REVEL, Judith. Foucault Conceitos Essenciais

September 29, 2017 | Author: Rafael Eduardo Franco | Category: Michel Foucault, Immanuel Kant, Discourse, Science, Sociology
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Judith Revel

MICHELFOUCAULT CONCEITOS ESSENCIAlS

~

claraluz EDITORA

Juclith Revel

MICHELFOUCAULT CONCEITOS ESSENCIAIS

Tradução:

Carlos Piovezani Filho e Nilton Milanez

Revisão Técnica: Maria do Ro ário Gregolin

$

claraluz EDITORA

Título original: Le Vocabulaire de Foucault © Ellipses Édition Marketing S.A., 2002 32, rue Bargue 75740 Paris cedex 15 ISBN 2-7298-1088-9 Diagramação Malra Valencise Capa Dez e Dez Mu/timeios

Ficha Catalográfica

R449m

elaborada

pela Biblioteca

do ICMC/USP

Revel, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais / Judith Revel ; tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlo Piovesani. - São Carlos : Claraluz, 2005. 96 p.; 21 cm ISBN 85-88638-09-6 I. Teoria de Foucault. 2. Linguagem - Filosofia. 3. Análise do discurso. L Gregolin, Maria do Rosário, trad. 11.Milanez, Nilton, trad. 1II. Piovesani, Carlos, trad. IV.

Título.

EDITORA CLARALUZ Rua Rafael de A. Sampaio Vidal, 1217 CEP 13560-390 - Centro / São Carlos - SP FonelFax: (16) 3374 8332 Site: www.editoraclaraluz.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em banco de dados sem permissão da Editora Claraluz Ltda.

© Editora Claraluz, São Carlos, 2005

Conceitos Essenciais

Acontecimento

13

Arqueologia

16

Arquivo

18

Atualidade

20

Aufklarung

22

Autor

24

Biopolitica

26

Controle

29

Corpos (investimento

politico dos)

31

Cuidado de si / Técnicas de si

33

Disciplina

35

Discurso

37

Dispositivo

39

Episteme

41

E tética (da existência) tica

.43 45

Expêriencia

47

Exterior

50

Genealogia

52

Governamentalidade

54

Guerra

56

História

58

Loucura

62

Norma

65

Poder

67

Problematização

70

Razão

72

/ Racionalidade

Resistência

/ Tran gressão

74

Saber / Saberes

77

Sexualidade

80

Subjetivação Sujeito Verdade

(processo

de)

/ Subjetividade / Jogos

de verdade

82 84 86

Apresentação

A obra

de

Miche l Foucault

é complexa:

nela

freqüentem ente sublinhou-se a grande variedade dos campos de investigação, a espanto a escritura barroca, os empréstimos de outras disciplinas, as voltas e reviravoltas, as mudanças de terminologia, a vocação simultaneamente f.tlosófica e jornali tica - numa palavra, nada que possa parecer com aquilo que a tradição nos habituou a conceber como um sistema filosófico. Um vocabulário de Foucault que apresenta seus conceitos essenciais se inscreve ne sa mesma diferença, visto que ele apresenta, absolutamente ao mesmo tempo, a retomada de conceitos filosóficos herdados de outros pensamentos - e, por vezes, largamente desviados de seu sentido inicial -, a criação de conceitos inéditos e a elevação de termos emprestados da linguagem comum à dignidade f.tlosófica; por outro lado, é um vocabulário que emerge freqüentem ente a partir de práticas e que se propõe como gerador de práticas: isso ocorre porque um arsenal conceitual; é, literalmente (gostava de lembrar Foucault), uma "caixa

de ferramentas".

Enfim,

antes

de ser fixado

I NT: Dits et écrits foi publicado, no França, pela Gallimard (1994, 04 volumes), sob a direção de Oaniel Oefert e François Ewald com a colaboração de Jacques Lagrange. A edição brasileira de Ditos e Escritos, organizada por Manoel Barros da Morta, foi publicada, em 05 volumes, pela Forense Universitária, entre 2002 e 2004.

definitivamente no livros, o vocabulário se forja e e modela no laboratório da obra: o enorme corpus de textos esparsos reunidos sob o título de Ditos e escritos' fornece, desse ponto de vista, um resumo formidável do trabalho de produção de conceitos que implica o exercício do pensamento; essa é a razão pela qual, na maior parte dos casos, se encontrará aqui neste livro referências aos textos de Ditos e escritos. É preciso igualmente sublinhar que esse laboratório do pensamento não é somente o lugar onde se criam conceitos, mas, freqüentemente, também o lugar onde, num movimento de reviravolta que está sempre presente em Foucault, eles passaram num segundo tempo pelo crivo de uma crítica interna: os termos são, portanto, produzidos, fixados, depois reexaminados e abandonados, modificados ou ampliados num movimento contínuo de retomada e de deslocamento. Este livro, no qual proponho a definição de conceitos essenciais de Foucault sob a forma de um vocabulário em ordem alfabética, precisou considerar tudo is o ao mesmo tempo. Tarefa árdua, certamente, já que procurei não estancar esse movimento e, ao mesmo tempo, pretendi tornar compreensível a coerência fundamental da reflexão foucaultiana. Foi necessário, portanto, operar escolhas - freqüentemente difíceis - a fim de tornar visíveis as passagens essenciais des a problematização contínua; e, na medida do possível, tentei tecer sistematicamente, por meio de um jogo de remissões, a trama a partir da qual o percurso filosófico de Foucault podia ser visualizado na complexidade de suas ramificações e de suas reviravoltas.

o final de sua vida,

Foucault gostava de falar de "problematização" e não entendia, nessa idéia, a representação de um objeto pré-existente nem a criação, por meio do discurso, de um objeto que não existe, mas "o conjunto de práticas di cursivas ou não-discursivas que faz entrar alguma coi a no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (quer isso seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento cientifico, da análise política etc.)". Ele assim definia, portanto, um exercício crítico do pensamento que se opõe à idéia de uma pesquisa metódica da "solução", porque a tarefa da filosofia não é resolver - aí compreendida a ação de substituir uma solução por outra - mas "problematizar", não reformar, mas instaurar uma distância crítica, fazer jogar o "desprendimento". A maior homenagem que podemos prestar, hoje, a Foucault é preci amente restituir ao seu pensamento sua dimensão problemática. Este livro, ao organizar um vocabulário com os conceitos essenciais de Foucault (muito mais do que um simples conjunto de termos enumerados segundo a ordem alfabética) é uma tentativa de reconstituir a diversidade dessas problematizações - sucessivas ou superpo tas - que fazem a extraordinária riqueza das análi es foucaultiana .

Judith Revel

Organização do livro Este livro apresenta conceitos essenciais de Michel Foucault em forma de verbetes, com três níveis assinalados por asteriscos:

* definição

de base

** definição particularizada que apresenta o desenvolvimentos do conceito na obra foucaultiana

*** definição

mais ampla que insere o conceito e o relaciona

com outros no interior da obra de Foucault

CONCEITOS ESSENCIAIS

13

Acontecimento

* Por acontecimento,

Foucault entende, antes de tudo de maneira

negativa, um fato para o qual algumas análises históricas se contentam em fornecer a descrição. O método arqueológico foucaultiano busca, ao contrário, reconstituir atrás do foto toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas. É, por exemplo, o caso do trabalho realizado sobre o dossiê Pierre Rioiêre: "reconstituindo exterior [...], como

e fosse um acontecimento,

es e crime do

e nada além de um

acontecimento criminal, eu creio que nos falta o essencial'". Entretanto, num segundo momento, o termo "acontecimento" positiva,

como

começa a aparecer

em Foucault

de maneira

uma cristalização

de

determinações

históricas complexas gue ele opõe à idéia de estrutura:

"Admite-se que o e truturali mo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar, não apenas da etnologia mas de uma série de outras ciências e até mesmo da história, o conceito de acontecimento. não vejo guem pode ser mais anti-estrururalista

Eu

do que eu'". O

programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes e níveis aos quais alguns acontecimentos

pertencem.

E sa nova

concepção aparece, por exemplo, quando ele define o discurso como uma

érie de acontecimentos,

entre os "acontecimentos

colocando-se

discursivos"

o problema da relação

e os acontecimentos

de uma

outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institucionais).

Entretien avec Michel Foucault. Cahiers du Cinéma, n° 271, novembro de 1976. Entrevista com Michel Foucault. In : Fontana, A. e Pasquino, P. Microfisica dei Potere: interventi politici. Turin : Einaudi, 1977. [Tradução brasileira: Verdade e poder. ln : Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.5).

2

3

Judith Revel

/4

**

É a partir dessa inserção do acontecimento

análises gue Foucault também

reivindica

o estatuto

de historiador

porgue, como ele mesmo o observa,

tenha sido uma categoria

filosófica,

nos situa automaticamente no sentido

o acontecimento

da história

f ... ].

"O

ão sou

estrito do termo; mas os historiadores [...1.

temos em comum um interesse pelo acontecimento

É, portanto,

historiadores!

não

salvo, talvez, nos estóicos:

na dimensão

do sentido, nem a lógica da estrutura pesquisa?".

- talvez,

o discurso como uma série de acontecimentos

fato de eu considerar historiador

no centro de sua

são pertinentes

por ocasião

e eu

em a lógica

para esse tipo de

de uma discussão

com os

gue Foucault dá a definição de "acontecimentalização":

não uma história aconteci mental, mas a tomada de consciência rupturas

de mostrar

é a irrupção

acontecimento

de uma "singularidade"

gue representa

mentais"

*** A partir

da definição de acontecimento

singularidade

histórica,

consiste

acontecimentos, apreender

Foucault

em dizer

gual é o acontecimento

gual é o acontecimento maneira genealógica

o acontecimento

como irrupção de uma

vai desenvolver

dois discursos.

O

sem o saber

os

na nossa atualidade,

e eu tento

sob cujo signo nós nascemos,

gue continua da história

o

etc,

gue nós repetimos

"nós os repetimos

acontecimentalização

não necessária:

o enclausuramento,

da aparição da categoria de "doenças

primeiro

das

da evidência induzidas por certos fatos. O gue se trata então

ainda a nos atravessar".

deve, portanto,

por uma acontecimentalização

se prolongar

e A de

de nossa própria

Dialogue sur le pouvoir. In: Wade, S. Che; Foucault . Los Angeles: Circabook, 1978. [Tradução brasi leira: Diálogo sobre o poder. In: Ditos e Escritos, vol. IV, p. 258]. 5 La poussiêre et le nuage. In: M. Perrot (ed.) L'impossible prison. Paris: Seuil, 1980. [Tradução brasileira: A poeira e a nuvem. In: Ditos e Escritos, vol. IV, p. 323334).

4

Michel Foucault:

atualidade.

O segundo

nossa atualidade

conceitos

discurso c nsiste precisamente

os traços de uma "ruptura por ocasião

da revolução

/5

em buscar na

acontecimental"

que Foucault localiza já no texto kantiano consagrado ele crê reencontrar

essenciais

- traço

às Luzes, e que

iraniana,

em 1979 -

porque está aí, sem dúvida, o valor de ruptura de todas as revoluções: "A revolução

[... ] corre

acontecimento

cujo próprio

atesta uma virtualidade

o risco

de banalizar-se,

conteúdo

permanente

é importante,

mas

como

sua existência

e que não pode ser esquecida'".

What's is Enlightenment ? In P. Rabinow (êd.). The Foucault Reader. New York: Pantheon Books, 1984, e Qu'est-ce que les lumiêres? In: Magazine Littéraire, na 207, maio de 1984. [Tradução brasileira: O que são as Luzes? In: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 335-351). 6

16

Judith

Revel

Arqueologia *0

termo "argueologia" aparece três vezes nos título da obra de Foucault - ascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico (1963),As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas (1966) e Arqueologia do saber (1969) - e caracteriza até o final dos anos 70 o método de pesguisa do fJ.iósofo.Uma argueologia não é uma "história" na medida em que, como se trata de construir um campo histórico, Foucault opera com diferentes dimensões (filosófica, econômica, científica, politica etc.) a fim de obter as condiçõe de emergência dos discursos de saber de uma dada época. Ao invés de estudar a história das idéias em sua evolução, ele e concentra sobre recortes históricos precisos - em particular, a idade clássica e o início do século XIX -, a fim de descrever não somente a maneira pela gual os diferentes saberes locais se determinam a partir da constituição de novos objetos gue emergiram num certo momento, mas como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente.

**

e o termo arqueologia nutriu, em dúvida, a identificação de Foucault com a corrente estruturali ta - na medida em gue ele parecia evidenciar uma verdadeira estrutura epistêmica da qual os diferentes saberes não teriam sido enão variantes -, sua interpretação é, na verdade, bem outra. Como lembra o subtítulo de As palavras e as coisas, não se trata de fazer a arqueologia, mas Nma arqueologia da ciência humanas: mais do que uma descrição paradigmática geral, trata-se de um corte horizontal

de mecanismos

gue articulam

diferentes

acontecimentos discursivos - o aberes locais - ao poder. Essa articulação, claro, é inteiramente histórica: ela possui uma data de

Michel Foucault:

conceitos

J7

essenciais

nascimento - e o grande desafio consiste em encarar igualmente a possibilidade

de seu desaparecimento,

"como na orla do mar um

rosto de areia'".

***

a "arqueologia",

reencontra-se,

ao mesmo tempo, a idéia da

arcbê, isto é, do começo, do princípio, da emergência dos objetos de conhecimento,

e a idéia de arquivo - o registro desses objetos. Mas,

da mesma maneira que o arquivo não é o traço morto do passado, a arqueologia visa, na verdade, ao presente: "Se eu faço isso, é com o objetivo de saber o que nós somos hoje'". historicidade próprio

dos objeto

pertencimento,

Colocar a que tão da

de saber é, de fato, problematizar ao mesmo

tempo,

nosso

a um regime

de

discursividade dado e a uma configuração do poder. O abandono do termo "arqueologia"

em proveito do conceito de "genealogia", logo

no começo dos anos 70, insistirá obre a necessidade de dirigir a leitura "horizontal"

das discursividades para uma análise vertical-

orientada

para o presente - das determinações históricas de nosso próprio regime de discurso.

1 Les mOIS et

les choses. Une archéologie des sciences humaines. Pari: GaJlimard, 1966. [Tradução bra ileira: As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fonte, 2000, p. 536]. 8 Dialogue ur le pouvoir, op. cit. nota 4.

Judith

/8

Revel

Arquivo de arquivo

*"Chamarei conservados

não a totalidade

por uma civilização,

de textos

nem o conjunto

que foram

de traços que

puderam ser salvos de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa cultura,

determinam

enunciados,

o aparecimento

sua permanência

e o desaparecimento

e seu apagamento,

de

sua existência

paradoxal de acontecimentos e de coisas. Analisar o fatos de di curso no elemento geral do arquivo é considerá-Ios não ab olutamente como documentos

(de uma significação

construção), geológica,

escondida

mas como monumentos:

ou de uma regra de

é - fora de qualquer metáfora

em nenhum assinalamento de origem, sem o menor gesto

na direção do começo de uma arcbê - fazer o que poderíamo conforme

chamar,

os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como

uma arq/ICologia''9. **Da

Historia da Loucura à Arqueologia do Saber, o arquivo representa,

portanto, o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados época dada e que continuam

numa

a existir através da história. Fazer a

arqueologia dessa massa documentária

é buscar compreender

as uas

regras, suas práticas, suas condições e seu funcionamento. Para Foucault, isso implica, antes de tudo, um trabalho de recuperação

geral da época escolhida, susceptívei

isto é, de todos

de permitir a reconstituição

os traço

do arquivo discur ivos

do conjunto das regras que,

num momento dado, definem ao mesmo tempo os limite e as formas

Sur I'archéologie des cience. Réponse au Cercle d'épistérnologie. ln: Cahiers n" 9, 1968. [Tradução brasileira: Sobre a Arqueologia da Ciência. Resposta ao Círculo de Epi temologia. ln: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 95].

9

pour I'analyse,

Michel Foucault:

da dizibilidade,

da conservação,

conceitos

da memória,

J9

essenciais

da reativação

e da

apropriação. O arquivo permite a Foucault, portanto, distinguir-se dos estruturalistas considerados

- pois se trata de trabalhar como acontecimentos

obre os discursos

e não sobre o sistema da língua

em geral -, e dos historiadores - uma vez que e esses acontecimentos não fazem, literalmente,

parte de nosso presente, "eles subsistem e

exercem, nessa mesma substância no interior da história, um certo número de funções manifestas ou secretas". Enfim, se o arquivo é o corpo da arqueologia, a idéia de constituir um arquivo geral, isto é, de encerrar

num lugar todo

arqueologicamente fenômenos

do inicio dos anos 70, parece que o arquivo muda de

em Foucault:

historiadores

é, por sua vez,

próprios à cultura ocidental do século XIX.

*** A partir estatuto

os traços produzidos,

datável: o museu e a biblioteca são, certamente,

em favor de um trabalho

direto

com os

(em Pierre Riviere, de 1973; em L'i1JtfJossib/e prison, sob a

direção de Michelle Perrot, de 1978; ou com Arlette Farge, em Le

désordre des fa!JIi/Ies, de 1982), ele reivindica cada vez mais a dimensão subjetiva de seu trabalho ("E te não é um livro de história. A escolha que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que meu gosto, meu prazer, uma emoção'?")

e se entrega a uma leitura

frequentemente muito literária do que ele chama, às vezes, de "estranhos poemas". O arquivo funciona, a partir de então, mais como traço de existência do que como produção discursiva: sem dúvida, porque, na realidade, Foucault reintroduz nesse momento a noção de subjetividade em sua reflexão. O paradoxo de uma utilização não histórica das fontes históricas lhe foi muitas vezes abertamente

censurado.

