Resumos de Direito da União Europeia I
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Resumos de Direito da União Europeia I Dr. Jónatas Machado....
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Direito Comunitário I Capítulo I: História da integração europeia 1.
O contexto histórico-cultural
Os fundamentos da Europa apresentam uma matriz predominantemente greco-romana e judaico-cristã, a partir dos quais tem sido procurada a unidade cultural europeia: durante a Cristandade Medieval, a Igreja Católica assimilou as categorias da filosofia grega e acolheu o imaginário institucional e jurídico do Império Romano. Este Império perdurou na Europa Ocidental e na Ásia Menor. Mas a Europa revê-se igualmente no Sacro Império Romano-Germânico, nos Descobrimentos, no Renascimento, na Reforma Protestante, na emergência dos Estados modernos, subsequente à Paz de Vestefália, e na secularização da soberania política e do direito, incluindo o direito internacional. Igualmente relevante, no percurso histórico e cultural da Europa, foi o desenvolvimento dos ideais de tolerância religiosa, liberdade consciência, democracia e Estado de direito que estiveram na base da emergência revolucionária do constitucionalismo liberal moderno. Igualmente marcante foi a emergência da questão social e o desenvolvimento dos ideais socialistas e comunistas. O desenvolvimento histórico comum da Europa foi marcado por muitos e sangrentos conflitos, que culminaram nos mais violentos confrontos que a humanidade já conheceu: as guerras mundiais de 1914-18 e 1939-45. 2.
A criação das comunidades europeias
No fim da II Guerra Mundial, o problema da reconstrução, estabilização e defesa da Europa colocou-se com especial acuidade. Aliás, a tentativa de criar um quadro político, económico, social e cultural para a Europa preponderou a partir da ocorrência deste conflito. Os EUA deram um grande contributo na vitória das forças nazis e envolveram-se, depois, na reconstrução da Europa (estabilização política da República Federal da Alemanha, garantia da defesa militar face ao bloco comunista, Plano Marshall de reconstrução económica, etc.). Para o efeito, ficou claro que era necessária a paz entre a Alemanha e a França, o que viria a ser confirmado num discurso de Churchill em 1946, o qual acabou por reconduzir ao surgimento do Conselho da Europa, em 1949, uma organização internacional de vocação paneuropeia, embora tenha sido também uma influência decisiva na construção das comunidades europeias. De resto, no pós-guerra assiste-se a uma proliferação de organizações de base regional europeia: Organização para a cooperação económica europeia (OCEE) em 1948; Organização do tratado do atlântico norte (NATO) em 1949; União da Europa ocidental (UEO) em 1960; Organização para a cooperação e desenvolvimento económico (OCDE) em 1960; Organização para a segurança e cooperação europeia (OSCE) em 1995. 2.1. Os tratados fundadores Os tratados fundadores das comunidades constituem instrumentos convencionais multilaterais de direito internacional, do ponto de vista, tanto da respectiva validade, como do procedimento de negociação, ajuste, aprovação e ratificação. A sua validade jurídico-internacional é incontroversa, na medida em que exprimem de forma regular o consentimento das partes e não atenta contra nenhuma norma imperativa de direito internacional (ius cogens). Revestem ainda a especificidade de terem criado um ordenamento jurídico autónomo. Existindo lacunas, são preenchidas pelos princípios gerais de direito e não pelos princípios gerais de direito internacional ou pelo direito consuetudinário. No entanto, nas matérias não reguladas pelos tratados, as relações entre os Estados continuam a reger-se pelo direito internacional. Nas matérias reguladas pelo direito comunitário a jurisprudência favorece e apoia a teoria segundo a qual a aplicação do direito internacional é inadmissível – teoria de exclusão total. 2.1.1. O Tratado de Paris O Projecto europeu assentou em dois tratados fundadores: o primeiro é o Tratado de Roma, de 18 de Abril de 1951, em vigor desde 1952, através do qual se instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Contratantes: França, a R.F.A., a Itália, a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo. Pressupunha uma Alta Autoridade. Teve como objectivo a estabilização da Europa no pós-guerra, pois a colocação destas duas matérias-primas, indispensáveis num conflito militar, sob o controlo de uma autoridade independente tornaria a guerra mais difícil e contribuiria para um desenvolvimento económico mais harmonioso. Caducou em 20 de Julho de 2002. A partir dessa data, a regulamentação do carvão e do aço reconduz-se ao sistema mais amplo do Tratado de Roma. 2.1.2.
O Tratado de Roma
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Direito Comunitário I O Tratado de Roma, de 25 de Março de 1957, instituiu a Comunidade Económica Europeia (CEE): previa-se aí um processo de integração por fases, começando na criação de uma união aduaneira e progredindo para o estabelecimento de um mercado único, assente na livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais e no direito de estabelecimento. Seguiu-se uma fase ulterior de união económica e monetária, onde se pretendia o desenvolvimento harmonioso e equilibrado das actividades económicas na comunidade. O mesmo tratado procedeu à criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA), no pressuposto da generalização da energia nuclear como base do desenvolvimento económico. Numa Convenção anexa ao Tratado de Roma estabeleceu-se o Tribunal de Justiça (TJCE) e o Parlamento Europeu (PE), como órgãos comuns às três comunidades, e o Comité Económico e Social, como órgão comum da CEE e da CEEA. Em 1965 procedeuse à fusão (tratado de fusão) de executivos, através de um conselho e uma Comissão comuns, e criou-se um estatuto único para os funcionários e agentes da Comunidade. Os tratados CEE e CEEA foram celebrados com uma duração ilimitada, sem previsão da retirada dos Estados. Relativamente à revisão dos Tratados, estabeleceu-se que a mesma podia ocorrer, sob parecer favorável do Conselho e após consulta ao Parlamento, através de uma Conferência Inter-Governamental e subsequente ratificação pelos Estados, num processo típico de direito internacional dos tratados. 2.1.3. Reformas posteriores A evolução posterior assenta, basicamente, em dois aspectos fundamentais: aperfeiçoamento institucional e alargamento.
A comunidade europeia cresceu muito para além dos Estados fundadores da CEE: adesão da Dinamarca, Irlanda e Reino Unido (1972); Grécia (1981); Espanha e Portugal (1986); Áustria, Finlândia e Suécia (1997).
Activação de um sistema financeiro com base em recursos próprios (1970), estabelecimento do sistema de cooperação política (1970), a instituição do Tribunal de Contas (1977), consagração do sufrágio universal directo para o Parlamento Europeu (1979).
Mas o aprofundamento da integração europeia passou pela adopção de outros instrumentos internacionais. 2.1.4. Acto Único Europeu O primeiro foi o Acto Único Europeu (AUE) – 1986-1987: estabeleceu um fundamento convencional autónomo para a cooperação política europeia. Com este instrumento previa-se um sistema de consultas mútuas e a formação de linhas políticas de referencia para todos os Estados-membros, admitindo-se ainda a possibilidade de extensão deste sistema a uma política de segurança comum; criou-se um Tribunal de Primeira Instância para aliviar o sobrecarregado Tribunal de Justiça. 2.1.5. O Tratado de Masstricht O Tratado de Masstricht sobre a União Europeia (TUE - 1992) veio operar a revisão dos tratados. Para além do seu objectivo de criação de um mercado único, ele representa uma viragem decisiva no processo de construção europeia; veio alargar a cooperação entre os Estados-membros para além do sistema das comunidades europeias, reconduzindo tudo isso ao conceito mais amplo de EU. 2.1.5.1. Moeda Única O projecto da CEE apontava par a criação de uma União Económica e Monetária e de uma moeda única. Este projecto viria a realizar-se em várias fases: - A primeira fase, em 1990, garantiu a livre circulação de capitais; - A segunda fase passou pela convergência das políticas económicas dos Estados-membros; - A terceira fase, em 1999, envolveu a criação de uma moeda única através de um sistema de gestão monetária centralizada, criando-se assim o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), composto pelo Banco Central Europeu e pelos Bancos Centrais nacionais; - A quarta fase, em 2000, com a entrada em circulação do Euro. Entre nós a adesão à moeda única teve como consequência a necessidade de alterar a CRP de modo a adaptar o sistema financeiro ao Sistema Europeu de Bancos Centrais, os quais ficaram encarregados pela emissão da moeda – novo art. 102º. 2.1.5.2. Cidadania europeia No contexto da criação do Tratado da EU, assume relevo especial o conceito de cidadania europeia (art. 17º CE): assenta no direito de livre circulação e residência, no direito de sufrágio activo e passivo nas eleições municipais e para o PE, no direito à protecção diplomática fora da EU por qualquer Estado membro e no direito de petição e de queixa perante os órgãos da EU (PE e Provedor de Justiça) – estas petições e queixas podem ser apresentadas individualmente ou colectivamente, por residente ou
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Direito Comunitário I pessoa sediada estatutariamente num Estado-membro. A cidadania europeia fundamenta um estatuto de igualdade jurídica, assente no princípio da proibição de discriminação em razão da nacionalidade, sem prejuízo da existência de excepções. 2.1.5.3. Consolidação do acervo comunitário O tratado da EU veio consolidar o acervo comunitário adquirido, mediante o alargamento de competências da União Europeia, nos domínios da educação, da formação profissional, da cultura, da saúde pública, da protecção dos consumidores, das redes transeuropeias e da política industrial. 2.1.5.4. Aprofundamento dos três pilares O tratado da EU procurou dar mais um passo no sentido da união política. O objectivo final consistiu em erguer a UE sobre três pilares: o primeiro, relativo às comunidades, é serviço pela unificação parcial no plano institucional, pela elevação do Tribunal de Contas a órgão principal e comum e pelo alargamento do controlo jurisdicional (foi acolhida a nova designação de CEE que passou a CE); o segundo dizia respeito à chamada Política Externa e de Segurança Comum (PESC), integrando o Comité Político e o “Senhor PESC”; o terceiro, de cooperação em matéria de cooperação policial e judiciária em matéria penal assentava no Comité K4 e tem como domínios de cooperação: 1) Política de asilo; 2) O controlo das fronteiras exteriores; 3) A política de imigração; 4) A luta contra a toxicodependência; 5) A luta contra a fraude; 6) A cooperação judiciária em matéria civil e penal; 7) A cooperação aduaneira; 8) A cooperação policial. O Acordo de Schengen (1985) assumiu um grande relevo neste sentido pois, embora se trate de um acordo extra-comunitário, o mesmo tem por base a formulação de uma política única de atribuição de vistos, o combate à imigração clandestina, a criação de um ficheiro informático Schengen, a coordenação da concessão de asilo e a cooperação aduaneira, policial e judiciária. Este tratado acabou por ser incorporado no quadro da EU através de um protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão. Existia um quadro institucional único para os três pilares, com algumas notas específicas quanto ao segundo e ao terceiro: o Conselho Europeu definia orientações gerais e posições comuns por unanimidade ou maioria qualificada, competia ainda proceder à definição de posições comuns nos domínios da cooperação intergovernamental; o Comité de Representantes Permanentes também intervinha nos três pilares; o PE participava no segundo e terceiro pilares através de informações, consultas e recomendações. Porém, com os ulteriores aprofundamentos da UE, a separação entre os três pilares esbateu-se substancialmente, tendo os órgãos comunitários vindo assumir um peso decisivo no processo de decisão respeitante ao segundo e terceiro pilares. 2.1.6. Tratado de Amesterdão O ratado de Amesterdão (TA) foi aprovado em 1997 e entrou em vigor em 1999, tendo vindo a alterar o Tratado da EU e os tratados das três comunidades. Com o TA pretendeu-se assegurar a manutenção e o desenvolvimento da União, a sua conformação como espaço de liberdade, de segurança e justiça e o reforço de alguns princípios estruturantes (direitos fundamentais, princípio da igualdade, princípio democrático, princípio do estado de direito e o princípio do respeito pelas identidades nacionais. Aliás violações graves e persistentes destes princípios poderiam resultar, se assim fosse decidido pelo Conselho Europeu por unanimidade, em suspensões do direito de voto de um Estado. Inovações: comunitarização de algumas matérias do terceiro pilar (vistos, asilo e imigração, passaram do terceiro para o primeiro pilar pela sua introdução no TCE); incorporação do adquirido de Schengen no quadro da EU. Ainda assim, aos particulares não foi reconhecido o direito de impugnar directamente normas respeitantes ao terceiro pilar, podendo, quando muito, valer-se do mecanismo do reenvio prejudicial. O TA veio introduzir também alterações importantes na estrutura institucional, como por exemplo, o alargamento e a reestruturação do procedimento de decisão conjunta, o alargamento das decisões do Conselho por maioria qualificada e a inexistência de fixação definitiva dos membros da Comissão. A edificação da EU e da CE tem dado mostras de uma grande flexibilidade, com a coexistência no quadro comunitário geral de formas e graus diferenciados de integração, como sejam a EU de patentes, o regime de Schengen e a Zona Euro. 2.1.7. O Tratado de Nice Mais recentemente aprovado foi o Tratado de Nice (TN) por uma Conferência Inter-governamental inaugurada em 15 de Fevereiro de 2000, na presidência portuguesa do conselho, e encerrada em 7 de Dezembro de 200 em Nice, na presidência francesa. O mesmo altera o tratado da EU, os tratados que instituem as comunidades e alguns actos relativos a esses Tratados. A sua entrada em vigor deu-se em 1 de Fevereiro de 2003
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Direito Comunitário I 2.1.7.1. Objectivos fundamentais Os principais objectivos: preparação da EU para novas adesões (alargamento) e a reforma institucional. Igualmente importante foi a disciplina da cooperação reforçada entre os vários estados da UE: esta forma de cooperação não pode recair sobre áreas de competência exclusiva da Comunidade, embora possa incidir sobre o primeiro e terceiro pilares e sobre o segundo pilar por via do art. 23º EU; ela não pode discriminar cidadãos europeus nem restringir o comércio intra-comunitário; deverá além disto ser aberta a todos os estados. 2.1.7.2. Alargamento e reforma institucional Em 2004 viria a consumar-se o alargamento da EU às repúblicas Checa e Eslovaca, Estónia, Letónia, Lituânia, Hungria, Polónia, Eslovénia, Chipre e Malta. A Bulgária e a Roménia só aderem em 2007. A perspectiva deste alargamento esteve na base de algumas das mais importantes reformas institucionais introduzidas pelo TN, apelidadas por alguns de “mini-reforma institucional”, que manifestam um reforço do peso dos Estados com maior densidade geográfica. Alterações significativas: limitação do número de comissários; foi reforçada a colegialidade da Comissão; reponderação dos votos no Conselho; alargamento das matérias objecto de maioria qualificada; reforço do procedimento de co-decisão entre o PE e o Conselho; é igualmente modificada a composição do PE, do Tribunal de Contas, do Comité de Regiões e do Conselho Económico e Social; jurisdição europeia. O TN deixou, no entanto, algumas respostas em branco: eventual criação do Ministério Público europeu (magistratura autónoma); disciplina jurídica dos partidos políticos europeus; reorganização e simplificação dos Tratados; aprovação de uma Carta de Direitos Fundamentais dotada de valor jurídico-vinculativo. 2.2. A constitucionalização da integração europeia À medida que se sucediam os tratados no processo de integração europeia, foram aumentando as áreas de actuação da EU e este facto fez com que o direito comunitário aumentasse as suas áreas de tensão com o direito constitucional. O fundamento do direito comunitário reside no direito internacional, na medida em que as instituições que criam, aplicam e adjudicam aquele direito têm o seu fundamento numa sucessão de tratados internacionais. Destes depende pois a validade de todo o direito comunitário criado e aplicado pelas instituições. Todavia, alguma doutrina tem vindo a sustentar a verificação de uma transformação na natureza do fundamento último do direito comunitário no sentido da sua constitucionalização. Estes desenvolvimentos figuram-se controvertidos do ponto de vista histórico-institucional e jurídico-político, já que, de acordo com um uso corrente no direito público da generalidade dos Estados europeus, o termo constituição surge em regra ligado à expressão última da soberania de uma comunidade política independente. Enquanto uns sustentam que a UE, por exercer prerrogativas de soberania, tem forçosamente de ter uma Constituição, outros duvidam que a dita constitucionalização dos tratados constitutivos tenha atingido um estado de plenitude constituinte que implique a alteração do locus da soberania e criação de uma nova Grundnorm. Um dos domínios em que esta questão se faz sentir prende-se com a problemática da revisão dos tratados, sendo que a jurisprudência comunitária tem dado uma resposta negativa à questão colocada acerca de poderes de revisão dos tratados por Estados-membros através de declarações, acordos com estados terceiros, devendo seguir-se as normas neles previstas para a sua revisão. Em todo caso, isto não significa que a soberania internacional dos Estados-membros foi desactivada, transformando-os em Estados federados. A verdade é que o avanço do direito da UE tem aumentado as preocupações de muitos estados-membros com a sua identidade nacional. 2.2.1. Projecto do Tratado Constitucional Europeu Em 2001, os Chefes de Estado e de Governo da UE decidiram convocar uma Convenção Sobre o Futuro da Europa, cujos trabalhos preparatórios decorreram entre 2002 e 2003. Foi então que ganhou consistência o objectivo de criar uma Constituição para a UE, capaz de reforçar a respectiva legitimidade, unidade de acção e credibilidade internacional. O Projecto de Tratado Constitucional europeu foi assinado em Roma em 2004. Apesar de ser um tratado internacional, o mesmo dotou-se de uma relevância constitucional ostensiva, já que a expressão constituição era claramente assumida, juntamente com o objectivo de criar um instrumento dotado de auto-primazia normativa. Igualmente relevante neste contexto era a expressa adopção da Carta de Direitos Fundamentais da UE. Além disso, os regulamentos passaram a ser designados por leis e as directivas por lei-quadro. Na estrutura institucional destacava-se a existência de um Presidente do Conselho Europeu e de um Ministério dos Negócios Estrangeiros. Paralelamente, procurava-se reforçar o princípio democrático no seio da UE, nas suas dimensões parlamentar, directa e participativa. O PTCE estabeleceu ainda que a UE seria sucessora da CE e da CEEA, ao mesmo tempo que abolia a estrutura dos três pilares, alicerçando-a num único pilar. O PTCE foi abandonado depois do duplo não em 2005, nos referendos na França e na Holanda. Todavia, ficaram as dúvidas sobre os motivos dessas decisões. O certo é que o mesmo nunca viria a entrar em vigor.
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Direito Comunitário I Estes acontecimentos motivaram um período de reflexão, a que se seguiu uma tentativa de recuperar o Tratado a tempo das eleições para o PE de 2009, através de uma nova conferência inter-governamental, com a responsabilidade de reformular o tratado. 2.2.2.
Tratado de Lisboa
Foi assinado em 13 de Outubro de 2007 e entrou em vigor em 1 de Dezembro de 2009. Este tratado remete para o PTCE, tanto na sua génese como no seu conteúdo. Quanto ao seu conteúdo, o TL funciona como uma solução de compromisso: por um lado, ele mantém algumas das características do PCTE, assinalando-se uma clara continuidade entre um e outro; por outro lado, ele introduz algumas alterações no equilíbrio institucional que aquele propunha. Ele procedeu a alterações no TUE e no TCE, passando este último a designar-se por Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). O TL mitiga substancialmente as pretensões constitucionais, assinalando um regresso ao método de integração gradualista tradicional, todavia, não é claro que essas pretensões sejam postas completamente de parte. A Carta dos DF, embora não constando formalmente no TL, é expressamente elevada à mesma dignidade normativa do TUE e do TFUE, isto sem prejuízo da existência de normas protocolares que restringem substancialmente a sua vigência relativamente à Polónia e ao Reino Unido. Do ponto de vista institucional, acolheu-se a figura do Presidente do Conselho Europeu, mas substitui-se o Ministro dos Negócios Estrangeiros por um Alto Representante, que também é Vice-Presidente da Comissão. Manteve-se a abolição dos três pilares, procedeu-se a um alargamento das competências da UE e manteve-se o esforço da democracia parlamentar, directa e representativa, proposto pelo PTCE. Também o PE viu reforçadas as suas competências legislativas, orçamentais e de controlo. O objectivo da livre concorrência é apresentado de forma mais mitigada e menos genérica, procurando apaziguar os receios de excessos de liberalização económica da Europa. Às autoridades estaduais é deixada uma maior margem de discricionaridade na prestação, execução e organização de serviços não económicos de interesse geral. O TL inclui, no processo de revisão, a realização de uma convenção, à semelhança do que sucedia com o PTCE, por estes motivos, alguns continuam a ver no TL uma constituição disfarçada. Capítulo III: Organização da União Europeia 1.
Relevo substantivo da estrutura institucional
O estudo da estrutura institucional da UE reveste-se do maior relevo substantivo, porque os princípios políticos e constitucionais fundamentais são sempre indissociáveis dos respectivos corolários institucionais. A estrutura institucional da UE afecta o modo como o direito europeu deve ser encarado: como expressão de um equilíbrio institucional, como diálogo permanente entre os órgãos políticos e jurisdicionais europeus, como concepção de natureza e exercício de soberania estadual. A UE apresenta uma estrutura institucional autónoma que não tem como único objectivo um maior aumento da eficácia do processo de decisão, mas tem também preocupações de natureza constitucional, relacionadas com o exercício conjunto de soberania estadual, a expressão da vontade política democrática europeia e da solidariedade entre os povos e Estados europeus. 2.
