Reinvencao Da Intimidade
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Introdução...
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O mal-estar muda como muda a civilização. Nossas maneiras de so�rer não são apenas reflexos e e�eitos da cultura, mas �ormas de resistir e de responder ao que ela nos exige. O declínio da intimidade é, também, um convite para sua reinvenção. A obrigação de mantermos uma imagem de bem-estar e �elicidade e a conectividade acelerada com as engenharias da aparência nos colocam �ora de nós mesmos, tornando a intimidade uma experiência cada vez mais preciosa e rara. Este livro investiga como a dificuldade de criar experiências de compartilhamento de si com o outro está na gênese de nossas novas �ormas de so�rer. Chrisian Dunker mobiliza sua experiência de rês décadas de clínica e de reflexão para descrever um conjuno de sinomas ligados à di�iculdade de esar com o ouro. O so�rimeno nos predispõe a dividir nossa inimidade e, por isso, ele é ambém parene do amor. Poderíamos ler os desinos do so�rimeno como uma espécie de psicopaologia do dia a dia, �eia de pequenas escolhas e de g randes conflios. Solidão ou soliude, luo ou melancolia, pânico ou ciúme, paixão, ressenimeno ou depressão. Onde esá a linha divisória que separa nossos a�eos morais de nossas paologias sinomáicas? Onde esá a �roneira de so� rimeno que nos �ará escolher aceiá-lo ou rans�ormá-lo e, diane isso, rans�ormar o mundo e a nós mesmos? Em uma linguagem bem-humorada e acessível e abordando siuações banais da vida – enconrar alguém para amar, dividir as conas domésicas, er animais de esimação, suporar hipóeses de fidelidade ou de raição, criar filhos e se despedir de pais e de avós –, Dunker nos convida a repensar o
papel de nossas escolhas na parilha de a�eos e nas experiências de reconhecimeno necessárias para reinvenar a inimidade em empos de alienação e de so�rimeno proje ado no ouro. Os 49 ensaios breves dese livro são uma espécie de manual domésico para a sobrevivência em empos de subjeividade sombria, em que o ouro orna-se cada vez mais perigoso. Eles podem ser lidos ano como uma espiral que vai do privado ao público, quano como uma lisa de conexos nos quais a inimidade, seja pela sua �ala, seja pelo seu excesso, precisa ser reinvenada. Em uma sociedade digial, consumisa e obcecada pela produividade, as políicas de so�rimeno não são apenas psicológicas, mas ambém sociais e econômicas. Por isso, boa clínica é ambém críica social �eia por ouros meios. Combinando erudição universitária com linguagem corrente, os textos de Dunker aqui compilados narram ainda a ascensão de um Brasil em estado de con�rontação. Esquerdistas e neoliberais, mães neuróticas e amantes ciumentos, casamentos improváveis e separações infinitas geram mal-entendidos que nos �azem so�rer, e cada vez mais solitariamente. O poder emana de quem reconhece o nosso so�rimento e de quem esperamos legitimidade, atenção ou dignidade: padre, médico, policial, Estado,, hospital ou universidade, psicanalista, amigos e amores. Estado As políicas do so�rimeno coidiano são jogos, em esruura inconsciene, que deerminam nossas escolhas ópicas, dinâmicas e econômicas de poder. Elas �ormam nosso nó imaginário, real e simbólico pelo qual não conseguimos nunca nos curar do Ouro.
