November 26, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Repensando a Teoria Literária Contemporânea
João Sedycias, Ph.D. [organizador]
Repensando a Teoria Literária Contemporânea Apresentação de Cíntia Moscovich
Projeto internacional em conjunto da International joint project of Southern Illinois University Edwardsv Edwardsville ille Edwardsv Edwardsville, ille, Illinois Estados Unidos da América
Universidade Federal de Pernambuco Recife, Pernambuco Brasil
Recife, PE, Brasil | 2015
Universidade Federal de Pernambuco
Reitor : Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado Vice-Reitor : Prof. Sílvio Romero Marques Diretor da Editora: Editora: Prof. Lourival Holanda
Comissão Editorial
Presidente: Prof. Lourival Holanda itulares:: Ana Maria de Barros, Alberto Galvão de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler, itulares Antonio Motta, Helena Lúcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, Ricardo Bastos Cavalcante Prudêncio, Rogélia Herculano Pinto, Rogério Luiz Covaleski, Sônia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lúcia Menezes Lima. Suplentes:: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria Figueiroa Suplentes Barretto, Eduardo Antônio Guimarães Tavares, Ester Calland de Souza Rosa , Geraldo Antônio Simões Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas. Editores Executivos: Executivos: Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Rogério Luiz Covaleski e Silvia Helena Lima Schwamborn
1ª Edição XXXX Xª Edição (Ano corrente) Catalogação na fonte: Bibliotecária Fulana de Tal, CRB4-XXXX
vrau wkthbs wsus wvdkutk ficha catalográfica (pode alterar a onte para compor o projeto do gráfico do livro, mas deve-se evitar a mudança nos recuos e espaços definidos pelos bilbiotecários)
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Sumário
9
Sobre o[a]s Autore[a]s
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Apresentação
Cíntia Moscovich
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6.
A Nova Crítica José de Paiva dos Santos Universidade Universida de Federal de Minas Gerais
235
7.
Estruturalismo e Semiótica Regina Lúcia de Faria Universidade Universida de Federal Rural do Rio de Janeiro
289
8.
Literatura e psicanálise: confrontos Adélia Bezerra de Meneses Universidade Universida de de São Paulo Universidade Estadual de Campinas
321
9.
Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos Universidade Federal da Paraíba
365
10. Marxismo Edu Teruki Otsuka Universidade Universida de de São Paulo
407
11. Feminismo e literatura: apontamentos sobre crítica feminista Cecil Jeanine Albert Zinani Universidade Universida de de Caxias do Sul
437
12. Formalismo russo: uma revisão e uma atualização Aurora Fornoni Bernardini
Prefácio João Sedycias (Organizador) State University o New York College at Oneonta, USA
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1.
O que é e o que não é literatura? Anco Márcio Tenório Vieira Universidade Universida de Federal de Pernambuco
87
2.
A teoria literária: desprestigiada e imprescindível Lourival Holanda Universidade Universida de Federal de Pernambuco
105
3.
Crítica literária: seu percurso e seu papel na atualidade Roberto Acízelo de Souza Universidade Universida de do Estado do Rio de Janeiro
121
4.
Reexividade, Romantismo e Modernismo Sueli Cavendish Universidade Universida de Federal de Pernambuco
179
5.
Fenomenologia e Hermenêutica: impactos sobre os estudos literários Maria da Glória Bordini
Universidade Universida de Federal do Rio Grande do Sul
Universidade Universida de de São Paulo
477
13. Walter Benjamin e sua teoria crítica Márcio Seligmann-Silva Universidade Estadual de Campinas
515
14. Uma literatura pensante: as desconstruções e o pensamento de Derrida
Evando Nascimento Universidade Universida de Federal de Juiz de Fora 557
15. A literatura e o pensar: notas sobre a trajetória intelectual de Jonathan Culler Sueli Cavendish Universidade Universida de Federal de Pernambuco
607
16. Multitransintercultura: Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial e ecocrítica Roland Walter Universidade Universida de Federal de Pernambuco
663
17. Vozes autóctones das Américas: o discurso contracanônico da crítica indígena Eloína Prati dos Santos Universidade Universida de Federal do Rio Grande do Sul
689
18. Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura André Monteiro Universidade Universida de Federal de Juiz de Fora
Sobre o(a)s Autore(a)s
JOÃO SEDYCIAS — Organizador
da presente coletânea. Ph.D. em literatura comparada pela Universidade do Estado de Nova York em Buffalo (State (State University o New York at Buffalo), Buffalo ), com a tese Crane, Azevedo, and Gamboa: A Comparative Comparative Study (Crane, Azevedo e Gamboa: um estudo comparativo). comparativo ). Em Buffalo, além de lidar com teoria literária no programa de literatura comparada, trabalhou, também, no Departamento de Línguas Modernas, como colaborador de pesquisa e assistente administrativo de Peter Boyd-Bowman na área de filologia hispânica (história da língua espanhola). De 1990 a 1997, chegou ao nível de Associate de Associate Proessor Proessorde de língua e literatura espanhola e hispano-americana na Universidade do Estado da California C alifornia em Sacramento (Caliornia (Caliornia State University, Sacramento). Sacramento). Regressando ao país de sua infância, de 1999 a 2002 foi professor titular visitante de espanhol e inglês no Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, onde ajudou a estabelecer e desenvolver o programa de pós-graduação em linguística aplicada ao ensino de línguas estrangeiras. De 2002 a 2006, foi professor adjunto e, de 2003 a 2006, chefe do Departamento de Letras, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde atuou nas áreas de inglês e espanhol. De volta aos Estados Unidos, de 2006 a 2011 ocupou o cargo de professor titular de espanhol e inglês e chefe da Divisão de Ciências Humanas da Faculdade do Condado de Essex
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(Essex County College) College) em Newark, Nova Jersey. Subsequentemente, de 2011 a 2014 foi professor titular efetivo de línguas espanhola e portuguesa na Universidade do Sul de Illinois em Edwardsville (Southern Illinois University Edwardsville), Edwardsville), onde também atuou como chefe do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras. Em agosto de 2014, aceitou o convite e assumiu o posto de Professor Titular de Espanhol & Português e Decano Fundador da Escola de Artes & Humanidades na Universidade do Estado de Nova Y York ork em Oneonta (State (State University o New York College at Oneonta) Oneonta ) e hoje mora na região das Montanhas Catskill, na parte central desse estado. Além de organizar a presente coletânea, é autor e organizador de vários livros sobre língua, literatura e cultura publicados no Brasil e no exterior, entres eles: Te Naturalistic Novel o the New World (1993), ópicos em linguística aplicada – – Issues in Applied Linguistics (2000), O ensino do espanhol no Brasil (2005) (2005) e A e A América hispânica hispânica no imaginário literário brasileiro / Brasil en el imaginario literario hispanoamericano (2007). Interesses atuais incluem a teoria literária, principalmente nas suas vertentes contemporâneas, a aplicação da tecnologia da informação e da Internet ao ensino de línguas estrangeiras (especialmente espanhol e inglês para lusofalantes), história da língua espanhola, literatura e cu ltura latino-americana e literatura do Siglo de Oro espanhol. Oro espanhol. ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA — É Mestre em Teoria da Literatura (UFPE), Doutor em Literatura Brasileira (UFPB) e, atualmente, é professor Associado I do Departamento de Letras da UFPE. Coeditor da revista Investigações, do Programa de Pós-Graduação em Letras, tem trabalhos publicados na Revista USP, Ciência & rópico, Luso-Brazilian Review, Estudos Portugueses, Cultura Vozes, Encontro, Cadernos Daimon, entre outros periódicos do Brasil e do
exterior. Colaborou, como verbetista, na BIBLOS — Enciclopédia VERBO das literaturas de língua portuguesa (Coimbra, portuguesa (Coimbra, 1999, v. 3; 2001, v. 4; e 2004, v. 5). É autor de Luiz Marinho: o sábado que não entardece (FCCR, 2004), Adultérios Adultérios,, biombos e demônios (PPGL, 2009), Orley Mesquita: prosa e verso (CEPE, 2012), e é coautor dos livros O caminho se az caminhando: 30 anos do Programa de PósGraduação em Letras da UFPE (Ed. UFPE, 2006) e Hermilo Borba Filho e a dramaturgia: diálogos pernambucanos (FCCR, 2010). Foi Gerente-Assistente do Instituto de Documentação (INDOC), da Fundação Joaquim Nabuco (1994-1997; 2000-2002). No momento, organiza a correspondência ativa e passiva entre Joaquim Nabuco e Graça Aranha (1890-1910) e o Teatro Completo de Luiz Marinho (em 3 volumes). Possui Graduação em Filosofia pela Universidade de Paris VIII (1976), Mestrado em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo (1986) e Doutorado em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo (1992). Editor da Revista Estudos Universitários da Universitários da UFPE. Publicou Fato e Fábula (Ed Fábula (Ed UFAM, 1999); Sob o signo do silêncio (EDUSP, silêncio (EDUSP, 1992); e Álvaro e Álvaro Lins: Lins: crítico literário literário e cultural (Ed (Ed UFPE, 2008). Organizou para o Itaú Cultural a coletânea Deslocamen Deslocamentos tos críticas (São críticas (São Paulo: Babel, 2011); Tem feito conferências nos Estados Unidos (Nova Y York ork e Austin) e, sobretudo na França (Paris e Clermont-Ferrand). Membro do Conselho Editorial da revista online de Literatura e Linguística Eutomia Eutomia (ISSN (ISSN 19826850). Membro do Instituto Arqueológico Geográfico e Histórico de Pernambuco. Atualmente é Professor Associado I da Universidade Federal de Pernambuco e Diretor da Editora UFPE. Desenvolve pesquisas em poéticas, memória e sociedade, com ênfase na Crítica
LOURIVAL HOLANDA —
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e Teoria Literária, Literatura Brasileira Contemporânea, Literaturas Estrangeiras Contemporâneas, Cultura, História e Linguagem. ROBERTO ACÍZELO DE SOUZA —
É licenciado em letras pela
do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Pós-Graduação em Letras da mesma universidade, com bolsa de pesquisador visitante FAPERJ (20032004). Lecturer dos dos Departamentos de Estudos Culturais e de Inglês, da University of North Carolina at Charlotte, EUA, apresentando as
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, instituição onde é professor titular de literatura brasileira, tendo também lecionado teoria da literatura na Universidade Federal Fluminense, de 1976 a 2002. Doutor em teoria da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estudos de pós-doutorado na Universidade de São Paulo, entre seus principais trabalhos publicados figuram: eoria da literatura (1986, 10ª edição em 2007), Formação da teoria da literatura (1987), O império da eloquência: eloquência: retórica e poética no Brasil oitocentista (1999), tocentista (1999), Iniciação aos estudos literários: literários: objetos, disciplinas, instrumentos (2006) instrumentos (2006) e Introdução à historiografia da literatura brasileira (2007). sileira (2007). Organizou ainda duas edições anotadas de trabalhos do historiador e crítico romântico Joaquim Norberto — História da literatura brasileira (2002) brasileira (2002) e Crítica reunida; reunida; 1850-1892 (2005; em colaboração com José Américo Miranda e Maria Eunice Moreira) — bem como uma edição dos ensaios sobre história literária nacional de Fernandes Pinheiro: Historiografia da literatura brasileira: brasileira: textos inaugurais (2007), inaugurais (2007), além da antologia Uma ideia moderna de
conferências: “From Walter Benjamin to the translation of William Faulkner into Portuguese: Talks by Dr. Sueli Cavendish” e “Close Encounters at a Crossroads: Poe, Faulkner, Rosa and Machado de Assis”. Tem capítulos publicados nos livros Crossings and Contaminations: Studies in Comparative Literature (Ed. Literature (Ed. por Eduardo Coutinho e Pina Bausch, Aeroplano, 2009), Do Jeito Delas: Vozes da Poesia Feminina de Língua Inglesa (Sete Inglesa (Sete Letras / Faperj, 2008), e Nove Abraços no Inapreensível (Azougue, (Azougue, 2008). Tem artigos científicos publicados em diversas revistas (USP (USP , Eutomia Eutomia,, Investigações Investigações,, erceira Margem, Margem, Continente Multicultural , entre outras) e traduções de diversos contos inéditos de William Faulkner, publicados nas revistas USP , Eutomia, Continente Multicultural , e Investigações Investigações.. É editora-chefe de Eutomia, Revista de Literatura e Linguística, Linguística, que criou no Departamento de Letras da UFPE em 2008.
literatura: literat ura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). (1688-1922) .
letras / teoria da literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1983) e doutorado em letras na mesma área de concentração também pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991). É professora aposentada como Adjunta IV na UFRGS e ex-professora titular de teoria da literatura da PUCRS. Atualmente exerce o cargo de professora colaboradora convidada da UFRGS no Programa de Pós-Graduação em Letras. Tem experiência na área de letras, com ênfase em teoria da literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: Erico Verissimo, Mario Quintana,
SUELI CAVENDISH — Doutora em
Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora efetiva Adjunta III de Literaturas de Língua Inglesa do Departamento de Letras da UFPE. Visiting Scholar e Visiting Fellow, Fellow, respectivamente, da University of Southern Mississippi e da Yale University, entre 2001 e 2002. Professora Visitante do Curso de Letras da Universidade Federal
Possui licenciatura em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1969), mestrado em
MARIA DA GLÓRIA BORDINI —
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acervos literários, literatura brasileira e portuguesa, estudos culturais e lírica. É pesquisadora 1B do CNPq. Entre os 27 livros publicados ou organizados, figuram importantes marcos nos estudos literários brasileiros, tais como: Poética da cidade em Erico Verissimo (Rio Verissimo (Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2012), Melh Melhores ores conto contoss de Walmir Ay Ayala ala (São (São Paulo: Global, 2011), Identidades raturadas: ensaios sobre literatura portuguesa (São portuguesa (São Paulo: EDUSP, 2011), Leitura e desenvolvimento da linguagem linguagem (São Paulo: Global / ALB, 2010), As cidades imaginadas de Erico Verissimo Verissimo (Porto Alegre: Gráfica Comunicação Impressa, 2007), Mario 2007), Mario Quintana: Quintana: o anjo da escada escada (Porto Alegre: Telos Empreendimentos Culturais, 2006), Crítica do tempo presente: estudo, diusão e ensino de literaturas de língua portuguesa portuguesa (Porto Alegre: Nova Prova / AIL / IEL, 2005), Caderno de pauta simples: Erico Verissimo e a crítica literária (Porto literária (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2005), Cultura e identidade regional (Porto (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004), O tempo e o vento: história, invenção e metamorose metamorose (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004), O arco e as pedras: ontes primárias, teoria e história da literatura (Belo literatura (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004), Lukács e a literatura (Porto literatura (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003), 35 Melhores Contos do Rio Grande do Sul (Porto (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro CORAG, 2003), A 2003), A liberdade liberdade de escrever escrever (São (São Paulo: Globo, 1999), O cortejo do divino e outros contos escolhidos (Porto escolhidos (Porto Alegre: L&PM, 1999), Criação literária em Erico Verissimo (Porto Verissimo (Porto Alegre: L&PM, 1995), Confissões do amor e da arte (Porto arte (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994), Literatura: a ormação do leitor (Porto (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993), e O gigolô das palavras (Porto palavras (Porto Alegre: L&PM, 1993). Professor de Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, onde atua nas seguintes áreas: literatura estadunidense do
JOSÉ DE PAIVA DOS SANTOS —
século 19 e 20, Literatura Afro-Americana, Literatura e Religiosidade, e Literatura Comparada. Obteve Ph.D. em Literatura Comparada e Teoria Teoria Literária na Purdue University (2001), e Mestrado na mesma área na Brigham Young University (1997). Coorganizador do livro Migrações eóricas, eóricas, Interloc Interlocuções uções Cultura Culturais: is: Estudos Comparados Comparados Brasil / Canadá (2009) e autor de vários artigos publicados na área de literatura estadunidense, afro-estadunidense e canadense. É professora adjunta de Literatura Brasileira no curso de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) desde 2010. Fez mestrado e doutorado dou torado na PUCRJ e doutorado-sanduíche na Universidade de Stanford, Califórnia. De 1999 a 2002, foi professora leitora no Instituto de Línguas Românicas da Universidade de Aarhus, Dinamarca. Sua pesquisa é centrada, sobretudo, em crítica literária brasileira contemporânea.
REGINA LÚCIA DE FARIA —
ADÉLIA BEZERRA DE MENESES — Formada
e doutorada pela USP, pesquisadora do CNPq, lecionou Literatura Brasileira na Technische Universität de Berlim e Teoria Literária e Literatura Comparada na USP e UNICAMP. UNICAMP. Aposentada, continua atuando vinculada à PósGraduação dessas duas universidades paulistas. Publicou os livros: A Obra Crítica de Álvaro Lins e sua Função Função Histórica Histórica (Rio (Rio de Janeiro: Vozes, 1979); Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque Buarque (São Paulo: Hucitec, 1982; Prêmio Jabuti; 3ª ed. ampliada, São Paulo: Ateliê, 2002) ; Do Poder da Palavra: Ensaios de Literatura e Psicanálise Psicanálise (São Paulo: Duas Cidades, 1995; 2ª ed., 2004) ; Figuras do Feminino Feminino (São Paulo: Ateliê, 2000; 2ª ed., 2001); As Portas do Sonho Sonho (São Paulo: Ateliê, 2002); Cores de Rosa: Ensaios sobre Guimarães Rosa Rosa (São Paulo: Ateliê, 2010). Organizou os livros: Utopia Urgente (em Urgente (em colaboração com T. Jensen e Frei Betto), São Paulo: Casa Amarela /
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EDUC, 2002; e Saudades de Rosa e Sertão (Fotos de Germano Ge rmano Neto, Neto, textos de Guimarães Rosa), São Paulo: EDUSP, EDUSP, 2007. CARMEN SEVILLA GONÇALVES DOS SANTOS —
Possui Doutorado em
Teoria da Literatura (2007) pela Universidade Federal Feder al de Pernambuco, Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (1995) e Graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba (1990). Atualmente é Professora Associada I no Departamento de Fundamentação da Educação do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Psicologia da Educação, Habilidades Sociais e Educação, Transtornos de Desenvolvimento e Necessidades Educativas Especiais. Também atua como professora da modalidade de Educação a Distância (vinculada ao Curso de Letras Virtual). Autora de capítulos, artigos e livros em educação, psicologia e teoria da literatura. EDU TERUKI OTSUKA — É
mestre em Letras – Teoria Literária e Literatura Comparada (USP, 2000), doutor em Letras – Literatura Brasileira (USP, 2005) e professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É autor de Marcas de Marcas da catástroe: experiência urbana e indústria cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (São Paulo: Nankin Editorial, 2001) e Era no tempo do rei: atualidade das Memórias de um sargento de milícias (São milícias (São Paulo: Ateliê Editorial, no prelo). Entre seus interesses, destacam-se: teoria crítica, romance brasileiro e sociedade, formas culturais contemporâneas. c ontemporâneas. CECIL JEANINE ALBERT ZINANI — Graduou-se em Letras – Português-
Inglês, cursou Especialização em Literatura Infantil e Juvenil, na UCS;
Mestrado em Letras – Teoria da Literatura, na PUCRS; Doutorado em Letras, Literatura Comparada, na UFRGS. Realizou estágio de Pós-Doutoramento na linha de pesquisa Memória e História, na PUCRS. É docente e pesquisadora do Curso de Letras, do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade Re gionalidade na Universidade de Caxias do Sul e do Programa de Pós-Graduação Doutorado em Letras, Associação Ampla UCS-UNIRITTER. Entre suas publicações, destacam-se: Litera Literatura tura e gênero: a construção da identidade eminina, eminina, História da literatura: questões contemporâneas; contemporâneas ; em coorganização, as obras: Da tessitura ao texto: texto: percursos de crítica feminista, Mulher feminista, Mulher e literatura: literatura: história, gênero, sexualidade, Dicionário biobibliográfico dos escritores da Região de Colonização Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul : Sul : das origens a 2005 e Multiplicidade Multipl icidade dos signos: signos: diálogos com a literatura infantil e juvenil. Também Tam bém publicou capítulos de livros e artigos em periódicos. Entre seus interesses, destacam-se: estudos de gênero, questões de leitura e ensino da literatura, literatura infantil e juvenil história da literatura e literatura e regionalidade. USP, formada AURORA FORNONI BERNARDINI — Professora titular da USP, em Letras Anglo-Germânicas e Estudos Orientais, leciona Literatura Russa, Teoria Literária e Literatura Comparada em nível de pós-graduação. Dedica-se à ensaística e à tradução, em particular, de obras russas e italianas. Em 2006, publicou pela Martins Fontes Indícios Flutuantes,, ensaio e traduções de poemas de Marina Tsvetáieva, Flutuantes recebendo o Prêmio Paulo Rónai e o Prêmio Jabuti de tradução. No mesmo ano, recebeu o Prêmio da APCA, juntamente com Homero Freitas de Andrade, pela tradução que realizou para a Cosac & Naify de O Exército de Cavalaria de Cavalaria de Isaac Bábel. Recentemente traduziu A Estrutura do Conto de Magia de E. Meletínski para a Editora da
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Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente dedica-se à tradução de poesia. MÁRCIO SELIGMANN-SILVA — Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986), mestrado em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo (1991), doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität Berlin (1996), e pós-doutorado pelo Zentrum Für Literaturforschung Berlim (2002) e por Yale (2006). É professor livre-docente de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor dos livros Ler o Livro do Mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica poética (Iluminuras/FAPESP, poética (Iluminuras/FAPESP, 1999, vencedor do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000), Adorno (PubliFolha, Adorno (PubliFolha, 2003),O 2003), O Local da Dierença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (Editora 34, 2005, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/ Crítica Literária 2006), Para uma crítica da compaixão (Lumme Editor, 2009) e A e A atualidade de Walter Benjamin e de Teodor W. Adorno (Editora Civilização Brasileira, 2009); organizou os volumes Leituras de Walter Benjamin: Benjamin: (Annablume/FAPESP, 1999; segunda edição 2007), História, Memória, Literatura: o e estemunho stemunho na Era das Catástroes Catástroes (UNICAMP, 2003) e Palavra e Imagem, Memória e Escritura Escritura (Argos, 2006) e coorganizou Catástroe e Representação (Escuta, 2000), Escritas da violência. Vol I. O testeRepresentação munho (7Letras, munho (7Letras, 2012) e Escritas da violência. Vo Voll II. Representações da violência na história e na cultura contemporâneas da América Latina (7Letras, Latina (7Letras, 2012); Imagem e Memória (Belo Memória (Belo Horizonte: FALE/ UFMG, 2012). Traduziu obras de Walter Benjamin (O ( O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, alemão , Iluminuras, 1993), G.E. Lessing (Laocoonte. (Laocoonte. Ou sobre as Fronteiras da Poesia e da Pintura, Pintura ,
Iluminuras, 1998, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Tradução, 2000), Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-Luc Nancy, J. Habermas, entre outros. Coordenou de 12/2006 a 11/2010 o Projeto Temático FAPESP “Escritas da Violência”. Possui vários ensaios publicados em livros e revistas no Brasil e no exterior. Foi professor visitante em Universidades no Brasil, Argentina, México e Alemanha. Atua principalmente nos seguintes temas: romantismo alemão, teoria e história da tradução, teoria do testemunho, literatura e outras artes, teoria das mídias, teoria estética do século XVIII ao XX e a obra de Walter Benjamin. É ensaísta, escritor e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Seu trabalho se desenvolve de senvolve em torno das áreas de Filosofia, Literatura e Artes Arte s Visuais. Doutorou-se pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nos anos 1990, completou sua formação em Paris, onde foi aluno de Jacques Derrida na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Lecionou durante três anos na Université Stendhal, de Grenoble. Em 2007, realizou um Pós-Doutorado em Filosofia, sobre Benjamin e Derrida, na Universidade Livre de Berlim. Já ministrou cursos e palestras em diversas instituições internacionais e nacionais: Universidade de Paris, Universidade de Manchester, Universidade de Bruxelas, UFMG, UERJ, PUC-Rio, Unicamp, USP, UFBA, Unesp, entre outras. Foi o organizador do “Colóquio Internacional Jacques Derrida 2004: Pensar a Desconstrução”, em que Derrida fez a conferência de abertura. Publicou, entre outros: Derrida e a literatura (2ª. Ed., EdUFF), Derrida (Zahar), Filosofia e literatura: diálogos (EdUFJF e Imprensa Oficial), Pensar a desconstrução (Ed. Estação Liberdade) e Clarice Lispector: uma literatura pensante (Civilização Brasileira) . Coordena atualmente a Coleção Contemporânea – Literatura,
EVANDO NASCIMENTO —
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Filosofia & Artes, pela Civilização Brasileira. Lançou pela Record os livros de ficção Retrato desnatural (2008) e Cantos do mundo (contos) (2011).
e literatura ameríndia. Organizou, entre outros, outros, Perspectivas da literatura ameríndia no Brasil , Estados Unidos e Canadá (2003, Canadá (2003, com dois volumes online) online),, e Outras e Outras literaturas anglóonas: anglóonas: (des)ecrevendo império, com império, com Sonia Torres (2006). Foi membro do Corpo Editorial
ROLAND WALTER — É
da Revista Interaces (Revista da Associação Brasileira de Estudos Canadenses) para a publicação dos números 1 a 11. 11.
Professor Associado do Departamento de Letras da UFPE e Pesquisador do CNPq. É doutor em Literatura Comparada pela Johannes Gutenberg Universität, Mainz, Alemanha (1992) e fez pós-doutorado na University of California, Santa Cruz (2000). Roland Walter é autor de três livros — Magical Realism in Contemporary Chicano Fiction (Vervuert, Fiction (Vervuert, 1993), Narrative Identities: (Inter)Cultural In-Betweenness in the Americas (Peter Americas (Peter Lang, 2003) e Aro-América: Diálogos Literários Literários na Diáspora Negra das Américas Américas (Bagaço, 2009) — editou o e-book e-book “As Américas: Encruzilhadas Glocais” (Ed. UFPE, 2007) e (em coautoria com Ermelinda Ferreira) o livro Narrações da Violência Biótica (Ed. Biótica (Ed. UFPE, 2010) e publicou numerosos artigos e capítulos de livro no Brasil, na Argentina, em Cuba, no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha e na Holanda. Em 2004, foi convidado como Professor Visitante na Eberhard-Karls Universität de Tübingen, Alemanha. E-mail:
[email protected]. ELOÍNA PRATI DOS SANTOS —
É professora aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde foi Vice-Diretora do Instituto de Letras e Coordenadora do Núcleo de Estudos Canadenses e atuou como Professora Visitante no Mestrado de História da Literatura na Fundação Federal Universidade de Rio Grande. Obteve seu PhD em Literaturas L iteraturas de Língua Inglesa pela State University of New York, Buffalo e realizou Pós-Doutoramento na Universidade Federal Fluminense. É especialista em ficção contemporânea dos Estados Unidos e do Canadá, literatura pós-colonial
lattes e homo ludens. ludens. Com a máscara do ANDRÉ MONTEIRO — É homo lattes e primeiro é proletário da cognição. Como homo ludens, ludens, busca criar e se deixar criar por afetos alegres. Na corda bamba entre acasos e constelações, as duas máscaras, simultaneamente, lhe caem muito bem e fazem dele doutor e pós-doutor em Estudos da Literatura pela PUC-Rio, professor de literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora (FALE/Dep. de Letras), escritor e compositor em horas raras. Publicou os livros A livros A ruptura r uptura do escorpião – orquato Neto e o mito de marginalidade marginalidade e e Ossos do Ócio. Ócio.
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Apresentação
Em tempos nos quais reflexão e conhecimento passaram a um plano vil de consideração na sociedade, a in iniciativa iciativa de oorganizar rganizar um volume volume de estudos sobre teoria literária parece-me notável e absolutamente necessária. Este Repensando a eoria Literária Contemporânea, Contemporânea , organizado pela generosa mão do professor João Sedycias e que reúne 18 capítulos, joga luz não só nos estudos da disciplina, mas na concepção da própria academia, aprofundament aprofundamentoo importante em meio ao cipoal de informações que molda a modernidade. Iniciando nas discussões sobre o estatuto da literatura e suas bases, passando por diversas escolas estético-filósoficas que contribuíram para a conformação atual da teoria e culminando c ulminando num exercício de possibilidades vindouras, o presente volume brinda-nos com conhecimento articulado e, o que é melhor, atualizado e vigoroso. Pessoalmente, e peço desculpas por falar em primeira pessoa, a teoria literária tem sido fonte permanente de inquietações e de satisfações, as duas em igual medida. Como C omo escritora — como alguém que, ainda que modestamente, produz literatura — percorri as páginas deste livro com o encanto que provém das inflexões do espírito, gratificando-me pelas possibilidades de abstração e de descoberta. Diversos graus de argumentação (incisivos, poéticos, eloquentes, apaixonados) conduziram-me a reavaliações técnico-teóricas, inclusive em níveis que tocam a própria experiência dos dias. A mim
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me interessa, é claro, o ato criativo: aquele do autor, que em tese inicia o ciclo; do leitor, que recria o criado; cr iado; e do estudioso, que tenta captar (e mediar e repercutir) esssas duas extremidades. Penso que, se a busca do autor é pela originalidade e pelo viço do novo, nada melhor do que se embrenhar nas diversas expressões que a obra literária suscita ao leitor especializado — leitura ideal, digamos, e que escapa do senso médio e comum. Ler um livro como este é, portanto, uma espécie de volta em segundo grau à própria origem do fato literário, uma instância em que a linguagem não mais engendra a ficção, mas fala sobre ela, desdobrando-se em no vos significados. Tão cr criativo iativo quanto o autor autor,, tocado pela mesma inquietude que move aquele que escreve, o teórico é capaz disso, de despertar e de nomear essa espécie de consciência tão esquiva quanto real. Como vivo ao sul do Brasil e como c omo tenho me dedicado ao estudo e à leitura da teoria ao longo dos anos, também li esse livro com bastante afinco e curiosidade, buscando nele os ecos de nossa gente e nossa terra. Ao longo dos 18 textos, é possível reconhecer e apreciar a realidade da teoria literária em nosso país, matéria complexa em ambiente complexo, mas que, por isso mesmo, nos obriga e nos confronta com a nossa precariedade e com nossa exuberância. Convido a todos os que amamos a literatura e o estudo a desfrutar das páginas deste livro. Aqui dentro, há iluminação e encantamento, que são, a bem dizer, as bases de todo o conhecimento. Cíntia Moscovich Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Prefácio
O ano de 2005 marcou de forma significativa o nosso trabalho no campo de línguas e literaturas estrangeiras, principalmente no que diz respeito às línguas portuguesa e espanhola e suas literaturas correspondentes, e mais especificamente a brasileira e a hispano-americana. Vários colegas da área de espanhol e eu tivemos, naquela ocasião, a grata satisfação de publicar, através da Parábola Editorial , de São Paulo, o livro O ensino do espanhol no Brasil . Essa obra teve excelente recepção por parte da comunidade acadêmica e hoje serve como referência no campo dos estudos da língua espanhola e literaturas hispanófonas no nosso país. Alguns anos depois, em 2007, publicamos, através da Editora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), outro livro na mesma área, A América hispânica no ima ginário literário brasileir brasileiroo / Brasil en el imaginario literario hispa Ambas as obras problematizam assuntos importantes noamericano. Ambas noamericano. relacionados ao estudo do espanhol e das literaturas hispanófonas no ambiente acadêmico brasileiro. Procuram, também, acrescentar novas perspectivas ao diálogo que vem se desdobrando com relação a esse assunto nas instituições de ensino superior do Brasil nos últimos vinte anos. Agora, com esta obra, pretendemos acrescentar mais uma dimensão à temática linguístico-literária acima referenciada. Explorando aspectos dessa problemática que extrapolam os limites
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do modelo crítico-filológico usado nas duas publicações anteriores, neste livro aplicamos uma ótica bem mais ampla. Enfocamos, especificamente, o estudo dos vários paradigmas filosóficos e epistemológicos que contribuíram para delinear e dar forma à teoria e à crítica literária nos nossos dias, em suas diversas manifestações. Assim, trazemos ao mercado acadêmico brasileiro a presente coletânea de artigos cujo eixo em comum é a teoria literária contemporânea. Porém, esta obra vai bem mais além de uma mera enumeração histórica das diferentes e mais relevantes formas de abordagem literária das últimas décadas. Trata, de maneira abrangente, dos aspectos mais expressivos da teoria e crítica literárias que atualmente ocupam o primeiro plano nas atividades de pesquisa acadêmica ou que estão sendo discutidos e problematizados nos
pelo organizador deste livro e que está em funcionamento desde abril de 2012. Com a merecida e oportuna ascensão do Brasil no cenário mundial nos últimos anos, essa instituição norte-americana, onde até recentemente eu lecionava (desde agosto de 2014 aceitei o posto como Decano da Escola de Artes & Humanidades na State University of New York York College at Oneonta), tem se empenhado em estabelecer laços e programas de intercâmbio com universidades brasileiras. Esta obra é, portanto, uma confirmação desse empenho e, também, esperamos, um prenúncio alvissareiro de outros possíveis projetos num futuro próximo entre instituições de ensino superior americanas e brasileiras. O livro é dividido em três partes. A primeira parte consiste de reflexões abrangentes sobre a literatura e a teoria literária, como é
círculos literários nos Estados Unidos, na Europa e principalmente no Brasil. Como já frisamos, o tema principal do livro é a teoria literária, porém abordada e problematizada do ponto de vista específico brasileiro, levando em conta, sobretudo, a maneira como, em suas raízes e desenvolvimentos, foi recebida e adaptada em território nacional. Com o intuito de proporcionar uma visão ao mesmo tempo panorâmica e circunstanciada, este livro reúne artigos sobre as várias vertentes da teoria e crítica literárias dos nossos dias. Serve, por um lado, como uma apresentação do espectro teórico contemporâneo — mesmo que de nível relativamente avançado, direcionada aos alunos de pós-graduação brasileiros — e, por outro, como uma reflexão mais detalhada e profunda dos principais temas abordados e problematizados por cada uma dessas formas de pensamento e perspectivas teóricas. A presente coletânea é, também, resultado do programa de cooperação internacional entre a Southern Illinois University Edwardsville e a Universidade Federal de Pernambuco, estabelecido
o caso dos três primeiros capítulos da coletânea: “O que é e o que não é literatura?”, de Anco Márcio Tenório Vieira; “A teoria literária: desprestigiada e imprescindível”, de Lourival Holanda; e “Crítica literária: seu percurso e seu papel na atualidade”, de Roberto Acízelo de Souza. A segunda parte do livro, a mais ampla e substancial da obra, examina mais detidamente as perspectivas críticas que delinearam e deram forma à teoria literária contemporânea. Esta parte contém 14 capítulos e fornece uma visão ao mesmo tempo global e detalhada, que abrange desde os mais expressivos desdobramentos literários do final do século XVIII — afinal de contas, somos filhos e filhas intelectuais do Romantismo de Jena (“Jenaer ( “Jenaer Romantik” ) e de suas figuras exponenciais: Schlegel, Schelling, Novalis — às formas de pensamento mais relevantes da atualidade, tais como a desconstrução de Jacques Derrida. Aqui alcançamos uma reflexão ponderável a respeito dos fundamentos estéticos, filosóficos e históricos que subjazem os diversos veios em que se ramifica a teoria literária na contemporaneidade.
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A terceira parte do livro consta do capítulo “Futuros (im)possí veis da (in)disciplina teoria da literatura” literatura”, de André Montei Monteiro, ro, onde o colega da Universidade Federal de Juiz de Fora discute o futuro da teoria literária, principalmente no contexto da academia brasileira. A questão do futuro da teoria literária também é abordada por Roberto Acízelo de Souza no terceiro capítulo deste livro, no qual o crítico da Universidade Universid ade do Estado do Rio de Janeiro assinala que:
“Não se trata de falar do futuro, mas de deixar falar um futuro. Deixar um futuro ser. Criar dispositivos, não para prendê-lo, prevê-lo em seus possíveis já pensados. De outro modo, entregar um futuro à graça e ao mistério de seu próprio futurar. [...] Os futuros (im)possíveis e (in)disciplinados das literaturas e da teorias da literatura serão sempre os mais contemporâneos de uma época. Os mais contemporâneos de uma época são justamente os mais extemporâneos de toda e qualquer época. Não
“Numa época como a nossa, que levou a desarticulação de valores
porque fogem à época, mas porque dela incorporam e assumem
— e não só artísticos, naturalmente — a extremos sem preceden-
o que qualquer “retrato de época”, ou pensável “estilo de época”,
tes, talvez nunca se tenha precisado tanto de crítica. Não, é claro,
seria incapaz de revelar. revelar.
da crítica como sensacionalização de banalidades, conforme se vê nas manifestações desinibidas do jornalismo cultural. Tampouco
[...]
de uma crítica acadêmica dada à absolutização dos seus axio-
É preciso aprender a fazer com que os futuros (im)possíveis do
mas, segundo os desvios verificados no âmbito dos dois grandes
viver não se envergonhem em nós, não desistam de nós, não
modernos sistemas de conceitos sobre a literatura e seu estudo,
morram em nós. Ou, ainda, nos façam sucumbir de vez, virar
a crítica literária e a teoria da literatura. Menos ainda — por sua
farrapo, virar molécula diante da enorme onda de sua grandeza.
tática de substituir a reflexão por um apelo fácil ao sentimento
A vida nos exige uma (in)disciplina de guerra. Não a guerra
de repúdio às injustiças — de uma crítica culturalista, dada ao
do ressentimento, mas a guerra do esquecimento. Não adianta
contrassenso de pregar o absolutismo ético e praticar o relativis-
brigar com a vida. É preciso ir com ela e esquecê-la. Esquecer
mo estético, no seu afã programático de revisar ou desconstruir o
para lembrar o que ainda não é. Esquecer como a criança que
cânone. Em vez disso, precisamos de uma crítica fundamentada
surfa esquece o caldo da última onda para pegar uma onda nova.
numa teoria consistente, prevenida contra a transformação de
Esquecer para não esquecer, como não esquecia Nietzsche, do
dados em axiomas, e que seja capaz de integrar compromisso
lema de Píndaro que ele tanto amava: “torna-te aquilo que és”.
com o presente e reflexão do passado. Quanto ao futuro, a Deus
E o que és, o que é, o que somos senão o próprio “tornar”? Ou
pertence.”
melhor: um próprio e sempre único tornar-se povoado pelo eterno tornar-se da vida. O que distingue uma disciplina forte de
André Monteiro oferece uma visão ligeiramente diferenciada, porém, ao mesmo tempo, complementária à postura de Roberto Acízelo no que diz respeito aos possíveis futuros da teoria literária no Brasil. O colega de Juiz de Fora argumenta que:
outra disciplina forte (assim como uma pessoa de outra pessoa, uma música de outra música, uma teoria de outra teoria, uma literatura de outra literatura...) é a singularidade de seu próprio e necessário tornar-se...”
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Além dos colaboradores acima citados, o nosso projeto teve a honra de contar com a participação de professores e críticos literários de projeção significativa no ambiente acadêmico brasileiro e internacional. Esses colaboradores contribuíram com os seguintes capítulos: “Reflexividade, Romantismo e Modernismo” e “A literatura e o pensar: notas sobre a trajetória intelectual de Jonathan Culler” (Sueli Cavendish, Universidade Federal de Pernambuco); “Fenomenologia e Hermenêutica: impactos sobre os estudos literários” (Maria da Glória Bordini, Universidade Federal do Rio Grande do Sul); “A Nova Crítica” (José de Paiva dos Santos, Universidade Federal de Minas Gerais); “Estruturalismo e Semiótica” (Regina Lúcia de Faria, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro); “Literatura e psicanálise: confrontos” confrontos” (Adélia Bezerra de Meneses, Universidade de São
nomes de maior destaque no atual firmamento das letras no Brasil, por ter uma ampla bagagem de treinamento formal e experiência com a teoria e crítica cr ítica literárias — possui mestrado em teoria literária pela PUC-Rio Grande do Sul, tendo atuado como professora, consultora literária, tradutora, revisora e assessora de imprensa — Cíntia é singularmente qualificada para aquilatar o valor e a utilidade deste projeto. Autora do Reino das Cebolas Cebolas (1996), Duas iguais iguais (1998), Anotações Anotaç ões durant durantee o incêndio incêndio (2000) e Arqu e Arquitetur iteturaa do arco-íris arco-íris (2004), (2004), entre outros contos e romances, a nossa apresentadora dá ênfase em muitas de suas obras à ótica judaica e feminina, fecundas perspectivas de alteridade que também figuram proeminentemente em vários capítulos capítulos do nosso livro, como os que trata tratam m do feminismo, da psicanálise e das obras de Jacques Derrida e de Walter Benjamin. A
Paulo/Universidade Paulo/U niversidade Estadual de Campinas); “Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte?” (Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos, Universidade Federal da Paraíba); “Marxismo” (Edu Teruki Otsuka, Universidade de São Paulo); “Feminismo e literatura: apontamentos apontam entos sobre crítica feminista feminista”” (Cecil (Ce cil Jeanine Albert Zinani, Universidade de Caxias do Sul); “Formalismo russo: uma revisão e uma atualização” (Aurora Fornoni Bernardini, Universidade de São Paulo); “Walter Benjamin e sua teoria crítica” (Márcio SeligmannSilva, Unicamp); “Uma literatura pensante: as desconstruções e o pensamento de Derrida” (Evando Nascimento, Universidade Federal de Juiz de Fora); “Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial e ecocrítica” (Roland Walter, Universidade Federal de Pernambuco); Pernambu co); e “V “Vozes ozes autóctones das Américas: o discurso contracanônico da crítica indígena” (Eloína Prati dos Santos, Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Gostaria de agradecer à escritora, jornalista e crítica literária, Professora Cíntia Moscovich, que muito gentilmente aceitou o nosso convite para fazer a apresentação deste livro. Além de ser um dos
presença de Cíntia Moscovich neste livro é particularmente relevante para o nosso projeto pelo fato de ela poder oferecer aos nossos leitores uma perspectiva única e privilegiada, que advém de sua formação híbrida: por um lado, como autora e produtora de ficção literária e, por outro, como cuidadosa leitora e crítica da produção literária. Tivemos uma experiência similar em 2007 quando da publicação do nosso livro A América Hispânica no imaginário literário brasileiro / Brasil en el imaginario literario hispanoamericano, quando o escritor Moacyr Scliar nos honrou com sua presença ao fazer a apresentação do mesmo. Nessa ocasião, já havíamos assinalado que, como todo escritor ou crítico literário em erra Brasilis bem Brasilis bem sabe, é imprescindível para um projeto como o nosso contar com esse tipo de apoio e incentivo para poder se tornar realidade. Infelizmente, muitas vezes, isso não acontece no nosso país, quer seja por parte das agências oficiais, dos órgãos de fomento, ou até mesmo dos nossos pares na academia. Portanto, nesse contexto, a simpatia e boa vontade de Cíntia se tornam ainda mais notáveis, fato que muito sensibilizou a mim e aos outros colaboradores deste livro.
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Gostaria, também, de registrar o meu carinhoso agradecimento à Professora Maria José de Matos Luna, ex-Diretora da Editora da Universidade Federal de Pernambuco. Esta excelente profissional muito generosamente forneceu todo o apoio ao nosso trabalho, colocando à nossa disposição o aparato da EdUFPE, que ela dirigia, assim como a sua ampla experiência como editora. Tudo isso permitiu a realização e finalização exitosa do projeto segundo os objetivos com que foi concebido. Termino este prefácio com a lembrança de uma pessoa muito estimada de todos nós, atuais ou ex-professores de letras da Universidade Federal de Pernambuco. Da última vez que publiquei um livro pela Editora UFPE, em 2007, o meu agradecimento foi direcionado, também, à Professora Gilda Lins, que então dirigia essa casa editorial. Hoje, só posso repetir o meu agradecimento à nossa “pequena notável” de maneira póstuma. E é assim, portanto, com uma lembrança querida e duradoura de uma pessoa que tanto contribuiu para o Departamento de Letras, o Centro de Artes e Comunicação, a Editora Universitária e a Universidade Federal de Pernambuco, que dedico a presente obra à minha conterrânea do Recife e de Bom B om Jardim, Professora Gilda Maria Lins de Araújo.
Prof. Dr. João Sedycias Professor Titular de Espanhol & Português e Decano Fundador da Escola de Artes & Humanidades Tenured Full Professor of Spanish & Portuguese and Founding Dean of the School of Arts & Humanities State University of New York College at Oneonta 111 Schumacher Hall, SUNY Oneonta Oneonta, New York 13820, USA E-mail:
[email protected]
Capítulo 1
O que é e o que não é literatura?* A M T V Universidade Federal de Pernambuco
La letteratura è sempre — dico sempre! — finzione, di qualsiasi cosa parli. Può parlare di filatori di seta del Seicento, di pastori innamorati di nine, di pescatori siciliani o di piccoli piccoli principi che coltivano rose sul loro pianeta: non importa, è sempre invenzione! Sublime, utilissima e bellissima invenzione, abbricata per dire dire la verità, ma per dirla parlando d’altro, deviando, depistando: parola indireta.** Ludovico Ariosto (1474-1533)
notas iniciais *
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Retomamos neste ensaio algumas breves consideraç ões que desenvolvemo s em VIEIRA (2011:10-13; 2012:55-76). “A literatura é sempre sempre – eu digo sempre! sempre! – cção, indiferente do que você fale. fale. Você pode falar sobre adores de seda dos seiscentos, de pastores enamorados de ninfas, de pescadores sicilianos ou de pequenos príncipes que cultivam rosas nas terras do sul: não importa, é sempre invenção! Sublime, utilíssima e belíssima invenção, fabricada para dizer a verdade, mas para colocá-la falando de outra coisa, desviando, despistando: discurso indireto”.
Foi no Institvtio Oratória, Oratória, de Marcus Fabius Quintilianus (30-95 d.C.), que a palavra “literatura” “literatura” (“Conferimos, pois, a qualquer profissão o seu território próprio: a gramática, que em latim equivale o sentido de literatura...”)1 apareceu pela primeira vez no mundo latino e, por decorrência, no Ocidente e no mundo ocidentalizado. Litteraturam, palavra que tem em littĕra a sua raiz semântica (em latim, letra, substantivo feminino), não designava, em princípio, somente o conjunto dos gêneros ficcionais ou miméticos e, sim, nascia como o equivalente latino para a pa lavra grega Grammatikós (Gramática), que tinha o sentido, para Platão e Aristóteles, de “ciência das letras” (gramma, em grego, é letra). 2 No caso, a arte de saber ler e escrever, já que no mundo antigo ler e escrever eram competências distintas; do mesmo modo que saber ler não significava, necessariamente, uma pessoa educada, muito menos culta. Como “ciência das letras”, Quintiliano dividia a Gramática (a primeira das sete artes liberais)3 em duas partes: na “Arte de falar 1
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“Nos suum cuique professioni professioni modum demus: demus: et grammatice, grammatice, quam in Latinum transferentes litteraturam uocauerunt...” (QUINTILIANO. Institvtio Oratória. In: http://pt.scribd.com/doc/129709086/ QVINTILIANI-INSTITVTIO-ORATORIA-LIBE QVINTILIANI-INSTITV TIO-ORATORIA-LIBER-SECVNDVS R-SECVNDVS-docx). -docx). (CURTIUS 1996:78) Na Idade Média, A Gramática, a Retórica e a Dialética (Lógica) (Lógica) formavam o Trivium. A Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia constituiam o Quadrivium.
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Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
corretamente” e na “de narrar os poetas”. 4 Na primeira, temos o instrumental para se conhecer e se fazer o uso correto da língua (neste caso, a Gramática alargava os limites da Retórica); na segunda, o meio para explicar as obras dos poetas e, principalmente, como uma
mesmo sistema, as tragédias de Sêneca e as demais obras ficcionais, distantes no tempo e no espaço, como Édipo rei, Ilíada, A Divina comédia, Orlando Furioso, Dom Quixote, Os Lusíadas, Memórias póstumas de Brás Cubas, Histórias extraordinárias, extraordinárias, A Invenção Invenção de
ciência exegética, a ferramenta para interpretar os demais fenômenos da Natureza.5 Assim, “litteratus” “litteratus” , como nos ensina Ernst Robert Curtius,6 “é o conhecedor da gramática e da poesia, [mas] não necessariamente um escritor”; ou, como nota Eric A. Havelock, é “[...] ’o homem de letras’, ou seja, um leitor de letras, [...] o seu oposto, illiteratus,, um homem sem nenhuma cu ltura letrada”. illiteratus letrada”.7 Desse modo, litteratus é litteratus é aquele que conhece as letras, as regras da Gramática ou explica as obras dos poetas, e litteraturam é a produção intelectual litteraturam é do homem de letras. Ao designar toda e qualquer produção intelectual que tinha a palavra como o seu meio de expressão, o termo litteraturam designava, teraturam designava, inicialmente, todos os gêneros textuais (afinal, para escrever, era preciso dominar o “uso correto da língua língua”). ”). Logo, ao enunciar a palavra “literatura”, fazia-se necessário complementá-la: “literatura de quê?”. “Literatura filosófica”, “literatura política”, “literatura matemática” matemática” ou “literatura de ficção?” ficção?”.. Ora, o que particulariza a literatura ficcional dos demais gêneros textuais que eram tomados como litteraturam litteraturam apenas pelo
Oreu e A Pedra do Reino? Reino ? O que há em comum (ou não) entre essas obras ficcionais e outras não ficcionais, a exemplo dos Sermões Sermões,, do Padre Antônio Vieira, e Os Sertões, Sertões, de Euclides da Cunha, para que elas compartilhem os compêndios da história da literatura? Como distinguir conceitualmente os gêneros que Aristóteles chamava de “poesia imitativa” (lírico, dramático e narrativo) e a teologia cristã (seja ela patrista, agostiniana ou tomista) passou a designar como a literatura dos poetas (a que se vale da allegoria in verbis, alegoria verbal, considerada distinta das alegorias comunicadas por Deus, a allegoria in actis, alegoria factual)8 dos demais gêneros textuais, sem que tal conceito termine, por falta de rigor teórico, transbordando ou se aplicando também às demais formas de discurso (no caso, confundindo as duas partes da Gramática que Quintiliano fez questão de distinguir, isto é, todo poeta para ser chamado como tal precisa, antes de tudo, conhecer e fazer “uso correto da língua”, língua”, mas nem todo aquele que usa “corretamente” “corretamente” a língua po de ser chamado de poeta)? Por que muitas definições de literatura não conseguem
“uso correto da língua” (“recte loquendi scientiam”)? Por que um autor como Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), que transitou por vários gêneros textuais, a exemplo da tragédia e da filosofia, fi losofia, tinha a sua produção dramática designada como “literatura de ficção” e aquela que se voltava para o “amor à sabedoria”, como “literatura filosófica”? Que conjunto conjunto de regras e procedimentos encerra, em um
dar conta do fenômeno literário em sua totalidade: quando cobrem um dado gênero, deixam outros descobertos? Por que a poesia era vista pelos teólogos, a exemplo de Santo Agostinho (354(354-430), 430), em A Cidade de Deus Deus,, como uma criação humana cuja ciência faltava com a “verdade”? Por que Agostinho denomina os poetas de criadores de “fábulas mentirosas” (mendacissimis (mendacissimis abulis), abulis), falsas ( asum), asum), 9 torpes (turpe (turpe)) e indignas (indignum ( indignum)? )? Ou mesmo Tomás de Aquino
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“recte loquendi loquendi scientiam scientiam et poetarum enarrationem” (QUITILIANO op. cit.) (Ver GORDON 2012:10) (CURTIUS 1996:78) (HAVELOCK 1996:47)
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(Ver SANTO AGOSTINHO 1991) (SANTO AGOSTINHO AGOSTINHO 2009:241-242). 2009:241-242). Nos valemos também também da da edição em latim da obra agostiniana: SANCTI AURELLI AUGUSTINI (1877).
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(1224?-1277), o Doutor Angélico, que defende, a partir de uma leitura da Metaísica da Metaísica,, de Aristóteles10, que “A ciência da poesia refere-se a coisas que, dada sua falta de verdade [...], não podem ser compreendidas pela razão; convém seduzir a razão por meio de algumas analogias?”11 Eis algumas perguntas que ainda precisam de respostas pertinentes. Afinal, diante de tantos desencontros conceituais, parece que explicar conceitualmente, hoje, a literatura tornou-se quase que o mesmo que tentar definir o conceito de tempo: “Se ninguém me perguntar [o que é o tempo], eu sei; se quiser explicá-lo a quem fizer a pergunta, já não sei” 12, dizia Santo Agostinho, em suas Confissões.. Aparentemente todos nós, nos dias que correm, sabemos Confissões o que é literatura e quais gêneros ela encerra (ninguém, salvo os ingênuos, se dirige para o setor das ciências exatas, biológicas ou jurídicas quando precisa encontrar um romance ou um livro de contos ou de poesia em uma livraria ou biblioteca), mas, de algum modo, sentimos dificuldades em explicá-la conceitualmente. Se não temos dúvidas quanto ao estatuto literário de alguns gêneros textuais, já que eles são trans-históricos e se calçam em cima da ficcionalidade (como o romance, a epopeia, o conto, a novela, a poesia e suas formas fixas), formando uma só família, ficamos sempre hesitantes em acatar ou mesmo explicar por que certos gêneros não ficcionais são estudados nas histórias da literatura — a exemplo da crônica, do sermão, dos textos bíblicos, das cartas, de algumas obras filosóficas, etc. — quando eles também participam (ou são rebentos) de outras áreas do conhecimento humano. No caso, o jornalismo, a teologia, a filosofia etc. Toda essa dúvida fica mais acentuada quando essa reflexão se dá em um país um tanto que avesso à reflexão teórica, 10 11 12
Aristóteles observa na Metafísica (983ª, 3-4) que um provérbio grego dizia que “[...] os poetas dizem muitas mentiras [...]” (ARISTÓTELES 2005:13). (Apud CURTIUS 1996:279) (SANTO AGOSTINHO 1988:278)
Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
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que aposta na ideia de que um texto é literatura porque foi convencionado como tal ou se aprendeu dessa forma na escola (ou na vida) e assim é, ou deve ser, se lhe parece. Afinal, como nota Luiz Costa Lima, “quando uma comunidade não tem a prática da discussão, o uso da linguagem crítica sempre lhe parece ameaçador” ameaçador”..13 Vamos ao desafio. II
Em ensaio publicado em 1971, Richard Ohmann observa, recorrendo à teoria dos atos de fala (speech ( speech acts) acts)14, de J. L. Austin, que o problema dos conceitos sobre literatura é que ora eles se centram no texto em si (“sua referência, sua verdade e seu significado”) 15, os chamados atos locutivos, ora em seus efeitos, os atos perlocuti vos. Ainda dentro desse corte epistemológico, Ohmann nota que as definições sobre literatura estão encerradas em seis proposições correntes. A saber: 1º Em uma obra literária, particularmente na poesia, as palavras não se referem tais como elas se referem em outras formas de discurso; 2º O que define a literatura é o modo como são expressas as asserções. Assim, há os que defendem que a literatura é uma rede de mentiras (sendo a falsidade a sua marca distintiva) e há os que asseguram que “o poeta não afirma nada”; logo, uma 13 14 14
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(LIMA 1981:193) Os atos de de fala são classicados em três categorias. categorias. Locutivos ou locucionários são os enunciados que, tanto gramaticalmente gramaticalmente quanto fonologicamente, e dentro de certo código linguístico, são reconhecíveis pelo interlocutor/ouvinte. Perlocutivos ou perlocucionários são os atos em que o autor do enunciado espera do seu interlocutor/ouvinte alguma reação, isto é, são atos em que o enunciador tem pouco controle, ou um controle limitado, sobre as consequências dos seus enunciados. Ilocutivos ou ilocucionários são os atos de asserção: perguntar, dar ordens, agradecer agradecer etc. Ao denir os atos de fala, dentro de certas convenções e circunstâncias, eu estou realizando um ato de asserção. Ainda sobre os atos de fala, ver OHMANN (1990:85-102) (OHMANN 1987:24; 1971:1-19)
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Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
obra literária “não pode se justificar por critérios de verdade”, suas proposições são apenas pseudoproposições, “despojadas de alguma maneira de seu poder assertivo”; 16 3º O discurso literário se caracteriza pelo seu caráter e o significado implícito das palavras; 4º Na
textuais encerram significados implícitos, a exemplo das notas diplomáticas, dos anúncios publicitários e das cartas dos enamorados22; 4º “Todo discurso produz seu impacto nas emoções do leitor e ouvintes, e alguns discursos não literários possuem, provavelmente,
literatura, os escritores usam as palavras buscando despertar e ordenar sentimentos emotivos no leitor, diverso do que ocorre nas obras discursivas ou científicas, “[...] que se dirigem primordialmente às crenças do leitor”17; 5º dentro da comunicação verbal, que encerra seis categorias (remetente, destinatário, contexto, contacto, código e mensagem), a função poética da linguagem se dá no “enfoque da mensagem por ela própria [...]” 18; 6º “Todo discurso está estruturado de acordo com a gramática da língua em que está escrita ou é falada. As obras literárias revelam, com frequência, estruturas excessivamente alijadas das exigidas pela gramática; a métrica e a rima são claros exemplos”19. Para Ohmann, todos esses conceitos são antes um relatório (re( re porting ) sobre o uso genérico da palavra literatura do que uma definição que proporcione um “discernimento” ou uma “penetração” (insight ) da sua natureza20. Assim, buscando definir a natureza da literatura, Ohmann, de maneira sucinta, expõe as suas objeções aos conceitos recolhidos acima: 1º não há como distinguir entre o modo
maior carga emotiva do que qualquer [outro] discurso literário” 23; 5º “[...] uma obra literária tende a atrair as diversas atenções [do leitor] porque leitor] porque ele ele sabe que [se trata de] uma obra literária, em lugar de provar que é uma obra literária por atrair um tipo de atenção adequada”24; 6º “[...] apesar da importância que têm para a literatura a repetição, a variação e os padrões de todo tipo, estes traços não delimitam a classe de discursos a que queremos chamar ‘literatura’, já que existem muitas conexões conexões tanto voluntárias voluntárias como inadvertidas 25 em todo discurso” discurs o” . Apesar de concordarmos com as objeções de Ohmann, acreditamos, no entanto, que as insuficiências conceituais aqui elencadas residem no fato da “natureza” “natureza” da literatura só poder ser apreensível se considerarmos o fenômeno literário (assim como qualquer outro modo formal do conhecimento humano) como um todo sistêmico. Temos que apreender as particularidades do texto, a intenção de quem o produz e, como parte dessa intenção, a recepção de quem o lê. Mesmo sabendo que, isoladamente, cada um desses aspectos
como as palavras se referem em literatura e o modo como elas se referem em outras formas de discurso, pois, em ambas as situações, as palavras são usadas nos dois sentidos: conotativo e denotativo 21; 2º falsas proposições podem ser encontradas tanto em uma obra literária quanto em outras formas de discurso; 3º todos os gêneros
sejam variáveis conceituais, em conjunto conjunto,, eles parecem se constituir (e é o que tentaremos demonstrar) em uma invariável. Partindo dessa premissa, perseguiremos quatro tópicos que, em conjunto, poderão melhor definir o que constitui, de fato, um texto literário: 1. A imitação e a ficcionalidade do texto (compondo a unidade dos gêneros literários) e, como parte dessa ficcionalidade, a recep ção de
16 17 18 19 20 21
(OHMANN 1987:17) (OHMANN 1987:19) (JAKOBSON 1991:127-128. Apud OHMANN 1987:20) (OHMANN 1987:21) (OHMANN 1987:11) (OHMANN 1987:15-16)
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(OHMANN 1987:18) (OHMANN 1987:19) (OHMANN 1987:20) (OHMANN 1987:21)
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Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
quem o lê perfazendo o pacto ficcional; 2. A intencionalidade do autor (o estatuto histórico-temporal da obra e, por desdobramento, as marcações dadas pelo autor empírico e que delineiam a sua recepção); 3. A verdade e a realidade textuais (o caráter imanente do texto); 4. Os significados e significações do texto (sua condição artística e trans-histórica). Vamos Vamos por etapas. III A Imitação e a Ficcionalidade do Texto
Na Na Metaísica Metaísica,, Aristóteles afirma que todo conhecimento racional ou era “[...] prático, ou produtivo, ou teorético [...]” 26. O domínio das ciências “produtivas” era o “fazer”; o das ciências “práticas”, “práticas”, o “agir”; e o das ciências “teóricas”, a natureza. Esta, no caso, compreendia a física, a matemática e a teologia; as ciências “práticas” encerravam, por exemplo, a ética e a política; e as “ciências produ produtivas” tivas” aa poiética poiética,, as artes. No entanto, são as ciências teoréticas que Aristóteles considerava como as mais excelentes entre as demais ciências e, dentre elas, a teologia como a mais excelente de todas.27 Observe-se, no entanto, que há uma diferenciação entre o “agir” e o “fazer”. Em a Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue [...] o que é produtível e o que é realizável pela ação. A produção é diferente da ação [... ]. Assim, a disposição prática conformada por um princípio racional é diferente da disposição produtora conformada por um princípio racional. Assim, nenhuma das duas é envolvida pela outra, porque nem a ação é produção nem a produção é ação.28 26 27 28
(ARISTÓTELES 2005:271, 1025b, 25-26) (ARISTÓTELES 2005:513, 1064b, 1-5) (ARISTÓTELES 2009:132, 1140ª, 1-6)
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No caso específico das “ciências poiéticas” “ciências poiéticas” ou “ciências produprodutivas” , objeto aqui do nosso estudo, Aristóteles assinala que “[...] o princípio do movimento se encontra no artífice [o poeta] e não na coisa produzida, e esse princípio consiste ou numa arte ou nalguma outra potência”. potência”. O mesmo princípio ocorre na “ciência prática”: “[...] o movimento não reside no que é objeto de ação, mas nos agentes”.29 Em outras palavras: “[...] o princípio das produções está naquele que produz, seja no intelecto, na arte ou noutra faculdade; e o princípio das ações práticas está no agente, isto é, na volição, enquanto coincidem os objetos da ação prática e da volição” 30. Dentro desse preceito, a tékhne tékhne (τέχνη, arte) é um ofício dirigido antes ao fazer (a produção) — no caso, à arte poética ( poietiké poietiké tékhne, ποιητική τέχνη) — do que à ação ( praktiké, ( praktiké, πρακτική), ao agir. Daí a contraposição entre as artes que imitam a natureza (a arte poética)31 e as que complementam a natureza (a que nasce da experiência). A experiência — a arte do artesão, do pedreiro... — é pragmática, em geral repetitiva e mecânica, requer uma habilidade e um conhecimento técnicos adquiridos pela prática, não indo além do conhecimento do “quê” “quê”, do “dado de fato”, fato”, e busca integrar a natureza. As artes imitativas, em contraposição, se dirigem ou se aproximam do conhecimento do porquê porquê,, se constituindo, desse modo, em uma forma de conhecimento ou de saber, “[...] um saber que não é fim em si mesmo nem sequer um conhecimento buscado em vista da ação moral (como a política e a ética), mas antes em prol do objeto produzido”32. 29 (ARISTÓTELES 2005:511, 1064ª, 11-14) 30 (ARISTÓTELES 2005:270-271, 1025b, 22-25) 31 Em Física, Aristóteles (2009:47, II, 194ª, 21) arma que “[...] a técnica [arte] imita a natureza [...]”. Para Lucas Angioni (2009:237), o argumento de Aristóteles é que “[...] a técnica imita a natureza, isto é, técnica e natureza obedecem a padrões similares, de tal modo que o conhecimento técnico serve de modelo adequado para conceber o conhecimento da natureza”. 32 (REALE 2001:107)
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Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
Investigando as causas e os princípios da Poiética Poiética,, Aristóteles irá discorrer sobre quais são os objetos de conhecimento dessa ciência. O propósito do seu estudo não é somente se ater com vagar sobre as estruturas33 e os procedimentos formais dos gêneros trágicos
e o “modo” também seriam observáveis (daí serem variáveis) nos demais gêneros textuais. Afinal, não são apenas as poesias imitativas que lançam mão do mito, do maravilhoso, da elocução, dos procedimentos retóricos, do pensamento, do caráter, do reconhecimento,
e épicos, mas, e principalmente, buscar “[...] a essência que é própria do gênero de coisas [...]” de que se ocupa 34. Para tal perquirição, o conceito de imitação (mímesis ( mímesis,, μίμησις μίμησις)) se mostra central em sua “ciência poética”. Enunciando que a poesia é imitação, Aristóteles define os seus aspectos segundo o “meio” “meio” (critério formal: o uso do ritmo, do canto e do metro como fatores de diferenciação entre os poemas), o “objeto” (critério temático: a mimetização da ação dos homens segundo a sua índole elevada ou baixa) e o “modo” (princípio enunciativo, a maneira como se efetua a imitação: na primeira, na segunda ou na terceira pessoas).35 Mas o que é inerente à natureza do fato artístico está delimitado nos “primeiro” e “nono” capítulos da Poética Poética.. A necessidade de tal delimitação parece decorrer de uma constatação implícita: as classificações da imitação segundo o “meio”, o “objeto”
da peripécia, da catástrofe... Em O Banquete, Banquete, por exemplo, Platão se vale de um “modo” enunciativo na segunda pessoa (a obra, por se valer do método dialético, é constituída por diálogos entre Sócrates e os seus interlocutores) e tem como “objeto” um tema superior: Eros e o Amor ao Bem. Assim, delimitando o que é inerente à natureza do fato artístico, Aristóteles defende que não é a versificação que define os gêneros miméticos, pois
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Lubomír Dolezel nota nota que há na “[...] ..] mereologia aristotélica aristotélica uma associação associação duradoura entre a poética e o ‘modelo orgânico’; a poética teórica será fortemente inuenciada pelas analogias entre as estruturas da poesia e as estruturas da nana tureza viva”. Citando Abraham Edel em nota de rodapé, ele assinala: “’as partes [da tragédia] são tratadas quase da mesma maneira como são tratados, nas obras de biologia, os órgãos ou partes dos animais, tendo em conta o desempenho das suas funções em relação ao organismo como um todo’”. (DOLEZEL 1990:43). (ARISTÓTELES 2005:511, 1064ª, 5-6) (ARISTÓTELES 1994:103-106, 1994:103-106, 1447ª-1448b). 1447ª-1448b). Lubomír Lubomír Dolezel acrescenta à tríade tríade um quarto aspecto: a “função”. Embora reconheça que a “função” não conste da classicação inicial da Poética, ele nota que “noutro contexto, a função é exexplicitamente referida e caracterizada como ‘o prazer que se retira das obras de imitação (1448b). A inclusão da ‘função’ no modelo das artes miméticas explica o aparecimento do ‘item catarse’ na denição da tragédia [...]. Caso contrário, a introdução da ‘catarse’ aparece como uma anomalia no procedimento derivativo de Aristóteles [...]”. DOLEZEL (1990:39, nota 2). Para o nosso presente estudo, recorremos também às seguintes edições da Poética: ARISTOTE (1980), (2002), ARISTÓTELES (2008), (1997) (2010).
[...] se alguém compuser em verso um tratado de Medicina ou Física, esse será vulgarmente chamado ‘poeta’; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e [o fisiólogo] Empédocles, a não ser a metrificação: aquele merece o nome de ‘poeta’, e este, o de ‘fisiólogo’, mais que o de poeta 36.
O que diferencia a obra do poeta da obra de Empédocles é que “[...] não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: segundo a verossimilhança e a necessidade” 37. Exemplificando mais uma vez a sua tese, ele toma dois gêneros textuais distintos — a Poesia e a História — e os seus “meios” de mimetizarem a realidade: [...] não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser História, se fossem 36 37
(ARISTÓTELES 1994:104, 1447b, 16-21) (ARISTÓTEL ES 1994:115, 1451ª, 36-39)
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em verso o que eram em prosa) — dierem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder ”. (grifo
nosso)38
A comparação, aqui, não se restringe apenas ao fato de que um (o historiador) diz “as coisas que sucederam, e outro [o poeta] as que poderiam suceder”, mas também porque a poesia, por tratar do que poderia acontecer, é mais filosófica e mais séria do que a História, já que o poeta se refere principalmente ao “universal” (kathólou, kathólou, καθολου), e o historiador ao “particular” ou “singular” (kath’hékaston, (kath’hékaston, κάϑ’έκαστov). κάϑ’έκαστov). No tratado Da interpretação, interpretação, Aristóteles define os conceitos de “universal” e “particular” nos seguintes termos: “[...] denomino de universal universal aquilo que naturalmente é predicado em muitas coisas, e de singular aquilo que não é, por exemplo: homem homem pertence às coisas universais e Cálias Cálias [famoso guerreiro grego] às singulares”39. A História, aqui, é predicado apenas de um dado “evento” “evento”, já a poesia, enquanto “conhecimento “conhecimento dos universais”,, de vários objetos 40. Ou como se lê na Metaísica universais” na Metaísica:: “[...] a substância [ousía, [ousía, Οὐσία, aquilo que é ] primeira de cada indivíduo é própria de cada um e não pertence a outros; o universal, ao contrário, é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por natureza, pertence a uma multiplicidade de coisas”. 41 Assim, o “Homem” é um “universal”; um “homem específico” (Cálias), um “particular”, um “singular”, pois este encerra “[...] aquilo que não é dito de um sujeito ou não está presente num sujeito [...]” 42. Em “comentário” à sua tradução da Poética Poética,, Eudoro de Sousa observa que o “universal” 38 39 40 41 42
(ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 39-40; 39-40; 1451b, 42-45) (ARISTÓTELES 2013:9-10) (Ver PETERS 1983:124) (ARISTÓTELES 2005:347, 1038b, 10-13) (PETERS 1983:180)
Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
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se dá nos gêneros miméticos pela “[...] coerência, [pela] íntima conexão dos fatos e das ações, [sendo] as próprias ações entre si ligadas por liames de verossimilhança e necessidade”43. Desse modo, são as espécies de poesia imitativas que se valem do Mito ( mýthos, μυθος) μυθος) (compreendido por Aristóteles como “[...] imitação de ações [...]” e como “[...] a composição dos atos [...]”) 44 as que melhor permitem ao poeta construir a “íntima “íntima conexão dos fatos e das ações”. Por ser Uno, por encerrar uma ação com princípio, meio e fim (como de vem ser a tragédia e a epopeia), o Mito não se s e imputa “[...] “[... ] a uma só pessoa [o “particular”] [...], pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as ações que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma ação una”45. Por perseguir essa ação Una é que o poeta não deve versificar todos os sucessos da vida de um Mito, mas mas somente os que 46 são necessários e verossímeis à ação . Dessa forma, a oposição entre História e poesia é, segundo Eudoro de Sousa, [...] entre o acontecido e disperso no tempo (História) e o acontecível, ligado por conexão causal (poesia). ‘Acontecido’ e ‘aconte-
cível’ são ambos verossímeis; mas só os acontecimentos ligados por conexão causal são necessários. [Assim,] [...] pelo lado da verossimilhança,, haveria um ponto de contato entre História e verossimilhança poesia; contudo, a poesia ultrapassa a História, na medida em que o âmbito do acontecível excede o do acontecido.47
43 44 45 46 47
(SOUSA 1994:170) (ARISTÓTELES 1994:111, 1450ª, 2-3) (ARISTÓTEL ES 1994:114, 1451ª, 16-18) (ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 22-29) (SOUSA 1994:170)
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Só o “acontecível” dá ao poeta a liberdade de não se ater a todos os eventos que constituem a trajetória de um Mito (suas particularidades), e se voltar apenas àqueles que são “ligados por conexão causal”.
os gregos tinham uma cultura anti-histórica, pois suas concepções cíclica e repetitiva da história não acatavam o presente como algo diverso do passado e do futuro e, por sua vez, o futuro como um evento que seria distinto do presente (os sofistas, p. ex., ex. , acreditavam
Como os poetas buscam o “universal” (uma espécie de arquétipo eterno) e não o “particular” (o “evento”), sua imitação “[...] incidirá num destes três objetos: [1º] coisas quais eram ou quais são, [2º] quais os outros dizem que são ou quais parecem, [3°] ou quais deveriam ser”48. Mesmo quando o poeta despreza o Mito e busca matéria em objetos distintos (fatos que ocorreram ou estão a ocorrer, fatos que a tradição oral diz que ocorreram ou parecem que ocorreram e fatos puramente criados pela imaginação do poeta), a exemplo das comédias, das tragédias que prescindiam do Mito, e da produção dos poetas ditirâmbicos ou líricos, ele, o poeta, deve se submeter ao que é inerente à natureza do fato artístico: representar o que poderia acontecer. Para se entender melhor os argumentos de Aristóteles, lembramos que é na oposição firmada, desde fins do século VI a.C., entre “Mito” e “Lógos” ( λόγος ( λόγος), ), que se calçou o antagonismo entre a História e os gêneros poéticos (particularmente a tragédia e a epopeia); entre o “acontecido” e o “acontecível”. “Lógos”, no senti-
na ideia de progresso técnico, mas não na de progresso moral), por que eles criaram a História? Para Jacques Le Goff, duas foram as motivações. A primeira, étnica. Era preciso se distinguir dos bárbaros. Neste caso, “a concepção de história está ligada à ideia de civilização”. A segunda, como arma política e memória das famílias nobres e dos sacerdotes dos templos 50. José Carlos Reis nota que o conceito grego de História desconhecia as ideias de “humanidade universal”, “progresso”, “evolução” ou mesmo a proposição de que a humanidade tinha um destino. Preocupações que só nasceriam com os historiadores latinos (a exemplo de Políbios) e cristãos. Para os gregos, a “sua história apenas ensinava, em relação ao futuro, a necessidade da memória, da prudência, da cautela, da resignação”51. Cultores de uma teoria dos ciclos da idade, os gregos (a exemplo de Heráclito) acreditavam que cada ciclo durava 18.000 anos — “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo”, afirmava Heráclito52. À Idade do Ouro, seguiriam as Idades de decadência e, na ordem cíclica, ao fim dessas Idades, ressurgiria a Idade do Ouro.
do de razão, racionalidade, ordem racional do cosmo e da beleza; “Mito””, como narrativa sobre matéria ilusória, fantasiosa, da ordem “Mito do irracional e do incognoscível. A História nasce e se constitui por negação do mítico. O historiador, diverso do poeta, é “aquele que vê”, que “procura saber”, “informar-se”, que investiga49. Mas se Aristóteles não acatava a História como matéria da filosofia, por tratar do particular e por não ser predicado de vários objetos; se
“Sob a ação do fogo, elemento fundamental, o mundo conhece, atra vés dos contrários em perpétuo fluxo de interação, fases alternadas de criação ( gênesis ( gênesis)) e de desintegração [consumação] (ekpýrosis ( ekpýrosis)) que se exprimem por uma alternância de períodos de guerra e de paz”53. Filhos do “Logos”, da razão, da racionalidade, da explicação natural, os historiadores gregos buscavam dar ao mundo um sentido
48 (ARISTÓTELES 1994:143, 1460b, 8-10) 49 (LE GOFF 1994:17)
50 51 52 53
(LE GOFF 1994:62) (REIS 2006:16) (HERÁCLITO 1991:87, frag. 103) (LE GOFF 1994:297)
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metafísico, tal como a ordem e a beleza imutáveis do universo. Ao compararem a História —“[...] o lugar sublunar da mudança, da desordem”54 — com o cosmo, os historiadores abstraíam a história e o tempo e buscavam estabelecer a ordem das coisas, a ordem que estaria na “substância” “substância” das mudanças. ““A A palavra ‘destruição ‘destruição’’ significava só ‘mudança’ e todas as idades voltariam a existir com as mesmas coisas e os mesmos homens” 55. Assim, as destruições advindas dos eventos históricos seriam apenas aparentes, pois elas encerravam uma ordem imutável. “A “A mudança não poderia poder ia levar ao ser, pois um ser que muda já não é. O ser-que-é é alheio à mudança, imutável, estável, permanente, sempre s empre presente”56. A “natureza humana” está subordinadas a ciclos (crescimento, decadência e morte), mas, aos olhos da razão grega, ela é imutável, pois as pulsões e as necessidades dos homens foram, são e serão sempre as mesmas, assim como a ordem existente no universo. O sentido de que a história tinha como fim trazer para a humanidade a felicidade inexistia para os gregos. Se existia uma felicidade a ser conquistada, esta era individual, proporcional aos feitos heroicos de cada um. Feitos que davam ao indivíduo o direito de ser lembrado pelos pósteros 57. Os gregos, nota José Carlos Reis, [...] não se perguntavam ‘o que fazer?’, questão que indica o futuro, mas ‘o que aconteceu?’, questão que aponta para o passado, que preferiam recente. Não se interessavam historicamente pelo futuro como ‘humanização’, nem pelo longínquo passado, que tratavam miticamente. Acreditavam que o futuro individual já estava dado e podia ser antevisto pelos oráculos. Os homens do 54 55 56 57
(REIS 2006:16). (LE GOFF 1994:298). (REIS 2006:17) (REIS 2006:16)
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futuro não seriam melhores do que os passados e os atuais. Os oráculos tinham o dom de ver a vida predestinada dos indivíduos que as musas lhe sopravam. Estas conheciam tudo: o passado e o futuro. Os eventos presentes e passados tinham as mesmas características. Heródoto só queria evitar o esquecimento das singularidades humanas. O significado dos eventos lhes era implícito e não os transcendia.58
Se a mudança implicava na ideia de que era possível alterar a imutabilidade da ordem cósmica, ideia desdenhada por historiadores e filósofos gregos, o Mito, que se inscrevia na ordem do irracional e do incognoscível (ordem “[...] incompatível com um pensamento que buscasse a verdade”59), encerrava tanto a “fortuna”, o “acaso” e a “contingência” quanto a “sorte-azar” e a “vicissitude”: as peripécias da riqueza para a pobreza, da vitória para a derrota, da escravidão para a liberdade e vice-versa 60. O Mito, distinto do evento histórico, podia ser tomado como objeto do “acontecível” sem que tal condição ferisse a verdade histórica ou filosófica, pois ele continha em si o acaso que os homens estão sujeitos ao longo da existência. Desse modo, esse caráter incognoscível do Mito permite que o poeta colha dele mais significados do que ele pode oferecer. É dessa forma que as Musas proclamavam “muitas falsidades, que se parecem com a verdade; mas também, quando queremos, proclamamos verdades” 61. Em outras palavras: se, para Tucídides, o destino de determinados eventos ou personagens é uma preconização dos oráculos e das interferências míticas, para os gêneros poéticos eles, os oráculos e as interferências míticas, ficam parede-meia entre a falsidade e a 58 59 60 61
(REIS 2006:17-18) (REIS 2006:17) (REIS 2006:17) (HESÍODO 2005:102)
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verdade: dentro do horizonte do “acontecível” “acontecível”.. Livrando-se dessa camisa de força imposta pela História, o Mito (como guardião da natureza inconsciente dos desejos e dos valores coletivos) pode encerrar o “predicado de vários objetos”. Assim, ao se ater ao even-
mas “pela imitação praticada” praticada”65. E é a “imitação praticada”, a mímesis mímesis enquanto lugar do “acontecível”, que é inerente à natureza do fato artístico, à essência da poietike da poietike tecné tecné . Se o conceito de mímesis mímesis será será também acolhido no mundo lati-
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to que marca “[...] a mutação dos sucessos no contrário” , isto é, aquele em que o Reconhecimento e a Peripécia provocam na vida do personagem “[...] a passagem do ignorar ao conhecer [...]” 63 e, por extensão, suscitam o terror e a piedade no leitor/expectador — a Catarse (kátharsis, Κάθαρσις), a purificação —, o poeta toma do Mito a moral universal que ele contém em si. Partindo do princípio de que cada ciência encerra “[...] a essência que é própria do gênero de coisas [...]” de que se ocupa, Aristóteles distingue não apenas a Arte Poética (ciência “produti va”) das ciências “teóricas” e “práticas” “práticas”, mas também da História, que por se valer também da narrativa — o “modo” —, não difere da produção do poeta por ser escrita em verso ou em prosa, mas por buscar narrar o “acontecido” e não o “acontecível”. É essa natureza específica da poietike da poietike tecné que que urde as diversas espécies de poesia imitativa numa só família: a que mimetiza a realidade empírica (a natureza humana e a vida) não como se ela fosse a “semelhança mais semelhante”64, mas pela sua recriação, por “representar o que pode-
no, não podemos esquecer que é naquele espaço literário que nasce uma nova designação para a arte dos poetas: atribuir aos gêneros miméticos um caráter de fingimento, de fingir fazer, de simular: o finger fingeree. Ora, fictio Ora, fictio (Ficção, ficción (Ficção, ficción,, fiktion fiktion,, finzione finzione,, fiction fiction)) deriva de finger de fingeree, mas também significa, no sentido próprio, “criação” e, no sentido figurado, “ação de fingir”. Se a palavra fictio palavra fictio (ficção) significa criar (e quem cria cria algo para), ela também encerra nesse criar o fingimento, o fingir fazer e o simular que provêm da sua raiz semântica ( fingere). fingere). De modo que a sua “ação de fingir” a distingue de outras formas de criação que estão submetidas aos conceitos e critérios de verdade/mentira. verdade/men tira. Afinal, Afinal, quem finge, finge, finge finge ppara ara alguém, alguém, o que implica implica que esse alguém tem que se inscrever nessa ação; ser parte dessa ação. No entanto, quais são as implicações da palavra finger palavra fingeree e da sua derivação fictio derivação fictio no no campo da criação literária? Onde este conceito difere ou complementa o de mímesis mímesis,, já que ele, no mundo latino, se aplica ao mesmo conjunto de gêneros que os gregos acatavam como miméticos: o lírico, o dramático e o épico? Vamos para o próximo tópico.
ria acontecer”. Não se é poeta “pelo metro usado”, diz Aristóteles, 62 (ARISTÓTELES 1994:118, 1452a, 22) 63 (ARISTÓTELES 1994:118, 1452a, 31) 64 Rero-me , aqui, à passagem em que Sósia, personagem da comédia Antrião, 64 de Plauto, depara-se com alguém que era a sua “semelhança mais semelhante”. semelhante”. Ante tal fato inusitado, ele observa: “Quando o examino e reconheço a minha gura, tal e qual eu sou — tenho-me visto muitas vezes ao espelho —, nada há mais semelhante a mim mesmo” (PLAUTO 1986:46). Ou seja, nenhuma “semelhança mais semelhante” era possível entre dois homens se não fosse por meio de uma imagem, a de Sósia, reetida no espelho. A arte seria não o que acontece quando nos olhamos no espelho, uma imagem da “semelhança mais semelhante”, mas o que poderia acontecer caso o espelho deformasse a nossa imagem: “a dessemelhança do que até então nos parecia semelhante”.
IV A Intencionalidade do Autor
Richard Ohmann, dentro dos chamados atos de fala, assinala que o problema das definições correntes sobre literatura é que ora elas se centram nos atos locutivos, ora nos atos perlocutivos. Saindo dessa dicotomia texto/efeito, vamos nos ater, agora, nos “atos 65
(ARISTÓTELES 1994:104, 1447b, 15).
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ilocucionários”, isto é, nos atos que encerram os enunciados, as perguntas, as promessas, as ordens, os pedidos de desculpa, os agradecimentos, etc. Para tal, vamos nos valer das reflexões desen volvidas por John R. Searle no ensaio “O estatuto lógico do discurso ficcional”66. Caminhemos. Searle nota que “[...] há um conjunto sistemático de relações entre os significados das palavras e sentenças que emitimos e os atos ilocucionários que realizamos na emissão dessas palavras e sentenças”67. Partindo dessa premissa, ele observa que essas ess as relações levam a uma encruzilhada teórica quando focamos o discurso ficcional, pois “[...] como é possível que as palavras e outros elementos tenham, numa estória de ficção, seus significados ordinários e, ao mesmo tempo, as regras associadas a essas palavras e outros elementos, regras que determinam seus significados, não sejam cumpridas?”68 Antes de responder a esse “problema de difícil solução”, que é o objeto do seu ensaio, Searle assinala duas distinções que devem ser feitas em relação ao discurso ficcional. 1. “distinção entre ficção e literatura”; 2. “distinção entre discurso ficcional e discurso figurado”. Vamos a elas. 1. Para Searle, a diferença entre ficção e literatura se faz necessária porque o discurso literário é de difícil análise. É que nada obstante muitas obras literárias serem ficção, o fato é que, para ele, nem toda obra ficcional é literatura e nem toda obra literária é ficcional. Ou seja, inexiste, no seu entender, um conjunto de traços comuns que encerrem todas as obras literárias, pois, citando Wittgenstein, “[...] a noção de literatura é uma noção por semelhança de família”69. 66 67 68 69
(SEARLE 1995:95-119; 1997:58-75) (SEARLE 1995:95) (SEARLE 1995:95-96) (SEARLE 1995:97). 1995:97). O autor se refere ao livro Investigações losócas, de Ludwig
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Na ausência desses traços comuns, cabe ao autor decidir se a sua obra é ou não ficção, mas, para Searle, só ao leitor recai a decisão sobre se uma obra é ou não literatura. Assim, não há, para ele, um limite que caracterize as obras literárias das não literárias. 2. No caso da segunda distinção — os discursos ficcional e figurado —, Searle observa que, em ambos os casos, “[...] as regras semânticas são alteradas ou sustadas de alguma maneira”. No entanto, no discurso ficcional, essas regras se dão de modo diferente e independente das figuras de linguagem 70. Para melhor exemplificar a sua tese, ele assinala que a expressão metafórica é “não literal” [nonliteral [nonliteral ], ], enquanto as emissões ficcionais são “não Wittgenstein. Nesta obra, o lósofo vienense constrói o conceito de “jogos de linguagem”. Diz ele: “[..] todo processo de uso de palavras em (2) [a linguagem como um meio de entendimento entre um emissor e um receptor] seja um dos jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. Quero chamar esses jogos de ‘jogos de linguagem’, e falar de uma linguagem primitiva às vezes como de um jogo de linguagem.// E poder-se-ia chamar também de jogos de linguagem os processos de denominação das pedras e de repetição da palavra pronunciada. Pense em certo uso que se faz das palavras em brincadeiras de roda.// Chamarei de ‘jogo de linguagem’ também a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada” (WITTGENSTEIN 1996:18-19 1996:18-19 [§ 7]). A parte especíca a que alude Searle, é a do § 66. Vejamos: “Observe, p. ex., os processos a que chamamos ‘jogos’. Tenho em mente os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, o jogo de bola, os jogos de combate, etc. O que é comum a todos estes jogos? — Não diga: ‘Tem de haver algo que lhes seja comum, do contrário não se chamariam ‘jogos’ —, mas olhe se há algo que seja comum a todos. — Porque quando olhá-los, você não verá algo que seria comum a todos, mas verá semelhanças de família, parentescos, aliás, uma boa quantidade deles. Como foi dito: não pense, mas olhe! Olhe, p. ex., os jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aquela primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem, outros se apresentam. Se passarmos agora para os jogos de bola, veremos que certas coisas comuns são mantidas, ao passo que muitas se perdem. — Prestam-se todos eles ao ‘entretenimento’? [...] E assim podemos percorrer os muitos, muitos outros grupos de jogos, ver as semelhanças semelhanças aparecerem e desaparecerem.// desaparecerem.// E o resultado desta desta observação é: vemos uma complicada rede de semelhanças que se sobrepõem umas às outras e se entrecruzam. Semelhanças em grande e em pequena escala” (WITTGENSTEIN1996:51-52). 70 (SEARLE 1995:98)
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sérias” [nonserious [nonserious]. ]. Por exemplo: quando Ricardo Piglia escreve, em seu romance Respiração artificial , “passei a noite quase insone por causa do calor e agora estou sentado de frente para o frescor da janela”71, isso não significa que, no momento em que ele escrevia, houvesse algum frescor entrando pela janela, fizera calor na noite anterior, ou muito menos ele passara a noite quase insone. Não há nenhum compromisso do Piglia romancista com este enunciado dito pelo narrador do seu romance. É desse modo que a ficção é um discurso “não sério”, nada obstante a frase enunciada pelo escritor argentino ser literal. Diverso ocorre quando um ensaísta escreve que o seu artigo irá analisar e interpretar a obra de Machado de Assis. Neste caso, o enunciado é, ao mesmo tempo, sério e literal. No entanto, quando o mesmo ensaísta escreve que “Hegel é uma carta fora do baralho no jogo filosófico”, esse enunciado, que é uma metáfora, é sério, mas não é literal, já que é uma expressão metafórica 72. Feitas as devidas ressalvas, Searle retoma a pergunta de “difícil solução” posta no início do seu ensaio. Para respondê-la, ele deixa de lado as diferenças entre emissões literais [literal [ literal ] e figuradas [ fi fi gurative]] e se propõe a explorar as dissimilitudes entre as emissões gurative [utterances utterances]] sérias [serious [serious]] e ficcionais [ fictional ]73. Para tal empreendimento, ele escolhe, inicialmente, dois exemplos: uma matéria jornalística do New York imes, imes, assinada por Eileen Shanahan, e um excerto do romance Te Red and the Green [O Vermelho e o verde], verde], de Iris Murdoch74. Ambos os exemplos se valem de asserções que 71 72 73 74 74
(PIGLIA 1987:28) (SEARLE 1995:98) (SEARLE 1995:99) No texto do New York Times, lemos: “Washington, 14 de dezembro — um grupo de membros dos governos federal, estaduais e municipais rejeitou hoje a ideia do presidente Nixon de que o governo federal fornecesse ajuda nanceira que possibilitasse aos governos locais reduzir impostos sobre propriedades”. No
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usam palavras e enunciados literais. A diferença entre um excerto e outro é que o texto do jornal é “[...] um tipo de ato ilocucionário que se submete a certas regras semânticas e pragmáticas bastante específicas”.. A saber: específicas” 1 - A regra essencial: quem faz uma asserção se compromete com a verdade da proposição expressa. 2 - As regras preparatórias: o falante deve estar preparado para fornecer evidências ou razões da verdade da proposição expressa. 3 - A proposição expressa não deve ser obviamente verdadeira para ambos, falante e ouvinte, no contexto da emissão. 4 - A regra da sinceridade: o falante compromete-se com a crença na verdade da proposição expressa.75
Para Searle, caso o texto do New York imes não imes não observasse todas as regras acima, sua asserção seria defectiva [deective [deective], ], isto é, incorreria no falso, no errado, er rado, no incorreto ou na mentira. Neste caso, “as regras estabelecem os cânones internos da crítica das emissões”76. O inverso ocorre no texto de Iris Murdoch, pois “sua emissão não é um compromisso com a verdade da proposição”. Isso não significa dizer que a proposição seja verdadeira ou falsa, e, sim, que a escritora “[...] não tem qualquer compromisso com a sua verdade”. Ora, como ela não tem “compromisso com a sua verdade”, ela não é “[...] capaz de fornecer evidências de sua verdade”. Desse modo, “não vem ao caso que já estejamos ou não informados de sua verdade”77.
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excerto do romance, lemos: “Mais dez dias gloriosos longe dos cavalos! Era no que pensava o segundo-ten segundo-tenente ente Andrew Chase-White, recentemente comissionado no ilustre regimento King Edward’s Horse, enquanto vagueava contente por um jardim dos subúrbios de Dublin, numa tarde ensolarada de domingo, em abril de 1916” (SEARLE 1995:100). (SEARLE 1995:101) (SEARLE 1995:102) (SEARLE 1995:102)
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No entanto, uma pergunta se estabelece: se há uma asserção em Te Red and the Green, Green , que tipo de ato ilocucionário é manifestado no romance de Murdoch? Como pode existir uma asserção, se não há nenhum compromisso com as regras específicas que caracterizam as asserções? Para Searle, uma resposta equivocada seria admitir que existe um uso distinto das classes de atos ilocucionários nos jornais e nos textos ficcionais. ficc ionais. Neste caso, os atos ilocucionários na ficção não são para enunciar, descrever ou explicar, mas apenas para contar uma estória. Assim, o ficcionista encerra o “[...] seu próprio repertório de atos ilocucionários, que estão no mesmo plano que os atos ilocucionários de tipo padrão (fazer perguntas, fazer pedidos, fazer promessas, fazer descrições, etc.), e tc.), mas se acrescentam a eles” 78. Caso essa premissa fosse correta, diz Searle, teríamos que admitir que uma mesma sentença literal usada, ao mesmo tempo, na ficção e no jornal, encerraria significados distintos. Desse modo, um leitor só poderia entender uma obra de ficção se aprendesse “[...] novos conjuntos de significados correspondentes a todas as palavras e outros elementos contidos na obra”79, o que o obrigaria, no caso do falante da língua portuguesa, a ter que aprender novamente a sua própria língua materna. A resposta correta, para Searle, é que Iris Murdoch “[...] está fingindo [ pretend pretend ] fazer uma asserção, ou agindo como se estivesse fazendo uma asserção, ou imitando o ato de fazer uma asserção”80. Fingir não no sentido de fraude, mas no sentido de “[...] envol ver-se numa encenação ence nação [...], de ag ir como como se se estivesse fazendo ou fosse essa coisa, sem nenhuma intenção de enganar” 81. Neste caso, “[...] o autor de uma obra de ficção finge realizar uma série de atos 78 79 80 81
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ilocucionários, normalmente do tipo assertivo”. Assim, “[...] o critério para identificar se um texto é ou não uma obra de ficção deve necessariamente estar fundado nas intenções ilocucionárias do autor”82. Mas conhecer as “intenções ilocucionárias do autor não significa saber, no que diz respeito à análise da obra, “[...] as intenções últimas de um autor [...]”, e, sim, as intenções quanto à identificação do texto: se é um romance, um conto, uma novela, uma epopeia, um poema. Outra questão colocada por Searle é: “[...] o que torna possí vel essa forma peculiar de fingimento?” Para ele, o que faz a ficção possível “[...] é um conjunto de convenções extralinguísticas, não semânticas, que rompem a conexão entre as palavras e o mundo estabelecida pelas regras [...]”; que fazem de um enunciado uma asserção sincera e não defectiva, isto é, “[...] regras [verticais] que relacionam palavras (e sentenças) ao mundo”, que conectam a linguagem à realidade83. Desse modo, as convenções que estabelecem o discurso ficcional se dão em cima de regras horizontais que rompem com as regras verticais. Tais convenções, no entanto, não encerram nem as regras do significado, nem as que estabelecem a competência semântica do falante. Assim, Searle assinala que “[...] as elocuções fingidas que constituem uma obra de ficção são possíveis em virtude da existência de um conjunto de convenções que suspendem a operação normal das regras que relacionam os atos ilocucionários ao mundo”84. Em outras palavras: “[...] contar histórias [stories [ stories]] é realmente um jogo de linguagem à parte”. Jogo de linguagem este que “[...] não está no mesmo pé que os jogos de linguagem ilocucionários, mas é parasitário em relação a eles”85. 82 83 84 85
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Ainda dentro desse raciocínio, uma pergunta precisa ser respondida: “[...] quais são os mecanismos pelos quais o autor invoca as convenções horizontais — que procedimentos ele segue? Se, como eu disse, o autor não realiza de fato atos ilocucionários, mas
o acontecível, já delimita em qual ciência a sua obra se inscreve: os gêneros produtivos. Concordamos que para uma emissão se constituir “não séria” é necessário que um autor empírico não tenha “[...] qualquer com-
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apenas finge realizá-los, como realiza o fingimento?” Sua resposta é exemplificada pela encenação dramática. Neste, um personagem finge (e não o autor) bater em outro personagem e este, por sua vez, finge apanhar. Se a surra é fingida, os movimentos dos braços são reais. O mesmo procedimento ocorreria na ficção, onde “o autor finge realizar atos ilocucionários por meio da emissão efetiva de sentenças”. Ou seja, “[...] os atos ilocucionários são ilocucionários são fingidos, mas o ato de emissão é emissão é real”, já que eles se efetivam através de “[...] atos onéticos e onéticos e áticos áticos””87. Se a mímesis mímesis aristotélica aristotélica se atém ao texto em si (suas estruturas, seus procedimentos formais e a sua natureza: o horizonte do acontecível), a ficção, segundo Searle, também incorreria no mesmo caminho: o de encerrar no texto, por meio de enunciados “não sérios” [nonserious nonserious], ], emissões que não têm “compromisso com a verdade da proposição”. Assim, tanto na mímesis mímesis quanto quanto na ficção, haveria uma ruptura entre o signo e o referente, entre o signo e aquilo a que ele se refere. É assim que Sófocles conta a estória de Édipo sem se
promisso com a sua verdade” (aquela enunciada pelo narrador ou pelo eu lírico) e, por decorrência, não seja “[...] capaz de fornecer evidências de sua verdade”. No entanto, como o leitor vai saber que tal enunciado é “não sério”? Como ele distingue a seriedade ou a não seriedade dos atos ilocucionários em textos que tratem do mesmo assunto: um romance histórico sobre D. Pedro II e uma biografia histórica sobre este? Creio que tal distinção só é possível se houver uma cooperação entre o autor e o leitor no ato de fingimento. Ou seja, não basta que um autor empírico finja enunciar uma verdade, faz-se necessário que o leitor saiba que ele está fingindo. A intencionalidade do autor empírico de fingir uma estória tal como ela deveria ter acontecido só se perfaz na disposição do leitor, conhecedor de tal intencionalidade, em acatá-la (o verbo “fingir”, por si, já encerra uma intencionalidade, pois quem finge finge para alguém). E aqui temos que nos ater novamente à palavra fictio palavra fictio.. Se ela, no sentido próprio, significa criação e, no sentido figurado, “ação de fingir”, não podemos perder de vista, como dissemos acima, que
preocupar em ser fiel ao seu referente: a narrativa oral e imemorial do Mito (forma simples). O mesmo ocorre com o texto ficcional: seus enunciados não têm nenhum “compromisso com a verdade da proposição”. Desse modo, para Searle, cabe ao autor empírico, e somente a ele, decidir se a sua obra é ou não ficção, pois é nela que ele lança mão dos atos de falas que a caracterizam como tal. Proposição que também se aplica à mímesis mímesis,, pois o poeta, ao escolher enunciar
quem finge finge antes para alguém do que para si mesmo. Se o leitor/expectador desconhece que os atos de fala e/ou determinados gestos dramáticos são fingidos, a cooperação textual ou dramática não se estabelece (nesse caso, o texto, enquanto criação, pode ser acatado como um enunciado crível e o ator, como louco). Sem que as regras do jogo fiquem estabelecidas para ambos os jogadores — autor empírico e leitor empírico —, não é possível que o estatuto do fingimento se firme. Por quê? Porque só por meio desse pacto de fingimento mútuo as fronteiras entre a ficção, a mentira e a fantasia
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podem ser dissipadas. Como sabemos, o inverso da mentira é a verdade, e não a ficção ou a fantasia. O avesso de fingir é “desenganar”, no sentido de “esclarecer”. Mentir é iludir, trapacear. A mentira só é “jogada” (ou melhor, só é tomada como verdade) porque um dos atores do “jogo” (o que está sendo enganado) desconhece as regras do próprio “jogo”, desconhece que o pacto da verdade foi colocado em suspensão. Logo, ele é levado a crer que tal enunciado — a mentira — é verdadeiro. Um enunciado ou uma asserção só s ó são acatados como mentira porque ferem um pacto, ou contrato, que envolve um acordo social, ou interpessoal, calçado em cima de um determinado critério de verdade. Um exemplo: uma nota monetária só pode ser tomada como falsa porque quem a fa lsificou rompeu com um pacto de verdade estabelecido entre a sociedade e a Instituição que a go verna, o Estado, já que este, por meio de vários mecanismos, é quem emite o dinheiro e dá fé da sua validade monetária. No caso das fronteiras entre a ficção e a fantasia, podemos dizer que a ficção encerra a fantasia (a faculdade de imaginar ou criar pela imaginação), mas a fantasia não encerra necessariamente a ficção. Um exemplo é o que se manifesta no portador de esquizofrenia. O esquizofrênico é alguém que possui uma personalidade fragmentada e, por decorrência, perdeu o contato com a realidade. Assim, o esquizofrênico toma a fantasia pela realidade empírica e, como tal, inscreve-a no horizonte do “acontecido”. Esquizofrênicos não fingem acreditar nas fantasias que estão narrando ou vendo, pois aquilo que eles narram ou veem é a sua própria realidade empírica. Por não perceber os limites entre a fantasia e a realidade empírica é que o portador de tal distúrbio mental é colocado à margem do pacto, ou do contrato, que rege a sociedade, ou que por ela foi instituído: seja o pacto da verdade (ou o que uma dada sociedade entende por verdade em um dado momento histórico), seja o ficcional.
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Outro ponto a observar é que a intencionalidade do autor empírico de fingir enunciados em uma determinada estória e a disposição do leitor (seja o leitor-modelo ou o leitor empírico)88 em aceitar tal intencionalidade (instituindo a cooperação textual) só se dão porque certos gêneros textuais encerram determinadas marcações que foram estabelecidas socialmente e, por sua vez, acatadas. No caso dos gêneros miméticos, os gregos os definiram como épicos, dramáticos e líricos. Ora, se o “nível mais básico” das intenções de um autor é identificar o seu texto como romance, conto, filosofia, teologia, história, sociologia, tese, dissertação etc. (e cada um desses gêneros textuais encerra naturezas e, por sua vez, propósitos distintos), isso “já é afirmar algo sobre as intenções do autor”, para usarmos as próprias palavras de Searle. Observando que as intencionalidades são instituídas não somente por aquele que compôs a obra, mas também por quem a editou. Um livro é denominado de romance, conto ou novela e, como tal, ele é publicado por um dado editor. Assim, toda a composição visual da obra traz marcas das intenções do autor, reiteradas por seu editor: a orelha e a contracapa que explicam sobre o que versa o livro; a ficha catalográfica; o local que, dentro de uma livraria, lhe é destinado; as resenhas de jornais e revistas que lhe são consagrados. É dessa maneira que a obra chega ao leitor: identificada, no nível “mais básico”, básico”, 88
Valemo-nos aqui aqui da distinção feita feita por Umberto Eco. Para o teórico italiano, “O leitor-modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto”. O inverso é o leitor-modelo. Este é “[...] uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar. Um texto que começa com ‘Era uma vez’ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável” (ECO 2010:14-15; ver também 2008:35-49).
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pelas intenções do autor. Desse modo, é a intencionalidade no nível “mais básico” que dá o estatuto histórico-temporal da obra, e, por desdobramento, as marcações que vão promover a sua recepção por parte do leitor-modelo ou do leitor le itor empírico, explicitando explicitando,, assim, o
compartilham o fato de que, embora toda a arte poética se valha da natureza como matéria-prima de imitação (imitação da natureza e das ações humanas), esta, ao se inscrever no campo do “acontecí vel” ou do fingere do fingere,, cria a sua própria verdade ou realidade textual.
desejo de um dado autor em pertencer a um determinado campo do conhecimento e, por extensão, de poder usar os atos ilocutivos de modos fingidos ou não. Logo, o pacto entre o autor empírico e o leitor empírico (ou o leitor-modelo) se estabelece quando aquele enuncia em que gênero o seu texto se inscreve e, por sua vez, o leitor, a par desse estatuto, assume determinadas maneiras de pensar e agir ante o texto. Caso seja uma obra ficcional — onde o autor “está fingindo [ pretend pretend ] fazer uma asserção, ou agindo como se estivesse fazendo uma asserção, ou imitando o ato de fazer uma asserção” —, ele, o leitor, aceita a intencionalidade do texto e, junto com ele, finge aceitar tais enunciados; caso seja uma obra que se submeta “a certas regras semânticas e pragmáticas bastante específicas”, ele, o leitor, irá se relacionar com o texto observando se o autor cumpre as condições especificadas nas regras, ou, caso contrário, ele incorre em uma asserção defectiva. Logo, diverso do que pensa S earle, não é o leitor que diz se tal obra é ou não literatura, mas o seu autor autor,, nada obstante a necessidade da cooperação textual entre este e o leitor.
Verdade e realidade textuais essas que precisam ser pactuadas com o leitor para que possam se perfazer. Ambos os conceitos — mímesis mímesis e fictio fictio — — tratam de uma verdade textual, mas só o conceito latino considera o leitor ou expectador como parte desse jogo que é instituído pela verdade textual (o “acontecível”). E aqui vamos ao terceiro ponto da nossa análise: a verdade e a realidade textuais (o caráter imanente do texto).
A questão é saber quais são as regras (regras que valem para todos os gêneros textuais, em qualquer área de saber) que definem se um texto é ou não literatura. Duas dessas regras, como vimos, foram estabelecidas pela poética clássica, a mímesis mímesis e e a fictio fictio,, e ambas se complementam. A primeira, porque trata do horizonte do “acontecível”; a segunda, porque vê nesse “acontecível” não somente um ato ilocucionário fingido por parte do autor empírico, mas também um pacto de fingimento (ou uma cooperação textual) que se estende ao leitor, que lê e finge acreditar no que lê. Mais: ambos os conceitos
o Mito. No entanto, esse retorno não significava a defesa de uma literatura que retomasse a narrativa mítica, a forma simples, e, sim, que acolhesse o mito como “[...] o princípio e como que a alma da tragédia” tragédia”89. Tal retorno implicou em uma série de procedimentos que terminam por caracterizar os textos literários até os dias que correm. Se a narrativa mítica — a exemplo da história de Édipo — não tem autor empírico, empírico, já que ela se caracteriza por ser uma história imemorial, a tragédia Édipo Rei não Rei não só tem um
V A Verdade e a Realidade Textuais
Se o ofício do historiador e, por extensão, a História, nasce quando da passagem do Mito para o Logos, da substituição da narrativa fantasiosa, ilusória, irracional e incognoscível dos eventos para a narrativa que se calce em cima da razão e da racionalidade, Aristóteles defendeu o caminho inverso para as poesias imitativas (particularmente para o gênero trágico): o retorno do Logos para
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(ARISTÓTELES 1994:112, 1450a, 35-36)
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autor empírico — Sófocles —, como este se distingue do narrador textual (puramente linguístico) linguístico) que, no caso do drama, se dá “mediantee todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mes“mediant mas”90. Assim, os gêneros miméticos vão distinguir não só o autor empírico do narrador textual, como o autor empírico do eu lírico textual (o poeta “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, ensina-nos Fernando Pessoa). Tais distinções foram necessárias para que os gêneros miméticos estabelecessem a diferença entre a “verdade textual” e a “verdade” que se “[...] deixa governar pelo critério válido para os discursos da realidade, o critério de verdadeiro/falso” 91. Ou seja, se a realidade inscrita na literatura pode se alimentar da realidade empírica (Ao lermos Dom Casmurro, Casmurro, vemos que ele se passa no R io d e Jane Janeiro iro da s egunda metade do século XIX) e pode até se decifrar por meio dela (os princípios morais de Bentinho se calçam na moral predominante à época em que a estória decorre), ela, ao se perfazer como uma verdade textual, não se confunde mais com a verdade empírica que a alimentou. Por mais que uma obra imite um dado referente, a ação dos seus personagens não se manifesta na realidade empírica, mas em uma realidade puramente textual que lhe é própria, pois esta não busca imitar a realidade empírica como um espelho, mas como ela poderia ser: uma imagem alterada, borrada; uma imagem que só existe no texto e nele se encerra, pois a realidade empírica foi colocada em suspensão. Logo, dilatada, duplicada, ficcionalizada. Vejamos os exemplos de duas narrativas históricas — as de Heródoto e Tucídides — e uma narrativa literária, a Ilíada,, de Homero (a Odisseia Ilíada Odisseia segue segue a mesma estrutura narrativa da Ilíada Ilíada,, daí não precisamos evocá-la aqui).
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A primeira distinção a se observar é que as narrativas de Homero são em verso e as dos historiadores gregos, em prosa. Mas esta não é uma boa distinção, pois, como nota Aristóteles, não é o uso do verso que caracteriza a obra, mas a intenção do poeta em inscrevê-la no campo do acontecível. A segunda distinção é que na Ilíada o Ilíada o narrador textual não se confunde com o autor empírico da obra. Seu narrador são as Musas, evocadas por outro narrador (que na falta de um nome melhor, chamaremos de “Homero”) para que elas tornem o passado presencial92. No entanto, ao longo da narrati va, “Homero” “Homero” as interpela: seja para pedir mais detalhes sobre os fatos, seja para mudar o rumo da narrativa. Esta distinção entre autor empírico (Homero) e narradores textuais (“Homero” e as Musas) já impõe um pacto textual com o leitor-modelo ou empírico: ele deve fingir acreditar que um dado narrador — “Homero” — é capaz de evocar as Musas, dialogar com elas, registrar as suas falas e, ao mesmo tempo, se distinguir delas. Como C omo nem o seu autor empírico — Homero — nem o narrador textual interpelador — “Homero” “Homero” — não foram testemunhas dos fatos narrados (ocorridos em um tempo mítico), eles precisam se valer de uma testemunhante “confiável”. Ora, sendo o narrador textual um narrador fingido, não há nenhum compromisso do autor empírico com as emissões destes narradores, que podem até ser literais, mas são “não sérios”. Parafraseando D. 92
90 (ARISTÓTELES 1994:112, 1447a, 24-25) 91 (LIMA 2002:666)
“Homero”: “Canta, “Canta, ó deusa, a cólera cólera de Aquiles, o Pelida/ Pelida/ (mortífera!, que tantas tantas dores trouxe aos aqueus/ e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,/ cando seus corpos como presa para cães e aves/ de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),/ desde o momento em que primeiro se desentenderam/ o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.// Entre eles qual dos deuses provocou o conito?” Musas: “Apolo, lho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus/ contra o rei e por isso espalhara entre o exército/ uma doença terrível de que morriam as hostes,/ porque o Atrida desconsiderara Crises, seu sacerdote./ Ora este tinha vindo até às naus velozes dos Aqueus/ para resgatar a lha, tratrazendo incontáveis riquezas./ Segurando nas mãos as tas de Apolo que acerta ao longe/ e um cetro dourado, suplicou a todos os Aqueus,/ mas em especial aos dois Atridas, condutores de homens: [...]” (HOMERO 2005:30, Canto I, 1-16).
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Couty, esta distinção entre o autor empírico e os narradores textuais mostra a distância fundamental entre o saber do autor empírico e o dos narradores textuais93. A relação das Musas com os seus personagens (o ponto de vista) é que elas sabem mais do que eles (“visão
Tucídides teriam escritos obras de testemunhos; testemunhos deles, Tucídides Heródoto e Tucídides, que participaram dos eventos e, também, dos testemunhantes oculares, informantes das guerras narradas. Nota Richard Bauckham, parafraseando Samuel Byrskog, que os historia-
por trás”). Já “Homero” “Homero” manifesta saber menos do que as Musas e os seus personagens (“visão de fora”). Já nas obras de Heródoto e Tucídides os narradores são os próprios autores empíricos. Por quê? Porque sendo testemunhantes dos eventos que, por ventura, estão narrando, eles nem precisam evocar as musas (o Mito), nem fingirem serem narradores textuais, o que implicaria na falta de compromisso com a verdade das proposições. Daí por que muitos estudiosos de Heródoto o acusam de ter incorrido, em várias passagens da sua obra, em falsidades, manipulações e acréscimos. Acusações essas que jamais poderiam ser aplicadas a Homero. Pelo contrário. Assim, no parágrafo inicial das obras de Heródoto e Tucídides, ambos se apresentam na terceira pessoa e expõem os motivos que os levaram a escreverem tais livros94. Em seguida, no parágrafo seguinte, eles se inscrevem na narrativa (primeira pessoa) para que o leitor tome ciência de que o que vai ser narrado é resultado daquilo que eles viram ou ouviram de testemunhantes críveis95. Aos olhos de hoje, Heródoto e
dores gregos e latinos, de modo semelhante ao método da moderna historiografia oral,
93 (COUTY 1988:94). 94 Heródoto: “Esta é a exposição 94 exposição das investigações investigações de Heródoto Heródoto de Halicarnasso, Halicarnasso, para que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem quem sem renome as grandes e maravilhosas empresas, empresas, realizadas quer pelos Helenos quer pelos bárbaros; e sobretudo a razão por que entraram em guerra uns com os outros” (HERÓDOTO 2002:53). Tucídides: “O Ateniense Tucídides escreveu a história da guerra entre os peloponésios e os atenienses, começando desde os primeiros sinais, na expectativa de que ela seria grande e mais importante que todas as anteriores, pois via que ambas as partes estavam preparadas em todos os sentidos; além disto, observava os demais helenos aderindo a um lado ou ao outro, uns imediatamente, os restantes pensando em fazê-lo [...]”. (TUCÍDIDES 1999:19). 95 Heródoto: “Os conhecedores conhecedores entre os Persas Persas consideram que que os Fenícios foram os causadores do diferindo: sustentam que, vindos do mar chamado Eritreu para
Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
[...] estavam convencidos de que a verdadeira história poderia ser escrita somente enquanto os acontecimentos acontecimentos ainda se encontravam dentro de uma memória viva, e consideravam como suas fontes os relatos orais de experiência direta dos acontecimentos por parte dos participantes envolvidos neles [e quanto mais parcial fosse esse testemunhante, melhor]. Idealisticamente, o próprio historiador deveria ter sido um participante dos eventos que ele narra — como foram, por exemplo, Xenofonte, Tucídides e Josefo —, mas, visto que ele não poderia estar em todos os acontecimentoss que ele narra ou em todos os lugares que ele desacontecimento creve, o historiador tinha de confiar, portanto, em testemunhas oculares, cujas vozes vivas ele podia ouvir e a quem ele próprio podia questionar: “Autopsia [testemunho de testemunha o cular] era o meio essencial para remontar o passado”.96
Cabia ao historiador selecionar (autopsiar) os relatos dos testemunhantes, juntá-los às suas impressões de partícipe do evento, e,
96
as margens do Mediterrâneo e ocupada a região que agora habitam, de imediato empreenderam empreendera m longas navegações: com mercadorias egípcias e assírias, apontaram a diversas regiões, entre as quais estava Argos [...]”. (HERÓDOTO 2002:53). Tucídides: “É óbvio que a região agora chamada Hélade não era povoada estavelmente desde a mais alta antiguidade; migrações haviam sido frequentes nos primeiros tempos, cada povo deixando facilmente suas terras sempre que forfor çado por ataques de qualquer tribo mais numerosa [...]”. (TUCÍDIDES 1999:19). (BAUCKHAM 2011:23)
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criticamente, dar um sentido à sua narrativa. “O sentido é a atmosfera em que os fatos são postos para que assumam uma presunção significativa”97. Sabemos que, entre os métodos da historiografia clássica e aqueles que foram instituídos pela moderna historiografia, muitas coisas mudaram. No entanto, uma permaneceu: o autor empírico da obra (chame-se ele Edward Gibbon, Arnold Toynbee, R. G. Gollingwood, Fernand Braudel ou Sérgio Buarque de Hollanda) é o próprio narrador dos fatos narrados (seja a narrativa na primeira ou na terceira pessoa), e os seus atos ilocucionários se submetem a certas regras semânticas e pragmáticas específicas, sob o julgo da sua obra se inscrever no campo do defectível. Não só: sua narrativa é tomada como crível porque aquilo que é narrado encontra respaldo e testemunho (seja ele documental, seja oral) no objeto narrado: o acontecido. do Isso textonão histórico estáque calçada em sihistórica mesma, mas no Aseuverdade referente. significanão dizer a narrativa está no lugar do evento em si (afinal, desde Santo Agostinho que se sabe que a palavra é um signo, isto é, ela é a representação da coisa em si, mas não é a coisa em si), e, sim, que ela só se perfaz porque o evento que lhe serve de objeto de análise e interpretação se plasma na realidade empírica. Logo, essa narrativa tem sua análise e interpretação delimitadas pelo referente: a documentação que lhe fundamenta. Desse modo, onde terminam, para o historiador, os limites da análise e da interpretação dos eventos históricos é onde tem inicio a narrativa literária. Por exemplo: se o historiador, refém do referente, não pode afirmar que D. Pedro II morreu governando o Brasil, o escritor literário, diversamente, pode contar a estória do nosso monarca como ela poderia ter sido. No caso, uma estória onde o Imperador jamais fora exilado e a República nunca fora proclamada no Brasil. Como “[...] o discurso ficcional ocupa uma posição ex-cêntrica ex-cêntrica quanto quanto à verdade, o traço ‘referência’ sofrerá uma modificação considerável” 98. O que 97 98
(LIMA 1991:143) (LIMA 1991:144)
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ocorre com o discurso histórico se manifesta também em todas as outras formas de discursos, mesmo aqueles mais esotéricos, a exemplo da teologia e dos textos místicos, que se firmam e se decifram em cima dos textos sagrados (no caso do cristianismo e do judaísmo, na Bíblia), Bíblia ), e, por sua vez, esses textos sagrados (expressão do verbo) se firmam e se explicitam em cima do Verbo. Assim, se a realidade inscrita na literatura pode se alimentar da realidade empírica e até se decifrar por meio dela, a realidade textual, ao se inscrever no horizonte do “acontecível” “acontecível”,, não se confunde mais com essa realidade extratextual. Não há nenhuma possibilidade de um leitor de Guimarães Rosa se deparar, no mundo empírico, com Riobaldo ou com Diadorim (salvo no caso de perturbação mental). O inverso ocorre com os textos das ciências exatas, biológicas, sociais, humanas, teológicas e filosóficas: todos não só partem da realidade empírica (mesmo que seja só no campo especulativo), como só se decifram ou se firmam por meio dessa realidade empírica. Mímesis,, fictio Mímesis fictio,, verdade textual. Estes três conceitos se interpenetram e, principalmente, se complementam, formando uma unidade. No entanto, tais conceitos não se aplicam somente à literatura e, por decorrência, aos gêneros artísticos, mas também a certos gêneros que são puramente ficcionais, a exemplo das novelas televisivas, das estórias em quadrinho, das fotonovelas, dos videoclipes... Então o que faz determinados gêneros textuais serem literatura — isto é, serem alçados ao campo da arte — e outros serem apenas ficções? Vamos Vam os ao nosso quarto e último tópico. VI Os Signicados e Signicações do Texto
Como toda forma de conhecimento, a literatura — e as artes, de maneira geral — também encerra u m modo de usar ou de se relacionar
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com os signos: imitando o referente (representando o que poderia acontecer), fingindo (construindo, por meio de um pacto ficcional, enunciados não sérios) e plasmando uma realidade e uma verdade puramente textuais (estabelecendo a cesura entre o signo e o refe-
nosso caso, a literatura caminham no sentido inverso do discurso persuasivo (os discursos das telenovelas, da política, do judiciário, da propaganda, da maioria das ficções policiais, das estórias em quadrinho, das fotonovelas, dos seriados de TV). Se este “[...] quer
rente, nada obstante, na maioria dos casos, se valer deste enquanto matéria). O resultado desse modo de se relacionar com os signos é que, na literatura, o leitor, ao ler um poema, é levado, caso queira entender o seu sentido, a decifrar e a recifrar permanentemente o verso, e, no caso da prosa, a se deparar com o sentido polissêmico que as estórias narradas encerram. Em ambos os casos, temos signos carregados de significados e significações “até o máximo grau possível”99, como defendia Ezra Pound, sem que, necessariamente, isso implique, como queriam os Formalistas, determinadas propriedades sintáticas ou semânticas específicas do texto (como são exemplos, no caso da prosa, as poéticas das Escolas Realista e Naturalista, que perseguiam antes uma narrativa denotativa do que conotativa, nada obstante o sentido da obra estar carregado de significados e significações). Essa condição de encerrar no signo significados e significações além daqueles que encontramos nos dicionários, tira da literatura o caráter que, muitas vezes, lhe é atribuído, particularmente pelos estudos sociológicos (o de ser apenas um “documento “documento””, um “indicador” ou um “epifenômeno” da realidade empírica), e lhe confere tanto a sua condição trans-histórica (o que lhe dá uma autonomia em relação ao referente) quanto o seu estatuto artístico. Estatuto que a leva a perseguir não apenas o Belo (afinal, outras manifestações também buscam a beleza estética: a moda, a decoração, o design), mas retesar o signo com o intuito de extrair dele o máximo possível de significados e significações além dos limites aceitáveis nas demais formas de discurso. Desse modo, a arte e, no
levar-nos a conclusões definitivas; prescreve-nos o100que devemos desejar, compreender, temer, querer e não querer” , a arte e, no caso específico, a literatura não repetem para o leitor “[...] aquilo que ele já sabe s abe e aquilo que deseja saber”, saber”,101 mas revelam aquilo que ele não sabe (ou pelo menos ele nunca imaginou ou nunca pensou daquele modo) e o que ele nem desejaria (ou pensou desejar) saber. Mutatis mutandis mutandis,, as artes plásticas podem, aqui, nos fornecer um bom exemplo. Ao pintar um cachimbo e escrever no rodapé da tela que aquilo não é um cachimbo (“Ceci n’est pas une pipe” ), ), René Magritte não só contraria o “automatismo perceptivo” 102 do seu expectador, mas cria “[...] uma percepção particular do objeto [sua singularização], busca[ndo] a criação da sua visão e não de seu reconhecimento”103. Desse modo, o artista não somente rompe a relação entre o signo (o cachimbo pintado) e o seu referente (o cachimbo empírico), mas lhe dá significados e significações além daqueles que a linguagem persuasiva busca dar; ou, como nota Luiz Costa Lima, a arte da imitação “[...] não só recebe o que vem da realidade mas é passível de modificar nossa própria visão da realidade” 104. “Se isto não é um cachimbo, então é o quê?”, quê?”, perguntaria o apreciador da sua obra. A resposta poderia ser: “tente fumá-lo” fumá-lo”.. O mesmo ocorre com Homero ao narrar a Guerra de Troia: ele não oferece ao leitor uma estória em que ele reconheça a narrativa mítica (“o caso eu conto como o caso foi”), e, sim, que seja o “acontecível” do “acontecido”.
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(POUND 1983:32)
100 101 102 103 104
(ECO 1986:280) 1986:280) (ECO 1986:282) (EIKHENBAUM 1978:15) (EIKHENBAUM 1978, p. 15) (LIMA 2000:25)
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Assim como existe o cachimbo de Magritte que não é um cachimbo (apenas a representação mimética do cachimbo), existe a Guerra de Troia de Homero que não é a Guerra de Troia da narrativa mítica, mas a sua imitação. Do mesmo modo, quem inicia a leitura de Dom Casmurro buscando Casmurro buscando encontrar um discurso persuasivo contra o adultério e a favor da família patriarcal e cristã, encontra uma linguagem polissêmica que puxa o tapete de todas as suas certezas. O que resta ao leitor? Ou ficar na dúvida (e não é Dom Casmurro Casmurro um romance sobre a dúvida?) ou recomeçar a leitura do romance em busca de indícios mais convincentes da traição de Capitu. A verdade textual do romance cria os seus próprios significados e as suas próprias significações (independentes dos valores morais do seu tempo), o que dá à obra o seu caráter trans-histórico. Pouco nos interessa agora saber qual era, ao tempo em que a obra foi escrita, a moral que alimentava Bentinho, pois o que parecia ser reconhecimento — uma estória de adultério passada na segunda metade do século XIX brasileiro — singulariza-se, agora, como o discurso da dúvida. Dúvida não só nossa, leitor, mas que se inscreve no próprio modo discursivo como a obra é organizada pelo autor empírico por meio do narrador textual. A forma irônica é o modo que Machado de Assis encontrou para compor a sua obra e lhe prover de significados e significações. Assim, essa forma irônica — isto é, a cesura entre o signo e aquilo a que ele se refere, a realidade empírica — nos leva a concluir, parafraseando Octávio Paz, que “não sabemos o que é realmente o real”: se o que veem os olhos de Bentinho ou o que a sua (ou a nossa) “imaginação projeta” 105. Se o reconhecimento, a matéria do discurso persuasivo, é sinônimo de significado unívoco, a singularização é sinonímia de linguagem carregada de significados e significações. No caso, a arte; a literatura, particularmente. 105 (PAZ 1991:108)
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VII Conclusão
1. Não é por semelhança de família, como são os jogos (afinal, o que há em comum entre uma partida de xadrez, atividade puramente cerebral, e uma de futebol, atividade em que predomina o esforço físico? Serem ambas apenas um entretenimento?), que podemos colocar sob o mesmo guarda-chuva a poesia, a epopeia, o drama, o romance, o conto e a novela. Apesar de guardarem formas distintas, todos esses gêneros encerram os quatro critérios que elencamos ao longo deste texto: (a) todos imitam (ora tomando a natureza como modelo, ora por meio da intertextualidade, ou mesmo tentando traduzir em linguagem os sonhos e as alucinações da mente) e contêm emissões fingidas que são acatadas, em forma de pacto, pelo leitor-modelo ou pelo leitor empírico; (b) todos trazem as intencionalidades do autor empírico; (c) todos constroem realidades textuais; e (d), por fim, todos perseguem uma linguagem carregada de significados e significações. Se estes critérios em conjunto (e não individualmente) caracterizam e estão presentes em todos os gêneros literários (poesia, epopeia, drama, romance, conto e novela), terminando por agregá-los sob o mesmo manto e, principalmente, dando-lhes um estatuto artístico, como podemos encerrar, dentro desse mesmo manto conceitual, livros como os do Padre Antônio Vieira e Euclides da Cunha, por exemplo, que se inscrevem em campos do conhecimento que lhes são distintos? No caso de Vieira, a oratória religiosa (o sermão); no de Euclides, a história social. Ambos, como sabemos, ocupando papéis de destaque em todas as histórias da literatura brasileira (e, no caso de Vieira, também nas histórias da literatura portuguesa), apesar de as obras que predominam nesses manuais serem, em quase totalidade, as que encerram
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os quatro critérios declinados ao longo deste texto. Então, por que Vieira? Por que Euclides? Talvez os críticos e os historiadores da literatura encontrem neles, como quer Searle, a “semelhança de família”. Afinal, Searle, como vimos, distingue obras ficcionais de
do estilo senecano, ‘coupé’ e sentencioso, à ênfase, à sutileza, ao paradoxo, ao contraste, à repetição, à assimetria, ao paralelo, ao símile, ao manejo da metáfora [...]”. Assim, Vieira “[...] produziu páginas que são tesouros da eloquência sagrada em língua portuguesa” 108.
obras literárias, já que, para ele, nem toda obra de ficção é literatura (no que concordamos com ele) e nem toda obra literária é ficção (do que discordamos). Desse modo, parece que temos, aqui, uma questão não respondida: o que faz um conjunto de obras ficcionais serem acatadas como literatura e, em contrapartida, outro conjunto de obras não ficcionais serem tidas também como literatura? Sabemos a resposta de Searle: cabe ao autor decidir se a sua obra é ou não ficção, mas só ao leitor recai a decisão de afirmar se uma obra é ou não literatura. Assim, não há, para Searle, um limite que caracterize as obras literárias das não literárias: tudo depende do gosto e do critério de quem a lê. Talvez Vieira e Euclides sejam dois bons exemplos que venham responder o que o texto de Searle não respondeu. Vamos à análise. Para tal, evoquemos quatro estudiosos e historiadores da nossa literatura: Alfredo Bosi, José Guilherme Merquior,, Afrânio Coutinho Merquior C outinho e Antonio Candido. Bosi define Vieira como um “[...] estupendo artista da pala vra”106. Já Merquior toma muitos dos seus sermões como “[...]
Por fim, Candido toma-o como um “escritor ardente, correto, a sua linguagem cheia de vigor e harmonia tornou-se um dos modelos da escrita clássica portuguesa”109. No caso de Euclides da Cunha, Bosi nota que “a expressão ‘barroco científico’, com que já se procurou batizar a sua linguagem, indica-lhe a essência, se em ‘barroco’ visualizamos, antes de mais nada, um conflito conflito interior interior que se quer resolver pela aparência, pelo jogo de antíteses, pelo martelar dos sinônimos ou pelo paroxismo do clímax”110. Para Merquior, Euclides da Cunha é dono de uma “[...] frase contundente, angulosa, convulsa [...], singularizada pela elasticidade da sintaxe assindética (quase sem conectivo), dos crescendo dramáticos e dos ritmos espasmódicos [...]” 111. Coutinho vê n’ n’Os Os Sertões, Sertões, “[...] como arquitetura e como construção, [...] o caráter de narrativa, de ficção, de imaginação. Os Sertões são Sertões são uma obra de ficção, uma narrativa heroica, uma epopeia em prosa, da família de A de A Guerra e paz , da Canção de Rolando e Rolando e cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada Ilíada””112. E Candido assinala em Os Sertões “[...] Sertões “[...] o voo
exemplos incomparáveis de artifício retórico posto a serviço do pensamento””. Entre estes, encontram-se “[...] a guirlanda de metáfopensamento ras, desfraldadas em amplo movimento alegórico; o amor à antítese; a frase de ritmo rápido, sincopado, enérgico; enfim, a indicação teatral do paradoxo [...], plataforma, por sua vez, de novas salvas metafóricas, e de novos arabescos de figuras de pensamento e de dicção” 107. Coutinho, assinala que ele, Vieira, aliou “[...] a essência
retórico do estilo, inclusive no rebuscamento do vocabulário e das construções sintáticas, bem-vindos aos ‘cultores da forma’”113. Em resumo: tirante a definição de Afrânio Coutinho para Os Sertões,, que lhe atribui um caráter ficcional (apesar do autor se vaSertões ler apenas da autoridade de crítico e de professor universitário para
106 (BOSI 1984:50) 1984:50) 107 (MERQUIOR 1979:18)
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108 109 110 111 112 113
(COUTINHO 2001:116) (CANDIDO 2004:26) (BOSI 1984:349) (MERQUIOR 1979:196) (COUTINHO 1981:82) (CANDIDO 2004:83)
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fazer tal asserção, deixando de lado qualquer problematização sobre o que asseriu, isto é, onde se encontra e como se dá a ficcionalidade na obra de Euclides), todas as demais definições confluem para o mesmo ponto: Vieira e Euclides estão nas histórias das literaturas brasileira e portuguesa pela qualidade retórica do texto114. Ora, se o princípio finalista dos gêneros miméticos é a imitação, a ficcionalização, a autonomia do texto em relação ao seu referente e, por sua vez, a construção construção de uma linguagem linguagem que não seja persuasiva, o que encontramos nos textos de Vieira e de Euclides é exatamente o inverso (sem esquecer que ambos não pretendiam, se pensarmos, aqui, pelo viés da intencional intencionalidade, idade, subordina subordinarr os seus textos a nenhum gên gênero ero ficcional. Muito pelo contrário). No caso de Vieira, sua obra segue o plano do discurso apregoado pela oratória: persuadir e comover. Para 114 Talvez pudéssemos pudéssemos evocar para essas obras o conceito formalista de literaturidade (literaturnost ), ), desenvolvido por L. Jacobinski, em 1916, no ensaio “Conclusões sobre a teoria da língua poética”. Para este teórico, a literaturidade perseguia antes como o efeito de estranhamento da linguagem construía a percepção artística do que os princípios nalistas da poesia: a mímesis. É dentro desse princípio que Jacobinski e os demais formalistas irão denir a li teraturidade a partir da confrontação entre a língua poética e a língua prática, cotidiana, que tem como m a comunicação interpessoal. “’Os fenômenos lin guísticos devem ser classicados do ponto de vista do objetivo visado em cada caso particular pelo sujeito falante. Se os utiliza com objetivo puramente prático da comunicação, ele faz uso do sistema da língua quotidiana (do pensamento verbal), na qual as formas linguísticas (os sons, os elementos morfológicos, etc.) não têm valor autônomo e não são mais que um meio de comunicação. Mas podemos imaginar (e eles existem realmente) outros sistemas linguísticos, nos quais o objetivo prático recue a um segundo plano (ainda que não desapareça inteiramente) e as formas linguísticas obtenham um valor autônomo’”. (Apud EIKHENBAUN 1978:9). No entanto, há um ruído na aplicabilidade do conceito de literaturidade à prosa (diverso do que ocorre nas formas poéticas). Na prosa, as palavras não têm autonomia, pois, enquanto instrumento, estão subordinadas à construção de um sentido: construção linear calcada em cima de ideias, críticas, fatos e análises. Todo narrador (indiferente de sua prosa ser ccional ou não), ao tempo em que narra, escolhe, analisa e interpreta. Diverso da poesia, onde o processo de decifração da palavra e do verso só se dá pelo processo de recifração. Ou, como bem diz Octávio Paz, “[...] o sentido do poema é o próprio poema”, pois “há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa; só existe uma em poesia” (PAZ 1976:48).
Capítulo 1 . O que é e o que não é literatura?