Modelos de integração
A análise do direito da UE remete para a consideração de dois modelos básicos de integração e é por referência a estes dois modelos que deve ser equacionada a relação entre a UE e os Estados-membros. 2.1. Funcionalismo e cooperação intergovernamental O primeiro modelo assenta na compreensão do direito comunitário a partir de um sistema de funcionalismo/cooperação intergovernamental, através da criação de uma OI. Este caracteriza-se pela primazia dada aos factores técnicos e económicos e à cooperação intergovernamental de tipo funcional/sectorial. Para os defensores do status quo dos Estados-Nação este seria o modelo de integração mais adequado para as comunidades europeias. Até a doutrina indica que esta perspectiva funcionalista de integração económica através do mercado tem tido a virtualidade de aprofundar a cooperação política e a construção jurídica em áreas que extravasam largamente o domínio económico. Apesar disso, o mesmo depara com algumas dificuldades de relevo:
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Direito Comunitário I - Em primeiro lugar, uma integração técnico-económica em larga escala exige, mais cedo ou mais tarde, uma maior integração institucional, política e jurídica; - Em segundo lugar, diante das enormes disparidades entre as possibilidades técnico-económicas de cooperação dos vários Estados-membros, cedo se sente a necessidade de introduzir medidas correctivas de tipo federal; - Em último lugar, a regulação do comércio entre Estados-membros favorecerá sempre a expansão dos poderes da UE. 2.2. Supranacionalismo e federalismo Este modelo aponta para uma integração de natureza supranacional com vocação federal. Este caracteriza-se pela primazia do político sobre o económico, pela imitação de modelos existentes (EUA, RFA), pelo exercício em comum de prerrogativas de soberania estadual, pelo reforço dos poderes das instituições supranacionais, pelo exercício do poder constituinte e para a consequente supranacionalização da competência das competências e da legitimidade política democrática. Este modelo tem deparado com uma forte resistência dos chamados Estados-Nação, alegando-se a inexistência de um “povo europeu” que possa chamar a si a titularidade do poder constituinte. Não obstante, este modelo de integração conheceu um novo alento com a entrada em circulação do euro e com a convocação de uma Convenção Constitucional para a reforma política institucional da Europa. Apesar disso, parece prematuro pensar na UE como sendo uma estrutura federal dotada de soberania interna e externa: - Em primeiro lugar, os estados permanecem os “senhores dos Tratados” e os titulares últimos das prerrogativas de soberania que transferiram para as comunidades; - Em segundo lugar, embora se afirme a primazia do direito comunitário sobre o direito nacional, ela é o resultado de uma concessão constitucional dos Estados-membros, não exprimindo ainda a primazia absoluta de um poder federal sobre os poderes federados, como sucede nos EUA ou RFA. Não obstante, é já evidente a presença de elementos típicos de uma estrutura federal: 1) A união de entidades políticas autónomas; 2) A enumeração dos poderes normativos da UE e o carácter residual das competências nacionais; 3) A aplicabilidade directa das normas comunitárias dentro dos limites territoriais da UE; 4) A existência dos poderes legislativo, executivo e judicial a nível da UE; 5) A supremacia dos actos da UE, na sua esfera de competência, sobre todos os actos nacionais de sentido contrário. 3.
Repartição de competências
Um dos problemas fundamentais que se colocam numa estrutura de tipo federal, ou supranacional, prende-se com a repartição de competências entre os estados e essa estrutura, por um lado, e a repartição de competências entre os vários órgãos dessa estrutura. No primeiro caso, deparamo-nos com um exemplo claro de constitucionalismo multi-nível, em que está em causa a transferência de competências nacionais para a UE, através da criação de um direito constitucional europeu, derivado dos direitos constitucionais nacionais. Esta característica distingue a UE de qualquer outra OI. É neste ambiente constitucional que devem ser identificados e interpretados os princípios que regem o exercício das prerrogativas de soberania pelos Estados e pela UE. Os Tratados, ao mesmo tempo que identificam os valores e os princípios que servem de base à UE, definem as respectivas atribuições e competências. 3.1. Atribuições e competências dos Estados e da UE A UE prossegue os objectivos que lhe foram definidos pelos Tratados, pelos meios adequados. Importa clarificar as suas atribuições e competências. Em primeiro lugar, deve considerar-se os critérios que presidem à repartição das competências entre os Estados-membros e a UE. A delimitação das competências da UE está sujeita ao princípio da atribuição. O exercício das competências da UE está sujeito aos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (art. 5º TUE). 3.1.1.
Princípios de repartição de competências
3.1.1.1. Princípio das atribuições limitadas As competências da UE estão sujeitas ao princípio das atribuições limitadas. Este princípio, também designado princípio da especialidade das competências, ou princípio da atribuição, obriga a que só sejam consideradas competências da UE as que resultam da especificação da transferência de poderes soberanos – art. 5º/1 TUE. As competências que não sejam expressamente atribuídas à UE pelos Tratados permanecem na titularidade dos Estadosmembros (art. 4º/1 e 5º/2 TUE). Isto significa que, em princípio, a UE exerce apenas as competências que lhe forem atribuídas
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Direito Comunitário I pelos tratados institutivos, actuando dentro dos respectivos limites, não podendo criar novas competências ou extravasar os limites das que lhe estão atribuídas. A violação deste princípio pode vir a desencadear um controlo ultra vires dos actos comunitários pelas jurisdições constitucionais especialmente ciosas dessas prerrogativas. 3.1.1.2. Princípios da subsidiariedade O princípio da subsidiariedade tem um grande relevo para a compreensão da transferência das competências dos Estadosmembros para a UE – art. 5º/1 TUE. O seu domínio de aplicação diz respeito às matérias de competência concorrente, não se aplicando, portanto, em matéria de competência exclusiva da UE ou dos Estados. Além disso, o seu alcance deve ser determinado com o apoio complementar do princípio da proporcionalidade. A razão de ser deste princípio tem que ver com a preservação das prerrogativas de soberania dos Estados, bem como com o combate ao centralismo e a preservação das identidades regionais e locais. Este princípio vincula todas as instituições da UE, incluindo as instituições jurisdicionais. O princípio da subsidiariedade, concretizado no art. 5º/3 TUE, estabelece dois pressupostos cumulativos para justificar a intervenção da UE: - O primeiro, consiste na falta de eficiência da actuação dos Estados-membros, ao nível centrar, regional ou local; - O segundo, requer o valor acrescentado da actuação da UE, tendo em conta a dimensão ou os efeitos da acção considerada. 3.1.1.3. Princípio da proporcionalidade Na delimitação da transferência de competências dos Estados-membros para a UE vigora também o princípio da proporcionalidade (art. 5º TUE). Este é indissociável do princípio da subsidiariedade, vinculando também todas as instituições da UE. Este princípio assenta numa análise da relação entre fins e meios, exigindo a legitimidade dos fins e a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito dos meios relativamente aos fins. Os fins são dados pelo direito europeu originário e, sendo a transferência de poderes para a UE um meio para atingir as finalidades substantivas dos tratados, o princípio da proporcionalidade impõe a limitação material e formal das medidas da UE ao estritamente necessário à prossecução de objectivos dos tratados (art. 5º/4 TUE). O requisito da adequação manifesta-se na exigência de eficácia da acção da UE na realização do efeito pretendido. Por sua vez, o requisito da necessidade requer que a adopção da medida adequada seja menos onerosa, quer em termos financeiros, quer do ponto de vista da ingerência na soberania dos Estados e, por isso, o princípio da proporcionalidade aponta para a adopção da medida europeia menos detalhada possível, de forma a permitir uma margem de manobra tão grande quanto possível aos Estados. Uma correcta aplicação do princípio da subsidiariedade e da proporcionalidade requer a promoção de amplas consultas e publicação de textos a elas relativos antes da apresentação de propostas com iniciativas comunitárias, acompanhada da publicitação dos respectivos textos. 3.1.1.4. Poderes implícitos Sem prejuízo do princípio da atribuição limitada de competências comunitárias, não está excluída a consideração de poderes implícitos (implied powers). Trata-se de uma figura que tem sido usada no direito constitucional como mecanismo de flexibilização e adaptação dos poderes político e legislativo, permitindo a adaptação e sobrevivência de uma dada comunidade política em contextos de alteração do ambiente político, económico, social e cultural, evitando que a mesma fique paralisada pela rigidez das formas constitucionais. Desta forma, permite-se a actuação em domínios da actividade próximos das atribuições da UE, mas que não estão expressamente previstos nas normas de competências, quando isso se mostre necessário à prossecução de objectivos funcionais. Estes poderes emergiram da cláusula da flexibilidade – art. 352º TFUE. Apesar de tudo, a admissão destes poderes implícitos não é isenta de controvérsia. Em todo o caso, justifica-se plenamente o acolhimento de uma medida razoável de competências implícitas (competências não escritas mas logicamente necessárias ao exercício das competências por atribuição). A doutrina dá como exemplo a assunção de competências externas em matérias em que à UE foram atribuídas competências internas. Também o TFUE manifestou-se aberto à teoria dos poderes implícitos. Alguns autores procuram ir mais além defendendo a adopção dos chamados poderes inerentes (inherent powers), deduzidos das necessidades concretas da organização e baseados na premissa de que as acções que não são expressamente precludidas pelos tratados são admitidas quando inerentes a uma organização supranacional. Este último entendimento é, todavia, bastante duvidoso, pois a UE não dispõe de um direito de autodeterminação funcional e competencial. Mas a realidade é que o facto de os objectivos e os poderes a ela confiados serem, por vezes, vagos e indeterminados, nem sempre permite uma distinção clara
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Direito Comunitário I entre poderes inerentes e poderes implicitamente atribuídos. Ora, a inexistência dos primeiros acaba por levar à expansão dos poderes implícitos. 3.1.1.5. Cooperação leal O princípio da cooperação leal, ou da lealdade europeia, assume uma especial função ao permitir a interacção adequada nas relações entre os Estados-membros e a UE (art. 4º TUE). Ele aplica-se, além disso, na relação que as instituições europeias estabelecem umas com as outras (art. 13º/2 TUE). Este princípio tem como referências axiológicas o princípio da boa fé, que deve caracterizar as relações entre os Estados no âmbito do direito internacional, e o princípio da lealdade federal. No direito da UE, ele pretende facilitar a interacção que se estabelece entre Estados soberanos numa estrutura com algumas características do tipo federal, implicando deveres recíprocos de respeito, assistência e cooperação. Tem como base o respeito pela identidade nacional e o princípio da igualdade e reciprocidade entre os Estados. Este princípio traduz-se no dever de a UE apoiar todos os Estados no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados, bem como no dever estadual de cumprir essas missões, tomando todas as medidas gerais ou específicas adequadas. 3.1.1.6. Cooperação diferenciada O ideal da UE é a prossecução dos respectivos objectivos pela União no seu conjunto, num acervo de igualdade de direitos e deveres dos Estados-membros que os candidatos à adesão também devem aceitar. Todavia, na prática nem todos os Estados têm condições políticas, económicas ou sociais para estarem igualmente envolvidos no processo de integração europeia e, por isso, é evidente que se torna necessário introduzir mecanismos de maior flexibilidade. Daí que, entre os princípios que regem a atribuição de competências dos Estados para a UE, encontremos o princípio da cooperação diferenciada. Por via deste princípio, de aplicação residual, a integração europeia conhece alguma flexibilidade, permitindo soluções jurídicas diferenciadas: nuns casos isso traduz-se na procura de níveis mais elevados e profundos de cooperação, de acordo com uma postura mais activa (opting in); noutros, admitem-se derrogações à aplicação das normas da UE, de acordo com uma postura mais passiva (opting out). 3.1.1.6.1.
Cooperações reforçadas
As cooperações reforçadas (art. 20º TUE) são faculdades concedidas aos Estados-membros de procederem um aprofundamento da cooperação dentro do quadro normativo e institucional dos Tratados; permite, desta forma, a evolução gradual da estrutura institucional e funcional da UE. Para a respectiva activação terão que ser respeitados os limites materiais, positivos e negativos, formais e procedimentais impostos pelos art. 20º TUE e 326º e 334º TFUE. a)
Âmbito material
Limites negativos: dever de respeitar os tratados, de não prejudicar o mercado interno, de não pôr em causa a coesão económica e social e de respeitar os direitos e obrigações dos Estados-membros não participantes, não dificultando o seu exercício. Limites positivos: devem limitar-se às áreas de competências não exclusivas da UE, devendo estar ao serviço dos objectivos e interesses da integração. Expressamente admitidas são as cooperações reforçadas no domínio da política externa e de segurança comum (art. 329º/2 TFUE) e, dentro deste domínio, admite-se a criação de um novo tipo de cooperação reforçada, designada por cooperação estruturada permanente (art. 42º/6 TUE) e abrange os Estados-membros com capacidades militares elevadas que tenham assumido compromissos mais fortes para a realização de missões mais exigentes. Mesmo com estes limites, as cooperações reforçadas pretendem ser uma solução ultima ratio, a adoptar apenas quando de todo não seja possível a prossecução dos objectivos pela União globalmente considerada, dentro de um prazo razoável. b) Procedimento de autorização Do ponto de vista procedimental está prevista uma tramitação com várias fases: - Os Estados que a pretendem devem dirigir um pedido à Comissão, especificando o âmbito de aplicação e os objectivos da cooperação pretendida (no caso de uma cooperação reforçada no domínio da política externa e segurança comum, o pedido é dirigido ao Conselho que o transmite ao Alto Representante para que este dê o seu parecer – art. 329º/2 TUE); - Estabelece-se uma cláusula barreira, exigindo pelos menos 9 Estados-membros, com o objectivo de conseguir a participação do maior número possível (art. 328º/1 TFUE);
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Direito Comunitário I - A comissão decide formular ou não uma proposta de cooperação reforçada, devendo apresentar aos Estados as razões da sua recusa; - Na observância dos parâmetros materiais, a decisão de autorização é tomada pelo Conselho, sob proposta da comissão e após aprovação do PE (art. 329º/1 TFUE); - Na deliberação podem participar todos os Estados-membros, embora só participem na votação os que pretendem integrar a cooperação reforçada (art. 20º TUE). c) Regime de cooperações reforçadas Neste regime há que salientar alguns aspectos: - O primeiro prende-se com a abertura a todos os Estados-membros: no momento de autorização e em qualquer momento ulterior, as cooperações reforçadas têm que estar abertas a todos os Estados-membros (art. 328º TFUE) – princípio da igualdade entre os Estados; no entanto, um Estado que decida, num momento ulterior, participar na cooperação reforçada deve respeitar, não apenas as respectivas condições de participação, mas também os actos adoptados no respectivo âmbito; - O segundo aspecto diz respeito à adopção e ao alcance dos actos adoptados no âmbito da cooperação reforçada: todos podem participar na deliberação, mas apenas os Estados participantes têm direito de voto (art. 20º/3 TUE e art. 330º/1 TFUE). No domínio do processo de decisão introduzem-se, ainda, algumas cláusulas-ponte, inaplicáveis quando estejam em causa questões militares ou de defesa – art. 333º/1 TFUE e art. 20º/4 TUE. - o terceiro aspecto está relacionado com o financiamento da cooperação reforçada: em princípio, este ficará unicamente a cargo dos estados participantes, no entanto, após consulta do PE, o Conselho pode decidir, por unanimidade de todos os seus membros, que as despesas da cooperação reforçada serão suportadas por todos. - Finalmente, a coerência das acções adoptadas e da cooperação reforçada com as políticas da UE é garantida pela comissão e pelo Conselho (art. 3340º TFUE). d) Adesão a uma cooperação reforçada Os estados podem aderir a uma cooperação reforçada que já esteja instituída – art. 331º TFUE. No caso das cooperações reforçadas em geral, o Estado deve notificar a sua intenção à Comissão, a qual vai verificar o cumprimento das condições e decidir no prazo de quatro meses a contar desde a recepção da notificação. Em caso de decisão positiva, como a participação implica a aceitação dos actos já adoptados, pode haver lugar a um regime transitório. Em caso de decidir negativamente, deve identificar as condições que devem ser preenchidas e determinar um prazo para a nova apreciação do pedido. Se a Comissão entender que as condições de participação ainda não foram satisfeitas pode haver um novo pedido, dirigido ao Conselho (art. 331º/1 TFUE). No caso de cooperações reforçadas sobre políticas externas e de segurança comum, a notificação da intenção de participação é dirigida ao Conselho e ao Alto Representante. Este é chamado a pronunciar-se, cabendo a decisão final ao Conselho, por unanimidade dos participantes na cooperação reforçada, depois de verificado o cumprimento das condições de participação. Também aqui pode ser determinado um prazo para que os estados satisfaçam essas condições – art. 331º/2 TFUE. 3.1.1.6.2.
Derrogações à integração
Em princípio, o estatuto de membro da UE obriga a aceitação da generalidade dos direitos e obrigações previstos nos Tratados que integram o acervo comunitário. Todavia, para além das cooperações reforçadas, existe igualmente a possibilidade do enfraquecimento da cooperação nalgumas áreas, através de cláusulas derrogatórias. Estas impedem a aplicação de determinados direitos e deveres aos Estados criados pelo direito da UE e têm subjacente o princípio de respeito pelos interesses nacionais no processo de integração. Elas facilitam o alargamento, dando a possibilidade aos estados de procederem a adaptações políticas, jurídicas e económicas necessárias ao pleno exercício dos deveres e direitos inerentes ao estatuto de membro da UE. As derrogações podem ser: a) Derrogações temporárias: são aquelas que prevêem expressamente um termo resolutivo; b) Derrogações permanentes: não prevêem um termo resolutivo, mas não significa que sejam eternas; c) Derrogações voluntárias: são aquelas que podem ser solicitadas pelos estados no momento da adesão ou posteriormente; trata-se aqui de válvulas de escape que permitem aos estados evitar níveis mais elevados de integração europeia; é dada a possibilidade de os estados solicitarem o termo dessa derrogação; d) Derrogações obrigatórias: são aquelas aplicadas objectivamente aos estados que não preencham um determinado conjunto de requisitos; neste caso, não basta um acto subjectivo de vontade do Estado para por fim à derrogação. 3.1.1.7. Respeito pelas identidades nacionais
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Direito Comunitário I Outro princípio muito importante prende-se com a protecção das identidades nacionais – art. 4º/4 TUE. Este princípio confere aos estados um direito subjectivo de protecção em face da UE e dos demais estados. Ele aponta para uma compreensão material dos “states rights”, conformada pela protecção da identidade histórica e cultural, da identidade constitucional e da estadualidade interna. O respeito pelas identidades nacionais consagra uma obrigação de ponderação das identidades nacionais nos processos de decisão política, legislativa, administrativa e jurisdicional da UE. Neste sentido, este princípio não pode ser visto como uma proibição de interferências da UE nas identidades nacionais. Um exemplo da aplicação deste princípio diz respeito à posição adoptada pelo conselho europeu sobre a relação entre a Irlanda e o Tratado de Lisboa; outro exemplo pode encontrar-se na Declaração da Polónia sobre a Carta dos Direitos fundamentais da UE. 3.1.1.8. Respeito pela estadualidade Outro princípio delimitador das competências da UE é o respeito pelas dimensões da estadualidade. A UE é uma organização supranacional constituída por estados soberanos e, por este motivo, deve proteger as funções essenciais de cada estado (integridade territorial, manutenção da ordem pública, salvaguarda da segurança nacional, etc.) – art. 4º/2 TUE. Problemático é saber se o respeito pela estadualidade se estende a todas as funções que os estados, unilateralmente, decidirem definir como essencialmente estaduais. Em todo o caso, o grau máximo de respeito pela estadualidade manifesta-se na previsão expressa do direito dos estados se retirarem da UE – art.50º TUE. 3.1.2.
