Praca_e_sociabilidade_praticas_represent.pdf

June 6, 2019 | Author: Maria Cristina | Category: Lisbon, City, Geography, Portugal, Paris
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(Versão alargada do texto publicado em “As praças como lugares de sociabilidade:  práticas e representações” representações ”, in Miguel Figueira de Faria (coord.),  Praças reais: passado,  presente e futuro,

Lisboa, Livros Horizonte, pp.45-56)

Maria Alexandre Lousada

(Departamento de Geografia/ Centro de estudos

Geográficos, Faculdade Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa) Praça e sociabilidade: práticas, práticas, representações e memórias. memórias.

De que modo uma praça se torna um lugar de sociabilidade e como é que pode  perder essa qualidade são duas das questões questões que actualmente actualmente preocupam os urbanistas urbanistas e, de um modo geral, todos aqueles que reflectem e trabalham sobre a cidade. Espaços urbanos por excelência, as ruas e as praças têm sido em cada época os símbolos da vida e da cultura citadinas. Produzidas, representadas e vividas são simultaneamente objecto e sujeito da cidade  –   da sua paisagem física, humana e simbólica. Elementos fundamentais da cidade, as suas características são, no entanto, variáveis mesmo quando a sua forma material se mantém aparentemente imutável, pois é nas relações entre a forma física e a actividade humana que se forma o “cenário de comportamento”1. Considerando, na esteira de Lynch 2, que as características físicas de um local não se reduzem à noção tradicional de forma material mas sim às “ pessoas em acção e às à s instalações físicas que servem de suporte a essas acções”  (o que inclui os edifícios e as suas diferentes funções, os espaços e os fluxos), mais fácil se torna  perceber  perceber que a transformação das praças é um dado da geografia histórica urbana, intimamente ligada à evolução da cidade e dos modos de vida urbanos. Por outro lado, é a dimensão subjectiva e simbólica da relação entre as pessoas e o espaço que transforma este em lugar ou seja, num “mundo “ mundo organizado” organizado ” e complexo com “múltiplos patamares de significados s ignificados””3. Ou seja, todos os lugares são simbólicos, neles se encontrando muitas culturas (as quais estão frequentemente em conflito), e todos os lugares estão em contínua criação e recriação (não são determinados de uma vez por todas), num 1

 R. Barker, citado por K. Lynch, A boa forma da cidade cidade, Lisboa, Edições 70, 1999, p.329.  K. Lynch, A boa forma da cidade… cidade…, p. 329. 3  Yi-Fu  Yi- Fu Tuan designa as atitudes e os valores envolvidos nas elações com o meio por topofilia isto é, “o elo afectivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. É um conceito difuso, mas concreto como experiência pessoal”. Yi-Fu Yi-Fu Tuan, Topofolia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente, S. Paulo, Difel, 1980 e  Espaço e lugar: a perspectiva da experiência, S. Paulo, Difel, 1983. Cf. também Denis Cosgrove, “A Geografia está em toda a parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas”, in R.L.Corrêa e Z. Rosendahl, Paisagem, tempo tempo e cultura, Rio de Janeiro, 1998, p. 92-122. 2

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 processo em que a memória desempenha um papel importante na construção da sua identidade 4. Ou, como diz Harvey, um lugar é muitas vezes visto com um “ locus da memória colectiva” 5  . Espaços públicos por excelência, as praças (e as ruas) foram tradicionalmente espaços multifuncionais –  de trabalho, de lazer, de passagem, encontro e deambulação, de conflito e de festa, de poder e de resistência, acolhedores ou inseguros –  e percepcionados como tal. Esta complexidade está em vias de desaparecer, se é que ainda existe, e com ela a antiga e secular vivência das praças. As intervenções actuais nas praças não devem ignorar o processo histórico em que foram produzidas, as diversas vivências que as foram forjando ao longo do tempo nem as várias memórias que construíram o “sentido do lugar”. No presente texto apresentam-se alguns elementos para uma leitura dos múltiplos modos de ver e viver que fazem o sentido dos lugares, tendo como objecto de observação aquela que é considerada a principal praça histórica de Lisboa, o Terreiro do Paço ou Praça do Comércio, entre finais do século XVIII e meados do século XIX. A leitura será feita em torno de quatro tópicos: o léxico, as representações iconográficas e literárias e as vivências e tensões no uso da praça. A praça: a palavra e os significados Em Portugal, o vocábulo  praça é utilizado pelo menos desde o início do século XVIII para designar o espaço aberto, não construído e público da cidade: “lugar  público, plano e espaçoso nas Cidades”, assim vem registado no vocabulário de Bluteau, em 1720 6. Era geralmente um espaço multifuncional e, do ponto de vista da forma, irregular e de dimensões muito variáveis. O campo semântico de praça é extenso, expressão das suas origens tanto do ponto de vista funcional como da sua localização no espaço urbano. Praça, largo, adro, campo, rossio, terreiro eram os diferentes vocábulos utilizados para designar os espaços urbanos abertos e públicos nas cidades portuguesas: 4

 Sobre o conceito de lugar como um processo produto das práticas culturais e, sobretudo, das práticas quotidianas, vejam-se os já clássicos estudos de Alan Pred, “Place as historically contingent process: structuration and the time-geography of becoming places”, Annals of the Association of American Geographers, 1984, 74 (2), pp. 279-297, Doreen Massey, Space, Place and Gender , Minneapolis, Univ. Minneapolis Press, 1994 e Paul Claval, La géographie culturelle, Paris, Nathan, 1995. Uma síntese das diferentes aproximações geográficas (anglo-saxónicas) pode ler-se em Tim Cresswell, Place: a short introduction, Blackwell Publ., 2004. 5   David Harvey, Justice,  Nature and the Geography of Difference, Blackwell Publ., Cambridge, MA, 1996, citado por T. Cresswell, Place …, p. 61. 6  Rafael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, aulico, anatómico …, 8 vols., Coimbra, 1712-1721.