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tal, ele se instrumenta nos preceitos da retórica clássica: o “exórdio” ou “princípio” (o começo) do discurso, que é constituído de duas partes: a “proposição”” dos temas e a sua “divisão” (as partes que vão constituir o “proposição discurso); segue o “desenvolviment “desenvolvimento” o” do discurso, que é formado tanto pela “narração” quanto pela “argumentação” (esta podendo encerrar o silogismo, o paralogismo, o paradoxo e exemplos); e, por fim, a “peroração”,, “conclusão” ou “epílogo” ração” “epílogo” do discurso. Assim, se o discurso, enquanto oratória, se pauta pelo bem dizer (bene (bene dicere) dicere) e pelo persuadir ( persuadere persuadere), ), todo esse bem dizer e todo esse persuadir têm como fim ensinar (docere (docere), ), agradar (delectare (delectare)) e comover (movere (movere))115. No caso de Euclides, se a qualidade retórica do texto é indiscutível, não podemos acusá-lo nem de ter construído um pacto ficcional com o leitor (toda a forma tripartite da obra segue uma lógica que se subordina aos princípios científicos do seu tempo — o meio determina a degradação da raça, e ambos explicam as causas do evento a ser narrado: a Guerra de Canudos), muito menos de perseguir, em sua obra, o “acontecível”. Assim, tanto Vieira quanto Euclides escreveram obras em que podemos acusar, em determinados momentos da sua prosa, uma linguagem carregada de significados e de significações (particularmente no uso de tropos), mas que não respondem ou se inscrevem nos demais tópicos que, em conjunto, perfazem o grosso dos gêneros textuais que compõem as histórias da literatura. Neste caso, tomá-los como literatura “por semelhança de família” (no caso, pela qualidade retórica do texto) é subordinar os seus atos ilocutivos (enunciados sérios, literais ou não literais) aos atos locutivos ou perlocutivos. E tais atos ou se atêm ao texto (a qualidade retórica) ou aos seus efeitos (a persuasão e a comoção). Logo: (a) a substância específica dessas obras não é a mimeses, nem a fictio a fictio;; (b) esses livros não têm uma posição ex-cêntrica em relação aos fatos, pessoas e valores que povoam a CARMONA (2003); TRINGALI TRINGALI (1988) 115 Ver MOISÉS (1992:152-155); CARMONA
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realidade empírica. Logo, não são fatos e pessoas puramente textuais; (c) o pacto de intencionalidade estabelecido com o leitor não é o do fingimento, mas o do critério de verdade e realidade prevalecentes em seus tempos: seja ela a “verdade” perseguida pela ciência e a filosofia,
a realidade empírica. Se Machado e Jorge de Lima fingem as suas asserções, o mesmo não podemos pode mos dizer de Vieira e Euclides. Daí por que a dicotomia verdadeiro/falso poder ser aplicada aos seus textos, mas não aos de Machado e Jorge de Lima.
seja a da teologia ou das Escrituras. Se, por ventura, esses autores faltam com a verdade nos seus textos, eles incorreram na mentira, e não na criação ficcional, pois, como vimos, o avesso da verdade é a mentira; já o avesso de fingir é “desenganar”, no sentido de “esclarecer”. Por fim, o único elo entre essas obras e os gêneros literários seria a suposta qualidade retórica dos seus textos, as supostas propriedades sintáticas ou semânticas específicas. Porém, essas não são necessariamente propriedades (específicas) da literatura, são procedimentos que podemos encontrar ou não em um texto literário, como também em obras filosóficas, religiosas e de ciências exatas. Por fim, (d) um texto literário carregado de significados e significações exclui do seu horizonte a “semelhança mais semelhante”, que é o estatuto do “reconhecimento” (tanto os Sermões Sermões,, de Vieira, que se decifram pela teologia e a Bíblia Bíblia,, quanto Os Sertões, Sertões, de Euclides da Cunha, que se calçam nas teorias cientificistas que lhe eram contemporâneas, são exemplos de “reconhecimentos”, e não de “singularizações”). Desse modo, se as obras citadas no início deste ensaio com-
Concluindo: como afirmamos no início deste artigo, os estudos sobre o que é e o que não é literatura pecam por querer definir a literatura apenas por um dos seus aspectos: ou centrando-se no texto ou na sua recepção. É o que faz Searle, ao defender que cabe ao autor decidir se a sua obra é ou não ficção e, ao leitor, a decisão de afirmar se uma obra é ou não literatura. No primeiro caso, a palavra ficção é tomada por Searle apenas no sentido de “criação” (daí por que ele desconsiderar o leitor) e não em sua dupla acepção: a de “criação” (sentido próprio) e a de “ação de fingir” (sentido figurado). Ora, como quem finge finge para alguém, tomar a ficção também no seu sentido figurado já implica na construção de um pacto com o leitor. Logo, não é só o autor que delimita a ficcionalidade do seu texto, mas também o leitor, que é convidado a participar desse pacto ficcional. Sem esse pacto entre autor e leitor, a ficcionalidade não se perfaz e, por extensão, os gêneros que formam as histórias da literatura e que são calçados na ficcionalidade: a poesia, a epopeia, o drama, o romance, o conto e a novela. Gêneros estes que só poderão ter as suas “naturezas” apreen-
partilham dos mesmos genes, obras como a de Vieira e Euclides não trazem marcações que as inscrevam na mesma família em que Memórias póstumas póstumas de Brás Cubas e Cubas e Invenção de Oreu participam. Por se nutrirem de um referente, mas não se subordinarem a este (e aqui a dicotomia verdadeiro/falso perde completamente o seu sentise ntido), as obras de Machado de Assis e de Jorge de Lima terminam por “neutralizar”116 o modo como os demais discursos (sejam eles científicos, sejam religiosos ou morais) buscam tematizar ou apreender
didas e tomadas como partes de uma mesma família se consideramos o fenômeno como um todo sistêmico: 1º A imitação e a ficcionalidade do texto (compondo a unidade dos gêneros literários) e, como parte dessa ficcionalidade, ficcionalidade, a recepção de quem o lê perfazendo o pacto ficcional; 2º A intencionalidade do autor (o estatuto histórico-temporal da obra e, por desdobramento, as marcações dadas pelo autor empírico e que delineiam a sua recepção); 3º A verdade e a realidade textuais (o caráter imanente do texto); 4º Os significados e significações do texto (sua condição artística e trans-histórica). Mesmo sabendo que,
116 Ver LIMA (2002:666)
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isoladamente, cada um desses aspectos sejam variáveis conceituais (podemos encontrar cada um desses aspectos nos demais gêneros textuais, como vimos no caso de Vieira e Euclides), em conjunto (e só em conjunto) eles se constituem (e é o que tentamos demonstrar ao longo deste artigo) em uma invariável. Invariável esta que está presente tanto nos gêneros que compõem a poética clássica (o épico, o lírico e o dramático) e medieval (a novela de cavalaria) quanto nos que surgiram a partir do Renascimento (o romance, o conto e a novela). Referências
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pluralidade de enfoques teóricos. Se a teoria puder se definir como modulações de uma reflexão sobre o fazer literário, o pensamento teórico fica mais livre para equilibrar, relativizar, modelar abordagens no momento mesmo em que a literatura se serve de outras mídias para a construção de seu objeto. Uma consideração sobre a emergência hoje de outras teorias pode conduzir à conclusão de que sua função continua a de ser uma atenção refletida ao imprevisível da criação. O empenho teórico é como o fervor que resulta da febre que um texto forte provoca: seja que a reação tenha sido de execração ou de exultação, o momento teórico tenta então depurar a paixão na aventura de um exercício intelectual de reflexão analítica. E menos com o intuito de restituir o texto que de recompor sua possibilidade.
da teoria literária parece inapreensível — sobretudo em seu modo anterior; as causas da crise conceitual são difusas como é complexa a cultura contemporânea; porque o abalo sísmico provocado pelas possibilidades de produção literária no espaço cibernético leva os teóricos a redefinir seu objetivo (a que serve ainda a teoria?) e mesmo seu objeto (há alguma unanimidade no que se pretende literário?). literário ?). Enquanto foi compreendida como extensão da prática heleno-judaica do comentário e interpretação de textos, ela deteve um sentido agregador junto à comunidade e teve um papel relevante no prosseguimento de uma dada noção de cultura. A Poética Poética de de Aristóteles é sempre a referência — chamada ou xingada: dois mil e quinhentos anos de presença pesam. Se já é um texto de teoria, isso só pode ser aceito sob reservas prudentes para
Com a entrada do século XXI, já o conceito de teoria literária tinha entrado em deliquescência. As novas tecnologias fizeram vir à tona problemas teóricos que não poderiam ter sido abordados antes. A web 2.0 permitiria outros modos de permuta, de leitura, de produção de textos e de uma possível frequentação imediata dos teóricos, e, em consequência, mudaria a prática de pensar o texto literário. E o estudioso de literatura se vê confrontado a outra realidade, tendo que pensar o que não previu e que ser sensível ao inesperado, na fusão de registros do protocolo literário atual. A profusão de experimentos pôs em xeque a estabilidade conceitual anterior: já se sabe cada vez menos como classificar o que se está fazendo — mas, o que mais importa, se está produzindo em torno da literatura. As definições anteriores, vigorosas e veementes, perdem seu poder ante o impacto das transformações operadas no campo da criação literária. As discussões críticas já não têm a contundência excludente de ontem, mas os discursos se toleram mais, quando não fraternizam francamente em suas diferenças. À primeira vista, e como consequência, a situação presente
evitar anacronismo. Seu objeto não é tanto aquilo que, sobretudo depois de Valéry vamos chamar de poética poética,, mas a representação, a mímese, da ação; e, por extensão, do mundo. Onde uma poética estende e classifica, a outra, mais próxima, aprofunda. O modo mais descritivo de Aristóteles, ocupado com gêneros de representação, epopeia ou drama, tragédia ou comédia, marca ainda os estudos teóricos. A essas abordagens é oportuno acrescentar as novas leituras do real, advindas da Física atual: A atual: A natureza apresenta-nos, apresenta-nos, de de 1 ato, a imagem imagem da criação, criação, da imprevisí imprevisível vel novidade. A tônica sobre a imprevisível novidade deixa mais nítido o desafio da tentativa de compreensão do real literário contemporâneo. Com a eclosão da cultura virtual, volta Valéry: as diversas dimensões das linguagens, agora mais modais, como possibilidade de enriquecer as virtualidavir tualidades da criação literária. Desde os anos 20, no século passado, se viu surgir a necessidade de um consenso e de maior segurança teórica. Há aqui uma 1
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profusão de teorias sociais, psicanalíticas, antropológicas, que vão se fecundando mutuamente. O teórico de literatura ganhou um espaço no debate cultural — mesmo se ainda muito restrito ao ambiente acadêmico; a concentração acadêmica fez sua força — e também sualiterários fraqueza;mantêm mas, logo pela ciências estreita sociais, relação que que os estudos comdepois, as demais também recorrem à linguística, à filosofia, à psicoanálise, o teórico de literatura ganhou uma plataforma no questionamento das coisas culturais. A teoria, seguindo os ares do tempo, pretendeu criar um corpus conceitual corpus conceitual que, dotado de uma metodologia rigorosa e uma terminologia operacional nova, desse status status de de ciência, emulando, assim, as ciências naturais e as exatas. O afã teórico levou a extremos e fez alguns prisioneiros de uma nova escolástica; o totalitarismo teórico tem, no pior, dupla deriva: política e teológica. Fez mais mal que bem. O empreendimento teórico é um projeto de ultrapassagem, porque de crítica, não de crença. Sua atuação crescente desperta admiração e receio, respeito e desconfiança. Se não se po de falar mais em falência das teorias, não há como negar seu progressivo descrédito. As correntes teóricas se tinham cristalizado a partir da prevalência de posicionamentos políticos — que resultavam em redundância: ler um texto enquanto crítico marxista ou cristão oferece pouca margem à descoberta e muita margem à confirmação de uma teoria já consabida de antemão; porque o princípio mesmo do saudável distanciamento crítico já está sacrificado. Depois do giro do giro linguístico linguístico,, já nos tumultuados anos 70, a linguagem ocupou a centralidade da cultura; e houve uma recrudescência teórica notável. A lamentar, o saldo: não foi tanto a contribuição generosa à abertura, à recepção do texto, mas a redistribuição dos lugares acadêmicos, a conquista de cátedras. Estruturalismos, new criticism,, formalismos, todos tonitruando na soberana alegria de criticism
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suas afirmações e felizes com o eco de sua divulgação nos quadrantes latino-americanos; um modo pouco sutil de imperar era er a reduzir perplexidades e complexidades alheias para melhor desmontá-las. O debate entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins, nos meados dos anos 60, padeceu desse esquema; nem sempre Álvaro tinha razão; o prestígio da novidade das teorias americanas dava a Afrânio força. Hoje Antonio Candido ou João Cezar de Castro Rocha restituem a querela, sobretudo com ganho para o teórico mais jovem. Volta a vez de quem ousa e arrisca, na busca de outros modos críticos. Como é o caso de Eduardo Maia: “A lição orteguiana para a teoria literária é a de que não há objetivismo possível sem subjetivismo, mas o subjetivo não existe em si, isolado e independente de sua relação com as coisas ao seu redor. Parece-me uma proposta elegante e realmente interessante para a superação da querela entre o contextualismo radical, por um lado, e o imanentismo na análise textual, por outro, de algumas correntes de teoria literária contemporâneas”.2 Como acontece depois de mutações fundas, alguns apontam no fim de um modo o fim de um mundo. Os mais impacientes já pensam definir esse tempo como depois depois da da teoria;3 o gesto procede se se pensar o tempo, recente ainda, quando o debate literário em jornais e revistas tinha uma importância central na dinâmica da vida cultural, uma ccomponente omponente incontornável da cultura literária. O mundo cibernético operou uma passagem considerável: da realidade aos signos, das coisas à linguagem, de Prometeu a Hermes, da energia bruta à informação sutil. No entanto, é cedo demais para falar em fim da teoria; difícil receber isso sem reticências internas, quando não com resistências externas, como é o caso de Repensando a teoria, teoria, de Richard Freadman, Richard e Seumas Miller.4 Como é 2 3 4
(MAIA 2013:81). (EAGLETON 2005) (FREADMAN; MILLER 1994).
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também o caso do presente projeto que João Sedycias organiza aqui: repensar a teoria é postura oposta à ação arbitrária de descartá-la, por não abarcar todas as dimensões do possível, do imprevisível — que caracteriza a criação literária contemporânea. No universo hierarquizado, burocrático, administrativo onde se estruturou a disciplina teoria da literatura, a cristalização de suas descobertas em certezas repassadas em vulgata doutrinal foi, certa, letal; mas assimilar essas limitações à definição de teoria, não seria justo: a teoria é o esforço permanente de repensar o fato literário; e isso, ao modo da assíntota: sendo de natureza predominantemente retórica e não simplesmente lógico-dedutiva, a relação assintótica assintótica da teoria com o real literário vai cercá-lo sempre, sem abarcá-lo nunca. O rigor da lógica sempre fica aquém da força de evidência da coisa literária. A
semiótica, as teorias da recepção, o pós-estruturalismo e, dentro deste, o projeto ou estratégia desconstrucionista, todas as abordagens mantêm um ar de família, para dizer com Wittgenstein: nos jogos analíticos que propõem ainda há o elo entre linguagens, sociedade e sua possível tradução tradução do do gesto criador — no seu étimo original. A ascendência circunstancial dessas escolas está ligada às in junções sociopolíticas: os grandes centros universitários divulgam com mais eficiência a pretendida superioridade de seu aporte teórico; acontece, não raro, de um movimento ter mais força de circulação que de consistência teórica; havia um fetiche de sacralização de tudo o que emanava dos grandes centros universitários. Seria interessante observar do ponto de vista sociológico a ascendência, poder e prestígio terrorizantes de certos nomes. Um vocabulário
literatura, ainda que indefinível, transcende as teorias. A teoria como a concebemos hoje, instituída instituída enquanto disciplina universitária, deriva de inícios do século passado, entre os anos 20 e 30. Um grupúsculo de pesquisadores, amadores de literatura, literatura, cedo vai se transformar transformar num coletivo coletivo com força força de forjar ooss conceitos que revolucionarão os estudos teóricos. O grupo de Moscou se torna representativo, representa tivo, emblemático dessa virada de renovação; infelizmen infelizmente te a tradição vai engessá-los — os ormalistas — ormalistas — numa função de tribunos; a um passo da função judicial. Os estudos se deslocam, no período entre guerras, e o centro de gravitação dos estudos de teoria pende para a Alemanha; depois para Praga, mas mantendo ainda um ar de família, reconhecível no empenho na objetivação do texto. Quando o foco de pesquisa se desloca e acontece nos Estados Unidos — o célebre new criticism — as variações de abordagem divergem entre a crítica formal e a teoria literária, guardando, contud contudo, o, ainda uma invariante: o caráter formal, modal, do texto. Assim, desde o formalismo russo, passando pelo new criticism, criticism, o estruturalismo, a
carregado de aluviões de discurso supostamente filosófico, científico, técnico — como se assumindo postura de que o que concebe bem não se explica claramente — deixou para as gerações atuais um campo que, depurado de areia e cascalho, fica pouco fecundo. A teoria literária perdeu o contato com o mundo social; tal isolacionismo foi letal. Mesmo se nos centros universitários os programas continuem esperando dos estudantes que salmodiem teorias como ventríloquos aplicados. A contradição começa em não pressentir que quando se fala em literatura a reflexão sobre os afrontamentos sociais, ideológicos, toma como objeto a linguagem enquanto mobilidade e modalidades de experiência — e a linguagem do teórico aponta um dado caminho metodológico consabido, um chão batido; mas com o prestígio do poder de plantão naquele centro acadêmico; a segurança suposta sacrifica, assim, a margem de liberdade; um trabalho teórico ficava sendo o jogo de completar ou decodificar com os termos aceitos em um quadro conceitual.
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Se a função do teórico muda é porque as novas formas artísticas pedem outros referenciais. A poesia de Mallarmé ou a música dodecafônica estavam distantes do grande público, então o teórico fazia as vezes de mediador cultural criando um modo de compreender o fenômeno novo. Com a mudança de sensibilidade literária, há uma prevalência da experiência sobre a referência. No mundo virtual é fácil perceber a eclosão de experiências de expressão em muitos registros. O poema compõe com a pintura, que pede a música, que põe o conjunto em movimento gráfico, como nas criações poemáticas de Jussara Salazar ou de André Vallias. A linguagem do texto já de antemão dialoga com os recursos teóricos, como romances de Lourenço Mutarelli ou de Cícero Belmar. A teoria tem o desafio permanente de acompanhar, e às vezes de sugerir, as possibilidades de criação. E respeitando a liberdade de quem dispõe de um material de difícil controle: “a literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios” 5. O desafio do teórico contemporâneo pode ser o de ter a liberdade de adequar métodos lá onde o escritor ousa modos de linguagens. Com o advento das novas mídias, há seguramente uma dificuldade em discernir o que seja teoria. Ela ainda sabe que existe; embora ignore o que ela é. A complexidade que se apresenta quando se tenta fixar conceitualmente de maneira absoluta qualquer prática cultural. Fenômeno concomitante à prática literária. Linha divisória pouco perspícua. Talvez sejam esses os vínculos interiores que, antes da teoria, a cultura literária mantinha com o corpo social. Da nebulosa de conceitos e escolas dos anos 70 pouca coisa guarda ainda o mesmo peso. Produziram um belo efeito de 5
(SILVA 1983:95).
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cientificidade nos estudos literários. Os ismos se sucederam com a força de modas, promovendo leituras enquadradas em sistemas que acreditávamos, mais que os melhores, os únicos possíveis. E, enquanto a ciência buscava uma narrativa que desse alguma unidade ao mundo, as teorias se fracionavam; nada nas investigações literárias se assemelhava à empresa utópica da teoria das cordas; ou a das catástrofes, através de processos descontínuos procurando um modelo dinâmico contínuo; ou do real velado, de que falam os Físicos: também a tarefa do teórico é captar o surgimento de uma dimensão social escondida sob a realidade do texto. Ficava, no entanto, a pretensão de cientificidade; ainda que compreendendo a ciência no estágio do XIX, com a termodinâmica [1880] e seu modelo de superação de fases, levando à entropia: cada escola supondo-se superar à anterior. Mas a analogia fica ali, deslocada: entropia só vale para sistemas fechados — não funciona na cultura, não serve para pensar a dinâmica de refazimento permanente das coisas culturais; aqui melhor recorrer à figuração da neguentropia; ou a autopoiésis (advinda também do mundo científico, da biologia, com Humberto Maturana e Francisco Varela; e diz melhor essa ess a surpreendente reorganização vital que escapa ao conceitual anterior). O cuidado em dar cientificidade às reflexões teóricas sobre literatura ainda acompanhava o paradigma dominante desde o XX, com a caução de um arrazoado emulando as exatas — e, se nem tão somente para angariar suportes financeiros para projetos de pesquisa no bojo das ciências com credibilidade pelas estatísticas e cifras, também porque respondia à suposição de uma transparência mensurável do mundo como protótipo de conhecimento verdadeiro. Esse modo de conhecimento era ainda mais prescritivo que procedural, apontava conceituações e subconceituações catalogadoras; não ousava ainda deslocar discursos, submetê-los à prova
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de autorrefazimento próprio às coisas de arte. E assim a teoria foi ficando um mundo à parte, la olie raisonnante, raisonnante, orientado pelo primado ou pretensão do modelo científico passado; fiel a uma forma de dedução lógico-racional, e nenhuma forma de linguagem comum, cotidiana, pragmática ou artística, que se servisse de imagens, analogias e metáforas, acreditava só assim ter pretensões de conhecimento autêntico. E, no entanto, já ali ao lado, a ciência de ponta, a quântica, a astrofísica, os pesquisadores como Heisenberg ou Niels Bohr não se constrangiam, antes se rejubilavam em perceber no mundo real dimensões que não cabiam num mero conceito. A teoria literária ficou presa a um processo dedutivo fechado em si mesmo e não podia ousar outras formas de persuasão que não derivassem desse processo lógico. Assim, o desvio desnorteou
acompanhava a de Ortega y Gasset. A eficácia de uma leitura inteligente e viva vinha substituída pelo vocábulo técnico que, à guisa de servir à literatura, se servia desta para mascarar a ocupação de um espaço. Quanto mais absconso o discurso, maior seu poder de fascínio. O teórico era definido como um manipulador de conceitos, para quem o fato literário só existia para caber num sistema. Aqui, como no campo da química, a densidade aumentava a temperatura: tempo das querelas por nuances conceituais; e a consequente clausura defensiva. E, se o poder se percebe pela culpabilidade que inspira, não surpreende que os estudantes tomem por prudência, por osmose ou conforto intelectual, um alinhamento teórico mais susceptível de garantir suportes financeiros pela aceitação junto aos organismos dispensadores de bolsas e benefícios. Há que se lamen-
a geração seguinte que via na abstração cientificizante o sequestro da contingência que marca as valorações humanas. A tautologia e a previsibilidade beiravam o tédio; para onde tende toda vulgata: perde seu fulgor inicial de descoberta e finda em controle feroz de catecismo. De qual crédito goza ainda a teoria literária, junto a seus leitores eventuais, na diversidade de suas expectativas, nos corredores universitários? Quanto do particularismo das linhas ideológicas demasiado rígidas das escolas pôde agregar em suas sistematizações rígidas? A nova sensibilidade coletiva, construída a partir das aberturas virtuais, sob a urgência do presente, vai se inventando uma forma de debate teórico cruzando muitas mídias. Como crer que o close reading dê conta da produção literária atual, tão assombrosamente heterogênea? Não há receita para a reflexão — incumbência eminentemente teórica. O encapsulamento operado nos estudos teóricos nos anos 80 não prestou grande serviço à credibilidade e difusão da literatura; os sintomas dessa expressão de poder vinham de longe; e já desde os anos 50, em Genebra, a advertência pertinente de M. J. Durry
tar a perda dos níveis de integração, entre boa parte dos teóricos; sobretudo quando se poderia fazer face ao inimigo comum: a indiferença que hoje grassa nos corredores e desemboca nas outras mídias. As segregações departamentais negavam o movimento mesmo da cultura contemporânea: moléculas, células, órgãos e sistemas, tudo se define pela conexão; a sensibilidade contemporânea parece dar provas desse outro modo de inteligência — modi res considerandi — novas formas de pensar a teoria literária: as redes sociais permitem muito — inclusive o melhor. A perspectiva globalizante ultrapassa as fronteiras das literaturas regionais e afirma a liberdade atual de poder cruzar pontos de vista teóricos e disciplinares. A teoria, portanto, está hoje também nas redes, ainda que sem pretender a sistematizações. Em algumas revistas digitais, como Cronópios, Sibila e Zunái, a reflexão em torno de teoria literária prossegue, entre jovens-cabeça jovens-cabeça e e cabeças grisalhas; um modo frutífero de troca de experiências — e farpas, certo; mas que, se estão ali, é por crerem ainda de algum proveito e sentido estar no espaço da teoria como numa encruzilhada de modos e métodos de pensar a literatura.
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Os teóricos refletem sobre literatura como extensão de suas práticas de leitura. Desde Aristóteles: a Poética não vem com programa de prescrições, mas antes, de descrições; ainda que pontuadas por reflexões que guardam seu rescor de pertinência. per tinência. Ernst Robert Curtius ou Antonio Candido, George Steiner ou Jean Starobinski, o trabalho teórico neles não busca dissimular insuficiências e lacunas, e por isso chegam a uma finura de observação, observação, a uma pertinência de valoração que acrescentam a quanto os leiam. Mesmo os mais próximos, como Marcus Siscar ou Paulo Franchetti, Franchetti, Antonio Carlos Secchin ou João Cezar de Castro Rocha, se teorizam, o azem com firmeza, mas também com retenção, com reserva, como num aã de partilhar percepções. Porque distantes da patrimonialização das teorias, a liberdade deles se soma à nossa; propõem, mais que impõem. A questão aqui seria: a teoria literária tem futuro? Podem-se discernir, em meio aos muitos fracassos, os sinais de sua permanência? Desde os anos 60, a teoria literária projetou sobre os estudos universitários um modo de pensar a realidade do texto e ocupou um espaço necessário. Algumas teorias trazendo mais originalidade que peso; outras, mais singularidade que crédito. É bom não esquecer o lugar de onde emanam as teorias; sua patrimonialização nos centros universitários de maior suporte financeiro conta muito: o sucesso não é tanto que sejam operacionais, mas que circulem; cumulam, assim,
de segurança; as citações possíveis estão na internet, em sua grande parte; mas elas já não servem do mesmo modo: antes, davam a impressão de segurança; hoje, servem de suporte para a reflexão mais pessoal. A teoria dissolveu sua segurança, cristalizada pelos últimos anos, e a literatura preservou seu talento excepcional para sair-se do impasse criativamente. E, no entanto, urge acreditar no quanto a teoria literária pode trazer à cultura. Mesmo não sendo fácil definir a extensão desse aporte, ele é um gesto afirmativo. No espaço acadêmico, ou no espaço virtual, a teoria pode ser um trabalho de criação coletiva; um empreendimento coligando outros colaboradores; onde o prazer da partilha, nesse modo de saber que fraterniza, é maior que as hierarquias. O espaço cibernético permite um modo teórico mais livre, onde o discurso científico convive com o controverso, a escrita artesanal com a técnica; a teoria anterior carregava o compromisso com a segurança conceitual, quando compreender era enquadrar num sistema teórico, integrar nele o texto, transformá-lo enfim em prova de validade da teoria, afastando suposições (mais procedurais, mais deslocáveis, na cultura virtual) — antes essa alternância que aquela alternativa. E quem hoje ousa pensar a teoria literária não se constrange em fundir, num mesmo empreendimento, função e paixão. Deixando espaço à acolhida e à surpresa, uma vez que o mundo cibernético fica à beira
a expectativa de certos centros por dividendos imediatos. A teoria padecia da síndrome de quem fica entre Cila e Caríbdis: de um lado, o recente imperativo mercadológico neoliberal que hoje a condiciona; e, de outro lado, a superstição de autoridade inconteste das posturas teóricas anteriores. O ciberespaço desvirtua essa direção, relativiza as autoridades superficiais e se propõe, na maleabilidade de formatação das redes, um serviço de maior partilha de um saber. A teoria literária em tempos de redes sociais pode ser aventura de grande fôlego: o exercício do pensamento não se faz com redes
de eventualidades, de possíveis, sendo uma sucessão de equilíbrios efêmeros. Sem, no entanto, renegar o primado da reflexão que sustém a análise. A teoria literária, a despeito de suas imperfeições, de suas lacunas, de suas insuficiências, a despeito mesmo do anacronismo das instituições universitárias, é ainda um espaço da liberdade de refletir sobre a prática escritural, o espaço do direito à pesquisa, tão certeiramente requerido por Mário de Andrade. A grande disparidade entre as correntes teóricas e as políticas que caracterizaram os estudos literários manifesta especialmente a
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fragilidade das instituições universitárias quando, para assegurar crédito, repetem, em pior, os aparelhos de controle contra os de criação; e, assim, distanciam, mais que agregam, o possível público leitor de literatura. A complexidade mesma da matéria com que trabalha o teórico — a literatura literatura — — é de difícil conceituação unânime. A tarefa do teórico começa quando se dá conta da dificuldade de definir essa dificuldade: a palavra literária, a que suscita no leitor prazer ou espanto, exasperação ou exultação, enfim que o atinge. A reflexão teórica pode começar na linguagem, a base mesma do fato literário (ainda que, por temer uma suposta aristocracia do espírito, de tradição humanista, a teoria mais recente tenha se autorizado alianças suspeitas). E, mesmo se o autor não pretendeu qualquer reflexão abstrata, cabe ao teórico fazê-lo porque essa dimensão metaliterária que está no interior do texto o alarga. Assim, em qualquer que seja o suporte, o teórico pode contribuir para clarear sentidos e possibilidades de leituras. Há aspectos do fenômeno literário que a teoria pode liberar, fortificar, enriquecer. E, acreditando na relevância de manter algum referencial de rigor simultaneamente analítico e criativo, pode pôr alegria na função que lhe cabe no sistema da vida social. É de se esperar que especialmente na plataforma virtual a teoria ganhe em liberdade e persistência.
Capítulo 2 . A teoria literária
FREADMAN, Richard; MILLER, Seumas. 1994. Re-pensando a teoria: uma crítica da teoria literária contemporânea. Trad. Aguinaldo José Gonçalves e Álvaro Hattnher. São Paulo: Unesp. MAIA, Eduardo César. 2013. Crítica e contingência: uma reavaliação da crítica humanista através do perspectivismo filosófico de José Ortega y Gasset e do personalismo crítico de Álvaro Lins. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Tese de doutorado. Orientador: Prof. Dr. Lourival Holanda. MERQUIOR, José Guilherme. 1975. O estruturalismo dos pobres e outras questões. MERQUIOR, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. MILLER, J. Hillis. 1986. Te Ethics o Reading: Kant, de Man, Eliot, rollope, James, and Benjamin. New York: Columbia University Press. NINA, Cláudia. 2007. Literatu Literatura ra nos jornais. São Paulo: Summus Editorial. PRIGOGINE, Ilya. 1996. O fim das certezas : tempo, caos e as leis da natureza. São PRIGOGINE, Paulo: Unesp. PUTNAM, H. 1981. Mind, Language, and PUTNAM, and Reality . New York: New York University Press. RORTY, R. 1996. Contingencia, ironía y solidaridad . Barcelona: Editorial Paidós. SCHOLES, R. 1985. extual Power. Literary Teory, and the eaching o English. New Haven & London, Yale: University Press. SELDEN, R. (ed.). 2010. Historia de la crítica literaria del siglo XX: del ormalismo al Postestructuralismo Postestructuralismo. Madrid: Akal. SILVA, Víctor Manuel Aguiar e. 1983. eoria da literatura. Coimbra: Almedina. WATERS, Lindsay. 2004. Enemies o Promise: Publishing, Perishing, Perishing, and the Eclipse o Scholarship. Scholarship. Chicago: Prickly Press.
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Capítulo 3
Crítica literária: seu percurso e seu papel na atualidade* R A S Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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I
A expressão “crítica literária”, talvez, sobretudo, na língua inglesa, é em geral empregada de modo extremamente impreciso. Designa via de regra o conjunto dos estudos literários, assim englobando vertentes bastante distintas desses estudos, e, pois, misturando num balaio só tanto disciplinas antigas, como retórica e poética, quanto modernas, como história da literatura e teoria da literatura. Procurando um pouco mais de precisão no uso da terminologia técnica da nossa especialidade, tentemos um desenredo, que nos permita situar de modo mais claro o conceito de crítica literária, bem como compreender melhor sua função no momento presente. II
nota inicial *
Versão revisada de ensaio ensaio anteriormente publicado em: Floema; Caderno de teoria e história literária. Vitória da Conquista, BA, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Ano VII, n. 8, jan.-jun. 2011, p. 33-44.
A compreensão imediata da noção veiculada pela palavra crítica crítica con contrasta com o precário conhecimento acerca da história do termo1. Sem condições de contribuir para superar completamente esse problema, podemos, contudo, pelo menos situar alguns referenciais preliminares. A palavra, proveniente do grego, integra inicialmente o vocabulário da pedagogia. No sistema da educação antiga — esboçado a partir de em torno do século VI a.C. e vigente até por volta do século V da 1
(cf. WELLEK s.d. [1963]:29).
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nossa era —, depois das primeiras letras os alunos passavam a dedicar-se ao estudo aprofundado dos escritores clássicos. Encarregavam-se desses cursos mestres chamados em geral gram geral gramátic áticos os,, ou então, alternativamente, filól nativamente, filólogos ogos,, e ainda críticos críticos,, designação corrente nos meios situados sob a influência da escola filosófica dos cínicos2. Do grego a palavra passa para o latim, tornando-se, no entanto, de uso pouco frequente, dada a preferência manifestada nessa língua pelo vocábulo concorrente gram concorrente gramátic áticoo3. Nos empregos greco-latinos dessas palavras, parece nem sempre ter havido sinonímia perfeita entre elas, observando-se indícios de que se reservava a expressão crítico para designar o indivíduo habilitado a maior aprofundamento aprofundamento nas especulações sobre os textos, em comparação com o saber mais modesto característico do gramátic gram áticoo 4. Na Idade Média, ao que parece, o termo crítico crítico deixa deixa de circular. Registra-se apenas a forma adjetiva, como um derivado do substantivo crise, em expressões como “doença crítica”, crítica”, na terminologia 5 da medicina, por conseguinte . No Renascimento, porém, a palavra ressurge no sentido literário. Recupera-se então a virtual equivalência entre os termos gratermos gramático,, filólogo mático filólogo e e crítico crítico,, para designar os humanistas empenhados na restauração, comentário, compreensão e julgamento dos textos da Antiguidade 6. Finalmente, nos vernáculos modernos, entre fins do século XVI e início do XVIII o vocábulo crítica expande seu uso e se firma, com algumas assimetrias nacionais que por ora não nos interessam7. 2 3 4 5 6 7
(cf. MARROU 1973 [1948]:252-253). (cf. WELLEK s.d. [1963]:30). (cf. WELLEK s.d. [1963]:30). (cf. WELLEK s.d. [1963]:31). (cf. WELLEK s.d. [1963]:31). (cf. WELLEK s.d. [1963]:32-45 [1963]:32-45,, passim).
Capítulo 3 . Crítica literária
III
Curioso é que, se o crítico crítico,, como vimos, tornou-se personagem bem conhecido na cultura ocidental, a crítica crítica não não constitui espaço disciplinar autônomo, pelo menos até o século XVIII. Assim, seu exercício se dava no âmbito da gramática, da retórica e da poética. A expressão grega originária para designá-la é kritike tekhne (tradutekhne (traduzida em latim por ars critica), critica), isto é, “arte crítica”, tomada a palavra arte na acepção antiga, ou seja, com o significado de “habilidade”, “perícia”, “técnica”. “técnica”. E na verdade tratava-se de uma prática sensivelmente distanciada do que chamamos hoje crítica literária. literária. Com efeito, na tradição antiga, exercer a crítica significava percorrer um caminho escalonado. Num primeiro momento, tratava-se de apurar a fidedignidade da cópia de um texto. No início de uma aula naqueles tempos muito anteriores à era da imprensa, professores e alunos tinham de preliminarmente verificar o grau de correspondência entre as cópias manuscritas dos textos de que cada qual dispunha. Supondo-se que o texto autêntico estivesse na posse do mestre, era necessário conferir se as vias em mãos dos discípulos não apresentavam variantes relativamente à versão do professor. Constatada a uniformidade das várias cópias, passava-se à etapa propriamente analítica do trabalho com o texto: leitura em voz alta, segundo a prosódia; explicação literal literal e literária das sentenças; dedução das regras gramaticais. Por fim, coroando o percurso, vinha o julgamento dos méritos da obra, que, aliás, visava menos à identificação das “belezas” do que ao destaque de sua eficácia na proposição de padrões éticos de honra e virtude. Desse modo, os critérios especificamente estéticos — limitados à verificação do grau de conformidade entre o texto em questão e os modelos consagrados, constituídos especialmente pelo conceito de gêneros (tragédia, comédia, epopeia, etc.) — se subordinavam a princípios morais,
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Capítulo 3 . Crítica literária
pondo-se em relevo, por exemplo, a capacidade do autor em figurar exemplos de perfeição humana, mediante a caracterização dos heróis e a narração de suas ações 8. Ora, da descrição que apresentamos infere-se a feição dogmática da kritike tekhne, tekhne, exercício fortemente condicionado pela observância de regras e pela reverência à autoridade da tradição, muito distante, por isso, do entendimento moderno que temos do ato crítico, isto é, análise de um texto desenvolvida sem ideias cerceadoras e preconcebidas. Como se deu então esse salto conceitual? Tentemos uma reconstituição concisa, privilegiando uns poucos marcos estratégicos. IV
No início do século XVI, Erasmo de Rotterdam passa a aplicar a ars critica ao estudo da Bíblia, “como um instrumento a serviço do ideal de tolerância” 9. Na segunda metade do século XVII, Richard Simon, por sua vez, publica sua série de estudos críticos sobre a Bíblia: Histoire critique du Vieux estament (1678), Du text du Noveau estament (1689), Des versions du Nouveau estament (1690), Des principaux principa ux commentateurs commentateurs du Nouveau Nouveau estamen estamentt (1693) e Nouvelles observations sur le texte et les l es versions du Nouveau estament (1695)10. Utilizada para o estudo do mais intocável de todos os textos, a prática da crítica entra, assim, no século XVIII bastante alterada em relação à sua matriz antiga: em vez de exame baseado em convenções tradicionalmente aceitas sem questionamento, apresenta-se como consideração analítica livre e racional não apenas de textos, mas de 8 9 10
(cf. MARROU 1973 [1948]: 258-266, passim; SOUSA 1966:198-199; DIONÍSIO TRÁCIO 2002:35-36). (cf. WELLEK s.d. [1963]:31). (cf. BOURDÉ; BOURDÉ; MARTIN s.d. [1983]:64).
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objetos de diversas naturezas, como, por exemplo, o gosto, o conhecimento, os eventos da história. A expressão certamente mais grandiosa e influente dessa profunda reconcepção da velha kritike tekhne tekhne encontramos sem dúvida nas três Críticas Críticas de de Kant: a da razão pura (1781), a da da razão prática (1788) e a da aculdad da aculdadee de jul julgar gar (1790). Desse modo, integrada primeiro à filosofia e logo depois ao próprio senso comum, como efeito da democratização da cultura decorrente da revolução burguesa e da correlativa difusão das luzes, a crítica desborda do seu âmbito originário. originário. Deixa de ser uma técnica de análise de textos fundamentada em argumentos de autoridade, para tornar-se, na definição de um dicionário português de 1813, “arte de discernir o verdadeiro do falso; e o bom do mau gosto”11. Façamos, no entanto, abstração de suas incidências no vasto campo em que se opõem o “verdadeiro” e o “falso” (onde cabem tanto os voos metafísicos quanto o pragmatismo da vida cotidiana), a fim de reorientar nosso foco para a questão das letras. V
Aplicada a textos, à medida que se liberta da tutela normativa exercida pelas antigas disciplinas literárias — gramática, retórica e poética —, a crítica como que se desregulamenta. Prevalecendo o livre exame e, pois, o relativismo de julgamentos, tende a aproximar-se de uma nova ramificação da filosofia emergente no século XVIII, a estética. Dela absorve em especial a noção de “gosto”, que assim se desvencilha do estigma de tema intratável, cristalizado no conhecido provérbio de origem medieval: “De gustibus non est disputandum” 12. 11 12
(SILVA 1922:497, v. 1). (cf. RONAI 1980:50).
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Assim fortalecida na centúria iluminista, promovida de técnica didática a empreendimento intelectual de cúpula, a crítica literária desdobra-se no século XIX em dois projetos que se revelariam contraditórios. Segundo um deles, pretendia transformar-se numa disciplina acadêmica autônoma. Com esse objetivo, procurou superar a discussão filosófica sobre questões como gosto, sensibilidade, beleza, buscando bases científicas para suas análises e especulações, extraídas de ciências especialmente prestigiosas na época, como a biologia, a psicologia e a sociologia. Por esse projeto, a crítica seria uma ciência rigorosa, com aparato conceitual próprio apto a propor explicações causais para o fenômeno literário. Assim, à proporção que cresciam as exigências de demonstrações objetivas sobre as questões estudadas, contornava-se o enfrentamento do problema crítico por excelência, o do julgamento de valor:
Capítulo 3 . Crítica literária
erigi-la em fundamento da crítica. Esta, por conseguinte, longe da pretensão de tornar-se uma ciência especializada, seria antes uma prática diletante; seu lugar institucional e seu veículo, em vez da cátedra e do livro eleitos pela vertente cientificista, se encontraria nos jornais e periódicos: A crítica varia infinitamente segundo o objeto estudado, segundo o espírito que o estuda, segundo o ponto de vista em que este espírito se situa. Pode considerar as obras, os homens ou as ideias. E pode julgar ou somente definir. A princípio dogmática, ela se tornou histórica e científica; mas não parece que sua evolução esteja terminada. Vã como doutrina, forçosamente incompleta como ciência, tende talvez a se tornar simplesmente a arte de fruir os livros e de enriquecer e refinar, através através deles, as impressões que suscitam.14
Nada há menos semelhante que a análise dum poema no intuito
VI
de o achar bom ou mau, tarefa quase judicial e comunicação confidencial que se resume em muitas perífrases, em dar sentenças e confessar preferências, e a análise desse mesmo poema com o intuito de encontrar indicações estéticas, psicológicas e sociológicas, trabalho de ciência pura, em que o autor se dedica a extrair causas dos fatos, leis dos fenômenos, estudando tudo sem parcialidade e sem predileções. 13
Ora, esse alvo relegado pelo projeto cientificista é que constitui justamente o centro de atenção da diretriz que se lhe opunha. Conforme essa alternativa, em vez de superar-se a tendência para aferições de mérito subjetivas e relativistas, cabia pelo contrário 13
(HENNEQUIN 1910 [1888]:6).
Essa crítica jornalística, dita também impressionista impressionista,, que se destina a público heterogêneo e cuja produção não requer formação específica, estava destinada a fazer carreira. Há quem veja suas origens num periódico francês de fins do século XVII, Le Mercure Galant 15. Atravessa os séculos XIX e XX, alcançando o XXI sem sinais de exaustão. Hoje, chama a atenção seu vezo de sentenciar autores e obras de modo explícito e peremptório, quase sempre a partir de lastro analítico mínimo, limitado não só conceitualmente, mas também pela exiguidade de espaço concedido pelos jornais, e tudo segundo a fluidez exigida pela ligeireza do grande jornalismo da 14 15
(LEMAÎTRE s.d. [1887]:341-342 [1887]:341-342). ). (cf. DEJEAN 2005 [1997]:101).
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atualidade. Sirvam de exemplos duas matérias recém-publicadas no caderno cultural de um dos nossos principais diários. Na primeira, assegura o crítico no lead : “Mirisola tropeça em novo romance; cansativo de ler e ingênuo ao tentar chocar o leitor, obra relata as relações sexuais do protagonista com uma menina”16. Na segunda, se lê: “Ruffato acerta em painel da vida provinciana” 17. Seguem-se, em ambas as matérias, umas poucas colunas de texto, ilustrado com fotos dos autores. Não obstante a inversão de sinais nos juízos emitidos em cada qual, nas duas observa-se muito mais publicidade de livros do que qualquer outro conteúdo, o que, se dúvidas houvesse, se confirma plenamente com as notas em destaque que fecham cad a matéria: “Autor: Marcelo Mirisola / Editora: Record / Quanto: R $ 32,00 (176 págs.) / Avaliação: ruim”; “A “Autor: utor: Luiz Ruffato / Editora:
Essa crítica que se definiu no curso do século XIX não logrou esquivar-se, contudo, de uma fraqueza inerente às teorias factuais construídas no campo das humanidades. A certa altura de sua trajetória, começa a confundir seu axioma com os dados com que trabalha, isto é, passa a julgar as obras que analisa (seus dados) em função do conceito de literatura que adota (seu axioma). Assim, assumindo que o verismo figurativo constitui o atributo definidor da literatura abstratamente concebida, considera, por exemplo, que certo poema lírico específico é menos ou mais estimável segundo seu teor menor ou maior de autenticidade emocional, ou que uma narrativa particular tem menos ou mais valor de acordo com seu grau de transparência em relação às circunstâncias que pretende representar. Ora, esse modo romântico-realista de conceber a literatura, a partir do
Record / Quanto: R $ 31,00 31 ,00 (162 págs.) / Avaliação: ótimo” ótimo”18.
qual a crítica formulava seus juízos de valor, revelou-se envelhecido na passagem do século XIX para o XX. Como se sabe, nesse momento, experiências diversas promoveram verdadeira revolução na ideia de arte, sacrificando o princípio da referência, soberano por todo o século XIX, ao princípio da imanência: uma obra literária se define não pelo que diz, mas pelo modo de dizer; um poema não é expressão nem pensamento, mas um arranjo de palavras; um personagem não é a réplica verbal de uma pessoa, mas um efeito de sentido. Em síntese, a linguagem deixa de ser tomada como simples instrumento, para converter-se no elemento central da arte literária. Naturalmente, os produtos literários concebidos conforme esse novo paradigma não podiam ser bem cotados pela crítica literária, sendo programaticamente refratários ao conceito de literatura que lhe servia de axioma. Se num primeiro momento o prestígio institucional da crítica permaneceu forte o suficiente para marginalizá-los, o fato é que tais novos produtos acabaram por legitimar-se, a ponto de a crescente generalização de seu acolhimento ter virado
VII
Quanto à crítica que vamos chamar acadêmica acadêmica — — a fim de distingui-la da jornalística ou impressionista —, seu projeto foi constituir-se em disciplina abstratizante e universalista, dedicada a determinar o conceito de literatura, a propor princípios e procedimentos visando à análise de obras literárias e a fixar critérios destinados a aferir a qualidade das produções literárias. Trata-se, pois, de uma teoria factual19, à medida que numa de suas extremidades situa seu axioma — o conceito de literatura —, enquanto na outra dispõe seus dados, isto é, as obras literárias submetidas por ela a análise e julgamento. 16 17 18 19
(Folha 2008:5, Ilustrada). (Folha 2008:5, Ilustrada). (Folha 2008:5, Ilustrada). (cf. BUNGE 1976:436-437).
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o jogo: a crítica acadêmica é que sai de cena, por seu insuperável desaparelhamento conceitual para analisar, compreender e julgar adequadamente as obras literárias identificadas com as vanguardas artísticas emergentes na virada do século XIX para o XX. Assim desabilitada a crítica acadêmica oitocentista, sua condição de sistema integrador dos conceitos sobre a literatura e seu estudo acabaria por transferir-se para uma nova disciplina: a teoria da literatura. É verdade que o rótulo crítica literária não literária não se tornaria obsoleto a partir do momento em que, no início do século XX, começa a circular a expressão teoria da literatura literatura. Passa, no entanto, a acolher um conjunto conceitual tão distinto do que cobria anteriormente que se torna compreensível certa resistência dos meios universitários em utilizá-lo, quando a solução mais lógica seria, para nomear o novo conjunto conceitual então estabelecido, usar terminologia igualmente nova, isto é, justamente, teoria da literatura tura.. Desse modo, em geral desde então relegou-se a empregos não estritamente acadêmicos o vocábulo crítica crítica,, usado em referência a matérias jornalísticas ou até no título de publicações especializadas, mas não para designar disciplina dos currículos universitários.
adotou por axioma o entendimento das vanguardas, assumindo, pois, que o atributo definidor da arte literária consiste fundamentalmente na autorreferencialidade. Tende, portanto, a teoria da literatura a desvirtuamento análogo ao que assinalou a crítica, isto é, a proferir os seus juízos de valor a partir par tir de certo cer to padrão estético e stético apenas contingente c ontingente — o das vanguardas menciona das —, porém considerado consider ado absoluto, por sua mera condição de presente hegemônico. Mas será esse um destino inevitável da disciplina? Não necessariamente, acreditamos. Para isso, no entanto, se a teoria da literatura literat ura pretende sobreviver ao século que a criou, permanecendo vigorosa século XXI adentro, terá de assimilar um pensamento formulado na aurora da modernidade: Vive com teu século, mas não sejas sua criatura; serve teus contemporâneos, mas naquilo de que carecem, não no que louvam. Sem partilhar de sua culpa, partilha de seu castigo com nobre resignação, e aceita com liberdade o jugo de que são incapazes de suportar tanto o peso quanto a falta.20 IX
VIII
Segundo a linha expositiva até aqui trilhada, a teoria da literatura constitui uma teoria factual sobre a literatura historicamente sucessora da crítica literária. Trata-se também, por conseguinte, de disciplina abstratizante e universalista, dedicada a determinar o conceito de literatura, a propor princípios e procedimentos visando à análise de obras literárias e a fixar critérios destinados a aferir a qualidade das produções literárias. Seu conceito de literatura, no entanto, já não é o mesmo da crítica literária, uma vez que ela
Enfim, numa época como a nossa, que levou a desarticulação de valores — e não só artísticos, naturalmente — a extremos sem precedentes, talvez nunca se tenha precisado tanto de crítica 21. Não, 20 21
(SCHILLER 1995 [1795]:55-5 [1795]:55-56). 6). Empregamos aqui a palavra crítica, bem como nas ocorrências que se seguem neste parágrafo, no sentido de atitude particularmente comprometida com o pronunciamento de juízos de valor estéticos, e não para designar a disciplina denida no século XIX cuja caracterização antes esboçamos. Segundo o vocavocabulário aqui empregado existe, por conseguinte, atitude crítica não só na crítica literária acadêmica, mas também no jornalismo cultural, na teoria da literatura e
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é claro, da crítica como sensacionalização de banalidades, conforme se vê nas manifestações desinibidas do jornalismo cultural. Tampouco de uma crítica acadêmica dada à absolutização dos seus axiomas, segundo os desvios verificados no âmbito dos dois grandes modernos sistemas de conceitos sobre a literatura e seu estudo, a crítica literária e a teoria da literatura. Menos ainda — por sua tática de substituir a reflexão por um apelo fácil ao sentimento de repúdio às injustiças — de uma crítica culturalista, dada ao contrassenso de pregar o absolutismo ético e praticar o relativismo estético, no seu afã programático de revisar ou desconstruir o cânone. Em vez disso, precisamos de uma crítica fundamentada numa teoria consistente, prevenida contra a transformação de dados em axiomas, e que seja capaz de integrar compromisso com o presente e reflexão do passa-
Capítulo 3 . Crítica literária
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Capítulo 4
Reexividade, Romantismo e Modernismo S C Universidade Federal de Pernambuco
“A orça ormadora da reflexão marca a orma da obra” “A reflexão, no sentido dos românticos, é pensamento que engendra engendra sua orma” Walter Benjamin
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Acessamos o nosso tema por uma via particular e bastante objeti va, e esta é a análise do teórico e crítico Leon Chai sobre o p oema “O Triunfo da Vida”, de Percy Bishe Shelley, composto em 1822. A análise tem por título “O Triunfo da Teoria” e constitui o primeiro capítulo do seu livro “Romantic “Romantic Teory: Forms o Reflexivity in the Revolutionary Era” Revolutionary Era”1, no qual o autor explora, de modo geral, a concepção de teoria que vem à luz na esteira da Revolução Francesa. O poema nos projeta ao período imediatamente posterior ao do Círculo de Iena, a Inglaterra do século XIX, bastante próximo ainda, portanto, daquele em que frutificaram as doutrinas estéticas dos Primeiros Românticos alemães, aos quais recuaremos a fim de identificar o momento de instalação de uma tendência que viria a se se tornar a marca característica do moderno — a autorreflexividade, ou, pura e simplesmente, a Reflexão, de que nos ocuparemos neste texto. Nosso método reduplica, em seus primeiros passos, o de Chai, uma vez que focaliza a reflexividade reconhecendo a necessidade de posicioná-la em diversas molduras: a do poema, a da análise do poema, a da visão de Chai sobre a reflexividade em geral e o meio intelectual no qual se gestou. O conceito, como sabemos, vem de Fichte e, em poucas palavras, designa a atividade do pensamento que se desenvolve ad 1
(CHAI 2006).
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
infinitum o pensar do pensar, o pensar-se a si mesmo como objeinfinitum o to. Pensar o pensar é um movimento da consciência pelo qual se conformam ou tomam forma os objetos estéticos, e pelo qual se inscrevem numa trajetória que tem como horizonte a infinitude,
Na abordagem de Chai, de fato, com esse caminhar ininterrupto do pensamento para formas cada vez mais apuradas do pensar, a reflexividade, sinônimo de Teoria, ganha em poder analítico, ao se tornar cada vez mais abstrata e ao ganhar autonomia com respei-
tão cara aos românticos. Por isso mesmo, num primeiro momento, o pensamento do filósofo receberia plena e entusiasta adesão dos integrantes do Círculo. Começamos pelo “Triunfo da Vida”, porque a análise através da qual lançamos um olhar oblíquo sobre o poema de Shelley expõe a estrutura recessiva em tudo semelhante ao movimento da reflexividade que o conforma. Essa estrutura recessiva — o termo recessivo no contexto da análise de Chai se se refere ao movimento de um olhar que recua com relação a um objeto, a fim de obter, desse objeto, uma visão cada vez mais clara e abrangente — é, segundo Chai, bastante visível em “Te “Te riumph o Lie”, Lie”, no qual visões oníricas se sucedem e se enfileiram, cada visão acrescentando uma nova revelação sobre a visão imediatamente antecedente, movimento que implicaria uma crescente ampliação da nossa cognição com respeito ao objeto que se visa. Ocorre, entretanto, que o argumento poético que esclareceria determinada visão é inadequado ou insuficiente. A explicação é a cada vez adiada para a visão subsequente, que promete clarividência
to aos objetos sobre os quais se debruça. Nesse caso, uma vez que se consiga especificar a forma de uma teoria independente do seu campo de aplicação, se adquire conhecimento da natureza de todas as formas de teoria. Sem que pretendamos nos arriscar em terreno tão vertiginoso, retornamos ao poema de Shelley e à análise de Chai sobre “O Triunfo da Vida”. No primeiro episódio visionário, argumenta Chai, Shelley faz uso deliberado da alegoria a fim de nos impelir a adotar outro tipo de perspectiva para além da literal. A alegoria torna necessária a adoção de um rame um rame,, ou de uma moldura, que garanta um grau de abstração correspondente ao da imagem proposta pelo poema, ou seja, a da necessidade de uma perspectiva perspec tiva consciente de si. Na leitura de Chai, que acompanhamos, a ausência de tal perspectiva condena Rousseau, figura tutelar em foco, a seguir a carruagem triunfante da “Procissão da Vida” até a própria destruição, deixando-se subjugar pela paixão. Pois são justamente as idas e vindas da paixão erótica que são figuradas nessa primeira imagem visionária, em face das
ainda maior, na medida em que incorpora o conhecimento e a “luz” da visão precedente, o que nos coloca em dúvida sobre a possibilidade de se alcançar o fechamento de uma significação, seja para cada nova visão particular, seja para o poema como um todo. Rousseau é a figura tutelar desse processo que será nomeado por Shelley de “A Procissão da Vida”, Vida”, remetendo ao cânone literário que envolve autores como Petrarca, Dante, Homero, Virgílio e Milton. Importa aqui menos o conteúdo do poema que essa sistemática e essa estrutura, com que se movem as figuras focalizadas pelo autor.
quais fracassa da: Rousseau. Sua figura é especialmente pungente em consequência [...] sua incapacidade de oferecer ao narrador qualquer compreensão da “Procissão da Vida”, ou mesmo de suas próprias experiências [...] A admissão (dessa inabilidade pelo próprio Rousseau) implica que a experiência em si mesma, mesmo que cuidadosamente obervada, não é bem suficiente para nos levar até lá (a essa compreensão) [...] Daí a necessidade de uma nova
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revelação, precisamente para mostrar o que tornaria a compreensão possível.2
No segundo episódio visionário, Rousseau se encontra em meio a uma cena de beleza extremada e quase sobrenatural: “a paisagem é abundante em detalhes idílicos, e, para rematar, o bosque ecoa com um som ‘que todos os que o ouvem se obrigam a esquecer/ todo o prazer e toda a dor, todo o ódio e o amor’”. Rousseau vê em seguida uma imagem que é o pináculo do episódio: E vi então a clara onipresença Da alva a fluir na gruta do oriente E o brilho intenso do astro maior Acender em chamas as águas da fonte Qual ouro a tecer a teia dos bosques Jade ígneo em coruscantes trilhas
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
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manhã em sua “brilhante onipresença” e “o brilho de uma luz que parece queimar o próprio fogo”, imaginável apenas como a expressão simbólica da compreensão última para a qual incessantemente aponta o poema4. A “forma só luz”, não sendo apenas forma, mas forma dentro de forma, é compreensível apenas quando se considera a luz que a emoldura. Em outras palavras, Shelley não quer falar de qualquer luz que brilhe nas trevas, mas de luz que brilha em luz num campo ampliado de luz, ou seja, luz que é desdobramento de camadas de luz que lhe antecedem. “Forma só luz” é alegoria, então — luz dentro de luz, dentro de um campo ainda mais amplificado de luz — para a mais radiante forma de teoria. O brilho se intensifica à medida que nos aproximamos daquilo que sugere o alcance do supremo rame rame conceitual. Sugere, mais ainda, que a teoria pode se debruçar apenas sobre a teoria, tornando-se cada vez mais abstrata e a forma só luz será o símbolo da teoria mesma:
Envolta em sol como ele envolto em chama
A sinestesia que encontramos ao longo do segundo episódio
De sua própria glória em plena fonte
visionário tem, para mim, outro significado (que não apenas
Eis que surgiu, espargindo clarões
poético e imaginativo). Como Rimbaud num momento pos-
Uma forma só luz. 3
terior, Shelley, creio, a vê como um movimento em direção ao “desregramento de todos os sentidos”. E isso, para ele, significava
Esta é uma imagem cuja configuração reduplica toda a estrutura do poema, cuja forma é a da revelação dentro de revelação dentro de revelação, estrutura que pretende causar no leitor a crença de que a cada descoberta ele chega mais perto de uma revelação última: a de uma “forma só luz”, cuja luminosidade ultrapassa a de toda aquela que a envelopa e lhe serve de moldura, como a luz da 2 3
(CHAI 2006:16). (CHAI 2006).
um modo de desestabilizar nosso senso de moldura ou de perspectiva. Desse ponto de vista, a sinestesia atua como um passo preliminar à teoria: uma vez que percamos nosso rígido senso de moldura/estrutura moldura/estrut ura ou perspectiva, estamos prontos para pensar na própria perspectiva.5
4 5
(Cf. CHAI 2006:17). (CHAI 2006:18).
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
Há outras implicações no poema de Shelley com respeito à questão da forma suscitada pela riqueza simbólica da imagem, tratadas por Chai, mas aqui nos concentraremos apenas na dinâmica da “forma só luz”, dinâmica da revelação dentro de revelação, e a
A razão pela qual optamos por introduzir o nosso tema pela abordagem indireta de um poeta romântico é a de que a poesia do romantismo inglês foi muitas vezes considerada como sendo a pura expressão de emoções, destituída de qualquer caráter reflexivo. T.
semelhança que guarda a dinâmica da imagem com a do poema como um todo, que caminha do mesmo modo segundo essa mesma estrutura: mas qualquer coisa cuja forma possa ser discernida no brilho do sol deve ser, por definição, ainda mais brilhante. Podemos imaginá-la apenas como simbolicamente expressiva da compreensão última para a qual o modo visionário do poema constantemente aponta 6. Prometendo uma clareza e uma clarividência crescentes, uma palavra final sobre si, a imagem, todavia, é muda, e percebemos a cegueira essencial que constitui o olhar, bem como a negatividade que funda todo ato de cognição. Para Chai, o que Shelley visa com o silêncio da imagem, que também não fala a Rousseau, reforça a crença de que a teoria, “em última instância, pode debruçar-se apenas sobre a teoria”. Ao invés de pura negatividade, porém, esse postergar da reflexividade também sugere, para o mesmo autor, que a teoria, um seu equivalente, trata da tentativa de dar forma e coerência, representação, noutras palavras, àquilo que ainda não
S. Eliot interpretara a afirmação de Wordsworth no manifesto romântico — a poesia seria para o inglês “um transbordamento de emoções poderosas colhidas na tranquilidade” — como manifestação cabal da ênfase romântica na alma do poeta, na subjetividade como motor de um confessionalismo emocionalista e sentimental. A partir dessa constatação, Eliot passara a advogar a tese da ruptura total entre românticos e modernos, sob o argumento de que a anulação e obliteração do eu que se instalaria como processo típico da poética modernista deixava de fora a poesia romântica, em que, julgava, o eu e seus transbordamentos eram o princípio estético nucleal. Sobre a questão, ele deixou palavras que vieram a se tornar uma marca indelével na história literária, sobre sua concepção da poesia como uma fuga da emoção e como fuga da personalidade. Eliot pontifica — legitimado pela publicação e pela repercussão do seu monumental poema Te Waste Land , sobre a metamorfose a que se deve submeter o Eu lírico na passagem/ruptura do romântico para o moderno: “O que ocorre é uma continua rendição de si
fomos figurar, aquiloDaí quepor ainda à nossa própriacapazes busca dedeconhecimento. que não umasabemos, imagem positiva como a da “forma só luz” estar apta a representar a reflexividade, em suas duas faces de negatividade e positividade, ou seja, tanto a que contém a promessa do alcance de níveis de compreensão e clarividência cada vez maiores quanto a que nos adverte do fracasso inerente e constitutivo de toda tentativa da completa apreensão de qualquer objeto.
mesmo, daquilo queartista se é no momento para algo que é mais O progresso de um é um autossacrifício contínuo, umavalioso. extinção contínua da personalidade”. 7 É de admirar que, nos portais do século XX, um poeta do calibre de um Eliot manifeste um pensamento tão trivial, prescritivo e normativo com respeito à estética, deslocando ou fazendo tábula rasa dos avanços filosóficos e epistemológicos notáveis conquistados pelo círculo de Iena quase dois séculos antes. A neutralização ou
6
7
(Cf. CHAI 2006:17).
(ELIOT 2000).
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
repressão dos românticos, seja consciente ou não, seria responsável por muitos dos equívocos de Eliot, um dos quais a incompreensão da importância de Edgar Alan Poe para a conexão romântico-moderna, uma importância que sempre ganhou realce e se manifestou através do grande interesse demonstrado, primeiro da parte de simbolistas franceses, Baudelaire e Mallarmé — e posteriormente da parte de Valéry, pelo poeta americano. Com Eliot, que também não levou em conta a extrema variedade e complexidade dos romantismos, o eu se confunde com a personalidade, sem que reconheça nessa instância a sede do próprio movimento da Reflexão, do pensar a si mesmo e que o primeiro romantismo, aderindo à filosofia fichteana, longe de entregar-se a efusões do sentimento, concebe o eu, e mais tarde o pensamento, como sede daquela atividade do pensamento que se
Mas a restrição de Eliot, na verdade, pode ser compreendida, para além do seu desconhecimento do assunto. assunto. Há uma certa obscuridade e confusão que rondam a própria designação “romantismo”, que se verifica ainda hoje, em parte pela diversidade dos romantismos existentes, em parte porque singularizam a rubrica do romantismo na história e teoria da literatura como algo fútil e inconsistente. Uma leitura histórica que o relega ao mero culto do irracional e ignora a dimensão epistemológica da atitude e do gesto românticos. De fato, não se fazia distinção entre o romantismo de caráter generalizado, chamemos de romantismo tout court , chamemos de romantismo vulgar, afundado em clichês, como a melancolia e o ennui nui,, e o primeiro romantismo, assim como chamado pelos alemães, que verdadeiramente constituiu e fundou não apenas o romantis-
desenvolve ad infinitum, infinitum, o pensar-se a si mesmo como objeto8. A própria poesia eliotiana, composta em fragmentos no modernismo em consequência da inflexão dada à produção da arte pelos primeiros românticos, que faz da forma uma “conformação”, ou seja, um dar-se forma no próprio processo reflexivo, é uma repercussão tardia da guinada imprimida à arte pelos primeiros românticos e dará testemunho do acerto e da fecundidade das teses do Círculo de Iena, fermentadas com mais de século e meio de antecedência, entre os anos de 1798 e 1800, ocasião em tinha como suporte a revista Athenaum, que publicava os textos dos integrantes deste grupo, os irmãos Schlegel, Novalis, Schelling, Schiller e ocasionalmente Hölderlin e Tieck 9.
mo, e determinou a possibilidade de um “romantismo em geral”, mas também o sentido que a história literária, a literatura e a própria história em sentido mais amplo tomariam a partir desse momento. Haverá ocasião de acentuarmos devidamente quão decisivo de cisivo e determinante é o Primeiro Romantismo, ou o Romantismo de Iena, para a ruptura entre o antigo e o moderno, para a instituição do que hoje compreendemos como o romantismo teórico, ou de um projeto teórico em literatura e, finalmente, para a existência da própria literatura. Com o romantismo (de Iena) a literatura pela primeira vez chega não só a ombrear-se com a filosofia, como a assumir o papel teórico e especulativo da filosofia, a tornar-se o “absoluto literário”.
8 9
(BENJAMIN 1993). (CAVENDISH 2009). 2009). O exame da “Ode sobre uma Urna Grega”, Grega”, de Keats, Keats, dá sustentação à armação de que também dentre os poetas românticos ingle ses o enlace losóco-poético assumiu fecundidade fecundidade inusitada. Nesta análise, é possível observar o movimento da reexividade conformando conformando o objeto estético, o poema “Ode sobre uma Urna Grega”. Tal como a relação kantiana entre a imaginação e o entendimento na espécie do belo, o dístico nal da ode, a beleza é a verdade, a verdade a beleza, cai num mecanismo pendular de circuito fechado, ou seja, em um movimento reexivo, ou autorreexivo, em que a innitude,
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ou a ideia de totalização, é representada no sujeito. Observa-se, então, que o movimento do pensamento do lósofo se articula ao movimento do conteúdo do pensado, criando-se por essa via um circuito cuja origem é indiscernível, justamente porque é na esfera subjetiva, no domínio do eu, que o movimento tem lugar. Esta mesma mecânica que impede que um terceiro termo se instale, será reproduzida no dístico nal da Ode de Keats, indenidamente remetendo ‘a beleza à verdade e a verdade à beleza’, uma armadilha que sequestra a subjetividade, revelando as ilusões em que o eu incorre ao tomar-se a si mesmo como objeto. Mas, sobretudo, inscrevendo o poema no movimento innito da reexão.
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A poesia se erige em apresentação finita do infinito e a poesia como obra absoluta, ou seja, forma privilegiada de cognição e apreensão do mundo, que se forma na reflexão. A exigência de que uma sub jetividade plenamente constituída esteja em vigor, v igor, de modo que o sujeito leve a efeito as complexas operações que a reflexividade e a fusão de campos envolve, é cumprida. A subjetividade de Rousseau é compreendida como um dobrar-se sobre si do pensamento; há grande interesse dos primeiro românticos em Shakespeare, e podemos observar claramente a subjetividade hipertrofiada de um Hamlet, aquele a quem o “excesso” do pensar paralisa. E, no limite, a figura de Sócrates, que é emblemática da antecipação do sujeito pelo qual e com quem a literatura se inaugura. Sujeito da ironia, no qual “interagem forma e verdade”, o mesmo podendo ser dito das interações entre a literatura e a filosofia. Sujeito exemplar, Sócrates institui a literatura como a obra e o reflexo (reflexão) da obra, poesia e crítica, arte e filosofia. Sócrates é o “sujeito-gênero” através do qual ou pelo qual a literatura é inaugurada, ou se autoinaugura, com toda a força da reflexividade, uma vez que a ironia é precisamente isso: o próprio poder da reflexão ou da reflexividade infinita — o outro nome da especulação.10
O comentário de Jeanne Marie Gagnebin arremata o que acima foi dito acerca da origem primeiro romântica da literatura, a que Walter Benjamin11 dará ênfase toda especia l ao indicar, na sua famosa tese de doutorado, a importância dos primeiros românticos para toda a teoria da literatura contemporânea, contemporânea, sobretudo em relação aos conceitos de obra e crítica. 10 11
(LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:86.) (LACOUE-LABARTHE; (BENJAMIN 1993)
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
O romantismo de Iena marca, pois, [...] o nascimento daquilo que até hoje se chama de “literatura” e que ele pela primeira vez tentou delimitar como produção específica. Nascimento paradoxal, como veremos, pois repousa sobre a perda da poesia mais originária e implica, portanto, desde o início, uma atividade autorreflexiva constante”.12
Há, portanto, um quiasma entre o romantismo vulgar e o romantismo de Iena de que sequer suspeitara T. S. Eliot. Chegamos, então, a compreender por que consideram falsa Lacoue-Labarthe e Nancy a designação “romantismo” para referir-se a este momento crítico da história literária, na medida em que o pressupõe separado — posto à parte, como uma escola, um estilo ou uma concepção — algo de todo modo pertencente ao passado, quando, na verdade, é o projeto teórico inaugural da literatura e, sobretudo, o que lhe dá toda a sua modernidade. E se não é plenamente reconhecido como a nascente do seu importante veio teórico especulativo, isso se deve em grande parte à lacuna deixada pelos franceses. Tal lacuna necessita ser “‘preenchida’, embora não deva ser saturada”, posto que a saturação e a exaustão de possibilidades são, como veremos ainda, uma negação do espírito romântico. Assim, dizem Labarthe e Nancy, a lacuna “deve ser abordada de uma maneira que permita a decifração do poderoso equívoco que subjaz no termo ‘romantismo’, na medida em que seja se ja possível alcançar-se um distanciamento dessa equivocidade”.13 Seguindo o caminho aberto por Benjamin, o estudo de Labarthe e Nancy procura mostrar que o romantismo e a teoria da literatura que nasce com os integrantes do grupo de Iena produziram os pressupostos fundamentais e o modelo da prática teórico-crítica em pleno vigor em nossos dias. Benjamin já o dissera: 12 13
(GAGNEBIN 2007:66) (LACOUE-LABARTHE; (LACOUE-LABAR THE; NANCY 1988:86)
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
Se se quisesse reconduzir a seus princípios a teoria da arte de um
determinação reflexiva responde não apenas pela importância
mestre tão eminentemente consciente como Flaubert, a dos par-
do conceito de autofiguração sintética como aparece na teoria
nasianos, ou aquela do círculo de Georg, encontraríamos entre
do romance de Schlegel a Bakhtin e Lukács, mas também como
eles os princípios aqui expostos. Se tivéssemos que formular estes
é enfatizada numa tradição que se estende [...] desde Lucinde,
princípios aqui, teríamos de demonstrar sua origem na filosofia
de Schlegel até vários movimentos formalistas e de vanguarda,
dos primeiros românticos alemães. Eles são tão próprios ao es-
até o nouveau Roman e a figuras tais como Wallace Stevens ou
pírito desta época que Kircher pôde, com razão, afirmar: “Estes
Maurice Blanchot.17
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românticos queriam guardar distância justamente do ‘romântico’ – tal como era entendido então e hoje”. 14
Central à tese de Benjamin é a questão da reflexividade. O filósofo põe em relevo a reflexividade como o núcleo especulativo do romantismo,, o conceito básico da teoria do conhecimento subjacenromantismo te ao conjunto de conceitos que o integram — fragmento, witz , meio 15 de reflexão, conexão, entre outros, como bem o registra Gagnebin . É especialmente pelo conceito de reflexão que ele empreende a análise do conceito de crítica de arte do romantismo de Iena; é a reflexão que erige a crítica como verdadeiro desdobramento das potencialidades existentes na obra, ultrapassando os limites de um discurso valorativo. E é essa determinação reflexiva da literatura, sentido extraordinário que esta assume e ao qual nos conduzirá o texto de Benjamin, que a constitui como um absoluto literário 16. Autônoma, separada e independente, sobretudo com respeito à filosofia: Em seus efeitos literários, esse reflexo hiperbólico nada mais é que a crítica, na medida em que não se a considere uma fun-
É espantoso que tantos anos tenham se passado desde a publicação de “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão” sem que a questão central que anima esse texto, a questão da reflexividade tenha adquirido algum relevo. É uma questão reprimida na história da literatura e a única originalidade a que podemos reclamar trazendo-a aqui é oem fato inconteste da foi suatraduzido ocultação.para Lembremos, exemplo, que só 1986 este texto o francês por e apenas em 1993 para o português, sem que fosse alvo de qualquer atenção da crítica18. Tentar compreender a centralidade da reflexividade para o romantismo e para a literatura como um todo é o que consideramos em si um ato de leitura original. O estudo de Walter Benjamin é, por conseguinte, o passo essencial para que se levasse a cabo o esforço primeiro de compreensão das vigas mestras que sustentam o arcabouço modernista a partir de sua matriz romântica — observe-se que a sua tese se elabora entre 1917 e 1919, auge do alto modernismo —, vindo a se tornar o primeiro resgate das teses do romantismo de Iena. A ação da reflexão talvez possa ser compreendida quando convocamos e seguimos, pela imaginação, obras como o “Hamlet”,
ção secundária, sempre serve para aperfeiçoar o programa que a literatura põe a si mesma. [...] é possível observar que essa 14 15 16
17 17 18
(BENJAMIN 1993) (Cf. GAGNEBIN 2007:65-82) (CF. LACOUE-LABAR LACOUE-LABARTHE; THE; NANCY 1988)
(BARNARD; LESTER 1988:xviii) A tradução francesa francesa desta tese de Benjamin Benjamin só foi realizada realizada por Phillipe Phillipe LacoueLabarthe e Anne-Marie Lang em 1986. Posteriormente, em 1993, foi traduzida para a língua portuguesa por Márcio Seligmann-Silva, que manifestou em seu prefácio seu espanto pelo “quase que exclusivo desprezo da crítica especializaespecializada” por esta obra.
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
“Dom Quixote” e o próprio “Grande Sertão: Veredas” — a sua exemplaridade no modernismo é farta — em que a obra se constrói efetivamente nas dobras do pensar o pensar do protagonista, uma atividade pela qual vai se conformando progressivamente a forma da própria obra.do pensamento consigo mesmo, núcleo do pensar A relação romântico, é, então, um pressuposto fundamental do conceito de arte. O processo que instaura é o da infinitude do pensar. Essa infinitude vai se realizar no objeto estético e é capturada através da abertura e do inacabamento característicos da obra de arte. A reflexão romântica se inicia seguindo esta rota: “O pensamento na autoconsciência refletindo a si mesmo é o fato fundamental do qual partem as considerações gnosiológicas de Friedrich Schlegel e, em grande parte também, as de Novalis”. Novalis”.19 Logo de saída é possível observar a extrema liberdade deste pensamento, em contraste com o pensamento kantiano. “O espírito romântico parece fantasiar agradavelmente sobre si mesmo”, dizia Schlegel20. “A faculdade da atividade que volta sobre si mesma, a capacidade de ser o Eu do Eu, é o pensar. Este pensamento não tem nenhum outro objeto senão nós mesmos”21. É, portanto, no pensamento que ocorre a intuição. No eu pensante, outra realidade é pensada, que se jogo faz representar, desta outra realidade representada, como emalium de espelhos, e spelhos,ealcançamos outra e outra e mais outra, e poderíamos prosseguir assim até a intuir a totalidade das formas concebíveis:
Schrien). 22
Benjamin realça a imediatez do pensamento reflexivo. Mas agora adianta um passo ao acentuar a infinitude que lhe imprimiram os românticos: A relação consigo mesmo do pensamento, presente na reflexão, é vista como a mais próxima do pensamento em geral, a partir da qual todas as outras serão desenvolvidas. Schlegel diz num trecho de Lucinde: “O pensar tem a particularidade de, próximo a si mesmo, pensar de preferência naquilo sobre o que ele pode pensar sem fim.” 23
Antes de endereçar de que maneira o romantismo revoluciona o conceito de crítica, devemos tratar, progressivamente, progressivamente, do processo que levaria a um tal desenvolvimento; de que maneira, em suma, a reflexividade que lhe é central instala a literatura como sede do pensar. Em sua origem, a reflexividade é localizada na Doutrina da Ciência, de Fichte. De fato, na esteira do filósofo os românticos vêm a considerar “o pensar do pensar” como a mais alta forma de cognição, na medida em que é “imediata” (não mediada pela linguagem, por exemplo) e “intuitiva” — ou seja, não conceitualizada claramente.
os românticos partem do simples pensar-a-si-mesmo como fenô-
O conceito de reflexão da Doutrina da Ciência é o de que é uma
meno; o que é apropriado a tudo, pois tudo é si mesmo. Tudo é
ação da inteligência, constante e tendente ao infinito, de tomar
19 (BENJAMIN 1993) 20 (BENJAMIN 1993:19) 21 Schlegel (apud BENJAMIN 1993:30)
si mesmo, vale dizer também: tudo é uma parte ou momento do “eu”. Através do pensar, o eu torna-se um “eu do eu” (Gesammelte
22 23
Benjamin (apud (apud SELIGMANN-SILVA SELIGMANN-SILVA 2007A; Cf. primeira parte, parte, p. 19) (BENJAMIN 1993:29)
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consciência de formas, transformando-as em novas formas, por um processo de livre associação entre elas. Há aqui uma tensão
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
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de que maneira a renúncia ao absoluto estabelece o filosofar como tarefa infinita, recorremos a Manfred Frank:
dialética entre a forma captada por intuição e o refletir transformador sobre a forma. 24
Deste sentimento inicial de incompletude incompletude (sentimento do todo a atrair a parte) é que surge o processo do filosofar — como incli-
O modelo de Fichte descarta a intersubjetividade, fixando-se no Eu individual, que se põe a si mesmo de forma ilimitada e absoluta. Este ato inicial, livre, de autogeração (athandlung ( athandlung ) é condição do autoconhecimento, ou da consciência de nós mesmos, e desde o início nos divide em sujeito e objeto. Importante ressaltar, então, que o Eu, em Fichte, é autoconsciência pura e não se confunde com a alma humana. É antes dinamismo e ação pura, criador de toda a realidade. É livre e a tudo preside. O eu substancial, autoconsciente,
Assim, muito embora os elementos comuns ao pensamento desses filósofos — Schlegel, Schiller, Novalis, Schelling, Fichte — os agregassem em uma mesma comunidade de pensamento — o
o eu do mundo das representações, só é compreensível como parte desse Eu absoluto. Os românticos, num primeiro momento, aderem irrestritamente ao modelo fichtiano, na medida em que ele acena com a perspectiva de retomada da certeza de uma experiência imediata inicial, que a filosofia de Kant demolira. E, num segundo momento, se afastam de Fichte justamente por querer preservar aquilo que, segundo Benjamin, lhes dá o seu “direcionamento mais original”: o apego à infinitude. Ali onde Fichte pensou haver encontrado um princípio fundacional — ou seja, a última proposição incondicionalmente válida — no Eu absoluto, o ceticismo romântico o nega. O absoluto, o incondicionado, não é cognoscível. A filosofia, nesse caso, como uma busca eterna por seus fundamentos, é tarefa infinita25. A reflexão, como tarefa infinita, resulta dessa nova inflexão dada pelos românticos que os afasta de Fichte. Apenas para reiterar
caráter intuitivo do pensamento, da sua imediatez, portanto, e do processo infinito da reflexão —, num segundo momento, um desen volvimento difícil terá terá lugar. Os Os românticos estarão estarão de pleno acordo com Fichte no que diz respeito à imediatez do pensamento. pe nsamento. A reflexão se determina enquanto reflexão de uma forma, das formas da consciência, dando testemunho da imediatez do conhecimento que nelas se dá. É um “dar-se na interpenetração mútua do pensamento reflexivo e do conhecimento imediato” imediato”. O que é conhecimento imediato Benjamin também o explicita: “As formas da consciência, em seus traspassamentos mútuos, constituem o único objeto do conhecimento imediato e este traspassamento constitui o único método que permite fundar e compreender c ompreender aquela imediatez”27. Por um lado, o refletir transformador de que fala Fichte é o movimento plástico das ideias, a metamorfose das formas que se penetram e se comunicam gerando sempre uma nova forma; por
24 25
(LIMA 2012) (FÓSCOLO 2009)
nação para o conhecimento. Schlegel pode dizer, portanto, que a filosofia resulta de dois “elementos”: “elementos”: a consciência que temos de nós mesmos como seres incompletos (finitos) e o infinito que de vemos alcançar para para sermos completos completos (fazermo-nos inteiros). inteiros).26
26 27
Manfred Frank (apud FÓSCOLO 2004:4). Lucinde (apud BENJAMIN 1993:41)
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outro, a reflexão como a reflexão de uma forma não pode existir prescindindo da imediatez do conhecimento dado nela. Tornar mais claro o “dar-se na interpenetração mútua do pensamento reflexionante e do conhecimento imediato” é de grande importân-
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
se manifesta numa ambiguidade peculiar... O pensar do pensar do pensar pode ser... ou o objeto pensado: pensar ((do do pensar do pensar) ou então o sujeito pensante (pensar do pensar) do pensar. A rígida forma originária da reflexão do segundo grau é, no terceiro, abalada e acometida pela ambiguidade.30
cia para o pensamento romântico da reflexão. Considerando que a doutrina da ciência possui não apenas conteúdo, mas também uma forma, pois ela é ciência de algo e não este algo mesmo, Fichte quer determinar a reflexão como reflexão da forma, demonstrando a imediatez do conhecimento que nela se encontra: “Fichte quer fundar um conhecimento imediato através da conexão de duas formas de consciência: a forma e a forma da forma. Exatamente o eu absoluto (abstrato e formal) é aquele que é reconhecido de imediato. É para esse sujeito que a ação livre da consciência se direciona, é ele o centro dessa reflexão”28. A elevação da forma à consciência é uma ação livre: “algo que em si já é forma é acolhido como nova forma, a forma do saber ou da consciência e, por isso, aquela ação é uma ação de reexão”29. Fichte rejeita a infinitude, vendo nela um problema para a filosofia teórica, e os românticos tomam tomam outra rota, radicalizando a reflexão, elevando-a a um terceiro grau — o pensar do pensar do pensar — e, com isso, se permitem especular sobre o infinito. Para Fichte um uma processo em queda a reflexão se dissolve, ou seja,é necessário em que sedeter observa dissolução forma em face do Absoluto.
28
29
Para Fichte, portanto, não interessa o infinito teórico, no qual as distorções da consciência se multiplicam e o eu perde a capacidade de autorrepresentação. Os românticos, ao contrário de Fichte, procuram tornar a infinitude constitutiva para a filosofia teórica e por essa via para a filosofia como um todo 31. A infinitude da reflexão romântica tornava, do ponto de vista fichtiano, a consciência inconcebível para o sujeito e Fichte se afasta dos românticos quando estes se inclinam para o culto do infinito. Não nos ocuparemos aqui das diferenças entre a reflexão e a posição, como uma ação através da qual Fichte interrompe a infinitude. É nosso interesse maior seguir a trilha do infinito romântico. É o terceiro grau da reflexão que permite compreendê-lo. Nesse estágio, há como que um esfacelamento dessa forma originária, uma diferenciação progressiva que cria tanto ambiguidade quanto oscilação, as quais se desdobram, multiplicando-se. Já vimos que, para Benjamin, é essa inflexão em direção à infinitude o núcleo da originalidade e da fertilidade do pensamento romântico. O pensar o pensar, para o grupo de Iena, deveria ser mais que uma progressão interminável e vazia:
a partir do terceiro e dos consecutivos graus mais elevados da
A infinitude da reflexão é, para Schlegel e Novalis, antes de tudo
reflexão ocorre uma decomposição dessa forma originária, que
não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da
“Para que a ciência ciência se torne ciência necessária, necessária, essa forma forma pura do espírito espírito torna-se matéria de si mesma, isto é, eleva-se à consciência o seu modo de ação em geral” (ABREU 2008:46). Fichte (apud (apud BENJAMIN 1993:31)
conexão... infinitude realizada do conectar: nela tudo devia se 30 (apud BENJAMIN 1993:36) 31 (Cf. BENJAMIN 1993:35)
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
conectar de uma infinita multiplicidade de maneiras, sistemati-
de existência; através de sua forma a obra de arte é um centro
camente como nós diríamos hoje em dia, “exatamente”, ou como
vivo de reflexão”.34
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diz Hölderlin com mais simplicidade.32
Os românticos afirmam que a reflexão é capaz de gerar o Absoluto,, que vem a ser, portanto, produto da nossa atividade menAbsoluto tal, de um pensamento que se conhece a si mesmo nessa reflexão imediatizada, ou seja, sem a interveniência da linguagem, e, portanto de um tu. É um conhecimento direto no próprio movimento. “Não se trata de um conhecimento de um objeto através da intuição, mas do autoconhecimento de um método, de um elemento formal — o sujeito absoluto não representa nada além disso”.33 Esse movimento, presidindo a criação da obra de arte, aponta para o infinito e como atividade sempre inacabada responde também pela infinita abertura da obra de arte. É o que Novalis definiria como um “saltar a si mesmo sobre os próprios ombros da faculdade reflexiva”. reflexiva”. A escrita de Benjamin, bastante complexa nesse estudo, não consegue nem tampouco se propõe abrandar as dificuldades com que as teses românticas se edificam e as ambiguidades se multiplicam e proliferam tanto como o próprio tema — a reflexividade — sobre a qual se debruçam. Registremos, porém, este momento em que o papel da reflexão na formação da obra assume clareza meridiana: A pura essência da reflexão anuncia-se aos românticos na aparição puramente formal da obra de arte. A forma é, então, a expressão objetiva da reflexão própria à obra, que forma sua essência. Ela é a possibilidade da reflexão na obra, ela serve, então, a priori, de fundamento dela mesma como um princípio 32 33
(SELIGMANN-SILVA 2007B:20) (SELIGMANN-SILVA (BENJAMIN 1993:30)
Chegamos a um estágio em que é necessário fazer a diferenciação entre dois Schlegels, aquele que, seguindo Fichte, nas Lições Windschmann, determina o ponto central da reflexão, o absoluto, como o Eu. E o Schlegel que localiza na obra de arte, e não no Eu, o ponto central da reflexão. O pensar do pensar, na intuição romântica da arte, não tem como suporte a consciência do Eu. Assim, ao tratar do problema da crítica, é preciso considerar o pensar do pensar como o esquema originário de toda reflexão, o qual por sua vez também fundamenta a concepção de crítica de Schlegel: Esta Fichte já determinara de maneira decisiva como forma. Ele mesmo interpretou esta forma como o Eu, como a célula originária do conceito intelectual do mundo. Friedrich Schlegel, o romântico, interpretou-a interpretou-a por volta de 1800 como a forma estética, como a célula originária da ideia de arte.
E, Benjamin complementa até alcançar uma formulação bastante consistente do papel da reflexão na constituição da forma: “A intuição romântica da arte repousa no fato de que não se compreende no pensar do pensar nenhuma consciência do Eu. A reflexão livre-do-Eu é uma reflexão no absoluto da arte”35. Entre as ideias fundamentais a recuperar da abordagem de Benjamin com respeito às teses dos românticos de Iena está a noção de meio de reflexão — teia ou rede urdida por conexões infinitas da reflexão, formadas por um incessante conectar da própria reflexividade, 34 35
(BENJAMIN 1993:81) (BENJAMIN 1993:48)
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onipresente, a recobrir o todo real e por isso chamado pelos primeiros românticos de o Absoluto. “O médium é de tal natureza abrangente que a reflexão move-se nele — pois esta, como o absoluto, movimenta-se em si mesma”; ou: “a reflexão constitui o absoluto e ela o constitui
de Schlegel o interesse estético. Seria necessário esclarecer que re flexionsmedium foi conceito cunhado pelo próprio Benjamin, cuja flexionsmedium visão se interpõe necessariamente como enquadramento e como moldura em toda abordagem contemporânea dos românticos.
36
comoPara um médium” Schlegel, o .conceito é o meio pelo qual se consegue delimitar um pensamento, de maneira que conceituar é nomear, dar unidade a algo do mundo, ou seja, um conceito é uma forma linguística. Um sistema, na visão schlegeliana, é aquilo que explica todas as coisas do mundo, isto é, o sistema é um conjunto de unidades de conceitos que permite a compreensão sistemática do mundo. Benjamin se vale das definições propostas por Schlegel, segundo as quais, o conceito é “o pensamento justamente no qual o mundo pode ser recolhido em uma unidade e que se pode dilatar novamente em mundo. [...] Então se deveria certamente com mais razão denominar-se sistema apenas um conceito abrangente” abrangente”37. Sendo o conceito uma forma linguística que delimita um pensamento, Benjamim criou o conceito de médium-de-reflexão — em alemão o conceito é formado de uma única palavra: reflexionsmedium — traduzido segundo o significado das palavras que o compõem — médium, meio concreto de realização de algo, compreendendo-se, então, que médium é uma forma assumida concreta-
concepção sistemática fundamental da Athenaum, a arte comoAmédium-de-reflexão absoluto, é inúmeras vezes substituída por outras designações que dão ao pensamento de Schlegel colorações de inconsistência. Vejamos uma das suas formulações típicas, na qual é possível visualizar variações e distorções do seu conceito de absoluto: A arte, criando a partir do impulso da aspiração da espiritualidade, conecta esta em formas sempre novas com o acontecer do conjunto da vida do presente e do passado. A arte liga-se não a acontecimentos singulares da história, mas a sua totalidade; do ponto de vista da humanidade eternamente em aperfeiçoamento, ela abarca o complexo dos acontecimentos, unificando-os e explicitando-os.39 “Friedrich Schlegel era um filósofo-artista, ou um artista filosofante. Desde modo ele, por um lado, seguia as tradições das corporações filosóficas e buscava conexões com a filosofia de
mente, desde que através dessa forma algo passe ou sejaqual transmitido. médium-de-reflexão é, portanto, o meio concreto pelo a reflexãoOé transmitida, ou seja, é a forma concreta assumida pelo pensar 38. Havia uma intenção sistemática de Schlegel com relação à arte que o conceito de médium-de-reflexão pretende capturar, embora essa intenção não tivesse sido formulada de maneira plena e clara na Athenaum, posto que à época preponderava na atitude intelectual
Como se vê, a concepção de reflexão artística se encaixa no sistema — que pode ser acusado de ser impropriamente chamado sistema — de Schlegel em uma culminância da chamada ideia de
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39 (AMARAL 2008:53) 40 (BENJAMIN 1993:52)
(BENJAMIN 1993:45) Schlegel (Apud BENJAMIN 1993:53) (AMARAL 2008)
sua época; por outro, ele era artista demais para ficar parado no puramente sistemático”40.
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humanidade. Era preciso encontrar uma linguagem que mediasse o contato recíproco entre todos os homens num nível transcendente à experiência individual — ligando todos os homens àquele elemento divino constitutivo da existência humana. Conforme registra Márcio Seligmann-Silva, a articulação entre crítica e arte em nenhum lugar é mais conspícua que no livro inacabado de Benjamin, Passagenswork, Passagenswork, no no qual o médium-de-reflexão é tanto meio quanto é obra, é obra enquanto arte e obra enquanto crítica, um modelo em si mesmo refratário ao modelo da teoria do conhecimento monológico, baseado na simples cadeia de causas e efeitos. Passagenswork Passagenswork cristaliza, cristaliza, então, uma crítica a uma concepção linear tanto do desenvolvimento do conhecimento como do desenrolar da própria história, pondo em evidência a crítica de um
abstratizante da teoria romântica, tendo este conceito como seu principal suporte, é feito também por Willi Bolle com respeito a Benjamin, que caracteriza a urbe moderna como esse feixe e essa rede de reflexividades em conexões móveis e ininterruptas, desde a primeira aparição de sua figuração no gênero tableau tableau urbano, “inaugurado com o Tableau de Paris (1781 -1788), de Louis-Sébastien Mercier” 43, contemporânea ainda do famoso florescimento do círculo romântico em torno da revista Athenaum. A interpolação dessas notas de Willi Bolle nos permite saltar do registro extremamente rarefeito e ambíguo do pensamento dos românticos para algo que, se visto em retrospecto, lança uma luz inestimável sobre aquilo cuja compreensão tanto nos incomodava. É que as transformações com tal intensidade se aceleram desde esse primeiro grande evento da consagração da cidade —
determinado modelo de razão e racionalidade. Já desembaraçada de uma determinação ontológica, o pensar romântico é um movimento sem fim da reflexão, que funda o eu, uma infinidade de conexões concebida como mediação via imediatez, razão pela qual Schlegel se refere a uma passagem que é sempre um salto e ao eu como um con junto de infinitas passagens, superações, traduções41. O processo de proliferação,, multiplicação e desdobramento proliferação desdobramento do eu, de automedi automediação ação infinita do ser, preside a conceituação de Reflexionsmedium Reflexionsmedium,, com que Benjamin ilustra a própria concepção romântica de absoluto: “Com esse termo é designado de forma resumida o todo da filosofia teórica de Schlegel”42. Compreende-se, então, que a “romantização do mundo” consiste em traduzir o mundo como uma cadeia de reflexos e reflexões, em conceber o mundo como lócus de um transitus transitus.. O interessante registro da transposição da noção de médium-de-reflexão para um universo que permite contornar o excesso
no campo da mídia, da publicidade, das vitrines e dos anúncios, da informação e invenções técnicas de uso da imagem — que obrigam a tradicional cultura literária a repensar seu ofício. Mas como pode ter razão Bolle sobre a primazia de todos esses outros vetores se todas essas técnicas não têm como fonte geradora senão a própria narração literária, o que é posto pela ficção, de prosa e poesia, o tratamento literário dado à imagem que pela palavra a antecipa, assim como o que é também engendrado pelo especialíssimo acasalamento verificado à época, a partir de Kant, entre a literatura e a filosofia? Isso também torna visível o caldeirão cultural em que tudo se gesta, o tecido e a malha cujo desenho os primeiros românticos têm o arrojo de naquele momento fornecer e desvelar, uma empreitada na qual logram na verdade antecipar os paradigmas para a produção da arte até os nossos dias. Benjamin dá provas de seu poder visionário, por um insight que que oferece do fenômeno da crescente complexidade com que se desenvolve a cidade a partir
41 42
(SELIGMANN-SILVA 2007B:19) (SELIGMANN-SILVA (SELIGMANN-SILVA (SELIGMANN-SILV A 2007B:20)
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(BOLLE s/d)
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do século XVIII, compreendendo-o como a concretização da ideia do reflexionmedium reflexionmedium,, uma vez que nela se dá o encontro de todo o metapensamento que vem das artes e das ciências, e de todas as infinitas reflexividades que se forjam neste meio instável e extrema-
um conceito sobre o objeto estético, um fechamento que, entretanto, sempre escapa, seja porque a imaginação exorbita na profusão de sínteses que oferece ao entendimento, seja porque o entendimento não consegue produzir as categorias que as abarque. E o que é essa
mente pujante, de todas as conexões que o na sustentam: Benjamin: “A intensificação “A da consciência crítica é,oa Absoluto. princípio, infinita; a crítica é então o médium no qual a limitação da obra de arte singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e, finalmente, é transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita enquanto médium-de-reflexão”.44 Nunca será demasiado ressaltar, então, que Benjamin privilegia a transformação que imprimiram os românticos ao conceito de crítica através da ideia de Reflexionmedium Reflexionmedium (médium-de-reflexão), (médium-de-reflexão), que estabelece a reflexividade como núcleo do pensar romântico. Sendo um conceito instável, devemos nos fixar na noção de que o infinito primeiro romântico não é o infinito teórico, que permanece assintótico, e, sim, o infinito da obra de arte, constituído pelo sujeito reflexivo, de oscilação em oscilação, e de conexão em conexão, em sua tarefa de autoconstituição que é, também, tarefa de autoconstituição da obra e do próprio meio que ela habita. Oscilação que já fora flagrada por Schlegel em pleno movimento: “A poesia romântica é a que mais pode oscilar, livre de todo interesse real e ideal, no meio entre o exposto e aquele que expõe, nas asas da reflexão poética, sempre de novo potenciando e multiplicando essa reflexão, como numa série infinita de espelhos” 45. É aqui que nos permitimos traçar um paralelo entre a reflexividade e a dinâmica do belo kantiano, do jogo livre e infinito entre as faculdades do entendimento e da imaginação, em busca de formar
dinâmica pendular na espécie kantiana do belo oscilar infinito, aquele pelo qual se constitui a abertura da senão obra deum arte? Este processo formativo interno e ao nível do indivíduo é o que produz a sua individualidade; ou seja, o que constitui a individualidade é a capacidade de autoprodução do indivíduo, produção de si por meio de sua força formativa interna, noção herdada de Kant que os românticos transcrevem numa vis poetica, poetica, concluindo então que se todo indivíduo é portador de poiesis de poiesis,, todo indivíduo deve ser poeta. O poético não é tanto a obra, opera opera,, quanto aquilo que opera, aquilo que nela trabalha. Novalis nos fala de um “oscilar entre extremos que necessariamente devem ser reunidos e necessariamente devem ser separados. A partir desse ponto de luz do oscilar jorra toda a realidade”.46 “O ser existe apenas nessa tensa double bind ”47. Vejamos, entretanto, o filosofar romântico do ponto de vista de sua negatividade, isto é, aquele que instaura um processo infinito e que contém em si mesmo uma impossibilidade, um fracasso, o filosofar que jamais poderá almejar a um sistema. Novalis se indaga sobre
44 Benjamin (Apud SELIGMANN-SILV SELIGMANN-SILVA A 2007B:21) 45 Schlegel (apud GUIDOTTI 2011)
46 47
odado, filosofar segundo umuma fundamento quandoEesse fundamento não é quando contém impossibilidade. conclui que o impulso infinito é o eterno impulso para um fundamento absoluto que pode ser satisfeito apenas relativamente relativamente e que por isso não cessa. Então, e se este fundamento não fosse dado, se contivesse uma impossibilidade — então o impulso para o filosofar seria uma atividade infinita — e sem fim porque seria um eterno impulso para um fundamento Novalis (Apud SELIGMANN-SILVA SELIGMANN-SILVA 2007B:7) (SELIGMANN-SILVA (SELIGMANN-SIL VA 2007B:7)
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absoluto que pode ser satisfeito apenas relativamente relativamente — e que nunca seria, por conseguinte, cessada. A atividade livre infinita surge em nós através da livre renunciação do absoluto — o único absoluto possível que nos pode ser dado e que somente encontramos por nossa inabilidade de alcançar e conhecer um absoluto. Este absoluto que nos é dado pode somente ser conhecido negativam negativamente: ente: Nessa busca perene e nunca alcançada do infinito repousa o paradoxo do projeto romântico, que se define por uma negatividade constitutiva. O filosofar é tarefa infinita, a obra de arte dirige-se para o infinito e a infinitude da tarefa do filosofar e do interpretar a obra constituem o absoluto. Daí que a tarefa do filosofar e a tarefa da arte se interpenetram num constant constantee desdobrar-se, mo vidas por um impulso para um fundamento fundamento absoluto. Como diz Schlegel: “Pode-se somente vir a ser, não ser filosófico. Tão logo se acredita sê-lo, deixa-se de o vir a ser”.48
O pensamento romântico é em tudo contrário à resolução por meio de sínteses, ao modo do sistema da dialética hegeliana, mantendo sempre a sua orientação oblíqua e paradoxal e alinhando em justaposição os opostos. Filosofia e obra de arte sustentam em suspensão os movimentos antípodas e as ideias antagônicas, a fim de que a autocontradição lhes seja intrínseca:
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jamais cansá-la, cansá-la, sem jamais se tornar costumeira? costumeira? Segundo antigas tradições místicas, Deus é para os espíritos algo semelhante”.49
O feitio dessa oscilação permanente é perfeitamente caracterizado por Schlegel em “Diálogos com a Poesia” 50, cuja estrutura entre duas posições divergentes não implica em resolução dialética ou síntese, mas na manutenção das oposições. As contradições são mantidas e renovadas, não há solução para as divergências, divergências, “romantizar o mundo” carrega a tarefa de sustentar o movimento pendular das tensões, que de conexão em conexão termina por formar o tecido que recobre o mundo e que é o médium-de-reflexão mesmo, o todo. É o que permite a Lacoue-Labarthe e Nancy renovarem a interpelação que se faz à questão romântica e ao romantismo, assim como à própria literatura, quanto à sua natureza e quanto aos seus estatutos, ao enfatizarem que a própria questão, sendo autorreferente, permite somente a renovação infinita da questão mesma: Não significa tudo isso, simplesmente, que o romantismo consequentemente pode ser definido somente como uma autorreferência infinita da questão: O que é o romantismo? — ou: O que é literatura? Na verdade, significa que a literatura, como seu questionamento questionamen to infinito e como a perpétua proposição da questão que lhe é própria, data do romantismo e como romantismo. E portanto que a questão romântica, a questão do romantismo, romantismo, não
Deveria o princípio supremo conter o paradoxo supremo em seu
tem e não pode ter uma resposta.51
problema? Ser uma proposição proposição,, que não deixasse absolutamente nenhuma paz — que sempre atraísse, e repelisse — sempre se tornasse de novo ininteligível, por mais vezes que já se a tivesse entendido? Que incessantemente ativasse nossa atividade — sem 48 Novalis (apud GUIDOTTI 2011:56-57)
Voltemos, porém, àquilo que imprime à literatura a sua feição mais diferenciadora, e que diz respeito ao caráter que a crítica de 49 Novalis (apud GUIDOTTI 2011) 50 Cf. Schlegel Schlegel (apud GUIDOTTI 2011:56) 2011:56) 51 (LACOUE-LABAR (LACOUE-LABARTHE; THE; NANCY 1988:83)
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arte assume nesse médium, no qual a reflexão preside como elemento constitutivo mais importante. importante. A crítica, segundo Benjamin, é um experimento, no qual a obra é ativada, despertada, movida. É pela crítica que a obra reflete sobre si: “é levada ao conhecimento de si mesma” e torna-se, como no dizer de Schlegel, célula originária da arte, o próprio sujeito da reflexão: o experimento da crítica consiste não numa reflexão sobre uma conformação que, como está implícito no sentido da crítica de arte romântica, não poderia alterá-la essencialmente, mas no desdobramentoo da reflexão, isto é, para os românticos: do espíridesdobrament to em uma conformação. 52
Já vimos que o movimento sem fim da reflexão, que para os românticos funda o eu (ou o ser de modo geral), indica uma infinitude de conexões que é concebida como uma paradoxal mediação via “imediatez”. Por isso, Schlegel fala de uma passagem que deve ser sempre um salto e Novalis de “saltar a si mesmo sobre os ombros da capacidade reflexiva”. reflexiva”. O eu é uma construção, um conjunto de infinitas passagens, superações, vale dizer, traduções. Tendo em vista essa teoria do ser como reflexionmedium reflexionmedium,, fica fácil compreender o lema romântico da “romantização do mundo”, que nada mais é que a revelação da cadeia de reflexos e reflexões. A crítica assume, então, o papel de um operador dentro do reflexionmedium , deixando de ser julgamento e passando a ser um degrau da reflexão, incluído num processo de autoconhecimento da própria obra. A crítica é poética tanto no sentido de ser tomada como parte da obra criticada, como no sentido etimológico de poesia como poiésis. A crítica é criação quando realiza a sua tradução das obras, é o médium no 52
(BENJAMIN 1993:72)
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qual a limitação da obra singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e finalmente é transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita enquanto médium-de-reflexão. Essa concepção da arte — e da literatura — como um continuum continuum de de formas que se autodeterminam constitui um painel da história da arte como um intertexto infinito. Assim chegamos a compreender a afirmação de Novalis de que a estrutura básica da obra de arte é a do médium-de-reflexão. Autoconhecimento e conhecimento da obra se confundem e interpenetram; ou seja, ao se tornar conhecimento da obra, a crítica se torna autoconhecimento desta: jamais será mais evidente de que maneira a crítica de arte é o conhecimento do objeto do que no médium-de-reflexão. No dizer de Benjamin, a crítica inclui o coc onhecimento do objeto. Uma vez que a teoria romântica vem sendo extensivamente explorada em nossos dias em nossas instituições acadêmicas, parecendo que a necessidade de um revival romântico romântico é essencial e já está em curso, será suficiente para os nossos propósitos restringir o campo das ideias que são fundamentais e recuperar a abordagem de Benjamin com respeito às teses dos românticos de Iena. Dentre elas, a noção preeminente é a de meio de reflexão, médium-de-reflexão, — teia ou rede urdida por conexões infinitas da reflexão, formadas por um incessante conectar da própria reflexi vidade, onipresente, a recobrir o todo real e por isso chamado pelos primeiros românticos de o Absoluto. “O médium é de tal natureza abrangente que a reflexão move-se nele — pois esta, como o absoluto, movimenta-se em si mesma”. O romantismo de Iena inaugura a literatura enquanto saber autônomo e como um modo privilegiado de conhecimento do mundo; instala-a, na verdade, da maneira mais inusitada e nova, posto que com ele se inaugura o projeto teórico da literatura ao introduzir a sua função eminentemente especulativa, que extrai da
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filosofia, tomando para si grande parte dessa função. É assim que o romantismo preside a emergência do conceito moderno de literatura, um modelo de literatura enquanto produção de sua própria teoria. Lacoue-Labarthe e Nancy, ao apontarem o descompasso entre a importância dos Românticos de Iena e a negligência que se observa quanto ao reconhecimento dessa “origem”, o fazem nos seguintes termos: O que ainda nos interessa no romantismo é que ainda pertencemos à era aberta por ele. O período atual continua a negar esse pertencimento, que nos define. Um verdadeiro inconsciente romântico é discernível hoje, na maioria dos temas e motivos da nossa modernidade.53
A negligência apontada pelos dois autores evidencia-se no fato de que o romantismo chega até nós apenas indiretamente através da tradição inglesa, desde Coleridge, que procedeu a um verdadeiro escrutínio dos primeiro românticos, até Joyce, por um caminho que também foi trilhado por Schopenhauer, assim como por Hegel e Mallarmé (todo o simbolismo também incluído, acrescentamos), mas sempre que o que é fundamental na teoria romântica não é distorcido, ele passa despercebido, como se o primeiro romantismo fosse “o reprimido” do sistema literário. E quando emerge, é repetido sem que haja uma compreensão adequada do que está em jogo. Mas o essencial é que nossa era é uma era crítica por excelência, é a era na qual a literatura devota-se exclusivamente à busca de sua própria identidade, levando com isso toda ou parte da filosofia e diversas ciências e mapeando o espaço daquilo a que agora nos 53
(LACOUE-LABARTHE; (LACOUE-LABART HE; NANCY 1988:69)
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referimos, para usar uma palavra particularmente cara aos românticos, como “teoria” “teoria”54. Sobre o transbordamento de limites entre literatura e crítica, Juliana Salvadori chama atenção para o duplo veio que a concepção romântica nos abre: “o da progressiva literarialização da crítica, em um primeiro momento (o da revista Athenaum) e o da criticização da literatura, em um segundo”55. A crítica romântica rompe com o quiasmo entre poiesis poiesis e e teoria, desde que, enquanto a literatura é reflexiva e não se reduz à produção de artifícios e artefatos, a crítica não pode deixar de ser criativa e criadora. Haroldo de Campos chamará a este romantismo de um “romantismo intrínseco”, que caracteriza a modernidade: a atividade crítica como criativa e criadora, reflexiva, portanto, “reflexão em terceiro grau, o pensar sobre o pensar, isto é, o conhecer o pensar” 56. Otávio Paz, por seu turno, afirma a marca eminentemente reflexiva e crítica da modernidade: A modernidade é sinônimo de crítica e se identifica com a mudança; não é a afirmação de um princípio intemporal, mas o desdobrar da razão crítica que, sem cessar, se interroga, se examina e se destrói para renascer novamente. […] No passado, a crítica tinha como objetivo atingir a verdade; na idade moderna, a verdade é crítica. O princípio em que se fundamenta o nosso tempo não é uma verdade eterna, mas a verdade da mudança”.57
Mais um legado romântico não pode ser deixado passar sem menção: é o gênero “ensaio” “ensaio” como forma privilegiada para o exercício da crítica, por sua brevidade, que permite que se s e constitua enquanto 54 55 56 57
(LACOUE-LABARTHE; NANCY 1988:15) (LACOUE-LABARTHE; (SALVADORI 2011:109-121) (SALVADORI 2011:113) Octavio Paz Paz (apud (apud SALVADORI SALVADORI 2011:113) 2011:113)
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fragmento, abrindo mão de pretensões totalizadoras, pondo-se em consonância com a infinitude da possibilidade de réplica, instalando no meio da literatura um diálogo em movimento, que incita os seus participantes a um jogo, a esboçarem pensamentos de modo não sistemático, a acolherem o inacabamento, num afrouxamento dos nexos causais em prol da errância e da experimentação subjetiva e linguística. O ensaio, por esse ponto de vista, é insidioso como o texto literário ao qual se refere, pois, por meio da forma, busca pela leitura ativa — uma leitura potencializadora, isto é, que atualize as possibilidades ali inscritas — tornar-se texto, ser interpretado interpretado,, isto é, vir a ser como texto”. 58
Enfim, com o romantismo, a obra começa a tomar forma quando o pensamento, ou o pensamento que há nela, voltando-se sobre si mesmo, assume conformação, assume forma, torna-se objeto, ou mais precisamente, sujeito-objeto. A crítica, efetivamente, é um desdobramento reflexivo da própria obra literária, a qual deixa de pertencer à categoria objeto de estudo ou de análise. Na concepção de arte e de crítica primeiro romântica, a antítese sujeito-objeto se esfuma. E o ensaio será um dos rebentos dessa filogenia romântica, de fundamental importância, não tanta, porém, quanto a que os membros do círculo atribuíam ao romance como forma por excelência a abrigar todos os gêneros, inclusive a poesia. No fundo de todo esse desenvolvimento dos gêneros, que se dá pelas trocas livres entre as multiplicidades de vetores que participam do terreno ou da malha, ao mesmo tempo, flexível, ao mesmo tempo, justa, do meio-de-reflexão, as transferências recíprocas entre a literatura e a 58
(SALVADORI 2011:113)
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
filosofia atam pequenos nós ou pontos de interseção e desvio em que a energia que ali se produz se propaga e é reconduzida e desviada em variáveis caminhos. A regra, e não a exceção, é o paradoxo e é assim que se recua até Platão para incorporar o “gênero” “gênero” do Diálogo como o gênero do Sujeito socrático por excelência, conduzindo naturalmente à sugestão de que Sócrates Sócr ates representava a encarnação antecipatória do sujeito da ironia, o lócus dos intercâmbios entre a forma e a verdade que define a ironia, ou, o que é o mesmo, o lócus das trocas entre poesia e filosofia. Não contamos com uma área livre de opacidade, contudo, para darmos conta da multiplicidade de elementos que trazem o romance para o centro da questão romântica, desde que a reflexividade que ela opera, aquilo que vem aclarar, é justamente produtora dos pontos cegos. Não há posição privilegiada para ver o conjunto, mas recuando aos “Diálogos”, percebe-se a tentativa que fazem os românticos de recuar e retornar aos gregos como um modelo da união da poesia e da filosofia e assim da matriz originária do romance, ou seja, daquilo que finalmente entre os Modernos encontrará um nome. É aqui que se deixa manifestar a engenhosidade de João Guimarães Rosa ao conceber a sua saga como um diálogo platônico com um único interlocutor, constituindo-se como um refletir-se a si mesmo, deixando os vestígios da trilha percorrida, via círculo de Iena, para chegar ao modus operandi dessa operandi dessa forma. Também fica visí vel a argúcia de um Edgar Allan Poe quando mimetizou, pondo em operação, a reflexividade, na figura de uma carta roubada, chamada depois pelos pós-estruturalistas de a hipóstase do significante. Pelo tratamento que lhe deu Lacan num dos seminários dedicados ao conto (que certamente vai buscar na “Letter on the Novel”, Novel”, manifesto de Schlegel sobre o romance, texto básico do romantismo, no qual se declaram os termos de uma poesia universal progressiva, de uma
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
civilização progressiva e universal, contendo em si todas as coisas (Dialogue on Poetry, 1799). O romance perfeito mistura todos os gêneros, através da fusão do épico, do dramático, do lírico, do crítico e do filosófico. E como o engendramento de tal trama é impossível, o romance perfeito é inatingível. A “Carta sobre o Romance”, então, pedra de toque da “filosofia da poesia”, poesia”, nos Diálogos, não está situada no centro do texto, está em falta, como a “A Carta de Poe”, en souffrance, souffrance, em sofrimento, en attente, attente, em espera, como o próprio 59 romantismo que simboliza . Vasto é o campo aberto pelos românticos de Iena, ao libertarem e emanciparem a obra de arte da estética tradicional. Vastas e dominantes são as conexões entre os produtos de sua especulação e speculação e a arte do século e meio que ao deles se segue, que por si só constitui
excepcionais e em comentários fugazes, como se vê na instigante análise de Octavio Paz — “Stéphane Mallarmé: o soneto em ix”, — na qual, citando palavras colhidas por Mallarmé da senhora Émilie Noulet, nos diz que ela havia elucidado o mistério sobre o significado da palavra ptyx: “se nos remontamos à origem grega da palavra, ficamos conscientes de que a ideia de dobra é fundamental... ptyx significa uma concha, um desses caracóis que ao aproximarmos do ouvido nos dão a sensação de escutar o rumor do mar” (Oeuvre poétique de Mallarmé,1940)61. Debruçar-se sobre a organização do poema permite a Paz concluir que o seu instrumento, o caracol, “é uma estrutura que se dobra sobre si mesma”. Segundo Jean-Pierre Richard (L’Univers imaginaire de Mallarmé, Paris, 1961), a dobra é uma forma de reflexão: pensar, refletir, “é dobrar-se” 62. Surpreende
o lugar privilegiado para a pesquisa e para a especulação literária por excelência. O núcleo essencial é o da reflexividade, também chamada metateoria, ou simplesmente teoria, que em formulações extremas, como a de Leon Chai, assume o lugar do próprio conteúdo de qualquer campo do saber, de tal forma que “as razões pelas quais fazemos teoria derivam menos do nosso conhecimento de um campo específico — ou disciplina — do que daquilo que intuitivamente percebemos sobre a teoria mesma”60. Não obstante o fato de que a reflexividade, que se mantivera latente na obra de autores do simbolismo e tornara-se a pulsar na obra dos autores do modernismo, vindo a se constituir o núcleo irradiador da tradição moderna da poesia, tudo isso, porém, foi insuficiente para que a teoria lhe reservasse um lugar. Diria até que a questão jamais se tornaria visível em si s i mesma senão em momentos
que um pensador com os poderes de Paz e já em anos tão recentes quanto aqueles em que produz o seu ensaio, não fizesse ali articulações mais significativas sobre todo o circuito que a reflexividade ativava desde Iena, percorrendo todo o campo da literatura desde então. Fica claro, porém, que o seu objetivo é revelar, no enigmático poema de Mallarmé, como, por sua forma, a obra de arte é um centro vivo de reflexão, e pôr a nu as sequências de operações autorreflexivas pelas quais o poema se constrói refletindo sobre si mesmo. Mallarmé aponta, na figura do Mestre que “já fora colher outros prantos no Estige”, o influxo da força externa que recebia de Edgar Allan Poe. Obviamente tais referências à reflexividade não estão completamente ausentes da teoria literária, mas se encontram pulverizadas neste campo, aqui e ali, como grãos de pólen; o padrão a que me refiro, o do tratamento fragmentário e ligeiro, é a tônica, como, aliás, já
59 (Cf. SCHLEGEL 1971:87-91) 60 “The reasons we do do theory the way we do come come less from our knowledge knowledge of a given Field — or discipline — than from what we intuitively feel about theory itself”. (CHAI 2006:XII).
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(PAZ 1996:190) (PAZ 1996:190)
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registravam Lacoue-Labarthe e Nancy, tanto que a tese de Benjamin é um dos seus textos que menos atenção mereceu por parte da crítica e justamente aquele em que a reflexividade é reconhecida como o núcleo da teoria romântica. Jeanne Marie Gagnebin chama atenção para a reflexividade que também nucleia a tese de Benjamin, como responsável pela fertilidade do pensamento romântico para toda a teoria contemporânea da literatura, sobretudo no que diz respeito aos conceitos de obra e crítica:
“A fundação da reflexividade, como tradição da ficção, não é atribuída a Poe e sim a Mallarmé. Baudelaire, Mallarmé Mallarmé e Valéry não se cansam de afirmar a sua fidelidade de princípios ao poeta americano — Poe, para Mallarmé, é a alma poética mais nobre que jamais viveu”, “o caso literário absoluto”, para Valéry é “talvez o mais sutil artista deste século”. Mas o culto de Poe pelos franceses é visto pelos leitores de língua inglesa como um mistério. Um leitor privilegiado como T. S. Eliot, para quem Poe nunca deixaria de ser “uma pedra no meio do caminho de todo crítico
É justamente esse conceito de Reflexão que Benjamin destaca
judicioso”, não é capaz de nele vislumbrar vislumbrar as marcas marcas de uma mo-
na primeira parte do seu livro como sendo o conceito básico
dernidade que com ele se funda:64
da teoria do conhecimento subjacente à concepção de crítica (antes de tudo literária) dos irmãos Schlegel (sobretudo de
“Devemos estar preparados para contemplar a possibilidade de
Friedrich) e de Novalis. Ao centrar suas análises nesse con-
que esses franceses tenham visto algo em Poe que nós, leitores de
ceito, Benjamin ressalta a dimensão especialmente filosófica
língua inglesa, não percebemos”.65
dos românticos, buscando o núcleo especulativo comum sob a abundância, à primeira vista confusa e arbitrária, dos textos e dos fragmentos. 63
Digo que a questão da Reflexividade permanece pulsante, uma vez que, originária dos primeiro românticos, românticos, ressurge de forma amplificada para um grande público partir de Edgar Allan Poe, vindo a constituir-se o principal operador da sua obra e das três gerações de poetas franceses que a retomam e a refletem, refletindo também sobre ela – Baudelaire, Mallarmé e Valéry – e que integraram uma articulação que viria a ser chamada por Eliot de a conexão Poe, no seu ensaio “De Poe a Valéry”. Um pouco da perplexidade de Eliot em face da poética de Edgar Allan Poe é tratada em conferência minha de 2002, na Faculdade de Letras da UFRJ: 63
(GAGNEBIN 2007: 66)
Se essas palavras representam certa rendição em face do incompreensível fenômeno Poe, outras proferidas anteriormente comportam a condenação pura e simples, embora a contundência traia um resíduo de dúvida que não se erradica: “É difícil para nós compreendermos como poderiam três poetas franceses, todos homens de dotes intelectuais excepcionais, levar Poe tão a sério como filósofo — pois são as teorias de Poe sobre a poesia, mais que seus poemas, que significavam tanto para eles”. eles”. Não se sabe com que grau de compreensão deste público a reflexividade em Poe foi recebida, uma vez que mesmo poetas, prosadores e críticos em geral pouco a entenderam. Na verdade era comum atribuir-se o que se considerava a estranheza dos escritos de 64 (CAVENDISH 2002) 65 T. S. Eliot (apud FELMAN 1988 — minha tradução); 65 tradução); (ELIOT 1956 — minha tradução)
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
Poe não a um umheimlich umheimlich,, estranho familiar, mas à sua expressiva aderência ao gótico alemão. Por tudo isso, permaneceu latente nos textos do simbolismo, do pré-modernismo e do modernismo. Onde quer que se manifeste, porém, vem a ser o núcleo irradiador da tradição moderna da poesia. Tudo isso, entretanto, sem que a teoria lhe determine um lugar. O fato é que a intensa e meteórica tempestade constelar do círculo de Iena deixou em seu rastro os efeitos, os desdobramentos, as conexões, a teia de ramificações, ramificaçõe s, o influxo que irá formar o conjunto do meio “literatura” — sem que se faça distinção aí entre produção crítica e teórica e produção ficcional — e se estenderá com uma amplitude e uma profundidade que hoje não permite sequer cogitar
sua marca, apontando para a fertilidade do pensamento romântico para toda a teoria contemporânea da literatura, sobretudo no que diz respeito aos conceitos de obra e crítica. O conceito de Reflexão, conceito básico da teoria do conhecimento subjacente à concepção crítica dos irmãos Schlegel e de Novalis, confere ao pensar romântico seu núcleo especulativo e realça a dimensão especialmente filosófica dos românticos. Tomar contato com o livro Romantic Teory; Forms o Reflexivity in the Revolutionary Era, Era, de Leon Chai, com que introduzimos este capítulo, foi uma grata surpresa, uma vez que se trata de uma importante incursão no campo da teoria que vê a partir do romantismo um movimento que atravessa amplos campos de conhecimento, partindo do Conceito, da sua gênese, da abordagem
o que haveria ficado de fora dessa explosão. Posta em operação, ou seja, presentificada, na poética fundadora do movimento, a questão permaneceu igorada, porém, pela Teoria e Crítica Literária de quase dois séculos, não fosse por um importante veio do simbolismo e do modernismo, que se tornou muito visível, ao tomar a reflexividade como eixo — o já citado eixo da reflexividade — Baudelaire, Poe, Valéry — resgatando-a de Edgar Allan Poe, a partir do qual se estabeleceria o liame — ou ao menos se tornaria possível desnudar a vinculação entre os primeiros românticos e estes poetas, os quais construíram as suas obras e a sua poética sob a égide da reflexividade, tendo-a, na verdade, como instância nucleal, fosse ou não esse processo de construção consciente ou das raízes primeiro românticas em que se assentava. Tenhamos como ponto pacífico que as referências ligeiras e o comentário ligeiro sobre a reflexividade são a tônica. Nunca será demais reconhecer que, adotando o foco romântico numa época de pleno olvido, Benjamin dá testemunho da agudeza crítica que era a
espacial dos conceitos pelos românticos — questão certamente ainda não reconhecida ou isolada — ao primado do desenvolvimento sobre aquele dos conceitos e à criação da metateoria, ou a análise formal da teoria, implicada nessa concepção a noção de um retorno da teoria sobre si mesma, uma visada que ficará mais compreensível se levarmos em conta a filiação hegeliana do autor. Uma das ênfases do seu livro é, portanto, o “movimento de retorno”:
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para que se volte a si mesmo desde a alteridade, é necessário ha ver algum tipo de reflexividade... Com Schlegel aprendemos aprendemos que a reflexividade não apenas envolve um movimento de retorno, e sim, do mesmo modo um movimento de autoconsciência. Mas entendo que a consciência não se refere apenas à nossa própria autoconsciência. Ao invés disso, uma vez que observamos nossa passagem à alteridade via negatividade e nosso retorno ao self, é possível chamá-la de narrativa”.66 66
(CHAI 2006)
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Na teoria ou na crítica brasileira, a Reflexividade tampouco foi isolada como questão ou como conceito. A exceção são as referências esparsas que lhe faz João Alexandre Barbosa em seus estudos sobre Valéry, o primeiro com o título de “Suicídio da Literatura? Mallarmé segundo Valéry”. Neste livro, Barbosa examina as razões para o que considera o fracasso de Valéry, incapaz de revolucionar o tradicional verso francês por ter-se deixado consumir por “uma incessante reflexão destruidora e cética”, explicitando o problema básico do escritor, uma divisão “entre a consciência de uma aniquilação da Literatura, desde que submetida a um processo autorreflexivo, e o esforço em se fazer continuador de uma herança literária que, como não poderia deixar de ser, terminava por ser a negação daquela consciência. Embora seja forçoso reconhecer um certo poder paralizante da reflexividade, certo efeito medusante tão bem encenado no Hamlet, há o efeito oposto, a favor da poiésis, fértil e prolífico. Mas, prossegue Barbosa: “É somente nesta trilha de reflexão, que parece razoável a caracterização de Valéry como ‘símbolo perfeito da Europa” Europa”67. A Reflexividade é, então, apenas tangencialmente referida pelo crítico brasileiro, embora já essa referência revele a sua exponencial lucidez. Vincula-a aos destinos da literatura, ressaltando que com ela a literatura marcha para si mesma ou, como diz Blanchot, para sua “essência que é o desaparecimento”68. Neste texto, em nenhuma instância, há um recuo da análise que vincule Valéry à figura de Poe e à Reflexividade e muito menos aos românticos. A ênfase recai sobre os processos psicológicos de Valéry e a reflexividade é posta como um pensamento obsessivo, que seria responsável pelas contradições entre a sua produção teórica e sua prática poética. Barbosa concebe 67 68
Maurice Bla Blanchot nchot (apud (apud BAR BARBOSA BOSA 1976:52) 1976:52) Maurice Blanchot Blanchot (ap (apud ud BARBOSA BARBOSA 11976:52) 976:52)
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
a Reflexividade como o excesso do pensar, tomado como causa do fracasso da comunicação, do silêncio, do échet que que se instala na literatura com Mallarmé e mais radicalmente com Valéry, o poeta cuja dedicação ao pensamento não teve como resultado a ultrapassagem das regras do Parnaso. Repensar a poiésis em face do fenômeno da reflexividade, estabelecer paralelos e identificar contradições entre a reflexividade e a mímesis poderia oferecer uma linha de desen volvimento mais consequente com a poética da modernidade e do modernismo. Será em muitos textos da coletânea “A Comédia Intelectual de Paul Valéry”, publicada em 2007, que veremos o desenvolvimento e a explicitação de uma compreensão crítica das articulações que conduziriam o poeta francês e a sua produção intelectual a desaguar naquele duplo contraditório e paradoxal para o qual o poeta vinha se preparando ao longo dos anos. Já no capítulo de abertura, À margem dos extos extos, um estudo de 1999, é possível observar que Barbosa renunciara a ver Valéry como um poeta capturado por uma obsessão doentia de caráter psicológico; também aí o crítico, já agora se concentrando em Valéry e não mais em Mallarmé pelo olhar de Valéry, procura estabelecer “as linhas de influência e continuidade de seu pensamento com relação a antecessores fundamentais para a sua obra, tais como Leonardo da Vinci, Descartes, Edgar Allan Poe ou Mallarmé. Influência e continuidade que se iluminam por alguns conceitos recorrentes, como, por exemplo, o da consistência (no caso de Poe) ou da analogia (casos de Leonardo ou Mallarmé)”.69 Acentua Leyla Perrone-Moisés, em sua apresentação a esse livro, que no ensaio “Permanência e Continuidade de Paul Valéry”, Barbosa estabelece uma “instigante linha de relação 69
(BARBOSA 2007:18)
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
fundamental Poe/Valéry/Calvino” Poe/Valéry/Calvino”70. Na verdade, será através da leitura de duas estrofes de “O Cemitério Marinho”, a décima terceira e a décima quarta, e do poema La Jeune Parque, Parque, de 1917, que Barbosa “examinará as relações mais profundas entre a criação poética, de que Valéry já havia dado provas, e a consciência crítica envolvida na própria criação. Um exame prático de leitura daquilo que uma crítica inglesa, Elizabeth Sewell, chamou de mind in the mirror . Uma poética da autorreflexividade” autorreflexividade”71. Considerando os longos anos de silêncio guardados por Valéry antes de La Jeune Parque, Parque, ocupado como sempre esteve por uma incessante reflexão levada a cabo quase que exclusivamente nos seus cadernos, é de supor que o poeta francês tivesse sido capturado pelos textos da trilogia poeana, em que a inteligência é ficcionalizada
nos detivemos ao iniciar este texto, no qual uma palavra final sobre qualquer objeto de inquirição é indefinidamente postergada. Teria Valéry compreendido que Poe, incorporando aos seus textos os mais variados elementos vindos de qualquer campo — ciência ou saber hermético, da matemática, da astrologia, da astronomia, da criptografia, da frenologia, da tipografia, entre outros tantos, de fato sinalizava para o échet da da Literatura, preconizado e tão temido por Eliot, dedicando mais tempo não tanto à produção de textos literários, quanto à reflexão sobre o método? Ou seja, seria razoável postular que o silêncio poético de Valéry, “a ideia do trabalho do poeta como uma empresa destrutiva e, por isso mesmo, suicida” 74, teria se dado sob o influxo da poética poeana, mais especificamente da autorreflexividade que a nucleia? Que essa autorreflexividade
na figura de Monsieur Dupin. No início do segundo desses contos, “Assassinatos na Rua Morgue”, uma súmula do intelecto quando se toma a si mesmo em escrutínio — “e mental features discoursed of as the analytical, are, in themselves, but little susceptible of analysis. We appreciate them only in their effects. We know of them, among other things, that they are always to their possessor, when inordinately possessed, a source of the liveliest enjoyment” 72 — encontra de fato ressonância nas palavras de Valéry: “I regard methods with much more affection than results, and for me the end does not justify the means, since — there is no end” 73, que reduplica reflexivamente, a infinitude do paradoxo poeano, apontando ao mesmo tempo, para o infinito não como infinito assintótico, mas como o infinito “da obra de arte”, arte”, segundo indicara Schlegel. A sentença valeriana nos remete ainda ao estatuto da metateoria, ao qual
Poe irá buscar nos primeiros românticos é para onde aponta o seu uso de textos atribuídos a Novalis, assim como na provável origem da ideia de “A Carta Roubada” na Letter on the Novel , de Schlegel, e na epígrafe supostamente extraída do autor germânico para o conto “O Assassinato de Marie Rogêt”. Em suma, teria sido possível que tanto Valéry quanto seus antecessores, Baudelaire e Mallarmé, tivessem interpretado, e por isso adotado, Poe, para desespero de Eliot, como precursor de uma poesia pura, no sentido de uma poesia que abarca uma infinitude de forças no campo gravitacional do meio de reflexão? E o poema “O Cor Corvo” vo” como fruto de uma composição intencionalmente mecânica, cujo protagonista, um objeto artificial, com seu refrão repetitivo, seria símbolo e germe do fracasso, do fim da transcendência, da transcendência vazia e da literatura mesma, como até então concebida antes do advento do “admirável mundo novo” das forças engendradas pelas ciências da natureza? Toda arguição aqui colocada não tem
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(BARBOSA 2007:18) (BARBOSA 2007:14) POE (http://www.p (http://www.poemuseum. oemuseum.org/) org/) Valéry (In: BARBOSA BARBOSA 2007:109)
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(BARBOSA 2007:29)
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como propósito propósito senão deixar que falem as especulações abertas pela consideração da trilogia poeana (isso sem falar sequer em outros espécimens da sua obra) ou por um único conto, “A Carta Roubada”, e o seu poder de multiplicação multiplicação,, de reflexão e de conexão que constitui o meio literário como esta vasta teia de entrelaçamentos em que a reflexividade se movimenta, ampla rede de forças em movimento. É quase uma certeza, porém, que Eliot teria sido responsável em grande parte pelo infortúnio crítico da recepção poeana no século 20 e que desviara o curso de uma tradição literária a fim de retirar do seu núcleo a figura de Poe. Por exemplo: sabemos que Baudelaire fora o primeiro a introduzir Edgar Allan Poe na França, consumindo muitos anos de trabalho com suas várias traduções de “A Carta Roubada”, La Lettre Volée”. Volée”. Eliot, porém, se refere a essa tradução como tendo sensivelmentee aperfeiçoado o texto original, quando o original é que sensivelment é, propriamente, uma obra-prima do conto. Lacan, outro francês, f rancês, em seu famoso “Seminário” “Seminário” sobre o conto, queixa-se, todavia, justamente da pobreza semiótica da tradução, que não captura sequer a nuance filológica implicada no título:Te título: Te Purloined Letter . A responsabil responsabilidaidade de Eliot no que diz respeito às vicissitudes da recepção moderna a E. A. Poe se deve à natureza de sua crítica, que não interagia com os textos, não se comunicava com a obra do poeta de “O Corvo”, ou sequer a compreendia, colocando-se em posição de exterioridade quanto a ela, em posição de julgamento, valendo-se para julgar do critério de autoridade que emanava dos poetas franceses que admirava, os quais, por ironia, eram todos admiradores de Poe75. Sempre colocando em dúvida o valor literário de Poe, todavia, afirma: Eis aqui três gerações literárias, representando quase exatamente um século de poesia francesa. Naturalmente são poetas muito 75
Valéry compusera o seu “Monsieur Teste” Teste” como um duplo de de Dupin.
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
diferentes uns dos outros... Mas penso que podemos traçar o desenvolvimento e a linhagem de uma teoria específica através desses três poetas e é uma teoria que busca sua origem na teoria... de Edgar Poe. E a impressão que temos de Poe é tanto mais notá vel em razão razão do fato fato de que Mallarmé e Valéry, Valéry, por por seu turno, turno, não apenas efluem de Poe via Baudelaire: cada um deles sujeitou-se a essa influência diretamente, e deixou evidência convincente do valor atribuído à teoria teoria e à prática do pr próprio óprio Poe...76
No que diz respeito às características que o aproximam do simbolismo, é sugerido que em Poe a insistência no aspecto dual da música, como “medida” e como “condutor de indefinição” sugestiva do Ideal aplica-se a uma poesia que se centra na impressão para obter o efeito do Belo, ou seja, um efeito da sugestão, em detrimento de qualquer significado. A arte como forma, produzindo a “corrente “corrente subterrânea de sentido”, derivada do misticismo do ssentimento entimento,, afirmando o poeta empregá-la na acepção de “ideal” conferida por A. W. Schlegel. Por isso foi, certamente, um importante influxo para o movimento simbolista europeu. Creditou-se a ele, e não às teorizações encontradas em Coleridge ou em Emerson, a herança de uma tradição francesa, de Baudelaire a Mallarmé e Valéry, a que se convencionou chamar “simbolista”. No entanto, sua maior contribuição ao simbolismo foi a insistência na materialidade sonora das palavras, no modo como a musicalidade as afasta do referente sem que, porém, encontre um significado ausente para suprir a falta, ou qualquer imagem sugestiva de verdade, uma vez que o som, conduzindo e gerando outros, cria a “hesitação prolongada entre o som s om e o sentido”, conforme Valéry a definira. Uma vez que Poe concebe a autoconsciência como uma estrutura reflexiva infinita, ressaltamos também por essa via o 76
Eliot (apud FELMAN 1988; 2006:136)
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Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
seu parentesco com os românticos. Também para ele nenhuma imagem do eu alcança fechamento absoluto e o que lhe interessa são as formas pelas quais as figurações da autoconsciência exibem nelas mesmas a consciência dessa sua condição. Poe e, cem anos depois, Borges transformam a questão da busca metafísica na questão epistemológica da figuração do absoluto, na tarefa impossível de dar corpo a algo que, porque é infinito, não pode ser limitado por um traço. A consciência no esquema poeano, não se confunde, porém, com o eu psicanalítico. Diríamos que também Calvino caminha nessa direção, e não faria sentido enumerar toda a miríade de artistas da palavra que integram essa mesma comunidade, na qual é possível ouvir o murmúrio de ideias e reflexões das formas originárias dos românticos. Mesmo quando recuamos alguns sécu-
social — a urbanidade ou a sociabilidade, o Chiste, a Alta Cultura, o popular, o exercício vivo da intelectualidade, da virtuosidade — e com todos os valores e qualidades que o romantismo, como vimos, herda do Iluminismo”77. Uma concepção, em suma, schlegeriana do Diálogo. Buscar as “ligas” semióticas pelas quais se comunicam subterraneamente autores e obras, recuperar as novas formas que a reflexividade assume ao ressurgir de outras eras, compreender a dinâmica com que se dobra a reflexividade em identidade e diferença, são todas tarefas para muita pesquisa. Falar em Reflexividade começando por Edgar Allan Poe, a figura mais controvertida da cena literária americana, a literary case history , um “caso” na história literária, nas palavras de Shoshana Felman, “a stumbling block for the judicial critic”, uma pedra no
los, ainda nos encontramos dentro do raio de influxos e de forças que o preparam e que o antecipam, seja, por exemplo, nos Ensaios de Montaigne, seja em Cervantes ou em Shakespeare, apenas para citar os exemplos mais conspícuos. Mas a dinâmica da reflexividade preside a conformação de obras que se inscrevem num arco de enorme amplitude. E os sinais e signos que emblematizam o seu modo operativo são identificados, na análise de Irwin, em autores e obras tão distintos quanto As quanto As Mil e Uma Noites, o já citado Hamlet citado Hamlet (e em inúmeras outras de Shakespeare), em em Alice, Alice, de Lewis Carroll , , em em Moby-Dick Moby-Dick e A Letra Escarlate, em em James James Joyce e João Guimarães Rosa, em Sir em Sir Tomas Brown, Brown , em Goethe, em Goethe, nos teoremas matemáticos, nos paradoxos, na filosofia e em toda a mitologia. Prosseguir na enumeração nos parece ocioso, entretanto. Melhor seria colocarmo-nos na escuta do murmúrio que esse diálogo entre obras e autores produz, ao longo dos anos, um diálogo dentro do qual cada obra participa como um fragmento, a constituir um sistema, o sistema da literatura, diálogo “que se mantém em íntima relação com o espírito
caminho do crítico judicioso, como afirmou T. S. Eliot, não deixa de ser, por conseguinte, uma empreitada temerária. Talvez porque a figura excessivamente controvertida e paradoxal de Edgar Allan Poe termine por ser um óbice à disseminação dos produtos da especulação e das ideias, derivadas em parte dos românticos de Iena, sobretudo no que se refere à reflexividade. Talvez porque ocupasse sempre uma posição de risco, Poe não se detivera ante a dificuldade de construir os alicerces da reflexividade que encenaria em sua obra num passado mais longínquo, pouco adivinhado e percebido. Como não desfrutava de recepção inconteste, maior liberdade desfrutava para buscar seus caminhos à margem dos cânones. No terreno das especulações, seria possível também atribuir à própria natureza do processo que a reflexividade põe em movimento esse ostracismo do conceito, uma vez que os excessos do entendimento costumam provocar no sujeito que os experimenta justamente a paralisia que acomete Hamlet e que o impede de agir. Ou seja, o efeito poético da 77
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(LACOUE-LABARTHE; (LACOUE-LABAR THE; NANCY 1988:85)
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reflexividade seria o de provocar, pelo excesso de pensamento, uma conturbação exacerbada no meio literário, justificando em parte os sentimentos de ódio e de fúria que eram dirigidos ao poeta americano pelos seus contemporâneos e conterrâneos. Poe será, então, a figura a encarnar o elo perdido entre as lucubrações dos primeiros românticos e os escritores do simbolismo, do modernismo e as dos autores da contemporaneidade, aquele que buscará e desenvolverá, em alguns dos seus textos e poemas, a tradução e operacionalização da transformação, que os românticos nem sempre foram capazes de fazer, da reflexividade como ideia da arte como forma que se forma no pensar, em objeto que contém o movimento da reflexividade, ou seja, a objetivação da reflexividade. Como era do seu feitio, Poe o realiza por meio de uma ficção que atraía leitores numa sociedade de massas em plena formação, na medida em que exercia um inegável influxo sobre eles. Reconhecendo que o pensamento humano, por infinito que possa parecer o processo em que se engaja, jamais renuncia à totalidade, Poe criou os seus contos elegendo como temas vários dos paradoxos de autoinclusão, ou seja, aqueles nos quais vemos o animal humano ocupado na tentativa de incluir-se por completo em suas determinações. Seria necessário que Lacan, por volta dos anos 60 do século XX, à época dono de grande prestígio, tomasse o conto “A Carta Roubada” como tema de um dos seus famosos seminários, para que a questão da reflexividade tivesse algum relevo e assim mesmo em outro campo e de forma oblíqua, que punha em exposição a temática reflexiva do do ppelganger ppel ganger , dos duplos, assim como a teoria freudiana da compulsão à repetição, cujo início se encontra na insistência da cadeia simbólica dos significantes. Uma confluência entre a interpretação lacaniana e o conceito romântico de crítica como implicada na própria obra e como um seu desdobramento e reflexo pode ser observada nessa leitura,
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
terreno fértil que permite vislumbrar, em ato, um jogo de relações entre os textos. Implicação, ao invés de aplicação, da teoria psicanalítica, é o que fundamenta a análise lacaniana, confirmava Shoshana Felman, quando Lacan, tratando o texto de Poe como uma alegoria da psicanálise, retirando a ênfase no sentido e substituindo-a pela ênfase no significante, ou seja, justamente a falta de significação, deixa de pertencer à categoria de “psicologia aplicada à psicanálise”, uma vez que o conceito de “aplicação” denota uma relação de exterioridade entre a ciência aplicada e o campo que supostamente deve, unilateralmente, informar: na análise de Lacan, o texto de Poe serve para reinterpretar Freud, da mesma forma que o texto de Freud serve para reinterpretar Poe; uma vez que a teoria psicanalítica e o texto literário se informam mutuamente — e deslocam — um ao outro; uma vez que a própria posição do intérprete — do analista — vem a ser não fora, mas dentro do texto, deixa de haver uma oposição clara ou um limite definido entre literatura e psicanálise... O marco metodológico deixa de ser o da aplicação da psicanálise à literatura, e, sim, o da sua interimplicação mútua”78. Há aqui uma confluência entre a interpretação lacaniana e o conceito romântico de crítica como implicada na própria obra e como um seu desdobramento; e por extensão, uma inter-implicaçao entre a reflexividade do primeiro romantismo e a reflexividade mais tarde retomada por Edgar Poe, que muito diz sobre a natureza da própria reflexividade, quando observamos a estranheza, no sentido freudiano do termo, umheimlich umheimlich,, e que cercou todo o processo da recepção poeana no seu tempo, a incompreensão dos seus contemporâneos, os ódios suscitados nos seus inimigos, a violência com que o establishment assestou assestou suas baterias contra ele, com a qual se empenhou-se em negá-lo a qualquer custo, a complexidade mesmo 78
(FELMAN 1988; 2006:152-153)
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da sua empreitada, que ousou levantar o véu de algo que havia ficado há muito enterrado no caminho. Quanto ao projeto de Poe, em que minimamente consistia? A pergunta traz à lembrança uma importante aquisição a que tive acesso nas pesquisas realizadas durante a minha tese de doutorado, quando me confrontei com o extenso estudo comparativo entre Poe e Borges, de John T. Irwin, “e Mystery to a Solution — Poe, Borges and the Analytical Detective Story”79 (O Mistério de Uma solução — Poe, Borges e a História de Detetive Analítica), crítica realizada nos moldes do que verdadeiramente preconizavam os primeiros românticos, como desdobramento infinito da obra, inscrita no processo de autoconhecimento da própria obra, degrau do processo reflexivo. Eis aqui a questão que ele primeiro se coloca: Deixe-me começar por uma questão muito simples: como escrever uma história analítica de detetive enquanto obra de arte, quando os mecanismos da narrativa central do gênero parecem desencorajar a releitura ilimitada associada a um texto literário? Quer dizer, se a essência de uma história de detetive analítica é a solução dedutiva de um mistério, como o escritor evita que tal solução esgote o interesse do leitor na história?
