, a redistribuição do fluxo sanguíneo ocorre de tal maneira que a resistência na artéria cerebral média (ACM) cai e, na artéria umbilical, se eleva, pela obliteração das arteríolas vilosas, traduzindo o chamado brain sparing effect ou centralização (Figura 59.11). As alterações na circulação cerebral, no entanto, não se correlacionam adequadamente com os estágios finais do comprometimento asfíxico fetal e, por isso, não são úteis para indicar a melhor oportunidade para o parto indicado. No mesmo passo, o Doppler da artéria umbilical zero também pode ocorrer dias ou semanas antes do verdadeiro comprometimento fetal. Em gestações de < 32 semanas, caso o objetivo seja escolher a melhor época para o parto, é necessário buscar outros parâmetros fluxométricos.
Figura 59.11 ■ Centralização fetal. O fluxo umbilical está reduzido, e o da artéria cerebral média, aumentado.
A avaliação do sistema venoso pode traduzir melhor o comprometimento iminente da função cardíaca fetal e a necessidade de interromper a gravidez. A deterioração da contratilidade do ventrículo direito conduz a sua dilatação e regurgitação (insuficiência) tricúspide, exacerbando a pressão de enchimento atrial direita e a resistência ao enchimento venoso. Tal resistência se reflete no ducto venoso que exibe padrão zero/reverso, à semelhança da artéria umbilical, durante a contração atrial (ponto a), achado altamente relacionado com iminente asfixia fetal (Figura 59.12). Por fim, o aumento da pressão venosa sistêmica conduz a dilatação máxima do ducto venoso e transmissão direta do impulso cardíaco à veia umbilical, causando pulsação nesse vaso. A pulsação na veia umbilical está intimamente relacionada com o estágio terminal do feto.
Aconselhamos a leitura do Capítulo 29 para a complementação do tema sobre a avaliação da vitalidade fetal anteparto.
Figura 59.12 ■ Doppler venoso: Doppler do ducto venoso normal e anormal (zero/reverso).
■ Pontos-chave O principal mecanismo de defesa do feto no sofrimento fetal crônico é a centralização – aumento dos fluxos sanguíneos cerebral e cardíaco, em detrimento de outros territórios (rim, intestino, carcaça) que os têm reduzido. Todas as mulheres com fator de risco devem ser orientadas para a contagem diária dos movimentos fetais, a partir de 26 a 32 semanas. CTG, PBF e vLA somente estão indicados na pós-maturidade e no diabetes sem complicação vascular. A CTG é reativa quando ocorrem ≥ 2 acelerações em 20 min de traçado; e não reativa quando mostra < 2 acelerações em 40 min de traçado. O PBF simplificado, que analisa apenas a CTG e o vLA, tem substituído o PBF clássico com cinco variáveis. Oligoidramnia é o maior bolsão de LA < 2 cm; e polidramnia, o maior bolsão > 8 cm. O Doppler de artéria uterina mede o fluxo uteroplacentário e é sinal preditivo de toxemia. No modelo obstrutivo/toxêmico de CIR, o Doppler da artéria umbilical é o único procedimento legitimado por estudos randomizados. Na gravidez complicada por CIR, não é aconselhável ultrapassar 37 semanas de gestação. A avaliação do sistema venoso (Doppler do ducto venoso e da veia umbilical) pode traduzir melhor o comprometimento iminente da vitalidade fetal e a necessidade de interromper a gravidez.
■ Critérios de risco ■ Rastreamento da síndrome de Down ■ Modelo piramidal ■ Teste pré-natal não invasivo – cffDNA no sangue materno ■ Marcadores de segundo trimestre ■ Procedimentos diagnósticos invasivos ■ Teste de triagem neonatal (teste do pezinho)
Diagnóstico pré-natal é o capítulo que trata das anomalias genéticas e, nesse sentido, vem substituindo o título aconselhamento genético pré-natal. Há quem considere que o diagnóstico das malformações congênitas fetais também faça parte do prénatal. Os testes utilizados no diagnóstico pré-natal são de rastreamento ou de diagnóstico. Um teste de rastreamento é utilizado universalmente, para toda a população; é simples, não invasivo e de boa sensibilidade. O teste diagnóstico é mais específico, custoso e invasivo; em geral, é precedido por teste de rastreamento que selecionou o paciente de risco.
■ Critérios de risco ■ Grupo de alto risco ▶ Pacientes com translocações. Um dos pais tem translocação balanceada cromossomial. ▶ Pacientes com anomalias recessivas ligadas ao sexo. Este grupo inclui doenças como hemofilia, distrofia muscular de Duchenne, certos tipos de hidrocefalia etc. No feto do sexo masculino, o risco de anomalia é de 50%. ▶ Erros inatos do metabolismo. Doenças bioquímicas familiares decorrentes de anomalias recessivas autossômicas, sendo necessário que ambos os pais sejam portadores para que a criança seja afetada (risco de 1:4).
■ Grupo de moderado risco ▶ Idade. Grávidas com ≥ 35 anos. O risco de síndrome de Down é maior de 1%. Outras anomalias cromossomiais têm, igualmente, as probabilidades acrescidas (Tabela 60.1). ▶ Defeitos do tubo neural (DTN). Incluem anencefalia, encefalocele e espinha bífida cística (meningocele, mielomeningocele). Estima-se a recorrência em torno de 3 a 5% dos casos. Aproximadamente 90% dos DTN são abertos (sem epitélio de revestimento) e aumentam a alfafetoproteína (AFP) no líquido amniótico (LA).
Tabela 60.1 ■ Incidência de anomalias cromossomiais e idade materna. Idade materna (anos)
Risco de anomalias cromossomiais (%)
35
Começa a aumentar
37
1
39
2
45
8
■ Grupo de baixo risco Mulheres que deram à luz crianças com síndrome de Down têm baixo risco de recorrência.
■ Rastreamento da síndrome de Down A idade materna é o rastreamento inicial para identificar os casos com risco de síndrome de Down (e outras trissomias – 18, 13), visto que o risco de trissomia 21 se eleva com a idade. A priori, o risco para uma mulher de 35 anos de ter feto com Down, durante o segundo trimestre, é de 1/270. No entanto, 80% das trissomias 21 ocorrem em recém-nascidos de mulheres com menos de 35 anos, de tal maneira que o rastreamento, apenas pela idade materna, identificaria somente 30% dessa aneuploidia. Assim, surgiram outros procedimentos para rastrear toda a população obstétrica: translucência nucal, teste combinado e teste quádruplo.
■ Modelo piramidal ■ Ultrassonografia 11 a 13+6 semanas Pelo modelo piramidal de assistência pré-natal, a ultrassonografia de 1o trimestre é a mais importante (Figura 60.1). Nesse intervalo, o ideal é o exame com 12 semanas, época na qual o teste combinado oferece os melhores resultados [International Society for Prenatal Diagnosis (ISPD), 2013]. Com 11 semanas, as oportunidades para o diagnóstico de malformações são menores; com 13 semanas, os resultados dos exames bioquímicos são menos fidedignos. Na oportunidade, poderão ser realizados diversos outros procedimentos que, na verdade, não constituem diagnóstico pré-natal stricto sensu, tais como: • Datação da gravidez (comprimento cabeça-nádega – CCN) • Testes para rastreamento de trissomias 21, 18 e 13 ○ Translucência nucal ○ Teste combinado (TN e PAPP-A + hCG-β-livre) ○ Outros marcadores de primeiro trimestre (osso nasal, ducto venoso, regurgitação tricúspide) • Diagnóstico de gemelidade (corionicidade e amnionicidade) • Mensuração do colo uterino (preditivo de parto pré-termo) • Diagnóstico de anomalias fetais (anencefalia, holoprosencefalia, megabexiga etc.) • Marcadores biofísicos de pré-eclâmpsia
○ Doppler de artéria uterina ○ Dilatação fluxo-mediada da artéria braquial (DILA) • Marcadores bioquímicos de pré-eclâmpsia (PlGF, sFlt-1, sEng).
Figura 60.1 ■ Novo modelo piramidal da assistência pré-natal. (Adaptada de Nicolaides, 2011.)
■ Translucência nucal A translucência nucal (TN) isolada é capaz de detectar 70% das trissomias, com 5% de falso-positivo (Figura 60.2). ▶ Outras aplicações da TN. Pacientes com TN ≥ 3,5 mm, apesar do resultado negativo no rastreamento e/ou teste invasivo normal, serão submetidas à ultrassonografia morfológica, aliás, obrigatória, e à ecocardiografia fetal, visto que esses fetos têm risco aumentado de outras anomalias, incluindo defeitos cardíacos, defeitos da parede abdominal, hérnia diafragmática congênita, displasias esqueléticas e síndromes genéticas. Na gemelidade monocoriônica, a discordância na TN dos gemelares pode ser preditiva de síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (Capítulo 27). ▶ Outros marcadores biofísicos de primeiro trimestre. Os de maior importância são o osso nasal e o ducto venoso. O osso nasal entre 11 e 13+6 semanas não é visível em 70% dos fetos com síndrome de Down e em apenas 2% dos fetos euploides (Figura 60.3). As alterações de padrão de fluxo no ducto venoso, onda a negativa ou reversa, são observadas em 80% dos fetos com Down e em 5% dos fetos normais (Figura 60.4). Os marcadores biofísicos para as síndromes de Edwards (trissomia 18), Patau (trissomia 13) e Turner (X0) estão descritos na Tabela 60.2.
Figura 60.2 ■ Medida da translucência nucal (TN). Para mensuração adequada, os “cursores” da medida devem ser posicionados sobre as linhas que definem o espaço anecoico da TN, conforme a representação na parte inferior da figura à esquerda. Medidas obtidas com os “cursores” dispostos de outras maneiras, como exemplificado na parte inferior direita da figura, estão incorretas. CCN, comprimento cabeça-nádega; US, ultrassonografia.
▶ Feto 3D. Procedimento multivirtual idealizado por Heron Werner que utiliza ultrassonografia, ressonância magnética e tomografia computadorizada, e busca encontrar marcadores biofísicos de primeiro trimestre de trissomias 18 e 13 (holoprosencefalia, onfalocele e megabexiga) (Figura 60.5).
Figura 60.3 ■ Identificação do osso nasal no primeiro trimestre. CCN, comprimento cabeça-nádega; US, ultrassonografia.
Figura 60.4 ■ Ducto venoso reverso no primeiro trimestre.
Tabela 60.2 ■ Achados sonográficos mais frequentes nas síndromes de Edwards, Patau e Turner. Síndrome de Edwards
Síndrome de Patau
Síndrome de Turner
CIR grave
CIR leve
CIR leve
Artéria umbilical única (80%)
Megabexiga
Higroma cístico
Megabexiga
Taquicardia
Onfalocele
Holoprosencefalia
Bradicardia
CIR, crescimento intrauterino restrito.
Figura 60.5 ■ Procedimento Feto 3D. (De Heron Werner.)