REINVENÇÃO DA INTIMIDADE
POLÍTICAS DO SOFRIMENTO COTIDIANO
CHRISTIAN DUNKER
A BUSCA DA BICICLETA PERDIDA INTRODUÇÃO 11
SOFRENDO DO OUTRO 25. A geografia imaginária da segregação real 26. Cercas, muros e silêncios 155 27. Paranoia sisêmica 158 28. Somos odos vândalos? 161 29. Cuidar ou conrolar? 172 30. A �elicidade como �aor políico 182 31. A alma revolucionária 186
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SOLIDÃO: MODO DE USAR 1. Solidão e soliude 19 2. Preciso de um empo só para mim 3. A melancolia de Ozymandias 42 4. Começar e erminar 45 5. Sobre a more e o morrer 48
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SOFRENDO COM O OUTRO 32. O so�rimeno enre a verdade e o real 195 33. A paixão prognósica e a invenção de novos diagnósicos 34. A paixão diagnósica 205 35. Neurose em esruura de ficção 207 36. Depressão do urso polar 220 37. Perversão ordinária 229 38. Síndrome pós-naalina 236 39. Que fim levaram os maníacos? 239
AFETOS COMPARTILHADOS 6. A raição e seus horrores 57 7. O ciúme e as �ormas paranoicas do amor 62 8. A �unção rans�ormaiva do ódio 71 9. Con�ormações da inimidade 77 10. Desmascarar as imposuras do amor 87 11. O amor pelos animais e seus limies 93 12. A vergonha como denúncia da �anasia 95 JUNTOS E SEPARADOS 13. Fundamenalismo conjugal 102 14. O casameno como perversão consenida 107 15. O verdadeiro amor �az exceção à lei 109 16. O dinheiro do casal 112 17. A mulher elepaa e o homem das cavernas 114 A CRIANÇA QUE NOS UNE E NOS SEPARA 18. A are de imbecilizar crianças 117 19. Loucura maerna 120 20. Oprimindo mulheres e desauorizando mães 21. O dever de a�eo e o direio de verdade 129 22. A cor e a �orma do cuidado 132 23. Síndrome da alienação parenal 135 24. Inoxicação digial in�anil 138
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PATOLOGIAS DO INDIVIDUALISMO À BRASILEIRA 40. Novas �ormas de so�rer no Brasil da reomada 242 41. O paradoxo moral do baalhador brasileiro 249 42. A culura da indi�erença 251 43. Crimes da palavra e culura da denúncia 254 44. A querela do consumo 260 45. Solidariedade sem ranscendênc ia? 263 46. Narcisismo digial 265 POLÍTICAS DE TRATAMENTO 47. Doença menal na políica 277 48. O neoliberalismo e seus normalopaas 49. Reinvenção da intimidade 293 ÍNDICE REMISSIVO 303 FONTES DOS TEXTOS 315
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INTRODUÇÃO Este livro segue a intuição antropológica e psicanalítica examinando como �ormas �undamentais de nossos sintomas relacionam-se com processos de individualização próprios da vida contemporânea, particularmente com uma das figuras mais ascendentes da individualização hoje: a experiência de so�rimento. So�rer é algo que depende essencialmene de rês condições: a narraiva na qual esá inserido; os aos de reconhecimeno que fixam sua causa e a ransiividade que o orna uma experiência coleiva e indeerminada. O ransiivismo é um �enômeno ípico da in�ância, relacionado ao complexo de inrusão, momeno no qual a criança elabora a enrada de relações riádicas, paricularmene com ouras crianças da mesma idade. Nessa siuação, �requenemene ela experimena, por exemplo, se colocar como agene de uma ação na qual, na verdade, ela é paciene da ação do ouro. Tipicamene, ela bae na oura criança e chora porque sene e�eivamene que �oi a oura criança que baeu nela. Ou enão ela oma um brinquedo, mas sene e inerprea que �oi a oura criança que omou o brinquedo dela. Em adulos, a siuação de ransiivismo reorna, por exemplo, em desavenças e conflios nos quais não se consegue dirimir quem esá agindo, provocando ou causando um deerminado esado de coisas e quem esá reagindo, “devolvendo” ou respondendo ao ao iniciado pelo ouro. Essa con�usão enre quem age e quem so�re a ação aparece ambém em casos mais graves, noadamene em �ormações deliranes e alucinaórias nas quais um pensameno e�eivamene experienciado pelo sujeio é senido como causado ou imposo pelo Ouro. Essas rês condições – narraiva, reconhecimeno e ransiivismo – combinam-se com uma hipóese: o so- 11