10 La vie des hommes infâmcs. In: Les cahiers du chemim, n? 29,1977. [Tradução brasileira: A vida dos homens infames. ln: Ditos e Escritos, vol. IV, p.203].

Judith

20

Revel

Atualidade

*A noção

de atualidade

aparece de dua

maneiras diferentes

em

Foucault. A primeira consiste em destacar como um acontecimentopor exemplo, a cisão entre loucura e não-loucura

- não

omente

engendra uma série de discursos, de prática , de comportamentos de instituições, mas se estende até nós. "Todo parece-me que os repetimos. eu tento compreender nascimento Foucault,

A passagem

a ocasião

prolongamento

es es acontecimento,

ós os repetimos em nossa atualidade e

qual é o acontecimento

e qual é o acontecimento

atravessar"!'.

e

que continua,

da arqueologia

de acentuar

que pre idiu nosso ainda, a nos

à genealogia

será, para

ainda mais essa dimensão

da história no presente.

A segunda concepção

de de

atua/idade está estritamente ligada a um comentário que Foucault faz do texto de Kant, O que é o J/u1JIinis1Jlo?, em 198412• A análise insi te, então, sobre o fato de que colocar filosoficamente a questão de sua própria atualidade - o que faz Kant pela primeira vez - marca, na realidade, a passagem para a modernidade.

** Foucault

desenvolve duas linhas de discurso a partir de Kant.

Para Kant, colocar a questão do pertencimento a sua própria atualidade, é - comenta Foucault - interrogá-Ia como um acontecimento

do qual

se poderia falar em termos de sentido e singularidade, e colocar a questão

do pertencimento

a um "nós"

que corresponde

a essa

11 Sexualité et pouvoir. Conferência na Universidade de Tókio (1978). Retomado em Dits et Écrits, Paris: Gallimard, J 994, vol. 3., texte n. 233. [Tradução brasileira: Sexualidade e poder. Ln:Ditos e Escritos, vol. V, p. 56] 12

Ver: What's is Enlightenment

? op. cit. nota 6.

Michel

Foucault:

conceitos

essenciais

21

atualidade, isto é, formular o problema da comunidade da qual fazemos parte. Mas é preciso igualmente compreender

que se retomamos hoje

a idéia kantiana de uma ontologia crítica do presente, não é somente para compreender

o que funda o espaço de nosso discurso, mas para

desenhar os seus limites. Da mesma maneira que Kant "busca uma diferença: qual a diferença que o hoje introduz em relação a ontem?"!', devemos, de nossa parte, fazer emergir da contingência histórica, que nos faz ser o que somos, possibilidades Colocar a questão da atualidade projeto

de uma "crítica

prática

retoma,

de ruptura e de mudança. portanto,

sob a forma

a definição do

da ultrapassagem

possível"!",

***

"Atualidade"

e "presente"

são, inicialmente,

sinônimos.

o

entanto, uma diferença vai se acentuar cada vez mais entre o que, de um lado, nos precede mas continua, ape ar de tudo, a nos atravessar e o que, de outro lado, sobrevém, ao contrário, como uma ruptura da grade epistêmica a que pertencemos e da periodização que ela engendra. Essa irrupção do "novo", que tanto Focault quanto Deleuze chamam igualmente de "acontecimento",

torna-se, assim, o que caracteriza a

atualidade. O presente, definido por sua continuidade histórica, não é, ao contrário,

interrompido

por nenhum

acontecimento:

ele pode

somente oscilar e se romper dando lugar à instalação de um novo presente. Se elas representaram um grande problema - particularmente no momento de publicação de As palavras e as coisas (1966) - nos anos 80, o conceito de "atualidade" permite a Foucault encontrar, enfim, o meio para integrar as rupturas epistêrnicas.

13 14

What's is Enlightenrnent What's is Enlightenment

? op. cito nota 6. ? op. cit. nota 6.

Judith Revel

22

Aufklãrung *0

tema do Alijkltinl11g aparece na obra de Foucault de maneira cada

vez mais insistente a partir de 1978: ele remete sempre ao texto de Kant, Was ist AuJklàmng?(1784) A abordagem é complexa:

15.

e, de imediato, Foucault consigna à questão

kantiana o privilégio de ter colocado pela primeira vez o problema filosófico (ou, como o diz Foucault, do "jornalismo

filosófico") da

atualidade, o que interessa ao filósofo parece ser, antes de tudo, o de tino dessa questão na França, na Alemanha e nos países anglosaxões. É somente num segundo momento que Foucault transformará a referência ao texto kantiano numa definição dessa "ontologia critica do presente", com a qual ele fará seu próprio programa de pesquisa. **Foucault

de envolve, na verdade, três níveis de análise diferentes.

O primeiro busca reconstituir

de maneira arqueológica o momento

em que o Ocidente tornou, ao mesmo tempo, sua razão autônoma e soberana: nesse sentido, a referência às Luzes se insere numa descrição que a precede

(a reforma

luterana,

a revolução

copernicana,

a

matematização galileniana da natureza, o pensamento cartesiano, a física newtoniana

etc.) e na qual ela representa o momento

da realização

cabal; mas, essa descrição arqueológica está sempre genealogicamente inclinada para um presente do qual nós participamos ainda: é preciso, portanto, compreender

"o que p de ser seu balanço atual, qual relação

é preciso estabelecer com esse gesto fundador"

16.

O segundo tenta

os Was ist Aufklãrung? In: Berlinische Monatsschrift, dezembro 1784. (Tradução brasileira: KANT, I. Que é "Esclarecimento"? In: Immanuel Kant: Textos Seletos, Petrópolis:

Vozes,

19851.

Introdução a Canguilhem, G. On lhe Normal and lhe Pathological, Boston: D. Reidel, 1978. Retomado em Dits et Écrits, voI. 3, Paris: Gallimard, 1994, texto n" 16

219.

Michel Foucault:

compreender

conceitos

23

essenciais

do Atifkliinmg nos cliferentes

a evolução da posteridade

países e a maneira pela qual ela foi investida em campos cliversos: em particular, na Alemanha, numa reflexão histórica e politica da sociedade ("dos hegelianos

à Escola de Frankfurt

e a Lukács, Feuerbach, Marx,

ietzsche e Max Weber"I~; na França, por meio da história das ciências e da problematização

da cliferença entre saber/crença,

religião, científico/pré-científico Poincaré, Koyré, Bachelard,

(Comte

Canguilhem).

conhecimento/

e o positivismo,

Duhem,

Enfim, o terceiro coloca a

questão de nosso próprio presente:

"Kant não busca compreender

presente

ou de uma realização futura. Ele

a partir de uma totalidade

o

busca uma cliferença: qual a cliferença que ele introduz hoje em relação ao ontem"18? É essa busca da cliferença que caracteriza não somente "a atitude da modernidade", mas o ethos que nos é próprio. ***0

comentário

Habermas, leituras

de Kant esteve no centro

infelizmente que

interrompido

os dois

diametralmente

filósofos

opostas,

dão

em particular,

de um debate com

pela morte

de Foucault,

As

à questão

das Luzes

são

porque

Habermas

busca, na

verdade, definir, a partir da referência kantiana, as conclições requeridas para uma comunidade e do projeto condição

social. Em Foucault,

de possibilidade

conseqüência a questão

lingüistica ideal, isto é, a unidade da razão crítica o problema

de um novo

da comunidade universalismo,

a esse

presente,

colocar a questão de seu pertencimento

ou a uma traclição; não será mais, simplesmente, seu pertencimento

a uma comunidade

de seu pertencimento com um conjunto 17

Introdução

mas a

direta da ontologia do presente: "para o filósofo, colocar do pertencimento

absolutamente,

cultural característico

a Canguilhem,

não será

mais,

a uma doutrina

colocar a questão de

humana em geral, mas aquela

a um certo "nós",

a um nós que se relaciona de sua própria atualidade"?".

G. 011 lhe Normal nnd lhe Pathological,

What is Enlightenrnent? op. cit. nota 6. 19 What's enlightenment?, op. cit. nota 6. IR

não é

op.cit. nota 16.

Judith

24

Revel

Autor *Em 1969, Foucault faz uma conferência sobre a noção de autor que se abre com essas palavras:

" 'Que

importa

quem fala?'

essa

indiferença se afirma o principio ético, talvez o mais fundamental, da escrita contemporânea'F".

Essa critica radical da idéia de autor - e

mai geralmente do par autor/obra diagnóstico Blanchot,

sobre a literatura do novo romance

foucaultiano

- vale ao mesmo tempo como

(em particular,

de leitura arqueológica:

frequentemente

na tripla esteira de

e da nova crítica), e como método com efeito,

e reencontramos

a teorização desse "lugar vazio" em alguns escritores

gue Foucault comenta na época, é igualmente verdadeiro que a análise a que se dedica o filósofo em As Palavras e as Coisas procura, por sua vez, aplicar ao arquivo, isto é, à historia, o princípio de uma leitura das "massas de enunciados" "bem acentuados

ou "planos discursivos",

pelas unidades

habituais

que não estavam

do livro, da obra e do

autor"?'. Desse ponto de vista, o início de A Ordem do Discurso dá continuidade

à reflexão sobre um fluxo de fala que seria ao mesmo

tempo historicamente determinado e não-individualizado,

e que ditaria

as condições de fala do próprio Foucault na sua aula inaugural no

Col/egede France: "Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo"22. **Do

ponto-de-vista

do método,

Foucault

está aparentemente

bastante próximo do que fez Barthes na mesma época, porque a análise estrutural da narrativa não se refere à psicologia, à biografia pessoal 20 Qu'est-ce qu'un auteur? In: Bulletin de Ia Société Française de Philosophie, junhosetembro 1969. [Tradução brasileira: O que é um autor? In: Ditos e Escritos, vol. 111, ~. 2641· I Qu'est-ce qu'un auteur?, op. cit. nota 20. n L 'ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. [Tradução brasileira: A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996 , p. 5] .

Michel Foucaul(·

conceitos

essenciais

25

ou às características subjetivas do autor, mas às estruturas internas do texto e ao jogo de sua articulação. constatação

dessa "vizinhança"

É provavelmente

metodológica

a partir da

(que o aproxima

igualmente de Althusser, de Lévy- trauss ou de Durnézil) que se tem geralmente associado Foucault à corrente estruturalista. Em Foucault, entretanto,

a busca de estrutura

blanchotiana morte

particular ("a obra comporta sempre, por assim dizer, a

do autor:

desaparece'P')

lógicas e tá marcada por uma veia

no mesmo

momento

em que se escreve,

se

que, além da simples referência à caducidade histórica

de uma categoria que se havia acreditado até então incontornável, leva Foucault a uma análise das relações que envolvem a linguagem e a morte. À descrição do apagamento de uma noção da qual ele descreve historicamente

a constituição e os rnecani mos, depois a dissolução (e,

por i so, a noção de autor recebe o mesmo tratamento que aquela de "sujeito"); Foucault acrescenta, assim, ao mesmo tempo a identificação de seu próprio estatuto de fala e a problematização

de uma experiência

da escritura concebida como passagem ao limite.

*** Essa influência

blanchotiana o levará, ao longo dos anos 60, e à

margem dos grandes livros, a e deter sobre um certo número de "casos" literários que p ssuem todos um parentesco com a loucura (e estamos ainda bem longe das propo tas da História da LoIfCllra) ou com a morte. Foucault comentará, então, Hôlderlin e e Artaud,

Flaubert

e Klossowski,

erval, Roussel

e até mesmo alguns escritores

próximos do grupo Te! Que!, sublinhando-lhes

o valor exemplar: "A

linguagem, entâ , tomou sua e tatura soberana: ela surge como vinda de alhures, de lá onde ninguém fala; mas só existe obra se, remontando seu próprio discur o, ela fala na direção dessa ausência"?'. Interview avec Michel Foucault, Bonniers Liuerãre Magasin, Stockholrn, n" 3, março de 1968. Retomado em Dits e Écrits, vol.l, texto n" 54. 24.Le 'non' du pére. In : Critique n" 178, março de 1962. [Tradução bra ileira: O não do pai. In: Ditos e Escritos, vol. I, p. 200]. 23

Judith

26

Revel

Biopolítica *0

termo "biopolítica" designa a maneira pela qual o poder tende a

se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século

XlX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um certo número de procedimentos viventes constituidos biopoderes

disciplinares, mas o conjunto

em população:

locais - se ocupará,

dos

a biopolítica - por meio dos

portanto,

da gestão da saúde, da

higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram preocupações

políticas.

** A noção de biopolítica implica uma aruilise histórica do quadro de racionalidade política no qual ela aparece, isto é, o nascimento do liberalismo. Por liberalismo é preciso entender um exercício do governo que não somente tende a maximizar seus efeitos, reduzindo ao máximo seus custos, sobre o modelo da produção industrial, mas que afirma arriscar-se empre a governar demais. Mesmo que a "razão do Estado" tivesse buscado desenvolver seu poder por meio do crescimento do Estado,

"a reflexão

encontrando

liberal não parte

da existência

do Estado,

no governo um meio de atingir essa finalidade que ele

seria para si mesmo; mas da sociedade que vem a estar numa relação complexa de exterioridade e de interioridade em relação ao Estado"25. Esse novo tipo de governamentalidade,

que não é redutível nem a

uma análise jurídica nem a uma leitura econômica (ainda que uma e

Naissance de Ia biopolitique. ln : Annuaire du Collêge de France, 79 année. Chaire d'histoire des systêrns de pensée, année 1978-1979, 1979. [Tradução brasileira: Nascimento da biopolítica. 1n: Resumo dos Cursos do College de France (/970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 911-

25

Michel Foucault:

outra aí estejam ligadas), se apresenta, tecnologia

conceitos

27

essenciais

por conseqüência,

como uma

do p der que se dá um novo objeto: a "população".

A

população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam traços

biológicos

e patológicos

suscetível de ser controlada

particulares

e cuja própria

vida é

a fim de assegurar uma melhor gestão da

força de trabalho: « A descoberta

da população

é, ao mesmo tempo

que a descoberta

do indivíduo e do corpo modelável, o outro grande

nó tecnológico

ao redor

Ocidente

do qual os procedimentos

são transformados.

chamarei, por oposição de biopolítica". dos corpos

Inventou-se,

à anátomo-política

Enquanto

do

o que eu

que acabei de mencionar,

a disciplina se dá como anátomo-política

e se aplica essencialmente

representa

políticos

nesse momento,

aos indivíduos,

a biopolítica

uma "grande medicina social" que se aplica à população

fim de governar

a vida: a vida faz, portanto,

parte do campo

a do

poder.

*** A noção

de biopolítica

ligado a uma contradição primeiros

que se encontra

O primeiro está

no próprio

Foucault: nos

textos onde aparece o termo, ele parece estar ligado ao que

os alemães chamaram manutenção o momento

no século XIX de PolizeiwissC11schaft,

da ordem e da disciplina

Estado. Mas, em sociedade,

levanta dois problemas.

eguida, a biopolítica

de ultrapassagem em proveito

isto é, a

por meio do crescimento

do

parece, ao contrário, assinalar

da tradicional

de uma economia

dicotornia

Estado/

política da vida em geral.

É dessa segunda formulação que nasce o outro problema: trata-se de pensar a biopolítica

como um conjunto

de biopoderes

ou, antes, na

medida em que dizer que o poder investiu a vida significa igualmente

Les mailles du pouvoir, conferência na Universidade da Bahia, 1976. Ln:Barbárie, n° 4 e n? 5, 1981. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n° 297.

26

Judith Revel

28

que a vida é um poder, pode-se localizar na própria vida - isto é, certamente, no trabalho e na linguagem, mas também no corpo, nos afetos, nos desejos e na sexualidade - o lugar de emergência de um contra-poder, como

o lugar de uma produção de ubjetividade que se daria

momento

de desassujeitamento?

biopolítica seria fundamental

esse ca o, o tema da

para a reformulação

ética da relação

com o político que caracteriza as últimas análises de Foucault; mais ainda: a biopolitica representaria exatamente o momento de passagem do político ao ético. Como o admite Foucault, em 1982, "a análise, a elaboração, 'agonismo'

a retomada

da questão

das relações

entre relações de poder e intransitividade

de poder

e do

da liberdade,

são uma tarefa política incessante [...] é exatamente esta a tarefa política inerente a toda existência social?".