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simples alargamento da rua (largo), área exterior ampla e aberta junto aos muros da cidade (nestes casos, regra geral conhecida como rossio, terreiro ou campo), espaço aberto diante da porta principal de uma igreja (recebendo o nome de adro), espaço regular e planificado (praça) 7. Foi só no período moderno que a praça regular e de grandes dimensões começou a ser pensada como o centro funcional, espacial e simbólico da cidade e a ser associada às manifestações do poder régio. Mas nas mais conhecidas descrições da cidade de Lisboa no século XVI (Damião de Góis, João Brandão de Buarcos, Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Francisco de Holanda), as praças não são ainda a imagem da cidade, o símbolo do seu prestígio, grandeza e riqueza: aquilo que estes autores destacam são os edifícios notáveis (templos, palácios), o número de portas e de ruas ou a grande rua nova dos mercadores. No século XVII iniciou-se o processo de regularização e geometrização das praças, mas tal foi sobretudo visível nos territórios ultramarinos. Na metrópole, será preciso esperar pela segunda metade do século XVIII para que a praça surja dotada duma função estética e de prestígio e se inscreva como elemento essencial no interior dum plano racional: os exemplos mais marcantes são os de Lisboa, Porto, Vila Real de Santo António ou Porto Covo. Trata-se de uma nova concepção de praça, de feição erudita, que os dicionários demoram a registar, e mesmo assim ainda associada à antiga função de mercado: “praça, lugar público espaçoso e descoberto, cingido de edifícios, para ornato das cidades e vilas; ou onde se fazem feiras, mercados, leilões”, é a definição proposta no célebre dicionário de Morais, mas apenas na edição de 18448. Os vários significados da palavra praça nos diversos dicionários consultados ajudam a perceber melhor as actividades e vivências que lhe estão associadas. Antes de mais, a praça é o lugar do mercado, do comércio, como se define num dicionário de 1789: “lugar público, descoberto, espaçoso nas Vilas ou Cidades, onde se fazem feiras,

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  Sobre este assunto, Maria Alexandre Lousada, “ Praça/ Square/ Place”, in  Christian Topalov, L. Coudroy de Lille, J-Ch. Depaule et B. Marin (dir./eds.), Trésor des mots de la ville, Paris, CNRS-Editions & Editions de la MSH, no prelo.Cf. também as leituras de José Tudela, As Praças e Largos de Lisboa (Esboço para uma sistematização caracterológica), Lisboa, CML, 1977 e de Miguel Faria, «O modelo  praça/monumento central na evolução urbanística da cidade de Lisboa  –   notas sobre toponímia, urbanismo e história dos monumentos públicos em Lisboa”,  Lisboa Iluminista e o seu tempo, Lisboa, UAL; 1997, pp.52-56, onde este autor chama a atenção para “a imprecisão com que os dois termos [praça e largo] foram sendo utilizados no passado”. 8  António de Morais e Silva, Diccionario da língua Portugueza composto por …, 5ª ed., Lisboa, Typ. de António José da Rocha, 1844, 2 vols. Nas edições anteriores a definição de praça é a de Bluteau.

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mercados, leilões”9. Ainda hoje, a expressão “ir à praça” significa ir ao mercado. O vocábulo também significava o corpo de negociantes de uma cidade ou o lugar onde estes se reuniam: “como termo de comércio é sinónimo de Bolsa, ou lugar de reunião dos homens de negócio”10. A praça era também o lugar do exercício da justiça: não só o  pelourinho está tradicionalmente numa praça (praça ou largo do pelourinho) como era aí que se aplicavam os castigos públicos, dos autos de fé às execuções políticas. A praça é  pois o lugar público por excelência, característica que os dicionários não deixaram de assinalar averbando expressões como “a história veio à praça, id est , todos a sabem” 11 ou “andar em praça, ser público” 12. É apenas num tratado de urbanismo da segunda metade do século XVIII (José de Figueiredo Seixas, 1760-1769) que as praças são associadas ao lazer, ao recreio e às práticas de sociabilidade mas sempre, note-se, com a actividade mercantil presente. Aí se afirma que as praças das povoações, que devem ser de forma quadrilátera, “são como salas da cidade, em que as pessoas podem passear, e negociar, porque em elas se fazem os mercados das coisas necessárias ao viver dos homens”. Para além disso eram local de exercícios militares, festas e feiras 13. O Terreiro do Paço / Praça do Comércio contempla na sua evolução terminológica e morfológica, bem como nas suas funções, estes diferentes aspectos: tendo nascido como um terreiro, fora do núcleo primitivo da cidade, inicialmente espaço de feira e de actividades portuárias dada a sua localização, a ida do rei e da corte para lá e a economia imperial transformaram-no em Terreiro do Paço e centro do império. Após o terramoto de 1755 foi redesenhado à luz das novas concepções urbanísticas, o rei deixou de aí residir (ficou simbolicamente representado em estátua e só muito episodicamente a família real lá voltou), a Bolsa dos negociantes ficou instalada num dos torreões e foi-lhe dada uma nova denominação consentânea aos novos valores urbanísticos e às suas funções económicas entretanto dignificadas: Praça do Comércio. Aí se localizou um dos mais famosos cafés de Lisboa que, junto com outros estabelecimentos similares, algumas livrarias, as arcadas e, bem mais tarde, primeiro o empedramento do solo e depois a arborização da área central a tornaram um dos lugares 9

