Reinvencao Da Intimidade

April 8, 2019 | Author: Geilson Fernandes | Category: Loneliness, Tragedy, Experience, Love, Mental Disorder
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Introdução...

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O mal-estar muda como muda a civilização. Nossas maneiras de so�rer não são apenas reflexos e e�eitos da cultura, mas �ormas de resistir e de responder ao que ela nos exige. O declínio da intimidade é, também, um convite para sua reinvenção. A obrigação de mantermos uma imagem de bem-estar e �elicidade e a conectividade acelerada com as engenharias da aparência nos colocam �ora de nós mesmos, tornando a intimidade uma experiência cada vez mais preciosa e rara. Este livro investiga como a dificuldade de criar experiências de compartilhamento de si com o outro está na gênese de nossas novas �ormas de so�rer. Chrisian Dunker mobiliza sua experiência de rês décadas de clínica e de reflexão para descrever um conjuno de sinomas ligados à di�iculdade de esar com o ouro. O so�rimeno nos predispõe a dividir nossa inimidade e, por isso, ele é ambém parene do amor. Poderíamos ler os desinos do so�rimeno como uma espécie de psicopaologia do dia a dia, �eia de pequenas escolhas e de g randes conflios. Solidão ou soliude, luo ou melancolia, pânico ou ciúme, paixão, ressenimeno ou depressão. Onde esá a linha divisória que separa nossos a�eos morais de nossas paologias sinomáicas? Onde esá a �roneira de so� rimeno que nos �ará escolher aceiá-lo ou rans�ormá-lo e, diane isso, rans�ormar o mundo e a nós mesmos? Em uma linguagem bem-humorada e acessível e abordando siuações banais da vida – enconrar alguém para amar, dividir as conas domésicas, er animais de esimação, suporar hipóeses de fidelidade ou de raição, criar filhos e se despedir de pais e de avós –, Dunker nos convida a repensar o

papel de nossas escolhas na parilha de a�eos e nas experiências de reconhecimeno necessárias para reinvenar a inimidade em empos de alienação e de so�rimeno proje ado no ouro. Os 49 ensaios breves dese livro são uma espécie de manual domésico para a sobrevivência em empos de subjeividade sombria, em que o ouro orna-se cada vez mais perigoso. Eles podem ser lidos ano como uma espiral que vai do privado ao público, quano como uma lisa de conexos nos quais a inimidade, seja pela sua �ala, seja pelo seu excesso, precisa ser reinvenada. Em uma sociedade digial, consumisa e obcecada pela produividade, as políicas de so�rimeno não são apenas psicológicas, mas ambém sociais e econômicas. Por isso, boa clínica é ambém críica social �eia por ouros meios. Combinando erudição universitária com linguagem corrente, os textos de Dunker aqui compilados narram ainda a ascensão de um Brasil em estado de con�rontação. Esquerdistas e neoliberais, mães neuróticas e amantes ciumentos, casamentos improváveis e separações infinitas geram mal-entendidos que nos �azem so�rer, e cada vez mais solitariamente. O poder emana de quem reconhece o nosso so�rimento e de quem esperamos legitimidade, atenção ou dignidade: padre, médico, policial, Estado,, hospital ou universidade, psicanalista, amigos e amores. Estado As políicas do so�rimeno coidiano são jogos, em esruura inconsciene, que deerminam nossas escolhas ópicas, dinâmicas e econômicas de poder. Elas �ormam nosso nó imaginário, real e simbólico pelo qual não conseguimos nunca nos curar do Ouro.