■ Teste combinado Além da idade materna, o teste combinado avalia a TN e dois marcadores bioquímicos: proteína plasmática associada à gravidez-A (PAPP-A) e hCG-β-livre. O teste combinado, realizado entre 11 e 13+6 semanas, tem taxa de detecção de 90% para trissomias 21, 18 e 13, com falso-positivo de 5%. Com a incorporação do índice de pulsatilidade (PI) do ducto venoso, a taxa de detecção se eleva para 95%, com redução do falso-positivo para 2%. O ideal é que as dosagens hormonais sejam realizadas 1 a 2 semanas antes da ultrassonografia, de tal modo que, na ocasião da TN, o resultado saia completo. Cerca de 30% das anomalias cromossômicas detectadas pelo teste combinado foram diferentes das trissomias 21, 18 e 13, e as mais frequentes foram a síndrome de Turner (X0) e a XYY. Aproximadamente 99% dos casos de Turner terminam em abortamento no primeiro trimestre; a síndrome de Turner representa 10% do total de abortamentos esporádicos. A TN na síndrome de Turner é muito elevada (valor médio de 8,5 mm) e a idade materna é < 35 anos. O teste combinado com risco > 1/300 na trissomia 21 ou > 1/150 nas trissomias 13 e 18 obriga que se proceda ao diagnóstico invasivo para a realização do cariótipo fetal.
■ Teste pré-natal não invasivo – cffDNA no sangue materno Realizado a partir de 9 semanas de gestação, o cell-free fetal DNA (cffDNA) no sangue materno tem o objetivo de estabelecer: • Sexagem fetal
• Rh fetal (mãe Rh– e pai Rh+) • Diagnóstico de trissomias 21, 18, 13, monossomia X0 (Turner), XXY (Klinefelter). O teste pré-natal não invasivo (NIPT) mostra notável potencial para o rastreamento das aneuploidias fetais (ACOG, 2012). Em torno de 3 a 13% do DNA livre no sangue materno é DNA fetal. Na verdade, o DNA fetal livre no sangue materno é proveniente de células apoptóticas do trofoblasto. O exame, indicado a partir de 9 semanas de gestação, está disponível sob o nome Panorama™ (Natera), que utiliza a técnica de polimorfismo de nucleotídio único, e pretende rastrear trissomias dos cromossomos 21, 18, 13, e aneuplodias dos cromossomos sexuais (X e Y). O laudo do teste é dado como de alto risco (> 1/100) ou de baixo risco (< 1/100) e demora cerca de 1 mês para ser fornecido. A taxa de detecção é > 99% e o resultado falso-positivo < 1%; em até 7% dos casos, o teste não pode fornecer o resultado (principalmente pela pequena fração de DNA fetal livre). Outros laboratórios para a análise do cffDNA utilizam a técnica de sequenciamento paralelo massivo (MaterniT 21 Plus®). Em resumo, o cffDNA é, no momento, o melhor exame para rastrear aneuploidia fetal, e espera-se que contribua para reduzir significativamente a taxa de procedimentos invasivos, geralmente não isentos de complicações. Certamente, a ultrassonografia de 11 a 13+6 semanas continua indicada, visto que a TN é marcadora de outras alterações fetais e o exame é capaz de diagnosticar algumas anomalias estruturais ainda no primeiro trimestre da gravidez. Os três pilares do diagnóstico pré-natal são: cffDNA, ultrassonografia de primeiro trimestre e teste invasivo (Figuras 60.6 e 60.7).
■ Marcadores de segundo trimestre ■ Marcadores sonográficos Existem diversos marcadores sonográficos de trissomia identificados na ultrassonografia de segundo trimestre, na ocasião do exame morfológico: ventriculomegalia leve (diâmetro do ventrículo lateral ≥ 10 mm e < 15 mm) (Figura 60.8), cisto do plexo coroide (Figura 60.9), prega cutânea occiptal (PCO) espessada (≥ 6 mm) (Figura 60.10), foco ecogênico intracardíaco, intestino hiperecogênico (Figura 60.11), hidronefrose leve ou pieloectasia (diâmetro anteroposterior da pelve renal ≥ 5 mm e < 10 mm) (Figura 60.12), fêmur ou úmero curto, osso nasal ausente/hipoplásico. O risco de anomalias desses marcadores é estimado pela razão de verossimilhança (likelihood ratio), elevando o risco fornecido pelo teste combinado. Os melhores marcadores são a PCO espessada, a ventriculomegalia e o osso nasal ausente/hipoplásico.
Figura 60.6 ■ Os três pilares do diagnóstico prénatal.
Figura 60.7 ■ Fluxograma do diagnóstico pré-natal. NIPT, teste pré-natal não invasivo.
■ Marcadores bioquímicos. Teste quádruplo O teste quádruplo inclui alfafetoproteína, estriol não conjugado, hCG-β-livre e inibina-A. A taxa de detecção é de 80%, com falso-positivo de 5%. O teste está indicado entre 15 e 20 semanas de gestação, e apenas nas mulheres que perderam a oportunidade do rastreamento de primeiro trimestre.
Figura 60.8 ■ Ventriculomegalia leve. (Adaptada de Van den Hof e Wilson, 2005.)
Figura 60.9 ■ Ultrassonografia de segundo trimestre em que se identifica cisto de plexo coroide unilateral.
Figura 60.10 ■ Prega nucal espessada. (Adaptada de Van den Hof e Wilson, 2005.)
Figura 60.11 ■ Intestino hiperecogênico.
■ Procedimentos diagnósticos invasivos Em geral, os procedimentos diagnósticos invasivos estão indicados quando os testes de
rastreamento apontam risco elevado (para o teste combinado > 1/300 na trissomia 21 ou > 1/150 nas trissomias 13 e 18; e para o cffDNA > 1/100) ou se a idade materna for ≥ 35 anos. As técnicas invasivas utilizadas no diagnóstico pré-natal são a amniocentese (16 semanas), a biopsia de vilo corial (BVC) (12 semanas) e, excepcionalmente, a cordocentese (após 20 semanas). Todos esses procedimentos foram amplamente discutidos no Capítulo 6 e aqui vale apenas lembrar as taxas de perdas fetais: amniocentese, < 0,5%; BVC, 1% e cordocentese (todas as indicações), 2%.
Figura 60.12 ■ Pieloectasia renal bilateral. (Adaptada de Van den Hof e Wilson, 2005.)
A análise citogenética convencional consiste na determinação do cariótipo fetal; isto é, sua constituição cromossômica, número e morfologia. No caso do LA, procedimento padrão, é possível fazer os seguintes exames (Figura 60.13): • Cultura de células fetais para a análise cromossomial (técnicas de bandeamento) • Estudo bioquímico, quando indicado, para identificar os erros inatos do metabolismo. Os resultados dos exames geralmente demoram de 3 a 5 semanas, mas a precisão diagnóstica é de quase 100%. O teste citogenético molecular, conhecido como hibridização in situ fluorescente (FISH), localiza o DNA em cromossomos em metáfase por sondas específicas. Esse método de identificação de cromossomo é extremamente rápido (24 h) e pode ser utilizado em células não cultivadas de vilo corial, LA e sangue. Técnica citogenética molecular de microarranjo de DNA (DNA microarray) possibilita a detecção de deleções e de duplicações genômicas submicroscópicas não vistas na cariotipagem de bandeamento. Sua maior indicação é a existência de anomalia fetal com cariótipo convencional normal (ACOG, 2009). Nessas condições, a técnica de microarranjos detecta anomalias em 5 a 10% dos casos. Outra indicação seria o feto natimorto com anomalia congênita, na impossibilidade de se obter a cariotipagem convencional. A técnica de microarranjos apresenta algumas limitações: não detecta translocações e inversões balanceadas, triploidias e mosaicismo.
Figura 60.13 ■ Exames realizados com o líquido amniótico no aconselhamento genético.
■ Teste de triagem neonatal (teste do pezinho) Realizado no bebê entre o terceiro e o sétimo dia de vida, o teste neonatal tem por objetivo o diagnóstico de algumas doenças genéticas, utilizando apenas uma gota de sangue retirada do calcanhar do recém-nascido. O Ministério da Saúde (2013) propõe o rastreamento das seguintes doenças: hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria, fibrose cística, anemia falciforme e outras hemoglobinopatias, hiperplasia suprarrenal congênita e deficiência de biotinidase.
■ Pontos-chave De acordo com o modelo piramidal de assistência pré-natal, a ultrassonografia mais importante é a de primeiro trimestre, entre 11 e 13+6 semanas de gestação. O rastreamento para as trissomias 21, 18 e 13 deve ser universal no primeiro trimestre da gravidez. O teste combinado (TN + hCG-β-livre + PAPP-A) tem taxa de detenção de 90%, com falso-positivo de 5%. A ultrassonografia morfológica (20 a 24 semanas) deve ser exame de rotina na gravidez para diagnóstico de malformações e de sinais menores de aneuploidia. O teste quádruplo (alfafetoproteína, estriol não conjugado, hCG-β-livre e inibina-A) só está indicado para mulheres que perderam a oportunidade do rastreamento de primeiro trimestre. A TN ≥ 3,5 mm, com o cariótipo fetal normal, é marcador de defeito cardíaco e de outras anomalias congênitas. O teste combinado com risco positivo (> 1/300 ou > 1/150) ou o cffDNA de alto risco (> 1/100) constitui indicação para o diagnóstico invasivo (amniocentese e BVC). A amniocentese (16 semanas) tem risco de perda fetal de < 0,5%; a BVC (12 semanas), de 1%; e a cordocentese (após 20 semanas), de 2%. O cffDNA no sangue materno pode ser realizado a partir de 9 semanas e rastreia trissomias 21, 18 e 13, e aneuploidias do X e do Y, com taxa de detecção de 99% e falso-positivo de 1%. Os três pilares do diagnóstico pré-natal são: cffDNA (9 semanas), ultrassonografia de primeiro trimestre (11 a 13+6 semanas) e testes invasivos (12 a 16 semanas).
■ Terapia médica ■ Terapia cirúrgica
Os notáveis progressos ocorridos na imagenologia possibilitaram consolidar a hipótese, de antigo entrevista, de o concepto ser examinado in utero por meio da ultrassonografia e pela coleta de material da placenta ou de seu próprio organismo. Era a medicina fetal que surgia, possibilitando, além do diagnóstico e prognóstico de doenças e malformações, prescrever tratamento, à semelhança da instituída na assistência tradicional do bebê e do adulto. A partir de 1963, quando Liley relatou a primeira transfusão intrauterina em caso grave de eritroblastose fetal, diversos tratamentos médicos e cirúrgicos do concepto têm sido propostos, com variáveis graus de eficácia e segurança. O acesso ao sangue fetal desde 1973 era feito por fetoscopia, introduzida por De Lia, com risco para o feto de 3 a 4%. Em 1983, Daffos introduziu a cordocentese – punção do cordão umbilical guiada por ultrassonografia – com risco menor (2%). A cordocentese pode ser utilizada a partir de 18 a 20 semanas até o termo, repetida e ambulatorialmente; apresenta significativa serventia em medicina fetal – diagnóstico pré-natal, avaliação do bem-estar fetal, terapia fetal e farmacologia pré-natal. A terapia fetal está atualmente consagrada na transfusão intravascular (TIV) na doença hemolítica perinatal (DHPN), na laser-ablação fetoscópica na síndrome de transfusão gemelogemelar (STGG) e na administração de corticoide no parto pré-termo, temas que não serão aqui tratados, pois já foram amplamente discutidos em capítulos anteriores.