 Diccionario da língua portugueza,

composto pelo padre D. Rafael Bluteau; reformado e accrescentado  por António de Moraes Silva, Lisboa, Of. Simão Thaddeo Ferreira, 1789. 10   José Ferreira Borges,  Diccionario jurídico-commercial , Lisboa, Tip. da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1839. 11  R. Bluteau, Vocabulário…., 1720. 12  Francisco Solano Constâncio, Novo diccionario critico e etymologico da língua portugueza precedido de huma introducção grammatical …., Paris, Off. Typ. de Casimir, 1836. 13  in  A praça na cidade portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, p. 204-05 (citado por Luís Martins Gomes)

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de sociabilidade quotidiana da capital. O velho Terreiro do Paço, no seu novo desenho depurado, tornou-se uma praça, uma sala onde as pessoas podiam passear e negociar. A praça representada: iconografia e literatura de viagens As representações iconográficas e cartográficas e as descrições de cronistas e viajantes constituem uma outra aproximação ao tema. É certo que não se pode ignorar que algumas são gravuras de aparato e imagens de propaganda e que o olhar dos viajantes é filtrado pela sua cultura urbana nacional e pelo que leram ou ouviram acerca do país que visitam 14. Por detrás do vocabulário iconográfico e dos cânones literários estão paisagens mentais e imaginários urbanos. Como argumenta J. Donald a propósito de Londres, “nós não lemos apenas a cidade, nós negociamos a realidade das cidades imaginando ‘a cidade’” 15. Mas dado que existe uma relação entre a paisagem física duma cidade e as percepções visuais e culturais que as pessoas têm dessa mesma cidade16  essas representações contam sempre algo acerca do modo como a cidade é vivida.  No que diz respeito ao léxico utilizado na iconografia e na cartografia, registe-se que existe uma assinalável hesitação entre o uso das palavras praça e largo para designar a mesma realidade. De facto, apesar de ignorado durante muito tempo, na documentação oficial e nos dicionários, o uso do vocábulo largo é relativamente antigo e estava vulgarizado na linguagem comum 17. Por exemplo, na planta mais antiga que se conhece de Lisboa, a Planta Topográfica de 1650 de José Luís Tinoco, enquanto que na  própria planta e no título da legenda apenas se referem “praças”, a legenda inclui remissivas para oito largos. A leitura de descrições e plantas da cidade de Lisboa, entre os séculos XIX e XIX, mostra que existe uma flutuação de vocabulário não só entre épocas como dentro do mesmo período: o Rossio tanto é apenas Rossio como Largo do Rossio ou Praça do Rossio; o Terreiro do Paço, que após 1775 passou a ser oficialmente 14

 Cf., por exemplo, os comentários de Link e de Baillie às afirmações de outros viajantes nos seus livros sobre Portugal incluindo a consciência de que essa leitura influenciava o seu próprio olhar. 15   James Donald,  Imagining the Modern City, Londres, Athlone Press, 1999, p. 18, citado por Franco Bianchini, “European Urban mindscapes: concepts, cultural representations and policy applications”,  European Studies, 23 (2006), p. 15. 16  Sobre os imaginários urbanos na cultura e a interacção entre as representações culturais e as paisagens físicas, económicas, sociais e políticas das cidades (e dos sítios) consulte-se um ponto da situação do debate e alguns novos contributos no nº 23 (2006) da European Studies, dedicado às “Urban mindscapes of Europe”. 17 Maria Alexandre Lousada, “ Praça/ Square/ Place”, op. cit ..

