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October 23, 2017 | Author: Paulo C D Schiel | Category: Sacrifice, Rituals, Saint, Force, Existentialism
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Plantando  o  axé:  reflexões  sobre  composições  de  forças   na  fundação  de  um  terreiro  de  candomblé1   Lucas Marques2 (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ) Localizada em um pequeno vilarejo às margens da rodovia que liga a cidade de Salvador à Feira de Santana, a casa de Detinha é mais uma entre tantos terreiros da região. No entanto, ao passear pelas largas ruas do vilarejo, nem mesmo um olhar já treinado seria capaz de perceber que ali, em meio a humildes residências, igrejas neopentecostais e pequenas quitandas, haveria um terreiro de candomblé. Não há, em sua fachada exterior, nada que indique que aquela casa é distinta das demais avizinhadas. Nenhuma inscrição ou portal com motivos específicos, nem mesmo a tradicional bandeira branca, de Tempo, presente em diversos candomblés da Bahia, em especial nos de nação Angola. “Ninguém diz que aqui tem candomblé, que é casa de orixá”, costuma dizer Detinha àqueles que visitam o local. Contudo, ao cruzar o portão de ferro e atravessar a pequena habitação onde ela e três de seus filhos residem, ou mesmo ao passar pelo estreito beco de terra batida e ir direto aos fundos da casa, nos deparamos com um território habitado pelas mais distintas entidades, cada qual com suas forças específicas, materializadas em quartos, árvores, vasos, potes e lugares. Mas nem sempre foi assim: Desde a primeira vez que fui à casa de Detinha, em janeiro de 2015, muita coisa se transformou até então. Nesse período, uma série de mudanças na composição espacial da casa ocorreram e, durante meu campo, pude acompanhar aquilo que hoje posso dizer que se tratou da criação de um terreiro de candomblé, da fundação de um axé3. O terreiro foi sendo formado aos poucos, a partir de um terreno baldio nos fundos da casa, ganhando cômodos, muros, portões, aberturas no chão – tendo, enfim, suas forças compostas e estabilizadas através de uma série de agenciamentos mediados por humanos, deuses e suas diversas “coisas”.

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Trabalho apresentado na 30a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Email: [email protected] 3 Os terreiros de candomblé, templos religiosos de matriz africana, podem ser chamados de distintas maneiras pelos adeptos dessas religiões: “terreiro”, “casa”, “casa de santo”, “roça” ou mesmo “axé”.

Desde que Detinha decidiu levar os seus santos para sua residência, após um desentendimento com seu antigo pai-de-santo, a casa, em um curto período de tempo, começou a ganhar contornos outros. “Boiadeiro foi ajudando e a gente conseguiu, com muito esforço, construir tudo isso aqui”, me dizia Detinha, orgulhosa, ao comentar sobre a rápida transformação do terreiro. No início, um pequeno e precário barraco de madeira foi erguido nos fundos da casa, onde foram guardados os assentamentos de Exu e de Boiadeiro. Logo, porém, três habitações – chamadas de pejis, ou quartos-de-santo – foram construídas para abrigar os assentamentos: uma para os exus, outra para Iemanjá, a dona da cabeça de Detinha, e a terceira para Boiadeiro, que, em sonho, avisou Detinha que não gostaria de ficar “no mato”4 e exigiu a construção de um quarto só para ele. Daí para frente uma série de transformações ocorreram: um barracão foi improvisado sob a terra batida, local onde ocorreu a primeira festa de caboclo da casa, em julho de 2015; o quarto de Iemanjá precisou ser ampliado, para receber os assentamentos dos outros orixás que compunham o “enredo” de Detinha e seus familiares; um outro quarto foi criado, para abrigar o assentamento do Ogum de um dos seus filhos; e, por fim, todos os quartos foram reformados, alguns ganhando pisos e forros, pinturas e inscrições. O barracão, inicialmente improvisado para a festa do Boiadeiro, foi pensado para ser construído na parte de trás do terreno. No entanto, segundo Detinha, Iemanjá ordenou que ele fosse construído ali onde fora realizada a primeira festa do terreiro, logo ao lado dos pejis. Assim, antes da segunda festa da casa, para Iemanjá, o barracão foi erguido: em um chão cimentado e sob um telhado de amianto (Eternit), sustentado por algumas vigas de madeira e rodeado por uma pequena mureta, que aliviava a temperatura dos dias quentes e cheios – insuportáveis não fosse o espaço aberto ao vento. Ao redor, algumas árvores e plantas presentes no terreno foram mantidas, passando a serem utilizadas no culto e tornando-se moradas de distintas entidades e forças. No quintal, os animais (cachorros, gatos, galos e galinhas) continuaram circulando livremente pelo terreno. Nesse processo, diversos seres – humanos, não-humanos e mais-que-humanos – foram chamados para compor e modular as forças do terreiro. Aos poucos, novas entidades foram assentadas e passaram a compor o axé da casa. Distintas pessoas também participaram ativamente dessa composição, seja colaborando financeiramente, seja auxiliando nas exaustivas atividades exigidas pelas ações rituais. José Adário dos Santos, 4

