Poderes Do Horror de Julia Kristeva Capi (1)

January 26, 2019 | Author: Ferdinando Martins | Category: Sigmund Freud, Death, Morality, Homo Sapiens, Jacques Lacan
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Poderes do Horror, de Julia Kriteva...

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JULIA KRISTEVA PODERES DO HORROR ENSAIO SOBRE A ABJEÇÃO

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I – APROXIMAÇÃO DA ABJEÇÃO  Não há fera que não tenha um um reflexo do infinito;  Não há pupila abjeta e vil que não toque O raio vindo do alto, às vezes terno e às vezes feroz V. Hugo, A Hugo, A lenda dos séculos.  Nem sujeito, nem objeto objeto

Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo que o ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao lado do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso solicita, inquieta, fascina o desejo que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado, ele se desvia. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbrio, com orgulho a ele se fia e o guarda. Mas, ao mesmo tempo, mesmo assim, esse elã, esse espasmo, esse salto é lançado em direção de um outro lugar tão tentador quanto condenado. Incansavelmente, como um bumerangue indomável, um polo de atração e de repulsão coloca aquele no qual habita literalmente fora de si. Quando eu sou invadida pela abjeção, esse emaranhado feito de afetos e de objeto definível.  pensamentos,  pensamentos, que assim chamo, não possui, propriamente falando, um objeto definível. O abjeto não é um ob-jeto diante de mim, que eu nomeio e imagino. Não é muito menos esse ob-jetiado [ob-jeu [ ob-jeu], ], 2  pequeno “a “ a” em fuga indefinidamente na busca sistemática do desejo. O abjeto não é o meu correlato que, oferecendo-me um apoio sobre qualquer um outro ou qualquer coisa outra, permite-me ser, mais ou menos, destacada ou autônoma. Do objeto, o abjeto tem somente uma qualidade – aquela de se opor ao eu 1

 Kristeva, Julia. Pouvoirs de l’horreur : Essai sur l’abjection. Paris: Éditions du Seuil, 1980, “Approche de l’abjection”, pp. 07-27. Tradução de Allan Davy Santos Sena ([email protected] [email protected])). Traduções cotejadas: Kristeva, Julia. Poderes de la perversión: Ensayo sobre Louis-Ferdinand Céline. Traducción  Nicolás Rosa. México: Siglo XXI Editores, 2006 / Kristeva, Julia. Powers of horror : An essay on abjection. Translated by Leon S. Roudiez. New York: Columbia University Press, 1982. 2  Na terminologia de Lacan, objetalidade refere-se ao campo das relações objetais, como uma relação a objetos distintos ao eu, já objetidade refere-se ao objeto a, causa do desejo (N. do T.).

2 [ je]. Mas se o objeto, fazendo oposição, me equilibra na trama frágil de um desejo de sentido que, de fato, me homologa indefinidamente, infinitamente a ele, o abjeto, pelo contrário, objeto baixo 3, é radicalmente um excluído e me lança lá onde o sentido desmorona. Um certo “eu” [moi] que se fundiu com seu mestre, um super-eu, lhe enxotou abertamente. Ele está de fora, fora do conjunto do qual parece não reconhecer as regras do jogo. Contudo, desse exílio, o abjeto não cessa de desafiar seu mestre. Sem (lhe) dar sinal, solicita uma descarga, uma convulsão, um grito. A cada eu seu objeto, a cada super-eu seu abjeto. Não é a toalha branca ou o tédio que se propaga da repressão, não são as versões e conversões do desejo que tiranizam os corpos, as noites, os discursos. Mas um sofrimento brutal no qual o “eu” se acomoda, sublime e devastado,  pois “eu” o deposito [verse] na conta do pai (pai-versão [perversão]?) 4: eu o suporto, já que eu imagino que tal é o desejo do outro. Surgimento massivo e abrupto de uma estranheza que, mesmo que me tenha sido familiar numa vida opaca e olvidada, agora me acedia como radicalmente separada, repugnante. Não eu. Não isso. Mas tampouco nada. Um “qualquer coisa” que eu não reconheço como coisa. Um peso de sem sentido que não tem nada de insignificante e que me esmaga. Na beira da inexistência e da alucinação, de uma realidade que, se eu a reconheço, ela me aniquila. O abjeto e a abjeção são as minhas salvaguardas. Delineamentos de minha cultura. O impróprio [impuro]  5

 Nojo de comida, de sujeira, de dejeto, de lixo. Espasmos e vômitos que me  protegem. Repulsa, ânsia que me afasta e me desvia da sujidade, da cloaca, do imundo. Ignomínia da acomodação, do não tomar partido, da traição. Sobressalto fascinado que ali me conduziu e dali me separou. 3

 O termo “abjeto” tem origem no latim abiectus, particípio perfeito passivo do verbo abicio, junção de ab (para longe, distante, para baixo) e iacio  (jogar, lançar, arremessar): “jogar, lançar, arremessar, ejetar, expelir, expulsar para longe”, “deixar de lado”, “abandonar”, “colocar para baixo”, “afastar”, “retirar”, “derrubar”, “cuspir”. Já o termo “objeto” tem origem em obiectus, particípio perfeito passivo do verbo obicio, junção de ob  (em direção de, contra o, em relação a, em face de) e iacio  (jogar, lançar, arremessar): “lançar, jogar, arremessar, pôr na direção de”, “colocar no caminho de”, “ajustar a”, “ajeitar”, “arranjar”, “oferecer”, “apresentar”, “expor”, “interpor”, “confrontar” (N. do T.). 4  Jogo de palavras intraduzível entre version (versão), conversion (conversão), la verse au père (depositar [na conta] do pai ou derramar/despejar sobre o pai) e  père-version (“pai-versão”, homófono, em francês, de perversão) (N. do T.). 5   No original, impropre, “impróprio”, “aquilo não convém”, mas que também pode ter o sentido de “impuro”, “maculado”, “imundo”, “sujo”. No texto, a autora lida com os vários sentidos do termo (N. do T.).