Já o projeto pareceria implicar a reconciliação do paradoxo entre um gênero considerado menor e uma obra de arte. Aqui o gênero “história de detetive” de tetive”, inaugurado por Poe, reflete sobre o seu próprio estatuto como obra de arte. Irwin o esclarece: Tudo isso me coloca a tarefa de desenredar algo bastante enre-
Capítulo 4 . Reflexividade, Romantismo e Modernismo
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uma solução que conserva (porque infinitamente reconfigura) o senso de mistério, que se encontra na própria origem do gênero.80
O universo de conexões criadas pela simples posição de uma dessas histórias, “A Carta Roubada”, na qual a reflexividade dá forma e conformação à ficção através da análise do ato de análise, é demasiado vasto para que sequer as enumeremos. O reflexionmedium reflexionmedium no qual se produz e reproduz incessantemente desde o primeiro romantismo abrangerá uma galáxia de pontos luminosos, sinais de poéticas distintas mas articuladas, em que figuram os nomes de Holderlin, Tieck, Baudelaire, Mallarmé, Valéry, Calvino, Faulkner, Joyce, Rosa, Borges, e uma miríade de outros, muitos dos quais já citados, em meio aos quais Poe se coloca estrategicamente como ponto de junção e ao mesmo tempo de desvio. A reflexão, como intensificação da teoria, como alargamento da autoconsciência e autoconsciência do objeto estético, requer o afastamento, com relação a esse objeto, de um passo a mais, sempre, do enquadramento do visado numa moldura, da consideração do caráter da obra como alegoria. A análise do modo de operação da reflexividade na literatura, a metateoria, e a sua encarnação em obras reais, o modo como constitui a literatura “como manifestação de si para si mesma” 81, as formas que assumem a reflexão, são tarefas para realizar-se num tempo que é também infinito. Referências
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(IRWIN 1983:i)
80 (IRWIN 1983:ii) 81 (IRWIN 1983:123)
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Capítulo 5
Fenomenologia e Hermenêutica: impactos sobre os estudos literários M G B Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Qualquer filosofia ou teoria crítica existe e se mantém não apenas para estar aí, passivamente ao redor de todos e de tudo, mas para ser ensinada e diundida, para ser absorvida decisivamente pelas instituições da sociedade, para ser instrumental em conservar, mudar ou talvez subverter essas instituições e essa sociedade. Edward Said e world, the text and the critic
1. Fenomenologia e hermenêutica, relações possíveis
Embora a fenomenologia e a hermenêutica sejam disciplinas filosóficas diversas, há nelas um vínculo que as aproxima tanto quanto quanto as afasta. A primeira visa descrever a coisa em si. A segunda tem em mira interpretá-la, levando em conta que o “em si” é insuficiente para a ela chegar. A “coisa” pode variar — neste caso é a literatura —, mas as duas atitudes, e esta é a ideia aqui defendida, são complementares. Como a fenomenologia queria atingir o eidos eidos invariável invariável de seu objeto, para conhecê-lo em sua verdade, para tanto advogou que pressupostos e/ou preconceitos fossem “postos entre parênteses”, contemplando puramente os processos de constituição desse objeto na própria consciência, uma consciência não psicológica, mas transcendental. Por seu lado, a hermenêutica desistiu da pura apreensão da “coisa”, já que, no seu andamento histórico, reconheceu que a consciência está mergulhada num horizonte compreensivo, na história pessoal, social e política e que os parênteses não conseguem isolá-la. Para os estudos literários, as duas correntes têm prestado ser viços basilares, numa e noutra perspectiva, seja para o conhecimento da obra literária em si, seja para a explicação de seus sentidos. A fenomenologia literária mais estrita, desenvolvida por Roman Ingarden e por Georges Poulet, apesar das flagrantes diferenças
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Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica
entre ambas as orientações, a polonesa e a genebrina, possibilitou o desenvolvimento de análises rigorosas do estatuto das obras, seja no seu aspecto estrutural fenomênico, seja quanto aos fenômenos criativos na consciência autoral. A hermenêutica literária tem seus principais representantes em Hans-Georg Gadamer e Hans-Robert Jauss, na Alemanha, que mais especificamente trataram das questões da compreensão da poesia e da narrativa, um enquanto filósofo, o outro enquanto teórico da literatura, e Paul Ricoeur, na França, que teoriza as relações entre tempo e narrativa e o status status da da metáfora e especialmente os impasses da tradição interpretativa. A fenomenologia repercutiu sobre o formalismo e o estruturalismo1, sendo contestada posteriormente pelos pós-estruturalistas, Derrida à frente2. Deu origem, igualmente, à disciplina de Teoria
vertente em Paul Ricoeur, para quem, além do texto, há um Outro transcendente que produz sentido e cuja voz necessita de escuta. Nesses três casos, fenomenologia e hermenêutica se irmanam, borrando fronteiras e abandonando posições radicais. Para a literatura, essa conciliação surte novos desafios. A fenomenologia não mais pode prescindir da visada histórica, tendo de incorporá-la em seus princípios, o que é realizado pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty, ao conferir ao corpo e à percepção papel fundante na constituição dos objetos fenomênicos, direção compartilhada, no âmbito literário, por Roland Barthes na sua segunda versão do estruturalismo em O prazer do texto4. A seu turno, a hermenêutica se vê na necessidade de tratar os fenômenos do texto e da consciência levando em conta sua estruturalidade e sua histo-
da Literatura Estados Unidos, a 3partir do mesclada texto de ao mesmo nome de René nos Weller e Austin Warren , embora New Criticism. A hermenêutica deixou sua marca mais profunda na Escola de Constança, tanto em Jauss quanto em Wolfgang Iser. Derrida denunciou o logocentrismo das concepções estruturalistas. Jauss e Iser buscaram ultrapassar a visão imanentista dos formalismos, recorrendo à história, mas defrontaram-se com o problema do leitor ideal, uma espécie de máquina de leitura intratextual, que necessitaria, para ser desidealizada, de leitores históricos, tornando mais complexos os estudos recepcionais. Por outro lado, a fenomenologia filosófica derivou para a ontologia de Heidegger, de que o ser se manifesta na linguagem e é na análise da linguagem que pode aflorar, atravessou a teoria dialogal de Gadamer, que funde os horizontes do texto e do leitor, possibilitando a compreensão do passado pelo presente, e encontrou outra
ricidade, comouma Gadamer e Ricoeur fazem,em direcionando a interpretação para consideração dao“coisa” que os fenômenos extratextuais também devem ser interrogados. Uma separação apenas para fins expositivos pode aclarar essas questões, de modo que se possa compreender — e interpretar — as implicações das duas correntes e seus cruzamentos para os estudos literários. Como aponta Gumbrecht, com o “boom teórico” dos anos 60 e 70, “reviveu-se o desejo de encontrar uma definição transcultural e meta-histórica meta- histórica de ‘literatura’”, mas esse também levou a “várias respostas ‘apologéticas’, a perguntas sobre as funções sociais da literatura e a importância das mesmas” 5. Acrescenta ele que a estética da recepção “alegou que, pela medição do(s) leitor(es), os textos literários tinham exercido funções chave em algumas das mais importantes transformações ao longo da história história ocidental; ocidental; por sua vez, a desconstrução atribuiu à leitura desses textos o status status de de encenação da experiência filosófica experiência filosófica crucial crucial da falácia do significado linguístico
1 2 3
(Cf. KRISTEVA 1978) (Cf. DERRIDA 1982). (Cf. WELLECK; WARREN 1962)
4 5
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(Cf. BARTHES 1987) (GRUMBRECHT (GRUMBREC HT 1998:161).
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e da referência”6. Se hoje estudar literatura tornou-se um problema, dadas as concepções que contestam seu estatuto, ou apontam as alterações que a literariedade — para usar a terminologia de Roman Jakobson7 — tem sofrido ao longo do tempo e em etnias e culturas diversas, metropolitanas ou coloniais e pós-coloniais, pensar as questões fenomenológicas e hermenêuticas pode reorientar a crise de sentido que afeta os estudiosos desse campo tão polemizado. 2. A fenomenologia num horizonte de incertezas
A fenomenologia como disciplina filosófica é estabelecida por Edmund Husserl (1859-1938), na Alemanha. Embora Hegel já utilizasse o termo em sua Fenomenol Fenomenologia ogia do Espírito (1807), especulando sobre como a Ideia Absoluta se realiza em e contra os objetos e na consciência de si do sujeito 8, é Husserl quem lhe dá um corpo teórico rigoroso, iniciado em suas Investigações lógicas, lógicas, de 190019019. Na virada o século, antes da Primeira Guerra Mundial, o mundo europeu se apercebia das primeiras consequências nefastas do capitalismo e os valores sociais mostravam o abalo das tradições seculares. Husserl, em A em A crise das ciências europeias, europeias, em 1935, declara que sua filosofia quer nortear a prática, restituindo a noção de verdade não como proveniente do Absoluto — como em Hegel — mas como construção da consciência c onsciência10. 2.1 Husserl e a fenomenologia fenomenologia da consciência transcenden transcendental tal
Para a fenomenologia, o que existe só existe para a consciência, que por sua vez se torna consciência ao tomar consciência do que a ela se 6 7 8 9 10
(GRUMBRECHT 1998:161-162) (GRUMBRECHT (Apud EIKHENBAUM 1971:8) (Cf. HEGEL 1992) (Cf. HUSSERL 1976a) (Cf. HUSSERL 1976b)
Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica
doa11. Husserl não discute a prioridade do mundo ou da consciência, mas recusa a hipótese de que o conhecimento venha de fora da consciência, como queriam os empiristas. Por outro lado, não aceita a tese kantiana de uma consciência pura. Para ele, a consciência não apenas percebe o mundo pelos sentidos, mas confere aos dados da percepção sua inteligibilidade: ela constitui para si um objeto ideal, o único que pode ser conhecido com certeza absoluta. O conceito de consciência depende do que ele chama de intencionalidade. Para ele, a intenção é movimento da consciência que a faz tender para algo que não é ela. É o voltar-se para as coisas que determina que a consciência exista, pois só assim será consciência de. É nesse mover-se que ela vivencia a si mesma e aquilo que nela aparece: o fenômeno ( phainomena ( phainomenaii). Essa é a razão por que só os fenômenos podem ser objeto de conhecimento, pois não há meio de a consciência ir às coisas mesmas, de que eles são fenômenos, senão através deles. Diz Husserl, em Investigações lógicas, lógicas, que o conceito de fenômeno é “o objeto intuído (aparente), como ele nos aparece aqui e agora”12. Daí que a fenomenologia seria “a teoria das vivências em geral e, incluídos nelas, de todos os dados, não só reais, mas também intencionais, que se podem mostrar com evidência nas vivências”13. Conhecer é apreender o fenômeno como ele se apresenta na consciência, tanto enquanto é por ela constituído, como depois de constituído. Não requer a comparação entre fenômeno e a coisa, pois não é possível relacionar-se sensoriamente com as coisas sem distorções. Para chegar ao verdadeiro conhecimento é preciso contemplar o fenômeno tal como ele surge na intuição (o dar-se de forma direta, imediata, completa, adequada), deixando de lado tudo o que se sabe sobre o objeto de que ele é fenômeno. Essa atitude 11 11 12 13
As considerações considerações a seguir seguir são extraídas de BORDINI BORDINI (1990) (HUSSERL 1976a:771) (HUSSERL 1976a:772)
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Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica
se chama “redução fenomenológica” (epoché ( epoché ). ). Consiste em pôr o objeto do conhecimento entre parênteses e atentar à atividade da consciência que o constitui para si. Conhecer seria extrair dos fenômenos o que é transitório ou contingente — o que eliminaria as ilusões — para alcançar o que nele é imutável, sua essência (eidos ( eidos), ), aquilo que garante que o fenômeno é o que é, sempre que se manifestar à consciência. Como a consciência não é um lugar ou um estado, mas está sempre se voltando para, fluindo no tempo, o conhecimento verdadeiro será o eidético, pois — como Platão já dizia — não se pode conhecer o que está sempre mudando. Esses conceitos causaram o escândalo com que foi recebido o seu Idéias para uma enomenologia pura e para uma filosofia filosofia enomenológica enomenológica,, de 1913, acusado de idealismo 14.
mundo-da-vida (Lebenswelt (Lebenswelt ), ), do qual ela intenciona tudo o que pode, pela lembrança do que passou ou pela imaginação do que virá. O mundo-da-vida, para Husserl, é “o mais conhecido de todas as coisas, o já por si evidente em todo o viver humano, o que já nos é sempre familiar em sua tipologia por meio da experiência” 15. No conjunto das consciências, em sua interligação, faz-se a história, ao longo do fluir do tempo da natureza. É da intersubjetividade que nascem os gestos e a práxis, desde que as consciências possam se comunicar, o que é facultado pela linguagem. A linguagem surge como significação, a que a consciência dá corpo com matéria sensível, sinais físicos: o verbo, na linguagem, o som, na música, o gesto corporal, na dança, a cor, na pintura, etc. Graças a esse suporte material, que indica a outra consciência o
Como a consciência é um fluxo, possui um horizonte em perpétuo movimento. O horizonte é tudo o que a consciência pode vivenciar, voltando-se do aqui e agora para os fenômenos passados (que constituem a memória) ou para os que se anunciam adiante (a previsão), no plano daquilo que ela dá como existente, porque preenchido pela intuição da coisa (o real) ou no plano a que não considera existente, mas vivencia assim mesmo (a fantasia). A linha desse horizonte se altera à medida que o raio da intenção focaliza algo, avança ou retrocede, até os fenômenos se esfumarem e desaparecerem. O agora de cada ato intencional é instantâneo, mas dele guarda-se a vivência, pelo processo da retensão, ou antecipa-se seu desenvolvimento, pela protensão. Só depois configuram-se os atos de recordação ou de antecipação. O horizonte da consciência é, pois, dinâmico e fornece o contexto a cada fenômeno na história do su jeito enquanto autoconsciência autoconsciência e na história de sua vida no mundo. A consciência se torna consciência porque está imersa no
sentido intencionado nesta, a comunicação se faz possível e as consciências se tornam intersubjetivas, ou seja, reconhecem-se como consciências e fazem acordos, entram em desavença, socializam-se e historializam-se.
14
Cf. o Prefácio do do autor à edição edição inglesa (In HUSSERL 1969)
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2.2 Roman Ingarden e a teoria fenomenológica fenomenológica da literatura literatura
É a partir dessa posição radicalmente fenomenológica que o polonês Roman Ingarden, em seu livro A livro A obra de arte literária literária,, de 193016, investiga a essência do literário. Seguindo o método de seu mestre — foi aluno de Husserl em Göttingen e Freiburg durante oito anos17, para ele a literatura teria uma estrutura essencial perceptível em todas as experiências individuais que dela se têm. Pela redução fenomenológica, ele propõe que se deixem de lado todas as características transitórias e singularizantes das obras literárias e as 15 16 17 17
(Apud LANDGREB LANDGREBE E 1975:172-173) (Cf. INGARDEN 1973a) (Cf. SARAIVA 1973:xi)
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prenoções conhecidas sobre elas, para atingir a essência invariante dos fenômenos que apresenta à intuição. É bastante conhecida sua conceituação da literatura como produção da consciência, constituída de quatro estratos fenomênicos heterogêneos, formando uma estrutura harmônica, em fluxo. São eles: o estrato fônico, dos fonemas linguísticos organizados em palavras, o estrato semântico, em que, de unidades superiores de combinação, por meio de conexões gramaticais, surgem os sentidos intencionais. Desses dois estratos se projetam outros dois, em que a intencionalidade constitui objetos fenomênicos e em que estes se concretizam, se revestem de aspectos sensoriais segundo os hábitos da consciência. A essência da obra seria a interrelação necessária entre eles (daí a noção de estrutura) e a autonomia do conjunto em relação ao que haja fora dele (a condição de imanência). A diferença entre os componentes de cada estrato e suas relações com o todo se responsabiliza pelo efeito da literatura: a polifonia qualitativa, em que todos os elementos permanecem à vista, mas entram em relação uns com os outros, originando a configuração singular de cada obra e de cada gênero. Por outro lado, como a consciência opera no tempo fenomenológico, a obra se desdobra em fases, que a levam adiante, fundamentando-se no que já passou e no que virá, até sua constituição plena, o que explica a divisão em episódios, capítulos,
A apreensão dos sinais gráficos seria um ato ao mesmo tempo perceptivo e significativo, pois captaria a figura da letra e lhe conferiria um sentido intencional, convencionado socialmente, que seria se ria o fonema a ela correspondente, acionando atos de memória e de pensamento. Se a memória falha em produzir a associação aprendida na alfabetização, ou o pensamento não sintetiza o sinal gráfico com a impressão acústica, a leitura não ocorre. Por isso, só flui a leitura que não se prende às letras, mas às palavras e frases. Num segundo movimento, haveria o ato de compreensão dos sentidos verbais provenientes dos fonemas combinados em unidades superiores. Ela aconteceria a dois níveis: o da palavra, como elemento individual, e como parte de uma hierarquia superior, a da frase, e ao texto inteiro. A palavra receberia o sentido por uma convenção intersubjetiva, mas, ao nomear e indicar a coisa para várias consciências, apreenderia relações das coisas umas com as outras, que ficariam fixadas pelos índices gramaticais. Portanto, ser um verbo e ser um predicado designam um estado de coisas na consciência, que é correlato intencional ao comportamento das coisas fora dela. O leitor, porém, não intui cada conjunto fônico-semântico em si. Para chegar ao ato compreensivo, inscreve-o em unidades de fenômenos correlatas às coisas em si, através dos estados de coi-
versos, estrofes, etc. Deriva de sua teoria da literatura também uma teoria fenomenológica da leitura, expressa em seu O conhecimento da obra de arte literária,, de 193718. Quando se lê, a consciência apreende o objeto literária de leitura a partir dos fenômenos que o texto impresso lhe oferece. Em primeiro lugar, ocorre a intuição sensível dos sinais gráficos, de imediato transformados, por atos constitutivos intencionais, em impressões fônicas.
sas (state (state o affairs) affairs) como aparecem na consciência. O sentido da linguagem é recuperado pela intuição do objeto designado, ou do léxico e da morfossintaxe quando esse objeto não está à vista dos que usam a linguagem como meio de comunicação intersubjetiva. Segue-se o momento da objetificação, ou da constituição de objetos intencionais a partir desses sentidos intencionais. Entender um texto é transferir para a própria consciência o ato significativo que teve origem em outra (ou num outro momento da consciência de si, como quando se lê o que se escreveu). As palavras iniciais de
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(Cf. INGARDEN 1973b)
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cada frase têm sentidos, pois apontam para estados de coisas que depois serão preenchidos com os sentidos das palavras seguintes, produzindo a ilusão de continuidade que os textos veiculam. A leitura eficiente supera a linearidade das palavras e efetua ligações nas hierarquias superiores, constituindo, a partir das frases, as objetividades que vão se enlaçando no texto. Entendidos os sentidos, a leitura efetua o processo fenomênico da objetificação. A intencionalidade do leitor capta, na profusão de determinações do correlato intencional da coisa, algumas dessas determinações e reconstitui criativamente esse correlato, independente da experiência do objeto fora da consciência. Isso explica por que uma leitura pode divergir de outra sem ler objetividades diferentes. Os núcleos de concordância seriam estabelecidos pela estrutura total da obra, fixada nos estratos fônico e semântico. Atualizando as determinações criativamente, o leitor constitui para si todo o mundo apresentado na obra, reapresentado na sua consciência conforme sua intencionalidade pessoal. Essa irá coincidir com a do autor no que se refere à estrutura do todo, mas se diferenciará na configuração individual dos elementos que o integram. A partir daí, o leitor chega à concretização, ou evidenciação da presença desses objetos intencionais como se fossem fenômenos de objetos independentes da consciência. A concretização é determinada pela natureza esquemática dos estratos objetual e aspectual. Trata de preencher os pontos de indeterminação, as lacunas deixadas em branco no esquema dos objetos. Os pontos de indeterminação são aqueles momentos em que não se pode decidir se o objeto apresentado tem essa ou aquela qualidade. O leitor, cuja consciência sempre vivencia o objeto intencional autônomo em plenitude na intuição do mesmo, diante do objeto intencional heterônomo que lhe é doado pela linguagem, preenche esses pontos vazios com sua experiência prévia, derivada do seu tempo e de seu espaço, tais como
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são constituídos na sua consciência em interação com as demais consciências. Para Ingarden, o leitor não é livre no preenchimento dos pontos de indeterminação, porque a estrutura intencional da obra lhe traça um rumo a seguir. Não é só ao nível das objetividades que as indeterminações são preenchidas. Os aspectos que nelas estão em prontidão, em potência, são despertados e atualizados conforme os hábitos perceptivos do leitor. Assim, o que é uma vivência intelectual ou emotiva de um objeto, se reveste de qualidades sensoriais, que garantem o lado estético da experiência da leitura. O ato fenomenológico da leitura, portanto, acontece na consciência e, como esta é sempre temporal, está em fluxo, também é determinado por uma corrente de fenômenos. Seu desenvolvimento se dá por polarizações de fenômenos, que seriam os agoras em sequência. Esses agoras da leitura estariam cercados por zonas esmaecidas, tanto para frente como para trás, como futuros antevistos ou passados memorizados. Cada momento da obra transitaria, na leitura, de desconhecido desc onhecido ou pressentido para intuitivamente presente, vivo, e logo para conhecido, mas já sem nitidez. nitidez. A cada ponto-agora da leitura, os objetos intencionais apresentados são vividos pela consciência do leitor como se tivessem existência própria, como sendo realmente experimentados, mas logo se desvaneceriam e na memória restariam reverberações do estrato fônico, sínteses imperfeitas do estrato semântico, vistas pouco detalhadas do mundo intencional, detalhadas aqui e ali por alguma ênfase aspectual. Por sua dinâmica, o processo de leitura obriga à contínua mudança, à novidade, à reavaliação do conhecido em relação ao que se vai conhecendo. O leitor leitor está cônscio de que que sua leitura progride, progride, de que decrescem as partes não lidas e aumentam as já lidas, e que seu movimento de umas para outras não é regular. Seu ritmo é determinado tanto pela sua consciência, que se distrai ou não da leitura,
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que volta atrás para conferir algo ou imagina o que virá, quanto pela obra, que lhe produz momentos de tensão ou distensão, conforme se desenrolam os eventos no mundo nela apresentado. Para Ingarden, a obra literária é eideticamente eideticamente estética. Embora expresse uma subjetividade, portadora de uma ideologia, ela não se realiza enquanto não reveste o que for ideia, emoção ou palavra de qualidades sensíveis, atualizadas no ato de concretização. Toda leitura que não chegue aí, não será literária. Leituras meramente filosóficas, sociológicas, religiosas, psicológicas ou linguísticas de uma obra literária seriam secundárias, pois não atingiriam sua esteticidade inerente. Ingarden não deixou de receber críticas por sua concepção da estrutura fenomenológica da obra literária. Embora a fenomenologia esteja na raiz dos estruturalismos posteriores posteriores,, foi acusada de ignorar a história e o corpo, o que não é de todo verdadeiro, poi poiss estes são os elementos entre parênteses da redução fenomenológica fenomenológica e na base da teoria husserliana está o mundo-da-vida. Se Ingarden foi o mais ortodoxo quanto ao seguimento da filosofia da consciência husserliana, enquanto outros a ela filiados, como Dufrenne 19, Merleau-Ponty 20 e Sartre21 refutaram a ideia de intencio intencionalidade nalidade pura, trazendo a força criativa da natureza, a corporalidade e a existência histórica como sede dos fenômenos da consciência, de qualquer modo, a fenome-
pois defende que o leitor cria o que não está dito conforme suas referências, repertório de padrões e temas conhecidos, alusões que tornam familiar o que poderia não ser, buscando uma consistência que pode não corresponder à da obra, e, sim, fazer sentido para ele. De qualquer modo, nem assim o leitor pode desviar-se das determinações textuais a seu bel-prazer. Do jogo do determinado e do indeterminado decorre a desfamiliarização, o efeito que, segundo ele, a obra deve realizar ante as expectativas e crenças do leitor, levando-o a reformulá-las. Pensando os pensamentos do outro, do texto, o leitor aceita a alteridade e revê suas convicções. Assim, a literatura exerceria sua função emancipatória. Para Ingarden, a estrutura estratificada da obra e sua sequencialidade deveriam acionar todas as operações da consciência do leitor, que, ao conseguir concretizar o seu objeto fenomênico, estaria sendo desafiado a obter a harmonia qualitativa que a obra lhe oferece, como o intérprete num concerto, e, eventualmente, alcançaria a experiência de qualidades metafísicas como o sublime, o grotesco, o inefável. As duas posições são divergentes, a de Ingarden mais imanentista, a de Iser mais contextualista, mas ambas acolhem a possibilidade possibilida de de o leitor interagir com a obra e de esta afetá-lo. A questão é decidir se a humanidade melhora pela via da experiência estética estética — ideia base das artes miméticas ou expressivas em geral — ou do choque entre tradições e
nologia de Ingarden rendeu frutos na década de 1960, especialmente nas teorias de Wolfgang Iser, que dela partiu para conceber suas teorias da recepção da narrativa. Contrariando Ingarden e dialogando com autores como Jakobson, Lotman, Hirsch, Riffaterre e Eco, Iser, em 1976, com O ato da leitura22, admite um preenchimento mais livre das indeterminações, indeterminaçõe s,
inovação, ao influxo das vanguardas históricas. Uma das respostas à pertinência dessa pergunta está nas propostas da hermenêutica.
19 20 21 22
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(Cf. DUFRENNE 1979) (Cf. MERLEAU-PON MERLEAU-PONTY TY 1994) (Cf. SARTRE 1999) (Cf. ISER 1996)
3. A hermenêutica na busca do sentido
A interpretação existe, porque existem a situação e o discurso e estes podem negar seus sentidos ao ser humano. Os termos gregos hermeneuein,, interpretar, e seu substantivo, hermeneia meneuein hermeneia,, interpretação, são empregados desde a Antiguidade em correlação com o deus
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Hermes, o mensageiro do Olimpo, que transformava a voz dos deuses em mensagem inteligível aos homens. Segundo Palmer23, a partir dessa tradição remota, interpretar se refere a dizer , explicar ou traduzir . Dizer estaria estaria ligado à “expressividade da palavra falada”, falada”, que, na sua performance, é inerentemente interpretativa. Explicar viria viria da concepção aristotélica de ajuizar, enunciar um juízo verdadeiro ou falso, mas pressupondo que o interpretado mergulha num fundo pré-compreensivo, fornecido pelo modo como é explicado, ou seja, pelo método como o objeto é conhecido. raduzir é é tornar compreensível o que é estrangeiro, seja o que é distante pela língua, pelo tempo ou pelo espaço. Tendo em mente essas três possibilidades, a hermenêutica nos tempos modernos tem transitado nos âmbitos da exegese bíblica, da pesquisa filológica, do cientificismo, como em Schleiermacher, que desejava dar-lhe um fundamento universal e sistemático, do método para as ciências do espírito, à maneira historicista de Dilthey, do existencialismo, como em Heidegger e Gadamer, e das culturas simbólicas, como em Ricoeur. Todas essas tendências repercutiram sobre os estudos literários. O termo “hermenêutica” foi empregado, na exegese bíblica, por Johann Conrad Danhauer, no século XVII, em seu livro Hermeneutica sacre sive methodus exponendarum sacrarum litterarum rum (1654). Todavia, a interpretação já existia no Antigo T Testamento estamento (José do Egito interpretando os sonhos do faraó), nas regras para se compreender corretamente a Torah, na forma de os Evangelhos serem propagados na cristandade dentro de um sistema prévio de compreensão, sendo a teologia também um modo histórico de interpretação. Para a literatura, esse legado exegético manifestou-se nos estudos que lhe buscam um sentido previamente dado, que a informa e determina sua compreensão. Como metodologia filológica, a hermenêutica sofre a influência
da ascensão do racionalismo no século XVIII. Buscar o sentido, ou as grandes verdades, significaria considerar racionalmente a língua, sua gramática e o contexto histórico do texto, salientando as nacionalidades. Essa posição leva quase naturalmente de uma concepção de hermenêutica como sistema de regras para a constituição de uma ciência que descrevesse as condições da compreensão em geral, que é o que faz Schleiermacher (1768-1834), no século XIX, postulando que compreender é reconstruir os processos mentais do autor do texto, numa espécie de diálogo circular entre as constrições da gramática e a individualidade do emissor. Se a filologia marcou o estudo da literatura por sua ênfase na história da língua e da cultura nacional, refletindo-se sobre o positivismo literário, a hermenêutica, her menêutica, após Schleiermacher, derivou, na esfera literária, para a estilística, a análise de marcas subjetivas e de desvios da norma linguística. Na busca de uma metodologia para as Geisteswissenschafen Geisteswissenschafen,, Wilhelm Dilthey (1833-1911) encontrou na hermenêutica de Schleiermacher a saída para a historicização que considerava central a fim de interpretar as manifestações da vida humana. Rebelandose contra a aplicação dos métodos das ciências naturais às humanas, também não aceitava partir de um fundamento metafísico, de modo que seu interesse estava em destacar a historicidade da existência humana. Para tanto, Dilthey usa uma fórmula triádica: experiência, expressão e compreensão. Distinguindo Erahrung (experiência em geral) de Erlebnis Erlebnis (experiência individualizada), considera esta o “con “contato tato imediato com a vida”, anterior à separação sujeito-objeto. É, pois, a Erlebnis que sustenta — e dificulta, por sua inapreensibilidade — sua teoria da compreensão histórica. A expressão ( Ausdruck), Ausdruck), talvez melhor traduzida por objetificação da mente24, permitiria fugir à introspecção, garantindo o lado objetivo das ciências humanas. Finalmente a compreensão seria a captação
23
24
(Cf. PALMER 1986)
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(Cf. PALMER 1986:118)
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plena da experiência particularizada da vida, em que o sujeito se redescobre no outro, não se comparando a ele, mas transpondo-o para si. Como o homem não possui uma essência imutável, só pode autocompreender-se pelas objetificações da vida que o precedem, as quais lhe facultam o poder de decidir e mudar. Daí o conceito de sentido para Dilthey: “aquilo que a compreensão capta na interação essencial do todo e das partes”, ocorrendo no interior do chamado círculo hermenêutico entre história e indivíduo, visão de mundo (universal) e vivências (particulares). Para a literatura, as concepções de Dilthey tiveram longo alcance. Como ele valorizava as artes como objetivação da mente, e as da linguagem como as mais capazes de manifestar a vida interior do homem em sua forma, a literatura constituiria um corpo de objetos fixos para exercer o potencial compreensivo das ciências humanas, o que lhe realçava o valor. Com isso, a interpretação da literatura é situada na esfera da autocompreensão histórica do homem, embora sendo encarada equivocadamente por ele como reconstrução do ato de criação do autor, nas águas de Schleiermacher. Os reflexos da teoria diltheyana da Weltanschauung Weltanschauung se se estenderam às sociologias literárias, como a de Lukács, sendo reconfigurados pelas correntes marxistas, mas sob o peso da determinação histórico-econômica da vida. Como são múltiplos os caminhos que a hermenêutica seguiu ao longo do século XX, desaguando des aguando nos desenvolvimentos mais recentes, pragmatistas, como em Rorty, em 198225, ou semioticistas, como no caso de Umberto Eco, em 199026, uma opção se faz imprescindí vel entre os vários pensadores que se ocuparam do assunto. Faz-se Faz-se a seguir uma seleção, obrigatoriamente redutora, entre duas grandes vertentes: a de língua alemã, salientando s alientando Hans-Georg Gadamer Gadamer,, e a 25 26
(Cf. s.d) (Cf. ECO 1995)
Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica
de língua francesa, com ênfase em Paul Ricoeur, ambas com forte repercussão sobre os estudos literários. 3.1 A hermenêutica de Heidegger a Gadamer e Jauss
A hermenêutica tomou um impulso inteiramente novo na Alemanha, com o interesse de Heidegger de constituir uma ontologia que atingisse o fundamento último do Ser. Valendo-se da apreensão pré-conceitual de Husserl, dedica-se não à perquirição da consciência transcendental, mas do Ser-aí, o Dasein Dasein,, tal como aparece na sua historicidade e temporalidade. Para ele, a questão era a primordialidade do Ser situado, não a da consciência, como para Husserl. Dessa forma, sua fenomenologia não é metodologicamente tributária de Husserl, mas uma outra, que estaria na base do seu intento de fazer a hermenêutica do Dasein Dasein.. Partindo da acepção grega de fenômeno como aquilo que se revela à luz, pensa a fenomenologia como o modo de deixar as coisas aparecerem como são — não por constituição da consciência — e sim pelo logos logos,, a fala, pois a linguagem é que faz aparecer aquilo que ela diz. O pressuposto é que a realidade se mostra na palavra e a investigação do Ser, que o fenômeno deixa transparecer, pode ser efetivada pela compreensão da existência, uma vez que o Ser vai se manifestando enquanto se existe. Essa atitude leva a outra noção de hermenêutica: “o poder que torna possível a revelação do ser das coisas e em última instância das potencialidades do próprio ser do Dasein””27. Para Heidegger, a compreensão seria ontologicamente Dasein anterior aos atos existenciais. Consistiria na apreensão das possibilidades que se têm de ser na existência concreta de cada um, num projetar-se do aqui para o futuro, sob a consciência da finitude, não 27
(Cf. PALMER 1986:135)
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de um ponto de vista metafísico, mas mergulhado no mundo. É importante acentuar que “mundo”, para Heidegger, é a totalidade em que o ser humano está imerso, é pessoal, se sempre mpre presente e anterior a qualquer separação sujeito-objeto. Está junto com as coisas que o formam e é o fundo para a compreensão. Quando aquilo a que se está acostumado de repente rompe com sua costumeira invisibilidade e se mostra: eis como se compreende o sentido de algo. Nele a temporalidade e historicidade do ser estão sempre presentes, é onde o ser se mostra como significação, compreensão e interpretação. Significação (Bedeutsamkeit ) é o termo que Heidegger usa para nomear esse fundamento ontológico da compreensão. Está na base da linguagem, como uma totalidade que possibilita estabelecer sentidos,
será a poesia, que se desinteressa do útil, a linguagem onde o ser se manifesta, como ele afirma em seu s eu estudo sobre Holderlin29. Nessa perspectiva heideggeriana é que se constitui a obra filosófica de Hans-Georg Gadamer, de valor exponencial para a hermenêutica literária. Em Wahrheit und Methode ( Methode (Verdade Verdade e método), método), ele tenta refletir sobre como é possível a compreensão na existência humana e como é compreensível a experiência da obra de arte em horizontes histórico-existenciais que lhe dão significação para além daquela intentada pelo autor ou pelo leitor. Como Heidegger, ele rejeita a visão tecnicista e racionalista da modernidade. Para Gadamer, a verdade não se atinge pelo método, uma vez que este a predetermina. Se o Ser se manifesta na historicidade e na linguagem, é a dialética, à maneira de Sócrates e não tanto de Hegel, que pode
vem do mundo e permit permitee ao hhomem omem a fala, o dizer co como mo as coisas são. A interpretação seria apenas a explicitação desse como elas se dão, pela linguagem. Por essa razão, ele, no desenvolvimento posterior de sua obra, irá valorizar a linguagem como “morada do ser”. A interpretação, portanto, não pode ser exercida sem pressupostos. O surgimento do objeto não pode ser entendido como autoevidente, pois o que é apreensível sempre possui um contexto na existência e é pré-doado por esta. As consequências para os estudos literários foram, de certa forma, demolidoras. Se a compreensão e a interpretação precedem a relação sujeito-objeto, a atenção à historicidade e à linguagem avultam, assim como se torna necessário abandonar a noção de que a verdade do texto poderia ser alcançada por uma análise imanente, pondo o mundo “entre parênteses”. Assim também seria preciso repensar a linguagem, pois ela tanto revela quanto oculta o ser. Ela o falseia quando se ocupa com a sua utilidade e não consigo mesma, em que a coisa se doa 28. Por isso,
escutá-lo, pois pelo diálogo se acessa aquilo que já está pré-doado na totalidade que o Ser é. Assim como Heidegger, ele se preocupa com a arte, que sempre exige interpretação, e com a história, pelo problema da distância temporal que medeia a interpretação. Seu ponto de partida é a negação de que a verdade preexista ao processo interpretativo. Não há como aceder a ela sem pressupostos. Todo o fenômeno hermenêutico se apoia em expectativas de sentido já pertencentes ao horizonte de aparecimento do objeto. Como em Heidegger, a interpretação não ocorre fora do espaço aberto pela compreensão. Ela atualiza as possibilidades de ser e as articula à totalidade do campo compreensivo, de modo a garantir a sua unidade. Nas pala vras de Gadamer, “quem quer compreender um texto re realiza aliza sempre um projetar. Logo que aparece no texto um primeiro sentido, o intérprete projeta em seguida um sentido do todo. Naturalmente o sentido só se manifesta porque se lê o texto de determinadas
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(Cf. HEIDEGGER 1985a)
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(Cf. HEIDEGGER 1985b)
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expectativas relacionadas por sua vez a algum sentido determinado”.30 O projeto interpretativo vai se reformulando à medida que o intérprete se aprofunda no sentido. Para Gadamer o diálogo é o que caracteriza a compreensão. Diz ele que só compreendemos o que compreendemos como resposta a uma pergunta [...] precisamos ter compreendido anteriormente anteriormente uma questão, para que possamos dar uma resposta a ela ou para que possamos compreender compreender algo como resposta a ela. [...] Pertence à dialética de pergunta e resposta, que toda pergunta seja ela mes-
da tradição, numa cadeia de perguntas e respostas que circulam incessantemente, em que não há instâncias previamente dadas. Entre intérprete e obra trava-se um diálogo sem imposições de parte a parte. Estar em diálogo pressupõe estar aberto a ser transformado por ele, porque do contrário, se um dos dialogantes impõe o seu discurso, não há diálogo. Para Gadamer, o diálogo se dá numa fusão de horizontes. Cada dialogante possui um horizonte prévio, que se funde com o do outro no ato dialogal. Nessa fusão, cada participante se determina pelo modo como se funde ao outro, num jogo regrado, mas liberador. Diz Marco Antonio Casanova que diante da obra assumimos o próprio jogo que ela institui:
ma, em verdade, uma vez mais uma resposta que motiva uma nova pergunta. Assim, o processo do perguntar e do responder
Deixamo-nos guiar aqui incessantemente pela expectativa de
aponta para a estrutura fundamental da comunicação humana,
sentido e pelo esboço de totalidade, de tal modo que acolhemos
para a constituição originária do diálogo. Essa estrutura é o fenô-
o aceno da arte para que perguntemos por seu significado. [...] É
meno central do compreender humano.
preciso seguir as orientações fornecidas pelo próprio horizonte
de mostração da obra e escapar incessantemen incessantemente te da tendência de
31
Na obra de arte, a tendência já foi a de procurar um sentido fora dela, para o qual ela apontaria. Gadamer não aceita a ideia de representação (Vorstellung (Vorstellung ) e sim a de apresentação (Darstellung (Darstellung )):: para ele a obra diz, e o que diz se encontra nela mesma. Intenção autoral e representação metafórica do mundo não lhe são admissíveis. Fenomenologicamente, ele vê a hermenêutica como uma relação intencional entre o horizonte do intérprete e o da obra. Há que perguntar para obter uma resposta (embora a resposta já esteja na questão formulada pela obra), pois o apresentado só se revela no movimento de sua apresentação. O que acontece é que algo significa no evento mesmo da significação, mas está contido na historicidade
Segundo Gadamer, Gadamer, a hermenêutica da arte tem de se defrontar com o fato de que entre a obra e seu intérprete há uma “simultaneidade absoluta que se mantém incont inconteste este apesar da crescente lucidez 33 da consciência histórica” . Não se pode reduzir a obra ao momento em que surgiu, nem ao de sua leitura. É como se estivesse num presente próprio, relacionada com sua origem e intenções de seu autor e de seu intérprete de modo peculiar. Esse modo relacional é o da
30 (GADAMER 1984:333) 31 (GADAMER 2010:95)
32 (In GADAMER 2010:XVI) 32 33 (GADAMER 2010:1)
se lançar para fora desse horizonte. [...] Dar voz à arte não significa outra coisa senão abrir novas possibilidades compreensivas que não põem fim ao jogo, mas o mobilizam cada vez mais.32
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tradição, não só constituída de textos, mas de institui instituições ções e modos de vida. A atualidade atualidade da ob obra ra seria sua abertura para integ integrar rar novos ho ho-rizontes, lançando-se além das fronteiras temporais. “A obra de arte diz algo a alguém, e isso não apenas como um documento histórico diz algo ao historiador — ela diz algo a cada um como se isso fosse dito expressamente a ele, enquanto algo atual e simultâneo” 34. Diante dela, o intérprete é colhido pelo seu “encantamento”, a descoberta de algo encoberto, efetuada pelo modo como ela o diz, e compreende a si mesmo nesse encontro. Não se trata de uma questão de pensar ou ajuizar esse modo de dizer, mas deixar-se compreender por ele. 3.2 A teoria recepcional de Hans-Robert Jauss
Quando Jauss, que estudara com Gadamer, verificou a inadequação da educação literária alemã para dar conta das questões sócio-históricas e culturais de seu tempo, seja pela dominância em seu meio do New Criticism importado ou do antigo positivismo historicista, defrontou-se com o problema das relações entre passado e presente, já colocado por seu mestre como fusão de horizontes e dialética da pergunta e da resposta. Voltou-se para o formalismo russo e o marxismo, para equacionar imanência e transcendência, não na direção de Tynianov, que postulava a evolução das séries literárias sem relação com a história extraliterária, ou de Lukács, que via a obra como reflexo da consciência da humanidade 35. Valendo-se do que aprendera com Gadamer, estabeleceu os fundamentos de sua Estética da Recepção. Se o fenômeno hermenêutico abrange o mundo familiar do intérprete e o desconhecido da obra, o receptor não pode escapar de seus limites, preocupações e preconceitos, que são trazidos à compreensão do texto, resultando, 34 35
(GADAMER 2010:6) (Cf. JAUSS 1993)
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por esse ato de integração, na compreensão de si mesmo. O intérprete não se concentra no texto, mas dirige-se à questão posta por este, ao longo da experiência do texto. Assim, ele torna o texto existencialmente atual para si, porque se ocupa das questões do mesmo, imbricadas nas suas próprias. Jauss utiliza a noção de horizonte de Gadamer como “horizonte de expectativas”, incluindo neste reações, pressuposições, conhecimentos prévios, superstições, que o encontro com o texto tanto pode confirmar como negar. No último caso, estabelece-se entre texto e receptor uma distância, que Jauss chama de “distâ “distância ncia estética”. Esta irá determinar a história literária: ou o público transforma seu horizonte, para aceitar a obra, ou esta permanece em estado de latência até que surja um horizonte para ela. A força da literatura estaria nessa função emancipatória da distância estética, de alteração dos horizontes de expectativa. Dessa forma, a historicidade dos textos seria preservada pela resposta dos públicos, rompendo a barreira entre arte e vida, entre o antigo e o novo, que o formalismo não conseguira ultrapassar. E o historiador da literatura poderia reconstituir os horizontes mutáveis das expectativas do público, para acompanhar as alterações de sentido que a obra sofre. Jauss expressamente reconhece sua dívida para com Gadamer, por seu princípio de ver no “impacto histórico o acesso a todo o entendimento histórico” histórico” e por esclarecer “o processo controlável da ‘fusão de horizontes’”, mas também assinala suas divergências: se há uma suposta “superioridade” e “liberdade” de origem do texto clássico, que resgataria o passado, como poderia essa posição ser conciliada com a concretização progressiva do sentido e como “a identidade de sentido” da pergunta original, que mediaria origem e presente, poderia relacionar-se com a “atitude produtiva da compreensão na aplicação hermenêutica”36? Todavia, não se afasta de 36 36 (Cf. JAUSS 1984:XXXV 1984:XXXVI) I)
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Gadamer quando este entende a hermenêutica como “a tarefa de interpretar a tensão entre o texto e o presente como um processo no qual o diálogo entre autor, leitor e novo autor lida com a distância temporal no ir e vir da questão e da resposta, da pergunta original, da interrogação atual e da nova solução, e concretiza o sentido de maneiras sempre diferentes e, portanto, mais ricas” r icas”37. Para Jauss, a obra de arte, ao fundir-se com o horizonte de expectativas do leitor, afasta-o de sua familiaridade com as coisas e o provoca a olhar o mundo de outra perspectiva, que poderia afetar a sua praxis sua praxis.. A literatura não seria representativa, não absorveria as condições históricas ou sociais de sua origem, mas ofereceria modelos, padrões de atuação a que o leitor responderia. Envolvendose com o texto, o leitor reagiria às normas nele postas em ação e reconsideraria as suas. Esse efeito emancipatório dá-se por uma hermenêutica que abarca, como em Gadamer, três momentos: o da compreensão, o da interpretação e o da aplicação. A compreensão significa descobrir as perguntas a que o texto se constitui como resposta, acompanhando sua estruturação à medida que ele se desenvolve. A leitura interpretativa é retrospectiva: toma o que foi compreendido e retorna ao início; ou vai das partes para o todo, para esclarecer o que ficou obscuro ou em aberto. A leitura reconstrutiva é a que recupera a recepção que a obra teve e que foi conformando e transformando seu sentido ao longo do tempo. Esse é o momento em que o horizonte do leitor se encontra e dialoga com o horizonte da obra, podendo aceitar as normas que ela antecipa ou contesta. Daí chamar-se essa atividade de aplicação, a atitude decorrente de transladar os modelos com que o leitor se identifica para a ação prática. O potencial de experiência vivencial da literatura residiria 37 (Cf. JAUSS 1984:XXXVI) 37
Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica
nesse processo de identificação, que proporcionaria a cada indivíduo a avaliação e a alteração das regras que organizam a sociedade. A obra, ao pôr determinadas normas em circulação, reforçaria ou não modelos vigentes, ou sugeriria outros. Não seria, entretanto, doutrinária, portadora de “mensagens”, mas atuaria através do modo como, na obra, os eventos, os gestos e atitudes e o sistema de ideias que os determinam entram num diálogo — que deve ser prazeroso — com o horizonte de expectativas de quem lê. Como enfatiza Jauss, “é só no nível reflexivo da experiência estética que, na medida em que conscientemente adota o papel de observador e também se compraz nele que alguém terá prazer estético e entenderá com prazer as situações da vida real que reconhece ou que têm a ver consigo”38. É ao prazer operado pelo texto, portanto, que Jauss chama de experiência estética. Ela depende de uma fruição compreensiva, ou seja, de gostar de entender, e de uma compreensão fruidora, ou seja, de compreender o que se está e stá gostando. Nesse sentido, tal experiência se desdobra em três atividades coincidentes: a poiesis, a poiesis, a a aisthesis aisthesis e a katharsis katharsis.. A primeira é o prazer do leitor ao fazer-se coautor da obra; a segunda é o efeito de renovação da percepção estimulado pela sua não familiaridade; a terceira seria uma reação afetiva que deslocaria crenças habituais e liberaria a mente para novas possibilidades, alterando a orientação das ações do indivíduo. A identificação com o herói ou o tema, realizada no plano das emoções, permitiria ao leitor que experimentasse exper imentasse o texto num plano existencial. Haveria cinco modalidades de identificação prazerosa: a associativa, em que o leitor é desafiado a entrar no jogo da obra; a admirativa, em que o herói assume proporções ideais, tornando-se modelar; a simpatética, em que o leitor reconhece no herói 38
(Cf. JAUSS 1984:5)
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um semelhante; a catártica, em que o leitor pode se separar de sua identificação e analisar o que lhe foi apresentado; e a irônica, em que a identificação esperada é proposta, para depois ser ironizada ou recusada, levando à reflexão. Embora a estética da recepção tenha recebido críticas, especialmente por postular, na etapa da interpretação, uma espécie de leitor ideal, que teria habilidades de análise não encontráveis em qualquer indivíduo, elitizando a atitude compreensiva, a qual já seria suficiente para fornecer a experiência existencial que a hermenêutica advoga, a teoria de Jauss teve o mérito de chamar a atenção sobre o polo até então pouco considerado, o da leitura e seus efeitos sociais. Além disso, ao retomar a dialética da pergunta e da resposta gadameriana para estabelecer a atualização do sentido nos horizontes de expectativa históricos, deu uma resposta ao dilema do reflexo lukacsiano da sociedade na obra, incluindo origem, obra e intérprete num círculo hermenêutico de alta produtividade. 3.3 A interpretação segundo Ricoeur
O filósofo Paul Ricoeur reúne tanto a tradição alemã da fenomenologia de Husserl quanto a hermenêutica de Heidegger, numa investigação voltada para a equivocidade dos textos e, fundamentalmente, para o campo do simbólico. Diz ele que a questão é como os seres humanos criam significações e por que na sua fala não há unidade. Na região em que o duplo sentido se instala, está o símbolo, quando “um outro outro sentido sentido ao mesmo tempo se revela e se oculta num sentido imediato”39. Por isso, para ele, “a interpretação é a inteligência do duplo sentido”40. O campo hermenêutico seria o que vai além da perspectiva psicanalítica de que o “desejo frustra a palavra e fracassa 39 (RICOEUR 1977:18). 40 (RICOEUR 1977:18).
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em falar”41. Para Ricoeur, a hermenêutica teoriza as regras que presidem a uma exegese. Portanto, “o “o símbolo é uma expressão linguística de duplo sentido que requer uma interpretação; a interpretação é um trabalho de compreensão visando a decifrar os símbolos”42. Ele desenvolve sua argumentação a partir da anterioridade da hermenêutica em relação à fenomenologia. Convoca, em primeiro lugar, a exegese como aquela atividade que visa compreender um texto baseada no fundamento do que ele quer dizer. Dessa forma, ela implica uma teoria do signo e da significação, mas esta é muito mais complexa do que a puramente linguística, porque buscar o fundamento dos sentidos supõe abreviar uma distância temporal ou cultural e equilibrar leitor atual e texto estranho, incluindo, nesse processo, a autocompr autocompreensão eensão historicamente situada desse leitor. Ricoeur adverte que, desde Aristóteles, em seu Da Interpretação (Peri hermeneias), hermeneias), a hermeneia hermeneia abrange todos os discursos significantes, não apenas os que detêm um segundo ou mais sentidos, como os alegóricos ou mitológicos. O discurso mesmo é hermeneia hermeneia,, porque interpreta o real, diz algo sobre algo. Daí ser esse, no entender de Ricoeur, o princípio mais remoto a relacionar compreensão e interpretação: o discurso apreende o real por meio de expressões significativas e não por impressões provenientes dele. Todavia, a exegese não seria suficiente para fundar uma hermenêutica geral, não fossem Schleiermacher e Dilthey, com suas filologia e ciências do espírito, que relocalizaram a questão da interpretação num quadro epistemológico, o qual, porém, não a podia conter, já que a interpretação pertence ao campo da compreensão, e compreender é transportar-se de uma vida que se exprime e assim se objetiva para outra vida, que capta essas significações e as compreende, superando sua situação histórica. Segundo Ricoeur, o problema estaria “na 41 42
(RICOEUR 1977:17). (RICOEUR 1977:19).
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relação entre a força e o sentido, entre a vida portadora de significação e o espírito capaz de encadeá-los numa sequência coerente” 43. Sem a significação da vida, a compreensão não seria possível. É a fenomenologia, no seu entender, que poderá fundamentar a hermenêutica. Uma das maneiras de fazê-lo é pela ontologia da compreensão de Heidegger, em que o compreender não é um método de conhecer, mas um modo de ser. “O problema hermenêutico torna-se, assim, um domínio da analítica desse ser, o Dasein,, que existe compreendendo”, afirma Ricoeur44. Para tanto, a Dasein pergunta deve ser dirigida não ao binônio sujeito-objeto, mas ao ser, esse Dasein Dasein que que existe compreendendo. Nesses termos ontológicos, a fenomenologia do último Husserl efetua uma crítica ao objetivismo que havia na tentativa de Dilthey de construir um método para as ciências humanas e com isso abre caminho para uma ontologia da compreensão, pelo conceito de mundo-da-vida. Quando Husserl, no início de sua obra, reduzia o mundo, e, portanto, o ser, ao sentido do ser, como correlato da intencionalidade, estava fadado ao fracasso. Em sua última obra, ele admite um ser imerso no mundo, que o precede como campo de significações, que está antes do conhecimento e seu sujeito epistemológico, que vive uma vida “anônima”. A historicidade vai designar o modo como o existente “está com” com” os existentes em Heidegger:
reeducação do olhar, subordinando o conhecimento histórico à compreensão ontológica, sem responder de que modo a compreensão histórica deriva dessa compreensão originária. A resposta estaria em partir das formas derivadas da compreensão, para entender as marcas dessa derivação, e isso se daria investindo no plano da linguagem, por uma semântica das significações polissêmicas, ou seja, simbólicas. Seu intento é mostrar que compreender o sentido múltiplo das expressões equivale a um aspecto da compreensão de si. Trata-se de “um existente que descobre, pela exegese de sua vida, que é posto ao ser se r antes mesmo que se ponha ou se possua”46. Segundo ele, a exegese já tornara familiar a ideia de que um texto tem vários sentidos interrelacionados aos quais acede um outro sentido espiritual. O elemento comum em várias teorias mais modernas da interpretação, de Nietzsche a Freud, seria uma “arquitetura “arqui tetura do ssentido entido””, que mostra ocultando, ou seja, o campo da simbólica. Para ele, símbolo é “toda estrutura de significação em que um sentido direto, primário, literal, designa, por acréscimo, outro sentido indireto, secundário, figurado, que só pode ser apreendido através do primeiro”47. Seriam campo da hermenêutica os símbolos cósmicos, ligados à fenomenologia das religiões, como em Mircea Eliade, os oníricos, objeto da psicanálise de Freud, e as criações poéticas, conduzidas por imagens sensoriais. Em comum, teriam o
a potência da vida de transcender a si mesma estrutura o ser finito. A compreensão, o “estar com”, torna-se “um aspecto do ‘projeto’ do Dasein e Dasein e de sua ‘abertura ao ser’” ser’”,, como observa Ricoeur45. Essa seria uma forma de relacionar a fenomenologia à hermenêutica. Entretanto, Ricoeur se propõe a explorar uma via diferente, pois vê na hermenêutica de Heidegger uma forma privilegiada de
lastro linguístico e por ele poderiam ser compreendidos. Uma hermenêutica como ele propõe investigaria as formas simbólicas e as estruturas simbólicas, para depois confrontar estilos de interpretação e criticar os sistemas teóricos que os informam, descortinando a variedade de métodos subordinada à estrutura das teorias. Assim, poderia inserir a fenomenologia husserliana, no que tem de menos polêmico, que é a teoria das expressões significantes
43 (RICOEUR 1979:9) 44 (RICOEUR 1979:9) 45 (RICOEUR 1979:12)
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46 47
(RICOEUR 1979:14) (RICOEUR 1979:15)
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(descartando a exigência de univocidade de Husserl), na hermenêutica. É dessa maneira que Ricoeur enfrenta o problema atual do desmembramento do falar humano. Ricoeur confessa que uma análise linguística que lidasse com as significações como um todo fechado acabaria por erigir a linguagem como um absoluto, o que negaria a natureza do signo de “valer por”. Por isso, a linguagem, como significação, tem de remontar à existência. A análise semântica se integraria à ontologia pela reflexão, “o elo entre a compreensão dos signos e a compreensão de si” 48. Se a interpretação é um modo de vencer uma distância ou estranhamento, o intérprete torna seu o que é outro e amplia a compreensão de si. Por isso a fenomenologia pode ligar-se à hermenêutica, com a condição de alterar a noção de Cogito Cogito de Husserl. A noção de consciência que se dobra sobre si mesma, conhecendo-se ao ser consciência de, precisa, nesse processo de reflexão, apropriar-se dos atos de sua existência, ou será um lugar vazio. O “eu” não pode saber de si senão nas expressões da vida que o tornam objetivo para si. O problema é que a consciência imediata pode ser falsa, como Nietzsche, Marx e Freud já provaram, e é necessário superar a má compreensão. Os meios para tanto estão na reflexão sobre, em primeiro lugar, a psicanálise, pois contesta a pretensão da consciência de ser a origem do sentido, mostrando seu enraizamento nas pulsões vitais. A existência a que a psicanálise dá acesso é a do desejo, a existência como desejo, que se manifesta por meio de uma arqueologia do sujeito. Outra hermenêutica, a da fenomenologia do espírito, transporta a origem do sentido não para o passado do sujeito, mas para seu futuro, do Deus que virá. Nela cada figura encontra seu sentido não ao regredir ao arcaico, mas ao compreender-se por outra figura, num movimento que a leva para fora de si, para um sentido 48 (RICOEUR 1979:18)
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em marcha, como em Hegel. Uma outra hermenêutica estaria na fenomenologia das religiões, que, segundo Ricoeur, vai mais longe que a arqueologia psicanalítica ou a teleologia hegeliana, porque despossui o sujeito de uma arché ou ou de um telos de telos de que possa dispor. Segundo Ricoeur, “o sagrado interpela o homem e, nessa interpelação, anuncia-se como aquilo que dispõe de sua existência, porque a põe absolutamente, como esforço e como desejo de ser”49. É assim que essas várias hermenêuticas se enraízam na ontologia da compreensão. Cada uma revela que o si depende da existência. É nesse sentido que se poderiam articular essas diversas funções existenciais numa unidade, reconhecendo a dialética dessas hermenêuticas e o conflito das interpretações no campo da simbólica. Para Ricoeur, somente os símbolos “são portadores de todos os vetores, regressivos e prospectivos, que as diversas hermenêuticas dissociam”. É por essa razão que ele sustenta “que a existência de que pode falar uma filosofia hermenêutica permanece sempre uma existência interpretada” interpretada”50. 4. Estudos literários, fenomenologia e hermenêutica
O consórcio entre fenomenologia husserliana e hermenêutica heideggeriana, seja na visada de Gadamer ou na de Ricoeur, traduz-se para os estudos literários numa série de posições relacionadas com a história, o autor, a obra e o leitor, bem como com o tecido conjuntivo que une esses temas, a linguagem. A literatura, desse ponto de vista, não pode ser considerada em si mesma, como se suas significações fossem engendradas pelo sistema da língua e não houvesse um sujeito histórico que o acionasse, seja ele o autor ou o leitor. Derivam desse posicionamento outras questões a afetarem as modalidades de conhecimento e 49 (RICOEUR 1979:23) 50 (RICOEUR 1979:24)
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de fruição do texto literário. Sem a moldura do “mundo”, na acepção de Heidegger, o Ser-aí não se mostra e não há compreensão. Assim igualmente sem a tradição, nos termos de Gadamer, não é possível entender o diálogo presente-passado que a obra e o autor/leitor tra vam. Isso significa que conhecer a literatura ou usufruí-la ocorrem sempre de forma situada no tempo e espaço, na história, na sociedade e na cultura. A pretensão de ler sem referências cai por terra, o que predetermina uma educação da sensibilidade, com reflexos sobre a epistemologia literária e sobre o ensino de literatura. Por outro lado, se o que importa é a interpretação dos sentidos dos textos, num plano pessoal e existencial, isso implica num exercício constante de reflexão sobre a consciência de si que atua no horizonte compreensivo da existência. Tal reflexividade, entretanto, não pode incidir na falsa consciência, como sugere Ricoeur, essa consciência que acredita ser a origem do sentido, quando é sabido que há fatores como o desejo, a economia, a dominação, que desviam as expressões da vida vivida de si mesmas, lançando-as na ilusão. Para a literatura, a tarefa é desvendar o Ser na linguagem, renunciando à utilidade e, pelo trabalho da forma, deixando-o mostrar-se. Não quer dizer que o texto literário não seja interessado — é que seus interesses não podem ser transparentes, também devem mostrar-se. Daí a pertinência da tarefa de desconstrução empreendida por Derrida, ao evidenciar a impermanência e indecidibilidade dos sentidos, seu deslocamento, dentro do pensamento diferencial característico do estruturalismo saussureano. Desconstruir uma oposição é demonstrar que ela não é natural, e, sim, uma construção, produzida por discursos que nela se apoiam. Sua desconstrução não significa destruí-la, porque, afinal, o sentido se institui pela oposição, mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes.
Capítulo 5 . Fenomenologia e Hermenêutica
Num texto, permite separar as forças significativas em conflito nele, que o estruturam, mas cujo sentido não pode ser contido nos seus limites. É o que ele faz com Husserl e Heidegger, ao desconstruir o que chama de metafísica da presença em ambos, quando apenas pela não presença é que a presença pode vir a ser 51. A exigência de inscrever a literatura, seus fenômenos e interpretações num horizonte existencial, que se pode fazer retroceder a Husserl e Heidegger, surtiu efeitos profundos na consideração histórica do objeto literário, não mais visto como resultado para sempre fixo de intenções autorais ou de influências do meio, recuperáveis pela busca da origem. Admitindo-se a história como séries paralelas de eventos descontínuos, cuja causalidade é obra do observador, uma reorganização da historiografia se fez necessária, obrigando a repensar noções como períodos e a recortar pontualmente os momentos a serem pesquisados, levando em conta a flutuabilidade da própria obra como estrutura em constante reestruturação na sua imersão na vida. Outra consequência das revisões da fenomenologia e da hermenêutica é encontrável no tratamento dos símbolos, elemento cha ve do texto literário e de suas interpretações. Deixando de ser encarado como imbuído de um sentido metafísico, que lhe conferiria seu caráter multívoco e enigmático, passou a ser estudado nos planos em que se constitui na existência humana, com os instrumentos da psicanálise, da antropologia, da fenomenologia das religiões, da história cultural, o que levou à explicitação das premissas que go vernam sua decifraç ão e sua radicação em situações humanamente determinadas. A virada das investigações formais para as de conteúdo, como ocorrem no prestígio recente dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais 51
(Cf. DERRIDA 1972)
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na elucidação da literatura, igualmente deriva da revalorização do sentido situacional, a partir das hermenêuticas existenciais. existenciais. Quando o imanentismo dos estruturalismos foi desautorizado pelos pós-estruturalistas, e o redencionismo das sociologias marxistas foi revisto no quadro da derrocada dos regimes de força socialistas, a cultura se transformou no alicerce para o enfoque social das literaturas, reivindicado pelas novas esquerdas, desde a Escola de Frankfurt até a de Birmingham, atingindo mais tarde os estudos das relações pós-coloniais num mundo globalizado. globalizado. Nas teorizações de um Homi 52 K. Bhabha , por exemplo, o substrato hermenêutico aparece no conceito de tradução, central para o entendimento de como operam as negociações e o hibridismo em culturas colonizadas após sua independência. Por fim, tanto a fenomenologia e a hermenêutica vieram valorizar o trabalho poético, como meio de revelação do Ser, pela atenção sobre a palavra e seus poderes de nomeação original do mundo. Análises de poesia hoje não se ocupam com a medida do verso ou a classificação da figura, desvinculadas dos seus efeitos semânticos e pragmáticos. Requerem um olhar demorado sobre o leito linguístico em que o sentido repousa, a ser despertado por um intérprete que o faz seu porque é capaz, não de dominá-lo, mas de escutá-lo e com ele dialogar. No ato dialogal, como acentua Gadamer, está a chave para a compreensão e interpretação da literatura, nas diversas modalidades à disposição dos que a estudam e usufruem. Referências
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Origens e desenvolvimento da Nova Crítica
A Nova Crítica foi o movimento que se destacou nos meios acadêmicos norte-americanos, com início na década de vinte do século passado, liderado em grande parte por um grupo de professores universitários, na maioria poetas, que viam os modelos de crítica literária então em vigor como superficiais e inadequados para uma real compreensão do potencial semântico do objeto literário. O que eles tinham em mente era principalmente a crítica genética e impressionista muito praticada nos meios acadêmicos e disseminada em periódicos especializados. A primeira colocava ênfase na investigação das origens da obra literária, sua historiografia, filologia e o papel do autor como fonte de autoridade na constituição do significado do texto; a segunda se voltava para as experiências subjetivas do leitor ou crítico durante o processo interpretativo. As duas abordagens eram falaciosas, afirmavam os novos críticos, pois em ambos os casos, “o poema em si, como objeto específico de julgamento crítico, tende a desaparecer”1. Desta forma, o objetivo da Nova Crítica era trazer para o campo dos estudos literários métodos e práticas que valorizassem o que eles acreditavam ser o real objeto de investigação literária, qual seja, o texto, e não elementos 1
(WIMSATT, JR.; BEARDSLEY BEARDSLEY 1949:31). “…the poem poem itself, as an object of speci speci-cally critical judgment, tends to disappear.”
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extrínsecos como biografia, história, influências e efeitos sobre o leitor. Para os novos críticos, a intenção do autor e as implicações sociais da obra não tinham absolutamente relevância alguma durante o exercício crítico, o qual deveria se concentrar no texto literário em si, objeto a ser dissecado e investigado para então poder ser devidamente compreendido. A implementação de técnicas formalistas de análise textual se tornaria, assim, o carro-chefe do movimento, com destaque acentuado na leitura cerrada (close reading) do texto literário, análise minuciosa de figuras de linguagem, tensões, paradoxos, figuras retóricas e diferentes níveis de significado. O crítico estadunidense Vincent B. Leitch delineia três fases no desenvolvimento da Nova Crítica, o qual vai desde as primeiras manifestações na década de vinte até o seu gradual declínio no final da década de cinquenta. A primeira fase segundo Leitch seria o esboço dos princípios formalistas que regeriam e popularizariam o movimento em décadas posteriores. Nesta fase, destacam-se a contribuição de T. S. Eliot, I. A. Richards e William Empson, na Inglaterra, e John Crowe Ransom e Allen Tate nos Estados Unidos. Dotados de um alto conservadorismo em relação às artes, estes críticos viam com ceticismo os avanços da ciência, a qual segundo eles só trazia desarmonia e um falso senso de progresso humano. A literatura, mais propriamente a poesia, poderia resgatar valores e princípios em fase de extinção devido à confiança exacerbada no discurso científico. A segunda fase consistiria na popularização do movimento com a adesão de um número considerável de críticos, entre eles figuras que produziriam obras complexas com o intuito de teorizar e fundamentar os princípios do movimento: René Welleck, Austin Warren, W. K. Wimsatt, Murray Krieger e Cleanth Brooks. Foi durante a década de quarenta que o movimento se solidificou e se estabeleceu em departamentos de estudos
Capítulo 6 . A Nova Crítica
literários em universidades pelos Estados Unidos, com publicação de livros-textos e mudanças em currículos escolares. Vários periódicos especializados surgiram durante este período: Te Criterion Criterion (1922-39), Scrutiny (1932-53), (1932-53), na Inglaterra, e o Southern Review, Review, Kenyon Review Review e Sewanee Review nos Review nos Estados Unidos. O terceiro estágio, Leitch conclui, seria a fase de perda do impacto dos anos anteriores, devido principalmente ao ataque de diversas frentes, entre elas, críticos de tendências Marxistas na década de quarenta e cinquenta. Para os oponentes ao movimento, a tentativa de evitar o relativismo a todo o custo havia levado os novos críticos a aderirem a princípios positivistas e científicos que transformavam o texto em um mero artefato, uma estrutura a ser examinada a distância com base em um conjunto de normas específicas. A forte oposição, fato que levou muitos novos críticos inclusive a revisarem algumas de suas posições, fez, por outro lado, com que surgissem obras com teorizações detalhadas acerca do movimento. Teory o Literature (1949), por René Wellek e Austin, Te Verbal Icon (1954), Icon (1954), por W. K. Wimsatt e Te New Apologists or Poetry (1956), por Murray Krieger, estão entre as obras que buscavam solidificar os ideais no movimento no cenário acadêmico2. Portanto, o que se percebe nesta trajetória da Nova Crítica é uma acentuada preocupação por parte de seus proponentes em revolucionar as práticas vigentes de interpretação literária por meio da implementação de mecanismos práticos de leitura, objetivando formar leitores e críticos capazes de entender as complexidades da linguagem literária e saber distinguir o texto verdadeiramente literário do banal e corriqueiro. Understanding Poetry , publicado pela primeira vez em 1938 por Cleanth Brooks e Robert Robe rt P P.. Warren tinha esta função, qual seja, treinar estudantes universitários a serem 2
(LEITCH 1988:24-25)
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Capítulo 6 . A Nova Crítica
Princípios e Programas da Nova Crítica
leitores mais eficientes. O livro acabou ganhando popularidade e foi adotado por um grande número de universidades, chegando a quatro edições. Seu parceiro, Understanding Fiction também Fiction também obteve sucesso semelhante. O que se pretendia era estabelecer uma metodologia capaz de ser aplicada ao texto literário em qualquer tempo e lugar, que transcendesse fronteiras culturais, históricas e de gênero. Com o advento de teorias pós-estruturalistas na década de sessenta e o multiculturalismo nas décadas posteriores, a Nova Crítica perdeu seu espaço, tornando-se apenas objeto de interesse histórico dentro da história da crítica literária ocidental. Porém, como já observado por vários historiadores, a perda do espaço não significa que sua influência tenha desaparecido por completo. Na verdade, afirmam alguns, muitas das práticas estabelecidas pelos novos críticos como
Uma das preocupações fundamentais dos novos críticos era a delimitação de seu campo de estudo e a definição do que seria se ria o real ob jeto de investigação do crítico. Como já mencionado, a Nova Crítica via como irrelevantes elementos elementos relacionados à vida do autor ou auautora e as circunstâncias que deram origem ao texto literário. Taxado de falácia intencional, este mecanismo de interpretação e avaliação da obra funcionava bem no campo da história da literatura, mas não num exercício aprofundado para a busca do significado do texto. Da mesma forma, os efeitos sobre o leitor não deveriam ser s er levados em consideração, pois como poderia o crítico isolar algo tão particular como a reação de um indivíduo ao entrar em e m contato com uma produção literária? Assim, se o objetivo do crítico deveria ser o texto e
leitura cerrada do texto, ênfase em evidência textual e unidade temática se enraizaram no cenário acadêmico de tal forma que nem se percebe que são “um legado de um movimento em particular. Pelo contrário: [parece] serem as condições definitivas e naturais da crítica em geral”3. Qualquer estudante de literatura ou crítico, independente de sua persuasão ideológica, sabe que o que se espera de suas análises são mais do que ruminações impressionistas sem base no texto em questão. É neste sentido, portanto, como observa Lois Tyson, que “a Nova Crítica é ainda uma real presença entre nós e provavelmente permanecerá assim por um bom tempo” 4. Tornase, assim, importante conhecer em mais detalhes este movimento que revolucionou a crítica na primeira metade do século passado e que abriu caminho para práticas acadêmicas e docentes que transformariam o cenário crítico-literário para sempre.
não elementos extrínsecos, o que definiria então o objeto de estudo do crítico? Em outras palavras, como se distinguiria a obra literária de outros enunciados escritos? Influenciados principalmente pelas teorias do poeta inglês Samuel T. Coleridge em Biografia Literaria (1817), Literaria (1817), os novos críticos viam o princípio princípio da unidade orgânica orgânica como elemento elemento primordial na caracterização do texto literário. Segundo Coleridge, a obra literária, a qual para ele se resumia na poesia, se distinguia de outros discursos por proporcionar deleite através da relação harmoniosa entre um todo e todo e suas partes componentes: “Porém se a definição procurada é de um poema legítimo, respondo que deve ser um no qual as partes mutuamente apoiam e explicam umas às outras; e todas em suas proporções harmonizando com e dando suporte ao propósito e influências do arranjo métrico” 5. Coleridge sugere que o poema
3 4
(CAIN 1984:105). “...a legacy legacy of a particular movement. movement. On the contrary: we feel them to be the natural and denitive condition of criticism in general”. (TYSON 2006:135). 2006:135). “New Criticism is still a real real presence among among us and probably probably will remain so for some ti me.”
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(COLERIDGE 1993:390). “But if the the denition sought for for be that that of a legitimate poem, I answer it must be one the parts of which mutually support and explain each other; all in their proportion harmonizing with, and supporting the purpose and known inuences of metrical arrangement”.
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é uma entidade na qual o prazer estético é produto da combinação precisa entre elementos linguísticos, retóricos e semânticos. Assim, o enunciado literário, em especial o poema, ao combinar poder e beleza, assemelha-se a um organismo vivo, “no qual cada parte é ao mesmo tempo o fim e o meio”6. Foi com esta visão coleridgiana em mente que os novos críticos delinearam uma definição da obra literária como sendo uma entidade hermética, autossuficiente e atemporal. René Wellek, por exemplo, em “e Mode of Existence of the Literary Work of Art” (1942), explica que o poema nada mais é que “um sistema de normas” e não “uma experiência individual ou soma de experiências” 7. Embora conceda em alguns momentos que o poema pode se realizar parcialmente na experiência do leitor, já que os efeitos sonoros só são p ercebidos quanto entoados por um falante, f alante, ontologicamente falando, ele é um sistema fechado, constituído de regras próprias que transcendem qualquer imposição extrínseca. Na verdade, e no vamente se baseando na Biografia Liter ária ria (1817), (1817), os novos críticos viam a unidade orgânica do texto literário, além de inerente, como também dotada, conforme Coleridge, de uma força centrífuga: “A forma orgânica, por outro lado, é inata; toma forma ao se desenvol ver de dentro para fora, e a plenitude de seu desenvolvimento é um e idêntica com a perfeição per feição de sua forma externa”8. Esta metáfora orgânica ganha contornos novos em elaborações subsequentes, como as de Wimsatt e Beardsley, que comparam o poema a um pudim 6 7
8
(COLERIDGE 1993:397). “…so “…so that each part part is at once once end and means!” means!” (WELLEK 1987:79). 1987:79). “A poem, we we have to conclude, is not an an individual individual experiexperience or a sum of experiences, but only a potential cause of experiences…. Thus, the poem must be conceived as a system of norms, realized only partially in the actual experience of its many readers”. (COLERIDGE 1993:397-398). “The organic organic form, on the other hand, hand, is innate; innate; it shapes as it develops itself from within, and the fullness of its development is one and the same with the perfection of its outward form.”
Capítulo 6 . A Nova Crítica
ou uma máquina, no sentido de que todos os elementos precisam funcionar para que resultado certo seja obtido. “Julgar um poema é como julgar um pudim ou uma máquina”, observam os Wimsatt e Beardsley; “Exige-se que funcione... O sucesso da poesia reside na relevância de tudo ou quase tudo que é dito; o que é irrelevante foi excluído, como os caroços do pudim ou os ‘bugs’ da máquina” 9. O poema ideal é uma entidade constituída de relações complexas responsáveis pela constituição semântica do texto. Qualquer elemento destoante deve ser desconsiderado. A tarefa do crítico se resume, portanto, em compreender, através da análise minuciosa do poema, a complexidade desta unidade orgânica com suas tensões e inconsistências, paradoxos e ambiguidades, metáforas e metonímias, bem como o papel destas figuras em relação ao significado da obra. Todos estes elementos deveriam estar em harmonia, fato que transformava o poema em um ícone verbal, “um complexo espacial de significado no qual todas as palavras e implicações tinham relevância”10. Ao ser concebido como unidade orgânica e ícone verbal, os novos críticos se voltaram então para teorizações em torno da esfera semântica do poema. Se o objetivo era evitar relativismos em relação ao real significado do texto, onde, como e ao que exatamente deveriam leitores e críticos atentar? Afinal, o que os novos críticos hermeneuticamente concebiam como significado? Wellek, ao explicar a constituição do poema, argumenta que a unidade orgânica deste deve ser entendida não apenas como um sistema de normas, mas sim como “um sistema constituído de vários estratos, cada um contendo seu próprio grupo subordinado” subordinado”. Assim, continua Wellek, 9
(WIMSATT, JR.; BEARDSLEY 1946:469). “Judging a poem is like judging a pudding or a machine. One demands that it works… Poetry succeeds because all or most of what is said or implied is relevant; what is irrelevant has been excluded, like lumps from pudding and ‘bugs’ from machinery”. 10 (LEITCH 1988:29). “...a 10 ..a spatial complex complex of meaning where all words words and implicaimplications became relevant”.
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“há um sistema de normas contido na estrutura sonora de uma obra de arte literária e esta, por sua vez, contém unidades de significado baseadas em disposições de sentenças, e estas unidades, por sua vez, constroem um mundo de objetos ao qual o significado se refere”11. Ele faz uso em seguida dos conceitos linguísticos langue e parole parole,, difundidos pela Escola de Genebra e Círculo Linguístico de Praga, para explicar que o poema, como um sistema de linguagem — lan gue — gue — funciona como uma coleção de normas e convenções que se realiza em instâncias textuais — parole — parole —, —, mesmo que de forma incompleta. É com base nesta dicotomia que Wellek introduz o conceito de “estrutura de determinação”, que para ele “é o que faz o ato de cognição não um ato de invenção arbitrária de distinções subjetivas, mas o reconhecimento de algumas normas impostas a
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da Nova Crítica, Crítica, compara a estrutura essencial de um poema com a arquitetura, pintura, ou, para dar conta do aspecto temporal do poema, a um balé ou composição musical: “É um jogo de resoluções e equilíbrios e harmonizações desenvolvidas por meio de um esquema temporal”13. Portanto, Portant o, para os novos críticos, o significado era um elemento subordinado à estrutura do poema, o qual, para ser exposto, devia ser examinado sem se recorrer à crítica genética ou impressionista. O valor de um poema estava na estrutura e na capacidade deste de gerar significado. Assim, Assim, a atividade crítica devia se deter à análise e avaliação desta “estrutura de determinação”, com toda sua complexidade linguística e riqueza semântica. Por esta razão, exercícios como a paráfrase eram vistos como anátema, pois destruíam a essência do
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nós pela realidade” . O que estas observações sugerem é uma concepção do significado partindo do poema durante o ato de leitura e não o contrário. Isto é, o significado é inerente à estrutura da obra literária e o seu desvendamento resulta do exercício criterioso por parte do leitor. Como fonemas que se combinam para formar pala vras, as quais por sua vez se concertam na produção de enunciados de acordo com as normas sintáticas e gramaticais de uma língua, os poemas genuínos, ao relacionarem elementos linguísticos, retóricos, semânticos e filosóficos, entre outros possíveis, têm uma gramática própria e geram seus próprios significados. É neste sentido que Cleanth Brooks em Te Well Wrought Urn, Urn, uma das obras centrais 11
12
(WELLEK 1942:80). 1942:80). “...a system system which is made up of several strata, strata, each implying its own subordinate group. There is a system of norms implied in the sound-structure of a literary work of art and this, in turn, implies units of meaning based on the sentence patterns, and these units in their turn construct a world of objects to which the meaning refers”. (WELLEK 1942:80). 1942:80). “...which makes makes the act of cognition cognition not an act act of arbitrary invention of subjective distinctions, but t he recognition of some norms imposed on us by reality”.
poema. Em “A heresia da paráfrase”, um dos capítulos de Te Well Wrought Urn, Urn, Cleanth Brooks ressalta este ponto. Brooks observa: Se nos deixarmos enganar pela [paráfrase], distorcemos a relação do poema com sua “verdade”, levantamos a questão da crença em uma forma corrupta e mutilada, dividimos o poema entre “forma” e “conteúdo” — fazemos com que a declaração seja comunicada por meio da uma competição irreal com a ciência, filosofia ou teologia.14
O significado, por mais escorregadio que fosse, constituía-se uma entidade atrelada à estrutura, e qualquer exercício que 13 14
(BROOKS 1947:203). 1947:203). “It is a pattern of resolutions resolutions and balances balances and harmonizations, developed through a temporal scheme”. (BROOKS 1947:164). 1947:164). “If we allow ourselves ourselves to be misled by the [the paraphrase], paraphrase], we distort the relation of the poem to its ‘truth’, we raise the problem of belief in a vicious and crippling form, we split the poem between its ‘form’ and its ‘content’ — we bring the statement to conveyed into an unreal competition with science or philosophy or theology”.
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comprometesse esta relação destruiria a essência do poema. poe ma. A habilidade crítica consistia em dissecar as diversas camadas semânticas do poema sem reduzir o significado ao banal e temporal. Assim, munidos dessa visão do poema como uma entidade autossuficiente e da linguagem como veículo de um significado transcendental, os novos críticos abraçaram a missão pedagógica de formar profissionais da interpretação literária, tarefa até então normalmente executada por ensaístas de periódicos e resenhistas. Para eles, havia um abismo separando leitores amadores dos treinados a descobrir as complexidades semânticas dos poemas. Neste sentido, John Crowe Ransom observa obser va em “Criticism, Inc.” (1937): “Ao invés da crítica ocasional feita por amadores, eu acredito que o projeto como um todo deve ser seriamente executado por profissionais. Tal Talvez vez o termo que vou usar seja de mau gosto, mas penso que o que necessitamos é Crítica, Inc., ou Crítica, Ltda.”15. Ramson reforça esta observação mais adiante ao colocar os professores universitários de inglês no centro deste projeto pedagógico, transformando assim a universidade ou sala de aula em uma espécie de laboratório e os professores em um grupo de elite. Ele acrescenta: É a partir dos professores universitários de literatura, neste país professores professor es de inglês na maioria, que eu espero no devido tempo sejam criados padrões de crítica inteligente. É o trabalho deles. A crítica deve se tornar mais científica, ou precisa e sistemática, e isto significa que deve ser desenvolvida através do esforço sustentado e coletivo de pessoas eruditas — o que significa que o
Capítulo 6 . A Nova Crítica
Ao colocar a universidade e professores de inglês no centro deste projeto hermenêutico, Ransom abriu as portas para uma gama enorme de materiais didáticos cujo intuito era formar profissionais da interpretação literária. Até mesmo professores já atuantes no sistema universitário necessitavam do treinamento adequado, argumentava Ramson, já que a formação destes se deu em outro contexto crítico. Era preciso revolucionar o sistema educacional tanto na esfera discente quanto docente: “Professores de literatura são homens eruditos, porém não críticos”, reclamava Ramson 17. Estes passavam uma vida agregando fontes e documentos, mas pouco se preocupavam em emitir julgamento acerca do objeto de estudo ao qual se dedicavam: o texto literário. Este tipo de postura investigativa se refletia nos estudantes estudantes,, argumentavam os novos críticos. I. A. Richards em Practical Criticism Criticism já relatava relatava vários principais problemas enfrentados po porr estudan estudantes tes de literatura em relação à interpretação de poesia. Entre os obstáculos mais comuns enumerados por Richards, estavam: a) dificuldade em compreender o sentido do poema, seu significado no sentido s entido amplo; b) má compreensão da métrica e do ritmo; c) não compreensão da linguagem figurada; d) uso de recursos mnemônicos inapropriados; inapropriados; e) respostas prontas ou clichês; f) sentimentalismo exagerado; g) aplicação de doutrinas religiosas; h) preconcepções críticas18. Com base nestas e outras observações, os novos críticos criaram vários métodos e protocolos não só de interpretação interpretação,, mas também de avaliação literária, pois, segundo eles, a leitura exigia tanto a explicação quanto julgamento. O próprio livro de Richards tinha como principal
local adequado são as universidades.16 15
16
(RAMSOM 1937:586). 1937:586). “Rather than than occasional criticism by amateurs, amateurs, I should think the whole enterprise be seriously taken in hand by professionals. Perhaps, I use a distasteful gure, but I have the idea of what we need is Criticism, I nc., or Criticism, Ltd.”. (RAMSOM 1937:586). 1937:586). “It is from professors professors of literature, in this country the the
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professors of English for the most part, that I should hope eventually for the erection of intelligent standards of criticism. It is their business. Criticism must become more scientic, or precise and systematic, and this means that it must be developed by the collective and sustained effort of learned persons — which means that its proper seat is the universities”. (RAMSOM 1937:1). 1937:1). “Professors “Professors of literature are are learned but but not critical men”. (RICHARDS 1929:17)
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objetivo melhorar o ensino de literatura nas universidades. Outros materiais como Understanding Poetry , lançado por Cleanth Brooks e Robert Penn Warren em 1938, vieram transformar a maneira como literatura era lida e ensinada nos bancos escolares. Para os mentores destes materiais didáticos, técnicas de análise poderiam ser aprendidas, imitadas e passadas adiante, daí o papel crucial de professores treinados e instrumentos instrumentos pedagógicos pe dagógicos apropriados. apropriados. É importante ressaltar que os protocolos e técnicas de leitura propostos pelos novos críticos seguiam normas rígidas de interpretação de figuras de linguagem, retórica, símbolos e tensões textuais. Uma leitura cuidadosa deveria ser feita de modo a compreender como estes elementos, em harmonia, contribuíam para o significado do poema. Nesta busca pela essência da obra
análise textual. Além da metáfora, os protocolos também exigiam atenção às inter-relações entre os paradoxos, as ambiguidades e ironia presentes no poema. As tensões semânticas geradas por estes e stes elementos geravam conflitos cujos efeitos deveriam ser investigados. Em relação ao paradoxo, Brooks afirmava que “o cientista é o indivíduo para o qual a verdade requer uma linguagem destituída de todo o traço de paradoxo; aparentemente a verdade pronunciada pelo poeta só pode ser concretizada nos termos do paradoxo” 20. Em suma, o protocolo hermenêutico proposto pelos novos críticos exigia: 1) rejeição de qualquer análise impressionista e genética do poema em questão; 2) concentração nos conflitos textuais e nas figuras de linguagem: metáfora, metonímia, paradoxos, ironia, etc.; 3) concepção do texto como um todo cujas partes se relacionam
literária, atenção especial deveria ser dada à metáfora, argumentam os novos críticos. Era na complexidade e polissemia desta figura de linguagem que o crítico encontraria o caminho em direção ao cerne do poema. Em Literary criticism: a short history , Wimsatt e Brooks reforçam o status status especial especial deste elemento durante o exercício crítico: “Podemos encontrar nossos universais no discurso conceitualizado da ciência e filosofia. Podemos ver detalhes específicos à vontade nos jornais e registros de julgamentos. ...Mas apenas na metáfora, e assim é por é por excelência na excelência na poesia, que encontramos a mais radical e relevante união e fusão do detalhe e a ideia universal” 19. Mais do que um papel ornamental na estrutura no poema, a metáfora incorporava verdades universais, daí a importância de se examinar de perto as várias facetas e manifestações deste elemento durante a
em perfeita harmonia; 4) visão do significado como uma entidade transcendental presente na estrutura do poema.
19
(WIMSATT: BROOKS BROOKS 1957:749). 1957:749). “We can have our universals in the full conceptualized discourse of science and philosophy. We can have specic detail lavishly in the newspapers and in record of trials. …But it is only in metaphor, and hence it is par excellence in poetry, that we encounter the most radically and relevantly fused union of the detail and the universal idea”.
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Considerações Finais
O projeto hermenêutico defendido pela Nova Crítica tinha como eixo principal uma noção transcendental de estrutura e, principalmente, do significado, o qual para os novos críticos era sinônimo de verdade. Qualquer exercício que desviasse o crítico desta busca busca pela essência do poema deveria ser refutado. Juntamente com a busca pela verdade poética, o projeto também tinha um teor avaliativo, isto é, alguns poemas se aproximavam mais que outros do ideal de obra literária. Daí então o surgimento de hierarquias textuais visando justificar por que um texto era mais rico e literário em relação a outros do mesmo gênero ou categoria. 20
(BROOKS 1947:1). 1947:1). “It is the scientist whose truth requires a language purged purged of every trace of paradox; apparently the truth which the poet utters can be approached only in terms of paradox”.
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É importante frisar também que apesar da reação em conjunto contra a crítica impressionista e genética das décadas anteriores, bem como a crítica social dos marxistas, os novos críticos não se constituíam um grupo coeso. Um exame mesmo que superficial dos vários posicionamentos dos maiores expoentes do movimento re vela que havia várias divergências entre entre o grupo. Wellek Wellek argumenta, inclusive, em “e New Criticism: Pro and Contra” que talvez os críticos associados ao movimento devessem ser discutidos separadamente devido aos diferentes posicionamentos que pronunciaram ao longo dos anos21. Kenneth Burke pode ser citado como exemplo de um crítico que, mesmo abraçando uma hermenêutica baseada apenas no texto, abria espaço para considerações extratextuais em sua exegese, postura que acarretou muita crítica por parte de seus contemporâneos. Ele via como vandalismo, por exemplo, omitir material biográfico ou situacional apenas para seguir as convenções de uma crítica ideal. Para ele, a crítica autêntica deveria fazer uso de todo o recurso disponível para um entendimento da estrutura poética22. Com o passar dos anos, Burke passou a endossar abertamente uma crítica sociológica. Em “Literature as equipment for living” (1938), Burke admite que a análise de elementos sociológicos proporcionaria não apenas mais insight em em relação à estrutura das obras literárias, mas também derrubaria barreiras que faziam da
da nova crítica daquilo que viam v iam como uma banalização ou má interpretação dos diversos posicionamentos do movimento. Wellek serve como exemplo de um crítico que batalhou arduamente para corrigir o que ele concebia como distorções ingênuas ou mal-intencio mal-intencionadas nadas por parte dos oponentes. Ele via as acusações dos opositores como infundadas e tão facilmente refutáveis que duvidava, inclusive, que os comentaristas tivessem realmente lido os pronunciamentos do grupo24. Havia, assim, um forte movimento para fortalecer e “purificar” o movimento por parte desta frente f rente resistente. resistente. Outros, no entanto, acabaram fazendo concessões ao longo dos anos e se abriram às novas tendências críticas dos anos sessenta e setenta, em muitos casos contradizendo o que haviam dito em décadas anteriores. I. A. Richards, T. S. Eliot, F. R. Leavis, Murray Krieger, entre outros, expandiram seus horizontes críticos e passaram a considerar aspectos históricos, sociológicos, biográficos e afetivos em suas atividades críticas. No entanto, apesar destas e outras acomodações ou concessões, a crença na linguagem poética como a manifestação de uma presença mística e transcendental sempre perdurou. Os poemas são entidades reais que comunicam algo a seus leitores, afirmava Murray Krieger no auge da era desconstrucionista; desconstrucionista; “[eles] defendem por si próprios uma presença, e não é apenas por nostalgia que continuamos a valorizá-la. Pois presença é o tempo presente, e enquanto vivemos não 25
23
literatura uma atividade aparentemente especializada . Estas divisões internas e divergências foram ficando mais acentuadas com o passar dos anos à medida que a geração que liderou o movimento deixou as cátedras universitárias, faleceu e os que permaneceram tiveram que enfrentar o grande volume crítico da era pós-estruturalista. Alguns se fecharam e defenderam os princípios 21 22 23
(WELLEK 1978:613). (BURKE 1973:23) (BURKE 1998:597)
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devemos permitir que nos convençam do contrário” contrário” . Referências
BROOKS, Cleanth. 1947. Te Well Wrought Urn : studies in the structure of poetr y. London: Cox and Wyman Ltd. 24 25
(WELLEK 1978:611) (KRIEGER 1979:112). 1979:112). “They make their their own case for presence, presence, and it is out of no mere nostalgia that we continue to value it in them. For presence is present tense, and while we live we must not allow ourselves to be reasoned out of it”.
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BURKE, Kenneth. 1973. Te philosophy o literary orm . 3 rd ed. Revised. Berkley: University Universi ty of California Press. ______. 1998. Literature as equipment for living. In: RITCHER, David H. (ed.). Te critical tradition: classical texts and contemporary contemporary trends. 2 nd ed. Boston: Bedford Books. p. 593-598.
Capítulo 7
Estruturalismo e Semiótica
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A aventura intelectual intelectual abre seu caminho caminho entre o risco e o erro. O estruturalismo aparece como a grande aventura intelectual da segunda metade do século XX. (LIMA 1968:43)
As contribuições do filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) e do também filósofo e linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), oferecidas ainda nas primeiras décadas do século XX, foram decisivas para a formulação de discursos teóricos que explicitaram para o homem ocidental que, antes de ele ser expressão de sua “individualidade própria” ou de ser determinado por “fatores externos” mais ou menos verificáveis, ele é dirigido, constituído “pela violência dos signos e dos diversos tipos de estrutura que estes articulam”1. São sistemas sígnicos as línguas “naturais”, base de nossa comunicação, cujas convenções antecedem a qualquer memória humana, as múltiplas práticas sociais e culturais (os ritos, as relações de parentesco, a moda, a culinária, a literatura, o cinema, a música, as regras de etiqueta, as instituições políticas, jurídicas, econômicas, os jogos desportivos etc.), como também as linguagens artificiais que garantem o funcionamento dos diversos meios de transmissão, armazenamento e processamento de mensagens, dados, informação utilizados em nível planetário. Dessa maneira, além da comunicação, diferentes atividades sociais e culturais, das mais simples às mais complexas, que atravessam nosso cotidiano, são linguagens que repousam em códigos diversos que nos permitem representar o mundo e / ou permutar uma coisa por outra. 1
(KRISTEVA 1978: XI)
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Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica
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Estudar os sistemas sígnicos em toda sua complexidade tornou-se ponto central para linguistas, filósofos e antropólogos que desenvolveram seus trabalhos nos últimos anos do século XIX e no início do XX. Para isso, fazia-se necessário que o analista soubesse diferenciar, no objeto estudado, as qualidades primárias das secundárias, a substância do acidente, a necessidade da contingência. Em outras palavras, fazia-se necessário que o analista soubesse como suspender o objeto estudado do “contínuo dos eventos, sem, entretanto, mutilá-lo”; melhor dizendo, que o analista fosse capaz de efetuar “o corte sincrônico de seu objeto”2. Retomando a afirmação feita acima, as lições oferecidas por Peirce e Saussure foram essenciais para instrumentalizar o analista / o crítico no exame dos sistemas simbólicos. O objetivo do ensaio é apresentar em linhas gerais o estruturalismo e a semiótica/semiologia 3 e delinear sua contribuição para os estudos literários. Para realizá-lo, nosso percurso será dividido em quatro blocos. No primeiro, além da breve apresentação de Peirce e Saussure ao estudante de literatura, serão discutidas, sucintamente, as noções de signo e as dicotomias saussurianas, base do pensamento estrutural. No bloco II, examinar-se-á o aproveitamento dos conceitos saussurianos pela teoria da literatura na construção de uma poética estrutural. No III, o foco recairá na repercussão do estruturalismo no Brasil, privilegiando, sobretudo, sua recepção no meio acadêmico carioca. Finalmente, no bloco IV, a título de conclusão, tratar-se-á do declínio da atividade estruturalista no cenário dos 2 3
(LIMA 1968:20) Embora o estruturalismo seja tradicionalmente tradicionalmente identicado identicado com Saussure e a semiótica com Peirce, no ensaio, os termos estruturalismo, semiótica e semiologia serão tratados sem distinção, pois, como será visto mais tarde, para Roland Barthes, a construção da signicação em literatura se dá de forma semelhante à construção da signicação em outros sistemas semiológicos, como, por exemexem plo, vestuário, moda, comida etc.
estudos de literatura, procurando mostrar seu legado na abordagem do texto literário. I
Charles Sanders Peirce concebia, sob o nome de semiótica, uma disciplina que, confundindo-se com a Lógica, estudaria os sistemas de signos, quaisquer que eles fossem e quaisquer que fossem as suas esferas de utilização. No tocante às relações com seus objetos dinâmicos, o filósofo americano identificou três tipos diferentes de signo: ícone, índice e símbolo. O signo é um ícone, quando há certa similitude visual entre o significante e o significado. Por exemplo, as letras M e F ou ainda as figuras coladas nas portas de banheiro público indicando homens e mulheres, as fotografias, as cópias, as impressões digitais são ícones, na medida em que incluem “uma relação necessária entre necessária entre a parte que expressa, ormalmente, ormalmente, o conteúdo (= do (= significante) e o conteúdo expressado (= expressado (= significado)”4. Nesse sentido, as onomatopeias são consideradas ícones, pois os significantes imitam os significados — “tique-taque” pretende reproduzir o som do relógio5. É índice, quando a relação entre o significante e o significado se dá de forma não convencional, dizendo de outra maneira, quando “o significante é um indicador confiável da presença do significado”, como fumaça/fogo, nuvem/chuva6. Finalmente, denomina-se símbolo, quando a relação entre o significante e a coisa significada é, por completo, arbitrária, imotivada e convencional. Ao se falar ou ouvir a palavra “casa” (/‘kasa/), compreende-se que essa sequência de sons, diferente de qualquer outra sequência, refere-se, conforme se lê no Dicionário Houaiss, Houaiss, a “edifício de formatos 4 5 6
(LOPES 1995: 45) (LOPES 1985: 45-46) (RICHTER 1989: 848)
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e tamanhos variados, geralmente de um ou dois andares, quase sempre destinado à habitação”. habitação”. Porém, entre tal sequência de sons s ons e o significado a ela conferido não há motivação alguma. Já Ferdinand de Saussure concebia, sob o nome de semiologia, uma ciência geral dos signos verbais e não verbais, que faria “parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral”, circunscrevendo, portanto, a linguística a um círculo menor, já que esta se ocuparia apenas com o estudo dos sistemas verbais 7. Sua obra, Cours de linguistique linguistique générale, générale, notas das aulas proferidas pelo mestre organizadas por dois de seus ex-alunos, Charles Bally e Albert Sechehaye, foi publicada, postumamente, em 1916. Nela, Saussure refuta a abordagem histórica, comparativa e evolucionista dominante nos estudos linguísticos até então, ao estabelecer três distinções capitais, que se tornarão conceitos fundamentais para a construção do pensamento estruturalista: langue langue e e parole parole;; sincronia e diacronia; sintagma e paradigma. Para elaborar a célebre dicotomia langue langue e parole parole,, Saussure parte da natureza “multiforme e heteroclítica” da linguagem. Entendida como uma capacidade, uma abstração, de acordo com o mestre genebrino, a linguagem humana, por participar, ao mesmo tempo, de diferentes domínios — físico, fisiológico e psíquico —, e por pertencer, simultaneamente, às esferas individual e social, revela-se, à primeira vista, como uma realidade inclassificável, pois dela não se pode extrair uma unidade8. Nos termos de Roland Barthes, essa desordem, entretanto, cessa se, desse todo heteroclítico, se abstrai a langue langue/língua, /língua, “puro objeto social, conjunto sistemático das convenções necessárias à comunicação, indiferente à matéria matéria dos sinais que o compõem”9. Sendo um conceito social, a langue langue/língua /língua 7 8 9
(SAUSSURE 1971: 23-24) (SAUSSURE 1971: 17) (BARTHES 2006:17)
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constitui um sistema supraindividual, uma vez que ela é definida não por um indivíduo, mas pela coletividade, “sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos”10. Já a parole a parole/fala /fala é um ato individual de seleção e atualização da língua; “não há, portanto, nada de coletivo na fala, suas manifestações são individuais e momentâneas”11. Embora sejam duas coisas absolutamente distintas, há uma interdependência da língua e da fala: “aquela é ao mesmo tempo o instrumento e o produto desta” 12. Língua e fala estão estreitamente ligadas e se implicam mutuamente, isto é, não existe língua sem fala como não existe fala fora da língua 13. Nesse sentido, a língua é uma instituição social e um sistema de valores. Como instituição social, a língua possui regras próprias. Nenhum indivíduo, portanto, pode sozinho criá-las ou modificá-las. Isso significa que, para haver comunicação, todos os membros de uma coletividade têm de se submeter, em bloco, às regras da língua e aprender a manejá-las como estivessem participando de um jogo. Vista como sistema de valores, a língua é composta por um determinado número de elementos e cada um deles só pode ser definido quando colocado em relação a outro elemento. Ou, conforme palavras de Roland Barthes: Como sistema de valores, a Língua é constituída por um pequeno número de elementos de que cada um é, ao mesmo tempo, um 10 11 12 13
(SAUSSURE 1971:27) (SAUSSURE 1971:28) (SAUSSURE 1971:27) Edward Lopes observa que Hjelmsle v chama de esquema / uso a dicotomia que Saussure batizou de langue / parole. Jakobson lança mão da teoria da informação e nomeia a mesma relação com a termologia código / mensagem, noções essas que correspondem, aproximadamente, às dos termos empregados por Chomsky para competence (competência) / performance (atuação)”. (Cf. LOPES 1995:78).
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Capítulo 7 . Estruturalismo e Semiótica
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A noção de sistema, ao trazer “em si a exigência de observação das relações entre os elementos de um conjunto específico e não de
mudança do sistema em qualquer grau” 17. Nesse sentido, enquanto realidade sistemática, a língua não é um sistema de conteúdos, mas um sistema de formas e regras (valores), isto é, “a língua é uma forma e não uma substância”18. Daí, “na língua, como em todo sistema s istema semiológico, o que distingue um signo é tudo o que o constitui. A diferença é o que faz a característica, como faz o valor e a unidade”19. A segunda distinção, igualmente decisiva para a promoção da linguistic turn na turn na primeira metade do século XX, é a estabelecida entre o eixo das simultaneidades (sincronia) e o eixo das sucessi vidades (diacronia). O primeiro concerne “às relações entre coisas coexistentes, de onde toda intervenção do tempo se exclui”; o segundo, por tratar dos estágios de modificações, é aquele “sobre o qual não se pode considerar mais que uma coisa por vez, mas onde
aspectos que lhe são externos”, explica por que Saussure elegeu a langue como langue como objeto da linguística15. O jogo de xadrez serve-lhe para ilustrar seu argumento. Sigamos seu raciocínio: “no jogo de xadrez é fácil distinguir o externo do interno; o fato de ele ter passado da Pérsia para a Europa é de ordem externa; interno, ao contrário, é tudo quanto concerne ao sistema e às regras”16. Por exemplo, o material, as dimensões, as cores das peças que compõem o xadrez podem variar, e isto não interferirá no sistema do jogo. Caso uma peça se perca, poder-se-á substituí-la por outro objeto, bastando para isso que os participantes do jogo atribuam, previamente, a esse objeto, o mesmo valor da peça perdida. Todas essas alterações citadas são acidentais, portanto, de ordem externa. Mas, se for reduzido ou aumentado o número de peças, “essa mudança atingirá profundamente a ‘gramática’ do jogo”; “é interno tudo quanto provoca
estão situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas respectivas transformações”20. Ao fixar essa distinção, Saussure assinala que, na maioria das ciências, a dualidade entre o eixo das simultaneidades e o das sucessividades não ocorre de maneira radical, pois o fator tempo não produziria nelas efeitos particulares: mesmo que os astros mudem, a Astronomia é uma ciência sincrônica; já a Geologia raciocina diacronicamente, ainda quando se ocupa “dos estados fixos da Terra”; muito embora possa também se dedicar à descrição de quadros/ cenários, a História é, na maioria das vezes, diacrônica (sucessão dos acontecimentos). Entretanto, por uma necessidade interior, a dualidade entre os dois eixos se impõe de forma imperiosa às ciências econômicas e à linguística, pois ambas trabalham com a noção de valor, isto é, ambas lidam com um sistema de equivalência entre
vale-por e e o termo de uma função mais ampla onde se colocam,
diferencialmente, outros valores correlativos; sob o ponto de vista da língua, o signo é como uma moeda: esta vale por certo bem que permite comprar, mas vale também com relação a outras moedas, de valor mais forte ou mais fraco. O aspecto institucional e o aspecto sistemático estão evidentemente ligados: é porque a língua é um sistema de valores contratuais (em parte arbitrários, ou, para ser mais exato, imotivados) que resiste às modificações do indivíduo sozinho e que, consequentemente, é uma instituição social.14
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(BARTHES 2006:18) (BORBA 2004:66) (SAUSSURE 1971:32)
17 18 19 20
(SAUSSURE 1971:32) (SAUSSURE 1971:141) (SAUSSURE 1971:140-141) (SAUSSURE 1971:95)
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coisas de ordens diferentes: a Economia, com trabalho e salário; a linguística, com significado e significante, e a mudança de um de seus termos altera, pouco a pouco, todo o sistema 21. Para que haja signo linguístico ou valor econômico, é preciso permutar coisas dessemelhantes (significante / significado; trabalho / salário) e, por
Quanto mais complexo e rigorosamente organizado for um sistema de valores, como é o caso da língua, tanto mais necessário se faz, devido à sua complexidade, estudá-lo segundo seus dois eixos. A precisão de valores em jogo, o número tão grande e a diversidade tamanha de termos, numa dependência recíproca tão estrita, impe-
outro lado, comparar coisas similares entre si: pode-se trocar uma nota de R$5,00 por pão, sabão ou jornal, como se pode também compará-la com outras notas do sistema financeiro brasileiro, com as notas de R$10,00, R$50,00 ou R$100,00, ou com notas de outro sistema, como o peso, o dólar ou o euro. Do mesmo modo, uma palavra (signo linguístico) “pode ser trocada por algo dessemelhante: uma ideia; além disso, pode ser comparada com algo da mesma natureza: uma outra pa lavra”22. Daí, a significação do signo não ser um fenômeno isolado, apenas resultado da combinação instantânea do significado (conceito) e significante (imagem acústica). Se assim o fosse, a língua ficaria reduzida “a uma simples nomenclatura nomenclatura””. Para evitar tal equívoco, Saussure estabelece a dependência da significação à noção de valor. Só se pode determinar a significação pela simultaneidade e reciprocidade dos termos linguísticos, para as quais a noção de valor aponta. Em outras palavras, a significação não se realiza na fase em que se pode trocar um termo por um conceito, mas quando esse termo puder ser comparado com outro que lhe é
dem o linguista de estudar, ao mesmo tempo, as relações da língua no tempo e no sistema, obrigando-o a distinguir duas disciplinas: a linguística sincrônica (ou estrutural) e a linguística diacrônica (ou histórica). No estudo sincrônico, o linguista se ocupa das relações entre fatos coexistentes num sistema linguístico, tais como são percebidas pela consciência coletiva num momento dado, abstraindo qualquer noção de tempo24. Ao contrário, na abordagem diacrônica, serão consideradas as relações que um determinado fenômeno da língua “localizado ao longo de uma linha evolutiva (de tempo) mantém para com os fenômenos que o precedem ou que o seguem na linha da continuidade histórica” histórica”, sintetiza Edward Lopes 25. Antes de passar para a terceira dicotomia (sintagma e paradigma), vale sublinhar que, como será visto adiante, a concepção de signo linguístico dentro do jogo das relações contribuirá decisivamente para o estruturalismo estabelecer uma nova abordagem da literatura e do texto em si. A oposição entre o plano sintagmático e o associativo (ou para-
semelhante quandosignos: o signo adquire seu [o valor pela relação ou quediferente, estabeleceisto comé, outros “Seu conteúdo da palavra] só é verdadeiramente determinado pelo concurso do que existe fora dela. Fazendo parte de um sistema, está revestida não só de uma significação como também, e sobretudo, de um valor, e isso é coisa muito diferente”23.
digmático) é tão significativa quanto as dicotomiasDe langue e parole, parole sincronia e diacronia apresentadas anteriormente. acordo com, Saussure, as relações e as diferenças entre os termos linguísticos se desenvolvem em dois planos distintos. Cada um desses planos não
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(SAUSSURE 1971:95) (SAUSSURE 1971:134) (SAUSSURE 1971:134)
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(SAUSSURE 1971:96) (LOPES 1995:74) De acordo com com Roland Barthes, Barthes, “as sintagmáticas sintagmáticas são relações para Hjelmslev, contiguidades em Jackobson, contrastes em Martinet”; já as relações associativas ou paradigmáticas (cunhadas por ele, Barthes, de relações sistemáticas) são correlações em Hjelmslev, similaridades em Jakobson, oposições em Martinet”. (Cf. BARTHES 2006:64)
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só engendra certa ordem de valores, como também corresponde a duas formas de atividade mental, ambas fundamentais para a vitalidade da língua. O primeiro deles é o dos sintagmas, que, em geral, são formados de dois ou mais termos consecutivos e acontecem no discurso. Na cadeia falada, a combinação desses termos tem como suporte a extensão, que é “linear e irreversível”. Como a relação sintagmática existe in praesentia, praesentia, seus termos nunca podem ser pronunciados ao mesmo tempo, e o valor deles se define por relação ao valor do outro: “re-ler, contra-todos; a vida humana; Deus é bom; se fizer bom tempo, sairemos”27. O outro plano, associativo (ou paradigmático), se dá fora do discurso; isto é, como não tem por base a extensão, a relação associativa une termos in absentia em absentia em uma série mnemônica virtual, um “tesouro de memória”: memória”: Por outro lado, fora do discurso [plano sintagmático], as palavras que oferecem algo de comum se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam relações muito diversas. Assim a palavra francesa enseigment ou ou a portuguesa ensino fará surgir inconscientemen inconscientemente te no espírito uma porção de
outras palavras (enseigner , renseigner etc. ou então armement , changement , ou ainda éducation, apprentissage28).29
Diante do exposto, conforme já observado por Luiz Costa Lima, enquanto o eixo sintagmático aponta para uma ordem de 27 (SAUSSURE 1971:142-143) 28 Em nota da edição brasileira (Cultrix), os tradutores da obra 28 obra saussuriana observam que para ensino ou ensinamento, “as palavras associadas serão ensinar , e depois armamento, desguramento etc., por m, educação e aprendizagem etc.” (SAUSSURE 1971:) 29 (SAUSSURE 1971:143)
sucessão e um número determinado de elementos, o asso ciativo (ou paradigmático) é sempre indeterminado e, geralmente, de número indefinido. Ou seja, o eixo paradigmático é indeterminado e indefinido “se empreendo associações com base, por exemplo, no sufixo -mento ou -mento ou -idade -idade ou ou qualquer outro de uso frequente em português” por tuguês”.. Entretanto, “temos ordem determinada com número definido nos paradigmas de flexão, pois o número de casos, em cada língua flexional, é predeterminado”30. Com Ferdinand de Saussure, configura-se a linguística estrutural, disciplina autônoma em relação às demais disciplinas das ciências humanas, que se torna a base do pensamento estruturalista. O impacto dos princípios gerais desenvolvidos pelo mestre genebrino foi sentido primeiro na fonologia. As teses tese s desenvolvidas no Cours de linguistique générale générale desdobraram-se nos escritos de jovens teóricos reunidos em torno do que ficou conhecido como o Círculo Linguístico de Praga31, constituído tanto por tchecos, como Mathesius e Mukaróvsky, quanto por ex-integrantes do famoso Círculo Linguístico de Moscou e da não menos importante OPOIAZ32, que formariam a corrente russa em Praga — Serge Karcevski, que conheceu bem as diretrizes saussurianas a partir de sua estada em Genebra, Nikolai Trubetzkoy, grande teorista da fonologia, cuja obra principal, Grundzüge der Phonologie ( Phonologie (Princípios Princípios de onologia), onologia), foi publicada em 1939, após a sua morte, e Roman Jakobson, autor de trabalhos decisivos para a consolidação e expansão da linguística estrutural 33. Por seu rigor, seu grau de formaliza30 (LIMA 1968: 22) 31 Fundado em 1926, por iniciativa dos tchecos Vilém Vilém Mathesius, Mukaróvsky Mukaróvsky e J. Vachek, e dos russos Nicolai Trubetzkoy, Roman Jakobson e Serge Karcevski, as primeiras teses do grupo vêm a público a partir de 1929. (Cf. DOSSE 2007:97, v.I) 32 Óbchchestvo por izutchéniu poetítcheskovo ia ziká — Associação para o Estudo da 32 Linguagem Poética — fundada em 1917, que cooperaria intimamente com o Círculo Linguístico de Moscou, este fundado em 1915. (Cf. SCHNAIDERMAN 1971:X). 33 (CÂMARA Jr. 1973:18-19)
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ção, a linguística estrutural vai arrastar em sua rede várias outras disciplinas e fazê-las assimilar seu programa e seus métodos 34. Um dos primeiros resultados desse arrastão se deu a partir do encontro entre Roman Jakobson e Claude Lévi-Strauss, nos anos 40, em Nova Iorque. Como se sabe, os dois intelectuais, ambos exilados por conta da expansão do nazismo no continente europeu, tornaram-se professores na New School for Social Research, em Nova Iorque, onde fundaram, ao lado de Jacques Maritain, Henri Focillon, a École Éc ole Libre des Hautes Études. Do impacto da revolução fonológica, apreendida do intercâmbio estabelecido com Jakobson, Lévi-Strauss abandona a perspectiva descritiva até então dominante na antropologia e defende, no livro publicado em 1951, Estruturas elementares de parentesco,, a tese de que o casamento nas sociedades primitivas, antes de tesco ser uma mistura caótica de preceitos arbitrários, era uma forma de comunicação, de transação que validaria um sistema de trocas e de alianças, em que a mulher, funcionando como signo, seria passível de ser submetida a regras dedutíveis, tais como as que haviam sido deduzidas no campo da fonologia. Assim como toda língua ou dialeto possui um sistema fonológico simples e inequívoco, os sistemas de parentesco de sociedades não ocidentais eram também regidos por uma arquitetura lógica que só pareceria arbitrária “sob o ponto de vista de um ‘falante’ de outro sistema”35. A hipótese estrutural promove, portanto, um redirecionamento do olhar do antropólogo em relação às comunidades iletradas: ao retirá-las tanto do simples esquema da consanguinidade quanto das considerações morais etnocêntricas, Lévi-Strauss desbiologiza a interpretação da interdição do incesto e a situa nas relações sociais, isto é, em termos da 34 35
(DOSSE 2007:82, v. I) (LIMA 1983:218)
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cultura. Contrariando a abordagem etnocêntrica dominante até então, conforme demonstrou, a lógica não é um privilégio do homem ocidental; há lógica nos sistemas sociomentais das comunidades primitivas. Outro desdobramento de grande rentabilidade das teses de Saussure na reflexão lévi-straussiana é “o caráter inconsciente da língua naqueles em que nela colhem sua fala”36. Isso permite ao autor de O pensamento selvagem perceber selvagem perceber que “não são os conteúdos que são inconscientes (crítica aos arquétipos de Jung), mas as formas, isto é, a função simbólica” simbólica”,, pontua Roland Barthes B arthes37. Portanto, para o antropólogo francês, o imaginário coletivo não deve ser descrito por seus “temas”, mas por suas formas e funções, isto é, mais por seus significantes do que por seus significados 38. O inconsciente é, para ele, uma armadura lógica e natural, ou seja, o inconsciente é um sistema de condicionamentos lógicos sobre o qual estão fundadas as instituições humanas. Isso significa que Lévi-Strauss pensa o inconsciente fora da biografia pessoal, como em Freud39. Daí, conforme já observou Luc de Heusch, a lição da linguística estrutural, apreendida em Saussure e divulgada por Jakobson e outros já aqui mencionados, ter contribuído, decisivamente, para que LéviStrauss, desde 1945, percebesse que “a fonologia (que desvenda as leis de organização dos sons, escapando à consciência dos sujeitos falantes)”, desempenhava, em relação às ciências sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear havia representado para o con junto das ciências exatas40. 36 37 38 39 40
(BARTHES 2006:27) (BARTHES 2006:27) (BARTHES 2006:27-28) (Cf. LIMA 1983:220, v.2; DOSSE 2007:167, 2007:167, v.I). (HEUSCH 1968:14). Parafraseio Parafraseio na passagem passagem acima uma uma citação de Lévi-Strauss, Lévi-Strauss, presente em Antropologia estrutural , utilizada por Heusch: a fonologia “não pode deixar de desempenhar, face às ciências sociais, o mesmo papel renovador que
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O estruturalismo foi, portanto, um movimento de pensamento, um ponto de vista epistemológico que, partindo do pressuposto de que nada significa por si próprio, isto é, de que todo conceito num dado sistema é estipulado por todos os outros conceitos do mesmo sistema41, teve como objetivo examinar, esquadrinhar os múltiplos sistemas de signos/símbolos organizadores de variadas sociedades contemporâneas. A palavra estrutura, funcionando como senha e exercendo um papel unificador para boa parte das ciências humanas, ofereceu para tais disciplinas uma “grade de leitura” para seus respectivos objetos42. Estrutura é aí entendida como uma rede de associações em que unidades mínimas móveis e distintas de certo conjunto, seja ele linguístico, social ou cultural, se conectam e ganham significado apenas por meio de correlações e oposições. Nesse sentido, o pensamento estruturalista será marcado pela busca de constantes, ou, melhor dizendo, pela pesquisa das estruturas subjacentes. Por outro lado, devido à pluralidade no uso do conceito de estrutura por diferentes áreas de saber na primeira metade do século XX, não se pode esquecer que, por trás do “rótulo estruturalista”, existiram diversos “estrut “estruturalismos” uralismos”.. François Dosse identifica pelo menos três correntes de pensamento estruturalista: uma, chamada por ele de “estruturalismo científico”, “representado por Claude Lévi-Strauss, Algirdas-Julien Greimas ou Jacques Lacan envol vendo ao mesmo tempo, portanto, a antropologia, a semiótica e a psicanálise”; outra, “estruturalismo semiológico”, “mais flexível , mais ondulante e cambiante, com Roland Barthes, Gérard Genette, Tzvetan Todorov ou Michel Serres”; e, finalmente, “estruturalismo
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a física nuclear, por exemplo, representou para o conjunto das ciências exatas” (LÉVI-STRAUSS apud HEUSCH). (Cf. MUKAROVS MUKAROVSKY KY 1978:141). (DOSSE, 2007:12, v. I)
historicizado ou epistêmico” epistêmico”, com “Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-Pierre Vernant e, mais amplamente, a terceira geração dos Annales dos Annales43. Diante dessa diversidade, neste ensaio, cujo objetivo é tratar da contribuição do estruturalismo para os estudos literários, optou-se pelo emprego do conceito de estrutura para a construção de uma poética, ou seja, a poética estrutural, assunto do próximo bloco. II
Embora a adesão ao método estrutural pela crítica literária só se realize após o impacto provocado pela publicação dos trabalhos de Lévi-Strauss, o interesse comum pela linguagem, objeto de in vestigação das duas disciplinas, aproximou a teoria da literatura da linguística, concorrendo para o aproveitamento das considerações acerca do signo e das dicotomias desenvolvidas por Saussure para o exame da expressão literária. Além disso, a tradução das teses dos formalistas russos e tchecos para o inglês, o francês e, em seguida, para outras línguas latinas favoreceu a circulação de noções, tais como literariedade, estranhamento/desvio, que contribuíram igualmente para especificar, num grau mais apurado e abstrato, a linguagem literária44. Para Jakobson, “o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária”45. Já o conceito de estranhamento é o efeito de distanciamento do padrão, do modo comum, provocado pela obra de arte. De D e acordo com V V.. Chklovski, “o objetivo da arte é singularizar o objeto”, objeto”, ou seja, “dar a sensação do objeto ccomo omo visão e não como reconhecimento”, na medida em que “o procedimento 43 (DOSSE 2007:25-26) 44 (ACÍZELO 2004:48-49) 45 Jakobson (Apud TODOROV 1979:12)
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da arte é o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção”46. O estranhamento produziria, então, uma desautomatização da percepção do objeto. Em termos da língua poética, o estranhamento é um procedimento que introduz alterações no signo, aumentando, assim, sua carga informacional, promovendo “um desvio da norma, uma ruptura r uptura do significado, uma expansão do significante”, conforme palavras de Affonso Romano de Sant’Anna 47. Portanto, lembra-nos Todorov, se é exagerado afirmar que o estruturalismo linguístico seguiu as ideias do formalismo, já que os campos de estudo e os objetivos das escolas não eram exatamente os mesmos, é fácil localizar nos estruturalistas marcas de influência do pensamento formal na descrição do texto literário48. A própria concepção da obra literária como um sistema é uma herança formalista49. Por outro lado, a ênfase na obra em si mesma, considerando-a como um sistema imanente, e o desprezo dos aspectos extratextuais, tão caros à crítica tradicional, vêm da linguística, mais especificamente, da semiologia ou da ciência das significações. Semelhante à significação do signo linguístico que, para Saussure, se configura na dependência da noção do valor, isto é, na dependência da posição relacional que cada signo estabelece com os outros dentro do sistema, para os estudos da literatura de base estrutural, a significação de uma determinada obra se dá a partir do levantamento, da decomposição e da rearticulação a posteriori das posteriori das diversas relações que cada termo estabelece com os outros nas sequências textuais que compõem a obra em questão. Em outras palavras, a significação da obra 46 47 48 49
(CHKLOVSKI 197:45) (SANT’ANNA 1973:30) (TODOROV 1971:11-12) Cf. Jirmunski, V. Sobre a questão do “método “método formal” (In: EIKENBAUN EIKENBAUN et al. 1971:57-70).
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se dá a partir da observação dos signos formadores do literário “em seu sentido negativo, negativo, quer dizer, na dependência em que se encontram com outros, pelos diversos fios articuláveis semanticamente entre eles”, eles”, resume Maria Antonieta Borba 50. O número 4 da revista Communications Communications,, publicado em 1964, investido de um papel programático, funcionou como instrumento divulgador da assimilação do modelo da linguística estrutural no campo dos estudos literários, com os ensaios de Claude Bremond, “Le message narratif”; Tzvetan Todorov, “La description de la signification en littérature”; Christian Metz, “Le cinéma: langue ou langage?”; e de Roland Barthes, autor não apenas da “Apresentação” Apresentação” da revista como de dois outros ensaios, “Rhétorique de l’image” e “Éléments de sémiologie”51. Pelo caráter emblemático que assumiram no cenário acadêmico em geral e, em particular, no contexto dos estudos literários no Brasil, entre os ensaios mencionados, serão tratados aqui dois deles: o de Todorov Todorov,, “A descrição da significação em literatura”, e o de Roland Barthes, “Elementos de semiologia”. De acordo com a versão escrita do seminário ministrado por Roland Barthes na Escola Prática de Altos Estudos 52, em 19621963, o objetivo de Elementos de semiologia é semiologia é “esboçar uma teoria 50 (BORBA 2004: 65) 51 O ensaio “Élém “Éléments ents de Sémiologie”, Sémiologie”, de Roland Barthes, foi traduzido traduzido para
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o português e publicado, em 1971, pela editora Cultrix. A revista francesa Communications 4 é introduzida por uma “Apresentação”, assinada também por Barhtes. Na edição da Cultrix, alguns trechos dessa “Apresentação” são reproduzidos no prefácio também escrito por ele para os leitores brasileiros. A seguir, traduzo os títulos dos ensaios que compõem a publicação francesa, conforme a ordem em que aparecem na capa da revista: Claude Bremond, “A mensagem narrativa”; Tzvetan Todorov, “A descrição da signicação em literatura”; Roland Barthes, “Retórica da imagem”; Christian Metz, “O cinema: língua ou linguagem?”; Roland Barthes, “Elementos de semiologia”. A revista Communications, nascida em 1961, provém do Centre d’Études de Communication de Masse da École Pratique des Hautes Études (Centro de Estudos de Comunicação de Massa da Escola Prática de Altos Estudos), criado em 1960 por iniciativa de Georges Friedmann (Cf. DOSSE 2007:362, v.I).
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da pesquisa semiológica”53. Espécie de manifesto da disciplina, o ensaio, segundo o autor, traduziria “uma solicitação semiológica oriunda, não da fantasia de alguns pesquisadores, mas da própria história do mundo moderno”54. Tecendo um discurso teórico que procurasse dar conta de qualquer sistema de signos, “seja qual fo[sse] sua substância, sejam quais fo[sse]em seus limites”(imagens, gestos, vestuário, alimentação, cidade, narrativa etc.), nesse ensaio, Barthes recupera os pares de Saussure língua/fala, significante/ significado, sintagma/sistema, denotação/conotação, acrescentando-lhes a redistribuição hjelmsleviana 55. Segundo Barhes, Hjelmslev não subverteu a concepção saussuriana de língua / fala, mas redistribuiu-lhe em três planos distintos: o esquema (que é a língua como forma pura, isto é, a língua no
générale, de a semiologia ser a ciência geral dos signos, da qual a générale, linguística não passaria de uma parte mesmo que privilegiada. Para o teórico francês, se é certo que, além da linguagem humana, há, na sociedade contemporânea, outros sistemas de signos, a significação desses sistemas (imagens, objetos, gestos) apenas se dá através da linguagem verbal: Assim, apesar de trabalhar, de início com substâncias não linguísticas, o semiólogo é levado a encontrar, mais cedo ou mais tarde, a linguagem (a ‘‘verdadeira”) em seu caminho, não só a título de modelo, mas também a título de componentes, de mediação ou de significado. Essa linguagem, entretanto, não é exatamente a dos linguistas: é uma segunda linguagem, cujas unidades não são mais os monemas ou os fonemas, mas fragmentos mais extensos do discurso; estes remetem a objetos
sentido saussuriano), a norma (“a língua como forma material, já definida por certa realização social, mas independente ainda dos pormenores dessa manifestação”) e o uso (“a língua como conjunto de hábitos de uma dada sociedade”). Entretanto, observa, esse remanejamento não é indiferente, e, diríamos, não será inconsequente. Primeiro, porque possibilita a Hjelmslev formalizar radicalmente o conceito de língua, sob o nome de esquema, e eliminar a fala concreta em proveito de um conceito mais social, o uso; “formalização da língua, socialização da fala, este movimento permite passarmos todo o ‘positivo’ e o ‘substancial’ ‘substancial’ para o lado da fala, todo o diferencial para o lado da língua” língua”56. Segundo, porque admite Barthes inverter a proposição sustentada por Saussure, no Cours de linguistiq linguistique ue 53 54 55
56
(BARTHES 2006:7) (BARTHES 2006:11) Louis Hjelmslev (1899-1965), linguista dinamarquês, dinamarquês, fundador fundador do Círculo Linguístico de Copenhague (1931) e da revista Acta linguistica (1939), em 1943, publicou Prolegômenos a uma teoria da linguagem, obra que se tornou fundamental para os estudos linguísticos e semiológicos. (BARTHES 2006:20-21)
ou episódios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela. A Semiologia é talvez, então, chamada a absorver-se numa translinguística, cuja matéria será ora o mito, a narrativa, o artigo de imprensa, ora os objetos de nossa civilização, tanto quanto sejam falados (por meio da imprensa, do prospecto, da entrevista, da conversa e talvez mesmo da linguagem interior, de ordem fantasmática). É preciso, em suma, admitir desde agora a possibilidade de revirar um dia a proposição de Saussure: a Linguística não é uma parte, mesmo privilegiada, da ciência geral dos signos: a Semiologia é que é uma parte da Linguística; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso. 57 57
(BARTHES 2006:12-13). 2006:12-13). Em 1968, Julia Kristeva que considerava considerava a linguística como parte da semiologia, seguindo Barthes, inverte essa relação t ambém (Cf. KRISTEVA 1978).
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A resolução linguística em sua teorização acerca da nova disciplina impõe-lhe a tarefa de, a partir das noções já estipuladas por Saussure, pensar novas categorias para o estudo da significação. Aliás, a imposição surge da constatação de que a linguística estrutural, “por mais avançada” que estivesse, não havia ainda edificado uma semântica, isto é, “uma classificação das ormas das ormas do significado 58 verbal ” . Embora a proposição saussuriana do signo como uma realidade bifacial, isto é, como resultado da união de um significante e um significado, tivesse sido de extrema importância, pois fez com que a semântica, afastando-se do campo da psicologia, passasse a fazer parte da linguística estrutural59, as dicotomias forma/substância, plano da expressão/plano do conteúdo seriam apenas suficientes para uma disciplina cujo objeto fosse constituído por um sistema isólogo, como é o caso da língua (langue ( langue))60. Para Barthes, os sistemas isólogos são aqueles em que “a língua ‘cola’, de modo indiscernível e indissociável, seus significantes e significados”; diferentemente, os não isólogos — “fatalmente complexos” complexos” — são os sistemas “em que 58 (BARTHES 2006:48) 59 Para Saussure, como o signicado faz parte do signo, a semântica, estudo 59 das signicações, também faz parte da linguística estrutural. Postura teórica divergente da corrente mecanista americana que, ao entender o signicado como substância, aloca o estudo da signicação na psicologia (Cf. BARTHES 1974:42). 60 Saussure inicia ocapítulo III — “O objeto 60 objeto da linguística” —com a seguinte seguinte pergunta: “Qual é o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto, da linguística?” Ao se propor responder a tal pergunta, ele conjectura se seria a l inguagem o objeto da disciplina. Sua resposta é negativa, pois, se o fosse, a linguagem obrigaria que se zesse um estudo sobre vários aspectos, levando, assim, o objeto da linguística a nos parecer “como um aglomerado confuso de coisas heteroclíticas, sem liame entre si”, comprometendo a autonomia da disciplina, uma vez que se abriria “a porta a várias outras ciências — Psicologia, Antropologia, Gramática normativa, Filologia etc.”. Diante disso, Saussure declara: “Há, segundo nos parece, uma solução para todas essas diculdades: é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma denição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito”. (SAUSSURE 1971:15-17).
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o significado pode simplesmente ser justapos ser justaposto to a a seu significante”61. Ou seja, nos sistemas não isólogos, “o exame das significações exige o emprego de uma linguagem distinta da de seus próprios sistemas, já que, nestes, os significados não são imediatamente apreendidos pelos seus significantes”62. Apesar de a construção da significação em literatura se processar pelo emprego da linguagem articulada (mesma substância de seu objeto), Barthes considera o texto literário como um sistema não isólogo. Para pensar a significação em literatura (como em outros sistemas não isólogos), Barthes lança mão da semiótica conotativa de Hjelmslev proposta em Prolegômenos a uma teoria da linguagem (2009). linguagem (2009). Conforme já aqui apresentado, para Saussure, o sistema de significação do signo linguístico pressupõe um plano de expressão (E) e um plano de conteúdo (C), e a significação coincide com a relação (R) entre os dois planos. Barthes condensa tal processo de significação com o seguinte esquema: E R C63. Contribuindo de modo decisivo para o aprofundamento aprofundamento do processo de significação, Hjelmslev Hjelmslev aplica as noções de orma de orma e e substância substância nos nos dois planos saussurianos, operando neles uma subdivisão, já que cada plano passa a comportar em si dois strata strata,, isto é, cada plano passa a comportar orma comportar orma e e substância substância.. O linguista dinamarquês entende forma como “o que pode ser descrito exaustiva, simples e coerentemente coerentemente (critérios epistemológicos) epistemológicos) pela linguística”, sem auxílio de nenhuma premissa extralinguística. Já substância “é o conjunto dos aspectos dos fenômenos linguísticos que não podem ser descritos sem recorrermos a premissas extralinguísticas” 64. Assim, como forma e substância estão presentes tanto no plano de expressão como no plano de conteúdo, a reflexão 61 62 63 64
(BARTHES 2006:47) (BORBA 2004:68-69) (BARTHES 2006:95) (BARTHES 2006:43)
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hjelmsleviana acerca da construção da significação pressupõe maior complexidade, complexid ade, pois considera os seguintes níveis: 1) uma substância da expressão (em termos do estudo da língua, “a substância fônica, articulatória, não funcional de que se ocupa a Fonética e não a Fonologia”); Fonologia ”); 2) uma forma de expressão (por exemplo, exemplo, a classificação dos fonemas, objeto da Fonologia); 3) uma substância de conteúdo (“por exemplo, os aspectos emotivos, ideológicos ou simplesmente nocionais do significado, o seu sentido positivo”); 4) uma forma do conteúdo (“a (“a organização formal dos significados entre si, por ausência ou presença de uma marca semântica”) 65. Essas subdivisões introduzidas nos planos saussurianos permitem a Hjelmslev pensar a linguagem das significações dos sistemas semiológicos, na medida em que, em sua reflexão, um determinado sistema de significação (ERC) pode se tornar termo de um segundo sistema que lhe seja extensivo, configurando, assim, “dois sistemas de significação imbricados um no outro, mas também desengatados, um em relação ao outro” outro”, comenta Barthes B arthes66. Se o primeiro sistema (ERC), por sua vez, se torna o plano de expressão ou significante do segundo sistema — (ERC) RC —, — , “trata-se do que Hjelmslev chama de semiótica conotativa; o primeiro sistema constitui, então, o plano de denotação denotação,, e o segundo sistema (extensivo ao primeiro), o plano de conotação conotação””67. E continuando, Barthes afirma: Diremos, pois, que um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é, ele próprio, constituído por um sistema de significação; os casos correntes de conotação serão evidentemente constituídos por sistemas complexos, cuja linguagem articulada forma o primeiro sistema (é o caso da Literatura, por exemplo).68 65 66 67 68
(BARTHES 2006:43) (BARTHES 2006:95) (BARTHES 2006:95) (BARTHES 2006:95-96)
Se o próprio da linguagem literária é ser se r uma linguagem da conotação, o que interessa à literatura não é o referente, mas o próprio poder conotativo do signo linguístico. Válida para todo sistema semiológico, a fórmula proposta por Hjelmslev configura-se bastante importante para os estudos de literatura, pois supõe a “existência do significante e do significado, cada um por seu turno, como termo e relação”, isto é, como “significação no interior do par significante/significado (termo) na dependência do valor (relação), relação mantida pela significação com outras significações nos interiores de outros significantes/significados”, conforme palavras de Maria Antonieta Borba 69. Em contrapartida, a reflexão a respeito da significação desenvol vida por Hjelmslev Hjelmslev abriu caminho para que o pensamento pensamento estrutural em sua abordagem do texto literário privilegiasse o conceito de orde orma do conteúdo em conteúdo em detrimento do conceito substância do conteúdo. conteúdo. Sintonizados com a concepção de autonomia da literatura, alguns teóricos estruturalistas vão, em suas análises, considerar o texto apenas dentro de seus próprios limites, em sua intratextualidade. Portanto, Portanto, em suas leituras, esses teóricos examinarão exclusivamente as relações formais, isto é, as recorrências linguísticas presentes dentro do sistema do texto, desprezando, em consequência, qualquer aspecto extratextual. Em decorrência disso, assiste-se também ao declínio da contribuição de outras disciplinas, tais como a sociologia, a filosofia, fi losofia, a psicologia etc. para a construção da significação da obra literária. Processo iniciado já com os teóricos dos formalismos russo e tcheco, tal atitude traduz o receio de cair numa prática analítica que só entendia o texto literário a partir de dados biográficos do autor ou das questões sociológicas, antropológicas, filosóficas do contexto em que o texto fora produzido, conforme mostra Tzvetan Todorov em “A descrição da significação em literatura”. 69
(BORBA 2003:71-72)
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No ensaio também publicado em Commnunications 4, 4, depois de observar que os problemas ligados à significação não são restritos à linguística e à filosofia, mas são também de suma importância para a análise literária, Todorov centra sua questão no exame dos diferentes planos constituintes na obra literária. Num trabalho seme-
O entendimento da significação a partir do jogo relacional das unidades elementares do texto presume, portanto, portanto, que, para a abordagem estrutural, a obra literária, não importando seu gênero, semelhante ao conceito de langue langue,, constitui um sistema e que, como tal, está sujeita à configuração de uma estrutura, isto é, a obra literária é
lhante ao de escavação, o autor identifica três planos, configurados no texto, prosa ou poesia, como camadas superpostas e interligadas, aqui apontados esquematicamente. O primeiro, o da expressão, é o plano da “distribuição fonemática, fonemática, sobre o qual o plano de conteúdo não intervém”; o outro, “plano gramatical” ou “plano da forma do conteúdo”, “desempenha um papel muito importante para a significação literária”; finalmente, o plano da “substância do conteúdo”, dependente da semântica70. Com a pretensão de apresentar um enfoque radicalmente estruturalista, Todorov, mesmo reconhecendo que na obra literária haveria a presença de traços de outros sistemas significativos que não apareceriam na linguagem articulada, tais como, os sistemas derivados da vida social ou cultural ou ainda nacional, descarta o estudo desses indícios da análise estrutural e lança as linhas básicas para que o crítico da literatura, abandonando uma prática de leitura preconizadora de uma “atitude projetiva”71, corrente no século XIX, presente ainda no XX (e, talvez, continuada até hoje, século XXI), passasse a conceber a significação como
um todo formado por elementos solidários entre si e interligados por uma tensão dinâmica. Em contrapartida, percebê-la como sistema indica que se considera a obra literária em si mesma, quer dizer, a obra literária em sua autonomia, como “linguagem sistemática que chama a atenção sobre si própria, que se torna autotélica”; linguagem intransitiva, intransiti va, opaca, pois não remete a uma realidade externa, seja ela emotiva do autor, seja ela ideológica do contexto social72. Dessa maneira, como se lê em Barthes73, do ponto de vista da atividade estruturalista, para se alcançar a significação da obra, é preciso submetê-la à análise, procedimento que, por sua vez, pressupõe duas operações distintas e sucessivas: desmontagem (décou(décou page)) e arranjo (agencement page (agencement )74. Primeiro, desarticula-se a obra para que se encontrem nela “fragmentos móveis cuja situação diferencial gera certo sentido”75, isto é, desmonta-se a obra para que se identifiquem nela as unidades mínimas (ou funções), trabalho semelhante ao que se faz com os fonemas 76 ou monemas na linguística ou com
oconstitutivos produto dasdomúltiplas relações e articulações os elementos literário instaurariam entre si no que texto.
74 (BARTHES 2009:51) 75 (BARTHES 2009:52) 76 Os fonemas são unidades mínimas do plano de expressão e só têm existênc ia 76 signicativa por suas fronteiras. De acordo com Saussure, sendo a língua pura forma, o objetivo da linguística seria estudar o conjunto de traços distintivos do fonema. Mas esses traços não se apresentam isoladamente, antes, são propriedadess fônicas concorrentes: /t/ é, propriedade é, ao mesmo tempo, um fonema oclusivo, dental, surdo, e se distingue de /d/, oclusivo, dental, sonoro. Em português, é, portanto, a oposição entre surdo e sonoro presente nos fonemas /t/ e /d/ que distingue /tia/ de /dia/. Por outro lado, as variantes do fonema /t/, por exemplo, /tch/, traço característico da fala carioca antes da vogal /i/, /tchia/, não importam para a língua, uma vez que a diferença de pronúncia não afeta o signicado. Daí, conforme observação de Maria Antonieta Borba, para Saussure, para a linguísica,
70 (TODOROV 1964:33-34) 71 No ensaio “Como ler?”, de 1969, Tzevetan Todorov Todorov entende entende por atitude atitude projetiva “uma concepção do texto literário como transposição feita a partir de uma série original”: enquanto o autor seria o responsável pela primeira passagem do original à obra, competiria ao crítico levar o leitor a “percorrer o caminho inverso, fechar o anel, voltando à origem”. Se as projeções variariam conforme as acepções sobre a natureza da origem (biograa do autor, ou o contexto social, ou ainda o “espírito humano”) o ponto comum entre elas seria que todas guardariam em relação ao texto literário “uma mesma atitude redutora e instrumentalista” (TODOROV 1979:249-250).