�rimeno requer e propaga uma políica. Isso quer dizer que a �orma como conamos, jusificamos e parilhamos nosso so�rimeno esá sujeia a uma dinâmica de poder. O poder dos opressores, o poder das víimas, o poder dos indi�erenes e aé mesmo o poder da indi�erença ao poder. O poder gerado por quem pode reconhecer o so�rimeno e de quem esperamos legiimidade, dignidade ou aenção, seja esse alguém o Esado ou o ordenameno jurídico e suas políicas públicas, sejam as imagos do médico, do padre, do douor ou do policial, sejam ainda aqueles com quem comparilhamos a vida coidiana e, mais ainda, aqueles a quem amamos. A ex-sistência (existir �ora de si) compreende uma parcela de so�rimento que não é eliminável. Nosso corpo se degrada, nossas leis são repetitivamente imper�eitas, a natureza nos impõe reveses de toda sorte. As três Parcas continuam a tecer e cortar impiedosamente nosso destino. A isso Freud chamou de mal-estar (Unbehagen) e Lacan, de Real. Contudo, nem tudo no mal-estar é aceitável e requer nossa resignação. Por isso, diante do so�rimento há sempre uma escolha a �azer, trans�ormar o mundo ou trans�ormar a nós mesmos. Essa trans�ormação depende, portanto, de como reconhecemos o so�rimento que nos acomete. Frequentemente nos recusamos a admitir, e até mesmo a perceber, que estamos so�rendo. Algumas vezes isso se apoia na interpretação de que so�rer e, principalmente, coletivizar ou externalizar essa experiência é uma �raqueza moral. Há, portanto, uma micropolítica envolvida no reconhecimento: culpa, responsabilidade ou implicação acerca das causas, das razões e dos motivos do so�rimento. Aqui acontece também uma espécie de conflito ou de concorrência entre as narrativas que sancionam ou 12 derrogam, visibilizam ou invisibilizam o so�rimento. In-
dividualizar ou coletivizar, culpar ou responsabilizar, incluir ou excluir, construir ou desconstruir a�etos correspondentes a tais narrativas, tudo isso �az parte das políticas do so�rimento cotidiano. Compartilhar nosso so�rimento tornou-se uma tare�a ainda mais complexa depois do neologismo proposto por Lacan: extimidade. Encontrar a intimidade �ora e o estranhamento dentro, sem que eles sejam equivalentes. Em vez de uma política sem partido, seria melhor �alar aqui, com Cazuza, em uma política do coração partido. Déficits e excessos de individualização revelam-se na própria experiência de so�rimento e na �orma de �ugir e negá-la. Isso aparece, por exemplo, na tendência à hipersocialização, a disposição a ficar permanentemente ligado, ocupado ou disponível, como na impotência para constituir situações e percursos de real solidão ou intimidade. Como toda política, ela �az um corpo, ela cria unidades de discurso, ela define um coletivo identificado por um mesmo traço ou uma mesma suposição de desejo ou de demanda. Cada experiência de so�rimento é uma história que se trans�orma na medida em que é contada. Uma história ruim pede uma pior; a luta �eroz por qualificar seu so�rimento como legítimo tornou-se uma das gramáticas morais mais importantes de nossa época. So�rer com o outro ou so�rer do outro são os dois polos dessa gramática contagiosa. O so�rimento solitário e o so�rimento coletivo chocam-se nesse ponto, em que a escrita de uma história trans�orma o seu autor. A situação em que se está lonely, em inglês, ou allein, em alemão, é di�erente da situação em que se está consigo mesmo, selbständig, ou se está só, einsam. O so�rimento que se so�re sozinho às vezes se trans�orma em outra coisa quando narrado. Há no alemão e no inglês uma expressão para 13