3 O nojo alimentar é, talvez, a forma mais elementar e mais arcaica da abjeção. Quando essa pele na superfície do leite, inofensiva, fina como a folha de papel do cigarro, desprezível como restos cortados de unhas, apresenta-se aos olhos, ou toca os lábios, um espasmo da glote e, ainda mais baixo, do estômago, do ventre, de todas as vísceras, crispa o corpo, provoca lágrimas e a bílis, faz palpitar o coração, transpirar testa e mãos. Com a vertigem que nubla a visão, a náusea me contorce contra essa nata, e me separa da mãe, do pai que me apresentam-na. Desse elemento, signo de seu desejo, “eu” não quero nada, “eu” nada quero saber, “eu” não o assimilo, eu o expulso. Mas,  porque esse alimento não é um “outro” para “mim”, que sou apenas no desejo deles, eu me expulso, eu me cuspo, eu me abjeto no mesmo movimento pelo qual “eu” pretendo me  colocar. Esse detalhe, insignificante, talvez, mas que eles buscam, carregam, apreciam, me impõem, essa migalha me vira do avesso, embrulha-me o estômago: assim veem, eles, que eu estou a ponto de me tornar outra ao preço de minha própria morte. Nesse trajeto onde “eu” me torno, eu dou à luz a mim na violência do soluço, do vômito. Protesto mudo do sintoma, violência excruciante da convulsão, inscrito, certamente, em um sistema simbólico, mas no qual, sem querer nem poder integrar-se  para lhe responder, isso reage, isso ab-reage. Isso abjeta. O cadáver (cadere, cair), aquilo que irremediavelmente caiu, [que é] cloaca e morte, perturba mais violentamente ainda a identidade daquele que se confronta como um acaso frágil e falacioso. Uma ferida com sangue e pus, ou o odor adocicado e acre de um suor, de uma putrefação, não significa morte. Diante da morte significada – por exemplo, um encefalograma plano – eu compreenderia, reagiria ou aceitaria. Não, como um teatro da verdade, sem disfarce e sem máscara, tanto o dejeto como o cadáver me indicam aquilo que eu descarto permanentemente para viver. Esses humores 6, essa imundície, essa merda são aquilo que a vida suporta com muito custo e ao custo da morte. Ali eu estou nos limites de minha condição de viva. Desses limites se livra o meu corpo como [corpo] vivo. Esses dejetos caem para que eu viva, até que, de perda em  perda, nada mais me reste, e que meu corpo caia por inteiro para além do limite, cadere, cadáver. Se o lixo significa o outro lado do limite, onde eu não sou e que me permite ser, o cadáver, o mais repugnante dos dejetos, é um limite que a tudo invade. Já não sou 6

 “Humor” em seu sentido original, referente à medicina praticada na Antiguidade, ou seja, à teoria dos quatro humores, dos quatros fluídos corporais que afetariam a constituição dos indivíduos; a saber: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que procederiam, respectivamente, do coração, sistema respiratório, fígado e baço (N. do T.).

4 mais eu que expulso, “eu” sou expulsa. O limite se tornou um objeto. Como posso eu ser sem limite? Este outro lugar que eu imagino para além do presente, ou que eu alucino para poder, em um presente, vos falar, vos pensar, está aqui agora, jogado, abjetado, no “meu” mundo. Desprovido de mundo, pois, eu desvaneço. Nessa coisa insistente, crua, insolente, sob o sol escaldante do necrotério cheio de adolescentes confusos, nessa coisa que não demarca mais e, portanto, não significa mais nada, eu contemplo o desmoronamento de um mundo que apagou seus limites: desvanecimento. O cadáver – visto sem Deus e fora da ciência – é o cúmulo da abjeção. É a morte infestando a vida. Abjeto. Ele é um rejeitado do qual não dá para se separar, do qual não dá para se proteger como se faria com um objeto. Estranheza imaginária e ameaça real, ele nos chama e acaba por nos devorar.  Não é, pois, a ausência de limpeza [ propreté ] ou de saúde que torna abjeto, mas aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que não respeita os limites, os lugares, as regras. O intermediário, o ambíguo, o misto. O traidor, o mentiroso, o criminoso em sã consciência, o violador sem vergonha, o assassino que alega salvar... Todo crime, por assinalar a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime  premeditado, o assassinato acobertado, a vingança hipócrita o são mais ainda porque redobram e aumentam essa exibição da fragilidade legal. Aquele que renuncia a moral não é abjeto – pode haver grandeza na amoralidade e mesmo no crime que ostenta sua falta de respeito à lei, revoltado, liberador e suicida. A abjeção, em si, é imoral, tenebrosa, oscilante, suspeita: um terror que se dissimula, uma raiva que sorri, uma  paixão por um corpo que lhe troca ao invés de lhe aquecer, um devedor que lhe vende, um amigo que lhe apunhala...  Nas salas escuras desse museu que hoje resta de Auschwitz, vejo uma pilha de sapatos de crianças, ou algo parecido que já tenha visto em outros lugares, sob uma árvore de natal, por exemplo, bonecas, eu acho. A abjeção do crime nazi atinge seu apogeu quando a morte que, de toda maneira, mata-me, se mistura ao que, no meu universo vivo, deveria me salvar da morte: à infância, à ciência, entre outras coisas...  A abjeção de si

Se é verdade que o abjeto solicita e pulveriza simultaneamente o sujeito, compreende-se que ele experimenta sua força máxima quando, cansado de suas vãs