Boiadeiro, por ser uma entidade próxima aos caboclos (e, logo, por ter relações com os espíritos indígenas), pode residir “no mato”, em espaços abertos ou nos pés de determinadas árvores; ou mesmo, se for sua vontade, em pejis ou “aldeias” construídas para eles.

também conhecido como “Zé Diabo”, foi o responsável pela fundação do axé, dirigindo todas as ações rituais da casa e, com isso, deixando ali sua própria força – ou, como se diz, sua mão. Gilson, marido de Detinha, foi o responsável por arrecadar fundos para a construção do terreiro, por vezes dobrando os turnos de trabalho no abatedouro que o empregava. Além deles, os próprios filhos de Detinha, além de vizinhos e conhecidos – incluindo eu mesmo – também ajudaram como puderam, a maioria auxiliando nas atividades cotidianas e rituais da casa. E foi assim que, através do agenciamento de uma série de pessoas, entidades e materiais, o terreiro de Detinha foi se constituindo – compondo, assim, sua própria força, seu axé5. Mas, afinal, que força é esta capaz de mobilizar tantos e distintos agentes?

Plantando  o  axé   Carmen Opipari (2009) muito acertadamente chamou a atenção para a polissemia presente na noção de axé, que, para além de uma “força que assegura a existência dinâmica” (Santos 1975:40), pode ganhar significados múltiplos, como designar parte dos alimentos que são oferecidos às divindades6; ser utilizado enquanto uma expressão de votos, agradecimentos ou bênçãos; indicar filiação a alguma casa ou “raiz”, ou mesmo dizer respeito ao “fundamento” do candomblé. Axé, como notou Jim Wafer, pode designar o “ethos” do candomblé e, ao mesmo tempo, sua própria quintessência: “The ethos of Candomblé – axé in the first sense – is like an organism defined by and sustaining itself by means of the circulation of its animating force – axé in the second sense – among its parts” (1991:19). Nesse sentido, as coisas têm axé e, ao mesmo tempo, algumas coisas são, possuem ou transmitem axé. No entanto, não se trata simplesmente de uma “forma-axé” sobreposta por um “conteúdo-axé”, mas de uma modulação ininterrupta de forças e fluxos que assumem uma multiplicidade de expressões, cristalizando-se, por meio da ação ritual, em objetos, pessoas, lugares e processos (Goldman 2005). Assim, apesar de ser uma força “única” – comparada, como lembrou Bastide (1958:77), ao mana polinésio ou ao orenda dos iroqueses – essa força só existe no momento mesmo em que ela é, de uma forma ou de 5

Daniele Evangelista, em um artigo recente (2015), nos traz uma instigante narrativa etnográfica sobre a fundação de um terreiro no Rio de Janeiro, que traça interessantes paralelos com a descrição que proponho aqui, embora seu foco recaia principalmente sobre o aspecto jurídico/legal da noção de propriedade, o que não é o foco deste trabalho. 6 No caso aqui estudado, as partes internas dos animais sacrificados são chamadas de axé.