Le sujet et le pouvoir. In: Dreyfus, H. e Rabinow. P. Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeutics. Chicago: The University of Chicago Pres , 1982. (Tradução bra ileira: Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Foren e Univer itária, 1995]. 27

29

Miche! Foucault: conceitos essenciais

Controle *0

termo "controle"

aparece no vocabulário

cada vez mais fregüente momento,

de Foucault de maneira

a partir de 1971-72. Designa, num primeiro

uma série de mecanismos

de vigilância gue aparecem entre

os séculos XVIII e XIX e gue têm como função não tanto punir o desvio, mas corrigi-lo,

e, sobretudo,

do século XIX transforma-se

preveni-lo:

em controle,

"Toda a penalidade

não apenas sobre aquilo

gue fazem os indivíduos - está ou não em conformidade

com a lei? -

mas sobre aquilo gue eles podem fazer, gue eles são capazes de fazer, daquilo gue eles estão sujeitos a fazer, daquilo gue eles estão na irninência de fazer"28. Essa extensão do controle social corresponde distribuição formação

espacial e social da rigueza industrial da sociedade

os fluxos consideração gue torna

da mão de obra,

da produção

nece sária uma verdadeira

desenvolvimento

**0

espacial

necessidades

instrumentos

e agrícola"29: é a

capitalista, isto é, a necessidade

e a repartição

a uma "nova

e do mercado

de controlar levando

em

de trabalho,

ortopedia social, para a gual o

da policia e da vigilância

das populações

são os

essenciais.

controle

social passa não somente

pela justiça, mas por uma

série de outros poderes laterais (as instituições psicológicas, psiguiátricas, criminológicas, instituição associações

médicas,

pedagógicas;

a gestão

de uma politica da saúde; os mecanismos filantrópicas

e os patrocinadores

dos corpos

e a

de assistência, as

etc.) gue se articulam em

dois tempos: trata-se, de um lado, de constituir populações nas quais os

La vérité et les formes juridiques. Conferência na universidade do Rio de Janeiro, maio, 1973. Retomado em: Dits et Écrits, vol.2, texto n° 139.[Tradução brasileira: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999]. 29 La vérité et les forme juridique , op. cit. nota 28. 28

Judith Revel

30

indivíduos serão inseridos - o controle é essencialmente uma economia do poder que gerencia a sociedade em função de modelos normativos globais integrados num aparelho de Estado centralizado

- ; mas, de

outro, trata-se igualmente de tornar o poder capilar, isto é, de instalar um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo e a gerir sua existência. Esse duplo aspecto do controle social (governo das populações/governo

pela individualização)

foi particularmente

estudado por Foucault no caso do funcionamento

das instituições de

saúde e do discurso médico do século XIX, mas também na análise das relações entre a sexualidade e a repressão no primeiro volume da

História da Sexualidade (A vontade de saber).

* ~~Toda ..

a ambigüidade

do termo "controle"

deve-se ao fato de

que, a partir dos anos 80, Foucault deixa subentender que ele o entende como um mecanismo de aplicação do poder diferente da disciplina.

É em parte sobre esse ponto que se efetua a reviravolta programática da Histôria da Sexualidade, entre a publicação do primeiro volume (1976) e aquele dos dois últimos (1984): "o controle sexual tem uma forma completamente que se encontra,

diferente da forma disciplinar

por exemplo, nas escolas.

algum do mesmo assunto"?", A interiorização gestão

da sexualidade,

penetração

extremamente

corresponde

do comportamento ão se trata de modo da norma, patente na

ao mesmo

tempo

a uma

fina do poder nas malhas da vida e à sua

subjetivação. A noção de controle, uma vez tomada independentemente das análises disciplinares, conduz então Foucault ao mesmo tempo em direção a uma "ontologia

critica da atualidade" e a uma análise

dos modos de subjetivação que estarão no centro de seu trabalho nos anos 80.

30

Interview de Michel Foucault.

Entrevista

com Michel

Foucault.

In : Krisis, rnars 1984. [Tradução

In : Di/os e Escritos,

vol. I, p. 338].

brasileira:

Mjchel Foucault:

conceitos

3J

essenciais

Corpos (investimento político dos) *"Houve,

no curso da idade clássica, toda uma descoberta do corpo

como objeto e alvo do poder'?': as análises de Foucault nos anos 70 buscam

antes

de tudo

compreender

como

se passou

de uma

concepção do poder em que se tratava o corpo como uma superfície de inscrição de suplícios e de penas a uma outra que buscava, ao contrário, formar, corrigir e reformar o corpo. Até o final do século XVIII,

o controle

enclausuramento:

social

do corpo

passa

pelo castigo

e pelo

"Com os príncipes, o suplício legitimava o poder

absoluto, sua 'atrocidade'

se desdobrava

sobre os corpos, porque o

corpo era a única riqueza acessivel'P"; em contra partida, nas instâncias de controle que aparecem desde o início do século XIX, trata-se, antes de tudo, de gerir a racionalização e a rentabilidade do trabalho industrial pela vigilância do corpo da força de trabalho: "Para que um certo liberali mo burguês tenha sido possível no nível das instituições, foi preciso, no nível do que eu chamo de micro-poderes, muito

mais

forte

esquadrinhamento **"Foi

dos

indivíduos,

um investimento

foi preciso

organizar

o

dos corpos e dos comportamentos=".

um problema de corpo e de materialidade - uma questão de

física - que proporcionou de materialidade

a grande renovação da época: nova forma

tomada pelo aparelho de produção,

novo tipo de

contato entre esse aparelho e o que o fez funcionar; novas exigências impostas aos indivíduos como forças produtivas [...] é um capítulo na 31 Surveiller e/ Punir. Pari: Gallimard, 1975, p. 138. [Tradução brasileira: Vigiar e punir. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987J. 32 La prision vue par un philosophc (rançais. In: L 'Europeo, n° 1515, abril de 1975. [Tradução brasileira: A prisão vista por um filósofo francês. In : Di/os e Escritos, vol. [V, p. 154J. 3] Sur Ia sellette. In : Les Nouvelles Littéraires, n? 2477, março de 1975. Retomado em Dits e/ Écrits, vol. 2, texto n° 152.

Judith

32

Revel

história do corpo'?". Sobre essa base, Foucault vai desenvolver análise em duas direções: a primeira corresponde

sua

a uma verdadeira

"física do poder" ou, como a designará mais tarde o filósofo, uma

anátomo-politica, uma ortopedia social, isto é, um estudo das estratégias e das práticas por meio das quais o poder modela cada indivíduo desde a escola até a usina; a segunda corresponde, por sua vez, a uma biopo/ítico, isto é, à gestão política da vida: não se trata mais de redomesticar vigiar os corpos

dos indivíduo,

e de

mas de gerir as "populações",

instituindo verdadeiros programas de administração da saúde, da higiene etc.

***Quando

Foucault começa a pesquisar a sexualidade, ele toma,

entretanto, consciência de duas coisa : de uma parte, é a partir de uma rede de somato-poderque nasce a sexualidade "como fenômeno histórico e cultural no qual nós nos reconhecemos'J",

e não a partir de uma

penetração moral das consciências: é preciso, portanto, fazer sua história; de outra parte, a atualidade da questão das relações entre o poder e os corpos é essencial: pode-se recuperar seu próprio corpo? A questão é ainda mais pertinente na medida em que Foucault participa, na mesma época, das discussõe

sobre o movimento

homossexual

e que é "essa

luta pelos corpos que faz com que a sexualidade seja um problema polftico'P". O corpo representa desde então um foco da resistência ao poder, uma outra vertente dessa "biopolítica"

que se torna o centro

da análises do filó ofo no final dos anos 70.

La societé punitive. In : Annuaire du Collêge de France, 1972-1973. [Tradução brasileira: A sociedade punitiva. Resumo dos Cursos do College de France (19701982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 41]. 35 Les rapports de pouvoir passent à I'intérieur des corps. In: La Quinzaine Littéraire, n° 247, janeiro de 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n? 197. 36 Sexualité et politique. In : Combat, n" 9274, abril de 1974. [Tradução bra ileira: Sexualidade e política. ln: Ditos e Escritos, vol. V, p. 26-36]. 34

Michel Foucault·

conceitos

essenciais

33

Cuidado de si / Técnicas de si

*

o início

vocabulário

dos anos 80, o tema do cuidado de

governamentalidade.

Foucault

no

de

prolongamento

S1

da

aparece

no

idéia

de

À análise do governo dos outros segue, com

efeito, aquela do governo de si, isto é, a maneira pela qual os sujeito se relacionam

consigo mesmos e tornam possível a relação com o

outro. A expressão "cuidado de si", que é uma retomada do epimeleia heauto« que se encontra, em particular, no Primeiro A/cebíades, de Pia tão, indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas que o sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se

a si mesmo.

o período

helenístico e romano sobre o qual se concentra rapidamente o interesse de Foucault, o cuidado de si inclui a máxima délfica gf1âtbi seautou, mas a ela não se reduz: o epime/eia beauto« corresponde

antes a um ideal

ético (fazer de sua vida um objeto de tekhnê, uma obra de arte) que a um projeto de conhecimento

** A

análi e do cuidado

em sentido estrito.

de si permite,

na verdade,

problemas. O primeiro consiste em compreender, o nascimento

estudar dois

em particular, como

de um certo número de técnicas ascéticas a partir do

conceito clás ico de cuidado de si foi, posteriormente, cristianismo."

atribuído ao

enhuma habilidade técnica ou profissional pode ser

adquirida, em exercício; nem se pode aprender a arte de viver, a technê

to« biou, em uma ascese que deve ser tomada como um treinamento de si por si"r. Qual é, então, o elemento que diferencia a ética grecoÀ propos de Ia génealogie de I'éthique : un aperçu du travail em cours. In: Rabinow, P. e Dreyfu , H. Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeutics. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. [Tradução brasileira: A propósito da genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In: Rabinow. P. e Dreyfus, H. Michel Foucault, 1111/0 trajetôria filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: 17

Foren

e

niversitária.

1995. p. 2721.

Judith

34

Revel

romana da moral pastoral cristã; e não é precisamente na articulação do cuidado de si com os apbrodisia que se pode compreender passagem da ética greco-romana

essa

à moral pastoral cristã? O segundo

problema concerne, na verdade, à história desses aphrodisia como campo de investigação apreender

específico

da relação com o si: trata- e de buscar

como os indivíduos

foram levados

a exercer

sobre si

mesmos e sobre os outros "uma hermenêutica

do desejo na qual seu

comportamento

envolvido,

sexual esteve, sem dúvida,

mas não,

certamente, como domínio exclusivo", e de analisar os diferentes jogos de verdade utilizados no movimento de constituição do si como sujeito do desejo. ***Na

Antigüidade clássica, o cuidado de si não está em oposição

ao cuidado dos outros: ele implica, ao contrário, relações complexas com os outros porque é importante,

para o homem livre, incluir na

sua "boa conduta" uma justa maneira de governar sua mulher, suas crianças ou sua casa. O ethos do cuidado de si é, portanto, igualmente uma arte de governar os outros e, por isso, é essencial saber tomar cuidado de si para poder bem governar a cidade. É sobre esse ponto, e não sobre a dimensão ascética da relação consigo, que se efetua a ruptura da pastoral cristã: o amor a si torna-se a raiz de diferentes falhas morais e o cuidado dos outros implica, doravante, uma renúncia de si no transcurso da vida terrena.

Michel Foucault:

conceilos

35

essenciais

Disciplina * Iodalidade de aplicação do poder que aparece entre o final do século XVIII e o início do éculo XIX. O "regime disciplinar" caracteriza-se

por um certo número de técnicas de coerção que exercem

um esquadrinhamento movimento

sistemático

do indivíduos

os gestos, os corpos: "Técnicas vigiar alguém, como controlar atitudes,

como

capacidades,

intensificar

de individualização sua conduta,

**Os

e do

as atitudes,

do poder. Como multiplicar

suas suas

no lugar onde ele será mais útil"38. O à lei ou à regra jurídica derivada da

ela produz um discurso sobre a regra natural, isto é, . obre

procedimentos

disciplinares se exercem mais sobre o. processos

da atividade do que sobre seus resultados suas força.

[...] impõe uma relação

"disciplinas"

não nascem,

forças armada

fórmulas gerais de dominação. é o momento

-, mas Foucault

elas tornaram-se,

de As

no século

desde há muito tempo nos conventos,

, nas oficina

de que maneira

e "a sujeição constante

de docilidade-utilidade'P",

com certeza, verdadeiramente

XVIII - elas se encontram

somente

do espaço

seu comportamento,

sua performance,

como colocá-Io

discurso da disciplina é estranho soberania: a norma.

do tempo,

e que atingem particularmente

nas

procura

compreender

num determinado

momento,

"O momento

histórico das disciplinas

em que nasce uma arte do corpo humano, que não visa

ao crescimento

de suas habilidades,

nem ao incremento

de

sua sujeição, mas à formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil ele for, e inversamente't'",

"Lc mailles du pouvoir. op. cit. nota 26. 19 Surveiller et Punir, op. cit. nora 31. 10 Surveiller et Punir, op. cit. nota 31.

Judirh Revel

36

Essa "anatomia politica" investe então sobre as escolas, os hospitais, os lugares de produção, e mais geralmente sobre todo espaço fechado que possa permitir a gestão dos indivíduos no espaço, sua repartição e sua identificação. O modelo de uma gestão disciplinar perfeita está proposto

por meio da formulação

lugar de enclausuramento decomposição

benthaminiana

do "panóptico",

onde os princípios de visibilidade total, de

das massas em unidades e de sua reordenação complexa

segundo uma hierarquia rigorosa permitem

submeter cada indivíduo

a uma verdadeira

numerosas

disciplinares

economia

- prisões,

do poder:

escolas, asilos - possuem

instituições

ainda hoje uma

arquitetura panóptica, isto é, um espaço caracterizado, de uma parte, pelo enclausuramento por um abrandamento ***0

e pela repressão

dos indivíduos,

do funcionamento

e, de outra,

do poder.

modelo disciplinar foi, sem dúvida, em parte con truído em

torno da experiência que Foucault teve, a partir de 1971-72, no interior do GIP (Grupo de Informação

sobre as Prisões). É somente entre a

publicação de Vzgiar e pnnir (1975) e os cursos do Collêge de France, de 1978-79, que Foucault começa a trabalhar num outro modelo de aplicação do poder, o controle,

que trabalha

ao mesmo

tempo a

descrição da interiorização da norma e da estrutura reticular das técnicas de assujeitamento,

a gestão das populações

e as técnicas de si. Essa

passagem de uma leitura disciplinar da história moderna leitura "contemporânea"

do controle

dos anos 70, a um nítido engajamento de "antologia

da atualidade".

social correspondeu,

para uma no final

naquilo que Foucault chamou

Michel Foucault: conceitos es enciai

37

Discurso *0

discurso

enunciados

designa, que podem

em geral, para Foucault, pertencer

a campos

um conjunto

diferentes,

obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento

mas que

comuns. Essas

regras não são omente lingüísticas ou formais, mas reproduzem certo número de cisões historicamente grande própria

separação

determinada

entre razão/ desrazão):

a um período

particular

um

(por exemplo, a

a "ordem

possui,

de

portanto,

normativa e reguladora e coloca em funcionamento

do discur o" uma função mecanismos de

organização do real por meio da pr dução de saberes, de estratégias e de práticas. **0

interes

imediatamente

e de Foucault

pelos

"planos

discursivos"

foi

duplo. De um lado, tratava-se de analisar as marcas

di cursivas, procurando isolar as leis de funcionamento

independente

da natureza e das condições de enunciação, o que explica o interesse de Foucault, na mesma época, pela gramática, pela lingüística e pelo formalismo:

"foi original e importante

a descoberta

de que aquilo

que se faz com a linguagem - poesia, literatura, filosofia, discurso em geral-

obedece a um certo número de leis e de regularidades internas:

as leis e as regularidades da linguagem. O caráter lingüístico dos fato de linguagem foi uma de coberta muito importante":"; mas, de outro, tratava- e de descrever a transformação

dos tipo

de discurso nos

séculos À'VII e XVIII, isto é, de historicizar o procedimentos

de

identificação e de classificação próprios de se período: nesse sentido,

4'

La vérité et les forme juridique

, op. cit. nota 28.

Judith

38 a arqueologia

foucaultiana

dos discursos

lingüistica, mas uma interrogação de dispositivos

discursivos

da Loucllt(1) ou as engendram

sobre as condições

uma análise

de emergência

práticas (como em História

(como em As Palavras e as Coisas ou em esse sentido,

língua/fala

alternativamente:

não é apenas

que sustentam

A arq/leologia do Saber). saussureano

Revel

Foucault

por duas oposições

substitui

o par

que ele faz funcionar

o par discurso/linguagem,

no qual o discurso

é,

o que é renitente à ordem da linguagem em geral (é,

paradoxalmente,

por exemplo, o caso do "esoterismo

estrutural"

- e é preciso

Foucault

notar que o próprio

de Raymond Roussel) anulará

essa oposição,

sua aula inaugural no Collêge de France como A Ordem do

intitulando

Discurso, em 1971; e o par discurso/ fala, no qual () discurso se torna o eco lingüístico como

da articulação

instância

subjetiva,

resistência à "objetivação ***0

entre saber e poder, e no qual a fala, encarna,

ao contrário,

uma prática

discur iva" .

aparente abandono

do tema do discurso depois de 1971, em

proveito de uma análise das práticas e das estratégias, corresponde que Foucault descreve como a passagem "dinastia do saber": não mais somente discursividade

de

de uma arqueologia

a descrição

e de sua eventual transgressão,

ao

a uma

de um regime de

mas a análise "da relação

que existe entre esses grandes tipos de discurso e as condições históricas, as condições

econômicas,

a condições

politicas de seu aparecimento

e de sua forrnação't'". Ora, esse deslocamento, metodológica

da arqueologia

que embasa a passagem

à genealogia, permite problematizar

condições

do desaparecimento do "discurso":

resistência,

onipresente

() tema das práticas

as de

em Foucault a partir dos anos 70, possui, na

realidade, uma origem discursiva .