72 73
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(TODOROV 1980:18) (Cf. BARTHES 2009:49-67)
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os mitemas propostos por Lévi-Strauss no estudo do mito. Depois, excluindo todos os elementos não pertinentes, recupera-se significativamente o objeto literário, explicando e explicitando seu significado, pois o que está em jogo nesse segundo estágio é “uma espécie de combate com o acaso”, acaso”, nos diz Barthes. Daí, “os constrangimentos de recorrência te[rem] um valor demiurgo de miurgo””. E, continuando, continuando, afirma: [...] é pela volta regular das unidades e das associações de unidades que a obra aparece construída, isto é, dotada de sentido; os linguistas chamam essas regras de combinação de formas, e haveria grande interesse em conservar esse emprego rigoroso de uma palavra por demais gasta: a forma, como se disse, é o que permite à contiguidade das unidades não aparecer como um puro efeito do acaso: a obra de arte é o que o homem arranca do acaso.77
Neste mesmo ensaio, Barthes define o estruturalismo como sendo “essencialmente uma atividade atividade”. ”. Segundo ele, “o objetivo de toda atividade estruturalista [...] é reconstituir um ‘objeto’ ‘objeto’, de modo a manifestar nessa reconstituição as regras de funcionamento (as ‘funções’) desse objeto. A estrutura é [...] um simulacro desse objeto”. simulacro desse Entendendo simulacro como o resultado da “fabricação verdadeira de um mundo que se assemelha ao primeiro, não para copiá-lo, mas para o tornar inteligível”, inteligível”, Barthes vê a atividade estruturalista estr uturalista como uma “atividade de imitação”, mimesis mimesis “fundada “fundada não sobre a analogia das substâncias”, mas sobre a das funções: “recompõe-se o objeto para fazer para fazer aparecer funções”78. Conceito colocado em circulação pelos formalistas russos e retomado por V. Propp, compreende-se função como uma
77 78
só é pertinente “o estudo das unidades enquanto elas mantive[rem] relações de diferença de signicado com outras unidades da língua”. (BORBA 2004:68). (BARTHES 2009:54) (BARTHES 2009:51-52)
“unidade narrativa”, isto é, todo segmento da história que se apresenta como termo de correlação. Em seu estudo acerca dos contos populares russos, Propp, ao examinar o jogo entre constantes e variáveis, assinala que, nas estruturas dos “contos maravilh maravilhosos” osos”,, os nomes, os atributos das personagens podem sofrer modificações, porém suas ações ou funções não 79. As funções constituiriam, portanto, a própria estrutura da narrativa. Daí, no célebre ensaio publicado em 196680, na revista Communications 8, 8, Barthes afirmar que “a narrativa só se compõe de funções: tudo, em graus diversos, significa aí”81. Tomando de empréstimo da linguística o conceito de “nível de descrição”82, a significação dessas unidades narrativas, ou funções, depende das relações que essas unidades instauram entre si na composição narrativa. Tais relações podem ser de dois tipos: distribucionais ou sintagmáticas (as que se dão num mesmo nível); relações integrativas ou paradigmáticas (aquelas que acontecem de um nível para outro). Por conseguinte, de acordo com Barthes, a significação não está em um dos eixos, mas atravessa a narrativa: 79 (PROPP 1994:20) 80 (Cf. BARTHES 2011:19-62) 81 (BARTHES 2009:29). De acordo com François Dosse, Dosse, a revista revista Communications publicou, em especial, dois números programáticos que, preparados por um grupo em torno de Roland Barthes, funcionaram como “verdadeiras sínteses das ambições estruturalistas”: estruturalistas”: o número 4 – Recherches Sémiologiques – [1964], onde foi publicado o ensaio “Elementos de semiologia”, de Barthes, já referido aqui anteriormente, e o número 8 [1966], “consagrado à análise estrutural da narrativa e que gura[ria] como autêntico manifesto da escola estruturalista francesa” (DOSSE 2007:362; 414, v.1). O número 8 de Communications – L’analyse structurale du récit , traduzido integralmente pela Vozes em 1971 — Análise estrutura da narrativa narrativa —, exibe ensaios de Roland Barthes, A. J. Greimas, Claude Bremond, Umberto Eco, Jules Gritti, Viollete Morin, Christian Metz, Tzvetan Todorov, Gérard Genette, além de um dossiê com uma pequena relação de trabalhos que, segundo o grupo, apresentaria o ponto de vista estruturalista. 82 Cf. “As descrições linguísticas linguísticas não são nunca monovalentes. monovalentes. Uma Uma descrição não é exata ou falsa, é melhor ou pior, mais ou menos útil” (BARTHES 2011:25, nota 13).
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Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é também reconhecer nela “estágios”, projetar os encadeamentos, horizontais horizontais do “fio” narrativ narrativoo sobre um eixo implicitamentee vertical; ler (escutar) uma narrativa não é somente plicitament passar de uma palavra a outra, é também passar de um nível a outro.83
Por outro lado, as etapas de desmontagem e de arranjo efetuadas no objeto pelo simulacro da análise revelam como os conceitos de sintagma e paradigma, ao serem usados pela teoria da literatura, tornam-se mais complexos, na medida em que a etapa de arranjo, não se limitando à mera recomposição do texto literário, visava à construção de uma significação do texto literário. Voltando ao ensaio “A “A atividade estruturalista estr uturalista””, de Barthes, o simulacro construído manifestaria uma categoria nova do objeto, que não seria nem o real nem o racional, mas o funcional 84. Assim, o projeto de toda atividade estruturalista era construir um simulacro do objeto obser vado, mas, como diz Barthes, “um simulacro dirigido, interessado, já que o objeto imitado faz aparecer algo que permanecia invisível, ou, se se preferir, inteligível no objeto natural” 85. Ou, como nos diz Silviano Santiago, no ensaio “Análise e interpretação” interpretação”,, no simulacro construído pelo crítico “era o inteligível que se acrescentava ao sensível”86. Nessa perspectiva, abandonando uma prática tradicional que se restringia a parafrasear a obra estudada, a tarefa da crítica seria expor as exigências de elaboração de sentido, as condições de sua validade. Até porque a adoção de tal perspectiva pe rspectiva pressupõe conceber a literatura como uma linguagem, isto é, como um sistema s istema de 83 84 85 86
(BARTHES 2011:27) (BARTHES 2009:54) (BARTHES 2009:51) (SANTIAGO 1978:193)
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signos: “seu ser não está em sua mensagem, mas nesse ‘sistema’” 87. Tal concepção de literatura permite que Gérard Genette, seguindo o ensinamento de Lévi-Strauss, identifique a atividade da crítica literária estruturalista com “uma espécie de bricolage bricolage intelectual” intelectual”88. No ensaio “Estruturalismo e crítica literária”, Genette mostra que Lévi-Strauss, “num capítulo já clássico de La Pensée Sauvage” Sauvage”, caracteriza a bricolage bricolage como como uma atividade que se realiza “a partir de conjuntos instrumentais que não foram constituídos tendo em vista essa atividade”; “a regra da bricolage bricolage é é sempre se arranjar com os meios a bordo” e “investir numa nova estrutura resíduos transladados de antigas estruturas” a partir de uma dupla operação: a de análise “(extrair diversos elementos de diversos conjuntos constit constituuídos)” e a de síntese “(construir a partir desses elementos heterogêneos um novo conjunto no qual, em suma, nenhum dos elementos reempregados reencontrará sua função original)”89. O universo instrumental do bricoleur é, é, portanto, um universo “fechado”, já que se volta “para uma coleção de resíduos de obras humanas, isto é, a um subconjunto da cultura” c ultura”90. Nesse sentido, a atividade descrita como bricolage se bricolage se assemelha à atividade crítica, particularmente, à crítica literária, que se diferencia das outras atividades críticas pelo fato de se valer do mesmo “material” – a linguagem articulada – utilizado pelas obras de que se ocupa. Enquanto a crítica de arte ou a crítica musical não se expressam em cores ou em sons, a crítica literária é “um discurso sobre um discurso; é uma linguagem segunda ou metalinguagem [...], que se exerce sobre uma linguagem primeira (ou linguagem-objeto)”, conforme diria Roland Barthes no ensaio
87 88 89 90
(BARTHES 2009:162) (GENETTE 1968:42) (GENETTE 1968:42) (GENETTE 1968:43)
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“O que é a crítica”, incluído na edição brasileira Crítica e verdade91. Daí, o objetivo da crítica não ser o deciframento da obra estudada, mas a recomposição de regras e constrangimentos de elaboração desse sentido. Como atividade puramente formal, a meta de toda atividade estruturalista seria açambarcar a totalidade da obra. De posse de operadores conceituais plasmados por seus teóricos, a ambição da crítica estruturalista era construir uma gramática geral da narrativa, como se percebe tanto na obra de V. Propp, Morologia Propp, Morologia do conto, conto, quanto no ensaio de Barthes, “Introdução à análise estrutural da narrativa”, mencionados anteriormente nesta exposição. Entretanto, a vulnerabilidade de tal ambição estava em seu próprio pressuposto: “a narrativa seria uma langue langue internacional, internacional, a que as realizações particulares se subordinariam como paroles como paroles!” !”92. O modelo
Se o estruturalismo representou, na França, no final da década de 1950 e no início da de 1960, uma ruptura, e uma consequente superação, com o academismo da velha Sorbonne ainda dominada pela abordagem positivista de Lanson, e com o método tradicional da explication de texte,, no Brasil, um pouco mais tarde, no fim dos anos 60 e no começo texte dos 70, o princípio da produção de um novo conhecimento nascido nos recém-inaugurados cursos de pós-graduação de nossas universidades, a preocupação de não cair numa prática de leitura que via o texto literário como reflexo ou de dados biográficos do autor ou de questões sociológicas, filosóficas do contexto correspondeu a um outro equívoco: conceber o texto unicamente como sistema, desprezando quaisquer referências extratextuais, inclusive o autor e o leitor. Tal concepção não só simplificou o entendimento do texto, reduzindo-o e subordinando-o
teórico estrutural, baseado, sobretudo, nos ensinamentos científicos da linguística, acabava por reduzir a multiplicidade das narrativas a um único modelo, na medida em que privilegiava a sintaxe em detrimento da semântica. De acordo com Silviano Santiago:
a um modelo já conhecido, como limitou a teorização acerca do literário, mantendo o empirismo da crítica. A recepção do pensamento estrutural no Brasil é o assunto do próximo bloco. III
O jogo e a relação se esgotavam no centramento operado pela reconstituição totalitária, pelo movimento do agencement, na sua tentativa de configurar a solidariedade de todos os elementos do objeto “natural”, de configurar o que Barthes chamava de “simulacro”. Não tinham, ainda, é claro, como preocupação maior a organização desses objetos naturais dentro de uma determinada ordem que escapasse às da semelhança e da oposição, proporcio-
nada pela visão sincrônica (a-histórica) ou dada de presente pelo modelo teórico utilizado.93 91 92 93
(BARTHES 2009:160) (LIMA 1983:225) (SANTIAGO 1978:197)
Pode-se dizer que, do ponto de vista internacional (e eu arriscaria incluir também do brasileiro), o estruturalismo significou “o auge da reflexão teórica dos estudos literários”94. Por outro lado, sua irradiação no terreno da literatura sempre se mostrou problemática lá e cá. Alvo de ataques vindos de diferentes correntes acadêmicas ou posições políticas, o estruturalismo foi, pejorativamente, percebido por seus opositores como um modismo. Mas, como chamou a atenção Leyla Perrone-Moisés, “a moda, considerada em certo nível, é algo muito sério, é o sistema de formas que define uma época”95. 94 95
(LIMA 2008:8) (PERRONE-MOISÉS (PERRONE-MO ISÉS 2009:8)
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No ambiente dos estudos literários no Brasil, a recepção do pensamento estrutural aconteceu num momento em que aqui se assistia à implementação de uma política de especialização no ensino universitário através da criação dos cursos de pós-graduação, iniciada no final da década de 1960, na USP, em São Paulo, e no início da de 1970, na UFRJ e PUC-Rio, no Rio de Janeiro. A essa tendência à especialização, nos anos 70, acrescenta-se uma outra situação que, pelo menos à primeira vista, se mostraria contrária ao processo de refinamento teórico-acadêmico, como já observou Flora Süssekind. A partir de 1968, sob a ditadura militar instaurada no país desde 1964, a universidade brasileira viveu um período dificílimo com a cassação de professores, a proibição de adoção de certos autores considerados indesejáveis pelo regime em seus currículos, a presença acintosa de policiais em seus campi campi e até em salas de aula, tornando extremamente penoso o trabalho intelectual. Sob essa perspectiva, a década de 70 apresentou uma natureza mista, pois foi nessa atmosfera de interdição que a crítica literária brasileira experimentou um salto qualitativo, aperfeiçoando seus instrumentos teóricos e conceituais na reflexão sobre o fenômeno literário96. É nesse contexto bifronte que o estruturalismo despontou como a grande novidade no campo dos estudos literários nas universidades brasileiras, sobretudo, nas cariocas. Algumas obras publicadas, entre 1967 e 1973, podem ser vistas hoje como marcos da difusão, do êxito e do alcance dos princípios teóricos e metodológicos do pensamento estrutural nas universidades cariocas: o número temático da Revista tempo brasileiro,, Estruturalismo sileiro Estruturalismo,, de 1967, com artigos tratando de diferentes saberes das Ciências Humanas, tais como linguística, antropologia, filosofia, história, critica literária, psicanálise, economia; a obra O 96
(SÜSSEKIND 1985:10-41)
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estruturalismo de Lévi-Strauss estruturalismo Lévi-Strauss — — coletânea de textos selecionados por Luiz Costa Lima, quem também assina a advertência e a introdução —, pela editora Vozes, em 1968; também pela Vozes, alguns anos depois, em 1973, Estrutural Estruturalismo ismo e teoria da literat literatura ura,, tese de doutorado de Costa Lima, defendida em 1972, na USP, sob orientação de Antonio Candido; e, no mesmo ano de 1973, Análise 1973, Análise estrutural do romance, romance, de Affonso Romano de Sant’Anna. Anna. Discordando da posição defendida recentemente por José Jobson de Andrade Arruda, que, em sua apresentação à tradução brasileira da obra de François Dosse, anota a recepção tardia do estruturalismo entre nós decorrente do nosso inevitável descompasso “em relação à produção/difusão das ideias matrizes geradas nos centros intelectuais hegemônicos”97, o Editorial do número temático 15/16 da B assinalava, B assinalava, no calor da hora, a rapidez com que o pensamento estruturalista aportou no Brasil. Por outro lado, não se pode deixar de notar que a revista B e B e os livros da Vozes revelam nuances que distinguem posições teóricas assumidas por seus respectivos autores e organizadores em relação ao estruturalismo. Aliás, tais posicionamentos, na época, expressavam também filiações intelectuais e agrupamentos institucionais. institucionais. Por exemplo, os nomes de Luiz Costa Lima e Affonso Romano de Sant’Anna, Anna, durante os anos de 1970 e 1980, estão associados ao programa de pós-graduação de Letras da PUC-Rio, PUC -Rio, que, representando uma inovação no panorama intelectual, propunha, ao incluir em suas reflexões refle xões críticas os discursos da antropologia e da psicanálise, uma abordagem interdisciplinar dos estudos de literatura. Já os autores da área de Letras que participam do número temático da Revista empo Brasileiro Brasileiro dedicado ao estruturalismo ligam-se, institucionalmente, à UFRJ ( J. Mattoso Câmara Jr., Eduardo Portella, Liba Beider, Miram Lemle), 97
(ARRUDA In: DOSSE DOSSE 2007:V)
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cuja orientação teórica, pautada nos conceitos de literariedade, fundamento para as análises do new criticism, criticism, do formalismo russo e da fenomenologia, reforçava em seus trabalhos críticos uma dicção puramente formal do texto. De qualquer modo, pensar na contribuição do estruturalismo para os estudos de literatura no Brasil exige uma reflexão que ultrapasse a constatação de ele ter sido uma “moda literária” ou não. Até porque, como observado antes, mesmo em plagas reconhecidamente acostumadas a receber influxos externos de toda ordem, o modismo não deixa de corresponder a “necessidades sociais quanto à formação de receber o discurso literário”98. Uma dessas demandas é o problema da atualização do conhecimento99. Sendo o Brasil um atualização do país que sofreu censuras culturais durante o período colonial e de-
aderir a um processo de atualização de modo indiscriminado pode levar ao próprio esvaziamento da capacidade crítica cr ítica do projeto teórico recorrido, “tornando-se ele apenas ‘estrang ‘estrangeirado’ eirado’”101. Colocar o problema da atualização dentro da visada da dependência cultural, articulando-o com a produção intelectual de antecessores imediatos e remotos, foi uma das estratégias seguidas para se alavancar o avanço da reflexão teórica sobre a literatura brasileira nos cursos curs os de pós-graduação recém-inaugurados naqueles anos 70 do século XX. No curso de Letras da USP, sem deixar de “marcar sua dívida para com os pensadores da Escola de Frankfurt”, a atualização teórica se deu sob “a discussão do lugar da teoria marxista no Brasil”102, filão que levou adiante a reflexão crítico-dialética plasmada em torno de Antonio Candido, que privilegia os aspectos sociológicos da
pois, com a independência, se viu envolto por um ferrenho “instinto de nacionalidade” como critério de produção, recepção e avaliação da obra arte100, ponto de vista benévolo se apreciado a partir da empresa de construção de uma identidade coletiva, mas correndo o risco de ser extremamente limitador, limitador, controlador da perspectiva da criação ficcional e da teoria, abrir-se para um pensamento plasmado nos grandes centros acadêmicos europeus e norte-americanos e, com essa ferramenta, apreciar nossa produção artística e intelectual é, sem dúvida nenhuma, uma via para se alinhar criticamente ao contemporâneo, evitando-se, assim, cair num provincianismo estreito e fatal. Em contrapartida, de acordo com Silviano Santiago,
abordagem do texto literário . Já no Rio de Janeiro, o problema da atualização foi colocado de uma maneira radical a partir da própria “matéria” que constitui o objeto de estudo da crítica literária, isto é, a partir da verificação da linguagem. Munidos de fontes teóricas que se originavam no estruturalismo francês de base interdisciplinar (PUC-Rio) ou no pensamento filosófico de Heidegger no que se refere à linguagem poética (UFRJ), a atualização realizada pelos professores das universidades cariocas passava também pela revisão crítica de dois grandes trabalhos anteriores: o de Antonio Candido, Formação da literatura brasileira, brasileira, e o coletivo, sob a direção de Afrânio Coutinho, A Coutinho, A literatura no Brasil 104. Vale lembrar,
98 99
101 102 103 104
103
(LIMA 1983:223) Cf. Depoimento dado dado por Silviano Santiago, em 1979, 1979, a Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, publicado em (FREITAS FILHO 19791980:38-48, v. 2). 100 Expressão cunhada por Machado de Assis, em ensaio publicado em 1873, 100 para identicar a fórmula que orientaria os escritores, a crítica e o público do século XIX, que apenas reconheciam como nacionais as obras que tratassem de assuntos locais (Cf. ASSIS [1873] 1985:801-809, v. III).
(SANTIAGO 1979-1980:40) (SANTIAGO, 1979-1980:42) (Cf. SCHWARZ SCHWARZ 1977) 1977) (SANTIAGO 1979-1980:42,44). Não só o grupo do Rio de Janeiro havia de ser “conformado e informado” pelos trabalhos de Antonio Candido e Afrânio Coutinho, mas o de São Paulo também. Cf. Depoimento de Silviano Santiago a Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves (SANTIAGO 1979-1980:44).
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contudo, que os professores de maior projeção da pós-graduação da PUC naquele período, Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, “tiveram obscuras origens na província e consolidaram sua educação fora do país”; quando assumiram a PUC-Rio, não deram continuidade a nenhuma tradição acadêmica
professores doutores identificados com a corrente estruturalista em seus trabalhos críticos naquela primeira metade dos anos de 1970 fez com que o estruturalismo fosse igualmente tachado como alternati va reacionária, cúmplice do regime militar, militar, além de ser considerado o grande responsável por destruir o encanto e, em consequência, o
já estabelecida 105. Situação diferente dos contemporâneos paulistas, discípulos diretos de Antonio Candido, e dos professores ligados à UFRJ, alunos ou ex-alunos de Afrânio Coutinho, Eduardo Portella e J. Mattoso Câmara Jr. Mas, no Brasil, o ataque ao estruturalismo não se limitou ao fato de ser visto como mais uma “moda importada”. Num país pouco afeito à teoria e onde o reconhecimento social do escritor se deu através de sua participação em campanhas cívicas, no papel de tribuno ou de jornalista, como mostrou Antonio Candido, ao configurar a relação entre escritores brasileiros e público leitor no século XIX106, a figura do crítico literário, tradicionalmente, se pautaria na imagem do “homem de letras”, do bacharel107, e não na do especialista, de formação universitária. Dessa maneira, o uso de uma linguagem analítica para a abordagem do texto pelos jovens
prazer da leitura da obra literária e de afastar o aluno de Letras do texto. O poema “Exorcismo”, de Carlos Drummond de Andrade108, Caderno B do B do Jornal do Brasil , 12/04/1975, e alguns ensaios publicados em jornais cariocas, c ariocas, tais como “O estruturalismo dos pobres”, de José Guilherrme Merquior, Jornal do Brasil , 27/01/1974109, “A morte da literatura brasileira”, de Ledo Ivo, O Globo, Globo, 23/06/1975, as respostas de Carlos Nelson Coutinho e de Antônio Carlos Brito, Opinião,, nº 160, 28/11/1975, ao artigo de Luiz Costa Lima, “Quem Opinião tem medo de teoria?”, Opinião Opinião,, nº 159, 22/11/1975, expressam, irônica e ofensivamente, a posição daqueles que defendiam uma postura antiteórica dos estudos literários. Como já ressaltado por outros críticos, o texto de Merquior apresenta um tom não apenas zombeteiro e hostil, mas também elitista, já anunciado no título que exibe110. Leiamos uma de suas passagens:
105 (MORICONI 1996:15) 106 (Cf. CANDIDO 1985:73-88). Assinalo também também que, em ensaio aqui já referido, “Notícia sobre a atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade” [1873], Machado de Assis já chamava atenção para a rarefação de nosso público leitor e para pouca disponibilidade dele para a leitura e reexão das obras. Observo ainda que, em escrito anterior, de 1858, “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”, Machado, ao comentar a obra poética de José Bonifácio, arma que Bonifácio “teria sido mais poeta se fosse menos político; mas não seria talvez tão conhecido das classes inferiores” (ASSIS 1985:786, v.III). Cf. também (LIMA 1983; 1981). 107 O homem de letras, ou o crítico “à moda antiga”, conforme palavras palavras de Afrânio Coutinho, predominou até meados da década de 1940, quando começou a atuar na crítica literária veiculada nos jornais uma geração de críticos advindos da universidade, como Antonio Candido, em São Paulo, e Afrânio Coutinho no Rio de Janeiro. Enquanto a reexão do “homem de letras” se dava sob forma da resenha veiculada sobretudo, sobretudo, no jornal, a reexão do crítico universitário se faz através do livro e da cátedra (Cf. SÜSSEKIND 1993:13-33 1993:13-33 ).
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O pedantismo e a esterilidade estruturalistas assolam assolam Paris. [...] Entre nós, porém, a praga atua de modo mais daninho. O pedantismo da “matriz” (cinquenta anos depois da explosão ao mesmo tempo nacionalizante e universalista do modernismo, voltamos a macaquear abjetamente os piores aspectos da cultura francesa), o abuso agressivo de terminologia superfluament superfluamentee hermética em ladainha, o poema realça a ilegibilidade da linguagem linguagem 108 Construído sob forma de ladainha, da crítica literária. “Exorcismo” aparece no livro Discurso de primavera e algumas sombras, publicado em 1977, pela Record. 109 O ensaio foi republicado em livro pela Editora Tempo Tempo Brasileiro em 1975. 110 (SOUZA 2012:64-68)
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lugar do real trabalho de análise, quase nunca depara, neste Brasil de jovens e precaríssimas universidades, com a resistência da pesquisa séria e do ensino crítico. Ao contrário: como as universidades “brotam” “brotam” agora (numa expansão demasiado rápida para ser levada a sério), e os ignorantes se diplomam e se doutoram às centenas, a arrogância intelectual mais oca e mais inepta se dá facilmente ares dogmáticos de ciência exclusiva . No entanto, entanto, os sacerdotes do Método não sabem sequer português. Nossa ensaística atual é o paraíso do solecismo, o éden do barbarismo. Se você encontrar um título sobre “escritura”, não creia que se trata de uma obra para tabeliães: trata-se mesmo é de “écriture”, que os nossos preclaros estruturalistas não sabem traduzir por “escrita”...111
Segundo Merquior, os efeitos do método estrutural no “ambiente tupiniquim” tupiniquim” seriam muito maléficos, na medida eem m que o seu sucesso dever-se-ia a uma falta de tradição crítica e de independência intelectual da universidade brasileira; exceção que caberia à USP, “a mais amadurecida das nossas instituições universitárias”. Daí a resistência da universidade paulista ao “delírio estruturalista”. Sob o invólucro de um discurso pseudorrevolucionário, o pensamento estruturalista seria bastante conformista, conivente com “a situação crítica da intelligentsia intelligentsia latino-americana e, em particular, com a crise da educação superior”112. A falta de tradição crítica associada à massificação do ensino superior de graduação e de pós-graduação, que estaria diplomando jovens que sequer dominariam o português, explicaria o sucesso do estruturalismo estr uturalismo entre nós. Não menos equivocado é “A morte da literatura brasileira” (O Globo, 23/06/1975), de Lêdo Ivo, que parece fazer coro com o 111 (MERQUIOR 1975:11) 112 (MERQUIOR 1975:12)
poema de Drummond estampado no Caderno B do JB, JB , em abril de 1975. No artigo, o poeta e jornalista afirma que o perecimento da literatura seria proclamado por “adultos papa-defuntos que se expressa[riam] em estruturalês”. Os professores universitários, “senhores inflamados”, inflamados”, “magos amargurados” amargurados”,, castrariam a vocação dos jovens poetas, ao depositarem “em “em seus ouvidos as últimas e desoladoras novidades do mundo” mundo”. E continuando, declara: “O terror que mata as letras está na comunicação pedagógica ou parapedagógica que considera a teoria mais importante do que a prática. Digamos sem medo: o carrasco é o teórico ou exegeta que embalsama o texto vivo: o censor é o professor”113. É de se estranhar que o poeta-jornalista-acadêmico reconhecesse como “carrascos” e “censores” os professores universitários, empenhados em desenvolver entre nós uma reflexão teórica acerca da literatura, num período em que brasileiras e brasileiros eram torturados, às vezes até a morte, por agentes da ditadura militar e que os mercados editorial e fonográfico, os jornais, os cinemas e os teatros sofriam diretamente a ação da censura ce nsura igualmente promovida pelo regime implementado no país a partir de 1964. “Exorcismo”, de Carlos Drummond de Andrade, é também uma reação irônica contra a teoria estruturalista. De acordo com Eneida Maria de S ouza, em “Querelas da crítica” cr ítica”, o poema, construído sob forma de ladainha, realça a ilegibilidade da linguagem da crítica “que pretendia atingir o estatuto de Ciência” 114. Drummond reagiria no poema a qualquer tentativa de formalização do discurso literário, assumindo uma posição semelhante à de Oswald de Andrade que, nos anos 40, chamara de “chato boys” os críticos recém-formados pela USP, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes e outros, que, abandonando uma 113 (IVO 1975:37) 114 (SOUZA 1993:1-2)
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linguagem impressionista do texto, procuravam, através de critérios cr itérios formais, analisar as obras literárias com seriedade 115. O repúdio à teoria estruturalista presente no poema de Drummond conquistou simpatizantes diversos. Por exemplo, além das adesões manifestadas na imprensa, um mês depois da
Brasileira. Os estudantes conheceriam os formalistas russos, mas nunca teriam lido Dostoievsky; discutiriam disc utiriam Todorov Todorov e Kristeva sem nunca terem passado os olhos sobre uma página de Machado de Assis ou Graciliano Ramos. Esse tipo de formação não apenas promoveria um extremo pedantismo literário como também favorece-
publicação do poema no JB, aconteceu o I Ciclo de Debates da Cultura Contemporânea no Teatro Casa Grande 116, no Rio de Janeiro, realizado entre os dias 7 de abril e 26 de maio. Na segunda-feira, dia 19/05/1975, o debate girou sobre literatura nos anos 70 e foi comandado por uma mesa-redonda formada por Antonio Callado, Antonio Houaiss e Affonso Romano de Sant’Anna. Alceu de Amoroso Lima, embora houvesse sido convidado para participar do evento, não pôde comparecer117. De acordo com Mário Pontes, autor da matéria “Na literatura, muito impulso criador e pouco espaço para criação”, publicada no JB no dia 21/05/1975, isto é, dois dias depois do evento do Casa Grande, foi uma pergunta da plateia, provavelmente formulada por um estudante – segundo especulação de Antonio Carlos Brito feita no ensaio “Bota na conta do Galileu, se ele não pagar nem eu” (Opinião ( Opinião,, nº 160, 28/11/1975) – que esquentou os ânimos: seria conveniente a introdução de uma cadeira de criação literária nas faculdades de Letras do país? A essa pergunta, Antonio Candido respondeu identificando o problema de falta de familiaridade do aluno com o texto literário com o “excesso de teoria” nas escolas de Letras. Conforme o diagnóstico do professor da USP, todas as disciplinas de Literatura estariam pouco a pouco se transformando em disciplinas de teoria; não se ensinaria mais Literatura L iteratura Brasileira, mas Teoria da Literatura
ria um distanciamento da realidade: para chegar até ela, o estudante não teria apenas de passar pelo texto literário, mas também pelo texto que teoriza sobre o texto literário 118. Diante do exposto até o momento, pode-se considerar o poema como o estopim de uma polêmica que, extrapolando os campi campi universitários e ganhando espaço nos jornais, ficou conhecida como a “polêmica do estruturalismo” ou “polêmica da teoria”119. Voz destoante nesse coro de adesões a Drummond é a de Luiz Costa Lima, que publicou, em 22/11/1975, no jornal semanal Opinião semanal Opinião,, “Quem tem medo da teoria”, resposta ao poema de Drummond e, de roldão, aos outros artigos saídos na imprensa. O ensaio de Costa Lima destaca-se, pela força teórica em sua argumentação, ao esboçar uma análise do sistema intelectual brasileiro 120, suscitando uma série de outros artigos-resposta121.
115 (Cf. CANDIDO 1977:57-87) 116 Localizado no Leblon, Leblon, bairro da Zona Zona Sul do Rio de Janeiro, Janeiro, atualmente o Teatro Teatro Casa Grande transformou-se na casa de espetáculo Oi Casa Grande. 117 Trato desse debate no ensaio ensaio “A polêmica da teoria e outras outras polêmicas: cenas dos estudos de literatura no Rio de Janeiro” (In: RODRIGUES 2013).
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118 (PONTES 1975:1) 119 (Cf. SÜSSEKIND 1985:28-34) (SOUZA 1993:1-22; 2002:15-25) (MORICONI 1996:55-73). Em 2008, no XI Congresso Internacional da Abralic, apresentei o ensaio “A polêmica do Estruturalismo ou Quem tem medo de teoria?.” em que trabalho com textos que tratavam da polêmica coletados dos jornais cariocas entre 1974 e 1975. 120 Em “Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil”, ensaio publicado 120 publicado em 1978, em Cadernos de Opinião, nº 2-5, p. 28-41, e depois republicado em 1981, em Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria, Livraria Francisco Alves, p. 3-27, Costa Lima aprofunda aprofundará rá o conceito de auditividade. Tal conceito foi retomado em ensaios posteriores, tais como “Dependência cultural e estudos literários” (In LIMA 1991:266-278); “Machado: mestre de capoeira” In LIMA 2002:327-339) e “Letras à mingua” (LIMA 2006:6). 121 Nas semanas que se sucederam ao ensaio de Costa Lima, foram publicados os seguintes artigos-resposta: artigos-resposta: “Há alguma teoria com medo da prática?”, de Carlos Nelson Coutinho (Opinião nº160, no mesmo número, “Bota na conta do Galileu, se ele não pagar nem eu”, de Antônio Carlos Brito. Ao nal de seu artigo, Antônio Carlos Brito, conhecido como Cacaso, poeta e professor da PUC-RJ, morto em
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A argumentação de “Quem tem medo de teoria/” parte da articulação entre o caráter auditivo e a pecha de dependência de nossa cultura. Desenvolvido anteriormente por Antonio Candido em “O escritor e o público” público” (1985) 122, e desdobrado por Luiz Costa Lima, o traço auditivo de nossa cultura seria responsável pela produção de um discurso que, embora fundado f undado “em moldes escriturais”, escriturais”, arrebataria o receptor não por demonstrar claramente o desenvolvimento das premissas em que se sustenta, mas por conter uma palavra empolgada, entusiasta e logo sentimental, que entrasse mais pelos ouvidos do que exigisse inteligência. Já a nossa dependência cultural afiançaria, desde o século XIX, “glosas ou resumos do já feito no exterior” ou, quando se queria ultrapassar a condição de divulgador de algo já estabelecido anteriormente, nossos intelectuais propunham
propostas por Antonio Candido e Haroldo de Campos” Campos”,, para Costa Lima, naquele momento, ainda não se teria verificado entre nós “o desenvolvimento do pensamento crítico até a dimensão da teorização sobre a literatura, tomada como um discurso entre outros”. Daí o tom irritado, presente em frequentes artigos, comentários, entrevistas e poemas contra o que se identificava com “a excessiva teorização a que a literatura estaria sujeita”124. O texto de Costa Lima provocou uma reação não só imediata, mas uma reação irada. Na semana seguinte, s eguinte, Carlos Nelson Coutinho publicava “Há alguma teoria com medo da prática?”, no Opinião Opinião em 28 de novembro de 1975. Em sua resposta, o crítico marxista insinuava que a adoção do método estrutural pelos professores uni versitários seria “um modo menos desonrante de se salvar a pele”125
a “criação de uma teoria fundada f undada nas ‘raízes locais’, auge do chauvinismo ingênuo”123. Segundo o crítico/teórico, apesar de a sociedade brasileira da década de 1970 ser mais complexa, tanto econômica como culturalmente, possibilitando o surgimento de “uma literatura mais diferenciada, indo desde a vertente mais avançada até a mais epigônica””, “seria ingênuo supor que as coisas [tivessem mudado] de epigônica maneira drástica”, e isso se atestaria de forma evidente no exercício da atividade teórica, que se mantinha mais próximo do cenário oitocentista. Embora reconheça no ensaio “as excelentes formulações
naqueles anos de chumbo:
dezembro de 1987, ao sugerir que se desse voz aos alunos, abriu espaço para que, em 12/12/1975, Opinião nº 162, saísse a matéria “Os professores contra a parede”, assinada por Ana Cristina César. Na Abralic de 2008, tratei dessa polêmica no trabalho “A polêmica do estruturalismo ou ‘Quem tem medo de teoria?’”. 122 Em 1978, Luiz Costa Lima aprofundará aprofundará a auditividade auditividade de nossa cultura no no ensaio “Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil”, cuja primeira versão será publicada em Cadernos de Opinião, nº 2-5 1978; a versão denitiva sairá em 1981, Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria, pela editora Francisco Alves. 123 (LIMA, Opinião, nº159, p. 24). Luiz Costa Lima publicou uma versão ampliada de “Quem tem medo de teoria?”, em 1981, no livro Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria, p. 193-207.
No quadro de um contexto político-social bastante concreto, marcado por aquilo que um pouco impropriamente se chamou “vazio cultural”, uma corrente específica da teoria literária (e não apenas literária) tomou de assalto a universidade brasileira, bem como os meios disponíveis para a divulgação da chamada alta cultura. Veja-se bem: ninguém está dizendo que essa corrente é responsável pelo contexto político-social aludido; nem muito menos que, direta ou indiretamente, estivesse solidária com as suas conhecidas consequências. Mas o ato é que tal corrente, precisamente por se basear num discutível conceito de “ciência” e de “teoria”, que tem como meta a ormalização radical e a com pleta negação dos elementos ideológicos contidos nas objetivações estéticas, passou a deender — em concordância com o “espírito 124 (LIMA, Opinião, nº 159, p. 24). 125 (Cf. LIMA LIMA 1983:224) 1983:224)
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da época” — uma crítica literária “neutra”, inteiramente alheia às questões mais candentes e explosivas colocadas pelo enômeno literário enquanto tal e por seu relacionamento com a vida dos homens.126 [grifo meu]
Combatido tanto por intelectuais de esquerda quanto pelos conservadores, o estruturalismo ou a teoria, termos tomados quase como sinônimos naqueles anos de 1970, instauraria o tecnocratismo nas letras, mataria o prazer do texto, introduziria a ditadura do sentido sobre a pluralidade significativa, além de neutralizar, anular, negar “os elementos ideológicos contidos nas objetivações estéticas”. Como bem observou Costa Lima, contra a preocupação estruturalista com a linguagem, a esquerda propunha uma crítica “de denúncias, de palavra sentimental ou inflamada, exorcizando toda a discussão sobre a construção do texto como fruto da praga do formalismo formalismo””127. A formalização da linguagem imposta pelo estruturalismo ou pela teoria nos estudos literários, não significava/ não significa o assassínio da emoção ou da intuição, ou ainda “a morte da literatura brasileira”, como dissera Lêdo Ivo em e m O Globo128, mas uma tentativa de conhecer, pensar o seu objeto. A teoria funcionaria como um antídoto contra “a aventura de personalidade”: “formalizamos para conhecer e não para ficarmos conhecidos”, conhecidos”, diria o teórico brasileiro129. A investida contra o estruturalismo/a teoria seria, portanto, uma maneira de manter “a poesia como propriedade de certos homens”130. Ou, adotando a bela síntese feita por Flora Süssekind, a investida contra o estruturalismo/a teoria “estaria 126 127 128 129 130
(COUTINHO 28/11/1975, 28/11/1975, p. 19) (LIMA 1983:224-225) (IVO 23/06/1975, 23/06/1975, p. 37) (LIMA 1981:197) (LIMA 1981:198)
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ligada [...] ao medo de perder pe rder o próprio poder, de ver ameaçada uma ‘autoridade intelectual’ pouco acostumada a discussões”, em suma, seria um pretexto para se combater “o exercício menos autoritário da crítica” entre nós131. IV
François Dosse, na Introdução de seu livro História do Estruturalismo: Estruturalismo: campo do signo (v. signo (v. I), afirma que “o êxito que o estruturalismo conheceu na França ao longo dos anos 50 e 60 não te[ve] precedente na história da vida intelectual [daquele] país”132. Segundo ele, a força do estruturalismo na sociedade francesa foi tamanha que um técnico da seleção de futebol, que “naquela época ainda não ganhara o título mundial” e “normalmente perdia as partidas internacionais internacionais””, “ao ser interrogado sobre a solução para resolver o impasse, respondeu dizendo que iria reorganizar sua equipe de maneira estruturalista”133. Nutrindo a ambição de constituir um único e vasto programa de análise e podendo ser aplicado a todas as áreas das ciências humanas, o estruturalismo foi “um movimento de pensamento, uma nova forma de relação com o mundo, muito mais amplo do que um simples método específico para um determinado campo de pesquisa”, representando um período extremamente fecundo da investigação no campo das ciências humanas, a ponto de ser considerado como “a Koïné” Koïné” de toda uma geração intelectual 134. Assim como não se pode definir o estruturalismo de forma monolítica, conforme tratado no final da parte I dessa exposição, sua periodização também não é simples. Se o ano de 1966, por sua 131 132 133 134
(SÜSSEKIND 1985:34) (DOSSE 2007:21) (DOSSE 2007:11) (DOSSE 2007:12)
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intensidade, é visto como “o momento-farol” do movimento, desde a década de 50, com a publicação de As de As estruturas elementares do parentesco (1952) parentesco (1952) e Antropologia e Antropologia estrutural estrutural (1958) (1958) de Lévi-Strauss, se assiste a uma clara progressão do método que se transformará nos anos 60 na principal ferramenta de análise das diversas disciplinas que constituem a área das Ciências Humanas. A partir de 1967, antes das manifestações que marcaram maio de 1968, Dosse aponta para “o início do refluxo, das críticas das tomadas de posição de distanciamento em relação ao fenômeno estruturalista incensado em prosa e verso por toda imprensa” francesa 135. Conforme anotado por diferentes críticos, como Eneida Maria de Souza, por exemplo, o caráter essencialista e universalista de seus pressupostos aponta para certos limites, tais como a anulação do sujeito histórico e social (emissor e receptor), em favor da cientificidade do objeto, que foram responsáveis por sua saída de cena. No início da década de 1970, assistiu-se na França ao questionamento de seus princípios por seus próprios representantes, como Roland Barthes136. Contudo, não se pode desprezar o intercâmbio instaurado pelo estruturalismo entre a linguística, a antropologia e a psicanálise que concorreu de maneira decisiva para uma abordagem interdisciplinar do texto literário. Aliás, o abandono de uma leitura fechada e autossuficiente proposta pela crítica estruturalista favoreceu o seu questionamento e as tentativas de ultrapasse de suas limitações teóricas. Para pensar as consequências do acolhimento do estruturalismo entre nós, valho-me de uma resenha publicada no dia 1º de junho de 2008, no caderno Mais! caderno Mais! da da Folha Folha de São Paulo. Paulo. Nela, Luiz Costa Lima afirmava:
135 (DOSSE 2007:26) 136 (Cf. SOUZA 1993; 2002; 2012)
Internacionalmente, o auge da reflexão teórica dos estudos literários teve um curto apogeu: concentrou-se entre 1960 e 1980. Baste-me aqui a constatação. O mesmo faço com seu complemento: do ponto de vista brasileiro, aquele apogeu teve uma repercussão mínima, sendo antes frequente a incompreensão e hostilidade que causou.137
Embora não haja nenhuma menção explícita ao estruturalismo e à polêmica dos meados dos anos 70, li a passagem transcrita como referência melancólica ao passado. Transcorridos mais de quarenta anos, acredito que seja inegável a contribuição desse discurso para os estudos de literatura. Concordando novamente com Eneida Maria de Souza, diria que, além de ter franqueado a prática de intercâmbio interdisciplinar para a reflexão crítica, o estruturalismo promoveu “a abertura do texto literário à análise psicanalítica e semiológica”, favorecendo “a ampliação do texto, pela introdução da categoria da intertextualidade, de origem bakhtiniana”, o que contribuiu, de maneira decisiva, para “a expansão do objeto de estudo da teoria, não mais confinado às obras consagradas pelo cânone ou inserido no rótulo literário”138. Por outro lado, o rigor técnico e a busca de operadores conceituais para a abordagem da literatura, tão caros aos teóricos do estruturalismo, ainda têm muito a dizer ao jovem estudante de Letras e à crítica contemporânea. Referências
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Capítulo 8
Literatura e psicanálise: confrontos A B M Universidade de São Paulo Universidade Estadual de Campinas
“Onde quer que um homem sonhe, poetize ou profetize, outro se ergue para interpretar” — essa tirada de Paul Ricoeur 1, já nos dá uma primeira entrada para uma reflexão refle xão sobre as relações instigantes entre literatura e psicanálise, entre a literatura e o inconsciente. Efetivamente, sonho, poesia e profecia são espaços onde se permite ao inconsciente aflorar; e a psicanálise é, antes de mais nada, o reconhecimento desse inconsciente. Mas antes de passar a essa busca insofrida de sentido à raiz de qualquer impulso interpretativo, e que faz com que nós todos, analistas de textos ou de gente, “nos ergamos para interpretar”, importa que se verifiquem outras confluências entre a arte da palavra e a ciência do inconsciente. Inconsciente
Desde Freud, cujas poderosas intuições não dispunham ainda do arsenal da linguística estruturada enquanto ciência, até hoje em dia, as relações entre linguagem e inconsciente se tornam cada vez mais explícitas. Sabemos da enorme fascinação do mestre de Viena pela literatura, esse lugar de exercício radical da palavra, e que, como a psicanálise, fornece uma leitura do homem, propicia um conhecimento da alma humana: 1
(RICOEUR 1977:26)
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Os poetas são aliados muitos valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais o nosso saber escolar ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da psique, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.2
— diz Freud em seu estudo sobre a Gradiva. É interessantíssimo observar que, nessa paródia à famosa tirada do Hamlet, (“há mais coisa entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã Filosofia”) é estabelecida uma fecunda distinção entre o “saber escolar” (literalmente: Schulwissenschaf ) e um conhecimento que “deixa sonhar”, que é exatamente aquele conhecimento que também acolhe a dimensão não racional, atento à cadência do inconsciente. E aqui a gente vê que se esboça uma reflexão refle xão cara a Freud, sobre o papel o papel cogcognitivo da antasia, antasia, que revelaria da realidade a sua dimensão virtual. A fantasia, comumente considerada no polo oposto do real, agente de desrealização, pode, no entanto, ter uma função cognitiva. Freud fala em “Phantasier “Phantasierendes endes Denken”: Denken”: pensar fantasiando, num testemunho de reconhecimento dessa atividade intelectual que conduz a uma percepção autêntica da realidade. “Sem especulação e teorização metapsicológica — quase disse “ antasia antasiar r ” — não daremos outro passo à frente”3, diz ele, num determinado momento de suas reflexões. Efetivamente o poeta apresenta-se como o ser a quem é dado, mais do que aos outros (“gente comum”) entrar em contato com a vida dos afetos, com o mundo mundo do id, que é o mundo mundo da fantasia e do desejo. Ele está como que mais perto das “fontes inconscientes” inconscientes” e seu 2 3
(FREUD 1990:18) (FREUD 1933:257)
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conhecimento se faz via intuição (intuição: in + tueor : literalmente, “ver dentro”). Em seu texto sobre a “feminilidade”, Freud finaliza o ensaio dizendo que quem quisesse saber mais sobre a mulher, que... consultasse os poetas. A sensação obscura de que na poesia há algo que escapa ao racional, há um “mistério” não desvendado, sempre intrigou os humanos. A veneranda (e subversiva) teoria da inspiração poética se entronca nessa inquietação: pela boca do poeta, inspirado, enthousiasmado thous iasmado (no sentido etimológico: en + theós = com um deus dentro), fala o daimon daimon,, como queria o Platão do Íon, Íon, fala a divindade; fala o Outro. Diríamos com a psicanálise: fala o inconsciente — pessoal e filogenético. O poeta é aquele que, fazendo estalar os limites do real, tenta fazer aflorar aí o princípio do prazer, tenta trazer ao plano da linguagem a imagem do desejo. Pois a arte, como afirma Freud, é uma reconciliação dos dois princípios: do prazer e da realidade; o poeta estabelece uma tensão entre a imagem do desejo, o invisível, e a realidade. Experiência de transgressão dos próprios limites, de viver vicariamente outras vidas, a literatura revela uma realidade que é, antes de mais nada, a realidade da alma humana. Psicanálise e literatura, assim, radicam nesse solo comum: leitura do humano. No entanto, o homem é um animal social — velho truísmo — e há que se levar em conta, ao lado das instâncias do indivíduo, o grupo social e os mecanismos de criação cultural. E a psicanálise aí toma seu lugar, na linha de uma interpretação da cultura. O inconsciente pode ser atemporal, mas as “formações do inconsciente” (dentre as quais avultam os sonhos e os chistes) são altamente historicizadas, culturais. Dessa perspectiva, há que se
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colocar a questão da historicização dos símbolos. As escolhas imagéticas do sonhador são buscadas no arsenal de imagens que sua civilização e sua cultura lhe oferecem; seus símbolos se originam de um sistema de crenças e de valores que dá coesão a seu tecido cultural. É a elaboração secundária (a qual junto com a condensação, o deslocamento e a figurabilidade, constitui um dos processos de elaboração onírica) que faz com que o sonho se s e aproxime de uma dada estrutura cultural. Pois existem estruturas modelares, algo como um arquétipo cultural 4. Leitura do humano, portanto, tanto no nível da pessoa, quanto no nível das grandes configurações da cultura. Há um outro aspecto ainda, desdobramento deste tópico: se literatura e psicanálise fornecem uma leitura do humano, vista do ângulo da literatura, a psicanálise propicia um instrumento de leitura... para o literário. Como se verá mais adiante, a abordagem psicanalítica é recurso de interpretação, revelação e desvendamento, e origina-se de raízes semelhantes às da leitura ideológica: assim como é nos atos falhos que aflora o inconsciente de uma pessoa, é nos detalhes insuspeitados, é nas fraturas e impasses de consciência de um texto que se capta sua ideologia — e a de sua classe social. Sonho / mito / privilégio do signicante
O sonho, dada a sua importância, mereceria todo um estudo à parte. Paradigma das produções do inconsciente, “via real para o inconsciente”, como queria Freud, de um certo viés, ele é congenial à poesia. É curioso que, no nível do significante mesmo, a poesia e o mais fundamental processo de elaboração onírica, que é a condensação, mantenham na língua de Freud um parentesco revelador: poesia é Dichtung e condensação é Verdichtung (daí, a fecunda tirada de Pound: poesia = condensação). Realmente, rende 4
(Cf. DODDS 1965)
muitíssimo colocar em paralelo os processos de “trabalho do sonho” s onho” com os processos de elaboração poética: condensação, deslocamento, figurabilidade. Lacan, retomando e desenvolvendo indicações de Jakobson, assimila o deslocamento à metonímia e a condensação à metáfora. Há um filão riquíssimo a ser garimpado, na esteira dos trabalhos de Freud sobre a Interpretação dos sonhos e sobre o chiste (sem falar nos trabalhos de Lacan), relativamente à linguagem poética. Por outro lado, no Prólogo de seu Livro dos sonhos, Jorge Luís Borges advoga a tese “perigosamente atraente” de que “os sonhos constituem o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros literários”. Interessa-me aqui, no entanto, sublinhar alguns aspectos. Em primeiro lugar, o da importância, no sonho, da carga material da expressão, de seu corpo verbal. Antes da psicanálise, os antigos pareciam saber disso. Artemidoro de Daldis, na sua estupenda Oneirocrítica do século II d.C., atribui uma importância aguda ao que ele chama de “etimologia”: “É preciso levar em consideração que não são inúteis para a interpretação os sentidos etimológicos das palavras”, diz ele no Livro III do seu Tratado 5. É importante observar-se que o que ele chama de “etimologia” seria mais pertinentemente designado, agora, por significante. O exemplo mais esclarecedor que ele oferece é o famoso sonho que Alexandre da Macedônia teve, quando se preparava para fazer o cerco à cidade de Tiro. Artemidoro relata, na Oneirocrítica, o sonho e a interpretação que dele faz o intérprete oficial do rei. Alexandre sonhou que viu no seu escudo um sátiro dançando. Aristandros, o intérprete, dividiu a palavra Satyro em sa Tyro (= Tiro é tua, em grego) e, assim, propiciou que o rei combatesse com tal garra que conquistou efetivamente a cidade. Se o intérprete se tivesse restrito ao nível do significado, 5
(ARTEMIDORO 1975)
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enveredaria por tentar deslindar problemas referentes ao sentido de sátiro como divindade lúbrica habitando as florestas (e daí, por dedução, figuração eventual da luxúria e do caráter libidinal, etc.), e provavelmente não iria muito longe. Mas a carga material da palavra, corporalmente considerada, lhe dá a pista para decifrar esse
sequência, eu via esse nome, mas invertido, escrito de trás para diante. E AMÓS invertido dá... SOMA. Na realidade, não era o sema do nome AMÓS que importava (isto é, o que “significava” esse Profeta, sua função, a conotação de denunciador das injustiças — não era essa a função bíblica do Profeta?); o que interessava era o soma 7, o corpo.
sonho, na linha da mais estrita ortodoxia psicanalítica, por sinal: o “sátiro”” significa a realização do desejo de Alexandre, a conquista de “sátiro Tiro: Tiro é tua, lhe diz o sonho. Sabemos, com Freud, que o inconsciente toma a palavra como coisa. E se refletirmos sobre as elaboradas (por vezes, sofisticadíssimas; por vezes, absolutamente primitivas) operações postas em curso para, fiel ao princípio da “representabilidade”, dar figuração concreta a conceitos abstratos 6, entenderemos o solo comum de onde são geradas as metáforas, a alegoria, o processo de simbolização em geral. Um exemplo pessoal poderá dar a medida da importância do significante nas produções oníricas: trata-se de um sonho com o profeta Amós — um dos profetas bíblicos esculpidos pelo Aleijadinho, naquele estupendo átrio dos profetas de Congonhas do Campo, em Minas Gerais. E sem entrar em pormenores e, sobretudo, em associações — pois não é meu objetivo aqui “interpretar” o sonho, mas apenas ressaltar- lhe um elemento (reitero: a importância do significante) —, eu via o profeta Amós, grandioso e terrível, caminhar na minha direção; ou melhor, deslocar-se, com pedestal e tudo: uma massa de pedra esculpida, em movimento. Na base da estátua, estava escrito o seu nome (como acontece na realidade, cada profeta do Aleijadinho tem seu nome gravado no pedestal). Com uma nitidez incrível, estava lá, em grossas maiúsculas gregas: AMÓS. Fixando melhor a vista, na
A palavra foi aqui, como na poesia, utilizada sensorialmente. Uma sensualidade verbal está em ação nos poetas, nessa dialética de sema sema e e soma soma,, de signo e corpo, que a palavra carrega. Pode-se dizer que na literatura, em que também “no princípio era o verbo”, o verbo se faz corpo. Tal ideia de que palavras têm corpo acarretará uma outra, que daí se infere: se as palavras têm corpo, elas terão sexo. Não é outra coisa que — ludicamente — mostra Machado de Assis em “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”, um interessantíssimo conto em que se narra a procura, um pelo outro, de um substantivo e de um adjetivo, Sílvio e Sílvia, na cabeça de uma personagem, empenhada em escrever um sermão. O modelo dessa insofrida busca amorosa é — já que se trata de um escritor eclesiástico — a celebração do amor sensual de O cântico dos cânticos: cânticos:
6
Nem em todo processo processo de simbolização simbolização,, no entanto, há há uma passagem do abstrato para o concreto: o sol, símbolo de Luís XIV é tão concreto quanto o simbolizado. (Cf. LAPLANCHE; PONTALIS s.d.: verbete “Simbolismo “Simbolismo”). ”).
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As palavras têm sexo”, diz o narrador. “Estou acabando a minha grande memória psicolexicológica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo. — Mas, então, amam-se umas às outras? Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo.8
E depois de convidar o leitor a uma subida à cabeça do cônego, ao seu inconsciente, ao “desvão imenso do espírito”, o narrador 7 8
No caso — e não por acaso — o soma era soma. (ASSIS 1985:570-573, v. II)
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mostra que é exatamente quando o escritor se permite espairecer, distrair- se e deixa de encarniçadamente procurar o adjetivo para o seu substantivo, que eles se encontrarão. Esplêndido conto e estupenda intuição machadiana de apresentar, não somente uma descrição pitoresca (e nem por isso menos pertinente, no plano linguístico) do processo de produção da linguagem, mas a percepção de que tal processo não opera só conscientemente, porém nos bastidores da consciência; e, finalmente, essa ideia genial da sensorialidade das palavras, de sua “sexualidade” — da “química”, diríamos hoje: atraem-se umas às outras, desejam- se e completam-se. E que dizer — ainda dentro do recorte da importância da palavra, na sua materialidade, da relação entre a Linguagem e o mito? Sabemos o lugar que o mito ocupa na psicanálise, e o estatuto que ele tem, semelhante ao sonho. É na Interpretação dos sonhos que são aproximados, pela primeira vez, o mito do sonho: o mito seria o sonho coletivo, enquanto que o sonho, o mito individual de cada um. Mas não somente Freud e os pensadores eruditos fazem essa articulação: uma criança pequena, muito pequena mesmo, desta maneira me contou que tinha sonhado, certa manhã, ao acordar: “Mamãe, hoje de noite foi assim: Era uma vez.... vez. ...” Pois bem: à semelhança do sonho, no mito também se manifesta a importância fulcral da palavra. Diz Cassirer 9, endossando Max Müller, que o mito é proporcionado pela atividade da linguagem. Em outras palavras: do nome se cria o mito. Isso se deveria a uma ambiguidade fundamental, inerente a toda denotação linguística: “nesta ambiguidade, nesta paronímia das palavras, estaria a fonte de todos os mitos”10. O mito é aclarado pela etimologia. Assim, a lenda das “portas do sonho”, tão cara a toda Antiguidade (CASSIRER 1976) 9 10 Cf MÜLLER, Max. 1976. Über die Philosophie der Mythologie. 2ª ed. Estrasbourg 10 Estrasbourgo o (Apud CASSIRER 1976:10)
Clássica, poderia ser “explicada” através do recurso da conexão com a linguagem: a palavra gera o mito. Formulada pela 1a vez no Canto XIX da Odisseia, por Penélope, “a teoria” segundo a qual os sonhos passam ou pela porta de chifre (e se realizam) ou pela de marfim (e são falsos) tem a aparente aleatoriedade de suas metáforas “resolvida” por um trocadilho que se estabelece no grego, entre keras (chifre) e krainein (realizar-se) de um lado, e entre elephantion (marfim) e elephairomai (enganar), de outro. Levando-se em conta o imperativo da representabilidade, como figurar os conceitos abstratos “realizar-se” e “enganar”, senão através do recurso ao significante, apelando para as palavras assonantes11? Como dar conta de representar a possibilidade da realização dos sonhos, a não ser recorrendo à palavra “realizar-se” tomada na sua materialidade, no jogo a que keras (chifre) se presta, na sua interassonância com krainein (realizar-se)? Da mesma maneira, como figurar “o que engana” e ngana”, sem apelar para o significante de elephairomai (enganar), romai (enganar), intervocado por elephantinon (de marfim)? O curioso é que os comentaristas helenistas eruditos, quando tratam desses versos, sempre apõem uma nota, em que invariavelmen invariavelmente te se apon aponta ta para a “puerilidade desses jogos de palavras, que os gregos tanto admiravam...” 12. Mas os gregos, e, na esteira dos gregos, Freud (O ( O C Chiste histe e suas Relações com o inconsciente: inconsciente: essa obra capital da psicanálise, da linguística e da literatura) estão aí para provar que jogo de palavras é ponto fulcral, em que Linguagem e inconsciente se travejam. Com efeito, Freud declara que seu livro O Chiste e suas Relações com o inconsciente constitui inconsciente constitui “uma primeira tentativa de aplicação do método analítico a questões de estética”13. E embora não dispondo 11 12 12
13
(Cf. MENESES 2002:41-63) . Por exemplo, exemplo, Victor Bérard, autor de uma alentada alentada Introdução à Odisseia, de três volumes, chega a contestar a autoria dos versos que dizem respeito à alegoria das Portas do Sonho, considerando considerando-os -os uma interpolação posterior: “Comment en 562-569 attribuer au Poète la paternité des ridicules calembours sur les deux Portes des Songes...?” (Cf. BÉRARD 1933:137, t. III) (FREUD 1969)
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de categorias (e de terminologia) da linguística estruturada enquanto ciência, suas considerações sobre o Witz e o material que ele tão generosamente generosamen te elenca e apresenta (exemplos (exemplos com que ele parece di vertir-se imensamente, imensamente, por si sinal) nal) constituem constituem uma base fundamental fundamental para o estudo dos jogos de palavras, do artesanato verbal que embasa
no som, interagem no nível de significado, e dessa interação saem modificados, enriquecidos, interpenetrados. Exemplo de mais um extraordinário jogo verbal é oferecido por outra canção de Chico Buarque, “Cala a boca, Bárbara”, que também integra a já referida peça de teatro Calabar, sobre a personagem da
o fazer da poesia. Discriminado do terreno específico do humor, o jogo de palavras identifica-se com o próprio fazer poético. Com efeito, o trocadilho, considerado por Jakobson, junto com a paronomásia, como “a rainha das figuras de estilo”, na realidade é um jogar com o significado, parecendo lidar com os significantes. significantes. Trata-se de um jogo verbal, que brinca com o termo não enquanto portador de significado, mas enquanto som. No entanto, o trocadilho só ganha sentido quando “revela perfis dos significados” (como quer Husserl ), ), quando se é levado a sentir melhor a riqueza dos significados:
História do Brasil Colônia, estigmatizado como o traidor. Calabar, que teria traído os portugueses aliando-se aos holandeses, ao iniciar-se a canção de Chico, já está morto e esquartejado, executado pelos portugueses, que impuseram a proibição de pronunciar o seu nome. Mas restou sua mulher, Bárbara, que é quem canta a canção, e em quem ele está intensamente presente. Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o ele a que refere. No entanto, é esse nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelação, à força da repetição quase obsessiva do refrão:
Éramos nós
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CALA a boca, BÁRbara > CALABAR
estreitos nós enquanto tu és laço frouxo
— diz a belíssima canção “Tira as mãos de mim”, da peça Calabar de Chico Buarque e Paulo Pontes. Trata-se da fala de Bárbara, viúva de Calabar, dirigindo-se ao homem que denunciara Calabar, e referindo-se à sua ligação apaixonada com o herói. Trocadilho expressivo criado por paronomásia, aqui o primeiro nós é pronome pessoal, enquanto que o segundo é substantivo. Esse significado de “laços apertados” que traduz o segundo nós contamina, num certo sentido, o primeiro termo, revelando-lhe uma outra dimensão: eu + ele num vínculo intenso: nós. A metáfora do 2º termo faz com que o 1º seja redefinido. Os dois nós, semelhantes, ou, melhor, idênticos
CALABAR: aquilo que Bárbara silencia, é o que reponta, com força e realidade. Impõe-se uma técnica psicanalítica: no não dito, descobrir-se o dito. Ou: no “inter-dito” “inter-dito”, descobre-se o dito. Interdito porque foi interditado (por injunções da censura) e interdito porque está dito entre as sílabas das palavras que constituem o refrão. O nome proibido continua a ressoar, no tecido da linguagem. O essencial é aparentemente omitido, mas ele está lá, latejando (latente...) no coração do discurso. A partir d aí, a própria palavra Calabar, rein ventada, passa a condensar em si o “cala a boca” que estigmatiza a peça — e os tempos que a geraram. Efetivamente, não podemos nos esquecer de que essa peça, Calabar, foi escrita no início da década de 70, nos “anos de chumbo” da ditadura militar brasileira, auge da repressão, em que a censura proibia coisas, e proibia os jornais de
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notificarem a proibição. Há aqui uma condensação, uma sobreposição de tempos: o tempo do Brasil Colônia (século XVII), em que vivia a personagem, e o tempo de enunciação — déc década ada de 70 do século XX, quando foi composta a canção . As linhas de força do solo social em que foi engendrada a peça estão todas lá: a repressão, o amor guerrilheiro, o silêncio imposto. Impõe-se aqui o movimento de circulação entre a parte e o todo — de que fala Spitzer (de que tratarei mais adiante), e em que, por sinal, uma “leitura psicanalítica” necessariamente se enganchará com uma “leitura social” s ocial”,, na boa escola da estilística. Mas volto ao texto da nossa canção: doravante, aqueles que a lerem/ouvirem incorporarão o “cala a boca” ao nome de Calabar. Linguagem de condensação: linguagem da poesia. Assim, vemos que o poder que o poeta tem de lidar com a palavra faz dela um instrumento de desvendar a realidade, de romper o silêncio. Mesmo sob censura, Calabar sobrevive14. Calabar é cobra-de-vidro: uma vez partido, seus pedaços se recomporão por força da poesia. Esse corpo esquartejado, cujo despedaçamento é mimetizado pela fragmentação em sílabas a que o nome do herói se vê submetido (pelo mesmo poder aniquilador que o executara), restaura sua unidade plena através da fala poética, sob o influxo de Dionísio. Poderia haver algo de mais órfico 15 do que essa dialética de despedaçamento e unificação? Por outro lado, tendo-se em vista o tempo da enunciação, época de repressão, da ditadura militar, que levou à fragmentação da sociedade e, no limite, ao aniquilamento de seres humanos, podemos dizer, como Drummond (referindo-se à outra ditadura, anterior, a do Estado Novo), que esse é “um tempo partido, de homens partidos” 16. 14 15 15 16
(Cf. MENESES 2002) A paixão de Dionísio é isso: o deus despedaçado e ressurgido em sua plenitude ; o pressentimento, nesse culto sempre renovado, de uma unidade restaurada. (ANDRADE, 1987:120)
CALA a boca BARbara: o nome restaurado na sua unidade supõe um trabalho. A uma técnica propriamente psicanalí psicanalítica tica (descobrir, no manifesto, o latente; revelar o interdito) associou-se um procedimento analítico literário — uma espécie de leitura anagramática, como queria Saussure: de ver “palavras sob as palavras”, a descoberta de fragmentos, como peças de um mosaico, que o analista rearranjará, e que, numa outra sequência, cobrarão sentido — um revelador sentido. Leitura psicanalítica? literária? — leitura desvendadora, atenta à carga corporal, à carga concreta, material, da expressão. É uma interpretação em que se vai do texto à sociedade em que ele foi engendrado, e daí se volta ao texto; em que se flagra um movimento — circular — entre a parte e o todo. A Interpretação
E assim eis-nos de volta reconduzidos à questão que subjaz à citação de Ricoeur, com que iniciei este texto: “Onde quer que um homem sonhe, poetize ou profetize, outro se ergue para interpretar”17. Efetivamente, sonho, poesia e profecia são ações humanas imantadas pelo desejo — e em que entra em jogo o inconsciente. Com efeito, dentre os denominadores comuns mais significativos entre o ofício de um crítico literário e de um psicanalista, que venho ressaltando aqui, o trato com a palavra palavra como matéria-prima; e a práxis da interpretação. Com efeito, literatura e psicanálise lidam com exegese; são horizontes da hermenêutica. O verbo grego hermeneuein neuein significa significa exprimir o pensamento pela palavra, interpretar — isto é, agir como Hermes, o deus mensageiro: aquele que leva as mensagens dos deuses entre si, ou entre os deuses e os homens; que promove as trocas e 17
(RICOEUR 1977:26)
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a comunicação; protetor dos viajantes, deus das estradas, habitando as encruzilhadas (também as dos significantes e dos significados...); o elo, o mediador (inter ( inter -prete). É importante — ascendendo ao nível mítico, nos determos de termos um pouco nessa figura fascinante e complexa desse deus que é consi-
hermetismo e da alquimia. E não podemos nos esquecer de que a “função mercurial” de que falam os alquimistas é a que leva à transformação (da matéria vulgar em ouro). Numa síntese feliz: “Hermes é ao mesmo tempo o deus do Hermetismo e da Hermenêutica, do mistério e da arte de
derado, assim como Dioniso, o menos olímpico dentre os imortais, e a quem Zeus, na Ilíada Ilíada diz: diz: “Hermes , tu, entre todos, gostas de servir de companheiro a um mortal”18. Ainda criança de berço, diz o mito, ele furtou o rebanho de seu irmão Apolo, daí ter-se tornado também deus dos ladrões: para ele, inexistem fronteiras, ou cercas, ou fechaduras. É também o patrono dos comerciantes: Merc Mercúrio, úrio, seu nome romano, por sinal, tem o radical “merc” (de merc mercado, ado, co comérc mércio, io, das relações de troca). Tendo inventado a lira , ele a dará a Apolo, em troca de outras vantagens para si. Caracterizado por uma extrema mobilidade (como o indiciam suas sandálias aladas), é o símbolo de tudo quanto implica em astúcia e ardil. “Não há nele nada fixo, estável, permanente, circunscrito nem fechado. Ele representa, no espaço e no mundo humano, o movimento, a passagem, a mudança de estado, as transições, os contatos entre elementos estranhos”19. No Hino homérico, homérico, ele é apresentado como o “dispensador das riquezas”,, doador de dons, aquele que põe a descoberto os tesouros. riquezas”
decifrá-lo”21. Com tantos (e às vezes contraditórios) atributos, se há em Hermes algo que o tipifique sobremaneira, insisto, consiste na questão da circulação, da troca — tanto no âmbito do comércio, quanto no âmbito do discurso. Ele promove a comunicação, provoca a circulação: é a função mercurial da palavra. Aliás, é Platão que n’ O Crátilo não Crátilo não apenas faz derivar Hermes do termo grego que significa “intérprete”, como lhe assinala uma relação privilegiada com a palavra22. Esse plano de fundo mítico é importante por revelar o quanto a interpretação nos situa num terreno movediço — mais precisamente, “mercurial”. Não há nada de fixo, imutável, para sempre estabelecido. Não há receitas. É nessa postura mercurial, tentando “trazer à luz tesouros ocultos”, é sob o signo de Hermes, com toda sua riqueza de atributos, que qualquer reflexão sobre a interpretação deve ser feita.
Tendo o domínio das ciências ocultas, ele se orienta na escuridão, guia as almas dos mortos ao Hades (é o Hermes Psicopompo), transitando, assim, entre espaços diversos. Isso, para Eliade20, “reflete em última instância uma modalidade do espírito: não somente a inteligência e a astúcia, mas também a gnose e a magia”. Hermes Trimegisto (de tri + mega: três vezes grande) sobreviveu através do
Interpretação literária / interpretação psicanalítica
18 (HOMERO Ilíada, Canto XXIV, Vs. 334-335) 19 (VERNANT 2002:189-241) 20 (ELIADE 1976:288-289, v. I)
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Dito isto, a questão fundamental deste ensaio se explicita: o que hah a veria de comum na escuta de uma pessoa, e na escuta de um texto? Diante de um sonho, de uma poesia ou de uma profecia, como agimos aqueles, analistas ou críticos literários — hermeneutas — que nos “erguemos para interpretar”? 21 22
(CHEVALIER: GHEERBRAN GHEERBRANT T 2002: verbete “Hermes”) (PLATÃO 1988:407 ss.)
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Vou me centrar numa questão axial do fazer hermenêutico e ancorar minhas reflexões nas ideias de um linguista e crítico literário do século passado, Leo Spitzer, mestre da Estilística, que nasceu em Viena e viveu entre os anos de 1887 e 1960, participando por sinal do mesmo caldo cultural em que se gestou o pensamento freudiano. Para ele, a literatura é o documento mais revelador da alma de um povo; e há nas suas reflexões e nas suas interpretações de obras literárias, elementos que aproximam instigantemente a sua abordagem de uma práxis psicanalítica. Aliás, a pergunta que subjaz à sua abordagem da literatura é: pode-se é: pode-se definir definir a alma de um determinado escritor através de sua linguagem particular? E a “alma” de sua época? Seu estudo “Linguística e História Literária”23, sintetiza algumas de suas ideias teóricas de uma maneira incompleta; efetivamente, é preciso ler suas análises 24 — algumas extraordinárias — para termos ideia de como ele operava. Pois falar de “método” interpretativo é uma empreitada difícil, no caso de um autor que declara peremptoriamente que “método é vivência” ( Method ( Methodee is Erlebniss Erlebniss), ), e que opera a contrapelo de qualquer técnica preestabelecida, de qualquer receita, de qualquer modelo fixo de abordagem: para ele , cada texto postula a sua maneira de ser acessado, impõe ao analista uma aproximação única, somente a ele adequada, e que absolutamente não serviria para um outro. Assim como não há receitas a se “a “aplicar” plicar” no manejo de uma sessão analítica, diante de um paciente em carne e osso e sofrimento, não há uma “bula’ para a análise e interpretação de um texto literário. No entanto, repontam algumas invariantes, caracterizadoras do jeito de Spitzer trabalhar, e que são norteadoras. E que — como já referi — estampam um instigante “ar de família” com a psicanálise. 23 (SPITZER 1968) 24 Como aquelas, por exemplo, publicadas em SPITZER (1970) 24
O detalhe
A principal dessas invariantes talvez seja a atenção ao detalhe, detalhe, dentro do recorte de uma certa concepção de estilo enquanto “desvio”. Não se trata de uma transgressão grosseira de uma norma, mas de algo que particularize a linguagem, que a singularize: o uso de uma determinada expressão, de um determinado recurso literário e estilístico, que os historiador historiadores es da literatura limitavam-se limitavam-se somente a registrar, registrar, mas do qual Spitzer propõe que se remonte às causas latentes. Spitzer tinha o hábito de sublinhar as expressões que lhe chamavam a atenção num texto por afastar-se do uso geral, ou por uma particularidade qualquer; e sucedia muitas vezes que os sublinhados, confrontados uns com os outros, pareciam oferecer certas correspondências, criando-se uma espécie de rede, de articulação subterrânea entre eles. É assim que ele se põe a estudar 25 um romance de Charles Louis Philippe, e repara no uso particular das conjunções causais “ parce que” que”, “à cause de” de”, ““car car ” (“porque”, “por causa de”, “em consequência de”, de”, “pois”), extremamente disseminadas em e m seu texto. E chega à conclusão de que na realidade as “razões” que essas causais veiculavam careciam de validade objetiva, ou: que todas as causais recobriam falsas razões. Pois bem, pergunta-se Spitzer, essa enorme profusão de conjunções causais no estilo desse escritor — na realidade, “falsas causais” — deveriam ter sido originadas por algo; e aí teríamos a pista da Weltanschauung do do autor, alimentada, por sua vez, por algo presente na sociedade. C. L. Philippe olha como o mundo funciona sob a aparência aparência de de uma lógica objetiva (ou sob a aparência da justiça) — o que remontaria, continua Spitzer, a um fatalismo “de seres anquilosados em seu desenvolvimento por forças sociais inexoráveis”26. Esse fatalismo traduzido pelas “falsas causais” 25 26
(Cf SPITZER 1968:23 1968:23 et seq.) seq.) (SPITZER 1968:24)
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seria o traço de época da sociedade francesa dos inícios do século XX — do qual o escritor se faz o porta-voz. Assim, diz Spitzer, passamos da linguagem ou estilo e stilo à “alma do poeta”, poeta”, e daí, ao seu tempo. Ou: do “traço de estilo” passou-se ao “traço de época” época”.. Flagra-se, assim, um impulso de historicização de uma abor-
respectivos textos, tais como a ausência ou presença de adjetivos, ou a utilização ou não de orações subordinadas. Todos sabemos da função dos adjetivos, de convocar o mundo dos sentidos, atribuindo à realidade forma, textura, cores, sons, volume. Pois bem, Auerbach aponta a ausência de adjetivos no texto bíblico (onde “burro”, “lenha”,
dagem, ou melhor, o uso de categorias sociais para analisar um fenômeno estilístico. É importante assinalar que esse movimento do traço de estilo ao traço de época implica na percepção de uma circulação permanente entre a parte e o todo, entre o “detalhe” e algo de maior que o ultrapasse. Pois bem, a ideia de que a literatura é o documento mais revelador da alma de um povo; de que se consegue compreender o “espírito de uma nação” através das obras de sua literatura; e de que há que se fazer a passagem de um “traço de estilo” para um “traço de época” — tudo isso que é a marca spitzeriana, será a proposta que seu grande discípulo, Erich Auerbach, vai realizar, de uma maneira grandiosa, em Mime em Mimesis sis27, um dos livros mais importantes da crítica literária de todos os tempos. Auerbach parte dos textos fundadores do mundo grego e do mundo hebraico, de cuja confluência se gerou a civilização ocidental. Com efeito, no capítulo intitulado “A cicatriz de Ulisses” desse livro extremamente instigante, ele vai confrontar dois textos igualmente épicos, igualmente antigos (datando ambos
“faca”, do texto do sacrifício de Isac, por exemplo, são apresentados na sua nudez substantiva), contrapondo-se à pletora de epítetos do texto homérico (onde o mar é cor de vinho, Atena tem olhos verdes, a espada é tauxiada de prata, etc.) e daí infere, por exemplo, a sensorialidade do mundo grego, antropocêntrico, contraposto à transcendência do mundo bíblico. Auerbach aponta o modo de apresentação da divindade no texto hebraico, (uma voz, carente de forma, sem descrições, sem demarcações espaciais), um Deus oculto; e a confronta com os deuses homéricos, tão cuidadosamente descritos nas suas particularidades e aparências. De uma análise estilística, e, repito, partindo de detalhes (que abrangerão evidentemente outros elementos), o autor chega à ideia da transcendência do Deus único, que é o Deus judaico, contrastando, reitero, com a sensorialidade e o antropocentrismo do mundo grego. Mostra como o estilo, os traços estilísticos revelarão, do lado hebraico, o mundo do mistério, o efeito sugestivo do tácito, o aprofundamento do problemático; de outro lado, a realidade totalmente iluminada e
das proximidades do século IX a . C .), e igualmente fundadores: a Odisseia e o Gênesis Gênesis (a (a saber, um trecho da cena do Canto XX, o reconhecimento de Odisseu pela ama; e o texto d’“O Sacrifício de Isaac”, da Bíblia Bíblia). ). Através de uma análise estilística, partindo de um detalhe, ele vai chegar à caracterização das duas culturas que geraram aquelas obras: respectivamente, a grega e a bíblica. É assim que ele aponta elementos aparentemente secundários que singularizam os
desvendada ou desvendável do mundo helênico. Em outros termos: transcendência x imanência; monoteísmo x politeísmo; mundo do mistério x universo totalmente explicável, encantamento sensorial x tensão conflitiva. Tudo isso, através de detalhes.
27
(AUERBACH 1971)
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O Círculo do Conhecimento
Voltemos, então, ao seu mestre, a Spitzer e a suas considerações teóricas relativas ao método hermenêutico que ambos praticam.
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Diz Spitzer que o ato interpretativo se realiza num movimento circular do conhecimento, esse movimento (mercurial!) entre o detalhe e o conjunto, um vai e vem entre a parte e o todo. Trata-se do “Círculo do Conhecimento C onhecimento”” (“Zirkel im Verstehen Verstehen””28) , ou “Círculo Hermenêutico” ou “Círculo de Schleiermacher”: a ideia de que “o conhecimento não se alcança somente por progressão gradual de um a outro detalhe, mas por antecipação ou adivinhação do todo, porque o detalhe só pode ser compreendido em função do todo, e qualquer explicação de um fato particular pressupõe a compreensão do conjunto”29. Retomando o exemplo da análise de Auerbach de “A cicatriz de Ulisses”,, a atenção focada nos detalhes dos textos homérico e bíblico, Ulisses” respectivamente, deve se deslocar para o todo; e é o conhecimento
retornar ao detalhe, para validar a “impressão”, conciliando essa descoberta com o espírito geral da época. Flagra-se assim movimento de vai e vem e um impulso de historicização historicização da abordagem, abordagem, ou melhor, melhor, o uso de uma visada v isada sociológica para analisar um fenômeno estilístiestilístico individual. Vemos, assim, em que medida a estilística spitzeriana se engancha com a psicanálise e com a Sociologia.
que o crítico e analista tem desse todo ao — texto, no caso, asressignificação culturas grega e judaica — que lhe permite, voltando uma dos múltiplos epítetos e da profusão de orações subordinadas no texto grego, em face da secura do bíblico. O problema é que o primeiro passo, do que dependem todos os demais, nunca pode ser prefigurado. Está aí previamente, e nos é revelado pela emersão à consciência de um detalhe, que nos chama a atenção junto com a convicção de que ele guarda uma relação fundamental com o conjunto. Assim, teríamos na marcha spitzeriana os seguintes momentos: momentos: perceber o desvio estilístico (sempre, repito, repito, um detalhe); qualificar sua significação expressiva; voltar ao todo do qual esse texto faz parte (seja a obra toda do autor autor,, seja, mais amplamente amplamente ainda, a época); inferir do detalhe algo que está presente no todo;
creve um capítulo, “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, que trata da emersão, por volta do final do século XIX, de um modelo epistemológico, (um paradigma) no âmbito das ciências humanas. E ele aponta isso, muito especificamente, nos domínios dos estudos sobre a autenticidade de uma obra de arte, particularmente da pintura: o “método de Morelli”. Efetivamente, tratava-se de uma “peritagem de estilo”, estilo”, exposta em 1874 em artigos sobre pintura italiana. 31 Morelli era um médico (que publicava sob o pseudônimo de Ivan Lermolieff), que defendia que não se podia chegar à conclusão da autenticidade de um quadro senão através do detalhe. Propunha, então, um método interpretativo centrado sobre dados marginais, considerados reveladores; uma espécie de peritagem de estilo. Por exemplo, para estabelecer a autenticidade de um quadro, importa verificar não os grandes movimentos de estrutura (isso qualquer
28
“Círculo do Conhecimento”: Conhecimento”: assim denominou Dilthey Dilthey a descoberta realizada realizada pelo lólogo e lósofo Schleiermacher. 29 (SPITZER 1968:34). Sigo 29 Sigo essa tradução espanhola espanhola do texto que, com pequenas pequenas variações, Spitzer publicou em inglês, e também em francês (com tradução de Michel Foucault), com o título de “Art du Langage et Linguistique”. 1970. In —. Études de style. Paris: Gallimard.
A peritagem do estilo ou o paradigma indiciário
Insisto ainda na importância do detalhe, na importância do aparentemente fútil, e no intento de descobrir-lhe a significação, que guardará uma relação fundamental e desvendadora com o conjunto da obra (e da sociedade em que foi engendrada essa obra). O historiador Carlo Guinsburg, em seu livro Mitos, livro Mitos, emblemas emblemas e sinais sinais30 , es-
30 (GUINSBURG 1989:143-178) 31 A ele Freud se ref refere ere em seu estudo estudo “O Moisés de Michelângelo”, Michelângelo”, escrito em 1913, 1913, mas publicado anonimamente anonimamente em 1914 (FREUD 1990, v. XIII).
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discípulo bem treinado poderia fazer), mas os detalhes: a unha oval ou quadrada de personagens secundárias, a forma da orelha, etc., etc. Nesse detalhe, estaria a característica do seu autor. Esses dados marginais constituíam momentos em que o controle do artista se distendia, reveladores porque escapavam à censura. Sabemos todos
fala de um “eros analítico” que movia o crítico da Estilística, uma entrega da afetividade à obra analisada. Nesse mergulho em posturas hermenêuticas, o que falar da natureza do conhecimento engendrado na empreitada analítica? Que “conhecer” é esse, a que leva o processo hermenêutico? hermenêutico? Creio que
o quanto, na realidade, os nossos pequenos gestos, espontâneos, revelam mais sobre uma pessoa do que uma atitude formal, prevista, conscientemente preparada. Como se vê, estamos em águas de confluência entre literatura e psicanálise.
se impõe aqui uma distinção entre saber (latim scire, presente , por exemplo em “ciência”, em exemplo em inconsciente inconsciente)) e conhecer (latim cognoscecognoscere, re, de cum + gnoscere), gnoscere), em que ressalta o prefixo co co,, do latim cum cum.. Efetivamente, “eu conheço”, (latim cognosco cognosco,, que, aliás, significa também “reconhecer”) é do radical grego de gnosco de gnosco35, mas agrega o prefixo cum: cum: de comunicação, de partilha, de experiência conjunta. Sem comunhão, no limite não haveria conhecimento possível. Ou, como canta Renato Russo (em Monte (em Monte Castelo): Castelo): “É só o amor que conhece o que é a verdade” — uma outra maneira de dizer que Logos e Eros confluem no processo do conhecimento do humano, do qual a Interpretação é uma das modalidades. E será ainda necessário pontuar que o “eros analítico” que Starobinski vê em ação em Spitzer receberia, na psicanálise, o nome de “transferência”?
Método?
Tentando teorizar sobre seu método, Spitzer nos desconcerta. Depois de dizer que “Método é Vivência” (fórmula que ele tomou emprestado de Gundolf) — irredutível, portanto, a qualquer receita, a qualquer “técnica”, “técnica”, a qualquer sistematização, e advertindo-nos de que não há garantias, ele nos brinda com outra frase f rase de efeito (no entanto, extremamente verdadeira): esse modo de operar, seu método, é “o resultado do talento, da experiência e da fé” 32. É a pessoa toda do analista (de texto ou de gente) que entra em campo, não somente um repertório de um saber teórico. Ele conta que, como um aluno principiante, por vezes se sentiu num estado de perplexidade diante de um texto, até que... “Repentinamente uma palavra, um verso, se
Efeito terapêutico da Palavra
Um observação final, no entanto, se impõe: no paralelo que vim montando entre Interpretação literária e Interpretação psicanalítica,
destacam, e sentimos que uma corrente de afinidade se estabeleceu agora entre nós e o poema” 33. Como se vê, o papel aí reservado à sensibilidade, à intuição, é inequívoco; mas também ele assinala a necessidade de uma “corrente de afinidade”, afinidade”, de uma “sintonia” “sintonia” a ser estabelecida entre um analista literário e o seu texto. Com efeito, Starobinski, num dos mais completos estudos feitos sobre Spitzer34,
sempre ressaltando as semelhanças, há que se fazer uma distinção; uma discriminação entre a práxis do crítico literário e a do psicanalista. É que no caso específico da psicanálise, há uma intenção terapêutica no uso da palavra. E seria interessante mostrar essa função em práticas culturais, digamos, paraliterárias, que não são consideradas literárias propriamente ditas. Pois podemos procurar
32 33 34
35
(SPITZER 1968:50) (SPITZER 1968:50) (STAROBINSKI in SPITZER SPITZER 1970) 1970)
313
O grego gignosco signica conhecer, aprender a conhecer, reconhecer, e também ter relações íntimas: “conhecer varão” é expressão clássica de uma mulher ter relações sexuais, como se registra na Bíblia.
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mais longe e mais para trás, na história da humanidade, a utilização da palavra com efeitos terapêuticos — apanágio, nos nossos tempos, da psicanálise e das terapias analíticas. Assim, é o caso de aludir a certos processos de cura xamanística, que, aliás, estabelecem com a psicanálise mais de um vínculo. Lévy-Strauss relata, no capítulo “A Eficácia Simbólica” de seu li vro Antropologia Estrutural 36 um procedimento dos índios Cuna do Panamá, por ocasião dos partos difíceis: o xamã canta para a mulher grávida, diz palavras ao seu ouvido, e assim o nascimento da criança é facilitado. Trata-se, como observa o antropólogo, “de uma medicação puramente psicológica, uma vez que o xamã não toca no corpo da paciente, paciente, nem lhe administra remédios; remédios; mas, ao mesmo tempo, é colocado diretamente e explicitamente em causa o estado patológico e seu centro: diríamos antes que o canto constitui uma manipulação psicológica do psicológica do órgão doente, e que é desta manipulação que a cura é esperada”. Manipulação psicológica: metáfora expressiva para o processo psicanalítico. Mas, continua Lévy-Strauss: diz ele que o xamã fornece à sua doente uma linguagem: “E é a passagem a esta expressão verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma forma ordenada e inteligível uma experiência atual, mas sem isso, anárquica e inefável) que provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da sequência da qual a doente sofre o desenvolvimento”37. É interessante referir que o que era cantado ao ouvido da parturiente eram cantos alusivos a mitos de sua etnia, mitos cosmogônicos; não eram cantos aleatórios, mas relativos à criação do mundo, nesse momento em que, com o nascimento de uma criança, cria-se um mundo. Há aqui também um movimento, por parte do sacerdote da tribo, de passagem do individual para 36 37
(LÉVY-STRAUSS 1958:211 et seq.) seq.) (LÉVY-STRAUSS 1958:218.)
o social, da parte (o nascimento de uma criança) — ao todo (a criação do mundo). Dando razão ao Riobaldo de Grande Sertão: Veredas,, de Guimarães Rosa, quando diz “Uma criança nasceu: o Veredas mundo tornou a começar”. Estamos aqui em pleno universo da cura pela palavra. Mas deixando de lado as práticas xamanísticas, poderíamos remontar, mais uma vez, aos gregos, nesse universo de uso da palavra com propósitos terapêuticos. Na tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, há um diálogo38 entre Prometeu e outra personagem, Oceano, a quem Prometeu fala da cólera de Zeus, e Oceano replica com uma referência aos iatroi lógoi39, “palavras-medicina”: Prometeu : [...] eu, por mim, irei esgotando a minha desventura
até que arouxe a cólera no coração de Zeus. Oceano: Não compreendes, Prometeu, que para tratar a doença
cólera há as palavras-medi cina?”
Sim, as palavras curam. Nessa mesma linha, um texto curioso e interessantíssimo do Fédon de Platão40 fala que há terrores no homem adulto que brotam da criança que ele foi. Trata-se de um diálogo entre Sócrates e Cebes. E para escorraçar tais medos, diz Sócrates que é preciso um “encantador” “encan tador” bem sucedido e uma “encantação” “encantação” frequente, até que a criança seja acalmada pelos encantamentos (Fédon (Fédon,, 77 e). O termo grego para encantador, epodôs epodôs (de (de epi epi = = por cima de + ode = ode = canto) remete, literalmente, àquele que “canta “canta por cima de” outro alguém. Mas nada substitui o contacto direto com esse diálogo instigante, na sua literalidade 41: 38 39 40 41
(ÉSQUILO 1989:27) iatros = médico; logos = palavra. (PLATÃO 1972) (PLATÃO 1972:87-88)
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Cebes: — “Admitamos que dentro de cada um de nós há uma
criança a que estas coisas azem medo. Por isso, esorça-te para que essa criança, convencida por ti, não sinta diante da morte o mesmo medo que lhe inundem as assombrações assombrações”. ”. Sócrates: — “Mas é preciso então que lhe açam encantamentos42
todos os dias, até que as encantações o tenham libertado disso uma vez por todas”. Cebes: — “Mas Sócrates, onde poderemos encontrar contra esse
gênero de terrores, um bom encantador , , uma vez que estás prestes a deixar-nos?” Sócrates: — “...Dirigi vossa busca por entre todos esses homens, e
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clínica : do verbo grego klíno clínica: klíno,, inclinar-se sobre... para cuidar. Relativamente a isso, do lado da literatura — penso nas civilizações logocêntricas — que não se deduza que o confronto do crítico literário com o seu texto seja uma fria tarefa acadêmica, de gabinete e distanciada. Pois na linha do “eros analítico” de que falou Starobinski, a tarefa de um crítico literário intérprete de textos é igualmente um encontro interpessoal — mediado pela palavra escrita. Na busca insofrida de um conhecer, de um cum-gnoscere cum-gnoscere,, travejando sensibilidade e inteligência, trata-se, aqui também de um movimento de comunhão profunda com o humano, colocando em circulação tesouros ocultos — mercurialmente.
na procura de um tal encantador, encantador, não poupeis trabalhos nem bens, repetindo convosco, a cada momento, que nada há em que possais
Referências
com mais proveito gastar vossa ortuna”.
Como se vê, aqui também chegamos muito perto da psicanálise — inclusive com a alusão ao esforço na procura do profissional, e ao gasto da fortuna que isso implica para seus adeptos... Mas, brincadeiras à parte, chegamos a práticas terapêuticas que utilizam a palavra como matéria-prima; a uma práxis, entre os gregos do século IV a.C., de um procedimento “clínico” com que se liberta de seus terrores a criança que mora em cada um de nós: uma “encanta-
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42
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Capítulo 9
Estética da Recepção e do Efeito ou há um leitor no horizonte? C S G S Universidade Federal da Paraíba
Este capítulo tem por objetivo apresentar a Estética da Recepção de Hans R. Jauss, mas não de modo isolado, e, sim, inserindo sua articulação com a teoria do Efeito Estético de W. Iser. Isto, porque depreendemos que pensar a primeira sem a segunda é dicotomizar o pensamento tanto de Jauss como o de Iser, não permitindo uma compreensão mais global do projeto heurístico da Estética da Recepção. É preciso também especificar que há a elaboração de um zoom na noção de leitor, dada a importância que a configuração zoom teórica ora estudada considera e o ponto de vista entre os níveis psicológico e literário que a autora se firma fi rma já anunciados em Santos1. 1. Estética da Recepção: como o leitor ( não) é visto
A universidade não passou ilesa ao período de intensas transformações políticas e intelectuais que envolveram a sociedade ocidental nos anos 60. Assim, a Universidade de Constança, fruto da reforma educacional na Alemanha, foi um terreno fértil para a conferência de abertura de Hans Robert Jauss do ano acadêmico de 1967. O que é e com que Fim se estuda História da Literatura? 2 foi proferida por Jauss em 13 de abril daquele ano. Nela, o autor apresenta 1 2
(SANTOS 2009) Mais tarde, esta aula aula rece recebeu beu um novo título A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária e foi incluída numa antologia de Jauss (1994).
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os dois modelos vigentes até então de se fazer história da literatura e denuncia-os como simples listas de obras carentes de qualquer indício de historicidade. Alterar esse quadro, propondo uma história da arte fundada em outros princípios, incluindo a perspectiva do sujeito produtor, produtor, a do consumidor e sua interação mútua, seria, por-
no foco a partir do qual cumpre examinar a literatura, a estética da recepção sendo o resultado dessa virada”. Se o leitor implícito, implícito, de Iser, vincula-se às estruturas objetivas do texto, o leitor explícito seria “o indivíduo histórico que acolhe positiva ou negativamente uma criação artística, sendo, pois, responsável pela recepção pro-
tanto, o objetivo primeiro de Jauss. Para isso, somente a dimensão de recepção e efeito da literatura deveria sintetizar os dois aspectos imprescindíveis à história da literatura, a saber, o caráter estético e o papel social da arte, uma vez que ambos se concretizariam na relação da obra com o leitor. As posturas impõem a apresentação de um novo conceito de leitor, diverso da concepção marxista — para quem o leitor é parte do mundo apresentado — e do formalismo — que necessita dele como sujeito da percepção, um seguidor das indicações do texto, em busca de descobrir a forma ou o procedimento 3. Diante disso, Jauss utiliza categorias como horizontes de expectativa expectativa e emancipação emancipação para estruturar sua concepção de leitor. A primeira definida por R. Holub4 como “um sistema intersubjetivo ou estrutura de espera, um ‘sistema de referências’ ou um esquema mental que um indivíduo hipotético pode trazer a qualquer texto” e a segunda categoria — a emancipação — seria definida como a possibilidade de uma obra “ao desafiar um código vigente, oferecer ao leitor novas dimensões
priamente dita dessa”. Temos, assim, uma formulação tênue de um leitor coletivo e ideal, diluído em toda sua teoria numa tentativa de dar conta da experiência estética. Ora, se o leitor concebido por Jauss é coletivo, a definição proposta por Holub7 e utilizada por Jauss para “horizonte de expectativa” — como “esquema mental que um indivíduo indivíduo hipotético hipotético pode trazer a qualquer texto” — não nos remeteria a um leitor individual? Caso entendamos o uso do adjetivo “hipotético” como tentativa de “coletivizar” “coleti vizar” o referido leitor, então, precisamos admitir seu caráter excessivamente abstrato, dificultando sua apreensão histórica e, consequentemente, o desdobramento de pesquisas empíricas. Isto posto, algumas questões podem ser formuladas: a concepção de leitor revelada por Jauss suporta a análise por ele proposta, já que as categorias eleitas contradizem suas proposições? Não estaria o conceito, de algum modo, imbricado numa idealidade? Quais implicações seriam engendradas, por uma teoria assim delineada, para as ciências afins? É possível dar conta de uma estética da recep-
existenciais”5. É exatamente no conceito de leitor onde se situa nosso interesse para o presente capítulo, pois ele catalisa tanto a derivação de grande parte do programa postulado por Jauss, quanto a articulação com Iser. O leitor de Jauss, nas palavras de Zilberman 6, “consiste
ção, como pretendia Jauss, a partir de suas categorias definidoras de leitor? São perguntas de cunho heurístico e, por consequência, carentes de aprofundamento teórico. Segundo Zilberman8, as críticas tecidas à teoria recepcional circundam basicamente três aspectos: o conceito de leitor, a visão do texto literário e o alcance do trabalho. Entendemos tais aspectos
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(JAUSS 1994; primeira edição em 1967) (HOLUB 1984:59 apud ZILBERMAN 1989:113) (ZILBERMAN 1989:112) (ZILBERMAN 1989:114)
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(HOLUB 1984 apud ZILBERMAN 1989) (ZILBERMAN 1989)
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como inextricavelmente relacionados e a concepção de leitor pode indicar um ponto profícuo para o início de um estudo crítico com o intuito de repensar a estética da recepção, principalmente no plano teórico. Para tanto, vejamos a segunda premissa9 do programa postulado por Jauss10: A análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo que a ameaça quando descreve a recepção e o efeito de uma obra a partir do sistema de referências que se pode construir em função das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre a linguagem poética e a linguagem prática.
Como o leitor, apresentado acima, pode ser ativo na análise da experiência literária? A partir do que é formulado para ele, seria possível implantar, de forma satisfatória, o programa de ação de Jauss, tendo como base principalmente as últimas três teses — ditas sinteticamente: a consideração dos aspectos diacrônicos, sincrônicos, como também o relacionamento entre a literatura e a vida prática? A questão se respalda na tessitura de algumas críticas cr íticas possíveis à segunda premissa. Jauss constata: “a análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologismo que a ameaça”. ameaça”. Em primeiro lugar, o termo “psicologismo” é usado na tradução de Sérgio Tellaroli de A História da literatura literatura como provocação provocação à teoria literária literária (primeira (primeira 11 edição em 1967) , de Jauss, ao passo que Zilberman, em seu livro 9 10 11
O programa de Jauss divide-se em quatro premissas premissas e três teses. (JAUSS 1994:27, grifos nossos) Die Analyse der der literarischen Erfahrung Erfahrung des Lesers Lesers entgeht dann dann dem drohenden Psychologismus, wenn sie Aufnahme und Wirkung eines Werks in dem objektivierbaren Bezugssystem der Erwartungen beschreibt, das für jedes Werk im histoischen Augenblick seines Erscheinens aus dem Vorverständnis
Estética da Recepção e História da Literatura (1989), Literatura (1989), ao se referir à mesma obra e à mesma premissa, traduz o termo como psicologia. Ora, é sabido de todos que os dois termos não são sinônimos: se psicologismo refere-se à “tendência a fazer prevalecer o ponto de psicologismo vista psicológico sobre o de outra ciência, num assunto de domínio comum”12, a psicologia psicologia,, por sua vez, refere-se à ciência, cujo status status para tal foi adquirido em 1879. Não se pode, portanto, tomar um pelo outro, como o fez Zilberman. De qualquer modo, ainda que optando pela versão traduzida de Sérgio Tellaroli, a premissa mereceria uma discussão crítica. A recepção e o efeito da obra podem (e devem inclusive) fugir ao psicologismo, pois toda forma de reducionismo é danosa à construção do conhecimento, por isso, concordamos com Jauss, neste primeiro momento. Não há, todavia, na segunda parte da premissa, como escapar à psicologia, uma vez que tanto o “conhecimento prévio” como “o sistema de referências” de um indivíduo são atributos cognitivos e, portanto, psicológicos, ainda que façamos referência ao caráter coletivo do leitor. Zilberman13, ao explicar por que a análise da recepção e do efeito da obra escapa à psicologia, diz que “os elementos necessários necessários para medir a recepção de um texto encontram-se no interior do sistema literário. literário. Em vez de lidar com o leitor real, indivíduo com suas idiossincrasias e particularidades, Jauss busca determinar seu virtual ‘saber ‘ saber prévio’”. prévio’”. Esta explicação leva-nos a duas perguntas. A primeira é: se “os elementos necessários para medir a recepção de um texto encontram-se no interior do sistema literário” literário”,, onde está a
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der Gattung, aus der Form und Thematik zuvor bekannter Werke und aus dem Gergensatz von poetischer und praktisher Spache ergibt (JAUSS 1970:173-174) (grifo nosso). Cf. Dicionário Dicionário Eletrônico Aurélio Buarque Buarque de de Holanda. Holanda. (ZILBERMAN 1989:34, grifos nossos),
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ênfase no leitor? Qual é de fato a evolução dessa preconização para as anteriores? Ora, ainda que compreendamos pelas argumentações posteriores de Jauss o duplo objetivo da segunda tese, a saber, evitar, por um lado, o perigo de um retorno ao impressionismo e, por outro, seu resvalo no tão criticado imanentismo, tal tese é, no mínimo,
já se sabe) são outros exemplos exemplos de catego categorias rias passíveis de associação 15 ao conceito de leitor proposto em Jauss . Jauss, contudo, em seu texto Estética da Recepção: colocações gerais16, comenta a respeito da necessidade de recorrer às disciplinas vizinhas em busca de fundamentos teóricos para o desenvolvimento desenvolvimento
confusa. A segunda indagação oriunda da explicação de Zilberman é: se o “saber prévio” é algo determinante na experiência literária e tal “saber” tem sido considerado em várias teorias da Psicologia, sobretudo aquelas ligadas ao cognitivismo14, como dizer que a análise da experiência literária do leitor “escapa à psicologia?” O fato de Jauss, nas palavras de Zilberman, “em vez de lidar com o leitor real, indivíduo com suas idiossincrasias e particularidades”, tentar identificar o seu virtual saber prévio, não libera a estética da recepção do diálogo com a psicologia. Afinal, como é possível tecer conjecturas acerca de um termo com status status teórico teórico em outra área, e desconsiderar isso? Aliás, ainda dizer que se escapará de tal vertente? De fato, o verbo “escapar”, usado na tradução, parece bastante apropriado. Apenas para ilustrar, há, na teoria de D. P. Ausubel, Ausubel, importante teórico cognitivista, uma exposição passível de ser perfilada à compreensão do leitor proposto por Jauss. Como exemplo, podemos citar a categoria de inclusores inclusores,, proposta por Ausubel. Dito sumariamente: os inclusores referem-se ao conhecimento anterior necessário para
dos estudos concernentes à experiência estética. Ele cita contribuições de Ernst Bloch, Sartre, Lotman, Freud, entre outros. O nome de Freud parece indicar que a resistência à psicologia não é estendida à Psicanálise, pelo menos. Há, portanto, certo reconhecimento da dificuldade de abarcar tal experiência apenas de um único ponto de vista. É possível formular mais uma questão: a concepção de leitor embutida no programa de Jauss e, principalmente, na segunda premissa, como já atestou Luiz Costa Lima (2002) — a despeito da defesa do próprio Jauss e de Zilberman (1989) —, não apresenta o leitor como ideal? “Escapar”, então, à psicologia não seria aproximar-se cada vez mais da concepção de um leitor inacessível ou talvez inexistente? Dito de outro jeito: seria possível, com o programa de ação proposto por Jauss, dar conta da análise da experiência estética de um leitor “concreto”? Ou o leitor ideal não seria apenas uma saída à construção teórica? Fechar as portas à psicologia não seria delimitar bastante o espaço de desenvolvimento de uma teoria cujo
a efetivação de novas recepções. Ausubel explica como os inclusores são construídos e manejados para facilitar a recepção de novos conteúdos. A significatividade lógica (estrutura do material que não deve ser arbitrária nem confusa), a significatividade psicológica (estrutura cognitiva do indivíduo que deve conter os inclusores) e a disposição favorável (atitude para relacionar o que recebe com o que
eixo básico, o leitor, por excelência, é foco de muitas outras ciências e disciplinas complementares na tarefa de compreendê-lo? Buscar subsídios dentro da própria obra para alcançar a recepção do leitor não seria uma estratégia cuja consequência seria sua própria fossilização? É possível trabalhar com uma estética da recepção ignorando os processos cognitivos e emocionais inerentes ao ato de perceber,
14
Estudiosos como L. S. Vygotsky e D. P. Ausubel, para destacar os mais conspícuos com relação a este aspecto, têm uma construção teórica sobre isso, amplamente difundida.
15 16
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(SALA; GOÑI 2000a) (JAUSS 2002)
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receber, ler? Conquanto nosso objetivo não seja o de responder a estas questões, visto que elas fogem ao escopo do recorte teórico do trabalho em pauta, não podemos nos eximir de formulá-las e de indicá-las. Aqui elas funcionam como orientadoras da discussão, justificando, de certa maneira, nossa preocupação com o conceito de leitor veiculado pela Estética da Recepção e suas implicações. Para ilustrar a pertinência das questões levantadas até então, podemos citar a dissertação de mestrado As crianças contam as histórias: os horizontes de leitores de dierentes classes sociais. sociais . Nela, Carvalho 17 tem como objetivo “materializar a voz do pequeno leitor a partir da investigação dos horizontes de leitura de crianças de diferentes classes sociais em contexto escolar, o que implica explicitar as normas literárias e sociais constantes nas histórias literárias infantis que correspondem às suas expectativas”. expectativas”. A metodologia utilizada para a consecução dos objetivos pretendidos consistiu numa pesquisa de campo, pois, segundo o autor: “[é] aquela que melhor atinge o propósito delineado de refletir sobre a recepção do texto literário infantil”18. A asserção de Carvalho, no entanto, caracteriza-se como um raciocínio completamente tautológico, pois não justifica por que a pesquisa de campo no seu caso é a melhor. Em se tratando de um trabalho, cujo principal suporte teórico é a Estética da Recepção, a escolha metodológica precisaria, mais do que em outras situações, ser justificada. Isto porque Zilberman (1989) — em texto citado pelo autor da referida dissertação e discutido na presente tese — diz, em consonância com Jauss, não ser preciso buscar o leitor real, pois os elementos necessários para a mensuração da recepção de um texto estão contidos no interior do sistema literário. Então Carvalho precisaria justificar por que seria 17 18
(CARVALHO 2001:3) (CARVALHO 2001:18)
necessário buscar o leitor real, em sua pesquisa, em virtude de sua postura contradizer a segunda premissa postulada por Jauss. Os procedimentos metodológicos apresentados no estudo de Carvalho revelam a incoerência interna das premissas de Jauss, quando da implementaçao de seu programa. A inconsistência teórica aparece no momento da investigação e, por sua vez, só vem a exacerbar a idealidade do conceito de leitor. Não estamos, todavia, defendendo uma postura contra os trabalhos de cunho empírico, muito pelo contrário, consideramos as pesquisas de campo de grande valia tanto social quanto acadêmica, e é exatamente por isso que se faz necessário um delineamento bem planejado. Mas apenas isso não basta: o trabalho empírico deve servir não apenas para observarmos a “operacionalidade” de determinados conceitos, mas principalmente para refletirmos sobre tais conceitos. Concordamos com Gumbrecht19 sobre a oportunidade que a recepção literária contemporânea provê de investigarmos “experimentalmente, de certa forma, os atos cognitivos de leitores desprivilegiados”, no entanto, mesmo um projeto bem delineado poderá deformar “as condições de uma situação receptiva autêntica”. autêntica”. Obviamente, como lembra Gumbrecht, a existência de dificuldades e problemas metodológicos, ao invés de impedir nossas tentativas de avanço na ciência literária, deve nos alertar para procedimentos mais elaborados. Capatto20, em sua dissertação de mestrado, faz um levantamento abarcando vinte trabalhos acadêmicos não publicados em livro no período de 1980 a 2003 no país, sendo cinco teses e quinze dissertações envolvendo o tema Leitor e Estética da Recepção. A autora descreve, analisa e avalia estes trabalhos “com o objetivo 19 20
(GUMBRECHT 1998:40) (CAPATTO 2005:17)
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principal de evidenciar, a partir da amostra, o atual estado das pesquisas acadêmicas sobre o tema.” A compilação apresentada é bastante útil, pois nos dá exatamente a direção teórico-metodológica seguida pelos trabalhos, marcadamente os de cunho empírico. Em vários destes trabalhos, foi possível flagrar inconsistências de
Apesar das críticas tecidas à Estética da Recepção da maneira pensada por Jauss, ela corresponde a um avanço na teoria da literatura, sobremodo quando seus estudiosos esforçam-se por construir algo dentro do interesse genuíno de seu mentor: a partir da consideração da historicidade que perpassa as obras literárias em sua
origem teórica, reveladas na metodologia, ou antes, na diferenciação de conceitos. Entendemos, juntamente com Zilberman 21, que “a Estética da Recepção pode desembaraçar-se da academia, onde nasceu, e questionar o leitor comum, o aluno na escola, o professor no seu trabalho”, no entanto, sem abrir mão de sua lisura teórica. Em suma, tem-se observado a partir de trabalhos empíricos que os princípios definidores ou delimitadores do leitor na Estética da Recepção, da forma como Jauss os apresenta, demonstram-se ainda carentes de ajustes, todavia, conforme salienta Zilberman 22:
recepção. Como exemplo de um trabalho, cuja concreção contribui para a Estética da Recepção, em seu sentido metodológico, implicando numa maior compreensão dos seus pressupostos teóricos, citamos a tradução da tese de doutorado, publicada em livro, de Pressler (2006), intitulada Benjamin, Brasil, com um DVD incluso. Nesta obra, o autor faz um levantamento tão minucioso e criativo da recepção de W. Benjamin no Brasil no período de 1960 a 2005 que em sua interlinearidade transparecem não apenas os fios condutores da historicidade na qual se tece a recepção benjaminiana, mas igualmente a própria subjetividade de todos os leitores (teóricos e críticos), inclusive a do próprio Pressler. O período abarcado pelo livro permite ao seu autor configurar a formação da intelectualidade brasileira de forma vivamente histórica. O trabalho corrobora, neste sentido, as palavras de Borba23:
[...] no âmbito exclusivo da teoria da literatura, a estética da recepção oferece um leque de sugestões sobretudo à história da literatura, onde Jauss ancora suas principais teses, por equivaler ao
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leito sobre o qual deve fluir a ciência literária. Suplementarmente, Suplementarmente, ela colabora com a literatura comparada, a crítica literária e o
[...] o importante a registrar é o fato de a estética da recepção
ensino da literatura, todos estes, campos aplicados da teoria da
ter-se revelado uma escola que contribuiu para que a teoria da
literatura, portanto, portanto, da história da literatura, pois, como se disse e voltar-se-á a examinar, Jauss promove a integração dessas duas
literatura se repensasse enquanto disciplina, cuja função não é apenas a de balizamento de noções como: história dos movimen-
disciplinas. Como também essas áreas estão sendo objeto de
tos literários, complicação da produção crítica; sistematização
revisão e reavaliação nos últimos tempos, a explicitação da meto-
dos gêneros; organização de metodologias analíticas; descrição
dologia recepcional talvez possa fornecer subsídios à discussão e
das tendências estéticas. De fato, a ênfase sobre as circunstâncias
dar consistência a seus fundamentos filosóficos.
sociais e históricas no círculo da produção e recepção instaura um conjunto de tópicos redimensionadores do que se deveria
21 22
(ZILBERMAN 1999:16) (ZILBERMAN 1999:6-7)
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(BORBA 2003a:26)
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ocupar a teoria da literatura. [...] Pautada no construtivismo, a estética da recepção estaria contribuindo para que a teoria da literatura se formulasse pela análise dos fatores que estivessem conduzindo a um novo modo de compreensão da disciplina.
Mas onde e como convergem mais notadamente os pensamentos de Jauss e de Iser? Nesta direção, remetemos o leitor para o próximo tópico. 2. Experiência estética: revelando os sentidos
Segundo Jauss, a partir dos processos simultâneos de fruição compreensiva e compreensão fruidora (só se pode gostar do que se compreende e compreender o que se gosta, respectivamente), o significado de uma obra artística é alcançado. Somente pela valorização e resgate da experiência estética é possível apreender e justificar o caráter sócio-histórico da arte ar te (pedimos licença para a formulação de algumas questões, se não para respondê-las — porque talvez não possam nem devam ser respondidas, porquanto não é a nossa proposta, mas para incrementar o raciocínio — de fato só podemos gostar do que compreendemos? Como explicar quando ouvindo uma canção pela primeira vez num idioma não conhecido, gostamos de imediato? Ou quando, mesmo compreendendo a profundidade de um poema ou a forma inovadora como foi construído, nós não conseguimos ser atingidos por ele?). Ao atribuir prazer e conhecimento à experiência e xperiência estética, Jauss não está negando à arte sua função transgressora, pois segundo Zilberman24, a junção de prazer e conhecimento contrariaria, para Adorno, o caráter constante da negatividade de uma obra, mas, para Jauss, consiste exatamente nisto seu caráter transgressor: 24
(ZILBERMAN 1999)
contrapor-se a um código funcionaria como um estímulo para a intensificação do processo de comunicação. Ao livrar-se da opressão, a obra sendo recebida, apreciada e compreendida pelo seu destinatário, incitá-lo-ia a participar da liberdade conquistada. Aqui se faz presente o conceito de emancipação e mancipação do leitor, não apenas atestando o caráter comunicativo de sua relação com a obra artística como também revelando a função libertadora. Costa Lima25, entretanto, problematiza a caracterização da experiência estética como uma forma diferenciada de prazer, do modo como aduzido por Jauss, pois, apesar de sua considerável precisão na demonstração do conceito, não consegue, segundo o crítico brasileiro, convencer em sua conclusão. A argumentação de Lima tenta demonstrar a idealidade do conceito de leitor em Jauss. De forma sintética, teríamos: a fruição compreensiva e a compreensão fruidora, intrinsecamente relacionados, trazendo dois elementos propulsores — o conhecimento e o prazer — da experiência estética. O conhecimento, todavia, não é conceitual: “O sujeito do prazer conhece-se no outro, traz a alteridade do outro para dentro de si, ao mesmo tempo em que se projeta nesta alteridade” 26. A alteração produzida pelo conhecimento do sujeito do prazer no outro e do outro no sujeito do prazer só ocorrerá a partir do momento anterior a ela, configurado por um conjunto de expectativas, prenoções e previsões elaboradas pelo sujeito a partir de sua inserção social. Se durante a confrontação entre sujeito do prazer e a alteridade, as expectativas, previsões e prenoções forem apenas confirmadas, a experiência estética fracassa em virtude do conhecimento oriundo apenas da semelhança. Como não houve a diferença, não aconteceria a experiência estética que favoreceria, inclusive, a emancipação 25 26
(LIMA 2002) (LIMA 2002:47)
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do leitor. Se Jauss afirma ser a experiência estética responsável pelo caráter inovador da obra, isto indicaria um leitor com amplo conhecimento prévio para ultrapassá-lo durante a experiência, garantindo tanto sua emancipação quanto a novidade da obra.
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não se pode teorizar sobre os seus elementos causadores. Lima 28 depreende: Como, ademais, não podemos esperar leitores tão sensíveis e tão atentos que esse treinamento, via experiência estética, os leve a
Assim como o realce apenas do estoque prévio de saber do leitor nos levaria a dizer que toda experiência estética, porque
uma constante renovação, ainda que a experiência estética os capacite a se tornarem permeáveis à alteridade, a transformar sua
conceitualmente conceitualmen te não controlável, não passa de uma experiência
visão de mundo, mundo, tal experiência não poderia ser con confundida fundida com
de reconhecimento, de reduplicação, de corroboração de valores,
uma espécie de revolução permanente.
assim também o realce oposto do questionamento dos valores do leitor, que a obra provocaria, nos levará a exaltar a sublimidade da literatura, como via privilegiada para a aprendizagem da criticidade.27
Daí os analistas de Jauss apontarem seu parti seu parti pris para pris para defender o potencial renovador e inovador da experiência estética. Contudo, o mais relevante na discussão de Lima é a implicação — por ele apontada — da maneira como Jauss elaborou sua teoria sobre a experiência estética: a sua relação com a teoria da literatura torna-se impossível de ser pensada. Pois, se a experiência estética é uma forma de prazer e conhecimento conceitualmente não controlado, visto que o sujeito sujeito está envolvido na interação com a alteridade para possíveis questionamentos de seu saber prévio, podendo daí emancipar-se e garantir a renovação da obra, como poderia então extrair conceitos desta experiência se para tal ele precisaria distanciar-se teórica mas não esteticamente? Diante disso, o conhecimento de um novo horizonte de expectativas não garante uma articulação conceitual, mas apenas a aquisição de novos esquemas de ação. Da experiência estética 27
(LIMA 2002:47)
O raciocínio ora desenvolvido pressupõe um conceito de leitor ideal, conforme apontado no início do tópico, parecendo mesmo ser o fulcro da teoria jaussiana. Daí a importância de se empreender investigações neste domínio. Em eoria do eeito estético, estético, Borba29 desenvolve um estudo sobre a teoria iseriana, considerando os campos da psicologia social, sociologia do conhecimento, psicanálise da comunicação e psicologia da Gestalt , nos quais Iser impregnou-se ao pensar sua teoria. Para tanto, a autora se ocupa dos principais conceitos por ele desenvolvidos na obra O ato de ler: uma teoria do eeito estético. estético. De forma sintética, ela esclarece o resultado do processo comunicativo entre leitor e texto como a vivência de um efeito de significado, passível de ser traduzido como experiência estética. Quando experimentamos o significado de um texto literário, entramos na dimensão virtual da obra e vivenciamos uma experiência expe riência estética. A significação atribuída pelo leitor à experiência estética (vivência do significado) engendrará um questionamento sobre as normas de seu contexto pragmático. Neste momento, estamos diante do aspecto 28 29
(LIMA 2002:48) (BORBA 2003a)
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funcional da literatura, ao mesmo tempo da interseção da teoria do efeito estético de Iser com a Estética da Recepção, conforme postulada por Jauss. A Estética da Recepção e do Efeito abarcaria o pensamento de Jauss e o de Iser. Se Jauss dá a entender que a teoria do efeito seria açambarcada pela Estética da Recepção, Rece pção, a nosso ver, isto não significaria uma diminuição da importância da primeira. Antes a Estética da Recepção, não teria como se efetivar se os objetivos da teoria do efeito não fossem alcançados. Para Iser, a “recepção é um produto iniciado no leitor pelo texto, mas é moldado pelas normas e valores sociais que governam sua perspectiva”30. A recepção pode indicar tanto as preferências que revelam a disposição do leitor como as condições sociais que formaram suas atitudes. Isso é possível a partir do exame de como o leitor seleciona o potencial do texto. O potencial, por sua vez, está disponível na história da recepção e nos permite compreender por que certos aspectos da estrutura foram preferidos em detrimento de outros em épocas determinadas. As diferentes atualizações são permitidas pela organização textual. Por isso, Iser vê a recepção e o efeito inextricavelmente ligados, pois: [...] a recepção [...] pode, portanto, ser considerada uma importante evidência para (1) um desdobramento desdobramento historicamente condicionado do potencial do texto; (2) a constituição indispensável do texto na mente do leitor, que o traz à vida; e (3) a alteração ob-
inter-relaçãoo hermenêutica entre Wirkung , como uma estrutura inter-relaçã que convida à resposta, e recepção, como o resultado de uma operação seletiva conduzida pelo leitor real. 31
Como vimos na introdução do presente estudo, a diferença entre recepção e efeito é fundamental para a compreensão dos demais pressupostos de ambas as perspectivas e, principalmente, para efetuarmos uma correlação entre as duas. É preciso que inicialmente o leitor individual em interação com o texto literário, cumprindo o papel disposto pelo leitor implícito — implícito — o de preencher os vazios, suplementando-os — construa o significado (efeito), vivenciando a experiência estética, dando-lhe uma significação. A análise do processo histórico que perpassa a obra, tornando compreensíveis os motivos pelos quais, ao longo do tempo, ela foi recebida e interpretada de diferentes modos, é tarefa de uma estética da recepção. Se a princípio o trabalho de Iser parece ser englobado pelo de Jauss, num segundo momento, o objetivo jaussiano jaussi ano não não seria alcançad alcançadoo sem a análise análise do do efeito efeito estético estético oc ocorrido orrido durante a vivência da primeira etapa: a relação do leitor individual com o texto. A imbricação das duas vertentes é evidenciada nas palavras de Pressler32, quando admite que “as realidades são reconhecidas nas e pelas obras, as obras reconhecidas pela leitura — leitura como ato de assistir em memória as realidades que já foram. O papel da literatura é de dialogar com a história e seus sentimentos na memória do leitor”. A noção de estrutura apelativa do texto examinada por Iser: estrutura repleta de vazios solicitando o seu preenchimento por 31
servável no primeiro e segundo plano dos aspectos textuais que ocorrem em toda resposta efetiva. Assim emerge uma intricada reception is a product that is initiated in the reader reader by the 30 (ISER 1993:50) “[…] reception text, but is molded by the norms and values that govern the reader’s outlook”.
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(ISER 1993:51) 1993:51) “[…] reception […] may therefore therefore be considered considered as important important evidence for (1) a historically conditioned unfolding of the text’s potential; (2) the indispensable constitution constitution of the text in the reader’s mind, which brings it to life; and (3) the observable shift in backgrounding and foregrounding of textual features that occur in every actual response. There thus emerges an intricate hermeneutic interrelation between Wirkung, as a response-inviting structure, and reception, as the result of a selective operation carried out by actual reader”. (PRESSLER 2002:149)
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parte do leitor, tem em Ingarden (1965) a sua inspiração. Contudo, nas palavras de Zilberman33, enquanto para Ingarden “o mundo imaginário representado numa obra mostra-se de modo esquematizado, portanto incompleto e com pontos de indeterminações ou lacunas”, para Iser, por sua vez, “a obra literária é comunicativa
implícito, está relacionado o leitor implícito, implícito, e, ao segundo, por seu turno, o leitor explícito, de ordem social. É importante considerar os dois momentos separadamente, por questões de maior eficiência efic iência metodológica, e efetuar sempre s empre em primeiro plano a reconstituição do leitor implícito, implícito, para depois definir as projeções ideológicas das
desde sua estrutura; logo depende do leitor para a constituição de seu sentido”. Se para o primeiro a concretização da obra pelo leitor deve simular uma determinação completa, há implícita aqui uma estética arraigada à estética da representação; ao passo que para Iser o sentido é imagético, podendo tomar várias configurações. Em suma, segundo Ingarden34, “[...] é preciso apreender a obra na sua natureza esquemática e não a confundir com as concretizações singulares que surgem nas leituras individuais”. Assim, para ele, a concretização trata-se apenas da atualização dos elementos potenciais da obra, diferentemente de Iser, para quem a concretização é fruto da interação entre texto e leitor. Se, por um lado, o conceito de leitor implícito pode implícito pode ser considerado um avanço na estética da recepção, por outro lado, possui limites metodológicos, uma vez que não se desprende totalmente da análise imanente. O problema é ampliado quando Jauss o utiliza como o veículo da sua visão da história da literatura e da hermenêutica literária.
camadas de leitores35. Gumbrecht (1998), de igual modo, relembra a exigência de Jauss sobre o fato de, ao se planejar um exper experimento, imento, sempre proceder a partir do leitor implícito. implícito. Tal “recomendação” nem sempre tem sido seguida, pelo menos, nos estudos realizados no Brasil, sobremodo aqueles de cunho c unho empírico. A relação entre recepção e efeito foi evidenciada, pelo menos, em seu nível teórico, de modo a salientar a confluência entre a estética da recepção de Jauss e a teoria do efeito de Iser, no entanto, é preciso afunilar o debate em busca do objetivo do presente estudo: interessa-nos ir ao cerne da teoria do efeito estético, mais precisamente na metáfora que tornaria o sistema iseriano plausível: a interação texto e leitor. Para a partir daí aprofundar a discussão acerca do conceito de leitor implícito, implícito, bem como suas repercussões teóricas e práticas, conforme as indagações elaboradas por Compagnon 36: [...] Toda essa bela descrição deixa, no entanto, pendente uma pergunta espinhosa: como se encontram, se defrontam praticamente o leitor implícito (conceitual, fenomenológico) e os
Jauss diferencia a concretização do horizonte implícito de expectativas, de matiz intraliterário — efetivada através do efeito (experiência do significado) — e a análise das expectativas, normas e papéis extraliterários advindos de grupos de leitores e épocas diversos — realizada por meio da recepção, condicionada pelo leitor. Assim, ao primeiro momento, concretização do horizonte 33 34
(ZILBERMAN 1989:64-65) (INGARDEN 1965:289)
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leitores empíricos e históricos? Estes se curvam necessariamente às instruções do texto? E, se não se curvam, como detectar suas transgressões? No horizonte, surge uma interrogação difícil: a leitura real poderia constituir um objeto teórico? 35 36
(ZILBERMAN 1989) (COMPAGNON 2001:153)
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O estudo em pauta pretende, paulatinamente, abarcar a discussão das três questões finais desse fragmento. f ragmento. Como pretendemos articular a teoria do efeito estético a conceitos da psicologia, do ponto de vista da teoria histórico-cultural, temos, no leitor real, portanto, a possibilidade desta interface. Ademais, “para o psicólogo da literatura”, de acordo com Bruner37, “a análise teórica da ‘interpretação de texto’ (por quem quer que seja formulada e quaisquer que sejam os dados-base textuais da análise) aceita apenas hipóteses sobre leitores reais”. Entendemos, juntamente com Rabinowitz, que “[...] falar do leitor possibilita falar em psicologia, sociologia, história, e a crítica que focaliza o leitor tem ajudado a derrubar as fronteiras que separam o estudo literário de outras disciplinas”38. Um dos motivos da dificuldade em se pesquisar a relação texto-leitor está em seu caráter interdisciplinar e processual: trata-se de um fenômeno vivo em constante movimento, e “cobri-lo” com uma única perspectiva dá-nos sempre a sensação de estar usando um lençol que ora mostra a cabeça, ora os pés. 3. Relação texto-leitor e perspectivas teóricas: um panorama (de aproximação?) à Estética da Recepção e do Efeito
Neste tópico, apresentamos algumas das principais teorias que consideram a relação texto-leitor, tecendo uma comparação analítica entre elas, no sentido de identificar avanços e/ou retrocessos, semelhanças e/ou diferenças umas em relação às outras. Para tanto, questões já discutidas perpassam nossa análise para que o fio de nossa tessitura argumentativa não se perca: a) Qual o conceito de leitor 37 38
(BRUNER 1997:5) (RABINOWITZ 1997:4) 1997:4) “(…) talk of the reader opens up talk talk of psychology, sociology, and history, and reader crit icism has helped break down boundaries separating literary study from other disciplines”.
apresentado por cada abordagem e qual sua implicação dentro de um ponto de vista que considere a categoria leitor? b) Como a teoria do efeito estético, de W. Iser situa-se dentro do presente quadro? c) Quais as relações entre a Estética da Recepção de H. R. Jauss e a Teoria Teoria do E Efeito feito de Iser? Em sua resenha, S. Suleiman, elencando as tendências da crítica que lidam com o recebedor enquanto peça importante da teoria, alude: à retórica, à semiologia e ao estruturalismo, na medida em que se preocupam com o processo de decodificação do texto pelo destinatário; à psicanálise e à hermenêutica, por lidarem com a questão da interpretação; e à sociologia da literatura que, mesmo num autor à primeira vista alheio ao tópico, como Lucien Goldmann, analisa a interação da obra com o público.39
Assim, quer seja para bani-lo ou inseri-lo, o leitor não tem sido visto com indiferença. Este olhar não indiferente deve-se, muito presumivelmente, presumivelmente, não apenas à indissociabilidade da relação autor-texto-leitor, mas à inegável participação do leitor — mesmo possuindo tantas definições quantos são os seus teóricos — na concretização da obra literária. Concretização também definida das mais variadas formas. Autores como Ingarden, Vodicka Vodicka e Iser já nos mostram matizes desse conceito que se, por um lado, os relacionam, por outro, não os têm como homólogos. Os caminhos percorridos pelas investigações acerca da relação entre texto e leitor são demasiadamente diversos, sendo, por sua vez, igualmente distintas as correntes que os açambarcam. Um dos motivos para a diversidade de perspectivas teóricas sobre a relação texto-leitor parece ser a interdisciplinaridade inerente ao objeto de 39
(ZILBERMAN 1989:15)
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estudo e a dificuldade de estudar algo, em sua essência, processual. Na abertura do segundo capítulo do livro Estética da Recepção e História da Literatura, Literatura, a asserção de Susan Suleiman 40 sintetiza a diversidade de visões e suas dificuldades em lidar com ela: A crítica dirigida para a audiência não é um campo, mas vários, não uma simples trilha muito batida, mas uma variedade de encruzilhadas, pistas seguidamente divergentes que cobrem uma vasta área da paisagem da crítica segundo um padrão cuja complexidade desencoraja os bravos e confunde os fracos de coração.
Mesmo com a miscelânea de pressupostos e implicações diferenciadas produzindo uma sensação de caos teórico, é possível paradoxalmente notar, em perspectivas teóricas antitéticas, um ponto de convergência indicando a participação, mais ou menos ativa, do leitor. Neste contexto, visando aos propósitos do presente estudo, manteremos nosso foco de atenção nas perspectivas que se debruça(ra)m sobre a tarefa de pensar explicitamente a relação texto-leitor, preocupando-se, inclusive, em conceituar o leitor. Uma análise mais detalhada das vertentes mostra-nos, em sua maioria, fortes resquícios de uma atitude ainda imanentista41. Diante disto, o Reader-Response Criticism Reader-Response Criticism — — reunindo variadas perspectivas teóricas ligadas às mais diversas correntes, todas de alguma forma interessadas na relação texto-leitor — será sinteticamente apresentado, seguido pela Estética da Recepção, conforme pensada por Jauss. A teorização iseriana pode ser pensada tanto dentro do ReaderResponse Criticism Criticism quanto da Estética da Recepção e será apenas 40 (Apud ZILBERMAN 1989:13) 41 A perspectiva de Stanley 41 Stanley Fish é uma exceção, exceção, mas nem por isso isso um ganho, pois pois descamba para o polo do leitor, obliterando completamente o texto literário.
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ligeiramente exposta dentro do panorama aqui ilustrado, uma vez que o próximo tópico é a ela dedicado. Reader-Response Criticism: um desao aos fracos de coração.
Jane Tompkins, na introdução da coletânea Reader-Response Criticism: rom ormalism to post-structuralism, post-structuralism, escreve: escreve: Os ensaios reunidos aqui reenfocam a crítica no leitor. [...] Enquanto eles focam no leitor e no processo de leitura, os ensaios representam uma variedade de orientações teóricas: nova crítica, estruturalismo,, fenomenologia, psicanálise e desconstrução molestruturalismo dam suas definições de leitor, de interpretação e do texto.42
O Reader-Respo Reader-Response nse Teory não não pode ser considerado um mo vimento em virtude de não possuir a característica de uma escola unificada. A saber, há apenas dois pontos básicos em comum, a importância atribuída ao leitor e a rejeição ao New Criticism. Criticism. Jane Tompkins (1980) diz ser o Reader-Respo Reader-Response nse Criticism um termo associado àqueles teóricos que usam as palavras leitor , o processo de leitura leitura e resposta / eeito eeito de modo a circunscrever sua área de investigação. De acordo com Rabinowitz43, os termos reader theory (teoria do leitor), audience theory (teoria da audiência), reader-response theory 44 referem-se a tipos mais subjetivos de crítica do leitor, enquanto a Reception Teory (Teoria da Recepção) diz 42 essays collected here refocus criticism on the 42 (TOMPKINS 1980: ix) “The essays reader. […] While they focus on the reader and the reading process, the essays represent a variety of theoretical orientations: New Criticism, structuralism, phenomenology, phenomenolo gy, psychoanalysis, and deconstruction shape their denitions of the reader, of interpretation, and of the text”. 43 (RABINOWITZ 1997:1) 44 Ainda sem tradução adequada (consensual ) em português.
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respeito mais especificamente à escola alemã da crítica da recepção (Receptionkritik ), representada por Hans Robert Jauss. O Reader-Respo Reader-Response nse Criticism surge Criticism surge em oposição à máxima do New Criticism emitida Criticism emitida por Wimsatt e Beardsley 45: “A Falácia Afetiva é uma confusão entre o poema e seus resultados resultados (o (o que é que é e o que az que az )).. Começa por tentar derivar o padrão da crítica dos efeitos psicológicos do poema e termina em impressionismo e relativismo.” Como os críticos do Reader-Resp Reader-Response onse Criticism acreditam Criticism acreditam que o sentido de uma obra só efetivamente existe através de sua realização na mente do leitor, seria impossível descrever tal sentido sem a descrição dos efeitos tidos como psicológicos. Assim, a ênfase no leitor e a destruição da objetividade do texto são os pontos comuns aos teóricos do Reader-Response Reader-Resp onse Criticism Criticism;; sendo necessário, portanto, redefinir os objetivos e métodos dos estudos literários.
nas palavras da página e para desvendá-lo é necessário um treinamento especial para o leitor. Gibson introduz a noção de leitor simulado simulado como oposto ao leitor real. O leitor simulado refere-se a um papel apresentado ao leitor real, convidado a interpretar durante a leitura. “O leitor simulado é um artefato, controlado, simplificado, abstraído do caos da sensação do cotidiano” 47, por conseguinte, é uma entidade puramente textual. Esta noção de Gibson propiciaria a habilidade para escutar um diálogo ocorrido entre falante (narrador) e leitor simulado, fornecendo as estratégias usadas pelo autor para indicar aos seus leitores os valores e assunções que pretende aceitar ou refutar. A atenção de Gibson está visivelmente dirigida ao texto e aos efeitos produzidos por ele. Para Gibson, o seu conceito de leitor simulado possui utilidade nos níveis moral e pedagógico, visto que permite ao estudioso aceitar ou rejeitar o papel oferecido pelo autor. Tal conceito
Jane Tompkins (1980) aponta, como marco inicial do ReaderResponse Criticism, Criticism, os estudos sobre a resposta emocional de I. A. Richard em 1920 ou o trabalho de D. W. W. Harding e Louise Rosenblatt em 1930, todavia ela escolheu iniciar sua coletânea sobre o assunto com o ensaio de Walker Gibson 46, para mostrar uma busca mais efetiva pela participação do leitor já dentro do formalismo. Os teóricos amplamente identificados com a denominação Reader-Response Reader-Resp onse Criticism, Criticism, mesmo tendo no enfoque ao leitor seu ponto de partida, possuem concepções diferenciadas sobre ele. Destacaremos, pois, as diversas concepções de leitor apresentadas nos principais ensaios reunidos por Tompkins (1980). O ensaio de Walker Gibson, intitulado Auth intitulado Authors, ors, speakers, speakers, readers, and mock readers (1980) , apresenta , apresenta uma concepção de literatura centrada no texto. De acordo com ele, o sentido literário encontra-se
ainda teria a vantagem de torná-lo mais consciente de seu próprio sistema de valor e mais capaz de lidar com questões de autodefinição. Entre outros aspectos, Gibson não discute, por exemplo, os conteúdos implicados na aceitação ou rejeição do leitor simulado, papel oferecido pelo falante ao leitor. Ou como o sentido é de fato descoberto ou experimentado pelo leitor real? Quais as consequências de uma suposta rejeição do leitor simulado? Como seria o treinamento necessário ao leitor real para identificar o leitor simulado e a partir daí encontrar o sentido literário sobre as páginas do texto? Se a atenção de Gibson está voltada para o texto e nele encontra-se o sentido, parece contraditório que o leitor precise de um treinamento, treinamento, se isto se faz necessário é porque o sentido se realizaria no processo de leitura, nem no texto nem no leitor, mas na interação de ambos. O avanço do ensaio de Gibson está no fato de que, apesar de partilhar muitas assunções da New Critical , já antecipa uma
45 (WIMSATT; BEARDSLEY 1967:21 apud ISER 1996:61, v. 1, grifo nosso) 46 (GIBSON 1980:1-6). A primeira publicação publicação desse artigo foi no College English 11 (February 1950): 265-69.
47 reader is an artifact, controlled, simplied, simplied, 47 (GIBSON 1980: 2) “The mock reader abstracted out of the chaos of day-to-day sensation”.
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mudança de foco, do texto para o leitor, pois usa a ideia de leitor como meio para gerar um novo tipo de análise textual, sugerindo a consideração da crítica literária como parte de um processo fundamental na formação de uma identidade 48. Vinte e três anos após o ensaio de Gibson, Gerald Prince publi-
categorias: a) há os sinais sem referência ao narratário ou, mais precisamente, nenhuma menção diferenciando-o do narratário grau-zero; b) há os sinais que, ao contrário, o definem como um narratário específico e o fazem desviar das normas estabelecidas. Interessante notar a demasiada abrangência das duas categorias
ca Introduction to the study o the narratee49, qual se assemelha em suas premissas fundamentais ao estudo de Gibson. Prince desen volve o conceito de narratee narratee ( (narratário narratário)) que está para o narrador como o leitor simulado, de Gibson, está para o falante; todavia, diferentemente de Gibson, não estuda os valores e suposições do autor através do conceito de narratário, antes o utiliza para elaborar um sistema de classificação. Prince distingue uma série de tipos de leitor para quem um texto pode se dirigir, a saber: o leitor real (a (a pessoa com o livro nas mãos), o leitor virtual (o (o tipo de leitor para quem o autor pensa estar escrevendo, a quem ele dota com certas qualidades, capacidades e gostos) e o leitor ideal (o leitor capaz de entender o texto perfeitamente e o aprovar em todas as suas nuanças). De acordo com Prince (1980), o narratário “grau-zero” sabe a língua e a linguagem do narrador, além disso, possui faculdades específicas de raciocínio e certa memória — ao menos para considerar os eventos da narrativa sobre os quais tem sido informado
apresentadas por Prince: a primeira inclui as normas gerais estabelecidas para o narratário grau-zero, isto é, o narratário “básico”, e a segunda categoria compreende as exceções à regra. Para Prince (1980), o conceito de narratário auxilia a estudar como a narração funciona, a constituir um revezamento entre narrador e leitor, a estabelecer a estrutura, a caracterizar o narrador, a enfatizar determinados temas, além de contribuir para o desenvolvimento do enredo. Numa analogia bem-humorada, podemos associar o narratário à empregada doméstica (ou à secretária fiel ou ainda à amiga de todas as horas) da protagonista de uma novela televisiva, da qual não sabemos nada de sua vida particular, nem tampouco o enredo tem algo reservado para ela e cuja função parece ser somente a de servir como uma espécie de alter ego da ego da personagem, possibilitando-lhe a exposição de seus pensamentos e sentimentos para o público. Em suma, ela é um elemento da trama, mas sua função é exatamente a apresentada por Prince para o narratário: enfatizar certas cer tas temáticas, auxiliar no desenrolar da trama, etc.
e suas possíveis consequências. Este tipo de narratário não possui personalidade nem características sociais. Não é bom nem ruim, pessimista ou otimista, revolucionário ou burguês. Todo narratário possui tais características, exceto quando uma indicação ao contrário é suplementada na narração intencionada a ele. Os sinais do narratário, por seu turno, se agrupam em duas
Prince não pensa nas implicações práticas ou morais de seu método para os seres humanos, como pensou Gibson. Influenciado por críticos estruturalistas como Tzvetan Todorov e Gerard Genette, ele considera o conceito de narratário como um elemento da narrativa, recentemente descoberto e capaz c apaz de, quando completamente investigado, contribuir nas ciências das estruturas literárias. As assunções de Prince sobre o status status do do texto e sua relação com os leitores reais não diferem daquelas dos New Critics. Critics. Ler, tanto para
48 (TOMPKINS 1980) 49 (PRINCE 1980) 1980) Primeira publicação em Poétique n. 14 (1973), p. 177- 96.
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ele quanto para Gibson, consiste em descobrir algo dado sobre a página. Seus narratários, como os narradores de Wayne Booth 50, pertencem ao texto51. Tompkins, ao comparar o leitor sob os pontos de vista de Gibson e Prince, conclui: Assim, o foco no leitor simulado e narratário é no final das contas um modo de refocalizar o texto; não dota o leitor de um poder que já não tenha, mas deixa-o na mesma posição que ele tinha ocupado na crítica formalista — aquela de deficiente, mas respeitoso investigador atrás de verdades, neste caso, as estruturas, preservadas no texto literário.52
O esclarecimento das características e dos sinais do narratário, é importante frisar, não torna a tarefa de identificá-lo mais fácil. O narratário não pode ser confundido com os demais tipos de leitores apresentados por Prince, nem tampouco deve misturar-se aos leitores hipotéticos demonstrados pelos demais teóricos. Vejamos, o narratário narratário é é a pessoa a quem o narrador está dirigindo sua narração. Para Prince (1980), tanto narrador quanto narratário pertencem ao texto e não devem ser confundidos com o leitor real fora dele. O implied reader (leitor implícito), implícito), definido por Iser (1974), por sua vez, diz respeito à estrutura do texto, cujos vazios solicitam u m preenchimento por parte do leitor empírico. termo “autor implícito”. Para um maior maior detalhamento, detalhamento, 50 Wayne Booth cunhou o termo ver BOOTH (1980). 51 (TOMPKINS 1980) 52 (TOMPKINS 1980:xii-xiii) “Thus, the 52 the focus on mock reader and narratees narratees is ultimately a way of re-focusing on the text; it does not endow the reader with any powers he did not already have, but leaves him in same position he had occupied in formalist criticism — that of a awed but reverential seeker after the truths, in this case the structures, preserved in literary text”.