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designado por Praça do Comércio, em 1825, segundo o  Itinerário Lisbonense, era “conhecido vulgarmente como a Praça do Terreiro do Paço” 18  e ainda hoje é  popularmente chamado Terreiro do Paço. As gravuras e outras representações iconográficas de Lisboa entre finais do século XVII e o início do século XIX  –   Delerive, L’Évêque,  Noël, etc.  –   desenham sempre as principais praças da cidade: Terreiro do Paço /Praça do Comércio, Rossio, Largo do Pelourinho. Se não podemos esperar que nos revelem como eram, no passado, certos lugares, podemos, no entanto, tomá- las como “estruturações particulares da realidade que, durante um tempo, desfrutaram da apreciação popular ”19. Se, por um lado, o academismo das imagens limita a percepção da realidade, por outro lado, a ideia de cidade  –   e de praça  –   vai por seu turno influenciar o modo e aquilo que é representado. O que as representações iconográficas mais conhecidas de Lisboa dão a ver são cenas da vida quotidiana dominadas pelos trabalhadores ligados às actividades  portuárias e comerciais, pelos vendedores ambulantes, pelo trânsito de quem atravessa a  praça ou entra e sai de Lisboa. Atente-se, por exemplo, nas gravuras de L’Évêque (1814) que retratam o Terreiro do Paço e nas legendas que as acompanham: um homem que passa deitando umas moedas no lenço de uma pedinte, debaixo das arcadas da  praça; um carregador galego com um saco e um pau (em primeiro plano), à esquerda uns barris, ao fundo um pouco do muro do cais, o rio, um barco a remos e um navio; um cego pedinte e um jovem acompanhante com a legenda “o  fundo da estampa representa a Praça do Comércio; vê-se, dum lado, a estátua equestre do rei D. José I, e do outro, um grande pavilhão quadrado, cujo rés-do-chão serve de bolsa aos negociantes de Lisboa”; numa outra gravura, não localizada pelo autor mas c uja cena pode ter lugar na mesma praça, está representado um vendedor de vassouras e esteiras; finalmente, uma vista de conjunto da praça onde, entre outros elementos, se vêem um barbeiro de rua, mariolas, homens e mulheres vendendo melancias e um mercado volante de peixe e fruta20. Estas “cenas de rua” mostram uma praça palco de actividades quotidianas e de gente comum que as descrições de viajantes completam 21.

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 Itinerário Lisbonense ou Directório Geral de todas as ruas, travessas, becos, calçadas, praças, etc. que  se com prehendem no recinto da cidade de Lisboa com seus próprios nomes …, Lisboa, Impr. de João

 Nunes Esteves, 1825. 19  Yi-Fu Tuan, Topofilia …., p. 139. 20 L’Évêque,  Portuguese Costumes, Londres, 1814, edição facsimilada, ed. Inapa, Lisboa, 1993. 21  Ou seja, o Terreiro do Paço é representado como um fórum da vida urbana lisboeta e informação de origem variada confirma-o. Neste aspecto, discordo da leitura de José Tudela ( As Praças e os Largos …) quando afirma que esta praça sempre esteve “divorciada da vida urbana normal”.Embora o autor chame a

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 Nos finais do século XVIII, Link descobre “a bela e enorme praça” do Comércio e o retrato que tr aça é sobretudo o de um cais pleno de actividade: “o cais, os bandos de gente onde os barcos e os pequenos navios aportam, são esplêndidos e superam de longe os cais de Londres e Paris”; “o rio está frequentemente coberto de barcos, os navios de guerra maiores podem lançar âncora frente à cidade” . Afirma ainda que a praça da Ribeira Nova é mais frequentada por pessoas que passeiam do que a Praça do Comércio”. Refere também o edifício da Bolsa, a estátua régia (que considera muito mediana), os edifícios inacabados e a ligação entre a Praça do Comércio e o Rossio, que é “grande” e à, semelhança da primeira “não é calcetada no centro, mas está ainda mais cheia de excrementos, lama e poças” 22. Já nas estampas de L’Évêque o chão da Praça de Comércio aparece como sendo de terra batida ou coberta de saibro. Alguns anos depois, em 1821, Marianne Baillie ao narrar os primeiros dias  passados em Lisboa, aonde chegou no dia 27 de Junho, descreve do seguinte modo as suas impressões acerca das duas principais praças portugu esas: “uma das maiores daquelas [praças] é o Terreiro do Paço, agora chamado Praça do Comércio. A estátua equestre ao centro, de D. José I, é considerada um trabalho de mérito. […]. O Rossio é também uma grande praça, onde se ergue a Inquisição como o antigo leão da fábula despojada dos seus terríveis dentes e garras. Que ninguém contudo imagine que qualquer destas praças se assemelha no que quer que seja à Grosvenor ou à Portman Square. Nesta altura, a primeira daquelas [a praça do comércio] está coberta de areia solta e cintilante, um braseiro tanto para os olhos como para os pés, e nenhuma delas é adornada sequer por um arbusto ou por um pouco de relva. A gente de Lisboa mostra-se como tendo ainda maior antipatia pela verdura do que o Dr. Johnson, quando tonitruava o seu anátema desdenhoso contra / os «campos verdes» e os que «parlapateiam sobre eles»” 23.

atenção para a influência das variações climáticas no urbanismo português, creio que sobrevaloriza esse factor na análise sobre as vivências das praças portuguesas. 22  Heinrich Friedrich Link,  Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha, Lisboa, Biblioteca Nacional, 2005 (1ª edição alemã, 1801), pp. 101-5. O revestimento do solo das vias públicas era um problema sentido no início do século XIX. Em 1821, a propósito de um projecto para o Rossio, um deputado das Cortes propõe que o chão dessa praça “seja, como o de Belém, calçado com saibro, ou outra matéria que não produza as grossas nuvens de poeira, que cegam no verão as pessoas que atravessam a praça”; citado por Miguel Faria “O modelo praça / monumento …”, p. 72. 23 Marianne Baillie, Lisboa nos anos de 1821, 1822 e 1823, Lisboa, Biblioteca Nacional, 2002, pp.26-27.