essa di�erença entre solidão e solitude, que se apresenta no verso de Alexander Pope, em “Ode à solidão”: Deixe-me viver, sem ser viso, desconhecido Deixe-me morrer sem lameno; Roubado do mundo, sem uma pedra A dizer onde esou.1
Se o amor é ese pequeno esado de loucura provisória, ele inclui ano as pequenas comédias de erros quano as grandes ragédias que compõem a psicopaologia da vida coidiana. A Psicopathologie des Jedestag ou Psicopatologia da vida cotidiana, segundo livro homônimo de Freud, pode ser lida como paologia social de nossa experiência coidiana, experimenada como pobre, ediosa, acelerada, demasiadamene previsível ou imprevisível. Mas a expressão ambém pode nos remeer a uma psicopaologia a partir da vida coidiana, ou seja, como a vida coidiana pode nos �azer so�rer, produzindo esados afliivos ou confliivos coninuados, que erminam por �ormar sinomas. Pensar nossa individualização a partir da �orma como estruturamos o so�rimento na linguagem é um capítulo decisivo de nossa política de subjetivação. A maneira como interpretamos ou codificamos, nomeamos ou meta�orizamos, descrevemos ou narramos nossa experiência de so�rimento trans�orma sua natureza, extensão e intensidade. Tal política pode se centrar sobre o que há de ipsei- 1 “Thus let me live, undade (somos únicos em nosso so�rer), de seen, unknown;/Thus let me dye;/ mesmidade (somos como outros em nos- unlamented Steal from the world, so so�rimento) ou de nossa identidade (so- and not a stone / Tell I lye.” Alexander mos como nós mesmos e nos desco- where Pope, Ode on Solitude 14 brimos como outros e até mesmo [1700]. Tradução do autor.
nos reencontramos como outros nós mesmos ao so�rer). Poderíamos �alar ainda nessa estranha condição contemporânea pela qual tornamos nosso so�rimento uma propriedade, capitalizando-a discursivamente ao produzir o que Lacan chamou de um a mais de gozo. Tal propriedade do so�rimento aparece também nas duas cartas de Rimbaud nas quais ele afirma que o eu é um outro : Eu é um ouro. Azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscienes que discuem sobre o que ignoram compleamene! [Cara a Georges Izambard] Pois �� é um ouro. Se o cobre despera clarim, não é por sua culpa. Isso me é evidene: assiso à eclosão de meu pensameno; conemplo-o; escuo-o; �aço um movimeno com o arco: a sin�onia �az seu movimeno no abismo, ou de um salo surge na cena. [Cara a Paul Demeny]2
Percebe-se que o sofrimento do eu é o sofrimento do outro em vários sentidos, cada qual com sua política, cada qual com sua lógica própria de reconhecimento. Entre a madeira e o violino, ou entre o cobre e o clarim, há uma continuidade da mesma matéria e uma di�erença de �orma. A madeira que in�ortunadamente se descobre violino indica a possibilidade de so�rermos com mudanças de �orma. Entre os que discu2 Tradução tem sobre o que ignoram, há uma re�erência Marcelo Jacques ao so�rimento como alienação e desconhecide Moraes [����]. Alea, v. 8, n. 1, mento, não só de si, mas na relação com Rio de Janeiro, o outro com quem discutem. Finalmente, 15 jan./jun. 2006.