 REINVENÇÃO DA INTIMIDADE

POLÍTICAS DO SOFRIMENTO COTIDIANO

CHRISTIAN DUNKER

A BUSCA DA BICICLETA PERDIDA INTRODUÇÃO 11

SOFRENDO DO OUTRO 25. A geografia imaginária da segregação real 26. Cercas, muros e silêncios 155 27. Paranoia sisêmica 158 28. Somos odos vândalos? 161 29. Cuidar ou conrolar? 172 30. A �elicidade como �aor políico 182 31. A alma revolucionária 186

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SOLIDÃO: MODO DE USAR 1. Solidão e soliude 19 2. Preciso de um empo só para mim 3. A melancolia de Ozymandias 42 4. Começar e erminar 45 5. Sobre a more e o morrer 48

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SOFRENDO COM O OUTRO 32. O so�rimeno enre a verdade e o real 195 33. A paixão prognósica e a invenção de novos diagnósicos 34. A paixão diagnósica 205 35. Neurose em esruura de ficção 207 36. Depressão do urso polar 220 37. Perversão ordinária 229 38. Síndrome pós-naalina 236 39. Que fim levaram os maníacos? 239

AFETOS COMPARTILHADOS 6. A raição e seus horrores 57 7. O ciúme e as �ormas paranoicas do amor 62 8. A �unção rans�ormaiva do ódio 71 9. Con�ormações da inimidade 77 10. Desmascarar as imposuras do amor 87 11. O amor pelos animais e seus limies 93 12. A vergonha como denúncia da �anasia 95 JUNTOS E SEPARADOS 13. Fundamenalismo conjugal 102 14. O casameno como perversão consenida 107 15. O verdadeiro amor �az exceção à lei 109 16. O dinheiro do casal 112 17. A mulher elepaa e o homem das cavernas 114 A CRIANÇA QUE NOS UNE E NOS SEPARA 18. A are de imbecilizar crianças 117 19. Loucura maerna 120 20. Oprimindo mulheres e desauorizando mães 21. O dever de a�eo e o direio de verdade 129 22. A cor e a �orma do cuidado 132 23. Síndrome da alienação parenal 135 24. Inoxicação digial in�anil 138

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PATOLOGIAS DO INDIVIDUALISMO À BRASILEIRA 40. Novas �ormas de so�rer no Brasil da reomada 242 41. O paradoxo moral do baalhador brasileiro 249 42. A culura da indi�erença 251 43. Crimes da palavra e culura da denúncia 254 44. A querela do consumo 260 45. Solidariedade sem ranscendênc ia? 263 46. Narcisismo digial 265 POLÍTICAS DE TRATAMENTO 47. Doença menal na políica 277 48. O neoliberalismo e seus normalopaas 49. Reinvenção da intimidade 293 ÍNDICE REMISSIVO 303 FONTES DOS TEXTOS 315

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INTRODUÇÃO Este livro segue a intuição antropológica e psicanalítica examinando como �ormas �undamentais de nossos sintomas relacionam-se com processos de individualização próprios da vida contemporânea, particularmente com uma das figuras mais ascendentes da individualização hoje: a experiência de so�rimento. So�rer é algo que depende essencialmene de rês condições: a narraiva na qual esá inserido; os aos de reconhecimeno que fixam sua causa e a ransiividade que o orna uma experiência coleiva e indeerminada. O ransiivismo é um �enômeno ípico da in�ância, relacionado ao complexo de inrusão, momeno no qual a criança elabora a enrada de relações riádicas, paricularmene com ouras crianças da mesma idade. Nessa siuação, �requenemene ela experimena, por exemplo, se colocar como agene de uma ação na qual, na verdade, ela é paciene da ação do ouro. Tipicamene, ela bae na oura criança e chora porque sene e�eivamene que �oi a oura criança que baeu nela. Ou enão ela oma um brinquedo, mas sene e inerprea que �oi a oura criança que omou o brinquedo dela. Em adulos, a siuação de ransiivismo reorna, por exemplo, em desavenças e conflios nos quais não se consegue dirimir quem esá agindo, provocando ou causando um deerminado esado de coisas e quem esá reagindo, “devolvendo” ou respondendo ao ao iniciado pelo ouro. Essa con�usão enre quem age e quem so�re a ação aparece ambém em casos mais graves, noadamene em �ormações deliranes e alucinaórias nas quais um pensameno e�eivamene experienciado pelo sujeio é senido como causado ou imposo pelo Ouro. Essas rês condições – narraiva, reconhecimeno e ransiivismo – combinam-se com uma hipóese: o so- 11