Tipos de competências
Aplicando os princípios anteriormente mencionados, surgem diferentes tipos de competências: matérias de competência exclusiva da UE, de competência partilhada, de competência paralela e de competência exclusiva dos Estados. 3.1.2.1. Competência exclusiva da UE Segundo esta competência, existem matérias em que só a UE pode legislar e adoptar actos juridicamente vinculativos. Esta reserva de competências pode ser relativa, ou seja, os estados podem ser habilitados ou autorizados a intervir nestes domínios pela UE, enquanto gestores do interesse comum, devendo fazê-lo em articulação com os órgãos da UE. Quando os estados não tiverem a habilitação ou autorização para agirem nestas matérias de competência exclusiva da UE, a sua violação origina uma acção por incumprimento, cabendo-lhes apenas a função complementar, de natureza executiva (art. 2º/1 TFUE). Nestas matérias os estados não podem tomar iniciativa através de acto legislativo ou regulamentar, cabendo-lhes apenas intervenções secundárias e subordinadas. Presentemente, o art. 3º/1 TFUE atribui expressamente competência exclusiva nos domínios da: a) União aduaneira; b) Regras de concorrência necessárias ao mercado interno; c) Política monetária para os estados da zona euro; d) Conservação dos recursos biológicos no âmbito da politica comum de pescas; e) Política comercial comum. Nestes domínios os estados foram, em princípio, definitivamente desapropriados das suas competências. A única excepção a este princípio pode correr no caso de radical inoperância por parte das instâncias da UE. 3.1.2.2. Competências partilhadas Existem, também, matérias de competência concorrente, ou seja, matérias competentes – art.2º/1 TFUE. Matérias de competência partilhada (art.4º/2 TFUE): a) Mercado interno; b) Aspectos da política social relativos ao TFUE; c) Coesão económica, social e territorial; d) Agricultura e pescas; e) Ambiente; f) Defesa dos consumidores; g) Transportes: h) Redes transeuropeias; i) Energia; j) Espaço de liberdade, segurança e justiça;
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em que tanto os Estados como a UE são
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Direito Comunitário I k) Problemas comuns de segurança em matéria de saúde pública, relacionados com TFUE. Os Estados exercem a respectiva competência na medida em que a UE não tenha exercido a sua. Apesar de se admitir a actuação da UE e dos Estados-membros, há que ter em conta a exigência de vinculação pelos fins dos Tratados e a regra da preempção das competências nacionais pela competência comunitária, ou seja: o exercício de competências por parte os Estados-membros não pode pôr em causa as disposições e os objectivos dos tratados, devendo subordinar-se ainda aos princípios gerais do direito da UE, principalmente no que toca ao princípio da cooperação leal; à medida que se exerce a competência da UE, os estados-membros são gradualmente desapropriados da sua competência, até a perderem definitivamente, passando a ter uma actuação meramente complementar e executiva, subordinada à UE. Neste caso, pode chegar a surgir uma verdadeira reserva de competências por parte da UE, necessitando de habilitação expressa os Estados que nela queiram intervir. 3.1.2.3. Competências paralelas Existem matéria em que as competências da UE e dos Estados são paralelas, ou seja, admite-se uma actuação paritária e concertada das instituições comunitárias e nacionais, sem qualquer exclusão ou preempção. Assim sucede, por exemplo, no domínio da investigação e do desenvolvimento tecnológico e do espaço ou a cooperação e ajuda humanitária – art. 4º/3/4 TFUE. 3.1.2.4. Competências de coordenação e complementação O aprofundamento do processo de integração europeia requer um esforço de coordenação em vários domínios, principalmente no que toca às políticas economias. Nestes domínios o Conselho pode definir disposições gerais, mas no tocante aos Estados da zona euro prevê-se a definição de disposições específicas. Para além daquelas, também podem ser definidas, pela UE, directrizes e iniciativas no sentido de coordenação de políticas de emprego e sociais (art. 5º TFUE). Prevê-se o desenvolvimento de iniciativas de apoio, coordenação e complementação da acção dos Estados-membros, no sentido de servirem finalidades europeias, nos domínios: a) Protecção e melhoria da saúde humana; b) Industria; c) Cultura; d) Educação, formação profissional, juventude e desporto; e) Protecção civil; f) Cooperação administrativa. Uma vez adoptadas as orientações, directrizes e iniciativas europeias, os estados devem segui-las de acordo com o princípio da boa fé. 3.1.2.5. Competências exclusivas dos Estados A UE é uma associação de estados soberanos, reconhecendo-se assim a existência de prerrogativas de soberania justificativas da existência de matérias de competência exclusiva dos Estados. Mesmo estas, porém, podem eventualmente ser complementadas pela acção da UE, no sentido de as colocar ao serviço de finalidades europeias. Estas matérias correspondem aos domínios da nacionalidade, fiscalidade directa, defesa da ordem pública, segurança nacional. No entanto, mesmo as competências exclusivas dos Estados membros devem ser exercidas no respeito pelo direito da UE (principalmente, quando esteja em causa a cidadania europeia, liberdade de circulação, etc.). O problema é a tentativa unilateral dos estados para estabelecerem as matérias que consideram reservadas, de acordo com as suas próprias teorias e fins do estado. Neste sentido, deve salientar-se que os tratados não deixam de representar uma restrição à competência das competências dos Estados-membros da UE. 3.2. Atribuições e competências dos órgãos da UE 3.2.1.
Princípios de repartição de competências
Os tratados da UE cumprem uma função de indiscutível relevo constitucional, na medida em que são instrumentos normativos através dos quais se pretende esclarecer, organizar, regular e limitar o exercício de prerrogativas de autoridade pública. Os princípios de repartição de competências entre as instituições e órgãos da UE são princípios de direito constitucional da UE. Entre eles destacamos o princípio da competência orgânica limitada e o da paridade institucional. 3.2.1.1. Competência orgânica limitada Também relativamente aos órgãos da UE tem cabimento o princípio da atribuição limitada de competências, que implica uma competência orgânica limitada. De acordo com este princípio, os tratados procedem à especificação das competências, procedimentos e formas dos órgãos da União – art. 13º/2 TUE.
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Direito Comunitário I De acordo com o princípio da competência orgânica limitada, deve sempre existir um fundamento orgânico, procedimental e formal para a actuação das instituições da UE. Estabelece-se, assim, o princípio da tipicidade orgânica, segundo o qual os órgãos comunitários só podem actuar se para isso estiverem habilitados por uma norma de competência. Além disso, os procedimentos e as formas dessa actuação têm de observar as normas que tipificam as correspondentes regras. Daqui decorrem duas importantes implicações: - Por um lado, é estabelecido o princípio da tipicidade dos procedimentos (exemplo, quando se requer uma maioria qualificada, ou uma proposta da Comissão, etc.); - Por outro lado, o direito da UE consagra o princípio da tipicidade das formas (exemplo, quando se determina a adopção de uma directiva, ou de um Regulamento, etc.). A violação destes princípios tem como consequência a ilegalidade procedimental e formal do acto. 3.2.1.2. Paridade institucional Dentro dos órgãos da UE deve distinguir-se entre instituições e órgãos. Esta distinção permite assinalar a existência de duas categorias de órgãos da UE: a primeira trata-se de um quadro institucional essencial para a promoção das finalidades dos Tratados; a segunda trata-se de órgãos de natureza secundária e complementar. As instituições são, basicamente, os órgãos fundamentais da UE (o Parlamento Europeu, Conselho Europeu, o Conselho, a Comissão e o Tribunal de Justiça da União Europeia, o Banco Central e o Tribunal de Contas (art. 13º TUE). Nas relações que entre estes se estabelecem vigora o princípio da paridade institucional e equilíbrio institucional, com as suas dimensões de igual dignidade institucional e equilíbrio institucional, o qual é indissociável, também, dos princípios da tipicidade de competências e da cooperação leal entre os órgãos – art. 13º/2 TUE. Isto significa que: as instituições comunitárias executam directamente os tratados, pelo que nenhuma das instituições da União se pode sobrepor às outras, ou interferir no exercício das respectivas prerrogativas. Deste princípio decorre a existência de meios processuais para a defesa jurisdicional das prerrogativas das instituições da UE relativamente a intromissões de outras. 4.
Instituições europeias
4.1. Considerações gerais 4.1.1. Amplitude das responsabilidades funcionais As instituições europeias desempenham um papel decisivo no processo de decisão da UE e na dinamização e promoção das suas finalidades. Elas exercem as suas funções autonomamente, de acordo com as atribuições e competências que lhe são tipificadas no Tratados, e numa posição de paridade. Além disso, as suas responsabilidades funcionais abrangem todas as áreas da actividade da UE. No âmbito do mercado interno, a actividade dos órgãos da UE assume uma natureza preponderantemente jurídica e supranacional. Já no âmbito da política externa e de segurança e à cooperação policial e judiciária, a mesma assume, em maior medida, uma coloração política e intergovernamental. À amplitude das responsabilidades funcionais das instituições da UE não é alheio o objectivo de assegurar uma maior legitimidade das mesmas, bem como a vontade de, a prazo, consolidar e integrar toda a actividade da UE nos mais diversos domínios. 4.1.2.
Representação e participação democrática
O objectivo de um governo democrático à escala europeia consiste em identificar as necessidades e os interesses dos indivíduos, dos grupos, das regiões e dos Estados e harmonizá-los numa óptica de promoção do bem comum, através de processos de decisão representativos, deliberativos e compromissórios. Quando aquelas necessidades se traduzem em direitos fundamentais, o objectivo é a concordância prática e a máxima efectividade, ponderando-os com os bens da UE e dos Estados. No contexto europeu, a democracia tem sido construída de várias maneiras: 1) Reforço da legitimidade democrática do PE; 2) Reforço dos poderes de decisão normativa e de controlo do PE; 3) Ampliação e consolidação dos direitos de cidadania europeia; 4) Reforço dos direitos de iniciativa popular dos cidadãos europeus; 5) Maior participação de representantes de sectores económicos e sociais e regiões; 6) Reforço do debate aberto e da participação na preparação das decisões; 7) Garantia de transparência e prestação de contas no funcionamento de todas as intuições; 8) Aumento dos poderes dos parlamentos nacionais. 4.1.3.
Separação e interdependência de poderes
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Direito Comunitário I A estrutura institucional da UE manifesta a trilogia clássica das funções constitucionais legislativa, executiva e judicial. No entanto, ela reflecte um entendimento sui generis do princípio a separação de poderes, tanto do ponto de vista vertical como do ponto de vista horizontal. Desde logo, assinala-se a interdependência pessoal entre instituições comunitárias e nacionais, diferentemente do que sucede uma estrutura propriamente federal. Assim, por exemplo, no Conselho Europeu, órgão político da UE, têm acesso os chefes de estado e de governo dos estados-membros. O poder legislativo cabe conjuntamente ao Conselho, à Comissão e ao Parlamento Europeu, de acordo com o processo legislativo ordinário e o processo legislativo especial – art. 293º ss. TFUE. O poder executivo é exercido pelo Conselho Europeu, pelo Conselho, pela Comissão e pelos Estados-membros. O poder jurisdicional pertence ao Tribunal de Justiça, incluindo o Tribunal de Primeira Instância, e ao Tribunal de Contas. No quadro institucional da UE é frequente a transferência de competência multi-nível e o desdobramento funcional nas relações entre as várias instituições e órgãos e entre estes e os Estados-membros. Mais do que a separação de poderes no sentido tradicional, encontramos uma estrutura de coordenação, colaboração e interdependência. 4.1.4.
Estatuto internacional da UE
A UE é uma entidade com personalidade jurídica internacional. A mesma substitui-se e sucede à antiga CE (art. 1º, §3, TUE). A sua natureza jurídica tem características únicas, dada a sua compatibilidade com os diferentes graus de integração política e jurídica existentes no seu seio. Presentemente, e desde o Tratado de Lisboa, a UE tem características institucionais e normativas supranacionais que a colocam a meio caminho entre uma OI clássica, de natureza intergovernamental, e um Estado federal. Os estados-membros garantem-lhe um estatuto de imunidades e privilégios, ao mesmo tempo que lhe reconhecem capacidade jurídica de direito privado na ordem jurídica interna. A UE dispõe do poder de negociar, ajustar e celebrar convenções internacionais (ius tractum) com os estados que a reconheçam e com outras OI’s, como de resto hoje é comum à generalidade de OI’s. No entanto, os tratados celebrados pela UE aproximamse mais dos tratados celebrados entre os Estados, do que os celebrados pelas OI’s. Do mesmo modo, a UE dispõe do direito de legação (ius legacionis) activo e passivo, podendo nomear e acreditar embaixadores. A mesma goza, igualmente, do direito de integrar OI, incorrendo em responsabilidade internacional (apesar de esta consideração ser difícil, já que ela não é um Estado). A UE autodefine-se como servindo a rigorosa observância do direito internacional, incluindo os princípios da Carta das Nações Unidas (art. 3º/5 TUE). 4.2. Órgãos políticos do Tratado A UE apresenta hoje uma estrutura institucional autónoma, elemento garantidor da coerência política e da eficiência do processo de decisão. No planto institucional, o Tratado de Lisboa procurou criar condições para uma maior funcionalidade e eficiência e reforçar a democraticidade da UE. Assim, a distinção formal entre os três pilares da Comunidade Europeia deixou de existir, no entanto, materialmente, a mesma continua a existir, sendo fácil observar que se trata de três domínios distintos sujeitos a lógicas diferentes, embora relacionados entre si. O quadro institucional da UE é constituído pelos seguintes órgãos: o Parlamento Europeu; o Conselho Europeu; o Conselho; a Comissão Europeia; o Tribunal de Justiça da União Europeia; o Banco Central Europeu e o Tribunal de Contas. O mesmo visa promover os seus valores, prosseguir os seus objectivos, servir os seus interesses, os dos seus cidadãos e os dos Estados Membros, bem como assegurar a coerência, eficiência e a continuidade das políticas e das acções da UE – art. 13º TUE. As instituições distinguem-se dos restantes órgãos e agências da UE, funcionando como uma espécie de “órgãos constitucionais de soberania” da UE. Cada instituição actua dentro dos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados, de acordo com os procedimentos, condições e finalidades que estes estabeleçam. 4.2.1. Parlamento europeu O PE é o órgão democrático-representativo por excelência dos cidadãos europeus – art. 10º/1/2 e art. 13º/1 TUE. As bases do seu regime jurídico encontram-se definidas nos art. 14º TUE e 223º ss TFUE. Porém, ele é apenas uma peça de uma teoria complexa de democracia desenvolvida tendo em conta as realidades e necessidades institucionais e funcionais da UE. 4.2.1.1. História Inicialmente designado pelos tratados por Assembleia, o PE começou por ser um órgão de representação meramente indirecta, integrando representantes nomeados pelso Estados-membros de entre os seus deputados nacionais, de acordo com um procedimento estabelecido por cada Estado. Esta forma de representação indirecta pretendia ser temporária, pois o objectivo inicial era o de evoluir para a eleição directa do PE.
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Direito Comunitário I Na gradual afirmação do PE como órgão democrático representativo europeu deve sublinhar-se o relevo assumido pelos seguintes aspectos: 1) Adopção, por iniciativa própria, da designação de Parlamento Europeu, em 1962; 2) Introdução do sufrágio universal directo, por um Acto do Conselho de 1976, em vigor desde 1978; 3) Reconhecimento da existência de partidos políticos europeus como factor de integração (art. 10º TUE e 224º TFUE); 4) Alargamento sucessivo de competências do PE, à custa dos poderes de outras instituições europeias e dos Estadosmembros. Estes desenvolvimentos têm contribuído para uma maior autonomia institucional do PE a par da criação de uma classe política europeia. 4.2.1.2. Significado jurídico-político 4.2.1.2.1. Função de representação Esta função corresponde a uma realidade complexa. Ela tem: i. Uma dimensão democrática, na medida em que representa os povos europeus; ii. Uma dimensão demográfica, na medida em que essa representação pretende ter correspondência com a realidade demográfica dos estados-membros; iii. Uma dimensão política, na medida em que se reflectem as diferentes tendências político-ideológicas e presentes na Europa; iv. Uma dimensão cultural, exprimindo-se igualmente no multilinguismo do seu funcionamento e na expressa da identidades nacionais. 4.2.1.2.2. Função de integração Por um lado, ele procura constituir um fórum de discussão e deliberação em torno dos diversos problemas com que a UE se depara e que assumam uma dimensão transnacional. Por outro lado, ele procura levar a cabo essa discussão e deliberação a partir da inclusão de diferentes pontos de vista dos diferentes estados e povos, dos cidadãos europeus e dos diferentes grupos de interesses políticos, económicos e ideológicos que integram a sociedade civil europeia. 4.2.1.3. Eleição O PE é composto pelos representantes dos cidadãos da UE, exercendo os poderes que lhe são atribuídos pelos Tratados. Os mesmos são eleitos por sufrágio universal, directo, livre e secreto, por um mandato de 5 anos – art. 14º/3 TUE. O processo de eleição baseia-se em princípios comuns a todos os Estados-membros – art. 223º TFUE. Entre nós, a eleição dos deputados do PE é feita com base num circulo eleitoral único, tendo capacidade eleitoral os cidadãos portugueses recenseados no território nacional, incluindo os residentes nos Estados-membros da UE que não opte por votar no Estado de residência, e os cidadãos da UE não nacionais que se encontrem recenseados em Portugal, sem prejuízo das inelegibilidades e incompatibilidades previstas na lei. Ao PR compete marcar a data das eleições e as listas de candidatos são apresentadas junto ao TC. 4.2.1.4. Composição A composição do PE remete para a consideração dos deputados, individualmente considerados, dos grupos políticos e dos partidos políticos. 4.2.1.4.1. Deputados Presentemente, o PE é composto por um máximo de 750 Deputados, mais o Presidente. A conversão de votos em mandatos obedece a um critério de proporcionalidade degressiva: o limiar mínimo de representação é fixado 6 deputados europeus por estado-membro, ao passo que o máximo é de 96 deputados – art. 14º/2 TUE. Este sistema tem sido considerado incompatível com uma verdadeira representação paramentar dos cidadãos, por alegadamente não respeitar o princípio da igualdade de sufrágio e o seu corolário do igual resultado dos votos. No entanto, o mesmo parece adequar-se razoavelmente à representação democrática com características federais. Por outro lado, ela é apenas uma das estratégicas de concretização do princípio democrático. Os deputados do PE têm um estatuto próprio, decorrente do Regimento do PE, que lhes garante privilégios e imunidades. O facto de os privilégios serem previstos no interesse público comunitário justifica o poder dado às instituições de levantarem imunidade. Mas isso não significa que as imunidades e privilégios não sejam concedidos directamente aos seus funcionários, outros agentes e membros do PE. A decisão do PE que levante a imunidade de um dos seus membros pode ser impugnada judicialmente. 4.2.1.4.2.
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Direito Comunitário I Os deputados desenvolvem o seu trabalho dividindo-se em diferentes grupos políticos, de acordo com critérios políticos e ideológicos. Os grupos políticos uninacionais são expressamente proibidos. 4.2.1.4.3. Partidos políticos Prevê-se a existência de partidos políticos a nível europeu, orientados para a integração dos povos europeus, a formação de uma consciência política europeia e para a formação da vontade popular dos cidadãos da UE – art. 10º/4 TUE. Os estatutos dos partidos europeus são definidos pelo PE e pelo Conselho, mediante procedimento legislativo ordinário – art. 224º TFUE. O objectivo consiste em transferir, gradualmente, a formação da opinião pública e da vontade política para um plano europeu. No entanto, ele ainda não se traduziu na constituição de um sistema partidário à escala europeia. 4.2.1.5. Funcionamento O PE realiza uma sessão anual, podendo reunir-se por direito próprio na segunda terça-feira de Março (art. 229º TFUE) – constitui uma manifestação do reforço do papel do PE. Não está excluída a realização de sessões extraordinárias, a pedido da maioria dos Deputados, do Conselho ou da Comissão. 4.2.1.5.1. Organização O PE desenvolve a sua actividade em Plenário e através de comissões parlamentares (as reuniões, em princípio, são públicas). O PE aprova o seu regimento por maioria – art. 232º TFUE. 4.2.1.5.2. Funções e competências a) Função legislativa Com as sucessivas reformas, tem-se verificado um reforço da participação do PE nos procedimentos da produção normativa. O PE exerce a função legislativa, juntamente com o Conselho – art. 14º/1 TUE. Apesar de tudo, não vigora ainda plenamente na UE o princípio do parlamentarismo característico dos sistemas constitucionais democráticos, com a inerente existência de uma reserva absoluta de competência legislativa exclusiva assente na chamada teoria da essencialidade. Do mesmo modo, ainda não vigora uma prerrogativa geral de iniciativa legislativa, tal como é típico na generalidade dos parlamentos. Apesar de tudo, o PE pode, por maioria, solicitar à Comissão que lhe apresente propostas adequadas sobre questões carecidas de acto de execução dos tratados. Caso esta não apresente uma proposta a Comissão deve justificar – art. 225º TFUE. Não tendo um direito geral de iniciativa legislativa, o PE pode pelo menos provocar a Comissão e forçá-la a um processo público de “reason-giving” no caso de optar pela inacção (a sanção aqui será meramente política). Concluindo: o PE tem competência para participar nos procedimentos de produção normativa, seja através do exercício de poderes consultivos, seja do exercício partilhado do poder legislativo. As deliberações do PE são adoptadas por maioria dos votos expressos, cabendo ao regimento estabelecer o quórum – art. 231º TFUE. O TL veio reforçar significativamente os poderes do PE no domínio desta função, equiparando o PE ao Conselho no processo de co-decisão, que passou a ser o processo legislativo ordinário; por outro lado, alargou os domínios de competência legislativa. b) Consulta O PE desempenha importantes funções consultivas, nomeadamente nas decisões não legislativas do Conselho, naturalmente sem direito de voto. Ele emite, ainda, parecer conforme, no domínio da uniformização do procedimento eleitoral em todos os Estados, o qual pode aparecer inserido num verdadeiro procedimento normativo – art. 294º TFUE. c) Nomeação e eleição O PE competências electivas e de nomeação importantes: cabe-lhe eleger, de entre os seus membros, o seu Presidente e a sua Mesa (art. 14º/4TUE), eleger o Presidente da Comissão e de voto de aprovação do colégio de comissários antes da sua nomeação, e ainda, após a sua eleição, cabe-lhe eleger o Provedor de Justiça por um mandato correspondente à legislatura (art. 228º/2 TFUE). d) Controlo e fiscalização Os poderes de controlo do PE constituem uma expressão dos princípios da separação e controlo recíproco dos poderes, por um lado, e do princípio da juridicidade e legalidade de toda a actuação dos órgãos da UE: e) Deveres de informação A fim de possibilitar ao PE o exercício da sua função de controlo e fiscalização, estabelecem-se importantes deveres de informação. Este dever pode traduzir-se num dever de informação regular sobre questões políticas, como sucede relativamente ao Alto Representante no âmbito da evolução política simples prestações de informações, na declaração do TC sobre a fiabilidade das contas.