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 No início da segunda metade do século já a Praça do Comércio estava macadamizada como relata Isabella de França quando por lá passeou em 1854 24. Na descrição que faz da sua chegada a Lisboa  –  por via marítima -, assim como no desenho que a acompanha, sobressai de novo a função portuária da praça e a sua ligação às actividades mercantis e à construção naval: viajantes, carruagens, transportadores de  bagagem, a Alfândega a leste e o Arsenal a ocidente, o lado sul que “abre sobre o rio, com ampla escadaria a meio”, para além da inevitável referência à estátua (que considera medíocre). Mas a autora apresenta simultaneamente uma outra imagem da  praça, já ligada à nova cultura urbana com as suas sociabilidades de café e de passeio, através da referências ao passeios que aí fez, ao piso que o permitia, à existência de cafés no lado norte da mesma praça e às arcadas que a rodeavam. O príncipe Félix Lichnowsky, que estivera em Lisboa uma dezena de anos atr ás e que entrara também na cidade por via marítima, transmitiu ainda a imagem de uma praça dominada pelo rio e  por “centenares de barcos de pescadores e de transporte, alguns navios mercantes,  principalmente americanos, e vapores pequenos que navegam dentro do Tejo”, mas já menos rica e activa devido, segundo ele, à diminuição do grande comércio em consequência da independência do Brasil. Os usos da praça: trabalho, circulação e sociabilidade As praças condensavam a vida das cidades: mercados, lugares de produção e de troca, espaços de encontro e de passagem, símbolos da urbanidade. Nelas, como nas ruas, se apreendem os diversos modos de viver a cidade e as práticas e formas de sociabilidade de cada época. Após o terramoto, o velho Terreiro do Paço foi redesenhado e renomeado. Tornou-se uma praça regular de proporções clássicas, majestosa e depurada. Mas manteve-se excepcional no sentido de fora do comum pois um dos seus lados, o sul, é aberto ao rio 25, cenário único deste lugar público que já por si é um cenário urbano. Na designação oficial condensou-se a nova morfologia e uma das suas mais antigas funções, entretanto nobilitada, modernizada e dotada de novos equipamentos como a 24

 Isabella de França, Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal (1853-1854), Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1970, p. 224: “A área da praça está, como as ruas, macadamizada”. 25   Ou seja, o novo plano mantém a posição excêntrica da praça. Ainda que reportando-se às cidades coloniais espanholas da América Latina, veja-se o texto de Erwin Walter Palm, “La place excentrée”, «Plazas» et sociabilité en Europe et Amérique Latine, Paris, Publications de la Casa de Velazquez, 1982,  pp. 172-184.

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Bolsa dos negociantes. Os edifícios que ladeavam a nova praça foram, no essencial, ocupados pelos ministérios, por diversas repartições do poder central e por instituições ligadas à actividade mercantil e financeira. O paço real e a presença do rei, uma constante desde o século XVI, deixaram o centro da cidade. A falta de vontade de D. José (motivada pelo medo que o terramoto lhe provocou) terá sido determinante nesse afastamento. Em 1775, com a inauguração da estátua régia, o rei voltou, mas apenas simbolicamente. Mais tarde, já D. Maria rainha, a família real ainda aí foi viver durante um curto período, mas episodicamente. A separação espacial do centro do poder régio e do centro do poder do governo ficou consagrada até hoje e terá provavelmente contribuído para reforçar o poder dos ministérios e, em particular, do poderoso ministro Pombal. Durante os primeiros tempos do liberalismo, contudo, disputará com o Rossio o centro da actividade política: recorde-se que o governo da regência saído da revolução de 1820 fez a sua entrada triunfal e instalou-se aí e não na Praça do Comércio; que o Rossio foi palco de um número muito superior de manifestações políticas e revoltas militares ocorridas desde as invasões francesas; que em 1826 a câmara dos deputados reuniu na Praça do Comércio e a dos pares funcionou no Rossio, nas instalações do antigo palácio da inquisição. Que funções albergavam os edifícios da Praça do Comércio? Em 1834, quando se encontrava praticamente concluída, ali se encontravam, segundo uma notícia estatística de Lisboa publicada nesse ano, para além das secretarias de vários ministérios, a casa do Comércio, a casa da Alfândega, diversos Tribunais, a Biblioteca Pública, os arsenais das Obras Públicas e das obras militares e … a estátua de D. José 26.  Nos finais do século XIX, o essencial desta ocupação mantém-se. O Guia Ilustrada de  Lisboa  de

189127  informa os leitores e viajantes que a praça se encontra ladeada de

edifícios e que esses edifícios “são os ministérios 28, a bolsa, a alfândega, o supremo tribunal da justiça; debaixo da arcada ocidental encontra-se a estação central do correio e o telégrafo. Ao centro da praça ergue-se a estátua equestre de El Rei- Rei D. José I”. Ou seja, notícias e indicações como estas transmitem uma imagem focada nas funções  político-institucionais e financeiro-mercantis da praça. 26 27

 Notícia Estadística de Lisboa, Lisboa, 1834. Guia Illustrada de Lisboa e suas circumvisinhanças, coordenada por D. Thomaz d’Almeida Manuel de

Vilhena, Lisboa, 1891, p. 285 28  No lado ocidental da praça, os ministérios da Fazenda, da Guerra, da Marinha e das Obras Públicas. No lado Norte, entre a rua do Ouro e a rua Augusta, o ministério da Justiça, e entre a rua do Ouro e a Câmara Municipal os ministérios do Reino e da Instrução Pública. Apenas o Ministério dos Negócios Estrangeiros não se encontrava na Praça do Comércio, localizando-se em 1891 na Calçada do Combro.