�rimeno requer e propaga uma políica. Isso quer dizer que a �orma como conamos, jusificamos e parilhamos nosso so�rimeno esá sujeia a uma dinâmica de poder. O poder dos opressores, o poder das víimas, o poder dos indi�erenes e aé mesmo o poder da indi�erença ao poder. O poder gerado por quem pode reconhecer o so�rimeno e de quem esperamos legiimidade, dignidade ou aenção, seja esse alguém o Esado ou o ordenameno jurídico e suas políicas públicas, sejam as imagos do médico, do padre, do douor ou do policial, sejam ainda aqueles com quem comparilhamos a vida coidiana e, mais ainda, aqueles a quem amamos. A ex-sistência (existir �ora de si) compreende uma parcela de so�rimento que não é eliminável. Nosso corpo se degrada, nossas leis são repetitivamente imper�eitas, a natureza nos impõe reveses de toda sorte. As três Parcas continuam a tecer e cortar impiedosamente nosso destino. A isso Freud chamou de mal-estar (Unbehagen) e Lacan, de Real. Contudo, nem tudo no mal-estar é aceitável e requer nossa resignação. Por isso, diante do so�rimento há sempre uma escolha a �azer, trans�ormar o mundo ou trans�ormar a nós mesmos. Essa trans�ormação depende, portanto, de como reconhecemos o so�rimento que nos acomete. Frequentemente nos recusamos a admitir, e até mesmo a perceber, que estamos so�rendo. Algumas vezes isso se apoia na interpretação de que so�rer e, principalmente, coletivizar ou externalizar essa experiência é uma �raqueza moral. Há, portanto, uma micropolítica envolvida no reconhecimento: culpa, responsabilidade ou implicação acerca das causas, das razões e dos motivos do so�rimento. Aqui acontece também uma espécie de conflito ou de concorrência entre as narrativas que sancionam ou 12 derrogam, visibilizam ou invisibilizam o so�rimento. In-

dividualizar ou coletivizar, culpar ou responsabilizar, incluir ou excluir, construir ou desconstruir a�etos correspondentes a tais narrativas, tudo isso �az parte das políticas do so�rimento cotidiano. Compartilhar nosso so�rimento tornou-se uma tare�a ainda mais complexa depois do neologismo proposto por Lacan: extimidade. Encontrar a intimidade �ora e o estranhamento dentro, sem que eles sejam equivalentes. Em vez de uma política sem partido, seria melhor �alar aqui, com Cazuza, em uma política do coração partido. Déficits e excessos de individualização revelam-se na própria experiência de so�rimento e na �orma de �ugir e negá-la. Isso aparece, por exemplo, na tendência à hipersocialização, a disposição a ficar permanentemente ligado, ocupado ou disponível, como na impotência para constituir situações e percursos de real solidão ou intimidade. Como toda política, ela �az um corpo, ela cria unidades de discurso, ela define um coletivo identificado por um mesmo traço ou uma mesma suposição de desejo ou de demanda. Cada experiência de so�rimento é uma história que se trans�orma na medida em que é contada. Uma história ruim pede uma pior; a luta �eroz por qualificar seu so�rimento como legítimo tornou-se uma das gramáticas morais mais importantes de nossa época. So�rer com o outro ou so�rer do outro são os dois polos dessa gramática contagiosa. O so�rimento solitário e o so�rimento coletivo chocam-se nesse ponto, em que a escrita de uma história trans�orma o seu autor. A situação em que se está lonely, em inglês, ou allein, em alemão, é di�erente da situação em que se está consigo mesmo, selbständig, ou se está só, einsam. O so�rimento que se so�re sozinho às vezes se trans�orma em outra coisa quando narrado. Há no alemão e no inglês uma expressão para 13

essa di�erença entre solidão e solitude, que se apresenta no verso de Alexander Pope, em “Ode à solidão”: Deixe-me viver, sem ser viso, desconhecido Deixe-me morrer sem lameno; Roubado do mundo, sem uma pedra A dizer onde esou.1