5 tentativas de se reconhecer fora de si, o sujeito encontra o impossível nele mesmo: quando percebe que o impossível é o seu ser   mesmo, descobre que não é   outro que o abjeto. A abjeção de si será a forma culminante dessa experiência do sujeito ao qual é revelado que todos os seus objetos repousam somente sobre a  perda inaugural fundante de seu próprio ser. Nada melhor do que a abjeção de si para demonstrar que toda abjeção é de fato reconhecimento da  falta fundadora de todo ser, sentido, linguagem, desejo. Passa-se sempre muito rápido pela palavra “falta”, e a psicanálise hoje em dia só retém dela o produto mais ou menos fetichista, o “objeto da falta”. Mas, caso se imagine (e deve-se imaginar, pois é o trabalho da imaginação que aqui é fundador) a experiência da falta mesma como logicamente preambular ao ser e ao objeto – ao ser do objeto –, então se compreende que seu único significado é abjeção, e, com ainda mais razão, abjeção de si. Sendo seu significante... a literatura. A cristandade mística fez dessa abjeção de si a prova última da humildade diante de Deus, como testemunha essa Santa Elisabeth, que “por mais que tenha sido uma grande princesa, amava sobretudo a abjeção de si mesma”. 7 A questão permanece aberta à provação, desta vez laica, que a abjeção pode representar para aquele que, no chamado reconhecimento da castração, desvia-se de suas perversas escapatórias, para oferecer para si mesmo seu próprio corpo e seu próprio eu como os não-objetos mais preciosos, caídos, abjetos, perdidos doravante como apropriados. Ver-se-á que o fim da cura analítica pode nos conduzir para esta direção. Tormentos e delícias do masoquismo. Essencialmente diferente da “inquietante estranheza” 8, e também mais violenta, a abjeção se constrói sobre o não reconhecimento de seus próximos: nada lhe é familiar, nem mesmo uma sombra de recordação. Imagino uma criança que engoliu  precocemente seus pais, que se vê “totalmente só”, assustada, e, para se salvar, rejeita e vomita tudo aquilo que lhe é oferecido, todos os presentes, objetos. Ela tem, poderia ter o sentido do abjeto. Antes mesmo que as coisas sejam para ela – antes, pois, que sejam significáveis –, ela as ex-pulsa, dominada pela pulsão, e faz para si um território cercado  pelo abjeto. Figura sagrada. O medo cimenta seu recinto adjacente a um outro mundo, 7

 Saint François de Sales, Introduction à la vie dévote, t. III, 1.   “Inquietante estranheza” é a tradução francesa tradicional para o termo psicanalítico “ Unheimlich” (“estranha familiaridade”), conforme o conceito definido por Freud no texto “ Das Unheimlich”,  publicado em 1919. Em inglês, o termo é geralmente traduzido como “uncanny”. Em português, Paulo César de Souza traduz o termo como “inquietante” (cf. Freud, Sigmund. Obras Completas. Vol. 14, 19171920. São Paulo: Cia. das Letras, pp. 249-283) [N. do T.]. 8

6 vomitado, expulsado, caído. Aquilo que ela engoliu no lugar do amor maternal é um vazio, ou, mais ainda, uma raiva maternal sem palavras pela palavra do pai; é disso que ela tenta se purgar, incansavelmente. Que conforto ela encontra nesse nojo? Talvez um  pai, existente, mas vacilante, amável, mas instável, simples aparição, mas que aparece  permanentemente. Sem ele a sagrada criança não teria provavelmente nenhum sentido do sagrado; sujeito nulo, confundir-se-ia com o despejo de não-objetos sempre caídos dos quais tenta, pelo contrário, armada com abjeção, salvar-se. Pois não está louco aquele pelo qual o abjeto existe. Do torpor que a congelou diante do corpo intocável, impossível, ausente da mãe, esse torpor que cortou seus ímpetos de seus objetos, isto é, de suas representações, desse torpor, eu digo, deve advir, com o nojo, uma palavra – o medo. O fóbico não tem outro objeto além do abjeto. Mas esta palavra “medo” – bruma fluída, umidade insaciável –, mal advém e logo se esvai, como uma miragem, e impregna de inexistência, de fulgor alucinatório e fantasmático, todas as palavras da língua. Assim, com o medo colocado entre parênteses, o discurso só se torna sustentável com a condição de se confrontar sem cessar com esse outro lugar, peso repelente e repelido, fundo de memória inacessível e íntimo: o abjeto.  Para além do inconsciente

Isto é, há existências que não se sustentam sobre um desejo, sendo o desejo sempre [desejo] de objetos. Tais existências se fundam sobre a exclusão. Elas se distinguem claramente daquelas entendidas como neuroses ou psicoses, que articulam a negação e suas modalidades, a transgressão, a denegação e a forclusão. Suas dinâmicas colocam em questão a teoria do inconsciente, uma vez que esta é tributária de uma dialética da negatividade. A teoria do inconsciente supõe, como se sabe, uma repressão de conteúdos (afetos e representações) que, deste modo, não ascendem à consciência, mas operam no sujeito modificações, sejam de discursos (lapsus, etc), sejam de corpos (sintomas), sejam dos dois (alucinações, etc.). Correlativamente à noção de repressão, Freud propôs aquela da denegação  para pensar a neurose, e de rejeição ( forclusão) para situar a  psicose. A assimetria das duas repressões se acentua pelo fato de que a denegação recai sobre o objeto enquanto que a forclusão afeta o desejo em si mesmo (aquilo que Lacan, em conformidade com Freud, interpreta como “forclusão do Nome do Pai”).

7  Não obstante, face ao ab-jeto e, mais especificamente, à fobia e à clivagem do eu [moi] (ainda voltaremos a isso), pode-se indagar se essas articulações da negatividade  próprias ao inconsciente (herdadas por Freud da filosofia e da psicologia) não estão caducas. Os conteúdos “inconscientes” permanecem aqui excluídos, mas de uma maneira estranha: não tão radicalmente para permitir a diferenciação sólida sujeito/objeto, e, todavia, com uma nitidez suficiente para que uma  posição de defesa, de recusa, mas também de elaboração sublimatória possa ter lugar. Como se a oposição fundamental estivesse, aqui, entre Eu [ Je] e Outro, ou, mais arcaicamente ainda, entre Dentro e Fora. Como se esta oposição subsumisse aquela, elaborada a partir das neuroses, entre Consciente e Inconsciente. Por conta da oposição ambígua Eu/Outro, Dentro/Fora – oposição vigorosa, mas  permeável, violenta, mas incerta –, os conteúdos “normalmente” inconscientes nos neuróticos se tornam, então, explícitos, quando não conscientes, nos discursos e nos comportamentos “limites” (borderlines 9). Com frequência, esses conteúdos se manifestam abertamente nas práticas simbólicas, sem, no entanto, se integrarem à consciência julgadora dos sujeitos em questão. Por tornarem impertinente a oposição consciente/inconsciente, esses sujeitos e seus discursos são terrenos propícios de uma discursividade sublimatória (“estética” ou “mística”, etc.) bem mais do que científica ou racionalista. Um exilado que pergunta: “Onde?” 