■ Terapia médica ■ Arritmias Ocorrem em aproximadamente 1% dos fetos e têm potencial mórbido para o concepto em 10% dos casos, podendo levar à hidropisia e à morte.
■ Tipos de arritmias Podem ser classificadas de acordo com o ritmo e a frequência cardíaca. ▶ Extrassístoles. São as arritmias mais frequentes, representando 85% do total; a maioria delas representa contrações prematuras atriais. O prognóstico é benigno, embora em 1 a 2% das vezes as arritmias estejam acompanhadas por anomalias estruturais e, em igual percentual, possam evoluir para taquicardia persistente. ▶ Taquicardia (> 180 bpm). Constitui aproximadamente 10% do total de arritmias fetais, e a maioria é do tipo supraventricular paroxística. Fetos com ritmo muito rápido e persistente podem desenvolver hidropisia e, por esse motivo, são tratados com fármacos antiarrítmicos administrados à mãe. ▶ Bradicardia (< 110 bpm). Corresponde a cerca de 5% do total de arritmias. Fetos com bloqueio cardíaco completo e anatomia normal do coração podem ter, em associação, lúpus
eritematoso sistêmico; outros apresentam anormalidades anatômicas. A bradicardia sinusal pode ser reflexo de compressão do cordão, da cabeça ou de hipoxia fetal. Quando ocorre bloqueio cardíaco completo, mas o coração é anatomicamente normal e a frequência cardíaca é superior a 50 bpm, o feto pode se desenvolver normalmente. Cerca de 40% dos fetos com bloqueio cardíaco completo apresentam anomalias estruturais, o que pode determinar hidropisia e morte in utero ou logo após o nascimento. As arritmias fetais constituem as principais indicações da ecocardiografia fetal.
■ Tratamento Na extrassistolia, sem anormalidade anatômica, o tratamento é expectante, observando-se possível aparecimento de taquicardia persistente (1 a 2%), que pode levar à insuficiência cardíaca congestiva. Na taquicardia, é amplo o emprego de antiarrítmicos para obter-se a cardioversão farmacológica – digoxina oral na mãe ou, como segunda opção, flecainida ou amiodarona. Na bradicardia de causa autoimune, sem anomalia estrutural do coração, utiliza-se a dexametasona (corticoide que atravessa a barreira placentária), o que maximiza o seu efeito terapêutico no feto.
■ Terapia cirúrgica Pré-requisitos para a sua realização: • Diagnóstico precoce da anomalia • Anomalia isolada e cariótipo normal • Prognóstico fetal sombrio sem a cirurgia • Cirurgia indicada em época oportuna (o mais precoce possível) para reverter o quadro fisiopatológico • Gestação < 32 semanas (depois dessa época, cirurgia pós-natal) • Risco materno baixo • Grupo multidisciplinar experimentado e centro terciário. Os tipos de cirurgia podem ser classificados em: • Cirurgia fetal aberta • Cirurgia fetoscópica percutânea • Intervenção minimamente invasiva guiada por ultrassonografia.
■ Cirurgia fetoscópica percutânea A ocorrência de sucessivos insucessos da cirurgia fetal aberta, que não prescinde da
laparotomia e da histerotomia, fez surgir a cirurgia fetoscópica percutânea. Os pequenos locais de punção uterina reduziriam a morbidade das grandes histerotomias que acompanham as cirurgias fetais abertas – parto pré-termo, hemorragia, perda de líquido amniótico, ruptura uterina, assim como a necessidade de cesárea após a cirurgia.
■ Uropatia obstrutiva baixa A uropatia obstrutiva baixa ocorre por diversos processos: no feto masculino, a causa principal é a válvula de uretra posterior (VUP), responsável por cerca de 60% dos casos; outra causa é a atresia de uretra (Figura 61.1). A VUP incide em 1:5.000 a 1:8.000 dos bebês do sexo masculino. A história natural da uropatia obstrutiva baixa mostra, consistentemente, elevada morbidade e mortalidade fetal. Sem tratamento, a VUP leva à hidronefrose e à insuficiência renal progressiva in utero, determinando oligoidramnia e hipoplasia pulmonar – potencialmente letal. A idade da gravidez na qual se estabelece a oligoidramnia é crucial para o desenvolvimento dos pulmões. Oligoidramnia acentuada entre 16 e 25 semanas de gravidez, durante a fase canalicular do desenvolvimento dos pulmões, está associada à mortalidade neonatal > 90%.
■ Válvula de uretra posterior O diagnóstico é feito pela ultrassonografia que mostra bexiga dilatada, com paredes espessas (megabexiga) e uretra posterior aumentada (“sinal do buraco de fechadura”) (Figura 61.2). Os ureteres também estão dilatados e a hidronefrose é bilateral (Figura 61.3). Além disso, a obstrução uretral frequentemente resulta na inabilidade do feto em urinar no líquido amniótico (LA), o que acarreta oligoidramnia moderada/acentuada. Quando acentuada, a oligoidramnia leva à sequência de Potter: fácies de Potter (implantação baixa das orelhas, hipertelorismo, micrognatia), contratura dos membros inferiores e hipoplasia pulmonar. A megabexiga e o megaureter podem determinar a ocorrência da síndrome prune-belly like (Figura 61.4).
Figura 61.1 ■ Válvula de uretra posterior. (Adaptada de Montenegro e Rezende Filho, 1998.)
Figura 61.2 ■ Ultrassonografia evidenciando megabexiga e dilatação da uretra proximal, características da válvula de uretra posterior.
Mais da metade dos fetos com obstrução uretral exibe oligoidramnia acentuada; desses, aproximadamente 80% morrem. A normoidramnia, no entanto, nem sempre é sinal de bom prognóstico. A existência de cistos corticais renais invariavelmente indica displasia, embora eles possam estar ausentes em 40% dos casos. Outro sinal de displasia renal é o aumento da ecogenicidade do parênquima renal. A racionalidade por trás do tratamento da VUP é restaurar o volume do líquido amniótico no segundo trimestre, a fim de minimizar a hipoplasia pulmonar e aliviar a pressão no sistema urinário para atenuar a displasia do parênquima renal. São pré-requisitos para a cirurgia fetal: idade da gravidez < 32 semanas, ausência de outras malformações, cariótipo normal e concepto masculino.
Figura 61.3 ■ Medida da dilatação da pelve renal em seu diâmetro anteroposterior (AP). A pieloectasia ocorre quando há pequena dilatação pielocalicial (> 4 mm e < 10 mm) e a hidronefrose está presente, uma vez que a dilatação da pelve renal seja ≥ 10 mm. (Adaptada de Montenegro et al., 2001.)
Figura 61.4 ■ Sequência de Potter. A obstrução uretral leva à oligodramnia acentuada, que determina a ocorrência de fácies de Potter, hipoplasia pulmonar e contratura dos membros inferiores por aconchegamento exagerado. A dilatação do sistema urinário pode levar à síndrome de prune-belly like.
A cirurgia fetal proposta é a derivação vesicoamniótica percutânea, guiada pela ultrassonografia (Figura 61.5). Mais recentemente, foi aventada a cistoscopia fetal percutânea, que alia ao tratamento a vantagem de possibilitar o diagnóstico diferencial entre a VUP e a atresia uretral, pois ambas podem apresentar aparência similar à ultrassonografia. Se houver atresia uretral, a laser-ablação não poderá ser realizada, restando como única opção a VUP. Outra vantagem da cistoscopia fetal é ser definitiva, uma vez que a laser-ablação elimina a necessidade da cirurgia urológica na criança após o nascimento.
Figura 61.5 ■ Derivação vesicoamniótica percutânea.
Consistentes com a revisão sistemática (2010), a investigação randomizada PLUTO (percutaneous vesicoamniotic shunting in lower urinary tract obstruction) (2013), já encerrada, mostrou resultados do shunt vesicoamniótico desanimadores. Embora a sobrevida fetal tenha sido maior no grupo submetido à cirurgia, a chance de recém-nascido sobreviver com função renal normal até a idade de 2 anos foi muito baixa (15%).
■ Defeitos do tubo neural Os defeitos do tubo neural (DTN) incluem principalmente a anencefalia, a espinha bífida e a encefalocele. Essas malformações decorrem da falência do processo normal de fusão do tubo neural no desenvolvimento do embrião. Os DTN ocorrem em 1 a 5:1.000 gestações, e a anencefalia e a espinha bífida correspondem a 95% dos casos. A etiologia é, em geral, multifatorial, e o risco de recorrência é de 3 a 5%. O diagnóstico pré-natal dos DTN, antes feito pela dosagem da alfafetoproteína (AFP), no LA ou no soro materno (AFP-SM), é atualmente realizado por ultrassonografia morfológica de 20 a 23 semanas. Cerca de 90% dos DTN são ditos abertos (sem epitélio de revestimento), o que se reflete no aumento da AFP-LA e da AFP-SM. ▶ Anencefalia. A anencefalia é caracterizada pela ausência da calota craniana e do telencéfalo (Figura 61.6). A sua história natural é evidenciada pela sequência acrania, exencefalia e anencefalia (Figura 61.7). O diagnóstico sonográfico é possível ainda no primeiro trimestre, quando a imagem típica é a do perfil alongado da fronte fetal. O contorno hiperecogênico da cabeça (crânio) e a imagem em borboleta do cérebro (plexos coroides) excluem a anencefalia e a holoprosencefalia na ultrassonografia de primeiro trimestre (Figura 61.8). No segundo trimestre, o diagnóstico, com acurácia de 100%, é feito pela acrania e pela face de sapo. A polidramnia é achado frequente. A letalidade em 100% dos casos e a permissão legal autorizam a interrupção da gravidez.
Figura 61.6 ■ Ultrassonografia tridimensional de feto com anencefalia no segundo trimestre.
Figura 61.7 ■ História natural da anencefalia: sequência acrania, exencefalia e anencefalia. (Adaptada de Montenegro et al., 2001.)
Figura 61.8 ■ Exclusão de anencefalia e de holoprosencefalia na ultrassonografia de primeiro trimestre.