Se o amor é ese pequeno esado de loucura provisória, ele inclui ano as pequenas comédias de erros quano as grandes ragédias que compõem a psicopaologia da vida coidiana. A Psicopathologie des Jedestag ou Psicopatologia da vida cotidiana, segundo livro homônimo de Freud, pode ser lida como paologia social de nossa experiência coidiana, experimenada como pobre, ediosa, acelerada, demasiadamene previsível ou imprevisível. Mas a expressão ambém pode nos remeer a uma psicopaologia a partir da vida coidiana, ou seja, como a vida coidiana pode nos �azer so�rer, produzindo esados afliivos ou confliivos coninuados, que erminam por �ormar sinomas. Pensar nossa individualização a partir da �orma como estruturamos o so�rimento na linguagem é um capítulo decisivo de nossa política de subjetivação. A maneira como interpretamos ou codificamos, nomeamos ou meta�orizamos, descrevemos ou narramos nossa experiência de so�rimento trans�orma sua natureza, extensão e intensidade. Tal política pode se centrar sobre o que há de ipsei- 1 “Thus let me live, undade (somos únicos em nosso so�rer), de seen, unknown;/Thus let me dye;/ mesmidade (somos como outros em nos- unlamented Steal from the world, so so�rimento) ou de nossa identidade (so- and not a stone / Tell I lye.” Alexander mos como nós mesmos e nos desco- where Pope, Ode on Solitude 14 brimos como outros e até mesmo [1700]. Tradução do autor.

nos reencontramos como outros nós mesmos ao so�rer). Poderíamos �alar ainda nessa estranha condição contemporânea pela qual tornamos nosso so�rimento uma propriedade, capitalizando-a discursivamente ao produzir o que Lacan chamou de um a mais de gozo. Tal propriedade do so�rimento aparece também nas duas cartas de Rimbaud nas quais ele afirma que o eu é um outro : Eu é um ouro. Azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscienes que discuem sobre o que ignoram compleamene! [Cara a Georges Izambard] Pois �� é um ouro. Se o cobre despera clarim, não é por sua culpa. Isso me é evidene: assiso à eclosão de meu pensameno; conemplo-o; escuo-o; �aço um movimeno com o arco: a sin�onia �az seu movimeno no abismo, ou de um salo surge na cena. [Cara a Paul Demeny]2

Percebe-se que o sofrimento do eu é o sofrimento do outro  em vários sentidos, cada qual com sua política, cada qual com sua lógica própria de reconhecimento. Entre a madeira e o violino, ou entre o cobre e o clarim, há uma continuidade da mesma matéria e uma di�erença de �orma. A madeira que in�ortunadamente se descobre violino  indica a possibilidade de so�rermos com mudanças de �orma. Entre os que discu2 Tradução tem sobre o que ignoram, há uma re�erência Marcelo Jacques ao so�rimento como alienação e desconhecide Moraes [����].  Alea, v. 8, n. 1, mento, não só de si, mas na relação com Rio de Janeiro, o outro com quem discutem. Finalmente, 15 jan./jun. 2006.