Aquele pelo qual o abjeto existe é, pois, um  jogado [ jeté ] que (se) coloca, (se) separa, (se) situa e, portanto, erra, ao invés de se reconhecer, de desejar, de pertencer ou de recusar. Situacionista em certo sentido, e não sem riso – porque rir é uma maneira de colocar ou descolocar a abjeção. Forçosamente dicotômico, um pouco maniqueísta, divide, exclui e, sem, propriamente falando, querer conhecer suas abjeções, tampouco as ignora. Aliás, frequentemente, ali se inclui, jogando, assim, dentro de si o bisturi que opera suas separações.  No lugar de se interrogar sobre seu “ser”, ele se interroga sobre seu lugar: “ Onde eu estou?” muito mais do que “ O que eu sou?”. Pois o espaço que preocupa o jogado, o 9

 Fronteiriços.

8 excluído, não é jamais um, nem homogêneo, nem totalizável, mas essencialmente divisível, maleável, catastrófico. Construtor de territórios, de línguas, de obras, o jogado não cessa de delimitar seu universo, cujos confins fluídos – já que constituídos por um não objeto, o abjeto – põem em cheque constantemente sua solidez e o impelem a recomeçar. Construtor infatigável, o jogado é em suma um extraviado. Um viajante em uma noite sem fim. Tem o sentido do perigo, da perda que representa o pseudo-objeto que lhe atrai, mas não pode deixar de se arriscar no momento mesmo em que se separa. E quanto mais se extravia, mas se salva. Tempo: esquecimento e trovão

Pois, é deste extravio em terreno excluído que ele obtém seu gozo. Este abjeto do qual não cessa de se separar é, em suma, para ele, uma terra de esquecimento constantemente rememorada. Em um tempo apagado, o abjeto deve ter sido um polo magnético de luxúria. Mas a cinza do esquecimento serve agora de tela e reflete a aversão, a repugnância. O próprio [limpo] (no sentido de incorporado e incorporável) se torna sujo, o procurado vira banido, a fascinação pelo opróbrio. É então que o tempo esquecido surge bruscamente e condensa em um relâmpago fulgurante uma operação que, caso fosse pensada, seria a reunião de dois termos opostos, mas que, devido a essa fulguração, descarrega-se como um trovão. O tempo da abjeção é duplo: tempo do esquecimento e do trovão, do infinito velado e do momento em que a revelação rebenta. Gozo e afeto

Gozo, em suma. Já que o extraviado se considera o equivalente de um Terceiro. Assegura-se do julgamento deste, age em nome de seu poder para condenar, funda-se sobre sua lei para esquecer ou rasgar o véu do esquecimento, mas também para erigir seu objeto como caduco. Como caído. Ejetado pelo Outro. Estrutura ternária, caso se queira, tida como pedra angular pelo Outro, mas “estrutura” exorbitada, topologia da catástrofe. Pois, ao se fazer um alter ego, o Outro cessa de ter em mãos os três polos do triângulo em que se sustenta a homogeneidade subjetiva, e deixa cair o objeto em um real abominável, inacessível a não ser pelo gozo. Nesse sentido, somente o gozo faz com que o abjeto exista como tal. Não se pode conhecê-lo, não se pode desejá-lo, só se  pode gozá-lo. Violentamente e com dor. Uma paixão. E, como no gozo em que o objeto

9 dito “a” do desejo irrompe com o espelho quebrado em que o Eu [ moi] cede sua imagem  para se mirar no Outro, o abjeto não tem nada de objetivo, nem mesmo de objetal. Ele é simplesmente uma fronteira, um dom repulsivo que o Outro, tornado alter ego, deixa tombar para que “eu” [ je] não desapareça nele, mas encontre nessa sublime alienação, uma existência destituída [caída]. Um gozo, pois, no qual o sujeito é tragado, mas no qual o Outro, por seu turno, lhe impede de se afogar tornando-o repugnante. Compreende-se, assim, por que tantas vítimas do abjeto são vítimas fascinadas, quando não dóceis e complacentes. Fronteira sem dúvida, a abjeção é sobretudo ambiguidade. Porque, ao demarcar, ela não separa radicalmente o sujeito daquilo que o ameaça – pelo contrário, ela o reconhece em perigo perpétuo. Mas também porque a abjeção mesma é um misto de  julgamento e afeto, de condenação e de efusão, de signos e de pulsões. Do arcaísmo da relação pré-objeto, da violência imemorial com a qual um corpo se separa de um outro  para ser, a abjeção conserva aquela noite em que se perde o contorno da coisa significada e em que só atua o afeto imponderável. Seguramente, se sou afetada por aquilo que não me aparece ainda como uma coisa, é porque leis, relações, estruturas mesmas de sentido me governam e me condicionam. Esse comando, esse olhar, essa voz, esse gesto, que fazem a lei para meu corpo assustado, constituem e provocam um afeto e não ainda um símbolo. Dirijo-me em vão a ele para excluí-lo daquilo que não será, para mim, um mundo assimilável. Evidentemente, eu sou apenas como qualquer outro: lógica mimética do advento do Eu, dos objetos e dos signos. Mas quando Eu [ je] (me) busco, (me) perco, ou gozo, então o “Eu” é heterogêneo. Desconforto, mal-estar, vertigem dessa ambiguidade que, pela violência de uma revolta contra, delimita um espaço a partir do qual surgem signos, objetos. Assim retorcido, tecido, ambivalente, um fluxo heterogêneo demarca um território, que posso dizer que é meu porque o Outro, tendo me habitado como alter-ego, indicou-me pelo desgosto. Isso quer dizer uma vez mais que o fluxo heterogêneo, que demarca o abjeto e devolve [excreta]

10

  abjeção, já habita um animal humano altamente alterado. Só

experimento a abjeção quando um Outro se coloca no lugar e local daquilo que será o “Eu” [moi]. Não mais um outro com o qual eu me identifico, nem que incorporo, mas um Outro que me precede e me possui, e por essa possessão me faz ser. Possessão 10

  O verbo “renvoyer ” costuma ser empregado com o sentido de “despedir”, “mandar embora”, “devolver”, “remeter”, mas também pode ter o sentido de “expulsar”, “rejeitar”, “ejetar”, “expelir”, “excretar”.