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As actividades portuárias - ligadas ao transporte de mercadorias e de pessoas  –  , a vizinhança da Praça do Município e do edifício do Senado da Câmara, bem como a existência de um número não negligenciável de lojas raramente vem referida a  propósito da Praça do Comércio. Ora, para além de alguns cafés na esquinas, entre eles o célebre Martinho da Arcada, existia debaixo das arcadas 29  um número razoável de lojas, como a da Gazeta ou a livraria de João Henriques, que se tornaram rapidamente sítios de encontro de sociabilidade cultural e política. A proximidade da Biblioteca Pública, instituída em 1796 e tendo funcionado durante muitos anos no 2º andar do  prédio que se estende pelo lado direito da praça, bem como os próprios ministérios, o telégrafo e os correios contribuíam também para tornar esta praça num dos lugares mais concorridos da capital e num centro de novidades e informações. E recorde-se de novo que, graças à sua qualidade de cais e à importância das deslocações marítimas e fluviais  –   não apenas de mercadorias mas das pessoas pois, por exemplo, era comum ir de Belém para a Baixa de barco - era enorme o concurso de pessoas de todas as condições sociais do Cais do Sodré ao Cais dos Soldados, entre os quais se situava o Cais da Pedra (ou seja, o cais do Terreiro do Paço). Documentação de origem variada informa-nos ainda sobre um sem número de vendedores ambulantes que ocupavam a Praça do Comércio: vendedores de castanhas, de queijos, de fritos, de água, limonada e outras bebidas, de fruta, de flores, de estampas, adelos, etc. Encostados às esquinas ou no meio das praças, sós ou em grupo, os moços de fretes ou de recados, ocupação maioritariamente exercida por galegos (tal como os aguadeiros), eram uma figura comum nos séculos XVIII e XIX. A Praça do Comércio, e o Rossio, por serem as duas praças de maior movimento eram o seu poiso habitual. São estas diversificadas funções que fizeram da Praça do Comércio uma praça concorrida e cheia de gente: os que trabalham nas diferentes repartições na própria  praça ou nas imediações; os negociantes que vão à bolsa, à alfandega, aos ministérios; os que realizam um conjunto diversificado de trabalhos relacionado com as actividades comerciais, portuárias e de transporte; os que vão às secretarias de estado saber informações, pedir um favor, esperar para ser recebido; os que se deslocam ao correio; os que passam para saber novidades, etc. Encontram-se todos no meio da praça, à porta 29

 De acordo com o plano de Manuel da Maia, o Terreiro do Paço foi a única praça dotada de arcadas; “nem as ruas da Baixa, nem o Rossio, que no entanto as tinham tido, ficariam com elas” sendo, pois, o novo Terreiro do Paço o único espaço urbano a concentrar “este aspecto tradicional de Lisboa”. JoséAugusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertrand Editora, 3ª ed. , 1987, p. 120.

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dos diferentes edifícios, nos cafés, tabernas e boticas que entretanto foram abrindo na  praça e nas suas imediações, em volta das esquinas onde eram afixados cartazes, vendendo algo ou oferecendo os seus serviços a quem passa e era tudo isto  –  as “pessoas em acção e às instalações físicas que servem de suporte a essas acções” (Lynch) que fazia da Praça do Comércio (assim como do Rossio, do Cais do Sodré e, mais tarde, do Chiado) um lugar de troca e de encontro, um dos lugares mais importantes das sociabilidades públicas de finais do século XVIII e do século XIX. Como sintetizou França, “o Terreiro do Paço rebaptizado será o novo Fórum da nova Lisboa”30 Por último, não se podem ignorar dois outros factores que contribuíram também  para esta vivência da Praça do Comércio e que, embora já referidos devem ser novamente trazidos à colação: a localização da praça na cidade e o ambiente natural e material. No que diz respeito ao primeiro, até pelo menos o último quartel de oitocentos quando a cidade cresceu definitivamente para norte, a Praça do Comércio ocupava uma  posição central nas actividades e nos fluxos de pessoas e bens. Em relação ao segundo, o cenário proporcionado pelo rio e pelas terras da outra margem, combinado com o novo cenário material do desenho pombalino e a emergência do passeio como prática de sociabilidade, tornaram o Cais da Pedra num dos locais de passeio dos lisboetas 31, concorrente do recém criado Passeio Público, cuja localização no fundo do vale e desenho (muros altos, árvores alinhadas) fez com que, até às obras da década de 1840, fosse considerado pouco propício à prática social do passeio. No entanto, a área central da praça não era favorável ao passeio por diversos motivos: o facto de ser aberta num dos lados expunha-a aos efeitos desagradáveis do vento, a sua grande dimensão tornavaa pouco acolhedora, a circunstância de não ser arborizada e de o chão ser revestido de areia transformava-a no tal braseiro para os olhos e para os pés de que Marianne Baillie se queixou. Estes últimos inconvenientes foram em parte “corrigidos” na segunda metade do século XIX: na década de 1850 a praça já estava macadamizada e nos finais de 1890 circundada por renques de árvores 32.