na imagem da sin�onia e do salto no abismo há o so�rimento com a vertigem do �uturo, o vir-a-ser, único e singular, ainda que incerto ou indeterminado. Os exos aqui reunidos cobrem 26 anos de inervenções e reflexões práicas sobre ese nosso ganha-pão como psicanalisas: o so�rimeno. A �orma desses escrios, alguns deles curos, não responde apenas à agregação de colunas, enrevisas e arigos, mas ela ena preservar no ensaio a maéria-prima do coidiano, �eio de unidades desconínuas ainda que em esruura de repeição. Uma vida compreende hiaos e parêneses, reomadas e reicências, acelerações e descompressões, líquidos e sólidos, oposições que mobilizamos para caracerizar o so�rimeno nese início de século ���. Por isso, em vez de disciplinas enciclopédicas e princípios gerais de cura, o leior enconrará aqui casos, siuações ou regularidades clínicas que reconsiuem o caleidoscópio incero que é o problema dese livro. “So�rer junos” ou “so�rer separados” �ormam assim as bases de nosso problema, que é saber como �ormamos conjunos e séries de conjunos nese espaço que chamamos de coidiano. Enender processos de individualização como �ormações hisóricas implica políicas de reconhecimeno ou de denegação de reconhecimeno. Deerminar os limies enre a experiência produiva e a experiência improduiva de so� rimeno, no curso desa gramáica de conrários, requer a apreciação das rans�ormações pelas quais o Brasil passou em seus úlimos vine anos, paricularmene no que concerne a seus modos de subjeivação e de individualização, uma vez que o so�rimeno parece ser covariane de seus a�eos hegemônicos. Nesse senido, a políica discursiva e insiucional a�ea nossas �ormas de so�rer, por exemplo, regulando a rela16 ção enre lei e so�rimeno. Por ouro lado, a experiência

de so�rimeno é muio mais exensa do que as �ormas sociais de seu reconhecimeno; por isso são criadas novas demandas de reconhecimeno, praicando assim uma �orma de políica. Isso aconece ano porque nós aprendemos a so�rer, quano porque o so�rimeno não é indi�erene ao poder: seja ele pensado como impoência melancólica, seja como impossibilidade represenada pelo incurável da experiência humana.

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SOLIDÃO E SOLITUDE: A DIMENSÃO TRÁGICA DO SOFRIMENTO

Solidão: modo de usar

Muitas tragédias contemporâneas se assemelham ao que aconteceu no bairro carioca de Realengo em 7 de abril de 2011, quando doze crianças �oram mortas dentro da Escola Municipal Tasso da Silveira por um ex-aluno que se sentia rejeitado pelos antigos colegas e pro�essores. Um homem que vivia isolado e retornou para se vingar dos colegas e da escola que o teria repudiado e depois para se suicidar. Posteriormente, vários serviços de saúde receberam denúncias contra solitários contumazes. A razão diagnóstica adora devorar tragédias. Entendo que as tragédias nos convidam a reconhecer algo que está suprimido em uma determinada configuração social. Não são, portanto, espécies que se incluem em classes pré-constituídas, mas desafios para nossa imaginação política e psicológica. Georg Lukács, em seu clássico  A teoria do romance, mosrou que o herói moderno siua-se necessariamene enre o crime e a loucura, pois essas são as duas �ormas �undamenais de deserro. O herói é alguém que vive radicalmene a disância com relação a si e ao ouro, seja como ensão enre o ser e o dever ser, seja como cisão inerna, seja como oposição enre vida real e ideal. Lembremos que Dom Quixoe, Hamle, Don Juan ou Fauso são figuras do deserro e do auoexílio, personagens que escolhem não er lugar. Daí que a solidão seja o senimeno essencial da ragédia, assim como o isolameno seria a experiência cenral da epopeia e a confiança, o ema-chave do romance. A conclusão cristalina vale tanto para a literatura quanto para a psicanálise: sem a experiência da própria solidão, a vida nos parecerá postiça, artificial ou vulgar. A verdadeira e produtiva viagem solitária pode ser �eita a dois, em grupo e até mesmo em meio à dissolução do indivíduo na massa, mas o pior mesmo é quando tentamos evitá-la. A solidão é uma das �aces do que 19