▶ Espinha bífida. A espinha bífida é a mais comum anomalia congênita do SNC compatível com a vida. A espinha bífida cística configura a protrusão do defeito espinal, podendo determinar a meningocele – herniação das meninges e do líquido cefalorraquidiano (10% dos casos) – e a mielomeningocele, forma mais frequente de espinha bífida cística (90% dos casos), caracterizada
por herniação da medula e das meninges em um saco cheio de líquido cefalorraquidiano (Figura 61.9). Quase todos os casos de mielomeningocele apresentam a malformação de Arnold-Chiari II, que inclui a herniação do cérebro posterior e também a hidrocefalia. Apesar de sua possível prevenção com o ácido fólico, a mielomeningocele – o defeito mais grave de espinha bífida – ocorre aproximadamente em 1:1.500 nascimentos (ACOG, 2013). É complicada por hidrocefalia, necessidade de derivação ventriculoamniótica, defeitos motores e cognitivos, lesões do intestino e da bexiga e deficiências sociais e emocionais. Nascidos vivos com mielomeningocele apresentam taxa de mortalidade de 10%. Os que sobrevivem sofrem de incapacidades maiores, incluindo a paralisia dos membros inferiores, disfunção vesical e intestinal. Apesar da cirurgia pós-natal, a lesão da medula e dos nervos periféricos, evidenciada ao nascimento, é irreversível. ▶ Cirurgia fetal aberta. O MOMS (Management of Myelomeningocele Study) estudou o reparo prénatal antes de 26 semanas, em fetos sem outras anomalias e com cariótipo normal, e mostrou redução na taxa de morte e na necessidade de shunt na idade de 12 meses, diminuição de 1/3 da herniação do cérebro posterior, assim como evidenciou ser maior a taxa de locomoção independente (Figura 61.10). No entanto, a cirurgia fetal aberta aumentou a incidência de parto pré-termo, bradicardia fetal, descolamento prematuro da placenta, edema de pulmão, transfusão sanguínea no parto e, em 35% dos casos, afinamento e deiscência da cicatriz uterina (incisão corporal). Concluindo, o reparo a céu aberto da mielomeningocele reduz a necessidade de derivação e melhora a função motora do bebê, mas está associado a riscos maternos e fetais importantes. A Myelomeningocele (MMC) Maternal-fetal Task Force (2013), representando 12 sociedades norte-americanas, estabeleceu pontos-chave para auditar futuras investigações envolvidas no MOMS, tentando definir definitivamente os reais benefícios dessa cirurgia. ▶ Fetoscopia percutânea. Ainda em carácter experimental, por meio da fetoscopia percutânea, é colocado um adesivo de celulose biossintética para a proteção da lesão (Figura 61.11). Não traz riscos maternos e fetais importantes e substituiria com vantagens a cirurgia fetal aberta caso estivessem consagrados os seus resultados.
■ Hidrocefalia Hidrocefalia ou ventriculomegalia são termos utilizados indiferentemente e ambos se referem à dilatação anormal dos ventrículos laterais. A sua incidência estimada é de 0,5 a 3:1.000 nascidos vivos. O tipo mais comum de hidrocefalia é a estenose do aqueduto de Sílvio, que representa 30 a 40% do total de casos. Em torno de 1 a 3% dos fetos, a estenose do aqueduto é ligada ao cromossomo X, afetando fetos masculinos, sendo as mulheres portadoras. Outras anomalias associadas intracranianas ou extracranianas ocorrem em 70 a 80% dos casos. O polidrâmnio está presente em 30% dos casos e o oligoidrâmnio em 20%.
Figura 61.9 ■ Classificação da espinha bífida: espinha bífida oculta, meningocele e mielomeningocele. (Adaptada de Montenegro et al., 2001.)
Figura 61.10 ■ Reparo pré-natal da mielomeningocele. (Adaptada de Adzick et al., 2011.)
Figura 61.11 ■ Cirurgia fetoscópica na mielomeningocele.
A ventriculomegalia isolada surge em percentual menor e o prognóstico é muito melhor. Recentemente, tem sido associada a ventriculomegalia leve (11 a 15 mm) a fetos com trissomia 21 (risco de 3%). O diagnóstico precoce de ventriculomegalia nem sempre é fácil ao exame ultrassonográfico, sendo geralmente feito na ultrassonografia morfológica de segundo trimestre. O átrio ventricular é estrutura ecogênica identificada pela existência do plexo coroide em seu interior. O átrio pode ser medido no plano do diâmetro biparietal (DBP), no corno posterior do ventrículo lateral (Figura 61.12). A sua mensuração não depende da idade gestacional e considera-se normal o valor de até 10 mm. As ventriculomegalias podem ser classificadas em leve e grave, dilatação atrial entre 11 e 15 mm e > 15 mm, respectivamente. O diagnóstico da hidrocefalia pela medida do DBP é bem mais tardia: DBP > 109 mm é sinal de hidrocefalia. A conduta na hidrocefalia inclui a ultrassonografia morfológica para buscar as anomalias associadas, a ecocardiografia fetal, o cariótipo e a pesquisa de infecção (citomegalovírus, toxoplasmose). ▶ Prognóstico. A hidrocefalia pré-natal é muito mais grave que a pós-natal: 75% apresentam outras anormalidades, 1/3 sobrevive o suficiente para o tratamento cirúrgico neonatal e apenas 7,5% apresentam desenvolvimento psicomotor normal. ▶ Cirurgia. O tratamento obstétrico da hidrocefalia depende da idade gestacional na qual se fez o diagnóstico. A interrupção da gravidez pode estar indicada antes da viabilidade fetal. A operação cesárea pode ser considerada quando a macrocefalia impedir o parto vaginal (DBP > 100 mm). O tratamento de eleição é a punção craniana guiada pela ultrassonografia. A cefalocentese está reservada ao feto morto (Capítulo 54). A colocação pré-natal de derivação ventrículoamniótica suscitou enorme interesse, mas os resultados foram desanimadores. O melhor tratamento ainda é a derivação ventricular no período pós-natal, nos casos de hidrocefalia obstrutiva.
■ Malformacões torácicas As principais malformações torácicas pulmonares estão representadas pela malformação adenomatóidea cística (MAC), sequestro pulmonar, hidrotórax e cisto broncogênico. A hérnia diafragmática congênita (HDC) está incluída no diagnóstico diferencial (Figura 61.13 E).
Figura 61.12 ■ Hidrocefalia grave com plexo coroide “pendente”. VM, ventriculomegalia. (Adaptada de Montenegro e Rezende Filho, 1998.)
Figura 61.13 ■ Malformações torácicas fetais. (Adaptada de Montenegro e Rezende Filho, 1998.)
▶ Toracocentese percutânea. A toracocentese guiada por ultrassonografia pode estar indicada na MAC tipo I (macrocística) (Figura 61.14) e no hidrotórax primário (quilotórax) (Figura 61.15).
■ Hérnia diafragmática congênita A hérnia diafragmática congênita (HDC) de Bochdalek ocorre no segmento posterolateral do diafragma, preferentemente à esquerda (Figura 61.16).
Figura 61.14 ■ Tipos de malformação adenomatóidea cística. (Adaptada de Montenegro e Rezende Filho, 2008.)
A alta morbidade e a mortalidade associadas à HDC estão relacionadas principalmente com outras anomalias estruturais e aneuploidias. O prognóstico é melhor nas hérnias localizadas à esquerda, certamente as mais comuns. ▶ Oclusão da traqueia por balão endoluminal. A técnica denominada FETO (fetoscopic tracheal occlusion) consiste em fetoscopia na colocação na traqueia de balão endoluminal (Figura 61.17). A obstrução temporária da traqueia, após a insuflação do balão endoluminal, determina acúmulo de líquido nos pulmões que, ao se expandirem, redirecionam as vísceras herniadas de volta para o abdome, descomprimindo os pulmões, impedindo a hipoplasia pulmonar. O grupo europeu FETO (2011) reuniu a maior casuística sobre HDC, totalizando 210 casos. A cirurgia somente foi indicada na HDC isolada, com fígado alto e/ou hipoplasia pulmonar grave (relação pulmão-cabeça [RPC] < 1,0). O procedimento é realizado entre 26 e 28 semanas da
gestação, e a reversão, a retirada do balão por fetoscopia, com 34 semanas (Figura 61.18). Sem a operação percutânea FETO, a sobrevida na hipoplasia grave é de 24% nas hérnias localizadas à esquerda e de 0% nas que ficam à direita; com a cirurgia fetoscópica, a sobrevida do bebê passou para 50 e 35%, respectivamente. A principal complicação da FETO é a ruptura prematura das membranas pré-termo (RPMP) que ocorre em quase 50% dos casos. Atualmente, o Grupo Europeu FETO investiga o tratamento da HDC em casos com hipoplasia pulmonar moderada (RPC < 1,4), realizado entre 32 e 34 semanas de gestação.
Figura 61.15 ■ Toracocentese em hidrotórax unilateral. (Adaptada de Montenegro e Rezende Filho, 1998.)
Figura 61.16 ■ Hérnia diafragmática de Bochdaleck.
Figura 61.17 ■ Tratamento antenatal da hérnia diafragmática congênita (HDC).
Figura 61.18 ■ Protocolo de tratamento da hérnia diafragmática congênita (HDC).
■ Teratoma sacrococcígeo Tumor localizado na região sacrococcígea com incidência de 0,25:10.000 nascidos vivos, sendo mais comum no sexo feminino, na proporção de 4:1. (Figuras 61.19 e 61.20). A história natural do teratoma sacrococcígeo de grande volume está associada à insuficiência cardíaca com débito alto pela grande vascularização do tumor (fístulas arteriovenosas), com hidropisia e placentomegalia, e elevada mortalidade fetal. Além disso, a hidropisia e a placentomegalia acabam por conduzir a grávida a uma condição grave, conhecida como síndrome do “espelho” ou de Ballantyne (1892), na qual a mulher mimetiza o estado doente do feto. Assim, ela desenvolve progressivamente sintomas de toxemia, com vômitos, hipertensão, proteinúria, edema periférico e pulmonar, todos provavelmente consequência de fatores vasoativos ou toxinas endoteliais liberadas pela placenta. A cirurgia do teratoma deve ser feita antes de a placentomegalia, a hidropisia e a síndrome do “espelho” estarem estabelecidas. A melhor técnica é a ablação por radiofrequência (RFA) guiada por fetoscopia, quando é possível dominar com apuro a potência da radiofrequência, coagulando apenas vasos profundos remotos do complexo esfíncter anorretal, evitando-se assim a necrose do ânus, vagina, bexiga e nervo ciático.
Figura 61.19 ■ Tipos de teratoma sacrococcígeo. Tipo I. Massa predominantemente externa, com mínimo componente pré-sacral. Tipo II. Massa predominantemente externa, com componente intrapélvico significativo. Tipo III. Massa predominantemente interna, com extensão abdominal. Tipo IV. Massa totalmente interna. (Adaptada de Montenegro e Rezende Filho, 1998a.)