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Direito Comunitário I Este dever consubstancia-se em muitos casos na exigência de prestação de relatórios: pode tratar-se de um relatório pontual ou de um relatório com periodicidade definida (anual – art. 284º/3 TFUE e art. 287º/4 TFUE – ou trianual – art. 25º e 175º TFUE. Nalguns casos, existe um dever de apresentação de um relatório sobre uma matéria específica, impendendo mais do que um órgão (art. 121º/5 TFUE). A inversa também pode acontecer. Noutros casos, esse dever de apresentação de relatórios é qualificado por uma exigência especial (art. 151º e 159º TFUE). f) Interpelação e audição Este poder está intimamente relacionado com o dever de informação. Um e outro visam clarificar os termos da actuação das diferentes instituições e órgãos, servindo os objectivos da transparência, da coerência e da eficácia da actuação da UE. Os mesmos têm vários destinatários (art. 230º TFUE e 235º/2 TFUE). g) Poder de inquérito O poder de inquérito é um poder relevante na função de controlo e fiscalização do PE. Ele concretiza o princípio do controlo da actividade político-administrativa por parte da publicidade crítica democrática. O PE pode nomear comissões parlamentares de inquérito (art. 226º TFUE), por um quarto dos seus membros -> princípio da protecção de minorias. Estas comissões são temporárias, extinguindo-se com a apresentação do respectivo relatório. As mesmas têm como objectivo o controlo de infracções ou de má administração na aplicação do direito comunitário, havendo sempre cuidado de não interferência no exercício do poder judicial quando o caso esteja pendente em tribunal. Nos termos do art. 226º, as formas do exercício do poder de inquérito são definidas pelo PE, por meio de regulamentos adoptados por iniciativa própria, por via de processo legislativo especial, após aprovação do Conselho e da Comissão. h) Apreciação de petições O PE tem o poder de apreciar petições. O art. 20º/2/d) TUEF, consagra o direito de petição junto do PE como um direito de cidadania da União. Nos termos do art. 227º TFUE, a titularidade deste direito pertence não só aos cidadãos, mas também a pessoas físicas e colectivas residentes ou sediadas num Estado-membro. A questão deve dizer respeito aos domínios da actividade da Comunidade e ter uma ligação directa e pessoal com o peticionante. i) Moções de censura Um importante poder prende-se com a aprovação de moções de censura à actividade da Comissão – art. 234º TFUE. Trata-se de um mecanismo de controlo subjectivo ou primário, que incide sobre o órgão, a pretexto das suas actividades. Esta moção é apresentada por iniciativa dos deputados do PE. j) Publicidade A publicidade é a regra na actividade parlamentar. O princípio da publicidade manifesta-se, nomeadamente, na obrigatoriedade de publicações das actas, nos termos dos Tratados e do regimento do PE (art. 232º TFUE), na discussão do relatório geral anual que a Comissão apresenta ao PE (art. 233 TFUE) e na votação de moções de censura à Comissão (art. 234º TFUE). k) Função orçamental O PE exerce, juntamente com o Conselho, a função orçamental – art. 14º/1 TUE. A ambos cabe a elaboração e a aprovação do orçamento anual da UE, deliberando de acordo com o processo legislativo especial, seguindo os parâmetros determinados para esse efeito (art. 314º TFUE). Para além disto, o PE realiza uma actividade de controlo orçamental e financeiro da UE, através da apreciação de contas das operações orçamentais, do balanço, do relatório de avaliação das finanças da UE e do relatório do TC. Cabe-lhe ainda dar quitação à Comissão sobre execução do orçamento, mediante recomendação do Conselho, podendo ser acompanhada de comentários e observações, relativos à execução orçamental, que a Comissão deverá levar em conta, estando obrigada a reportar as medidas tomadas nesse âmbito – art. 319º/3 e 318º TFUE. As regras financeiras que definem as modalidades relativas à elaboração e execução do orçamento e à prestação e fiscalização das contas são fixadas pelo PE e o Conselho, mediante processo legislativo ordinário, ouvido o TC (art. 322º/1 TFUE). O poder de aprovação do orçamento e de controlo da respectiva execução atribui ao PE uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito político e administrativo da actuação e da UE e dos respectivos custos. 4.2.1.5.3. Controlos intra-orgânicos O PE dispõe de mecanismos de controlo interno. Estes prendem-se com a verificação dos cumprimentos das normas regimentais em domínios como o quórum, a publicação das actas, etc. (art. 231º e 232º TFUE) e das normas que estabelecem o estatuto e as condições do exercício da actividade dos seus membros – art. 223º/2 TFUE.
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Direito Comunitário I 4.2.1.5.4. Controlos inter-orgânicos Um outro mecanismo importante de controlo diz respeito à legitimidade processual activa do PE para intentar acções judiciais. O TN veio conceder esta legitimidade ao PE para interpor acções junto do TJCE para o controlo da legalidade dos actos do Conselho, do Conselho Europeu, da Comissão e do BCE (art. 263º TFUE), para além da defesa das suas próprias prerrogativas institucionais. Trata-se de um mecanismo de controlo indirecto, na medida em que o controlo directo é levado a cabo por uma instância jurisdicional. O mesmo vale, igualmente, no controlo das omissões do PE, do Conselho, do Conselho Europeu ou da Comissão (art. 265º TFUE). Deve ainda referir-se a competência do PE para solicitar ao TJCE um controlo preventivo dos tratados internacionais que possam não estar em conformidade com o direito originário da CE – art. 218º/ 11 TFUE. Por outro lado, a jurisdição da UE fiscaliza a legalidade do actos do PE destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros. 4.2.2. O Conselho Europeu 4.2.2.1. Considerações gerais O Conselho Europeu é hoje o principal órgão de direcção política da UE – art. 13º/1 TUE. Ele desenvolveu-se como órgão de cooperação política, de natureza intergovernamental, desempenhando um papel importante de expressão e articulação dos interesses dos Estados-membros, apesar de inicialmente não ser parte das instituições comunitárias, o que só veio a acontecer pela primeira vez com o TL. Ele afirmou-se gradualmente, pois, como órgão de facto da UE. O Conselho Europeu integra os chefes de Estado excepto no caso da França) e de Governo dos Estados-membros da UE, o seu Presidente e o Presidente da Comissão. Nos seus trabalhos participa o Alto Representante da União Para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança – art. 15º/1 TUE. Alguns viram no reforço do seu papel a semente da desintegração europeia, na medida em que alegadamente tende a valorizar os interesses nacionais mais poderosos acima dos interesses da UE. Todavia, um impulso político e uma legitimidade forte revelam-se essenciais à subsistência e actividade da UE. 4.2.2.2. Atribuições e competências O Conselho Europeu é um órgão essencialmente político, cujas funções são diversas. 4.2.2.2.1. Função de direcção política O CE é hoje o órgão responsável por fornecer os impulsos necessários ao desenvolvimento da UE e por definir as respectivas orientações políticas gerais. Ele não exerce função legislativa – art. 15º/1/3 TUE. Particularmente digno de nota é a identificação dos interesses estratégicos da UE e o estabelecimento dos objectivos e orientações no domínio da política externa e de segurança comum – art. 26º TUE. 4.2.2.2.2. Poder de decisão A elevação do CE a instituição formal da UE conferiu-lhe importantes poderes de decisão inerentes à sua função de direcção política. O mesmo tem hoje capacidade de produzir decisões jurídicas vinculativas (principalmente, naqueles casos em que se prevê que certas decisões da competência do Conselho possam ser remetidas para o CE). Assim sucede nos casos do art. 31º/2 TUE e dos arts. 82º/3 e 83º/3 TFUE. 4.2.2.2.3. Função de nomeação O CE nomeia o Alto Representante da União Para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, podendo por termo ao seu mandato de acordo com o mesmo procedimento – art. 18º/1 TUE). Também nomeia as entidades do art. 283º TFUE. 4.2.2.2.4. Função de alteração dos Tratados O CE desempenha um papel de relevo na alteração dos tratados, no processo de revisão ordinário, decidindo por maioria simples a análise das alterações propostas ou a não convocação de uma Convenção, se as alterações propostas não o justificarem – art. 48º/2/3 TUE). No processo de revisão simplificado, o Conselho assume um papel central, podendo adoptar alterações respeitantes À Parte III do TFUE – art. 48º/6. 4.2.2.3. Organização e funcionamento O CE reúne ordinariamente duas vezes por semestre, por convocação do seu Presidente. O mesmo é assistido por um Secretariado-Geral próprio – art. 235º/4 TFUE. Os membros do CE podem decidir ser assistidos por um ministro e, no caso do Presidente da Comissão, por um membro da Comissão, sempre que a ordem dos trabalhos o exija – art. 15º/3 TUE. O CE pronuncia-se, em regra, por consenso, de acordo com uma lógica intergovernamental. A abstenção tem um efeito construtivo, e não de veto, na medida em que não põe em causa a unanimidade. No entanto, admite-se que os tratados prevejam a
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Direito Comunitário I possibilidade de votação – art. 15º/4 TUE. Havendo lugar a votação, aplicam-se as regras previstas para o Conselho no art. 16º/4 TUE, bem como as do art. 238º/2 TFUE sobre derrogação daquelas. Em matéria de questões processuais e adopção de regulamento interno, delibera-se por maioria simples – art. 235º/3 TFUE. As deliberações do CE não estão sujeitas ao princípio da publicidade, solução que se justifica à luz da natureza política das suas decisões. 4.2.2.4. Presidente do Conselho Europeu 4.2.2.4.1. Considerações gerais Uma importante inovação introduzida pelo TL consistiu na introdução da figura do Presidente do Conselho Europeu. Esta presidência é rotativa e é limitada ao Conselho. Deste modo procurou dotar-se a UE de uma figura representativa facilmente identificável pelos vários actores internacionais. Igualmente importante é a identificação dos cidadãos europeus com um representante externo da UE. Esta figura do CE gerou alguma controvérsia entre aqueles que, por um lado, achavam que o PCE devia ser uma figura com grande peso político, forte e de carisma notório, capaz de ser reconhecido em qualquer estado, e entre aqueles que, por outro lado, consideravam que devia ser uma figura de mero organizador e dinamizador dos trabalhos do CE, não devendo limitar o espaço político de actuação dos representantes políticos dos estados. Terá sido acolhida a segunda orientação, de pendor minimalista. 4.2.2.4.2. Eleição, destituição e mandato O PCE é eleito pelo próprio órgão, por maioria qualificada. A destituição também é possível no caso de impedimento ou falta grave – art. 15º/5 TUE. O mandato tem a duração de dois anos e meio, renovável uma vez, sendo incompatível com qualquer outro mandato nacional – art. 15º/5/6 TUE. 4.2.2.4.3. Atribuições e competências Em face das atribuições e competências do PCE – art. 15º/6 TUE – parece poder dizer-se que a função dinamizadora e organizadora dos trabalhos da UE assume natureza dominante, ao passo que a função representativa assume uma natureza recessiva. Com efeito, são destacadas em primeiro lugar as competências de presidência e dinamização dos trabalhos do CE e de garantia da preparação e continuidade dos mesmos. Só então é que é mencionada a função representativa externa do Presidente, no âmbito da política externa e de segurança comum. Não dispondo de direito de voto no CE, o respectivo Presidente é, afinal, uma figura destituída de qualquer poder efectivo. 4.2.3. O Conselho 4.2.3.1. Considerações gerais O Conselho das comunidades e da UE assume um lugar central na dinâmica do projecto europeu. Nele estão representados todos os estados-membros. Tem como função essencial assegurar a coordenação das políticas económicas gerais dos estadosmembros, dispondo de poder de decisão e exercendo competências do tipo legislativo e regulamentar, e opera como órgão de charneira na articulação da UE com os estados-membros. Em si, o Conselho não é politicamente responsável diante do PE. O mesmo não pode ser alvo de moções de censura. No entanto, ele representa os governos dos estados-membros, sendo estes responsáveis perante os respectivos parlamentos e cidadãos. 4.2.3.2. Atribuições e competências O Conselho exerce um leque variado de competências: segundo o art. 16º/1 TUE, exerce a função legislativa e a função orçamental, conjuntamente com o PE, bem como funções de definição de políticas e de coordenação, nos termos estabelecidos nos Tratados. 4.2.3.2.1. Função legislativa O Conselho exerce a função legislativa juntamente com o PE. Ambos assumem o papel principal na criação do direito secundário da UE de execução dos tratados. A função legislativa é levada a cabo mediante o processo legislativo ordinário ou um processo legislativo especial. As disposições dos tratados é que definem o processo que deve ser usado nas diferentes matérias. 4.2.3.2.2. Função orçamental O Conselho exerce a função orçamental juntamente com o PE. Ele aprecia o projecto proposta pela Comissão, devendo tomar posição fundamentada sobre ele, para posterior articulação com o PE, se necessário mediante a intervenção do Comité de Conciliação – art. 314º/2/3 TFUE. 4.2.3.2.3.
Funções de coordenação
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Direito Comunitário I O Conselho exerce importantes funções de definição de políticas, de coordenação e complementação, nomeadamente no domínio económico ou em domínios de competências paralelas – arts. 4º/3, 5º, 6º e 16º/1 TUE. 4.2.3.2.4. Função de vinculação internacional da UE O Conselho desempenha um papel importante na celebração de tratados internacionais entre a UE e um ou mais países terceiros ou organizações internacionais nos termos previstos nos tratados e em ordem à prossecução dos seus objectivos – art. 216º e 218º TFUE. O papel do Conselho é especialmente importante – art. 218º/6 TFUE. 4.2.3.2.5. Função de alteração dos tratados O Conselho participa no processo de alteração dos tratados, recebendo propostas no processo de revisão ordinário e remetendo-as ao CE – art. 48º/2 TUE. 4.2.3.2.6. Função de iniciativa A regra continua a ser a da iniciativa da Comissão – art. 17º/1 TUE. No entanto, o Conselho pode solicitar estudos e propostas à Comissão, tendo em vista a realização dos objectivos dos tratados. Esta não fica juridicamente vinculada pelas solicitações do Conselho, no entanto, a decisão da Comissão de não apresentar uma proposta deve ser fundamentada – art. 241º TFUE (a sanção da ausência de fundação será apenas política). 4.2.3.2.7. Função de controlo O Conselho realiza uma importante função de controlo, gozando para o efeito de legitimidade processual activa para intentar acções de controlo da legalidade dos actos e das omissões das instituições e órgãos da UE – art. 263º e 265º TFUE. 4.2.3.2.8. Função de recursos humanos O Conselho desempenha ainda um papel importante no domínio da política pessoal e recursos humanos. Assim é no que toca à fixação de vencimentos, subsídios, abonos, pensões, bem como subsídios e abonos e que substituam a remuneração (art. 243º TFUE), também cabendo a ele a aprovação do Estatuto dos Funcionários e o regime aplicável aos outros agentes da UE – art. 336º TFUE. 4.2.3.3. Organização e funcionamento O Conselho é composto por um representante de cada estado-membro, a nível ministerial, dotado de poderes para vincular o Governo do respectivo estado-membro e exercer o direito de voto – art. 16º/2 TUE. O Conselho reúne-se por convocação do presidente, por iniciativa deste, de um dos seus membros ou da Comissão. A respectiva lista, e as suas presidências, são adoptadas por decisão do CE, tomada por maioria qualificada, com excepção da formação e presidência dos Negócios Estrangeiros e dos Assuntos Gerais – art. 236º e 237º TFUE. A presidência das formações do Conselho é rotativa, sendo exercida igualitária e sucessivamente por cada Estado-membro por seis meses – art. 16º/9 TUE. A variabilidade das formações significa que se o Conselho se pronunciar sobre questões financeiras ou comerciais, por exemplo, Portugal faz-se representar, respectivamente, pelos Ministros das Finanças ou do Comércio e da Indústria. Não está excluída a participação de outros membros do Governo, como os Secretários do Estado. Na verdade, o direito consuetudinário da UE tem vindo a admitir a participação de Secretários de Estado, mesmo quando eles não sejam considerados, pelo direito constitucional nacional, membros do Governo. Do mesmo modo, não está excluída a presença de membros de governos estados federados. As reuniões do Conselho são públicas na parte em que o mesmo delibere e vote sobre um acto legislativo da UE – art. 16º/8 TUE e 15º/2 TFUE – novidade introduzida pelo TL. Por via da regra, o Conselho delibera por maioria qualificada; no entanto, admite-se que se possa deliberar, ou por maioria simples, ou por unanimidade, segundo o disposto nos tratados. As abstenções não impedem a tomada de decisões por unanimidade – art. 238º/4 TFUE – acolhe-se, assim, um sistema de abstenção construtiva que impede a sua transformação no veto de facto. 4.2.3.3.1. Maioria qualificada e minorias de bloqueio A votação por maioria qualificada no Conselho constitui o regime regra. Por essa via se deu um passo significativo no sentido da supranacionalidade da UE, com uma substanciar limitação a soberania dos estados. Além disso, constitui um progresso no sentido da concretização do princípio democrático, na medida em que se impede que a vontade da maioria dos Estados seja bloqueada apenas por um Estado, que teria poder de veto. No CE, pelo contrário, a regra é a unanimidade, na medida em que estão em causa, geralmente, decisões importantes no domínio da alta política e dos interesses nacionais. Ainda assim, pode haver lugar a votação por maioria qualificada. No entanto, foram tomadas precauções significativas neste domínio, como seja a previsão de um regime transitório, a garantia de uma adequada representatividade democrática e a possibilidade de minorias de bloqueio adequadas às circunstâncias.
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Direito Comunitário I Em virtude do Protocolo sobre disposições transitórias, que determinou a entrada em vigor do art. 16º/4 e 238º/3 TFUE em 1 de Novembro de 2014, estas questões devem ser consideradas em três momentos diferentes. a) Ponderação de votos no Conselho Europeu e no Conselho O art. 3º do protocolo relativo à aplicação do art. 16º/47 apresenta a ponderação de votos, relativamente às deliberações do CE e do Conselho que exijam maioria qualificada. (ver art.) b) Antes de Novembro de 2014 Até o dia 31 de Outubro de 2014 vigora um regime transitório previsto no art. 3º do protocolo: estabelece-se, assim, que nas votações em que seja obrigatório deliberar sob proposta da Comissão, a maioria querer 255 votos, que exprimam uma posição favorável da maioria dos membros. Quando não haja lugar a proposta, os 255 votos devem exprimir a votação favorável de, pelo menos, 2/3 dos membros. Admite-se que os estados possa solicitar verificação de que a votação corresponde, a pelo menos, 62 % da população total da UE. As proporções mencionadas mantêm-se nos casos em que nem todos os Estados participem da votação, tendo como referente esses Estados e as respectivas populações. c) A partir de 1 de Novembro de 2014 A partir de1 de Novembro de 2014, a maioria qualificada corresponde, cumulativamente a: i. Pelo menos 55% dos membros do Conselho; ii. No mínimo de 15 de membros; iii. Representando 65 % da população da UE. Ela apresenta-se, desta forma, como uma dupla maioria qualificada. A minoria de bloqueio deve ser constituída por, pelo menos, quatro membros do Conselho. Quando nem todos participem na votação, decai a exigência de um mínimo de 15 membros e exige-se a representação de 65 % dos estados que participem na votação. Neste caso, a minoria de bloqueio é de 35 % da população dos estados participantes, mais um (art. 238º/3/a) TFUE). Assim é, em qualquer dos casos, quando o Conselho delibere sob proposta da Comissão ou do Alto Representante. Se essa proposta não existir, então, nos termos do art. 238º/2 TFUE, a maioria deve ser de 72 % dos membros do Conselho, representativa de 65 % da população da UE, ou, se não votarem todos, dos estados que participarem na votação (art. 238º/2/b) TFUE). d) Entre Novembro de 2014 e Abril de 2017 Ente 1de Novembro de 2014 e 31 de Março de 2017, quando deva ser tomada uma deliberação por maioria qualificada, qualquer estado-membro pode pedir que a mesma seja tomada pela maioria qualificada prevista no art. 3 do protocolo e não pela dupla maioria qualificada introduzida a partir de 1 de Novembro de 2014. 4.2.3.3.2. Maioria simples Nalgumas situações admite-se que o Conselho decida por maioria simples, caso em que delibera pela maioria dos membros que o compõem – art. 238º/1 TFUE. Assim sucede em matérias de organização do Secretariado-geral, resolução de questões processuais, etc. 4.2.4. A Comissão Europeia 4.2.4.1. Considerações gerais A Comissão Europeia, designada Comissão, é a instituição a UE – art. 13º/1 TUE – justamente considerada guardiã da ordem da União. A mesma protege e prossegue o interesse geral da UE, tomando as iniciativas adequadas a esse efeito – art. 17º/1 TUE. Ela procura identificar e promover o bem comum da UE, de uma forma totalmente independente do interesse dos Estados – art. 17º3 TUE- e dos interesses dos privados. Em sentido amplo a expressão Comissão significa quer o Colégio de Comissários propriamente dito, quer a instituição Comissão, com todas as suas Direcções Gerais. O mandado da Comissão é de 5 anos – art. 17º/3 TUE. 4.2.4.2. Atribuições e competências A Comissão garante o funcionamento e o desenvolvimento do mercado comum, numa posição de independência institucional perante os estados-membros e tendo em conta unicamente o interesse geral da União. Além disso, a Comissão é responsável pela representação externa das comunidades, cabendo-lhe negociar e ajustar convenções internacionais e aprovar pelo Conselho. 4.2.4.2.1.