os psicanalistas chamam de separação ou de castração. Nela, o objeto com o qual nos identificamos para cobrir nossa �alta e nossa �alta no Outro é finalmente deslocado de sua �unção encobridora. Experiência simbólica por excelência, ela traz consigo não apenas a separação para com os outros, mas a distância e o estranhamento com relação a si mesmo. Solidão não é apenas introspecção ou introversão, mas dissolução da própria solidez do ser. Ocorre que há ceras siuações de exclusão social, preconceio, segregação e supressão da di�erença que promovem uma espécie de �alsa solidão. Elas parecem dar corpo imaginário ao �racasso de esar com o ouro. Assim, a solidão é subsiuída por oura coisa: indi�erença, vazio ocupacional ou ressenimeno. Por meio desses suber�úgios, nunca esamos sozinhos. O prejuízo psíquico causado pela impossibilidade de esar sozinho é incalculável. Inerpreamos a ausência do ouro como r ecusa de reconhecimeno, reduzimos a experiência produiva de solidão ao desamor, abandono ou devasação. Insilamos a lua imaginária para provar quem precisa menos do ouro. É por ser a solidão ão rara e ão difcil de consruir que surgem ais paologias, maneiras de se de�ender, de mimeizar ou de exagerar um processo benéfico a pono de sua finalidade ornar-se irreconhecível ao próprio sujeio. Tipicamene isso se expressa em senimenos aparenados da solidão: o vazio, a irrelevância, a inadequação e a menos-valia. O que vem depois de uma maraona social de consumo, do início de �érias, da insônia crônica, do final de namoro que não ermina nunca: a recusa do �ao rágico da solidão. Os proagonisas dos grandes romances do século ��� inham na ironia um recurso �ormal para reraar o rabalho da solidão, uma �orma de ornar produiva a experiência de desenconro com si mesmo. É o caso de 20 personagens machadianos como Brás Cubas ou Beninho.

Nada menos rágico do que aquele que se leva a sério demais em sua própria �alsa solidão. Por isso, anes de suspeiar da normalidade do vizinho soliário, vejamos se ele não esá a nos �azer lembrar nossa própria solidão malraada. Se entendermos que os transtornos psicológicos definem-se pela introdução de uma coerção ou de uma restrição na vida relacional das pessoas, é coerente pensar que o so�rimento �requentemente trará e�eitos de isolamento, a�astamento ou ruptura das relações. Ocorre que esse movimento, que pode ser uma reação útil e desejável em uma série de circunstâncias geralmente penosas, torna-se ele mesmo uma �onte de outros problemas derivados da privação de experiências compartilhadas com outros. A solidão e o esvaziamento, ao lado do tédio e da apatia, �oram os primeiros diagnósticos de época entabulados por Hegel, ainda no século ���. Em outras palavras, o isolamento, a introversão ou a introspecção são respostas subjetivas que nem sempre são uma opção ou se iniciam como uma “escolha livre”, mas que gradualmente podem assumir o �eitio de um processo incontrolável, no interior do qual isolamento gera mais isolamento. A difcil manobra psíquica da separação pode se trans�ormar dessa maneira em algo que aparenta ser uma separação, mas e�etivamente não é. Como ocorre com o sujeito isolado, mas que na verdade está pro�undamente oprimido por �alas, presenças e experiências das quais ele não consegue se separar subjetivamente. É o caso, por exemplo, do ressentimento. O ressentido pode estar sozinho e isolado; geralmente ele procura isso, mas não está de �ato só e separado. Na verdade, ele não consegue se desligar de certos sentimentos anteriores e passa então a ressenti-los na solidão de seu quarto ou na antessala do sono. Poderia-se pensar enão que a boa solidão é a solidão escolhida, intencional e deliberada. Essa ideia da opção pelo 21