Figura 61.20 ■ Grande teratoma sacrococcígeo cístico.
■ Pontos-chave A terapia fetal teve seu êxito assegurado na transfusão intravascular (TIV) por cordocentese na doença hemolítica perinatal (DHPN), na laser-ablação fetoscópica na síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG) e no uso de corticoide para o amadurecimento do pulmão fetal. As arritmias cardíacas fetais (extrassístoles, bradicardia, taquicardia) constituem as principais indicações para a ecocardiografia fetal.
Os pré-requisitos para a realização da cirurgia in utero são: diagnóstico precoce das anormalidades; anomalia isolada e cariótipo normal; prognóstico fetal sombrio sem intervenção; cirurgia indicada em tempo oportuno e antes de 32 semanas; risco materno baixo; grupo multidisciplinar experiente e centro terciário. O melhor exemplo da cirurgia fetal aberta é o reparo da mielomeningocele (MOMS). O futuro da cirurgia fetal é a fetoscopia percutânea. A STGG é a maior indicação de cirurgia fetal (laser-ablação fetoscópica). A cirurgia de eleição para a hérnia diafragmática congênita é a oclusão da traqueia por balão endoluminal (FETO). A cirurgia da válvula de uretra posterior (VUP) pela derivação vesicoamniótica tem resultados desanimadores (PLUTO). A toracocentese guiada pela ultrassonografia está indicada no hidrotórax primário (quilotórax) e na malformação adenomatóidea cística tipo I (macrocística). A derivação ventriculoamniótica in utero para a correção da hidrocefalia está em desuso, e a sua oportunidade é a cirurgia pós-natal.
■ Etiopatogenia ■ Diagnóstico ■ Prognóstico ■ Tratamento
A hidropisia fetal é definida como o excesso de água total no organismo do feto. A hidropisia ocorre quando a produção do líquido intersticial pela ultrafiltração capilar excede a taxa de retorno para a circulação via vasos linfáticos. O termo hidropisia fetal deve ser utilizado quando houver líquido em 2 cavidades (ascite, derrame pleural ou pericárdico) ou em 1 cavidade apresentando anasarca (espessamento da pele e do tecido subcutâneo > 5 mm, especialmente do couro cabeludo e do tórax). O polidrâmnio e o espessamento da placenta (> 6 cm) estão frequentemente associados [Society of Obstetricians and Gynaecologists of Canada (SOGC), 2013]. Os termos ascite, derrame pleural e pericárdico, isoladamente, implicam etiologia mais específica e prognóstico diferente. A hidropisia fetal pode ser dividida em hidropisia fetal imune, como a vista na doença hemolítica perinatal (DHPN) (Capítulo 31) e hidropisia fetal não imune (HFNI), descrita pela primeira vez por Edith Potter, em 1943, e a única a ser aqui analisada. Hoje, com a efetiva profilaxia da aloimunização Rh, especialmente nos países desenvolvidos, a HFNI representa aproximadamente 90% dos casos de hidropisia fetal. A incidência da HFNI é de cerca 1 em 3.000 nascimentos. A taxa de mortalidade perinatal pode atingir 90%.
■ Etiopatogenia Diversas causas são responsáveis pelo desenvolvimento da HFNI, estando implicados distúrbios fetais, placentários e maternos. As causas (ou associações) estão identificadas em cerca de 80% das vezes, sendo o restante rotulado de idiopático. As causas podem ser agrupadas em 14 categorias (Tabela 62.1).
Tabela 62.1 ■ Classificação etiológica da hidropisia fetal não imune (HFNI). Etiologia
Percentual
Cardiovascular
21,7%
Hematológica
10,4%
Cromossomial
13,4%
Sindrômica
4,4%
Displasia linfática
5,7%
Erros inatos do metabolismo
1,1%
Infecções
6,7%
Malformações torácicas
6,0%
Malformações do sistema urinário
2,3%
Tumores extratorácicos
0,7%
STGG/placentária
5,6%
Gastrintestinais
0,5%
Diversas
3,7%
Idiopáticas
17,8%
STGG, síndrome de transfusão gêmelo-gemelar. Adaptada de Bellini et al., 2009.
A maioria dos distúrbios descritos estão interligados a 3 mecanismos fisiopatológicos (Figura 62.1): baixa da pressão oncótica no plasma, aumento da pressão venosa central e redução do fluxo linfático.
Figura 62.1 ■ Algoritmo da fisiopatologia da hidropisia fetal não imune (HFNI). (Adaptada de Bellini et al., 2009.)
A insuficiência cardíaca primária pode ocorrer em casos de infecção intrauterina que evoluem com miocardite (parvovírus B19). Distúrbios que podem determinar insuficiência cardíaca por débito alto incluem principalmente o corioangioma da placenta, o teratoma sacrococcígeo e a síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG). O corioangioma e o teratoma sacrococcígeo conduzem à insuficiência cardíaca por débito alto pela hipervascularização dos tumores (derivações arteriovenosas). Na STGG, ambos os fetos podem sofrer hidropisia, o receptor por hipervolemia, e o doador por anemia. A obstrução do fluxo venoso ou linfático pode decorrer de hidrotórax, malformação adenomatóidea cística (MAC), hérnia diafragmática congênita (HDC). O desenvolvimento anormal ou retardado do sistema linfático explica a hidropisia nas anomalias cromossomiais. A anemia fetal pode resultar de diminuição na produção de hemácias, hemoglobina defeituosa (hemoglobina de Bart na alfatalassemia) ou hemólise aumentada. A hidropisia subsequente pode
desenvolver-se pela combinação da insuficiência cardíaca por débito alto e da hipertensão porta consequente à hematopoese extramedular no fígado, resultando em compressão da vasculatura hepática. Quando ambos os pais têm o traço alfatalassêmico, cada gravidez tem 25% de chance de desenvolver a doença de Bart (alfatalassemia com hidropisia fetal) (Figura 62.2).
Figura 62.2 ■ Doença de Bart – responsável pela alfatalassemia com hidropisia fetal.
Não há transferência das cadeias α para a hemoglobina fetal (HbF), normalmente α2, γ2, e as cadeias γ combinam-se, formando a hemoglobina de Bart (γ4). Por fim, nem sempre é possível classificar adequadamente pacientes dos grupos de distúrbios cromossomiais ou sindrômicos (aproximadamente 18%) em 1 das 3 vias fisiopatológicas descritas.
■ Diagnóstico Na maioria das pacientes, a ultrassonografia é a única maneira de diagnosticar a hidropisia fetal. A discrepância entre o tamanho uterino e a idade da gravidez costuma ser a principal indicação para o exame sonográfico. A paciente também relata diminuição dos movimentos fetais. Em 1o lugar, deve ser excluída a hidropisia imune pelo teste de Coombs indireto. A história familiar e obstétrica materna e os estudos hematológicos podem identificar a origem da HFNI, incluindo alfatalassemia (eletroforese da hemoglobina, teste de DNA do casal), distúrbios metabólicos (erros inatos do metabolismo) e sorologia para infecções intrauterinas. A maioria dos casos requer procedimentos invasivos, como a amniocentese: reação em cadeia da polimerase (PCR) do líquido amniótico para parvovírus B19, citomegalovírus, toxoplasmose, teste DNA para alfatalassemia e testes metabólicos específicos. A cordocentese é efetiva para
avaliar distúrbios hematológicos fetais (eletroforese da hemoglobina), proteinemia, e cariótipo [inclusive pela moderna técnica de avaliação cromossomial por microarranjo (CMA)] (SOGC, 2013).
■ Ultrassonografia O diagnóstico de hidropisia fetal é confirmado pela identificação de 2 ou mais cavidades com coleção líquida ou um derrame associado a anasarca (Figuras 62.3 a 62.5). A procura de anomalia fetal estrutural pode levar ao diagnóstico da causa da HFNI. A anormalidade fetal estrutural pode envolver qualquer órgão ou sistema e está presente em cerca de 40% dos casos. A ecocardiografia fetal é um exame diagnóstico indispensável, visto que as causas cardíacas ocorrem em aproximadamente 20% dos casos. A ultrassonografia revela vários padrões de acúmulo de líquido: ascite, derrame pleural ou pericárdico, anasarca, polidrâmnio e placentomegalia (espessura > 6 cm). A hidropisia precoce no 1o trimestre pode manifestar-se por translucência nucal (TN) aumentada e edema subcutâneo generalizado (Figura 62.5).
Figura 62.3 ■ Ascite fetal.
Figura 62.4 ■ Derrame pleural fetal.
Figura 62.5 ■ Anasarca fetal.
O derrame pericárdico pode ser o primeiro sinal da HFNI associada a anomalias cardíacas. Derrame pericárdico > 2 cm é considerado anormal. Os derrames pleurais podem ser uni- ou bilaterais e, se vultosos, podem levar à hipoplasia pulmonar por compressão dos pulmões em desenvolvimento. A HDC deve ser considerada quando há importante desvio mediastínico. É raro o derrame pleural antes de 15 semanas, exceto na síndrome de Turner. O polidrâmnio pode ser identificado em até 75% dos casos de HFNI. O edema da placenta (espessura > 3 cm entre 18 e 21 semanas e > 4 cm após) é sinal precoce de alfatalassemia, surgindo antes da hidropisia fetal. O Doppler da artéria cerebral média através da velocidade sistólica máxima é um valioso exame não invasivo para avaliar o grau de anemia fetal (parvovirose B19, alfatalassemia). A autópsia fetal é necessária, assim como o exame da placenta, não só para o diagnóstico do caso como para o futuro aconselhamento.
■ Prognóstico O prognóstico da HFNI é muito ruim, com taxas de mortalidade entre 70 e 90%. Uma proporção expressiva de casos está acompanhada por malformações congênitas múltiplas e complexas e alterações cromossomiais que inexoravelmente conduzem ao óbito fetal. Outras causas estão associadas a massa intratorácica ou derrames pleurais que comprimem o pulmão e impedem o seu desenvolvimento normal, levando à hipoplasia. Há, ainda, o risco de parto prétermo pela sobredistensão uterina ou pelas intervenções terapêuticas. Muitas arritmias cardíacas melhoram o prognóstico pois respondem ao tratamento farmacológico in utero. A hidropisia fetal, por sua vez, pode resolver-se se a anemia fetal for corrigida por transfusão intravascular (TIV), como na alfatalassemia e na parvovirose B19. A resolução espontânea da hidropisia pode ocorrer no corioangioma e na parvovirose B19.
A HFNI pode complicar a gravidez pela associação à síndrome do “espelho” (síndrome de Ballantyne, 1892). Na síndrome do “espelho”, a mulher mimetiza a sintomatologia do feto, podendo simular pré-eclâmpsia, e, pela sua gravidade, pode obrigar à interrupção da gravidez.