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 José-Augusto França, Lisboa Pombalina…., p. 128. Cf. Maria Alexandre Lousada, “A rua, a taberna e o salão: elementos para uma geografia histórica das sociabilidades lisboetas nos finais do Antigo Regime”, M.G. Mateus (coord.), Os espaços de  sociabilidade na Ibero-América (séculos XVI-XIX), Lisboa, Colibri, pp. 95-120. 32 O Guia Illustrada de Lisboa de 1891 informa que a Praça do Comércio “é quadrada, arborizada e ladeada de edifícios” (p. 285) e inclui uma fotografia da referida praça na qual se pode ver uma das áleas de árvores, no lado ocidental, no enfiamento da rua do Ouro (entre as páginas 92-93). 31

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Tensões no uso da praça  Na cidade nova (designação dada à baixa reconstruída) vão entrar em conflito os direitos e as práticas tradicionais de uso do espaço público urbano e as novas concepções desse espaço pensadas e expressas pelas elites. Conflito que é  particularmente claro no caso das praças. De acordo com esses novos valores de cidade e de espaço público, as ruas e as praças deviam estar li mpas e “ordenadas”. Para além da limpeza e da retirada dos obstáculos à circulação e da proibição de acções consideradas impróprias, as considerações estéticas estavam cada vez mais presentes. As praças, como as ruas, deviam ser agradáveis à vista. O que está em causa é, também, a imagem da cidade. Embora o mercado continuasse a ser um dos símbolos mais fortes da identidade urbana e da paisagem citadina, a representação da cidade estava a mudar. A Praça do Comércio é, a este respeito, exemplar, pois ela é o símbolo da nova cidade. Praça portuária, lugar de intensa actividade mercantil local e internacional, albergava também vários organismos de governo, como se referiu. A sua nova forma, regular e depurada, conferia- lhe uma “perfeição” ao estilo das “places royales” europeias que não se coadunava com os usos antigos e persistentes. Os decretos do governo, editais da Câmara e ofícios da Intendência Geral da Polícia sobre as praças  públicas de Lisboa são reveladores daquilo que está em jogo: o que faz um lugar é a complexa relação entre formas materiais, práticas sociais e representações. Entre os vários documentos, escolherem-se três que podem ser considerados  paradigmáticos desta tensão. Em 6 de Julho de 1775, baixou ao Senado da Câmara um decreto onde se lembra que as novas praças e cais da cidade, edificadas com grande custo, asseio e comodidade, se destinam não só às actividades económicas mas constituem “ao mesmo tempo uma boa parte da sua [do povo de Lisboa] recreação e alegria”. Entram nesta categoria “os grandes Cais das Praças da Ribeira Nova, do Remolares, e do Corpo Santo” a Praça das Arrematações e “a Grande, e Real Praça do Comércio, com outro grande Cais chamado de Santarém”. Ora, sucede que “com uma  barbaridade contraria à polícia universal de to das as Cidades, e Povos Civis da Europa”, há “pessoas tais, tão grosseiras e de tanta rusticidade, que perdendo o respeito devido aos referidos lugares públicos, intentam deturpá-los, lançando neles superfluidades imundas, e pejando as sobreditas Praças, e Cais com Lenhas, Carvões, Caixas de Açúcar, Barris de Farinha, Couros, Solas, Atanados, Madeiras, Arcos de Tanoaria, e outros semelhantes géneros de peso, e de volume. Quando há muito tempo, que cessou a falta de Armazéns, com que nos primeiros anos, sucessivos ao Terramoto, se 12

 pretextavam estas usurpações, e violências feitas aos lugares públicos da Capital do Reino”. Pelo que se determina “se não possa fazer pejamento algum, nem fixo, nem volante, de qualquer qualidade, ou figura que seja; e que as mercadorias secas, ou molhadas, que a elas [praças] vierem, se não possam demorar além do mesmo dia, em que desembarcarem” para além do qual podem ser apreendidas por qualquer pessoa 33.  Nove anos passados, a situação mantinha-se: as referidas praças continuavam ocupadas  por todo o género de mercadorias e o Senado da Câmara viu-se obrigado a relembrar ao  povo de Lisboa as suas obrigações para com os novos espaços públicos. Diz o edital com data de 6 de Setembro de 1784 que “o Povo desta Capital, abusando do patern al  beneficio com que Sua Majestade mandou edificar os grandes Cais das praças públicas desta Cidade, que decorrem do da Ribeira Nova, e continuam até o da Bica do Sapato; compreendendo-se nestes distritos os mais edifícios, que com maior grandeza se acham construídos […] mas igualmente o asseio, e polidez com que foram edificados”, continua a perverter “ a sua boa ordem” ocupando-as com mercadorias de todo o género 34. Por fim, em 1805, o intendente da polícia reafirma a continuação do mesmo  problema e queixa-se da dificuldade que enfrenta para lhe por termo. Segundo informações da Guarda Real da Polícia, a Praça do Comércio continua  permanentemente embaraçada com estâncias de mercadores de madeiras, armazéns para mercadorias várias, barracas com tabernas e armazéns de vinhos, ocupações que “desfiguram a cidade e todos os que aqui vêm desembarcar” e atingem um “ponto de indecência” para “uma praça tal, que é a que está à frente desta grande capital” 35. Esta ocupação da Praça do Comércio, que passou a ser considerada intolerável  pelas elites, era no entanto o que a mantinha como verdadeira praça pública quotidianamente utilizada pela população, lugar das suas sociabilidades banais e das sociabilidades dos que a ela aportavam. Serão precisos muitos anos, e a transformação dos circuitos económicos e de transporte da cidade, para a transformar finalmente, e sobretudo, numa praça de aparato e de representação. Conclusão: as memórias do espaço