De I'archéologie à Ia dynastique. Entretien avec S. Hasurni, scpiernbre 1972. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 119. [Tradução brasileira: Da arqueologia

•2

à dinástica.

In: Ditos e Escritos.

vol. IV, p. 491.

Michel Foucault:

conceitos

39

essenciais

Dispositivo *0

termo "dispositivos"

inicialmente

aparece em Foucault nos anos 70 e designa

os operadores

materiais do poder, isto é, as técnicas, as

estratégias e as formas de assujeitamento do momento do poder,

utilizadas pelo poder. A partir

em que a análise foucaultiana

se concentra

o filósofo insiste sobre a importância

"do edifício

jurídico

da soberan.ia,

não

do Estado,

das

dos aparelhos

ideologias que o acornpanham'r", mas dos mecanismos é essa escolha metodológica "dispositivos".

táticas moventes:

quanto

de práticas,

de poder",

disciplinares",

de instituições

aparecimento

de "dispositivos

de "dispositivos

do termo "dispositivo"

de Foucault está provavelmente Guattari

a utilização da noção de trata-

quanto

de

é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso,

de "dispositivos

**0

de dominação:

Eles são, por definição, de natureza heterogênea:

se tanto de discursos

"dispositivos

que engendra

na questão

de se ocupar

de saber",

de sexualidade" no vocabulário

de

etc.

conceitual

ligado à ua utilização por Deleuze e

no .Anti-Édipo (1972): é, pelo menos, o que deixa entender o

prefácio que Foucault escreveu em 1977 para a edição americana do livro, visto que ele aí ob erva "a multiplicidades, Posteriormente, (mesmo

4, ll faut

de fluxos,

noções em aparência

de dispositivos

abstratas de

e de rarnificaçõe

"44.

o termo receberá uma acepção cada vez mais ampla

que, no começo,

Foucault

somente

utilize

a expressão

défendre Ia société, Paris: Seuil, 1997. [Tradução brasileira: Em defesa da sociedade. Curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999]. 44 Prefácio a Deleuze, G. e Guauari, F. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 189.

Judith Revel

40 "dispositivo

de poder")

uma reflexão expressão

completa

"dispositivo

"um conjunto instituições,

e cada vez mais precisa, após A

decididamente

medidas administrativas, morais, filantrópicas.

uontade de saber (1976),

de sexualidade"

organizações

até ser objeto

em que a

é central: um dispositivo

heterogêneo

arquitetõnicas,

de

que engloba

discursos,

decisões regulamentares,

enunciados científicos, proposições

~m suma: o dito e o não-dito

l.. ']'O

é leis,

filosóficas, dispositivo

é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos'r". O problema é, então, para Foucault, o de interrogar dispositivos

***

que ele encontra

a verdade,

tanto a natureza dos diferentes

quanto sua função estratégica.

a noção de dispositivo

substitui

pouco

a pouco

aquela de episteme, empregada por Foucault, de um modo absolutamente particular,

em As palavras e as coisas e até o final dos anos 60. Com

efeito, a episteme é um dispositivo o "dispositivo",

no sentido

especificamente

que Foucault

tarde, contém igualmente instituições não-discursivo

discursivo, enquanto

explorará

dez anos mais

e práticas, isto é, "todo o social

"46.

Le jeu de Michel Foucault. Ornicar? Bulletin périodique du champ [reudien. n" 10, julho de 1977. (Tradução brasileira: Sobre a história da sexualidade. In: Microftsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 244). 46 Le jeu de Michel Foucault, op. cit. nota 45.

4j

Mjchel Foucault:

conceitos

essenciais

41

Episteme *0

termo "episterne"

está no centro das análises de As Palavras e as

Coisas (1966) e deu lugar a numerosos

debates na medida em que a

noção é, ao mesmo tempo, diferente da de "sistema" - que Foucault praticamente

nunca utiliza antes que sua cadeira no Collêge de France

fosse, a seu pedido, rebatizada, em 1971, como "cadeira de história dos sistemas de pensamento"

- e da de "estrutura".

Por episteme,

Foucault designa, na realidade, um conjunto de relações que liga tipos de discursos

e que corresponde

todos esses fenômenos

a uma dada época histórica: "são

de relações

entre as ciências ou entre os

diferentes discursos científicos que constituem aquilo que eu denomino a episteme de uma época":" **Os

mal-entendidos

engendrados

nos anos 60 pelo u o da noção

devem-se a dois motivos: de um lado, interpreta-se

a episteme como

um sistema unitário, coerente e fechado, isto é, como uma coerção hi tórica, que implica uma sobredeterminação

rígida dos discursos; e,

de outro lado, acusa-se Foucault de um certo relativismo histórico, isto é, ele foi instado a explicar a ruptura epistêrnica e a descontinuidade gue a pa sagem de uma episteme a outra necessariamente implica.

obre

o primeiro ponto, Foucault responde que a episteme de uma época não é "a soma de seus conhecimentos

ou o estilo geral de suas pe guisas,

mas o desvio, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de seus múltiplos discur os científicos: a episteme não é tona espécie de gratlde

Le problêrnes de Ia culture. Un débat Foucault-Preli. In: 11Bimestre, n? 22-23, setembro-dezembro. 1972. Retomado em Dits et Écrits, vol. 2, texto n? 109.

4?

Judith

42

Revel

teoria subiacente, é um espaço de dispersão, é um campo aberto nào é lima cobertura de história simultâneo

comum

de remanêndas especificas"48.

consciência,

Foucault

deslocamentos; múltiplos

descreve,

a todas as ciências; é um jogo

[ais do que uma forma geral da

portanto,

um feixe de relações e de

não um sistema, mas a proliferação

sistemas

que remetem

l ... 1 a episteme

e a articulação de

uns aos outros.

Sobre o segundo

ponto, Foucault reivindica, por meio do uso da noção, a substituição da questão abstrata da mudança os historiadores) "substituir,

(particularmente

por aquela dos "diferentes

tipos de transformação":

enfim, o tema do devir (forma geral, elemento

causa primeira

e efeito universal,

mistura confusa

novo) pela análise das transformações ***0

viva, na época, para

abandono

e do

em sua especificidade":".

da noção de episteme corresponde

do interesse de Foucault, de objetos estritamente não-discursivas

abstrato,

do idêntico

ao de locamento

discursivos a realidades

- práticas, estratégias, instituições etc: "Em As Palaoras

e as Coisas, querendo

fazer uma história da epistelJle, permanecia

num

impasse. Agora, gostaria de mostrar que o c1ue chamo de dispositivo é algo muito mais geral que compreende episteme é um dispositivo

especificam

a episteme. Ou melhor, que a nte discursivo,

do dispositivo, que é discursivo e não-discursivo,

diferentemente

sendo seus elementos

muito mais heterogêneos":".

Réponse à une questiono ln: Esprit, na 371, maio 1968. Retomado em Dits et Écrits, vol. I, texto N° 58. 49 Réponse à une question, op. cit. nota 48. 50 Le jeu de Michel Foucault. op. cit. nota 45. 4H

Michel Foucaull:

conceitos

essenciais

43

Estética (da existência) *0

tema de uma "estética da existência"

em Foucault

no momento

História da Sexualidade,

aparece muito nitidamente

da aparição dos dois últimos volumes da

em 1984. Foucault faz, com efeito, a descrição

de dois tipos de moral radicalmente

diferentes,

uma moral greco-

romana dirigida para a ética e por meio da qual se trata de Jazer de SIIa vida lima obra de arte, e uma moral cristã no interior da qual se trata, ao contrário, essencialmente, pela Antigüidade, uma

moral

foi porque, por toda uma série de razões, a idéia de

como

desaparecendo,

regras

está

que é aquela

de uma estética

da

da existência ligada à moral antiga marca em Foucault

ao tema da invenção de si (Jàzer de sua vida lima obra de alte):

certo número

a que ele já havia chegado

de textos "literários"

H.aYfJ/ond Roussel, mas igualmente

em filigrana num

nos anos 60 (por exemplo,

nas análises consagradas

no

a Brisset e a

e que ele retoma vinte anos mais tarde por meio de uma

série de discursos.

Sexualidade,

de

E a esta ausência de moral corresponde,

uma busca

uma problematização

dupla

código

ligados.

** A "estética"

Wolfson),

a um

Os temas da ética e da estética da existência estão portanto

estreitamente

o retorno

obediência

já desapareceu.

deve corresponder existência'?'.

de obedecer a um código: "Se me interessei

A primeira,

está essencialmente

que representa

a "pastoral

passa, em contrapartida,

no interior

da História

ligada à problematização

da

da ruptura

cristã" em relação à ética grega; a segunda pela análise da "atitude

da rnodernidade"

Une esthétique de I'existence. In: Le Monde, 15-16 de julho de 1984. [Tradução bra ilera: Uma estética da existência. In: Ditos e Escritos, vol V, p. 290].

51

Judith

44

Revel

(por meio da retomada do texto kantiano sobre as Luzes) e faz da invenção de si uma das características

dessa atitude: a modernidade

não é somente a relação com o presente, mas a relação consigo mesmo, na medida em que "ser moderno se é no fluxo dos momentos

não é aceitar a si mesmo tal como

que passam; é tomar a si mesmo como

objeto de uma elaboração complexa e dura: o que Baudelaire chama, de acordo com o vocabulário da época, de 'dandismo't'F,

A estética

da existência é, ao mesmo tempo, o que Foucault localiza fora da influência da pastoral cristã (temporalmente: espacialmente: o interesse contemporâneo

o retorno aos Gregos;

de Foucault pelo zen e pela

cultura japonesa) e o que deve, de novo, caracterizar a relação que nó mantemos ***0

com a nossa própria atualidade.

tema da estética da existência como produção inventiva de si

não marca, entretanto,

um retorno

à figura do sujeito soberano,

fundador e universal, nem a um abandono do campo político: "penso, pelo contrário, que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação't".

A

estética da existência, na medida em que ela é uma prática ética de produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente: é, portanto, um gesto eminentemente

~2 S3

político.

What's enlightenment? , op. cit. nota 6. Une e thétique de l'exi tence, op. eu, nota 51.

Michel Foucaull:

conceitos

45

essenciais

,

Etica

*

os últimos volume

da História da sexualidade, Foucault distingue

claramente entre o que é preciso entender por "moral" e o que significa "ética' . A moral é, em sentido amplo, um conjunto regras de ação que são propostas meio de diferentes

aparelhos

ao

indivíduos

prescritivos

de valores e de e aos grupos

(a família, as instituições

educativas, as Igrejas etc.); essa moral engendra uma "moralidade comportamentos", consciente

isto é, uma variação

individual

em relação ao sistema de prescrições

Por outro lado, a ética concerne a si mesmo condutas

como

sujeito

dos

mais ou menos do código moral.

à maneira pela qual cada um constitui

moral do código:

[...], há diferentes

por

maneiras

"Dado

de o indivíduo

um código de 'conduzir-se'

moralmente,

diferentes maneiras para o indivíduo, ao agir, não operar

simplesmente

como agente, mas im como sujeito moral dessa ação"?'.

** A

toda ética corresponde

a determinação

ética", isto é, a maneira pela qual um indivíduo

de uma "substância faz de si mesmo a

matéria principal de sua conduta moral; da mesma maneira, ela implica necessariamente individuo

um modo de sujeição, isto é, a maneira pela qual um

se relaciona com uma regra ou com um sistema de regras e

experimenta que descreve

a obrigação de colocá-Ias em ação. A ética greco-romana Foucault, em particular

no segundo volume da História

da Sexualidade (O uso dos prazeres), tem por substância ética os apbrodisia e seu modo de sujeição é uma e colha pessoal estético-politica

(não se

trata tanto de respeitar um código quanto de "fazer da sua vida uma Usage des plaisirs et techniques de sai. ln: Le Débat, n? 27, novembro 1983. [Tradução brasileira: O Uso dos Prazere e a Técnicas de Si. In : Ditos e Escritos, vol, V. p. 211-212).

54

Judith

46

Revel

obra de arte"). Em contrapartida,

a moral cristã funciona não sobre a

escolha mas sobre a obediência,

não sobre os apbrodisia (que são ao

mesmo tempo o prazer, o desejo e os atos), mas sobre a "carne" coloca

entre

parênteses

tanto

o prazer

quanto

o desejo):

(que

com o

cristianismo, "o modo de sujeição é, então, a lei divina. E creio que até mesmo a substância

ética mudou, porque ela não é mais constituida

pela apbrodisia, mas pelo desejo, pela concupiscência,

***0

pela carne etc.?".

termo ética aparece pela primeira vez de maneira realmente

significativa em 1977, em um texto

obre O .Anti-Édipo de Deleuze e

Guatarri: "Eu diria que O Anti-Édipo (perdoem-me livro de ética, o primeiro depois de muito tempo?". caracteriza

da mesma

os autores) é um

livro de ética que se escreveu E é interessante

maneira,

constatar

estabelece

consigo

que Foucault

alguns anos mais tarde, sua própria

História da Sexllalidade: "se, por 'ética' entender-se indivíduo

na França

mesmo,

a relação que o

eu diria que tende a ser uma

ética, ou, pelo menos, tentarei mostrar o que poderia ser uma ética do comportamento

sexual"?". E para além da sexualidade,

uma "ontologia

crítica da atualidade"

de uma "política foucaultiano problematização

de

como uma ética": isso quer dizer que o interesse

pela

ética,

nos

ano

filosófica e histórica

sua aplicação aos indivíduos, partir

o projeto

recebe, às vezes, a formulação

da constituição

re-propõe

80, longe

de ser o fim da

das estratégias

do poder e de

a análise do campo político a

ética dos sujeitos,

a partir

da produção

da

subjetividade.

55

A propos de Ia généalogie de l'éthique : un aperçu du travail cn cours, op. cit.

nota 37. Prefácio a Deleuze, G. e Guartari, F. Anti-Oedipus, op. cit. nota 44. Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins. In: Ethos, vol. &, n° 2. 1983. Retomado em Dits et Écrits. vol 4, texto n° 336.

56

57

Michel Foucault:

conceitos

47

essenciais

Expêriencia

*A noção filosófico

de experiência de Foucault,

no decorrer experiência

e tá presente

ao longo de todo o percurso

mas ela passa por importantes

dos anos.

e é verdade

que, de maneira

geral,

é alguma coisa da qual saímos transforrnados't",

refere-se, inicialmente,

a uma experiência

e de uma experiência

"experiência

do exterior",

"a

Foucault

que deve muito, ao mesmo

tempo, a Bataille e a Blanchot: no cruzamento limite

modificações

de uma experiência do

da linguagem ele procura,

considerada

com efeito,

como

definir

- em

particular no domínio da literatura - uma experiência do ilimitado, do intransponível,

do impossivel, isto é, daquilo que afronta, na realidade,

a loucura, a morte, a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, da linguagem,

seu próprio

muito diferentemente, maneira abordagem

espaço de fala.

a experiência

de distinguir

um segundo

momento,

se torna para Foucault

a genealogia

ao mesmo

tempo

a única de uma

empírica ou positivista e de uma análise teórica: se algumas

problematizacõe

nascem de uma experiência (por exemplo, a e critura

de Vigiar e Punir depois

da experiência

sobre as Prisões e, mais amplamente, que o pensamento experimentação: histórica

na espessura

filosófico

de Foucault

das práticas,

e é devido

de Informação

depois de 1968), é no sentido de . é verdadeiramente

ele dá, com efeito, a ver o movimento

dos discursos,

subjetividades,

do Grupo

das relações

a essa relação

uma

da constituição de poder

com a genealogia

e das que a

Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori, Paris, 1978). In: 1/ Contributo, 4 année, n. I. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, 1994, texte n. 281.

5N

Judith

48

Revel

experiência sai dela mesma modificada: "Meu problema é o de fazer eu mesmo - e de convidar os outros a fazerem comigo, por meio de um conteúdo

histórico determinado

- uma experiência

daquilo que

nós somos, daquilo que é não omente o nosso passado mas também o nosso presente,

uma experiência

de nossa modernidade

de tal

maneira que dela saiamos transformados."?

**Enquanto

a experiência fenomenológica

(à qual Foucault se refere

ainda, em parte, nos seus textos dos anos 50) procura, na realidade, "retomar

a significação da experiência

cotidiana para compreender

de que maneira o sujeito que eu sou é realmente fundador, em suas funções transcendentais, daquela experiência e de suas significações't'", a referência a

ietzsche, a Bataille e a Blanchot permite, ao contrário,

definir a idéia de uma experiência-limite

que arranca o sujeito dele

mesmo e lhe impõe sua fragmentação ou sua dissolução. Assim, tornase evidente que a referência a Bataille seja essencial e que Foucault censure os surrealistas, mesmo reconhecendo percorrer experiência

que Breton tenha tentado

limites, por tê-Ias mantido em um espaço da

psique. O fato de construir-se

a partir do apagamento

do sujeito faz

com que essa idéia da experiência como passagem ao limite não esteja, na realidade, tão distante das outras análi es de Foucault nos anos 60: ele atualiza nela o horizonte desenhado pelo final de As Palatras e as Coisas -

O

possível desaparecimento

consciência autônoma

do homem

ao mesmo tempo como

e como objeto de conhecimento

privilegiado:

"uma experiência está prestes a nascer onde o que está em jogo é o

59 60

Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori), Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori),

op. cit. nota 58. op. cit. nota 58.