Segundo Rabinowitz (1997), os dois tipos de leitores, o narratário e o implícito implícito,, precisam ser distintos de outras categorias de leitor hipotético. Entre outros exemplos de leitores hipotéticos, temos: o leitor intencionado intencionado (intended reader , denominado de “audiência autoral” por Rabinowitz) — inferido através do contexto no qual ele surgiu —, e o leitor pressuposto ( pressuposto ( postulate postulatedd reader , chamado por Stanley Fish de inormed reader, [ reader, [leitor leitor inormado]) inormado]) — que não surge do estudo do texto ou do seu contexto, mas da emersão da percepção de um leitor cujas características c aracterísticas são assumidas por um crítico. cr ítico. Os leitores hipotéticos apresentados, tanto os de Gibson como c omo os de Prince, Iser, Rabinowitz e Fish, somando-se aos que ainda discorreremos neste capítulo, possuem implicações no seu uso, pois embora se assemelhem em alguns aspectos, são pensados a partir par tir de pressupostos literários e filosóficos diferenciados. No tópico Concepção de leitor e a concepção do leitor implícito53 do primeiro capítulo de O Ato da leitura: uma teoria do eeito estético co,, Iser diferencia os leitores aqui chamados de hipotéticos em duas categorias: os leitores reais e os hipotéticos. Os primeiros seriam aqueles cujas respostas são de algum modo documentadas, enquanto os hipotéticos ainda se subdividiriam em dois tipos: o contemporâneo e o ideal. O leitor contemporâneo proporciona a história da recepção, ao passo que o leitor ideal é uma extrapolação do papel do leitor apresentado no texto. Em outras palavras, nenhum deles corresponde de fato a um leitor real, no sentido concreto do termo. Para Iser (1996), tipos diferentes de leitor, tais como o arquileitor (Riffaterre), o leitor informado (Fish) e o leitor intencionado (Wolff), conquanto sejam concebidos como construção, trazem, mais ou menos de forma evidente, um substrato empírico como referência. Critica, desta maneira, cada um desses conceitos por considerá-los 53
Readers and the Concept of the Implied Reader (na (na versão em inglês).
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limitadores da experiência ou da função do leitor e oportunamente insere sua concepção de leitor implícito implícito como capaz de superar a referida limitação. Por isso, Iser diz:
as bases de seu pacto, define as condições de entrada do leitor real no livro. 56
Ora, no exemplo dado por Compagnon — o mesmo utiliza-
pensa-se na estrutura do leitor implícito embutida nos textos. À diferença dos tipos de leitor referidos, o leitor implícito não tem
do por Prince (1973) para ilustrar o conceito de narratário por ele proposto —, temos claramente um narrador dirigindo sua narração ao narratário. Ambos pertencem ao texto, não se equivalem, respectivamente, nem com o autor implícito — as marcas deixadas pelo autor real no texto —, nem com o leitor implícito, implícito, concernente à estrutura do texto, à forma como os vazios são apresentados para que o leitor real, aceitando tal implicitude implicitude,, possa interagir e cumprir seu papel. Compagnon apresenta claramente um duplo equívoco quando diz: “Aqui, “Aqui, o autor implícito se dirige ao leitor implícito (ou o narrador ao narratário)”. Quem se dirige é o narrador e não o autor implícito; o seu interlocutor é o narratário, não o leitor implícito. implícito. O narratário é alguém, digamos assim, explícito: sabemos onde está e quais são seus sinais e funções, conforme vimos na exposição de Prince. Por outro lado, o leitor implícito, implícito, como o próprio nome já o demonstra, apresenta-se apenas de forma implicada implicada na na estrutura do texto, em consonância ao colocado mais acima nas palavras do próprio Iser. A conjunção “ou “ou”” nos parênteses da citação extraída
ções que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis. Em consequência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na estrutura do texto. 54
A diferença entre os tipos de leitores ora generalizados como hipotéticos traz repercussões significativas na abordagem do fenômeno da recepção/efeito. Muitas vezes encontramos tais termos utilizados sem a devida distinção ou tidos como equivalentes, como podemos observar na citação abaixo, na qual Compagnon55 confunde não apenas leitor implícito com implícito com narratário, mas igualmente autor implícito (de W. W. Booth) com narrador, a despeito da advertência adver tência de Rabinowitz: Haveria, assim, em todo o texto, construído pelo autor e complementar ao autor implícito, um lugar reservado para o leitor, o qual ele é livre para ocupar ou não. Por exemplo, no início de O pai Goriot : “Assim faria você, você que segura este livro com
uma mão branca, você que se acomoda numa poltrona macia, dizendo: Talvez isso vá me divertir [...]” Aqui, o autor implícito 54 55
se dirige ao leitor implícito (ou o narrador ao narratário), lança
Quando, nos capítulos seguintes deste livro, se fala em leitor,
existência real; pois ele materializa o conjunto das pré-orienta-
(ISER 1996:73, v.1) (COMPAGNON 2001:150-151)
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de Compagnon enfatiza a equiparação entre as duas sentenças, relacionando o narrador ao autor implícito e tornando o narratário homólogo do leitor implícito. implícito. Os críticos em pauta, todavia, não diferem somente quanto à concepção de leitor, mas consequentemente da forma como abordá-lo. Ademais, discordam quanto ao propósito da atividade crítica; por isso, tomar os conceitos como homólogos pode trazer 56
(RABINOWITZ 1997)
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consequências danosas à compreensão da abordagem literária específica, além de não chegar a lugar algum. Temos outro exemplo dessa confusão de termos na tese de doutorado Interação texto-leitor na escola: escola: dialogando com os contos de Gilvan Lemos, de Silva57. Chama-nos a atenção quando a autora seleciona a teoria do efeito estético (Iser) para trabalhar na consecução do seu objetivo, a saber: saber : “analisar as inter-relações entre a literatura e o leitor no espaço escolar, visando observar de que modo os alunos veem o texto literário e quais os principais entraves à realização dessa leitura” leitura”, e, no momento da análise propriamente dita, das entrevistas, utiliza autores com posturas opostas à de Iser. Dito de outro jeito: a autora trabalha com a interação texto-leitor, todavia, vez por outra, utiliza-se de perspectivas teóricas que, mesmo considerando a participação do leitor, estão filiadas a uma concepção bastante imanentista, como é o caso de Prince (aliás, se o próprio Iser, como vimos, recebe esta crítica — superficialmente mencionada pela autora — quanto mais Prince, ligado explicitamente ao estruturalismo). Exemplificando: a autora utiliza-se do estudo de Prince (1986)58 sobre o narratário para analisar um dos resultados das entrevistas. Escreve: “Na resposta (4), o leitor empírico se identificou a tal ponto com o narratário que não consegue perceber a ficção como um jogo”59. Em seguida, cita Iser: Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O próprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível 57 58 59
(SILVA 2003:14) Trata-se da da mesma mesma versão versão de 1980. (SILVA 2003:108)
à consciência. Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, interpretá-lo.60
E a autora conclui: “É ao reconstruir as pistas textuais, interpretando o mundo ficcional como ‘um campo de jogo’, como propôs Iser na citação acima, que o leitor participa dinamicamente do ato de ler”61. À primeira vista, tudo parece ter dado certo, mas, se considerarmos o conceito de narratário como sendo de um outro naipe e, portanto, não é a ele a quem Iser se refere, nem tampouco à identificação do leitor real com o narratário, começamos a perceber a incongruência. Ora, o mundo esboçado incitando o leitor a imaginá-lo é a estrutura de vazios do texto, portanto, o que está em voga é o conceito de leitor implícito. implícito. Assim, o leitor real, quando aceita o papel apresentado pelo leitor implícito (conceito implícito (conceito de ordem textual), entra num jogo diádico com o autor, autor, imaginando e interpretando o mundo esquematizado através do texto, mas, muito provavelmen provavelmente, te, nunca idêntico ao mundo do autor. Outro dado importante é que o interesse de Prince está centrado no texto e não na interação texto-leitor, como declaradamente assumido por Iser. De acordo com Tompkins (1980), o conceito de narratário, com suas características, sinais e funções, vem a incrementar uma taxionomia de análise textual, colocando Prince na esteira de críticos estruturalistas como Todorov e Genette. Para Prince, o conceito de narratário é um novo elemento da narrativa, podendo ser acrescido às ciências das estruturas literárias, ao passo que Iser tem uma descendência fenomenológica e um cais de chegada na Estética da Recepção e do Efeito. 60 (ISER 2002:107) 61 (SILVA 2003:108)
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Como vimos um pouco acima, as suposições de Prince sobre o status do texto e sua relação com os leitores reais não diferem daquestatus do las dos New Critics: Critics: ler, para ele, não é construir sentido num jogo diádico entre leitor real que assume a implicitude implicitude e e texto — como é para Iser —, mas desvendar o sentido já dado na página. Portanto,
um dos teóricos pertence a um campo epistemológico epistemológico distinto, sendo o trabalho de Gibson ainda ligado à corrente formalista. Quando Gibson afirma que “dependendo do grau de nossa sensibilidade literária, nos criamos pela linguagem [...]”, [...]”, ele está pensando no conceito de leitor simulado (mock (mock reader ) como mediador entre o leitor real e
usar as argumentações de Prince desconexas de seu contexto heurístico geral (e, por isso, semelhantes às de Iser) é, no mínimo, contraditório dentro de um estudo sobre a interação texto-leitor, considerando o leitor como elemento ativo. Em outro momento, ainda em Silva, temos:
o texto. Iser ao afirmar: “a obra literária ativa nossas faculdades, permite-nos recriar o mundo que a literatura apresenta”, tem em mente outra relação, a do leitor real em cumprimento ao papel destinado pelo leitor implícito implícito (implied reader ), ), a saber, o preenchimento dos vazios. Embora Gibson e Iser dissertem sobre atividade criativa, a forma como esta atividade é entendida e o processo como ocorre para cada um dos teóricos é diversa. Se para Gibson o sentido literário encontra-se nas palavras da página e para desvendá-lo (e não construí-lo) é necessário um treinamento especial do leitor leitor,, entendemos que não somente os conceitos de leitor simulado e leitor implícito são implícito são diferentes, mas também a forma de o leitor real lidar com eles. Logo, para interagir com o primeiro é preciso um treino, certa aptidão aprendida para desvendar o que já está dado, dado , o sentido; enquanto que, com o segundo, o leitor real parte do que tem. Questionemos então: a imaginação do leitor real está sendo de fato utilizada quando é preciso antes treiná-la? Imaginação pode ser desenvolvida, ampliada, mas poderá ser treinada? Parece-nos contraditório treinar algo,
De acordo com Gibson:62 “dependendo do grau de nossa sensibilidade literária, nos criamos pela linguagem. Assumimos, para os propósitos da experiência, uma série de atitudes e qualidades a que nos convida a linguagem do texto e, na impossibilidade de fazê-lo, abandonamos a leitura”. A posição de Gibson parece similar à de Iser (1996), quando este afirma que a obra literária ativa nossas faculdades, permite-nos recriar o mundo que a literatura apresenta. Como afirma Iser: 63 “o produto dessa atividade criativa é o que poderíamos chamar de ‘dimensão virtual do texto’. Essa dimensão virtual não é o texto, nem apenas a imaginação do leitor, mas o encontro do texto com a imaginação do receptor”. 64
Mais uma vez, temos posturas diferenciadas tomadas como homólogas. De fato, como Silva afirma, “a posição de Gibson parece similar à de Iser” — importante importante frisar, apenas parece —, todavia cada 1986:01). Trata-se da versão de 1974. 62 (GIBSON 1986:01). 63 (ISER 1996:54) 64 (SILVA 2003:111)
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por definição, não treinável, pois somente livre pode se desenvolver. Até onde sabemos, Iser jamais concordaria com tal posicionamento acerca da imaginação. Por conseguinte, o pensamento de um teórico não pode ser complemen complementado tado pelo do outro. Deste modo, embora trechos da argumentação de um teórico possam se aproximar da discussão de outro, o lugar epistemológico, filosófico e mesmo literário de onde cada um escreve traz implicações conceituais e metodológicas, não permitindo considerar
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determinadas assertivas como homólogas. Caso queiramos usar “pedaços juntos” de uma estrutura para compreendermos elementos de outra, à moda de uma teoria sof , de acordo com Iser, é preciso antes adaptá-la para isso: compreendê-la em seu contexto inicial e depois suas implicações dentro de uma nova articulação. Uma vez esclarecida a necessidade de se compreender e respeitar as diferenças teóricas acerca da relação texto-leitor, é preciso afirmar que Iser, por seu turno, no ensaio Te reading process: a phenomenological approach (1974)65, embora influenciado também pela fenomenologia, examina o processo de leitura de modo oposto ao de Poulet. Para Iser, o leitor é um ser ativo cuja participação permite a existência da obra; desta maneira, o sentido literário será sempre virtual. Não se trata, portanto, da consciência do leitor ser invadida pela consciência do autor, como preconiza Poulet, mas de o leitor agir como cocriador da obra, porquanto a ele é dado o papel de suplementar a porção não escrita, mas implícita do texto. Cada leitor preencherá os vazios ou áreas de indeterminação de sua própria própria maneira, todavia isso não quer dizer que o texto seja fruto da subjetivação do leitor, pois o preenchimento de vazios precisa estar em consonância com as disposições construídas pelo texto, o leitor implícito. implícito. Apesar do avanço do conceito de leitor implícito em implícito em relação aos demais apresentados, é possível ainda entrever certo imanentismo. Jane Tompkins, ao comentar o citado ensaio de Iser e, mais notadamente, sua noção de leitor, constata: “A atividade do leitor é apenas o cumprimento do que já está implícito na estrutura da obra — ainda que nunca fique claro exatamente como aquela estrutura limita sua ati vidade””66. Assim, o conceito de leitor em Iser ainda se prende ao texto. vidade 65 O processo de de leitura: uma abordagem abordagem fenomenológica fenomenológica.. 66 (TOMPKINS 1980:xv). 66 1980:xv). “The reader’s activity is only a fulllment fulllment of what is already already implicit in the structure of the work — though exactly how that structure limits his activity is never made clear”.
Outros autores interessados na relação texto-leitor poderiam ser incluídos na presente exposição, todavia, para o escopo do trabalho em pauta, as teorias apresentadas cumprem seu duplo papel, a saber, formar um panorama sobre a diversidade de perspectivas ligadas a correntes variadas com as dificuldades sui generis deste(s) campo(s) de estudo e mostrar a localização da vertente iseriana no referido quadro. Diante do conjunto apresentado, a perspectiva iseriana dá um avanço em relação às teorias puramente textualistas, no momento em que afirma ser na leitura que a obra se realiza, mas ainda se prende de certo modo a uma postura imanentista quando conceitua o leitor implícito como implícito como algo que “não se funda em um substrato empírico”. De fato, o leitor implícito é implícito é da ordem da estrutura textual, porém indagamo-nos acerca de como a leitura — que efetiva a obra — poderá ser implementada sem a consideração de um leitor real? O conceito cunhado por Iser exige uma participação ativa do leitor real e, a despeito da descrição minuciosa e rica que o autor faz desta participação, toda a responsabilidade das ocorrências é colocada unicamente no texto. O panorama acima nos permite lembrar que, embora em muitos casos os conceitos e as metodologias se assemelhem, eles não podem ser tomados como homólogos, nem tampouco utilizados de maneira eclética numa mesma investigação. Os pontos em comum às perspectivas estão no interesse pelo leitor, pelo processo de leitura e na consideração da descrição da resposta/efeito do leitor como indispensável para se identificar/delimitar/construir (o verbo depende da concepção e do método) o sentido da obra, enquanto o restante do arcabouço teórico: filiação filosófica, metodologia de trabalho, orientação epistemológica e implicações para a teoria geral da literatura são diferenciadas.
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Jane P. Tompkins67 constata que os críticos do Reader-Response Criticism discordam em muitas questões, no entanto, estão de Criticism acordo sobre o sentido literário não pertencer completa e exclusi vamente ao texto literário. Embora, muitas muitas vezes, houvesse um teor um tanto revolucionário na produção destes críticos, por exemplo, quando atribuíam às respostas de leitores individuais o objeto de estudo literário ou na rejeição radical dos princípios da New Critical , Jane Tompkins Tompkins não considera os trabalhos dos cr críticos íticos centrados na resposta/efeito do leitor como capazes de revolucionarem a teoria; segundo a autora, apenas houve uma transposição dos princípios formalistas para uma nova legenda. A questão que divide o New Criticism Criticism e o Reader-Response Criticism — Criticism — se o sentido literário é localizado no texto ou no leitor — obscurece a similaridade das duas perspectivas: o sentido é o objeto último da crítica. Esta assertiva une os dois movimentos ferrenhamente contrários em oposição a uma história de pensamento crítico no qual a especificação do sentido não é o interesse central. O uso dos mesmos termos, texto e leitor, no decorrer dos séculos pela crítica para se referir a práticas diferentes, obnubilou a diversidade de assunções que separam os estudos literários. Posturas teóricas diversas poderiam ser desfiladas, contudo, para o escopo do atual capítulo, acreditamos ter configurado o quadro desejado para a demonstração pretendida: o sentido literário não se encontra exclusivamente no texto ou no leitor, mas na interseção criada entre os dois através do ato da leitura; sendo assim, a legenda da Estética da Recepção e do Efeito, integrada pelas perspectivas de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, apresenta uma compreensão mais próxima tanto da consideração da historicidade da literatura quanto de seu efeito no leitor. 67
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Capítulo 10
Marxismo E T O Universidade de São Paulo
“Teoria literária marxista” é um rótulo genérico que abarca grande diversidade de tendências e angulações crítico-teóricas. Seu núcleo comum é a própria teoria econômica, social, histórica, política e cultural desenvolvida nos escritos de Karl Marx, os quais, por sua vez, são objeto de disputas interpretativas, por vezes acirradas, que se renovam periodicamente. Não se trata, portanto, de um terreno pacífico ou sem conflitos internos, e muito menos de uma doutrina acabada e definitiva, que possa ser simplesmente assimilada e aplicada à leitura das obras, mas, sim, de uma teoria que, consciente de seu caráter histórico, implica a própria capacidade de reinventar-se historicamente. No campo dos estudos literários, o marxismo não se apresenta como uma corrente teórica entre outras — pois não pretende concorrer no mercado acadêmico com as outras vertentes disponíveis —, mas como um modo mais abrangente de compreender a literatura: uma compreensão materialista e dialética, que se articula a uma investigação da estrutura da sociedade. Diferentemente das correntes que foram elaboradas no processo mesmo de especialização dos estudos literários como disciplina autônoma (notadamente (notadamente as correntes formalistas), a crítica marxista não se formou dentro de um terreno demarcado pelos cercamentos da “literariedade” ou de a lguma “essência” “essência” da literatura; busca antes
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desfazer as separações ideológicas que apartam a atividade literária das outras práticas sociais (e não apenas as culturais). Não se trata, contudo, de desconhecer as especificidades de cada campo, e, sim, de investigar as articulações precisas entre o estético e o histórico-social, visando a revelar o teor de conhecimento das obras literárias.
planejado redigir um estudo sobre Balzac e até escrever um tratado sobre estética, embora não tenha chegado a esboçar tais projetos. De qualquer modo, com sua ampla formação cultural humanística, Marx demonstra uma impressionante acumulação de conhecimentos não apenas sobre filosofia, história, economia, etc., mas também
Além disso, a crítica literária marxista não se confunde com a sociologia da literatura, que dirige o foco do estudo para dados externos às obras, tais como as circunstâncias de produção e de circulação das obras, a composição social de autores e de públicos, os efeitos na recepção etc.; assim como não se limita a situar as obras em seu contexto histórico para aferir sua representação temática. A crítica marxista não se volta para fora da obra, mas procura, antes, aprofundar-se dentro dela; não se trata tanto de buscar no exterior da obra os fatores sociais que poderiam explicá-la, mas principalmente de examinar sua lógica interna, por meio da análise formal, reconhecendo na literatura seu valor cognitivo 1.
sobre literatura, a qual deixou marcas na profusão de alusões e citações literárias disseminadas em seus escritos, e, sobretudo, na reconhecida força expressiva de sua prosa. Mais importante do que os dados biográficos da formação cultural de Marx, porém, são as considerações relacionadas à literatura e à arte que ele e Engels deixaram, pois a partir delas se buscou definir, em retrospecto, pontos de apoio para a construção de uma teoria literária marxista 2. Um trecho muito comentado pela tradição posterior, e por isso mesmo incontornável, é o do “Prefácio” (1859), Para a crítica da economia política, política, em que se esquematiza a relação entre base (infraestrutura) e superestrutura, em torno da qual outros teóricos discutiram o problema correlato da relação entre a realidade social e a literatura:
1. Os inícios
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1.1 na produção social de sua vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações
As figuras centrais da tradição inicial, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), não chegaram a elaborar uma teoria da literatura ou da arte que se possa considerar acabada ou sistematizada. No entanto, os escritos de Marx registram com abundância a preocupação de compreender adequadamente o fenômeno artístico, sem reduzi-lo a mero documento. Consta mesmo que ele teria 1
O presente presente capítulo deve muito muito a alguns textos que, que, pelo caráter introdutório, introdutório, se indicam como sugestões de leitura: (EAGLETON 1976b; 2011); (CALLINICOS 2001: 89-98); (MULHERN 1998:29-54); (FORGÁCS 1986:166-203). Para um contato inicial com textos de alguns autores centrais, recomendam-se as seguintes antologias: (EAGLETON; MILNE 1996); ( MULHERN 1992).
de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais 2
Os textos de de Marx e de Engels sobre arte e literatura (e questões pertinentes pertinentes à discussão do tema) foram compilados em diversas antologias, entre as quais: (MARX; ENGELS 1974; 2010). Um estudioso de Literatura Comparada fez o levantamento minucioso das referências literárias nos escritos de Marx, ver PRAWER (1978).
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determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento desenvolvimen to das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim. 3
Marx situa a arte no domínio da superestrutura, junto a outras formas ideológicas (políticas, religiosas, filosóficas etc.), através das quais os homens tomam consciência das próprias condições de existência e procuram resolver os conflitos em que estão implicados. Assim, o funcionamento da ideologia é indissociável das relações específicas entre as classes na sociedade. Em algumas passagens de texto anterior, A ideologia alemã alemã (1845-1846), percebe-se com clareza que a insistência de Marx na determinação material das formas ideológicas se deve ao caráter polêmico da discussão, em que ele se opõe à compreensão da história 3
(MARX 1978:129-130)
humana como sendo determinada por ideias. Contra tal concepção, Marx aponta a centralidade do trabalho humano, mostrando que a própria produção cultural não pode ser compreendida como esfera separada da totalidade das atividades realizadas pelos homens4. Por isso, talvez a formulação citada acima possa parecer unilateral, como se apenas a prática econômica influísse sobre a superestrutura, e esta apenas acompanhasse o desenvolvimento material. Mas seria mais preciso dizer que, para Marx, a produção material e a produção da consciência mostram ser s er reciprocamente determinantes: “A produção [...] produz não somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”5. Importa notar aqui que Marx enfatiza as inter-relações das formas ideológicas e das atividades materiais, de tal modo que a consciência não preexiste em relação à prática material, nem é mero epifenômeno ou subproduto dela: “A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real” 6. Desse modo, Marx procura realizar um movimento de “ascender do abstrato ao concreto”7, desfazendo a aparência de autonomia das formas ideológicas, as quais não são independentes da prática material e das relações entre os homens na sociedade. É verdade que algumas dessas formulações, quando lidas isoladamente, acabaram dando margem a certas esquematizações simplificadoras que a tradição posterior (de fundo positivista) vulgarizou 8. Mas as várias considerações de Marx e Engels sobre 4 5
6 7 8
Ver (MARX; ENGELS 2007:93-95) (MARX 2011:47). 2011:47). Vale lembrar, a propósito, que que o jovem jovem Marx já esboçava esboçava uma historicização dos sentidos humanos ao notar que “a formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui”. Ver (MARX 2004:110) (MARX; ENGELS 2007:93) (MARX 2011:54) Em 1890, Engels alertava alertava para o perigo da simplicação simplicação mecanicista, mecanicista, que ele
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o tema permitem entender a relação entre arte e estrutura econômica como sendo mais complexa do que a simples relação direta e mecânica em que a cultura estaria a reboque do desenvolvimento produtivo. Embora as transformações na superestrutura estejam de algum modo atreladas ao ritmo da produção material, para Marx
Para Marx, o trabalho crítico consistiria não só em reconhecer essas contradições, mas, sobretudo, em especificá-las para assim explicá-las. Na sequência do trecho citado, ele se coloca também o problema do valor estético: “a dificuldade não está em compreender que a arte e o epos gregos estão ligados a certas formas de desen-
as formas ideológicas não são mero reflexo passivo da estrutura econômica9. Nesse sentido, cumpre lembrar uma anotação de maturidade (1858) de Marx em que ele assinala “a relação desigual do desenvol vimento da produção produção material com, por por exemplo, o desenvolvimento artístico”:
volvimento social. A dificuldade é que ainda nos proporcionam prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável”11. Marx não deixou uma resposta satisfatória para o problema proposto, lembrando apenas que as condições sociais que produziram a arte ar te grega antiga “não podem retornar jamais”. jamais”. No entanto, as observações de Marx e Engels que tratam diretamente de literatura, mais do que fornecer respostas definitivas, apresentam um conjunto de questões que a tradição posterior continuou investigando. Seja como for, uma contribuição central de Marx para a teoria literária (e não só literária) é a exigência de compreender as atividades culturais no seu entrelaçamento com outras práticas materiais, como parte, portanto, da totalidade do processo social.
Na arte, é sabido que determinadas épocas de florescimento não guardam nenhuma relação com o desenvolvimento desenvolvimento geral da sociedade, nem, portanto, com o da base material, que é, por assim dizer, a ossatura de sua organização. P. ex., os gregos comparados com os modernos, ou mesmo Shakespeare. Para certas formas de arte, a epopeia, por exemplo, é até mesmo reconhecido que
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não podem ser produzidas em sua forma clássica, que fez época, tão logo entra em cena a produção artística enquanto tal; que,
1.2
portanto, no domínio da própria arte, certas formas significativas da arte só são possíveis em um estágio pouco desenvolvido do desenvolvimento artístico. Se esse é o caso na relação dos diferentes gêneros artísticos no domínio da arte, não surpreende que seja também o caso na relação do domínio da arte como um todo com o desenvolvimento geral da sociedade. 10 já identicava entre os novos “marxistas”. Ver Carta a Joseph Bloch, 21-22 de setembro de 1890 (In: MARX: ENGELS 2010:103-4; 106-7). Para uma discussão do tema, ver WILLIAMS ([1973] 2011; [1977] 1979:79-86; [1983] 1989:195-225). 9 A propósito, note-se que, que, ao tratar tratar de literatura, literatura, Marx jamais jamais usou a metáfora do “reexo” (Cf. PRAWER 1978:409). 10 (MARX 2011:62-63) 10
Na geração seguinte à de Marx e Engels, ou, para usar as balizas convencionais, desde os anos 1870 até a Primeira Guerra Mundial, prevaleceu entre os marxistas a vontade de sistematizar as ideias dos fundadores, estabelecendo padrões científicos. A ciência, no caso, era entendida na acepção predominante no final do século XIX, ou seja, positivista, o que redundou, para o tema aqui discutido, em uma visão determinista rígida da relação entre base e superestrutura. No campo da reflexão sobre arte e literatura, o crítico russo Georgi Plekhanov (1856-1918) é o principal representante dessa 11 11
(MARX 2011:63)
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tendência. Segundo ele, cabia ao estudioso encontrar o equivalente equivalente social” dos fatos literários, isto é, uma tarefa da crítica seria a identificação, a partir das obras, das afiliações ideológicas e da posição de classe dos escritores. Embora nas declarações teóricas Plekhanov sugerisse que a influência direta da economia sobre a arte só raramente se observa, na prática, a relação entre os fatores sociais condicionantes e as obras artísticas frequentemente acabou recaindo em análises simplificadoras12. No começo do século XX, homens políticos como Lênin (18701924)13 e Trotsky (1879-1940)14 também se dedicaram ao estudo da literatura e da arte, muitas vezes apresentando observações sobre base e superestrutura e sobre forma e conteúdo que se mostram mais complexas do que as esquematizações mecânicas do marxismo mar xismo vulgar. Mas, mais mais do que esmiuçar suas concepções crítico-teóricas, importa notar que, para Lênin e Trotsky, com suas perspectivas diversas, o alcance prático dos artigos sobre literatura era uma preocupação central, pois as reflexões sobre a produção literária eram entendidas também como intervenções políticas nas controvérsias ideológicas. Assim, e muito por razões históricas, que deixaram de existir para as gerações seguintes, falar sobre literatura não era, para eles, uma atividade separada da prática revolucionária. O percurso e o destino do inglês Christopher Caudwell (19071937) servem de emblema representativo dos intelectuais políticos daquela quadra. Com seus conhecimentos enciclopédicos acumulados em um curto intervalo de tempo, o “autodidata” Caudwell produziu toda sua obra em menos de quatro anos, abarcando assuntos que iam da física à literatura. Em Ilusão e realidade realidade (1937), seu 12 13 14
(Ver PLEKHANOV [1912], [1912], [1899] 1969). Sobre Sobre o “equivalente social”, ver JAMESON (1973:ix-x). Para um comentário geral, ver KONDER (1967:39-45). (LENIN 1968; 1970) (TROTSKY 1969)
estudo mais conhecido, buscou, com base no marxismo, fornecer uma explicação antropológica das origens e da função da poesia 15. Longe de ser apenas um literato com inclinações radicais, Caudwell, comunista ativo, juntou-se às Brigadas Internacionais e lutou na Guerra Civil Espanhola, morrendo na frente de batalha antes de completar trinta anos de idade16. 2. Marxismo ocidental e desdobramentos
2.1
É, sobretudo, a partir do trabalho do filósofo húngaro György Lukács (1885-1971) que se define com mais clareza a feição geral de uma teoria literária marxista propriamente dita. Nos anos 1930, Lukács trabalhou na Rússia ao lado de Mikhail Lifshitz (1905-1983) 17, e, contrariando a opinião predominante na época, ambos estavam convencidos de que o marxismo continha, em germe, uma estética coerente, ainda que não sistematizada. Não se tratava, portanto, de complementar o marxismo com uma estética externa a ele (como tentaram fazer os predecessores que foram buscar em Kant aquilo que julgavam faltar à teoria marxista 18); tratava-se antes de desentranhar e desenvolver a reflexão estética que já estava latente nos próprios escritos dos fundadores. Coube a Lukács definir as grandes linhas da investigação marxista da literatura, a partir da qual, ou contra a qual, muito da reflexão posterior foi elaborada. 15 16 17 18
(CAUDWELL 1937). 1937). Outro estudo estudo deste autor sobre literatura é CAUDWELL (1970) Este parágrafo parágrafo sobre Caudwell Caudwell reproduz reproduz observações de MULHERN MULHERN (1988:35). Ver também MULHERN (1974: 37-58); (THOMPSON 1994:77-140). O estudo pioneiro pioneiro e mais conhecido de Lifshitz, cuja primeira primeira edição russa é de 1933, é LIFSHITZ 1973. Sobre sua trajetória, ver MITCHELL (2006:28-44). É o caso de Plekhanov, já mencionado, e do alemão Franz Mehring. Sobre este, ver LUKÁCS (1966: 383-486).
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Capítulo 10 . Marxismo
Autor, na juventude, do influente estudo não marxista A Autor, marxista A teoria 19 do romance romance (1916) , que não cabe comentar aqui, Lukács aproximou-se do marxismo e escreveu História e consciência de classe classe 20 (1923) , marco iniciador do assim chamado marxismo ocidental. Juntamente com o conceito de reificação reificação,, que desenvolve a noção
Objeto central para a teoria de Lukács é o romance, a epopeia burguesa moderna (na caracterização de Hegel), “de tal modo ajustada ao novo curso do mundo que o ‘realismo’ vem a ser uma determinação inerente à sua forma”23. O movimento que o romance realista realiza em sua estrutura equivale a uma desalienação, pois
marxiana do “fetichismo da mercadoria”, apresenta-se no livro o tema do ponto do ponto de de vista da tota totalidade lidade.. Embora a estética não estivesse no centro de seus argumentos, essa obra abria um quadro teórico que possibilitava enfrentar a relação entre forma literária e processo social em termos novos, pois deslocava o modelo da relação entre base e superestrutura, afirmando antes a primazia do conceito de totalidade social21. A partir dos anos 1930, Lukács elaborou uma teoria da literatura com base em uma concepção própria de realismo, e, embora tivesse sido levado a renegar as teses de História e consciência de classe,, o tema da totalidade persiste, subjacente, em sua teorização classe da literatura realista, em que a narração ocupa lugar central22. Para Lukács, a literatura se torna significativa (realista) na medida em que alcança apreender as forças históricas que movem a sociedade, não se limitando à figuração das aparências superficiais; estas não são descartadas, mas mostradas na sua conexão com a estrutura profunda (ou a essência social) de que são manifestações.
se trata de atravessar a aparência reificada da vida social e mostrar como esta é resultado da estrutura da sociedade, em cujo fundo atuam as forças motrizes que carregam o impulso transformador. Assim, no romance, narrar equivale equivale a captar as articulações e inter-relações entre a experiência imediata (da vida cotidiana) e o dinamismo histórico profundo; ou seja, corresponde a apreender, no desenvolvimento da ação, as conexões que remetem ao processo social em sua integralidade24. Dizendo de outro modo, na concepção lukacsiana, o romance realista toma como ponto de partida as noções comuns, dadas na vivência cotidiana imediata, e o desenvolvimento do enredo desdobra as situações concretas nas quais as noções iniciais são postas à prova. A força do romance está na consistência com que apresenta o curso dessa evolução, ao longo do qual os significados se deslocam ou se restabelecem, revelando a verdade ou a inverdade das noções de que partira. Assim, tal dinâmica do romance realista é análoga ao movimento dialético da crítica marxista da sociedade burguesa: “o
19 (LUKÁCS 2000) 20 (LUKÁCS 2003) 21 “Não é o predomínio 21 predomínio de motivos econômicos econômicos na explicação explicação da história que que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova.” (LUKÁCS 2003:105). Como lembra um comentador, mais do que apenas a preocupação com as mediações, o conceito de totalidade implica decisivamente a transição do ponto de vista do indivíduo para a perspectiva das classes sociais (MUSSE 2004:10). 22 (Ver JAMESON JAMESON 1985:127-160; 2009:201-222)
jogo concreto das categorias [...] passa juízo sobre si mesmo” mesmo”25. Ainda no período de juventude, Lukács cunhou uma fórmula que, lida com referência à sua obra posterior, não deixa de resumir o princípio básico que orienta sua crítica madura: em literatura, diz ele, o verdadeiramente social é a forma 26. A despeito dos aspectos 23 24 25 26 26
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(ARANTES 1994:224) (Ver LUKÁCS LUKÁCS 1968; 1968; 2010; 2009; 2011) (Ver SCHWARZ 1965:115, 1965:115, 119) (Ver também também ARANTES 1994:215; 1996:35) 1996:35) (LUKÁCS 1981:174 1981:174 — trata-se de excerto da Introdução Introdução ao livro História do
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problemáticos de sua teoria do realismo, que gerou incompreensões, discussões e polêmicas, o fato é que Lukács é o primeiro crítico marxista a efetivamente fazer análise formal de maneira consequente, como se vê, por exemplo, no notável ensaio “Narrar ou descrever?” (1936)27. Ali Lukács investiga o predomínio da utilização de procedimentos formais naturalistas (a que ele chama de “descrição”) que substituem o uso de recursos realistas (“narração”), sendo essa transformação no plano das formas literárias correspondente à guinada ideológica da burguesia, ligada aos eventos políticos de 1848 na França. Lukács argumenta persuasivamente que o naturalismo prenuncia procedimentos “formalistas” que seriam depois levados ao extremo pelo modernismo, assim como sugere a conexão entre o predomínio da descrição no romance e a intensificação histórica dos efeitos da reificação. No entanto, embora tenha mostrado a articulação entre a mudança estético-formal e o novo conteúdo histórico-social, Lukács considera a literatura pós-realista como simples reprodução do mundo reificado, assimilando essa produção literária à decadência ideológica da burguesia depois de 1848 28. Estudos posteriores, retendo a fecunda percepção lukacsiana da guinada pós-realista, procuraram, no entanto, reconsiderar o sentido e o alcance estético das inovações formais impulsionadas pela nova configuração da luta de classes na Europa ocidental, descobrindo nelas não tanto uma capitulação ideológica, mas a invenção de procedimentos literários capazes de fazer frente às novas condições29. desenvolvimento do drama moderno [1909]). 27 (LUKÁCS 1968:47-99) 28 “A tirania da prosa do capitalismo 28 capitalismo sobre a íntima poesia da experiência experiência humana, a crueldade da vida social, o rebaixamento do nível de humanidade são fatos objetivos que acompanham o desenvolvimento do capitalismo e desse desenvolvimento decorre necessariamente o método descritivo.” (LUKÁCS 1968:66). 29 (Ver SCHWARZ 1990:167-173). 167-173). Cumpre mencionar mencionar aqui os estudos estudos de OEHLER (1997; 1999).
2.2
O problema da reversibilidade da análise de forma literária e de processo social permanece no centro da reflexão estética posterior a Lukács. No âmbito da Teoria Crítica, destaca-se o filósofo alemão eodor W. Adorno (1903-1969)30. Na obra de Adorno, pode-se discernir um tipo de crítica que não estabelece, de antemão, princípios abstratos, externos aos objetos estudados, com os quais buscasse avaliá-los; ao contrário, trata-se de levar a cabo uma crítica imanente, que permanece dentro do objeto analisado e, a partir dele, elabora os conceitos com os quais procura compreendê-lo, só extrapolando os limites do objeto na medida em que o respeita, pois visa a seu conteúdo de verdade, verdade, que o transcende31. Assim como, na filosofia, as categorias não só possibilitam conhecer o real, mas, também, carregam traços da experiência histórica que as tornou possíveis (havendo, portanto, um nexo entre a trama dos conceitos e o processo social), assim, também, na literatura, as configurações trazem as marcas da sociedade da qual se separaram ao individualizarem-se. As obras de arte têm um teor cognitivo, ainda que o conhecimento produzido pela arte não possa ser diretamente traduzido numa série de proposições. Para Adorno, as obras são como relógios de sol histórico-filosóficos que 30 31
Para uma introduç ão às ideias de Adorno, em que estas observações se apoiam, ver JARVIS (1998). “Se o conteúdo de de verdade é verdadeiro verdadeiro no sentido sentido enfático, se é mais mais do que meramente o que é intencionado, então ele deixa para trás a imanência na medida em que se constitui. A verdade de um poema não existe sem a estrutura do poema, a totalidade de seus momentos; mas ao mesmo tempo é algo que transcende a estrutura, enquanto estrutura da aparência estética: não a partir de fora, através de um conteúdo losóco enunciado, mas em virtude da conguração dos momentos que, tomados no conjunto, signicam mais do que o que a estrutura intenciona.” (ADORNO 1992:112-113, v. 2). Também foi consultada a tradução espanhola (ADORNO 2003:433)
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marcam a hora histórica32, e isso porque o conteúdo social está inscrito na organização formal das obras, embora não seja evidente nem imediatamente apreensível. Revelá-lo é a tarefa do crítico, que não buscará o social fora da obra de arte, mas o especificará tanto melhor quanto mais fundo mergulhar na obra, deixando-se guiar
apresentar o curso do mundo como algo inteligível e narrável, como se ainda fosse, essencialmente, um processo de individuação37. Informada pela experiência da arte moderna (produzida sob o influxo das vanguardas históricas), a teoria de Adorno deixa para trás as concepções tradicionais de obra orgânica38, entrevendo, no
por sua lógica própria33. Não se trata, portanto, de estudar os condicionamentos ou os efeitos da obra na sociedade, nem, muito menos, de usar as obras literárias para ilustrar teses sociológicas ou filosóficas: “O pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a outra coisa”34. A crítica procura, antes, mostrar de que maneira “o todo de uma sociedade, tomada como unidade em si mesma contraditória, aparece na obra de arte”35. Assim é que, mesmo a configuração lírica, que parece ser o que há de mais afastado do social ou mesmo oposto a ele, “é sempre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo social”36. Da perspectiva adorniana, o problema do realismo no romance ganha outra feição. Observando o desenvolvimento histórico das formas, Adorno argumenta que, para continuar fiel a seu impulso realista original, o romance precisou renunciar ao antigo realismo que, limitando-se a reproduzir o movimento aparente da sociedade, acabava por alinhar-se com a ideologia. Na sociedade totalmente
fragmentário e no dissonante, modos de formalização estética que dão a ver as contradições históricas: “Para a crítica imanente, uma formação bem-sucedida não é [...] aquela que reconcilia as contradições objetivas no engodo da harmonia, mas, sim, a que exprime negativamente a ideia de harmonia, ao imprimir na sua estrutura mais íntima, de maneira pura e firme, as contradições”39. A questão da atualidade balizada pelo desenvolvimento das forças produtivas é central na teoria de Adorno e havia sido explorada, no campo da estética, por Walter Benjamin (1892-1940). Entusiasmado com o progresso das técnicas de reprodução das obras de arte e tendo em vista a arte vanguardista russa pós-revolucionária, Benjamin procura identificar, no âmbito da arte, um dinamismo interno análogo ao do avanço das forças produtivas que, segundo o esquema de Marx, entra em contradição com as relações de produção e invalida as categorias que a acompanham. A reprodutibilidade técnica solapa o estatuto da obra “autêntica” ou “aurática”, que mantém vestígios da função originária da arte ligada ao ritual;
administrada, em que a própria alienação se transformou em meio estético, o momento antirrealista do romance moderno, que toma partido contra a mentira da representação e contra o próprio narrador, surge como desdobramento e resposta à impossibilidade de se
com isso, as categorias de autenticidade e de unicidade, em que se baseava a autoridade das obras, tornam-se obsoletas. Uma vez que o objeto único ocupa, no campo da arte, um lugar correspondente
32 33 34 35 36
ADORNO (2003:78-79) ADORNO (2003:66) ADORNO (2003:27) ADORNO (2003:67) ADORNO (2003:76)
37 38
39
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Ver “Posição do narrador narrador no romance contemporâneo contemporâneo”” (In: ADORNO 2003) A partir do estudo das das vanguardas vanguardas históricas, o crítico crítico Peter Bürger discute a teoria de Adorno e desenvolve a concepção de obra inorgânica, a qual exige a redenição dos métodos críticos tradicionais: “Não é mais a harmonia das partes individuais que constitui o todo da obra, mas, sim, a relação contraditória entre partes heterogêneas.” (BÜRGER 2008:162) (ADORNO 1998:23)
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ao da propriedade privada no domínio prático, a transformação identificada no âmbito estético anuncia o destino da própria classe proprietária e a alteração no relacionamento da arte com o real. Por isso, nas palavras de Benjamin, quando o critério da autenticidade perde força em face da produção artística, a arte deixa de fundar-se no ritual para fundar-se em outra práxis: a política40. Junto a isso, e influenciado pelo teatrólogo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) 41, Benjamin ensaiou ideias sobre a atuação política dos intelectuais, concebendo o “au “autor tor como produtor”. Sugerindo uma alternativa aos termos tradicionais do debate sobre a “tendência” política nas artes, ele propõe que, em vez de se perguntar sobre o modo como a obra literária se situa nas relações entre as classes, caberia indagar como ela se situa dentro das relações de produção. Insistindo na necessidade de o artista refletir sobre sua posição no processo produtivo, Benjamin lembra que, para Brecht, trata-se de transformar (“refuncionalizar”) os meios de produção artística em sentido progressista, tendo em vista a sua liberação. O intelectual que se solidariza com o proletariado não deve apenas abastecer o aparelho de produção existente, ainda que com obras de feição revolucionária; ele deve, antes, buscar modificá-lo, na medida do possível, num sentido socialista 42. Ao argumentar que a realização do progresso técnico acaba por conduzir à transformação da função das formas artísticas e, consequentemente, dos meios de produção intelectuais, Benjamin procurou vincular a arte modernista à causa da revolução43. 40 (Ver BENJAMIN [1935/36] [1935/36] 1985:171-2). Reproduzo Reproduzo comentário de SCHWARZ (1978:44; 2012:44-45) 41 Este capítulo ca devendo 41 devendo um comentário comentário adequado adequado sobre Brecht Brecht (Ver BRECHT 1978; 1964; 1973). Ver também BENJAMIN (1983); PASTA Jr. (2010); SCHWARZ (1999:113-148). 42 (BENJAMIN [1934] [1934] 1986:127) 43 (Cf. JAMESON 1985:69)
Seria coerente notar ainda que a própria sofisticação teórica e filosófica de Adorno (e de outros marxistas ocidentais) não deixa de ser também resultado de impasses históricos determinados. Ao mesmo tempo em que o marxismo ocidental, de que a Teoria Crítica é uma ponta avançada, aprofundou a análise da sociedade moderna, a ênfase sobre as questões culturais e sobre o problema da reificação correspondia também ao momento histórico em que, derrotadas der rotadas as irrupções revolucionárias em vários países da Europa, o desfecho prático da ação política, em princípio inseparável da atividade teórica da crítica, parecia bloqueado. Os desenvolvimentos des envolvimentos teóricos mais criativos do marxismo no século XX sem dúvida ocorreram fora do bloco socialista (em que se impôs a doutrina do “realismo socialista” nas artes e na crítica 44). Em parte, isso se deveu à falta de perspecti vas da prática política ligada à situação histórica após a derrota da revolução45. Nos seus piores efeitos, essas circunstâncias levaram à academização do marxismo, que corre o risco de converter-se em uma interminável reflexão teórica sobre si mesmo. 2.3
Nos anos 1960, o influxo avassalador do Estruturalismo nas Humanidades não deixou de imprimir sua marca também no 44 Promovido pelo secretário do Comitê Central Central Andrei Zhdanov (1896-1948), sobretudo nos anos 1940, o “realismo socialista” foi a doutrina estética ocial do período stalinista. Não é preciso enfatizar aqui o quanto tal doutrina foi perniciosa para a produção artística ocialmente sancionada dos Estados comunistas. Para um apanhado histórico da discussão teórica desde seus antecedentes, ver STRADA (1989:109-150, 151-219). Para um estudo dos romances soviéticos do realismo socialista, que recaíam na repetição dos modelos, ver CLARK (2000). E, para dimensionar adequadamente o problema, convém lembrar que o romance proletário mundial nem sempre esteve submetido aos preceitos do realismo socialista; ver o apanhad apanhado o de DENNING (2005:61-82). 45 (Ver ANDERSON 2004). 2004). Aproveito, neste passo, passo, uma formulação formulação de EAGLETON EAGLETON (In: EAGLETON; MILNE 1996:11-12)
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marxismo46. No tocante à teoria literária ligada ao marxismo estruturalista, cabe mencionar Pierre Macherey (1938-), ligado ao grupo de Louis Althusser (1918-1989), que empreendeu, nos anos 1960, uma releitura da obra de Marx. Opondo-se francamente às teorias tradicionais da literatura,
apresenta lacunas, ausências – uma incompletude determinada, pois o que lhe falta é o que a constitui como objeto 48. A relação da obra literária com a realidade objetiva não é, portanto, uma relação de representação. Nesse sentido, a obra não expressa a ideologia; ela dá a ver uma ausência determinada, sem a qual não existiria, e
geralmente voltadas para o consumo dos textos, Macherey desloca o acento para a investigação das condições de produção das obras. Ele rejeita as concepções “realistas” (representacionais) da literatura, bem como o procedimento imanente da crítica, buscando antes investigar a forma literária nas suas lacunas, que são inevitáveis e significativas47. Para Macherey, a crítica não pode ser apenas a verbalização do conhecimento mudo que o objeto supostamente abriga em seu cerne; a crítica deve ser antes uma forma de conhecimento científico que, distanciando-se do objeto, procura conhecê-lo como ele mesmo não pode conhecer-se. O escritor não fabrica os materiais que elabora, e a obra não é criada criada por por uma intenção (subjetiva ou objetiva) que lhe dá unidade; ela é produzida é produzida em em condições determinadas, por meio da elaboração de uma diversidade de materiais ideológicos e contraditórios. A obra é a tentativa de solução imaginária das contradições inconciliáveis, e se apresenta como uma unidade aparente e ilusória; o que a crítica deve buscar não são as marcas
nessa relação com o ausente se pode observar o funcionamento da ideologia. O importante na obra é o que não está dito: não o que ela se recusa a dizer, mas aquilo que ela não pode dizer :
de sua coesão, e, sim, as suas rupturas internas. Assim, a obra não é tanto um todo completo que se basta a si mesmo, pois forçosamente 46 marxismo e estruturalismo, que que só mencionaremos mencionaremos 46 Uma tentativa de articular marxismo de passagem, foi feita por Lucien Goldmann (1913-1970), lósofo romeno radicado na França. Goldmann desenvolveu um método crítico a que chamou de “estruturalismo genético”, que se volta para a investigação das estruturas mentais em sua relação com as condições históricas que as produziram. Para ele, caberia discernir as “homologias estruturais” entre as obras literárias e as “visões de mundo” das classes sociais. (Ver GOLDMANN 1967). Para um comentário abrangente, ver LÖWY; NAÏR 2009. 47 (Ver MACHEREY [1966] [1966] 1989). Para um comentário, ver EAGLETON EAGLETON (1986:9-21)
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o texto literário não é tanto a expressão de uma ideologia [...] mas a sua encenação, a sua exibição, operação na qual a ideologia se volta de certa maneira contra si mesma, visto que não po de ser assim exibida sem fazer aparecer os seus limites, no ponto preciso em que se mostra incapaz de assimilar realmente a ideologia adversa.49
Notadamente, na teoria de Macherey a obra literária não é concebida como uma forma que carrega um conhecimento acerca da realidade objetiva; ela é entendida, sobretudo, como um momento do processo de reprodução da ideologia dominante. O conhecimento só pode ser alcançado pelo crítico, que examina as condições de produção da obra e a interroga sobre aquilo que ela não diz. 48 “A obra existe sobretudo 48 sobretudo pelas suas ausências determinadas, determinadas, por aquilo aquilo que não diz, pela sua relação com tudo o que não seja ela própria. Não que, a bem dizer, a obra possa dissimular seja o que for: a obra não escondeu esse sentido no mais profundo de si própria, não o mascarou, nem lhe deu uma falsa aparência. Não se trata, por conseguinte, de o perseguir com uma interpretação. Não está na obra, está fora dela, nas suas margens, nesse limite em que a obra deixa de ser o que pretende ser, por aí entrar em relação com as condições da sua viabilidade.” (MACHEREY 1989:149). 49 (BALIBAR; MACHEREY MACHEREY [1974] 1976:38). Ver também ALTHUSSER ([1966] ([1966] 1971:221-227). Na formulação de Althusser, “a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”. (ALTHUSSER 1992:85)
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Capítulo 10 . Marxismo
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afinal de contas, um dos índices mais precisos da sua realização
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2.4
afinal de contas, um dos índices mais precisos da sua realização no momento histórico; na verdade, a forma é apenas a elaboração
No início dos anos 1970, nos Estados Unidos, Fredric Jameson (1934-) publicou um dos primeiros trabalhos a oferecer uma visão geral do repertório teórico-literário do marxismo ocidental, o livro Marxismo livro Marxismo e orma (1971)50. Retomando as obras de eodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Georg Lukács e Jean-Paul Sartre, Jameson procura aproveitar a lição desses autores para elaborar uma teoria própria. Tomando o problema do desenvolvimento histórico das formas literárias, Jameson recupera o tema da dialética de forma e conteúdo, assinalando que o novo está para o velho como o conteúdo latente procurando emergir à superfície para deslocar uma forma doravante obsoleta. A contradição entre o novo conteúdo e a forma velha, no plano da arte, corresponde, no plano da realidade, ao modelo marxiano da transformação revolucionária, em que o desenvolvimento das forças produtivas materiais entra em contradição com as relações de produção existentes e as modifica51. A forma, portanto, não é vista como aquilo com o que se começa, um molde inicial previamente dado, mas, sim, como aquilo com que se termina, isto é, a articulação última da lógica mais profunda do próprio conteúdo (mas a obra de arte perfeita, em que a forma seria inteiramente adequada ao conteúdo, não pode ter surgido ainda, simplesmente porque suporia a reconciliação dos antagonismos concretamente realizada na vida social). A adequação do conteúdo à forma nela realizada, ou não realizada, ou realizada de acordo com determinadas proporções, é, 50 (JAMESON 1985) 51 (JAMESON 1985:250-251). 250-251). Note-se de passagem passagem que que essa dinâmica dinâmica da relação entre conteúdo e forma sustenta o eixo do estudo de SZONDI (2001).
do conteúdo no domínio da superestrutura.52
O juízo crítico sobre as obras individuais é sempre, em última análise, social e histórico, pois avalia, no plano do resultado estético, as realizações e os defeitos formais, que são, ao mesmo tempo, índices da própria configuração social e histórica correspondente, a qual cabe à crítica explorar.53 Retomando elementos centrais da tradição anterior, Jameson indica que o método imanente é indispensável à crítica marxista 54. E mostra que, como consequência disso, o pensamento dialético envolve autoconsciência, autoconsciência, é pensamento elevado à segunda potência, pois consiste em refletir sobre um dado objeto e, também, simultaneamente, observar os próprios processos de pensamento. Tudo Tudo se passa como se o próprio material material se elevasse à consciência, não só como objeto analisado, mas também como um conjunto de operações mentais propostas pela natureza intrínseca desse objeto particular55. Em linha com outros autores da tradição dialética, Jameson lembra que o conteúdo (social) das obras não é informe, mas pré-formado e significativo desde o início: 52 (JAMESON 1985:252) 53 Nesta passagem, Jameson cita um trecho signicativ o da Estética de Hegel: “a 53 deciência da obra de arte não deve ser sempre atribuída apenas à falta de habilidade subjetiva, [...] a deciência da Forma também provém da deciência do conteúdo”. (HEGEL 1999:89-90). A observação hegeliana está na base de algumas considerações considerações de Adorno, que diz, por ex., que “todo fracasso [artístico] [...] que não resulte da contingência do talento e que se torne transparente em sua necessidade, aponta para o social”. (ADORNO 1983:267). A questão é retomada por SCHWARZ (1990:161). 54 “Para uma crítica genuinamente genuinamente dialética dialética [...] não pode pode haver nenhuma categoria de análise preestabelecida: na medida em que cada obra é o resultado nal de uma espécie de lógica interna ou do desenvolvimento no seu próprio conteúdo, ela produz suas próprias categorias e dita os termos especícos de sua própria interpretação.” (JAMESON 1985:255) 55 (JAMESON 1985:260)
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a característica essencial da matéria-prima literária ou do conteúdo latente é, precisamente, que nunca é inicialmente sem forma, nunca [...] inicialmente contingente, mas sim significativo já de saída, não sendo nem mais nem menos do que os próprios componentes de nossa vida social concreta: palavras, pensamentos, objetos, desejos, pessoas, lugares, atividades. A obra de arte não confere significado a esses elementos, mas antes transforma seus significados iniciais em uma nova e intensificada construção de significado; por esse motivo, a criação ou a interpretação da obra não podem mais constituir um processo arbitrário. arbitrário.56
Tendo em vista que a forma literária é conteúdo elaborado e transformado, Jameson completa completa o raciocínio sugerindo que, para a crítica dialética, falar em “interpretação” das obras não deixa de ser impreciso: o conteúdo não precisa ser interpretado, pois é significativo por si mesmo. O conteúdo, sendo experiência social e histórica, já é concreto; ele apenas foi transformado em outra outra coisa ao ser formalizado artisticamente. Para usar a analogia psicanalítica, o conteúdo latente (a experiência original) diverge do conteúdo manifesto, que é sua manifestação distorcida. Assim, a tarefa da crítica não é tanto a interpretação do conteúdo, mas é a revelação ou o desnudamento desse conteúdo, é a reconstituição da experiência original; e esse procedimento crítico toma a forma de uma explicação de como o conteúdo foi distorcido na elaboração formal. Essa elaboração artística, que transforma o conteúdo e os significados iniciais, é significativa pelo modo como opera. O importante não é apenas desvendar o conteúdo ou a experiência histórica original, mas, sim, especificar a maneira pela qual a obra literária distorce ou transforma os materiais de que parte, pois é na particularidade da configuração formal que se inscreve seu sentido 56
(JAMESON 1985:305-306)
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histórico. Assim, a arte pode ser entendida como resolução imaginária de contradições sociais reais57, e é essa questão que Jameson desenvolve e elabora em seu livro O inconsciente político (1981) político (1981)58. Na medida em que se trata de reconstituir o conteúdo social e histórico original, o horizonte último da crítica é sempre a própria História: “a História é o que fere, o que recusa o desejo e impõe limites inexoráveis ao indivíduo e à práxis coletiva [...]. Mas esta História só pode ser apreendida por meio de seus efeitos, e nunca diretamente como uma força reificada”59. Pode-se lembrar aqui, ainda que apenas de passagem, um ponto de contato com a perspectiva (na verdade bastante diversa) do crítico britânico Terry Eagleton (1943- ), no livro em que expõe, de maneira mais desenvolvida, uma teoria própria: Mais do que “transpor imaginariamente” o real, a obra literária é a produção de certas representações do real produzidas num objeto imaginário. Se ele distancia a história, não é porque a transmuta em fantasia [...], mas porque as significações que elabora em ficção já são representações da realidade mais do que a própria realidade. O texto é um tecido de significados, percepções e respostas que aderem em primeiro lugar àquela produção imaginária do real que é a ideologia. O “real textual” está relacionado com o real histórico, não como sua transposição imaginária, mas como produto de certas práticas de significação cuja fonte e referente é, em última instância, a própria história.60 57 58
(JAMESON 1985:291) Diz Jameson: “a ideologia ideologia não é algo que informa ou envolve a produção produção simbólica; em vez disso, o ato estético é em si mesmo ideológico, e a produção da forma estética ou narrativa deve ser vista como um ato ideológico em si próprio, com a função de inventar ‘soluções’ imaginárias ou formais para contradições sociais insolúveis.” (JAMESON 1992:72) 59 (JAMESON 1992:93) 60 (EAGLETON 1976:75 60 1976:75 — tradução minha). minha). A obra de Eagleton Eagleton não será comentada comentada
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Por fim, cabe fazer um autocomentário, lembrando, com Jameson, que “a única apresentação genuinamente concreta da crítica dialética é a prática dessa mesma crítica” 61, e, nesse sentido, o presente apanhado de questões teórico-metodológicas da crítica marxista se atém a apenas uma de suas metades, deixando de fora as análises concretas. Se renunciamos, aqui, a apresentar resumos das leituras interpretativas de textos literários realizadas pelos autores tratados, é porque fazê-lo neste contexto equivaleria a rebaixá-las a meras exemplificações dos procedimentos metodológicos. O alcance (e risco) da crítica marxista mostra sua força nos resultados da análise de obras específicas, resultados que apontam sempre para problemas histórico-sociais mais amplos, que não se limitam a questões de método (o próprio método é antes submetido ao escrutínio crítico no processo mesmo da investigação do objeto literário 62). 3. Crítica literária marxista no Brasil
3.1
Mais do que numa simples recepção da teoria literária marxista no Brasil, convém pensar na sua reinvenção ou na sua apropriação original por parte de críticos literários que souberam reconhecer na experiência brasileira um prisma a partir do qual obser var o mundo contemporâneo e, como tal, capaz de sustentar desdobramentos teóricos novos (ou que, pelo menos, contrariavam alguns esquemas vigentes no marxismo do tempo). O marxismo nos estudos literários brasileiros ganhou impulso nos anos 1960 e amadureceu nas décadas seguintes. Antes desse aqui, mas convém ao menos indicar alguns de seus estudos de cunho teórico: EAGLETON (1983; [1984] 1991; [1990] 1993; [1991] 1997; [2003] 2005) 61 (JAMESON 1985:260). 62 Para as análises 62 análises textuais de Jameson, Jameson, ver, além dos capítulos interpretativos interpretativos de O inconsciente político, os estudos reunidos em JAMESON ([1988] 2008)
período, a crítica de inspiração marxista produzida por aqui tem apenas interesse histórico: o principal personagem é Astrojildo Pereira (1890-1965), antigo anarquista que se tornou figura política importante nos inícios do comunismo brasileiro. Como crítico literário, estudou principalmente a obra de Machado de Assis, sem, no entanto, ultrapassar o viés limitado que tratava as obras como documentos históricos63. Outro crítico ligado ao marxismo é o historiador Nelson Werneck Sodré (1911-1999), que foi dos primeiros a tentar incorporar as ideias de Lukács ao estudo da literatura brasileira (na 3ª edição de sua História da Literatura Brasileira, Brasileira, publicada em 1960), restringindo-se, porém, à declaração de intenções e princípios teóricos, sem chegar, no ato crítico, à efetiva superação do sociologismo que pretendia derrotar64. Dos críticos jovens que despontaram nos anos 1960, cabe mencionar Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), talvez aquele que, entre todos, produziu os estudos mais aderentes à teoria lukacsiana estrita e strita no Brasil, num momento em que Lukács era das poucas referências de peso na teoria literária marxista. No percurso intelectual posterior, Coutinho aproximou-se da obra do italiano Antonio Gramsci (1891-1937), sem, contudo, abandonar o núcleo lukacsiano, pelo menos no que toca os estudos literários65. 3.2
Mas foi junto à tradição de pensamento sobre o Brasil e sua posição particular no sistema mundial que se desenvolveu a mais penetrante e fecunda crítica literária marxista brasileira. 63 64 65
(Ver PEREIRA PEREIRA [1959] [1959] 1991; 1991; 1944) 1944) (Ver SODRÉ SODRÉ 1960; [1965] 1992). (Ver COUTINHO 1967; 1990; 1990; 2005). Sobre o autor, ver ver KONDER (1991:117-124) (1991:117-124)
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Capítulo 10 . Marxismo
Todo o percurso de Antonio Candido de Mello e Souza (1918) na crítica literária pode ser visto como um esforço de superar as principais modalidades críticas então vigentes e alcançar um método próprio, capaz de fazer justiça à complexidade das obras literárias, em suas múltiplas dimensões, que incluem a histórica e a social.
Essa conversão do externo em interno, ou, mais precisamente, a transformação de uma forma social, posta pela vida prática, em forma literária, trabalhada pelo escritor, é o que Antonio Candido chama de “formalização estética” ou “redução estrutural” dos dados sociais. Pode-se mesmo dizer que, para a crítica dialética, mais do
Embora seu trabalho mantenha distância da terminologia marxista, pode-se dizer que sua inspiração fundamental é o marxismo. Da perspectiva metodológica, Antonio Candido anuncia um modo de ler voltado para a configuração particular das obras, procurando descobrir nas formas aquilo que a literatura é como conhecimento. Nos anos 1960, diante das insuficiências das vertentes formalistas da crítica e do marxismo vulgar, Antonio Candido elabora de maneira independente um modo de examinar a dialética de forma literária e processo social. O problema se punha como necessidade de superar os estudos “paralelísticos” das obras literárias, ou seja, as análises que se limitam a traçar paralelos entre as obras e a vida social, de ta l modo que os elementos sociais são considerados somente como fatores condicionantes ou como enquadramento contextual, permanecendo, portanto, fora das obras estudadas. Tais Tais estudos se mostram insatisfatórios porque tratam a literatura como documento e apenas indicam a ocorrência temática de aspectos sociais nos textos, menosprezando sua elaboração estética e, con-
que a relação relação entre entre literatura e sociedade, importa examinar a trans ormação da sociedade em texto, isto é, a maneira como a sociedade ormação da se objetiva na forma literária. O alcance do método se faz notar nos estudos analíticos publicados na década de 1970: “Dialética da malandragem” (1970), “Degradação do espaço” (1972), “O mundo-provérbio” mundo-provérbio” (1972) e “De cortiço a cortiço” (redigido em 1973)67. O conjunto desses ensaios, sobretudo os que tratam de romances brasileiros, é dos raros em que a análise formal, guiada pela experiência estética e confiando no valor de conhecimento da literatura, efetivamente alcança a descoberta e a conceitualização de aspectos ocultos da sociedade, podendo contrariar noções estabelecidas ou suscitar questões espinhosas68. Aqui, a forma funciona como “um princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos”69. Produzida pelo próprio processo social, a forma faz parte dos materiais elaborados pelo escritor, correspondendo a um princípio estruturador que torna coerente e inteligível tanto os
sequentemente, seu valor cognitivo próprio. Para ultrapassar essas abordagens, Candido passa a investigar os processos de estruturação, em que os dados externos da realidade social se convertem em elementos estruturadores internos à obra, podendo, assim, ser tratados como fatos estéticos66. A consequência é que a prioridade passa para a análise formal, a partir da qual se revela o teor de conhecimento das obras.
elementos da realidade quanto os da ficção. Diferentemente da visão corriqueira segundo a qual a realidade é informe e o escritor lhe
66
69
(Ver CANDIDO CANDIDO [1965] [1965] 1980:3-15; 1980:3-15; 1993:9) 1993:9)
67
68
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Estudos reunidos na primeira parte parte de O discurso e a cidade (ver CANDIDO 1993). O melhor comentário ao trabalho de Candido, em que nos apoiamos amplamente,, encontra-se nos artigos de Roberto Schwarz indicados nas notas amplamente seguintes. “Se a forma literária for levada a sério e tomada tomada como ponto de de partida dialético, dialético, o resultado da reexão não estará sob controle nem será previsível de antemão.” (SCHWARZ 1989:147) (SCHWARZ 1989:141)
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dá uma forma, aqui a realidade social é entendida como sendo ela
Capítulo 10 . Marxismo
de autores, obras e público, mas também envolvia a constituição
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mesma dotada de forma. A forma literária é, nesse sentido, “a transformação, com resultado variável, de formas preexistentes, artísticas ou extra-artísticas”70, ou seja, a forma, assim entendida, sempre tem um fundamento prático-histórico. Junto aos desenvolvimentos que, por falta de expressão melhor, chamamos aqui de “metodológicas”, a obra de Antonio Candido deu configuração para o problema básico da vida cultural c ultural brasileira, discernindo o eixo central da experiência intelectual no país. Em Formação da literatura brasileira (1959) brasileira (1959)71, Candido elaborou as balizas para a compreensão do funcionamento dos sistemas culturais no Brasil (dos quais o sistema literário foi o mais acabado), marcados pela incontornável tensão entre localismo e cosmopolitismo, em cujo fundo se encontrava a particularidade do país periférico no capitalismo internacional. Alinhando-se a outros ensaios de interpretação do Brasil, que explícita ou implicitamente eram guiados pela ideia de “formação”, o estudo de Candido forneceu as bases para a explicação adequada da lógica da vida cultural brasileira, que se assenta na dupla fidelidade às formas importadas e à realidade local, com seus resultados variáveis. O essencial no processo formativo é a definição de uma tradição, que não é vista como mera linha de continuidade, mas como “um sistema local de problemas e contradições” que passa a funcionar como um filtro histórico, o qual permite dimensionar e assimilar criteriosamente o influxo externo, ou seja, tendo em vista a experiência social específica72. Assim, a formação do sistema literário não só consistia no funcionamento de um sistema articulado 70 (SCHWARZ 1999:31) 71 (CANDIDO 1993) 72 (SCHWARZ 11999:20). 999:20). Ver também ARANTES (1997:7-66; 1992) 1992)
de uma tradição, entendida como um campo de problemas reais, específicos e irresolvidos, que exigem superação 73. Mas aqui já estamos adentrando naquilo que, posteriormente, Roberto Schwarz desvendará ao fornecer uma explicação histórica e materialista para o tema das “ideias fora de lugar” 74: partindo do sentimento comum de que a vida cultural no Brasil aparece como sendo postiça, imitada ou inautêntica, Schwarz reconstitui a dinâmica cultural pós-independência com base na inserção do país na nova ordem do capitalismo internacional e demonstra que os problemas culturais do Brasil não se devem à importação das formas, e, sim, à segregação dos pobres, a quem não são estendidos os resultados da civilização contemporânea, de tal modo que a estrutura de iniquidades do país “confere à cultura uma posição insustentável, contraditória com o seu autoconceito”75. 3.3
A obra crítica de Roberto Schwarz (1938- ) se beneficia do trabalho de Antonio Candido em toda a linha, tanto dos procedimentos analíticos quanto da elucidação da experiência brasileira. Voltando-se para a investigação dos inícios do romance nacional até a sua culminação na obra madura de Machado de Assis, Schwarz desenvolve e aprofunda a lição do mestre76. O comentário de Schwarz sobre a crítica de Antonio Candido pode ser tomado também como explicação de seus próprios procedimentos e princípios teóricos: 73 74 75 76
(Ver SCHWARZ 1989:31) (SCHWARZ 1977:13-28; 2012:165-172) (SCHWARZ 1977:46) (Ver SCHWARZ 1977; 1990; 2002:247-279). 2002:247-279). Ver também também ARANTES (1992)
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Capítulo 10 . Marxismo
A forma de que falamos aqui é inteiramente objetiva, com o que
do conjunto mais ou menos contingente de condições em que
queremos dizer que ela se antepõe às intenções subjetivas, das
uma forma nasce, esta retém e reproduz algumas – sem as quais
personagens ou do autor, as quais no âmbito dela são apenas
não teria sentido – que passam a ser o seu eeito literário , o seu
matéria sem autoridade especial, que não significa diretamente,
“efeito de realidade”, o mundo que significam. Eis o que interessa:
ou que só significa por intermédio da configuração que a rede-
passando a pressuposto sociológico, uma parte das condições
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fine. Quanto a afinidades, o primado da forma sobre opiniões e intenções se torna programático, na história do romance, a partir
históricas originais reaparece, com sua mesma lógica, mas agora no plano da ficção e como resultado formal. Neste sentido, for-
de Flaubert. Fora da literatura, o sentimento análogo se encontra
mas são o abstrato de relações sociais determinadas, e é por aí
na ideia marxista da precedência do processo, cuja engrenagem
que se completa [...] a espinhosa passagem da história social para
objetiva, funcionando atrás das costas dos protagonistas, tam-
as questões propriamente propriamente literárias, da composição – que são de
bém lhes utiliza e desqualifica os propósitos, transformados
lógica interna e não de origem. 79
em ilusões funcionais [...]. O interesse dessa ideia “desumana” e puramente relacional de configuração artística, cheia de implicações materialistas e desabusadas, não está na harmonia, mas na dissonância reveladora, cuja verdade histórica é tarefa da interpretação evidenciar. Por fim, trata-se de uma forma de formas, um complexo altamente heterogêneo de experiências literariamente literariamen te transpostas, sobre o qual o romancista trabalha.77
Tal como outros críticos marxistas, Schwarz entende que a matéria trabalhada pelo escritor não é informe: “é historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência”. A forma literária alcançada pelo escritor é, portanto, elaborada sobre formas (sociais) prévias, e o resultado estético depende do acordo ou desacordo entre a forma literária e a matéria pré-formada78. Dito de outro modo, no processo de configuração literária, um aspecto da lógica estrutural da sociedade se converte em princípio formal da obra, subordinando os outros elementos e organizando a obra como um todo: 77 78
(SCHWARZ 1999: 41) (SCHWARZ 1977:25, 42)
Ao estudar o romance urbano de José de Alencar e a obra inicial de Machado de Assis, Schwarz mostra que a formação do romance brasileiro envolve uma variante original da dialética de forma e conteúdo. A incorporação, por Alencar, da forma do romance realista europeu acabava produzindo contrassenso ao amalgamar-se com c om a matéria brasileira. Isso porque o eixo do romance realista é sustentado por enredos que “devem a sua força simbólica a um mundo que no Brasil não tivera lugar. Sua forma é a metáfora tácita da sociedade [desencantada] [...] que resulta da racionalidade burguesa, ou seja, da generalização da troca mercantil”80. No Brasil de meados do século XIX, cuja produção econômica, voltada para o mercado externo, se fundava no trabalho escravo e no latifúndio, o principal da vida ideológica girava em torno das relações de favor e dependência pessoal direta, o que deslocava o funcionamento da cultura burguesa e, consequentemente, os grandes temas centrais do realismo literário. Depois de esmiuçar os fundamentos históricos das fraturas formais do melhor romance urbano de Alencar, Senhora (1875), 79 (SCHWARZ 1977:38-39) 80 (SCHWARZ 1977:42)
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Schwarz resgata o momento de verdade do fracasso artístico, assina-
Capítulo 10 . Marxismo
Neste desenvolvimento peculiar do romance periférico, não
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lando o valor mimético da inconsistência formal. O defeito formal pode ser entendido, então, como novo ingrediente que se acrescenta ao material artístico: “de forma a inconsistência passa a matéria”; ou seja, a forma fraturada se converte em material a ser, por sua vez, elaborado em outra forma. Agora, a própria matéria brasileira está enriquecida e, por assim dizer, amadurecida, pois passa a incluir todo um universo formal degradado: “nossa matéria literária alcança densidade suficiente só quando inclui, no próprio plano dos conteúdos, a falência da forma europeia, sem a qual não estamos completos” 81. Em sua obra madura, a partir de Memórias de Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), Cubas (1880), Machado de Assis inventa uma forma sui generis para generis para tratar adequadamente essa matéria. Fundada na volubilidade narrativa e nas relações de classe brasileiras, a solução formal machadiana mostrou-se capaz de assimilar a matéria cotidiana da vida social, bem como de incorporar as formas modernas (burguesas) enquanto formas falidas. Dessa combinação peculiar de notação local e cultura “universalista”, resultava a desqualificação recíproca dos dois polos, a qual aponta para a efetiva universalidade de Machado, cuja força crítica não se restringe ao plano nacional, mas visa à sociedade burguesa no seu conjunto. Dessa perspectiva, a inovação formal empreendida por Machado não decorreu apenas do talento individual, mas, sobretudo, da tenacidade com que enfrentou os problemas inscritos em seu material, dominando-os na elaboração da forma literária82. 81 82
(SCHWARZ 1977:50-51) Talvez não seja descabido descabido lembrar aqui uma imagem imagem de Adorno; segundo segundo ele, as obras signicativas deixam vestígios no material, e esses vestígios, sobre os quais a obra qualitativamente nova trabalha, são cicatrizes, são os pontos em que as obras precedentes fracassaram. (ADORNO 1988:48-49)
é tanto o novo conteúdo que torna obsoleta a forma enrijecida e doravante antiquada, mas é a forma mais avançada (a do romance realista) que é posta em questão pela matéria brasileira, aparentemente atrasada. “Aparentemente” porque o conjunto problemático das relações locais não era mero resquício do passado que barrava a entrada do progresso, mas era ele mesmo um resultado moderno moderno do desenvolvimento do capitalismo mundial, pois a reprodução do sistema escravista-clientelista era a condição que possibilitava à elite brasileira a participação no universo cu ltural moderno. Assim, a crítica literária de Schwarz examinava as consequências estéticas e ideológicas do “desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo”, demonstrando no detalhe como as peculiaridades da experiência brasileira, formalizada no romance maduro de Machado, articulam-se ao sistema mundial unificado pelo capital e ao mesmo tempo assimétrico em seus múltiplos efeitos. A leitura empreendida por Schwarz devia o seu tanto a uma nova compreensão do Brasil que se entroncava na tradição crítica local e que consistia em “articular a peculiaridade sociológica e política do país à história contemporânea do capital” 83, abrindo a possibilidade de abarcar, por meio dos problemas nacionais, a integralidade do processo. Essa reflexão coletiva possibilitou, assim, desembaçar o ponto de vista da periferia, que passou a funcionar como as lentes bifocais com que se tornou possível não apenas examinar a experiência local e seu show show de de horrores, mas também observar e criticar a cena mundial e suas abominações próprias; desse modo, revitalizou-se a noção de totalidade, a qual hibernava, desacreditada pela teoria produzida nos núcleos centrais 84. 83 84
(SCHWARZ 1999:93) (Ver ARANTES ARANTES 1996:66; 1992:84)
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Capítulo 10 . Marxismo
O resultado decisivo dos estudos de Schwarz sobre Machado de Assis, obtido por meio da investigação estética, diz respeito ao modo como a narrativa machadiana madura dá a ver o formalismo da civilização burguesa, que pode não apenas incluir, mas chega mesmo a exigir as formas mais brutais de barbárie. Desse modo, a
A partir dos anos 1980, Jameson voltou-se progressivamente para o estudo das mais diversas formas artísticas e culturais, com o intuito de investigar a “lógica cultural do capitalismo tardio” 87. Além de intervir no debate sobre o pós-modernismo, Jameson tinha em seu horizonte o desejo de mapear a totalidade, examinando as ma-
experiência periférica revela de maneira mais extrema a regra geral do caráter incivil da civilização burguesa.
nifestações culturais correspondentes ao que ele periodizou como um novo estágio do capitalismo. É notório que, nesse processo, a produção literária mostrou-se pouco eficaz no que diz respeito ao conhecimento que pôde lançar sobre a sociedade contemporânea. No conjunto das investigações de Jameson sobre o pós-modernismo, a análise em profundidade de textos literários deu lugar a apanhados amplos em que a literatura ocupava posição marginal. À crescente mercantilização parecia corresponder o enfraquecimento da literatura como forma capaz de apreender e configurar aspectos sociais significativos da atualidade. Para compor nosso problema de outro ângulo, lembremos que, em entrevista recente (2004), Roberto Schwarz se pergunta sobre as dificuldades da crítica literária marxista mar xista nas circunstâncias atuais:
4. A crítica literária marxista e o futuro
Qual o futuro da crítica literária marxista? Como se sabe, no âmbito acadêmico, a partir dos anos 1990, os estudos literários tenderam cada vez mais a se transformarem em estudos culturais. Trata-se de um processo de incorporação de um projeto crítico que, em sua origem, era fundamentalmente político: o “materialismo cultural” de Raymond Williams (1921-1989)85 e os estudos culturais britânicos. Ao se generalizarem na academia norte-americana (passando daí para outras partes do mundo), os estudos culturais se alinharam com as novas “micropolíticas”, frequentemente deixando para trás o fundamento propriamente marxista dos estudos culturais originais 86. Assim, os estudos literários deixaram de ser exclusivamente literários, e, junto com o triunfo dos estudos culturais, agora com nova feição, deu-se também um abandono do impulso político marxista que ha via motivado o projeto crítico na Ingla Inglaterra. terra. Mais do que discutir o percurso institucional da crítica contemporânea, porém, talvez seja o caso de indagar sobre o próprio estatuto da literatura enquanto forma artística capaz de revelações sobre a experiência histórica atual. A trajetória de Fredric Jameson pode servir de indicação das próprias dificuldades da crítica literária marxista contemporânea.
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esse tipo de crítica [dialética] supõe obras e sociedades muito estruturadas, com dinamismo próprio. Trata-se de enxergar uma na outra as lógicas da obra e da sociedade, e de refletir a respeito. Acontece que vivemos um momento em que essa ideia de sociedade, como algo circunscrito, com destino próprio, está posta em questão, para não dizer que está em decomposição. Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética interna forte – talvez alguns países do centro tenham, talvez nem eles. E no campo das obras, com a entrada maciça do mercado e da mídia na cultura, é voz corrente que a ideia de arte mudou, e
85 86
(Ver WILLIAM [1958] 1969; 1969; [1973] 1990; [1980] [1980] 2011; [1981] 1992; 1992; [1989] 2011) (Ver JAMESON 1994:11-480. Ver Ver também CEVASCO CEVASCO (2003)
87 (JAMESON [1991] 1996; [1998] 2006; Ver também (1999)
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é possível que o padrão de exigência do período anterior tenha
Capítulo 10 . Marxismo
buscar sua inspiração no futuro 91, a crítica literária marxista só pode
403
sido abandonado. Talvez Talvez os pressupostos pressupostos da crítica dialética este jam desaparecendo... desaparecendo...88
Não se trata, é claro, de anunciar o fim da crítica dialética, mas de apontar a necessidade de sua renovação diante das condições históricas vigentes, sem renunciar, no entanto, a seu núcleo fundamental, a teoria marxiana do valor-trabalho. Se é verdade que as feições transformadas da realidade presente indicam uma ruptura que abriu um novo ciclo histórico que aguarda diagnóstico 89, então a crítica marxista (não só literária) defronta a exigência de elaborar conceitualmente a lógica de funcionamento da sociedade s ociedade capitalista atual, talvez nem sempre adequadamente apreendida por meio das categorias estabelecidas, e que a produção literária recente rece nte tampouco parece estar sendo capaz de penetrar com força reveladora. Deixando apenas esboçadas essas perguntas, resta terminar lembrando mais uma vez que a relevância da teoria e da crítica literárias se vincula à abrangência com que faz ressoar problemas mais amplos, de caráter histórico e social: a crítica só foi significativa quando se envolveu com questões que ultrapassavam ultrapassa vam o literário – quando, por alguma razão histórica, o “literário” foi subitamente trazido ao primeiro plano como veículo de preocupações vitais profundamente enraizadas na vida intelectual, cultural e política em geral de uma época. 90
Assim como, para Marx, a prática revolucionária não deve colher sua poesia nas imagens consolidadas do passado, mas, sim, 88 (SCHWARZ 2012:292) 89 (Ver ARANTES 2007) 90 (EAGLETON 2005:107; 90 107; 1991:99, a tradução foi modicada) modicada)
ser movida pelo desígnio emancipatório que continua irrealizado na tradição dos oprimidos e impulsiona a teoria crítica, fornecendo uma perspectiva por meio da qual podemos observar a história contemporânea. Sendo, acima de tudo, uma crítica do presente, o marxismo se volta para as questões da atualidade, cujo enfrentamento estimula e é estimulado pelo empenho em construir a ruptura capaz de encerrar a pré-história da humanidade em que ainda permanecemos mergulhados92. Referências
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91 91 92
(MARX 2011:28) Ver o comentário comentário de Paulo Paulo Arantes sobre sobre a atualidade atualidade do Manifesto comunista de Marx e Engels (ARANTES 2004:133-137)
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Capítulo 11
Feminismo e literatura:
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... a questão undamental para a crítica eminista está cirada na intervenção do sujeito no processo hermenêutico, de modo que as relações entre a dimensão teórica e a pretensão prática se articulem como base da consciência histórica, exigência primeira para qualquer qualquer transormação da vida. Rita Terezinha Schmidt
Introdução
Contemporaneamente, os estudos feministas têm-se constituído em importante campo de pesquisa, presente em muitas áreas do conhecimento, ensejando reflexões e ações diversificadas que têm influído na transformação da sociedade. Conquistas significativas, como o direito de a mulher eleger e o de ser eleita, de frequentar uma universidade ou de exercer uma profissão foram triunfos do movimento feminista, o que possibilitou a subversão da posição de marginalidade à qual o gênero feminino sempre fora relegado. No entanto, esse movimento não pode ser entendido como uma posição monolítica, da mesma maneira como o conceito mulher não pode ser percebido como categoria universal, mas um termo relacional, conforme assertiva de Judith Butler (2003). Uma vez que tanto mulher como movimento feminista apresentam múltiplas abordagens, devem ser vistos em sua pluralidade, em consonância com vertentes teóricas específicas. A representação da mulher na literatura, independentemente do sexo do autor/a, favorece aproximações de variadas ordens, tais como psicanálise, pós-colonialismo, pós-modernismo, entre outras, constituindo um modelo de crítica literária muito produtivo, a crítica feminista. A teoria crítica feminista desenvolveu-se a partir do movimento das mulheres e apresenta, como um de seus resultados, novas discussões sobre a abordagem
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do fenômeno literário, a constituição do cânone literário e a escrita
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oportunidades de formação que os homens, pois, na sua opinião, da
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da história da literatura. Retrospectiva
Relegada a uma condição subalterna, desde a Antiguidade, a mulher detinha poucos direitos jurídicos, os quais foram ainda mais reduzidos no Período Medieval e, assim, prosseguiram até o século XVIII, quando o sistema absolutista e o direito romano reforçaram o poder patriarcal 1. Na realidade, o conhecimento losóco, fundamentado em Aristóteles, o direito
canônico, de base judaico-cristã, e o discurso político eram fundamentados na superioridade masculina do pai de família e na sua autoridade, em detrimento da mulher, considerada física, intelectual inferior. A partir Iluminismo, o interesse pelase socialmente mulheres ampliou-se, bem do como sua participação pública. Os debates que se realizavam durante a Assembleia Constituinte, na época da Revolução Francesa, despertaram a atenção de muitas mulheres, induzindo-as a frequentá-la, assistindo aos trabalhos das galerias, enquanto tricotavam (as tricoteuses), uma vez que não podiam tomar parte das discussões. A participação na vida social, nos salões, e as conversações que ali se produziram celebrizaram muitas mulheres, as famosas “preciosas”, ridicularizadas (e imortali zadas) por Molière na comédia As precisosas precisosas ridículas ridículas 2. Ainda no século XVIII, desempenhou papel relevante a escritora e educadora Mary Wollstonecra (1759-1797), que publicou, em 1792, a obra Vindication o the rights o woman, na qual defende o direito à educação, de modo que as mulheres tenham as mesmas 1 2
(BADINTER 1980) (PERROT 1998)
qualificação de homens e mulheres depende o progresso da nação. A obra de Wollstonecra foi traduzida e adaptada, com o título de Direito das mulheres e injustiças dos homens, homens , em 1832 , , por Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), também escritora e educadora, considerada a primeira feminista do Brasil. No mesmo século, destaca-se a figura de Olympe de Gouges, uma feminista avant-la-lettre , que exigia para as mulheres os mesmos direitos dos homens. Ao questionar que a divisa da Revolução — Liberdade, Igualdade e Fraternidade —, expressa na Declaração de direitos do homem e do cidadão, que consagrava o direito uni versal à cidadania, não se aplicava às mulheres, Gouges, ainda em 1791, portanto, durante a Revolução Francesa, proclama os direitos femininos na Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, com 17 artigos. Integrando o partido político dos girondinos, Olympe de Gouges foi guilhotinada por suas ideias avançadas. Perrot3, comentando o julgamento da feminista, aponta que “seu processo é rico em ensinamentos quanto à desqualificação da mulher na política” política”. O feminismo, como movimento político e cultural, obteve alguma visibilidade no século XIX com as campanhas em prol dos direitos civis e do voto. Andréa Lisly Gonçalves (2006) assinala a 1ª Convenção para o Direito das Mulheres, realizada em Seneca Falls, estado de Nova Iorque, em 19 e 20 de julho de 1848, como o evento que desencadeou o movimento feminista no Ocidente. Gonçalves ressalta que essa Convenção foi o resultado da percepção de mulheres, engajadas na luta contra a escravidão, de que sua posição não era diferente daquela dos escravos africanos e seus descendentes, pois, como eles, não possuíam direito algum. Nessa Convenção, foi discutido o posicionamento das mulheres em relação a questões 3
(PERROT 2005:330)
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sociais, civis e religiosas, no entanto, o sufragismo não foi um aspecto considerado muito relevante, sendo aprovado, de acordo com Gonçalves, por uma pequena maioria. Posteriormente, as discussões sobre o direito ao voto ampliaram-se, com as sufragistas exigindo o direito à cidadania, representado pela possibilidade de participar
Enquanto os homens aprendiam grego, as mulheres eram ensinadas a tomar conta da casa. Entre outros ensaios relevantes de Virginia Woolf, destaca-se Profissões para as mulheres (2012), mulheres (2012), no qual apresenta as dificuldades das mulheres escritoras, que precisam se desvincular de uma
de eleições (votar e ser votada), pois as mulheres, enquanto constituintes de parcela significativa da população, estavam alijadas de qualquer representação. No século XX, inscrevem-se, como baluartes do feminismo, duas eminentes intelectuais: Virginia Woolf e Simone de Beauvoir. Virginia Woolf publica, em 1928, A 1928, A room o one’s own. own . Nessa obra (originada de apontamentos para duas conferências em universidades femininas), Woolf discute a situação da mulher de maneira alegórica, procurando mostrar como a falta de condições materiais inviabiliza a expressão literária. Para a autora, o gênio artístico tem possibilidade de manifestar-se entre os que tiveram uma boa educação e recursos financeiros para realizar-se intelectualmente. A posse de um quarto com chave e uma renda de 500 libras anuais constituem condições básicas para que a mulher possa refletir e produzir a sua poesia. Afirma: “A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual” 4. Além disso, defende que os textos escritos por mulheres devem traduzir a experiência
tradição androcêntrica, a fim de poder escrever com autenticidade. A autora reconhece que o maior mérito, tanto em sua produção de crítica literária quanto na escrita de romances, foi ter eliminado uma figura que denominou de Anjo do Lar L ar que a induzia a portar-se de acordo com a tradição feminina, ser afável, elogiar, concordar sempre, em suma, mistificar, enganar, utilizando artifícios atribuídos tradicionalmente ao sexo feminino. No entanto, sem opinião própria, é impossível até mesmo escrever uma resenha. Destruída a imagem representativa da tradição, interroga “o que é uma mulher?” 5 E sua resposta é emblemática: “Duvido que alguém possa saber, enquanto ela não se expressar em todas as artes e profissões abertas às capacidades humanas”6. Simone de Beauvoir, feminista francesa, publica, em 1949, O segundo sexo, em dois volumes, nos quais discute a posição da mulher, que, na sua visão, nunca é o Um, mas sempre o Outro, dentro de uma totalidade (polos indispensáveis: homem/mulher), ou, como afirma “O inessencial que não retorna ao essencial”7. A autora men-
feminina, uma vez que ocupam uma posição social diferenciada, e não estar atrelados à produção masculina, instituindo uma tradição específica. Selden, Widddowson e Brooker (2005) consideram que a identidade de gênero não é inata, porém, construída socialmente, daí a relevância atribuída à educação para atingir esse escopo. es copo. Nesse sentido, os autores ressaltam o posicionamento de Woolf, que questionava a modalidade de estudos que eram ministrados às mulheres.
ciona o ingresso da mulher no universo do trabalho como uma das consequências da Revolução Industrial. Com isso, as reivindicações femininas passaram a fundamentar-se em argumentos econômicos. No entanto, para a burguesia conservadora de meados do século XX, a emancipação feminina é, ainda, vista como um perigo que
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(WOOLF 1985:141)
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(WOOLF 2012:14) (WOOLF 2012:14) (BEAUVOIR 1980:13)
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“ameaça a moral e os interesses” 8. Como a democracia pressupõe a
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sido deflagradora de uma consciência de gênero, não prosperou.
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igualdade dos seres humanos, seria inconcebível considerar a mulher inferior; porém, essa contradição aflora nas situações de conflito, em que a superioridade masculina tende a afirmar-se com todo o vigor. Para demonstrar a tese de que a mulher constitui o Outro, Beauvoir utiliza dados da biologia, da psicanálise e do materialismo histórico, acatando algumas contribuições dessas áreas, para assinalar que a mulher, cujo mundo de valores dominado pelo projeto do existente, direciona-se para a transcendência, posicionamento que desconstrói a assertiva de que ela se orienta para a imanência, enquanto o homem, para a transcendência. Essa proposição é reforçada quando se verifica o espaço ocupado por homens e mulheres: o domínio masculino é o exterior, o público, as grandes obras, enquanto o feminino é o interior, interior, o privado, o pequeno cotidiano. No início do segundo volume de O segundo sexo, Beauvoir enuncia que a mulher não nasce como tal, mas que a sua constituição se deve a interações de variadas naturezas que compõem o conjunto dos sistemas de interpretação das diferentes áreas, ou seja, é uma construção social. Corroborando essa assertiva, Selden, Widdowson e Brooks afirmam: “Making the crucial distinction between ‘being female’ and being constructed as ‘a woman’, de Beauvoir can posit the destruction of patriarchy if women can only break out of their objectification”9. Na realidade, a própria mulher se coloca na posição de Outro, o que dificulta a superação das relações patriarcais, reforçando sua posição subalterna. Foram, porém, os conflitos bélicos que direcionaram, efetivamente, as mulheres às linhas de produção industrial, subvertendo a equação proposta. No entanto, essa atividade que poderia ter 8 9
(BEAUVOIR 1980:18) (SELDEN; WIDDOWSON; BROOKS 2005:120)
Retornada a paz, elas refluíram para o lar, deixando os postos de trabalho que ocupavam para os homens que voltaram da guerra. Mesmo quando decidiram permanecer em atividade, as posições de liderança que exerciam anteriormente foram dominadas pelas figuras masculinas, restando às mulheres ocupações de menor importância e responsabilidade. A divisão do trabalho implica, entre outros aspectos, a naturalização de procedimentos basicamente culturais. Assim, o trabalho doméstico e a criação dos filhos são considerados atividades femininas, enquanto a conquista e a construção do mundo exterior são ocupações masculinas, consequentemente, estabelecem-se dicotomias com desvantagem para a mulher. Razão, Sujeito, Produção são prerrogativas masculinas em oposição a Emoção, Objeto, Reprodução, aspectos femininos. Na década de 60 do século XX, o feminismo, efetivamente, assume o caráter de força política e social. A partir de então, abrange um amplo espectro, discutindo a opressão feminina, originária do regime patriarcal, reivindicando igualdade nas oportunidades de educação, de emprego e remuneração, de autonomia corporal, entre outros aspectos. Bonnici justifica essa tendência, considerando que “são geralmente grupos formadores de consciência que moldam os temas políticos do feminismo contemporâneo, cuja pressão influencia decisões políticas para uma igualdade entre os sexos” 10. Posteriormente, a discussão orientou-se para o reconhecimento rec onhecimento das diferenças que envolvem segmentos subalternos e marginalizados. O sujeito feminista, ou o sujeito constituído no gênero, institui-se na diferença (denominada différance, por Derrida), que provê formas de subverter o patriarcalismo e a submissão feminina. O 10
(SCHMIDT 1994:31-32)
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feminismo confere às mulheres uma identidade política capaz de identificar práticas discursivas e sociais mantenedoras do status quo quo e a possibilidade de subvertê-las, facultando a intervenção não apenas no universo acadêmico como também na sociedade em geral. A diferença, enquanto perspectiva epistemológica, representa uma
diferença, em cinco aspectos referentes a: biologia, experiência, discurso, inconsciente e condições socioeconômicas, segundo Selden, Widdowson e Brooker12. Em relação aos aspectos biológicos, a fisiologia feminina é vista como um atributo positivo e não mais como responsável por sua inferioridade como historicamente ocorrera. A
das bases da teoria crítica feminista. Na literatura, o feminismo, como elemento integrante dos Estudos Culturais de Gênero, focaliza, precipuamente, a discussão de questões relacionadas a: opressão patriarcal, construção da identidade, representação da mulher na literatura, escrita feminina, experiência de leitura, entre outras. Schmidt refere-se a gênero como um sistema “social, cultural, psicológico e literário construído a partir de ideias, comportamentos, valores e atitudes associados ao sexo, através do qual se inscreve o homem na categoria do masculino e a mulher na do feminino”11. O aspecto sexual configura masculino e feminino a partir de características biológicas, portanto, o sexo é dado naturalmente, ao contrário do gênero que constitui uma construção relacionada ao meio no qual o sujeito está inserido, com implicações no aspecto psicológico e social do indivíduo. A história do feminismo vincula-se a seu projeto político e tem sido apresentada em “ondas” que a situam temporalmente. A primeira abarca os movimentos pelos direitos civis e direito ao voto, preconi-
experiência da mulher, por sua vez, é entendida como origem de valores positivos tanto em sua vida como na arte. O discurso tem sido compreendido como modalidade de opressão, uma vez que a linguagem é controlada pelo homem. Enquanto o inconsciente é focalizado nas teorias psicanalíticas de Lacan e Kristeva, mudanças sociais e econômicas são estudadas pelo feminismo marxista. Os temas relacionados à segunda onda compreendem a discussão do patriarcalismo, os problemas relacionados às organizações de mulheres e a diferença como ponto central da liberação feminina. A existência de uma terceira onda feminista é considerada com restrições, uma vez que a agenda da segunda não foi cumprida plenamente. Esse novo período inclui discussões sobre pós-colonialismo, teoria queer, sexualidade, entre outros, além de privilegiar segmentos ainda em processo de reconhecimento pela segunda onda, tais como, migrantes, diaspóricos, não pertencentes à academia 13.
zando reformas de caráter social, político e econômico. A crítica literária dessa onda está mais preocupada em veicular as reivindicações da época do que em organizar-se como um discurso teórico. Virginia Woolf e Simone de Beauvoir estão incluídas nessa etapa. A segunda onda corresponde aos movimentos de liberação dos anos 60 (séc. XX). Muito embora os postulados do primeiro período continuem em pauta, a questão da sexualidade é focalizada como
O que vem a ser a escrita feminina? Numa tentativa de resposta, Virginia Woolf Woolf desconsidera, por óbvia, a diferença de experiências que redundaria em especificidades temáticas. “[...] a diferença essencial não é que os homens descrevam batalhas e as mulheres o nascimento dos filhos, e sim que cada sexo descreve a si mesmo” 14.
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(BONNICI 2007:87)
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(SELDEN; WIDDOWSON; BROOKS 2005) (BONNICI 2005) (WOOLF 2012:30)
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Cada sexo ocupa uma posição diferenciada na sociedade, o que
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francesa. O primeiro grupo inicia com Kate Millet e Mary Ellmann,
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resulta em particularidades na constituição psicológica, como consequência, a visão que homens e mulheres possuem sobre determinados fatos não é igual. Relatos de experiências, do ponto de vista masculino, podem ser desagradáveis, se lidos por mulheres, ou, de outra parte, muito satisfatórios quando lidos por homens. Nesse sentido, Jonathan Culler (1997) defende a relevância da leitura feminina como uma experiência original relacionada à construção da identidade da mulher. Ao observar histórias da literatura, percebe-se a quase ausência de nomes femininos até meados do sécu lo XX. No entanto, há muitas autoras, cujas obras foram publicadas e circularam entre os leitores de séculos anteriores. Esses nomes, entretanto, foram esquecidos, não figurando no elenco que acabou por constituir o cânone. Essa invisibilidade, como é denominada por Rita Schmidt 15, leva a autora a questionar “onde estavam as mulheres nos textos, nos programas de ensino de literatura, nas histórias literárias...” literárias...”.. Embora movimentos de resgate de escritoras de séculos anteriores estejam em curso, a posição das escritoras não tem se modificado substantivamente em relação à história da literatura. As teorias críticas feministas estão ancoradas em abordagens pós-estruturalista, pós-colonialista e pós-modernista, nos aspectos que discutem o descentramento da autoridade e o questionamento do conceito de verdade, consequentemente, são ampliados os significados de literário, com a incorporação de novas perspectivas de arte, o que promove a ressignificação da composição do cânone. Toril Moi, em Sexual/textual politics: eminist literary theory (1989), após uma introdução em que discute a obra de Woolf, divide a crítica feminista em dois grandes grupos: a anglo-americana e a 15
(SCHMIDT 2002:34)
concluindo com reflexões teóricas de Kolodny, Showalter e Jehlen. A obra de Kate Millet, Sex politics, politics, publicada em 1970, portanto, após a obra Tinking about women (1968), de Mary Ellmann, é considerada a precursora dos trabalhos posteriores de crítica feminista anglo-americana. Moi (1989) considera que o sucesso de Sex politics deve-se à habilidade com que Millet promove a ligação entre duas expressões de crítica, a institucional e a não institucional. A modalidade crítica proposta opõe-se ao New criticism, criticism, movimento movimento muito representativo na época. Em verdade, a proposta de leitura de Millet, bastante inovadora, questiona a perspectiva do autor, privilegiando o direito do leitor de apresentar seu ponto de vista. v ista. Assim, desconstrói a hierarquia que confere ao autor o po der e a autoridade do discurso e à leitora, uma imagem de passividade, uma vez que recebe a palavra doada pelo autor16. Um problema constatado nessa obra é a dívida não referendada para com os postulados de Simone de Beauvoir que inspiraram a obra. Embora sem a repercussão do ensaio de Millet, Tinking about women, women, de Ellmann, está direcionado para um público não acadêmico, não se preocupando com questões tanto políticas quanto históricas referentes ao patriarcalismo, quando não se referem à análise literária. As obras de Millet e Ellmann constituem os fundamentos da crítica cr ítica denominada Images o Women’ Criticism que busca estereótipos femininos não apenas em obras de autores, como em resenhistas e comentadores de textos produzidos por mulheres17. A tese principal defendida no livro de Ellmann refere-se ao pensamento por analogia sexual; isso significa que existe, na sociedade ocidental, a tendência de entender acontecimentos ou experiências a partir das diferenças sexuais, s exuais, o que influi 16 17
(MOI 1989) (MOI 1989)
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decisivamente na visão do mundo e na realização das atividades, inclusive, intelectuais. Muito embora pouco preocupada com o ambiente acadêmico, Ellmann realizou uma modalidade interessante de crítica feminista. Uma outra tendência de crítica feminista anglo-americana,
maiores contribuições da autora é a redescoberta de escritoras que haviam caído em ostracismo. A terceira obra significativa é Te madwoman in the attic, de Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, as quais estudam escritoras relevantes do século XIX, tais como Jane Austen, George Eliot,
preocupada com as mulheres que escrevem, ocorre por volta da metade da década de 70 do século XX. Os trabalhos mais significativos dessa época foram Literary women, de Ellen Moers, publicado em 1976; A 1976; A literature literature o their own, own, de Elaine Showalter, em 1977; e Te madwoman in the attic, de Sandra Gilbert e Susan Gubar, em 1979, as quais se tornaram obras clássicas da crítica feminista18. A obra de Ellen Moers, Literary women, women, foi a primeira tentativa de mostrar a história da escrita das mulheres como uma poderosa força que segue ao longo da corrente da tradição masculina, além de descrever um território até então quase desconhecido. No entanto, ao enfatizar os “grandes autores”, a autora legitima o cânone, o que inviabiliza a inclusão de mulheres. De qualquer maneira, o trabalho de Moers é pioneiro, e assim deve ser lido, como uma etapa daquilo que fundamenta a história literária feminina posterior19. Showalter, em A literature literature o their own, numa clara alusão à obra de Virginia Woolf, procura mapear a tradição literária feminina, desde o século XIX, abarcando Jane Austen, as Brontë, George
Mary Shelley, Charlotte Brontë, Emily Dickinson, entre outras. As autoras discutem não apenas a criatividade, mas também a natureza da tradição literária feminina do século XIX. Considerando que a criação literária é atributo masculino, conforme a ideologia patriarcal, as imagens de mulher que aparecem na literatura são produto de fantasias masculinas, o que inviabiliza a criação de imagens de mulher fora dos padrões impostos. As autoras reputam que a mulher ideal, associada a uma imagem de doçura, beleza, passividade, na realidade, não tem história, portanto, não tem vida. No entanto, por trás do “anjo”, existe o “monstro”, o ser que desestabiliza o processo de harmonia do universo masculino, recusando o papel que lhe foi atribuído. Essa figura traduz o terror ancestral da feminilidade, encontrado em muitos mitos antigos como o de Lilith. Gilbert e Gubar afirmam que a mulher-monstro tem uma história e pode contá-la ou não, de acordo com sua escolha, além disso, dispõe de uma consciência não transparente ao olhar masculino. Dentro dessa perspectiva, a leitura de uma obra feminina
Eliot e Virginia Woolf. Aponta três fases do desenvolvimento da escrita feminina que denomina de fase feminina, fase feminista e fase fêmea ( emale ( emale phase). phase). Essa discussão é retomada no ensaio “Feminist criticism in the wilderness”, de 1982. A história da escrita feminina inicia em 1840, com a utilização pelas escritoras de pseudônimos masculinos e permanece até os dias atuais. Uma das
do século XIX precisa levar em conta as estratégias que as autoras utilizaram para subverter os parâmetros interpretativos patriarcais então vigentes, ou seja, essa leitura implica uma dupla tarefa de decodificação, a fim de pôr a descoberto o conteúdo de diferentes camadas, uma vez que as mulheres precisavam escrever de uma forma dupla, na camada aparente, era seguida a tradição, enquanto, na parte subjacente, o verdadeiro significado da história era construído. Nesse sentido, Gilbert e Gubar (2000) asseveram que a
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escrita feminina lembra o palimpsesto, em que duas modalidades
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ideologia direciona não apenas a escrita e a modalidade de leitura,
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de escrita se superpõem. A primeira obra do feminismo francês é a já referida O segundo sexo, sexo, de Simone de Beauvoir, B eauvoir, publicada publicada em 1949. A autora escreveu esse livro sob a inspiração da filosofia fi losofia existencialista, demonstrando como, ao longo do processo histórico, a mulher foi transformada em mero objeto, tendo sua subjetividade negada, o que apresentou reflexos na vida social. Essa visão patriarcal orientou, inclusive, a representação que as mulheres tinham delas próprias, sedimentando um comportamento de acordo com princípios androcêntricos. Beauvoir organiza sua obra negando qualquer espécie de essencialismo que predetermine comportamentos e atitudes, atribuindo-os à natureza. Na época, a autora não demonstrou qualquer interesse pelo feminismo, uma vez que considerava o movimento radical. Posteriormente, alinhou-se ao marxismo, acreditando que, somente por meio da luta de classes, a opressão feminina seria devidamente equacionada. A aproximação de Beauvoir com o socialismo não foi bem vista pelas estudiosas francesas, porém teve uma aceitação considerável na Inglaterra. No entanto, a produção teórica feminista inglesa direcionou-se mais para o cinema e para os meios de comunicação social e menos para a crítica literária. Uma nova modalidade de pensamento feminista francês estruturou-se a partir de 1968, ano em que ocorreram profundas modificações tanto no âmbito acadêmico quanto no social. Os primeiros grupos que se organizaram seguiram a inspiração marxista-maioísta. No contexto literário marxista, destacam-se Cora Kaplan, que critica a obra de Millett, e Michèle Barrett, que focaliza sua análise na representação de gênero. Barrett considera que as condições materiais de homens e mulheres, no que tange à produção literária, são diferentes, o que influencia a forma de escrita. De outra parte, a
mas também a maneira como o cânone é estabelecido. Finalmente, o aspecto mais relevante deve consistir na qualidade literária do texto, independentemente do sexo do autor. “Texts have no fixed meanings: interpretations depend on the situation and ideology of the reader”20. Ainda considerando a perspectiva marxista, para proceder às análises críticas, foram utilizados os teóricos franceses Louis Althusser e Pierre Macherey, nas abordagens sexista e classista. A crítica literária de Macherey, de certa maneira, aproxima-se de postulados da Estética da Recepção. Para o autor, a obra não é uma mensagem de seu criador — suas intenções constituem apenas um dos elementos —, mas um conjunto de aspectos referidos, de lacunas, de contradições nos quais é possível desvelar pressupostos teóricos, ideológicos, econômicos, sociais que se interrelacionam na materialização do texto, vinculando-o a um contexto histórico. Essa modalidade de crítica estuda a formação histórica da categoria gênero e analisa o papel da cultura na representação dessa categoria. Na crítica norte-americana, o marxismo é apenas mais um tema discutido por alguns grupos. Mais adiante, as mulheres começaram a formar seus próprios grupos, cujas teóricas fundamentaram suas teses na psicanálise, na linguística e na semiótica. Selden, Widdowson e Brooker (2005), historiando a teoria feminista francesa, apontam que as teóricas apresentavam uma clara preferência pela psicanálise lacaniana, como uma possibilidade de emancipação feminina, contrapondo-se c ontrapondo-se às feministas da corrente anglo-americana que criticavam Freud, contestando suas assertivas sobre a definição negativa da mulher, atribuída ao complexo de castração, reflexo da inveja do pênis. A organização teórica do feminismo crítico francês teve pouca influência 20
(SELDEN; WIDDOWSON; BROOKER 2005:125)
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externa devido a seu caráter intelectual, uma vez que foi construída com base na filosofia alemã (Marx, Nietzsche, Heidegger), em Derrida e em Lacan21. Os trabalhos de Jacques Lacan foram muito produtivos para a construção dos pressupostos da teoria feminista francesa, a qual
esse significante — o falo — como Lei do Pai. A criança, ao superar o imaginário, por meio do estágio do espelho, ingressa na ordem simbólica da linguagem que se organiza por meio de relações de similaridade e diferença. “Only by accepting the exclusions (if this, then not that) imposed by the Law of the Father can the child enter
se apropriou de dois conceitos-chave da teoria lacaniana: a Ordem Simbólica e o Imaginário. Por Imaginário, entende-se o período pré-edípico, em que a criança não percebe sua individualidade, sentindo-se parte da mãe22. A crise edípica assinala o ingresso na Ordem Simbólica23, quando o pai destrói a unidade mãe-filho, marcando uma ausência. A entrada na Ordem Simbólica significa a aceitação da Lei do Pai, consequentemente, o falo torna-se símbolo de uma carência24. Ao recuperar o conceito ancestral, relacionado aos ritos da fertilidade, como signo de poder, o falo é tratado como um conceito simbólico e não como órgão físico. A psicanálise lacaniana resgata a importância da linguagem, ancorada nos estudos de Saussure, associando a organização do inconsciente com a linguagem, que se estrutura através de signos (significações estáveis) e significantes25. Significados (signos) e significantes são múltiplos, não apresentando, obrigatoriamente, uma correspondência direta, uma vez que muitos significados são reprimidos pelo inconsciente. Dessa maneira, o conceito de mulher, como um significante, não
the gendered space assigned to it by the linguistic order” . Com isso, ocorre o reconhecimento de que o papel desempenhado por esse Pai apresenta cunho metafórico. A abordagem lacaniana destaca-se por superar o determinismo biológico e aproximar a psicanálise freudiana ao sistema social. Relevante para o feminismo francês, Derrida, na teoria desconstrucionista, criou o neologismo différance différance,, para indicar mudanças sutis que ocorrem no signo, cuja natureza dividida implica alguma modalidade de ausência. O desconstrucionismo propõe a subversão do sistema hierárquico binário da filosofia ocidental no qual um termo é o dominante enquanto outro é o dominado. A crítica à lógica binária apresenta, como consequência, que a construção de significados se produz por meio da livre combinação de significantes. Isso quer dizer que um determinado significado se materializa mediante o processo de aludir a todos os significantes ausentes, assim, a aquisição do sentido acontece na medida em que um elemento delega seu significado a outros elementos da lingua-
estabelece, necessariamente, correspondência com seu corpo físico. Lacan associa o falocentrismo à estrutura do signo, denominando
gem . Na teoria feminista, a desconstrução indica que o pluralismo e a diferença suplantam o autoritarismo e a subserviência que constituem o regime patriarcal. Entre as críticas feministas do movimento francês, destacam-se Hélène Cixous, Julia Kristeva e Luce Irigaray. Para Moi (1989), essas teóricas estão muito envolvidas com questões concernentes à linguagem e à escrita femininas. Inaugurando uma
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(MOI 1989) “O Imaginário deve ser ser entendido [...] como um efeito de desconhecimento desconhecimento da ecácia simbólica, da operação de desejo do Outro e da estruturação edípica (castração)” (VALLEJO; MAGALHÃES 1981:60) A ordem simbólica simbólica acontece em conjunção da ordem do imaginário imaginário com a ordem do real, sendo que o real somente se organiza através da estrutura simbólica (VALLEJO; MAGALHÃES 1981:101) (MOI 1989) (EAGLETON 1983)
26 27
(SELDEN; WIDDOWSON; BROOKER 2005:131) (MOI 1989)
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fase posterior ao feminismo existencialista de Simone de Beauvoir
Capítulo 11 . Feminismo e literatura
da corrente lacaniana. Para Irigaray, a mulher se relaciona com as
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que postulava a igualdade, as teóricas do final dos anos 60 e anos 70 (século XX) ressaltam a questão da diferença, pois a igualdade condicionava as mulheres a procederem como homens. Hélène Cixous enfatizou a questão da écriture éminine, éminine, publicando uma série de ensaios entre 1975 e 1977, nos quais discute relações entre mulher, feminismo e escrita. Um de seus textos mais importantes é Le Rire de la Méduse (publicado em 1975). 1975). Utilizando a teoria desconstrutivista de Derrida, Cixous procura desfazer o sistema de oposições binárias (razão/emoção; civilização/barbárie; pai/mãe) distintivo da filosofia ocidental e do pensamento patriarcal, o qual se caracteriza pela assimetria. Na oposição macho/fêmea, a posição inferior cabe ao segundo membro, lugar da mulher na sociedade. Partindo do conceito de différance différance (Derrida), a autora procura recuperar o lugar da mulher, valorizando o que considera écriture éminine, qual éminine, qual seja, uma modalidade de escrita libertadora, que trabalha com a diferença, opondo-se à lógica falogocêntrica e valorizando o final aberto da escrita28. Essa modalidade de texto preconizada pela autora refere-se mais a uma forma de escrita do que ao sexo do autor. autor. Considerando a escr escrita ita praticada pelas mulheres como um ato libidinal, Cixous inaugura uma nova modalidade de crítica em que vincula sexualidade e textualidade, utilizando-a para analisar não apenas textos escritos por mulheres, mas também por homens. Também Tam bém relevante, na teoria feminista francesa, é Luce Irigaray Irigaray,, cuja tese de doutorado (Spéculum (Spéculum de l’autre emme, emme , 1974) foi moti vo de sua expulsão da École reudienne, reudienne, de Vincennes, o que demonstra o poder patriarcal vigente no âmbito acadêmico. Sua obra motivou debates muito acirrados, especialmente, com as seguidoras 28
(MOI 1989)
estruturas da linguagem de forma passiva e imitativa, parodiando o discurso patriarcal, como estratégia de subversão desse discurso 29. Spéculum de l’autre emme (publicada em 1985) é dividida em três partes: na primeira, apresenta uma crítica de Freud à feminilidade, quando trata do desenvolvimento psicossexual da mulher, por sua subserviência à tradição filosófica ocidental; na segunda parte, apresenta leituras de filosofia ocidental, abarcando de Platão a Hegel, além de seus próprios pressupostos teóricos; na terceira, apresenta uma leitura do mito da Caverna, de Platão, à luz dos postulados da segunda parte. Embora Spéculum de l’autre emme tenha emme tenha sofrido muitas críticas, especialmente, no que tange à linguagem da mulher, Moi considera essa obra um exemplo significativo de crítica ao discurso patriarcal, constituindo-se em inspiração para novas leituras de textos políticos e filosóficos. Dedicada aos estudos da linguagem, Julia Kristeva assinala que a linguística contemporânea apresenta implicações políticas, linguísticas e éticas, relacionadas à linguagem. Considerando os fundamentos filosóficos da linguística autoritários e opressivos, procura subverter esse posicionamento, sugerindo a substituição do conceito de langue, de Saussure, como objeto de estudo da linguística, pelo de sujeito falante, fundamentado no pensamento de Marx, Freud e Nietzsche, o que transformaria a concepção de linguagem de estrutura homogênea em um processo heterogêneo. Muito embora todos empreguem a mesma linguagem, os interesses convergentes no signo são distintos, dessa maneira, o significado do signo se amplia, tornando-o polissêmico. Essa produtividade do signo justifica o discurso feminista 30. Para organizar sua teoria, 29 (BONNICI 2007) 30 (MOI 1989)
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Capítulo 11 . Feminismo e literatura
Kristeva recorre ao trabalho de Mikhail Bakhtin e dos Formalistas para expor o conceito de intertextualidade31, o qual indica a transferência de um sistema de signos para outro, propondo novas possibilidades de leitura, ampliando o espectro interpretativo da literatura lida/produzida por mulheres. Kristeva propôs uma teoria
Matthew Arnold. Como essa atividade era exercida precipuamente por críticos, Showalter constata a existência de uma hermenêutica masculina, que dominava essa modalidade de avaliação. As mulheres que praticavam a crítica deveriam utilizar os pressupostos estabelecidos, portanto, vagavam pelo território selvagem. Muito embora
de aquisiçãoada linguagem, na qual procuraassociando definir o ordem processo de significação partir do discurso lacaniano, simbólica à semiótica e ordem do imaginário ao simbólico. A semiótica, ligada a processos pré-edipianos, cujos impulsos terminam no chora chora (termo grego que significa espaço fechado), é constituída por aspectos recalcados da linguagem, o que a torna subversiva, uma vez que o simbólico nunca domina completamente o semiótico. Outro tema relevante da teoria de Kristeva é a definição de feminilidade como marginalidade. Negando a escritura feminina, defendida por Cixous e outras feministas, Kristeva utiliza a recusa de definições e de representações do sujeito feminino como modalidade de subverter o falocentrismo, o poder do patriarcado. Esse posicionamento revolucionário permite à mulher um alinhamento com movimentos revolucionários. Entre as reflexões teóricas produzidas contemporaneamente, é relevante considerar o ensaio “Feminist criticism in wilderness”, de Elaine Showalter, publicado inicialmente pelo periódico Critical Inquiry, n. Inquiry, n. 8, 8, em 1981, 1981, e, posteriormente, na obra de Mary Jacobus,
as tendências de críticaque feminista sejamsignificativa diversificadas, a autora estabelece dois modelos apresentam produtividade: a primeira, a crítica feminista, centrada na leitora, refere-se à interpretação de representações de mulheres na literatura em geral, a partir de uma leitura feminista, possibilitando novas alternativas de leitura. Essa modalidade está concentrada em modelos já existentes, o que, de certa forma, atrela essa crítica ao modelo androcêntrico. O resgate das vozes excluídas bem como a reorganização do cânone são contribuições relevantes tanto para a ressignificação da história quanto para a materialização do projeto de emancipação intelectual e social da mulher. A segunda, centrada na mulher como escritora, é denominada por Showalter de ginocrítica. Para a autora, ginocrítica consiste em “o estudo da mulher como escritora, e seus tópicos são a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres” 32. A grande discussão da ginocrítica é verificar no que consiste a diferença entre a produção literária escrita por homens e por mulheres, respondendo aos questionamentos feitos por autoras e leitoras. Showalter aponta
Reading woman: essays in eminist criticism, criticism, de 1986. Foi publicado, em tradução — “A crítica feminista no território selvagem” —, na obra organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, endências e im passes: o eminismo como crítica da cultura, cultura, de 1994. Nesse texto, a autora discorre sobre crítica literária, considerando-a um território selvagem, reproduzindo um conceito de outros autores, entre eles,
quatro modelos que procuram estabelecer a diferença dos textos produzidos por mulheres, os quais sustentam as teorias críticas feministas ginocêntricas, são eles: biológico, linguístico, psicanalítico e cultural. O modelo biológico, como diferença na escrita feminina, está centrado no corpo, assim “anatomia é textualidade” 33. Essa
31 31
“Todo o texto se constrói como como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA 1974:64)
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(SHOWALTER 1994:29) (SHOWALTER 1994:32)
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abordagem pode ocasionar um retorno ao essencialismo opressor
Capítulo 11 . Feminismo e literatura
feminino. Embora seja um modelo valorizado pela crítica feminista
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que atribuía a inferioridade feminina à sua constituição física. Muitas críticas aceitam esse modelo, considerando a criação literária uma paternidade metafórica. Essa modalidade de crítica atribui ao corpo a capacidade imaginativa e caracteriza-se pelo tom confessional que, quando bem realizada, apresenta grande qualidade. Muito embora a questão do corpo seja primordial na determinação de um espaço social e na constituição da identidade, a escrita envolve estruturas linguísticas e literárias que formam outro tipo de corpo: o corpo da escrita que deve ser afirmativo. O modelo linguístico discute se há diferença na utilização da língua realizada por homens e mulheres. Esse aspecto tem sido objeto de teorização da sociolinguística e prioriza a necessidade de examinar conceitos que promovem preconceitos e discriminação de determinados grupos sociais, entre eles, os contituídos pelo gênero. No imaginário masculino, a linguagem das mulheres provém de mitos e lendas ancestrais, ligada a feitiçarias e encantamentos, o que ocasionou movimentos repressivos e caça às bruxas. Sonegado durante muito tempo, o acesso à língua deve ser privilegiado, de modo que possam ser realizadas escolhas lexicais e sintáticas adequadas para expressar uma visão do mundo revolucionária, possibilitando a materialização de uma crítica literária qualificada, independente dos padrões masculinos. O modelo psicanalítico associa os modelos biológico e linguístico, ao valorizar as questões do corpo e da linguagem. Inicia com Freud e seu conceito de inveja do pênis e complexo de castração, para explicar a relação da mulher com a escrita e a cu ltura, seguindo com Lacan que amplia a questão de aquisição da linguagem, na fase edípica, com o ingresso na ordem simbólica, com aceitação do falo como significante privilegiado e a consequente desvalorização do
francesa, apresenta dificuldades para relacionar a escrita feminina com aspectos teóricos e culturais. Finalmente, o modelo cultural é, segundo Showalter, o mais adequado para expressar a diferença, pois leva em consideração fatores como raça, classe, história e nacionalidade, os quais são tão relevantes quanto gênero para a constituição de uma crítica literária gendrada. De acordo com a autora, “a cultura das mulheres forma uma experiência coletiva dentro do todo cultural, uma experiência que liga as escritoras umas às outras no tempo e no espaço” 34. A realização dessa crítica pode ser materializada por meio de estratégias de leitura tais como a proposta por Gilbert e Gubar, desdobrando a duplicidade do texto, colocando a descoberto ambas as camadas, a manifesta e a silenciada; ou a análise contextual de Clifford Geertz que separa as estruturas significativas, avaliando sua relevância. Outro texto muito significativo para a crítica contemporânea é “A tecnologia do gênero”, publicado por Teresa de Lauretis, originalmente, em 1987. A autora discute, inicialmente, a questão da diferença sexual embutida no conceito de gênero, considerando-a uma limitação, mesmo quando não esteja atrelada à biologia e refira-se aos efeitos discursivos, uma vez que se trata de uma diferença em relação ao homem. A autora propõe uma definição de gênero que desconstrói e ultrapassa a diferença sexual, associando-a aos estudos de Foucault, assim, gênero “é produto de diferentes tecnologias sociais [...] e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como de práticas da vida cotidiana” cotidiana”35. Para expor a relação entre gênero e tecnologia, a autora apresenta quatro teses: a) o gênero é uma representação, essa assertiva remete à relação de 34 35
(SHOWALTER 1994:44) (LAURETIS 1994:208)
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Capítulo 11 . Feminismo e literatura
gênero com classe, na realidade, pertencer a um gênero significa pertencer a uma classe. Dessa maneira, evidencia-se a diferença entre gênero e sexo, uma vez que sexo implica uma condição natural, enquanto gênero refere-se a uma relação social. O sistema gênero conecta sexo com elementos culturais existentes na sociedade; b)
resgate de autoras e obras que haviam sido relegadas ao ostracismo ocasionaram um alargamento do cânone e uma revisão da história da literatura. Tradicionalmente, o cânone é organizado a partir de um elenco de autores e obras consagrados institucionalmente, de acordo com pressupostos ideológicos que atendem a interesses es-
a representação do gênero é sua construção. Para desenvolver essa tese, Lauretis focaliza a ideologia a partir de estudos de Althusser e outros; c) a construção do gênero está em processo, pois as tecnologias e os discursos como formadores de opinião podem sedimentar representações de gênero de acordo com a ideologia patriarcal ou não; d) a construção do gênero implica sua desconstrução. Para tanto, propõe uma construção de gênero a partir das margens dos discursos do poder e nos escaninhos das instituições, afirmando-se em nível da “subjetividade e da autorrepresentação”36, nas práticas discursivas, sociais e artísticas. Abordagens, como as apresentadas neste texto, possibilitam a leitura e a análise de obras por meio de um viés particular, diferenciado da cultura androcêntrica. Reconhecendo e valorizando a experiência da mulher e sua visão do mundo particular, a crítica feminista é hoje responsável por um acervo de estudos muito significativo que contribui, de forma relevante, tanto para resgatar autoras esquecidas ao longo da história quanto para refletir sobre
pecíficos, relacionados à época, à cultura e à visão de mundo; nesse contexto, dificilmente, uma literatura produzida por mulheres ou por algum outro segmento subalterno teria oportunidade de integrar o panteão literário. Ao considerar essa modalidade de história da literatura um fato retrógrado e ultrapassado, Ria Lemaire afirma ser essa uma forma de legitimar o poder masculino “por meio do recuo às origens e do mapeamento de uma evolução, factual ou hipotética, até o presente”37. A história da literatura, nos séculos XVIII e XIX, consistia em uma espécie de narrativa de caráter totalizante, vinculada a um determinado espaço e associada aos mecanismos de poder. Os grandes mestres, personagens dessa história, eram os modelos que constituíam o cânone tradicional. Posteriormente, com o questionamento da ciência histórica, no final do século XIX, e seu redimensionament redimensionamento, o, através do trabalho desenvolvido pelo grupo dos Annale Annales, s, o modelo de história da literatura foi sendo discutido e transformado. Contemporaneamente, Contempora neamente, com o advento dos estudos culturais e com a
produções contemporâneas.
valorização de modalidades de expressão expressão diferenciadas, co como mo a literatura oral e a popular, popular, o conceito de cânone sofreu uma significativa transformação,, consequentemente, a história da literatura também. transformação Ambos, história da literatura e cânone, não podem mais ser entendidos no singular, devendo ser valorizados em sua multiplicidade. multiplicidade. A constituição de uma história da literatura necessita explicitar os pressupostos que nortearão o trabalho; assim, o estabelecimento
Considerações Finais
Para finalizar, é imprescindível tecer algumas considerações sobre a literatura produzida por mulheres e a história da literatura, bem como as transformações que se originaram dessa relação. O reconhecimento da produção literária feminina como também o 36
(LAURETIS 1994:237)
37
433
(LEMAIRE 1994:58)
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dos conceitos de literatura e literariedade são indispensáveis, bem
Capítulo 11 . Feminismo e literatura
BONICCI, omas. 2007. eoria e crítica literária eminista: conceitos e tendências.
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como as questões de ordenamento espaço-temporal, levando em conta a parcialidade dessa história. Uma história da literatura que inclua a preocupação com o gênero precisa, também, ter em vista as condições de produção e circulação das obras escritas por mulheres. Considerando o apagamento da produção feminina até há alguns anos, cumpre realizar um trabalho de arqueologia, a fim de descobrir essas obras e organizar estratégias para analisá-las, como tem sido realizado por projetos que se dedicam a essa modalidade de pesquisa, ampliando o corpus corpus de de estudo e ensejando a escrita de uma história da literatura que contemple c ontemple um segmento que tem sido objeto de estudo na atualidade. Portanto o feminismo, em sua relação com a literatura, possibilitou a ampliação de seu escopo para uma outra área em que os estudos eram dominados por homens. Desde a escrita da obra de arte literária, a teoria, a crítica até a história da literatura, o segmento masculino sempre dominou a produção, a circulação e o consumo desses bens culturais. Quando as mulheres tiveram acesso à educação, graças ao movimento feminista, essa equação foi modificada. Atualmente, há estudos especializados para abordar o fenômeno literário produzido por mulheres, avalizando o potencial político e emancipatório dessa produção. Referências
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Capítulo 12
uma revisão e uma atualização
Em 1965, quando saiu em francês a reunião de textos dos formalistas russos de Tzvetan Todorov, Téorie de la littérature: textes des ormalistes russes (a edição brasileira da Globo, um pouco modificada, eoria da literatura: ormalistas russos russos só sairia em 1970), começou propriamente no Brasil a discussão sobre os aportes do Formalismo russo. A primeira disciplina ministrada sobre esse assunto foi no Curso de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, disciplina essa ministrada pelo Professor Antonio Candido de Mello e Souza, que propunha justamente, como estudo principal, a análise e a discussão discuss ão daqueles textos. Recordo, em particular, entre outros, o seminário sobre “Como foi feito feito O capote de de Gógol ” de Boris Eikhenbaum, onde começamos a nos surpreender com os argutos “achados” dos formalistas russos: toda aquela declamação patética sobre as desgraças do pobre Akáki, tradicionalmente apenas comovente, que na nova interpretação era o “gesto fônico” que se interpunha à “narração cômica”! E a semântica fônica do conto era estudada em termos de skaz, discurso direto, discurso indireto, diálogo diálogo etc. em moldes bakhtinianos avant la lettre! lettre! Isso, em se tratando de prosa, foi apenas o começo. Depois viria a “Temática” de Tomachévski, com a ábula e ábula e o siujet , os motivos livres e suas funções, a motivação dos
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Aurora Fornoni Bernardini
Capítulo 12 . Formalismo russo
procedimentos, o estranhamento ou singularização focalizados por Viktor Chklóvski em “A arte como procedimento” e aprofundados depois em Uma teoria da prosa, prosa, a “Evolução literária” de Iúri Tynianovv etc., etc. Tyniano
acabaram se generalizando e se perpetuando. Lévi-Strauss defendia a tese de que a noção de forma e a de estrutura não são equivalentes: “A forma se define por oposição a uma matéria que lhe é estranha, enquanto que a estrutura não tem conteúdo distinto; ela é o próprio conteúdo apreendido numa organização lógica concebida
1. Vladimir Propp e a polêmica
como propriedade do real” . Com isso, e dizendo que Propp havia começado seu estudo pela análise morfológica que — insatisfeito com os resultados — teria abandonado mais tarde pela pesquisa histórica e comparativa, Lévi-Strauss queria chegar a demonstrar que o modelo “formalista” de Propp e o estruturalista eram diferentes e visavam resultados diferentes. Propp responde que a análise empreendida em sua Morologia sua Morologia era era apenas o começo de uma pesquisa mais ampla que envolveria discutir a evolução histórica do gênero “conto maravilhoso” e que a pesquisa histórica seria inviável se não se procedesse, previamente, a uma definição de seu estudo a partir do levantamento de seus elementos constituintes 3 e que ele, Propp, jamais poderia propor uma separação entre forma e conteúdo:
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2
As funções de Propp nos contos maravilhosos vinham prenunciadas em seu ensaio sobre as “Transformações dos contos maravilhosos”. Seu livro Morologia livro Morologia do conto maravilhoso, maravilhoso, com a resposta a Lévi-Strauss, seria um capítulo à parte, um curso à parte, ministrado no âmbito do Curso de Russo da USP, pelo professor Boris Schnaiderman. Como o presente ensaio quer ser “uma revisão e uma atualização” de alguns aspectos do Formalismo russo, que reproduz, em parte, o já exposto por mim no texto “Formalismo russo, uma revisitação”1, mencionaremos aqui apenas de passagem as generalidades já agora conhecidas por todos os estudiosos de teoria literária e focalizaremos alguns pontos que consideramos cruciais, controversos ou (ainda) pouco esclarecidos. Um exemplo desses últimos é a assim chamada “Polêmica Lévi-Strauss/Propp Lévi- Strauss/Propp””, cujo teor sintetizamos a seguir. No tocante à polêmica citada, que, na época, só fora divulgada na tradução italiana do livro de Propp, Morologia Propp, Morologia della fiaba, (1966) e que, em 1984, saiu também na versão brasileira do livro Morologia do conto conto maravilhoso maravilhoso,, na tradução de Iasna P. P. Sarhan, (da qual serão extraídos os exemplos que daremos), vale v ale a pena resumir os aspectos principais, pois é um exemplo — como dissemos — de como e por que certos equívocos em relação ao Formalismo russo 1
(BERNARDINI 2000)
Como já dissemos, costuma definir-se como formalista o estudo da forma desligada do conteúdo. Devo reconhecer que não compreendo o que isso significa — que de fato não sei como 2 3
(PROPP 1984:182) O termo “morfologia” “morfologia” — explica Serguei I. Nekliúdov em “A folclorística folclorística Russa e as Pesquisas Semióticas Estruturais”, publicado publicado em Mitopoéticas — Da Rússia às Américas (2006:22) — veio a Propp por meio do Goethe das Conversações com Eckermann. O livro de Propp, embora surgido como formalista, na verdade, não via o texto como um sistema de procedimentos ( priiómy ), ), mas o via sob o prisma de outras premissas losócas. O importante para o autor era a relação histórica com o objeto e não seu exame fora do tempo. Na pesquisa de Morfologia do conto maravilhoso, a primeira fase cobria um vasto estudo de fundamentação teórica em que, antes de analisar o objeto, era necessário descrevê-lo. Na segunda edição do livro em questão (1960), havia um capítulo inteiro dedicado à análise da ligação entre o conto maravilhoso e o conto de magia. Posteriormente, Posteriormente, por iniciativa de Jirmúnski, excluiu-se o capítulo do livro e isso, curiosamente, transformou Propp em formalista.
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entendê-lo, nem como aplicá-lo ao material em estudo. Talvez
Capítulo 12 . Formalismo russo
deles, mas se prestaria melhor como matriz de narrativas míticas.
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o compreendesse se soubesse onde procurar a forma na obra de arte e onde o conteúdo. Sobre a forma e o conteúdo em geral, como categorias filosóficas, pode-se discutir o quanto se quiser, mas estas discussões serão estéreis se, desde o início, o objeto da discussão forem as categorias de forma em geral e de conteúdo em geral, sem referência ao material concreto que se tem em vista, dentro de sua infindável multiplicida multiplicidade. de. Para a estética popular, o enredo como tal constitui o conteúdo da obra. [...] Todo interesse reside naquilo que aconteceu. Coloquemo-nos, por um momento, dentro do ponto de vista popular (que, por sinal, é bastante sábio). Se o enredo pode ser denominado conteúdo, o mesmo não acontece em absoluto com a composição. Concluímos então que a composição se relaciona com o campo da forma, na obra em prosa. Desse ponto de vista, numa só forma podem ser incluídos vários conteúdos. Só que — conforme tentamos demonstrar anteriormente anteriormen te — composição e enredo são inseparáveis. O enre-
Ora, responde Propp, se Lévi-Strauss entreviu nessa extrapolação a universalidade do modelo construído e/ou possibilidades futuras de operar analiticamente com ele com base em material mais abrangente, deveria Lévi-Strauss, por coerência, ter reconhecido o mérito e o alcance da Morologia da Morologia.. O projeto de Lévi-Strauss era, já na época da divulgação no Ocidente do livro de Propp (final dos anos 50), analisar os relatos míticos para desvendar-lhes não a estrutura (o modelo narrativo), mas as leis lógicas que, agindo inconscientemente, configurariam o modelo narrativo. O campo de interesse de Lévi-Strauss estava centrado, conforme se vê, no “pensamento mítico”, um substrato lógico que estaria por trás dos arquétipos, que a “morfologia”, lendo os mitos, poderia elaborar. Ora, esse objetivo não era visado pelo folclorista russo, que só queria estudar o gênero conto maravilhoso e maravilhoso e não a relação mito/conto, embora seu método pudesse aduzir elementos que, reformulados, poderiam servir de “cha “chave” ve” de acesso ao pensamento mítico. Conclui Propp:
do não pode subsistir fora da composição e esta, fora do enredo. Baseados em nosso material, chegamos a reafirmar a conhecida
[...] Segundo o professor Lévi-Strauss, meu método é errado, pois
verdade que forma e conteúdo conteúdo são inseparáveis. inseparáveis.4
o fenômeno da transferência da ação de um personagem a outro ou a existência de ações idênticas para personagens diferentes,
Para Lévi-Strauss, a “morfologia” só sabe lidar com os dados invariáveis, uma vez que ela se torna método eficaz ao ignorar o conteúdo histórico dos contos c ontos analisados. A “morfologia” “morfologia”, em outras palavras, seria um método que se afastaria do concreto, enquanto o estruturalismo, por sua recusa em separar forma e conteúdo, propunha um retorno ao concreto. Lévi-Strauss ainda diz que Propp teria escolhido como ponto de partida um material narrativo inadequado, ao restringir-se aos contos maravilhosos russos, pois o modelo proppiano de 31 funções e 7 protagonistas não seria exclusivo 4
não pertence exclusivamente ao conto maravilhoso. Esta obser vação está absolutamente absolutamente correta, correta, mas em lugar lugar de voltar-se voltar-se contra o método por mim proposto, depõe mais a seu favor favor.. Assim, nos mitos cosmogônicos, o corvo, a marta e o ente ou a divindade antropomórfica antropomó rfica podem assumir o papel idêntico de criadores do mundo. Isto significa que os mitos não só podem como devem ser estudados também com os mesmos métodos dos contos maravilhosos. As conclusões com certeza serão diferentes, os sistemas morfológicos resultarão numerosos, mas os métodos poderão permanecer os mesmos.
(PROPP 1984:221-222)
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É bem possível que o método de análise das narrativas segundo as funções dos personagens se revele útil também para os gêneros narrativos não só do folclore, mas igualmente da literatura. Todavia, os métodos propostos neste volume antes do aparecimento do estruturalismo, bem como os métodos dos estruturalistas, que almejam o estudo objetivo e exato da literatura, possuem também os seus limites de aplicação. Eles são possíveis e fecundos no caso de uma repetição em ampla escala. É o que ocorre na língua, é o que ocorre no folclore. Mas quando a arte se torna campo de ação de um gênero irrepetível, o uso dos métodos exatos dará resultados positivos somente se o estudo das repetições for acompanhado pelo estudo daquele algo único para o qual até agora olhamos como manifestação de um milagre incognoscível. Seja qual for a rubrica sob a qual inscrevamos a Divina Comédia ou as tragédias de Shakespeare, o gênio de Dante
e o gênio de Shakespeare não se repetem e sua análise não pode ser reduzida aos métodos exatos. E se, no início deste artigo, colocamos em relevo as afinidades entre as leis estudadas pelas ciências exatas e aquelas das ciências humanas, gostaríamos de concluir com sua diferença fundamental e específica.5 2. Iúri Tynianov e os indícios de signicado
O problema da palavra poética de poética de I. Tynianov (um dos mais im-
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segundo Tynianov. Não entraremos aqui no mérito de por que Tynianov não vê a palavra — e consequentemente a imagem — como traços distintivos da distintivos da poesia. Se seus argumentos foram novidade na época, são hoje bastante conhecidos e geralmente reconhecidos (sobre a proposta da imagem imagem como como traço distintivo da poesia por parte do simbolismo russo, leia-se o livro de Krystyna Pomorska, Formalismo e Futurismo) Futurismo)6. Os atores Os atores construtivos construtivos da da poesia devem ser procurados — diz Tynianov — na dierença especifica especifica entre prosa e poesia: no caráter segundo e segundo e na dinamização dinamização do discurso da poesia em relação ao da prosa. A palavra já entra no poema como mediada e dinamizada, ela é tornada difícil, evidenciada. Os processos do discurso vêm depois: a perspectiva do verso refrata a perspectiva do sujeito. Nosso estudo, então, dirige-se a uma palavra que foi escolhida pelo poeta para secundar o verso e para realizar-se como material e às vezes como tema (por pertencer ao mesmo tempo a duas séries diferentes é que ela tem caráter segundo segundo). ). Secundando o verso e tendo-se transformado em material poético, ela motiva motiva certos fatores como ritmo, metro e valores eufônicos, e consegue compor-se compor-se nas nas figuras e nos temas do mundo poético de um autor. Para acompanhar as mediações da palavra e explicar seu funcionamento na dinâmica poética, Tynianov dá particular realce aos conceitos de indício fundamental de significado de uma palavra, indício lexical e indícios secundários de significado, entre os quais, o indício flutuante. Exemplifiquemos cada um deles.
portantes sobre a criação ,poética, onde, outros, se desenvolvetrabalhos o conceito de dominante dominante, já referido porentre Jakobson como princípio organizador e deformador, e o ritmo como fator construtivo da poesia) merece também um reparo especial. Como demos um exemplo sintético de polêmica com o Formalismo russo, daremos agora um exemplo da marcha de uma de suas conceituações mais brilhantes: a da linguagem poética,
Indício undamental : tomemos a palavra terra em Terra e Marte (tellus tellus); ); Terra negra (húmus); cair por terra (chão); a terra natal (pátria). O que faz que, em usos tão diferentes, continuemos a considerar a palavra terra como única é a presença de uma categoria de unidade lexical que é seu indício fundamental de significado.