isolameno é basane raiçoeira, porque ela assume que ceros  jeitos de ser ou estilos de vida   são aplicações livres que alguém realiza sobre a maéria-prima indefinidamene elásica e sem �orma chamada vida. Também não goso muio da palavra transtorno, apesar de ser o arremedo mais usual para não �alar em doença, pois ransorno é a radução do inglês disorder , ou seja, desordem. Como nossa culura não é assim ão �anáica pela “ordem”, a pono de achar que ela exprime a essência e a naureza úlima da normalidade, opamos por “ransorno”. Mas ransorno sugere algo como uma pedra no meio do caminho, que a gene remove como um obsáculo coningene. A solidão orna-se um ransorno quando assume a dimensão de um tem que ou de um não pode com. O sujeito que está solitário, mas “pode” per�eitamente ir a uma �esta, �requentar a escola ou ver os amigos, está aquém da linha. Aquele que apenas “acha que pode”, mas quando exposto a uma prova direta recorre ao autoenganoso Mas quando eu quiser eu consigo, irmão do similar alcoolista Quando eu quiser eu paro , deve se preocupar. Estão aqui todas as depressões, as distimias, as obsessões e as estratégias de dizer não para o Outro. Muitas pessoas acabam desistindo de amigos que se isolam, pois acreditam na declaração nominal de que “ele não quer”, então o que vamos �azer, senão respeitar a “opção”. A coisa não é bem assim, já dizia Kant, pois até que ponto o sujeito é livre para querer ser livre? Até que ponto a vontade é livre para ter vontade de vontade? O segundo critério diagnóstico é a coerção, mas esse é mais �ácil de ser identificado. Trata-se daquela pessoa que diz direta ou indiretamente que ela tem que ficar sozinha, e aí entra a segunda parte da �rase, tem que… senão. Nesse senão estão incluídas as �obias sociais, as agora�obias, os transtornos do pânico, as 22 personalidades esquivas, ou seja, todas aquela situações

nas quais a rua ou o Outro inspiram medo ou angústia insuportáveis. Assim, fico sozinho porque estou seguro e distante daquilo que é conflitivo ou ameaçador. Nesse caso, o sujeito não está dizendo algo como Não preciso de você  ou Você me abandonou, por isso eu te abandono também . Aqui a gramática do so�rimento está baseada em Não consigo estar diante do olhar do Outro que me cri tica, mas em relação ao qual eu desejo estar incluído . O caso exremo do primeiro ipo é o sujeio que se reira do mundo para remoer sua raiva aé o momeno que sai de lá para se vingar. O caso paradigmáico do segundo ipo é o sujeio que não consegue esar com o Ouro porque ese é muio e inrinsecamene ameaçador, como no auismo e na Síndrome de Asperger. Haveria, é claro, �ormas combinadas, como aquelas que se reiram raumaicamene do mundo, a exemplo do personagem do filme argenino Medianeras: Buenos Aires da era do amor virtual [Gusavo Tareto, 2011]. Nesse caso, raa-se simulaneamene de dizer não ao mundo e de dizer não para si mesmo. Chegamos enão ao que se pode chamar de solitude, a solidão boa e necessária, cuja impossibilidade anuncia o paológico. A solidão desse ipo e nessa qualidade inensifica ceras experiências percepivas e imaginaivas. Ela é condição para o reconhecimeno de grandes quesões. Com o ouro, nosso próximo e vizinho, �requenemene nos esquecemos de nós mesmos, o que reaparece nas experiências de angúsia, separação e luo. Muias separações objeivas mosram-se rerospecivamene apenas uma ação para reinroduzir parêneses de solidão em uma vida poluída por ocupações e ormenos. Quando a criança descobre a possibilidade de ficar sozinha, oda sua relação com o Ouro se modifica. Ela aprende que sua presença é coningene e não necessária e, porano, que ela pode querer e ser querida. Essa separação é �undamenal para a consiuição de nossa 23

capacidade de amar e a inclusão da coningência que lhe é necessária. É impossível criar sem amor e angúsia, e essas duas experiências dependem da capacidade de esar só. Não se raa apenas de quieude, isolameno e esvaziameno, mas de um conjuno de senimenos alamene necessários para a saúde menal, sumariamene: esranhar a si mesmo, espanar-se com o mundo, perceber-se conradiório, �ragmenado, múliplo, di�erene de si mesmo, �rágil, vulnerável, capaz de sobreviver e de “suporar-se”. Durane boa pare de nossa hisória culivamos a solidão como experiência enriquecedora: a) Na filosofia: a mediação grega (premediação dos males), o reiro monásico, a mediação invesigaiva (como em Descares), a inrospecção psicológica. b) Na arquieura: os inúmeros disposiivos para �avorecer o culivo da solidão, como os jardins ingleses (�eios em �orma de labirino para que a pessoa possa se perder e, porano, se reenconrar), os clausros, os ários, as cripas, os escuros do barroco. c) Na pinura: o ema da paisagem e seu correlao, o rerao. d) Na poesia: o ema da saudade, do deserro, da perda e do amor inconcluído. e) Na lieraura: quase odos nossos heróis são soliários (de �orma volunária ou involunária), Dom Quixoe, Hamle, Don Juan, Robinson Crusoé, Fauso, o  flâneur de Baudelaire, nosso Brás Cubas e assim por diane. A ligação enre ideias obsessivas e compulsões com uma esraégia subjeiva baseada no isolameno já havia sido descria por Freud. Talvez não seja um acaso que as primeiras ocorrên24 cias hisóricas da palavra obsessão liguem-se ao período de