Michel Foucault:

nosso pensamento;

conceitos

49

essenciaj;

sua iminência já visível, mas absolutamente

vazia,

não pode ainda ser nomeada"?'.

***Se

é verdade que a maior parte das análises de Foucault na ce de

uma experiência podem, Foucault

alguma,

coloca-se

experiência, crítica

pe soal - como

de maneira

como

ampliando-a

dos filósofos

solitariamente,

ele mesmo

tarefa

para além do si (um

do sujeito):

- elas não

a isso. Ao contrário,

a reformulação a experiência

mas que é plena somente

pura subjetividade,

reconhece

serem reduzidas

da noção

i já maltratado

de pela

é algo que se dá

na medida em (lue escapa à

isto é, que outros podem cruzá-Ia ou atravessá-Ia.

A partir dos anos 70, é, pois, sobre o terreno de uma prática coletiva - i to é, no campo político - que Foucault procura situar o problema da experiência

como momento

de transformação:

o termo passará,

então, a ser associado

ao mesmo tempo à resistência aos dispositivos

de poder (experiência

revolucionária,

de sublevação)

e aos processos

experiência de lutas, exp riência

de subjetivaçâo.

La folie, l'absence d'ceuvre, La Table Ronde, n° 196 : Situation de Ia psychiatrie, 1964, retomado em Dits et Écrits, vol. I, texto n° 25. [Tradução brasileira: A loucura, a ausência da obra. In : Ditos e Escritos, vol. I, p. 219].

61

Judith

50

Revel

Exterior *Em

1966, num texto consagrado

define a "experiência

do exterior"

e do "eu falo": a linguagem

Blanchot'" Foucault

a Maurice

corno a dissociação

deve enfrentar

do "eu penso"

o desaparecimento

do

sujeito que fala e inscrever seu lugar vazio corno fonte de sua própria expansão indefinida. A linguagem escapa, então, "ao modo de ser do discurso - ou seja, à dinastia da representação

- e o discurso literário

se desenvolve

urna rede em que cada

ponto,

a partir dele mesmo, formando

distinto

dos outros,

à distância

mesmo

dos mais próximos,

está situado em relação a todos num espaço que ao mesmo tempo os abriga e os separa'r".

**Essa

passagem ao exterior como desaparecimento

fala e, contemporaneamente,

como

aparição

do sujeito que

do próprio

ser da

linguagem, caracteriza para Foucault uma espécie de linhagem marginal da cultura ocidental, cujo pensamento definir as formas e as categorias de

"será necessário

fundamentais".

um dia tentar

De Sade a Hôlderlin,

ietzche a Mallarmé, de Artaud a Bataille e a Klossowski,

sempre de considerar tempo

essa passagem

a fragmentação

descentramento

da experiência

isto é, ao mesmo

da interioridade

Foucault,

linguagem a reflexividade uma dissolução

Blanchot

parece ter conseguido

da consciência

e transformado

da narração que valoriza "o interstício

tirar da

a ficção em das imagens".

dessa palavra sem raiz e sem fundações,

La pensée du dehors. In: Critique, n. 229, 1966. [Tradução pensamento do exterior. ln: Ditos e Escritos, vol. Hl, p. 219-242). 63 La pensée du dehors, op. cit. nota 62.

62

e o

da linguagem em direção ao seu próprio limite: nesse

sentido, segundo

O paradoxo

ao exterior,

trata-se

que se revela brasileira:

O

Michel Foucaull:

como

deslizamento

dispersão, recebeu

e como

é que ela representa linguagem

murmúrio,

conceitos

como

5/

essenciais

divisão

e como

um avanço em direção ao que nunca

- a própria

linguagem,

que não é nem reflexão

nem ficção, mas jorro infinito - ou seja, oscilação indefinida

entre a

origem e a morte. ***0

tema do exterior

interliga o autores do a "linhagem

é interessante,

ao mesmo

tempo, porque

quai Foucault se ocupa no mesmo período

do exterior",

da qual Blanchot

seria a encarnação

-

mais

evidente - e porque forma um contra ponto radical com aquilo que o filósofo se aplica a de crever, no mesmo

momento,

Com

o risco de reconduzir

efeito,

quando

Foucault

sublinha

do exterior à dimensão

experiência

dotá-Ia de uma linguagem

da interioridade

em seus livros. a

e a dificuldade de

que lhe seja fiel, ele se refere à fragilidade

desse "exterior":

não há exterior possível numa descrição arqueológica

dos dispositivos

discursivos

tal como apresentada

em As pala/Iras e as

Coisas. Será somente bem mais tarde que Foucault deixará de pensar o "exterior"

como

exterioridade,

uma passagem

ao limite

mais entre o de dentro e o

de fora, entre o reino do sujeito e o murmúrio objetivada

subjetividade,

uma pura

e que ele lhe dará um lugar no seio mesmo da ordem

do discurso: a oposição não será, portanto, linguagem

ou como

anônimo,

e a palavra de resistência,

mas entre a

entre o sujeito e a

isto é, aquilo que Deleuze chamará "a dobra".

dobra

- e o termo já fora., estranhamente,

utilizado por Foucault em 1966 -

, é o fim da opo ição dentro/fora,

porque é o exterior do dentro. E

Foucault

conclui:

"l... ] estarnos

sempre no interior. A margem é um

mito. A fala do exterior é um sonho que não paramos de repetir"?'.

L'extension sociale de Ia norme. In: Politique Hebdo, nO212, março de 1976. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3. texto n° 173.

64

Judirh Reve!

52

Genealogia *Desde a publicação deAs Palavrase as Coisas (1966), Foucault qualifica seu projeto de arqueologia "genealogia nietzschiana" conceit

é retomado

ietzsche:

mais como uma

do que como uma obra estruturalista. Esse

e precisado,

a genealogia

"desdobramento

das ciências humanas

em 1971, em um texto sobre

é uma pesquisa

meta-histórico

histórica

que se opõe ao

das significações

ideais

e das

indefinidas teologias'", que se opõe à unicidade da narrativa histórica e

à busca da origem, e que procura, ao contrário, a "singularidade dos acontecimentos

fora de qualquer finalidade monótona'?".

trabalha, portanto,

A genealogia

a partir da diversidade e da dispersão, do acaso

dos começos e dos acidentes: ela não pretende voltar ao tempo para restabelecer

a continuidade

restituir os acontecimentos **0

da história, mas procura,

ao contrário,

na sua singularidade.

enfoque genealógico não é, no entanto, um simples ernpirismo,

"nem tampouco um positivisrno, no sentido habitual do termo". Tratase, de fato, de ativar saberes locais, descontínuos,

desqualificados, não

legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurálos, hierarquizá-Ios,

ordená-Ios

em nome

de um conhecimento

verdadeiro [...]. As genealogias não são, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata; as genealogias são mais exatamente

anti-aênaasí'",

O método

genealógico

é, portanto,

Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, In: Dits et Écrits, vol. 2, texto n? 84. [Tradução brasileira: Nietzsche, a Genealogia, a História. In: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 261]. 66 Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, op. cit. nota 65. 65

Michel Foucault:

conceitos

essenciais

53

uma tentativa de desassujeitar os saberes hi tórico ,isto é, de torná-los capazes de oposição

e de luta contra "a ordem do discurso";

isso

significa que a genealogia não bu ca somente no passado a marca de acontecimento

ingulares, mas que ela se coloca hoje a questão da

possibilidade dos acontecimentos:

"ela deduzirá da contingência que

nos fez ser o que somos, a possibilidade

de não mai

ser, fazer ou

pensar o que somos, fazemos ou pensarnos'r".

***A genealogia de

oucault

permite apreender de maneira coerente o trabalho

desde os primeiros

textos

(antes que o conceito

de

genealogia começasse a ser empregado) até os últimos. Foucault inclica, com efeito, que há três domínios possíveis de genealogia: uma antologia histórica

de nó -rnesrnos em nossas relações com a verdade,

permite nos constituirmos

como sujeitos de conhecimento;

que

nas nossas

relações com um campo de poder, que permite nos constituirmos como sujeitos que agem sobre os outros; e em nossas relações com a moral, que permite nos constituirmos

como agente

éticos. "Todos

o três [eixos possíveis para a genealogia] estavam presentes, embora de forma um tanto confu a, em História da Loucura. Estudei o eixo da verdade em

astimento da Clínica e As Palavras e as Coisas. Desenvolvi o

eixo do poder

em Vigiar

e Punir, e o eixo moral em História

da

eXllalidade"69.

Cour du 7 janvier 1976. In: Microfisica dei potere. Torino : Enaudi, 1977. [Tradução brasileira; Genealogia e Poder. 111: Microfisica do Poder. Rio de Janeiro : Graal,1999,p.17I]. 68 What's enlightenment?, op. cit. nota 6. 69 À propos de Ia génealogie de I'éthique: un aperçu du travail em cours, op. cit. nota 37. 67

Judith

54

Revel

Governamentalidade * A partir de 1978, em seu curso no Co//ege de France, Foucault analisa a ruptura que se produziu

entre o final do século XVI e o início do

século À'VII e que marca a passagem de uma arte de governar herdada da Idade

Iédia,

cujos

tradicionais

(sabedoria,

(prudência,

reflexão),

princípios

retomam

justiça, respeito

a

virtudes

a Deus) e o ideal de medida

para uma arte de governar

cuja racionalidade

tem por princípio e campo de aplicação o funcionamento a "governamentalidade"

morais

do Estado:

racional do Estado. Essa "razão do Estado"

não é entendida como a suspensão imperativa das regras pré-existentes, mas como uma nova matriz de racionalidade com o soberano

que não tem a ver nem

de justiça, nem com o modelo

maquiavélico

do

Príncipe. **"Por

e sa palavra 'governarrientalidade',

Por governamentalidade, instituições, permitem

eu entendo

procedimento,

eu quero dizer três coisas.

o conjunto

constituído

análises e reflexõe , cálculos e táticas que

exercer essa forma bastante específica e complexa de poder,

que tem por alvo a população,

como

economia política e por instrumentos

forma

principal

de

tendência que em todo o Ocidente muito tempo, à preeminência de "governo"

do processo

entendo

conduziu incessantemente,

a

durante

desse tipo de poder que se pode chamar

sobre todos os outros

Enfim, por governamentalidade,

aber a

técnicos essenciais os dispositivos

de segurança. Em segundo lugar, por governarnentalidade,

resultado

pelas

- soberania,

disciplina

etc [...1.

eu creio que seria preciso entender

através do qual o Estado

o

de justiça da Idade

Média, que se tornou nos séculos XVI e XVII Estado administrativo,

Michel

foi

pouco

a

pouco

governamentalidade

Foucault:

conceitos

essenciais

55

A

nova

'governamentalizado,>7O.

da razão do Estado

se apóia sobre dois grandes

conjuntos de saberes e de tecnologias políticas, uma tecnologia políticomilitar

e uma "policia".

encontra-se

o comércio

enriquecimento aumentar

o cruzamento e a circulação

pelo comércio

a população,

dessas duas tecnologias,

interestatal

a mão-de-obra,

*** A

de uma "economia

da "população",

território,

o conjunto

"espécie humana",

das estratégias

educação

da

moderna

coloca

pela pnmeJra

vez o

isto é, não a soma dos sujeitos de um

(biopolítica).

geral da

pela gestão politica global Essa

biopolítica

uma gestão da população,

que os indivíduos,

relação a eles mesmos governamentais

Esse par está no fundamento

mas o objeto construído

não somente

e

O par população-riqueza

de sujeitos de direito ou a categoria

da vida dos indivíduo entretanto,

e a exportação,

política",

governamentalidade

problema

de

e da cameralistica, o objeto privilegiado

da nova razão governamental,,71. formação

a possibilidade

a produção

de se dotar de armas fortes e numerosas. foi, na época do mercantilismo

da moeda: "é do

que se espera

na sua liberdade,

implica,

mas um controle podem

ter em

e uns em relação aos outros. As tecnologias

concernem,

e da transformação

portanto,

também

dos indivíduos,

ao governo

da

àquele das relações

familiares e àquele das instituições. É por essa razão que Foucault estende a análise governo

da governamentalidade

dos outro

de si: "Eu chamo 'governamentalidade'

técnicas de dominação

para uma análise do o encontro

entre as

exercidas sobre os outros e as técnicas de si"n.

La gouvernamentalité. Cours ou Collêge de France, 1977-1978: Sécurité. territoire, population, 4a aula, 10 de fevereiro de 197 . ln: Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 239. [Tradução brasileira: A Governamentalidade. In: Microjísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 291-292J. 71Sécurité, territcire. population [ Segurança. território e população. ln: Resumo dos Cursos do Collêge de France (/970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 841· 72 Lcs techniques de soi. ln : Technologies of lhe Sel]. A Seminar with M. FOI/caI/lI. Massachuseus, U.P., [988. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n'' 363.

70

Judith

56

Revel

Guerra *Foucault

se interessa pela guerra durante um período relativamente

breve, entre 1975 e 1977, e de maneira extremamente

intensa, pois ele

lhe consagra um ano de curso no Collêge de France". A primeira referência à guerra limita-se a inverter a fórmula clausewitziana?' a fim de descrever a situação da crise international

criada pelos choques

petrolíferos: "a política é a continuação da guerra por outros meios"75. Dessa forma, Foucault

retoma

teoricamente

o tema da guerra na

medida em que, sendo o poder essencialmente

uma relação de forças,

os esquemas de análise do poder "não devem ser emprestados

da

psicologia ou da sociologia, mas da estratégia. E da arte da guerra"76. Essa afirmação, coração

reformulada

do curso

"Em

de maneira interrogativa,

defesa

da sociedade":

torna-se

se a noção

o de

"estratégia" é essencial para fazer a análise dos dispositivos de saber e de poder, e se ela permite, em particular, analisar as relações de poder por meio das técnicas de dominação,

pode-se,

então, dizer que a

dominação não é outra coisa senão uma forma continuada da guerra?

**A questão

de saber se a guerra pode valer como grade de análise

das relações de poder se subdivide em vários problemas: a guerra é

731/ faut défendre Ia soeiété, op. cit. nota 43. 74 NT: Foucault alude ao aforisma de Carl Von Clausewitz (trad. francesa De Ia guerre. Paris: Minuit, 1955): "a guerra não é mais do que a continuação da política por outros meios". 75 La politique est Ia continuation de Ia guerre par d'autres moyens. ln: L'imprévu, n? J, janvier 1975. Retomado em Dits e! Écrits, vol. 2, texto n? J 48. 76 Michel Foucault, l'illégalisme et l'art de punir. In: La Presse, n° 80, 3 avril 1976. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texte n" 175.

Michel Foucault:

um estado

primeiro

do qual derivam

dominação e de hierarquização

conceitos

todos

57

essenciais

os fenômenos

de

social? Os processos de antagonismo

e de lutas, sejam eles individuais ou de classe, são reconduzíveis modelo geral da guerra? As instituições e os procedimentos

ao

militares

são o coração das instituições políticas? E, sobretudo, quem primeiro pensou que a guerra era a continuação da política por outros meios, e desde quando? O curso, que se alongou sobre a ruptura entre o direito de paz e de guerra característico

do poder medieval e a concepção

politica da guerra a partir do século XVII, procura, es encialmente, responder

à última questão; po teriormente,

abandonado

o modelo da guerra é

em proveito de um modelo mais complexo de análise

das relações de poder: a "governamentalidade". ***Foucault

localiza no século XVII um discurso histórico-politico

- "muito

diferente

do discurso

problema

da soberania'?"

filosófico-jurídico

- que transforma

permanente de todas as instituições de poder. que foi desenvolvido

ordenado

pelo

a guerra num fundo a França, esse discurso,

em particular por Boulainvilliers, afirma que a

guerra presidiu o nascimento

dos Estados: não a guerra imaginária e

ideal imaginada pelos filósofos do estado da natureza - "para Hobbes, é a não-guerra que funda um Estado e lhe dá sua forma,,78

-

mas

urna guerra real, uma "batalha" da qual, no mesmo ano, [/igiar e Punir nos incita a ouvir

11[aut défendre 11 faut défendre

77 78

o' estrondo surdo".

Ia societé, Ia societé,

op.cit. nota 43. op.cit. nota 43.

Judirh Revel

58

História

*Ainda

que o termo

"história"

apareça

em numerosas

nos títulos das obras de Foucault,

ele recobre,

de discursos

consiste

de

distintos.

ietzsche,

O primeiro

isto é, absolutamente

história concebida

como contínua,

na verdade, três eixos

numa retomada

e supra-histórica,

que impulsiona termo

Foucault

"genealogia":

linear, provida de uma origem e

acontecimento, enfoque

de reencontrar

a singularidade

que não pretende "pensamento

como "história

essa leitura nietzschiana dos anos 70, o

a descontinuidade

e os acasos, e de formular

reduzir

dela seja o eco. O segundo verdadeiro

É, portanto,

a adotar, desde o começo

trata-se

explícita

ao me mo tempo, da crítica da

de um te/os, e da crítica do discurso dos historiadores monumental"

retomadas

a diversidade

eixo corresponde

do acontecimento"

e o

um tipo de

histórica,

mas que

à formulação

de um

- de maneira

muito

próxima do que faz Deleuze na mesma época -, isto é, à idéia de uma história menor feita de uma infinidade de traços silenciosos, de narrativas de vidas minúsculas,

de fragmentos

de existências - donde o interesse

de Foucault pelos arquivos. O terceiro eixo se desenvolve precisamente a partir dos arquivos número de historiadore

e induz Foucault

a colaborar

com um certo

, isto é, ao mesmo tempo, a problematizar

que deveria

ser a relação

exatamente,

entre a prática filosófica e a prática histórica)

aídos da tradicional filosofia, e a interrogar,

entre

divergência

a filo ofia e a história

o

(ou, mais uma vez

filo ofia da história/história

da

de maneira crítica, a evolução da historiografia

francesa desde os anos 60.