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(PROPP 1984:223)
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(POMORSKA 2010)
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Indício lexical : a lexicalidade de uma palavra é seu pertencer a uma
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ocorre, muitas vezes, com os nomes próprios ou os trocadilhos.
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dada série. Os indícios lexicais mais fortes aparecem em palavras que não têm indícios fundamentais, como nomes próprios, barbarismos ou palavras desconhecidas ao remetente. O tom lexical, conferido por eles, funciona como indício secundário sec undário permanente.
Veja-se, por exemplo, o trocadilho de Andrei Biéli: человек — чело века” (“homem — vulto do século”). Mas, citemos Tynianov: Tynianov: Graças ao trocadilho, dá-se como que uma redistribuição das partes material e formal e um novo sentido; é claro que a
Indícios secundários: secundários: os significados ocasionais que podem ser associados à palavra e operam sobre os indícios fundamentais dando origem a uma série de matizes. Num poema que Marina Tsvetáieva Tsvetáieva chamou “Antigas nuvens do amor”, encontramos os seguintes versos: “Sobre os negros contornos do cabo/ Lua — armadura do cavaleiro”. No segundo verso, observa-se uma espécie de irradiação dos elementos materiais e formais que constituem o signo “lua” e a tendência a se orientarem para a formação de um conceito (semasiologização). Na expressão considerada, a semasiologização das partes confere à palavra “lua” certo matiz que não provém da anulação de seu indício fundamental, mas justamente de sua permanência. Estamos diante de dois eixos semânticos distintos, por ocasião de cuja flutuação pode ocorrer o obscurecimento do indício fundamental. É o princípio que rege a metáfora.
aquisição desse novo sentido confere à palavra “homem” um determinado matiz: o indício fundamental não é, porém, eliminado, nem o matiz resulta de sua anulação (o trocadilho, que se sustenta pela comparação dos dois planos), pois o matiz se deve justamente à estabilidade do do indício fundamen fundamental. tal. É como se nos nos deparássemos com uma semântica dupla, em dois planos, cada um dos quais tendo seu próprio indício fundamental (человек e чело века), que fazem pressão um sobre o outro. A flutuação dos dois planos semânticos pode ofuscar parcialmente o indício fundamental e evidenciar os indícios de significado flutuante.8
Os indícios flutuantes — diz Tynianov — podem intensificar-se graças ao indício fundamental ou substitui-lo e dar lugar a um “significado imaginário” ou a uma “aparência de significado” 7. Isso
De seu jogo com outros indícios secundários, com matizes léxicos e com os indícios fundamentais, surge, em cada poema, o complexo significado da palavra poética. A importância dada ao som é grande no Formalismo russo. Paralelos foram traçados com o Simbolismo russo, escola que o precedeu, e também, pela importância dada à ambiguidade, com o New Criticism anglo-americano. Criticism anglo-americano. Paralelos e comentários, obviamente, há muitos. O que se sugere evitar é apegar-se a lugares-comuns, normalmente equivocados, como traduzir a expressão samovítoie slovo: slovo: “palavra que se tece interiormente” por “discurso autônomo” ou, então, partir da conceituação de zaum zaum,, linguagem transmental, apenas aparentemente sem referente (por sinal, imaginada por Khlébnikov, o poeta cubo-futurista
7
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Indícios flutuantes: flutuantes: ao lado desses dois eixos, porém, podem manifestar-se indícios secundários de significado que, por sua instabilidade, são chamados de flutuantes. São frutos da ambiguidade e podem estar ligados a fenômenos de som, de tom, e contribuem para a formação de uma semântica imaginária.
(TYNIANOV 1968:105)
(TYNIANOV 1968:75)
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que sempre achou que a língua é a sede do conhecimento e, portanto, extremamente motivada!), motivada!), e daí chegar à conclusão de que os formalistas são a favor da arbitrariedade do signo. 3. Roman Jakobson: algumas atualizações e sua relação com Bakhtin e sua escola
Há vários textos de Jakobson — alguns deles publicados em Linguística e comunicação (Cultrix) comunicação (Cultrix) e em Linguístia, poética, cinema (Perspectiva), cinema (Perspectiva), livro, este último, composto por ocasião da visita do autor a São Paulo — que contêm conceituações não apenas básicas, mas revolucionárias em termos de teoria literária. Entre as problematizações mais importantes destas obras, encontramos a questão das funções da linguagem, a da equivalência em poesia dos dois eixos, o paradigmático (metafórico) e o da contiguidade (metonímico), conceituação esta que explica, ao mesmo tempo, o efeito da “expectativa frustrada” e o do “estranhamento” em poesia, ou a questão da determinação da “diferença específica”, do traço distintivo, do critério qualitativo que permite, no caso da literatura, estabelecer seus limites frente às outras expressões das Humanidades. Vamos, aqui, também, fazer uma pausa — dessa vez para algumas atualizações que se tornaram desejáveis após uma leitura diacrônica das obras de Jakobson: alguns de seus conceitos primeiros foram por ele mesmo aperfeiçoados ao longo do tempo. Atualizações esclarecendo algumas questões referentes à função poética, por exemplo, foram propostas na obra Roman Jakobson: Lie, Language, Art, por Richard Bradford9 e serão apontadas aqui. Para compreender com maior clareza a famosa formulação de Jakobson: “A função poética projeta o princípio da equivalência do eixo da seleção para o eixo da combinação”, convém lembrar que ela se origina das observações de Jakobson sobre os dois tipos de
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desordens provocadas pela afasia. Os afásicos que têm dificuldade em escolher entre os sinônimos/variantes do eixo da seleção se veem aprisionados nas cadeias sintagmáticas e têm restringida sua capacidade de distinguir entre a mensagem em si e uma versão a ela equivalente, ou em uma “metalinguagem” (ex.: em lugar de “o carro roda depressa ao longo da estrada” dizer “o carro voa”, etc.), e os afásicos que, ao contrário, se debatem no caos entre palavras que não conseguem organizar em sintagmas e se veem confinados à dimensão paradigmática. As identificações aproximadas que conseguem fazer são de natureza metafórica (ex.: em lugar da cor preta, dizem: “aquilo que se usa para os defuntos”). Embora, num primeiro tempo, valesse a interpretação de que “o poeta projeta a partir do eixo da seleção para o eixo da combinação”, mais tarde, Jakobson teria complementado a formulação, afirmando que o poeta é quem, deliberada e conscientemente, cria desequilíbrios entre as cadeias paradigmática e sintagmática, saltando livremente entre os dois planos (as duas condições linguístico-mentais). A ênfase dada ao plano sintagmático seria própria da épica, enquanto da lírica seria próprio o plano metafórico. Outro reparo. Se em 1920, em seu famoso ensaio Novíssima poesia russa ru ssa,, onde Jakobson, ao estudar a poesia cubo-furista de Khlébnikov, elenca uma série de procedimentos revolucionários e sugere — testando os conceitos de fonema postulados por ele e Trubetzkói em Fonologia10 — que, no poeta estudado, a textura fônica não lida propriamente com sons, mas com fonemas, ou seja, com representações acústicas capazes de serem associadas com representações semânticas; ele afirma também que A poesia, que é simplesmente a enunciação com ênfase na expressão, é regida, por assim dizer, por suas próprias leis imanentes; a
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(BRADFORD 1995, parte I)
10
(cf. JAKOBSON 1971:475 e 633, v. 1)
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função comunicativa, essencial tanto para a linguagem prática
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Esses exemplos mostram que tanto as obras dos artistas (como
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quanto para a emotiva, tem apenas uma importância mínima em poesia. A poesia é indiferente ao referente da enunciação, como — por outro lado — a linguagem prática ou, melhor dizendo, a prosa orientada para o objeto é indiferente ao ritmo.11
Ora, em 1960, em seu ensaio “Closing Statement: Linguistics and Poetics”, Jakobson esmorece certa ênfase que caracterizava sua afirmação de 1920: “A supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas a torna ambígua ambígua””12. E, por último, se em Linguística e poética poética — seu ensaio de 196613 Jakobson escrevia: “A equivalência é promovida a procedimento constitutivo do sistema; uma sílaba equivale a qualquer outra sílaba da sequência, o acento a qualquer outro acento da sequência , sequência , a falta de acento a qualquer outra falta de acento da sequência, o caráter prosódico longo de um som equivale a qualquer outro som longo, idem idem o o som curto [etc., etc. ]”; em seus Selected Writings II Writings II vol. de 1971, ele acrescentava:
queria Marina Tsvetáieva), quanto as obras da intelligentsia intelligentsia,, embora possam ser analisadas segundo suas leis imanentes num corte sincrônico, só podem ganhar, depois, numa leitura diacrônica, onde passariam a ser lidas cronologicamente c ronologicamente e consideradas em sua totalidade, para uma melhor compreensão. Quanto à questão da escola de Bakhtin ser ou não ser continuadora do Formalismo russo, a resposta só pode considerar os aspectos de concordância e os de diferença entre as duas correntes. Em Formalist Criticism and Reader-Response Teory 15 , , os autores sublinham essa continuidade, salientando, porém, a ênfase bachtiniana dada ao discurso (verbal) enquanto fenômeno social, em todas suas instâncias. Na parte III de seu trabalho, o crítico Richard Bradford também aponta para semelhanças e discrepâncias entre as duas escolas, e scolas, focalizando respectivamente seus expoentes máximos, Jakobson e Bakhtin e sublinhando a orientação (установка) de Jakobson — notadamente para a poesia — e a orientação de Bakhtin — notadamente para o romance. Este breve trecho pode servir de síntese:
o uso poético da equivalência opera como eixo entre dois patterns
11 12 13 14
de forma e de significado. Cada um deles pode ser dissecado anali-
O argumento de Jakobson compartilha da mesma premissa
ticamente e codificado “exaustivamente” [pela melhor das críticas],
estruturalista que o trabalho de Bakhtin e sua escola, mas dife-
mas os efeitos que são criados pela interrelação e/ou pelo frequente
rencia-se em um aspecto importante. Ambos concordam que a
conflito dos dois patterns são peculiares do texto em questão e são
realidade é um conceito relativístico, relativístico, friável: mais um construto
imprevisíveis na esfera normativa, abstrata, da análise. [...] O intei-
de perspectiva, ideologia e sistemas de signos do que uma enti-
ro sistema de hierarquias causais e temporais que rege o processo
dade imutável. Mas, enquanto a escola bakhtiniana considera o
das trocas não poéticas [...] é completamente desarranjado. 14
artista literário, e mais especicificamente o romancista, como al-
(Apud BRADFORD 1995:26, parte I) (Apud BRADFORD 1995:27, parte I) (Apud BRADFORD 1995:40, parte I) (Apud BRADFORD 1995:41, parte II)
guém que reconstitui o social, o ideológico e o especto linguístico de um determinado meio, Jakobson mantém que a poesia é um 15
(DAVIS; WOMACK 2002:39)
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meio à parte, ao mesmo tempo uma linguagem e um sistema independente, a-histórico, que pode absorver e refletir a individualidade do poeta e a perspectiva que o poeta tem de seu mundo.16
4. Breve revisão
Passaram-se os anos. Veio a vaga do Estruturalismo Francês, vieram Lukács, Goldmann, Kristeva, Walther Benjamin, a Mimese Mimese,, a Anatomi Anatomiaa da crítica, crítica, a Semiótica, a Psicocrítica, Bakhtin, o Desconstrucionismo... e, um belo dia, encontrando-me em Yale graças a um projeto 17 que previa entrevistas com personalidades universitárias que houvessem conhecido Roman Jakobson quando professor nos EUA, deparei-me com um seu ex-orientando, Victor Erlich — então professor emérito e um dos mais reconhecidos críticos daquela prestigiosa universidade — que, com toda a autoridade que pesava em seus ombros, disse-me, sem rodeios, em animada conversa18, que, após o Formalismo russo, nada de mais original ou importante tinha surgido no domínio da Teoria da Literatura. Não nego a minha satisfação: passada a voga dos anos 60-70 (do século XX), não faltaram, em nosso próprio âmbito universitário, detratores do Formalismo russo que, bastando-se, talvez com um conhecimento superficial, de textos copilados e mal traduzidos e de slogans descontextualizados slogans descontextualizados ou mesmo pela falta de empatia ideológica, tacharam-no de positivista, formalista, estruturalista, antibakhtiniano, antissociológico, saussuriano, aristotélico, modismo superado e assim por diante. É um pouco para tentar desfazer esses clichês e (muito) para relembrar aqueles tempos que reli há pouco a tese de doutorado de Erlich de 1954, Russian Formalism, Formalism, publicada 16 17 18
(Apud BRADFORD 1995:176, parte III) Cf. projeto BID-USP (1990-1991). (Cf. BERNARDINI 1994-1995)
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em livro em 1965, e que, baseando-me também em minha própria prática como estudiosa e professora de russo (meus três principais trabalhos acadêmicos tiveram relação com o Formalismo russo)19, disponho-me a voltar a certos conceitos que foram, durante tantos anos e ainda são agora — para mim e para minha geração —, tão cruciais e operantes, mas que para as novas gerações não passam, quando muito, de “nomes nus”, nus”, como disse Umberto Eco no final de O nome da rosa. rosa. Abordaremos a questão pelo fim. O que se tem assistido desde as últimas décadas do século XX em termos de metodologia geral da cultura é a grande revisão que teve por objeto dois erros herdados do século passado: o empirismo extremado, que reconhece como real apenas o que é dado “imediatamente” “imediatamente”,, e o monismo rígido, que tenta reduzir níveis heterogêneos a leis homogêneas 20. “No nível epistemológico” — e aqui cito textualmente Erlich —, “o interesse dos positivistas pelos dados sensoriais foi obscurecido pela Filosofia das ormas simbólic simbólicas as,, a concepção do homem como animal symbolicum (Cassirer)” licum (Cassirer)”21. Viu-se, então, que cada nível de experiência tem suas próprias leis ou princípios de organização, que não podem ser deduzidos de outros níveis. Consequentemente, estudiosos foram induzidos a indagar, primeiro, as propriedades estruturais de um 19
20
21
São eles, respectivamen respectivamente, te, Materiais para o estudo do futurismo italiano e do cubo-futurismo russo (Dissertação de Mestrado, 1970); Poesia e poéticas do futurismo ( russo e italiano) (Tese de Doutorado, 1973); Indícios utuantes em Marina Tsvetáieva (Tese de Livre-Docência, 1977). Todos encontráveis na Biblioteca da USP. Além do último capítulo da tese de de Victor Erlich transformada em livro, recomenda-se, aqui, para ulteriores considerações quanto às novas posições respectivas das Ciências e das Artes na época contemporânea, a leitura do livro de Hans-Georg Gadamer ( Verdade e método 1998 [1960]) e, em particular, a introdução de Gianni Vattimo às edições italianas de 1983, 1994 e 1997, A ontologia hermenêutica na losoa contemporânea. CASSIRER, Ernest. 1942. An Essay on Man . Yale University Press (apud ERLICH ERLICH 1965).
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dado sistema e, só mais tarde, a relacionar os dados assim obtidos
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compreendido “discurso autônomo”), de resistir a pressões hostis,
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com os dados próprios a outros sistemas. Dentro D entro dessas duas novas tendências da modernidade, que podemos caracterizar com Erlich como a “interpretação simbólica” e a “interpretação gestáltica”, gestáltica”, onde se situaram os formalistas? O retrospecto de Erlich sobre as raízes literárias russas que se nutriam numa rica tradição nacional de sensibilidade pelos problemas da forma poética remonta à Idade Média e faz uma pausa bastante longa na época de Púchkin, em que as controvérsias críticas giraram mais em volta dos problemas da prosódia e da linguagem do que de questões ideológicas. Essas últimas surgiram com grande força na segunda metade do século XIX, com a questão dos raznótchnitsy (a (a intelligentsia plebeia) intelligentsia plebeia) e mais tarde dos populistas, e com a tendência ao jornalismo e à história das ideias que impregnaram os escritos
carregada que está de sua máxima carga criativa. Não parece um item do manifesto de “A palavra enquanto tal”? Vesselóvski dedicou-se à metodologia da indagação literária, à tentativa de responder à pergunta “o que é literatura?” O edifício literário é por ele desmembrado em elementos objetivos: esquemas, procedimentos, imagens canônicas, motivos recorrentes, fórmulas migratórias, daí seus estudos da tradição literária e folclórica, prenunciando, entre outros, Propp, Tomachévski e a poética histórica, daí o começo das vastas intuições metodológicas metodológicas formalistas, daí a ênfase na estrutura objetiva da obra literária, mais do que nos processos psíquicos que a acompanham, daí a desconsideração (mesmo que algumas vezes panfletária) pela importância do gênio criativo na história da literatura, que aparece em alguns manifestos formalistas.
literários da época, na Rússia. É por isso que os estudiosos de literatura das últimas décadas do mesmo século preferiram manter-se afastados das “queimantes” “queimantes” questões sociais e dedicar suas intuições fecundas e sua pesquisa às questões que diziam respeito à técnica literária, ao estudo comparativo literatura/folclore e à filosofia da linguagem. É aqui que surgem os ancestrais diretos do Formalismo russo: A. Potebniá (1835-1891) e A. Vesselóvski (1838-1906). Do primeiro, que se ocupou com as relações entre pensamento e linguagem, os formalistas absorveram os experimentos de descrição da natureza da criação poética em termos linguísticos. O pensamento pode dispensar as palavras? Sim, pois há linguagens gráficas, da música, das cores, que não utilizam palavras. Pois, na medida em que pensamento e palavra representam conceitos coextensivos, cada um tende a dominar o outro. A razão quer a todo custo dominar a palavra, e esta, na obra de poesia, consegue maior possibilidade de emancipar-se da tirania da ideia (aqui está o germe do tão mal
Nas primeiras décadas do século XX, enquanto o interesse social na literatura oficial/acadêmica russa era substituído por um biografismo estéril, os sequazes mais prometedores de Vesselóvski, como o medievalista V. Piérets, esforçavam-se para distinguir entre estudo da literatura (como algo é dito) e estudo da cultura (o que é dito). A análise da linguagem poética, área-limite entre crítica literária e linguística, constituiu o terreno de encontro entre os jovens estudiosos de literatura e os de linguística. Percebeu-se que os fatos linguísticos podiam ser estudados não apenas por seus antecedentes históricos, mas também com base na “função” que desempenham nos vários tipos de linguagem. Jovens estudiosos de literatura reuniam-se em seminários, como aconteceu em um deles de S. Petersburgo, o de S. A. Vengerov sobre Púchkin, em 1908, e se aplicavam com zelo a estudar o estilo, o ritmo, a rima, os epítetos, os temas, os procedimentos. Quem estava entre eles? Boris Eikhenbaum, Boris Tomachévski, Iúri Tynianov... Tynianov... Este último,
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também aluno de Baudoin de Courtenay, que, por sinal, já conhecia Chklóvski desde 1913. Claro que, como sempre acontece, esse tipo de interesse não exista apenas na Rússia. Na França, surgia a “Explication “Explication des textes”; textes”; na Alemanha, a proposta de H. Wölfflin de “uma história da arte
signo), a não coincidência, para a linguagem poética, entre signo e referente. “A natureza particular da linguagem poética tornou-se o principal objeto de interesse e de estudo de uma nova geração de filólogos, na medida em que representava um tipo de discurso ‘funcional’
sem nomes” e sua tese da “iluminação recíproca entre as várias artes” etc., etc. A própria academia abria-se aos novos estudos. Em São Petersburgo, as velhas teorias dos neogramáticos eram combatidas por Jean Baudoin de Courtenay e seus discípulos. Em Moscou, em razão da grande influência de F. Fortunatov, um linguista muito versado em análises morfológicas, a adesão aos estudos dos problemas da função e do significado demorou um pouco mais a pegar, mas a chegada da fenomenologia de Edmund Husserl foi decisiva. Em suas célebres Logische Logische Untersuchungen Untersuchungen,, ele analisava profundamente a função lógica das categorias gramaticais fundamentais comuns a todas as línguas e introduzia o conceito de uma gramática universal “pura”, ou seja, da “língua enquanto tal”... Entre os precursores do Formalismo russo, está, paradoxalmente, a grande escola que o precedeu, a do Simbolismo russo. Não vamos nos demorar aqui sobre ela, nem sobre o Acmeísmo, que surgiu pouco depois, nem sobre os seus precursores ocidentais: a respeito da ambiência do formalismo, há o estudo abrangente de
por excelência, cujos componentes eram subordinados a um mesmo princípio informador: um discurso inteiramente organizado com a finalidade de obter o efeito estético desejado” — diz V. Erlich, concluindo sua introdução. Dito e feito. Em 1915, um grupo de jovens estudantes da Universidade de Moscou (Busláev, Piotr Bogatyriov, Roman Jakobson e G. Vinokur) fundou o “Círculo Linguístico de Moscou”. Um ano mais tarde, jovens filólogos e estudiosos de literatura que mantinham contato com o Círculo moscovita fundaram em S. Petersburgo a “Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética”, também conhecida como Opoiaz , criada pela coalizão de dois grupos distintos: estudiosos da linguagem segundo a escola de Baudoin de Courtenay como L. Jakubínski e E. D. Polivánov e teóricos da literatura como B. Eichenbaum, V. V. Chklóvski, S. I. Bernstein e, logo em seguida, O. Brik. Tinha nascido o Formalismo russo. Desde a primeira fase do Opoiaz , os participantes do movimento haviam focalizado seus interesses no estudo da linguagem
Krystyna Pomorska, Formalismo e uturismo, já mencionado: a reelaboração de sua tese de Doutorado. Falamos em precursores paradoxais quanto aos simbolistas, pois, ao mesmo tempo em que os formalistas rejeitavam seu flerte seu flerte psicomístico psicomístico (expressão (expressão de V. Erlich) com o Absoluto e sua eleição da imagem como traço construtivo da poesia, deles aceitavam a abolição da dicotomia mecanicista forma/ conteúdo e, embora vacilante (pois, para os simbolistas, ora o signo se confunde com o objeto, ora o objeto é concebido como puro
poética. Cinco anos após sua fundação, simpatizantes do movimento já afirmado criticamente e já inserido na cultura literária acadêmica, egressos da Seção de História da Literatura do Instituto Nacional de História da Arte de São Petersburgo, uniram-se a ele: V. Jirmúnski, G. Gukóvski, I. Tynianov, B. Tomachévski, V. Vinográdov. Grupos de estudos diversificados foram incentivados. O novo Instituto encarregava-se das atividades didáticas e publicísticas. Sob seu patrocínio, começou a circular o periódico
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Problemas de poética, poética , onde apareceram alguns dos mais importan-
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por alguns representantes do movimento, Chklóvski, em particular,
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tes estudos formalistas de história e teoria da literatura. O formalismo tinha se tornado adulto. Na segunda fase, chamada “estruturalista” “estruturalista”, quando unidos aos formalistas de Praga (de cujo círculo Jakobson, o principal representante do círculo formalista de Moscou, que assim se desfazia, passara a fazer parte desde sua partida da capital russa, em 1920), os teóricos formalistas do Opoiaz foram foram pioneiros no propósito de fundar um esquema gestáltico da criação literária. Baste para tanto recordar seus reiterados conceitos de sistema, dominante, dominante, eestrutura e estrutura.. Ao mesmo tempo em que continuavam indagando a natureza do fato literário, os formalistas não deixavam de se preocupar com a “evolução literária”22 e com as relações da arte com a sociedade, utilizando para tanto com proveito as novas formulações metodológi-
cuja insistência na arte como procedimento , por exemplo, como exclusivo interesse do estudioso de poética, além de exagero tático é uma das provas da limitação de sua perspectiva. Assim mesmo, essa e outras noções que ele propugnou, como a da desautomatização, do estranhamento, da perceptibilidade, etc., bem como os textos-manifesto do primeiro formalismo foram, muitas vezes, mais férteis do que os juízos cautelosos de críticos conservadores. Se a questão da personalidade criativa, apesar de inicialmente enfaticamente negada por alguns formalistas, se tornou, no formalismo mais maduro, objeto de importante consideração — Victor Erlich cita o ensaio de R. Jakobson sobre a prosa de Pasternak (Randbemerkungen zur Prosa des Dichters Pasternak. Pasternak. Slaviche Rundschau, 1935, VII) —, o que, segundo ele, restou impreciso
cas e levando-as adiante, juntamente com os estruturalistas estr uturalistas tchecos. Além de terem assim prenunciado e participado da Gestalt , uma das mais importantes conquistas do pensamento moderno, deve-se ressaltar que os formalistas russos, por terem desde o início contado com a aliança da vanguarda cubo-futurista, tiveram seu movimento crítico-teórico fortalecido, revigorado e atualizado (até sua dispersão por volta dos anos 30), particularmente em termos de poesia. Citese, como exemplo, a já mencionada Novíssima poesia russa russa de R. Jakobson, sobre a poética de Velímir Khlébnikov, os textos de Ossip Brik sobre o ritmo e o também já mencionado livro de Tynianov O problema prob lema da ppalavr alavraa poética poética.. A ligação com a vanguarda explica certas posições panfletárias e polêmicas assumidas no primeiro formalismo
no movimento foi a questão da avaliação estética da obra. obra. Para os formalistas os valores estéticos, como qualquer outro valor, são relativos e sujeitos a variarem de período a período (Cf., entre outros, o já mencionado A mencionado A evolução literária de Tynianov). Acrescente-se a isso a desmistificação das normas (Cf. o famoso sdvig ; ou desvio, estudado por Krystyna Pomorska como um dos pilares da poética de Khlébnikov) e a desconfiança em relação a tudo o que poderia representar o “absoluto” “absoluto”, desconfiança essa corroborada, no plano estético, pelo representante do estruturalismo estr uturalismo tcheco Jan Mukaróvski, em seu livro de 1936, A 1936, A unção, a norma e o valor es estético tético como atos sociais (“a sociais (“a essência da norma estética é de ser quebrada”), e poder-se-á compreender por que a avaliação histórica (de um fato que podia ser comprovado historicamente) representou para os formalistas um caminho mais seguro do que o juízo crítico. Expliquemos melhor: se é importante saber se certa obra cumpriu a “tarefa histórica” a que se propunha ou que lhe cabia (e nesse
22
É muito importante insistir insistir nas fortes relações relações do formalismo com a série histórica, às quais voltaremos. O que se entende por “evolução literária” pode ser lido no ensaio de I. Tynianov sobre o assunto em uma das antologias de textos formalistas citados. Quanto à relação entre estrutura e função em literatura, vale a pena ler-se o texto de CANDIDO (1972; 1999).
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caso não se pode deixar de lembrar-se de “Como “ Como escrever versos” de Maiakóvski ou de como Tolstói, segundo Eikhenbaum, soube, após sua famosa crise de 1880, romper com a tradição romântica, enquanto Turguênev se manteve nela), algumas obras cumprem sua tarefa mais esteticamente que outras. E embora o crítico possa
Curiosamente, também B. Engelgardt, um “companheiro de estrada” do formalismo dos anos 1920, em e m seu ensaio “A escola formal na história da literatura”, teve algo a dizer nesse sentido: “A rigor, a construção histórico-literária criada por essa escola não chega a ser uma História da Literatura, mas uma teoria evolutiva sui generis generis
avaliar a obra literária baseando-se nos seus critérios, esses critérios deveriam ter certa validade geral, que, inclusive, transcende a poética de determinado período. Os formalistas focalizaram o “dinamismo “dinamismo interno” de um determinado sistema, suas leis imanentes, desengatando nos anos 20 a arte literária da famosa “colcha de retalhos” cultural que tudo acolhia, e tiveram, sim, nos anos 30, a preocupação de estudar sua inserção nas diferentes séries sociais, mas — explica Victor Erlich — não tiveram ocasião de deter-se suficientemente sobre a natureza dessa inter-relação, nem sobre as leis “transcendentes””, coisa que poderia ter feito uma filosofia da cultura “transcendentes mais flexível do que o referido monismo do século XIX, e talvez mais orgânica do que a “descritividade”, embora rigorosa, r igorosa, de que os formalistas foram considerados adeptos. Este é, literalmente, o reparo de Victor Erlich, no ensaio final de seu Formalis Formalismo mo russo: russo:
dos fatos linguísticos significativos do ponto de visto estético, uma poética formal” 24. Em seu já mencionado ensaio de 1972, “A evolução literária”, Tynianov, justamente consciente da necessidade de não anular a História da Literatura, mas reconstruí-la em sua totalidade no interior da vida social, e levando em consideração momentos como os da gênese literária, propôs uma hierarquia de níveis funcionais (função construtiva e suas subdivisões, função literária, função linguística, que, de acordo com ele, liga a literatura aos costumes, etc.). Outrossim, lembra Maria Di Salvo, na tese n. 8 que escreveu juntamente com Jakobson Jakobson em 1928, ficava claro que:
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A análise das funções respondia, para Tyniánov, a uma exigência de esclarecimento e de especificação; ao estudá-las, ele voltava a um dos pontos centrais de toda sua pesquisa, a análise dos significados. Pelo mesmo motivo, ele sustentava a necessidade de se estudarem
Se por “Teoria da Literatura Literatura”” entendermos um esquema orgânico
— ao lado das grandes e não separadamente — também as figuras
da criação literária, fundado num sistema estético coerente, numa consequente filosofia da cultura, temos que admitir que o forma-
menores de uma época, que contribuem para o esgotamento das velhas funções, funções, preparan preparando do o nascimento nascimento das das nova novas. s.
lismo não chegou a tanto. Mas teremos que lembrar também que nenhum movimento crítico jamais sequer se aproximou desse objetivo. [...] e que se os formalistas não conseguiram desenvol ver uma teoria da literatura exaustiva, devemos reconhecer-lhes o mérito de ter elaborado dela alguns aspectos essenciais. 23 23
(ERLICH 1965:309).
E, sempre na Tese n. 8, referindo-se às leis imanentes da História da Literatura, que determinam uma série de possibilidades evolutivas, repara Tynianov que: “o problema da escolha concreta de uma orientação, ou ao menos de uma dominante, pode ser resolvido 24 (Apud TYNIANOV 1973:XXIV) 24
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apenas mediante a análise da correlação entre a série literária e as 25
Capítulo 12 . Formalismo russo
conceito de Belo27 tenha sido submetido, ao longo do tempo, a a lte-
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outras séries . Considere-se o fato, porém, de que a tarefa de correlacionar diversas esferas da cultura humana vai muito além da literatura e de qualquer domínio isolado. Esse tipo de correlação requereria não apenas uma rigorosa obra de colaboração entre campos diferentes, todos, sem exclusão (lembre-se que Bakhtin teve a ideia de seu “cronotopo” ao assistir à palestra do fisiólogo A. Ukhtomsky, que participava de seu “círculo de estudos”, estudos”, em 1925, e que relacionava a intersecção do espaço e do tempo na biologia), mas o resultado dessa de ssa colaboração ideal, para não ser datado, deveria sofrer um processo de contínua atualização. Ninguém pode assegurar, por exemplo, que a formulação que pretende definir a obra de arte enquanto experiência de verdade a que chegou a estética de cunho gadameriano, hoje, poderá ser sentida como viva e atual daqui a cem anos 26. Para tanto, bastaria fazer um rápido retrospecto, nem que fosse passando pelas teorias estéticas dos séculos IX e XX, para se verificar como o 25 Citado na Introdução de Maria DI SALVO (1973:XXI) 25 26 Aqui estaria um resumo-decálogo 26 resumo-decálogo das características características da obra de arte, arte, extraído da leitura de VATTIMO (1985), ex-orientando de Gadamer: 1) A obra de arte não se insere no mundo, mas o modica qualitativamente; qualitativamente; 2) é uma uma luz diferente que que incide sobre as coisas e colore de maneira diversa diversa as lentes com as quais olhamos; 3) é uma Weltanschau ung com a qual o mundo deve entrar em diálogo; 4) é o apelo apelo de um novo evento que requer resposta; 5) é fundação de uma uma nova nova linguagem, linguagem, portanto de um mundo; 6) a obra funda funda e é, por sua vez, vez, fundada fundada durante durante o processo. Ela transcende transcende o processo; 7) a obra obra não se deixa reduzir ao ao que era antes, antes, nem se deixa enquadrar no mundo tal qual é; 8) o próprio próprio artista e o fruidor fruidor não são mais o que eram antes de conhecer conhecer a obra: nossas relações com o mundo passam a ser diferentes; 9) a obra de arte tem a força de projetar um mundo; 10) as bases para uma uma fundação fundação ontológica ontológica da arte são o esforço para reconhecer reconhecer as relações da arte com o ser, ou seja, reconhecer não apenas a consciência, mas o que transcende a consciência. Através dos interstícios do ente, dos pontos de descontinuidade descontinuidad e da experiência, a arte se aproxima ao ser.
rações e mesmo a contradições contínuas. Por outro lado, veja se a opinião de Mikhail Bakhtin quanto à compreensão do todo, na arte, que obedeceria, segundo ele, a quatro atos, a saber: 1. Percepção sensorial; 2. Reconhecimento próprio de cada indi víduo (reconfirmação (reconfirmação do próprio próprio luga lugarr depois de encontrar o outro); 3. Apreensão de seu significado no contexto, tirando partido de seu próprio excedente, (que servirá, no caso da literatura, a finalizar a personagem: a arte, de uma maneira geral, requer que se realize um excedente em relação ao evento); 4. Compreensão ativo-dialógica, valendo-se do impulso interior em direção a um objetivo (concentração) e lembrando que o indivíduo não está à mercê dos fatos: basta-lhe reconcebê-los. 28
Da mesma forma que o indivíduo precisa do outro para concretizar seu potencial, uma cultura precisa de outra para se mensurar e se desenvolver. Tendo isso em vista, Bakhtin elaborou uma série de trabalhos famosos sobre diferentes gêneros (romance, paródia, sátira menipeia, etc. — valham por todos seus escritos sobre Rabelais e sobre Dostoiévski), onde caracteriza fenômenos como a polifonia e a heteroglossia, geralmente tomados como sendo o mesmo, mas — como lembram Todd FF.. Davis & Kenneth Womack 29 —, enquanto o segundo descreve a diversidade dos estilos do discurso numa língua, o primeiro descreve as diferentes vozes das diferentes personagens fazendo-se ouvir numa mesma narrativa; o cronotopo; a carnavalização; etc., valendo-se do método de colocar em relação 27 Leia-se o livro de TOLSTÓI 27 TOLSTÓI (1971). No Brasil, Brasil, existe uma tradução tradução parcial de de seus escritos sobre o assunto, publicado pela Editora Experimento, de São Paulo. 28 (MORSON; EMERSON 2007:104ss) 29 (DAVIS; WOMACK 2002:160)
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entre si campos, sujeitos e objetos, mesmo que distantes, através de um processo de deslocamento e abertura, antes do que de incorporação e clausura: “os indivíduos surpreendem e isso produz a mudança histórica” histórica”30.
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do fruidor. É assim que Tynianov vê, por exemplo, a questão dos gêneros, que se sucedem e muitas vezes se alternam. E o que diz Vattimo, Vattimo, um dos filósofos que tratam hoje de cu ltura, de “larga parte da cu ltura contemporânea contemporânea”? ”? O que importa salientar é que uma larga parte da cultura contem-
5. Contemporaneidade do Formalismo russo
porânea [...] concebe o saber como compreensão do fenômeno
O que vale a pena ressaltar, finalmente, é a contemporaneidade das conceituações do Formalismo russo. Algumas de suas perguntas iniciais – “O que é literatura?”; “Qual é o modo de existência de um texto?”; “O que diferencia a literatura dos outros domínios das humanidades?”; “Que tipo de obras literárias existem?”; “Como se estrutura o mundo do texto (fábula, siujet , ritmo etc.) frente ao mundo de que ele é imagem?” – têm relação estrita com a orientação ontológica e pós-cognoscitiva de nossa época que tende a perguntar-se:
particular em relação a um fundo que permite compreender o significado verdadeiro [...]. O ente, o tipo de experiência, é sabido quando reconduzido a uma totalidade em relação à qual ele se define. 32
E ainda: Trata-se [...] da abertura para uma concepção não metafísica da verdade, partindo não tanto tanto do modelo positivo do saber cientifico [...] quanto da experiência da arte e do modelo da retórica,
Que mundo é esse? O que se deve fazer num mundo desses? Quais dos meus eus devem fazê-lo? O que é um mundo? Que
por exemplo, [...] uma vez que a experiência pós-moderna de
tipo de mundos há? Como eles diferem? O que se passa quando
verdade é provavelment provavelmentee uma experiência est estética ética e retórica, que
os limites entre os mundos são violados? Qual é o modo de exis-
nos conclama a viver uma experiência fabulizada do real como
tência de uma obra? Qual é o modo de existência do mundo que
possibilidade de liberdade. 33
a obra representa? Em que sentido é estranho o mundo do qual é apresentada apresenta da a imagem?31
Além das perguntas, suas próprias conceituações básicas coincidem em muitos pontos. O fenômeno literário, embora obra autônoma que se explica e se compõe graças a seus procedimentos retóricos, assume e muda de significado em função de um fundo (época, período, ideologia etc.), o que permite as diferentes interpretações 30 (MORSON; EMERSON 2007:410) 31 (Cf. CESERANI 2006:134).
Mas será que existe mesmo um cânone estável para a arte? A resposta de Luigi Pereyson — um filósofo contemporâneo que como Vattimo é agora conhecido no Brasil — em sua “Teoria da formatividade”34 é: “não”. Mas essa inexplicabilidade é um fato absolutamente não arbitrário, onde “o todo é rigorosamente regido por uma lei que 32 33 34
(Cf. VATTIMO 1985:14-15) (Cf. VATTIMO 1985:23) (Cf. ed. ed. Brasileira: São São Paulo: Martins Martins Fontes, 1998). 1998). (Cf. PEREYSON PEREYSON 1961). E ainda, ainda, citado por por Vattimo, Conversazioni di estetica, 1966. Existe tradução em português de alguns de seus livros, pela Martins Fontes de São Paulo.
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comanda sua estrutura, de modo que cada parte apareça em sua li-
Capítulo 12 . Formalismo russo
passarão a ser conhecidos, mais tarde, como os núcleos do assim
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gação necessária com esse todo e este com cada parte . Aqui está, em síntese, sua conclusão, bastante próxima da proposta do Formalismo russo: a obra de arte não se insere no mundo que está aí, mas cria um novo mundo. Ela se apresenta como portadora de uma lei que reorganiza as estruturas do mundo e funda sua própria história. 6. Mikhail Bakhtin: Dados biobibliográcos35
Mikhail Mikháilovitch Bakhtin (1895-1975), nascido em Orel, ao sul de Moscou, de uma família da pequena nobreza, teve sua infância marcada pela presença de uma excepcional governanta que lhe ensinou perfeitamente alemão, e a juventude influenciada pelo exemplo do irmão mais velho, Nikolai Bakhtin, que lhe infundiu a paixão pelos estudos clássicos (latim e grego), que desenvolveu na Universidade de São Petersburgo até o fim de seu curso, na Faculdade de História e Filologia. Em 1918, o irmão entrou para o Exército Branco, emigrando em seguida para a Inglaterra, onde foi, entre outros, interlocutor muito estimado de Wittgenstein, para questões de linguística. Mikhail abandonou o caos e a carestia da cidade grande, que se seguiram à primeira onda revolucionária, para procurar centros menores, onde a vida parecia mais fácil, como Nevel e Vitebsk, onde residiu até 1924. Em ambos os lugares, ele participou de grupos de intelectuais que acompanhavam vivamente os movimentos e os acontecimentos da época. Bakhtin preocupa va-se, em particu lar, com questões de natureza artístico-filosófica, como a relação entre a experiência vivida, entre o eu e eu e o outro outro,, entre a palavra e a ética, etc., levando as discussões para o âmbito de cada grupo nas duas cidades, grupos dos quais se tornará líder, e que 35
Utilizo aqui partes da da conferência sobre sobre Mikhail Bakhtin apresentada apresentada durante durante o encontro da Seleprot UERJ, em 2011, no Rio de Janeiro.
chamado Círculo de Bakhtin . Acompanhando o rumo de seus estudos clássicos, Bakhtin mergulhara desde cedo na filosofia antiga, dedicando-se, depois, ao estudo sistemático dos filósofos alemães, bem como de Buber e Kierkegaard, cujos ensinamentos, seguindo a tradição filológica alemã, sempre amarrara às questões de língua e literatura. Por volta de 1918, a escola de pensamento neokantiana, que dominava a filosofia alemã havia algumas décadas, era a mais influente na Rússia, particularmente a vertente marburguiana de Hermann Cohen. Embora fossem inúmeros os aspectos implicados, o que interessava sobremaneira a Bakhtin era a formulação de uma relação mente/mundo que não enfatizasse nem o primeiro elemento (Leibnitz) nem o segundo (Locke), mas insistisse na necessária interação entre ambos, interação essa que Bakhtin interpretaria como sendo o “dialogismo”. Mais dois aspectos do neokantianismo de Marburg desempenharam papel importante nos primeiros trabalhos de Bakhtin: o relacionamento dos problemas tradicionais da filosofia com as grandes descobertas científicas — daí seu interesse pelos fenômenos da percepção e pela abolição da tradicional distinção entre matéria e pensamento — e a resistência à ideia de uma unidade totalizadora que tudo abranja ( Allh ( Allheit eit ), ), resistência essa manifesta na tentativa de repensar a interação mente/mundo em termos de processo complexo, que viria a desenvolver em estudos como “O autor e o herói na atividade estética” e “Sobre a filosofia do ato”. Por seu idealismo neokantiano, foi submetido a interrogatórios, na URSS, que se desdobraram em exílios em regiões afastadas do país, mais tarde. Em 1924, Bakhtin Bak htin voltou a Petrogrado (antiga São Petersburgo), onde, apesar das graves restrições econômicas, viveu seis anos dos mais ativos de sua vida. Impedido de trabalhar normalmente (na época era politicamente suspeito por participar de discussões em
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círculos da banida religião ortodoxa, e sua saúde, devido à hosteomielite de que sofria, era precária), ele lia muito, reunia-se com os amigos (alguns da época de Nevel-Vitebst), outros, novos, como o biólogo Ivan Kanaev, em cujo apartamento passou a morar com a mulher), mas, principalmente, escrevia. Data dessa época a maioria
Teoria Teoria da Relatividade, ele nunca vê o eu eu como como autossuficiente, mas implicando a “outridade” e a simultaneidade. O eu eu bakhtiniano bakhtiniano é um evento com uma estrutura organizada a partir de fora, que deve se colocar firmemente frente ao fluxo da existência e à sua indeterminação, para que a vida faça sentido. Pela
dos livros que o tornaram famoso e a preocupação com as modificações que sofreriam a psicologia, a linguística e a teoria literária, enfatizando sempre a variedade e a pluralidade, contra a crescente homogeneização da vida política e cultural na URSS, que culminaria no stalinismo. Em 1929, Bakhtin foi preso e exilado no Cazaquistão, até 1934. Após sua volta, lecionou por um ano no Instituto Pedagógico de Saransk e, em seguida, foi para Savielovo, uma pequena cidade no Volga, onde pôde trabalhar na conclusão de dois manuscritos longos, “O romance de formação e seu significado na história h istória do realismo” (1938), quase totalmente perdido pela destruição da editora que devia publicá-lo no começo da II Guerra Mundial, e seu livro sobre Rabelais, terminado em 1941, embora apresentado como Tese em 1947. Chamado de volta a Saransk para reger, na recém-criada Universidade, a cátedra de Literatura Russa e Literatura Universal, tornou-se famoso como professor, professor, lecionando com sucess sucessoo durante vários anos.
ênfase ele sempre deueraaos conceitos de correlação, tância eque posicionamento, natural que grande parte deconcomisua obra girasse em volta do eixo espaço/tempo. Assim, desenvolveu o conceito de “cro “cronotopo notopo”” (cf. Questões de literatura e de estética (1924), estética (1924), publicado no Brasil pela Editora Hucitec), que, em literatura, ele vê como o diálogo contínuo e simultâneo entre autor/narrador/personagem/leitor, fusão ao mesmo tempo da ábula da ábula e e do siujét (trama) (trama) dos formalistas russos, cuja obra acompanhara com atenção. Não é de se admirar, também, que Bakhtin tenha dedicado a maior parte de seus estudos ao romance, visto ser este gênero, a alegoria que representa a existência enquanto condição de autoria, onde as estórias que se entrelaçam são um meio de tornar os valores coerentes, onde a literatura estabelece importantes relações modelares entre o indivíduo e sociedade. Assim, por exemplo, e xemplo, em Problemas da poética de Dostoiévski Dostoiévski (1929) — sua obra mais famosa —, ele estabelece a relação entre o monólogo na literatura e o utopismo racionalista na Europa, em que o conhecimento é a interação de consciências,
obra1963, começou ser resgatada dosobre ostracismo a partir dos anos Sua 60. Em com aareedição do livro Dostoiévski seguido pela do de Rabelais em 1965, seu sucesso na URSS foi estrondoso, logo acompanhado por sua repercussão no Ocidente. De 1972 até sua morte, em 1975, 197 5, Bakhtin viveu em Moscou. As meditações de Bakhtin sobre a problemática do eu aprofundam-se eu aprofundam-se nos domínios das ciências humanas e exatas. Em seu dialogismo, que veio a ser considerado por muitos como a versão literária da
mas só oque privilegiado, sabe eenganados. possui a verdade, é quem instrui os outros, não sabemque ou estão Ora, o privilegiado, em literatura, é o autor. Só ele é o ideólogo e, em suas obras, suas ideias se combinam com as do protagonista-herói. O surgimento de qualquer outra voz leva à sua inevitável neutralização. O que Dostoiévski soube fazer — segundo Bakhtin — mudando os rumos na literatura, foi justamente representar a ideia do
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outro, conservando seu pleno valor enquanto ideia, mas mantendo-se distanciado, sem afirmá-la nem fundá-la em sua própria ideolo-
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certa “carnavalização” “carnavalização” da consciência sempre precede e prepara as grandes reviravoltas, mesmo no domínio da ciência.
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gia, de autor da obra. Desse modo, o “homem da ideia” passa a ser o verdadeiro protagonista, sendo que sua ideia, porém, não é uma formação objetiva de sua psicologia individual: ela é interindividual e intersubjetiva, e sua esfera de existência é a comunicação entre consciências, o diálogo. O advento da “polifonia” de Dostoiévski, enquanto ocaso do paternalismo autoral, corresponde, no mundo ocidental, à passagem do hegelianismo, com seu mundo de valores fixos, para o universo da relatividade em que não existem discursos definitivos nem termos absolutos, mas o diálogo, que não tem fim. A palavra do autor já não é mais toda-poderosa, nem faz o balanço geral da situação. Tudo o que é acabado, estabelecido, final, está ausente desse universo que Bakhtin redescobre redes cobre através de uma longa viagem interpretativa que passa pelos gêneros da Antiguidade greco-romana e pelas formas populares da Idade Média, analisadas em seu trabalho sobre Rabelais, segundo o ponto de vista da “carnavalização” (mais tarde, ampliada para “ambiguidade”), “ambiguidade”), e do papel organizador do princípio cômico. Diz Bakhtin na introdução à sua Tese: Em qualquer época, em qualquer tipo de visão do mundo, a necessidade aparece sempre configurada como algo extremamente sério, incondicionável e peremptório. peremptório. Entretanto, Entretanto, historicamente, as ideias de necessidade são sempre relativas e versáteis. O princípio do riso e a sensação carnavalesca do mundo que estão na base do grotesco destroem o sério unilateral e todas as pretensões a um significado extratemporal e unívoco e libertam a consciência, o pensamento e a imaginação humanas, que se tornam disponíveis para novas possibilidades. É por isso que uma
Em seu todo, a obra de Mikhail Bakhtin, que até o último ano da vida de seu autor nunca deixou de ser lucidamente revista para novas edições, é não apenas “uma apaixonante tentativa de moldar uma teoria do conhecimento para uma época em que a relatividade domina a física e a cosmologia e em que a não coincidência (a coincidência (a do signo com seu referente, do sujeito consigo próprio, etc.) levanta novas e problemáticas questões quanto à própria existência da mente” — diz seu estudioso e biógrafo M. Holquist — mas, apesar disso e por isso mesmo, continua viva e atual como seu diálogo com o mundo. 7. Observações sobre as obras de Mikhail Bakhtin e as dos autores do “Círculo de Bakhtin”
Mikhail Bakhtin é o autor de uma obra vasta e original que começou a ser conhecida no Brasil pelo clássico Problemas da poética de Universitária, 1981), (em 1929 publicada origiDostoiévski (Forense Universitária, nariamente por Bakhtin como Problemas como Problemas da orma de Dostoiévski e Dostoiévski e republicada em 1960 com o título atual) e A e A cultura cultura popular popular na Idade Idade Média e no Renascimento: Renascimento: o contexto contexto de Franç François ois Rabelais Rabelais,, de 1941 (Hucitec, 1987), logo acompanhado por Questões de literatura e estética: a teoria do romance, romance, 1924 (Hucitec, 1988) e, mais recentemente, recentemente, por Estética da criação verbal , 1920-1924 (Martins Fontes, 1992). Estava ainda previsto o lançamento de Freudismo, uma crítica 1927, pela Editora Hucitec, que também publicou, em 1979, marxista,1927, marxista, Marxismo e filosofia da linguagem linguagem (1929), (1929), ambos da autoria de V. V. N. Volochínov, membro do assim chamado “Círculo de Bakhtin”, que, juntamente com P. P. N. Medviédev, teria, segundo opinião de muitos estudiosos de Bakhtin, emprestado o nome ao mestre, cercado pela
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censura. Entretanto, o próprio Bakhtin desmentiu sua autoria desses livros em entrevista com V. D. Duvákin, autor do livro Conversas com M. M. Bakhtin, onde foram reproduzidas as fitas gravadas de suas longas entrevistas dadas durante o ano de 1973 (“...um amigo chegado, Volochínov, [responde Bakhtin] [...] “Ele é autor do livro
Referências
Marxismo e filosofia , livro que, porfoi assim dizer, costu36 da linguagem mam me atribuir” . Estalinguagem, informação, por sinal, c omplementada complementada por E. M. Meletínski, quando, em conversa particular em sua casa em Moscou, em 1987, frisou bem: “Bakhtin é autor dos livros que ele assinou”. Pode, obviamente, ter havido colaboração do mestre, entretanto o estilo e a argumentação dos livros, quando lidos no original, são muito diferentes dos de Bakhtin. Há uma série de estudos de Bakhtin aguardando publicação no Brasil, entre os quais Arte e responsividade (1919); responsividade (1919); “Sobre o livro Problemas da obra de Dostoiévski” Dostoiévski” (1961); “Sobre as conferências de história da literatura de Viatchesláv Ivánov” (1924) e, principalmente “Sobre a filosofia do ato” (1920-1924), um dos textos mais densos do crítico, onde ele propõe uma delimitação entre estética, sociologia e filosofia a partir de uma reflexão sobre o agir humano. Ainda restariam vários trabalhos de estudiosos ligados a Bakhtin a serem traduzidos no Brasil (ou que o estão sendo), entre
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Capítulo 13
Walter Benjamin e sua teoria crítica M S-S Universidade Estadual de Campinas
Aqueles que conhecem um pouco da história de Walter Benjamin, sabem que o ano de 1933 foi marcado pelo seu definitivo exílio, já que suas estadias no sul da Europa, em grande parte motivadas até então não apenas pela beleza dos lugares, mas pelo fato de terem uma vida mais em conta do que na Alemanha, agora, após a subida dos nazistas ao poder, passou a ser um meio de salvar a sua pele. Entre 27 e 28 de fevereiro, ocorre o incêndio do Reichstag. No dia 28, Benjamin escreve: “Existem lugares nos quais eu posso ganhar um mínimo, e outros nos quais eu posso viver de um mínimo, mas nem um único no qual as duas condições se encontrem.” Agora aquele local que servia para gerar este mínimo, a Alemanha, estava fechado a ele. No dia 17 de março — incentivado aqui por Gretel Karplus, sua amiga e futura esposa de Adorno —, ele partiu para o exílio. Após uma breve passagem por Paris, entre abril e setembro, ele mora em Ibiza novamente, retornando para Paris ao final desta estadia, gravemente doente com malária. Neste ano, Benjamin escreve um pequeno texto, que funciona como uma teoria do romance (claramente inspirada por Lukács): “Am Kamin” (“À lareira”) e “Experiência e pobreza” pobreza”, texto no qual desenvolve de modo crítico a ideia romântica de um fim da comunidade. Aí ele não apenas experimentou um elogio ao esquecimento e um “conceito novo e positivo de barbárie” — que nos “impele a partir para a frente, a
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Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica
começar de novo” — como também criticou o interior burguês que sufoca seus visitantes pelo excesso de Spuren Spuren,, rastros e marcas. Na transparência da arquitetura de vidro se concretizaria a utopia (negativa) da nova barbárie. Novamente aqui o Benjamin vanguardista faz-se valer sobre s obre o melancólico.
catástrofe no sentido de não transformar esta apresentação em mero efeito estético. O princípio do choque é valorizado, como no teatro épico de Brecht. Trata-se aqui de uma reflexão de primeira ordem para a teoria estética do século XX: em um universo marcado pela dor e pela sua transformação em arte, deve-se pensar uma ética e
BenjaminSociais, consegue então estabelecer contato o Instituto de Pesquisas agora também no exílio. Ele com se encontra esporadicamente com Max Horkheimer em Paris entre outubro de 1933 e maio do ano seguinte. Horkheimer e Friedrich Pollack, como comenta Scholem, decerto incentivados por Adorno, concedem um auxílio regular a Benjamin da parte do Instituto. Desde a primavera de 1934, ele passou a receber quinhentos francos por mês. Esta foi sua grande salvação na situação desesperadora na qual se encontrava. Em uma carta a Scholem, do exílio parisiense, ele escreveu: “Eu gostaria muito de uma vez conseguir narrá-los [meus sonhos] a você. Eles apresentam um Atlas imagético [ Bilderatlas Bilderatlas]] para a história secreta do nacional socialismo.” (Br IV 359) 359) No verão de 1933, Benjamin escreveu em Ibiza o artigo “Sobre a posição social atual dos escritores franceses” que saiu publicado no primeiro número daquele ano da revista Zeitschrif ür Sozialorschung Sozialorschung (Revista ( Revista de Pesquisa Social ), ), órgão do Instituto, Instituto, no qual Benjamin publicaria regularmente até 1940.
uma política da estética. Adorno desenvolverá esse axioma após a Segunda Guerra Mundial. Benjamin escreve nesse ensaio (com Brecht) sobre uma “refuncionalização “refuncionalização”” das artes. Nesse movimento, a arte é pensada como técnica transformadora da sociedade e de suas relações sociais. Aqui ele se s e inspira no dada dada,, nas suas fotomontagens e obras plásticas que partiam da colagem:
Mas Como Benjamin consegue estabelecer outros contatos em Paris. ocorre com o Instituto paraalguns o estudo do Fascismo (ligado ao Partido Comunista), que o convidou para apresentar uma palestra (“O autor como produtor”), apesar de pouco conhecermos sobre sua relação com o Instituto naquele momento, já que sequer sabemos com certeza se o ensaio chegou a ser lido nesta instituição. Trata-se de um dos escritos mais brechtianos de Benjamin. Benjamin prega aí uma modificação dos hábitos de apresentação da
Trata-se, nesta impressionante passagem de Benjamin, de verdadeira teoria da arte da metonímia, da eestética stética do índice, dos traços, rastros e marcas, em oposição à arte da narrativa, totalizante, épica, metafórica e tradicional. Benjamin estava, nestas poucas linhas, dando o tom daquilo que viria a ser central na teoria estética cinquenta anos mais tarde. Ele denunciava na sua época a
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A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte à prova da autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura. Do mesmo modo, a impressão digital ensanguentada de um assassino, na página de um livro, diz mais que seu texto. A fotomontagem preservou muitos desses conteúdos revolucionários.”1
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(BENJAMIN 1985:128)
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transformação da “própria miséria em objeto de fruição”2. Para politizar a arte, Benjamin afirma que “temos que exigir dos fotógrafos a
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língua angélica, tem como contraponto a ironia (romântica) e a teoria benjaminiana da arte na era de sua reprodutibilidade técnica5.
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capacidade de colocar em suas imagens legendas explicativas que as liberem da moda e lhes confiram um valor de uso revolucionário” 3. Benjamin posteriormente desenvolveu essa teoria da legenda em seu s eu artigo de 1936 sobre ““A A obra de ar arte te na era da sua reprodutibilidade técnica”. O fotógrafo e o historiador da catástrofe são não apenas colecionadores de imagens, mas também aqueles que, ao inscreverem uma legenda sobre elas, transformam-nas politicamente. Mas ao mesmo tempo em que lia, conversava e escrevia sobre Brecht, Benjamin também lia e escrevia sobre Kaa, um dos autores com os quais mais afinidades sentiu em sua vida. Ele foi um leitor de primeira hora deste autor de Praga, judeu de língua alemã como ele, e preso a um universo imaginário — e bastante real – no qual
Em 1935, ele escreve ensaios de grande envergadura e repercussão: “Paris, a capital do século XIX”, primeira versão de seu ensaio sobre as passagens, seu artigo sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica6, assim como o menos conhecido, mas não menos importante, ensaio sobre “Eduard Fuchs, der Sammler und der Historiker” (“Eduard Fuchs, o colecionador e o historiador”). Mais abaixo, abordaremos a questão do colecionismo em Benjamin. B enjamin. Entre abril e junho de 1936, Benjamin escreve seu famoso — e infelizmente muito mal interpretado — ensaio “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Este ensaio abre-se com uma reflexão sobre o fim da experiência, Erahrung , que, por sua vez, estaria na origem da crise da grande narrativa que é diag-
mito, direito, corpo e sexualidade se enlaçam em uma ciranda ao mesmo tempo mórbida e lúdica. Nesse mesmo ano, ele escreve o ensaio “Franz Kaa: a propósito do décimo aniversário de sua morte”, o maior que ele dedicou a esta “alma gêmea”. Não por acaso ele reconheceu na obra de Kaa a manifestação do que poderia ser um dos principais meios para desenvolver e apresentar as suas próprias ideias. Sua reflexão sobre a tradução tr adução e sobre a linguagem, bem como a sua crítica da violência, passa também, como em Kaa, por uma reinversão da queda. Contra-Babel sopra o vento que vem das obras destes dois autores, mas eles estão conscientes da impossibilidade da reversão. Se eles criticam a linguagem judicante, que condena e é a marca da queda queda,, é porque seu destino é a reprodução da exclusão. O sonho da reconstrução do vaso rompido, expressado por Benjamin no seu ensaio sobre a tradução 4, ou ainda, a busca de uma nova
nosticada como estando “em vias de extinção”7. Aí ele refletiu sobre a incapacidade dos soldados que voltavam do ront da Primeira Guerra Mundial de articular as suas histórias e experiências. Vale a pena retomar as palavras do filósofo:
2 3 4
6
(BENJAMIN 1985:129) (BENJAMIN 1985:129) Cf. a passagem do seu ensaio “A tarefa do tradutor”: “Assim como cacos de
Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
5
7
um vaso para serem reencaixados devem seguir uns aos outros nos mínimos detalhes, mas não devem ser iguais, assim a tradução ao invés de se igualar ao sentido do original, deve antes reconstruir com amor na própria língua o seu modo de intentar até os mínimos detalhes para tornar, desse modo, ambas [línguas] reconhecíveis como cacos e ruínas de um vaso, como ruínas de uma linguagem maior” (II 18). Não trato aqui da leitura crítica de de Adorno com relação a este ensaio ensaio de Kafka ou das demais polêmicas que eles tiveram nestes anos. Com relação a este diálogo, remeto à bibliograa no nal, com destaque para BUCK-MORSS (1981). Sobre esse esse ensaio, remeto o leitor ao primeiro primeiro capítulo de meu livro: “Após o “Violento Abalo” (In SELIGMANN-S SELIGMANN-SILVA ILVA 2005:19-30). (BENJAMIN 1985:197)
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pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e
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da narrativa para Benjamin) embalsamam e salvam o que deveria ser criticado na obra de Benjamin. Isto não quer dizer que neste ensaio de Benjamin não encontremos inúmeras passagens e ideias dignas de atenção. Muito pelo contrário, além da passagem acima citada, veja-se, por exemplo, o teorema que Benjamin desenvolve
explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.8
Hoje em dia, poderíamos acrescentar a esta lista os terrores da Segunda Guerra Mundial, as inúmeras guerras anticoloniais, os massacres de milhões e milhões ocorridos na União Soviética, na China e no Camboja, o desemprego, a tortura onipresente no chamado “Terceiro Mundo”, os “desaparecidos” nos regimes ditatoriais, o imperialismo norte-americano e suas consequências etc. Nosso “frágil e minúsculo corpo” está ainda mais despedaçado. Daí a nova literatura e arte memorial, de forte teor testemunhal e de cunho indicial, terem o corpo que sofre como uma de suas temáticas centrais. Benjamin nos ajuda a pensar este fenômeno em seus s eus textos de cunho autobiográfico,, na sua estética dos rastros e da ruína e, sobretudo, na autobiográfico sua teoria da história como catástrofe. Mas esse seminal artigo de Benjamin tem servido não apenas para se pensar essas novas modalidades de escritura da violência, como também para se fazer um discurso conservador de tipo saudosista dos “velhos bons tempos”. Lê-se Benjamin como um saudosista da comunidade (Gemeinschaf ( Gemeinschaf )).. Se existem traços deste conservadorismo em Benjamin — e de fato eles existem –, eles são talvez o que há de menos interessante e digno de reatualização. Seguindo seu próprio mote, esse caráter conservador vai contra a utilização de sua obra como meio de transformação crítica do presente. Os nostálgicos da narrativa tradicional, dos artífices, do camponês e dos marujos (as três figuras paradigmáticas 8
(BENJAMIN 1985:198)
sobre a dialética distância e dadas proximidade. Se nasdasociedades tradicionais o queda valia era o culto narrativas vindas distância (temporal e/ou geográfica), na modernidade, a informação (jornalística) tem seu valor em função da proximidade 9. No nosso mundo da net que se quer pós-histórico e no qual as distâncias espaciais são achatadas pela facilidade de deslocamento e pela onipresença das imagens, sequer podemos conceituar esta noção tradicional de distância. Mas a inormação inormação continua continua a ser produzida seguindo a lógica da atração pela catástrofe que se passa logo ali detectada por Benjamin. Podemos acrescentar que hoje ela serve de dispositivo de reencenação do reencenação do real, numa espécie de trabalho tardio de proteção do trauma. A mídia funciona como uma perlaboração abortada, falha, das cenas de violência que pontuam nossa sociedade globalizada. A onipresença de imagens violentas acaba servindo, paradoxalmente, para nos afastar, distanciar da violência real. A violência dos noticiários, dos programas de entretenimento e dos filmes de ficção acaba por formar um escudo asséptico e incólume contra a verdadeira 10
violência corpórea . 9 Esta enorme enorme transformação transformação na grelha espaço-temporal, espaço-temporal, provocada pelas novas novas
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tecnologias com a aceleração dos deslocamentos e pelo avanço do capitalismo em todos os cantos do planeta, fora brilhantemente analisada na década anterior por Siegfried Kracauer. Cf., por exemplo, seu ensaio magníco “A viagem e a dança”, de 1925, publicado no Frankfurter Zeitung. Sua tese ressoa: “Se a viagem reduziu-se a uma pura vivência do espaço, a dança transformou-se em um escandir do tempo.” (BENJAMIN 2009:82) Espaço e tempo se fragmentam em mero acontecimento. Eles são aproximados do fenômeno da moda. Kracauer já pensara pensara nesse efeito anestesiador anestesiador das imagens imagens que menciono menciono aqui. Em seu ensaio “A fotograa”, de 1925, ele escreveu: “Nunca uma época foi tão pouco informada sobre si mesma. [...] A ‘ideia-imagem’ cancela a ideia, a
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Em 1937 e no ano seguinte, Benjamin continua trabalhando no seu ensaio sobre Baudelaire, uma espécie de célula mater do
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emigrar para Londres. Graças à intervenção de Adorno, em meados de julho, Benjamin finalmente consegue um visto para os EUA.
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trabalho sobre as passagens. Em 1938, ele conclui o texto “A Paris do Segundo Império em Baudelaire”, que, após sofrer muitas críticas da parte de Adorno, foi profundamente reelaborado no texto “Sobre alguns temas em Baudelaire”, de 1939. Em 1938, Benjamin encontra-se regularmente com Bataille e Pierre Klossowski. Este traduzira seu artigo sobre a obra de arte para publicação na Zeitschrif ür Sozialorschung . Já Bataille, que foi bibliotecário na Bibliothèque Nationale entre 1922 e 1942, receberia de Benjamin, antes de sua fuga de Paris em 1940, os manuscritos de seu trabalho sobre as passagens. Durante este período parisiense de exílio, Benjamin também encontrou, em algumas ocasiões, Hannah Arendt, que deve ser contada entre uma das primeiras a reconhecer
Mas ele não obtém um visto para sair da França. O final da história é conhecido e se tornou uma espécie de marca que paira sobre Benjamin e sua obra. Do ponto de vista daquele que se encontra após o ato, ato, ou seja, o suicídio de Benjamin, este evento tinge toda a sua vida. A verdade é que este suicídio, cometido em Port Bou, após ter sido impedido de sair da França, é de fato paradigmático. Ele foi realizado por um intelectual que de certa forma era um dos últimos grandes pensadores de uma tradição que foi condenada a seu fim com o nazismo. Olhando retrospectivamente para o século XX, podemos dizer que Benjamin de fato realizou um de seus projetos pessoais mais arrojados. Como formulou em uma carta a seu grande amigo
o valor da sua obra. O pacto de não agressão entre Hitler e Stalin de 23 de agosto de 1939 tem um efeito devastador sobre Benjamin. Este descontentamento com a política se condensou no seu último texto, “Sobre o conceito da História”, de 1940. Esse texto pode ser considerado como um dos documentos intelectuais mais impactantes sobre a vida dilacerada no século XX. Trata-se Trata-se de uma reflexão crítica sobre a história e a política. Em 1939, Benjamin tenta obter um visto para os EUA. Com o início da guerra em 1º de setembro, no dia 15 do mesmo mês, ele foi enviado a um campo de trabalho em Nevers, na qualidade de alemão. Sua amiga Adrienne Monnier conseguiu libertá-lo em meados de novembro. Dora tentou convencer, convencer, sem sucesso, B Benjamin enjamin a
Gershom Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira o objetivo de “ser considerado como o primeiro crítico da literatura alemã.” Esse reconhecimento na época era, na verdade, muito tímido, restrito a um pequeno círculo de leitores especializados. Hoje esse círculo cresceu a ponto de podermos com razão falar de um “reconhecimento”” de sua posição privilegiada como crítico. “reconhecimento Benjamin estava ciente, como ele escreveu na mesma carta, que para tornar-se esse “primeiro crítico” era necessário “recriar a crítica como gênero”. gênero”. Esse gênero encontrava-se, então, na Alemanha, desprezado, não era considerado como sério. No mesmo ano, Benjamin diagnosticava que uma das causas que havia levado a crítica alemã à crise naquela época era a “ditadura da resenha como forma de pesquisa crítica”. crítica”. Ele mencionou então, como um contramodelo do passado, as “Características” dos irmãos Schlegel. Como um dos caminhos para a saída da crise da crítica, ele cobrava dos críticos uma aproximação entre a abordagem filológica e uma autêntica reflexão reflexão
nevasca de fotograas trai a indiferença em relação ao que as coisas querem dizer. Não deveria ser assim; mas para as revistas ilustradas americanas, em todo caso, imitadas de todos os modos nos outros países, o mundo identica-se com a quintessência das fotograas.” (KRACAUER 2009:75) Nada mais atual.
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crítica.. Esse termo indicava para ele uma reflexão tanto no sentido crítica de uma teoria das formas, como de uma teoria da história. Sem falsa modéstia, ele escreveu, então, que, se a situação da crítica alemã estava se transformando, isto ocorria em parte devido aos seus enormes esforços. E, de fato, Benjamin, então com 38 anos, já fizera bastante para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (1919 alemão (1919 [1993]) e Origem do drama barroco alemão (de alemão (de 1925, publicado em 1928), como compusera uma profunda análise das Afinidades Eletivas Eletivas de Goethe (1922), além de mais de cerca de uma centena de artigos de crítica, sobretudo sobre literatura alemã e francesa. Com o fracasso de seu plano de entrar para a universidade, ele se entregara de corpo e alma a esse projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida atribulada, com enormes dificuldades econômicas. Para a posteridade, a sua enorme produção, paradoxalmente derivada desta mesma situação precária, significou o estabelecimento de u m marco no pensamento e na crítica. Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à literatura ou às obras de arte consagradas. Ele entendeu, em primeiro lugar, o conceito de crítica no seu sentido kantiano, de crítica da possibilidade de conhecimento. Nesse ponto, seu pensamento já se aproxima do dos românticos Schlegel e Novalis, que cobravam da filosofia kantiana uma expansão do seu conceito de experiência experiência.. Com esses autores, ele via na crítica um “medium-de-reflexão”. Trocando em miúdos, assim como os românticos viam na “romantização” do mundo um projeto de superação das barreiras entre o universo criativo e penetrado de fantasia das artes, e, por outro lado, a vida prosaica cotidiana, do mesmo modo, Benjamin propõe para a crítica um projeto tanto estético como político. O ato da crítica era visto por
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ele como um meio de crítica de todo o sistema cultural e de sua base econômica. A partir de seu encontro com o marxismo de Lukács, isto se tornou cada vez mais patente em seus ensaios e textos de crítica de arte. Aliás, se ele se identificou tão rapidamente com o marxismo de Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin, vinham de uma profunda relação com o romantismo alemão. Mas Benjamin foi mais longe que seus colegas de geração, justamente porque, ao invés de “superar” seu romantismo, manteve-se fiel a ele por toda a sua vida. Se ele tenta nos anos 1930 demarcar uma posição contra esse seu romantismo, é justamente porque ele não conseguiu superá-lo totalmente. A crítica de Benjamin era, portanto, antes de mais nada, um ato de reflexão que se desdobrava des dobrava em cinco níveis, articulando-os. O primeiro nível incluía uma autorreflexão (ele sempre refletia sobre sua própria atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na sociedade). Em segundo lugar, destaca-se uma leitura detalhada e uma reflexão sobre a obra criticada (que era sempre analisada não a partir de um modelo a-histórico, mas sim de seu próprio “Ideal a priori”, priori”, nas palavras de Novalis). Em terceiro lugar, encontramos uma reflexão sobre a história história da da arte e da literatura, onde Benjamin, dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu, muitas vezes (como no livro sobre o barroco e no seu ensaio sobre o narrador, de 1936), o tema da teoria dos gêneros literários. Em quarto lugar, nota-se sempre uma reflexão crítica sobre a sociedade, ou seja, a crítica foi praticada em Benjamin a partir do seu presente e voltada para ele, sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado “tal como ele aconteceu”. Por fim, e articulando todos os níveis anteriores, devemos destacar a teoria da história de Benjamin com a sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto liberais como marxistas, que acreditavam em um avanço constante e positivo do
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devir da história. Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história como acúmulo de catástroes. catástroes.
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crítica que era ao mesmo tempo teoria da literatura. literatura. É esse talvez o legado mais importante de sua produção crítica: ele mostrou a
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Contra o positivismo daqueles que pregavam (inocentemente ou não) uma crítica apolítica, Benjamin demonstrou que não existe um campo “fora” do político. A arte e sua crítica são “medium-de-reflexão” não apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a sociedade. Nesse sentido, ele extrapolou programaticamente programaticamente o âmbito da crítica da literatura e da arte. Sua atividade crítica não pode ser inteiramente compreendida, se não levarmos em conta seus seminais textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito (lembremos, sobretudo, de seu “Crítica da Violência, Crítica do Poder”, de 1921, que influenciou Carl Schmitt), assim como a sua crítica do que ele denominou de concepção “burguesa”, “burguesa”, ou seja, se ja, instrumental, da linguagem (recordemos seu “A tarefa do tradutor”, também de
infecundidade da crítica apenas filológica, assim como a limitação da crítica meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfica. Crítica para ele só existia e xistia enquanto capacidade de se articular (delicadamente, ou, às vezes, com todo o peso histórico exigido por seu objeto de análise) a imanência da obra com a reflexão histórico-crítica. As mostras mais eloquentes dessa concepção são a introdução “crítico-epistemológica “crítico-epi stemológica”” do sseu eu livro sobre o drama bar barroco roco alemão, e as reflexões que acompanham as notas de seu trabalho que ficou inconcluso sobre as passagens de Paris. Benjamin escreveu no seu último texto, “Sobre o conceito da história”, que “nunca existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbárie”. É interessante
1921, e do artigo de juventude “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens”, de 1916). Além disso, Benjamin refletiu também em vários importantes ensaios críticos sobre questões como a (atualíssima) da coleção e do colecionismo (vejam seus trabalhos sobre coleção de brinquedos e de livros) 11. Voltaremos a este ponto a seguir. Seus escritos voltados para a recordação de sua infância (Crônica Berlinense e Inância em Berlim) Berlim) são profundamente inovadores, na medida em que desconstroem criticamente os modelos da autobiografia e introduzem uma modalidade da autoescritura mais fragmentada e voltada para uma “topografia da memória”. O fundamental dentro do universo das críticas de Benjamin, quando ele voltava seu potente intelecto para as obras que eram publicadas na sua época (como as de Proust, Kaa, Döblin, Kraus, Brecht, Kracauer etc.), ou para reedições de obras consagradas ou não (de Goethe, Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma
ler a tradução do próprio Benjamin dessa famosa passagem das suas teses: “Tout cela [l’héritage culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en même temps, de la barbarie”. Com Benjamin, aprendemos que cultura é, a partir de meados do século séc ulo XX, toda ela como que transformada em um documento e, mais ainda, ela passa a ser lida como testemunho testemunho da barbárie. barbárie. Essa noção é essencial, porque, com esse autor, vemos não apenas uma tremenda expansão nos critérios de seleção, como também a afirmação radical de um modo de interpretar esses documentos. Sua teoria da história e da cultura descortina o passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nosso presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando se fala de arquivo, não se pode esquecer que a toda inscrição deve-se associar um modo de leitura e de interpretação; de outra forma, teríamos um arquivo literalmente morto. O elemento político domina todos os momentos do trabalho no arquivo, da seleção, passando pela conservação e pelo acesso, chegando à leitura dos documentos. A
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falar desse pensador que a sua atualidade, paradoxalmente, não para de se evidenciar e confirmar com o decorrer dos anos.
história para Benjamin, como é conhecido, é aproximada do modelo do colecionador e daquele do Lumpensammler , o catador de papéis. O historiador deve acumular os documentos doc umentos que são como que apresentados diante do tribunal da história. Em Benjamin, a cultura como arquivo e memória, devido ao viés crítico e revolucionário de seu modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se cristalizarem em museus e parques temáticos. É o viés conservador da cultura como mercadoria que o faz, ao qual Benjamin opõe sua visada da cultura como documento e testemunho da barbárie. Seu projeto de historiografia calcado no colecionismo (que tem por princípio o arrancar de seus objetos do also contexto para inseri-los dentro de uma nova ordem comandada pelos interesses de cada presente) presente) e, por outro lado, inspirado no trabalho do catador (que se volta para o esquecido esquecido e e considerado inútil ) ainda hoje pode ser comparado a um pólen que guarda uma assombrosa força de germinação. Para entender esta concepção benjaminiana da coleção e do historiador como catador, analisemos melhor sua nova ética da memória. Pensar uma reflexão ética derivada da obra de Walter Benjamin implica uma abordagem detida de vários estratos de seus trabalhos. Sem ser um filósofo da ética no sentido tradicional desse termo, muito menos, um filósofo da moral, Benjamin pensou, em diversos momentos de sua vida e obra, em questões que estão no coração da ética. Esse compromisso com a ética deve ser pensado, antes de
O século no qual Benjamin viveu já foi chamado de “era das catástrofes”. A memória do mal acumulada nesta época exigiu uma reformulação dos hábitos positivistas da historiografia, assim como abriu os olhos de alguns teóricos para a necessidade de se escrever uma história, como diria Benjamin, a contrapelo. contrapelo. Como lidar com questões epistemológicas como essas diante de eventos-limite como os genocídios do século XX; ou de eventos como ditaduras com as suas práticas de repressão através da tortura e do “desaparecimento”? Desde meados do século X X e dando continuidade ao percurso de autores que produziram até esse limiar e que por ele foram tragados, como o próprio Walter Benjamin e Maurice Halbwachs, está-se está-s e construindo uma nova ética e estética da memória e da historiografia historiografia.. As novas formas de “representação” do passado foram modeladas a partir dos grandes cortes históricos, como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Esta nova ética, tal como a lemos em Benjamin, nasce sob o signo da nova desconfiança diante das categorias uni versais. Podemos dizer que Auschwitz desfe desfezz as últimas certezas quanto à existência de tais universais eternos. Em contrapartida, observou-se, mais e mais, a ascensão do registro da memória — que
mais nada, como um modo de tentar denunciar, nas representações culturais, a violência que está na origem da cultura. Benjamin foi um profundo teórico da memória e sua prática de historiador e de crítico literário apresentam um modo de lidar com o seu objeto que podemos classificar como ético. O modo de trabalhar de Benjamin, sua ética da representação e da memória, seu compromisso com os excluídos da história, tudo isso aponta para o fato de que a sua obra ainda tem muito a contribuir para o século XXI. Talvez possamos
é fragmentário, calcado na experiência individual e da comunidade, no apego a locais simbólicos e não tem como meta a tradução integral do passado. De resto, as guerras e demais conflitos radicais (incluindo aí os graves conflitos sociais e políticos que marcaram esse século) acarretaram o abalo de uma concepção linear do decorrer histórico. Nessa época, ocorreu também uma valorização dos lieux de mémoire, mémoire, um movimento presente de modo muito evidente em Benjamin, assim como em Halbwachs e, após a Segunda Guerra,
Salvar o “esquecido”
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em Pierre Nora e em uma série de historiadores contempo contemporâneos. râneos. O historiador se identifica agora tanto com a figura do arqueólogo —
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como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos
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que também desempenha um papel forte enquanto uma metáfora do trabalho do psicanalista, como lemos em “Mal-estar na cultura” de Freud — como esse novo historiador também assume o papel de cartógrafo que deve (re)traçar a “topografia do terror” (parafraseando o nome da exposição-memorial que se localiza em Berlim nas ruínas do antigo quartel-general da Gestapo). Benjamin pensou essa nova prática de escritura do passado a partir das ruínas de seu presente. Não por acaso, sua obra sobre o drama barroco alemão, escrita durante a República de Weimar, em uma Alemanha marcada pela destruição da guerra que perdera, vai ter as ruínas e uma concepção trágica da história como história de um acúmulo de catástrofes. A própria natureza aparece aí — como já acontecera em outros textos de juventude de Benjamin — como uma paisagem arruinada que iniciaria a se lamentar se lhe fosse dada uma voz. Nos anos 1930, no contexto de seu projeto sobre o século XIX, ele encontrou em Baudelaire um personagem paradigmático que encarnaria seu novo modo de lidar com o passado. Ao invés da figura (aristocrática) do historiador que trabalha no gabinete ou se fecha em arquivos oficiais, ele compara seu trabalho de escrita do século XIX com o de um catador. Benjamin, no seu “Paris do S egundo Império em Baudelaire”, citou este poeta, autor não só do poema “O vinho dos trapeiros” trapeiros”, mas também de uma descrição do trapeiro que aproxima aproxi ma essa figura urbana moderna do trabalho do próprio poeta: Aqui temos um homem — ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido
úteis ou agradáveis.12
O próprio Benjamin não apenas foi um teórico da coleção e do colecionismo (lembremos de seu mencionado ensaio sobre Eduard Fuchs, um dos maiores colecionadores de ilustrações eróticas e de caricaturas da modernidade), mas ele mesmo colecionou livros infantis e de “doentes mentais”, bem como brinquedos, como lemos nos seus Diários de Moscou. Moscou. Seu texto de 1931, “Desempacotando minha biblioteca: Um discurso sobre o colecionar” colecionar”,, reúne muitas de suas reflexões sobre essa prática. Ele vê no ato de colecionar livros antigos — marcado pela pulsão “infantil” do colecionar que renova o mundo via uma pequena intervenção nos objetos — uma espécie de renascimento renascimento das das obras. Já no seu livro Rua livro Rua de mão única, única, ele fizera a seguinte anotação: CRIANÇA DESORDEIRA. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta capturada já é para ela princípio de uma coleção única. Nela esta paixão mostra a sua verdadeira face, o rigoroso olhar índio, que, nos antiquários, pesquisadores pesquisadores,, bibliômanos, só continua ainda a arder turvado maníaco. Mal entra na vida, ela é caçador. Caça os espíritos cujo rastro fareja nas coisas; entre espíritos e coisas, ela gasta anos, nos quais seu campo de visão permanece livre de seres humanos. 13
Uma das ideias seminais de Benjamin sobre a prática da coleção pode ser lida no seu texto “Elogio da boneca”, boneca”, que trata justamente de um ponto vital do gesto do colecionador: a relação entre o indivíduo
e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede
12 13
(Apud BENJAMIN 1989:78) (BENJAMIN 1987:39)
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(que seleciona, arranca do contexto e coleciona) e o mundo objetivo das “coisas”. Aqui percebemos em que medida a sua ética da memória implica um duplo ato: por um lado, a destruição da alsa ordem das coisas e, por outro, a construção de um novo espaço mnemônico — que, ao mesmo tempo, salva a individualidade do objeto e é mais condizente com as demandas do presente: “O verdadeiro feito, normalmente desprezado, do colecionador é sempre anarquista, destrutivo. Pois esta é a sua dialética: ele conecta à fidelidade à fidelidade para para com as coisas, para com o único, único, por ele assegurado, o protesto teimoso e subversivo contra o típico e classificável” (III 216). Esta quebra dos sistemas de classificação — que são reproduzidos em enciclopédias, compêndios, listas canônicas — permite uma refundação de nossos hábitos de relacionamento com nossos objetos de pesquisa e trabalho. Benjamin, com sua teoria e prática do colecionismo, desfere um vigoroso ataque contra a compulsão à identidade. Essa nova práxis do saber é orientada por um olhar político e atento para as astúcias do poder e de seus modos de reprodução. Detenhamo-nos com mais vagar na concepção do trabalho intelectual que Benjamin desenvolveu no seu Passagens Passagens,, que permite vislumbrar uma uma nova ética dessa atividade. atividade. Seu projeto projeto e seu método de trabalho, ao invés de se contentarem com a “virada linguística do saber”,, executam ainda uma “virada visual do saber”. saber” saber”. Em Benjamin, a teoria retoma seu sentido etimológico, em grego, de theorein, “contemplar, ver”. Não se trata com isso, evidentemente, de um retorno ao positivismo e nem ao primado da “presença” de cunho platônico (tão criticado pelo próprio Benjamin e, mais tarde, por Derrida). Benjamin está na origem de um novo regime escópico, ou seja, de um novo modo de se ver o mundo e, por tabela, de se conceber o saber e seus métodos. Sua intuição intelectual seria, nesse sentido, a realização da passagem do regime verbal para o visual. Mas não se
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trata de uma passagem de mão única; antes, Benjamin nos ensina a oscilar entre o verbal (o que ele denominou de sprachlich, lingual, referindo-se a Friedrich Schlegel) e o imagético. Benjamin era destes filósofos que pensavam a partir dos extremos. Nele a escala temporal é ou cósmica ou micrológica. Nesses extremos o movimento estanca. Desde seu livro sobre o barroco, podemos observar essa tendência para a paralisação do tempo. Seu olhar de Medusa congela o movimento do real para revelar novas facetas, até então insuspeitas, exatamente como a fotografia e o filme (com seu close-up e a câmara lenta) o possibilitaram. A teoria da alegoria e da melancolia, do livro sobre o barroco, já desdobrava uma dialética tensa entre o verbal e o visual. A teoria barroca da linguagem tendia para uma teoria da arquiescritura 14. Além dessa circulação entre o fonético e o imagético, Benjamin também realizou, no seu ensaio sobre o barroco, um quiasma temporal ao ver cada dado cultural ao mesmo tempo como uma espécie de fóssil (uma “história natural da destruição”) e como um documento digno de ser atualizado. No trabalho das passagens, esse modelo epistemológico e de teoria da história foi aperfeiçoado: o momento de atualização passou a ser visto como correlato de uma intervenção política 14
Benjamin, na sua empreitada de inversão da tradição fonocêntrica, lançou mão do barroco, de Baader, F. Schlegel, Novalis, da teoria mística da arquiescritura formulada pelo romântico Johann Wilhelm Ritter (II 387-89) — para quem “‘nós escreescre vemos quando falamos’” (I 387; cf. SELIGMANN-SILVA 1999:108s.) — e das teorias renascentistas do hieróglifo. Sua teoria da alegoria (assim como a da melancolia), por outro lado, é também a teoria do funcionamento escritural da cultura, da cultura como memória: anal a alegoria é caracterizada por ser um traço, uma escritura cifrada na qual não apenas lemos testemunhos das gerações passadas, mas com a qual tentamos montar nosso presente. Ela é mais do que uma simples escritura, el a é, nos termos de Derrida (1980 apud WEIGEL 1996), écrypture — escritura críptica , traço que conserva e retém algo passado, morto, que é testemunhado por outros presentes — a saber, em termos benjaminianos: uma escritura que encapsula um determinado agora (tempo-do-agora, Jetztzeit ) que pode brotar em outro agora (agora da cognoscibilidade, Jetzt der der Erkennbarkeit Erkennbarkeit ) que lhe é análogo e que soube devolver a sua mirada no “momento correto”.
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no decorrer histórico. histórico. O historiador-catador, que, para Benjamin, salva os “detritos” da história, visa à interrupção do seu curso, a que
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texto espacial, como o seu Un coup de dés, é importante para se entender este livro de Benjamin. As passagens aí (textuais, assim
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chamamos de progresso, mas que, na realidade, ele nos ensinou, é apenas o avanço da destruição. Em suma, a historiografia em ruínas que vemos nas Passagens, um livro que contém milhares de notas com citações e comentários fragmentados, é correlata do modelo do histórico como um acumular de ruínas. “Escrever a história significa [...] citar a a história. Ora, no conceito de citação, está implícito que o objeto histórico em questão seja arrancado do seu contexto” contexto”15, lemos em um dos fragmentos das Passagens. O gesto do colecionador de arrancar as coisas de seu contexto, assim como o gesto do catador que “reencanta” o que fora descartado pela sociedade de consumo, é paralelo ao gesto do “materialista histórico” que, com sua historiografia-montagem, visa romper
como a forma arquitetônica) são vistas como estrelas que compõem constelações,, campos de orça. constelações orça. São também, além disso, passagens móveis, que ora se aglutinam em uma “nebulosa”, ora em uma “galáxia”, ora fazem as vezes de “buracos negros” e sugam para si as demais imagens. Benjamin ficou impressionado com a ilustração de Grandville Le pont des planètes, de 1844, que está descrita em um dos fragmentos mais antigos do projeto das passagens. Nessa imagem, pontes de ferro servem de passagem entre os planetas. Um tal universo cósmico é a marca também de seu próprio livro depois do livro, ou seja, das suas Passagens. A cidade é captada como um universo “gramatológico” “gramatológico”, onde as ruas seriam as linhas e os prédios as letras.
com o continuum da dominação. Essa libertação, para Benjamin, é tanto dos homens como do próprio passado. Para Benjamin, apenas em uma sociedade libertada caberia uma memória total do passado: trata-se aqui da utopia psicanalítica da passagem do Id ao Ego. Trata-se de um juízo universal que salvaria a tudo e a todos: apocatastasis, como escreve Benjamin, citando Orígenes (V 573 e I 458). Trata-se também da utopia lingual de uma plena comunicação, de uma língua “angélica” “angélica” universal. De uma libertação da “língua pura” que, para Benjamin, B enjamin, dormita na nossa língua “decaída” “decaída”16. As Passagens são um microcosmo desta utopia realizada, na medida em que procede à “arte de citar sem usar aspas” 17. Essa obra é também a realização do sonho do livro mallarmaico, com suas páginas intercambiáveis ao infinito. O crítico só o é enquanto criador e artista. Também a ideia de Mallarmé de se construir um
O modelo do Passagens é escritural em um sentido literal, pois Benjamin copia trechos do século XIX para construir a sua grande obra. Como lemos em uma passagem exemplar desse entrecruzamento entre reflexão topográfica e gramatológica do seu Rua de mão única: “A força [Kra] da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim é também a força do texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve” 18. Ou seja, Benjamin une o plano geográfico ao micrológico da escritura-cópia. Suas cópias, por sua vez, deveriam ser juntadas segundo o princípio da montagem: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar”19, lemos em um fundamental fragmento das Passagens. É importante lembrar também o que ele quer mostrar: “os farrapos, os resíduos”20. Como o alegorista-colecionador barroco, ele se volta para o pequeno e aparentemente sem importância para
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(BENJAMIN 2006:518; V 595) (Cf. SELIGMANN-SIL SELIGMANN-SILVA VA 1999:79-90) (BENJAMIN (2006:500; V 572)
(BENJAMIN 1987:16) (BENJAMIN 2006:502; V 574) (BENJAMIN 2006:502; V 574) 574)
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construir seu painel móvel do século XIX. Esse é o cerne da ética da apresentação haurida por Benjamin. Quem sai vencido deste trabalho é o modelo tradicional da narrativa historiográfica: “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história” 21. Passagens como essas, recorrentes nos anos 1930 na pena de Benjamin, devem ser lidas e relidas. Assim poderemos evitar também as interpretações conservadoras de Benjamin (frequentes também no Brasil, como mencionado) que projetam nele um nostálgico da antiga narrativa. Antes, Benjamin estava engajado no seu presente e apresentou um projeto, com suas Passagens, que visava remodelar o fazer e o pensar históricos, para além tanto da noção de “progresso” como da de “época de decadência”. Se a história é um palco de catástrofes e violência, não tem sentido se falar em “eras de decadência”. Essa remodelagem passava fundamentalmente por uma revalorização da visualidade. Ele anotou: Um problema central do materialismo histórico a ser finalmente considerado: será que a compreensão marxista da história tem que ser necessariamente adquirida ao preço da visibilidade [Anschaulichkeit] da história? A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem. Isto é: erguer grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total.
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Mnemosyne), também Benjamin visava construir painéis-montagem da história. Ambos compartilhavam também esse mesmo gosto pelo detalhe, pelos fenômenos sutis. Os dois operavam a sua leitura do histórico por meio de saltos e valorizavam a categoria das semelhanças na análise do seu material. As Passagens (ao lado do Mnemosyne de Warburg) é uma das primeiras obras a enfrentar o desafio de se reestruturar o pensamento e a historiografia da cultura a partir do princípio do arquivo. Essa enorme atualidade dessa obra deve-se também ao fato de ela carregar as marcas do século XX. Benjamin construiu uma obra que ainda hoje é tão atual justamente porque ele penetrou nas entranhas do século XX. A fragmentação desse trabalho e o fato de ele ter permanecido “em aberto” devem ser considerados, a um só tempo, como fruto das catástrofes do século XX e como o resultado do caminho do pensamento de Benjamin. Evidentemente, se não fosse também uma das pessoas que melhor compreenderam as re voluções pelas quais passavam as mídias neste período, tampouco ele teria construído as suas Passagens. Para Benjamin haveria algo como um “agora da conhecibilidade” (ou da cognoscibilidade) que determina a leitura de um certo ocorrido, que “olha” para esse momento atual. Esse encontro entre dois momentos tem para ele a forma de uma imagem a saber de uma constelação. Com esta concepção, a narrativa cede lugar para a leitura e comentário das imagens:
Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar. 22 A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lam-
Como no historiador da arte Aby Warburg (lembremos de seu último projeto, também inconcluso, o Atlas de imagens
pejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquan enquanto to a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora
21 22
(BENJAMIN 2006:516; V 592) (BENJAMIN 2006:503; V 575)
é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. [...] A
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imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso,
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explode-se não apenas com o positivismo e o historicismo, mas também com as visões idealistas (hegelianas) e metafísicas (de di-
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subjacente a toda leitura.23
O perigo é o de cair no esquecimento, assim como o de se manter não lida e encoberta pela narrativa tradicional — épica, linear — que apresenta apenas o triunfo dos vencedores. Em suma, ao construir uma obra-móbile, obra-constelação, obra-trabalho, Benjamin estava performaticamente realizando este trabalho de leitura crítica, de salvamento do ocorrido que, sob sua lupa, decantava-se em imagens dialéticas. A ideia de “ler o livro do mundo”, que guia as Passagens, explicita-se em fórmulas nas quais Benjamin afirma querer “ler o real como um texto”24. Essa leitura realiza paralelamente o comentário
reita e de esquerda) da história. Contra a visão de progresso (que marca tanto a historiografia burguesa como a marxista), ele também defende uma noção forte de atualização: Pode-se considerar um dos objetivos metodológicos deste trabalho demonstrar um materialismo histórico que aniquilou em si a ideia de progresso. Precisamente Precisamente aqui o materialismo histórico tem todos os motivos para se diferenciar rigorosamente dos hábitos de pensamento burgueses. Seu conceito fundamental não é o progresso, e sim a atualização.26
Arquivos
crítico das passagens citadas. Existe nesta obra uma busca de superação da submissão à qual a epistemologia tradicional relegava o objeto, ou seja, a um papel de “escravo” do sujeito do conhecimento. O materialismo benjaminiano passa por este apego escritural, es critural, literal ao seu objeto. Mas se ele escreve que queria apenas “mostrar” e nada dizer, não é menos verdade que boa parte dos fragmentos são comentários críticos seus. Benjamin coloca-se não apenas na posição do copista, mas também na do comentarista e do crítico. cr ítico. Sem contar que, como grande teórico do colecionismo que era, ele sabia que o colecionador, ao selecionar o que vai para sua coleção, já está, de certo modo, dando uma forma sua ao mundo. Se para Benjamin “escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia” 25, não é menos verdade que, nesta fisionomia, misturam-se traços do ocorrido com o agora. No gesto de historiador da cultura de Benjamin,
Mas detenhamo-nos mais no trabalho já mencionado de colecionador/catador que Benjamin aproxima ao do historiador materialista. Devido a esse procedimento de colecionar citações, o volume Passagens assume a qualidade de um gigantesco e potente arquivo. Não por acaso, ele nasceu em grande parte de dentro da Bibliothèque Nationale: um paradigmático arquivo do século XIX. Novamente estamos em um campo que se tornou a verdadeira pedra de toque dos nossos atuais debates intelectuais. A história como arquivo é um tema fundamental na nossa era, que já foi denominada de pós-moderna e pós-histórica, mas que, na verdade, é simplesmente uma era dos arquivos e das querelas em torno deles. “Aquilo de que se sabe que logo não mais se terá diante de si, torna-se imagem” imagem”27, afirmou Benjamin no seu “A Paris do segundo
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26 27
(BENJAMIN 2006:505; V 578) (BENJAMIN 2006:506; V 580) (BENJAMIN 2006:518; V 595)
(BENJAMIN 2006:502; V 574) 574) “Das, wovon man weiß, daß man es bald nicht mehr vor sich haben wird, das wird Bild” (I 590)
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Império em Baudelaire”: como nas fotografias das ruas de Paris de Atget, no verso das quais o fotógrafo anotava: “Va disparaître” (“Vai desaparecer”). Nossa contemporaneidade, não por último, graças às duas grandes guerras, aos contínuos abalos gerados por tantos outros conflitos bélicos e genocidas, mas também devido à onipresença dos computadores, que (para o bem e para o mal) nos reensinam a pensar, é uma sociedade que sofre daquilo que Derrida denominou de “mal de arquivo”28. Sofremos, ao mesmo tempo, de memória demais (hipermnésia): graças às “infinitas” possibilidades de arquivamento que as novas mídias nos abriram, assim como de vido aos “fatos terríveis” que clamam por narração; e de memória de menos (hipomnésia): graças ao anti-historicismo típico de nosso “capitalismo tardio”, ao pragmatismo onipresente, aos inúmeros traumas do século XX que geraram cemitérios de cadáveres e de memórias. Despertar do mito e do sonho
A ideia de arquivo, por outro lado, possui profundos desdobramentos dentro da teoria psicanalítica. Freud esboçou várias comparações de nossa estrutura psíquica com outras estruturas complexas que se aproximam da noção de arquivo, como ao compará-la a uma câmara fotográfica (com a sua capacidade de registrar em uma escritura luminosa um instantâneo), ao bloco mágico (com suas partes do mecanismo de inscrição que corresponderiam a Eu, Isso e Supereu) e a um campo geológico (com suas diversas camadas, que realizam uma espacialização do tempo e no qual podemos surpreender, lado a lado, fragmentos cujas origens distam de séculos). Essa proximidade de conceitos benjaminianos com outros da psicanálise 28
(DERRIDA 1995)
Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica
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não é gratuita. Benjamin era um grande leitor de Freud e sabemos da importância do conceito freudiano de trauma para a sua teoria do choque e do fim da experiência como Erfahrung, ou seja, como capacidade de articulação do presente com a tradição. Além disso, nas Passagens, Benjamin retoma a noção psicanalítica de interpretação dos sonhos para descrever o que ele queria realizar com o século XIX. Aqui o conceito fundamental é o de despertar. Como ele anotou: “O agora da cognoscibilidade é o momento do despertar”29. Apesar das profundas influências e afinidades com os surrealistas, Benjamin se distancia deles no que toca ao culto do sonho. Numa carta de agosto de 1935 a Scholem, ele descreveu esse trabalho com as seguintes palavras: “O trabalho expõe tanto a valorização filosófica do Surrealismo — e, desse modo, a sua superação —, como também a tentativa de agarrar a imagem [ Bild ] da história nas fixações não aparentes da existência, como que nos seus detritos [ Abällen Abällen]” ]”30. Ele valorizou o momento do despertar, como um limiar, uma soleira, na qual os dois campos, o do onírico e o da vigília, se interpenetram: apenas neste local de passagem po de-se ainda ter acesso às imagens do sonho e interpretá-las, sem também, por outro lado, se entregar aos mecanismos de censura da vigília. No seu livro sobre as passagens de Paris, tratava-se de ler e interpretar estas imagens, para permitir um despertar dos mitos e sonhos do século XIX. O mito mais potente daquele século era justamente o mito do progresso. Daí a importância de se levar em conta, na recepção desta obra, sua forma revolucionária (e não reduzi-la apenas às terríveis contingências históricas pelas quais Benjamin teve que passar — e nelas sucumbiu). O gestus de construir, mas também de interromper e de fragmentar, é parte essencial da historiografia 29 (BENJAMIN; SCHOLEM 1985:202) 30 (BENJAMIN 2006:516; V 592)
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como “terapia de choque” desenvolvida por Benjamin. Esse gestus deve ajudar a romper as forças negativas do mito.
Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica
a sua figura, assim como uma constelação constitui-se apenas através dos seus pontos luminosos. Também aqui um arco deve
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ser estendido, uma dialética dominada: aquela entre a imagem e o despertar. (B 688).
A imagem dialética
Em “Paris, capital do século XIX”, o projeto da sua obra não concluída sobre as passagens, a categoria de imagem dialética está claramente conectada ao trabalho do pesquisador, descrito no prefácio do livro sobre o drama barroco, de busca dos fenômenos originários: “É no que os fenômenos possuem de mais singular e de mais excêntrico, nas tentativas impotentes e acanhadas, assim como nas aparições demasiado maduras das épocas tardias, que a descoberta pode trazê-lo à luz do dia” (I 227). Por outro lado, no texto de 1935, lemos que a imagem dialética é uma “imagem-onírica” (“Traumbild”, V 55), ou uma “imagem-desejo” (“Wunschbild”, V 47), na qual o moderno cita a sua proto-história: “ou seja, uma sociedade sem classes” (“dass heißt einer klassenlosen Gesellscha”, V 47). Esta conformação que sobrepõe o novo e o utópico deixa o seu rastro, para Benjamin, “em milhares de configurações da vida, desde os prédios mais duradouros até as modas mais efêmeras” (“in tausend Konfigurationen des Lebens, von den dauernden Bauten bis zu den flüchtigen Moden”, V 55). A “dialética paralisada”, “Dialektik im Stillstand” (V 55), é marcada pela ambiguidade, ela revela, por exemplo, a prostituta como sendo, a uma só vez, a vendedora e a mercadoria (V 55). Defendendo essa sua concepção de imagem dialética, da crítica formulada por Adorno no sentido de que ele teria deturpado a noção marxista de fetichismo tomando este fenômeno como “fato da consciência” (“Tatsache des Bewußtseins”, B 672), Benjamin afirmou: A imagem dialética não copia o sonho – nunca intentei sustentá-lo. Na verdade, ela parece conter as instâncias, os locais de rompimento do despertar e até constituir a partir destes locais
É justamente na direção do desdobramento deste programa de “dominar” essa dialética entre a imagem e o despertar que Benjamin “dominar” desenvolve o seu conceito de imagem dialética. Assim, nas ditas teses (“Sobre o conceito de História”), tal categoria surge para caracterizar o procedimento da historiografia materialista. Ou seja: ela é vinculada àquele mesmo procedimento tratadístico descrito no prefácio epistemológico do livro sobre o barroco, ao desvio (“Umweg”, I 208), ou ao “salto” (IV 425). Com efeito, a tese sobre o conceito de história de número XVII afirma: “Ao pensamento pertence nã o apenas o movimento dos pe pensamennsamentos, mas também a sua paralisação” (“Zum Denken gehört nicht nur die Bewegung der Gedanken sondern eb enso ihre Stillstellung”, Stillstellung”, I 702). E, em seguida, reencontramos o trabalho com os extremos, que, no livro sobre o barroco, caracterizava o procedimento do trabalho do conceito: “Onde o pensamento se detém repentinamente numa constelação saturada de tensões, aí ele lhe dá um choque com o qual cristaliza-se como mônada.” Ressaltando o tema da mônada, o texto afirma: “o materialista histórico aproxima-se do objeto histórico única e exclusivamente onde ele se lhe depara como uma mônada” (I 703). Nesse sentido, deve-se lembrar que essas teses foram escritas no contexto das reflexões epistemológicas e de filosofia da história desenvolvidas em torno do seu trabalho sobre as passagens de Paris. Benjamin afirma que “no rabalho das Passagens, Passagens, eu também tenho a ver com uma indagação sobre a origem” (V 577). Portanto, assim como no livro sobre o drama barroco alemão as
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Ideias eram vistas como mônadas e deveriam ser apreendidas na sua condição de fenômenos originários, aqui também: mônada, fenômeno originário e imagem dialética constituem uma constelação de categorias. Retomando a concepção epistemológica expressada por Goethe que está, como epígrafe, na soleira da sua tese de livre-docência, Benjamin reafirma no Passagen-Werk Passagen-Werk novamente novamente a necessidade de se manter o trabalho analítico sempre como base para uma síntese: “A imagem dialética é aquela forma do objeto histórico que satisfaz a exigência que Goethe põe para o objeto de uma análise: demonstrar uma autêntica síntese. Este é o protofenômeno da história” (V 592). — Isso tudo mostra, na verdade, apenas a lgumas das conexões — subterrâneas ou explícitas — possíveis de serem levantadas entre o prefácio do livro sobre o drama barroco e o Passagen-Werk Passagen-Werk.. A “dialética” em Benjamin não possui nada em comum com a dialética hegeliana; ela não tem o todo como ponto de partida, e ela recusa-se a dar o passo na direção da positividade de uma “superação”, “Auebung”, permanecendo no espaço do suspenso, da imagem que imagem que expõe. Benjamin descreveu com as seguintes s eguintes palavras o seu conceito de imagem dialética: Ela é a cesura no movimento do pensamento [ Es ist die Zäsur in der Denkbewegung ]. ]. Naturalmente o seu local não é arbitrário. Ela
deve ser procurada, com uma palavra, onde a tensão entre os opostos dialéticos encontra-se no máximo. Assim, a imagem dialética é o objeto mesmo construído na exposição histórica materialista. Ela é idêntica ao objeto histórico; ela justifica o seu arrancar para
fora do continuum do decurso da história. (V 595; grifo meu).
O pesquisador descrito no trabalho das passagens também é guiado pela tarefa de cruzar a história com o trabalho do conceito;
Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica
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isto explica por que a imagem dialética é encontrada justamente na linguagem: “Para o dialético trata-se de apanhar o vento da história mundial [Weltgeschichte [Weltgeschichte]] nas velas. Para ele pensar quer dizer: pôr as velas. Como Como elas elas são postas é importante. Palavras são a sua vela. Como elas são colocadas, isto faz delas conceitos” (V 591; cf. I 674). O trabalho do conceito consiste justamente, segundo esta metáfora náutica, em abarcar o “vento do absoluto” (“Wind des Absoluten”, V 591) que enche as velas do pensamento e permite a “salvação” (“Rettung”) (I 214; V 591) dos fenômenos: arrancá-los da falsa continuidade cronológica e da cadeia de causas e efeitos, para inseri-los dentro de uma nova ordem que conecta diferentes agoras agoras e e revela, ao mesmo tempo, a interpretação objetiva objetiva desses desses fenômenos. Existe também uma relação de segundo grau entre esta concepção do trabalho tr abalho do “dialético”, ou do historiador, com a filosofia da linguagem de Benjamin. Esse momento “ao modo de um salto”, “sprungha”, ou “relampejante”, “blitzha”, no qual o ocorrido forma uma constelação com o agora, e o fenômeno é salvo, possui a mesma característica “relampejante” com que a semelhança semelhança nasce (como na rima romântica entre o Witz ee o Blitz , raio). No “Doutrina das semelhanças”, semelhanças”, lê-se: “o moment momentoo do nascimento, que é decisivo, é apenas um instante. Isso evoca outra particularidade na esfera do semelhante. Sua percepção, em todos os casos, dá-se num relampejar. Ela perpassa, veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada, ao contrário de outras percepções. Ela se oferece ao olhar de modo tão efêmero e transitório como uma constelação de astros. A percepção das semelhanças, portanto, parece estar vinculada a uma dimensão temporal”31. Esta estrutura temporal é idêntica à do reconhecimento do fenômeno de origem. O próprio Benjamin destacou este fato nas suas notas para “Doutrina das semelhanças” ao afirmar proustianamente: “O relampejar da semelhança possui 31
(BENJAMIN 1985:110; II 206s)
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historicamente o caráter de uma anamnesis anamnesis,, que se apodera de uma semelhança perdida, que estava livre da tendência de volatização”
Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica
reuniam em si uma série de questões e “fantasmagorias”, como a teoria da mercadoria, a questão da nova interioridade burguesa, as
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(VII 795).32 O virtual barroco e o da imagem eletrônica
As pastas-arquivos da obra sobre as passagens não mencionadas aqui tratam ainda do tédio, do eterno retorno, da haussmannização, das lutas de barricada, das construções de ferro, das exposições, dos reclames, de Grandville, do colecionador, do intérieur, do rastro, da cidade de sonho, de sonhos do futuro, do museu, do flâneur, da prostituição,, do jogo, dos panoramas, dos espelhos, das pinturas, do prostituição Jugendstil, da novidade, dos tipos de iluminação, de Saint-Simon, de Marx, Fourier, da fotografia, da conspiração, de Daumier, da boneca, do autômato, da bolsa de valores, das técnicas de reprodução, da litogravura, do Sena, da Paris mais antiga, do ó cio, do materialismo antropológico e da École Polytechnique, entre outros temas. É de se notar não só a semelhança desta enumeração dos títulos das pastas-arquivos com o efeito de estranhamento provocado pela leitura dos verbetes da famosa enciclopédia fantástica chinesa mencionada por Borges, mas, sobretudo, a quantidade de referências a sistemas escópicos (refiro-me aqui tanto às técnicas de representação, do panorama, passando pela fotografia, até a litogravura, mas também a figuras escópicas como o flâneur, o espelho, as exposições e também a detalhes da cena urbana, como as iluminações e as novas artes em ferro). Benjamin desdobra não apenas o século XIX a partir das passagens parisienses, mas cria um modelo de leitura/reescritura cultural que pode servir para muitas outras épocas. As passagens 32
E Benjamin, continuando continuando este mesmo mesmo fragmento, enfatiza enfatiza a relação deste deste seu texto de 1933 com o ensaio sobre a linguagem de 1916: “Essa semelhança perdiperdida que resiste no tempo reina no espírito linguístico adamítico. O canto mantémse atado a uma cópia de tal passado” (VII 795).
transformações arquitetônicas e técnicas. Impossível deter-me aqui nas milhares de passagens dignas de destaque do trabalho das passagens e repletas de ideias tão brilhantes quanto assustadoras. Lembremos de algumas frases para dar uma ideia do que quero dizer: “a moda nunca foi outra coisa senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas”33. Quanto esta intuição não ilumina as pernas raquíticas de nossas grandes modelos atuais? Toda a teoria benjaminiana da moda e do sex appeal do inorgânico é absolutamente urgente de ser reestudada. Na pasta “Baudelaire” (a maior e uma das mais impressionantes deste livro-arquivo), Benjamin transpõe a teoria da moda para a análise marxista do fetichismo da mercadoria — e soma a isto tudo uma reflexão sobre a linguagem e os valores semânticos: “As modas dos significados mudam quase tão rapidamente quanto o preço das mercadorias” 34. Já entre as inúmeras ideias seminais da “pasta” “Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso”, lemos uma frase que resume a dialética do esclarecimento: “A barbárie está inserida no próprio conceito de cultura”35. O livro sobre as passagens é uma “obra” sui generis, já que ela, no limite, “não existe”. Existe apenas um projeto. Um enorme e fabuloso projeto. Uma obra virtual — termo que não por acaso remete tanto ao Barroco com seus tromp l’oeil, como à virtualidade aberta pelas imagens eletrônicas. Cabe a cada leitor executar esta obra-partitura. Aprender a ler, desmontar para remontar as Passagens. Essa obra de Benjamin já nasceu como fadada a ser este 33 34 35
(BENJAMIN 2006:102; V 111) 111) (BENJAMIN 2006:414; V 466) 466) (BENJAMIN 2006:509; V 584)
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Márcio Seligmann-Silva
tal projeto, uma tal obra em movimento. Ela é processo, passagem constante. Trata-se de uma obra líquida: maleável. Sua abertura deve indicar também a acessibilidade da obra de Benjamin em nosso agora.
Referências e chave das abreviações utilizadas (I-VII) BENJAMIN, Walter. 1972-1989. Gesammelte Schrifen. Org. R. Tiedemann;
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Capítulo 13 . Walter Benjamin e sua teoria crítica
SCHOLEM, Gershom. 1981. Histoire d’une amitié . Trad. P. Kessler, Paris: CalmannSCHOLEM, Lévy. SELIGMANN-SILVA, M. 1999. Ler o Livro do Mundo: Walter Benjamin: romantismo e crítica poética. São Paulo: Iluminuras/FAPESP. ______. 2005. O local da dierença: Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34 .
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Capítulo 14
Uma literatura pensante: as desconstruções e o pensamento de Derrida E N Universidade Federal de Juiz de Fora
Quatro bilhões de pessoas nesta erra, e minha imaginação é como era. Não se dá bem com grandes números. Continua a movê-la o singular. Esvoaça no escuro como a luz da lanterna, iluminando alguns rostos ao acaso, enquanto o resto se perde nas trevas na deslembrança, no desconsolo. Mas nem Dante captaria captaria mais. Que dirá quando não se é. Nem mesmo com a ajuda de todas as musas. Wislawa Szymborska. In: “Um grande número”
1. Uma literatura, escritura ou escrita pensante
Diante do convite hospitaleiro do organizador desta coletânea para escrever um capítulo sobre as possíveis relações entre o p ensamento de Jacques Derrida e a teoria da literatura, ou a Teoria simplesmente, dei-me conta de que já faz pelo menos vinte anos que estou envol vido com questões de desconstrução. Embora esse e sse não seja nem de longe o único assunto que tenha pesquisado nos últimos anos, sem dúvida alguma, venho publicando uma série de textos e livros que, de certo modo, se referem a esse tipo de estudos. Todavia, antes de abordar com novos olhares a relação proposta no título, gostaria de fazer alguns esclarecimentos. O primeiro e talvez mais importante para um volume dessa natureza é que nunca entendi a assim chamada “desconstrução” “desconstrução” ou as “desconstruções” “desconstruções” (é sempre mais de uma, uma, e por isso o plural é mais adequado) como uma escola, uma doutrina, nem mesmo como uma corrente específica. Motivo pelo qual jamais consideraria Derrida como o fundador de uma nova corrente teórico-crítica, ou algo no gênero. Igualmente, não me sinto um seguidor de doutrina alguma, nem mesmo um fiel representante, discípulo ou equivalente da obra derridiana. No máximo, um leitor especial : aquele que entretém uma leitura atenta dos textos e contextos relativos às desconstruções. Diferentemente, proporia considerar o termo “desconstrução” “desconstrução” como um signo do que, sobretudo a partir dos anos 1960, se deu
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Evando Nascimento
como forma de descentramento de certo privilégio da dita metafísica ocidental. Tal privilégio teria sido posto em questão de forma
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desenvolvo no livro e alhures, espero estar claro que não pode haver um conceito homogêneo e definitivo de literatura pensante, com ou
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primacial, mas não exclusiva, por Nietzsche, Freud e Heidegger. Nesse sentido, os primeiros textos de Derrida visaram a sublinhar a operação inovadora desses “destruidores”, a fim de levar adiante algumas das trilhas ou trilhamentos por eles abertos. É bastante esclarecedora do que estava em jogo no lance inicial da textualidade derridiana, a se desdobrar nas décadas seguintes, a famosa conferência pronunciada na Universidade de Johns Hopkins ““A A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”1. Nesse ensaio que marcou época, Derrida rende as justas homenagens a um dos líderes do movimento estruturalista, Claude Lévi-Strauss, e ao mesmo tempo aponta algumas de suas limitações conceituações, as quais, a despeito de todo avanço da etnologia, ainda prestavam
sem Derrida. Cada abordagem que realizo dessa categoria propõe, explícita ou implicitamente, uma reflexão diferenciada, de acordo com os contextos, as obras, os autores e os temas envolvidos. Uma nova formulação dessa problemática se deu amplamente, por exemplo, em Clarice Lispector: uma Lispector: uma literatura pensante3. Algumas conferências também procuraram dar conta do valor sem sem conceito essencialista de literatura na contemporaneidade e poderão ser reunidas sob a rubrica de A invenção literária4. Em suma, sobretudo mais do que um conceito tradicional ou um rótulo classificatório, uma literatura pensante é uma categoria de pensamento, pensamento, que se oferece singularmente, a cada vez, como acontecimento textual, em articulação com determinados textos e contextos, porém indo mais além.
tributo a certa tradição metafísica, de matriz ontoteológica ontoteológica,, como sinalizado por Heidegger. Entretanto, aqui não proporei uma releitura da história desses textos e eventos marcantes das quatro décadas que até hoje informaram a aventura, mas também a desventura, do termo desconstrução. Já fiz isso em certa medida em livros anteriores 2. O propósito atual é desenvolver outros pontos de uma categoria reflexiva que venho elaborando durante esses anos e que pode sempre dar uma contribuição aos estudos literários: uma literatura pensante. pensante. Todo o Derrida e a literatura literatura teve como móvel principal desdobrar a noção ou o valor de uma uma literatura, uma escritura ou uma escrita pensante. pensante. Por definição fundamental e por tudo o que
Todos esses termos referidos até aqui, “contexto”, “textos”, “obras”, “autores” “autores” e “temas” podem ser reunidos na noção que desenvolverei adiante como contextura contextura..
1 2
DERRIDA (1967: 409-428) (Cf. NASCIMENTO NASCIMENTO 1990 [2ª. [2ª. ed. ed. 2001]; 2001]; 2000; 2000; 2004; 2005; 2013 [no prelo]). Parte do atual ensaio foi lida na conferência de abertura da III Jornada Jacques Derrida , organizada em 10 de dezembro de 2012, por Roberto Said e Luiz Fernando Sá, na Faculdade de Letras da UFMG.
2. Literatura, escritura e culpa
Para Derrida, a literatura, em princípio e por princípio, tal como a democracia, é ou significa o direito de dizer tudo (tout ( tout dire), dire), mas isso implica ao menos duas coisas: dizer tudo o que se pensa, com toda liberdade, e falar inesgotavelmente sobre um assunto. Todavia, 3
4
(NASCIMETO 2012). Esse livro é o exemplo mais amplo não só de uma leitura em termos de signicação, mas, sobretudo, em termos de performance textual, ou seja, de nova realização estética por meio do ensaio. Não estou certo de ter atingido o objetivo, porém tal foi o desejo que moveu a escrita do texto. A última delas delas foi “Retrato do autor como leitor”, realizada realizada na Universidade Federal do Espírito Santo, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2011. Atualmente, uma versão em inglês se encontra no prelo da Portuguese Literary & Cultural Studies, n. 26, Lusofonia and its Futures, sob coordenação de João Cezar de Castro Rocha.
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correlativamente a esse direito elementar, existe o direito ao silêncio, a ficar calado também como verdadeira responsabilidade. Perante a exigência inquisitorial, o direito a nada dizer deve ser tão garantido quanto o de dizer tudo. Pois a literatura na modernidade e na contemporaneidade oscila entre esses direitos elementares: dizer tudo sobre os temas que aborda e silenciar sobre diversos aspectos. Entre tagarelice e mutismo, o segredo da literatura pensante se revela indeterminado. É isso também o que quer dizer o famoso “O resto é silêncio” 5, como se sabe, as últimas palavras do agonizante Príncipe Hamlet. Tudo o que ficou de não dito no dito, tudo o que resta a dizer. Silenciar é o que resta, depois de tantas falas e ações, falas que também significam ações, e até mesmo ação ação no no sentido teatral. Im Anang war die at , diz Fausto retraduzindo a Bíblia de Lutero e o Evangelho de São João: “No princípio, era a ação!”6. E o resto resto constitui a reserva de sentido para continuar falando, noutro tempo e noutro espaço, num novo texto por vir. É essa reserva silenciosa e hospitaleira que garante o porvir da literatura pensante: o convite aberto a novas leituras, a novos acessos ao arquivo luminosamente secreto da ficção, da po esia, do ensaio e do teatro, por exemplo. Eis como Derrida sintetiza o direito à literatura como fundamento dessa “Estranha instituição chamada literatura”, título de uma importante entrevista concedida a Derek Attridge: [...] O espaço da literatura não é apenas o de uma ficção instituída, mas também o de uma instituição fictícia, que em princípio permite dizer tudo. Dizer tudo é certamente reunir, traduzindo todas
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também transpor [ ranchi ranchir r ] os interditos. É libertar-se [s’affranchir ] — e em todos os campos onde a lei se impõe como lei. A lei da literatura tende, em princípio, a desafiar ou suspender a lei, dando, portanto, a pensar a essência da lei na experiência do “tudo por dizer”. É uma instituição que tende a ultrapassar a instituição. 7
O ultrapasse do conceito e do fundamento de instituição faz com que a literatura repense o instituir-se de toda instituição e sua relação com a lei, tornando-se, portanto, “essa instituição sem instituição” 8. Toda instituição se constrói de modo restritivo, segundo determinadas regras, que delimitam o que pode ou não ser dito em seu recinto. O dizer tudo do tudo do literário nas sociedades democráticas desborda esses limites, apontando a origem limitadora e restritiva, em outros termos, legal e jurídica, do próprio valor institucional. Daí a estranheza estranheza de uma instituição chamada literatura que põe em questão e suspende performativamente os limites de toda e qualquer instituição. Como logo veremos, isso só é possível tanto a partir da escrita pensante quanto, e talvez sobretudo, da leitura pensante.. Sem o efeito suspensivo do institucional na recepção do pensante texto literário, não pode haver estranheza como resultado correlato da liberdade do dizer tudo da escritura literária. A categoria de uma literatura pensante ajudará justamente a repensar os limites institucionais, a liberdade democrática do dizer tudo e os efeitos advindos do contato com o texto literário. Em suma, a experiência literária se faz por um trânsito entre as instâncias da invenção, recepção e reinvenção da experiência originária, convertida em letra.
as figuras uma na outra, totalizar, formalizando, mas dizer tudo é 7 5 6
“The rest is silence” (SHAKESPEA (SHAKESPEARE RE s.d:1111). 1111). Salvo Salvo indicação indicação contrária, as traduções de citação são minhas. (GOETHE 2006:130-131). 130-131). Na verdade, os tradutores tradutores optaram por “Era no início a Ação!”.
8
(DERRIDA 2009:256). A primeira versão versão desta desta entrevista foi publicada publicada em inglês com o título de “ This Strange Institution Called Literature ”. 1992. In: Attridge Derek (Org.). Jacques Derrida Derrida: Acts of Literature. Nova York, Londres: Routledge, p. 33-75. (DERRIDA 2009:262)
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O pensamento — eis minha hipótese — seria a resultante da relação de forças implicada na invenção e na recepção literárias, dentro da
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torna, se não mais difícil, pelo menos bem mais em conta naquilo que lhe diz respeito. Em primeiro lugar, rejeita qualquer culpa e
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perspectiva do instituir-se político de toda instituição colocado em perspectiva. Lembrando que política é antes de tudo uma questão de de pólis pólis,, de limites de cidadania e das experiências possíveis, que estão no coração dessa problemática ficcional. Isso faz com que a literatura, a escritura e a leitura devam ser pensadas como evento evento,, no limite de uma impossibilidade, já que o real se faz justamente por delimitações institucionais, com as quais os inventores e os leitores se defrontam todo o tempo. É justamente o meteoro meteoro (o (o termo é de Derrida) literário que se manifesta, por exemplo, nesse pedaço de literatura que é a Carta ao pai pai,, de Kaa, um texto-manifesto, que traz a marca da culpa filial diante da figura onipotente do patriarca. Trata-se de um testemunho testemunho sobre a impossibilidade de se fazer literatura senão por meio da interrupção da paternidade e da filiação, quer dizer, por meio do celibato. Celibatário e parasita em relação à fortuna paterna, é como o pequeno Franz se apresenta perante a força gigantesca e esmagadora do pai. Curiosamente, esse diálogo virtual, em que transparece um segredo compartilhado entre pai e filho, se conclui com uma réplica (resposta réplica (resposta e imitação ou simulacro) ficcional do pai. Kaa finge, em seu próprio libelo antipatriarcal, receber a resposta da boca do pai, sem, todavia, jamais ter ter tido seque sequerr a coragem de enviar a missiva aaoo destinatário... destinatário... A carta, portanto, não fica sem correspondência, pois o pai responde pela boca, ou pela mão, do próprio e amedrontado filho. Replica, assim, o pai, pela mão culpada do filho, na tradução de Modesto Carone:
responsabilidade responsabil idade da sua parte e nisso, portanto, nosso comportamento é o mesmo [...].9
Desse modo, numa cena abissal, numa autêntica mise en abyme, abyme, o pai ficcional acusa o filho de irresponsabilidade irresponsabilidade diante diante de seu próprio caso, de autoisenção inconsequente perante a dívida ou a culpa (Schuld ) em relação à instância paterna. Trata-se de um gesto simetricamente especular ao do filho, que acusa o pai de ser culpado pelo medo que o paralisa. De pai para filho, e vice-versa, o espelho devolve a culpa de uma dívida ancestral que somente a figura intempestiva do infinitamente outro pode interromper. E quem faz o processo de desculpabilização da literatura e da cultura em geral, traçando a genealogia judaico-cristão-ocidental da dívida ancestral outro não é senão o pensador do mais-que-humano (Übermensch), citado literalmente pelo ensaio Donner la mort 10, de Jacques Derrida. Reproduzo a seguir uma citação de Nietzsche, no parágrafo 6, da “Segunda Dissertação” da Genealogia da moral , e não a do parágrafo 10, feita por Derrida, a fim de esclarecer as relações genealógicas entre culpa, dívida e crença, na tradução brasileira de Paulo Cezar Souza: Nesta esfera, a das obrigações legais, está o foco de origem desse
mundo de conceitos morais: “culpa”, “consciência”, “dever”, “sacralidade do dever” — o seu início, como o início de tudo grande na Terra, foi largamente banhado de sangue. E não poderíamos acrescentar que no fundo esse mundo jamais perdeu inteiramente um certo odor de sangue e tortura? (Nem mesmo no velho Kant:
Você afirma que eu simplifico a meu favor quando explico minha relação com você apenas através da sua culpa [ Schuld : culpa e
9
dívida]; mas acredito que, apesar do esforço aparente, você a
10
(KAFKA 1986:68). [Brief an den Vater . Posfácio de Hans-Ulrich Treichel. Frankfurt am Main, 2003.] Grifos meus. (DERRIDA 1999)
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o imperativo categórico cheira a crueldade...). Foi igualmente aí que pela primeira vez se efetuou este sinistro, talvez indissolúvel entrelaçamento de ideias, “culpa e sofrimento”. Pergunta-se mais uma vez: em que medida pode o sofrimento ser compensação para a “dívida”? Na medida em que azer sofrer sofrer era altamente gratificante, na medida em que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer pelo dano, por um extraordinário contraprazer: causar o o sofrer — uma verdadeira festa, algo, como disse, que era tanto mais valioso quanto mais contradizia o posto e a posição social do credor. 11
Nesse sentido, podemos pensar, com Nietzsche e mais além dele, que Deus tornou-se, nas religiões monoteístas, o credor maior e, por isso mesmo, capaz de cobrar uma taxa máxima de sofrimento em função da dívida de existir no pecado convertida em culpa. A culpa é o débito sem remissão possível, pois foi contraído pelos ancestrais, tornando a humanidade perpetuamente devedora de um tirânico credor, convertido por sua vez em divino cobrador. Deus, nesse caso, seria o nome para uma cobrança sem fim, onipotente e equanimemente convertida numa crença cheia de culpas, cujo saldo negativo só será solvido, se for, no Juízo Final, de acordo com a fé cristã da ressurreição. O que vale no plano divino vale igualmente nas relações terrenas, entre humanos, como diz ainda Nietzsche: O sentimento de culpa, da obrigação pessoal, para retomar o fio de nossa investigação, teve origem, como vimos, na mais antiga e primordial relação pessoal, na relação entre comprador e devedor: foi então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se, uma
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A culpa e a dívida estabelecem os limites do contrato legal, segundo as instâncias jurídicas tradicionais, limites, todavia, agra vados pelo ccódigo ódigo religioso religios o com a noç ão de pecado. Em Derrida, D errida, a hiperética do perdão, longe de significar a requisição de um contrato entre credor e devedor, se torna a possibilidade histórica não da salvação messiânica, que resgataria um pecado dito original, mas da ruptura de todo contrato, em que um demandante tenta corresponder à imposição do mandatário, Deus, acima de todas as coisas. Tal perdão se assemelha a um dom dom,, num jogo de palavras que o francês permite e que parcialmente se perde em português: pardon (perdão) pardon (perdão) se torna par-don torna par-don (por (por dom), em Donner la mort , com referência ao encontro entre o poeta Celan e o filósofo alemão Heidegger, coparticipante do nazismo: “O perdão seria, então, o poema, o dom do poema. Não tem que ser pedido. Contrariamente ao que se ouve muitas vezes dizer, ele deve, essencialmente, não responder a um pedido”13. Como um verdadeiro evento, o perdão deve se dar de graça, sem pedir nada em troca e sem mesmo corresponder a uma demanda, formal ou informal. Mas como perdoar não significa esquecer, somente o perdão pode suspender a culpa e, ao mesmo tempo, abrir o processo da efetiva responsabilidade histórica: por exemplo, a coparticipação do filósofo do Dasein Dasein no no 14 regime nazista . A graça de tal perdão, o acontecimento de seu dom e sua verdadeira dádiva consistiriam, portanto, na supressão da dívida ancestral, abrindo a perspectiva de tempos tão mais responsáveis porque tão menos culpados15. Só pode haver verdadeira responsabilidade democrática na ausência de culpa, em nome do sem-nome, do inominável de de Samuel Beckett e do infinitamente outro de Clarice
pessoa com a outra.12 11 12
(NIETZSCHE 1987:67) (NIETZSCHE 1987:72-73)
13 13 14 15
(DERRIDA 1999:192) Sobre o tema do perdão e correlatos, cf. NASCIMENTO (2005:9-41). Esse tema da da culpa e da dívida dívida em Derrida será desenvolvido desenvolvido num ensaio ensaio por vir.
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Lispector. Todo outro (tout (tout autre) autre) é, mais além do simples fato e do direito, todo outro, quase transcendental. Como o segredo da lite-
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Eu sei — o sei — que aquele a quem os alemães já visavam, esperando apenas a ordem final, experimentou um sentimento de
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ratura, de pai para filho, e muito além. É nesse sentido apenas que a literatura porta e paradoxalmente se desfaz de um dos segredos de sua fundação, o do testamento abraâmico, abraâmico, tornando-se, assim, per jura: “Ela renega essa filiação. Ela a trai no duplo sen sentido tido da palavra: é-lhe infiel, rompendo com ela no momento mesmo de manifestar sua ‘verdade’ e de revelar seu segredo. A saber, sua própria filiação: possível impossível”16. Derrida tira proveito da ambivalência do verbo trair: ser infiel e revelar sua vinculação (trair-se). É por essa dupla traição traição que que a literatura, a um só tempo, pede e concede perdão, mas sem culpas, por simples dom. A demanda da literatura se torna, assim, em vez de dívida, a verdadeira dádiva, aquela que significa, mais do que sua sobrevida, sua supervivência supervivência,, nos limites de uma impossibilidade. Eis aí é o começo de toda e qualquer ficção, como demanda do outro, outro, muito além das imaginárias fronteiras entre Ocidente e Oriente. 3. O testemunho literário
E é também o caráter testemunhal do literário que Derrida identifica na pequena história L’Instant de ma mort (O (O instante de minha morte), de Maurice Blanchot. Trata-se de relato em terceira pessoa, que testemunha a respeito de um quase fuzilamento durante a Segunda Guerra Mundial. A máscara da terceira pessoa, contudo, mal oculta a autoficção dessa novela, que nos narra um fato real, qual seja, o momento em que o jovem Maurice escapou de ser assassinado pelos nazistas. Conta, portanto, o narrador acerca de quando “ele “ele”” se livrou por pouco do instante de sua própria morte: 16 16
(DERRIDA 1999:208)
leveza extraordinária, uma espécie de beatitude (contudo, nada feliz) — júbilo soberano? O encontro da morte e da morte?17
Tem-se uma experiência-limite por excelência, em que a quase morte se desdobra em duas mortes, a verdadeira e a quase experimentada por quem foi salvo incidentalmente no último minuto. Derrida demonstra como essa particularidade de um quase quase aconte acontecimento se torna a experiência de qualquer um. O instante de “minha” morte reverte no instante de toda morte possível, no limite da impossibilidade, visto que a morte, para o vivente, é o único evento evento que ele nunca poderá vivenciar e acerca do qual, portanto, jamais poderá testemunhar integralmente. Só a ficção permite reencenar a quase morte do jovem Maurice como a morte de cada um, como experiência-limite dessa impossibilidade para a vida que é morrer. Para a vida, sem dúvida, a morte é o mais arrematado impossível, ali onde todo sentido para sempre se desfaz desf az e toda ontofenomenologia acaba. Perante a morte, todo testemunho fracassa, e aqueles que dizem testemunhar a respeito da experiência de uma morte real, da qual depois retornaram, nada mais estão fazendo do que relatar uma morte factícia, bem longe da vivência concreta, “no duro”, da verdadeira morte, aquela que justamente nunca se s e pode vivenciar, nem da qual se pode falar... É o que Derrida sinaliza sobre esse instante fatal, porém fictício, propriamente inventado inventado a a partir de um fato real pelo escritor Maurice Blanchot: “um singular instante de minha morte em geral. Singular em geral ”18. A experiência mais particular, privada, reverte 17 17 18 18
(BLANCHOT 2004 :10) (DERRIDA 1996 :65)
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em seu contrário. Diria mesmo que, estruturalmente, a universalidade da literatura depende dos instantes singulares que ela põe em cena e não de uma generalidade uma generalidade artificiosa, artificiosa, a qual nada mais faz do que repetir os gêneros os gêneros da da tradição sem nada acrescentar de seu. É disso que também fala o belíssimo texto “Um grande número”, da poeta polonesa Wislawa Szymborska, colocado como epígrafe deste ensaio19. Porém, tal universalidade singular só pode ser legitimamente pensada como efeito de leitura: é preciso que o leitor receba essa particularidade do outro como também singularmente sua e que, no caso da história de Blanchot, ele se veja na morte virtual do outro, enquanto cena da morte em geral, a morte de todos e de cada um. Morte a cada vez única, como fim do mundo, de um mundo particular dentro do mundo que é o de todos 20. Comenta ainda Derrida em “Demeure “Demeure”” [Morada, mas também Demora]: É com essa condição que compreendemos algo acerca desse relato, na medida em que nele compreendemos o que quer que seja. Esse relato testemunha acerca do que aconteceu [arrivé ] uma única vez, datado, sobrevindo, ocorrido [ arrivé ], ], muito embora seja o não ocorrer [ ût-ce de ne pas arriver ], ], numa data e num lugar insubstituíveis, e a alguém que é, em resumo, o único a poder testemunhar a esse respeito, mesmo se ele inscreve seu atestado numa rede de fatos amplamente senão de todo prová veis, públicos, acessíveis à prova. Porém, essa atestação a um só tempo secreta e pública, fictícia e real, literária e não literária, (SZYMBORSKA 2011:52-53) 19 (SZYMBORSKA 20 Esse é o tema de Chaque fois unique, la n du monde [Cada vez única, o m do mundo], livro que reúne diversos textos de Derrida sobre amigos mortos, como Barthes, Deleuze e o próprio Blanchot, entre outros. Trata-se, como dizem os organizadores,, de uma verdadeira “política do luto” (Cf. DERRIDA 2003:15-56). organizadores
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apenas a julgamos legível, caso seja, na medida em que um leitor puder compreendê-la, ainda que algo dessa natureza jamais lhe tenha ocorrido “realmente” “realmente”. Podemos falar e ler isso porque essa experiência, na singularidade de seu segredo, como “experiência do improvado” [inéprouvé ], ], mais além da distinção entre o real e o fantasmático, permanece [demeure] universal e exemplar. [...] Compreende-se, cada um aqui compreende esse relato a sua maneira; há tantas leituras quantos leitores e leitoras, e, no entanto, permanece [demeure] certo modo de compreender o texto, caso se fale sua língua, contanto que sejam preenchidas determinadas condições. E nisso reside a exemplaridade testemunhal. Esse texto presta testemunho acerca de uma singularidade universalizável.21
Por ser universalizável é que essa singularidade deu vez a um texto como a narrativa de Blanchot, a qual provém desse acontecimento relatado, um quase fuzilamento. E por isso sua obra é legível e mesmo traduzível em diversas línguas, como é o caso agora do português, pois a Rocco tem publicado sistematicamente novas traduções desse crítico e escritor francês, decisivo para compreender o pensamento de Derrida, de Foucault, de Barthes B arthes e de muitos outros dessa e da geração seguinte. Tal é a paixão a paixão da da literatura que se quer pensante: seu tornar-se letra a letra a partir de uma experiência estritamente singular, única, que sobreveio a certo indivíduo em tais ou quais circunstâncias, mas que, por ter se convertido de fato em letra, letra, quer dizer, marca legível por todos e qualquer um, pode ser compreendida por um qualquer que deseje compartilhar tal segredo 22. Algo de muito secreto se 21 21 22
(DERRIDA 1996 :66-67) A questão da singularidade singularidade literária foi foi também desenvolvida desenvolvida por DEREK DEREK (2004)
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passa entre um escritor ou uma escritora e seu leitor ou sua leitora, um segredo, por assim dizer, em aberto, aberto ao que está por vir,
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pura atividade, algo indecidível entre entre as duas, como acolhida do infinitamente outro, agora, aqui. Ler o texto do outro e da outra, citá-lo,
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ao vindouro, como o porvir mesmo dessa antiquíssima e estranha instituição chamada literatura. O segredo literário só se revela, com efeito, na e pela leitura, de outro modo seu se u arquivo permanece para sempre oculto, inacessível, silenciado. Não diria jamais que a mímesis mímesis literária literária “desafia o pensamento”, mas, sim, que, quando não reduzida à imitação ou à representação clássicas, ela configura o espacitempo para o advento do pensamento. Quando liberta dos entraves das interpretações que reduziram sua potência inventiva, quer dizer, pelo menos desde Platão, a mímesis pode mesis pode ser, com efeito, pensante efeito, pensante,, desde que um ativo leitor ou leitora lhe tenha acesso.
traduzindo-o em nossa própria língua pode também ser um dom de hospitalidade, tão vital quanto o da inscrição primeira, ou seja, da primeira assinatura, que então se contra-assina. Mas quem assina mesmo, a favor ou contra, é o pensamento, que assim se escreve com o leitor. E a verdadeira escritura, se há, é uma literatura pensante. Gostaria que, nessa expressão uma literatura pensante, pensante, o uma uma tivesse tanto ou maior peso do que os outros componentes do sintagma. É a unicidade insubstituível e rigorosamente singular de certos textos e autores que importa e não a generalidade de uma categoria (mais uma) da filosofia, da teoria ou da crítica literária. Porém, uma unicidade que nada tem de ideal, pois é posta à prova pelo que de concreto e real da singularidade experiencial ela com-
4. Hospitalidade literária
porta. Não existe a literatura pensante em si, mas alguns textos de determinados autores e autoras se tornam altamente pensantes para certos leitores, em tais ou quais circunstâncias. E o que se chama de pensar (Heidegger) (Heidegger)23 acontece de fato no ato de leitura, como efeito interpretativo,, desdobrando-se num novo texto, o qual, por sua vez, interpretativo se dirige a outros contextos, articulando uma vasta v asta contextura contextura.. Nem literatura nem pensamento são essências previamente definidas, mas potencialidades, no limite de uma impossibilidade. impossibilidade. É por serem quase quase impossíveis impossíveis que uma literatura, uma escritura ou uma escrita se tornam, com efeito, pensantes. Isso ocorre por meio de um acontecimento que é tanto textual (a partir desse ou daquele texto) quanto extratextual (dirigindo-se a outros contextos e engendrando novos textos). Uma literatura pensante é um processo singular, que pode sempre sempre nnão ão ocorrer ocorrer . Sem esse fracasso estrutural, não há evento, mas programa garantido de antemão. A garantia prévia do sucesso
A hospitalidade, eis minha hipótese, é a responsabilidade máxima que assumimos em face do estranho e do estrangeiro, e é isso o que o sintagma “uma literatura pensante” — se de direito e de fato quer dizer algo — de algum modo expressa. Acrescentaria: é a responsabilidade máxima que um vivente assume como resposta ao dom da vida, em nome de um justo direito de preservação e continuidade. Pois a vida, mais do que Deus, mais do que qualquer divindade, é o Outro absoluto, que habita em nós, que somos nós, a imanência da total transcendência: toda outra, totalmente diferente, mortal. Caberia, na zona de negociação entre a particularidade histórica, social, cultural e a universalidade sem s em limites, acolher o outro enquanto outro, por amor à pura diferença. A paixão A paixão da da diferença, como o termo latino passionis latino passionis expressa, expressa, se dá por meio de uma passividade essencial, que se autodesconstrói no momento mesmo em que ativamente se afirma por um eventual dom. Nem pura passividade, nem
23
(HEIDEGGER 1992)
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foi o que desejou grande parte das vanguardas do século passado, pois acreditavam que bastava ter uma plataforma bem definida, por assim dizer, um “plano piloto”, como defendeu a Poesia Concreta brasileira, para que o êxito se desse. Tratava-se, Tratava-se, pois, de um autêntico imanentismoo criativo, teórico e crítico, já que, como se sabe, os vanimanentism guardistas de uma forma geral se desdobravam nas três atividades. Ignorava-se Ignorava -se desse modo a eventualidade do evento, que pode sempre se dar tanto quanto não se dar, como um dom ou contradom contradom.. Tudo depende dos fatores interatuantes em circunstâncias específicas, de acordo com as subjetividades e objetividades aí envolvidas, as forças concorrentes, os valores em exercício e os valores por vir. Motivo pelo qual a verdadeira literatura e, sobretudo, a verdadeira leitura é hospitalidade, no mínimo sob forma de citação. Isso foi o que intuiu Barthes, num texto tão referido quanto mal compreendido, “A Morte do autor”. Se o nascimento do leitor deverá ser pago com a morte encenada, fictícia e factícia, do autor24, é porque todo autor é antes de mais nada leitor, copista (numa plena convergência com a proposta borgiana), recitador, recitador, cuja tarefa é receber, recopiar e, portanto, transmitir os textos e experiências alheios. Ler, em sentido intensivo, é responder à provocação, à incitação, ou melhor, à injunção do outro e da outra, cujos textos nos chegam de tempos remotos (Grécia antiga ou moderna, Roma, Oriente Médio, mas também Arábia, China, África, nossa América), bem como de tempos modernos ou “pós-modernos”. Tal é a responsabilidade da bilidade da leitura como escritura e como contra-assinatura. Pois o evento pensante da leitura é essa ressignificação escritural, em que emerge o dado singular, imprevisível no contexto de partida (em que se deu a inscrição primeira, o texto do outro) e nos contextos de
chegada (em que se farão novas inscrições, novos textos escritos e falados). Diria mesmo que a experiência pensante, se ocorre, faz-se entre esses textos e contextos, de uns a outros, sem redução simples ao solo do mesmo, mas também passando por aí. É isto o que a linda e pouco usual palavra contextura contextura designa: designa: a generalização do mais estritamente singular. Universalizável por ser singular , e não por ser a priori universal priori universal ou geral. Devo, no entanto, sinalizar que a experiência mais singular pode ser reconvertida ao já-sabido. Isso se deu, por exemplo, com a “questão antropofágica”, antropofágica”, fundamental para o redimensionamento da cultura brasileira e de outros países ditos periféricos no século XX. Todavia, convertida em verdadeiro fetiche cultural, totemizada até a náusea, a antropofagia perdeu grande parte do valor pensante, que se manifestou com intensidade até os anos 1960, com a Tropicália de Caetano, Gil, Gal, Mutantes, Tom Zé, Rogério Duprat, Rogério Duarte, Capinam, Torquato Neto e outros, em diálogo com os poetas concretos. Por isso, a Antropofagia carece hoje de novos olhares, para longe dos efeitos clicherizados que involuntariamente gerou. Pois, entre experiência de devoração e hospitalidade desconstrutora, resta muito a pensar. Pensar é, com efeito, o que sempre resta25.