■ Tratamento A conduta obstétrica na HFNI envolve diagnóstico pré-natal precoce, exame sonográfico pormenorizado, parto pré-termo indicado e atendimento em centro terciário. Ocasionalmente há terapêutica específica a ser realizada in utero, como fármacos antiarrítmicos para corrigir a taquicardia fetal, ou TIV para tratar a anemia, como em casos de alfatalassemia, parvovirose B19 e hemorragia fetomaterna. A toracocentese ou a colocação de derivação toracoamniótica pode ser realizada para resolver o derrame pleural. A cirurgia do teratoma sacrococcígeo e da MAC tem sido relatada para solucionar a hidropisia fetal. A toxoplasmose pode ser tratada alternando-se ciclos de espiramicina com sulfadiazina/pirimetamina. A sífilis é uma causa de HFNI potencialmente tratável, por meio da penicilina intravenosa em altas doses administrada à mãe até a idade gestacional compatível com a sobrevida do bebê.
■ Pontos-chave O termo hidropisia fetal deve ser utilizado para caracterizar a presença de líquido em 2 cavidades (ascite, derrame pleural ou pericárdico) ou em 1 cavidade no caso de anasarca (espessamento da pele e do tecido subcutâneo). A hidropisia fetal pode ser imune, como na doença hemolítica perinatal (DHPN), ou não imune (HFNI), esta última ocorrendo em 1:3.000 nascimentos. A hidropisia fetal não imune (HFNI) é idiopática em quase 20% dos casos; nos demais 80% dos casos, está associada a anomalias cardíacas, torácicas, cromossômicas, hematogênicas, síndrome de transfusão gêmelo-gemelar (STGG), infecções, anormalidades da placenta. Para o diagnóstico da hidropisia fetal não imune (HFNI), o 1o passo é excluir a hidropisia imune pelo teste de Coombs. A ultrassonografia é o procedimento mais importante para diagnosticar hidropisia, anormalidades estruturais, polidrâmnio e placentomegalia. O Doppler da artéria cerebral média avalia a anemia fetal. A ecocardiografia fetal é um exame indispensável, visto que as anomalias cardíacas ocorrem em 20% dos casos. A amniocentese e, principalmente, a cordocentese estão indicadas para avaliar distúrbios hematológicos e metabólicos, proteinemia e cariótipo. O prognóstico fetal é muito ruim e a taxa de mortalidade pode atingir 70 a 90%. A mulher pode desenvolver a síndrome do “espelho”. Algumas possibilidades terapêuticas são: fármacos antiarrítmicos, transfusão intravascular, tratamento da toxoplasmose e da sífilis, toracocentese etc. A necrópsia fetal e o exame da placenta constituem o padrão-ouro para o diagnóstico e para o aconselhamento futuro.
63 Mortalidade Materna e Perinatal
64 Obstetrícia Médico-Legal e Forense
■ Mortalidade materna ■ Mortalidade perinatal
■ Mortalidade materna ■ Conceitos e definições A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2010) define a mortalidade materna da seguinte maneira: • Morte materna é a morte da grávida ou após 42 dias do término da gravidez, qualquer que seja a duração ou o local da gestação, por qualquer causa relacionada ou agravada pela gravidez, ou por conduta relacionada com ela, excluindo-se fatores acidentais ou incidentais. Essa definição ajuda a identificar as mortes maternas, com base em suas causas, como diretas ou indiretas ○ Morte materna obstétrica direta é aquela resultante de complicações obstétricas da gravidez, parto e puerpério, intervenções, omissões, tratamento incorreto ou cadeia de eventos resultantes de qualquer das causas mencionadas. Assim, por exemplo, a hipertensão e a hemorragia obstétricas, ou complicações da anestesia ou da cesárea são classificadas como morte materna direta ○ Morte materna obstétrica indireta é aquela resultante de doenças preexistentes ou que se desenvolvem durante a gravidez, mas não de causas obstétricas diretas, embora agravadas pelas modificações fisiológicas da gestação. Mortes por complicações de doenças cardíacas ou renais, por exemplo, são consideradas mortes maternas indiretas • Nascido vivo (NV) é a expulsão ou a extração completa do feto, independentemente da duração da gravidez, que, depois da separação, respira ou apresenta quaisquer outros sinais de vida, tais como batimentos do coração, pulsação do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária, estando ou não cortado o cordão umbilical ou desprendida a placenta • Razão de mortalidade materna (RMM) é a quantidade de mortes maternas obstétricas (diretas e indiretas) para determinado período por 100.000 NV, representada pela fórmula:
• Morte materna não obstétrica é aquela decorrente de causas acidentais ou incidentais não relacionadas com a gravidez ou com o seu manuseio. Esses óbitos não são incluídos no cálculo da RMM.
■ Mortalidade materna no mundo Em 2010, a RMM registrada em 181 países passou de 210 por 100.000 NV. Os países em
desenvolvimento são responsáveis por 99% desses óbitos (Tabela 63.1). Assim, a RMM nos países em desenvolvimento (240) é 15 vezes maior do que nos desenvolvidos (16). Dos 8 Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), especificamente o ODM 5, trata de melhorar a saúde materna. Os 2 alvos do ODM 5 são reduzir a RMM em 3/4 entre os anos 1990 e 2015 e proporcionar acesso universal à saúde reprodutiva no ano de 2015. A principal causa de morte materna na África e na Ásia é a hemorragia (> 30%). Na América Latina e no Caribe, destacam-se os distúrbios hipertensivos (26%) e depois a hemorragia (21%). Nos países desenvolvidos despontam outras causas obstétricas diretas de morte materna (21%), e depois a hipertensão (16%) e a hemorragia (15%) (OMS, 2006).
■ Mortalidade materna no Brasil A RMM “ajustada” no Brasil em 2007 foi de 75:100.000 NV. As projeções até 2015 vs. o ODM 5 podem ser vistas na Figura 63.1. Infelizmente, o país não atingirá o ODM 5. A RMM por causas específicas, no Brasil, em 1990, 2000 e 2007, em todos os anos pesquisados, revela como as principais causas: hipertensão, hemorragia e infecção (Figura 63.2).
Tabela 63.1 ■ Razão de mortalidade materna (RMM) no Brasil e no mundo no ano de 2008. País
RMM por 100.000 nascidos vivos
Japão
7
China
40
Índia
254
Austrália
5
Cuba
40
Haiti
582
Hungria
7
Rússia
34
Áustria
6
Itália
4
Reino Unido
8
Colômbia
46
Argentina
49
Chile
21
Uruguai
25
Brasil
55
Egito
43
Canadá
7
Estados Unidos
17
República Central Africana
1.570
Figura 63.1 ■ Razão de mortalidade materna (RMM) no Brasil entre 1990 e 2007 e projeção até 2015 vs. objetivo de desenvolvimento do milênio 5 (ODM). (Adaptada de CGIAE/DASIS/SVS/MS. Saúde Brasil, 2009.)
No Brasil, a hipertensão é a principal causa de morte materna – 26% (OMS, 2006).
■ Morbidade materna grave Conceitua-se morbidade materna grave ou maternal near miss como uma complicação que ocorra durante a gravidez, o parto ou nos 42 dias iniciais do puerpério, e que coloque em risco a vida da mulher (OMS, 2009).
Figura 63.2 ■ Razão de mortalidade materna (RMM) por causas específicas de morte materna/100.000 nascidos vivos (NV) no Brasil; 1990, 2000 e 2007. (Adaptada de MS-SIM/DASIS/SVS, 2009.)
Das grávidas admitidas em uma unidade de terapia intensiva (UTI), dois terços são por complicações obstétricas, a maioria delas sendo distúrbios hipertensivos ou hemorrágicos. As complicações médicas não obstétricas são as mais comuns no outro um terço de mulheres. A incidência de pacientes grávidas que necessitaram de cuidados críticos em uma série foi de 0,76% de todos os partos e a mortalidade materna nesse grupo atingiu 4,9% e a mortalidade perinatal, 25%. A morbidade materna grave relaciona-se diretamente com a mortalidade, e vem se constituindo em uma medida para avaliar os cuidados obstétricos, possibilitando, ainda, uma auditoria efetiva do sistema de saúde.
■ Mortalidade perinatal A mortalidade perinatal é um indicador de saúde que avalia o risco de um feto nascer sem qualquer sinal de vida ou, nascendo vivo, morrer na 1a semana. O aperfeiçoamento científico, técnico e assistencial não tem tido repercussões sobre a redução da mortalidade perinatal. Os óbitos dos primeiros dias de vida pouco se têm beneficiado dos progressos carreados à prática médica. A OMS (1972) conceitua a mortalidade perinatal como a soma dos óbitos intrauterinos e dos neonatais, até 7 dias, de conceptos com mais de 28 semanas de idade gestacional ou peso acima de 1.000 g. O Comitê Perinatal da International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO) (1982) conceitua a mortalidade perinatal como a soma dos óbitos intrauterinos e neonatais, até 4 semanas, de conceptos com mais de 22 semanas de idade gestacional e pesando 500 g ou mais.
A Classificação Internacional das Doenças – CID 10, conceitua o período perinatal como aquele que se estende de 22 semanas de gestação até 7 dias do nascimento. Algumas definições são necessárias para o estudo da mortalidade perinatal: ▶ Idade gestacional. É a duração da gestação, medida a partir do 1o dia da última menstruação, expressa em dias ou semanas completas [i. e., 40 semanas completas = 40 semanas + 0 dia (280 dias completos) a 40 semanas + 6 dias (286 dias completos)]. ▶ Período perinatal. Abrange a idade gestacional, que corresponde a concepto de 1.000 g (equivalente a 28 semanas completas) até os primeiros 7 dias completos (168 h completas) de vida. ▶ Morte infantil. É a morte que ocorre por qualquer causa entre o nascimento e o 1o ano de vida. ▶ Morte neonatal precoce. É o óbito de recém-nascido vivo dentro dos primeiros 7 dias completos (168 h completas) de vida. O panorama da mortalidade perinatal no mundo, segundo dados da OMS (2001) (Tabela 63.2), mostra as variações entre regiões desenvolvidas e em desenvolvimento. Destaca-se que a mortalidade perinatal, em comparação com a Europa, é 7,6 vezes maior na África; 5,3 vezes maior na Ásia; e, 2,3 vezes maior na América Latina, apontando a grande diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Ao cotejar índices de regiões e alguns estados no Brasil com características distintas de desenvolvimento, os resultados mostram situações diversas, em função de problemas de subnotificação dos óbitos (Tabela 63.3). As principais causas de mortalidade perinatal são: anoxia (ante- e intraparto), prematuridade, anomalias congênitas e tocotraumatismos. A anoxia anteparto e os problemas respiratórios neonatais são responsáveis por mais de 50% dos óbitos perinatais. Foram obtidos notáveis progressos na profilaxia da síndrome de angústia respiratória (SAR) e da doença hemolítica perinatal (DHPN), assim como do sofrimento fetal, decorrentes, respectivamente, do uso de corticoides e de surfactantes, da gamaglobulina anti-Rh e do monitoramento ante- e intraparto. A taxa de natimortalidade na Suécia, em 2009, considerada globalmente baixa, foi de 4:1.000 nascimentos. A época da natimortalidade foi dividida em 3 períodos: pré-termo (22+0-36+6), termo (37+0-40+6) e pós-termo (≥ 41+0). No pré-termo, o descolamento prematuro da placenta (DPP) e a pré-eclâmpsia/hipertensão predominaram como causas da natimortalidade e no termo/pós-termo a infecção (corioamnionite) e as complicações do cordão foram os distúrbios mais pontuais. O parto com 39 semanas minimiza a mortalidade fetal/neonatal, mas a magnitude da redução é maior em mulheres com 35 anos de idade ou mais [National Institute of Health and Human Development (NICHD), 2013]. Devido à maior morbiletalidade de crianças nascidas antes de 39 semanas, é essencial não recomendar o parto indicado não médico antes dessa data [American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), 2013].