Michel

**

Foucaull:

conceitos

59

essenciais

a verdade, parece que o discurso de Foucault oscila entre duas

posições:

de uma parte,

multiplicidade

a história

de durações

não é uma duração,

que se emaranham

nas outras [...] o estruturalismo

mas "uma

e se envolvem

e a história permitem

grande mitologia biológica da história e da duração

umas

abandonar

-9" -

essa

o que resulta

em afirmar que apenas um enfoque que faça jogar a continuidade séries como

chave de leitura das descontinuidades

verdade, "os acontecimentos O acontecimento cruzamento

das

contempla,

na

que, de outro modo, não apareceriam"?",

não é em si fonte da descontinuidade;

mas é o

de uma história seria I e de uma história aconteci mental -

série e acontecimento

não constituem

histórico, mas seu resultado arquivos - gue permite

o fundamento

a partir do tratamento

do trabalho

de documentos

e

fazer emergir, ao mesmo tempo, dispositivos

e

pontos de ruptura, planos de discurso e falas singulares, estratégias de poder e focos de resi tência etc. "Acontecimento:

é preciso entendê-

10 não como uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, vocabulário dominação

retomado

e voltado

que se enfraquece,

duração,

mas

acontecimentos, aconteci mental"

como

uma

e uma outra

Por outro lado, essa reivindicação não como análise do passado e da

iluminação

define-se

seus utilizadores,

se amplia e se envenena

que faz sua entrada, mascarada"?". de uma história que funcionaria

contra

um

das

transformações

e do

por vezes como uma verdadeira

por meio da referência

a um certo

"história

número

de

Revenir à l'Histoire, In : Paidéia, n° 11, fevereiro de 1972. Retomado em Dits et Écrits, vol. 2, texto n'' 103. [Tradução brasileira: Retornar à história. In: DiTOS e Escritos, vol. 11, p.293-2941. RII Revcnir à l'Histoire, op. cit. nota 79. RI Nictzche, Ia généalogie, l'histoire, op. cit. nota 65. 79

Judith

60 historiadores

que estudaram

Revel

o cotidiano,

a sensibilidade,

os afetos

(Foucault cita várias vezes Le Roy Ladurie, Ariês e Mandrou); e mesmo se ele reconheceu

na Escola dos Annales - e, em particular, Marc

Bloch e depois Fernand Braudel - o mérito de ter multiplicado durações e redefinido o acontecimento

as

não como um segmento de

tempo, mas como o ponto de intersecção de durações diferentes, não é menos verdade que Foucault acabou por opor seu próprio trabalho sobre o arquivo à história social das classificações que caracteriza para ele uma boa parte da historiografia

francesa desde os anos 60: "Entre

a história social e as análises formais do pensamento,

há uma via, uma

pista - talvez muito estreita - a do historiador do pensarnento't'". possibilidade

Éa

dessa "pista estreita" que alimentará o debate sempre

vivo entre Foucault e os historiadores e que motivará uma colaboração ocasional com alguns dentre eles (desde o grupo de historiadores

que

trabalhou no dossiê Pierre Riviere, até Arlette Farge e Michelle Perrot).

***0

tema da história como interrogação

sobre as transformações

e sobre os acontecimentos está estreitamente ligado àquele da atualidade. e a história não é memória, mas genealogia, então a análise histórica não é, na verdade, senão a condição de possibilidade de uma ontologia crítica do presente. Essa posição deve, entretanto, evitar dois obstáculos - que correspondem,

de fato, às duas grandes objeções que foram

feitas a Foucault durante sua vida, concernentes história

-: a utilização

"ideologia do retorno"

de uma busca histórica

à sua relação com a não implica

uma

(Foucault não se ocupa da ética greco-romana

a fim de dar um "modelo a seguir" que se trataria de atualizar),mas

Verité, pouvoir e soi. In: Tecnhologies of the Self. A Seminar with M. Foucault. Massachusetts, U.P., 1988. [Tradução brasileira: Verdade, Poder e si mesmo. In: Ditos e Escritos, vol. V, p. 295]. 82

Michel Foucaull:

conceilos

essenciais

61

uma historicização de nosso próprio olhar a partir do que nós não somos

mais; a história deve nos proteger de um "historicismo que invoca o passado para resolver os problemas

do presente't'".

É esse duplo

problema que se reencontra nos textos que Foucault consagra, no fim de sua vida, à análise do texto "O que são as Luzes?", de Kant: tratase de se defender,

ao mesmo

tempo, da acusação de apologia do

passado e de relativismo histórico, o que Foucault faz em particular no debate - interrompido

pela morte - com Haberrnas'".

Espace, savoir, pouvoir. Entretien avec P. Rabinow. In: Sky/ine, março de 1982. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n° 310. 84 NT: As críticas formuladas por Habermas a Foucault estão expres as, principalmente em La modernité: un project inachevé (Critique 1981, p. 950-967) e em Une f1éche dans le coeur du temps présent (Critique, 1986, p. 794-9). 83

Judith

62

Revel

Loucura *0

tema da loucura está, certamente,

no centro da Histôria da Loacura

que Foucault publica em 1961: trata-se, com efeito, de analisar a maneira pela qual, no século ÀrvII, a cultura clássica rompeu com a representação medieval de uma loucura, ao mesmo "nau dos loucos'') e considerada (do mundo

ao trás-mundo,

etc.). Ao contrário,

tempo, circulante

(a figura da

como o lugar imaginário da passagem

da vida à morte, do tangível ao segredo

a idade clássica define a loucura a partir de uma

separação vertical entre a razão e a desrazão: ela a constirui, portanto, não mais como aquela zona indeterminada do desconhecido

que daria acesso às forças

(a loucura como um para além do saber, isto é, ao

mesmo tempo, como ameaça e como fascinação), mas como o Outro da razão

segundo

o discurso

da própria

desrazão é a definição paradoxal interior de seu próprio

**A narrativa

razão.

dessa cisão fundadora

como objetos desrazão

de inclusão passa por um certo o de fazer a história do

de saber - isto é, desse estranho a primeira

a produzir

sobre a segunda. Trata-se, por conseqüência, de poder,

era o direito

transcrito

absoluto

em termos

laço entre razão e

um discurso

de saber

de fazer antes de tudo a

história de um poder: "o que estava implicado, relações

uma história.

e do asilo, mas do discurso que constirui os loucos

que autoriza

loucura. Direito

como outro.

e de instiruições que possuem

O objetivo de Foucault nunca foi, entretanto, enclausuramento

como

de um espaço gerido pela razão no

campo que ela reconhece

número de procedimentos

A loucura

antes de tudo, nessas

da não-loucura

de competência,

sobre

sobre a ignorância, de bom senso, de acesso à realidade, corrigindo erros (ilusões, alucinações,

fantasmas),

da normalidade,

a

exercendo-se impondo-se

os à

Michel Foucault:

desordem

e ao desvio'".

objeto de conhecimento,

aparição

e é por essa razão que é preci o então fazer dos di cursos sobre a loucura: do grande

- invenção

de um lugar inclusivo da exclusão - à

de uma ciência médica da loucura

psiquiatria contemporânea),

(da "doença

Compreende-se

foi rapidamente

associado

assujeitamento

que é o

então porque o discurso de Foucault

à antipsiquiatria

Basaglia, ou - mais tardiamente isto é, aos discursos

à

mental"

Foucault faz, na verdade, a genealogia de

uma das faces possíveis dessa forma singular do poder-saber conhecimento.

63

essenciais

Esse triplo poder constitui a loucura como

a história das modificações enclausuramento

conceitos

de Laing e Cooper,

de

- ao .Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari,

que criticam

a ligação entre conhecimento/

"É possível que a produção da

na prática psiquiátrica:

verdade da loucura possa se efetuar em formas que não sejam as de relação de conhecimentoê't'". hi tória da constituição

A leitura da história da loucura como

do poder-saber

a figura do asilo como paradigma

impulsiona

Foucault a utilizar

geral da análise das relações

de

poder na sociedade até o começo dos anos 70. A passagem para uma outra formulação relativo

do poder permite

do tema da loucura

então compreender

em proveito

o abandono

do tema mais geral da

medicalização

(o controle como medicina social): não somente porque

no momento

em que o enclausuramento

paradoxo

de um conhecimento

não dava a ver senão o

que joga contemporaneamente

com

a exclusão (espacial) e com a inclusão (discursiva), a figura do hospital permite

integrar

a maneira pela qual, a partir do começo do século

XIX, o poder pas a a gerir a vida (sob a forma de biopoderes); também

porque

Foucault

abandona

uma concepção

mas

puramente

8~ Le pouvoir psychiatrique. In: Annuaire du Collêge de France. Chaire d'histoire des syst êmes de pensée . année 1973-1974. [Tradução brasileira: O poder psiquiátrico. In: Resumo dos Cursos do Collêge de France (/970-/982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 561. 86 Le pouvoir psychiatrique, op. cit. nota 85.

Judith

64 negativa do poder ("Pareceu-me era insuficiente,

Revel

que, a partir de um certo momento,

e isso no curso de uma experiência

concreta

pude fazer, a partir dos anos 1971-1972, a propósito Das pesquisas

sobre

governamentalidade,

a loucura

às análises

que eu

das prisões'?").

dos mecanismos

o que está em jogo, portanto,

de

é urna mudança

de leitura das relações de poder. ***Durante

os anos 60, o tema da loucura está geralmente

com

da literatura

aquele

irredutibilidade

e, mais

geralmente,

aquele

da

de um certo tipo de fala que é, em geral, encarnado

por três figuras superpostas:

o louco (Hôlderlin,

Roussel, Artaud), o escritor (Sade, Hôlderlin, Breton,

com

cruzado

Bataille,

Blanchot),

o filósofo

Foucault?). "A literatura parece reencontrar

erval,

ierzsche,

erval, Mallarmé, Roussel, (

ietzsche

- e o próprio

sua vocação mais profunda

quando ela se retempera

na fala da loucura. A mais alta fala poética é

aquela

como

de Hôlderlin,

elesinstitucionalizar,

para

chegar

a se

para tomar toda medida de sua anarquia possível,

fosse em certos momentos ainda, a tornar-se

se a literatura,

obrigada

literalmente

ou a imitar a loucura

louca'?".

Na margem

ou, mais

das análises ela

história da loucura, a idéia de uma fala filosófica ou literária que encontraria na loucura sua irredutibilidade resíduo

fenomenológico

ela experiência

à orelem do di curso não é somente

de uma experiência

do limite que se encontra

Foucault problematizar

crucial ou a retomada

em Bataille: ela permite

a

pela primeira vez a idéia da resistência ao poder

- um tema que se reencontrará,

nos anos 70, formulado

diferentemente

no quadro das análises políticas sob a forma de um discurso produção

o

de subjetividade

como desassujeitamento,

sobre a

isto é, também

sob a forma de uma relação ética com o si mesmo.

Les rapports de pouvoir passent à I'interieur des corps, op. cit. nota 35. La folie et Ia societé. In: Foucault, M. e Watanabe, M. Telsugaku no butai. Tokio, 1978. [Tradução brasileira: A loucura e a sociedade. ln: Ditos e Escritos, vol.l, p. 2631.

87

88

Michel Foucaulr conceitos essenciais

65

Norma

*

o vocabulário de Foucault, a noção de norma está ligada àquela

de "disciplina". Com efeito, as disciplinas são e tranhas ao discurso jurídico da lei, da regra entendida como efeito da vontade soberana. A regra disciplinar é, ao contrário, uma regra natural: a norma. As disciplinas, entre o fim do

éculo XVIII e o inicio do século XIX,

"definirão um código que não será o da lei mas o da normalização;

referir-se-ão a um horizonte

teórico que não pode ser de maneira

alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico'P".

**A norma poder

corresponde

à aparição de um bio-poder, isto é, de um

obre a vida e das formas de governamentalidade elaborado

que a ela

estão ligadas: o modelo

jurídico da sociedade,

séculos ÀrvI! e XVIII,

ucumbe a um modelo médico, em sentido

entre os

amplo, e assiste-se ao nascimento de uma verdadeira "medicina social" que se ocupa de campos de intervenção que vão bem além do doente e da doença. O estabelecimento coletiva

de um aparelho de medicalização

que gere as "populações"

mecanismo

de administração

por meio da instituição

médica, de controle

de

da saúde, da

demografia, da higiene ou da alimentação, permite aplicar à sociedade toda uma di tinção permanente um sistema de normalização

entre o normal e o patológico e impor dos comportamentos

e das existências,

dos trabalhos e dos afetos: "Por pensamento medicalizado, eu entendo uma maneira de perceber as coisas que se organiza em torno da norma,

89 Curso de 14 de janeiro de 1976. ln: Microfisica dei Potere: interventi politici. Turin, Einaudi, 1977. [Tradução brasileira: Soberania e di ciplina. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.189].

Judith

66

Revel

isto é, que separa o que é normal daquilo que é anormal, coincide

exatamente

com a repartição distingue

pensamento

jurídico

medicalizado

distingue o normal e o anormal;

o lícito do ilícito,

de correção que não são exatamente de transformação

dos

o que não

entre o licito e o ilícito; o o pensamento

ele se atribui os meios

os meios de punição, mas meios

indivíduos,

toda

uma

tecnologia

do

comportamento

do ser humano que está ligada a eles"?". As disciplinas,

a normalização

por meio da medicalização

uma série de bio-poderes indivíduos

que se aplicam

em sua existência

singular

social, a emergência ao mesmo

tempo

e às populações

de aos

segundo

o

princípio da economia e da gestão política, e a aparição de tecnologias do comportamento

formam,

portanto,

uma configuração

do poder

que, segundo Foucault, é ainda a nossa no fim do século XX. ***0

problema

da normalização medicina,

da pas agem do sistema jurídico da soberania disciplinar não é simples: "Os desenvolvimentos

a medicalização

geral do comportamento,

dos discursos,

do desejo etc. se dão onde os dois planos heterogêneos e da soberania

se encontram"?'.

principalmente

concentradas

da disciplina

Para além das análises

históricas,

nos cursos do Col/ége de France do final

dos anos 70, o deslocamento ao qual Foucault

ao da

do direito para a medicina

assinala, inúmeras

vezes, a atualidade

é um tema absoluta.

A

questão parece, então, não mais ser aquela da história do nascimento da medicina social, mas aquela das modalidades

presente

à norma:

sem com isso retomar

como lutar contra a normatização

uma concepção anti-disciplinar

soberana

de poder?

Pode-se

de resis tência

ao mesmo

tempo

ser

e anti-soberano?

Le pouvoir, une bête magnifique. ln: Quadernos para el dialogo, n" 238, novembro de 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n° 212. 91 Curso de 14 de janeiro de 1976, op. cir. nota 89.

90

Michel Foucault:

conceitos

67

essenciais

Poder *Foucault

nunca trata do poder como uma entidade coerente, unitária

e estável, ma de "relações de poder" que supõem condições históricas de emergência

complexas

compreendidos

fora

tradicionalmente

do

tema

("

geral

que

a importância

ão é, portanto, de minha

deslocamentos

a análise

efeitos

múltiplos,

filosófica

identifica

como o campo do poder. Ainda que Foucault pareça

por vezes ter questionado trabalho

e que implicam

do tema do poder em seu

o poder, mas o sujeito que constitui

pesquisa":"),

suas análises

efetuam

o

dois

notáveis: se é verdade que não há poder que não seja

exercido por uns sobre os outros - "os uns" e "os outros" não estando nunca

fixados

inseridos

num papel,

mas sucessiva,

e até simultaneamente,

em cada um dos pólos da relação -, então uma genealogia

do poder é indissociável

de uma história da subjetividade;

não existe senão em ato, então é à questão do "como" para anali ar suas modalidades

se o poder

que ele retoma

de exercício, isto é, tanto à emergência

histórica de seus modos de aplicação quanto aos instrumentos se dá, os campos

onde ele intervém,

a rede que ele desenha

efeitos que ele implica numa época dada. Em nenhum por conseqüência, fundamental,

de descrever

saberes e as instituições,

e os

caso, trata-se,

de poder primeiro

pois não pertence

não

a ninguém e varia

análise do poder exige que se fixe um certo número de pontos:

1) o sistema das diferenciações

que permite

agir sobre a ação dos

outros, e que é, ao mesmo tempo, a condição de emergência

e efeito

de relações de poder (diferença jurídica de estatuto e de privilégios, 92

e

no qual se cruzam as práticas, os

e no qual o tipo de objetivo perseguido

se reduz somente à dominação, ele me mo na história. **

um princípio

ma um agenciamento

que ele

Le sujet ct le pouvoir,

op. cit. nota 27.