24
25
Cito literalmente: “o nascimento nascimento do leitor deverá se pagar com a morte do Autor” [la naissance du lecteur devra se payer de la mort de l’Auteur ]. ]. (BARTHES 1994:491-495)
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5. Ficção e ética: questões políticas
A pergunta que também resta ou permanece ( demeure demeure), ), no que diz respeito à ficção é: qual tipo de narrador cabe ainda hoje, depois de um século de modernidade vanguardista? Como não repetir Joyce, Woolf, Kaa e Clarice, ao tempo em que se empostam também essas Desenvolvi essa essa temática no artigo-conferência artigo-conferência “A desconstrução desconstrução ‘no Brasil’: uma questão antropofágica?” antropofágica?” (NASCIMENTO 2006:144-179). Com o tí tulo de “A antropofagia em questão”, outra versão saiu em NASCIMENTO (2011:331-361)
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vozes, sem temor nem tremor, tremor, menos ainda sem culpa criativa, mas também sem se deixar esmagar genealogicamente por essas mães e
Capítulo 14 . Uma literatura pensante
ao radicalmente secreto, ao intangível interior. Mas como preservar o “lar” o “em casa”, casa”, sem incorrer em autoimunidade? Como preser-
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esses pais literários? Decerto uma das respostas seria multiplicar as filiações, assumindo diversas paternidades e maternidades. O mesmo acontece no caso do antigo sujeito poético, pois não há como retroceder ao criador duplo de demiurgo, que extrai sua matéria do nada. Por definição, é poeta quem dialoga com a tradição poética, não simplesmente para “trazê-la nos ossos”, como defendia T. S. Eliot, em radition and individual talent 26, mas por uma interlocução que converge com os dados biográficos do poeta, se possível misturando gêneros. Poesia mais ensaio, mais autobiografia, mais narrativa, mais drama etc. Os gêneros sem dúvida implicam modos distintos de compartilhar o segredo literário: narradores e personagens se mostram como poderosos disfarces da singularidade de um
var a vida e seus recônditos segredos sem se m mumificá la? A questão não seria mais de que ou para que serve viver, mas, sim: como viver, como continuar, quando os sistemas falham, o horizonte se fecha, as crises mundiais se repetem do Oriente ao Ocidente, e vice-versa, muitas vezes com o pretexto de velhíssimas “guerras de religião” ou novas cruzadas? Apostar e empenhar-se em outras políticas da vida, sem cair no idealismo vitalista nem no autoritarismo biopolítico, seria uma possibilidade. Somente com a abertura do horizonte é que o acontecimento pode advir, mudando quem sabe os rumos da história: mento “Paradoxalmente, a ausência de horizonte condiciona o próprio porvir. A insurgência do acontecimento acontecimento deve urar todo horizon horizonte te de
eu que pode jamais se enunciar de modo altissonante, ao contrário do poema, em que quase sempre um eu ao menos se anuncia, enunciando-se também com frequência. frequência. Nesse sentido, o Unheimliche Unheimliche,, o infamiliar ou o insólito literário nos leva a indagar não o sentimento da vida (Lebensgeühl (Lebensgeühl ) ou da existência, como omas Mann faz um de seus personagens questionar27, pois que sabemos nós a esse respeito? Mas sim os sentidos mutantes do existir humano e vivente em geral, a contrapelo do que sempre combateu Sócrates contra a propensão heraclitiana de sofistas e poetas, em diálogos como Crátilo e O Sofista. Sofista. Não é que nada seja fixo no mundo, mas o que se perdeu foi a fantasia da estabilidade absoluta, que só o mundo das Ideias realmente fixas pôde conceber e que Machado de Assis tão bem questionou. O fundamental seria associar essa estranheza dos deslocamentos semânticos ao segredo,
expectativa””28. Valorizar a vida, preferi-la, sempre que possível, à expectativa destruição explícita ou disfarçada, constituiria uma das tarefas sem fim das desconstruções, no limite de uma impossibilidade29. E como se pode fazer isso, na prática? Escrevendo livros, realizando palestras, publicando artigos, dialogando sem trégua, lendo, ouvindo, eis um começo de intervenção intervenção,, palavra que tem um duplo sentido policialesco e político. Optemos pelo segundo sema, o político ou o hiperpolítico, a que uma literatura pensante nos convida, agora, aqui, incondicionalmente. Trata-se antes de tudo de uma reflexão sobre as relações na pólis na pólis.. E só assim desconstruir pode se dar em ato, como promessa de justiça:
26 27
(ELIOT 1950) “Es gab doch etwas, was man Lebensgefühl nenne” [Então existe algo que se chama de sentimento da vida]. (MANN 2008:157)
28 28 (DERRIDA 1994 :15) 29 “Préférez toujours la vie et afrmez sans cesse la survie...” (Preram sempre a vida e armem incessantemente a sobrevida), são as palavras que Derrida deixou para serem lidas por seu lho Pierre, no momento de suas exéquias. (Cf. PEETERS 2010 :660)
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“Talvez”, é preciso sempre dizer talvez para a justiça. Há um porvir para a justiça e só há justiça na medida em que o acontecimento é possível, excedendo, enquanto aconteciment acontecimento, o, o cálculo, as regras, os programas, as antecipações etc. Como experiência da alteridade absoluta, a justiça é inapresentável, mas essa é a chance do acontecimento e a condição da história. Uma história decerto irreconhecível, é claro, para os que creem saber de que falam quando usam essa palavra, quer se trate de história social, ideológica, política, jurídica etc.30
Os temas da impossibilidade e o da incondicionalidade poderiam sugerir uma utopia desconstrutora, mas isso não acontece porque, como enfatiza Derrida, a incondicionalidade só passa a existir, com efeito, dentro de determinadas circunstâncias. O absoluto incondicional da justiça significa uma promessa de aperfeiçoamento sem fim do direito, das leis e da legalidade em geral, inclusive dos direitos humanos. Sem essa efetividade, a justiça incondicional se reduziria a mera abstração. A especificidade do direito garante a força geral da justiça, em nome de uma lei que nenhuma democracia particular conseguirá, por si só, pôr em prática, restando uma tarefa comum a todas as democracias do planeta, a tarefa de se manifestarem como fiadoras do justo absoluto. Sem esse empenho em nome de uma democracia por vir, vindoura, “vindo” (o sintagma à venir tem todas essas conotações), nada de democracia real, nada de política amplamente democrática. A potência da literatura31, enquanto instituição 30 (DERRIDA 1994:61) 31 (Cf. FINKIELKRAUT FINKIELKRAUT 2006). Trata-se Trata-se de uma uma série de de diálogos com especialistas, especialistas, que procuram dar conta do poder da literatura na sociedade atual. A partir do programa “Répliques”, da Rádio France Culture, Alain Frinkielkraut tenta relançar o debate em torno do li terário, indo além da obrigação do engajamento político de Sartre. Participam da coletânea, entre outros, Jacques Roubaud, Philippe Sollers e Antoine Compagnon Compagnon..
Capítulo 14 . Uma literatura pensante
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ligada às modernas democracias, com o poder praticamente infinito de dizer tudo, consiste em encenar esse desejo de justiça, ali mesmo onde até o simples direito falta, como ficcionaliza o até hoje válido Os miseráveis,, de Victor Hugo, a despeito justamente do “miserabilismo” miseráveis de que é muitas vezes acusado. Um poder literário que configura mais um despoder, o poder de dizer o não dito, em reserva, de trazer à discussão temas pouco ou maltratados pela imprensa, pela história e por outras ciências humanas. O empenho literário, verdadeiro penhor para poder dizer tudo e, paradoxalmente, também poder silenciar, se separa do engajamento proposto por Sartre32, embora com ele dialogue. Menos do que um comprometimento político em sentido estrito, o que levaria decerto a uma reprodução de ideologias, importa esse investimento formal que reinventa os jogos do real via linguagem. Sem a mediação lúdica da linguagem, nenhuma obra literária sustenta seu poder mobilizador e questionador, reduzindo-se a um dogmatismo fútil e raivoso, porém cheio de boas intenções. Como pensamento, a literatura só pode responder de forma singular, a cada vez, ao advento do outro como outro, particular e geral. Isso quer dizer que um texto literário não deveria, em princípio e por princípio, responder diante de autoridades legais, embora isso tenha ocorrido inúmeras vezes. Um autor, sim, pode ser responsabilizado pelo conteúdo de sua obra e ter o direito ou mesmo o dever de resposta, como Flaubert, Baudelaire e, noutra perspectiva, Rushdie. Por outro lado, a obra mais conservadora pode produzir efeitos imponderáveis. Ou mesmo: a obra que se reveste de conteúdo pornográfico e supostamente antiético pode ter como uma de suas intencionalidades (são sempre mais de uma) pôr em questão a intencionalidades moralidade habitual do leitor. leitor. 32
(Cf. SARTRE 1996)
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Esse é o caso de O Caderno Rosa de Lori Lamby , de Hilda Hilst33, um livro que, se fosse publicado hoje pela primeira vez, decerto decer to seria
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sentido tradicional. Como sintetiza na entrevista já citada “Essa estranha instituição chamada literatura literatura””, concedida a Derek Attridge:
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acusado de pedofilia, por supostamente encenar a narrativa de uma garotinha em suas relações libidinosas com homens adultos. Por esse motivo, a autora foi acusada de ser louca e irresponsável, além de decrépita, mas não sofreu nenhum processo porque ainda não estava em pauta toda uma série de escândalos ligados a redes de pornografia e abuso contra crianças, bem como aos crimes cometidos pelos padres católicos. Trata-se de uma obra que cita ironicamente Georges Bataille (travestido de Jorge Batalha), para encenar toda a duplicidade da transgressão literária e sua relação com as normas sociais. É um poderoso dispositivo ficcional inventado por Hilst a fim de suscitar no leitor e na leitora uma reflexão sobre os limites entre moral e imoralidade, indo além do horizonte ético-moral e atingindo as paragens de uma responsabilidade ética além da moral . Muitas das censuras literárias sobrevêm pela necessidade de impedir esses efeitos de leitura, que são bem mais do que transgressores, pois engendram uma forma de pensamento que questiona radicalmente os limites da moralidade, pondo em causa o regime opositivo entre transgressão e norma. Como as desconstruções são, antes de mais nada, um pensamento do limite e do ilimitado, a literatura pensante de Hilst nos ajuda a abrir o horizonte reflexivo, levando em conta, para deslocar, o erotismo, as normas sociais, as diferenças entre infância e idade adulta, a sexualidade infantil e a responsabilidade ficcional. Tal como, com outros instrumentos e alcance diverso, tem realizado a psicanálise, desde os trabalhos inaugurais de Freud. Isso é o que Derrida chama de dever de de irresponsabilidade , o dever que o texto ficcional tem de não se render à divida moral, à responsabilidade em 33
(HILST 2005 [1990])
[...] Este dever de irresponsabilidade, de se recusar a responder com seu pensamento ou sua escrita diante dos poderes constituídos, talvez seja a mais alta forma de responsabilidade. Diante de quem e do quê? É toda a questão do porvir — ou do acontecimento prometido por ou numa nova experiência, o que há pouco chamei de democracia por vir. Não a democracia de amanhã, não uma democracia futura, que amanhã estará presente, mas aquela cujo conceito se liga ao porvir, à experiência de uma promessa empenhada, quer dizer, sempre de uma promessa infinita.34
Nessa perspectiva, a raiz latina da palavra responsabilidade, es pos-, resume toda a gama de sentidos, que vai do estritamente legal, pos-, obrigatório, ao empenho ou compromisso e à verdadeira responsabilidade ética. Como comenta o Houaiss Houaiss,, no verbete etimológico espos-,, que vale a pena citar ao menos em parte, dada a sua densa espospoeticidade: [...] antepositivo, de uma raiz indo-europeia *spend- ‘fazer uma libação’, representada em gr. pelo v. spéndō ‘fazer uma libação; firmar um tratado’ (donde spond ḗ ‘libação’, spondeîos ( poûs) ‘espondeu, pé de duas sílabas longas, de ritmo lento, utilizado orign. nos cantos de libação’, spondeiakós,ḗ ,ón ‘espondíaco, espondaico’) e em lat. pelo v. spondĕo,es, spopondi, sponsum, spondēre ‘assumir um compromisso ou uma obrigação solene; responder por alguém, ficar por fiador, obrigar-se a; prometer em casamento: prometer, assegurar’ (der. latinos: sponsa,ae ‘esposa’, sponsus,i 34
(DERRIDA 2009:258)
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‘prometido em casamento; esposo’, o v. sponso,as ‘prometer; prometer casamento; empenhar, penhorar’ [...] responsor,ōris ‘o que pode responder; consultar; o que canta um responso’, lat.tar. res ponsīvus,a,um ‘que serve para responder’, lat.tar. responsorĭum,ĭi
‘responsório, responso’, o v. respōnso,as ‘responder; replicar, resmungar; ressoar, retumbar, retinir; resistir a, lutar contra’, responsum,i ‘resposta; resposta de vocábulo, predição; resposta
de consultor, consultor, conselho, solução, decisão’; a cognação vern. é rica, vulg. e culta, desenvolvendo-se desenvolvendo-se desde as orig. do idioma idioma [...].35 6. Desconstruções: entre literatura e losoa
Em Donner la mort e e em Glas Glas,, Derrida trata da “economia do sacrifício”36. Essa expressão é de enorme ambiguidade, reservando um fundo imenso para futuras interpretações. Tomo-a, Tomo-a, todavia, em seu sentido mais literal: cabe economizar o o sacrifício de Isaac por Abraão, eliminando-o de cena como um segredo demasiado arcaico e, hoje, sem função outra a não ser fomentar fanatismos. Pois é em nome de uma relação absoluta com Deus, Alá e outras onipotências que muitos sacrifícios humanos todos os dias são praticados em diversas partes do mundo, numa versão hipermidiática das guerras de religião. religião. Importa, desse modo, sacrificar o sacrifício, economizando-o e nos poupando, em nome de novos valores e ações, com renovado empenho. O segredo ostentado (secret ( secret affiché ) do arquivo literário, como bem explica Gêneses, genealogias, gêneros e o gênero, gênero, depende dessa capacidade infinita de regenerar o contrato antigo e moderno da instituição literária. Contudo, trata-se de um contrato em aberto, sem outras cláusulas obrigatórias senão a capacidade constativa e 35 36
Cf. http://houaiss.uol.com http://houaiss.uol.com.br/busca?p .br/busca?palavra=esp alavra=esposos- . (Cf. DERRIDA 1999:130). 1999:130). A nota desta página remete remete a várias referências em DERRIDA (1974)
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performativa de preservar o segredo, passando-o de geração em geração, de modo não retilíneo e homogêneo, mas, sim, oblíquo e intempestivo. Com isso, podem-se engendrar outros modos de pensar a própria genealogia, sem que se recaia na tradição de pai para filho, tradição eminentemente falogocêntrica, como inúmeras vezes Derrida apontou. Pois a mãe e a irmã 37 aguardam ansiosas para participar do banquete filosófico e literário, no qual, em vez ve z de devorar o outro, dá-se de comer para poder comer junto e, junto e, igualmente, junto viver. Talvez Talvez seja essa a mais alta e de fato ética responsabilidade da literatura e da filosofia como força de pensamento. alvez . O próprio Derrida observa a sincronia do comparecimento na cena ocidental da crítica feminista, sobretudo a francesa, com Simone de Beauvoir, e da chamada desconstrução. A despeito das diferenças de estratégia, a coincidência nada tem de casual, explicitando as relações complexas entre desconstrução e contexto cultural, e mostrando como, de fato, as desconstruções não podem nem devem ser pensadas como o ato voluntário de um só autor, mas como aquilo que é igualmente bem mais do que um fenômeno de época: “Aparecer ao mesmo tempo que o tema da desconstrução, como desconstrução do falogocentrismo, não quer dizer necessariamente, nem sempre, depender disso, mas ao menos pertencer à mesma configuração e participar do mesmo movimento, da mesma motivação” 38. É a isso que nos convida, desde sempre, essa igualmente estranha instituição da alteridade que um dia foi nomeada como desconstruções.. É nesse sentido que desconstrução e literatura têm desconstruções 37
38
No capítulo intitulado intitulado “Liberté, égalité, fraternité fraternité ou comment ne pas deviser” (Liberdade, igualdade, fraternidade ou como não conversar) de um de seus livros mais políticos, Voyous: deux essais sur la raison (Vadios: dois ensaios sobre a razão) (DERRIDA 2003:85-93), Derrida retoma a discussão da política da amizade como sendo tradicionalmente fraterna, em detrimento da irmã ( soror ). ). Tal tema já fora amplamente desenvolvido em (DERRIDA 1994) (DERRIDA 1994:276)
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uma relação estreita e intensiva. Derrida faz questão de ligar o gozo (enjoyment (enjoyment , em inglês; jouissance inglês; jouissance,, em francês) à desconstrução, numa frase que nada tem de hedonismo gratuito: “A cada vez
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mostrar, até mesmo demonstrar não significa necessariamente revelar tudo, pois sempre uma camada de sentido pode se ocultar naquilo mesmo que se expõe à luz, aos olhos públicos, à curiosidade cur iosidade
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ção, numa frase que nada tem de hedonismo gratuito: A cada vez em que há ‘gozo’ (mas o ‘há’ desse acontecimento é em si mesmo bastante enigmático), há ‘desconstrução’. Desconstrução eficaz. A desconstrução talvez tenha como efeito, senão como missão, liberar o gozo interdito. É em relação a isso que se deve tomar partido”39. Percebe-se o sentido ético-político dessa sequência de enunciados, em que as desconstruções aparecem como uma forma de liberação do interdito, do sentido restritivo da lei. Logo em seguida, a própria literatura vai ser até certo ponto caracterizada por essa mesma possibilidade, derivada de sua capacidade de dizer tudo. Depois de marcar que as coisas nunca são simples quando se trata de prazer, de princípio de prazer e de mais além do princípio de prazer, Derrida volta a enfatizar o vínculo entre a desconstrução eficiente e o “maior prazer possível”, possível”, para logo em seguida reapresentar a literatura como essa possibilidade de suspender o recalque: “A literatura suspenderia o recalque: ao menos em certa medida e a seu modo, nunca totalmente, de acordo com roteiros regulados, mas sempre modificando as regras no que se s e chama de história da literatura”40. É dentro dessa perspectiva que o citado Gêneses, genealogias, gêneros e o gênero gênero associa associa segredo e arquivo ao signo Biblioteca, a partir de uma reflexão sobre a obra e parte dos arquivos de Hélène Cixous entregues à Biblioteca Nacional da França. A questão será sempre a de saber o que significa guardar arquivos e seus segredos: até que ponto a guarda oculta ou manifesta de algum modo o que se guarda? E, uma vez expostos, será que os documentos e, sobretudo, os textos literários perderam todos os seus segredos? Expor,
naquilo mesmo que se expõe à luz, aos olhos públicos, à curiosidade cur iosidade alheia. A força dos arquivos literários guardados por uma Biblioteca é que seu segredo [...] não se deve apenas ao fato de nem mesmo a ela ser acessível ou de tal ou qual conteúdo lhe ser dissimulado, criptado, para sempre hermético, mas também ao fato de a forma de escrita, a literatura a ela confiada, ter uma estrutura cujo segredo é tanto mais lacrado e indecidível quanto não consiste, finalmente, num conteúdo oculto, mas sim numa estrutura bífida, a qual pode guardar em reserva indecidível aquilo mesmo que ela jamais acaba de declarar, mostrar, manifestar, exibir, expor. 41
Paradoxalmente, a obra literária ou artística em geral nasce também de certa inoperância, de uma ruptura com o contrato burguês, o rendimento de capital e o regime de trocas que o funda. Sem certo ócio, nada de obra em desconstrução, apenas monumento construído. Nesse sentido, o trabalho do luto, que Derrida assume como o trabalho por excelência, funciona nessa relação tensa entre vida e morte, a vida que lamenta a morte iminente, mas que celebra igualmente sua sobrevivência, quiçá sua supervivência. É o que comparece na abertura de um texto-homenagem a seu amigo e colega, então recém-falecido, Louis Marin: O trabalho: o que faz obra, decerto o que obra — e abre, o que opera e o que desobstrui: o trabalho da obra enquanto engendra,
produz e traz à luz, mas o trabalho também como o sofrimento, o 39 (DERRIDA 1994:274) 40 (DERRIDA 1994:275)
41
(DERRIDA 2003:43)
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suportar a força e o mal de quem dá. De quem dá a luz e dá a ver,
provocado, convocado, pela “questão da literatura”) nos ensina
dá poder, dá força de saber e de poder ver, e esses são poderes da
mais, e mesmo o “essencial”, sobre a escritura em geral, sobre os
imagem, o mal do que se dá e de quem se dá o mal de dar a ver,
limites históricos ou científicos (linguísticos, por exemplo) da
a ler, a pensar.
interpretação da escritura.43
[...] Todo trabalho em geral trabalha no luto. De si próprio. Mesmo quando tem o poder de dar nascimento, mesmo e sobretudo quando premedita dar a luz e dar a ver. O trabalho do luto não é uma espécie entre outras possíveis, uma atividade do gênero “trabalho”; “trabalho”; não é de forma alguma uma figura particular da produção em geral.42
O trabalho ou a operação literária de Clarice, Joyce e Beckett, por exemplo, consiste também em tornar inoperantes mecanismos institucionais rígidos, em nome de uma abertura ao outro e à outra como alteridade radical. É esse o direito incoercível à literatura, diretamente vinculado a instituições democráticas. Todos os regimes que ignoram parcial ou completamente a democracia tendem a perseguir seus escritores e artistas, como é o caso da China, do Irã e da Rússia. O que faz da literatura uma instituição especial, embora por isso mesmo desprovida de uma essência ideal, de uma “literariedade” plena, como se dizia outrora, é não ser simplesmente mais uma região ou domínio da textualidade em geral:
42
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Nesse sentido, o pensar de uma literatura pensante se volta para seus próprios fundamentos institucionais, quer dizer, escriturais. No sintagma “uma literatura pensante”, o adjetivo pensante adjetivo pensante não é um atributo inerente a alguns tipos de obras. Isso seria recair no imanentismo teórico-crítico, que se acreditaria capaz de falar de uma essência da literatura, o que os formalistas russos nomeavam como literariedade. Todavia, por ser mais uma categoria da leitura do que da produção, uma literatura pensante é aquela que emerge, como efeito, para determinado leitor, em determinado contexto, informando uma complexa contextura, que se tece entre obras, ativos leitores e contextos. A contextura é o próprio processar-se da leitura, que, como dito, só ela dá vez a uma literatura, escrita ou escritura pensante. Por isso, foi importante também renomear como uma leitura pensante, pensante, pois quem pensa de fato é o leitor, inventando um novo texto, a partir da contra-assinatura de uma obra prévia. Tal como Derrida lendo o já referido L’Instant referido L’Instant de ma mort , de Blanchot, dando vez em ato, performativamente, a uma literatura pensante. pensante.
[...] O que a literatura “faz” com a língua detém um poder re-
[...] é uma instituição que consiste em transgredir e em trans-
velador,, que decerto não é único e que ela pode até certo ponto velador
formar, portanto em produzir sua lei constitucional; melhor
compartilhar com o direito, com a linguagem jurídica, por
dizendo, em produzir formas discursivas, “obras” e “aconteci-
exemplo, mas que, em determinada situação histórica (a nossa,
mentos” nos quais a possibilidade mesma de uma constituição
justamente, justament e, e eis uma razão a mais para se sentir concernido,
fundamental é, ao menos por “ficção”, contestada, ameaçada,
(DERRIDA 2003:177-178)
545
43
(DERRIDA 1992:289)
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Evando Nascimento
desconstruída, apresentada em sua precariedade mesma. Sendo assim, se a literatura compartilha certo poder e certo destino com a “jurisdição”, “jurisdição”, com a produção jurídico-política dos fundamentos
Capítulo 14 . Uma literatura pensante
instituição”, Samuel Beckett foi o autor em cujas obras ele quase nada encontrou para desconstruir, tanto o trabalho da linguagem e a força desconstrutora do escritor irlandês estavam próximos do
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institucionais, da constituição dos Estados, da legislação fundamental, e mesmo dos performativos teológico-jurídicos, que se encontram na origem da lei, em certo ponto ela pode também excedê-los, interrogá-los, “ficcionalizá-los”: “ficcionalizá-los”: com vistas a nada, é claro, ou a quase nada, e produzindo eventos cuja “realidade” “realidade” ou duração nunca é assegurada, mas que, por isso mesmo, dão tanto mais a “pensar”, se isso ainda quer dizer algo.44
O fato de lidar predominantemente com autores canônicos não reduz em nada a força pensante dos textos de Derrida no diálogo contínuo com a literatura. O motivo principal seria que ele vai buscar nesses autores, sobretudo, temas e formas que ajudam a abrir o horizonte histórico-cultural, possibilitando, assim, que outros leitores e leitoras possam fazer suas próprias leituras de autores e autoras canônicos ou não canônicos. Seria impossível realizar uma lista exaustiva dos autores cujos textos serviram de ponto de partida para algumas das estratégias desconstrutoras, mas podem-se apontar alguns que são referências recorrentes na pena ou no teclado derridiano. Numa lista provisória, teríamos, pois: James Joyce, Edgar Allan Poe, Hélène Cixous, Philippe Sollers, Daniel Defoe, Jean-Paul Sartre, Gustave Flaubert, Antonin Artaud, Jean Genet, Francis Ponge, Stéphane Mallarmé, Paul Celan, Sófocles, Maurice Blanchot, Jorge Luis Borges, Jean de La Fontaine, Edmond Jabès, Michel Leiris, William Shakespeare, Wolfgang Von Goethe, Paul Valéry, Hermann Melville, André Gide, Georges Bataille e Charles Baudelaire. Como ele diz na entrevista sobre “Essa estranha 44 (DERRIDA 1992:290)
seu. Para a elaboração de uma lista mais extensa, seria necessário realizar pesquisas na biblioteca do pensador, bem como consultar todos os seminários inéditos em que se referiu a obras literárias e todos os artigos e conferências igualmente ainda inéditos na França. Um belo trabalho para os pesquisadores pes quisadores vindouros. Já existe hoje uma tendência a repetir, de modo mecânico, alguns dos temas desenvolvidos por Derrida nos últimos anos de sua vida. Tal como em relação aos textos iniciais se destacaram noções como phármakon como phármakon,, escritura/escrita, jogo, texto, rastro etc., tende-se agora a enfatizar termos como hospitalidade e perdão incondicionais, ética como amizade, messianicidade sem messianismo, fidelidade na traição etc. Até certo ponto, é inevitável que os afainados leitores de primeira, segunda, terceira ou última hora propendam a repetir o que o próprio pensador enfatiza. Há um desejo bastante legítimo de constituição ou de restituição de um saber. s aber. No entanto, a estabilidade num campo de saber (filosofia, literatura, teoria da literatura, crítica literária, Teoria, Humanidades em geral etc.) constituiu sempre um dos aspectos mais visados por textos e contextos de desconstrução. Como, então, seria possível inventar dispositivos que desarmem a mecanicidade da leitura exegética e excessivamente fiel à letra do texto do outro, mas sem traí-la de todo? A resposta, parece-me, seria não dar um tratamento conceitualmente idealizante, mas simplesmente reescrever os textos assinados J.D. J.D. Reescrever, em sentido forte, implica encontrar sua própria escrita a partir da escritura do outro, enxertando-a com outros autores e temas, que ele, por razões essenciais, não tratou ou tratou de outros modos. Em suma: cabe acrescentar algo de seu, gerando
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Capítulo 14 . Uma literatura pensante
uma nova textualidade, em diálogo com os textos de partida. É o que tenho procurado fazer desde que concluí Derrida e a literatura literatura (livro por si só já movido por um desejo interpretativo singular): ler diversos autores a minha maneira, muitas vezes em companhia de Derrida, outras somente a partir dele, muitas outras sem ele. A lista seria longa e só citaria de passagem alguns, a título de referência parcial: Walter Benjamin, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Waly Salomão, Haroldo de Campos, Silviano Santiago, Ana Cristina Cesar, Bispo do Rosário, Hélio Oiticica, Charles Baudelaire, Hans Ulrich Gumbrecht, Antonio Cicero, Cecília Meireles, entre muitos outros. Esses ensaios procuram sempre evitar a pura teoria (filosófica ou não) e a pura crítica (literária ou não). Pois, em matéria de texto, ideal mesmo é acumular impurezas no branco da tela e da página, muitas vezes com um direcionamento poético-ficcional. É nesse sentido que desenvolvo nesse momento todo um projeto ficcional de escrita. No texto de uma conferência dos anos 1980, realizada na Universidade da Califórnia, em Irvine, Derrida fala da impossibilidade de se falar da “teoria” no singular e sem aspas, e de como essa impossibilidade poderia ser interpretada de dois modos distintos. A primeira interpretação, mais clássica, remeteria à disputa entre as correntes ou o que ele chama de “ jetées “ jetées”” (palavra
identificação do que ele torna possível e que, portanto, delimitaria e des-estabilizaria des-estabilizaria o o estado ou o estabelecimento aos quais dá 45 lugar” . É nesse não lugar estável que aparecem “efeitos de desconstrução”, irredutíveis a qualquer teoria ou corrente crítica. Em outras palavras, aquilo que torna possível a existência de “teorias” não é teorizável de maneira simples, pois não tem uma identidade e, portanto, põe em xeque a identidade das correntes, ou jetées jetées,, historicamente constituídas. E é por isso que as correntes se apropriam de algumas das características e pressupostos de suas ditas concorrentes para se autoafirmar, dentro de um processo geral de enxertos e parasitismos. Daí decorre que não há teoria pura: psicanálise, marxismo, estruturalismo, new criticism, criticism, pós-estruturalismo, pós-colonialismo, cultural studies intertrocam mais de um interesse, mais de um elemento, no momento mesmo em que parecem se opor radicalmente. Razão pela qual não pode haver corrente “desconstrutivista”, a não ser para aqueles que, de boa ou má fé, acreditam ser as desconstruções desconstruções mais mais uma teoria e não a possibilidade histórica de se pensar o conjunto em aberto dos sistemas teóricos em suas limitações e em seus avanços. Por isso também uma literatura pensante só pode ser entendida como um conceito em aberto, em processo, sem perspectiva de conclusão. Um conceito sem definição simples, portanto, que apenas pode se dar como efeito de contra-assinatura, na perspectiva perspec tiva
que indica o “quebra-mar”, mas que mantém relação etimológica com o “ jet “ jet ”, ”, o jato ou o “ jeto” jeto” de projeto, de sujeito e de objeto) teóricas. Cada teoria seria movida por um princípio de razão ou por uma vontade de potência, que lhe dá um tipo de configuração. A segunda interpretação remete para uma cláusula ou uma lei disseminante que torna impossível a estabilidade no campo de forças teórico: “um recurso de alteridade ou de alteração disseminativas, tornando impossível simultaneamente a pura identidade, a pura
do texto do outro, como verdadeira responsabilidade. Tal é o compromisso de uma leitura-literatura pensante, assinar
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com outra assinatura — pois a contra-assinatura assina, confirmando a assinatura do outro — mas também assinando de modo absolutamente novo e inaugural, os dois de uma só vez, como cada vez em que confirmo minha própria assinatura, assinando 45
(DERRIDA 2009:231)
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de novo: a cada vez do mesmo modo e diferentemente, uma nova vez, uma outra vez, numa numa outra data.46
Capítulo 14 . Uma literatura pensante
ponto de partida para uma experiência que ultrapassa a limitação dos campos. Tal é o caso exemplar da da filosofia, embora o que esteja em jogo
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Sinalizo, ainda, que a expressão “uma literatura pensante” não se encontra em nenhum texto publicado por Derrida e que a inventei a partir de elementos desconstrutores. Trata-se, portanto, de uma interpretação e de um desdobramento da obra do outro, configurando o que chamei alhures de desdobra desdobra.. 7. Perspectivas, associações, singularidades
Em literatura, pensamento é o que se produz de forma singular, muito além da generalidade dos gêneros (poesia, drama, romance, conto, ensaio etc.), e por isso mesmo, como visto, pode se tornar universal. Universais e singulares são a literatura e a leitura pensante: leitura como testemunho de contato com a escrito do outro/da outra que nos precede e a quem respondemos com a dupla liberdade do tudo dizer e do nada dizer, do expor e, ao mesmo tempo, guardar um segredo. Segredo este em seguida compartilhado com outros leitores. Foi o que tentei de algum modo fazer, dando aqui um pequeno testemunho do que têm sido minhas leituras em desconstrução desconstrução. Sublinho também que uma literatura pensante não é sinônima de uma “literatura filosófica”, filosófica”, pois a filosofia ainda é um campo disciplinar e o pensamento opera com o indelimitado. Pensar literariamente seria não ficar preso nem ao campo estrito da própria crítica ou da teoria literária, nem tampouco de qualquer outro saber histórico: filosofia, sociologia, economia, história, geografia, zoologia, religião etc. Uma literatura pensante, bem como seu se u duplo, a leitura pensante, é necessariamente transdisciplinar, não porque ignore as disciplinas historicamente constituídas, mas porque as toma como 46 (DERRIDA 2009:285)
vá mais além da limitação ao “exemplo” “exemplo”. Como C omo expus em diversos momentos de Derrida e a literatura literatura,, não se trata de reduzir o texto literário a teses filosóficas, nem de utilizá-lo para sustentar qualquer doutrina disciplinar. O pensamento do literário é singular, independe da filosofia para existir e produzir efeitos. Diria mesmo, ao contrário, que a literatura abre o horizonte das questões tradicionais da filosofia, promovendo o advento do “infinitamente outro”. Essa é, como também visto, a expressão utilizada por Clarice Lispector e que tem tudo a ver com o tout autre (todo autre (todo outro, inteiramente outro, totalmente diferente) agenciado por Derrida a partir do pensamento de Lévinas. Clarice não precisou de Derrida nem de Lévinas para realizar uma ficção altamente performática, que põe em causa, por exemplo, as relações entre o humano e a animalidade, relações estas interpretadas na tradição metafísica como duas categorias opositi vas e irredutíveis uma à outra. Irredutíveis Irredutíveis elas até são, mas isso não implica superioridade nem, sobretudo, uma identidade absoluta de um dos polos em confronto antagônico com o outro, exigindo a necessidade de entendê-las como c omo sendo intercomunicantes. Isso é o que a ficção clariciana performa, em ato, em textos estranhamente familiares como “Macacos”, “A legião estrangeira”, A estrangeira”, A paixão segundo G.H., G.H., “A menor mulher do mundo” e “O ovo e a galinha”, entre inúmeros outros47. Uma literatura pensante dá vez e lugar a pensar o impensado e mesmo o impensável para a tradição filosófica, em grande parte devedora do falogocentrismo, a despeito e por causa de sua imensa riqueza conceitual. Na literatura ou na escritura pensante de Clarice, não há conceitos nem teses, mas situações 47
Aqui só posso posso me permitir reenviar reenviar a leitora e o leitor ao já citado Clarice Lispector: uma literatura pensante (NASCIMENTO 2012).
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infamiliares, inovações de linguagem, tangenciamentos da morte, inflexões de pensamento: em suma, visões do esplendor e e da miséria humana, animal, coisal etc. Se não existe literatura em si mesma, autoidentificada e essencial, tal como a referida literariedade dos formalistas russos supunha, há, contudo, um conjunto conjunto em aberto de textos que, sobretudo a partir de uma tradição moderna, se inscreveram sob o signo do dizer tudo, tudo, do livre compartilhamento democrático. Por isso mesmo, obras anteriores ao próprio surgimento da palavra literatura em sentido especializado a partir do século XVIII, acabam também por compartilhar essa liberdade inerente à instituiç instituição ão literária, fazendo com que a literatura literatura enquanto instituição possa ser duplamen duplamente te abordada: primeiro,, como historicamente referida ao que acontece na moderniprimeiro dade recente e contemporânea; contemporânea; segundo, como fator supratempo supratemporal ral e até mesmo supraespacial, que leva a reler textos poéticos, narrati vos e ensaísticos da tradição ocidental e não ocidental anteriores à modernidade como também dotados de força pensante. Trata-se Trata-se de uma abordagem tanto mais fascinante desse conceito ampliado do literário porque conduz necessariamente a estudos de aproxi aproximação mação entre escrita e oralidade, muito além dos regimes de oposição. Nesse sentido, cabe sempre ressaltar que a categoria derridiana da escrita/ escritura (écriture) jamais implicou implicou uma oposição entre escrita e oralidade, mas, sim, a necessidade de se refletir acerca de uma origem comum, o que em certo momento foi nomeado como arquiescrita ou arquiescritura (archiécriture (archiécriture), ), ou seja, um conjunto de rastros nem presentes nem ausentes, mas indecidíveis. Para concluir, porém sem encerrar a demanda infinitamente outra da literatura, literatura, perguntaria se é possível pensar uma Associação Nacional ou Internacional de Estudos de Desconstrução. Diria mesmo que esse é todo meu sonho: não uma Associação de discípulos de Derrida, pois, como disse desde o início, ele não fundou escola
Capítulo 14 . Uma literatura pensante
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alguma. Mas uma coletividade feita de singularidades e, por isso mesmo, sem cargos de direção, nem hierarquias predeterminadas. Noutras palavras, uma Associação descentrada, mas não anárquica. Pois ela teria ainda uma ordem ou, no mínimo, uma ordenação; todavia esta não se faria a partir de cargos de poder, mas, sim, pelo diálogo permanente entre seus membros. Isto é, uma Associação que pensasse a si mesma em todas as suas instâncias e, desde seu ato fundador, não constituindo nem criação nem propriedade de ninguém. Por mais difícil e desafiador que fosse pensar essa estranha e inovadora instituição, a Associação exigiria de si mesma, antes de tudo, não ser mais uma Sociedade Anônima, nem muito menos Limitada (Limited (Limited inc.), inc.), porém fundada numa coletividade realmente plural, aberta ao diálogo, ao compartilhamento e ao advento do infinitamente outro, o diferente, que nenhuma instância de poder conseguiria controlar. Uma Associação, que como a literatura, reinventasse o instituir-se da própria instituição, evitando os jogos de submissão e de coerção, que normal e normativamente as Associações em geral impõem. Isso seria possível ou constitui apenas mais uma utopia? A existência concreta de literaturas e de leitores pensantes faz ver que esse sonho é de todo viável e se encontra, por enquanto, em aberto, como aposta efetiva no porvir. Referências
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Capítulo 15
A literatura e o pensar: notas sobre a trajetória intelectual de Jonathan Culler S C Universidade Federal de Pernambuco
Apresentar o nosso entrevistado Jonathan Culler em sua trajetória no mundo acadêmico e intelectual é tarefa de múltiplas nuances. De tal forma essa trajetória se confunde com o caudaloso fluxo de produções teórico-críticas que frutificaram nos anos do estruturalismo e do pós-estruturalismo, a partir das mais variadas perspectivas e enquadramentos, que algumas das vertentes desse pensamento nortearão este texto. A todas as questões ele tratou de dar uma visada lúcida, articulada e, sobretudo, eficaz, sem nada perder das complexidades das formulações originais. É necessário afirmar de início que Jonathan Culler se dedica primordialmente à disseminação de determinados corpos de conhecimento, notadamente o estruturalismo e a desconstrução. Com respeito à Desconstrução, essa disseminação jamais tomou o rumo de uma crítica ao pensamento e às reflexões de Jacques Derrida, o que não desmerece o seu trabalho, uma vez que ele foi fiel justamente ao que considerava a enorme contribuição de Derrida para o pensamento acadêmico nos Estados Unidos, vendo nesse pensamento uma perspectiva concreta para o florescimento dos estudos literários em seu país. O público acadêmico brasileiro o conhece através dos li vros eoria literária: uma introdução introdução (Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999) e Sobre a desconstrução desconstrução (Trad. Patrícia
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Burrowes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997 ). 1997 ). Outros livros como Te Pursuit o Signs, Signs, no qual se aventura no terreno da semiótica, com excelentes resultados, e Flaubert: Te Uses o Uncertainty (sua tese de doutoramento, de 1974) jamais foram traduzidos no Brasil, assim como Structuralist Poetics, vencedor do prêmio de 1976 da Modern Language Association, MLA, o Lowell Prize. Ferdinand de Saussure (1976), Te Pursuit o Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction (1981) são livros que até o momento não foram traduzidos para o português, assim como Roland Barthes (1983), Framing the Sign: Criticism and Its Institutions (1988), Literary Teory: A Very Short Introduction (1997) e o seu livro mais recente, Te Literary in Teory (2006). (2006). Por conseguinte, são de fato escassos os elementos através dos quais tentaremos extrair o valor da sua obra, transmitindo-o para o nosso público, a fim de estabelecer os necessários nexos entre esta obra e o vasto território do conhecimento a partir do qual o autor teoriza e reflete. A minha escolha não poderia deixar de recair em tópicos relativos aos livros que tenho em mãos. Em Te Pursuit o Signs, Signs, ele define a crítica como uma: caça aos signos, na qual os críticos, não importa a crença, são estimulados pelo prospecto de alcançar, compreender, capturar, em sua prosa, estruturas de significação evasivas, fugidias. A crítica existe porque os signos da literatura nunca são simplesmente dados como tais, mas devem ser perseguidos como se persegue uma caça, adentrando os variados caminhos de um denso cipoal. Os diversos modos da crítica podem ser distinguidos pelos relatos que cada uma delas fornece dessa perseguição. 1 1
(CULLER 1981:vii)
Capítulo 15 . A literatura e o pensar
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Eu logo salientaria, com respeito a este mesmo livro, o programa de desenhar a cartografia de um projeto também ambicioso, uma semiótica da literatura, cujos problemas ele investiga e aparecem abundantemente no debate teórico em andamento. Em geral, a Semiótica defende a ideia de que o estudo da literatura deve ser, antes de tudo, uma investigação focada nos meios e nos modos da significação literária, propugnando a descrição completa do sistema de significação. Uma obra não pode ser interpretada sem “uma compreensão completa da natureza e convenções da narrativa, das relações entre história e discurso, e das possibilidades da estrutura temática””, mas esse temática e sse é um pensamento que informa quase que exclusivamente a crítica e a teoria anglo-americana. Conforme queremos assinalar, Culler ressalta que, mesmo no veio da semiótica se miótica que viceja nos países anglo-saxões, a Inglaterra e os Estados Unidos, onde predomina a língua inglesa, e onde também predomina o projeto de ampliar cada vez mais o leque dos aportes que darão sustentação ao ato interpretativo, há discordâncias numerosas e importantes sobre o que seja o estudo da literatura: há os que se preocupam com os procedimentos adotados, mas não com a episteme que os informa e há os que discordam dessa concepção de que são numerosas e quase infinitas as perspectivas pelas quais um texto pode ser enquadrado ( ramed ( ramed ), ), porque isso põe em questão a possibilidade de que qualquer obra possa vir a ser escrutinada e, em seguida, interpretada de modo tão completo. Ou seja, a interpretação total é um projeto destinado ao fracasso, simplesmente porque são inesgotáveis os sentidos e significações que produzem as obras literárias. Enfim, a pletora de discordâncias gerada por proposições tão generalistas é infindável e diz respeito, entre outros aspectos, aos modos de procedimento, e à possibilidade de se levar a termo um projeto tão amplo. A cada interpretação de um texto literário, a
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questão que inevitavelmente surge é a de determinar se a elaboração que dela resulta torna possível a produção de novas interpretações de obras literárias. Este é o pressuposto fundamental da crítica an-
Capítulo 15 . A literatura e o pensar
e completo; na verdade, nenhum sistema, por mais compreensivo, é capaz de realizar tal proeza. E isso não ocorre por falha do sistema, mas pela inversão, reversão, desconstrução, da própria indagação,
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glo-americana, que tem, como já foi realçado, um impacto decisivo em toda a crítica posterior. Retornando ao já assinalado: Te assinalado: Te Pursuit o Signs se Signs se concentra nos dois temas: (1) o que são e o que podem os estudos literários e (2) os nexos entre a semiótica e a desconstrução. O livro, em sua primeira parte, oferece dois panoramas, focalizando tanto a crítica recente quanto a semiótica, delineando duas questões fundamentais que serão tratadas nas seções posteriores: o papel e o status status da da interpretação, questão que sobremaneira está presente nas preocupações de Culler, desde que ele discorda com certa veemência que a reflexão crítica ou teórica deva render vassalagem à interpretação de obras
agora enquadrada pelo que nos dizem os textos sobre a significação; ou seja, aquilo que se buscava nos textos, o seu significado, é o seu conteúdo. Os textos se dedicam a compreender o que é a significação. E ao se indagarem sobre a significação, eles são reflexivos, porque põem a si mesmos como o objeto central daquilo sobre o que refletem. Ao invés de abrigarem um conteúdo e um significado que o leitor/intérprete buscará conhecer, eles devolvem tal pergunta ao leitor. E assim se desfaz a lógica pela qual essas indagações dirigidas aos textos anteriormente se conduziam. Culler, então, passa ao exame detalhado da semiótica literária, elaborando e desenvolvendo os seus argumentos com respeito
literárias. Se assim for, essa reflexão retira e suprime dos estudos literários a autonomia do pensar, ou seja, a metateoria, importante prerrogativa desses estudos, deixa de ter um espaço nos estudos literários. Mas aqui o tema ainda é tratado de forma débil. Somente mais tarde, como veremos na entrevista, Culler põe em questão a centralidade da interpretação na constituição e construção de uma crítica e uma teoria literária na Inglaterra e nos Estados Unidos, que entrará em oposição ao seu projeto de libertar os estudos literários do objetivo de interpretar pura e simplesmente um texto literário, projeto que ao subtrair da teoria literária a capacidade e a vocação para o pensar em geral, também lhe subtrai o valor. A segunda proposição que norteia Te Pursuit o Signs, Signs, seguindo a configuração labiríntica do seu livro, a relação da semiótica com a desconstrução, emerge de uma reflexão sobre os signos, mas envereda por novas direções. Aqui não há otimismo quanto à possibilidade de dar conta do significado a partir de um sistema abrangente
às várias formas de avaliação de determinados conceitos, quando tratam da abordagem da significação, entre eles, o “horizonte de expectativas” e a “intertextualidade”. O foco sobre o leitor, quaisquer que sejam os enquadramentos e as perspectivas, é um tema que, pelas inúmeras questões que propõe, sobretudo, as relacionadas aos efeitos do texto sobre o leitor, é também sobremaneira explorado e central às suas preocupações. Culler considera o modo como a experiência de leitura leva o leitor a completar o significado da obra, preenchendo lacunas e dialogando de variadas formas com o texto, de tal forma que ele, o leitor, por assim dizer, finaliza e completa o significado da obra. É o que conhecemos como o reader-response criticism, criticism, que recebe atenção especial neste livro. Entretanto o autor adverte que, na sua perspectiva, o que é mais importante nessas vertentes de interpretação de textos é a sua relação com a poética e a semiótica, concebidas como teorias de leitura. É aqui que defenderá a distinção entre
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a crítica interpretativa e a poética, que a seu ver evitaria a nebulosa que envolve o divisor de águas entre estruturalismo e semiótica literária. Em seguida, os esforços Culler se ocupam da renovação de uma teoria literária estruturalista, com a proposição da noção de “competência literária”, que tem Chomsky como ponto de partida, mas cuja ênfase recai no conhecimento linguístico que tem o leitor, conhecimento sistematizado e predeterminado pela convenção. Ao invés de buscar o “significado secreto” de um texto, a leitura crítica deve centrar-se nas operações que vão do texto à representação da compreensão do texto; e na investigação do aparato linguístico do leitor, enquanto conjunto codificado e sistematizado. Culler vê a literatura como um signo institucional, que dá ao ser humano uma razão para crer que o resultado do seu esforço de leitura será recompensado. E a competência literária como a aquisição do sistema que é institucionalizado pela academia. Foi, porém, com os produtos da segunda direção tomada pelo seu trabalho em teoria literária — as relações entre a semiótica e a desconstrução — que veio a notabilizar-se. Em 1975, publicou Structuralist Poetics: Structuralism, Linguistics, and the Study o Literature,, uma versão revisada da tese de doutorado, com a qual Literature conquistou o prêmio James Russell Lowell de melhor livro do ano em crítica literária, concedido pela Modern Language Association Association o America. America. E em 1982, On Deconstruction: Teory and Criticism afer Structuralis Structuralism, m, com o qual introduziu o pensamento de Jacques Derrida nos países de língua inglesa e consolidou a sua marca de um dos pensadores mais eminentes sobre as questões extremamente complexas do campo teórico da Desconstrução — Culler é hoje o 5º mais citado entre os teóricos vivos. Em “Sobre a Desconstrução”, o reconhecimento do caos que,
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nos anos recentes, tem obnubilado o campo da crítica, e a limpeza e o clareamento de um terreno que ameaça fazer submergir qualquer poder de reflexão, são os móveis do seu projeto. Uma parte importante deste projeto é estabelecer a distinção entre o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Há um apagamento dos limites entre um e outro campo que ameaça a reflexão, tamanha a variedade de critérios sob os quais são julgados e classificados os críticos e os seus produtos no arco deste amplo debate: Diz Culler, a certa altura: Ciência ou irracionalismo, rigidez ou permissividade, destruição ou ênfase da crítica — a possibilidade de tão contraditórias acusações (ao estruturalismo) poderia sugerir que a qualidade fundamental do “estruturalismo” é a de uma força radical indeterminada: ele é visto como extremo, como violador de hipóteses anteriores sobre literatura e crítica, embora haja desacordo a respeito de como o faça. Mas essas contraditórias contraditórias acusações também indicam que os oponentes do estruturalismo têm trabalhos diferentes em mente e que, para esclarecer essas questões, devemos deslocar-nos para um outro nível de especificidade.2
Enfim, Culler assume a tarefa de deslindar o emaranhado de vertentes em que se transformou o debate crítico em torno da literatura. Enfrentava assim o caos dos inúmeros desvios, dos mal-entendidos, das incompatibilidades, das incongruências que marcam o seu encontro naquele que deveria constituir um terreno comum para a reflexão, uma mistura a impedir até mesmo a listagem das partes constituintes deste todo babélico. Uma das fontes iniciais deste mosaico de partes que não se encaixam é a instabilidade dos termos. Tomando a palavra “estruturalismo” como exemplaridade, 2
(CULLER 1997)
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Culler examina como cada uso diverso do termo leva a resultados que mantêm e reforçam a ambiguidade, e assim a insegurança e a estupefação daqueles que fazem da teoria literária o seu foco de
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constituir em exemplaridade da reorientação crítica que não se subordina a buscar o sentido de um texto. Porém se o New Criticism, Criticism, a vertente mais comumente identificada como a sua opositora, não
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estudos. Tomemos aqui um exemplo radical daquilo para o que o autor aponta: Le même et l’autre , de Vincent Descombes, um vigoroso relato da
filosofia francesa entre 1933 e 1978, explora meticulosamente as distinções, até fazer de Michel Serres o único estruturalista verdadeiro. Para outros comentadores, o estruturalismo inclui não só o recente pensamento francês, mas toda a crítica de inclinação teórica: William Phillips, em uma discussão da crítica contemporânea organizada para a publicação na Partisan Review, designa pelo termo estruturalismo a panóplia dos recentes escritos críticos e teóricos que se recusam a aderir ao tradicional projeto de elucidar a mensagem de um autor e avaliar seu êxito. 3
Nesse caso, todas as críticas de orientação teórica recebem o selo de teoria ou crítica estruturalista. O estruturalismo é aquele campo do saber que usa conceitos de outras disciplinas, com o objetivo de “dominar” a literatura, por “renunciar à tentativa de descobrir o verdadeiro sentido de uma obra e por considerar todas as interpretações igualmente válidas”. O estruturalismo sofre então as acusações de, primeiro, usar conceitos de outras disciplinas — linguística, filosofia, psicanálise, marxismo — para colonizar a literatura; em seguida de, mediante o estabelecimento de uma orientação teórica, negligenciar a busca do verdadeiro sentido das obras. O estruturalismo ora é acusado de formalismo, ora de empreendedor de uma leitura tendenciosa e apropriadora dos textos, vindo a se 3
(CULLER 1982:18)
pode ser caracterizado como “não teórico” teórico”,, pelos exemplos que nos são deixados por R ené Wellek e Austin W Warren, arren, é o desenvolvimento e o desdobramento das categorias teóricas do estruturalismo aquilo que ameaça o programa tradicional de elucidar o sentido de um objeto estético. Enfim, aqui o que nos parece é que o autor se deixa capturar pelo sem sentido e pela controvérsia mesma do fenômeno que examina, em que é impossível distinguir causas de efeitos, produzindo argumentos que se dobram sobre si mesmos e que não conseguem libertar-se do círculo vicioso ao qual a tentativa de lhes dar combate — ou seja, a tentativa de combater a orientação crítica e teórica cuja ênfase é posta na busca e na descoberta do verdadeiro sentido dos textos — os induzia. Mas é justo nessa falha argumentativa, ou nesse mover-se repetitivamente dentro de um circuito fechado e paradoxal, que podemos identificar a contribuição mais significativa de Jonathan Culler. Revelando-se na diferença criada no movimento de repetição do argumento — ou seja, de uma reflexão continuada, de um pensar sustentado do mesmo pensamento até atingir becos sem saída e configurações paradoxais — chega até nós em linguagem clara a formulação, livre de ambiguidade, a enunciação de um domínio ainda não nomeado, em que o pensamento articula textos de campos distintos, não diretamente ligados à literatura, não nomeados, mas geralmente chamados de “teoria”, numa estranha, porém compreensível, semelhança ao gesto romântico ou primeiro romântico de chamar a reflexividade de “teoria”. “teoria”. Culler denomina-o de “novo gênero”, gênero”, o que nos leva a refletir sobre quantas pontas soltas s oltas da teoria produzida ao longo de alguns séculos — a dos Primeiros
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Românticos, eu lembraria — vêm sendo abandonadas ao longo do caminho. Vejamos, então, que as linhas mestras, os elementos constituintes do que seria essa “teoria” “teoria” recém-fundada, já estão contidos, na teoria romântica, no conceito romântico de “conexões” “conexões”,, de “reflexividade”, de “meio de reflexão”, este se referindo ao conjunto de forças interativas que agem na ambiência em que se produz a
um julgamento estético de obras literárias, nem à história, nem à filosofia ou epistemologia, mas a todas, enredadas num mesmo gênero, que seria necessário contrastar à noção de gênero introduzida pelo romantismo, a fim de estabelecer ou não os nexos. De todo modo, é importante enfatizar que esta nova tendência da crítica, também chamada de “teoria”, resiste à noção de sistema,
arte e a literatura, e no próprio entendimento da “crítica “crítica””, não como algo situado fora das obras, mas no interior delas mesmas, de onde se expande, se desdobra e de onde completa o seu significado. Eis o que diz Jonathan Culler:
como resistira o romantismo, mesmo que nela não se manifeste o valor do aforismo e do fragmento. fragme nto. O novo gênero, como Culler explica, é heterogêneo, com cada uma de suas produções articulada a diversificados discursos: uma linha específica da filosofia alemã, como a de Gadamer, a sociologia empírica de Ervin Goffman, Lacan e a psicanálise, todos enquadrados por matrizes distintas daquelas oriundas da matriz disciplinar, extrapolando fronteiras, reescrevendo achados, redesenhando “conexões”:
Quaisquer que sejam seus efeitos sobre a interpretação, os trabalhos de teoria literária estão íntima e vitalmente relacionados a outros textos [...]. Esse domínio não é a teoria literária, uma vez
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que muitos dos seus mais interessantes trabalhos não se dirigem explicitamente à literatura. Não é “filosofia”, no sentido comum do
Os trabalhos a que aludimos como “teoria” “teoria” são aqueles que tive-
termo, uma vez que inclui Saussure, Marx, Freud, Erving Goffman
ram o poder de tornar estranho o familiar e de fazer os leitores
e Jacques Lacan, assim como Hegel, Nietzsche e Hans-Georg
perceberem seus próprios pensamentos, comportamentos e ins-
Gadamer. Poderia ser chamado “teoria do texto”, se texto for en-
tituições sob novos ângulos. Embora se baseiem em conhecidas
tendido como “qualquer coisa articulada pela linguagem”, porém a
técnicas de demonstração e argumentação, sua força vem — e
mais conveniente denominação é simplesmente o apelido “teoria”.4
isto é o que os coloca no gênero que estou identificando — não dos métodos aceitos por uma disciplina específica, mas da persu-
E era justamente “teoria” como os românticos denominavam
asiva novidade de suas redescrições.5
os resultados dos reflexivo, seus esforços, do refletirde e filosofar, ca do seu pensar e da formação conexões da no prátimeio de reflexão, mas infelizmente Culler não fará tais articulações. Preferirá, talvez por desconhecimento ou talvez pela difusão incipiente da teoria romântica, recorrer a Richard Rorty, que invocará Macaulay, Carlyle, Emerson e Goethe (este último com acerto), que desenvolvem um tipo de escrita que não se dedica nem a
É como se estivesse em curso uma substituição da filosofia pela crítica e pela teoria literária, uma reivindicação do pensar teórico por tal crítica, justificada pela resposta romântica à problemática estética pós-kantiana e pela associação dos românticos a Fichte, fenômeno que, embora tratado por Culler, não alcança em seu texto as consequências radicais que assume em autores como
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5
(CULLER 1982:15)
(CULLER 1982:15)
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Lacoue-Labarthe e Nancy. Por exemplo, eis como descreve Rorty o novo fenômeno da “teoria” “teoria” ou da “teoria crítica”, como também é denominada, em nossos tempos:
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de teorizar sobre eles: “A abrangência da literatura possibilita que qualquer teoria extraordinária ou coerciva seja levada para a teoria literária” 8.
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Eu acho que na Inglaterra e na América a filosofia já foi substituída pela crítica literária em sua principal função cultural —
Entretanto, o segundo argumento para a substituição do pensar filosófico pelo pensar literário é o de que a literatura expande os limites da inteligibilidade e do entendimento, entendimento, provocando:
como uma fonte de autodescrição da juventude em sua diferença em relação ao passado... Isso, grosso modo , se deve à tendência
Discussões teóricas que absorvem ou abordam as questões mais
kantiana e anti-historicista da filosofia anglo-saxã. A função
gerais da racionalidade, da autorreflexão e da significação. O teó-
cultural de professores de filosofia em países onde Hegel não foi
rico social e político Alvin Gouldner define a racionalidade como
esquecido é inteiramente diferente e mais próxima da posição
a capacidade de tornar problemático o que até então havia sido
dos críticos literários na América. 6
tratado como dado, de trazer à reflexão o que antes tinha sido apenas usado, de transformar recurso em tópico, de examinar cri-
O pragmatismo desconcertante revelado por Rorty e Culler com respeito a esta questão — é preciso dar aos jovens a alternati va de pensar de novo o já pensado, sem o instrumental necessário para fazê-lo, como se estivessem seguindo a máxima poundiana do ““make make it new”— new”— deixa claro que o reconhecimento da vocação teórica e abrangente da literatura não é uma necessidade intrínseca ou interior ao campo da nova “teoria crítica” crítica” de que Culler faz apologia, mas algo que se impõe de fora, por força da necessidade de se legitimar modos de pensar distintos e alternativos vindos das novas gerações, enquanto os românticos a compreendiam como necessidade interna à qual é conduzida pelo imperativo da reflexividade: “E é essa determinação reflexiva da literatura, sentido extraordinário que esta assume e ao qual nos conduzirá o texto de Benjamin, que a constitui como um absoluto literário literário””7. A literatura estende o seu manto sobre amplos e vastos campos dos fenômenos ditos humanos, daí poder reivindicar para si a tarefa 6 7
(RORTY apud CULLER 1982:16) (LABARTHE-LACOUE; (LABARTHE-LACO UE; NANCY; BARNARD; LESTER 1998)
ticamente a vida que levamos. Essa visão da racionalidade a situa na capacidade de pensar sobre nosso pensamento. A racionalidade como reflexividade sobre nossos fundamentos pressupõe uma capacidade de falar sobre nossa fala e sobre os fatores que a fundamentam. A racionalidade é assim situada na metacomunicação. 9
Aqui Culler recorre à questão da reflexividade, suporte da autodeterminação primeiro romântica, assimilando-a à racionalidade, o que não seria adequado ou mesmo inteiramente correto fazer, sem considerar que a reflexividade foi antes pensada pela filosofia e pela literatura como uma exigência para pensar o infinito, ou um pensar infinito, em direção ao qual apontam as obras de arte, a que Culler chamará de mise en abyme, abyme, sem que lhe dedique entretanto pensamento de maior fôlego. Ou seja, a reflexividade, embora contivesse a promessa de um pensar crescentemente abstrato, não foi pensada como racionalismo. 8 9
(CULLER 1982:17) (GOULDNER apud CULLER 1982:18)
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Em seguida, sua argumentação em favor da teoria literária como “teoria tout court ” é, na mais branda hipótese, bastante inusitada e “curiosa”, ao considerar que os teóricos da literatura não são limitados pelo comprometimento disciplinar específico dos que se dedicam a esses campos, sugerindo que um relaxamento do rigor é uma vantagem, porque permite o desafio de hipóteses cristalizadas pela psicologia, antropologia, psicanálise, filosofia, sociologia ou historiografia, fazendo da teoria literária “uma arena de animado debate”. A negligência apontada pelos dois teóricos franceses, Phillipe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, no que diz respeito ao reconhecimento do legado romântico, evidencia-se no fato de que o romantismo chega até nós apenas indiretamente através da tradição inglesa, desde Coleridge, que procedeu a um verdadeiro escrutínio dos primeiros românticos, até Joyce, por um caminho também trilhado por Schopenhauer, assim como por Hegel e Mallarmé (todo o simbolismo também, acrescentamos). Mas sempre que o que é fundamental na teoria romântica não é distorcido, ele passa despercebido, como se o primeiro romantismo fosse “o reprimido” do sistema literário. E, quando emerge, é repetido sem que haja uma compreensão adequada do que está em jogo. A teoria literária torna-se, então, um campo de abrangência ilimitada e de conceitos lassos e na sua flexibilidade rompe todo e qualquer parâmetro. Para que seja minimamente operacional em termos de reflexão teórica é necessário que nela se implante um centro dinâmico, o que Culler realiza ao tomar a desconstrução como foco, uma vez que na “recente teoria” a desconstrução é a principal fonte de energia e inovação. Entretanto, se considerarmos que o “Absoluto Literário” do título de Lacoue-Labarthe e Nancy resulta do entendimento da Literatura como a questão da busca eternamente repetida e recriada do que exatamente é o literário, ou do que é Literatura, podemos
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dizer que a Literatura se distingue justo por essa busca da identidade: “o questionamento do literário se torna, assim, a marca do literário”10. Deixemos, porém, que o próprio autor nos fale desses novos e desbravadores caminhos de cuja abertura ele participa, nos estudos literários dos Estados Unidos e da Inglaterra, de forma tão intensa. É importante lembrar que, depois de graduar-se com distinção em Harvard, em História e Literatura, Culler completou os seus estudos graduados em Oxford, na Inglaterra, com o auxílio de uma bolsa de estudos Rhodes, na área de Línguas Modernas. Foi professor visitante na Universidade de Yale e, desde 1974, ensina na Universidade de Cornell, tendo assumido a cátedra Class o 1916 Proessor o English and Comparative Literature, antes ocupada por M. H. Abrams. Atualmente é Diretor do Departamento de Literatura Comparada desta mesma universidade. Ao final desta entrevista, uma listagem completa das publicações do autor. “O Estado da Crítica: Entrevista com Jonathan Culler” Sueli Cavendish, New Haven, USA, setembro de 2007.
Pergunta: Willia William m Blake, certa vez, afirmou que o
homem que não
cria o seu próprio sistema corre o risco de tornar-se presa de um sistema alheio. Se há verdade nessa afirmação, quero dizer que de modo algum ela se aplica ao seu caso. Colocando Colocando-se -se em um lugar de onde articula diversas correntes de crítica e teoria literária, o senhor desempenha um papel extremamente importan importante te ao expor os pressupostos epistemológicos e as undações filosóficas dessas correntes e ao torná-las disponíveis para muitos. Como avalia sua própria trajetória em teoria e o que vê como o produto mais importante de seu empreendimento na área? 10
(CULLER 1982:182)
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Resposta: Suponho que o produto mais importante, assim
como o efeito mais contundente do meu trabalho em teoria literária tenha sido, e seja ainda, o de familiarizar uma ampla variedade
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Em “eoria Literária: Uma Introdução”, o senhor re gistra que a teoria é um corpo de pensamento cujos limites são extremamente diíceis de precisar. Concebida, como tem sido tamPergunta:
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de leitores — tanto aqueles que se profissionalizaram na especialidade dos Estudos Literários quanto os que se situam fora do domínio dos Estudos Literários — com diversas correntes do pensamento moderno que considero extremamente importantes. Avalio a minha contribuição como sendo a de tornar acessíveis certos tipos de crítica, cr ítica, a de promover certas correntes de pensamento e a de preparar profissionais para a prática da crítica de um modo determinado, a de induzi-los a perseguirem certas linhas de investigação literária, sejam estas rotuladas de estruturalistas ou desconstrucionistas. Certamente as pessoas leem os meus trabalhos com o objetivo de conhecer uma escola de pensamento ou uma determinada prática crítica com as quais têm o interesse de se envolver. A disseminação desse tipo de conhecimento, creio, é a minha maior realização. O senhor considera que ficou aastado de questões polêmicas? Não parece haver registro do seu envolvimento envolvimento nas querelas que são comuns ao campo... Resposta: Não tenho dúvidas de que me vejo como alguém que promove determinados tipos de abordagem e que desencoraja, ao não promovê-los, outros tipos; assim certamente não me vejo como alguém que tenha ficado afastado de questões polêmicas. Além disso, dirigi acirradas críticas à instituição acadêmica, por seu fracasso em constituir uma crítica da religião, juntamente com a crítica ao sexismo e ao racismo, que são os seus alvos mais frequentes. Pergunta:
bém a ficção, como uma “criação de mundos”, a teoria se aproximaria da própria ficção? Nesse caso, a teoria literária poderia ser considerada um gênero entre outros do campo literário, poderia alcançar o estatuto da arte? Resposta: Bem, esta é uma pergunta muito ampla sobre a natureza da teoria literária e dos seus efeitos e a forma como efetivamente nos posicionamos depende da definição do outro termo. Em geral, tenho sido extremamente reticente em afirmar que a teoria literária ou a crítica literária devam buscar para si mesmas o estatuto de arte. Houve de fato, nos anos 80, uma vertente
da crítica que assim o fez. Geoffrey Hartman escreveu sobre a crítica como uma forma de arte — defendia a noção da crítica enquanto criação, como uma forma artística — propugnava a prática da crítica, enfim, como uma forma de autoexpressão. Na verdade, uma das razões pelas quais venho resistindo a aderir a tal identificação é a de que muito frequentemente a tentativa de fazer da crítica uma forma de arte envolve uma concepção de crítica como autoexpressão, como a expressão das idiossincrasias da individualidade do próprio crítico. Parecia-me e parece-me, ainda, que não é aí que se encontra o valor, a despeito da importância das formas criativas na escrita crítica. Entretanto penso, de fato, que a teoria literária, na medida em que é uma criação do espírito humano, uma tentativa de compreender o mundo e especialmente de buscar a significância dos produtos humanos no interior desse mundo, pode certamente ser encarada como análoga à literatura, que é um outro
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empreendimento da mesma natureza; ou seja, a teoria literária é uma tentativa de encontrar o sentido da experiência humana, da invenção humana de variadas espécies. Ficaria, por conseguinte, feliz de poder, num nível bastante abrangente, situá-las uma ao lado da outra. Mas, naturalmente, nesse nível tão amplo como o que aqui discutimos, também a ciência entra no quadro como uma espécie semelhante de empreendimento; com diferentes protocolos e visões distintas do que conta como sendo válido, talvez, mas, ainda assim, muito semelhante. Aquilo a que tenho resistido consistentemente é à ideia de que a teoria literária existe apenas para servir aos interesses da interpretação literária e de que a finalidade única da teoria literária é a de tornar possíveis novas interpretações de obras literárias. Creio no valor da teoria literária em si mesma, como uma tentativa de compreender aspectos essenciais da atividade humana, não apenas no campo da literatura, mas dos diversos usos da linguagem, a habilidade de dar sentido à experiência, enfim. A extensa gama das operações semióticas da experiência humana pode ser vista como o objeto da teoria literária concebida em seu sentido lato. Creio que a teoria é um empreendimento maior, e, quer se decida chamá-lo de científico ou de artístico, depende parcialmente da noção que se cultiva a respeito da ciência. Direi apenas, em acréscimo, que, nos Estados Unidos, a ciência é geralmente concebida como uma atividade empírica que necessita ser testável, ao passo que, na maior parte das línguas europeias, a ciência,, ou wissenschaf, por exemplo, é compreendida como um ciência pensamento sistemático ao invés de um pensamento empírico e é nesse caso muito mais fácil de se conceber uma literaturwissenschaf, uma ciência da literatura, ao passo que, nos Estados
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Unidos, uma “ciência da literatura” parece mais um oximoro, uma combinação de termos contraditórios. Em suma, a proporção em que a teoria literária e a crítica literária se aproximam da condição de ciência depende basicamente da concepção de ciência com a qual estamos operando. Pergunta:
Em “Para Além da Interpretação” (Beyond Interpretation), primeiro capítulo de “Em Busca dos Signos” (Te Pursuit o Signs), o senhor parece qualificar a interpretação como algo que é um obstáculo ao pensamento teórico. Nos Estados Unidos, essa tendência à interpretação de obras literárias, o senhor afirma, é um legado da Nova Crítica. E aponta, como uma razão para o sucesso da desconstrução nos Estados Unidos Unidos,, a sua característica característi ca de poder tornar-se acilmente um método de inter pretação.. O que pensa a respeito desta questão nesse momento? pretação Não seria a alta de uma tradição filosófica nos Estados Unidos, além da tradição do pragmatismo, o ator responsável pela debilidade do pensamento teórico? Resposta: Bem,
essa debilidade é por certo um fator a ser considerado, mas eu estava interessado, por exemplo, em contrastar os destinos do estruturalismo e da desconstrução nos Estados Unidos, onde a desconstrução foi muito mais rapidamente as-
similada e teve uma disseminação bem mais ampla, enquanto o pensamento estruturalista, visto inicialmente como algo novo e instigante, cedo encontrou também uma maior resistência. E com o advento da crítica desconstrucionista de alguns textos estruturalistas, teóricos e críticos mostraram-se muito inclinados a lançar mão da noção de um pós-estruturalismo, como uma forma de ultrapassar o estruturalismo, como uma maneira de não terem
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que se defrontar com as ambições sistemáticas das teorias estruturalistas de várias espécies. Isso me levou a considerar a sedução esmagadora exercida pela interpretação nos estudos literários,
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porque, nos meios acadêmicos americanos, as novidades são sempre premiadas: há um desejo de cunhar novos termos para nomear novos movimentos; as pessoas desejam verem-se a si
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especialmente nos Estados Unidos, como responsável em parte pelos destinos da desconstrução. Há outras tradições filosóficas nos estudos literários que não tiveram tanta aceitação nos Estados Unidos, mas a obra filosófica de Derrida toma a forma de uma leitura de textos filosóficos; não consiste na construção de uma teoria desde as fundações, uma vez que é sempre uma leitura de Platão, uma leitura de Rousseau, uma leitura de Heidegger.
mesmas como participantes de uma vanguarda crítica; como você mencionou mencionou anteriormente, anteriormente, a falta de uma tradição tradição filosófica nativa, especialmente de uma tradição que responda às grandes obras da filosofia continental, pode tornar necessário criar um novo nome para algo como a obra de Derrida.
Pergunta: A
Publicado nos anos 90, “eoria Literária: Uma Introdução” (Literary Teory: a very short introduction) alinha o ormalismo russo, a nova crítica, o estruturalismo, as teorias eministas, eminista s, a enomenologia, enomenologia, entre outros, entre algumas das das escolas teóricas do cenário de então. O que muda neste quadro desde
Resposta: Suponho que se deva parcialmente ao fato de que a for-
aquele momento? O senhor poderia mapear o presente estado dos Estudos Literários nos Estados Unidos, articulando as diversas correntes às suas undações filosóficas?
identificação identificação da Desconstrução com a América, a noção de que a desconstrução é um produto americano, parece ser uma opinião corrente. Gostaria de ouvi-lo sobre essa questão.
tuna do termo tenha sido singularmente produzida na América. Na França, a ideia da desconstrução como um movimento é algo que se origina na América, que retorna da América, no sentido de que é devolvida pelo que aqui se vem produzindo. Há filósofos como Derrida, Jean-Luc Nancy, Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe e Sarah Kaufman, cujo trabalho se desenvolve numa tradição europeia, na esteira de Heidegger, Heidegger, elaborando os seus projetos dentro dos marcos de uma tradição continental. Suas obras vieram a ser identificadas como algo específico a que se vem chamando de desconstrução por causa do sucesso da desconstrução na América, por causa do seu sucesso no domínio dos estudos literários em particular. Esses filósofos começaram a ser chamados, então, de “desconstrucionistas”. La Déconstrution veio Déconstrution veio a existir na França em razão da América. Isso ocorreu provavelmente,
Pergunta:
Resposta: Um
dos principais problemas que identifico na atualidade é que as pessoas que trabalham no campo dos estudos literários nos Estados Unidos têm assumido uma posição defensiva; essas pessoas não se sentem mais como líderes de novos movimentos, nem na crista da onda ou na vanguarda dos altos estudos nas humanidades, de tal forma que profissionais em outros campos não têm mais que se familiarizar com o que eles estão fazendo para também se tornarem atualizados e vanguardistas. Essa posição defensiva envolve certo grau de consolidação do pensamento que tomou várias direções durante os anos 80, por exemplo; é uma consolidação no sentido de que os críticos não se mostram mais tão inclinados a se identificarem com uma
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única escola crítica, ou a serem vistos como seus defensores. Os críticos da atualidade se mostram muito menos inclinados a se denominarem de críticos marxistas, ou como praticantes de uma crítica fenomenológica, de uma crítica mítica, ou mesmo a se chamarem desconstrucionistas. Naturalmente há ainda alguns que se caracterizariam como novos historicistas; e o historicismo, como fenômeno crítico mais amplo, tem conquistado um peso considerável em anos recentes. Como resultado desse ganho de força, tem havido uma diversificação da crítica historicista, de tal forma que não há mais um único novo historicismo, mas muitas abordagens distintas. Há críticos que se interessam particularmente pela cultura material e pela história do livro ou, ainda, pela história das práticas da impressão e da disseminação. Indagam-se a respeito das formas pelas quais os meios materiais de produção podem ser envolvidos na reflexão sobre os textos literários em seus contextos. Há outros interessados na história das ideias em um sentido se ntido foucaultiano, partindo do pressuposto de que a exploração da história, em sua acepção mais ampla de mentalité, mentalité, deve deve ser vista como o empreendimento mais fundamental da crítica. Diria que, se é possível afirmar a existência de um modo dominante de crítica nas escolas de pós-graduação americanas, esse modo seria foucaultiano. Os alunos dos programas de pós-graduação em Cornell tendem a produzir dissertações que analisam uma variedade de obras literárias tomadas como exemplares com relação a alguma mudança cultural profunda, a uma mudança de atitudes com relação a algo, algum conceito ou categoria — alguma mudança no pensamento sobre a sexualidade, alguma transformação na concepção, por exemplo, do que seja o ciúme. Eu identifico esse tipo de crítica como sendo, em termos gerais, historicista, no
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sentido de que todos esses jovens acadêmicos esperam encontrar algum tipo de transformação que as suas interpretações de obras literárias contribuam para rastrear. O foco pode estar em uma única obra, mas pressupõe-se que a realidade fundamental que eles estão investigando não é uma questão acerca de gêneros literários ou de estilo, mas um conjunto de categorias culturais subjacentes. Avalio esse tipo de estudo como uma crítica, no geral, foucaultiana, mesmo que os métodos sejam bastante diferentes: variados tipos de métodos formais podem ser usados, a estilística, a interpretação de figuras, o foco na linguagem, a abordagem de obras literárias através de metodologias que o próprio Foucault certamente não utilizaria. Mas de fato parece que em muitos dos projetos de crítica nos dias atuais o objetivo subjacente é foucaultiano: de uma forma ou de outra é o de traçar ou empreender uma espécie de arqueologia do presente ou uma arqueologia do passado. Suponho que a coisa mais fácil de se identificar na cena crítica atual é o relativo declínio de várias escolas críticas e de vários métodos críticos que anteriormente pareciam bastante diferenciados e que agora parecem mais propensos a se fundirem, a não ser facilmente identificáveis. Assim, a psicanálise, por exemplo, que durante certo tempo foi uma escola crítica cr ítica ou uma modalidade crítica bastante agressiva, na qual os críticos utilizavam um jargão completamente distinto da linguagem geral, ou a crítica feminista, que já foi bastante idiossincrática, vem perdendo seus contornos mais agudos, suas arestas mais afiadas e estão cada vez mais se fundindo às outras, de tal forma que é possível haver uma dissertação na qual o escritor se utiliza de Freud e, entretanto, se envolve numa espécie de tentativa foucaultiana de identificar categorias culturais fundamentais
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como as que citei anteriormente e, mais ainda, tomando essas categorias de empréstimo a Derrida, por exemplo. Estamos diante de uma cena crítica na qual de algumas maneiras é difícil
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culturais em geral. Creio que um desenvolvimento importante em anos recentes tem sido o enfraquecimento desse traço agressivo dos estudos culturais. Com certeza, eles se encontram
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identificar vetores particulares; é muito mais fácil identificar influências e múltiplas espécies de fontes e fundamentações teóricas e filosóficas. Eu não diria exatamente que é uma síntese; não é que tenhamos alcançado uma síntese feliz na qual todos os movimentos críticos do passado tivessem se articulado dentro de uma única corrente, mas, sim, que as divisões entre as nossas tendências críticas atuais, entre as nossas escolas críticas cr íticas modernas, não são mais tão vigorosas e interessantes quanto já foram. Incidentalmente, esse fato tem tornado os departamentos de literatura bem mais harmoniosos; as pessoas não se confrontam mais sobre as maneiras mais adequadas de proceder. E fica
firmemente estabelecidos nos departamentos de literatura. Os estudos culturais são uma abordagem alternativa, mas não uma abordagem que se tenha permitido tornar-se hegemônica. Creio ter havido uma reviravolta, no sentido de que a ênfase tem sido crescentemente deslocada para a importância do envolvimento com a linguagem do texto literário. Percebo também a existência de um retorno crucial ao interesse pela estética, que durante certo tempo, sobretudo nos anos 90, era considerada quase que uma palavra obscena; o “esteticismo” era um pecado do qual se poderia ser acusado. No ano passado, em Cornell, houve um curso de pós-graduação sobre a história da estética, oferecido
também mais difícil conceder entrevistas interessantes sobre o estado da crítica, assim como escrever artigos sobre a crítica, isso é inegável. Naturalmente o que pode estar ocorrendo é que eu, por ser bem mais velho agora, tenha mais dificuldade de identificar novas correntes da crítica que alguém mais jovem fosse capaz de abordar.
por um jovem professor do departamento de alemão, Peter Gilgen, que de repente tornou-se um curso que todos os alunos dos departamentos de literatura queriam frequentar. Esse professor atraiu 40 alunos de pós-graduação para o seu curso, alunos que queriam ler Kant, Hegel e Adorno — a história do pensamento estético moderno tornou-se, surpreendentemente, um assunto de interesse fundamental. A estética deixou de ser algo passível de ser etiquetado como descartável. Creio que tem havido também um considerável retorno do interesse em conceitos como o do Belo, que, durante certo tempo, chegou a ser também um tema expurgado do discurso crítico. Elaine Scarry publicou recentemente um livro chamado “Sobre a Beleza” Beleza”,, por exemplo. Acredito haver em geral uma retomada do interesse sobre questões da estética e sobre as características distintivas da linguagem literária; por conseguinte, a questão em torno da qual os estudos culturais e os estudos literários poderiam
Pergunta: Qual o traço mais
undamental ao opor os estudos culturais e os estudos literários, tomados estes últimos em seu sentido clássico? Em que ponto se tornam eles radicalmente incompatíveis? Houve certamente um momento em que os estudos culturais se mostraram bastante agressivos, um momento em que afirmavam que deveriam ser a rubrica geral sob a qual a literatura deveria ser estudada. E em que afirmavam que o estudo da literatura era simplesmente um caso especial dos estudos Resposta:
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ser considerados incompatíveis vem a ser de fato a questão da linguagem. Deve a linguagem das obras literárias ser vista sintomaticamente, como fazem os estudos culturais, como sintoma de algo mais, de alguma formação social, ou deve de ve ser vista como uma coisa importante em si mesma, por sua engenhosidade, sua eficácia, seus efeitos, devo dizer. Aqui se encontra um di visor de águas. A visão de que tal linguagem deva ser lida em si mesma não é de modo algum majoritária, como mencionei anteriormente quando falava sobre o que considero abordagens muito comuns entre nossos próprios alunos de pós-graduação. Eles demonstram certo nível de desejo de interpretar essas obras como reflexos de uma mudança social fundamental e nesse sentido talvez haja um substrato dos estudos culturais em operação, mesmo nos projetos que focalizam obras literárias e não apenas, por exemplo, o estudo do filme ou da cultura popular. Mas tem havido uma retomada importante das questões que os estudos culturais tendem a pôr de lado. Entre nossos alunos de pós-graduação, por exemplo, os teóricos mais populares no momento são Giorgio Agamben, um filósofo quasi quasi desconstru desconstrucionista, que escreve sobre a forma literária, sobre o nascimento da linguagem literária e sobre a história da literatura italiana em seus primórdios. E Alain Badiou, filósofo francês que escreve aforismos sobre estética. Além de Derrida são esses os filósofos continentais mais populares entre os estudantes de pós-graduação, o que atesta o retorno do interesse em e m questões estéticas. Devo acrescentar que os estudos culturais de fato alcançaram a sua completa legitimidade nos dias atuais; deixaram de ser objeto de contestação; na verdade, asseguraram um lugar respeitável na maior parte dos departamentos de literatura e decerto na maioria dos catálogos das editoras. Evidentemente os estudantes
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não consideram os estudos literários e os estudos culturais como opções mutuamente exclusivas. Não se veem na obrigação de decidir sobre se irão trabalhar com temas dos estudos literários ou dos estudos culturais, embora, como afirmei anteriormente, eles sejam incompatíveis com respeito a certas questões. Cada vez mais, determinadas abordagens dos estudos culturais são aceitas sem discussão, embora o interesse na forma literária e no que foi estigmatizado como alta cultura tenha aumentado. Por conseguinte, os estudos culturais estabeleceram a sua legitimidade, mas não conseguiram eclipsar ou marginalizar o estudo literário de obras literárias, que tem retornado e permanece como um projeto mais importante nos estudos literários neste momento. Pergunta: Mas
qual é o seu ponto de vista pessoal a respeito das contribuições mais importantes dos estudos culturais? Resposta: Bem,
eu tenho uma visão muito pouco ortodoxa dos estudos culturais, que certamente não é compartilhada pelos praticantes americanos dos estudos culturais, na medida em que os concebo essencialmente como um prolongamento, sob um novo nome, dos projetos inacabados do estruturalismo e da semiótica, que, afinal de contas, verdadeiramente se dispuseram a compreender não apenas a literatura, mas a mecânica do significado e o funcionamento f uncionamento das formas culturais de modo geral. Os estudos culturais frequentemente se guiaram pelos mesmos objetivos, enquanto tentavam concomitantemente resistir à abordagem filosófica ou ao interesse na semiótica, enquanto tentavam identificar-se com o popular, ao passo que o estruturalismo nunca se concebeu como algo que tivesse que
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se identificar com as formas culturais populares que tomava por objeto de estudo. Quando Roland Barthes escreveu Mythologie escreveu Mythologiess, ele certamente não se arvorou em defensor das formas popu-
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teorias do desejo cinemático no contexto dos estudos culturais têm que passar por transformações, agora que a expectação dentro de um cinema não é mais a norma. É um tipo de experiência
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lares que estudava, embora estivesse tentando expor a maneira pela qual a burguesia impõe as suas próprias normas culturais como naturais; entretanto, com frequência, os estudos culturais, na esteira da tradição britânica, têm se alinhado com a cultura popular contra a cultura de elite. Na tradição estruturalista e semiótica, essas práticas culturais eram investigadas sem que necessariamente se tentasse promovê-las ou defendê-las. Vejo de fato os estudos culturais como uma disciplina importante, ao dar sequência aos projetos do estruturalismo e da semiótica. É certamente uma abordagem legítima, na medida em que todas as espécies de práticas culturais devem ser estudadas. Em particular, creio que o estudo do filme e do vídeo é um empreendimento importante. importante. Esse estudo parece haver caído no domínio dos estudos culturais e é, portanto, uma manifestação das conquistas dos estudos culturais que deve ser celebrada. De fato, creio, embora não seja de modo algum um especialista no assunto, que a teoria do filme tem estado demasiado fundamentada em antigos modelos. E que necessita ser repensada, agora que a experiência primária do filme deixou de ser a de estarmos sentados num auditório, em meio a uma grande multidão, assistindo às imagens numa tela ampla e distanciada, para tornar-se cada vez mais a de consumirmos o filme em nossa própria tela, em casa, com um vídeo ou um DVD alugado, num tipo bastante diverso de espaço cultural. Muitas das teorias da recepção do filme tomaram as antigas condições de expectação como norma para uma teoria crítica do filme; por conseguinte, alguma reconsideração do olhar cinemático se faz necessária. Creio que as
bem diversa que necessita ser teorizada pelos estudos culturais. Pergunta: O que mudou
no cenário institucional americano desde o advento da desconstrução? Houve uma evolução em direção ao que o próprio Derrida considerava essencial ao projeto desconstrucionista? Por exemplo, as normas e premissas undamentais dos discursos dominantes, a estrutura das instituições instituições acadêmicas e a pesquisa que as acompanha soreram alguma transormação transormação expressiva, expressi va, como Derrida afirmou que elas soreriam, por influência da desconstrução?
Resposta: Há decerto, nos Estados Unidos, tentativas de repensar a instituição, e não apenas nos estudos literários. O exemplo mais impactante talvez seja o livro de Bill Readings intitulado Te University in Ruins (A Universidade em Ruína), Ruína) , mas este foi um título dado pelos editores, depois de sua morte, ao manuscrito que ele vinha chamando de “Te “Te University Beyond Culture” Culture” ( A A Universidade Universidade para Além da Cultura). Cultura). Ele refletia acerca das transformações na universidade e como, especialmente, a mudança daquilo a que chamava de “a universidade da cultura”, que havia sido concebida para produzir sujeitos nacionais, cidadãos culturais que herdariam o patrimônio cultural de uma nação, para o que chamou de “a universidade da excelência”, “ex “excelência” celência” tendo se tornado uma pa lavra vazia para promover o controle burocrático; eles não se importam com o que você ensine, contanto que você o faça com excelência, assim como determinam várias espécies de mensurações — sejam estas
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avaliações dos seus colegas, grau de satisfação dos estudantes, número de diplomas obtidos e assim por diante. O conteúdo da educação universitária deixa de ser importante e cada vez mais o sucesso de um departamento ou de um programa ou mesmo da universidade é avaliado em termos de várias escalas quantitati vas (avaliação dos colegas, reação dos estudantes, contribuições para a instituição, número de publicações e assim por diante). Essa é uma concepção bem distinta de instituição e o livro de Bill Readings é uma tentativa de repensá-la. Naturalmente o próprio Derrida escreveu bastante sobre a instituição e eu tenho alguns artigos sobre o assunto, mas não encontrei nenhuma resposta para as questões que coloco. Pergunta: Mesmo Derrida tendo afirmado
que que “nã “nãoo há um um ora do texto”, as relações entre a literatura e a cultura não são uma questão resolvida. Assim como também não é uma questão resolvida o conhecimento sobre a natureza da ficção e sobre a sua unção na sociedade. Que correntes de pensamento oerecem contribuições mais substanciais ao equacionamento desses problemas?
Produzimos ficções a fim de fazer sentido da experiência. Precisamos ser capazes de imaginar alternativas. A concepção das possibilidades do pensamento utópico naturalmente requer que existam ficções; tanto o pensamento utópico quanto o distópico são sempre acionados pela ficção. Uma das linhas de argumentação de Derrida se encontra em um livro chamado “Demeure: “Demeure: Fiction and estimony ”, ”, (Morada: Ficção e Test Testemunho) emunho) sobre Maurice Blanchot. Nele Derrida argumenta que mesmo formas como o testemunho dependem, em última instância, da ficção; a estrutura da ficção se torna uma espécie Resposta:
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de estrutura geral da qual algo como o testemunho seria um caso particular. Mais uma vez é uma questão de pontos de vista, creio: se a ficção é concebida em oposição a algo mais — então teríamos um tipo de resposta sobre a sua função — ou se é concebida como uma estrutura geral da qual oposições emergem, teríamos algo diverso. Neste último caso, a ficção seria uma categoria tão ampla que abrangeria tudo; isso evitaria que algo se opusesse à ficção. Assim a não ficção seria ser ia apenas um caso especial de uma ficcionalidade geral. E a ficção transforma-se em outro nome para um tipo de espacialização ou temporalização que é a condição do significado em geral. Suponho, por conseguinte, que uma das mais importantes contribuições do trabalho de Derrida tenha sido o de um tipo de reestruturação que se torna mais perceptível para nós em outras áreas: tal como a desconstrução da oposição entre a fala e a escrita, e o argumento de que a fala é um caso especial de uma arquiescrita generalizada, uma archi-écriture archi-écriture.. Argumentos semelhantes podem ser desenvolvidos em outros casos, tais como o que diz respeito à distinção entre o sério e o não sério, o não sério como uma condição ou uma possibilidade para o sério. Penso efetivamente que a obra de Derrida sobre a oposição entre o ficcional e o não ficcional é extremamente importante. Há certamente outras linhas teóricas de investigação que são importantes. Tenho especial interesse nos trabalhos de Walter Benjamin e eodor Adorno. Acredito que são pensadores fundamentais do século XX e que as suas respectivas obras são extremamente importantes para a teoria literária americana, Benjamin mais importante ainda que Adorno, por razões que talvez não me pareçam inteiramente válidas; mas que se deva talvez ao fato de Benjamin ser tão enigmático e escrever ensaios
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curtos, fragmentários, ao passo que há um volume tão grande de Adorno para ler que lidar com ele se torna uma empreitada bem mais difícil. Não obstante, penso que estes são dois teóricos
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toda reflexão nas ciências humanas, então é fundamental que se considere a tradição filosófica que nos precede não como um conjunto de instrumentos a serem aplicados, mas como recursos
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que continuaremos a ler e sobre cuja obra continuaremos a refletir nas décadas vindouras. Pergunta: Quando
lemos ensaios filosóficos ou psicanalíticos — os de Derrida, os de Lacan, os de Deleuze —, ficamos com a impressão de que eles se ajustam bem demais às questões postas pela ficção literária. A ficção vem primeiro, e o pensamento por conceitos se desenvolve sobre a base do que põe a literatura? Certamente há esse ajuste perfeito, como você diz, mas eu também acho — como mencionei anteriormente — que Resposta:
Derrida pratica a filosofia empreendendo leituras de textos filosóficos — que há casos em que a leitura de textos literários pode ser encarada como uma forma de trabalho filosófico. Isso me parece de fato fundamental e eu tento efetivamente convencer os meus alunos a pensarem na leitura de obras literárias como uma modalidade de análise filosófica, ao invés de imaginarem que devem simplesmente abordar a obra literária com um con junto de conceitos e categorias filosóficas que eles, então, aplicam à obra. No modelo sob o qual operávamos anteriormente, o objetivo era visto como sendo o de produzir interpretações literárias: tomávamos os conceitos de empréstimo à psicanálise, ou à filosofia ou a qualquer outro corpo de conhecimento e aplicávamos esses conceitos à obra literária a fim de gerar uma interpretação particular. Mas se deixamos de conceber a interpretação literária como o objetivo dos estudos literários genericamente, e deixamos de concebê-la também como o objetivo de
que nos tornam capazes de também nos envolvermos com questões filosóficas. O que se desdobra da leitura feita por Derrida de obras literárias não é uma nova interpretação de Blanchot, ou daquilo de que Ponge realmente trata, ou qualquer outro resultado similar, mas uma reflexão sobre problemas filosóficos tais como a representação, o problema da assinatura do nome próprio, ou questões da ficção e da representação como em “Demeure Demeure”. ”. Embora pudéssemos pensar a respeito deste livro como uma interpretação da obra de Blanchot, ele, na verdade, reflete muito mais um compromisso com as questões filosóficas; fi losóficas; consequentemente me parece um bom modelo a ser seguido, embora seja, obviamente, uma maneira complexa de proceder. Pergunta: Se
os leitores são “jogados” pelos textos, no sentido de que os textos literários prefiguram todas as possíveis interpretações até o ponto da contradição, no sentido de que os textos sempre retornam ao seu próprio emaranhamento, a tarea da interpretação ou do trabalho filosófico com textos literários não levaria necessariamente necessariamente a aporias e paradoxo paradoxos? s? Os textos não posicionam os leitores numa plataorma oscilante onde eles encenam infinitamente os pontos cegos que os constituem? Há um caminho para ora ora do texto? Resposta: Em um certo sentido não, estamos sempre dentro de um texto. Não há um caminho para fora de um texto; nós simplesmente exploramos vertentes de pensamento facilitadas pelos textos e as exploramos com um certo grau de autoconsciência quanto às maneiras pelas quais podemos nos enredar nos
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processos do texto. Creio que a sua pergunta é muito boa, na medida em que enfatiza a complexidade da relação entre o leitor e o texto, que muito frequentemente tendemos a simplificar; por exemplo, pensamos no texto como um objeto e pensamos em nós mesmos como sujeitos, projetando nossa subjetividade no texto, enquanto que qualquer leitura digna desse nome é aquela na qual o texto executa certas operações sobre o leitor a fim de torná-lo capaz de fazer coisas que não conseguiria fazer antes de seu envolvimento com aquele texto particular. Esperamos que boas interpretações sejam produzidas à medida que são modificadas pela performance do texto, mas os alunos podem também estar tão absorvidos com eles mesmos que não observem aquilo que o texto lhes pede para fazer. Sou favorável a induzir os alunos a realizarem operações com os textos que envolvam um certo grau de sistematicidade, em parte, como uma estratégia de estranhamento. Se pedirmos que escrevam o que eles acham sobre o tema do texto, começarão com as ideias que lhes vem à cabeça. Mas se pedirmos que escrevam alguma coisa sobre uma única sentença de um texto breve, sem que lhes seja permitido ignorar quaisquer dos termos, devendo registrar tudo em minúcias, certamente podem ser forçados a sair de seu próprio quadro de referência e impelidos a observar elementos específicos do texto. Na verdade, uma das virtudes da abordagem de Barthes em S/Z é o fato de ele se haver obrigado a comentar cada frase, a tornar explícito o que geralmente permanece inarticulado — o que lhe permitiu alcançar novas reflexões e todo tipo de releituras. Tive recentemente um aluno que trabalhava com um texto de Derrida chamado “ Aphori Aphorism sm Counter ime” ime”, “ Aphori “ Aphorisme sme Contretem Contretemps ps,” ,” que é sobre sobre Romeu e Julieta e Julieta e consiste em trinta e nove seções, trinta e nove aforismos de um tipo ou de outro. Esse aluno se propôs a tentar
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produzir uma espécie de mapa do texto, explorando o tema de cada aforismo e a maneira como se relacionavam uns aos outros. Era preciso que ele demonstrasse algum tipo de organização — não necessitava provar que estava bem organizado —, mas, ao menos, ele tinha que mapear sistematicamente a organização do texto. Isso pode parecer um exercício mecânico, mas foi de fato bastante produtivo, porque não lhe era permitido simplesmente focalizar o que quer que lhe parecesse mais importante, como por exemplo, uma visão geral do tema do texto; ele tinha que descobrir como esse texto de fato operava. Esse tipo de estratégia, que requer uma espécie de close reading, dá reading, dá ao texto a oportunidade de nos fazer descobrir como responder a ele. Creio que esta é uma exigência para uma leitura válida, ou para uma leitura interessante de um texto, colocando-nos na posição de sentir ou de perceber sua estranheza e de permitir que essa estranheza opere sobre nós. Pergunta: Derrida
não az a desconstrução voltar-se contra ele mesmo quando repete os erros que acusa de cometer Lacan na análise de A Carta Roubada, de Edgar Allan Poe? Não seria essa repetição um eeito mesmo da Carta, tencionado por Poe? Então, em que medida, a própria desconstrução seria um eeito dos textos literários? Esta é uma boa pergunta, difícil de responder. Naturalmente Barbara Johnson escreve muito bem sobre essa relação em sua análise da leitura de Derrida da leitura lacaniana de Poe (“Te (“Te Frame o Reerence”). Reerence ”). Pode-se observar de que forma discordâncias interpretativas que ocorrem em torno de um texto são prefiguradas no próprio texto de uma forma ou de outra, são de alguma maneira tematizadas no texto. Essa questão Resposta:
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talvez envolva uma leitura um tanto quanto alegórica do próprio texto e de suas interpretações. Mas tudo isso não significa que, ao ler um texto, alguém possa visualizar antecipadamente qual
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vocês perseguem os seus próprios interesses e estabelecem os seus próprios compromissos. Eu não posso avaliar a proporção em que a herança portuguesa é crucial para o Brasil, em que me-
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será a história das interpretações subsequentes; somente quando já se tem essa hhistória, istória, pode-se com frequência retornar a ela e observar como as leituras tradicionais já haviam sido encenadas, já haviam sido prefiguradas no jogo do texto. Certamente a leitura de Bárbara Johnson de Derrida e Lacan é muito engenhosa. Acho que, em muitos casos, ela interpreta Lacan como se ele já afirmasse o que ela própria absorveu de Derrida, encontrando, assim, no texto de Lacan, implicações que o próprio Lacan provavelmente rejeitaria, e que Barbara Johnson não seria capaz de alcançar sem Derrida. Mas dado o encontro entre Derrida e Lacan, da forma como Derrida o encena, é certamente tentador
dida a linguagem transporta a bagagem cultural da tradição de pensamento europeu. Pergunto-me qual deve ser a experiência de ter uma relação diferente com a tradição europeia e se o fato de vocês falarem português num continente em que o espanhol é predominante tem como consequência uma relação especial com a tradição europeia. Creio que devo mencionar, à guisa de conclusão, que tenho um livro sendo publicado no outono (2006) pela Stanord University Press chamado Press chamado “O Literário em Teoria”. É uma coleção de ensaios que venho publicando em anos recentes e que aborda justamente justame nte as qu questões estões de que vimos tratando tratando nest nestaa ent entrevista: revista: em
dar um passo a mais e reverter a relação entre eles. E por certo outros leitores que vêm em seguida a Barbara Johnson podem tentar demonstrar como os seus movimentos já haviam sido antecipados nos textos de Poe ou de Derrida. Derr ida.
que medida, a noção do literário e da literatura — que durante um tempo foi contestada e esteve sob o ataque dos Estudos Culturais — agora retorna? Quando me iniciei nesta profissão, meu interesse maior era o estruturalismo e, em certa medida, o formalismo russo, onde a questão do literário era vista como crucial ao empreendimento teórico, a questão da natureza da “literariedade” era central tanto ao formalismo quanto ao estruturalismo. Tenho interesse em indagar sobre a evolução desse processo e sobre qual tem sido o papel do literário na teoria em anos recentes. A minha suposição é a de que, depois de um período em que foi contestado (pelos estudos culturais e pelos vários historicismos), esse papel tem sido agora nitidamente revigorado e continuará sendo extremamente importante. Parece-me, de fato, que, cada vez mais, as tendências filosóficas de interesse para aqueles que trabalham nas humanidades de um modo geral são aquelas que levaram a sério a noção do literário, sejam as de Derrida, as de Giorgio Agamben ou
Pergunta: Deixo aqui o espaço para quaisquer observações de sua própria escolha... escolha... Resposta: Foi um prazer discutir com você
essas questões. Penso que as perspectivas sobre esses ess es desenvolvimentos teóricos europeus e americanos, que adquirimos dos povos de outros países, são, com frequência, extremamente interessantes, porque são independentes dos investimentos particulares desses países, onde as leituras e as interpretações dos textos da tradição podem ser levadas a cabo através de um olhar distinto, com certa distância, de uma perspectiva diversa. Naturalmente, no seu país,
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de Alain Badiou. Mesmo que o estado atual dos estudos literários nos Estados Unidos não pareça muito promissor — mesmo que os estudos literários pareçam estar numa posição defensiva —, a mim me parece ainda que a fortuna do literário nas humanidades é bastante auspiciosa e destinada a permanecer muito importante.
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Multitransintercultura: literatura, teoria pós-colonial e ecocrítica R W Universidade Federal de Pernambuco
[...] theoryand is now written [...] romglobal a place o hybridity betweenness in our Borderlands composed o historically connected postcolonial spaces David Saldivar (1995) Liberal Multiculturalism Multiculturalism is determined by the demands o contemporary transnational transnational capitalism Gayatri Ch. Spivak (1999) Na narrativa reencenada do pós-colonial, a colonização assume o lugar e a importância de um amplo evento de ruptura histórico-mundial Stuart Hall (2003) Cultural globality is figured in the in-between spaces o double rames Homi Bhabha (1994) A cultura e suas ormas estéticas estéticas derivam da experiência histórica [...] o vínculo entre cultura e política imperial é assombrosamente direto Edward Said (1995) A mistake was made somewhere [...] I’m conused Ralph Ellison (1952)
Desde os anos 80 do século passado, a virada culturalista na área da teoria literária está suplementando (ao incorporar) a virada linguística das décadas anteriores. A desconstrução das grandes narrativas em petit em petitss recit recitss que se iniciou na primeira fase do pós-modernismo e continua sendo praticada desde então nas subsequentes fases e tipos pós-modernos está baseada, entre outros, numa perspectiva etnológica que significa para a teoria literária uma abertura para culturas alheias, diversas formas de “outridade” e consequentemente, para uma autorreflexão crítica. Neste processo, o enfoque da crítica cultural é as posições etnocêntricas responsáveis pela marginalização/subalternização de sujeitos, grupos, comunidades, tribos, regiões, nações e seus discursos e atitudes. Trata-se de revelar e problematizar estas posições por meio de uma análise das representações das diferenças culturais no nível temático e discursivo dos textos narrativos. Cultura, neste sentido, não abrange somente a esfera educacional, mas todo o complexo processo social com suas diversas dimensões, a maneira de viver e se relacionar e as diversas percepções mediante as quais os indivíduos concebem e constroem seu Dasein Dasein.. Com base na semiótica, os estudos culturais desenvolveram a concepção da cultura como texto e iniciaram a virada antropológica da teoria literária: cultura é uma prática/rede de significação 1 na qual as pessoas 1
(GEERTZ 1973)
610
Roland Walter
constantemente traduzem os seus atos em signos. Textos literários são especialmente elucidativos para este tipo de análise, porque demonstram como os símbolos são entrelaçados com ações, situações
Capítulo 16 . Multitransintercultura
a episteme episteme cultural. cultural. Este mundo de referências (re)constitui a identidade individual e coletiva num processo histórico. Neste sentido, a literatura recria o etos e a cosmovisão cultural e revela o que a
611
e atitudes caracterizadas por conflitos entre diferentes interesses. interesses. As refrações literárias fornecem um valioso contraponto subjetivo às empíricas configurações culturais dos cientistas sociais. Enquanto as ciências sociais examinam os fenômenos contempo contemporâneos râneos num nível abstrato,, os escritores e os seus personagens, como agentes e sujeitos abstrato de transformação, introduzem a emoção e o sentimento nos dados científicos. Criando imagens de sentimento mediante mediante a revelação de experiências íntimas, a arte literária traduz o sentimento para o pensamento,, transmitindo neste processo a profundidade da experiência samento humana, do ser-estar no mundo de mundo de mulheres e homens. A escrita, com seus tropos, alegorias e seu discurso retórico, delimita o espaço
historiografia oficial via ideologia distorce e/ou esconde. Esta mesma imprevisibilidade permite-nos a exploração dos sistemas de crença de uma cultura e da sua tradução para o agir humano. A natureza (in)direta da escrita, liberando a significação da prisão redutiva da ordem e abrindo suas possibilidades intrínsecas, move entre o dito e o não dito, articulando as ambivalências da episteme episteme cultural cultural e seu efeito no processo da produção da subjetividade e identidade individual e coletiva. Além disso, a ficção é considerada uma epistemologia epistemologia experimental que permite ao leitor passar limites existentes, explorar outros mundos e imaginar outras identidades. Neste sentido, a literatura por meio da imaginação traduz o saber da/para a vida num
social como terreno no qual os seres humanos atuam. A realidade é constantemente recriada por um processo cíclico de articulação, desarticulação e rearticulação. Esta recriação literária representa processos de simbolização cultural baseados na história e no agir humano por meio da narrativização de práticas fundamentais que tornam os aspectos da vida diária (tradição, sistemas de crença, imagens de identidade/alteridade, etos e cosmovisão, etc.) disponíveis e compreensíveis. Em outras palavras, a força da literatura reside na sua retórica e metaforicidade. É mediante a indecisão dos tropos poéticos e discursos retóricos — a ambiguidade perturbadora, transgressiva e transformativa do processo significante — que somos capazes de explorar a memória e, neste processo, preencher a lacuna entre a realidade (imaginada) e o real (recalcado). O poder da literatura reside, entre outros, no entrelaçamento de palavra e memória: é a palavra, mediante a memória, que recupera um mundo de referências, tornando o imaginário capaz de idear e compreender
processo histórico e simultaneamente, como diriam Wolfgang Iser (1978) e Gaston Bachelard (1969), provoca a ideação do leitor, a concepção de novas possibilidades e alternativas às experiências vividas. Neste processo, através do que Wolfgang Iser (1974) chama de “leitor implícito” do texto, a narrativa instala um afeto que tem um efeito no leitor. Em outras palavras, o efeito ético da literatura reside na sua capacidade de provocar ideações de (outras) identidades e (outros) mundos; ideações estas que abrem o pensamento racional para seus horizontes emocionais, constituindo encruzilhadas imaginativas onde é possível avaliar as nossas escolhas. É assim que a semiótica cultural mediante a análise da diferença cultural entre os grupos sociais multiétnicos e suas formas de expressão e vivência ganhou sua maior força sociopolítica, teórico-literária e, por meio dos estudos pós-coloniais, histórica. O novo paradigma de conceber e problematizar esta diferença cultural é profundamente ligado com seu processo histórico e,
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Capítulo 16 . Multitransintercultura
como problematizarei em seguida, o que Anibal Quijano chama de colonialidad del poder . Para Walter Mignolo (2003), a literatura e a crítica pós-colonial se distinguem por basicamente três características principais: a) um discurso crítico que revela a colonialidad del poder que rege o moderno sistema mundial; b) um discurso que problematiza a relação entre lugares/histórias locais e fluxos globais
peruano mapeia, em linhas gerais, alguns dos principais assuntos que caracterizam os dois tipos de violência que, como efeito da colonialidade do poder, imbuem a paisagem da pós-colonialidade contemporânea: a violência física e a violência epistêmica. Segundo Quijano, “hace “hace alta estudiar y establecer de modo sistemático [...] las implicaciones implicacio nes de la colonialidad colonialidad del poder en el mundo mundo””3.
em termos de episteme episteme cultural e produção de saber; c) formas e práticas subalternas de agir que desconstroem o paradigma da razão moderna. Anibal Quijano (1997), cujas ideias constituem uma das fontes principais dos argumentos de Mignolo, problematiza o que ele chama de colonialidad del poder como império político-econômico e sociocultural do Ocidente sobre o resto do mundo. Em contraposição a Michael Hardt e Antonio Negri 2, para os quais o império é constituído por redes elusivas, “flexíveis e híbridas” de “produção de capital”, para Quijano a colonialidade do poder abrange: a) o conflito de epistemes epistemes culturais culturais e estruturas de poder dentro de um processo histórico; b) a experiência (e noção) da diferença cultural como condição de subalternidade que oscila entre alienação e potencialização; c) a categorização hierárquica das regiões e populações mundiais pela hegemonia ocidental; d) o papel da mídia, ideologia, sistema educacional e do Estado no estabelecimento desta hierarquia dentro de cada nação e entre nações; e) a (re)invenção/(re)apropriação de lugares e espaços no mapeamento
Se, segundo Said (1978, 1994), Bhabha (1994), Young (1995), Lionnet (1995) e Shohat (2000), o pós-colonialismo como crítica da História/Civilização Europeia, do Ocidente, deve examinar a influência do passado colonial no presente pós-/neocolonial e se, segundo Spivak, “um dos aspectos mais fascinantes da pós-colonialidade numa ex-colônia é o palimpsesto da continuidade pré-colonial e pós-colonial fraturada pela imposição imperfeita da episteme episteme ilu4 minista” , então o entendimento dos efeitos do passado no presente se produz não somente por meio de um enfoque analítico sobre a relação colonizador-colonizado (ou qualquer outro tipo de relação dominador-dominado), mas também por um exame das relações intragrupais em termos de assimilação, internalização de valores, mímica, cooptação e resistência na interface de identidade e alteridade. Em seguida, gostaria de elaborar a ambiguidade e ambivalência desta interface por meio de uma suplementação (no sentido derridiano) do termo “multicultura” por “transcultural”. O discurso multicultural (neo)liberal utiliza a pluralidade de
(trans)nacional; f) os fluxos erráticos de capital e de seres humanos entre os mercados ‘livres’ que compõem o sistema capitalista nas diversas fases de sua globalização. O enfoque analítico de Quijano é as relações de poder e suas práticas e formas de controle de diversos âmbitos da existência social, como o trabalho, a natureza, as matérias-primas, o sexo, o saber e a autoridade. Neste processo, o crítico
identidades das diversas culturas mundiais para justapô-las num mosaico intercultural onde todos os elementos teriam os mesmos direitos e deveres. A nação, assim o argumento, é uma construção cuja harmonia é constituída por suas diferenças. Segundo Patrick Imbert, por exemplo, o que caracteriza a particularidade da
2
3 4
(HARDT; NEGRI 2003:171)
613
(QUIJANO 1997:374) (SPIVAK 1999:239-240). 1999:239-240). As As traduções neste ensaio ensaio são de de minha autoria.
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Capítulo 16 . Multitransintercultura
sociedade canadense é o modelo cultural do “desacordo consensual”, sua “capacidade de misturar as as diferenças culturais nas relações sociais do dia a dia”. Por meio desta fusão de diferenças, o país 5
diferença, mas seu oposto. A diferença opera como formação identitária ao conferir identidade a aquilo que (/quem) é diferenciado; diversidade promove divergência ao desconstruir identidades idên-
615
sabe como compartilhar seu conhecimento com os outros . Deste modo, o Canadá é capaz de “prosperar com as contradições não resolvidas [...] de ligar [...] tendências opostas numa tensão eficiente que permite uma maneira original de promover expansão cultural, social e econômica”6. Em outra ocasião, demonstrei, por meio da análise de diversos textos narrativos de escritores afro-canadenses, que é exatamente esta união em diferença com o outro que os narradores/personagens não encontram já que a sociedade canadense em sua maioria aceita somente a diferença assimilável 7. Será que o que Imbert chama de desacordo consensual ou ou dissensão convergent convergentee faz justiça à vivência multiétnica do Canadá? Não é que o racismo,
ticas e, neste processo, revela pluralidade identitária tanto interna quanto externa. O discurso multicultural (neo)liberal proclama uma retórica de diversidade como relação, mas significa diferença como separação e/ou assimilação e assim reforça o mito da união nacional. A virada culturalista em discursos pedagógicos e teóricos nos sensibiliza a respeito da natureza construída dos mitos nacionais e da performatividade das identidades culturais individuais e coletivas9. O movimento gerado por este insight parte das essências ontológicas em direção ao funcionamento epistêmico dos diversos processos: de como são as coisas e culturas para que funcionam e
sexismo e outras formas de violência que impedem a reconstrução identitária minam este consenso? Se, segundo 8 “a canadanidade verdadeira é inacessível, algo que fica além de adquirir cultura, pagar impostos e obter cidadania”, então o que existe é uma “ansiedade de pertencer a um lugar de maneira hifenizada”, caracterizada por uma diferença cultural (rotas) ancorada em raízes estáveis. Para que o pertencimento como Dasein Dasein transnacional/transcultural dentre e entre lugares/culturas/epistemes lugares/culturas/epistemes torne-se torne-se uma realidade vivida, é necessário transformar a diferença-separação em diversidade-relação: uma ca-na-da-ni-da-de com espaços hifenizados suficientes para facilitar a todos dançar de rosto colado sem abdicar de suas diferenças. Diferença, portanto, significa seres/espécies não assimiláveis e categorias incomensuráveis; diversidade não é sinônimo de
com que objetivos baseados em que interesses em termos de lugares de saber e regimes de verdade; uma virada, portanto, de um discurso de consenso para uma retórica do culturalmente não consensual, dos fluxos, espaços fronteiriços e lugares intersticiais onde os elementos culturais se encontram e hibridizam. Esta virada aconteceu e continua acontecendo dentro do contexto, segundo James Clifford, de uma “nova ordem mundial de mobilidade, de histórias sem raízes”10. Para Arjun Appadurai11, esta nova ordem é constituída por crescentes fluxos de objetos, ideias, ideologias, mensagens, imagens e produtos — fluxos estes constituindo e constituídos por uma complexa rede de relações disjuntivas, rede essa que ele vê como sendo composta de cinco panoramas, a saber: etnopanorama (“ethnoscape (“ ethnoscape”), ”), tecnopanorama
5 6 7 8
9
(IMBERT 2005:36) (IMBERT 2005:10 e 7) (WALTER 2009) (KUMSA 2005:186 e 196)
10 11
No sentido da crítica feminista Judith Judith Butler (1990), que chama de de “performati“performatividade” a forma como os discursos produzem o que nomeiam. (CLIFFORD 1997:1) (APPADURAI 1996:33-36 e 43)
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Capítulo 16 . Multitransintercultura
(“technoscape (“technoscape”), ”), ideopanorama (“ideoscape (“ideoscape”), ”), finançopanorama (“ finanscape finanscape”) ”) e midiapanorama (“mediascape (“mediascape”). ”). Este estado transnacional do mundo, caracterizado por migração, estadias efêmeras, exílio e diáspora — comunidades imaginadas além de origens comuns, tradições locais e fronteiras geográficas e linguísticas —, cria novas “formas culturais moldadas de maneira fractal”, que minam
entre fronteiras permeáveis. Neste sentido, Néstor García Canclini (1990) escreve sobre “culturas híbridas”, Édouard Glissant (1992; 1997; 2005; 2006; 2009) sobre “créolisation “ créolisation”” e “ poétique de la relatio relationn”, Wilson Harris (1983) sobre “cross-culturality “ cross-culturality ”, ”, Ulf Hannerz (1996) sobre “transnational “transnational connections”, connections”, François Laplatine e Alexis Nouss (2001) como também Rodriguez (2003) sobre “amalgamation “amalgamation””12.
noções fixas da nação e do sujeito autossuficiente. As recentes migrações, portanto, criam novos fluxos desterritorializantes, novas diásporas que deslocam fronteiras fixas e abrem novos espaços fronteiriços entre pessoas, povos, culturas e civilizações. O conceito da diáspora, portanto, oferece uma crítica dos discursos de origens fixas enquanto leva em conta diversas formas de mobilidade transnacional. Esta mobilidade entre lugares e culturas, escolhida ou imposta, está imbuída de ambiguidade e ambivalência epistêmica no sentido de que a passagem entre a origem e a chegada parece, muitas vezes, não ter fim: entre a raiz da origem fragmentada e a raiz da chegada desejada — e muitas vezes diferida — surge a rota enquanto estado contínuo. Mudanças nas práticas materiais, nos meios de comunicação, bem como um aumento significativo de migração e outras formas de mobilidade entre regiões, nações, continentes e culturas provocam transformações na consciência e no imaginário de pessoas e povos no mundo inteiro. Em consequência disto, o discurso crítico
Acho, porém, que podemos melhor problematizar estas formas e práticas fractais (sua natureza ambígua e multidimensional, seu cronotopo heterotópico) mediante a análise da dinâmica transcultural em lugares caracterizados por múltiplos e complexos processos de troca. Enquanto trans da natureza transitória da identidade cultural, o processo de “transculturação” designa a tradução dinâmica das confluências culturais que atravessa e constitui a encruzilhada da formação identitária entre lugares e epistemes epistemes diferentes. diferentes. Assim, este processo transcultural traduz a lógica cultural que informa e estrutura os cruzamentos culturais. Em seguida, definirei o que entendo por transculturação. Ao contrário de Antonio Cornejo Polar13, que sugere o uso do termo “heterogeneidade” como alternativa ao conceito de “transculturação”, porque o processo transcultural abrange formas e práticas socioculturais cuja heterogeneidade impede qualquer tipo de síntese ou simbiose, e em contraposição a Alberto Moreiras 14, que considera a síntese conciliadora subjacente aos processos
— inspirado pela forma “nômade” de pensar que Gilles Deleuze e Félix Guattari (1972) propuseram para substituir raízes por rizomas — redescobriu a lógica diferencial das zonas de contato, rizomas, espaços fronteiriços, limen limen,, entrelugar, sincretismo, hibridismo, mestiçagem, créolisation créolisation e e transculturação, entre outros, para explicar os fluxos conjuntivos e disjuntivos das transferências culturais e seus resultados: novas formas e práticas culturais fractais dentre e
transculturais como uma prática ideológica em cumplicidade com a metafísica ocidental, argumento que deveríamos manter o conceito de transculturação como paradigma crítico para a exploração 12
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Esta lista é somente somente uma pequena pequena e arbitrária seleção seleção de autores que que escreveram sobre o assunto. Para uma problematização de alguns destes conceitos e sua aplicação na crítica literária, ver ZIPFEL (2008). (POLAR 2000:194) (MOREIRAS 2001:234)
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dos espaços intersticiais ambivalentes que resultam do contato intercultural. Cunhado por Fernando Ortiz nos anos 40 do século XX e reinterpretado por, entre outros, Nancy Morejón (1982), Angel Rama
Capítulo 16 . Multitransintercultura
Este processo é caracterizado por intercâmbios culturais nos quais “[n]ingún elemento se sobrepone a otro”, otro”, mas “uno “uno se torna otro hasta convertirse en un tercero”. tercero”. O resultado, como no caso de Cuba, é “una nación homogénea en su heterogeneidad”. heterogeneidad”. Este uso de trans-
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terpretado por, entre outros, Nancy Morejón (1982), Angel Rama (1982) e Antonio Benítez-Rojo (1996), o termo transculturação marca a relação intra/intercultural entre nações, regiões, raças, etnicidades, gêneros, classes e linguagens, na interface ambígua de tempos pré-modernos, modernos e pós-modernos. Ortiz descreve o processo transcultural da seguinte forma: Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diversas fases do processo de transição de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em adquirir uma cultura diferente, como indica o termo anglo-americano aculturação, mas o processo implica também necessariamente necessariamente a perda ou o desarraigamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de uma parcial desculturação, e, ademais, significa a consequente criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados de neoculturação. [...] No conjunto, o processo é uma transculturaçãoo e este vocábulo compreende todas as fases da sua transculturaçã parábola.15
Segundo Nancy Morejón, seguindo Ortiz, é impossível pensar e compreender as nações caribenhas sem tomar em consideração o processo que as criou, a saber: a transculturação. Para Morejón 16, que como Ortiz analisa a transculturação de uma perspectiva cubana, a transculturação significa uma mistura entre dois ou mais elementos conduzindo à formação de novas configurações culturais. 15 16
(ORTIZ 1947:102-103) (MOREJÓN 1982:19-20)
una nación homogénea en su heterogeneidad . Este uso de trans culturação como uma confluência de etnicidades heterogêneas, que implica a igualdade igualdade das das partes que constituem, de maneira tensiva, a nova e homogênea nação cubana — um choque violento que resulta num casamento feliz —, sugere uma solução antes sintética do que simbiótica da estrutura de poder colonial/étnico-racial hierárquica subjacente aos intercâmbios transculturais. Gostaria de destacar dois pontos do argumento morejoniano que são de importância para a minha discussão. Primeiro, acho que ela faz uma leitura errada do contraponto ortiziano ortiziano,, interpretando-o como uma relação igual entre entre diferentes elementos. O contraponto em Ortiz entre tabaco e açúcar e ritmos europeus e africanos descreve uma relação tensiva, na qual a participação das diferentes partes é de igual importância, mas na qual tanto o trabalho manual e mecânico, o pequeno cultivo das famílias e o agrobusiness de plantação, quanto diferentes instrumentos e ritmos escrevem textos e subtextos na mesma página, mas em diferentes linhas determinadas por prestígio e poder e com diferentes efeitos em diferentes lugares. Em outras palavras, Ortiz estava bem consciente do fato de que as relações transculturais são inscritas nas estruturas geopolíticas e econômicas e que os seus elementos são ligados, separados e justapostos de maneira contraditória e complementar mediante fronteiras inclusivas e exclusivas. Segundo, em consequência dos elementos heterogêneos serem implicados num processo contínuo de mudança, o objetivo neocultural ne ocultural é constantemente diferido. Isso significa que a transculturação em Ortiz não designa uma fusão sintética e dialética dos elementos culturais heterogêneos. O que
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forma o Estado-nação, a identidade e a cultura nacional em Ortiz é uma conceituação transcultural caracterizada por uma tensão entre síntese e simbiose, fusão e coexistência antagônica, uma interação cujos estágios não se po dem traçar (e compreender) inteiramente17. O que liga Ortiz com críticos mais recentes, tais como Morejón e Rama, é a diferenciação entre texto e subtexto: o texto homogê-
culturais — uma dinâmica intercultural que envolve a perda parcial e a assimilação de elementos culturais no processo da recriação cultural — sufoca o desenvolvimento da heterogeneidade cultural mediante a escrita do universal sobre o particular. A unificação de diferentes raças, grupos étnicos, regiões, línguas e literaturas em volta de uma identidade cultural e nacional comum congela as ne-
neo da nação é constituído pelo subtexto heterogêneo da diferença cultural, mas a heterogeneidade é augehoben 18 como elemento na formação do Estado e da identidade nacional. S eja a transculturação situada dentro da dinâmica contrapontística social, econômica e cultural de mercadorias e ritmos (tabaco, açúcar e tambores) como em Ortiz, ou problematizada como uma forma cultural da escrita que mistura técnicas europeias vanguardistas, como a fragmentação narrativa, o monólogo interior e o fluxo de consciência, com formas orais e estruturas narrativas latino-americanas como em Rama19, ela é uma metáfora de inclusão, da integração conciliadora dos elementos de culturas diferentes20. Esta incorporação de elementos
gociações e lutas contínuas inerentes a sua constituição fluida. Neste contexto, o movimento da parte para o todo, na medida em que reconhece a diferença cultural como um agente subtextualizado , acerca-se perigosamente de uma legitimação daquilo que inicialmente queria desconstruir, isto é, o discurso do hibridismo como síntese promovendo assimilação — a unidade em semelhança —, discurso este que funciona como a base epistêmica e motor para o desen volvimento dos Estados e identidades nacionais modernos. Este discurso transcultural, portanto, por oscilar de maneira ambígua entre a diferença e a semelhança, entre a consideração de cultura, identidade e nação como um processo de significação e como signos inertes, põe entre parênteses o excesso incomensurável produzido na zona do seu encontro. e ncontro. Antonio Benítez-Rojo (1996) contestou este fechamento da entrezona transcultural. Mediante uma reelaboração do contraponto ortiziano entre tabaco e açúcar dentro de um contexto pós-moderno neocolonial, no qual os discursos científicos e as grandes narrativas
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Embora Ortiz use use de vez em em quando os adjetivos “sintético” e “sincrético” “sincrético” para descrever a natureza transcultural “das diversas economias e culturas [...] em Cuba” (ORTIZ 1947:99) e da música cubana (ORTIZ 1991:199), o seu signica do é minado pelos múltiplos contrastes econômicos, sociais e históricos não resolvidos que sustentam o conceito de “transculturação” ortiziano. A citação seguinte demonstra que o signicado destes adjetivos reside na tensão dos seus contrários complementares, complementares, isto é, a fusão e a disjunção: “A evolução histórica dos fenômenos econômicos e sociais é extremamente complexa e a variedade de fatores que os determina provoca que variem imensamente durante o seu desenvolvimento: desenvolvimen to: às vezes há semelhanças que fazem com que apareçam idênticos, às vezes as diferenças fazem com que apareçam completamente opostos” (ORTIZ 1947:97). 18 No sentido da Aufhebung hegeliana: um procedimento de eliminação e preservação. 19 Para um estudo estudo da transculturação transculturação narrativa na obra crítica de de Angel Rama, Rama, ver CUNHA (2007). 20 Isto também é aplicável ao paradigma paradigma antropofágico antropofágico de Oswald de de Andrade que pode ser visto como precursor da tr ansculturação ortiziana. ortiziana. O paradigma de Andrade, porém, difere daquele de Ortiz em um aspecto crucial. Em resposta à assunção europeia de que os brasileiros são selvagens canibais, Andrade exigiu
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da modernidade ocidental se chocam com os ritmos orais pré-modernos do Caribe, Benítez-Rojo traduz a transculturação como inclusão e totalidade sintética para a transculturação como desordem que a vanguarda modernista brasileira se comportasse como canibal e devorasse as inuências alheias ( desculturação desculturação), ), as digerisse e transformasse em algo novo (neoculturação), evacuando os detritos. Em contraposição aos paradigmas de Ortiz e Rama, a antropofagia cultural unidirecional de Andrade é destituída de reconciliação.
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heterotópica e “supersincrética” caracterizada por barulho, falta, fragmentação, oscilação, caos e entrelugares. Para Benítez-Rojo, as relações transculturais são caracterizadas por uma coexistência de diferentes dinâmicas culturais, a qual rompe a naturalização
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narrativos. Mediante o uso do termo é possível problematizar o papel da diferença e das contradições na construção da identidade, já que qualquer processo transcultural reconhece que a identidade é construída por meio de uma negociação de diferenças e que a
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sintética dos elementos culturais. Em vez disso, estas relações são marcadas pelo que ele chama “as insolúveis equações diferenciais”21. Estes processos transculturais, portanto, não superam (no sentido hegeliano de aueben aueben), ), mas ressaltam a tensão antagônica e complementar entre os diversos elementos culturais porque contribuem para a continuação do jogo das diferenças. Desta perspectiva, as formações culturais não desaparecem em outras (aculturação e desculdes culturação), mas se entrelaçam, criando novas formações culturais por intermédio de malabarismos determinados pelos indivíduos e pelas comunidades. A implícita mudança da utopia para a heterotopia, da
presença de fissuras, lacunas e contradições é uma parte necessária deste processo. A transculturação, afirmo, deve ser compreendida como modo polivalente que abrange um diálogo incômodo entre a síntese e a simbiose, a continuidade e a ruptura, a coerência e a fragmentação, a utopia e a distopia, o consenso e o dissenso, a desconstrução e a reconstrução. Um diálogo desconfortável, em outras palavras, entre forças e práticas hegemônicas e contra-hegemônicas, entre gestos, atos e estratégias de coerção, expropriação e (re)apropriação, que discrimina entre diversas categorias: a assimilação intencional e imposta, o autodesprezo internalizado e diversas formas
síntese para a simbiose e da condensação para a fragmentação, na definição da transculturação, é de suma importância, porque reinscreve a heterogeneidade cultural como excesso incomensurável no contato transcultural e, neste processo, abre um processo histórico e teórico fechado pela absorção conciliadora 22. Ao evocar diferentes valores e significados, estes enfoques, definições e visões da transculturação demonstram que o termo abrange fenômenos culturais, sociais, políticos, econômicos e
de resistência como, por exemplo, a mímica e o signiyin’ . Desta forma, o processo de transculturação abre e constitui um espaço dialógico entre diversos elementos culturais no qual o agenciamento sociocultural da alteridade é inscrito. Alteridade, portanto, não é uma imagem, uma cópia fixa dentro de uma episteme (etos/cosmovisão), teme (etos/cosmovisão), mas existe (e, portanto deve ser analisada) numa zona de contato; zona esta caracterizada por u ma negociação durante a qual o novo emerge das múltiplas tensões a ela inerentes. Ou seja, num processo de transculturação, as diferenças culturais permanecem insuperáveis. Isto significa que aqui não existe um significado fixo, estável. O que, sim, existe, neste processo transcultural de culturas e idiomas, é um redemoinho que rompe com a fixidez de estruturas e funções sistêmicas. Como tal, a transculturação é uma força crítica que permite traçar os fluxos de transmissão entre culturas, regiões e nações,
23
21 (BENÍTEZ-ROJO 1996:26) 22 Em Benítez-Rojo, p 22 portanto, ortanto, a diferenciação diferenciação entre o texto (o todo universal) universal) e o subtexto (a parte heterogênea) desaparece porque este explode aquele. Qualquer termo, símbolo e/ou signo nacional que reduza os seus elementos constitutivos, as suas raízes e signicações heterogêneas a um todo homogêhomogê neo é fragmentado. Em termos da padroeira cubana La Virgen de la Caridad del Cobre, o “supersincretism “supersincretismo” o” signica que ela cessa de ser somente cubana, porque este termo esconde a heterogeneidade intercultural que coloca o signicado da Virgem em três culturas: na cultura ameríndia, europeia e africana (BENÍTEZ-ROJO 1996:12-15). 1996:12-15). Neste sentido, o supersincretismo de Benítez-Rojo deveria ser entendido como um processo transcultural em que a diversidade heterogênea desconstrói a homogeneida homogeneidade de cultural.
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Para uma análise das das formas e práticas retóricas do signifyin’ , ver GATES (1989).
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particularmente entre aquelas caracterizadas por relações de poder desiguais enraizadas em formas e práticas de coerção e dominação. Além disso, e talvez o mais importante, enquanto negociadora da zona intersticial de disjunções e conjunções inter e intraculturais — zona esta, onde diversas histórias, costumes, valores, crenças e sistemas cognitivos, cujas diferentes representações não se diluem
dispersão e hibridismo dentro de uma cultura global de certa maneira sem raízes e contextos fixos. Esta disseminação global da economia e cultura baseada num paradigma liberal, porém, tem que ser vista em relação com as raízes culturais locais baseadas num paradigma tradicional. Em outras palavras, a globalização alimenta-se da tensão entre coesão e dispersão, raízes fixas e únicas e rotas rizomáticas,
umas nas outras, são contestados e entrelaçados —, a transculturação organiza o entrelaçamento dos elementos locais e globais, bem como a interação da diferença e da semelhança. Neste processo, ela possibilita o exame daquilo/daqueles que se movem e agem no entrelugar, assim como dos interesses e das relações de poder que efetuam estas práticas. Assim, ela constitui a base de uma hermenêutica transfronteiriça que entende a escrita, fala e compreensão na sua multivoicedness multivoicedness,, ou, no termo memorável de M. Bakhtin, sua heteroglossia 24. A transcultura e os diversos processos de transculturação nela implícitos implíci tos determinam a globalização e mundializaçã mundialização. o. Estas, sejam elas definidas como “a intensificação das relações sociais mundiais que ligam locais distantes de tal maneira que acontecimentos acontecimentos locais são moldados por eventos que ocorrem a muitas milhas de distância e vice-versa”25, como “processos econômicos e tecnológicos” e processos culturais, respectivamente26, ou como a conglomeração de forças e práticas em luta contra “o aumento de controle corporativo
homogeneização e heterogeneização, fronteiras abertas para seus espaços fronteiriços e fronteiras mais fechadas. Em termos culturais, portanto, pode-se considerar a globalização/mundialização como encruzilhada mediada pela transculturação: as diversas maneiras de elementos culturais se encontrarem e se renovarem no espaço glocal (local e global). Neste contexto é pertinente perguntar: que tipo de identidade e cidadania surge nesta encruzilhada transcultural? Em sociedades multiétnicas, a questão da identidade traduz a forma como diversos fatores socialmente determinados e atribuídos interagem para definir a episteme episteme cultural cultural (etos e cosmovisão) de um povo, ou seja, a ordem do saber que constitui a base de como uma comunidade se vê a si mesma e o mundo. Isto inclui a posição do sujeito dentro da sociedade num dado tempo e lugar. Portanto, podem-se destacar as seguintes identificações identitárias significativas: raça, etnicidade, gênero, idade, classe e sexualidade. se xualidade. Em nossos tempos de mobilidade diaspórica, estas identificações constituem uma identidade em processo entre diversos lugares e culturas. O que
sobre educação, água, pesquisa científica” científica”27 – as políticas neoliberais do dumping social social –, introduzem as noções de desterritorialização,
significa isto em termos de cidadania? Segundo Gibbins, Youngman e Stewart-Toth28, a cidadania é o conjunto de deveres e direitos que caracterizam a posição de um indivíduo em suas relações com outros numa sociedade determinada. “Enquanto construção legal e formal” que garante “a liberdade e a igualdade” dos cidadãos, ela implica que “os cidadãos desfrutam
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25 26 27
Para Bakhtin (1981), vale lembrar, lembrar, a compreensão resulta resulta do encontro entre a própria fala e a fala alheia: um diálogo de múltiplas vozes nos dois lados e entre estes. Para uma valiosa coletânea de ensaios sobre “a transculturalidade” e “a transculturação”, ver BENESSAIEH (2010). (GIDDENS 1990:64) (ORTIZ 1996:29) (KLEIN 2002:126)
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(GIBBINS; YOUNGMAN; STEWART-TOTH 1996:271)
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de direitos e têm obrigações dentro dos limites territoriais do seu Estado-nação”. A construção formal da cidadania desenvolveu-se — e pode ser conferida hoje em dia — com base no lugar de nascimento ou tempo de residência do sujeito. O reconhecimento formal,
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enfatizam a importância e necessidade de metodologias comparati vas e interdisciplinares para qualquer qualquer análise no campo dos estudos interculturais. “Trans-cultura”, portanto, significa a dança performativa sobre o hífen multiétnico que separa e une as identidades
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porém, não garante a aceitação social do cidadão na comunidade. A discrepância entre cidadania formal e cidadania informal tem implicações significativas para a construção de identidade e a aceitação pela comunidade. Ou seja, nas palavras de Hall e Held 29, a política da cidadania começa com a questão “quem pertence e quem não pertence”. Então, cabe perguntar: como e em que circunstâncias se estabelece a cidadania numa era em que migrações locais e globais criam identidades hifenizadas e/ou diaspóricas, ancoradas entre comunidades, lugares, regiões, nações, continentes e culturas? O que significa, de fato, uma cidadania transnacional/transcultural/dias-
étnicas que constituem a pluralidade cultural de uma sociedade/ nação; uma dança em processo contínuo que imbui a multicultura de mobilidade, revelando as fissuras da fusão multicultural e, neste processo, difere sua materialização fixa e estática. Neste sentido, portanto, o paradigma crítico da transculturação como mediador dos processos constitutivos da transcultura é um apropriado instrumento da renegociação dos sistemas de significação que surgem na encruzilhada glocal (local e global) no sentido de minar os limites e fronteiras rígidas e abrir espaços fronteiriços e neste processo revelar os mecanismos da colonialidad del poder de de processos socio-
pórica em sociedades ditas democráticas, nas quais alguns grupos são hifenizados e outros não, e onde a distância entre a democracia real e a democracia formal está crescendo enquanto que a liberdade política do indivíduo está diminuindo 30? Se fronteiras como lugares de passagem e transformação são necessárias para se relacionar 31, então resta saber: como podemos tornar fácil e justa a passagem pelas fronteiras e pelos limites? Como conciliar diversas formas e dimensões de pertencer e ser-estar entre lugares e mares, rotas e raízes, partidas e chegadas? O que significa identidade e cidadania num mundo onde os crescentes fluxos locais e globais se embatem contra muros cada vez mais altos – mundo este caracterizado por diásporas interligadas e zonas rurais e urbanas marginalizadas onde reinam muralhas de medo e violência? Estas perguntas, a meu ver,
culturais, discursivos e narrativos . Em seguida, gostaria de focalizar um eixo desta colonialidad del poder até até agora negligenciado, a saber: a relação entre a geografia (paisagem/natureza/lugar/espaço/terra) e a episteme episteme cultural cultural (etos/ cosmovisão/identidade). O que se tem negligenciado é o mapeamento da poética mnemônica de textos literários problematizando tanto o corpo e a mente dos personagens pers onagens como lugares de luta sobre o espaço social heterotópico quanto a complexa relação entre os sujeitos e seu ambiente no processo histórico. O termo “lugar” pode ser definido de maneira geográfica, ambiental, fenomenológica (ao ligar “corpo” e “lugar”) e genealógica (ao ligar “ancestralidade” com “território”), em termos de expansão
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32 29 (HALL; HELD 1989:175) 30 Sobre este assunto, ver ISIN; WOOD (1999), KYMLICKA KYMLICKA (1995), LAGUERREe LAGUERREe (1998), ONG (1999, 2006) e JOSEPH (1999). 31 (GLISSANT 2006)
Este tipo de fazer crítico com base base no paradigma da da transculturação, transculturação, portanto, dialoga com o “multiculturalismo crítico e de resistência” delineado por Peter McLaren (1997:52 e 50), no sentido de “interrogar, perturbar, desmisticar, desdescentrar criticamente os sistemas de inteligibilidade […] na luta anticapitalista, antirracista, antissexista, anti-homófoba e anticolonialista”.