Função de iniciativa
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Direito Comunitário I Através dos seus poderes formais de iniciativa a Comissão actua como “motor” de integração europeia. A comissão dispõe de importantes poderes de iniciativa em vários domínios: programação anual e plurianual da UE (art. 17º/1), políticas da União, mercado interno, asilo e emigração, etc. A sua iniciativa assume especial relevo no exercício dos poderes legislativos, em que é regra. A mesma é mitigada apenas pela possibilidade dada ao Conselho e aos cidadãos de convidarem a Comissão a fazer uma proposta. O princípio geral do exclusivo da iniciativa legislativa da Comissão é compreensível, pois com ele pretende-se que as iniciativas legislativas no seio da UE sejam motivadas por uma avaliação dos interesses globais da União e não apenas por uma avaliação nacional de interesses. Desse modo afirma-se a primazia do interesse geral europeu e a autonomia e a independência da Comissão relativamente aos estados-membros. Também se visa reforçar a protecção das minorias perante o risco de uma maioria qualificada no Conselho. Os desvios à proposta da Comissão requerem, em regra, a unanimidade dos membros do Conselho. Ainda assim, trata-se de um princípio e não uma regra. A iniciativa legislativa pode caber aos estados, no domínio da cooperação policial e judiciária, e ao Alto Representante, no domínio da política externa e de segurança. Naturalmente que o poder de iniciativa da Comissão é exercido em articulação com os estados e demais instituições e órgãos da UE. A mesma também esta receptivas a sugestões de Estados, órgãos da UE e mesmo de particulares. Além disso, os poderes de iniciativa da Comissão estão sujeitos aos princípios da atribuição de competências, da subsidiariedade, da proporcionalidade e do financiamento. A função iniciativa é indissociável do papel da Comissão na garantia de coerência da acção interna e externa da UE (art. 21º/3, 22º/2 e 27º/3 TUE). 4.2.4.2.2. Função normativa Em princípio, os actos legislativos da UE só podem ser adoptados sob proposta da Comissão, salvo se expressamente os tratados dispuserem de modo diferente (art. 17º/2 TUE). No âmbito normativo, a Comissão dispõe de um poder significativo de decisão e conformação quanto ao momento, conteúdo, modo, forma e densidade das medidas normativas que venham a ser adoptadas pelo Conselho e pelo PE. Todavia, além disso, a comissão exerce poderes normativos próprios e poderes normativos delegados: no primeiro caso, trata-se de poderes que lhe são atribuídos directamente pelos Tratados. Assim sucede em matéria de regulamentos sobre permanência no território de um trabalhador para além da duração do contrato (art. 55º/3/d) TFUE); no segundo caso, admite-se a existência de actos legislativos de delegação de competências normativas na Comissão (art. 290º TFUE). Estes actos de alcance geral podem completar ou alterar elementos não essenciais dos actos legislativos, devendo estes fixar os objectivos, o conteúdo, o âmbito da aplicação e o período de vigência da delegação e poderes. Acresce que a delegação nunca pode versar sobre os elementos essenciais de um regime jurídico. Desse modo reservam-se os aspectos essenciais ao PE e ao Conselho, podendo a Comissão disciplinar aspectos não essenciais de um regime jurídico. A possibilidade de delegação justifica-se, normalmente, por causa da excessiva morosidade do legislador primário e da necessidade de responder de forma adequada a imperativos de eficiência, necessidade e urgência. O papel da omissão no processo legislativo tem vindo a ser mitigado pelo reforço do PE e da sua interacção com o Conselho. 4.2.4.2.3. Função orçamental À Comissão compete recolher as previsões de receitas e despesas para o exercício orçamental seguinte, apresentadas pelas várias instituições, e reuni-las num projecto de orçamento, o qual será apresentado, como proposta, ao PE e ao Conselho, a quem compete elaborar e aprovar o orçamento. Na procura de acordo entre estas instituições, A Comissão participa nos trabalhos do Comité de Conciliação previsto para o efeito – art. 314º TFUE. 4.2.4.2.4. Função executiva A Comissão vela pela aplicação dos Tratados e das medidas adoptadas pelas instituições comunitárias por força destes – art. 17º/1 TUE. Cabe-lhe assegurar a execução do direito europeu originário e derivado. Para além de controlar essa mesma execução, a Comissão realiza uma importante função executiva, de coordenação e gestão, conforme as condições estabelecidas nos tratados. A mesma dispõe de competência especificada para a emissão de actos individuais e concretos de execução, por exemplo, no direito de concorrência em que cabe à Comissão velar pela aplicação dos respectivos princípios – art. 105º TFUE. A função executiva pode envolver alguns poderes normativos. Com efeito, prevê-se a possibilidade de os Estados, no exercício da sua obrigação de execução dos actos juridicamente vinculativos da UE, delegarem poderes normativos à Comissão quando forem necessárias condições uniformes de execução (art. 291 TFUE). 4.2.4.2.5.
Função de vinculação internacional
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Direito Comunitário I A Comissão participa no processo de vinculação internacional da UE, podendo formular recomendações ao Conselho sobre as negociações (art. 218º/3 TFUE). Esta capacidade é indissociável da sua função de representação externa, que a obriga a estabelecer contactos com todos os Estados e OI’s. 4.2.4.2.6. Função de representação externa A Comissão realiza importantes funções de representação externa da UE, com excepção da política externa e de segurança comum, que tem o seu próprio Alto Representante, e dos restantes casos previstos nos tratados (art. 17º/1 TUE). De acordo com esta função, ela tem a oportunidade de estabelecer uma ampla rede de contactos internacionais, conseguindo dessa forma uma capacidade de influência considerável. 4.2.4.2.7. Função de representação nos Estados-membros Os Tratados pretendem que a UE goze de uma ampla capacidade jurídica, bem como, seja reconhecida pelas pessoas colectivas e pelas ordens jurídicas dos Estados-membros. Isso é essencial, aliás, à realização das respectivas missões. Por isso, estão previstos privilégios e imunidades, ao mesmo tempo, que ela pode ter legitimidade processual activa e passiva junto dos tribunais nacionais. Em princípio cabe à Comissão representar a UE, no entanto, o art. 335º TFUE dispõe que a UE é representada por cada uma das suas instituições, ao abrigo da respectiva autonomia administrativa, nas questões ligadas ao respectivo funcionamento. 4.2.4.2.8. Função de controlo O direito da UE deve ser aplicado não apenas pelos respectivos órgãos e instituições, mas também pelos estados e pelos particulares. A comissão tem, neste domínio, importantes poderes de controlo, sob fiscalização do TJUE – art. 17º/1 TUE. Para o desempenho das funções que lhe são confiadas, a Comissão dispõe de poderes de recolha de informações e verificações necessárias – art. 337º TFUE. Além disso, ela pode colaborar com os Estados na avaliação objectiva e imparcial da execução das políticas da União relativas ao espaço de liberdade, justiça e segurança – art. 70º TFUE. Ela pode, do mesmo modo, controlar as infracções aos mesmos – art. 108º TFUE – e às regras sobre auxílios de Estados (art. 108º TFUE) ou as disparidades entre Estados falseadoras da concorrência – art. 116º e 117º TFUE. Além disso, a mesma tem o dever de investigar as queixas que lhe são apresentadas pelos particulares. E de relevo especial é o seu poder de intentar acções de incumprimento do direito da UE contra os estados-membros (art. 258º e 260º TFUE). Para além do exercício das funções de controlo, ela auxilia o controlo por parte de outros órgãos da UE e, para isso, ela é obrigada a publicar anualmente um relatório geral sobre as actividades da UE – art. 249º /2 TFUE: 4.2.4.3. Organização e funcionamento A organização e o funcionamento da Comissão, em sentido amplo, exprimem a complexidade institucional e funcional desta instituição. 4.2.4.3.1. Presidente da comissão É um membro da Comissão sem pasta, com importantes responsabilidades no âmbito da orientação política da omissão e da presidência do colégio de comissários, em cuja nomeação participa activamente. O mesmo tem uma importante função de “Agenda Setting”, cabendo-lhe definir as prioridades políticas da UE e representá-la externamente, podendo ser assistido nessas funções. a) Eleição e substituição A sua eleição começa com a apresentação, pelo CE, de uma proposta de candidato ao PE, tendo em conta os resultados das eleições para este órgão. A proposta de candidato é aprovada por maioria qualificada. Em seguida, o PE elege o candidato por maioria dos membros que o compõem. Se essa maioria não for conseguida, há lugar à repetição do processo com um novo candidato, que deve ser proposto num prazo de um mês – art. 17º/7 TUE. No caso de morte ou demissão procede-se à substituição do Presidente, pelo período do seu mandato, de acordo com o procedimento do art. 17º/7 TUE. b) Funções e competências De acordo com o art. 17º/6 TUE, cabe-lhe: Definir as orientações no âmbito das quais a Comissão exerce as suas funções; Determinar a organização interna da Comissão, assegurando a respectiva coerência, eficácia e colegialidade da acção; Nomear vice-presidentes de entre os membros da Comissão (Alto-Representante). 4.2.4.3.2.
O Alto representante
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Direito Comunitário I a) Considerações gerais O TL veio criar a figura do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, que designamos por Alto Representante. Trata-se de uma versão menos ambiciosa do Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE. O exercício das suas funções envolve uma articulação com o CE, com o Conselho, com A Comissão e respectivos presidentes e Ministros dos Negócios Estrangeiros. b) Nomeação e mandato O AR é membro da comissão, exercendo a função de vice-presidente – art. 17º/4 e 18º/4 TUE. O AR é nomeado pelo CE, por maioria qualificada, com o acordo do Presidente da Comissão – art. 18º/1 TUE. O mesmo é sujeito a voto de aprovação do PE – art. 17º/7. A demissão do AR é determinada pelo CE – art. 18º/1 TUE. Havendo demissão da comissão por moção de censura, o AR deve demitir-se das suas funções – art. 17º/8. A natureza das suas funções justifica um regime especial para a sua participação na Comissão – art. 17º/4 TUE. c) Atribuições e competências O AR conduz a política externa e de segurança comum da UE, assegura a coerência externa da UE e é responsável pelas respectivas incumbências nas relações externas. Além disso, ele preside ao Conselho dos Negócios Estrangeiros, constituído por Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados-membros, podendo convocar uma reunião extraordinária do Conselho em situações que exijam decisão rápida – art. 30º/2 TUE. d) Serviços de apoio Para o exercício das suas funções, o AR conta com um serviço europeu para a acção externa, que trabalha em articulação com os serviços diplomáticos dos estados-membros. O mesmo integra funcionários vindos do Secretariado-geral do Conselho e pessoal destacado dos serviços diplomáticos nacionais. A respectiva organização e funcionamento é proposta pelo AR e decidida pelo Conselho – art. 27º/2 TUE. 4.2.4.3.3. Colégio de comissários a) Composição Em sentido estrito, a Comissão designa o colégio dos comissários. Actualmente a Comissão é composta por 27 membros, tantos quanto os estados-membros, um por cada Estado. Porém, a partir de 1 de Novembro de 2014, o número de membros passara a corresponder a 2/3 do número de membros, salvo se o CE, por unanimidade, estabelecer outra coisa. Quando o número de comissários não corresponder ao dos Estados, a sua escolha deverá ser feita com base num sistema, unanimemente definido pelo CE, de rotação rigorosamente igualitária, do ponto de vista da sequência e do tempo de permanência no cargo, reflectindo a posição geográfica e demográfica relativa dos Estados-membros no seu conjunto – art. 17º/4 TUE e 244º TFUE. b) Nomeação, demissão e substituição O Conselho adopta uma lista de personalidades que tenciona nomear, com base nas sugestões apresentadas pelos Estados. Essas personalidades são escolhidas exclusivamente de entre os nacionais dos estados-membros, com base nos critérios da competência geral, do empenhamento europeu e da independência – art. 17º/3/7 TUE. O Presidente, o AR e os membros da Comissão são sujeitos a um voto de aprovação do PE. Seguidamente, o CE nomeia a Comissão, deliberando por maioria qualificada – art. 17º/7 TUE. Uma vez em funções, os membros da comissão respondem política e pessoalmente perante o Presidente da Comissão, a quem apresentam a demissão sempre que este lho pedir (art. 17º/6 TUE). As funções podem cessar igualmente por demissão voluntária – art. 246º TFUE. A substituição, em caso de demissão ou morte, é feita por um membro da mesma nacionalidade, pelo remanescente do mandato. Para isso, o PE é consultado e o Conselho delibera em comum acordo com o Presidente da Comissão – art. 246º TFUE. c) Independência Os membros da Comissão não podem solicitar ou aceitar qualquer instrução de nenhum Governo, instituição, órgão ou organismo. Os mesmos devem manter uma posição de total independência. Por seu lado, os estados devem respeitar essa posição e abster-se de tentar influenciá-los no exercício das suas funções – art. 245º TFUE. Além disso, os mesmos devem abster-se de qualquer actividade que seja incompatível com os seus deveres ou com a natureza e o exercício das suas funções – art. 17º/3 TUE. A independência dos comissários não significa que deles não se espere um conhecimento profundo do seu próprio país e que esse conhecimento não seja positivamente valorizado como um activo da Comissão.
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Direito Comunitário I O TJUE, por solicitação do conselho ou da comissão, procede ao controlo do cumprimento desses deveres – arts. 245º e 247º TFUE. d) Funcionamento A Comissão opera de acordo com uma lógica colegial, dispondo de um direito de auto-organização: a mesma aprova o seu regulamento interno, devendo assegurar a sua publicação, define os seus objectivos, uma estratégia política e um programa de trabalho e o anteprojecto de orçamento para o ano seguinte. A cada um dos comissários é atribuída a responsabilidade por determinadas matérias específicas, cabendo-lhes aí preparar os Trabalhos da Comissão e executar as suas decisões. Podem ser constituídos grupos de trabalho permanentes ou ad hoc – art. 3º RIC. A comissão reúne-se uma vez por semana, sem prejuízo da marcação de reuniões extraordinárias, seguindo uma ordem de trabalhos adoptada pelo Presidente – art. 6º, 7º e 8º RIC. e) Processo de decisão Em ordem a permitir o eficaz funcionamento da Comissão estão previstos quatro processos de decisão da Comissão, que importa conhecer nas suas linhas essenciais – art. 4º RIC. i. Processo oral O processo oral ocorre nas reuniões da Comissão, nas quais, em princípio, todos os membros devem estar presentes. No entanto, admite-se a justificação da falta, funcionando o quórum da maioria. As reuniões não estão sujeitas ao princípio da publicidade, permanecendo as deliberações confidenciais. Todos os membros são responsáveis pessoal e solidariamente pelas decisões da Comissão – art. 250º TFUE e 5º a 10º RIC). ii. Processo escrito As decisões da Comissão podem ser tomadas por um processo escrito – art. 12º RIC. Os membros da Comissão dispõem do seu próprio gabinete, que funciona como o seu escritório oficial. Os gabinetes funcionam como interfaces entre os vários Comissários e entre estes e as Direcções Geris, contribuindo para a preparação das decisões da Comissão e para a formulação das políticas do pelouro de cada Comissário. O texto do projecto circulará entre os vários gabinetes, que formularão reservas ou alterações, dentro de um prazo determinado. Qualquer dos membros pode solicitar um debate ou a suspensão do projecto, mas se isso não for feito dentro do prazo, o projecto considera-se aprovado. iii. Processo de habilitação Por esta via a Comissão, salvaguardando o princípio da colegialidade, habilita um ou mais dos seus membros a tomar decisões sobre matérias administrativas ou de gestão, dentro dos limites e condições estabelecidos. Do mesmo modo, também pode autorizar um ou mais membros a fixarem um texto definitivo de um acto a submeter a outras instituições, respeitando o conteúdo essencial previamente fixado pela Comissão por processo oral. iv. Processo de delegação Admite-se, igualmente, a possibilidade de a Comissão, respeitando o princípio da responsabilidade colegial, delegar poderes de decisão em matérias administrativas e de gestão nos Directores Gerais e chefes de serviço, nas condições e limites estabelecidos – art. 14º RIC. Dentro de determinados limites admite-se a subdelegação – art. 15º RIC. f) Responsabilidade política O Colégio de Comissários não pode ser plenamente equiparado a um governo de gabinete: desde logo, porque os poderes ministeriais são exercidos pelo Conselho e não por ele; além disso, o Presidente da Comissão não tem uma legitimidade política análoga à de um Primeiro-Ministro; a Comissão não é eleita directamente pelos cidadãos europeus, nem é nomeada apenas pelo PE com base em critérios exclusivamente políticos; e o Presidente da Comissão não tem poder para propor a nomeação de comissários da sua confiança pessoal e política, embora dê o seu acordo à lista aprovada pelo Conselho das personalidades propostas pelos Estados a nomear como comissários pelo PE e pelo Conselho. Contudo, os comissários passam a estar em maior medida sujeitos ao Presidente do Comissão, a quem cabe uma função de orientação política, de forma a reforçar a colegialidade, eficácia e unidade de acção do funcionamento deste órgão, já que isso evita a responsabilização individual de cada um deles perante o Conselho e o PE, facilitando a coesão e unidade de acção da Comissão. A Comissão responde, assim, politicamente, de forma colegial e solidária, perante o PE, que a pode demitir mediante a aprovação de uma moção de censura por maioria de 2/3 dos votos expressos desde que igual à maioria dos membros que integram o PE, sendo que esta votação tem de ser pública. A demissão da Comissão implica a demissão das funções que o AR aí
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Direito Comunitário I exerce. Os membros da Comissão mantêm-se em funções até à sua substituição, sendo que esta durará apenas até ao termo do respectivo mandato – art. 234º TFUE. Todavia, a ampla maioria exigida para a demissão da Comissão revela que se pretende impedir que a mesma cesse as suas funções apenas por razões de política normal. Além disso, a existência de um período de 3 dias de reflexão, o facto de os comissários continuarem em funções ate à sua substituição e de esta depender em boa medida do CE e do Conselho – art. 17º TUE – constitui uma redução substancial da eficácia deste mecanismo de controlo. 4.2.4.3.4. Direcções gerais As Direcções Gerais (DG’s) constituem a administração central da Comissão, as quais são essenciais à realização das políticas da UE, preparando e executando as acções da Comissão – art. 21º RIC. Através delas manifesta-se a administração directa da UE, sendo que a administração indirecta é levada a cabo pelas administrações dos Estados-membros, que também são vinculadas pelo direito da UE – fala-se, assim, num desdobramento funcional das administrações nacionais. As DG’s estão organizadas em direcções e unidades, sendo responsáveis por domínios como: agricultura e desenvolvimento rural; ambiente; concorrência; assuntos sociais e igualdade de oportunidades; etc. Nas DG’s trabalha a maioria dos funcionários da Comissão. Um dos maiores desafios desta, essencial à eficácia da sua acção, é conseguir uma plena cooperação e coordenação das diferentes DG’s – art. 23º RIC. 4.2.4.3.5.