10 anterior ao meu advento: ser-ali do simbólico que um pai poderia ou não encarnar. Inerência da significância ao corpo humano.  No limite da repressão originária

Se, por conta deste outro, um espaço se delimita separando o abjeto daquilo que será um sujeito e seus objetos, é porque uma repressão que se poderia dizer “primária” se opera antes do surgimento do Eu, de seus objetos e de suas representações. Estes, por sua vez, tributários de uma outra repressão, a “secundária”, chegam apenas a posteriori sobre um fundamento já balizado, enigmático, cujo retorno sob forma fóbica, obsessiva,  psicótica, ou, geralmente de maneira mais imaginária, sob forma de abjeção, nos indica os limites do universo humano. Em tal limite, e no limite, pode-se dizer [ainda] que não há inconsciente, o qual se constrói quando representações e afetos (ligados ou não a elas) formam uma lógica. Aqui, ao contrário, a consciência não adquiriu seus direitos de transformar em significantes as demarcações fluídas de territórios ainda instáveis em que um “eu” [ je] em formação não deixa de se extraviar. Não estamos mais na esfera da consciência, mas nesse limite da repressão originária que encontrou, todavia, uma marca intrinsecamente corporal e já significante, sintoma e signo: a repugnância, o asco, a abjeção. Efervescência do objeto e do signo que não são do desejo, mas de uma significância intolerável, e que, embora oscilem entre o sem-sentido e o real impossível, apresentamse, malgrado o “eu” [moi] (que não é), como abjeção.  Premissas do signo, revestimentos do sublime

Detenhamos-nos um pouco aqui. Se o abjeto já é um esboço de signo para um não-objeto, no limiar da repressão original, compreende-se que ele se aproxima, por um lado, do sintoma somático e, por outro, da sublimação. O sintoma: uma linguagem que, furtando-se, estrutura no corpo um estrangeiro inassimilável, monstro, tumor e câncer, que os mecanismos auditivos do inconsciente não escutam, pois é fora das trilhas do sentido do desejo que seu sujeito extraviado se aconchega. A sublimação, ao contrário, nada mais é do que a possibilidade de nomear o pré-nominal, o pré-objetal, que de fato não é mais do que um trans-nominal, um trans-objetal. No sintoma, o abjeto me invade, torno-me ele. Pela sublimação, eu o possuo. O abjeto é cercado pelo sublime. Não é o

11 mesmo momento do trajeto, mas é o mesmo sujeito e o mesmo discurso que os fazem existir. Pois o sublime tampouco tem objeto. Quando o céu estrelado, a vastidão do oceano ou um vitral de raios violeta me fascinam, é um feixe de sentidos, de cores, de  palavras, de carícias, sussurros, odores, suspiros, cadências que surgem, envolvem-me, elevam-me e me conduzem para além das coisas que vejo, escuto ou penso. O “objeto” sublime se dissolve nos transportes de uma memória sem fundo. É ele que, de estação em estação, de lembrança em lembrança, de amor em amor, transfere esse objeto ao  ponto luminoso do resplendor onde eu me perco para ser. Logo que o percebo, que o nomeio, o sublime desencadeia – ele sempre já desencadeia – uma cascata de  percepções e de palavras que expandem a memória ao infinito. Esqueço-me, então, o  ponto de partida e me encontro postada em um universo segundo, deslocado do universo onde “eu” [ je] sou: deleite e perda. Não inferior, mas sempre com e por meio da percepção e das palavras, o sublime é um acréscimo que nos infla, que nos excede e que nos faz estar ao mesmo tempo aqui, jogados, e lá, como outros e brilhantes. Divergência, clausura impossível. Desperdício completo, alegria: fascinação.  Antes do começo: a separação

O abjeto pode aparecer, então, como a sublimação mais  frágil (de um ponto de vista sincrônico), mais arcaica (de um ponto de vista diacrônico) de um “objeto” ainda inseparável das pulsões. O abjeto é um pseudo-objeto que se constitui antes, mas que só aparece nas  brechas da repressão secundária. O abjeto será, pois, o “objeto” da repressão originária. Mas o que é a repressão originária? Diremos: a capacidade do ser falante, sempre já habitado pelo Outro, de dividir, rejeitar, repetir. Sem que uma divisão, uma separação, um sujeito/objeto seja constituído (não ainda, ou não mais). Por quê? Pode ser que por conta da angústia maternal, incapaz de se apaziguar no ambiente simbólico. O abjeto nos confronta, por um lado, nesses estados frágeis em que o homem erra nos territórios do animal. Assim, por meio da abjeção, as sociedades primitivas delimitaram uma zona precisa de sua cultura a fim de separá-la do mundo ameaçador do animal ou da animalidade, imaginados como representantes da morte e do sexo.

12 O abjeto nos confronta, por outro lado, e dessa vez na nossa arqueologia pessoal, em nossas tentativas mais antigas de nos separar da entidade maternal, antes mesmo de ex-istir fora dela, graças à autonomia da linguagem. Separação violenta e malajambrada, sempre espreitada pela recaída na dependência de um poder tão reconfortante quanto sufocante. A dificuldade de uma mãe reconhecer (ou de se fazer reconhecer por) uma instância simbólica – dito de outro modo, seus problemas com o falo que o pai ou o marido representa para ela – não é evidentemente de natureza a ajudar o futuro sujeito a deixar a pousada natural. Se a criança pode servir como índice de autenticação para a sua mãe, não há, contudo, nenhuma razão para que esta lhe sirva de intermediário em sua própria autonomização e autenticação. Nesse corpo a corpo, a luz simbólica que um terceiro, o pai eventualmente, pode trazer, serve para o futuro sujeito, principalmente se ele se encontra dotado de uma constituição pulsional robusta, continuar a guerra relutante [à son corps défendant ] 11, com aquilo que, a partir da mãe, se torna um abjeto. Repelindo, rejeitando; repelindo-se, rejeitando-se. Ab-jetando.  Nessa guerra que molda o ser humano, o mimetismo, pelo qual ele se homologa a um outro para tornar-se a si mesmo, é, em suma, logicamente e cronologicamente, secundário. Antes de ser como, “eu” não sou, mas separo, rejeito, ab-jeto. A abjeção, em um sentido mais amplo, diacrônico subjetivo, é uma pré-condição do narcisismo. Ela lhe é co-existensiva e o fragiliza permanentemente. A imagem mais ou menos bela em que eu me miro ou me reconheço repousa sobre uma abjeção que a quebra quando a repressão, vigia permanente, relaxa. “Khóra”, receptáculo do narcisismo