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de império, urbanização e diminuição da natureza virgem, entre outros. Se, segundo Henri Lefebvre (1974), os espaços são percebidos, concebidos e vividos, ou seja, tanto reais quanto imaginados, e, segundo Claude Raffestin (1980), a territorialidade é um tipo específico de espaço delimitado pela atitude dos personagens, então, alego que a demarcação do espaço (com seus lugares) resulta
Ao enfatizar a produção da história no processo (pós-/neo) colonial do remapeamento mundial, os estudos pós-coloniais têm utilizado o conceito de “lugar” para problematizar narrativas temporais de progresso impostas por poderes coloniais. Neste sentido, o lugar codifica o tempo sugerindo que as histórias encravadas na terra e no mar sempre têm providenciado metodologias vitais e di-
tanto de medições e mapeamentos cartográficos quanto do sistema semiótico de linguagem e suas imagens articuladas. Para Ashcro, “o lugar é um resultado de habitação, uma consequência dos modos como as pessoas vivem num espaço”33. Por outro lado, a maneira como pessoas habitam um lugar — seu imaginário, episteme episteme cultural, língua, gestos, maneira de falar e vestir, etc. — é determinada por este lugar: o que é verdade/realidade num lugar e para um determinado grupo necessariamente não o é para outro. As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de nossa conscientização, ou seja, o espaço torna-se, simultaneamente, a forma das experiências vividas e a imagem de seus conteúdos. Isso significa que pertencer a um lugar é determinado menos pelo que se possui em termos de propriedade (terreno, casa, etc.) do que pela relação entre a memória fragmentada e seletiva e a experiência vivida. Com base neste duplo sentido de lugar como entidade geográfica e produção sociocultural, argumento que qualquer análise espacial deve examinar seu significado intrínseco e extrínseco, ou seja, seus
nâmicas para a compreensão do impacto transformativo do império e as epistemologias anticoloniais que este tenta negar e suprimir. A historização tem sido um dos meios primários dos estudos pós-coloniais e como Edward Said e Frantz Fanon, entre outros, enfatizaram nas suas obras, ela é crucial para o nosso entendimento do espaço. Assim, ao utilizar um modelo histórico de ecologia e uma epistemologia de espaço e tempo na análise literária, é necessário engajar um dialogo com a paisagem/natureza. Este diálogo histórico é necessário, porque o processo de desvincular a natureza da história ajudou a mistificar as histórias coloniais de migração forçada, sofrimento e violência humana. Como é amplamente documentado nas criações literárias, a terra e o mar são participantes neste processo histórico, em vez de simples circunstantes/espectadores 34, e os escritores nos fazem lembrar que o tempo acumula (e não passa) através de uma biota relacional, cujos elementos integrantes se constituem por um valor interior (e não um atribuído exteriormente). O passado continua existindo no presente não porque é posto no papel — isto sig-
próprios vetores como também as ramificações socioculturais e político-econômicas nas quais “raça”, “etnia”, “gênero”, “sexualidade”, “idade” e “classe”, entre outros vetores sociais, contribuem para a constituição da experiência ambiental – como, em outras palavras, as histórias “naturais” são profundamente enraizadas em si mesmas e ao mesmo tempo no processo glo cal das histórias mundiais.
nificaria sua ausência na presença das letras —, mas por ser inscrito nas mentes e nos corpos dos diversos elementos da biota. Neste sentido, deveria se focalizar o que Edward Soja35 chama de “geografia
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(ASHCROFT 2001:156)
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O poeta cubano Nicolas Nicolas Guillén inclui o céu, ao lado da terra e do mar, mar, como participante testemunhal: “ Hay que aprender a recordar/ lo que las nubes no pueden olvidar [...] ¡ Duro recuerdo recordar/ lo que las nubes no/ pueden olvidar/por el camino de la mar! ” (GUILLÉN 1980). (SOJA 1989:7)
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afetiva”, ou seja, “a concretização das relações sociais embutidas na espacialidade” com o objetivo de problematizar o que o mesmo estudioso descreveu com o termo “geografias injustas” injustas” (2009): como a natureza e a cultura em suas relações complexamente entrelaçadas
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e voltamos. Somos, portanto ligados à terra e às outras formas de vida na terra. Tratar estas outras outras formas sem respeito resulta da não compreensão desta relação. Seguindo Walter Benjamin (1992), que define a alegoria barroca em termos de uma relação dialética em que
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são embutidas em desenvolvimentos geograficamente desiguais. A geografia, portanto, tem que ser reconceituada como socialmente produzida mediante relações de dependência e domínio (relações de poder); relações estabelecidas de maneira social e hierárquica entre o aqui e o lá, o local e o global. São os processos de memorização e rememoração, tanto individuais quanto coletivos, que tecem as histórias enquanto espaço que liga os lugares. Neste processo, deveria se analisar a relação entre a episteme cultural episteme cultural e sua determinação pela rede de múltiplas relações, práticas e formas de poder existentes nos lugares e espaços nos quais a trama se desenvolve. O meio ambiente não é mais limitado ao palco sobre o qual a trama se desenvolve; tampouco as atitudes do autor e dos personagens sobre o meio ambiente são limitadas ao desen volvimento narrativo narrativo.. São vistas como característica característica fundament fundamental al do horizonte ideológico da obra literária. “As paisagens”, alega Simon Schama em Landscape and Memory 36, “que supomos livres de nossa cultura, podem tornar-se, depois de um processo analítico [...] seu produto”. A opinião que a cultura enquanto produto humano deve ser separada da natureza evita o fato de que a cultura humana reside no mundo natural e que a nossa existência depende dos processos deste. As pessoas e a terra são enredadas num ser unificado e mutuamente recíproco; o ser e a história da terra são inseparáveis do ser e da história das pessoas e vice versa. De onde vem a palavra “humano”? Da palavra-raiz “humus” “humus” . Isto significa que a palavra “humano” carrega literalmente dentro de si o húmus de onde surgimos 36
(SCHAMA 1996:9)
uma linha, em vez de ser paralela, é o traço de outra, considero a relação entre a história/experiência humana humana e a natureza um dos melhores exemplos desta dialética alegórica, ou seja, a natureza como registro da história, experiência e decadência humana. Fredric Jameson37, com base no argumento de Northrop Frye de que a literatura é uma forma mais fraca do mito ou estágio posterior do ritual, alegou que “toda literatura deve ser permeada por aquilo a que chamamos de inconsciente político, que toda literatura tem que ser lida como uma meditação simbólica sobre o destino da comunidade”. Neste sentido, e ligado com este inconsciente político, cuja base é radicada nas relações humanas caracterizadas por domínio, subalternização e resistência, argumento que se pode falar de um inconsciente ecológico que imbui a relação entre seres humanos e seu ambiente. Se para Jameson o inconsciente político é ausente e ao mesmo tempo presente, porque a desejada revolução cultural transformaria a hegemonia injusta do sistema político em democracia justa, defino o inconsciente ecológico como ausente e ao mesmo tempo presente, porque a desejada revolução ecológica constituiria uma mudança de visão em relação à biota. Uma mudança de visão e das nossas atitudes em relação ao mundo vegetal e animal — uma ética biótica — é necessariamente baseada numa mudança de imaginação cultural38, num “compromisso de reabitação”, escreve Lawrence Buell 39, que “implica a extensão 37 38
39
(JAMESON 1992:64) Especialmente dos dos sistemas internalizados, internalizados, conjuntos conjuntos de disposições disposições que geram práticas especícas, o que Pierre Bourdieu (1977), no processo da analisar o habitus, chamou de “inconsciente cultural”. (BUELL 2001:170)
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de uma posição moral e, de vez em quando, até mesmo legal ao mundo não humano”. Esta mudança de visão, cujo objetivo é uma mudança de se relacionar e viver, portanto, portanto, segundo o poeta, romancista e filosofo martiniquense Édouard Glissant, implica em substituir a episteme corrosiva episteme corrosiva e destrutiva do “humanismo (a noção do ser humano privilegiado)”40 por uma “consciência planetária” igualitária 41,
literal com o que o poeta caribenho Wilson Harris 44 chama de “o fóssil vivo de culturas enterradas”. Alego como hipótese que esta dupla brutalização dos seres humanos e da geografia é interligada e constitui de diversas maneiras o inconsciente sociocultural e ecológico da experiência pan-americana — o fantasma destes holocaustos recalcados que voltam em resposta à Verleugnung (negação) (negação)
que inclui “a linguagem da paisagem” 42. Se não entendemos o que o indígena Hin-ma-too-yah-lat-kekht Hin-ma-too-yah-lat-kekht (Chief Joseph) quis dizer quando, durante um conselho entre os Nez Perce e o governo dos Estados Unidos em maio de 1877, falou que the earth and mysel are o one mind — — a terra e eu somos da mesma mente — é porque para nós a terra não tem mente. Para nós, dando muita importância à razão e à superioridade mental humana, minerais, plantas, árvores e animais — toda a biota, salvo os seres humanos — não pensam. Nas Américas, a brutalização das pessoas é ligada à brutalização do espaço e estas brutalizações são enraizadas no passado: o genocídio de tribos indígenas, a escravidão e o sistema de plantação e as várias formas de exploração da natureza, entre outros, caracterizaram as diferentes fases e processos de colonização e ainda continuam ter um impacto sobre o pensamento e o agir das pessoas, não somente em termos de como as pessoas se relacionam e tratam os diversos outros (penso, por exemplo, no racismo e no sexismo em suas formas tanto ideológicas quanto instintuais), mas como as ima-
fazendo sentir sua presença tanto no nível da enunciação quanto no da experiência vivida. “A cultura” como “forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo”, argumenta Milton Santos 45, “é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu ambiente, um resultado obtido por intermédio do próprio processo de viver”. Em cada cultura, a geografia tem um papel fundamental na constituição do imaginário cultural de um povo: ela é tanto natural quanto cultural; uma entidade material e uma visão mítica que participa na definição identitária. Édouard Glissant 46, entre outros, argumenta que na literatura pan-americana, a geografia não é somente um elemento “decorativo com uma função de apoio”, mas “emerge como plena personagem”. Ela surge enquanto espaço mnemônico de sensações e visões enraizadas em histórias individuais e coletivas, espaço este que situa o indivíduo dentro de uma comunidade num processo histórico. Nas Américas, segundo Glissant, este processo histórico não tem sido linear desde os tempos
gens destes eventos traumáticos perseguem os pensamentos e atitudes. A representação do espaço43 é simbolizada por uma natureza nutrida pelos corpos violados da história colonial, um engajamento
da colonização. A história dos afrodescendentes caribenhos, por exemplo,, é uma “não história” esquizofrênica, caracterizada por exemplo
40 41 42 43
(GLISSANT 1992:74) (GLISSANT 1997a:164) (GLISSANT 1992:146) Espaço nacional nacional que, segundo segundo o critico Antonio Cornejo Polar Polar (2000:147), é caracterizado por uma “heterogeneidade conituosa”. Para ele, as nações latilati no-americanas são “traumaticamente desmembradas e cindidas”.
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rupturas [...] que começaram com um deslocamento brutal, a escravatura. A nossa consciência de história não podia ser 44 (HARRIS 1981:90) 45 (SANTOS 2007:81-82) 46 (GLISSANT 1992:105)
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depositada contínua e gradualmente como sedimento [...], mas se formou no contexto de choque, contradição, negação dolorosa e forças explosivas. Este deslocamento do continuum e a incapacidade da consciência coletiva de absorver tudo isso caracteriza o
num lugar heimlich heimlich;; um lugar-lar onde a equação mundo/imagem do sel (rompida (rompida e distorcida pelo processo colonizador) é reestruturada com base no próprio etos e cosmovisão. O lugar-lar e sua construção na língua, portanto, é um dos meios pós-coloniais cru-
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que chamo uma não história.47
Ao falar da perspectiva afrodescendente, Glissant conota o cerne do problema identitário que diz respeito também a outros grupos étnicos pan-americanos: a relação com a origem num espaço onde diversos efeitos da colonialidade continuam a ter um efeito sobre as relações intersubjetivas. Ter uma identidade significa ter uma história inscrita na terra. Ter uma história imposta contra a vontade, sem poder inscrevê-la na terra enquanto sujeito livre, como no caso dos afrodescendentes pan-americanos, significa ter uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um processo colonial, como no caso das primeiras nações indígenas pan-americanas, significa ter uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um processo colonial, como no caso dos colonizadores e seus descendentes, significa ter uma não identidade nutrida pelo remorso recalcado. Refletida nestas não identidades — identidades fragmentadas e/ou alienadas por diversas formas e práticas de violência — está a importância da geografia e da memória como elementos para se colocar como sujeito. Sem lugar, a consciência e subjetividade do ser humano são inconcebíveis. Este lugar pode ser de natureza geográfica e/ou linguística, religiosa, cultural — um lugar epistêmico. Para os povos colonizados e os grupos marginalizados, o processo de descolonizades colonização significa que o lugar unheimlich — o lugar (e a correspondente episteme cultural) episteme cultural) da subalternização — tem que ser transformado 47
(GLISSANT 1992:61-62)
ciais para lembrar (e assim juntar) os fragmentos de uma cultura/ história/identidade estilhaçada e parcialmente perdida nos traços nômades entre mares e (não) lugares, bem como entre os muitos ditos e não ditos de diversos discursos. Em seguida, gostaria de voltar à imagem da não história esquizofrênica dos afrodescendentes que, segundo Glissant, é caracterizada por rupturas e deslocamentos. Ao elaborar esta ideia e alegar que, devido aos processos de colonização, encontramos diversas e diferentes não histórias em todas as partes das Américas, formulo a hipótese de que alguns dos principais símbolos desta experiência podem ser a fronteira, o limite, o entrelugar, a encruzilhada que separam e ligam línguas, culturas, epistemes epistemes,, histórias, pessoas e povos. Nas Américas, a fronteira enquanto limen limen significa significa mais do que uma linha geográfica e política. Era e continua a ser uma zona de contato físico e psicológico que separa e mescla a natureza e suas diversas culturas e a “civilização “civilização””, ou seja, aqueles que chegam a um lugar para tomar posse de maneira selvagem daquilo e daqueles que se encontram neste lugar e o fluxo contrário, aqueles do lugar “colonizado” que vão à metrópole em busca de bem-estar, educação, trabalho, etc. Neste processo, a fronteira transforma-se numa encruzilhada onde a transculturação funciona como mediador dos elementos em fluxo: pessoas, objetos, ideias, costumes, etc. Enquanto linhas divisórias da diferenciação espacial, temporal e cultural, fronteiras distanciam a identidade interna da alteridade externa e, como espaços intersticiais, ligam-nas. Estabelecem hierarquias entre o interior e o exterior, assim como dentro destes. Deste
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modo, ao transformar os sujeitos em estrangeiros e/ou ilegais (perigosos), elas contêm as diversas formas de diferença fora do real inteligível, normal e/ou humano. Simultaneamente, as fronteiras e seus espaços fronteiriços são reproduzidos e reimaginados no processo da resistência à subalternização e marginalização marginalização.. As fronteira f ronteirass e os espaços fronteiriços, portanto, portanto, constituem o terreno (e seus limites)
Neste sentido, por exemplo, pode-se distinguir entre o rontier o rontier spirit norte-americano norte-americano e a garrison a garrison mentality mentality canadense. canadense. O historiador estadunidense Frederick Jackson Turner, Turner, em seu texto seminal Te Significance o the Frontier in American History (1893), definiu a fronteira como o lugar geográfico da democratização norte-americana onde os europeus se transformam em americanos. Ao adotar
onde as identidades são vividas e imaginadas, numa interação tensiva de estase cultural (diferença como separação) e transgressão cultural (diversidade como relação). Fronteiras conotam estase cultural ao canalizar a identidade cultural para epistemes epistemes nacionalmente identificadas, enquanto a transgressão destas fronteiras revela espaços intersticiais intersticia is onde as diferenças culturais são traduzidas para relações interculturais intercult urais de pluralidade simbiótica e/ou sintética. Neste sentido, fronteiras e espaços fronteiriços são entidades materiais e símbolos que constituem lugares de poder do Estado repressivo e normalizador por um lado, e lugares de transgressivas funções e práticas transnacionais transnaciona is e transculturais por outro. A fronteira e seus espaços fronteiriços, portanto, são conceituados tanto como construções político-econômicas, político-econô micas, socioculturais, geográficas, psíquicas e metafóricas, quanto como categorias analíticas analíticas e posições epistemológicas. Assim, para poder mapear os fluxos culturais disjuntivos e conjuntivos que passam por e/ou se embatem nas fronteiras geográficas, psicológicas, físicas e culturais — zonas instáveis de significações
a crença puritana da fronteira como posto avançado do divino que separa os filhos de Deus daqueles do diabo, Turner transformou a fronteira num mito enquanto pseudociência que preservou a consciência de missão como experiência de fundação democrática. Em termos políticos e étnico-culturais, portanto, a fronteira era o meio mais efetivo da americanização. Definido como espaço de liberdade individual e coletiva na narrativa de Turner — uma contradição não resolvida, como demonstra uma grande parte da literatura norte-americana —, a fronteira f ronteira transforma-se num espaço fronteiriço para a construção nacional. Até hoje em dia, este espírito de fronteira é continuamente reimaginado enquanto vontade individual/coletiva para a inovação que acompanha e legitima a expansão político-econômica dos Estados Unidos. Já no Canadá, o processo de colonização era muito menos uma questão de colonos individuais que buscam um destino melhor no Oeste do que uma extensão da esfera de autoridade da coroa inglesa sobre um território considerado vazio. Em contraposição aos
fluidas caracterizadas por processos de apropriação e reapropriação48 —, o crítico também deve se colocar acima das fronteiras, não trabalhando de maneira homogênea dentro, mas de maneira heterogênea desde uma variedade de fronteiras interdisciplinares. desde
Estados Unidos, no Canadá, os novos territórios colonizados eram vistos como postos avançados da civilização europeia, sempre ameaçados pelos terrores de uma natureza selvagem. Em vez de dominar esta natureza e subsequentemente civilizá-la, os canadenses, desde o início, tentaram se defender dela e consequentemente desenvol veram o que Northrop Frye49 definiu como “mentalidade de guar-
LAMAR e THOMPSON (1981:7-8), (1981:7-8), três elementos são são de impor48 Para os críticos LAMAR tância analítica numa situação fronteiriça: “território”, “povos distintos”, “e o processo pelo qual as relações entre os povos no território começam, desenvolvem desenvolvem e eventualmente se cristalizam”.
49
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(FRYE 1995:227)
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nição” que permeia o imaginário sociocultural: uma mentalidade caracterizada por “um grande respeito pela lei e ordem” e uma mistura de admiração, medo e interesse econômico pelos territórios naturais, este “enorme, impensável, ameaçador e tremendo ambien-
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da literatura enquanto espaço mnemônico que escritores multiétnicos das Américas recriam os mitos necessários para se enraizar como sujeitos autóctones. A reapropriação do espaço via memória possibilita a colocação do sujeito na sua própria história. A re-
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te físico” no norte do país. O que liga estes imaginários em sua diferença é que a fronteira (com seus espaços intersticiais) tinha e tem uma função (e um efeito) cultural crucial no processo de encontro intercultural que caracteriza as Américas e o mundo. Se para Darcy Ribeiro 50 o Brasil é uma nação caracterizada por um contínuo processo transcultural de “desfazimento, “desfazimento, refazimento e multiplicação” multiplicação” — processo este que produz “um povo síntese [...] uma civilização nova” onde “heranças culturais” se fundem —, já para Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant51, o Caribe (e, por extensão, as Américas, aliás, todo o
nomeação do seu lugar e da sua história significa reconstruir sua identidade, tomar posse de sua cultura; significa, em última análise, resistir a uma violência epistêmica que, nas suas diversas formas e práticas, continua até o presente. Desta forma, a literatura molda crenças e ideais e contribui para a constituição da episteme episteme cultural cultural coletiva. Ao analisar de maneira comparativa e interdisciplinar as semelhanças e diferenças que caracterizam a interface geografia/ episteme cultural nas diferentes partes do continente, ganham-se episteme insights dos diversos tipos de identidade cultural que constituem insights as Américas. Gostaria de traçar quatro tipos de insight : a) Insights Insights
mundo) constitui “l’espace “l’espace mosaïque mouvante mouvante” ” (o espaço de um mosaico móvel), onde d’un as culturas, línguas, costumes e povos não se fundem em síntese, mas se mesclam de maneira conflituosa e caótica de tal modo que os laços que ligam as partes num todo fluido de ““ rontières rontières vaporeuses vaporeuses”” (fronteiras vaporosas)52 são parcialmente abertos e compreensíveis e parcialmente fechados e opacos. Qual é o papel da literatura neste processo? process o? Qual é a contribuição da literatura, dos estudos literários e da ecocrítica pós-colonial para a compreensão do mundo e da realidade? A literatura é um dos privilegiados meios de construção mitológica coletiva. Sendo uma encruzilhada onde discursos e visões em conflito e competição se encontram e entram num equilíbrio muitas vezes precário e contraditório, a literatura constitui um lugar onde diferentes valores, mitos, histórias e traduções são negociados. É por meio
sobre assunções ética antropocêntricas: a relação entre osobre sensomimese de lugare e a consciência (reflexão ética); b) Insights Insights referência com respeito ao lugar habitado (reflexão hermenêutica); c) Insights Insights sobre sobre a episteme episteme cultural/experiência cultural/experiência humana num dado lugar e processo histórico (reflexão ontológica/identitária); d) Insights sobre Insights sobre a relação entre a escrita, a vida e práticas pedagógicas (reflexão ideológica). Perante o fato de que um dos problemas principais a serem resolvidos no século XXI é a coexistência de culturas radicalmente diferentes e de que a literatura revela e problematiza os paradoxos e aporias da vida mediante as suas representações, argumento que a essência ética da teoria literária é de constituir, junto com o seu objeto de estudo, a literatura, uma ciência da/para a vida, ou, como diria Édouard Glissant, uma ciência da/para le tout-monde, tout-monde, le chaos-monde,, ou ainda, la totalité monde. -monde monde. Em seguida, abordarei estas ideias-chave de Glissant.
50 (RIBEIRO 1995:13) 51 (CHAMOISEAU; CONFIANT 1999:71) 52 (CHAMOISEAU; CONFIANT 1999:64)
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O critico Leo Spitzer definiu os estudos literários como “a ciência que tem como objetivo compreender o ser humano na sua expressão em palavras e criações linguísticas” 53. Para Erich Auerbach, falando sobre a filologia que Goethe tinha cunhado Weltliteratur , a ciência literária deve “designar o lugar do ser humano no universo”54. Já para Glissant, o objetivo da teoria da literatura comparada
contribuindo para o desenvolvimento do que chamo de “transescrita” ((transwriting transwriting ), ), em Aro-América: em Aro-América: Diálogos Literários Literários na Diáspo Diáspora ra Negra das Américas (2009), Américas (2009), trabalho o que chamo de “inconsciente ecológico” desta teoria. Gostaria, em seguida, de juntar e elaborar os dois aspectos dentro da relação teórica entre o pós-colonialismo e a ecocrítica.
deve ser a reativação da “estética da terra”. Em Poétique de la relation,, Glissant argumenta que este fazer poético pode nos ajudar lation a mudar o “pesadelo” em que atualmente estamos vivendo 55. Mas como conseguir restabelecer esta “conexão estética da terra”, pergunta ele, num contexto cultural de produção e consumo material desenfreado com seu efeito de fragmentação, alienação, miséria e violência humana? E responde: por meio de uma “estética de interrupção, ruptura e conexão” que envolve a imaginação. Em raité du tout-monde,, Glissant afirma que, ao contrário da ciência, “a escritura tout-monde nos leva às intuições imprevisíveis, nos faz descobrir os constantes escondidos do mundo” mundo”56. É mediante o imaginário, o seu prolongamento “por uma explosão infinita”57, que se podem descobrir novas possibilidades e vencer os obstáculos que impedem o ser humano de se realizar de maneira digna e justa. A “estética da terra” como “estética de interrupção, ruptura e conexão”: a teoria de crioulização glissantiana que tem influenciado as minhas reflexões sobre as literaturas do continente americano
Enquanto crítica ao império da história e cultura europeia e, por extensão, do Ocidente, a teoria pós-colonial revela e problematiza: a) a durabilidade do poder colonial desde o passado ao presente; b) como surgem, neste processo, novas formas e práticas de domínio e subalternização. Com o enfoque nas relações de poder, nas posições e atitudes do sujeito, nas diásporas e nos deslocamentos criados por meio do colonialismo, do imperialismo e da globalização, a teoria pós-colonial negligenciou questões com respeito à interface cultura/ natureza58. A ecocrítica, dentro dos estudos literários, tem se desenvolvido em três direções fundamentais: a) no sentido de uma metodologia sociológica interdisciplinar que examina a relação entre personagens e a natureza, enfocando a consciência ecológica destes com relação a questões ecológicas locais e globais; b) no sentido de uma metodologia cultural-antropológica interdisciplinar que problematiza a alienação e a reificação do ser humano como resultado da dominação da natureza dentro do projeto civilizatório moderno; c) no
desde a publicação do meu livro Narrative Identities: (Inter)Cultural In-Betweenness in the Americas Americas (2003). Enquanto que, neste li vro, o aspecto culturalista da teoria glissantiana é preponderante,
sentido de uma metodologia ética interdisciplinar cujo objetivo é a revisão do sistema de valores cu lturais antropocêntricos em favor de uma coexistência planetária inter-relacionada, harmoniosa e justa.
53 54 55 56 57
(SPITZER 1993:179) (AUERBACH 1969:17) (GLISSANT 1997:150-151) (GLISSANT 1997:119) (GLISSANT 1997b:18)
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58 O termo pós-colonial é ambíguo ambíguo e muito questionado. questionado. Para um excelente enen58 saio que problematiza o termo, ver SHOHAT (2000). Sobre o pós-colonialismo e a pós-colonialidade, ver, entre outros, ASHCROFT, et.al. (1989), BHABHA (1994), YOUNG (1995; 2003), LIONNET (1995), CHILDS (1997), GHANDI (1998), LOOMBA (1998), MOURA (1999), SPIVAK (1999), BRYDON (2000), BONNICI (2000), PRYSTON (2002), MIGNOLO (2003) e SANTOS (2005).
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O que liga estas três abordagens é a compreensão da natureza como entidade físico-material e social ativamente envolvida na dinâmica das construções culturais59. É preciso aprofundar o diálogo entre os estudos pós-coloniais
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diferença cultural como processo transcultural de compartilhamen compartilhamento to implica na confluência de diferenças sem a sublimação dos seus diversos elementos num todo coerente: um reconhecimento da sobreposição e/ou justaposição dos diversos outros constituindo
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e ecológicos, já que a separação entre a história do império e os pensamentos ecológicos contribui para a constituição de um discurso de orientalismo verde que ofusca um dos pilares básicos do colonialismo,, a saber: a exploração da natureza. Gostaria de delinear colonialismo brevemente três áreas de contato entre os estudos pós-coloniais e ecológicos: a) Uma abordagem pós-colonial ecológica é de suma importância para compreender como a geografia foi e continua sendo alterada de maneira radical pelo neocolonialismo do capitalismo tardio. Neste processo, poderiam-se explorar as mudanças entre epistemologias de espaço (pré-)coloniais e pós-coloniais e como
o sel . Neste sentido, a identidade e a cultura envolvem diferenças mutuamente refratadas e muitas vezes deslocadas na dança esquizomutuamente frênica da cultura e do imperialismo. imperialismo. A meu ver, isto é a base a partir da qual se deve pensar a alteridade/diferença cultural entre o local e o global num contexto pós-colonial ecologista. Neste contexto, surge a pergunta de como pensar ecologicamente em tempos de fluxos diaspóricos que fazem com que os limites entre o local e o global tornem-se tênues? Como conceber uma cidadania ambiental no hífen do “trans-nacional”? Lawrence Buell alega que “pensar ecologicamente requer pensar contra ou
estas traduzidas por meio de práticas narrativas; b) A sobrevivem interrogaçãoe foram ecológica do antropocentrismo e o enfoque do pós-colonialismoo a cerca das relações de poder hierárquicas inter-r pós-colonialism inter-reelacionadas, já que estes assuntos afetam as diversas espécies da biota; c) Questões do agir e da representação do sujeito subalterno, subalterno, além de revelar como formas e práticas de domínio e resistência impl implicam icam em diversos aspectos da episteme episteme cultural cultural e seus efeitos no processo da produção da subjetividade e identidade individual e coletiva. Neste processo, uma análise pós-colonial ecologista elevaria ao primeiro plano os modos como a narrativa no seu nível discursivo e temático traduz (e assim produz) alteridade e diferença cultural60. A noção da
além naçãodee pensar da nacionalidade”. Para ito ele à“oambientalidade ecoglobalismo” “uma da maneira e sentir com respeito respe queé abrange toda a terra”61. Neste sentido, a ecocrítica não tem somente o mandato, como também a capacidade de examinar e compreender construções humanas transnacionais e diaspóricas de lar e lugar já que, em geral, questões ecológicas são relacionadas às questões políticas, econômicas, sociais e culturais. Segundo Pablo Mukherjee
59
Sobre a relação entre literatura, pós-colonialismo pós-colonialismo e ecocrítica, ecocrítica, ver entre outros, outros, GLOTFELTY (1996), BUELL (1995; 2001; 2005; 2007), PLUMWOOD (2001; 2003), PHILIPS (2003), HUGGAN (2004; 2010), LOOMBA (2005), CURTIN (2005), FRENCH (2005), GARRARD (2006), CILANO e DELOUGHREY (2007), MARZEC (2007), VITAL e ERNEY (2007), WALTER e FERREIRA (2010), WRIGHT (2010), DELOUGHREY e HANDLEY (2011). 60 O cerne deste enfoque é a questão da ideologia: a organização organização de práticas
61
signicantes materiais que constituem subjetividades — entendidas como posições de inteligibilidade, ou seja, os modos de saber necessários pela reprodução de disposições e ordens sociais existentes (por exemplo, a divisão patriarcal do real em termos de gênero; os modos de produção/consumo no sistema capitalista; a necessidade/justicação de processos colonizadores) — e produzem as relações vividas mediante as quais os indivíduos são ligados — de maneira hegemônica ou contra-hegemônica contra-hegemônica — às relações de produção e distri distri-buição de poder (e às relações de exploração daí resultantes) numa formação social especíca num dado momento histórico. Sobre questões de ideologia, ver MANNHEIM (1936), ALTHUSSER (1971), GEERTZ (1973), BOURDIEU (1977), ŽIZEK (1989; 1996), LARRAIN ( 1994), LEVINE (1994), RICOEUR (1997), DECKER (2004) e THOMPSON (2009). (BUELL 2007:227)
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qualquer campo teorizando as condições globais do colonialismo e imperialismo (os estudos pós-coloniais) devem considerar as inter-relações complexas de categorias ambientais como, por exemplo, a água, a terra, a energia, o habitat e e a migração com categorias políticas ou culturais como, por exemplo, o Estado, a sociedade, a literatura, o teatro, as artes visuais. Igualmente, qualquer campo dando importância interpretativa à natureza (os estudos ecológicos) deve ser capaz de traçar as coordenadas sociais, históricas e materiais de categorias como a floresta, o rio, as regiões e as espécies.62
Com base na objetificação, fragmentação e degradação intelectual do ser humano como resultado da ideologia consumista do sistema capitalista vigente, um processo analítico descolonizador deveria problematizar a relação dos diversos níveis de degradação baseada no insaciável desejo de consumir e apropriar a outridade em nome do benefício material e do poder social: uma análise emancipadora, na qual, em vez da redução de todas as coisas ao valor econômico de mercado, as necessidades humanas e ambientais ficariam no centro do enfoque. A transformação ecológica é baseada numa transformação das relações humanas com as espécies não humanas. Ao recuperar a conexão com a natureza, podemos explorar possibilidades de renovação social, cultural e psicológica. A reimaginação e reconfiguração do lugar humano na natureza implicam numa interrogação da categoria do humano e como a construção de uma relação dicotômica entre os seres humanos e a natureza — com a hierarquização das formas de vida que esta construção implica — foi e continua sendo implícita na exploração capitalista e racista desde o 62
(MUKHERJEE 2010:144)
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tempo da conquista imperial até o capitalismo neoliberal de hoje. Em outras palavras, dever-se-ia problematizar o que o filósofo Deane Curtin chama de “racismo ambiental”, isto é “a conexão, em teoria e prática, entre raça e ambiente de forma que a opressão de um é ligada e sustenta a opressão de outro” 63. O racismo ambiental é um fenômeno sociológico exemplificado no tratamento ecologicamente discriminatório de povos socialmente marginalizados ou economicamente discriminados. É uma forma extrema do que Val Plumwood chama de “centrismo hegemônico” 64: formas de domínio entrelaçadas que foram e continuam sendo convocadas com o objetivo de explorar a natureza e, ao mesmo tempo, minimizar pretensões não humanas a uma natureza compartilhada. Neste processo, não se deve esquecer, como Plumwood65 assinala, que a definição ocidental da humanidade sempre dependeu e continua a depender da presença do não humano como incivilizado e animalesco. A justificação de processos de invasão, colonização e dominação procedeu desta base antropomórfica e racista que nega e cancela o sel independente independente da natureza. Se um dos temas cruciais das literaturas pan-americanas é a conquista e o domínio da natureza/terra baseados na e simultaneamente destruindo a visão do paraíso, ou seja, a imaginação da natureza como santuário imaculado que oferece um refúgio da civilização caída e do remorso profundo resultante do implícito genocídio ameríndio e escravização de outros povos, então o legado histórico deste holocausto persegue tanto os corpos e mentes das pessoas quanto a geografia do continente americano. Ou seja, a relação com a terra torna-se uma questão-chave num ambiente caracterizado por falta de raízes locais, de origens. Ela surge como 63 64 65
(CURTIN 2005:145) (PLUMWOOD 2001:4) (PLUMWOOD 2003:53)
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espaço mnemônico de sensações e visões enraizadas em histórias individuais e coletivas, espaço este que situa o indivíduo dentro de uma comunidade biótica que inclui os vegetais e os animais. Neste sentido, o espaço reapropriado de uma não história é tanto material,
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concepção do mundo e suas relações. Segundo Glissant, deveríamos suplementar o pensamento-raiz com um pensamento-rizoma ou arquipélago: “En el encuentro de culturas del mundo, debe asistirnos el poder imaginario para concebir todas las culturas como factores
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político como cultural e o ato em si é uma resistência cultural que constitui o que Glissant chama ou de tout-monde tout-monde ou ou totalité-monde totalité-monde,, ou ainda chaos-monde chaos-monde:: as inter-relações nos lugares e entre diversos lugares do mundo; relações estas constituídas por processos de crioulização. Tanto os lugares quanto as relações “transformam-se uns nos outros sem fim”66. Para Glissant, a abertura de fronteiras para espaços fronteiriços e raízes para rotas/rizomas/fluxos nas críticas e pensamentos pós-modernos é uma mudança de transcendência para transversalidade: a visão da realidade como uma série de dobras 67. Poder-se-ia
que tienden, al mismo tiempo, a la unidad y la diversidad libertadora”68. Entender o mundo enquanto “chaos-monde “ chaos-monde”” ou “tout-monde “tout-monde”” 69 constituído por fluxos erráticos entre dobras dobras fractais significa, em última análise, não poder compreendê-lo totalmente. O raciocínio glissantiano levanta um ponto raramente tocado por críticos: a incomensurabilidade das relações interculturais que reside no seu caráter transcultural (Glissant diria “crioulizado”). Glissant, neste sentido, fala de “opacité “ opacité ”. ”. A opacidade das relações interculturais é o sedimento que se acumula no processo da inter-relação cultural. Como tal contribui para a imprevisibilidade e
dizer desde o início de asua produção na década 50aaté a sua morteque, em fevereiro de 2011, noção das dobras fornece unidade fenomenológica de sua obra: seguindo a realidade nas suas mais pequenas dobras internas, suas variedades, viradas , viradas , mudanças, curvas, espelhamentos, deslocações, desvios e reversões. Para Glissant, influenciado por Mallarmé e Faulkner, dobras significam um padrão de linhas entre a realidade e a consciência que não estabiliza a realidade objetiva, mas simplesmente estabelece uma série de encontros e relações nos quais o significado é continuamente feito, desfeito e refeito num jogo de ausência e presença. Neste sentido, o mundo é feito de dobras, de zonas de contato, como diria Mary Louise Pratt, ou encruzilhadas intersticiais, como enfatizo nos meus trabalhos. Durante a vida criativa de Glissant, a água de maré baixa e alta e suas correntes submarinas tornaram-se o principal exemplo desta
não linearidade (o caos) destas relações . Este sedimento é a base insondável e fértil da experiência intersubjetiva/intercultural que pode ser somente sentida em vez de racionalmente compreendida. A opacidade também pode ser utilizada como desvio deliberado na luta da resistência cultural. Como tal, estabelece um padrão de
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(GLISSANT 2002:71-72) Fractal no sentido de cada dobra, dobra, identidade ou fragmento fragmento cultural ser pensado pensado em relação aos seus múltiplos outros. 70 Em Glissant, portanto, 70 portanto, o conceito de caos não não signica desordem, desordem, mas é baseabaseado na ciência do caos mediante a qual se problematizam estruturas profundas na física e natureza. Visando o encontro e a mescla de (fragmentos de) culturas, Glissant menciona uma das noções principais da ciência do caos, o “sistema determinista errático” e arma ter tirado duas ideias deste sistema: seu funcionafuncionamento segundo mecanismos com regras precisas, mas com modicações impreimprevisíveis de seus elementos (especialmente, mas não exclusivamente temporais) e sua “ sensibilidad a l as condiciones iniciales. Una sensibilidad que hace que en algún momento un error de sobreestimación o minoración de las condiciones iniciales pueda multiplicarse hasta el innito y de manera errática en el seno
(GLISSANT 1996:275) Glissant usa o termo termo transversalidade para se referir ao sistema sincrônico das forças convergentes que constituem a identidade antilhana.
del propio sistema” (GLISSANT 2002:84, 86). No caos-mundo, portanto, portanto, nem a ordem nem a desordem dominam, mas o sinuoso desdobramento de linhas das forças interativas.
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camuflagem, distorção, deslocamento e subterfúgio no processo de significação. A crioulização cultural, segundo Glissant, visa substituir a dominação hierarquizante por uma convivência em processo para que a diferença-separação possa ceder à diversidade-relação dinâmica. Para Glissant, “a multienergia das crioulizações [...] reativa esta dilatação vertiginosa onde se desfazem não as diferenças,
apagadas e suplementadas por outras. Portanto, a viagem, a errância, a mobilidade são elementos sumamente importantes para a (re) criação da identidade cultural, como também são a imobilidade, as raízes culturais, o lar. A arte da vida e sobrevivência é juntar esses elementos, mesclá-los de forma equilibrada sem preferir nenhum deles em detrimento dos outros.
mas os sofrimentos antigos nascidos da diferença” 71. O caos-mundo glissantiano é o mundo real: um mundo em processo onde a imaginação suplementa a razão, o opaco encanta o claro, o errante ilumina o sedentário, o ser humano se redescobre no mundo dos animais e das plantas; um mundo, enfim, onde o amor e o respeito vencem qualquer tipo de agressão e violência. O papel da literatura, portanto, é fundamental no sentido de “contribuir “contribuir,, pelos poderes da imaginação, a fazer levantar a rede, o rizoma das identidades abertas aber tas que falam e escutam entre si”72 e neste processo revelar a natureza não sincrônica, não linear, acidental e indeterminada da realidade; realidade esta onde o processo de relacionamento é mantido instá vel e dinâmico pela opacidade. O cerne da problemática visada por Glissant é o pensamento binário da modernidade, esta forma de pensar baseada em diferença como separação e exclusão. Diferente das teorias pós-modernas e sua desconstrução dos binarismos, a teoria da crioulização é baseada nos fluxos híbridos e transculturais vivenciados na realida-
Para Glissant, a análise cultural deve examinar aquilo que “gera as nossas culturas, o dinamismo dos seus conteúdos interrelacionados”. Gostaria de concluir, alegando que la poétique de la relation glissantiana relation glissantiana focaliza este dinamismo transcultural através de uma escritura em busca de respostas à questão da outridade/ outrização e da dupla maldição que constitui a base da fundação das sociedades nas Américas: a brutalização do ser humano relacionada à brutalização do ambiente desde o passado ao presente. Neste sentido, a “estética da terra” glissantiana, ao enfatizar que a terra e o habitante da terra são saturados por traumas de conquista, liga o indivíduo, a comunidade e a terra no processo de criar história da não historia pós-colonial. Neste processo, Glissant espera que a literatura possa ensinar a força política da ecologia, ou seja, que a literatura possa traduzir a articulação radical da ecologia “da interdependência de todas as terras, do mundo inteiro inteiro””73. Para escritores que vivem diversos tipos de colonização, portanto, é de suma importância trabalhar a relação entre o indivíduo e a paisagem: quem tem
de; fluxos que explodem fronteiras fixas e nações homogêneas em seus espaços fronteiriços, transformando-as em archipels archipels regidos por dispersão. Em relação à questão moi-l’autre moi-l’autre,, Glissant enfatiza que uma identidade em processo é uma identidade composta por identificações que se estabelecem de maneira transitória para serem
sua história destruída, distorcida ou camuflada, busca esta história nos lugares do espaço onde seus antepassados viveram, ou seja, nos rios, bosques, nas montanhas, savanas, etc. O objetivo da libertação do futuro (esquecido) do passado no presente, aquela parte do passado que, segundo Walter Benjamin, ainda não se concretizou e, portanto, deve ser resgatada e problematizada, é descobrir nas
71 72
(GLISSANT 1997b:239) (GLISSANT 1997b:248)
73
649
(GLISSANT 1997a:147)
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ruínas do passado as causas dos desastres e tanto a responsabilidade quanto a promessa de um presente e futuro melhores. Nos pensamentos de Glissant, traduzidos e poeticamente elaborados na sua ficção e poesia, a força imaginária da literatura
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como formas, forças e práticas totalizantes repressivas, bem como libertadoras expressivas. A abordagem teórica deveria enfocar os diversos tipos de negociação no fluxo aleatório dos fragmentos culturais de diferentes contextos que constituem o mapa intercultural
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não somente revela o que a história, segundo Carlos Fuentes (2005), esconde. Ela oferece formas e práticas tanto do que Clifford Geertz (1985) chama de “saber local” como o que se poderia chamar de saber global. Este saber glocal revela formas e práticas de relacionamento entre diversas formas de vida num dado ambiente e tempo. Cabe à crítica literária situar/problematizar estas formas e práticas em termos de cultura, sociedade e história e assim contribuir para solucionar um dos mais urgentes problemas e desafios do nosso tempo: a busca de paradigmas para uma coexistência pacífica, baseada em mútuo respeito entre os seres humanos e entre estes e o
das Américas. Assim, ao examinar a dinâmica das formas culturais moldadas de maneira fractal, ou seja, sua natureza transcultural, pode-se problematizar a diferença cultural como processo de dominação e libertação nas zonas intersticiais. Visto que as histórias não existem de maneira isolada, mas sempre se cruzam e se entrelaçam, constituindo círculos dentro de círculos sem um centro74, propõe-se a interdisciplinaridade interdisciplinaridade enquanto negociação teórica: combinar uma variedade de posições teóricas e trabalhar de maneira heterogênea desde as suas fronteiras parece-me ser a mais adequada forma de mapear as múltiplas múltiplas conjunturas e dis-
restoAdapalavra-chave biota. da análise deste tipo de saber é “negociação”:
junturas (asAméricas. negociações destas) que caracterizam mosaicoéintercultural das Esta abordagem conjuntural conjuntural,,oportanto, uma intervenção estratégica que situa textos nas suas localidades culturais específicas enquanto os relaciona aos seus contexto contextoss globais. “Um erro foi cometido em algum lugar”, diz o narrador sem nome no clássico mundial Homem Invisível (Invisible (Invisible Man) Man) de Ralph Ellison. A trama do romance desenvolve diversos aspectos do efeito deste erro, situando as raízes da violência do presente (o racismo na sociedade norte-americana nos anos cinquenta do século XX) no sistema escravista do passado. A revelação e problematização dos tipos de erro cometidos no passado e no presente, onde, por quem e como, e os seus efeitos num processo histórico com enfoque específico na violência (pós-/neo)colonial deveriam ser, alego, um dos principais objetivos desta abordagem conjuntural. Margaret
a negociação de fragmentos culturais, discursivos, identitários e ideológicos dentro da rede dinâmica de múltiplas relações de poder. Para poder examinar estes processos de negociação que constituem a diversidade cultural e o encontro de seus elementos, devem-se mapear os espaços, lugares e esferas de sua existência: entrelugares, passagens, fronteiras geográficas, psicológicas, corporais, sexuais e de gênero e seus espaços fronteiriços, movimentos transregionais, transnacionais e diaspóricos. É mediante o exame da dinâmica transcultural/transnacional nas encruzilhadas diaspóricas de troca, lugares caracterizados por um espaço-tempo heterotópico e múltiplos processos de continuidade e ruptura, síntese e simbiose, coerência e fragmentação, utopia e distopia, consenso e incomensurabilidade, que podemos começar a entender, mapear e avaliar a ambiguidade inerente à tradução da diferença e diversidade cultural
74 de Möbius, cuja imagem imagem indica a sequência sem sem começo e 74 Semelhante à Faixa de m e sem relações hierárquicas.
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Atwood, Yves ériault, Dionne Brand, omas King, Tomson Highway, Marlene Nourbese Philip, William Faulkner, Toni Morrison, Leslie Marmon Silko, Linda Hogan, N. Scott Momaday, Miguel Méndez, Rolando Romero, Alejo Carpentier, Édouard Glissant, Maryse Condé, Gisèle Pineau, Raphaël Confiant, Patrick Chamoiseau, Derek Walcott, Nicolás Guillen, Wilson Harris, Juan
em termos de conclusão, gostaria de levantar as seguintes questões: como a geografia (paisagem/natureza/lugar/espaço/terra) é condicionada pelos processos globais de transformação? Se a reabitação, como atitude descolonizadora, significa, em primeira instância, um processo de conscientização que supera a separação entre nós e o resto da biota, então o compromisso de reabitação é a capacidade
Rulfo, Carlos Fuentes, B. Traven, Miguel Astúrias, Gabriel Garcia Márquez, José María Arguedas, Mário Vargas Llosa, Pablo Neruda, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Joao Ubaldo Ribeiro, Milton Hatoum, Conceição Evaristo, Graça Graúna, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara e Antonio Torres, entre muitos outros, em épocas diferentes e de maneiras distintas, utilizaram a memória para, nas palavras memoráveis de Toni Morrison, “desenhar um mapa [...] de uma geografia crítica”75. Neste processo, problematizaram, entre outras coisas, a violação da terra e das mentes e corpos das pessoas pela propriedade roubada, vendida e comprada. Esta dessacralização da terra e a implícita alienação e fragmentação do ser humano minam o equilíbrio da ordem natural entre os seres humanos e seu ambiente. Para Morrison (2008), em consequência deste desequilíbrio, o interior das pessoas murchou e o lado selvagem surgiu, tornando-as escravas das suas próprias alienações: “desprendidos da alma da terra, eles insistiram na compra do solo dela, e, como órfãos, eram insaciáveis. Seu destino era devorar o mundo e cuspir
de se situar lado a lado com os outros elementos da biota; de ver o outro como igual; de reconhecer comunicação e inteligência em todas as formas, não obstante a diferença entre nós, seres humanos, de que forma, portanto, a narração traduz este compromisso de reabitação? Neste sentido, qual é a ligação entre o “inconsciente político” (Jameson), o “inconsciente cultural” (Bourdieu) e o “inconsciente ecológico” (Walter) (Walter) que aponta para uma possível atitude descolonizadora do texto? Como é que as práticas literárias articulam conceitos da natureza? Quais os valores atribuídos à natureza e formas de vida não humana e por quê? Qual é a relação entre seres humanos e a natureza num processo histórico? Como é que percepções da natureza moldam os tropos e gêneros literários? Como estas figuras literárias contribuem para formar atitudes sociais e culturais perante o ambiente? Como é que a percepção espacial do território estrutura textos ideologicamente? Como é que o tempo figura nesta percepção? A relação entre a espacialização do tempo e a temporalização do espaço se resume no binarismo natureza: tempo mítico/
um terror que destruiria todos os povos primários”76. Neste cenário, a geografia, como em Faulkner, figura como registro alegórico da história e da decadência humanas ou, como em Chamoiseau, como fonte mágico-realista (neorromântica?) de reconstrução não somente imaginativa como também física/identitária. Neste sentido, se ntido, e
cidade: tempo artificial? Como é que a memória traduz a história? Se a geografia é uma forma de viver, uma memória incorporada e simbolizada, como a memória traduz a geografia? Se estas traduções mnemônicas indicam um tipo específico de verdade cultural, quais as características desta verdade? E, por fim, a pergunta-chave implícita nas acima mencionadas: como a identidade (individual/ coletiva) é ligada à geografia? A meu ver, estas perguntas conotam
75 76
(MORRISON 1992:3) (MORRISON 2008:54)
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e denotam assuntos-chave em circunstâncias de experiências vivenciadas entre lugares, mares e epistemes epistemes étnico-culturais étnico-culturais como nas Américas, caracterizadas por uma dicotomia entre a força convincente e a última impossibilidade da realização do mito edênico, o
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Capítulo 17
Vozes autóctones das
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Américas: o discurso contracanônico da crítica indígena E P S Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Com poucas exceções, os romancistas indígenas — exemplos de índios que repudiaram seus enredos designados — em sua ficção, rejeitam o gótico americano com sua selva assombrada e carregada de culpa e o autóctone condenado, enaticamente enaticamente azendo do índio o herói de outros destinos, outros enredos.* Louis Owens
A epígrafe, oriunda da introdução do livro de Owens, Outros destinos nos (1992), (1992), norteia o trabalho de mapear a voz critica indígena nos Estados Unidos e no Canadá, de que forma ela cria um vocabulário que permite ler a literatura indígena sob o ponto de vista das próprias culturas autóctones e oferece ao leitor euro-americano uma visão não canônica de obras de ficção nelas enraizadas. Leitura Le itura essa que é possível estender a exemplos recentes da literatura indígena brasileira. Nos Estados Unidos, a literatura indígena escrita em inglês começa a ser escrita no século XVIII e no século XX, ultrapassados os relatos a antropólogos, o memorialismo, a mitologia, se insere nos gêneros euro-americanos consagrados, que têm um marco significativo na atribuição do Prêmio Pulitzer, em 1969, a Scott Momaday, pelo romance autobiográfico House made o dawn dawn (1968). Na segunda metade do século XX, consolida-se a produção de romances,
nota inicial *
“With few exceptions, American Indian Indian novelists novelists — examples examples of Indians who who have repudiated their assigned plots — are in their ction rejecting the American gothic with is haunted, guilt-burdened guilt-burdened wilderness and doomed Native and emphatically making the Indian the hero of other destinies, other plots” (OWENS 1992:18).
poemas, peças de teatro, filmes, músicas, da mesma qualidade daquela produzida por qualquer outra etnia, inclusive a hegemônica, um corpus corpus hoje hoje conhecido como Native Literary Renaissance. Renaissance. Consolida-se também a presença de ameríndios nas universidades, inclusive como professores, e desenvolve-se uma corrente crítica — denominada de “crítica vermelha” por Craig Womack – que produz reflexões sobre os principais temas e estratégias críticas
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dos escritores indígenas contemporâneos, com mais de duas décadas de publicações ainda pouco difundidas nos círculos literários e acadêmicos. Vermelha é a palavra escolhida justamente para evitar o equivocado e homogeneizador “índio” “índio” e por carregar a marca da re-
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tema literário e, principalmente, para assumir que a vida tribal vai continuar a existir no futuro” futuro”5. Para Womack a literatura norte-americana e a literatura indígena formam dois cânones separados e “as literaturas tribais não são um ramo do tronco principal, mas como
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sistência à representação autóctone na literatura euro-americana. O acadêmico creek-cherokee Womack é um dos críticos mais radicais e seu livro Red livro Red on red (1999) (1999) conclama a uma “autodeterminação literária” por parte dos indígenas estadunidenses 1, uma vez que “é possível ministrar cursos sobre literatura e crítica com textos de autoria exclusivamente indígena” indígena”2. Este chamamento já fora feito pela escritora sioux-escocesa Paula Gunn Allen, em um livro de ensaios críticos e ementas de cursos acadêmicos sobre literatura indígena, Studies in American Indian literature literature (1983). Em um dos ensaios, Allen analisa as dificuldades de lecionar literaturas não ocidentais a uma audiência familiarizada com os termos “primitivo”, “selvagem”, “pagão” e “folclórico”3. Womack se rebela contra os tipos de “inclusão colonial” das literaturas indígenas nos programas acadêmicos sob denominações como “étnica”, em cursos de largo espectro comparativo, desconsiderando suas especificidades tribais. Ou “multicultural”, onde um autor indígena pode ser lido ao lado de Amy Tam e Ralph Ellison, todos alinhados sob “as mesmas malditas citações de Bakhtin [...], reduzindo os estudos literários a pouco mais do que uma versão acadêmica do do melting pot ”4. Para ele, “o nativo e o não nativo estão sempre desconstruindo um ao outro” e por isso a literatura indígena faz muito “para legitimar a experiência tribal como um 1 2 3 4
(WOMACK 1999:1) (WOMACK 1999:3) Como as obras mencionadas não têm tradução para o português, optei por parafrasear ao invés de traduzir, destacando entre parênteses expressões e denições relevantes ao assunto deste texto. (ALLEN 1983:3) (WOMACK 1999:8)
as literaturas mais antigas das Américas, elas são o cânone”6. O escritor canadense cherokee-grego, omas King, declara o termo pós-colonial inaceitável em relação às literaturas indígenas. Ele chama o triunvirato — pré-colonial, colonial e pós-colonial — de “etnocentrismo não disfarçado” e “desconsideração bem-intencionada””. King coloca o problema do termo em seu “inescapável tencionada nacionalismo” e na “perigosa crença de que o ponto de partida de qualquer discussão é a chegada dos europeus à América do Norte”. Ele completa, acusando os estudos pós-coloniais de organizarem a literatura progressivamente, “com a implicação de progresso e desenvolvimento””, e de assumir que “o catalizador para a literatura insenvolvimento dígena é a luta entre opressor e oprimido oprimido””. Segundo King, a literatura pré-colonial não tem qualquer relação com c om a literatura colonial, não fazem parte de um ciclo natural ou biológico, nem uma antecipa a outra. Assim, as literaturas indígenas contemporâneas não podem ser classificadas como pós-coloniais “pelo fato óbvio de que não há um ‘pós’ ao status status colonial colonial dos indígenas norte-americanos”.7 Womack destaca o papel cada vez mais importante que as tribos e seus membros devem ter na avaliação das literaturas tribais. Um dos temas mais importantes dentro da literatura indígena é justamente esta afiliação tribal, daí o destaque para a nação de origem dos críticos e escritores aqui citados, prática adotada por todos os escritores indígenas. O choctaw-cherokee-irlandês Louis Owens, acadêmico fluente nos discursos ocidentais do pós-modernismo 5 6 7
(WOMACK 1999:3) (WOMACK 1999:7) (KING 1997:242)
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e do pós-colonialismo, reconhece que essa “rearticulação” de uma identidade é “uma tarefa enorme” e central à ficção indígena, devido de vido a obstáculos que ele chama de “invenções” do índio americano na imaginação coletiva e a noção de que esta figura desapareceu há muito tempo e foi substituída pelo autóctone atual e sua experiência contemporânea. Desse “descompasso entre mito e realidade” realidade”,, surge
“cosmopolitas, híbridos, ou mesmo exóticos com impunidade” 13. Cook-Lynn indica o romance Almanac o the dead (1991), da escritora laguna-pueblo Leslie Marmon Silko, como um exemplo de “pantribalismo nacionalista ficcional” por retratar de forma asserti va a luta pela posse de terras retiradas das tribos durante o período colonial e por difundir a ideia “de que a imaginação tem um papel
a maior parte da arte indígena 8. Para Owens, a questão do gênero literário também é importante, pois um poeta indígena ainda consegue ver-se como parte de uma antiga tradição oral de contadores de história, enquanto o romancista autóctone trabalha sem protótipos indígenas, com a consequente “desacralização” “desacralização” do material tradicional e sua “descontextualização” dentro do mundo da arte ou da literatura 9. Segundo Owens, o romancista autóctone precisa superar traços de uma “etnostalgia rousseauista” comum ao tratamento do indígena em romances euro-americanos. O resultado positivo desta estratégia é a colocação subversiva do leitor indígena em uma posição privilegiada, enquanto o leitor não indígena passa a ser o “outro” 10. Ao apropriar-se da “outra língua”, o escritor indígena está “entrando em diálogo com o próprio idioma do colonizador”11. A escritora crow, creek, sioux Elizabeth Cook-Lynn reforça a importância da filiação tribal, pois ela vê como tarefa do escritor indígena mitificar a sua relação com o espaço e lutar contra um
funcional na vida política e social, uma ideia que a maioria dos tradicionalistas indígenas que conheço abraçam”14. Allen acrescenta que o objetivo da literatura indígena não é puramente a autoexpressão, mas através dos cantos, lendas e histórias sagradas, incorporar, articular e compartilhar realidades, “sentir dentro de si o conhecimento comunitário da tribo”15. Cook-Lynn, como Allen e muitas outras escritoras, defendem o papel central da mulher indígena nas culturas tribais. Para Allen, “as raízes do feminismo branco tem raízes vermelhas”16. Não reconhecer sua mãe, segundo ela, é a incapacidade de lembrar seu significado, sua realidade, sua relação correta com a terra e a sociedade. “É a mesma coisa que estar perdida — isolada, abandonada, estranha e alienada de sua própria vida”17. Ela vai além e declara que se as tradições autóctones tivessem sido seguidas, “o lugar da mulher na sociedade seria central, a distribuição de riqueza e do poder seriam igualitárias, os idosos seriam respeitados, homenageados e protegidos como uma fonte social e cultural primária, os
cânone onde “a morte e o enterro de sua presença é tão explícita” e encontrar formas de “fazer a reconciliação necessária com a continuidade e a historiografia primordial”12. Ela considera um erro de certos escritores indígenas pensarem que é possível se tornarem
ideais de beleza física seriam consideravelmente mais amplos [...] a destruição do bioma, a esfera de vida e os recursos naturais do planeta seriam poupados e a natureza espiritual da vida humana e não humana se tornariam o princípio organizacional da sociedade
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13 14 15 16 17
(OWENS 1992:5) (OWENS 1992:11) (OWENS 1992:14) (OWENS 1992:15) (COOK-LYNN 1996:33)
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(COOK-LYNN 1996:84) (COOK-LYNN 1996:89) (ALLEN 1983:4) (ALLEN 1988:13) (ALLEN 1988:14)
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humana”18. Para ela, os norte-americanos resistem ao conceito de “indianização””, mas ela aconteceu e está na raiz dos valores pessoais, “indianização pess oais, 19 familiares, sociais e políticos . Um dos exemplos de indianização mais citados é a consagrada democracia estadunidense, que segun-
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continuam amarrados a narrativas de dominação que os trocam por “índios”. No lugar desse significante genérico, ele sugere que os po vos sejam referidos pelo nome nome de suas tribos e, sempre que possí possível, vel, colocados em seu contexto tribal específico. Para discutir estudos
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do especialistas, seria modelada na Confederação Iroquesa. Como Owens e Allen, Gerald Vizenor também descende de índio e euro-americano e seu trabalho explora o que isso significa no mundo contemporâneo, definindo-os como sujeitos crossblood . Para este membro da tribo chippewa de Minnesota, o termo “não possui validação social ou científica (como mulato ou mestiço) porque não é uma medida de consciência, cultura ou experiência humana””, mas define aqueles que, como ele, “mergulham em cantos humana urbanos desconhecidos, na escuridão racial das cidades, para criar uma nova consciência de coexistência coexistência””20. Duas de suas obras não ficcionais, Crossbloods (1990) e Mani e Maniest est Mannerss (1999), criticam tanto o nacionalismo autóctone quanto Manner as atitudes coloniais dos euro-americanos. Como bom leitor de Derrida, Vizenor revisita a discussão sobre “índio” “índio” ser um termo in ventado pelos “invasores “invasores euro europeus”: peus”: antes antes do primeiro primeiro desembarque de Colombo não havia “índios”, mas povos de várias tribos, como os Anishiinabe ou Dakota. A expressão maniest manners refere-se manners refere-se ao legado do Mani Maniest est Destiny Destiny 21, ou à forma como os autóctones 18 19 20 20 21 21
(ALLEN 1988:15) (ALLEN 1988:23) (VIZENOR 1981:IX) A losoa do Destino Destino Manifesto viajou viajou com Colombo Colombo para a América América e desembarcou com os pilgrims em Plymouth. A expressão, popularizada por John Louis O’Sullivan em 1845, arma a visão republicana dos estadunidenses, estadunidenses, valoriza a expressão individual e legitima desejos expansionistas imperiais que vêm justicando guerras há vários séculos. Suas intenções se consagram na importância da fronteira oeste, onde o contato com a natureza permite uma representação dos indivíduos como recompensa recompensados dos por Deus se bem-sucedido bem-sucedidoss economicamente, o que lhes permite a eliminação da barbárie, tanto a dos autóctones quanto a da aristocracia europeia, ambos vistos como avessos ao trabalho. Ironicamente, o Destino Manifesto está relacionado tanto à luta contra a escravidão sulista quanto à vasta e cruel diáspora interna a que foram submetidas os autóctones durante a expansão do país até o Pacíco.
indígenas mais gerais, Vizenor propõe o termo pós-índ pós-índio io,, que dá uma ideia da heterogeneidade das culturas tribais. Para descrever a experiência dos pós-índios, ele introduz a expressão survivance survivance,, uma combinação de sobrevivência com resistência, por carregar a implicação de um processo em andamento andamento ao invés de simples continuação e aponta para a natureza política da literatura indígena. Os personagens de Vizenor acreditam em mediação, segundo as culturas tribais, onde há uma busca por equilíbrio do homem entre outros homens e na natureza. Para o escritor, o objetivo cristão de livrar o ser, a alma, a comunidade de todo o mal é tão enraizado na consciência norte-americana que é expresso no discurso — guerra contra pobreza, guerra contra a ignorância e a selvageria — e o objetivo é destruir o inimigo completamente. A isso Vizenor denomina terminal creed (crença terminal), ou seja a crença de que o fim de um conflito se dá com o triunfo definitivo de um absoluto. Estas crenças Vizenor se dispõe a desconstruir com humor, ironia e uma linguagem que se recusa a enunciar significados absolutos. Assim sendo, sua arte tem como fonte o humor indígena e a figura do trickster 22, dois dos traços mais difundidos a unificar as culturas tribais norte-americanas. Seus tricksters pós-índios pós-índios representam estranhos atos de desconstrução do discurso literário estadunidense e são uma metáfora perfeita para as contradições existentes entre as duas cosmogonias. 22
A descrição do trickster em em português aparece como “malandro”, “embusteiro”, “malicioso”, “velhaco”, “atraente”, “arteiro”, termos que descrevem apenas um aspecto dessa gura, deixando de lado seu importante aspecto místico dentro das culturas autóctones, portanto, optei por usar o termo em inglês.
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O trickster Anishiinabe, oriundo dos mitos de criação, é compassivo, “aquele que cuida de equilibrar o mundo entre crenças terminais e humor com maneiras incomuns e estratégias entusiastas”. entusiastas”. E também fala uma nova linguagem, uma vez que “suas experiências e sonhos são metáforas”23. A linguagem que usa pode parecer tão incomum que se desmancha, mas é só uma ilusão de desintegra-
uma avó tola, armada de uma colher de chá, determinada a remover as três montanhas do caminho da liberação: a montanha do racismo, a montanha do sexismo e a montanha da opressão nacional” nacional”..27 Uma das formas de fazer isso, para ela, é a autoficção, que lhe permite examinar as condições de vida da mulher indígena desde “um lugar profundamente pessoal”28, explícito em I am woman (1996), woman (1996), onde
ção “porque não leva ao silêncio” 24. “Nas metáforas, certas palavras tomam sentidos novos, ou ampliados”. Os tricksters métis são métis são eles próprios “as novas metáforas entre as culturas tribais comunitárias e culturas que se opõem a conexões tradicionais, as culturas que se apossariam e comercializariam a terra” 25. Acima de tudo, os personagens de Vizenor são mediadores, nunca vítimas. O coiote nas histórias de omas King também é um personagem que toma várias formas humanas e animais, e por vezes pode ser fêmea, prega muitas peças e mostra inapelável bom humor. Como o de Vizenor, ele age como um mediador entre a cultura intrickster de dígena e a ocidental, entre índios imersos em suas culturas e índios aculturados e através de sonhos, danças, peidos, ele tenta “endireitar” o mundo, ou partes dele. Outra figura recorrente das “coy “coyote ote stories” de King é Primeira Mulher, memorável por “reencenar” a criação do mundo do ponto de vista nativo. “Primeira Mulher trata todos os homens, Deus, Adão ou Noé, como meninos, que por serem s erem lentos, birrentos ou assanhados, precisam de condescendência 26.
a alternância entre poesia e prosa nos aproxima da oralidade das narrativas indígenas. Tomson Highway funda em 1996 um Comitê para o Restabelecimento do rickster , juntamente com Lenore KeeshingTobias e Daniel David Moses. Em suas peças de teatro Dry lips oughta move to Kapusaking (1989) e Rose (2003), Highway nos apresenta uma trickster configurada configurada a partir das culturas cree e ojibway, onde o uso da língua cree cria um diferencial que obriga ao leitor a usar as traduções para o inglês no rodapé dos livros, mas expõe os espectadores das montagens a um esforço maior de compreensão destas outras línguas e culturas. Como fez Arguedas, no Peru, com seu romance El zorro de arriba y el zorro de abajo abajo (1971), eivado de quéchua, que altera o castelhano de forma substancial, em um exercício de apropriação da forma escrita e ao mesmo tempo de resistência, através do que Alberto Moreiras chama de “implosão do significado” (2001). As duas obras denunciam a opressão e a violência contra as mulheres indígenas, a de Highway encenando,
A escritora Salish-cree Lee Maracle é uma das mais prolíficas escritoras canadenses, ativista do Red Power Movement e do Liberation Support Movement e crê que “a acumulação de pesares” dos povos indígenas vem de longo tempo. “Às “Às vezes me sinto como
inclusive, uma violenta cena de estupro. A questão da mestiçagem e a história de opressão contra as mulheres indígenas é examinada ainda pela sakimay-canadense Janice Acoose, que, como Owens e Vizenor, ostenta com orgulho o termo mestiça, baseada no famoso romance autobiográfico de Maria
23 23 24 24 25 25 26
(VIZENOR 1981:XII) (VIZENOR 1981:XVII) (VIZENOR 1981:XVII) (SANTOS 2007:204) Sobre o trickster , indico a leitura de KRUPAT (2003:15-40); e de CUNHA (2005)
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27 (MARACLE 1996:X) 27 28 (MARACLE 1996:XI) 28
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Campbell, Halreed (1973), (1973), um livro sobre ser métis métis,, audacioso para a época. época. Acoose analisa a “elevação” de mulheres que mantiveram relações com cristãos brancos, Dona Marina, a Asteca que teve uma ligação com Hernando Cortez; Pocahontas, que salvou John Smith
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sobre a possibilidade de se ministrar um curso exclusivamente sobre autobiografia e mulher indígena no Canadá, assim como nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que afirma a validade de usar a língua inglesa para representar suas experiências, renomear e re-
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e seus homens da morte ao guiá-los por terras indígenas; e também oferece várias ilustrações do Novo Mundo representando “m “mulheres ulheres com aspecto real” e “mulheres majestosas com arco e flecha” e pouca roupa. Depois do período colonial, elas passaram a squaws squaws,, ou mulheres indígenas de má reputação, para justificar o expansionismo imperial e as agendas missionárias, bem como para satisfazer o apetite sexual de comerciantes de peles e exploradores. Acoose cita documentação abundante da história e da literatura euro-canadense sobre a sobrevivência desse estereótipo até nossos dias 29. Segundo ela, isso contribui para “perpetuar a violência sexual, física, verbal e psicológica” contra as mulheres indígenas. Até hoje, elas precisam lutar contra uma combinação de racismo e sexismo, legal e politicamente, enquanto reivindicam seu papel central como guardiãs da cultura e autonomia sobre seus corpos 30. Como prova da injustiça da permanência desse estigma, Acoose percorre uma lista de autoficções de mulheres indígenas canadenses que a precederam: Emma LaRoque, Beatrice Culleton, Jeanette Armstrong, Lee Maracle, Ruby Slipperjack, Marie Anneharte Baker, Beth Cuthand, Louise Halfe31, Patricia Monture-Okanee, Monica Goulet, Marylyn Dumont, Mary Sky Blue, uma lista de “mulheres que sobreviveram para contar suas histórias e encontram solidariedade e conforto entre suas irmãs” 32. Elas compõem, com vários outros nomes, uma lista que corrobora a visão de Womack e Allen 29 30 31 32
(ACOOSE 1995:44-45) (ACOOSE 1995:58) (ACOOSE 1995:39) (ACOOSE 1995:104)
definir seus povos originais 33. Na academia brasileira, as literaturas indígenas aparecem escassamente, incluídas em cursos como Literaturas de Língua Inglesa ou Literatura Pós-Colonial, analisadas de forma fragmentária e sob uma visão insistentemente pós-colonial. Os autores indígenas brasileiros raramente escapam da classificação de literatura infanto-ju venil, mas legislação recente oferece a oportunidade de introduzi-la nas escolas de forma mais consistente. c onsistente. A partir do final da década de 1980, os indígenas brasileiros começam a obter reconhecimento através de obras sobre suas culturas e mitos e podemos reconhecer pelo menos trinta autores indígenas com trabalhos relevantes publicados. Como aponta Daniel Munduruku, “é importante dizer que estamos conquistando espaço não porque somos ‘exóticos’, mas porque escrevemos bem”. 34 Munduruku, com cerca de 40 obras publicadas, é considerado um dos mais influentes escritores da atual literatura indígena no Brasil. Formado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, foi um dos primeiros índios a obter um doutorado no país. Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), ele não hesita em afirmar que a escola brasileira ainda reproduz uma visão meticulosamente construída pelos colonizadores no século XVI, responsável pelo preconceito contra os índios, o que justifica o engajamento político da literatura indígena no Brasil. 35 33 (ACOOSE 1995:58) 34 www.alman 34 www.almanaquebrasil.com.b aquebrasil.com.br/index.php?option= r/index.php?option=com_content&view=article&id com_content&view=article&id =10634:daniel-munduruku&ca =10634:dan iel-munduruku&catid=12956:cultura tid=12956:cultura&Itemid=168-54k &Itemid=168-54k.. Acessado em 22/02/2012. 35 www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id 35
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Em O Banquete dos Deuses: Conversa sobre a origem e a cultura brasileira (2000), Munduruku examina a problemática do preconbrasileira (2000), ceito em sala de aula, investiga as origens da visão deturpada que os professores fazem a respeito dos povos indígenas e aponta caminhos para uma educação humanista no Brasil. Suas Histórias de índio (1996) índio (1996) trazem pela primeira vez — en-
só depois de cumprir as tarefas que lhe são propostas é que ele sai vencedor”36. O empresário Carlos, não muito feliz com sua vida, embora financeiramente bem-sucedido, voa de São Paulo ao Mato Grosso para o enterro da mãe, mas seu avião cai na selva, onde é resgatado e tratado por um pajé. O homem forte, pintado de vermelho e preto,
tre o conto mítico “O menino que não sabia sonhar” e informações sobre os povos indígenas do Brasil, sua diversidade e problemas contemporâneos — retratos da vida do índio urbano. As histórias abordam os vários encontros entre paulistas de todas as idades com esse estranho desconhecido que é o índio brasileiro, revelando um cotidiano de desconhecimento, indiferença e preconceito, que Munduruku combate com ironia, bom humor e didatismo. O índio urbano está presente em 80% dos municípios brasileiros e Munduruku oferece uma contribuição importante para subverter os resquícios de romantismo sobre os povos nativos que ainda prevalecem em nossa cultura e demonstram o quão colonial ainda é nossa visão da inter-racialidade brasileira, segundo a qual, para a maioria dos brasileiros, índio é aquele que ainda vive na selva uma vida pré-cabralina. Em Em odas as coisas são pequenas pequenas (2007), Munduruku faz a primeira tentativa de um índio brasileiro de inserir-se formalmente no gênero romanesco ocidental. Em sua análise da obra, Eurídice
que fala português “com algum sotaque”, enfrenta o desconhecimento de Carlos com fina ironia e sua opinião dos brancos não é das melhores: não sabem o que é generosidade, são sempre arrogantes, opiniões reforçadas pelas repetidas ofertas de Carlos de pagar pelo seu salvamento e retorno “à civilização”37. Aos poucos, Carlos vai aprendendo com o pajé sobre as frutas, os animais, a sabedoria da selva, bem como a visão de um mundo de trocas, de lealdade, mas precisa passar pelos rituais que ensinam os saberes ancestrais ao mesmo tempo em que resgata recordações comoventes de sua infância. Carlos vai ficando com muita saudade de casa, mas uma saudade diferente, de se reencontrar com o seu melhor lado, menos materialista, mais voltado à comunidade e à família, que nunca antes havia pensado em iniciar. O que ele aprende, afinal, é que nenhum império vale a renúncia aos valores humanos, da ética, da lealdade. Afinal, “todas as coisas são pequenas”38, e isso dá ao cotidiano uma dimensão inteiramente nova. De volta à “civilização “civilização””, Carlos age de forma totalmente diversa: enamora-se de sua enfermeira manauara e a leva para São Paulo, deixa as empresas e cria uma universidade para pessoas de baixa renda, onde tenta ensinar “práticas alternativas de convivência entre o homem e a natureza” e as festas em sua casa são “para celebrar a vida que nos foi dada com muita alegria”39.
Figueiredo salienta duas características: “uma visão polarizada, em que as pessoas do mundo civilizado têm objetivos excessivamente materialistas enquanto o mundo indígena está integrado com as forças da natureza” e sua filiação “à longa tradição do romance de provação, pois o personagem deve passar por uma série de provas; =10634:daniel-munduruku&catid =12956:cultura&Itemid=168-54k. Itemid=168-54k. Acessado em =10634:daniel-munduruku&catid=12956:cultura& 22/02/2012.
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(MUNDURUKU 2010:132) (MUNDURUKU (MUNDURUKU (MUNDURUK U 2010:49) (MUNDURUKU (MUNDURUK U 2010:129) (MUNDURUKU (MUNDURUK U 2010:157)
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Munduruku opõe dois homens, o índio e o branco, subvertendo a lógica romântica do envolvimento afetivo-sexual entre as duas raças e as preocupações com a mestiçagem. Nenhum dos dois morre ou subjuga o outro e ambos retomam suas vidas, o branco
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sobre o qual, no entanto, paira a imagem de seres distantes, desconhecidos e temidos. Entre os personagens de Karaíba de Karaíba,, há uma preocupação com a descendência, com a captura de esposas em outras tribos, evitando
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mais modificado pelo encontro do que o índio. Essa relativização das duas culturas humaniza os personagens indígenas e reverte o encontro de culturas em que o homem branco possui uma cultura valorizada e a dos índios é ignorada ou combatida. Neste encontro, quem tem a ensinar é o índio, sua filosofia de respeito à natureza, de vida comunitária, de desapego aos bens materiais e inessenciais à felicidade. No entanto, a inversão das relações entre brancos e índios, civilização e selva, ao preservar a dicotomia entre as cosmogonias, soa didática demais e a transformação radical de Carlos desenha uma utopia um tanto fora de lugar no século XXI, principalmente se tomarmos em conta a vida dos grupos indígenas na maior metrópole brasileira e as dificuldades por que passam aqueles que ainda tentam preservar seu estilo de vida em áreas mais remotas do país. O que não se pode deixar de ressaltar é o valor da obra ao inserir a voz indígena neste gênero que nasceu com a literatura brasileira, em Basílio da Gama e Alencar, e cresceu sob o ponto de vista do brasileiro branco e urbano. No segundo romance, O Karaíba: uma história do pré-Brasil (2010), Munduruku retrocede a antes do encontro entre europeus e ameríndios e narra um universo de histórias ancestrais que pretendem recriar a ignorada era pré-cabralina. Como diz o Karaíba, “é preciso conhecer o passado para entender o presente e sonhar o futuro”40. O livro mergulha na vida de três grupos indígenas que vivem segundo suas crenças, costumes e rivalidades em um Brasil 40 Orelha da obra, redigida redigida por Munduruku.
a consanguinidade, com a preservação da tribo, preparação para a guerra com as outras tribos ou grupos, em ouvir os mais velhos e sábios, interpretar as previsões místicas e sonhos que retratam costumes ancestrais. Também há sinais de uma inescapável contemporaneidade em suas figuras centrais: Perna Solta é poupado da morte por seu defeito físico, enquanto o pai de Potyra permite que ela torne-se uma guerreira, flexibilidades que poderiam significar um fim trágico nas comunidades na época. Essa humanização do índio na sua flexibilidade, responsabilidade social e afeição a seus familiares demonstra um cuidado em não mostrar os índios como “selvagens”” antes da chegada dos europeus. “selvagens A história narra a missão de Perna Solta, que se torna um mensageiro porque suas pernas fracas não lhe permitem tornar-se um guerreiro. Encarregado de descobrir as intenções de outros grupos rivais, ele também percebe estranhos sinais de um perigo maior, ainda desconhecido. Ele sonha que em uma grande planície as ár vores falam entre si em uma linguagem que ele não entende bem, mas ouve, “Eles estão vindo. Estão vindo. Estão...” 41. E de Potyra, que se torna uma líder guerreira, atribuição tipicamente masculina nas culturas indígenas, lembrando as mulheres da tribo da lenda das Icamiabas, que lembra muito a das Amazonas. Ela terá a missão de casar com um inimigo para unir seus povos e ter um filho que preparará para esta outra guerra. No entanto, os três grupos rivais determinados a lutar uns contra os outros, acabam convergindo para uma clareira por terem 41
(MUNDURUKU (MUNDURUK U 2010:22)
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interpretado de forma equivocada a mesma profecia do Karaíba, o sábio e profeta respeitado por todos. O motivo da reunião dos líderes é a de anunciar a eles “tempos difíceis”. Com essa previsão, os três grupos comemoraram em conjunto a união para lutar contras “os caçadores de almas” e voltaram para suas aldeias para comemorar os casamentos que lhe garantiriam
brasileiros como “selvagens, atrasados, desorganizados, canibais e preguiçosos”45. Essas afirmações a obra rebate ao mostrar os indígenas como leais, corajosos, organizados em comunidades que viviam em harmonia com a natureza circundante, respeitadores de seus líderes e de suas tradições, seres humanos que guerreavam, amavam, odiavam, tinham inveja, ciúme, compaixão.
este novo futuro. Perna solta e Maraí têm dois casais de filhos, um deles escolhido pelo sábio para ser um Karaíba. Potyra casa com Periãntã, e dá à luz seis meninos e duas meninas e a todos ensina a arte da guerra. O primeiro de todos foi seu escolhido e o nomeou Cunhambembe, o garoto que um dia avistou um ponto branco que surfava sobre a água salgada e gritou, em pânico, “os fantasmas estão chegando, os fantasmas estão chegando” 42. Cunhambembe foi o líder dos Tupinambás mais temido pelos portugueses e por eles descrito como o mais sanguinário canibal, enquanto sua tribo o via como o mais bravo de seus guerreiros 43. A filosofia indígena de cooperação, descrita em e m Karaíba como o encontro final dos três grupos na clareira nos remete à Confederação dos Tamoios (1556-1567), por exemplo, e xemplo, liderada pelos Tupinambás e por um período pelo próprio Cunhambembe, e por certo é uma crítica à exterminação dos povos indígenas. Os portugueses se inscreveram na história das “crenças terminais” que Vizenor descreve. Em seu breve posfácio, Munduruku deixa a seus leitores a ta-
Percebe-se neste livro novamente uma inversão muito linear da visão popular popular do indígena, indígena, mas o mais notável é a pr presença esença constante constante do “fantasma” do europeu na narrativa. Por um lado, explica-se pelo colapso temporal típico da oralidade tribal, em que passado, presente e futuro coexistem e se contaminam. Por outro, revela esse índio contemporâneo, que tenta inserir sua voz na cultura hegemônica recriando um tempo anterior ao contato com o europeu e ao mesmo tempo reafirmando a violência do processo colonial, sua irreversibilidade e a perpetuação dos equívocos nascidos dos primeiros contatos contatos e profundamente disseminados na cultura brasileira contemporânea e muitas das reflexões pós-coloniais sobre o assunto. Além do mais, essa tentativa de recriar tempos pré-coloniais me parece rara, se não inédita, na literatura indígena das Américas, e embora escrita e em português, busca combinar a narrativa contemporânea com a mítica das culturas indígenas. A obra de Munduruku, ao mesmo tempo em que reafirma todo o pesadelo do processo colonial para os indígenas, deixa claro o sonho de
refa de completar a história que “termina quando começa o relato por parte dos invasores”44, aqueles que descreveram os indígenas
reconhecimento de sua resistência inabalável e de sua significativa contribuição para uma cultura que os desconhece, a não ser como figura mítica, tornando invisíveis suas demandas por integração completa ao Brasil contemporâneo contemporâneo.. Eliane Potiguara é escritora, poeta, e ativista pelos direitos indígenas há 30 anos, uma das poucas mulheres indígenas com uma
42 43
(MUNDURUKU 2010:94) Alguns romances indianistas indianistas recentes fazem fazem uma boa revisão revisão dos conceitos coloniais enraizados na cultura brasileira. Antonio Torres escreveu uma obra em que se ocupa de revisar os documentos históricos sobre o líder indígena, apropriadamente apropriadam ente intitulada Meu querido canibal (2000). (2000). Mesmo que Munduruku não tenha lido o livro, a escolha do nome do lho de Potyra é muito signicativa para passar despercebida despercebida.. 44 (MUNDURUKU 2010:95)
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(MUNDURUKU (MUNDURUK U 2010:95)
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educação de nível superior no Brasil e toda sua rica vivência encontra-se elaborada em Metade em Metade cara, metade metade máscara máscara (2004) (2004) , , sob sob várias formas narrativas — testemunho, poesia, autobiografia, ficção — que se entrelaçam para recuperar errâncias físicas e intelectuais, a luta
Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas
proponha uma utopia em um mundo tão conturbado. A visão utópica faz parte da visão poética do mundo, inerente às culturas ameríndias. Se o resgate de suas culturas já não pode ser feito de forma real, ele nunca deixou de existir nas narrativas tradicionais.
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por autoestima e pela manutenção de sua tradição cultural, e pela recuperação da identidade e da dignidade da mulher indígena, na mesma linha seguida pela maioria das escritoras norte-americanas e canadenses aqui mencionadas. O livro de Potiguara se assemelha em estrutura a I am woman, woman, de Lee Maracle, por exemplo46. As vozes e as experiências que o livro de Potiguara reúne são da tradição oral do seu próprio povo, transmitidas pelas histórias de sua avó e através de visitas à sua Paraíba natal. Mas também de Kaiapós e de Charruas uruguaios, que ela conheceu através de seu esposo, o cantor popular de origem Charrua, Taiguara. Taiguara. O livro é curto, tem 138 páginas, mas cobre quinhentos anos de desastroso contato entre índios e brancos no Brasil. Começa por recuperar a história das primeiras invasões de território indígena em tempos modernos, as neocolonizações da mineração, da abertura de estradas, das queimadas para pastagens, a consequente migração indígena, a separação das famílias, a violência, o racismo, a intolerância com as mulheres como as maiores vítimas. A avó de Eliane, conforme ela nos relata, foi uma dessas vítimas e, separada do pai de seus filhos, vendeu bananas nas ruas da cidade para sustentá-los. Eliane foi a primeira mulher da família a ser educada e a emergir da pobreza, tornando-se uma professora primária apaixonada pelos conceitos de educação popular de Paulo Freire. Chama a atenção que o “mundo possível” de Potiguara também 46 Come on, Sister , de minha autoria (47-62), e Writers and storytellers, Lee Maracle and the consolidation of Indigenous Literatures in Canada and Brazil (p. (p. 63-82), de Rubelise da Cunha, são artigos que comparam a obra de Potiguara à das escritoras canadenses Acoose e Maracle. Interfaces Brasil/Canadá. Vol 15, UFF e Centro Universitário La Salle, 2012.
Sua história pessoal se funde com a biografia de sua avó e também se alonga para cobrir quinhentos anos de impacto colonizador sob a forma de uma narrativa de ficção. O casal Jurupiranga e Cunhataí é separado pela chegada dos primeiros colonizadores e vaga separadamente por quinhentos anos, sofrendo e registrando a perda das tradições e o desespero dos povos indígenas. Cunhataí encarna a consciência das mulheres indígenas separadas de seus companheiros, escravizados, mortos ou foragidos, deixadas para trás na pobreza. Jurupiranga escapa de ser escravizado e inicia uma peregrinação pelo país e pelas Américas, onde ele vê centenas de homens cabisbaixos, trabalhando nos campos de algodão, café, milho, arroz, muitos morrendo. Ele vê as colonizações do estanho e do cobre, da cana-de-açúcar, da madeira e do látex. Ele vê centenas caírem ante as armas dos “neoamericanos”, ingleses, franceses, espanhóis, portugueses e brasileiros. Ele cruza o deserto do Arizona e sucumbe, esquece os sons de sua flauta e os ritmos de seu tambor. Ele viaja pelo passado, pelo presente e pelo futuro. Ele passa fome e cai doente com os piores males invasores: a tuberculose, o tifo, a malária, a escarlatina, a loucura, o HIV, a hepatite e também o vírus da insegurança, do desespero, da falta de esperança. Ele vê a água do planeta ser contaminada e desperdiçada, a biodiversidade destruída. Um dia, deitado embaixo de uma árvore e enfraquecido com seus problemas, ele sonha. Ele vê documentos sendo redigidos e mesas cobertas de mapas. Os homens brancos de roupas escuras tinham que aceitar as decisões dos índios, porque agora havia tratados internacionais e itens na constituição trabalhados por séculos
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Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas
pelos povos indígenas. Num piscar de olhos, ele vê a Universidade Indígena e muitos jornalistas, antropólogos, historiadores e advogados indígenas contando sua própria história. Ele vê bibliotecas inteiras cheias de escritos escr itos dos índios. Mulheres indígenas são respeitadas quando vão às compras ou quando precisavam de atenção médica, educacional ou legal. Os velhos são venerados por todos. Advogados
narrativa ameríndia, onde as histórias dos ancestrais são sagradas e constituem a memória e a identidade do povo que as transmite de geração em geração e onde a história individual e a coletiva se fundem no ato de narrar. O livro de Potiguara, como de Acoose e outras autoficções de mulheres indígenas, desafia classificações: não é um romance,
indígenas haviam conquistado o direito de serem reconhecidos em sua ancestralidade e de serem reintegrados ao seu povo. Ele percebe novas tecnologias sendo usadas por índios jovens que dialogavam com os mais velhos sobre suas tradições. Os sonhos são equivalentes a visões sagradas e transformados em narrativa tanto por Jurupiranga, em seu relato a Cunhataí, quanto por Eliane, em seu relato ficcional. A peregrinação peregr inação e os sonhos de Jurupiranga transformados em narrativa permitem a reinserção da história dos conflitos coloniais, pós-coloniais e neocoloniais entre ameríndios e euro-americanos, mas também resgatam as partes perdidas ou silenciadas dessas culturas ao listá-las em um livro publicado na maior cidade brasileira no início de século XXI. O didatismo e o ativismo, explícitos em alguns trechos do relato ficcional também funcionam como uma conexão com as partes autobiográficas do livro, que termina com um belo poema de amor composto por Cunhataí para Jurupiranga. Essa parte mais ficcional do livro reflete bem a tradição oral
embora encerre a história de Jurupiranga e Cunhataí; não é autobiografia, embora relate leituras, errâncias, aprendizados, ideias, memórias da autora que se confundem com os de sua avó e de seu alter ego, ego, Cunhataí; não é um livro de poemas, mas há vários deles entrecortando uma narrativa também poética. Não é um livro panfletário, mas faz uma defesa de fesa intransigente dos direitos indígenas neste país, das mulheres em especial e dos oprimidos do mundo em geral, e conclama a mudanças radicais. O texto de Potiguara amplia o panorama da situação sociopolítica dos índios no Brasil para uma dimensão literária onde ele pode ser resolvido, como em sua proposta das “aldeias de amor”. Metade cara, metade máscara é máscara é ainda pós-canônico, pois insere a voz ameríndia na literatura literatura indianista nacional nacional e desnuda um ponto ponto de vista alternativo ao dos escritores não indígenas sobre o encontro colonial e pós-colonial entre as etnias fundadoras da cultura brasileira, inclusive por seu alinhamento com os movimentos negros. A inserção desse tipo de texto em nossos cursos de literatura brasileira
ameríndia em que o tempo é sempre presente e tanto os acontecimentos passados quanto aqueles por vir se fundem em uma só realidade. O mesmo se dá com a imensa peregrinação geográfica de Jurupiranga. Vagar por quinhentos anos por todo o território das Américas é perfeitamente possível dentro da tradição oral, onde não há barreiras físicas e temporais, e tudo é construído a partir da própria narração. A qualidade poética do texto também é típica da
amplia o conceito de literatura brasileira e o próprio conceito de “romance””, bem como a percepção nossa herança cultural. “romance Como destaca Eurídice Figueiredo, em um capítulo que reúne Potiguara e Conceição Evaristo, “Em vez de uma nação homogênea, criada pelos intérpretes do Brasil, que excluía negros e indígenas ao diluí-los no amálgama chamado ‘Brasil mestiço’, o que vemos agora é a eclosão de vozes que narrativizam outras históras, outras versões
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sobre a nação”. E acrescenta, “Por conseguinte, aflora um contingente de escritores que reinvidica um pertencimento marcado pela etnicidade”47. Os escritores indígenas nos oferecem uma oportunidade de re-
Capítulo 17 . Vozes autóctones das Américas
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visar a visão estática estática da figura do indígena, suas culturas e suas vidas no mundo contemporâneo e o fazem nos termos das ideias e pontos de vista indígenas conforme eles evoluíram até a atualidade. Este ponto de vista deveria ser uma novidade reanimadora para o leitor não indígena, a reintrodução de uma mitologia milenar ignorada nos estudos americanos, dominados pelo conhecimento da mitologia greco-romana e europeia. Em tempos de preocupação com o futuro do planeta, de preservação do meio ambiente, as literaturas indígenas são muito atuais por mostrarem preocupações holísticas e ecológicas de convivência entre a humanidade e os demais elementos, em situação de igualdade de valores essenciais e responsabilidade pelo mundo que habitamos. Essa visão, desmantelada e eclipsada pelo processo colonial, ainda circula no continente, viva e preservada e é sem dúvida enriquecedor enriquece dor trazê-la para competir com o cânone euro-americano.
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(FIGUEIREDO 2013:152)
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Capítulo 18
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Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria
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da literatura A M Universidade Federal de Juiz de Fora
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Não se trata de falar do futuro, mas de deixar falar um futuro. Deixar um futuro ser. Criar dispositivos, não para prendê-lo, prevê-lo em seus possíveis já pensados. De outro modo, entregar um futuro à graça e ao mistério de seu próprio futurar. Preparar-se para saber ouvir os rumores e os rubores de seus gestos únicos que, incessantemente, invadem portas, janelas e paredes de todos os nossos cômodos. Inútil brigar com um futuro que passa, está passando, vai passar. Rearticulando Rimbaud, um futuro é um outro. Futuros uns. Útil — à vida, não ao utilitarismo do viver — é criar uma arte, uma engenharia de conceitos e práticas capazes de, cuidadosamente, acolher futuros, sem a tentação de querer reduzir seus perigos ao mofo reacionário dos que nunca nasceram, dos que, para muito viverem na linha do cronos cronos,, pouco, ou nada, vivem. Entregar-se ao futuro, tal como Roberto Corrêa dos Santos revisitando, em sua “arte de ceder”,, o projeto do super-homem de Nietzsche: ceder” o super-homem será não o mais forte não o mais duro não o mais livre
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Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura
será apenas o extremamente entregue1 2
final”, o “fim dos tempos”, a “morte da mudança”. Assim, se o cristianismo cria um tempo linear e irreversível, esse tempo apresenta também uma perspectiva messiânica de finitude. Na modernidade europeia dominante, de outro modo, cria-se um tempo que herda do tempo cristão sua linearidade e sua irreversibilidade, mas não sua finitude. Movido pela fé no homem, pela fé na emancipação racional
Há muitos modos de inventar futuros. O modo dominante no Ocidente moderno é aquele que, como nos ensinou Octavio Paz, em Os filhos do Barro, se inscreve e se escreve na temporalidade paradoxal de uma “tradição da ruptura” ruptura”. A complexidade temporal de tal tradição, segundo Paz, se distingue do que ele entende por “tempo cristão” e por “tempo primitivo”. O arquétipo temporal das chamadas “sociedades primitivas”, seu modelo de presente e de futuro, reside em um passado imemorial. A vida social dessas sociedades não se sustenta em uma “consciência histórica”, relati va a um tempo subordinado a mudanças sucessivas, mas em uma concepção ritualística do tempo, capaz de fazer, no presente, uma “repetição rítmica” do passado intemporal. Passado e presente se conjugam em um tempo circular: “o passado arquetípico escapa ao acidente e à contingência; embora seja tempo, é também a negação do tempo: dissolve as contradições entre o que se passou ontem e o que se passa agora...”2 No cristianismo, essa circularidade temporal é quebrada. Ocorre uma cisão entre presente, passado e futuro. Cristo
das subjetividades, pela fé no progresso e na revolução, pela fé, de direita e/ou de esquerda, na possibilidade de se prever e “colonizar o futuro”, o tempo, na modernidade, não é mais comandado por uma natureza divina, mas pela dita consciência histórica do homem e sua suposta razão crítica, sua suposta subjetividade autônoma. O homem moderno aposta na possibilidade de ser, infinitamente, senhor de seu destino, o que Nietzsche chamaria de crença no “livre arbítrio”, crença na relação causa (sujeito) e efeito (atuação de um sujeito). Pensar, logo existir. O que ocorre é uma ilusão gerada nas órbitas da ficção gramatical (a lógica “sujeito — verbo — predicado”), já que, em última instância, “...não existe um tal substrato, não existe um ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação — a ação é tudo. [...] O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artifício de fé sobre a terra...”3 O tempo da subjetividade moderna é essencialmente negativo. Seus projetos estéticos, políticos e científicos vanguardistas, e/ou vanguardeiros, para “melhorar” o futuro,
veio à Terra Terra apenas uma vez. A partir do imaginário cristão, estabelece-se um corte entre um antes, um agora e um depois. O tempo se submete a mudanças sucessivas. Tempo irreversível e linear que aponta sua seta para o futuro. Mas no tempo cristão ainda há uma esperança de se retornar a um “eterno presente”. Trata-se do “juízo
se fundam na ideia de que o futuro pode ser previsto e melhorado a partir de uma constante superação de um passado imediato: “O novo nos seduz não pela novidade, mas sim por ser diferente; e o diferente é a negação, a faca que divide o tempo em dois: antes e agora”4. O tempo moderno é um tempo marcado por sucessivas
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(Apud PUCHEU 2012:4) (PAZ 1984:26)
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(NIETZSCHE 2001:36-37) (PAZ 1984:20)
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rupturas, inaugurando então uma paradoxal tradição: uma “tradição da ruptura”. ruptura”. A modernidade não empreende apenas uma crítica do passado não moderno, mas também uma crítica de si mesma. Para ser moderno, é preciso, constantemente, romper com o moderno. Críticas à modernidade não são menos modernas do que os
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garante boas férias na Indonésia. Pode aparecer por lá, de um modo sutil ou explícito, o tempo de um tsunami tsunami.. Como surfá-lo? 4
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entusiasmos em relação a ela. Ser a favor do “progresso” é ser a favor da ruptura, mas ser contra o progresso também o é. Ser contra a modernidade é também ser moderno. A paixão crítica, em muitas perspectivas e direções, é, para Octavio Paz, o elemento fundante da tradição da ruptura. O tempo moderno é, sim, um tempo sempre outro. Mas um pseudo-outro, um outro já calculável, de antemão, como resultado de uma negação prévia. O tempo teleológico da re volução industrial, traduzido na ideia de que a produção industrial de amanhã irá negar e superar a indústria de ontem, não é menos teleológico do que o tempo da “revolução etapista” desenhada nos contornos do marxismo ortodoxo e seus determinismos históricos. 3
O problema de se pensar no futuro como algo calculável, como uma aventura planejada e teleológica de um novo que se afirma negativamente e se situa em uma confortável linha reta e evolutiva, é que o tempo, em sua intensidade, não é assim: dialeticamente domesticável. Nas dobras do tempo mensurável, há um tempo outro: um outro não esperável, inverossímil. Parafraseando aquele famoso grafite de maio de 68, o que o tempo intensivo de nós exige, para além do bem e do mal, é que vivamos, não os já possíveis de seus possíveis, mas os impossíveis (os ainda não pensáveis) de seus possíveis, seus (im)possíveis. Pode-se planejar ganhar muito dinheiro em Wall Street para para obter boas férias na Indonésia. Mas nada disso
Grande parte da literatura moderna criou modos de resistência ao tempo teleológico da modernidade dominante. “A literatura moderna é moderna? Sua modernidade é ambígua...” 5 Por um lado, os escritores modernos aderem, de um modo entusiasta (vale dizer, vanguardista), vanguardista ), à modernidade, seja em relação ao seu potencial crítico e revolucionário, seja em relação a suas invenções técnicas. Por outro lado, em disputa com o racionalismo moderno, desqualificam a ontologia de um sujeito pleno, capaz de se planejar e se cumprir previamente na linha do tempo. A famosa formulação de Rimbaud, “Eu é um outro”6, é de certa forma o nervo que movimenta o ethos ethos estético-comportamental da arte moderna. Do ponto de vista mais específico da linguagem, desde Mallarmé, passando por Rimbaud, Pound até a poesia concreta brasileira, foram produzidas fraturas na estrutura temporal da sintaxe ordinária das línguas ocidentais. Explorando a “verbivocovisualidade” da palavra e suas possibilidades de mise en page, page, tais poéticas desconstruíram o tempo analítico e diacrônico da leitura (tempo demandado pela hipotaxe) em prol de um tempo analógico e suas (im)possíveis sincronias e dessincronias... Já as ditas teorias da literatura produzidas na modernidade caíram, quase sempre, nas garras de um tempo teleológico de leitura à medida em que tentavam criar “definições referenciais” referenciais” para o texto literário. Indo de encontro às críticas intencio intencionalistas nalistas do século XIX, entre as quais a crítica biográfica de Sainte-Beuve, com seus “retratos “retratos 5 6
(PAZ 1984:52) RIMBAUD (http://www. scielo. br/scielo. php?pid=S php?pid=S15171517106X2006000100011&script=sci_arttext. Consultado em 15/12/2012)
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de artistas”, e a crítica positivista de Taine, os estudos de literatura dominantes dominant es no século XX nos ensinaram a ler e conceber a literatura através de dois eixos, muitas vezes, tidos como antagônicos: antagônicos: um preocupado em estabelecer seus “traços distintivos”, tal como se deu nos textualismos do formalismo russo, do new criticism, criticism, da estilística e, em certa medida, do estruturalismo, estruturalismo, e um outro interessado interessado em de-
— e não ao mundo do belo sublime, ou de um estranhamento formal/estrutural puramente extraordinário — e que, portanto, ela se faz com e pela política. Por outro lado, nos legou a pobre tentação de relativizar todo e qualquer valor estético e cultural, o que, nem sempre, mas muitas vezes, tem gerado uma banalização da cultura e o apagamento de suas diferenças. Nesse caso, “indiferenciar” a
fini-la a partir de suas determinações extrínsecas, como é o caso das diversas críticas sociologicamente orientadas. Em ambos os casos, guardadas as brilhantes e devidas exceções, submetia-se as singularidades dos textos a paradigmas prévios de operadores teóricos. Os futuros (im)possíveis dos textos se tornavam anulados por futuros meramente possíveis: didatizados a priori. priori.
literatura não seria um modo de, mais uma vez, impedir os (im)possíveis de seus futuros, de condená-la à mesmice de seus possíveis? E, assim, condenar, também, à mesmice, ou seja, à morte, a própria teoria da literatura?
5
A partir das últimas décadas do século XX, as tendências teórico-críticas surgidas no campo dos estudos da literatura começaram, progressivamente, a abandonar e atacar as definições referenciais e objetivas da literatura em prol de posturas pragmáticas. A pergunta “o que é um texto literário?” passou a ser substituída por uma indagação de natureza mais ampla: “O que é considerado um texto literário, quando, em que circunstâncias, por quem e por quê?” 7 De alguma forma, tal indagação dialoga, politicamente, com várias vertentes da estética da recepção, do reader-res reader-response ponse criticism, criticism, dos estudos culturais e de vertentes dos chamados pós-modernismos. A dessacralização contemporânea da autonomia de alguns valores literários construídos na alta modernidade (tanto na sua vertente classicizante, como na sua vertente de ruptura) nos despertou, de modo saudável, para o fato de que a literatura pertence a este mundo 7
(Ver OLINTO 1993:7-40)
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Entregar a teoria da literatura a seus futuros (im)possíveis é torná-la capaz de surfar os (im)possíveis da própria literatura e seus tsunamis. mis. Não se trata de fazer da teoria algo que venha a reboque da literatura, algo que acompanhe a literatura, ou fale sobre sobre a a literatura, mas que saiba viver com a com a literatura. Vivê-la, não mais para defini-la a priori, priori, mas para problematizar, infinitamente, seus devires, seus perigos. Vivê-la para pensar a singularidade conceitual e existencial que ela pode e poderá assumir no texto de uma cultura... 7
É necessário, vitalmente necessário, encarar a singularidade da literatura como uma ética — um ambiente em movimento composto por forças em trânsito e em transe, menos propensas a representações e descrições visíveis e mais abertas aos afetos da vida, invisíveis e irrepresentáveis, mas reais, porque nos provocam, como quer Suely Rolnik, o “desassossego” da diferença, gerando “em nós
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estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa figura”8. A ética nos exige sempre a alteridade: olhar o fora, pois fora é a vida, com suas velocidades e intensidades diversas, não apenas humanas, mas também microcorpóreas, inclassificáveis, incomensuráveis. A ética exige que
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a seu limite, ou seja, a seu desaparecimento” 10. Tal preservação, no entanto, não constitui a conservação de um lugar estático, mas “um lugar de acontecimento na fronteira da linguagem, lugar em que a linguagem, levada a seu limite ‘assintático’, ‘agramatical’, comunica-se com seu próprio fora” 11. Estar dentro da literatura seria, então,
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nos tornemos (que nos deixemos tornar) outros no movimento da vida. Movimento que é sempre um outro. Se a moral é um “sistema de julgamento” (valores transcendentes e fixos), a ética é a sua desarticulação. A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída, na ética, pela diferença qualitativa dos modos de existência. A ética seria então a afirmação de um “campo de afecções”, para lembrar Espinosa/Deleuze, dentro do qual posso deixar agir o meu “poder de ser afetado”9. A literatura, quando presa no imaginário de seus próprios contornos, constitui o desenho de um vício moral, o vício da autorrepresentação disciplinar. Vício das ordens fechadas, típico dos enunciados científicos quando situados em um conforto pretérito e nunca lançados ao perigo de seus futuros (im)possíveis.
paradoxalmente, estar também fora dela, o que é pensado não apenas para o “ato de escrever” (língua/linguagem), mas também como uma política que deseja ultrapassar a própria “identidade especializada” do escritor: Para escrever, talvez seja preciso que a língua materna seja o diosa, mas de tal maneira que uma criação sintática nela trace uma espécie de língua estrangeira e que a linguagem inteira revele seu fora, para além de toda sintaxe. Acontece de felicitarem um escritor, mas ele bem sabe que está longe de ter atingido o limite que se propôs e que não para de furtar-se, longe de ter concluído seu devir. Escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor.12
8 9
Penso que um modo potente para a literatura encontrar seus futuros (im)possíveis meios de vida, alimentar sua singularidade e resistir às ameaças de morte que lhe são imputadas por alguns fantasmas contemporâneos, é se entregando à violência do mundo, reexistindo com ele e não contra ele. É o que parece ser a proposição/provocação de Deleuze em seus ensaios, escritos a partir dos anos 70, ao preservar, como observou Lucia Castello Branco, o “nome sagrado da literatura no momento mesmo em que ela é arrastada em direção 8 9
Deleuze não nos propõe um sistema literário, um cânone literário, uma história literária. Muito menos um método investigativo na acepção tradicional do termo. Ele nos incita a ler com afeto. Ler, não um tipo especial de texto, mas um modo especial do próprio acontecimento da leitura. Se o escritor, do invisível que viu e ouviu da vida, é aquele que “regressa com os olhos vermelhos, com os 10 11 12
(ROLNIK 1993:242) (DELEUZE 2002:33)
(BRANCO 2001:148) (BRANCO 2001:148) (DELEUZE 1997:14)
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tímpanos perfurados”13, ler deve ser perceber a vida que a fragilidade da linguagem deixou vazar. Assim como “escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor”, escritor”, ler-teorizar a literatura também seria se tornar outra coisa que não um leitor-teórico. O rigor de Deleuze — assim como o e Nietzsche — não é o rigor da erudição (quantidade de livros supostamente lidos, catalogados, fichados e etichizados), mas o rigor da escuta da vida. Ler-escrever-pensar etichizados com os pés, podemos afirmar parafraseando Nietzsche em seu júbilo de escrita dançante-musical. Ler-escrever-pensar para além do livro. Ler-escrever-pensar com o corpo todo, fisiologicamente. Ler-escrever-pensar contra a obesidade espiritual e em atenção à preservação de uma “barriga jovial” 14. Ler-escrever-pensar como quem se deixa habitar pela música, não confundida com seu sentido exclusivamente especializado, disciplinar, protocolar (a música como gênero artístico passível de classificações históricas, estilísticas, a música dos ditos músicos e/ou críticos musicais). Música, não de um som audível, mas daquilo que faz vibrar a vida sem, no entanto, explicá-la, representá-la, torná-la entendível. Trata-se, de outro modo, da música compreendida como uma experiência de trágica “beatitude”, para lembrar um termo usado por Henri Birault retomado por Clément Rosset em sua leitura da filosofia nietzschiana15. Beatitude distinta de uma fé em um outro mundo que, de antemão, pensa-se representável, esperável, mas beatitude como afirmação e entrega ao infinito movimento das forças instáveis (de construção e destruição) que compõem infinitamente a vontade primordial da vida. Nietzsche, em Ecce Homo, Homo, revendo sua concepção do “trágico” a partir de uma ponte entre O nascimento da tragédia e tragédia e o Crepúsculo dos ídolos, ídolos, afirmava: 13 14 15
(DELEUZE 1997:14) (NIETZSCHE 1986:60) (Ver ROSSET 2000)
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Até que ponto eu havia com isso encontrado a concepção do “trágico””, o conhecimento definitivo sobre o que é a psicologia da “trágico tragédia, eu o expressei ainda no Crepúsculo dos Ídolos. “O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos — a isto chamei dionisíaco, isto entendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão, não para purificar-se de um perigoso afeto mediante uma veemente descarga — assim o entendeu mal Aristóteles — , mas para, além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir a ser — esse prazer que traz em si prazer no destruir...” Neste sentido tenho o direito de considerar-me o primeiro filósofo trágico — ou seja, o mais extremo oposto e antípoda de um filósofo pessimista.16 10
Deleuze trabalha com muitos exemplos de escritores (Céline, Artaud, Lawrence, Kaa, Le Clézio, Lewis Carroll, entre muitos outros), mas eles nunca são chamados para fechar o movimento de suas ideias. Não são exemplos moralizadores. Por isso, não é preciso ler tudo o que Deleuze diz ter lido para se aproximar da sensibilidade de seu pensamento. O que está em jogo aqui não é o objeto literatura (ou o objeto da disciplina teoria da literatura), mas um modo de ler e agenciar o acontecimento de seu corpo vivo. Muitas leituras contemporâneas da literatura brasileira têm sido feitas em diálogo frutífero com os livros de Deleuze. Leituras de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Waly Salomão, mas Deleuze, provavelmente, nunca leu esses escritores. O que seu pensamento nos incita é libertar 16
(NIETZSCHE 1986:95)
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referências, territórios, sem, no entanto, banalizar, indiferenciar o movimento dos nossos desejos. 11
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Raduan Nassar, a exemplo, em uma entrevista dada à edição número 2 dos Cadernos de Literat Literatura ura,, quando perguntado a respeito do peso da leitura em suas obras, nos diz: “...a leitura que mais eu procurava
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Em “Literatura e difusão secreta”, Roberto Correa dos Santos escreveu: “Pois não se trata do livro quando pensamos a Literatura. O livro é tão apenas meio, mídia. Nenhum aparelho midiático é ainda capaz de falar dela, a Literatura. Máquinas midiáticas não a transmitem, não a entendem, não a incorporam...” 17 Está se falando aí, evidentemente, não de toda e qualquer chamada literatura, mas daquela que, traçada no corpo-pensamento-letra, produz energia rara, forma rara e intraduzível. Não a forma positiva, descritível, analisável, mas uma forma a ser vivida. Viver a forma de uma literatura compreendida como “...arena de ferozes intensidades, acolhimento de extremos, audácia e sapiência nos modos de reconhecer, assinalar e construir as quase todas afecções do espírito, com suas pulsões altivas, os movimentos abissais da existência a indagar-se, sem cessar, em torções de uma corporeidade atingida...” 18 Percebe-se aí a literatura como um ambiente, uma ecologia, uma vida (lugar de encontro de intensidades). E uma vida não se vende. Os livros são vendáveis, ve ndáveis, mas a literatura não. E nem todo s os livros são escritos “com literatura”. Pensar assim é fazer política. Uma política não mais para representar a literatura, mas para fazer dela um modo de vida forte, capaz de resistir — desviando-se — à mídia capitalista, utilitarista, sempre apta a transformar livros (li vros com, ou sem, literatura) em contabilidade, gordur gordura, a, acúmul o de capital simbólico. 17 18
fazer era a do livrão que todos temos diante dos olhos, quero dizer, a vida acontecendo fora dos livros”19. Não se trata aqui de ser contra os livros, ou outros suportes midiáticos, mas de viver a literatura e ao mesmo tempo saná-la de sua gordura referencial, sua boca cheia de nomes bonitos (próprios ou impróprios) para vender na livraria, na sala de aula, na internet , ou em roda de amigos pretensamente sábios que ficam brincando de saber quem leu mais que quem. 13
Viver a literatura seria, então, paradoxalmente, esquecê-la. Esquecer o seu lugar comum para recordar o seu futuro f uturo inesperado, como no projeto do bom esquecimento de Nietzsche. Esquecer: viver a literatura para além da história da literatura, para além de um conjunto de obras respeitáveis, ou conjunto de obras possivelmente marginais e supostamente antitéticas a um determinado cânone ocidental. Esquecer a literatura para fazer de sua história um acontecimento. Esquecê-la justamente para torná-la presente no mundo e prometê-la ao risco do impossível, ou seja, fazer viver sua música, os silêncios ruidosos e consistentes de suas terceiras margens. Suportar tais silêncios diante das tentações confortantes de encolhimento e reconhecimento provincianos, próprios das camisas de força teóricas e dos rótulos do mercado literário. Ouvir o “rumor da língua”20, como 19 20
(SANTOS 2002:190) (SANTOS 2002:190)
Cadernos de literatura, n. 2. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996, p. 2. (Ver BARTHES 1988)
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Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura
queria Barthes, a “gagueira”21, como queria Deleuze, o “caos tenebroso no interior da semântica” semântica”22, como certamente ouviu Torquato Neto quando dançou e fez dançar as ciladas guardadas nas palavras e a poluição de seus imprevisíveis significados. E tudo isso, longe de um ser fetiche de mera rebeldia, é mergulho na profunda tontura da imanência. Vida na linguagem que constitui o seu fora. Mas
lembrando Primo Levi: “A vergonha de ser um homem: haverá melhor razão para escrever?”23. A literatura é uma sensibilidade insuportável para um corpo fechado, seja esse corpo um livro, um homem, uma sala de aula. Como disse Suely Rolnik, “escrever é fazer letra para a música do tempo” 24. A música é, sempre, o futuro (im)possível da literatura e suas (im)possíveis teorias, seu futuro
não um fora visível e representável em uma suposta oposição a um puro dentro. Se há vida dentro da literatura, esse dentro nada mais é senão “passagens de vida” que não cessam de acontecer no corpo aberto do texto. Dentro-fora, fora-dentro: suplementos, passagens...
como (in)disciplina: disciplina e, a um só s ó tempo, indisciplina. Lugar de encontro, lugar de perdição...
14
Não há modelo para se entregar aos devires e escapar da representação. Assim como não pode haver exemplo para se construir um viver. Por isso, escrever com c om vida não é escrever de modo autoral, pessoal, familiar. Ao contrário, é atingir um lugar para além de pai e mãe, para além da segurança de uma origem, de um rosto já sabido. Trata-se de uma perdição identitária, uma linha de fuga, aberta por um delírio que não se confunde com doença, mas com uma saúde em movimento, capaz de tratar a vida com vida. No fundo, tratar de uma grande doença chamada homem. O homem ocidental e sua moral genealogizada por Nietzsche: aquela que trocou o devir do cosmos, a imanência corpórea, pelo “b em” de seu SER supostamente inalterável, seja esse ser a sua ideia, o seu Deus, ou, modernamente falando, o seu EU. Para Deleuze, o ser homem seria o interruptor dos devires. Mas escrever, com literatura, seria desbloquear e tornar fluidos os devires que no homem estão se ressentindo. Diz Deleuze, 21 22
(Ver DELEUZE 1997) (Ver NETO 1982)
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Uma disciplina, seja ela qual for, entendida simultaneamente como ideia e como prática, só é favorável à vida quando percebida em sua singularidade, e não em sua suposta identidade. Percebida como diferença. Mas uma diferença impura, plural, porosa, prosaica. Ninguém duvida, por exemplo, que escrever um poema é diferente de tourear. Há, obviamente, entre essas duas atividades disciplinares, nítidas diferenças relativas a seus suportes, seus materiais, suas táticas e estratégias de treino, suas metodologias de aprendizado, etc. Mas o que pode acontecer a alguém que, propondo-se a escrever um poema, e no curso mesmo de sua escrita, de algum modo, é tocado pelo ambiente de uma tourada (algo que, como é sabido, já se passou com alguns poetas espanhóis que se deixaram contaminar pelas “corridas de toro”)? Nesse caso, não se estaria, de muitos modos, toureando a pena? A pena de um poeta toureiro a lutar, bailar com a ginga de palavras-touro? Não se poderia, nesse caso, inclusive, estudar a poesia da palavra com a poesia da tourada? João Cabral, poeta, estudante de poesia, amante de tourada, amante de poesia, estudante de tourada, escrevia, de Barcelona, a Manuel Bandeira, 23 24
(DELEUZE 1997:11) (ROLNIK 1993:242)
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em 1947, ocasião da morte de Manolete, lendário toureiro morto em ofício por um touro miúra: “...era [Manolete] um camarada fabuloso: vi-o algumas vezes aqui em Barcelona e imaginei que era Paul Valéry toureando...”25 O que passa entre a economia dos gestos de Manolete, o olhar aguçado de Cabral e a poética de Valéry? O
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poesia é tudo: jogo, raiva, geometria, assombro, maldição e pesadelo, mas nunca cartola, diploma e beca” 26. Digo que a provocação de Oswald é velha, e ainda nova, porque, para além e aquém de qualquer chamada, de modo apropriado ou não, “geração de 45”, sempre houve, sempre há, entre nós, poetas, ou ditos poetas, que, em termos
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que passa, o que pode passar entre a disciplina de um poeta e a disciplina de um toureiro, de um geógrafo, de um jogador de futebol, de um pipoqueiro, de um guerrilheiro urbano, de um cozinheiro, de um engenheiro...? Haveria alguma possibilidade de se fazer poesia sem se deixar contaminar por qualquer outra prática de saber que não a de uma suposta prática estritamente poética? Tudo não quer passar pela poesia? Toda vida viva não quer passar pela vida? Toda vida viva não quer sofrer vida? Conviver (“Co-viver”) com vida, viver junto? E a vida não é sempre outra? O poeta que compreende sua disciplina poética, não como uma diferença aberta à passagem de outros corpos, de outras singularidades disciplinares, mas como uma diferença identitária, ensimesmada nos contornos estojados de suas especiarias e perfumarias e mais valias, pode querer outra coisa senão se esconder do correr da vida? Mas poetas que se escondem da vida podem mesmo evitá-la? Ou podem apenas ressenti-la, culpá-la de sua abundância, quando ela nos convida, e ela sempre nos convida, a viver sua irredutível multiplicidade? Ou podem apenas, quando a vida vem, e ela sempre vem, trancar a própria pena, en vergonhá-la no cofre mofado de suas referências analgésicas? Poetas que se escondem da vida se escondem apenas de vidas inusitadas que podem ocorrer ao correr da pena? Ou se escondem, também, da própria poesia? Ou seja, da própria disciplina poética, em seu sentido mais forte, se concordamos com a velha e, ainda nova, provocação de Oswald de Andrade dirigida à “solenidade de última instância”” de alguns poetas da década de 40: “E parecem ignorar que instância 25
(MELO NETO 2001:84)
oswaldianos, confundem “sisudez com profundidade”. profundidade”. Me poupo ao trabalho de citar nomes. Dar nome aos bois é, quase sempre, dar corda, muita corda, aos bois. Prefiro, assim, evocar apenas os sintomas. Lembrar que, na década de 90, nos soava, e ainda hoje nos soa, muito viva a “Novelha cozinha poética” de Waly Salomão, poema criado em diálogo humorado com a verve antropofágica e, ao mesmo tempo, com a disciplina gastronômica, resultando em irônica e ácida receita poético-culinária: Pegue uma fatia de eodor Adorno Adicione uma posta de Paul Celan Limpe antes os laivos de forno crematório Até torná-la magra-enigmática Cozinhe em banho-maria Fogo bem baixo E depois leve ao Departamento de Letras Para o Douto professor Dourar27 16
Não desejo, aqui, em diálogo com Oswald e Waly, estabelecer uma dicotomia sectária e purista entre uma disciplina poética viva e todo e qualquer departamento de letras, toda e qualquer beca, todo e qualquer diploma, todo e qualquer douto professor, de letras ou 26 27
(ANDRADE 2011:174) (SALOMÃO 2000:21)
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não, todo e qualquer Adorno, todo e qualquer Paul Celan... Muito menos, extrair da poesia sua dimensão enigmática. Impotente não é o enigma. A vida é um enigma. Impotente é o enigma pelo enigma (o enigma sem enigma). Como, também, não são, necessariamente, impotentes a beca, o diploma, a referência teórica. Impotente é a beca pela beca, o diploma pelo diploma, a referência pela referência,
necessariamente uma inter (ou trans) disciplina? Há mais de 40 anos que o globo acadêmico sustenta, com euforia e mil teorias, a bandeira da interdisciplinaridade. Nesse caso, vale, também, indagar de que modo a interdisciplinaridade é útil à vida e de que modo ela não é. Alguém que se especializa em matemática, física, filosofia, antropologia, literatura, geografia e biologia pode ser apenas um
etc. Impotente é uma “poesia” feita em fogo baixo, cozinhada sem perigo, fabricada sob encomenda para atender a uma disciplina poética já pensada, já poetizada, já teorizada. Uma “poesia”, para ficarmos de novo com Oswald, “...oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária”28. O que Montaigne dizia no século XVI (algo que, posteriormente, e de muitos modos, será retomado por Nietzsche no século XIX) ainda nos é muito contemporâneo:
multiplicador de disciplinas, em seu sentido mais fraco. Pode ser apenas um multiplicador de sua própria escravidão, um multiplicador ensimesmado de corcundas, já que, como diria Nietzsche, “todo especialista tem sua corcunda”30. Pode-se ter muitas especialidades disciplinares sem que nada se crie com elas, a não ser uma brutal indigestão alimentar. Roland Barthes, no início dos anos 70, colocava seu brilhante dedo na ferida da moda interdisciplinar:
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O interdisciplinar, de que tanto se fala, não está em confrontar Indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve em verso ou prosa, mas perguntar se se tornou melhor e se seu espírito se desenvolveu — o que de fato importa — não nos passa pela mente. Cumpre, entretanto, indagar quem sabe melhor e não quem sabe mais. [...] Cuidamos das opiniões e do saber alheios e pronto; é preciso torná-los nossos. Que adianta ter a
disciplinas já constituídas das quais, na realidade, nenhuma consente em abandonar-se. Para se fazer interdisciplinaridade, não basta tomar um ‘assunto’ (um tema) e convocar em torno duas ou três ciências. A interdisciplinaridade consiste consiste em criar um objeto novo que não pertença a ninguém. O texto é, creio eu, um desses objetos.31
barriga cheia de comida se não a digerimos?”29 18 17
Creio que um discípulo potente de uma disciplina, de qualquer disciplina, persegue e se deixa perseguir e habitar pelo motor de suas margens, de suas fronteiras ínfimas e infinitas, por seus futuros (im)possíveis... Toda disciplina potente, potente, assim desenhada, não seria 28 29
(ANDRADE 1995:45) (MONTAIGNE 2000:140)
O texto, como se sabe, se difere radicalmente, para Barthes, da noção de obra. Esta se deixa mensurar, classificar, compreender a partir de uma possível origem, de uma possível identidade, de um possível telos. telos. A obra se inscreve e se escreve, portanto, na lógica do produto. A lógica 30 (NIETZSCHE 2001:268) 31 (BARTHES 1988:99)
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metodológica e epistemológica do texto consiste em tratar modos de pesquisar-ler-escrever-aprender-ensinar-pensar como puros processos, puras travessias. O texto é um objeto sem objetividade, sem identidade. É um quase-objeto. Ele se produz em seu próprio inacabamento, nas fissuras crescentes de seu autoabandono. Ele nos convida a ouvir e
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necessariamente e paradoxalmente, se faz indisciplina. Chamo indisciplina a capacidade que uma disciplina possui de se livrar da própria corcunda, tornando-se, conosco, dançarina. Tornando-se uma disciplina que nos convida a fazer dela nosso dever de casa (nosso treino diário com ela, nosso saber habitá-la) e, simultanea-
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fazer ouvir o desejo. E o desejo, nesse caso, é sempre um desejo demoníaco pelo outro, no outro, com o outro, infinito-outro que nunca se curva ao esperável de um mesmo, já que, em seu plural — um plural, diz Barthes, “irredutível (e não apenas aceitável)” 32 — o texto é sempre legião: intertexto, entretexto, transtexto. O texto é, simultaneamente, dentro e fora de si mesmo. Negativo e afirmativo, ele se abandona, se esvazia, justamente para ganhar vida, conectando e multiplicando, incessantemente, novas singularidades, novas disciplinaridades, interentretransdisciplinaridades. Por isso, o texto é, para Barthes, paradoxal. Sua força política consiste em criar um desvio da doxa doxa (uma (uma para-doxa para-doxa na doxa), um modo de arejar os vícios e os estereótipos aprisionadores de vidas. Um modo potente de atravessar e abandonar uma moral disciplinar, seu constante exercício de vigiar e punir (a lei do pai, a lei da propriedade, a lei da finalidade). O texto, em sua condição paradoxal, libera, em nós, tudo aquilo que, conosco, quer criar vida. Um encontro interdisciplinar potente, em termos barthesianos, é aquele que faz do poeta mesmo um poeta outro, do toureiro mesmo um toureiro outro. Um outro que não pertence a nenhum termo, pois se constitui como passagem desejante... 19
Se toda disciplina potente — vale lembrar, favorável à vida — entra em um “textual” jogo interdisciplinar, ela, também, 32
mente, nosso devir de casa (nossa necessidade de abrir suas janelas, para que por elas possam entrar todos os possíveis e impossíveis insetos, como diria o cancioneiro popular). Tornando-se, a um só tempo, disciplina-indisciplina: corpo-singularidade, corpo-pluralidade. Só não vale, nesse caso, confundir indisciplina com falta de rigor, com desleixo, com descuido suicida. O aluno suicida que bota fogo na escola, e dela é expulso, é tão impotente quanto o aluno CDF, puramente obediente às leis institucionais. Ambos impedem a entrada da vida na disciplina escolar. O primeiro porque, como bode expiatório do autoritarismo, está fora de órbita. O segundo, porque está dentro demais, corcunda e pesado demais. A questão, falava Deleuze em uma entrevista, “...é justamente como fazer o movimento, como perfurar a parede para não dar mais cabeçadas” 33. Transgredir a estrutura por dentro dela mesma. Criar um agenciamento vivo capaz de fazer falar o dentro no fora e o fora no dentro. A relação forte entre disciplina e indisciplina se concretiza em pegadas jazzísticas: uma base rítmica, harmônica e melódica bem estruturada e bem estudada, provisoriamente invariável, excitando, suportando e atualizando, ao invés de impedir, a variação erótica e selvagem do improviso, do “instante-já”, “instante-já”, como 34 diria Clarice Lispector , ou do instante- jazz , se quisermos fazer jazz com com as palavras. A indisciplina é o inusitado e saudável futuro jazzístico de toda disciplina. dis ciplina. 33 34
(BARTHES 1988:74)
(DELEUZE 1992:172) (LISPECTOR 1998:9)
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Os futuros (im)possíveis da (in)disciplina chamada teoria da literatura serão aqueles capazes de aprender as singularidades de literaturas fortes. Isto, é, de literaturas singularmente (in) disciplinadas. Literaturas fortes estão propensas a desidiotizar
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demanda revelação. Tudo o que não tem palavra pede a palavra. As máscaras formadas nunca encontram seu fim. A profundidade das forças, produtoras incansáveis de puras diferenças, não as deixa dormir em paz. Estão a todo tempo possibilitando (formando/ deformando) novas usinas de máscaras, tal como se percebe na trágica concepção nietzscheana de “inspiração” “inspiração” associada por ele
o verbo, torná-lo frágil à tragédia musical da desrazão diabólica do viver. Rearticulando dois conceitos de Deleuze e Guattari35, pode-se dizer que as literaturas fortes, tal como aqui entendidas, sempre tratam de favorecer, de muitos modos, a comunhão do “plano de imanência” (ou plano de intensidade) da vida com o “plano de organização” organização” da linguagem. Plano de imanência: plano escuro e pré-filosófico, pré-conceitual, plano pleno de substâncias não formadas, plano invisível, molecular, corte do caos que se realiza a partir de encontros e desencontros de fluxos e ondas de partículas a produzir movimentos e repousos, velocidades e lentidões, acontecimentos destituídos de contorno, potência de um Uno-Todo como um deserto movente e infinito. O plano de organização,, de outro modo, é o plano das rostidades, dos contororganização nos das coisas e dos homens, lugar das máscaras, do que é visível, ouvível, codificável, lugar das produções das subjetividades, das individuações corpóreas, das classificações de gênero, das constituições identitárias, das segmentações disciplinares, das criações
O que quer, o que pode uma literatura forte? Ela deseja guardar,
conceituais, das estruturas e das formas linguísticas. Esses dois planos (plano de organização e plano de imanência) não existem em mundos separados. São, inevitavelmente, suplementares. O corpo profundo, líquido e informe da imanência infinita está a todo tempo pedindo passagem nos contornos das finitudes organizadas. Toda força necessita de forma. Tudo que é escuro
no plano de organização das palavras, o plano de imanência sem palavras. Ela deseja poder guardar a vida quanto mais vida, quando mais vida, onde mais vida... “Guardar”, “Guardar”, como parece querer o poema homônimo assinado por Antonio Cicero, não como sinônimo de trancar ou esconder, mas como capacidade de abrigar a vida em sua passagem e passar com ela:
35 Ver, por exemplo, DELEUZE; DELEUZE; GUATTARI GUATTARI (1997) (1997) 35
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à experiência da “revelação”: “revelação”: A noção de revelação, no sentido de que subitamente, com inefável certeza e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que comove e transtorna no mais fundo, descreve o estado [de inspiração] de fato. [...] Parece realmente, pra lembrar uma palavra de Zaratustra, como se as coisas mesmas se acercassem e se oferecessem como símbolos (— “aqui todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, e te lisonjeiam: pois querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo cavalgas aqui até cada verdade. Aqui se abrem para ti as palavras e arcas de palavras de todo o ser; todo ser quer vir a ser palavra, todo o vir a ser quer contigo aprender a falar” — ). Esta é a minha experiência da inspiração.36 21
(NIETZSCHE 1986:126)
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Por isso melhor se guarda um voo de um pássaro Do que um pássaro sem voos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo:
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intelectuaiss da intelectuai da polis polis,, sempre prontos a opinar sobre tudo e todos. Mas há também, do outro lado da mesma moeda, os que escrevem para a incompreensão incompr eensão prévia. Formalismos à mão cheia, recusam-se a falar com a vida e tratam a palavra como uma jogatina de signos vazios, feita para um rebanho de mal iniciados: escritores e teóricos viciados
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Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
no tedioso recreio da tecnocracia intelectual...
Guarde o que quer que guarde um poema: Por isso o lance do poema:
23
Por guardar-se o que se quer guardar. 37 22
Há escritores que teimam em não reconhecer que a vida, na palavra, é também (e a todo instante) escura. São eles os escritores fracos. Escritores fracos não assumem a vida, só reclamam dela, como pretensos deuses romanticamente romanticamente incompreendidos, incompreendidos, e tentam explicá-la sem ouvir os “toques do diabo”... Escritores fracos querem programar um texto tal como turistas novos ricos programam, cartesianamente, seu roteiro de férias. Aí ocorre uma alteração no pacote e eles balançam suas joias cansadas e tristes nos aeroportos. Não foram educados para serem dignos dos acontecimentos. Escritores fracos não transam com a vida, embora a vida penetre, de qualquer maneira, em seus corpos anestesiados. Transam Transam com a palavra como se ela fosse uma boneca inflável. Há muitos tipos de escritores fracos. Há, por exemplo, os que escrevem para serem estudados. Estes são os escritores que gozam com a receita de divindades alheias. Gozam com a “Novelha cozinha poética”, diria Waly Salomão. Ou seja, gozam sem gozar, mas sempre sempre sabem falar sobre o que escrevem e o que escreverão. São ótimos entrevistadores, entrevistadores, ótimos entrevistados, ótimos 37
Uma teoria da literatura, quando acolhe as singularidades de literaturas fortes, promove, também, o fortalecimento do futuro (im) possível de sua própria singularidade. Acolher não é seguir, nem entender, escrituras fortes. É criar com elas um modo de pe pensamento, nsamento, um modo de sensibilidade através da qual se produza uma saudável e intensiva “indiscernibilidade”38, como quer Alberto Pucheu, entre o teórico e o poético. Com Deleuze e Guattari, aprendemos que a arte pensa e que a filosofia produz e é produzida por sensações, afecções. Claro, não estamos falando de toda e qualquer arte e filosofia, tão somente assim batizadas. Mas daquelas que se abrem para a violência produtiva do que, em nós, se vive e se pensa. Os conceitos não são inimigos do corpo. Como se lê naquela passagem famosa dos Diálogos Diálogos,, “os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades que lhes convêm ou não, que passam ou não passam. Pop filosofia” 39. Nada de banalizações, mas uma tática política para desarticular os discursos disciplinares duros. Um toque político para afirmar que um conceito nunca está pronto. Um conceito sempre requer novas intervenções, afecções, explicações, novas sensações e até novos conceitos. Não exegeses exaustivas que 38 39
(CICERO 2012:11)
(PUCHEU 2007:11-26) (DELEUZE; PARNET 1998:12)
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os representem. Filosofia para não filósofos. Teoria para não teóricos. Pop teoria. Pop teoria. Teoria prática.
nosso contemporâneo. Muitos dos ditos antigos gregos são e serão nossos contemporâneos...
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Os futuros (im)possíveis e (in)disciplinados das literaturas e da teorias da literatura serão sempre os mais contemporâneos de uma época. Os mais contemporâneos de uma época são justamente os mais extemporâneos de toda e qualquer época. Não porque fogem à época, mas porque dela incorporam e assumem o que qualquer “retrato de época”, ou pensável “estilo de época”, seria incapaz de revelar. Escritos e pensamentos do século X a. C., ou do século XXI d. C., não possuem, em suas datas explícitas ou mensuráveis, nenhuma garantia de validade vital. Nenhuma contemporaneidade lhes pode ser assegurada de antemão. Pensamentos e escritos de 2013 podem apenas traduzir a morte mais morta de uma possível época do hoje, a morte do que nunca viveu, nunca viverá. Podem apenas compor um bom papel (um papel atualizado, não contemporâneo) na fatura de uma estante de época já dita, já ditada: uma narrativa de época, com seus nomes, seus rótulos, suas espécies e subespécies de modos ditos contemporâneos. Escritos e pensamentos que hoje nos são extemporâneos, de qualquer tempo, língua, corpo, ou lugar, são os únicos que valem a pena e a vida: valem o que se tornam e, necessariamente, se tornam: nossos intensos e imensos contemporâneos, porque resistem (“re-existem”) a todos os sonhos de uma razão disciplinar autoritária, apta a estancar a vida, explicitá-la a qualquer preço, a qualquer tempo, a qualquer signo. Resistem, os extemporâneos, quando nos traçam, nos velhos signos, a força de um vírus saudável capaz de ser/permanecer, conosco, no que se é escuro, no que se é na velha, e sempre nova, “alegria dos que não sabem e descobrem” 40. Oswald de Andrade é 40 (ANDRADE 1995:45)
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É preciso aprender a fazer com que os futuros (im)possíveis do vi ver não se envergonhem em nós, não desistam de nós, não morram em nós. Ou, ainda, nos façam sucumbir de vez, virar farrapo, virar molécula diante da enorme onda de sua grandeza. A vida nos exige uma (in)disciplina de guerra. Não a guerra do ressentimento, mas a guerra do esquecimento. Não adianta brigar com a vida. É preciso ir com ela e esquecê-la. Esquecer para lembrar o que ainda não é. Esquecer como a criança que surfa esquece o caldo da última onda para pegar uma onda nova. Esquecer para não esquecer, como não esquecia Nietzsche, do lema de Píndaro que ele tanto amava: “torna-te aquilo que és”. E o que és, o que é, o que somos senão o próprio “tornar”? Ou melhor: um próprio e sempre único tornar-se povoado pelo eterno tornar-se da vida. O que distingue uma disciplina forte de outra disciplina forte (assim como uma pessoa de outra pessoa, uma música de outra música, uma teoria de outra teoria, uma literatura de outra literatura...) é a singularidade de seu próprio e necessário tornar-se... Referências
ANDRADE, Oswald de. 1995. Estética e política. São Paulo: Globo. _________. 1990. A utopia antropoágica antropoágica. São Paulo: Globo. BARTHES, Roland. 1988. O rumor da língua . Trad. Leyla Perrone-Moisés São Paulo: Brasiliense. BRANCO, Lucia Castello. 2001. O silêncio do exterior: Deleuze, Lacan, a literatura e a vida. In: LINS, Daniel (org.). Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio
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André Monteiro
Capítulo 18 . Futuros (im)possíveis da (in)disciplina teoria da literatura
CICERO, Antonio. 2012. Guardar. Rio de Janeiro: Record.
ROLNIK, Suely. Suely. 1993. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/ política no trabalho acadêmico. In: Cadernos de subjetividade, São Paulo, n. 2, p. 241-251.
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de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado, p. 148-151.
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