Por outro lado, é de todo conveniente interromper a gravidez no termo-precoce (37+0-38+6 semanas), quando o parto é indicado médico, ou na vigência da ruptura prematura das membranas.
Tabela 63.2 ■ Estimativas de mortalidade perinatal (MPN) no mundo em 2004. Local
MPN/1.000 NV
Mundo
43
África
56
Ásia
47
América Latina
19
Estados Unidos
7
Europa
8
Oceania
42
NV, nascido vivo. Adaptada de World Health Organization, 2007.
Tabela 63.3 ■ Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 nascidos vivos em alguns estados da Federação e na Região Sul (1997 e 2004). Unidade da Federação e Região Sul
1997
2004
Espírito Santo
22,6
18,3
Rio de Janeiro
28,2
21,6
São Paulo
20,3
17,1
Região Sul
18,8
16,9
Distrito Federal
23,8
15,5
Adaptada de MS/SUS/SINASC/SIM.
■ Pontos-chave Mortalidade materna é o óbito da grávida, ou dentro de 42 dias do puerpério, independentemente da duração da gravidez e do local da gestação, por qualquer causa relacionada ou agravada pela gestação, ou por seu tratamento, excluindo-se fatores acidentais ou incidentais. Morte materna direta é a resultante de complicações obstétricas do estado gestacional (gravidez, parto e puerpério), de intervenções, omissões, tratamento incorreto, ou de sucessão de eventos que culminem nos fatores descritos anteriormente. Morte indireta está relacionada com doença prévia ou que apareceu e prosperou na gravidez, e embora intercorrente (de causa não obstétrica), tem seu curso agravado pelas modificações fisiológicas da gravidez. Razão de mortalidade materna (RMM):
As 3 principais causas de mortalidade materna no mundo, responsáveis por 50% de todos os óbitos, são: hipertensão, hemorragia e infecção. Idade gestacional é a duração da gravidez medida a partir do 1o dia da última menstruação, expressa em dias ou semanas. O período perinatal abrange a idade gestacional que corresponde a concepto de peso de 1.000 g (equivalente a 28 semanas), até os primeiros 7 dias (168 h) de vida. Morte neonatal precoce é a de recém-nascido vivo dentro dos primeiros 7 dias (168 h) de vida. Taxa de mortalidade perinatal (MPN):
A anoxia anteparto e os problemas respiratórios neonatais são responsáveis por mais de 50% dos óbitos perinatais. Foram obtidos notáveis progressos na profilaxia da síndrome de angústia respiratória e da doença hemolítica perinatal, assim como no monitoramento fetal ante- e intraparto, visando melhorar os resultados perinatais.
■ Inseminação artificial e fertilização in vitro ■ Conflitos materno-fetais ■ Clones humanos ■ Infanticídio ■ Abortamento provocado ■ Esterilização ■ Cesárea a pedido ■ Imperícia
Na obstetrícia forense estudam-se os problemas médico-legais relacionados com o ciclo grávido-puerperal, compreendendo fecundação, gravidez, parto, puerpério, infanticídio, abortamento e outras questões vinculadas à reprodução humana. Graças aos modernos processos de diagnóstico, seguros e precoces, não é mais possível simular a gravidez, nem fazer o oposto, dissimulá-la, ou possibilitar que a mulher, na ignorância de seu estado, negue, de boa-fé, o seu estado. Todavia, a pseudociese ainda é um problema complexo e dramático, que ocorre quando a mulher, não psicótica, acredita convictamente estar grávida sem que esteja. Na órbita do Direito Civil (nulidade de casamento, sucessão) e do Direito Penal (postergação do cumprimento de pena, atenuação de culpa ou responsabilidade, extorsão, adultério, sedução, infanticídio), há várias situações em que o exame pericial bem conduzido por especialista competente é decisivo no processo. A duração da gravidez foi fixada, pelo Código Civil, no termo mínimo de 180 dias e na duração máxima de 300. Estimar a duração da gravidez pode auxiliar na resolução de disputas sobre a filiação póstuma, legítima ou contestada, delitos sexuais, separação de corpos, novo casamento da viúva, gestação iniciada na ausência do marido etc. O diagnóstico retrospectivo de gravidez, do parto e do abortamento é mais difícil se decorrido muito tempo desses episódios. Nas horas ou dias imediatos à parturição, o exame atencioso da genitália, a averiguação dos lóquios e da apojadura, a citologia cervicovaginal, a biopsia do endométrio e os sinais remanescentes da gravidez, do parto e do abortamento têm expressão significativa.
■ Inseminação artificial e fertilização in vitro A inseminação artificial, homóloga ou heteróloga, é uma discussão antiga, mesmo praticada no homo. A inseminação apresenta aspectos morais, éticos, religiosos e legais que desde sempre receberam ampla discussão. A heteróloga, com doador, foi condenada, mas as reservas não lhe embargaram os progressos técnicos, 1o estágio da fertilização in vitro. Os bancos de sêmen, com capital doado filantropicamente, ou adquirido de doadores mercenários, alguns profissionais, são a principal fonte do material necessário à fertilização in vitro, muito difundida na atualidade, com procedimentos sofisticados e altamente eficazes. A legislação brasileira cogitou a fecundação artificial, lato sensu, mas não a regulamentou ou tampouco a disciplinou. Encarada pela Igreja Católica como ato antinatural, a fertilização in vitro não é crime pela perspectiva do direito normativo, nem há dispositivo legal que a faça punir. No entanto, a mulher casada que realiza a inseminação sem o consentimento do marido comete injúria grave, o que constitui causa legal de separação ou divórcio. O médico responsável pela inseminação pode ser
acusado de constrangimento ilegal, se a praticou sem a aquiescência da paciente, contra a sua vontade, em menor ou doente mental. A ação penal é privada e “somente se procede mediante queixa”. Com a popularização das novas técnicas de fertilização in vitro nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França e na Alemanha, surgiu a figura da mãe substituta ou “de aluguel” (surrogate, em inglês, ou ammenmutter, no alemão) que cede ou aluga sua matriz para abrigar o concepto, até que lhe chegue o termo, mediante retribuição financeira. O cerne das discussões, entretanto, é de ordem essencialmente filosófica e está relacionado com o enigmático começo da vida humana. Os direitos civis do embrião não compreenderiam o de não ser congelado, o de não servir a experiências, o de não poder ser destruído e até o de não poder ser criado senão como consequência da conjunção carnal inalienável do amor conjugal? Porém, vale destacar que é quase unânime o pensamento de que a vida biológica começa na fecundação. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão histórica, permite a utilização de embriões congelados em pesquisas para a obtenção de células-tronco. O Código de Ética Médica (CEM) de 2009, em seu artigo 15, parágrafo 1o, orienta que a reprodução assistida não deva conduzir sistematicamente à ocorrência de embriões supranumerários, embora não determine a quantidade mínima de embriões que devam ser transferidos por ciclo. Em 1992, o Conselho Federal de Medicina (CFM) determinou que não mais de quatro embriões sejam implantados em cada tentativa de reprodução assistida. Há recomendação já revisada pela American Society for Reproductive Medicine (2006), que sugere, nas pacientes de melhor prognóstico, a transferência de apenas um ovo, evitando a gemelidade deletéria. Apesar de o CEM de 2009 mencionar a quantidade de embriões transferidos, não se discutem os casos em que seria possível indicar redução embrionária seletiva. Seguindo com o artigo 15, o 2o parágrafo postula que o médico não deve realizar fertilização assistida com a finalidade de criar seres humanos geneticamente modificados, híbridos ou quimeras; zigotos com finalidade exclusiva de pesquisa; sexagem fetal. No parágrafo 3o, salienta-se a necessidade de consentimento pós-informado do casal que deseja submeter-se à reprodução assistida. No artigo 43, o CEM é enfático ao condenar a comercialização de tecidos humanos, condenando qualquer maneira de pecúnio na doação de gametas (sêmen ou oócito) ou mesmo para os casos de “barriga de aluguel” (permitida apenas entre parentes de 1o grau).
■ Conflitos materno-fetais Envolvem quantidade considerável de situações, geralmente na gravidez avançada, em que os interesses da gestante e os do feto se contrapõem e a grávida recusa tratamento recomendado para a proteção de seu concepto, ou dela própria. Certos conflitos materno-fetais consubstanciam-se na negativa, por parte da paciente, de receber monitoramento durante o trabalho de parto, na insistência em conseguir medicação não recomendada e na solicitação de cesárea sem indicação (legal atualmente). Além disso, algumas
insistem em não aceitar submeter-se ao parto cirúrgico exigido no caso de sofrimento fetal – obstinação a culminar no nascimento de criança neurologicamente afetada por dilação – e estigmatizar a má qualidade da assistência recebida. Nesses casos, o médico deve intervir ou solicitar, de imediato, ao juiz ou tribunal, consentimento para agir. Como na prática obstétrica as questões são urgentes, as decisões judiciais, que costumam ser demoradas, podem tornar-se inúteis mesmo quando favoráveis, em função da demora de sua conclusão.
■ Clones humanos A Organização Mundial da Saúde (OMS), a International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO), a Constituição Brasileira e o CFM são contra a clonagem humana. Na década de 1990, alguns pesquisadores conseguiram desmembrar o embrião humano em células e duplicá-las, abrindo a possibilidade de se formarem clones – cópias perfeitas de indivíduos com o mesmo patrimônio genético – dos quais os gêmeos idênticos são o paradigma natural. A pesquisa tem ainda, nos dias atuais, inúmeros entraves: não foi encontrado o momento exato de desenvolvimento do embrião (diferente dependendo dos espécimes) em que se torne possível extrair as células formadoras das réplicas de maneira satisfatória. As pesquisas com seres humanos são um resultado natural das pesquisas bem-sucedidas com animais (gado, ovelhas, coelhos), desde 1936, mediante a técnica do transplante nuclear, em que um dos 16 a 32 blastômeros do embrião pode ser transferido para oócito recipiente, enucleado, dando origem a um produto idêntico. A Igreja Católica considera “perversas” as intenções das experiências, cuja ambivalência estaria evidente: a tecnologia que melhora a qualidade de vida revela também os perigos potenciais, para a espécie humana, do seu prosseguimento. A síntese genética exemplificaria a interferência humana no processo natural da evolução, ignorando princípios éticos básicos.