na imagem da sin�onia e do salto no abismo há o so�rimento com a vertigem do �uturo, o vir-a-ser, único e singular, ainda que incerto ou indeterminado. Os exos aqui reunidos cobrem 26 anos de inervenções e reflexões práicas sobre ese nosso ganha-pão como psicanalisas: o so�rimeno. A �orma desses escrios, alguns deles curos, não responde apenas à agregação de colunas, enrevisas e arigos, mas ela ena preservar no ensaio a maéria-prima do coidiano, �eio de unidades desconínuas ainda que em esruura de repeição. Uma vida compreende hiaos e parêneses, reomadas e reicências, acelerações e descompressões, líquidos e sólidos, oposições que mobilizamos para caracerizar o so�rimeno nese início de século ���. Por isso, em vez de disciplinas enciclopédicas e princípios gerais de cura, o leior enconrará aqui casos, siuações ou regularidades clínicas que reconsiuem o caleidoscópio incero que é o problema dese livro. “So�rer junos” ou “so�rer separados” �ormam assim as bases de nosso problema, que é saber como �ormamos conjunos e séries de conjunos nese espaço que chamamos de coidiano. Enender processos de individualização como �ormações hisóricas implica políicas de reconhecimeno ou de denegação de reconhecimeno. Deerminar os limies enre a experiência produiva e a experiência improduiva de so� rimeno, no curso desa gramáica de conrários, requer a apreciação das rans�ormações pelas quais o Brasil passou em seus úlimos vine anos, paricularmene no que concerne a seus modos de subjeivação e de individualização, uma vez que o so�rimeno parece ser covariane de seus a�eos hegemônicos. Nesse senido, a políica discursiva e insiucional a�ea nossas �ormas de so�rer, por exemplo, regulando a rela16 ção enre lei e so�rimeno. Por ouro lado, a experiência
de so�rimeno é muio mais exensa do que as �ormas sociais de seu reconhecimeno; por isso são criadas novas demandas de reconhecimeno, praicando assim uma �orma de políica. Isso aconece ano porque nós aprendemos a so�rer, quano porque o so�rimeno não é indi�erene ao poder: seja ele pensado como impoência melancólica, seja como impossibilidade represenada pelo incurável da experiência humana.
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SOLIDÃO E SOLITUDE: A DIMENSÃO TRÁGICA DO SOFRIMENTO
Solidão: modo de usar
Muitas tragédias contemporâneas se assemelham ao que aconteceu no bairro carioca de Realengo em 7 de abril de 2011, quando doze crianças �oram mortas dentro da Escola Municipal Tasso da Silveira por um ex-aluno que se sentia rejeitado pelos antigos colegas e pro�essores. Um homem que vivia isolado e retornou para se vingar dos colegas e da escola que o teria repudiado e depois para se suicidar. Posteriormente, vários serviços de saúde receberam denúncias contra solitários contumazes. A razão diagnóstica adora devorar tragédias. Entendo que as tragédias nos convidam a reconhecer algo que está suprimido em uma determinada configuração social. Não são, portanto, espécies que se incluem em classes pré-constituídas, mas desafios para nossa imaginação política e psicológica. Georg Lukács, em seu clássico A teoria do romance, mosrou que o herói moderno siua-se necessariamene enre o crime e a loucura, pois essas são as duas �ormas �undamenais de deserro. O herói é alguém que vive radicalmene a disância com relação a si e ao ouro, seja como ensão enre o ser e o dever ser, seja como cisão inerna, seja como oposição enre vida real e ideal. Lembremos que Dom Quixoe, Hamle, Don Juan ou Fauso são figuras do deserro e do auoexílio, personagens que escolhem não er lugar. Daí que a solidão seja o senimeno essencial da ragédia, assim como o isolameno seria a experiência cenral da epopeia e a confiança, o ema-chave do romance. A conclusão cristalina vale tanto para a literatura quanto para a psicanálise: sem a experiência da própria solidão, a vida nos parecerá postiça, artificial ou vulgar. A verdadeira e produtiva viagem solitária pode ser �eita a dois, em grupo e até mesmo em meio à dissolução do indivíduo na massa, mas o pior mesmo é quando tentamos evitá-la. A solidão é uma das �aces do que 19
os psicanalistas chamam de separação ou de castração. Nela, o objeto com o qual nos identificamos para cobrir nossa �alta e nossa �alta no Outro é finalmente deslocado de sua �unção encobridora. Experiência simbólica por excelência, ela traz consigo não apenas a separação para com os outros, mas a distância e o estranhamento com relação a si mesmo. Solidão não é apenas introspecção ou introversão, mas dissolução da própria solidez do ser. Ocorre que há ceras siuações de exclusão social, preconceio, segregação e supressão da di�erença que promovem uma espécie de �alsa solidão. Elas parecem dar corpo imaginário ao �racasso de esar com o ouro. Assim, a solidão é subsiuída por oura coisa: indi�erença, vazio ocupacional ou ressenimeno. Por meio desses suber�úgios, nunca esamos sozinhos. O prejuízo psíquico causado pela impossibilidade de esar sozinho é incalculável. Inerpreamos a ausência do ouro como r ecusa de reconhecimeno, reduzimos a experiência produiva de solidão ao desamor, abandono ou devasação. Insilamos a lua imaginária para provar quem precisa menos do ouro. É por ser a solidão ão rara e ão difcil de consruir que surgem ais paologias, maneiras de se de�ender, de mimeizar ou de exagerar um processo benéfico a pono de sua finalidade ornar-se irreconhecível ao próprio sujeio. Tipicamene isso se expressa em senimenos aparenados da solidão: o vazio, a irrelevância, a inadequação e a menos-valia. O que vem depois de uma maraona social de consumo, do início de �érias, da insônia crônica, do final de namoro que não ermina nunca: a recusa do �ao rágico da solidão. Os proagonisas dos grandes romances do século ��� inham na ironia um recurso �ormal para reraar o rabalho da solidão, uma �orma de ornar produiva a experiência de desenconro com si mesmo. É o caso de 20 personagens machadianos como Brás Cubas ou Beninho.