Judith

68

Revel

diferença econômica na apropriação da riqueza, diferença de lugar no processo produtivo, diferença lingüistica ou cultural, diferença de saberfazer ou competência ...); 2) o objetivo dessa ação sobre a ação dos outros (manutenção de privilégios, acumulação de proveitos, exercício de uma função ...); 3) as modalidades instrumentais do poder (as armas, o discurso, as disparidades econômicas, os mecanismos de controle, os sistemas de vigilância ...); 4) as formas de institucionalização do poder (estruturas possuem complexos

jurídicas, fenômenos um regulamento

de hábito, lugares específicos

e uma hierarquia

próprios,

que

sistemas

como aquele do Estado ...); 5) o grau de racionalização,

em função de alguns indicadores

(eficácia dos instrumentos,

certeza

do resultado, custo econômico e político ...). Caracterizando as relações de poder como modos de ação complexos sobre a ação dos outros, Foucault inclui na sua descrição a liberdade,

na medida em que o

poder não se exerce senão sobre sujeitos - individuais ou coletivos "que têm diante de si um campo de possibilidade condutas

[...] podem acontecer.

determinações portanto,

e tão saturadas't'".

onde diversas

ão há relação de poder onde as A análise foucaultiana

a idéia de um paradoxo/contradição

destrói,

entre o poder e a

liberdade: é precisamente tornando-os indi sociáveis que Foucault pode reconhecer no poder um papel não somente repressivo, mas produtivo (efeitos de verdade,

de subjetividade,

de lutas), e que ele pode,

inversamente, enraizar os fenômenos de resistência no próprio interior do poder que eles buscam contestar, e não num improvável "exterior".

***A genealogia

do poder desenhada por Foucault possui, ao mesmo

tempo, constantes e variáveis. Se, a partir de Pia tão, todo o pensamento ocidental concebe que há uma antinomia entre saber e poder ("onde saber e ciência se encontram

na sua verdade pura, não pode aí mais

existir poder político"?"), Foucault, na esteira de 93 94

Le sujet et le pouvoir, op. cit. nota 27. Le vérité et les formes juridiques, op. cit. nota 28.

ietzsche, vai, ao

Michel Foucault:

conceitos

essenciais

69

contrário, buscar dissolver esse mito e reconstruir a maneira pela qual, a cada época, o poder político tramou com o saber: a maneira pela qual ele faz nascerem efeitos de verdade e, inversamente,

a maneira

pela qual os jogos de verdade fazem de uma prática ou de um discurso um lugar de poder. prioritariamente,

Mas se, na Idade Média, o poder

por meio do reconhecimento

funciona,

dos signos de fidelidade

e da amostra dos bens, a partir dos séculos XVI e XVII, ele vai se organizar a partir da idéia de produção

e de prestação. Obter dos

indivíduos prestações produtivas, isso significa, antes de tudo, ultrapassar o quadro jurídico tradicional do poder - aquele da soberania - para integrar o corpo do indivíduos, seus gestos, sua própria vida - o que Foucault descreverá como o nascimento das "disciplinas", isto é, como um tipo de governamentalidade

cuja racionalidade

economia política. Essa disciplinarização modificação,

na medida

completado

por um controle

série de "biopoderes"

é, de fato, uma

sofre, por seu turno, uma

em que o governo das "populações",

dos indivíduos

é

por meio de uma

que administram a vida (a higiene, a sexualidade,

a demografia ...) de maneira global a fim de permitir uma maxirnização da reprodução produção).

do valor (isto é, uma gestão menos dispendiosa

"Haveria, portanto,

um esquematismo

da

a ser evitado [...]

que consiste em localizar o poder no aparelho de Estado e em fazer do aparelho de Estado o instrumento

privilegiado, capital, maior, quase

único do poder de uma classe sobre uma outra classe?": do mesmo modo que o modelo jurídico da soberania não permite considerar a emergência

de uma economia

política, a crítica política do Estado

não permite evidenciar a circulação do poder no corpo social inteiro e na diversidade fenômenos

de suas aplicações,

de assujeitamento

isto é, a variabilidade

e, paradoxalmente,

dos

de subjetivação aos

quais ela dá lugar. Questions à Michel Foucault sur Ia Géographie. In: Hérodote, nO I, 1976. [Tradução bra ileira: Perguntas a Michel Foucault sobre Geografia. In: Ditos e Escritos, vol.lV. p.183-184].

9'

Judirh Revel

70

Problematização *

os últimos dois anos de sua vida, Foucault utiliza cada vez mais

freqüentemente

o termo "problematização"

Por "problematização",

para definir sua pesquisa.

ele não entende a re-apresentação de um objeto

pré-existente, nem a criação por meio do discurso de um objeto que não existe, mas "o conjunto das práticas discursivas ou não-discursivas que faz qualquer coisa entrar no jogo do verdadeiro constitui como objeto para o pensamento moral, do conhecimento do pensamento

e do falso e a

(seja sob a forma da reflexão

científico, da análise política etc.)"?", A história

se interessa, portanto, por objetos, regras de ação ou

modos de relação de si, na medida em que ela os problematiza: interroga sobre sua forma historicamente pela qual eles apresentaram

ela se

singular e sobre a maneira

numa dada época um certo tipo de

resposta a um certo tipo de problema.

à noção de problematização

**Foucault

recorreu

radicalmente

a história do pensamento

quanto da história das mentalidades.

tanto da história das idéias

Enquanto

a história das idéias

interessa-se pela análise dos sistemas de representação aos discurso

e aos comportamentos,

para distinguir

que subjazem

e a história das mentalidades

interessa-se pela análise das atitudes e dos esquemas de comportamento, a história do pensamento c nstituem desenvolvida

problemas

preocupa-se

com a maneira pela qual se

para o pensamento

e quais estratégias

são

para respondê-los: com efeito, "várias respostas podem

er dadas para um mesmo conjunto de dificuldades.

a maior parte

Le souci de Ia vérité. In: Magazine Littéraire, n? 207, mai 1984. Retomado em Dits et Écrits, vol 4, texte n" 350. [Tradução brasileira: O cuidado com a verdade. ln: Ditos e Escritos, vol. V, p. 241 J.

96

do tempo, diversas respostas é preciso compreender

são efetivamente

propostas.

Ora, o que

é aquilo que a torna simultaneamente

é o ponto no qual se origina sua simultaneidade; nutrir umas e outras, em sua diversidade

possíveis;

é o solo que pode

e, talvez, a despeito de suas

é, assim, reformulado

nos

termos de uma pesquisa sobre a forma geral da problematização

que

contradições't'"

O trabalho

corresponde

a uma

problematização

de Foucault

época

dada:

***0

estudo

- ou seja, do que não é constante

variação cronológica - é, portanto, hi toricamente

"o

dos

modos

antropológica

de nem

a maneira de analisar, em sua forma

singular, as questões de alcance geral"9K.

termo problematização

lado, o verdadeiro

implica duas conseqüências.

exercício crítico do pensamento

uma busca metódica da "solução":

De um

se opõe à idéia de

a tarefa da filosofia não é, portanto,

a de resolver - inclua-se: substituir uma solução por uma outra - mas a de "problematizar", distância

não a de reformar

crítica, de "desprender-se",

outro lado, esse esforço de problematização um anti-reforrnismo

ou um pessimismo

porque

ele destaca

homem

é um ser pensante

particularmente

os problemas.

empregado

uma De

não é, de maneira alguma, relativista: ao mesmo tempo

uma real ligação com o princípio

questão do Iluminismo

para o qual o

- de fato, o termo "problematização" no comentário

é

do texto de Kant sobre a

- e porque "o yue procuro

das relações que o pensamento pensamento,

mas a de instaurar

de retomar

fazer é a história

mantém com a verdade; a história do

uma vez que ela é pensamento

aqueles que dizem que para mim a verdade

sobre a verdade. Todos não existe são mentes

sirnplistas"?", Polémique, politique et problématisation. In: Rabinow, P. The Foucault Reader. New York: Pantheon Books, 1984. [Tradução brasileira: Polêmica, Política e Problematizações. In : Ditos e Escritos, vol. V, p.232]. 98 What's enlightenment?, op. cit. nota 6. 99 Le souci de Ia vérité, op. cit. nota 96. 91

Judith Revel

72

Razão / Racionalidade *

termo razão aparece inicialmente

em Foucault

dois elementos da repartição razão/desrazão

como um dos

que está no centro da

cultura ocidental: enquanto o Logos grego não tem contrário, a razão não existe sem sua negação, isto é, sem a existência diferença, a faz ser.

ão é, portanto,

do que, por

a razão que é originária, mas

antes a cesura que lhe permite existir: e é a partir dessa divisão entre a razão e a não-razão que Foucault bu ca fazer a história de um momento muito preciso de nossa cultura - quando a razão busca apoderar-se da não-razão para lhe arrancar sua verdade, isto é, para desdobrar, o que ela parece, entretanto, excluir, as malhas de seu poder sob a tripla forma de discursos

de saber, de instituições

e de práticas. Existe,

portanto, um momento em que a repartição fundadora entre a razão e a não-razão toma a forma da racionalidade, e Foucault consagra sua pesquisa à compreensão da aplicação dessa racionalidade em diferentes campos - a loucura, a doença, a delinqüência, a economia politica - e ao tipo de poder aí implicado. **0

momento

uma hegemonia

em que a cesura razão/não-razão da racionalidade

corresponde

toma a forma de ao século

XVII

ocidental, isto é, à idade clássica. Essa racionalização tem diferentes faces: uma racionalidade científica e técnica que se torna cada vez mais importante

no desenvolvimento

das forças produtivas e no jogo das

decisões politicas; uma racionalidade de governamentalidade

e procedimentos

racionalidade do comportamento e do desvio etc, Historicizando

de Estado que impõe formas de controle complexo ; uma

que fixa a medida social da norma as transformações

da racionalidade

Michel Foucault:

moderna,

Foucault

a distingue

confusão

razão/racionalidade

conceitos

cuidadosamente é precisamente

essenciais

73

da razão, já que a um dos mecanismos

de poder que se trata de descrever; e é nessa confusão, cuidadosamente sustentada

pelo poder, que se enraíza a idéia de uma "razão como luz

despótica"

I 00,

na medida em que "a ligação entre a racionalização

abusos de poder politico

é evidente'"?'.

Há, portanto,

crítica da razão que é a história da transformação não a história

do ato fundador

es ência teria sido descoberta: criações,

diferentes

engendram ou tras"

umas

às outras,

uma história

das racionalidades

e

por meio do qual a razão na sua "diferentes

modificações

e os

instaurações,

diferentes

pelas quais as racionalidades

se opõem

e se perseguem

se

umas às

I02.

* * * A referência

ao texto kantiano sobre as Luzes (Was ist AIIJklàrung?)

impulsiona,

entretanto,

Foucault

levantando

a hipótese

de um uso autônomo,

razão: é recuperando

a reformular

de

maduro

da razão,

e crítico da

a herança das Luzes que se poderá talvez utilizar

uma razão "que só tem efeito de libertação libertar-se

o problema

desde que ela consiga

i mesma'T".

IOOIntroduçãoa Canguilhem,G On lhe Normal and lhe Pathological, op.cit, nota 16. 101 Prefácio à segunda edição do livro de J. Vergês, De Ia stratégie judiciaire. Paris: Éditions de Minuit, 1981. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto nO290. 102 Structuralisme et post-structuralisrne. In: Telas. vol. XVI, n° 55, 1983. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n? 330. [Tradução bra ileira: Estruturalismo e pósestruturalismo. In: Ditos e Escritos, vol. Il, p. 317-318]. 103 La vie, I'expérience, Ia science.ln: Revue de métaphysique et de morale. Ano 90, n° I: Canguilhem, 1985. [Tradução brasileira: A vida: a experiência e a ciência. In: Ditos e Escritos, vol. TI, p. 357].

°

Judith

74

Revel

Resistência I Transgressão *0

termo "resistência"

é precedido, noções

nos trabalhos

de Foucault,

encarregadas

de exprimir

por

um certo número

de outras

certa exterioridade

- sempre provisória - no sistema de saber/poder

descrito em outros autores: é o caso da "transgressão" empresta

de Bataille)

e do "exterior"

(que Foucault

uma

(que Foucault empresta

de

Blanchot)

nos anos 60. Tanto num caso como no outro, trata-se de

descrever

a maneira pela qual o individuo

procedimento

singular, por meio de um

gue é, em geral, de escritura

(origem do interesse

Foucault por Raymond Roussel, por Jean-Pierre Riviêre), conseguiu, dispositivos

de maneira voluntária

de identificação,

discurso.

a medida

impossíveis, esses casos literários "esotéricos", momento,

normativa.

para Foucault,

O abandono,

privilegiado

e de normalização

em gue não há saber possível

de um certo número de procedimentos primeiro

Brisset ou por Pierre

ou fortuita, "escapar"

de classificação

e da noção

de dos do

sobre objetos

por meio da mobilização

lingüisticos, representam, a impossiblidade

num

da objetivação

ao mesmo tempo, da literatura como campo mesma

de transgressão

entanto, à exigência de colocar o problema igualmente para as práticas não-discur

corresponde,

no

de maneira geral (isto é,

ivas) e não somente no nível da

ação individual, mas em função da ação coletiva. O termo resistência aparece, então, a partir dos anos 70 com um sentido bastante diferente daquele gue tinha a "transgressão":

a resistência se dá, necessariamente,

onde há poder, porgue ela é inseparável

das relações de poder; assim,

tanto a resistência funda as relações de poder, guanto ela é, às vezes, o resultado

dessas relações;

na medida

em gue as relações

estão em todo lugar, a resistência é a possibilidade lutas e de agenciar possibilidades

de transformação

de poder

de criar espaços de em toda parte. A

Michel Eoucaul!'

conceitos

essenciais

75

análise dos vínculos entre as relações de poder e os focos de resistência é realizada

por Foucault

movimento

de um serve de ponto de apoio para uma contra-ofensiva

em termos

de e tratégia e de tática: cada

do outro.

**A ligação entre

as relações de poder e as estratégias de resistência

não é simplesmente

redutível

ca o, por mais que Foucault limite/pa

a um esquema

dialético (como era o

tenha recusado

isso na época, do par

sagem que fundava a noção de transgressão'?'),

porque

a

descrição do poder tornou-se mais complexa. Foucault insiste, portanto, em três pontos: a) a resistência não é "anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente que não há anterioridade resistência/poder deve apresentar

lógica ou cronológica

l... ] como

estrategicamente't'P':

isso significa

da resistência - o par

não é o par liberdade/dominação as mesmas caracteristicas

tão móvel, tão produtiva consolida

conternporânea't''":

-; b) a resistência

que o poder: "tão inventiva,

guanto ele [...] como ele, ela se organiza, se ele,

ela vem

a resistência

de 'baixo'

não vem, portanto,

e se distribui do exterior do

poder, ela realmente se assemelha a ele por assumir as suas características - o que não guer dizer que ela não seja possível; c) as re istências podem,

por sua vez, fundar novas relações de poder, tanto quanto

novas relações de poder podem, inversamente, novas formas

de resistência:

espécie de limite permanente,

"Elas constituem

suscitar a invenção de reciprocamente

uma

de ponto de inversão possível [...] De

Ver a respeito desse assunto o texto Préface à Ia transgression. In: Critique n" 195-196: Hommage à Georges Bataille, 1963. [Tradução brasileira: Prefácio à transgressão. In: Ditos e Escritos, vol.IJI, p. 28-46J. IOS Non au sexe roi. In: Le Nouvel Observateur, n" 644, março 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol3, texte n? 200. [Tradução brasileira: Não ao sexo rei.ln: Microfisica do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 241]. 106 Non au scxe roi, op. cit. nota 105. 104

Judith

76

Revel

fato, entre relações de poder e estratégia de luta há atração reciproca, encadeamento

indefinido

e inversão perpétua"

Foucault dessa "reciprocidade" modelo

simplista no interior

considerado

indissolúvel

107.

A descrição

de

não é redutível a um

do qual o poder

seria inteiramente

negativo e as lutas como tentativas de liberação: não

somente o poder, ao produzir efeitos de verdade, é positivo, mas as relações de poder somente

estão por toda parte porque por toda

parte os indivíduos são livres.

ão é, portanto,

fundamentalmente

contra o poder que nascem as lutas, mas contra certos efeitos de poder, contra

certos

estados

paradoxalmente, não houvesse

de dominação,

num

espaço

que

foi,

aberto pelas relações de poder. E inversamente: se resistência,

não haveria

efeitos

de poder,

mas

simplesmente problemas de obediência. ***Embora problema

no começo de sua pesquisa Foucault se colocasse o da possibilidade

da resistência

no interior da grade dos

dispositivos

de poder, ele chega, nos últimos anos, a inverter essa

proposição.

O projeto

de uma ontologia

crítica da atualidade

é

indissociável da idéia de uma análise que toma como ponto de partida as formas de resistência contra diferentes tipos de poder: "mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, trata- e de analisar as relações de poder através do afrontamento estratégias".