■ Infanticídio É o ato de “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”, capitulado no Art. 123 do Código Penal.* Na nova lei, ainda em preparação e não vigente, diz-se que é “matar a mãe o próprio filho, para ocultar sua desonra, durante ou logo após o parto”. A discutida referência à “influência do estado puerperal” provavelmente será eliminada, restaurando-se o conceito do crime praticado honoris causa.
■ Abortamento provocado A despeito da pressão de determinados setores sociais pela descriminalização do aborto, o CEM de 2009 segue o Código Penal e repudia o abortamento provocado. Poucos temas médico-legais estão intimamente vinculados ao ensino e ao exercício da obstetrícia. Nenhum sofreu reformas tão basilares como as realizadas pelas nações ocidentais, permitindo o abortamento voluntário. Na Inglaterra, nos Estados Unidos e na maioria dos países
desenvolvidos, a interrupção da gravidez pode ser legalmente consumada, por motivos até inconsistentes. A legislação brasileira está obsoleta, concordam os especialistas, mas a prometida reforma do Código Penal mantém as prescrições anteriormente vigentes e desobedecidas todos os dias com a prática do abortamento provocado, livremente consentida, apesar de criminosa. O Código Penal brasileiro classifica o abortamento entre os Crimes contra a Vida, que são subclasse dos Crimes contra a Pessoa. São passíveis de pena: a gestante que provoca o abortamento em si mesma (autoabortamento) ou consente que outra pessoa lhe provoque (Art. 124) (abortamento consentido); a pessoa que provoca o abortamento com ou sem consentimento da gestante (Arts. 125 e 126). Prevê-se agravamento da condenação “se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência”. Aumenta também o castigo havendo “lesão corporal de natureza grave” ou quando “sobrevém a morte” (Art. 127). Para que o abortamento seja considerado crime, é indispensável a intenção deliberada de eliminar o concepto ou a simples complacência com o ato. ▶ Morte do concepto. É necessária a morte ocorrida in utero ou após a expulsão, como consequência de imaturidade. Peso e idade do concepto não importam, diferindo as definições obstétrica e médico-legal.
■ Permissões legais No Brasil o abortamento provocado só é permitido em duas circunstâncias (Art. 128 do Código Penal). “Não se pune o aborto praticado por médico: se não houver outro meio de salvar a vida e se a gravidez resultar de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” A nova lei, em elaboração, apesar de continuar altamente retrógrada em outros pontos, não acolhe o abortamento provocado se a gravidez resultou de estupro, e não cogita, tampouco, se resultou de indicações ovulares (doença de transmissão genética; concepto malformado; ingesta, pela gestante, de fármaco teratogênico; virose materna contraída durante a organogênese etc.). Em 2012, o STF decidiu que não mais é crime o abortamento de fetos anencéfalos. Caso a gestante manifeste o desejo de não prosseguir com a gestação, poderá solicitar o serviço gratuito do Sistema Único de Saúde (SUS). Solicitada, reiteradamente, a admitir exceções à proibição do abortamento, a Igreja Católica Romana tem-se mantido irredutível. “A proibição se estende não somente às interrupções para salvar a vida materna mas àquelas, em conceptos anômalos, pois ainda nesse caso priva-se um inocente, senão da vida na terra, de outra futura, que sucede à morte do corpo.” (Alocução de Pio XII, 1951)
■ Esterilização
A esterilização cirúrgica está regulamentada pela Lei do Planejamento Familiar de dezembro de 1996: Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos. II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos. É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
O atual CEM (2003) não se pronuncia sobre a esterilização, ao contrário do editado em 1984, que estabelecia limitações, exigindo indicação precisa, referendada por dois médicos ouvidos em conferência. A Organização das Nações Unidas (ONU) manifestou-se declarando que o planejamento da família, a quantidade de filhos e o espacejamento deles constituem um direito humano (human right) e, por isso, o indivíduo pode dispor de seu próprio corpo.
■ Cesárea a pedido A cesárea a pedido é definida como aquela realizada a pedido da mãe, antes do trabalho de parto, na ausência de qualquer indicação materna ou fetal. Nesse sentido, é um tipo de cesárea eletiva. ▶ Risco materno. Há risco elevado de placenta prévia, acreta, prévia-acreta e de histerectomia-cesárea, após o 2o parto cesariano (Tabela 64.1). ▶ Risco neonatal. O risco de morbidade respiratória neonatal, incluindo taquipneia transitória e síndrome de angústia respiratória (SAR), está aumentado após a cesárea eletiva, comparado ao do parto vaginal, uma vez que a operação tenha sido realizada antes de 39 semanas. Apenas cinco variáveis demonstram moderada qualidade de evidência, considerando a via de parto (cesárea ou parto planejados), em gestações a termo com apresentação de vértice (Tabela 64.2): • Tempo de internação materna • Morbidade respiratória neonatal • Placenta prévia ou acreta em gestações subsequentes • Ruptura uterina em gestação subsequente • Hemorragia materna. O parto cesáreo é comum (∼ 40%) entre os nascimentos a termo precoces (37+0-38+6 semanas), mas eleva o risco de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal/atendimento
neonatal especializado (12%) e a morbidade (7,5%), quando comparados aos nascimentos de 39+0-41+0 semanas. ▶ Recomendações. O American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG, 2013), levando em consideração os riscos e benefícios da cesárea a pedido, recomenda: • Na ausência de indicação materna ou fetal para a cesárea, o parto vaginal planejado é seguro, apropriado e deve ser recomendado • Se a cesárea a pedido for indicada, as recomendações são: ○ Não deve ser realizada antes de 39 semanas de gestação ○ Não deve ser motivada pela não disponibilidade de efetivo controle da dor ○ Não deve ser recomendada, particularmente, à mulher que deseja vários filhos, visto que os riscos de placenta prévia, acreta e histerectomia-cesárea aumentam após o 2o parto cesáreo.
Tabela 64.1 ■ Riscos de placenta acreta e de histerectomia-cesárea de acordo com o número de partos cesáreos comparados com o da 1a operação cesariana. Cesariana
Placenta acreta (%)
Odds ratio
Histerectomia-cesárea (%)
Odds ratio
1a*
0,2
–
0,7
–
2a
0,3
1,3
0,4
0,7
3a
0,6
2,4
0,9
1,4
4a
2,1
9,0
2,4
3,8
5a
2,3
9,8
3,5
5,6
≥ 6a
6,7
29,8
9,0
15
*Cesárea primária. Adaptada do ACOG (2013).
Tabela 64.2 ■ Variáveis com moderada qualidade de evidência de acordo com a via de parto em gestações a termo e apresentação de vértice. Favorável ao parto vaginal planejado
Favorável à cesárea planejada
Tempo de internação materna Morbidade respiratória neonatal Placenta prévia ou acreta subsequentes Ruptura uterina subsequente
Hemorragia materna
Adaptada de ACOG (2013).
O Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) (2010) recomenda a
administração de corticoide se a cesárea eletiva for realizada até 38+6 semanas.
■ Imperícia Nos Estados Unidos e em muitos outros países desenvolvidos, surgiu outra figura jurídica, a malpractice, isto é, a imperícia, o tratamento inadequado instituído pelo médico, o erro ou negligência profissional que, no campo obstétrico, tem motivado processos judiciais, com arguição de danos ou lesões sofridos tanto pela gestante como pelo concepto. No exercício da obstetrícia, lidando com duas vidas, cuja proteção demanda a aplicação de medidas não raro antagônicas, o obstetra é alvo fácil de críticas e da má-fé de demandas judiciais de indenização por dano havido mas pelo qual não responde. Nos Estados Unidos, os processos baseados em malpractice aumentaram consideravelmente e elevaram-se o custo dos seguros e a dificuldade em obtê-los cobrindo todos os riscos. Esses problemas suscitaram uma crise indisfarçável ao afetar as relações com os pacientes e suas famílias, prejudicando a avaliação diagnóstica e a decisão que deve ser pronta e isenta. Hoje o médico não pode submeter a paciente ao tratamento indicado nos procedimentos médicos ou cirúrgicos sem o consentimento informado dela. Nas emergências, porém, independentemente do consentimento da paciente, o obstetra imporá o tratamento indicado, o que não o exime de processo e eventual condenação. Não há precauções a serem tomadas contra a injustiça das acusações tendenciosas. O seguimento correto e minucioso das observações clínicas, o trabalho parturiente monitorado (bioquímica e eletronicamente), a prudência nas prescrições medicamentosas, a semiótica da gestação atenciosamente seguida podem ser utilizados na defesa do obstetra. Em 2002, a responsabilidade do ato médico foi definida pelo CFM em resolução normativa, na qual se esclarece que profissionais podem aplicar procedimentos relacionados com a prática da medicina, procurando impedir que os não habilitados os executem, pois o diagnóstico e o tratamento das doenças e enfermidades são de responsabilidade exclusiva do médico.
■ Pontos-chave Na obstetrícia forense estudam-se os problemas médico-legais relacionados com o ciclo grávido-puerperal, compreendendo fecundação, gravidez, parto, puerpério, infanticídio, abortamento e outras questões vinculadas à reprodução humana. A duração da gravidez foi fixada pelo Código Civil no termo mínimo de 180 dias e na duração máxima de 300. A inseminação artificial (fertilização in vitro), tanto homóloga como heteróloga, apresenta aspectos morais, éticos, religiosos e legais. A legislação brasileira não a regulamentou ou a disciplinou. A Igreja Católica a condena. Mãe substituta ou “de aluguel” (surrogate, em inglês) é aquela que cede ou aluga seu útero para abrigar o concepto até que lhe chegue o termo, mediante retribuição financeira. Infanticídio é o ato de “matar” sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após (Art. 123 do Código Penal). No Brasil, o abortamento provocado só é permitido em duas circunstâncias (Art. 128 do Código Penal): “Não se pune o aborto provocado por médico: I. Se não há outro meio de salvar a vida. II. Se a gravidez resultar de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” A esterilização cirúrgica está regulamentada pela Lei do Planejamento Familiar de 1996.
Cesárea a pedido é aquela realizada sem indicação materna ou fetal. O Código de Ética Médica brasileiro a condena indiretamente ao vedar atos médicos desnecessários. Em países desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos, surgiu outra figura jurídica, a malpractice, isto é, a imperícia, o tratamento inadequado instituído pelo médico, o erro ou a negligência profissional. Hoje, o médico não pode submeter a paciente ao tratamento indicado sem o consentimento informado dela.
_________ *As referências ao Código Penal reportam-se ao que está em vigor e cuja reforma ainda não foi feita.