Nada menos rágico do que aquele que se leva a sério demais em sua própria �alsa solidão. Por isso, anes de suspeiar da normalidade do vizinho soliário, vejamos se ele não esá a nos �azer lembrar nossa própria solidão malraada. Se entendermos que os transtornos psicológicos definem-se pela introdução de uma coerção ou de uma restrição na vida relacional das pessoas, é coerente pensar que o so�rimento �requentemente trará e�eitos de isolamento, a�astamento ou ruptura das relações. Ocorre que esse movimento, que pode ser uma reação útil e desejável em uma série de circunstâncias geralmente penosas, torna-se ele mesmo uma �onte de outros problemas derivados da privação de experiências compartilhadas com outros. A solidão e o esvaziamento, ao lado do tédio e da apatia, �oram os primeiros diagnósticos de época entabulados por Hegel, ainda no século ���. Em outras palavras, o isolamento, a introversão ou a introspecção são respostas subjetivas que nem sempre são uma opção ou se iniciam como uma “escolha livre”, mas que gradualmente podem assumir o �eitio de um processo incontrolável, no interior do qual isolamento gera mais isolamento. A difcil manobra psíquica da separação pode se trans�ormar dessa maneira em algo que aparenta ser uma separação, mas e�etivamente não é. Como ocorre com o sujeito isolado, mas que na verdade está pro�undamente oprimido por �alas, presenças e experiências das quais ele não consegue se separar subjetivamente. É o caso, por exemplo, do ressentimento. O ressentido pode estar sozinho e isolado; geralmente ele procura isso, mas não está de �ato só e separado. Na verdade, ele não consegue se desligar de certos sentimentos anteriores e passa então a ressenti-los na solidão de seu quarto ou na antessala do sono. Poderia-se pensar enão que a boa solidão é a solidão escolhida, intencional e deliberada. Essa ideia da opção pelo 21
isolameno é basane raiçoeira, porque ela assume que ceros jeitos de ser ou estilos de vida são aplicações livres que alguém realiza sobre a maéria-prima indefinidamene elásica e sem �orma chamada vida. Também não goso muio da palavra transtorno, apesar de ser o arremedo mais usual para não �alar em doença, pois ransorno é a radução do inglês disorder , ou seja, desordem. Como nossa culura não é assim ão �anáica pela “ordem”, a pono de achar que ela exprime a essência e a naureza úlima da normalidade, opamos por “ransorno”. Mas ransorno sugere algo como uma pedra no meio do caminho, que a gene remove como um obsáculo coningene. A solidão orna-se um ransorno quando assume a dimensão de um tem que ou de um não pode com. O sujeito que está solitário, mas “pode” per�eitamente ir a uma �esta, �requentar a escola ou ver os amigos, está aquém da linha. Aquele que apenas “acha que pode”, mas quando exposto a uma prova direta recorre ao autoenganoso Mas quando eu quiser eu consigo, irmão do similar alcoolista Quando eu quiser eu paro , deve se preocupar. Estão aqui todas as depressões, as distimias, as obsessões e as estratégias de dizer não para o Outro. Muitas pessoas acabam desistindo de amigos que se isolam, pois acreditam na declaração nominal de que “ele não quer”, então o que vamos �azer, senão respeitar a “opção”. A coisa não é bem assim, já dizia Kant, pois até que ponto o sujeito é livre para querer ser livre? Até que ponto a vontade é livre para ter vontade de vontade? O segundo critério diagnóstico é a coerção, mas esse é mais �ácil de ser identificado. Trata-se daquela pessoa que diz direta ou indiretamente que ela tem que ficar sozinha, e aí entra a segunda parte da �rase, tem que… senão. Nesse senão estão incluídas as �obias sociais, as agora�obias, os transtornos do pânico, as 22 personalidades esquivas, ou seja, todas aquela situações