emergência do crisianismo como práica de auo-observação e conrole de si. É preciso ver como a classificação, a escrupulosidade e o goso pela ordem e pela discriminação são aiudes subjeivas que nos permiem reduzir o desprazer e en�renar conflios. Todos nós emos que separar as coisas, seja enre o que aconece em casa e o que aconece no rabalho, o que aconece enre amigos e o que aconece enre namorados, seja nossa vida pública e nossa vida privada, seja ainda separações que impomos a nós mesmos, como a vida adula e a in�ância, o passado e o presene, o conjuno de relações que ivemos com uma pessoa do conjuno de relações que eremos com oura pessoa (que por vezes virá a ocupar �unção ou posição similar diane de nós). Ora, uma vida sem a clareza de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa seria uma vida insuporável. Ocorre que essa de�esa subjetiva normalmente se apoia em estratégias de objetivação, que concorrem para produzir uma �orma de vida na qual as “separações externas” são uma espécie de garantia e de confirmação para “separações internas”. O Japão e, especialmente, a vida nas grandes cidades japonesas são um exemplo maior da combinação de �orças que geram o isolamento. Uma cultura na qual tradicionalmente o valor do grupo de origem ou da comunidade de trabalho é �undamental, onde a vergonha de se mostrar abaixo das expectativas desse grupo supera a culpa por decepcionar a realização do próprio desejo, vai o�erecer poucas alternativas para as �ormas de vida que se separam desse ideal comunitário. O isolamento que se sucede entre adolescentes costuma ser uma espécie de consagração da já superindividualizada vida social. Lembro ainda: não é porque “grupo” é o valor de re�erência que os indivíduos não sejam, eles mesmos, isolados dentro desse grupo. Basta que apareçam certas experiências que o grupo não reconhece como suas. Assim, aquilo que 25

COLEÇÃO EXIT Como pensar as quesões do século ���? A coleção Exi é um espaço ediorial que busca idenificar e analisar criicamene vários emas do mundo conemporâneo. Novas �erramenas das ciências humanas, da are e da ecnologia são convocadas para reflexões de pona sobre COORDENAÇÃO �enômenos ainda pouco nomeados, com o FLORENCIA FERRARI objeivo de pensar saídas para a complexiMILTON OHATA dade da vida hoje. LEIA TAMBÉM: 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono

© Ubu Ediora, 2017 © Chrisian Dunker, 2017 Coordenação ediorial ��������� ������� Assisene ediorial ����� ���� e ������� �������� Preparação ����� ������� Revisão ������� ������� e ���� �� ������ ��� Projeo gráfico da coleção ������ ����� e ������ ����������� Projeo gráfico dese íulo ����� �������� Produção gráfica ����� ����� Nesta edição, respeitou-se o novo  Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Inernacionais de Caalogação na Publicação (���) Dunker, Chrisian [1966–] Reinvenção da intimidade – políticas do so�rimento cotidiano São Paulo: Ubu Editora, 2017 320 pp. ���� 978 85 92886 46 2 1. Psicologia. 2. Psicanálise. 3. Coidiano. �. Tíulo. �������� ��� ��� � ��� ���.� Índice para caálogo sisemáico: 1. Psicologia 150 2. Psicologia 159.9

��� ������� Largo do Arouche 161 sobreloja 2 01219 011 São Paulo �� (11) 3331 2275 ubuediora.com.br

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