Banco central europeu
a) Considerações gerais O Banco Central Europeu (BCE) é mais uma instituição da UE – art. 13º TUE. Os seus poderes são-lhe confiados directamente pelos tratados e não por delegação de outras instituições; assim sendo, também a modificação dos seus poderes depende da modificação dos tratados – factores estes que lhe conferem uma dignidade constitucional. O Estatuto do BCE consta de Protocolo Anexo aos Tratados. O BCE constitui uma pedra fundamental no projecto europeu de integração económica, colocada quando o Tratado de Masstricht veio estabelecer a criação de uma União Económica e Monetária como um dos principais objectivos da UE. Assim sendo, o BCE promove a estabilidade de preços na UE e conduz a política monetária na Zona Euro; no plano internacional, o BCE confere à UE uma única voz no sistema financeiro internacional. Ele é uma instituição com características inovadoras relativamente a outras aparentemente análogas: tem personalidade jurídica, sendo independente no exercício dos seus poderes e na gestão das suas finanças. Logo, as instituições da UE e os Estados-membros estão obrigados a respeitar esta independência – art. 130º e 282º/2/3 TFUE. Não apenas devem abster-se de tentar influenciar o BCE, como devem sair publicamente em sua defesa diante de tentativas de minar a sua autoridade e independência. Com efeito, o mesmo dispõe de legitimidade processual activa para interpor acções judiciais de defesa das suas prerrogativas – art. 263º/3 TFUE. O estatuto constitucional de independência do BCE pretende afirmar a sua função de banco central da UE, integrando o conjunto de instituições europeias e servindo os interesses da UE. Trata-se, no entanto, de um estatuto que não isenta o BCE da aplicação de normas gerais da UE, não o isola das restantes instituições, nem elimina a cooperação com elas. Sem prejuízo deste estatuto, ele deve enviar um relatório anual ao PE, ao Conselho, à Comissão e ao CE acerca da política monetária do ano anterior e do ano em curso, o qual será apresentado ao Conselho e ao PE, podendo aqui dar lugar a um debate geral – art. 284º/3 TFUE; esta solução exprime a subordinação do BCE a um dever democrático de prestação de contas. b) Organização Por nem todos os Estados da UE terem aderido ao Euro, o sistema financeiro europeu apresenta uma estrutura complexa. Dentro do BCE importa realçar a existência do Conselho do BCE e da Comissão executiva. i. Conselho do BCE O Conselho do BCE é constituído pelos: Membros da Comissão executiva do BCE; Governadores dos BCN’s nacionais do Estados-membros, cuja moeda seja o euro – art. 283º/1 TFUE. Este Conselho reúne pelo menos 10 vezes por ano e os seus membros participam no órgão numa posição de total independência relativamente aos respectivos Estados. O teor das deliberações é confidencial. O exercício do direito de voto está regulado em função do número dos governadores, que aumenta à medida que os Estados aderem ao Euro – art. 10º PESEBC. Apesar de o BCE estar obrigado a exercer a sua actividade com plena independência, existe a preocupação em assegurar o mínimo de articulação política monetárias com outras políticas europeias, o que supõe algum relacionamento entre o BCE e as outras instituições. Daí a participação, nas reuniões do Conselho do BCE, sem direito a voto, o Presidente do Conselho e de um membro da Comissão, podendo aquele submeter moções à deliberação pelo Conselho do BCE – art. 284º/1 TFUE. Por sua vez, o
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Direito Comunitário I Presidente do BCE é convidado a participar nas reuniões do Conselho, sempre que se delibere sobre questões relativas aos objectivos e atribuições do SEBC – art. 284º/2 TFUE. ii. Comissão executiva A Comissão executiva do BCE tem por missão executar a política monetária de acordo com as orientações e as decisões estabelecidas pelo Conselho do BCE, que nela pode delegar algumas competências – art. 12º PESEBC. Ela integra um Presidente, o vice-presidente e quatro vogais – art. 283º/2 TFUE; art. 11º PESEBC. Estes são nomeados pelo CE, por maioria qualificada, por recomendação do Conselho, após consulta ao PE e ao Conselho do BCE; acresce que devem ser pessoas de reconhecida competência e com experiencia profissional nos domínios monetário ou bancário, devendo ser nacionais dos Estados-membros. O seu mandato é de oito anos, não renovável (art. 283º TFUE), facto este que constitui uma garantia estrutural da independência do BCE, pois afastou-se o risco de os membros da Comissão Executiva orientarem a sua actuação com o objectivo de ver o seu mandato renovado. Além disso, os membros da Comissão E. exercem o seu mandato a tempo inteiro, estando impedidos de exercer qualquer outra actividade, remunerada ou não. A sua demissão, por não preenchimento dos requisitos ou por falta grave, é determinada pelo TJUE, a pedido do Conselho do BCE ou da Comissão Executiva – art. 11º PESEBC. c) Funções i. Função de coordenação da política monetária - O BCE conduz a política monetária da UE, tendo competência exclusiva para decidir da emissão de notas de Euros, podendo esta ser levada a cabo pelos BCN’s (art. 128º/1 e 282º/3 TFUE); além disto, este está obrigado a promover a estabilidade dos preços (art. 127º TFUE); pode, ainda, proceder à compilação da necessária informação estatística, em articulação com os BCN’s, as autoridades nacionais e as OI’s competentes (art. 5º PESBC). - O BCE apoia a realização das orientações de política geral da UE; para o efeito, o BCE pode aprovar regulamentos, tomar decisões e formular recomendações e pareceres. Do mesmo modo, o mesmo pode aplicar multas e sanções pecuniárias compulsórias. ii. Função consultiva O BCE dispõe de competências consultivas, podendo ser consultado e apresentar pareceres, no âmbito das suas atribuições, às instituições e órgãos do UE e aos Estados, sobre projectos de acto da UE e projectos de regulamentação a nível nacional – art. 127º/4 e 282º/5 TFUE. O procedimento consultivo é fixado pelo Conselho, por duas vias possíveis: Mediante proposta da Comissão, depois de consulta do PE e ao BCE; Recomendação do BCE, após consulta ao PE e à Comissão – art. 129º/4 TFUE. Uma boa parte da função consultiva está orientada para a disciplina orçamental e financeira. No entanto, o BCE também pode ser consultado e apresentar pareceres no domínio da aplicabilidade da legislação europeia à supervisão prudencial das instituições de crédito e à estabilidade do sistema financeiro – art. 25º PESBCE. As funções consultivas são exercidas pelo Conselho do BCE – art. 12º/4 PESEBC. d) Sistema europeu de bancos centrais O SEBC está previsto no art. 282º TFUE. O seu objectivo fundamental consiste na garantia da estabilidade dos preços e no apoio às políticas económicas gerais da UE – art. 127º/1 TFUE; art. 2º PESEBC. Ele reúne numa estrutura de tipo federal o BCE e os BCN’s dos Estados-membros, sendo dirigido pelo Conselho do BCE e a Comissão Executiva do BCE – art. 129º TFUE. O Estatuto do SEBC consta de Protocolo Anexo aos Tratados. As suas principais atribuições são: A definição e execução da política monetária da UE; A realização de operações cambiais; A detenção e gestão de reservas cambiais oficiais dos Estados-membros; A promoção do bom funcionamento dos sistemas de pagamentos – art. 127º/2 TFUE. Ele exprime um princípio centralizador relevante na medida em que os BCN’s são parte integrante do SEBC, estando subordinados às orientações e instruções do BCE, e na medida em que o SEBC coordena as políticas monetárias a nível da UE, distribuindo as tarefas entre o BCE e os BNC’s, de um modo que transforma estes últimos em órgãos da UE. Manifesta-se aqui a distribuição de competências multi-nível frequentemente observada no quadro institucional da UE. Na realidade, os BCN’s raramente actuam na sua veste puramente nacional, devendo permanecer independentes, quer das instituições e órgãos da UE, quer dos respectivos Estados – art. 130º TFUE – ideia que pretende reforçar a independência do BCE
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Direito Comunitário I e do SEBC (art. 28º ESEBC). Os BCN’s assumem um relevo crescente enquanto garantes da aplicação do direito financeiro europeu, operando-se um desdobramento funcional, e, que funções europeias coexistem com funções nacionais de regulação e supervisão. No entanto, as funções nacionais não podem interferir com os objectivos e atribuições do SEBC, assumindo os BCN’s todos os riscos e responsabilidades que elas possam envolver. e) Eurossistema A criação do Euro, em 1999, e a sua entrada em circulação em 2001, constituiu um dos mais significativos desenvolvimentos no sistema financeiro mundial desde a instituição do sistema de Bretton Woods, que conduziu à criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Ela veio facilitar integração económica, diminuindo a necessidade de trocar moedas nacionais e disciplinando os estados normalmente mais indisciplinados. No entanto, nem todos os estados da UE aderiram ao euro, embora por razoes diferentes. Por esse motivo, há que considerar, no seio do sistema financeiro e monetário europeu, a existência do Eurossistema – este compreende o BCE e os BCN’s dos Estados que aderiram ao Euro (art. 282º/1 TFUE; art. 1º PESEBC). O Eurossistema é responsável pela formulação da política monetária, em termos federais, na Zona Euro. O mesmo opera em articulação com o Eurogrupo, constituído pelos Ministros das finanças dos Estados da Zona Euro. 4.2.4.3.6. Tribunal de contas a) Considerações gerais O Tribunal de Contas da UE (TCUE) é uma instituição da UE – art. 13º TUE; instituição, esta, responsável pela fiscalização das contas da UE, independente dos Estados-membros. O TCUE tem características que o colocam a meio a caminho entre uma agência administrativa independente e um tribunal. Ele permite a realização dos princípios da prestação de contas, da transparência e da publicidade crítica democrática. A complementação da administração directa e indirecta (através dos estados) por via da administração independente, veio aumentar significativamente as exigências de controlo político, jurisdicional e financeiro. Ele exerce a sua função no quadro de uma relação de confiança e cooperação com as autoridades de controlo financeiro dos Estados-membros – art. 287º/3 TFUE. b) Atribuições e competências O TCUE tem como função a fiscalização das contas da UE, incluindo, em princípio, as contas de todas as receitas e despesas de organismos por ela criados. Além disso, ele assiste o PE e o Conselho na sua função de execução de orçamento – art. 285º e 287º/2/4 TFUE. O TCUE exerce poderes de controlo relevantes: para além de controlar todos os documentos relevantes, ele pode fazê-lo dentro das instalações das instituições, órgãos e organismos da UE e nos Estados-membros, incluindo nas instalações das pessoas colectivas que tenham beneficiado de pagamentos da UE; ele pode solicitar, ainda, os documentos e as informações de que necessite para o exercício das suas funções – art. 287º/3 TFUE. Todas as irregularidades detectadas devem ser assinaladas – art. 287º/1/2 TFUE. Além disso, o TCUE apresenta Às outras instituições um relatório anual de exercício, que será tornado público juntamente com as respostas que as instituições fiscalizadas lhe dêem. O TCUE pode também apresentar relatórios especiais sobre questões pontuais. No exercício das suas atribuições e competências o TCUE deve actuar com toda a independência relativamente às restantes instituições europeias e aos Estados-membros, não podendo receber quaisquer instruções de qualquer governo ou entidade – art. 286º/3 TFUE. c) Composição, organização e funcionamento O TCUE é composto por um nacional de cada Estado-membro, que exercem as suas funções com total independência e no interesse da União, sendo seleccionados a partir de pessoas que nos Estados tenham exercido funções em instituições de fiscalização externa ou que possuam uma qualificação especial para essa função. Os estados propõem nomes com esse perfil, os quais, depois de consulta ao PE, são inseridos numa lista a aprovar pelo Conselho. Os membros do TCUE comprometem-se a respeitar os deveres inerentes ao cargo (honestidade e descrição), mesmo para além do termo do mandato, o qual tem uma duração de 6 anos e é renovável. O Presidente do Tribunal é eleito pelos seus pares por um período de 3 anos, podendo ser reeleito. Durante o mandato, os membros não podem exercer qualquer acto incompatível com a natureza das suas funções, nem exercer qualquer outra profissão, remunerada ou não. Aos membros do TCUE são aplicáveis as normas do Protocolo sobre Privilégios e Imunidades da UE aplicáveis aos membros do TJUE – art. 285º e 286º TFUE. 4.2.4.3.7. Órgãos consultivos Para além das instituições da UE existem outros órgãos. O PE, o Conselho e a Comissão são assistidos por alguns Comités de natureza consultiva, que reflectem a conhecida “comitologia” que caracteriza uma parte significativa da actividade institucional
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Direito Comunitário I da UE. A mesma pretende que a resolução dos problemas resulte de um processo, não apenas de consulta e interacção burocrática, mas de deliberação democrática com lugar para a reflexão alargada, racionalidade dialógica e decisão participada. a) Comité Económico e Social O CES está previsto no art. 13º/4 TUE e 301º ss TFUE. Ele integra um máximo de 350 membros, sendo a sua composição determinada por decisão unânime do Conselho, que também fixa os subsídios dos respectivos membros. Até à entrada em vigor dessa decisão vigora o art. 7º do Protocolo Relativo às decisões transitórias. Os membros do CES têm um mandato de cinco anos, que admite recondução, sendo eleitos a partir de nomes propostos pelos Estados, mediante consulta à Comissão e decisão unânime do Conselho. O CES designa um Presidente e a Mesa por dois anos e meio. Àquele incumbe convocar as reuniões, a pedido do PE, do Conselho e da Comissão, ou por iniciativa própria; exerce também uma função consultiva obrigatória, sempre que previsto nos tratados, ou facultativa, da iniciativa das instituições da UE. No entanto, em algum caso o parecer é vinculativo, seja ele obrigatório ou facultativo. Estes pareceres são apresentados, juntamente com o relatório das deliberações, ao PE, ao Conselho e à Comissão. O CES deve ser ouvido, nomeadamente, quando estejam em causa: medidas de livre circulação dos trabalhadores (art. 46º TFUE), liberdade de estabelecimento (art. 50º TFUE), transportes internacionais (art.91º TFUE), etc. Ele também tem direito a obter informações sobre questões do domínio das suas competências (por exemplo, ele recebe o relatório anual sobre a aplicação das normas sobre a cidadania europeia). b) Comité das Regiões O CR encontra-se previsto nos art. 13º/4 TUE e 305º TFUE. É composto por um máximo de 350 membros, mediante a indicação dos Estados, proposta da Comissão e decisão unânime do Conselho. Até à entrada em vigor desta decisão aplica-se o art. 8º daquele Protocolo. O mandato dos membros do CR tem a duração de 5 anos, podendo ser reconduzidos. O exercício de funções neste comité é incompatível com o mandato de deputado ao PE. O CR designa o respectivo Presidente e a Mesa por dois anos e meio. À semelhança do que sucede com o CES, as reuniões têm lugar mediante convocação do Presidente, por solicitação do PE, da Comissão ou do Conselho, ou por iniciativa própria. O exercício da função consultiva pode ser obrigatório, nos casos previstos nos tratados, ou facultativa, quanto tal seja considerado oportuno por uma instituição. O mesmo é ouvido, designadamente, em matéria de política de emprego (art. 148º TFUE), educação, juventude e desporto (art. 165º/4 TFUE), cultura (art. 167º TFUE), principalmente, no domínio da cooperação transfronteiriça, etc. O CR pode emitir pareceres por sua própria iniciativa. c) O Comité Político e de Segurança O CPS está previsto no art. 38º TUE. Tem como função acompanhar a situação internacional em matérias relacionadas com a política externa e de segurança comum; tem uma função consultiva, junto do Conselho, auxiliando na formulação de políticas nestes domínios; cabe-lhe ainda acompanhar a execução de políticas, bem como participar na coordenação de missões militares no exterior – art. 42º e 43º TUE. Porém o CPS não tem poderes exclusivamente consultivos; sob responsabilidade do Conselho, o CPS desempenha ainda um importante papel de controlo político e na direcção estratégica das operações de gestão e de crise. Nestes casos, o CPS opera em estreita articulação com o Comité Militar da UE. Os seus pareceres podem ser solicitados pelo Conselho, pelo AR ou emitidos por própria iniciativa. d) Comité Económico e Financeiro O CEF assiste a Comissão e o Conselho no domínio da coordenação das políticas dos Estados-membros, tendo em vista o funcionamento do mercado interno. Ele formula pareceres e acompanha a situação económica e financeira dos Estados. Ele reporta regularmente as suas actividades ao Conselho e à Comissão. O CEF ajuda na preparação dos trabalhos do Conselho quando estejam em causa temas como movimentos de capitais (art. 66º TFUE), financiamento do terrorismo (art. 75º TFUE), política económica (art. 121º TFUE), etc. O CEF examina a circulação de capitais e a liberdade de pagamentos, reportando ao Conselho e à Comissão – art. 134º/2/2 TFUE. e) Comité de Protecção Social O CPS encontra-se previsto no art. 160º TFUE. O mesmo é criado pelo Conselho, após consulta ao PE, tendo em vista promover a cooperação em matéria de protecção social entre os Estados-membros o mesmo pode desenvolver iniciativas e estabelecer contactos com os parceiros sociais, elaborando relatórios e pareceres. f)
Comité do Emprego
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Direito Comunitário I Está prevista a constituição do CE, a criar por maioria simples do Conselho, ouvido o PE – art. 150º TFUE. Cada Estado nomeará dois membros para o CE. Ele tem como objectivo promover a coordenação das políticas de emprego e de mercado de Trabalho nos Estados-membros. O mesmo auxilia a preparação das decisões em matéria de políticas de emprego, juntamente com o CES e o CR – art. 148º e 149º TFUE. 4.2.4.3.8. Agencias administrativas independentes a) Considerações gerais Um importante desenvolvimento, no exercício da função administrativa no seio Da UE, prende-se com a criação de agências administrativas independentes, surgidas à margem dos Tratados. O seu fundamento jurídico tem sido procurado na cláusula de poderes implícitos (art. 352º TFUE) e na cláusula de harmonização legislativa, regulamentar e administrativa (art. 115º TFUE). Estas vieram introduzir um princípio de administração indirecta numa administração que, tradicionalmente, era exercida de forma directa pela Comissão, e indirecta, pelos Estados. A administração europeia é agora mais fragmentada, policêntrica e institucionalmente heterogénea. b) Tipologia das agências europeias Existem hoje muitas entidades administrativas independentes na UE: i. Entidades administrativas ligadas ao funcionamento do mercado interno (Agência Ferroviária Europeia (ERA), a Agência Europeia de Medicamentos (EMEA)); ii. Entidades administrativas ligadas à cooperação policial e judiciária (Academia de Polícia Europeia (CEPOL), o Serviço Europeu de Polícia (EUROPOL)); iii. Entidades administrativas ligadas à política externa e segurança comum (Agência Europeia de Defesa (EDA), Centro de Satélites da União Europeia (EUSC)); iv. As chamadas agências executivas – instituídas pela Comissão e funcionando sob a sua égide, no quadro de gestão de programas comunitários; exemplos: Agência de Execução de Rede Transeuropeia de Transportes (TEN-TEA), Agência de Execução para a Saúde e os Consumidores (EAHC). c) Razão de ser A sua existência tem sido justificada a partir da necessidade de garantir, à actividade pública, níveis mais elevados de competência técnica, continuidade, credibilidade e visibilidade. Graças a elas, a Comissão pode concentrar-se numa função de “policy-making”. Estas entidades administrativas independentes contam com a participação de todos os Estados-membros da UE e baseiam-se nos mesmos princípios de cooperação, prestação de contas, transparência e representatividade que lhe servem de base. 4.2.4.3.9. O papel dos parlamentos nacionais Não tendo aqui um papel exclusivo, os parlamentos nacionais sempre tiveram uma função decisiva no que toca à sua participação no processo de ratificação dos sucessivos tratados, bem como, na execução do direito europeu. a) Democracia representativa europeia A progressiva transferência de competência dos parlamentos nacionais para os órgãos comunitários de natureza executiva, sem suficiente compensação no reforço dos poderes do Parlamento Europeu, tem levado uma boa parte da doutrina e da opinião pública europeia a falar de défice democrático da UE. Daí que seja particularmente importante assegurar a possibilidade de participação, informação e de crítica dos parlamentos nacionais no processo de integração europeia, contrariando as tendências indesejáveis de erosão do conteúdo essencial da primazia democrático-parlamentar. O funcionamento da UE baseia-se no princípio da democracia parlamentar que se concretiza no reforço dos poderes do PE e dos Parlamentos nacionais. Ao mesmo tempo, estrutura-se a cooperação interparlamentar, dando lugar a uma verdadeira rede democrático-representativa europeia, caracterizada pela complementaridade entre as instituições europeias e as instituições nacionais. b) Os parlamentos nacionais como órgãos da UE O art. 12º TUE refere o papel dos Parlamentos Nacionais: estes órgãos têm competências que lhe são definidas pelo TUE, e não pelas constituições nacionais; devem contribuir activamente para o bom funcionamento da UE, de acordo com o Protocolo Relativo ao Papel dos Parlamentos Nacionais na União; devem garantir o respeito pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, de acordo com o respectivo Protocolo; também lhes compete participar na avaliação das políticas adoptadas no âmbito do espaço de liberdade, segurança e justiça, no controlo político da Europol (art. 77º TFUE) e na avaliação do Eurojust (art. 85º e 88º TFUE); também participam no processo de revisão dos tratados (art. 48º TUE) e são informados dos pedidos de adesão (art. 49º TUE).
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Direito Comunitário I Nos termos do mencionado Protocolo, a Comissão deve enviar aos parlamentos nacionais os seus documentos de consulta, bem como todos os documentos relativos à programação legislativa ou de estratégia política; os projectos de actos legislativos enviados ao PE e ao Conselho também são enviados aos parlamentos nacionais; as ordens do dia e as actas das reuniões do Conselho devem ser levadas ao conhecimento dos parlamentos nacionais, os quais recebem, igualmente, o relatório do Tribunal de Contas. c) O papel da Assembleia da República Nos termos da CRP, a AR acompanha e aprecia a participação de Portugal no processo de construção da UE, tendo sido criada para o efeito a Comissão de Assuntos Europeus, especializada e permanente, e estando previsto um processo regular de troca de informações e consulta entre ela e o Governo, estruturado de forma a permitir o acompanhamento permanente da participação de Portugal no processo de construção da UE. A teoria da essencialidade e o respeito pela reserva de competências conduzem a que o Governo tenha que apresentar, em tempo útil, à apreciação do parlamento os assuntos e as posições a debater nas instituições europeias, quando esteja em causa matéria de competência absoluta ou relativamente reservada – art. 164º e 165º CRP. É também da competência exclusiva da AR, absolutamente reservada, legislar sobre o regime de designação dos membros de órgãos da UE, com excepção da Comissão. Capítulo IV: Estruturas normativas 1.
Direito da UE
O direito da UE, aplicável num conjunto de 27 Estados, é uma imponente construção. Embora a ordem jurídica comunitária repouse na união das vontades dos Estados-membros, desde cedo adquiriu autonomia normativa. O poder integrador do direito é expressamente reconhecido no processo de unificação europeia. O princípio da cooperação leal ao postular a obrigação, por parte dos Estados-membros, de adopção de todas as medidas adequadas ao cumprimento das obrigações comunitárias, domina as relações entre o direito comunitário e o direito nacional, assegurando a integração jurídica e social da UE e dos povos que a integram. O direito da UE é uma realidade complexa. Ele compreende direito escrito e não escrito, apresentando-se hierarquicamente estruturado como direito primário, secundário e terciário. 2.
Características do sistema jurídico europeu
O direito comunitário é: a) Uma ordem jurídica atípica, no sentido de que constitui uma ordem jurídica intermédia entre o direito internacional e o direito federal; b) Uma ordem jurídica autónoma, assim definida em virtude da autonomia das fontes de direito, das instâncias de aplicação do direito e das normas jurídicas; c) Uma ordem jurídica uniforme, válido em igual medida para todos os Estados-membros; d) Uma ordem jurídica integrada na dos Estados-membros. Isto significa que a UE deu lugar a um novo ordenamento jurídico que condiciona tanto a soberania estadual como a autonomia individual, transformando os órgãos nacionais em aplicadores e os particulares em sujeitos do direito europeu -> unidade do ordenamento comunitário. 3.
Estruturas normativas do Direito da EU
À semelhança do que sucede nos ordenamentos jurídicos nacionais, o ordenamento jurídico comunitário apresenta-se hierarquicamente estruturado. 3.1. Direito Primário O direito primário, ou originário, assume uma posição de supremacia na hierarquia das normas do direito da UE; ele integra o chamado direito constitucional da UE. Ele compreende um conjunto diversificado de instrumentos e princípio dotados de idêntica natureza e colocados no mesmo plano na hierarquia normativa, cumprindo uma função paramétrica relativamente a todo o direito secundário e terciário criado a partir desses instrumentos e princípios. Ele integra os tratados instituidores das comunidades, os protocolos adicionais, os actos de complementação, os actos de adesão e os princípios gerais de direito comunitário, formando assim um todo unitário.