Atenhamo-nos por um instante nessa aporia freudiana chamada repressão originária. Origem curiosa, onde aquilo que é reprimido não pode verdadeiramente ser mantido no lugar, e onde aquele que reprime já toma sempre sua força e autoridade emprestadas daquilo que é aparentemente muito secundário: a linguagem. Não falemos,  pois, de origem, mas de instabilidade da função simbólica naquilo que ela tem de mais 11

  A expressão “à son corps défendant ”, que literalmente significa “em defesa de seu corpo”, possui figurativamente o sentido de “contra a sua vontade”, “com relutância”, “a despeito de si mesmo”, “a contragosto”, “com repugnância”. Uma possível explicação para a origem do sentido figurado da expressão reside no fato de que, ao se defender de um ataque, é necessário, mesmo que a contragosto, recorrer à violência. Provavelmente, a autora faz aqui um jogo entre o significado literal e o sentido figurado da expressão.

13 significativo, a saber, o interdito do corpo materno (defesa contra o autoerotismo e tabu do incesto). É a pulsão que, aqui, reina para constituir um estranho espaço que nós nomearemos, com Platão (Timeu, 45-53), uma khóra, um receptáculo. Em benefício do eu [moi] ou contra o eu, as pulsões, de vida ou de morte, têm  por função correlacionar este “ainda não eu” com um “objeto”, para constituir tanto um quanto o outro. Dicotômico (dentro/fora, eu [moi]/não eu) e repetitivo, este movimento tem, contudo, qualquer coisa de centrípeto: ele visa colocar o eu [ moi] como centro de um sistema solar de objetos. Que, uma vez forçado a retornar [ao centro], o movimento  pulsional acabe por se tornar centrífugo, a se agarrar, pois, no Outro e a se produzir como signo para assim fazer sentido – eis o que é, propriamente falando, exorbitante. Mas, a partir desse momento, quando reconheço minha imagem como signo e me altero para me significar, uma outra economia se instala. O signo reprime a khóra e seu eterno retorno. Somente o desejo  será doravante testemunha desse batimento “originário”. Mas o desejo ex-patria o eu [moi] para um outro sujeito e não admite mais as exigências do eu a não ser como narcisistas. O narcisismo, então, aparece como uma regressão em retirada do outro, um retorno a um refúgio autocontemplativo, conservador, autossuficiente. De fato, tal narcisismo não é jamais a imagem sem ruga do deus grego numa fonte plácida. Os conflitos das pulsões atoladas no fundo  perturbam sua água e trazem tudo aquilo que, para um dado sistema de signos, ao não se integrar, é da abjeção. A abjeção é, pois, uma espécie de crise narcisística: ela testemunha a efemeridade desse estado que se denomina, sabe-se deus por que com ciúme reprobatório, de “narcisismo”; mais ainda, a abjeção confere ao narcisismo (à coisa e ao conceito) seu status de “aparência”.  No entanto, basta que um interdito, que pode ser um super-eu, barre o desejo que tende em direção ao outro – ou que este outro, como seu papel o exige, não satisfaça –,  para que o desejo e seus significantes retrocedam o caminho para o “mesmo”,  perturbando assim as águas de Narciso. É precisamente no momento da perturbação narcisística (estado que, em suma, é permanente do ser falante por pouco que ele se escute falar), que a repressão secundária, com seu revestimento de meios simbólicos,  procura transferir para sua conta, assim descoberta, os recursos da repressão originária. A economia arcaica é atraída para a plena luz do dia, significada, verbalizada. Suas

14 estratégias (rejeição, separação, repetição-abjeção

12

) encontram, portanto, uma

existência simbólica, à qual a própria lógica do simbólico, os argumentos, as demonstrações, as provas, devem se conformar. É então que o objeto cessa de ser circunscrito, arrazoado, separado: ele aparece como... abjeto. Duas causas aparentemente contraditórias provocam essa crise narcisística que traz, com sua verdade, a visão do abjeto. Uma excessiva severidade do Outro, confundida com o Uno e com a Lei.  A falência do Outro que transparece no colapso dos objetos do desejo. Nos dois casos, o abjeto aparece para sustentar o “eu [ je]” no Outro. O abjeto é a violência do luto por um “objeto” para sempre já perdido. O abjeto derruba o muro da repressão e de seus julgamentos. Ele reconduz o eu [ moi] à fonte dos limites abomináveis dos quais, para ser, este se separou – ele o reconduz ao não-eu, à pulsão, à morte. A abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu [ moi]). É uma alquimia que transforma a pulsão de morte em despertar de vida, de nova significância.  Perverso ou artístico

O abjeto está relacionado com a perversão. O sentimento de abjeção que eu experimento está ancorado no super-eu. O abjeto é perverso porque não abandona nem assume um interdito, uma regra, uma lei; mas distorce-os, extravia-os, corrompe-os; serve-se deles, usa-os, para melhor negá-los. Mata em nome da vida: é o déspota  progressista; vive ao serviço da morte: é o traficante geneticista; realimenta o sofrimento do outro para seu próprio bem: é o cínico (e o psicanalista); estabelece seu  poder narcísico fingindo expor seus abismos: é o artista que exerce sua arte como um “negócio”... A corrupção é sua figura mais conhecida, mais evidente. Ela é a figura socializada do abjeto. Faz-se necessário uma adesão inabalável ao Interdito, à Lei, para que este [caráter] intermediário [entre-deux] perverso da abjeção seja enquadrada e apartada. Religião, Moral, Direito. Evidentemente sempre arbitrários, para mais ou para menos; invariavelmente opressivos, bem mais do que menos; dificilmente dominantes, cada vez mais. A literatura contemporânea não os substitui. Ao invés disso, parece ser escrita a  partir da insustentabilidade das posições super-euísticas ou perversas. Ela constata a 12

 No original: “rejetantes, séparantes, répétantes-abjectantes”.