nas quais a rua ou o Outro inspiram medo ou angústia insuportáveis. Assim, fico sozinho porque estou seguro e distante daquilo que é conflitivo ou ameaçador. Nesse caso, o sujeito não está dizendo algo como Não preciso de você ou Você me abandonou, por isso eu te abandono também . Aqui a gramática do so�rimento está baseada em Não consigo estar diante do olhar do Outro que me cri tica, mas em relação ao qual eu desejo estar incluído . O caso exremo do primeiro ipo é o sujeio que se reira do mundo para remoer sua raiva aé o momeno que sai de lá para se vingar. O caso paradigmáico do segundo ipo é o sujeio que não consegue esar com o Ouro porque ese é muio e inrinsecamene ameaçador, como no auismo e na Síndrome de Asperger. Haveria, é claro, �ormas combinadas, como aquelas que se reiram raumaicamene do mundo, a exemplo do personagem do filme argenino Medianeras: Buenos Aires da era do amor virtual [Gusavo Tareto, 2011]. Nesse caso, raa-se simulaneamene de dizer não ao mundo e de dizer não para si mesmo. Chegamos enão ao que se pode chamar de solitude, a solidão boa e necessária, cuja impossibilidade anuncia o paológico. A solidão desse ipo e nessa qualidade inensifica ceras experiências percepivas e imaginaivas. Ela é condição para o reconhecimeno de grandes quesões. Com o ouro, nosso próximo e vizinho, �requenemene nos esquecemos de nós mesmos, o que reaparece nas experiências de angúsia, separação e luo. Muias separações objeivas mosram-se rerospecivamene apenas uma ação para reinroduzir parêneses de solidão em uma vida poluída por ocupações e ormenos. Quando a criança descobre a possibilidade de ficar sozinha, oda sua relação com o Ouro se modifica. Ela aprende que sua presença é coningene e não necessária e, porano, que ela pode querer e ser querida. Essa separação é �undamenal para a consiuição de nossa 23
capacidade de amar e a inclusão da coningência que lhe é necessária. É impossível criar sem amor e angúsia, e essas duas experiências dependem da capacidade de esar só. Não se raa apenas de quieude, isolameno e esvaziameno, mas de um conjuno de senimenos alamene necessários para a saúde menal, sumariamene: esranhar a si mesmo, espanar-se com o mundo, perceber-se conradiório, �ragmenado, múliplo, di�erene de si mesmo, �rágil, vulnerável, capaz de sobreviver e de “suporar-se”. Durane boa pare de nossa hisória culivamos a solidão como experiência enriquecedora: a) Na filosofia: a mediação grega (premediação dos males), o reiro monásico, a mediação invesigaiva (como em Descares), a inrospecção psicológica. b) Na arquieura: os inúmeros disposiivos para �avorecer o culivo da solidão, como os jardins ingleses (�eios em �orma de labirino para que a pessoa possa se perder e, porano, se reenconrar), os clausros, os ários, as cripas, os escuros do barroco. c) Na pinura: o ema da paisagem e seu correlao, o rerao. d) Na poesia: o ema da saudade, do deserro, da perda e do amor inconcluído. e) Na lieraura: quase odos nossos heróis são soliários (de �orma volunária ou involunária), Dom Quixoe, Hamle, Don Juan, Robinson Crusoé, Fauso, o flâneur de Baudelaire, nosso Brás Cubas e assim por diane. A ligação enre ideias obsessivas e compulsões com uma esraégia subjeiva baseada no isolameno já havia sido descria por Freud. Talvez não seja um acaso que as primeiras ocorrên24 cias hisóricas da palavra obsessão liguem-se ao período de