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Direito Comunitário I 3.1.1. Tratados instituidores e de revisão A UE teve por base os tratados CECA, CEE e CEEA. Desde então, os mesmos foram sucessivamente alterados, tendo alterado o tratado CECA caducado por transcurso do prazo de vigência de 50 anos. Seguiram-se cumulativamente, o Tratado de Fusão, o Acto Único Europeu, o Tratado de Masstricht, o Tratado de Amesterdão, o Tratado de Nice e o Tratado de Lisboa. Actualmente vigoram as versões consolidadas do TUE e do TFUE, que, juntamente com a Carta dos Direitos Fundamentais, integram os Tratados que regem a UE. Os mesmos são a base do direito originário da UE. Nestes instrumentos encontram-se as normas sobre os valores, os princípios, os objectivos e as regras que presidem ao processo de integração europeia, nas quais sem encontram, também, regulados os órgãos, os procedimentos e as formas através dos quais se desenvolve a actividade da UE. Os tratados vinculam todos os Estados-membros; porém, o TJUE tem entendido que estes instrumentos normativos pretendem, não apenas regular as relações entre os Estados-membros, mas igualmente afectar o ordenamento jurídico de cada um deles. A jurisprudência comunitária veio, assim, considerar um número muito relevante de normas dos tratados (que tenham um conteúdo claro, preciso, incondicional e não discricionário) como self-executing e directamente aplicáveis e justificiáveis, mesmo nas relações entre particulares, tendo avançado na especificação de critérios aptos para auxiliar os órgãos administrativos e os tribunais nacionais na operacionalização dos tratados. A aplicabilidade directa ou efeito directo de algumas normas dos tratados é uma condição funcionalmente adequada à realização dos objectivos por eles definidos, de integração, efectividade e aplicação uniforme, perante a pluralidade dos Estados soberanos. 3.1.2. Protocolos adicionais, declarações e actos de complementação Juntamente com os tratados de direito primário têm sido adoptados múltiplos Protocolos, Declarações e outros anexos. Os mesmos dizem respeito a matérias tão diversas como o papel dos Parlamentos Nacionais, a aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, entre muitos outros. Igualmente digno de nota é o amplo conjunto de Declarações relativas a disposições dos Tratados ou a Protocolos anexadas aos Tratados. Estas não têm necessariamente força vinculativa, embora tenham relevância para a interpretação e aplicação dos tratados e para o correcto entendimento de alguns protocolos. No entanto, nem por isso deixam de ser grandezas jurídicas; aliás, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados determina, no art. 31º/2, que para efeitos de interpretação de um tratado, o contexto compreende, além do texto, preambulo e anexos incluídos, qualquer acordo relativo ao tratado. 3.1.3. Condições de admissão e actos de adesão Também integram o direito primário da UE as condições de adesão de Estados terceiros e os actos de adesão de novos Estadosmembros. As normas dos tratados de adesão têm o mesmo valor jurídico que os demais instrumentos de direito primário, mas elas revestem-se do maior relevo quanto atribuam aos Estados direitos e deveres distintos dos consagrados nos Tratados, que derroguem as normas dos tratados e que tenham natureza transitória. 3.1.4. Princípios gerais do direito da UE Integram ainda o direito comunitário originário os princípios gerais do direito europeu, os quais assume um papel do maior relevo na interpretação das normas existentes e no preenchimento de lacunas de um ordenamento jurídico, ainda hoje, bastante incompleto. Estes princípios têm uma grande importância prática visto que regem de forma juridicamente vinculativa a actividade das instituições e órgãos da UE e dos Estados, incluindo os respectivos tribunais. Os princípios designam as proposições jurídicas que exprimem decisões normativas estruturantes, pelas quais se manifestam os valores e as aspirações essenciais de uma ordem jurídica. De forma tendencial, estes princípios podem ser agrupados com base na maior generalidades e abstracção das suas formulações. Podemos, assim, encontrar princípios gerais do direito, princípios gerais do direito internacional, princípios gerais do direito constitucional e princípios específicos do direito da UE. De alguns desses princípios pode dizer-se que desempenham uma função conformadora e estruturante do sistema jurídico da UE. Além disso, a UE autocompreende-se hoje como uma comunidade de valores (dignidade humana, liberdade, democracia, etc.). Esta comunidade de valores é o fundamento de uma comunidade de direito baseada no império do direito. O direito comunitário é sustentado por um conjunto muito diversificado de princípios fundamentais, que constituem o seu direito comum: a) Princípios gerais do direito internacional – igualdade soberana dos estados, reciprocidade, territorialidade, respeito pelos DF’s, etc. b) Princípios axiomáticos de um estado de direito democrático – igualdade, democracia, legalidade, etc. c) Princípios fundamentais especialmente ligados ao ordenamento jurídico da UE – princípios da unidade e autonomia do direito da UE, da primazia e do efeito directo, da lealdade comunitária ou cooperação leal, etc.
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Direito Comunitário I Uma abordagem aos princípios específicos de direito da UE pode incluir ainda uma referência ao direito consuetudinário especificamente europeu, caracterizado como pratica constante e uniforme relativamente à qual se verifica uma convicção da sua relevância normativa, enquanto obrigação, proibição ou permissão. Finalmente, concluímos que os princípios gerais de DI, o direito consuetudinário e os tratados internacionais de natureza fundamental, mesmo quando a UE não seja parte, integram o direito da UE na qualidade de direito primário. 3.2. Direito secundário e terciário O direito secundário da UE é constituído pelas normas criadas pelos órgãos instituídos pelo direito comunitário primário, de acordo com os respectivos parâmetros materiais e formais (cuja validade dependerá da conformidade com estes). As principais fontes de direito secundário da UE são os regulamentos, as directivas, as decisões, as recomendações e os pareceres (art. 288º TUE). Os três primeiros têm uma força jurídica característica, podendo ser actos legislativos ou actos não legislativos. Ainda é possível encontrar actos delegados e actos de execução nos regulamentos, nas directivas e nas decisões -> os mesmos integram uma parte do direito secundário que alguns designam por direito terciário. Num outro domínio encontramos actos não juridicamente vinculativos, que são as recomendações e os pareceres. 3.2.1. Os procedimentos de produção normativa Presentemente, prevê-se a existência de um processo legislativo ordinário (art. 294º TFUE) e de processos legislativos especiais. 3.2.1.1. Considerações gerais Actos legislativos: são actos jurídicos aprovados através de processos legislativos – art. 289º/3 TFUE). Os processos legislativos podem ser ordinários ou especiais, através dos quais são aprovadas directivas, regulamentos e decisões – art. 289º/1/2 TFUE. Ou seja, do ponto de vista formal, são actos legislativos os regulamentos, as directivas e as decisões. Do ponto de vista material, deverão ser actos legislativos aqueles que contiverem padrões de conduta e critérios de decisão gerais e abstractos. Aos tratados cabe definir os casos em que se usa, alternativamente, o processo legislativo ordinário ou o especial. Geralmente, a análise dos processos legislativos da UE tinha em conta alguns dados incontornáveis: por um lado, os mesmos não correspondem ao princípio da separação de poderes na sua configuração mais clássica; por outro lado, e segundo Barbosa de Melo, qualquer das principais instituições políticas da UE sobre, no actual estádio de evolução, de deficiências consideráveis para um exercício da função legislativa concordante com o postulado da legitimidade política assumido na ideia de Estado de Direito Democrático; e, por último, segundo M. Gorjão-Henriques, o processo de decisão, sendo bastante diversificado, chega mesmo a ser opaco, dada a complexidade intrínseca de alguns dos procedimentos. 3.2.1.2. Processo legislativo ordinário O processo legislativo ordinário consiste na adopção de um regulamento, uma directiva ou uma decisão pelo PE e pelo Conselho, normalmente sob iniciativa da Comissão – art. 294º TFUE. Numa descrição muito sintética deste processo, pode dizer-se que a partir duma iniciativa da Comissão se pode chegar, alternativamente, a um acto com um conteúdo correspondente: a) À posição do PE; b) À posição do Conselho; c) Às emendas propostas pelo PE; d) Ao projecto do Comité de Conciliação. 3.2.1.2.1. Iniciativa da Comissão Este processo começa, em regra, com uma proposta da Comissão ao PE e ao Conselho (art. 294º/2 TFUE) -> princípio da exclusividade da iniciativa legislativa formal da Comissão: este princípio, apesar de tudo, é mitigado pela possibilidade de o Conselho solicitar propostas à Comissão, pela iniciativa dos cidadãos europeus de convidarem a Comissão a apresentar propostas e pelo impulso político do CE, que o torna materialmente responsável por muitas das principais iniciativas no seio da UE. Em todo o caso, este princípio continua a ser um elemento fundamental de salvaguarda e de promoção do interesse geral europeu. Nalguns casos a iniciativa de sujeição de um acto legislativo pode pertencer aos Estados-membros ou resultar de uma recomendação do BCE ou de um pedido do TJUE; nesses casos, os poderes de intervenção da Comissão no processo são algo diminuídos embora não eliminados – art. 294º/15 TFUE. 3.2.1.2.2.
Primeira leitura
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Direito Comunitário I Uma vez apresentada a proposta da Comissão ao PE e ao Conselho, o processo legislativo adquire uma estrutura preponderantemente binária, centrada na interacção entre o PE e o Conselho. A primeira leitura tem como objectivo obter uma posição do PE e o acordo do Conselho com essa posição. E das duas uma: Se existir acordo, o acto é aprovado com a formulação correspondente à posição do PE; Não existindo acordo, o PE deve conhecer as razões de desacordo do Conselho e conhecer a posição da Comissão obre a ausência de acordo e os seus fundamentos – art. 294º/3 a 6 TFUE. 3.2.1.2.3. Segunda leitura A segunda leitura pretende dar a oportunidade ao PE de acolher as razões do desacordo do Conselho em primeira leitura, num prazo de três meses prorrogável por um mês, podendo mudar a sua posição: Se mudar a sua posição, o acto será aprovado, mas agora com a formulação correspondente à posição do Conselho; Se o PE rejeitar a posição do Conselho, por maioria dos deputados, o acto não será aprovado; Numa posição menos extremada, o PE, em vez de rejeitar, pode decidir propor emendas à posição do Conselho, reenviando o texto a este e à Comissão, a qual deverá dar o seu parecer sobre as emendas; Se o Conselho aceitar as emendas, há acordo e o acto é aprovado com a formulação correspondente às emendas propostas pelo PE; Porém, se a Comissão tiver dado um parecer negativo às emendas, o Conselho deve decidir por unanimidade; Se o Conselho rejeitar as emendas, não existe acordo, devendo por isso ser tentada uma conciliação – art.298º/7/8/9 TFUE. 3.2.1.2.4. Conciliação A tentativa de conciliação entre as posições do PE e do Conselho irá ser levada a cabo por um Comité de Conciliação (integra membros do Conselho, e igual número de membros do PE, contando com a participação da Comissão) convocado pelo Presidente do CE. O objectivo é conseguir um acordo aceitável à maioria qualificada do Conselho e à maioria qualificada do PE, num prazo de 6 semanas, prorrogável por 2 semanas. Não existindo acordo, o acto não é aprovado – art. 294º/10 a 12/14 TFUE. 3.2.1.2.5. Terceira leitura A terceira leitura tem lugar quando o Comité de Conciliação adopta um projecto comum. Neste caso, o PE, por maioria, e o Conselho, por maioria qualificada, disporão de um prazo de 6 semanas, para adoptar um acto com uma formulação correspondente ao projecto de conciliação. Se não o fizerem, o acto não será aprovado – art. 294º/13/14 TFUE. 3.2.1.2.6. Assinatura, publicação e entrada em vigor Os actos legislativos adoptados por processo ordinário são assinados pelos presidentes do PE e do Conselho. Os actos legislativos (L I) e não legislativos (L II) são publicados no Jornal Oficial da União Europeia e entram em vigor na data por eles fixada ou, na falta desta, no vigésimo dia após a sua publicação. 3.2.1.2.7. Desvios ao padrão básico Ocasionalmente observam-se alguns desvios do padrão básico descrito: Quando a iniciativa não parte da Comissão, mas sim dos Estados-membros, por recomendação do BCE, do TJUE; Quando o processo legislativo ordinário conhece exigências complementares, como são os casos de deveres de consulta ao Comité Económico e Social, etc.; Quando os tratados impõem alguns parâmetros materiais que as normas a adoptar não podem deixar de observar, como sucede, por exemplo, com o sistema europeu comum de asilo (art. 78º/2 TFUE), etc.; Quando existem cláusulas de “travagem de emergência”, que permitem a suspensão do processo legislativo ordinário e a submissão do projecto de acto legislativo ao CE (art. 48º, 82º/3 e 83º/3 TFUE); Quando são estabelecidos percursos alternativos para o processo legislativo ordinário. 3.2.1.3. Processos legislativos especiais Nos seus traços essenciais, os processos legislativos especiais têm o seu centro de gravidade num único órgão, que pode ser o PE ou o Conselho. Ou seja, eles não têm uma estrutura binária como a do processo legislativo ordinário. A estrutura básica do processo legislativo especial assenta na iniciativa da Comissão, na intervenção consultiva do PE e na decisão do Conselho; assim sucede na maior parte dos casos – art. 21º/3 e 22º TFUE. Aprovação: pode ser feita pelo PE com a participação do Conselho, ou pelo Conselho com a participação do PE – art. 289º TFUE.
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Direito Comunitário I Decisão: quando nada se diga, o Conselho delibera por maioria qualificada; num número muito significativo de casos, a deliberação do Conselho requer unanimidade, de forma a proteger-se interesses essenciais dos estados – art. 21º/3 TFUE. Dentro destes casos, pode fazer-se depender a deliberação de uma prévia aprovação do PE ou da simples consulta do PE; pontualmente, pode exigir-se, também, a consulta de órgãos como o Comité Económico e Social, etc. Há ainda a possibilidade de o Conselho, por unanimidade, aplicar o processo legislativo ordinário a algumas matérias sujeitas a processo legislativo especial – art. 154º/2 TFUE. No entanto, há também situações em que a decisão compete unicamente ao PE – art. 226º e 228º/4 TFUE. Assinatura, publicação e entrada em vigor: os adoptados por este processo são assinados pelo Presidente da instituição que os adoptou (art.297º/1 TFUE) e a sua publicação e entrada em vigor rege-se pelas normas aplicáveis aos actos legislativos.
Capítulo V: Cidadania Europeia e Direitos e Liberdades Fundamentais 1.
Introdução
Graças à jurisprudência do TJUE e aos sucessivos tratados, culminando no TL e nas resultantes versões do TUE, do TFUE e da CDFUE, a problemática da cidadania europeia, dos DF’s e das liberdades do mercado conheceram uma convergência material, ainda que não se tenham desenvolvido ao mesmo tempo. Assim é, na medida em que aqueles tratados estruturam, conjuntamente, todo o direito da UE, nas suas dimensões económicas e não económicas. Os mesmos remetem, preambular e textualmente, para princípios fundamentais, que são as cordas cuja vibração confere harmonia e coerência a todo o direito comunitário. Esta orientação verá reforçada a sua relevância com a adesão da UE à CEDH, a qual deverá ocorrer sem por em causa a natureza da UE e o seu esquema de repartição de competências (art. 6º/2 TUE). 2.
Cidadania europeia
2.1. Introdução A ideia de cidadania remonta à antiguidade, salientando-se o seu relevo na polis grega: aí o cidadão tinha um estatuto socialmente elevado, distinguindo-se dos estrangeiros, dos escravos e das mulheres, sendo um participante activo na vida da Cidade-Estado. A cidadania conferia simultaneamente uma distinção social, um conjunto de direitos e deveres e um sentimento de identidade e pertença. Nos séculos seguintes, a cidadania conheceu entendimentos mais ou menos alargados, desde a concessão do estatuto de “cives” a todos os residentes do Império Romano, até à sua vinculação aos estados de tipo vestefaliano. Na revolução Francesa, o estatuto de cidadão opõe-se ao de súbdito, sendo indissociável de direitos de liberdade, igualdade e participação democrática. A II Guerra Mundial e o Holocausto vieram mostrar a necessidade de transcender os nacionalismos e privilegiar os elementos unificadores dos Estados e respectivos cidadãos. A cidadania europeia é, assim, um conceito tardio, no processo de integração europeia: encontra-se ausente dos Tratados de Paris e Roma, sendo introduzido, apenas, pelo Tratado de Maastricht, de 1992. Ficou então claro que todos os nacionais dos Estados-membros são cidadãos da UE. Por seu lado, o Tratado de Amesterdão veio sublinhar a natureza complementar da cidadania europeia relativamente à cidadania nacional (art. 18º ss TFUE). A natureza complementar e de sobreposição da cidadania europeia, significa que ela permanece dependente das leis da nacionalidade dos Estados-membros, e que não que a pretende substituir. Não existe, pois, uma “lei da nacionalidade” de âmbito europeu, definindo autonomamente os critérios de aquisição, originária ou derivada, da perda e da reaquisição da nacionalidade. Geralmente, a cidadania é indissociável da nacionalidade. Neste contexto, pode dizer-se que a cidadania europeia representa um importante activo para os que a possuem. A mesma abrange qualquer nacional de um estado-membro, sendo complementar à nacionalidade. Dela resulta a capacidade de gozo e exercício dos direitos, e a sujeição aos deveres, previstos nos tratados. O mesmo define o estatuto dos nacionais dos estados-membros. O TJUE vaticinou que a cidadania europeia está destinada a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados-membros (ameaça à soberania nacional ?). 2.2. Direitos de cidadania europeia A cidadania europeia, e respectivos direitos, encontra-se consagrada nos art. 18º a 25º do TFUE (Parte II) e art. 39º e 46º do CDFUE (parte autónoma).
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Direito Comunitário I Alguns direitos são exclusivos dos cidadãos europeus (direito de sufrágio), outros são direitos de todos os particulares residentes ou sediados na UE (direito de acesso aos documentos) e outros ainda são direitos de todas as pessoas que por qualquer motivo entre em contacto com os serviços da UE (direito a uma boa administração). Nos tratados, a cidadania europeia está fortemente associada à proibição da discriminação em função da nacionalidade e de qualquer outro critério. Nos termos do art. 20º/2 TFUE, os direitos de cidadania europeia são exercidos nas condições e nos limites definidos pelos tratados e pelas medidas adoptadas para a sua aplicação. 2.2.1. Proibição da discriminação No âmbito da aplicação dos tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais (excepções), é proibida toda a discriminação em função da nacionalidade – art. 18º/1 TFUE. A discriminação consiste em tratar de forma diferente situações comparáveis, ou de forma igual situações diferentes. Este princípio abrange não apenas as discriminações ostensivas, mas também as mais subtis, mesmo que baseadas noutros critérios, que conduzam ao mesmo resultado. No entanto, ele não exclui a possibilidade de diferenciação proporcional entre nacionais e cidadãos de outros estados-membros. O art. 18º/2 TFUE, determinar que o PE e o Conselho, através de processo legislativo ordinário, podem aprovar normas destinadas a proibir essa discriminação. Mas a proibição da discriminação vai hoje muito mais além do que a proibição de nacionalidade. Segundo o art. 19º TFUE, o objectivo deste princípio consiste em combater toda a discriminação em razão de qualquer factor, prevendo-se a possibilidade de serem aprovadas medidas nesse domínio, por decisão unânime do Conselho deliberando de acordo com o processo legislativo especial. No entanto, na prática as mesmas nem sempre são fáceis de aplicar e interpretar e, talvez por causa dessa dificuldade, se exija a unanimidade nesta matéria. 2.2.2. Livre circulação e residência Um direito fundamental da cidadania europeia consiste na livre circulação e permanência no território dos estados-membros (art. 20º/2/a), 21º TFUE e 45º CDFUE). O mesmo compreende a liberdade de movimentos e residência em toda a UE, incluindo o direito a candidatar-se a um emprego, abrangendo a função pública, com excepção de cargos sensíveis. A legislação nacional que ponha em desvantagem determinados nacionais comunitários pelo simples facto de terem exercido a sua liberdade de circular e de permanecer noutro estado-membro constitui uma restrição às liberdades reconhecidas pelo art. 20º/2/a) TFUE a qualquer cidadão da UE. Ainda assim, o art. 21º TFUE consagra uma espécie de clausula de flexibilidade, ou de poderes implícitos: ele admite que possam ser adoptadas pelo PE e pelo Conselho, medidas de promoção deste direito mesmo sem fundamento expresso nos tratados, através de processo legislativo ordinário ou mesmo através de processo legislativo especial, por unanimidade, quando estejam em causa medidas de segurança social e protecção social. 2.2.2.1. Livre circulação A directiva sobre a liberdade de circulação disciplina a entrada e saída do território dos países da UE, acolhendo o princípio da liberdade de circulação e residência para cidadãos europeus e membros das suas famílias. A mesma procede à clarificação e simplificação das formalidades de livre circulação e residência. Neste sentido, ela consagra uma solução de liberdade de circulação e residência até 3 meses sem quaisquer formalidades, bastando-se a titularidade de um documento de identidade ou passaporte válido. A liberdade de circulação exerce-se no respeito pelo sistema de Schengen (inserido através do Tratado de Amesterdão), a qual tem implicações nas mais diversas áreas: por exemplo, no que toca ao reconhecimento das licenças de condução de veículos automóveis – estabeleceu-se princípio do reconhecimento mútuo das licenças de condução. 2.2.2.2. Residência temporária Segundo a mesma directiva, a residência por mais de 3 meses está sujeita a formalidades, entre outras coisas, para impedir a sobrecarga do sistema de segurança social. Estabelece-se, assim, a necessidade de registo para a residência por mais de 3 meses, bem como, a titularidade de um cartão de residência para os familiares não nacionais dos estados-membros para residência por mais de 3 meses. Quem estiver inscrito num estabelecimento de ensino público ou privado e pretender permanecer de três meses a 5 anos, deve dispor de uma cobertura extensa de seguro de doença nos país de acolhimento e de recursos financeiros suficientes a fim de evitar tornar-se uma sobrecarga para o regime de segurança social do referido país. A directiva pretende igualmente aumentar a protecção dos familiares não nacionais em caso de morte do cidadão europeu, divórcio, anulação do casamento ou cessação de parceria. A directiva consagra o princípio da solidariedade financeira da segurança social em situações de necessidade, tendo em conta o grau de integração do cidadão europeu e dos seus familiares. Igualmente considerada é a protecção dos trabalhadores assalariados e não assalariados e de desempregados à procura de emprego. 2.2.2.3. Residência permanente
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Direito Comunitário I Segundo a directiva, os cidadãos europeus que residam por mais de 5 anos num estado-membro adquirem um direito legal de residência permanente, incondicionado. 2.2.2.4. Os cidadãos de estados terceiros e a liberdade de circulação 2.2.2.4.1. Entrada e permanência no território da UE As normas sobre a liberdade de circulação no seio da UE de cidadãos de estados terceiros dependem largamente das políticas desenvolvidas em matérias de controlo nas fronteiras, asilo e emigração (art. 77º a 80º TFUE). A entrada, permanência e circulação no território da UE está sujeita ao sistema Schengen: este contém regras comuns de permanência temporária (Visto Schengen), regras comuns de controlo de fronteiras externas (Frontex) e regula a liberdade de circulação para titulares de autorização de permanência temporária. 2.2.2.4.2. Cidadãos de países terceiros familiares de cidadãos da UE De grande interesse prático é a protecção dos cidadãos de países terceiros que sejam familiares de cidadãos da UE. O direito de residência constante do art. 7º/1 daquela directiva abrange os membros da família de um cidadão da União de nacionais de um estado terceiro quando acompanhem ou se reúnam ao cidadão da UE no estado-membro de acolhimento. Aplicam-se-lhes as regras dos cidadãos europeus e seus familiares, nomeadamente no que diz respeito ao exercício de uma actividade ou à inscrição num estabelecimento de ensino. A directiva protege os familiares, independentemente da sua nacionalidade, no caso de partida do familiar cidadão da UE do estado-membro de acolhimento, morte ou divórcio. 2.2.3. Direito de sufrágio Inerentes à cidadania europeia são os direitos de sufrágio activo e passivo nas eleições municipais e para o PE. Estes direitos concretizam o princípio democrático que conforma positivamente a UE e os estados-membros (art. 20º/2/b) e 22º TFUE; art. 39º e 40º CDFUE). 2.2.3.1. Eleições para o PE Do estatuto de cidadão europeu decorre o direito de votar e ser candidato nas eleições para o PE no estado-membro de residência que não seja o da sua nacionalidade, nas mesmas condições do nacional desse estado – art. 39º CDFUE -> princípio democrático e princípio da não discriminação dos cidadãos europeus. Relativamente às eleições para o PE, prevê-se que este estabeleça um projecto estabelecendo um processo uniforme de princípios comuns para a eleição por sufrágio universal directo (art. 223º TFUE). Actualmente, está em vigor a directiva 39/109/CE. Naturalmente que o exercício do direito de sufrágio para o PE implica sempre a proibição de candidatura múltipla e de voto múltiplo, de acordo com o princípio da democracia electiva (art. 4º da Directiva). Neste sentido, os art. 14º-A e 14º-B da Lei das Eleições para o PE prevêem sanções penais e até de inelegibilidade para quem se candidatar simultaneamente às eleições para o PE em Portugal e noutro estado-membro e para quem votar simultaneamente nas eleições para o PE em Portugal e noutro estado-membro. Este direito encontra-se previsto, ainda que de forma incorrecta, no art. 15º CRP. É que o direito de cidadania europeia é consagrado e regulado pelo direito primário e secundário da UE, por isso, o seu reconhecimento não é uma faculdade do legislador nacional, mas sim uma obrigação. Além disso, este direito, pelas mesmas razões, não pode ser colocado sob reserva de reciprocidade. Assim, se um estado não conceder este direito aos cidadãos portugueses, pode ser instaurada uma acção de incumprimento nos termos do art. 258º TFUE. 2.2.3.2. Eleições municipais Do estatuto de cidadão europeu decorre o direito de votar e ser candidato nas eleições municipais do estado-membro de residência, nas mesmas condições do nacional desse estado (art. 40º CDFUE). A directiva 94/80/CE pretende concretizar o princípio do tratamento nacional, prosseguindo com a regulamentação do exercício do direito de sufrágio activo e passivo equiparando as condições de elegibilidade dos residentes aos nacionais e, para alguns efeitos, o território da UE ao território do estado-membro de residência. Autoriza-se o legislador nacional a estabelecer a inelegibilidades e restrições ao direito de sufrágio passivo e estabelecem-se as normas fundamentais que regem o exercício do direito de sufrágio activo e a elegibilidade. Finalmente, estabelecem-se algumas derrogações a este direito para os casos em que o número de residentes não nacionais no estado-membro de residência, com capacidade eleitoral, seja superior a 20% da população nacional. Este direito de cidadania está previsto no art. 15º da CRP, mas também de uma forma indesejada: a expressão “estrangeiro” utilizada só impropriamente pode designar um cidadão da UE sem nacionalidade portuguesa. Além disso, tratando-se de um direito de cidadania da UE ele rege-se pelo direito primário e derivado da UE, obrigando todos os estados, sob pena de incumprimento. Pelas mesmas razões, este direito não pode ser colocado sob reserva de reciprocidade.