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 Decreto de 6 de Julho de 1775, com ordem de ser executado e mandado afixar por editais pelo Senado da Câmara. 34  Edital do Senado da Câmara de Lisboa, 6 de Setembro de 1784. 35  Torre do Tombo, Intendência Geral da Polícia, Secretarias, livro 8, fls. 130v.-133, ofício do Intendente  para o Conde de Vila Verde, em 3 de Abril de 1805.

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 Na actualidade, as praças  –   e em particular as praças reais e monumentais  –  tornaram-se praças-património, tal como os centros históricos das cidades de que fazem  parte. O que significa que são lugares transformados em cenários de consumo estético impregnados de memórias do passado 36. Muitas deixaram de ser lugar de encontro, de convívio e de festa.  Na Praça do Comércio domina hoje a apreciação estética da paisagem - uma  praça cenário parte integrante de uma cidade também ela cenário. As expressões tradicionalmente utilizadas para apresentar esta praça  –   sala de visitas de Lisboa, entrada da cidade, etc.  –   reflectem essa representação. Mas até há pouco tempo, essa dimensão de espaço cerimonial convivia com uma vivência quotidiana e um uso banal que o depurado e elegante desenho pombalino, como se viu, não eliminara. Já no caso do Rossio, temos sobretudo a apreciação do espaço vivido, os contactos, as lojas e os diversos consumos, mesmo o barulho e a agitação. Um ambiente menos ordenado, um espaço menos regulado e menos imponente. O imaginário urbano é parte constituinte da cidade. Os habitantes e os visitantes de uma cidade “negoceiam” criativamente o ambiente urbano e, desse modo, produzem um espaço diferente. Existe uma “experiência antropológica” do espaço urbano (vivido) que interage com o espaço urbano (desenhado) dos arquitectos e pelos engenheiros 37.  Na construção, compreensão e vivência do território a dimensão simbólico-cultural é fundamental e uma boa parte do carácter identitário de um lugar passa por aí. São os laços afectivos e de identidade cultural que determinam a apropriação de um território e a sua transformação em lugar pelos diversos grupos sociais. O Terreiro do Paço - Praça do Comércio é uma praça na qual coexistem diferentes representações, apropriações e  projectos, expressão de memórias, vivências e valores diversos. No  passado, “tudo” acontecia nesta praça, como se procurou descrever neste texto. O Terreiro do Paço condensava a cidade. As praças –  ou os espaços que as antecederam  –  modificaram-se tanto do ponto de vista morfológico (regularização do seu traçado) como funcional. Mais recentemente, foram as próprias funções tradicionais da praça que se dispersaram por outros lugares: as actividades de mercado ou comerciais, as de lazer, as religiosas e mesmo as políticas 36

 P. Claval, «Champs et perspectives de la géographie culturelle dix ans après», Géographie et cultures, 2001, nº 40, p. 15. 37  Michel de Certeau fala da experiência antropológica, poética e mítica do espaço.

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“retiraram-se” da praça para espaços fecha dos. O Terreiro do Paço, como o Rossio, mantêm a mesma morfologia há mais de duzentos e cinquenta anos. Mas, voltando a Lynch, as características físicas de um lugar não são dadas apenas pela sua forma física, material, mas sim pelas acções das pessoas e pelas instalações que lhe servem de suporte. E foi isso que mudou. Todavia, apesar destas transformações, as praças continuam a ser vistas e  pensadas como símbolo da cidade e da sociabilidade urbana e a ser usadas, quer pelas  populações quer pelos poderes políticos, como espaço de feira (feiras do livro, de  produtos biológicos, de velharias, etc), de espectáculo (festivais, concertos) e de manifestação de poder (manifestações, paradas, etc). Porque estão carregadas de memória e porque ainda se mantêm como o cenário ideal para essas actividades. Mas o seu lugar enquanto espaço quotidiano de sociabilidade parece ter-se perdido. Os  projectos e as práticas de revitalização urbana estão associados aos movimentos de valorização da memória urbana, da cidadania e de um certo “saber viver” a cidade . Mas não podem ignorar que a cultura urbana mudou e com ela as formas e as práticas tradicionais de sociabilidade e de viver a cidade. Como não podem ignorar que a praça  já não é mais o coração da vida social urbana, como foi no passado, e que esse é um dado da crise identitária das cidades mediterrâneas 38. A recriação e a dinamização cultural que propõem tem-se destinado mais ao consumo turístico do que à vivência  pelos habitantes da cidade e da sua área metropolitana.

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  Sobre as características e a actual crise identitária das cidades mediterrâneas veja-se, por exemplo, Robert Escallier, “La ville méditerranéenne”, J-P Lozato-Giotart (dir.),  La Meditérranée, Paris, ed. cnedes-Sedes, 2001, pp. 47-121.

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