15 impossibilidade da Religião, da Moral, do Direito – seus abusos, sua aparência necessária e absurda. Como a perversão, usa-os, distorce-os, diverte-se com eles. Contudo, guarda sua distância com relação ao abjeto. O escritor, fascinado pelo abjeto, imaginando sua lógica, ali se projeta, introjeta, e perverte a língua – o estilo e o conteúdo – em consequência. Mas, por outro lado, como o sentimento de abjeção é, ao mesmo tempo, juiz e cúmplice do abjeto, assim também o é a literatura que o confronta. Deste modo, poder-se-ia dizer que, em tal literatura, realiza-se um cruzamento das categorias dicotômicas do Puro e do Impuro, do Interdito e do Pecado, da Moral e do Imoral. Para o sujeito solidamente instalado no seu super-eu, uma tal escritura participa necessariamente do [caráter] intermediário [ entre-deux] que caracteriza a perversão; e  por essa razão provoca, por seu turno, abjeção. Não obstante, há um relaxamento do super-eu para o qual esses textos apelam. Escrevê-los supõe a capacidade de imaginar o abjeto, isto é, de se ver em seu lugar e de somente descartá-lo por meio de deslocamentos de jogos de linguagem. É apenas após sua morte, eventualmente, que o escritor da abjeção escapará de sua cota de dejeto, desperdício ou abjeto. Então, ou ele cairá no esquecimento ou ascenderá ao posto de ideal incomensurável. A morte será,  pois, o curador chefe de nosso museu imaginário; ela nos protegerá em última instância dessa abjeção que a literatura contemporânea se diz capaz de empregar quando a enuncia. Uma proteção que ajusta suas contas com a abjeção, mas talvez também com a questão embaraçosa, incandescente, do fato literário em si, que, promovido ao status de sagrado, encontra-se truncado de sua especificidade. A morte faz, assim, a limpeza de nosso universo contemporâneo. Em [nos] purificando [da] literatura, ela constitui nossa religião laica. Tal abjeção – tal sagrado

A abjeção acompanha todas as construções religiosas, e ela reaparece, para ser elaborada de uma nova maneira, quando estas entram em colapso. Podem-se distinguir diversas estruturações da abjeção que determinam os tipos de sagrado. A abjeção aparece como rito da imundície [souillure] e da contaminação [ pollution] no paganismo que acompanha as sociedades em que predomina ou sobrevive

16 o [poder] matrilinear. Toma seu aspecto de exclusão de uma substância (nutritiva ou ligada à sexualidade), cuja operação coincide com o sagrado uma vez que o instaura. A abjeção persiste como exclusão  ou tabu (alimentar ou outro) nas religiões monoteístas, em particular no judaísmo, mas deslizando em direção a formas mais “secundárias” como transgressão  (da Lei) na mesma economia monoteísta. Ela encontra, enfim, com o pecado cristão, uma elaboração dialética, integrando-se como alteridade ameaçadora, mas sempre nomeável, sempre totalizável, no Verbo cristão. As diversas modalidades de  purificação  do abjeto – as diversas catarses – constituem a história das religiões, terminando nessa catarse por excelência que é a arte, aquém e além da religião. Vista por esse ângulo, a experiência artística, enraizada no abjeto que ela enuncia e, assim, purifica, aparece como o componente essencial da religiosidade. Talvez seja por isso que ela está destinada a sobreviver ao colapso das formas históricas das religiões.  Fora do sagrado, o abjeto se escreve

 Na modernidade ocidental e em razão da crise do cristianismo, a abjeção encontrou resonâncias mais arcaicas, culturalmente anteriores ao pecado, para reaver seu status bíblico e mesmo, mais ainda, aquele da imundície [impureza] das sociedades  primitivas. Em um mundo em que o Outro se encontra caído, o esforço estético – descida às fundações do edifício simbólico – consiste em retraçar as fronteiras frágeis do ser falante, ao mais próximo de sua alvorada, dessa “origem” sem fundo que é a repressão originária. Nessa experiência conduzida doravante pelo Outro, “sujeito” e “objeto”, repelem-se, afrontam-se, desmoronam-se e recomeçam, inseparáveis, contaminados, condenados, no limite do assimilável, do pensável: abjetos: A grande literatura moderna se desdobra sobre tal terreno: Dostoiévski, Lautréamont, Proust, Artaud, Kafka, Céline...  Dostoiévski

O abjeto é, para Dostoiévski, o “objeto” de Os Demônios: é o alvo e o móvel de uma existência cujo sentido se perde na degradação absoluta por ter rejeitado absolutamente o limite  (moral, social, religioso, familiar, individual) como absoluto,

17 Deus. A abjeção oscila, então, entre o esvanecimento de todo sentindo  e de toda humanidade, queimados como nas chamas de um incêndio, e o êxtase de um eu [moi] que, tendo perdido seu Outro e seus objetos, alcança, no momento preciso de seu suicídio, o auge da harmonia com a terra prometida. São abjetos tanto Vierkhoviénski como Kiríllov, tanto o assassino como o suicida. Um grande incêndio de noite sempre produz uma impressão que irrita e alegra; é nisso que se baseiam os fogos de artifício; mas, nesse caso, os fogos são distribuídos por configurações graciosas e regulares e, com sua  plena segurança, produzem uma impressão de brejeirice e leveza como depois de uma taça de champanhe. Outra coisa é um incêndio de verdade: aí o horror, uma espécie de sentimento de perigo pessoal e ao mesmo tempo uma impressão hilariante deixada pelo fogo noturno produzem no espectador (é claro que não no próprio morador vítima do incêndio) certo abalo cerebral e algo como um convite aos seus próprios instintos destrutivos que, ai!, estão ocultos em qualquer alma, até na alma do conselheiro titular mais obediente e familiar... Essa sensação sombria é quase sempre enlevante. “Palavra que não sei se se pode contemplar um incêndio sem algum prazer!” 13 Existem segundos – apenas uns cinco ou seis simultâneos – em que você sente de chofre a presença de uma harmonia eterna plenamente atingida. Isso não é da terra; não estou dizendo que seja do céu, mas que o homem não consegue suportá-lo em sua forma terrestre. Precisa mudar fisicamente ou morrer. É um sentimento claro e indiscutível. É como se de súbito você sentisse toda natureza e dissesse: sim isso é verdade! [...] O mais terrível é que é extraordinariamente claro e há essa alegria. Se passar de cinco segundos a alma não suportará e deverá desaparecer. Nesses cinco segundos eu vivo uma existência e por eles dou toda a minha vida porque vale à pena. Para suportar dez segundos é preciso mudar fisicamente. Acho que o homem deve deixar de procriar. Para que filhos, para que desenvolvimento se o objetivo foi alcançado? No Evangelho está escrito que na ressurreição não haverá partos,  serão como anjos de Deus. Uma alusão. Sua mulher está dando à luz? 14 13