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Direito Comunitário I Se um estado-membro não conceder este direito aos cidadãos portugueses, a resposta não é uma retaliação recíproca, mas sim uma acção de incumprimento nos termos do art. 258º TFUE. 2.2.4. Protecção diplomática e consular Da cidadania europeia decorre um direito fundamental à protecção diplomática fora da UE por qualquer estado-membro, o qual adquire especial relevância no caso de protecção de urgência e humanitária – art. 20º/2/c) e 23º TFUE. Este direito impõe aos estados da UE o dever de tomarem medidas internas e internacionais necessárias à respectiva efectivação. Admite-se que isso implique a adopção de directivas que estabeleçam medidas de coordenação e cooperação necessárias à garantia deste direito. 2.2.5. Iniciativa dos cidadãos O TL veio consagrar a possibilidade de uma iniciativa legislativa dos cidadãos da UE (art. 11º/4 TUE). Requer-se que pelo menos 1 milhão de cidadãos nacionais de um número considerável de estados-membros possam convidar a Comissão a formular uma proposta adequada em matérias, das suas atribuições, sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um acto jurídico da UE em aplicação dos tratados. Esse direito de iniciativa pretende reforçar a participação democrática dos cidadãos da UE, na sua componente de democracia semi-directa, corrigindo o tradicional défice democrático. Contudo, trata-se apenas de fazer um convite para que haja uma proposta. Não se trata de um referendo e muito menos de um referendo vinculativo. Nem sequer se trata de um direito de iniciativa popular propriamente dito, na medida em que cabe à Comissão decidir se elabora, ou não, uma proposta. Por outras palavras, a Comissão continua a deter um direito exclusivo de iniciativa legislativa. 2.2.6. Direito a uma boa administração Outro direito de cidadania europeia é o direito a uma boa administração (art. 41º CDFUE). Com ele pretende-se criar uma administração bem dirigida, com capacidade de prestação, funcionalmente ordenada e adequada, estruturada com base nos DF e nos princípios estruturantes do direito da UE, como a democracia e o estado de direito. Trata-se de um direito de todas as pessoas, físicas e colectivas, que por qualquer motivo entrem numa relação com os serviços administrativos da UE. O mesmo pretende concretizar, na relação entre a administração da UE e os particulares, os princípios da igualdade, da justiça e da eficiência e da equidade procedimental. Este direito remete para um amplo conjunto de garantias administrativas substantivas e procedimentais reconhecidas, quer pela jurisprudência constitucional dos estados-membros, quer pela jurisprudência do TEDH. 2.2.7. Direito de acesso a documentos O princípio da transparência dirige a actuação da UE em todos os domínios e com múltiplas incidências (art. 11º TUE e 15º TFUE). O art. 298º TFUE estabelece os princípios da administração aberta, da eficácia e da transparência como rectores da actuação de instituições, órgãos e organismos da UE. Neste quadro, abrangido pelo direito de cidadania europeia está o direito de acesso aos documentos das instituições, órgãos e organismos da UE (art. 42º CDFUE). Trata-se de um direito não apenas dos cidadãos, mas também de qualquer pessoa singular ou colectiva residente ou sediada na UE. As restrições a este direito baseiam-se na protecção do interesse público ou privado e são definidas pelo PE e pelo Conselho, por regulamento, através de processo legislativo ordinário. 2.2.8. Direito de petição e de queixa A cidadania europeia inclui o direito de petição perante as instituições e órgãos da UE, com particular relevo para o Provedor de Justiça Europeu (PJE) e o PE – art. 20º/2/d) TFUE. Em rigor, trata-se aqui de um direito que transcende a cidadania. As petições podem ser apresentada por qualquer cidadão ou pessoa singular ou colectiva residente ou sediada estatutariamente num estado-membro. As petições ao PJE devem respeitar casos de má administração na actuação das instituições, órgãos ou organismos da UE, com excepção dos órgãos do poder judicial no exercício de funções jurisdicionais. No tocante à apresentação de petições dirigidas ao PE, podem ser apresentadas individual ou colectivamente e incidir sobre qualquer questão que se integre nos domínios de actividade da Comunidade e lhe diga directamente respeito. 2.3. Impacto da cidadania europeia na cidadania nacional A cidadania europeia tem uma natureza complementar à cidadania nacional. No entanto, ela acaba por ter um forte impacto sobre esta. A mesma obriga a uma crescente interdependência das políticas de nacionalidade dos estados-membros.
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Direito Comunitário I Assim sucede, na medida em que as alterações produzidas no direito da nacionalidade de um estado-membro acabam por se repercutir na cidadania europeia e nos 27 Estados-membros. Daqui resulta uma clara necessidade de harmonizar a legislação nacional neste domínio. 3. A protecção dos direitos fundamentais 3.1. Imprevisão inicial dos direitos fundamentais Originariamente, o direito comunitário escrito não incluía a matéria da protecção de DF qua tale; o mesmo pretendia ser mais como um “Bill of powers” do que um “bill of rights”. Aliás, entendeu-se que este não era o objecto dos tratados instituidores das comunidades, para além de que essa matéria dizia respeito a outra organização internacional regional, o Conselho da Europa, além de integrar há muito as Constituições dos Estados-membros. O escopo económico dos tratados não era visto como um perigo capaz de entrar em conflito com a CEDH. Em todo o caso, o objectivo inicial de criação de um mercado único resultou na consagração de alguns direitos com especial incidência na actividade económica. Do mesmo modo, previam-se aqui e ali alguns direitos económicos e sociais. A UE, desde a sua fase comunitária, tem vindo a desenvolver um acervo de políticas extremamente complexo, no qual se verifica uma intencionalidade materialmente dirigente das normas do antigo tratado da UE, em detrimento de uma concepção meramente formal e procedimental do direito comunitário originário. Ou seja, a UE, agora, tem procurado harmonizar uma atitude favorável ao florescimento de uma economia de mercado, como condição de desenvolvimento económico, com preocupações de desenvolvimento político, social, económico, cultural e ambiental. Este facto levou à progressiva consciencialização da necessidade de conferir maior centralidade aos DF no seio da UE. 3.2. Fundamentalização dos direitos na Comunidade A ausência de um catálogo de direitos fundamentais nos Tratados instituidores das comunidades cedo se mostrou pouco satisfatória. O problema era agravado pelo facto de a eventual generalização do controlo jurisdicional nacional da conformidade do direito comunitário derivado com os catálogos constitucionais nacionais de direitos fundamentais era por muitos, incluindo o TJCE, considerada indesejável e de evitar a todo o custo, já que podia afectar a realização dos objectivos da integração. Além disto, o alargamento da actuação dos órgãos comunitários a zonas sensíveis dos DF apontava, do mesmo modo, para a necessidade de criar um sistema eficaz de protecção dos DF a nível comunitário. Assim, ao longo de várias décadas, o desenvolvimento da protecção dos DF nas comunidades e na UE foi sendo enriquecido em vários planos: Em primeiro lugar, foi reconhecida aos DF, pelo poder judicial, uma natureza de princípios gerais de direito comunitário (solução que perdurou por 3 décadas); Em segundo lugar, os direitos económicos contidos no Tratado de Roma começaram por ser interpretados por remissão para as tradições de DF dos diferentes Estados-membros e acolhendo a influência de instrumentos de direito internacional convencional e pela incorporação da CEDH; os direitos consagrados nos tratados instituidores foram interpretados com um sentido mais amplo do que o estritamente económico; assim, o TJCE afirmou que as liberdades económicas, não sendo absolutas, devem ser vista por referência à sua função social e ao respeito devido aos direitos humanos; Em terceiro lugar, deve assinalar-se a valorização da CEDH e da respectiva interpretação e aplicação levada a cabo pelo TEDH; esta convenção liga-se ao direito europeu de diferentes modos: por um lado, importa no ordenamento jurídico dos Estados-membros da UE, na qualidade de instrumento clássico de direito internacional convencional, além disso, a CEDH tem validade supranacional, estendendo a sua força normativa, por incorporação, à própria UE, aí integrando os princípios gerais do direito europeu. Aliás, há mais de três décadas que o TJCE tem vindo a afirmar a obrigação dos Estados-membros de conformarem a sua actuação de acordo com os direitos humanos, dando um relevo especial à CEDH, no entanto, este relevo acabou por ser expressamente reconhecido pelo tratado UE, a despeito de o Tratado de Amesterdão apontar para a estruturação de um sistema autónomo de protecção dos direitos fundamentais. 3.2.1. Consagração formal: a Carta de Direitos da UE Por importante que tenha sido a evolução anterior, a tomada de consciência e fundamentalização da necessidade de existência de um catálogo de Direitos Fundamentais que conformasse a actuação da comunidade europeia não impediu que se considerasse necessária a introdução no direito originário da UE (o qual não previa a existência destes direitos), nomeadamente uma futura constituição, de um catálogo de DF dotado de primazia normativa, força jurídica e aplicabilidade directa. Tal significou uma evolução para um amplo sistema constitucional supranacional de protecção de direitos liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos europeus. Este catálogo deveria constituir um reforço da cidadania europeia, da transparência das instituições europeias e da sua proximidade dos particulares.
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Direito Comunitário I Foi esta a causa da adopção da Carta de Direitos Fundamentais no seio da UE (CDFUE). 3.2.2. Elaboração e aprovação No CE de Tempere, na Finlândia, foi decidido a constituição de uma Convenção para a elaboração de uma Carta de DF, presidida por Roman Herzog. Esta Convenção tinha representantes dos órgãos comunitários e dos estados-membros. Num período relativamente curto, foi elaborado um primeiro projecto de texto submetido a aprovação do CE de Biarritz. O texto final da CDFUE seria aprovado no CE de Nice, em 2000. 3.2.3. Conteúdo normativo A CDFUE aprofunda a tradição ocidental de consagração e protecção dos direitos humanos, acentuando as dimensões da dignidade, da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da cidadania e das garantias processuais. Tratando-se de uma Carta da União, a mesma vincula toda a actividade supranacional e intergovernamental respeitante a todos os domínios tradicionalmente abrangidos pelos três pilares. Os principais destinatários da CDFUE são as instituições, órgãos e organismos da UE. A vinculação dos Estados não está excluída nos casos em que a sua actividade se estenda a domínios comunitários ou execute actos comunitários. Não se prevê a eficácia horizontal da CDFUE nas relações entre cidadãos da UE. A CDFUE pretende um equilíbrio razoável entre o património cultural e normativo comum dos povos europeus e a diversidade que nalgumas matérias se verifica entre eles. Assim, a estratégia seguida consistiu em aprofundar alguns pontos comuns, nomeadamente garantindo um novel idêntico de protecção para os DF já consagrados na CEDH, sem renunciar a uma protecção mais elevada. Os estados membros são assim duplamente responsáveis, perante a CEDH e a CDFUE. Neste sentido, afigura-se particularmente oportuna a intensificação da cooperação transjudicialista entre o TJUE e o TEDH, sendo que para a unidade e coerência nesta matéria contribuirá a adesão da UE à CEDH determinada pelo TL. Nos pontos mais delicados, a CDFUE remeteu pura e simplesmente para a decisão dos Estados, em termos análogo à doutrina federal dos states rights norte-americana. O preâmbulo da CDFUE coloca o valor da solidariedade no mesmo plano da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, enquanto valores universais e indivisíveis. 3.2.3.1. Dignidade A CDFUE refere-se ao princípio fundamental da dignidade do ser humano, enquanto valor indivisível e universal, que serve de pilar na construção da identidade da UE. Ele aplica-se a toda a vida humana e a todos os indivíduos, sendo fundamento dos direitos de liberdade, igualdade, solidariedade e justiça, nas suas dimensões subjectivas e objectivas, negativas e positivas. O princípio da dignidade do ser humano concretiza-se mediante a consagração de alguns DF: direito à vida, integridade do ser humano, proibição da tortura, dos maus tratos ou penas desumanas ou degradantes, a proibição da escravidão ou do trabalho forçado. Para além disso, a dignidade da pessoa humana constitui um parâmetro interpretativo para os demais princípios, direitos e liberdades fundamentais, podendo ser usado para ampliar o âmbito da protecção de uns direitos e para fundamentar a restrição de outros. 3.2.3.2. Liberdades A dignidade da pessoa humana é um princípio de autonomia, a qual implica que a liberdade seja a regra e a restrição a excepção, valendo aqui o princípio in dúbio pró libertate. O título II da CDFUE consagra o direito à liberdade e segurança, o respeito pela vida privada e familiar, a protecção de dados pessoais, etc. (art. 6º a 19º CDFUE). Alguns destes têm uma elevada carga pessoal, outros revestem-se de grande relevo para a esfera pública, assegurando a autonomia da formação da opinião pública e da vontade política. Outros ainda são da maior importância para a esfera económica, salvaguardando a propriedade material e imaterial e o direito à iniciativa económica privada. Embora a CDFUE não diga expressamente, deve entender-se que os direitos e liberdades aí consagrados se aplicam às pessoas colectivas, na medida em que isso seja compatível com a sua natureza. 3.2.3.3. Igualdade A dignidade da pessoa humana é um princípio igualitário. No título III encontramos o princípio da igualdade perante a lei (art. 20º) seguido dos direitos especiais de igualdade em que ele se desdobra: direito À não discriminação (art. 21º), princípio da diversidade cultural religiosa e linguística (art. 22º), igualdade entre homens e mulheres (art. 23º), os direitos das crianças (art. 24º) e das pessoas idosas (art. 25º) e a integração das pessoas com deficiência (art. 26º). Os titulares destes direitos são todas as pessoas, quer sejam cidadãos da UE, ou não, incluindo as pessoas colectivas. O princípio da igualdade tem uma dimensão material-fáctica, não se bastando com mera igualdade jurídico-formal. 3.2.3.4. Solidariedade
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Direito Comunitário I A dignidade da pessoa humana tem uma componente social e é a base da solidariedade. Da dignidade da pessoa humana deduzse um direito a um mínimo de existência condigna. No título IV da CDFUR, relativo ao valor da solidariedade, encontra-se um catálogo de direitos sociais (art. 27º a 38º). À semelhança dos seus congéneres de direito constitucional e internacional, os mesmos caracterizam-se por uma mais acentuada componente positiva e prestacional. A sua presença neste enquadramento sistemático pretende reforçar a interdependência entre dimensões positivas e negativas dos direitos fundamentais. 3.2.3.5. Justiça A dignidade da pessoa humana contém uma exigência de justiça. O Título VI da CDFUE, respeitante À justiça, contem algumas dimensões fundamentais dos clássicos direitos de due process e fair trial, integrantes do direito à tutela jurisdicional efectiva e das inerentes garantias substantivas e processuais. Este direito é instrumental relativamente à protecção de todos os DF. Nelas se inclui o direito de acção e a um tribunal imparcial (art. 47º), a presunção de inocência e direitos de defesa (art. 48º) e o princípio da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas (art. 49º). 3.2.4. Força jurídica, interpretação e aplicação Durante alguns anos, a CDFUE subsistiu como uma declaração de direitos à margem dos tratados instituidores da Comunidade, não integrando o respectivo direito originário. Alguns autores consideravam até descabido falar da consagração jurídico-formal de um catálogo de direitos e, por maioria de razão, de uma constitucionalização europeia dos DF. Em todo o caso, ela reveste-se de um relevo muito importante: segundo o art. 51º/1, as suas disposições dirigem-se às instituições, órgãos e organismos da UE, respeitando o princípio da subsidiariedade; os estados-membros são vinculados em segunda linha, quando apliquem o direito da UE; além disso, a aplicação dos DF nas relações horizontais não é relevante para a CDFUE e a jurisdição europeia. Porém ela subsiste como uma realidade constitucional nacional e remete, entre nós, para o catálogo de DF da CRP e para o respectivo art. 18º/2. Mesmo antes da entrada em vigor da CDFUE o TJUE não coibia de recorrer a ela, se não para fundamentar as suas decisões em matéria de DF, de forma a complementar e a reforçar a retórica jurisprudencial construída com base nas tradições constitucionais dos estados-membros da CEDH. Desta forma, a vigência da CDFUE constituiu um forte impulso para a jurisprudência do TJUE em matéria de DF, cidadania europeia e liberdades fundamentais do mercado interno. A CDFUE veio a contribuir para legitimar politicamente a UE e reforçar a protecção dos DF no seu seio, em articulação com os sistemas jurídicos nacionais e o mecanismo de protecção judicial da CEDH. 4.
A UE e a CEDH
Um desenvolvimento importante na protecção dos DF no seio da UE diz respeito à adesão à CEDH prevista pelo TL. A regra, no seio da jurisdição da UE, consiste na existência de uma legitimidade processual activa muito restrita, por parte dos particulares, para contestarem as violações dos seus direitos e interesses pelos actos da UE junto do TJUE. Normalmente, os mesmos dirigem-se às instâncias nacionais para contestar os actos de execução das medidas legislativas e administrativas da UE que afectem a sua esfera jurídica, e só quando esgotados todos os recursos ordinários internos é que os particulares podem dirigir-se ao TEDH e demandar o seu próprio Estado por violação aos direitos consagrados na CEDH. Compreende-se esta solução tendo em conta o necessário respeito pela soberania estadual, a subsidiariedade da intervenção dos tribunais internacionais e a protecção da própria funcionalidade destes. Igualmente importante e à semelhança do que sucede nas relações entre o TEDH e os Estados, é impedir que o TJUE possa intervir na apreciação da conformidade dos actos da UE com a CEDH sem que o TJUE tenha tido a oportunidade de se pronunciar sobre o assunto. O sistema de competências jurisdicional no seio da UE ficaria seriamente ameaçado se a fiscalização externa não tivesse lugar unicamente depois da fiscalização interna, pretensão esta inteiramente consistente com a ideia de subsidiariedade e complementaridade que deve presidir à intervenção das instancias jurisdicionais nacionais.
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