emergência do crisianismo como práica de auo-observação e conrole de si. É preciso ver como a classificação, a escrupulosidade e o goso pela ordem e pela discriminação são aiudes subjeivas que nos permiem reduzir o desprazer e en�renar conflios. Todos nós emos que separar as coisas, seja enre o que aconece em casa e o que aconece no rabalho, o que aconece enre amigos e o que aconece enre namorados, seja nossa vida pública e nossa vida privada, seja ainda separações que impomos a nós mesmos, como a vida adula e a in�ância, o passado e o presene, o conjuno de relações que ivemos com uma pessoa do conjuno de relações que eremos com oura pessoa (que por vezes virá a ocupar �unção ou posição similar diane de nós). Ora, uma vida sem a clareza de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa seria uma vida insuporável. Ocorre que essa de�esa subjetiva normalmente se apoia em estratégias de objetivação, que concorrem para produzir uma �orma de vida na qual as “separações externas” são uma espécie de garantia e de confirmação para “separações internas”. O Japão e, especialmente, a vida nas grandes cidades japonesas são um exemplo maior da combinação de �orças que geram o isolamento. Uma cultura na qual tradicionalmente o valor do grupo de origem ou da comunidade de trabalho é �undamental, onde a vergonha de se mostrar abaixo das expectativas desse grupo supera a culpa por decepcionar a realização do próprio desejo, vai o�erecer poucas alternativas para as �ormas de vida que se separam desse ideal comunitário. O isolamento que se sucede entre adolescentes costuma ser uma espécie de consagração da já superindividualizada vida social. Lembro ainda: não é porque “grupo” é o valor de re�erência que os indivíduos não sejam, eles mesmos, isolados dentro desse grupo. Basta que apareçam certas experiências que o grupo não reconhece como suas. Assim, aquilo que 25
COLEÇÃO EXIT Como pensar as quesões do século ���? A coleção Exi é um espaço ediorial que busca idenificar e analisar criicamene vários emas do mundo conemporâneo. Novas �erramenas das ciências humanas, da are e da ecnologia são convocadas para reflexões de pona sobre COORDENAÇÃO �enômenos ainda pouco nomeados, com o FLORENCIA FERRARI objeivo de pensar saídas para a complexiMILTON OHATA dade da vida hoje. LEIA TAMBÉM: 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono
© Ubu Ediora, 2017 © Chrisian Dunker, 2017 Coordenação ediorial ��������� ������� Assisene ediorial ����� ���� e ������� �������� Preparação ����� ������� Revisão ������� ������� e ���� �� ������ ��� Projeo gráfico da coleção ������ ����� e ������ ����������� Projeo gráfico dese íulo ����� �������� Produção gráfica ����� ����� Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Inernacionais de Caalogação na Publicação (���) Dunker, Chrisian [1966–] Reinvenção da intimidade – políticas do so�rimento cotidiano São Paulo: Ubu Editora, 2017 320 pp. ���� 978 85 92886 46 2 1. Psicologia. 2. Psicanálise. 3. Coidiano. �. Tíulo. �������� ��� ��� � ��� ���.� Índice para caálogo sisemáico: 1. Psicologia 150 2. Psicologia 159.9
��� ������� Largo do Arouche 161 sobreloja 2 01219 011 São Paulo �� (11) 3331 2275 ubuediora.com.br
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