107 108

108

Le sujet et te pouvoir, op. cit. nota 27. Le sujet et te pouvoir, op. cit. nota 27.

de

Mjchel

Foucauh-

concejtos

essenciais

77

Saber / Saberes *Foucault enquanto

distingue

nitidamente

o conhecimento

o "saber"

corresponde

do "conhecimento":

à constituição

de discursos

sobre ela ses de objetos julgados cognoscíveis, isto é, à construção de um processo

complexo

de racionalização,

classificação dos objetos independentemente o saber designa, conhecimento,

ao contrário,

de identificação

e de

do sujeito que os apreende,

o processo

pelo qual o sujeito do

ao invés de ser fixo, sofre uma modificação durante o

trabalho que ele efetua na atividade de conhecer. A análise arqueológica conduzida

por Foucault

até o começo

organização do conhecimento

dos anos 70 ocupa-se

da

numa época dada e em função de classes

de objetos

específicos;

reconstituir

a maneira pela qual o saber implica, ao mesmo tempo,

uma relação

a análise genealógica

com os objetos

de conhecimento

objetivação) e com o si cognoscente

**0

que lhe sucede tenta (movimento

de

(processo de subjetivação).

saber está essencialmente ligado à questão do poder, na medida

em que, a partir

da idade

clássica,

por

meio do discurso

da

racionalidade - isto é, a separação entre o científico e o não-científico, entre o racional e o não-racional, entre o normal e o anormal - vai-se efetuar uma ordenação

geral do mundo, isto é, dos indivíduos, que

passa, ao mesmo tempo, por uma forma de governo (Estado) e por procedimentos da produção

disciplinares. A disciplinarização do mundo por meio de saberes locais corresponde

à disciplinarização

do

próprio poder: na verdade, o poder disciplinar, "para exercer-se nesses mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e pôr em circulação

Judirh Revel

78

um saber, ou melhor, aparelhos efetivos de acumulação

de saber"

109,

isto é, instrumentos

do saber, de técnicas de arquivamento,

de

conservação e de registro, de métodos de investigação e de pesquisa, de aparelhos de verificação etc. Ora o poder não pode disciplinar os indivíduos sem produzir igualmente, a partir deles e sobre eles, um discurso

de saber que os objetiva

subjetivação.

A articulação

e antecipa

poder/saber(es)

"poder de extrair dos indivíduos

toda experiência será, portanto,

de

dupla:

um saber, e de extrair um saber

sobre esses indivíduos submetidos ao olhar e já controlados"

I 10.

Tratar-

se-á, por conseqüência, de analisar não somente a maneira pela qual os indivíduos tornam- e sujeitos de governo e objetos de conhecimento, mas também a maneira pela qual acaba-se por exigir que os sujeitos produzam um discurso sobre si mesmos - sobre sua existência, sobre seu trabalho, sobre seus afetos, sobre sua sexualidade etc. - a fim de fazer da própria vida, tornada objeto de múltiplos saberes, o campo de aplicação de um biopoder.

*** A transformação

dos procedimentos

de saber acompanha

as

grandes mutações das sociedades ocidentais: é assim que Foucault é levado a identificar diferentes formas de "poder-saber" sucessivamente

sobre a medida (ligada à constituição

e a trabalhar

da cidade grega)

sobre a inquirição (ligada à formação do Estado medieval) e sobre o exame (ligado aos sistemas de controle, de gestão e de exclusão próprios das sociedades industriais). A forma do exame será central nas análises que Foucault consagra ao nascimento controle

social:

administrativo

110

um tipo de poder

e do

essencialmente

que "impôs ao saber a forma do conhecimento:

sujeito soberano

109

ela implica

da governamentalidade

tendo

função de universalidade

Curso de 14 de janeiro de 1976, op. cit. nota 89. Le vérité et 1es formes juridiques, op. cit. nota 28.

e um objeto

um de

Michel Foucaull:

conhecimento

na verdade,

conhecimento

encerra precisamente

de modificações

79

que seria afetado

da infra-estrutura,

o fato de que não

do saber de um sujeito

pelas transformações

estrutura, mas de formas de poder-saber determinado

essenciais

que deve ser reconhecível por todos como já estando

ali"!!'. Ora o paradoxo trata,

conceitos

que, funcionando

dão lugar à relação do conhecimento

e do

da infrano nível histórico

que se fundou sobre o par sujeito-objeto.

'li La maison des fous. ln: Basaglia, F. e Basaglia-Ongaro, F. Crimini de pace. Turin: Einaudi, 1975. [Tradução brasileira: A casa dos loucos. In: Ditos e Escritos, vol. [, p. 3131.

Judith

80

Revel

Sexualidade *0

tema da sexualidade aparece em Foucault não como um discurso

sobre a organização fisiológica do corpo, nem como um estudo do comportamento

sexual, mas como o prolongamento

de uma analítica

do poder: trata-se, com efeito, de descrever a maneira pela qual, a partir do final do século XVIII, este prolongamento

da analítica do

poder investe, por meio dos discursos e das práticas de "medicina social", sobre um certo número de aspectos

fundamentais

da vida

dos indivíduos: a saúde, a alimentação, a sexualidade etc. A sexualidade é somente, portanto,

num primeiro momento,

aplicação do que Foucault segundo momento,

um dos campos de

chama na época de bio-poderes.

no entanto, Foucault transforma

um

a sexualidade

num objeto de pesquisa específico já que, insistindo no fato de que o poder se articula sempre sobre discursos de "veridicção",

isto é, dos

"jogos de verdade", as relações com o dizer verdadeiro em nenhum outro campo é tão evidente quanto no da sexualidade: pertencemos uma civilização na qual se exige aos homens

a

dizerem a verdade a

respeito de sua sexualidade para poder dizer a verdade sobre eles mesmos. ''A sexualidade, muito mais do que um elemento do indivíduo que seria excluido dele, é constitutiva dessa ligação que obriga as pessoas a se associar com sua identidade

na forma da subjetividade't'F.

O

projeto de uma história da sexualidade torna-se, então, uma interrogação sobre as maneiras pelas quais as práticas e os discursos da religião, da ciência, da moral, da política ou da economia contribuíram da sexualidade, ao mesmo tempo, um instrumento uma ferramenta do poder.

112

Sexualité et Pouvoir, op. cit. nota I I.

para fazer

de subjetivação e

Michel Foucaul!'

**Foucault

distingue cuidadosamente

conceitos

essenciais

"sexo" e "sexualidade":

81

"o

di curso da sexualidade não se aplicou inicialmente ao sexo, mas ao corpo, aos órgãos sexuais, aos prazeres, às relações de aliança, às relações interindividuais estava recoberto determinado

etc. [...] foi esse conjunto heterogêneo

que

pelo dispositivo de sexualidade que produziu, em

momento,

como elemento

essencial de seu próprio

cl.iscur o e talvez de seu próprio funcionamento,

a idéia do sexo"!".

Se a idéia do sexo é interior ao dispositivo da sexualidade, deve-se, então, reencontrar

em seu fundamento

uma economia positiva do

corpo e do prazer: é nessa direção que irá a análise de Foucault ao procurar di tinguir a problematização no mundo greco-romano *** A modificação

da sexualidade como aphrodisia

e a da carne no cristianismo.

do projeto da História da Sexualidade tal como

ela havia sido, primeiramente,

exposta no prefácio de A vontade de

saber; em 1976, pode ser compreendida a partir do trabalho efetuado sobre o tema da sexualidade. O que parece, efetivamente, intere sar a Foucault, a partir do [mal dos anos 70, é mais o problema colocado pelas "técnicas de si" e pela possibilidade dos processos de subjetivação do que a história da sexualidade como objeto de veridicção: o erotismo grego apresenta a sexualidade mais como um problema de escolha do que como um lugar de verdade sobre o si. A pa sagem pela cultura antiga permitiu a Foucault, conseqüentemente,

desenvolver sua análise

do poder fora do campo do conhecimento, no sentido estrito - quer se trate de discursos, de instituições ou de práticas -, isto é, ao contrário, numa relação com o si, que se dá, antes de tudo, como experiência de si, como ethos.

113

Le jeu de Michel Foucault, op. cit. nota 45.

Judith

82

Revel

Subjetivação (processo de) *0

termo "subjetivação"

designa, para Foucault,

qual se obtém a constituição uma subjetividade. subjetivação"

pelo

de um sujeito, ou, mais exatamente,

Os "modos

de subjetivação"

do ser humano correspondem,

ou "processos

de de

na realidade, a dois tipos

de análise: de um lado, os modos de objetivação seres humanos

um processo

que transformam

em sujeitos - o que significa que há somente

os

sujeitos

objetivados e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação;

de outro lado, a maneira pela qual a relação consigo,

por meio de um certo número de técnicas, permite constituir-se

como

sujeito de sua própria existência. **Foucault

destaca, num primeiro

de subjetivação:

"os diferentes

momento,

modos

três modos principais

de investigação

atingir o estatuto de ciência"!" corno a objetivação

que buscam

do sujeito falante

na gramática ou na lingüistica, ou ainda aquela do sujeito produtivo

na

economia e na análise das riquezas; as "práticas divisaras", que dividem o sujeito no interior dele mesmo para classificá-Ia

(ou em relação aos outros sujeitos)

e fazer dele um objeto - como a divisão entre o

louco e o são de espirito, o doente e o homem saudável, o homem de bem e o criminoso

etc.; enfim, a maneira pela qual o poder investe o

sujeito ao se servir não somente dos modos de subjetivação mas também

ao inventar

governamentalidade. parece

114

se inverter:

outros:

é todo

um segundo momento, se é verdade

Le sujet et le pouvoir, op. cit. nota 27.

já citados,

o jogo das técnicas

de

a questão de Foucault

que os modos

de subjetivação

Michel Foucaull:

produzem,

ao objetivá-Io

relacionam

consigo

83

conceilo~ essenciais

, algo como sujeitos, como esses sujeitos se

mesmos?

Quais

mobiliza a fun de se apropriar

procedimentos

ou de se reapropriar

o indivíduo de sua própria

relação consigo?

***É a partir

desse último

exemplo, à análise detalhada

ponto dos

que Foucault

hUpOfllfléfllata

e crita privada entre a antigüidade

clássica e os primeiros

era cristã: em todos o casos, trata-se de compreender de uma relação contínua

proceclimento gregos racional

consigo,

que envolve

de procedimentos "tratava-se

e escolhido;

a realização

a si mesmo

unificação

por da

séculos da

as modalidades de uma prática

de si e para si, isto é, um

Mas enquanto

de constituir

pela apropriação,

fragmentário

de escrita

de subjetivação.

se entrega,

e, mais geralmente,

para os

hllpo!7lt1émala

como objeto

e subjetivação

no caso das anotações

de ação

de um já-dito monástica

das

experiências

e pirituais, tratar-se-á de desajolar do interior da alma os

movimentos

mais esconclidos

de forma a poder deles se libertar"!".

II~ L'écriture de sai. ln: Corps Écrit, nOS: L'Auto portrait, 1983. Retomado em Dits et Écrits, vol4, texte n" 329. [Tradução brasileira: A escrita de si. In: Ditos e Escritos, vol. V, p. 162].

Judith Revel

84

Sujeito / Subjetividade *0

pensamento

de Foucault apresenta-se, desde o início, como uma

crítica radical do sujeito tal como ele é entendido pela filosofia "de Descartes a Sartre", isto é, como consciência solipsista e a-histórica, auto-constituída

e absolutamente

livre. O desafio é, portanto,

ao

contrário das filosofias do sujeito, chegar a "uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. É isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que considera a constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objetos etc., sem ter de se referir a um sujeito, quer ele seja transcendente em relação ao campo de acontecimentos, vazia ao longo da história"!". como

um objeto

quer ele perseguindo

sua identidade

Trata-se, portanto, de pensar o sujeito

historicamente

constituído

sobre

a base de

determinações que lhe são exteriores: esta é a questão que coloca, por exemplo, As palavras e as coisas ao interrogar essa constituição segundo a modalidade específica do conhecimento de compreender

científico, visto que se trata

como o sujeito pôde, numa certa época, tornar-se

um objeto de conhecimento objeto de conhecimento

e, inversamente,

como esse estatuto de

teve efeitos sobre as teorias do sujeito como

ser vivo, falante e trabalhador.

**A

afirmação de que o sujeito tem uma gênese, uma formação,

uma história,

e que ele não é originário,

foi, sem dúvida, muito

influenciada em Foucault pela leitura de Nietzsche, de Blanchot e de Klossowski, e talvez também por aquela de Lacan; ela não é indiferente à assimilação freqüente do filósofo à corrente estruturalista dos anos

116

Entrevista com Michel Foucault (Verdade e Poder), op. cit. nota 3.

Miche! Foucau!t:

conceitos

essenciais

85

60, visto que a crítica das filosofias do sujeito encontra-se também em Dumézil, em Levis-Strauss e em Althusser. O problema da subjetividade, isto é, "a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo me mo"117,torna-se então o centro das análises do filósofo: se o sujeito se constitui, não é sobre o fundo de uma identidade psicológica, mas por meio de práticas que podem ser de poder ou de conhecimento, ou ainda por técnicas de si.

***0

problema da produção histórica das subjetividades pertence, portanto, ao mesmo tempo, à descrição arqueológica da constituição de um certo número de saberes sobre o sujeito, à descrição genealógica das práticas de dominação e das estratégias de governo às quais se pode submeter os indivíduos, e à análise das técnicas por meio das quais os homens, trabalhando a relação que os liga a si mesmos, se produzem e se transformam: "no curso de sua história, os homens jamais cessaram de se construir, isto é, de deslocar continuamente sua subjetividade, de se constituir numa série infinita e múltipla de subjetividades diferentes, que jamais terão fim e que não nos colocam jamais diante de alguma coisa que seria o homem'F". Esse lugar inassinalável da subjetividade em movimento, em perpétuo "desprendimento" em relação a ela mesma, é, ao mesmo tempo, para Foucault, o produto das determinações históricas e do trabalho sobre si (cujas modalidades são, por seu turno, históricas), e é nessa dupla ancoragem que se enlaça o problema da resistência subjetiva das singularidades: o lugar de invenção do si não está no exterior da grade do saber/poder, mas na sua torção íntima - e o percurso filosófico de Foucault parece aí, para nós, disso dar o exemplo. 117 Foucault. In: Huisman, D. Dictionnaire des philosophes. Paris: PUF, 1984. [Tradução brasileira: Foucault. In: Ditos e Escritos, vol. V, p. 236]. 118

Entretien

avec Michel

Foucauli

(avec Ducio Trombadori),

op. cit. nota 58.

Judith Revel

86

Verdade I Jogos de verdade *Embora

a filosofia moderna,

ligada ao problema Foucault

do conhecimento,

qual

de

ietzsche,

ão é mais: qual é o caminho foi o caminho

conseqüentemente,

tenha sido sempre

isto é, à questão

desloca esse lugar: "Depois

transformou. mas

desde Descartes,

fortuito

da verdade,

essa questão

se

mais certo da verdade?

da verdade?"119.

Trata-se,

de reconstituir uma verdade produzida pela história

e isenta de relações com o poder, identificando

ao mesmo tempo as

coerções múltiplas e os jogos, na meclida em que cada sociedade possui seu próprio acolhem

regime de verdade, isto é, "os tipos de discurso que elas

e fazem funcionar

como verdadeiros;

os mecanismos

e as

instâncias que permitem clisringuir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira

como

proceclimentos

uns e outros

são sancionados;

que são valorizados

as técnicas

para a obtenção

e os

da verdade;

o

estatuto daqueles que têm o poder de dizer aquilo que funciona como verdadeiro't'P.

** As análises características

de Foucault procuraram,

em particular,

trazer à luz as

de nosso próprio regime de verdade. Esse regime possui,

efetivamente, várias especificidades: a verdade está centrada no cliscurso científico e nas instituições

que o produzem;

utilizada tanto pela produção ela é muito

largamente

econômica

difunclida,

educativas quanto pela informação;

tanto

ela é permanentemente

quanto pelo poder politico; por meio das instâncias

ela é produzida

e transmitida

sob

Questions à Michel Foucault sur Ia Géographie, op. cit. nota 95. La fonction poli tique de I' intelectuel. In: Politique-Hebdo, 29 de novembro - 5 de dezembro de 1976. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n° 184. 119 120

Michel Foucault:

o controle

dominante

de alguns grandes

conceitos

essenciais

aparelhos

87

políticos

e

econômicos (universidades, rnídia, escrita, exército); ela é lugar de um enfrentamento

social e de um debate politico violentos, sob a forma

de "lutas ideológicas".

O problema

parece ser, conseqüentemente,

para Foucauit, o de interrogar os jogos de verdade - isto é, as relações por meio das quais o ser humano se constitui historicamente

como

experiência - que permitem ao homem pensar-se quando se identifica como louco, como doente, como desviado, como trabalhador, como quem vive ou quem fala, ou ainda como homem de desejo. É por essa razão que o filósofo define seu trabalho, no final de sua vida e de maneira retrospectiva, como uma "história da verdade". ***0

tema dos "jogos de verdade" é onipresente

em Foucault a

partir do momento em que a análise das condições de possibilidade da constituição dos objetos de conhecimento

e a análise dos modos

de subjetivação são dadas como indissociáveis. essa objetivação e essa subjetivação são dependente. descrição de seu desenvolvimento precisamente

a medida em que uma da outra, a

mútuo e de seu laço recíproco é

o que Foucault chama de "jogos de verdade", isto é,

não a descoberta

do que é verdadeiro,

mas das regras segundo as

quais aquilo que um sujeito diz a respeito de um certo objeto decorre da questão

do verdadeiro

e do falso. Às vezes, Foucault

igualmente o termo "veridicção" de formas que permitem

utiliza

a fim de designar essa emergência

aos discursos, qualificados de verdadeiros

em função de certos critérios, articularem-se com um certo domínio de coisas.

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