 Recorremos aqui à tradução de Paulo Bezerra em: Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. São Paulo: Ed. 34, pp. 502. Na tradução utilizada por Kristeva: “ La vue d'un grand feu dans la nuit produit toujours une impression à la fois énervante et excitante : c'est ce qui explique l'action des feux d'artifice. Mais ceux-ci obéissent à un certain plan ornemental, et, de plus, ne présentent aucun danger ; aussi éveillent-ils des sensations légères, capiteuses, pareilles à celles que provoque une coupe de champagne. Il en est autrement d'un incendie : ici l'effroi et le sentiment d'un certain danger personnel qui viennent se joindre à l'excitation joyeuse suscitée par le feu nocturne, produisent chez le spectateur (sauf si lui-même est atteint par le sinistre, bien entendu) une sorte de commotion nerveuse, réveillent en lui ces instincts de destruction qui, hélas, dorment en toute âme, même dans l'âme la plus timide du plus rassis des  fonctionnaires. Cette obscure sensation est presque toujours enivrante. Je doute qu'il soit possible de contempler un incendie sans y goûter un certain plaisir ” (Dostoïevski,  Les Démons, trad. Boris de Schloezer, Gallimard, 1955, p. 540). 14  Cf. Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, pp. 571-572. Na tradução utilizada por Kristeva : “ Il y a des instants, ils durent cinq ou six secondes, quand vous sentez soudain la présence de l'harmonie éternelle, vous l'avez atteinte. Ce n'est pas terrestre : je ne veux pas dire que ce soit une chose céleste, mais que l'homme sous son aspect terrestre est incapable de la supporter. Il doit se transformer physiquement ou mourir. C'est un sentiment clair, indiscutable, absolu. Vous saisissez tout à coup la nature entière et vous dites : oui, c'est bien comme ça, c'est vrai [...]. Le  plus terrible, c'est que c'est si épou- vantablement clair. Et une joie si immense avec ça ! Si elle durait  plus de cinq secondes, l'âme ne la supporterait pas et devrait disparaître. En ces cinq secondes, je vis

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Vierkhoviénski é abjeto, na sua utilização ardilosa e dissimulada de ideais que já não existem, a partir do momento em que falta o Interdito (chame-se Deus). Stavróguin é, talvez, um pouco menos, pois seu imoralismo comporta o riso e a recusa, algo artístico, uma despesa gratuita e cínica que evidentemente capitaliza-se em proveito de um narcisismo privado, mas que não serve a um poder arbitrário e exterminador. Podese ser cínico sem ser irremediavelmente abjeto; a abjeção, ela, é sempre provocada por aquilo que tenta se entender com a lei pisoteada. O caderno dele tem boas coisas escritas – continuou Vierkhoviénski –, tem espionagem. No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas, e sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o chigaliovismo. Os escravos devem ser iguais: sem despotismo ainda não houve nem liberdade nem igualdade, mas na manada deve haver igualdade, e eis aí o chigaliovismo! Ah, ah, ah, está achando estranho? Sou a favor do chigaliovismo! 15

Dostoiévski radiografou a abjeção sexual, moral, religiosa como um colapso das leis paternas. Afinal, não é o universo de Os Demônios um universo de pais repudiados, toute une vie et je donnerais pour elles toute ma vie, car elles la valent. Pour supporter cela dix secondes, il faudrait se transformer physiquement. Je pense que l'homme doit cesser d'engendrer. A quoi bon des enfants, à quoi bon le développement de l'humanité si le but est atteint ? Il est dit dans l'Évangile qu'après la résurrection, on n'engendrera plus et que tous seront comme des anges de Dieu. C'est une allusion. Votre femme accouche?” (Dostoïevski, Les Démons, trad. Boris de Schloezer, Gallimard, 1955,  p. 619). 15

Cf. Dostoiévski, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34,  2004, p. 407.  Na tradução utilizada por Kristeva: “Son projet est remarquable, reprit Verkhovenski. Il établit l'espionnage. Chez lui, tous les membres de la société s'épient mutuellement et sont tenus de rapporter tout ce qu'ils apprennent. Chacun appartient à tous, et tous appartiennent à chacun. Tous les hommes sont esclaves et égaux dans l'esclavage ; dans les cas extrêmes, on a recours à la calomnie et au meurtre ; mais le principal, c'est que tous soient égaux. Avant tout, on abaisse le niveau de l'instruction, des sciences et des talents. Le niveau élevé n'est accessible qu'aux talents ; donc, pas de talents. Les hommes de talents s'emparent toujours du pouvoir et deviennent des despotes. Ils ne peuvent faire autrement ; ils ont toujours fait plus de tort que de bien. Il faudra les bannir et les mettre à mort. Cicéron aura la langue arrachée, Copernic aura les yeux crevés, Shakespeare sera lapidé. Voilà le chigaliovisme ! Les esclaves doivent être égaux. Sans despotisme, il n'y a jamais eu encore ni liberté ni égalité. Or, l'égalité doit régner dans le troupeau. Voilà le chigaliovisme ! Ha ! ha ! ha !... cela vous étonne ? Je suis pour Chigaliov” (Dostoïevski, Les Démons, trad. Boris de Schloezer, Gallimard, 1955, p. 441).

19 fictícios ou mortos, em que reinam, como fetiches ferozes, mas não menos fantasmáticos, matronas com vertigens de poder? E é ao simbolizar o abjeto, ao entregar magistralmente o gozo de enunciá-lo, que Dostoiévski se livrava desse impiedoso peso maternal.

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