outra, individuada7, passando a ser agenciada de distintas maneiras, assumindo em seu fluxo sua própria multiplicidade ontológica. A palavra axé também pode ser usada para designar a própria casa de candomblé. Como lembrou Opipari (2009:86), as pessoas podem se referir a um terreiro de candomblé como “o axé de Seu Bobó”, “o meu axé”, “o axé da casa deles” etc. Ao fazerem isso, o que elas estão colocando em evidência é o próprio caráter “participativo” de uma casa de candomblé. Isso porque, assim como tudo o mais nesta religião, a casa também precisa ser feita, posta em participação com as diversas energias que atravessam o mundo, canalizando-as através de um cuidadoso e ininterrupto trabalho ritual – pois, como diria Bastide(1958:76), “não há candomblé sem axé”. Assim, para um lugar se tornar um terreiro, ele precisa, antes, ter o axé fixado através de uma série de ações rituais conhecidas como “enterrar” ou plantar o axé8 . Plantar o axé, ou também fazer o chão, é justamente assentar, no centro do barracão, as forças necessárias para que o terreiro passe a ser um conglomerado – irradiador e receptor – dessas forças, colocando-as em movimento. A partir daí, o chão passa a ser carregado de axé e, ao mesmo tempo, torna-se o axé, constituído por partes de todos os seres – humanos e não-humanos – que participam do terreiro. O chão, como um todo, é parte fundamental de um terreiro de candomblé: todo sacrifício no candomblé é conduzido no chão, fazendo com que os assentamentos sejam deslocados do alto de seus altares para que, no chão, eles possam comer. Sempre que alguma entidade come, antes dela o chão recebe um pouco de água e do sangue do animal sacrificado. “O chão”, como observa Miriam Rabelo (2014:260), “demanda respeito e reverência, é centro e fonte de axé. Mas o axé que concentra e distribui também tem que ser ativado, despertado e renovado”. Ao plantar o axé, o chão do terreiro torna-se vivo, uma extensão energética de todos da casa (o axé coletivo) e que, como tal, também deve ser alimentado periodicamente. Pude participar da cerimônia em que foi plantado o axé da casa de Detinha. Foi um ritual fechado ao público externo, realizado com as poucas pessoas que faziam parte da 7

Bastide vai dizer que o axé é a “força sagrada, divina, que todavia não pode existir fora dos objetos concretos em que se encontra, de tal modo que a erva que cura é axé, e que o alimento dos sacrifícios é também axé” (1958:77, nota 13). 8 É interessante notarmos o uso da palavra “plantar”, vocabulário proveniente da agricultura, para pensarmos as relações estabelecidas em um terreiro de candomblé – que também pode ser chamado de roça. Isso denota, a meu ver, uma outra ideia de criação, que não está ligada a uma relação “aditiva” – portanto, hilemórfica – com o mundo, mas que se liga mais à ideia de cultivo. Plantar o axé é, nesse sentido, cultivá-lo no terreiro, no sentido de “criar” e ter cuidado

casa. Como as etnografias desta cerimônia são quase inexistentes dentro da literatura antropológica, decidi narrar, de modo muito resumido, as principais fases deste ritual, precavendo-me de não abarcá-lo em sua “totalidade” pois se trata de um ritual considerado secreto por alguns adeptos9. Zé Diabo foi o responsável por conduzir o ritual de feitura do axé, e foi acompanhando ele que eu pude participar de todo o processo. Quando chegamos, o buraco cavado no centro do barracão, de cerca de 50cm de largura e um metro de profundidade, já havia sido aberto por Gilson, marido de Detinha. Nele seria plantado o axé da casa, que pertence a Intoto, uma qualidade de Omolu ligada à terra e ao barro. O ritual de plantar o axé é um ritual de consagração específico, que envolve todos do terreiro e requer uma dose de concentração e responsabilidade extra, haja vista que o que está em jogo ali é o próprio axé coletivo da casa. Entretanto, excetuando os inúmeros detalhes – que, como sabemos, é onde está o fundamento basilar da religião, onde encontra-se seu segredo (awo) – a cerimônia, para um observador desatento, assemelha-se com a feitura de um assentamento comum. A primeira etapa do ritual consiste em extrair o sumo de diferentes folhas, formando uma espécie de “banho” – chamado de amassi – que servirá para lavar os elementos que irão para o chão, sendo depois despejado no buraco. Esse ritual é chamado de sassanha, ou cantar folha, e consiste em esfregar as folhas entre as mãos dentro de uma bacia com água, cantando cantigas específicas para cada folha no momento em que é retirado seu sumo. Por envolver folhas, é um ritual ligado ao orixá Ossain, como o próprio nome sugere, e consiste num dos mais importantes e misteriosos da religião – como ouvi diversas vezes em Salvador, há uma expressão em Yorubá que diz “Kosi Ewe, Kosi Orixá”, que, segundo a tradução usual, significa: “sem folhas, não há orixá”. 9

A questão do segredo no candomblé é mobilizada de distintas maneiras e assume diferentes formas a depender da relação estabelecida. Se, por um lado, o agenciamento do segredo é o que “move” o candomblé (cf. Johnson 2002), por outro, esse agenciamento não diz respeito somente a uma “estratégia de poder”, como indica o autor, mas a uma proteção àqueles que, parafraseando Favret-Saada (1977) ainda não são fortes o suficiente para saber. Ocultar, como ressalta Miram Rabelo (2015b), é também um modo de relação fundamental para a construção da dinâmica das forças que atuam no mundo do candomblé. O segredo, nesse sentido, faz parte do axé e é também responsável pela própria configuração relacional do candomblé, separando aqueles que “podem saber” daqueles que não podem (Halloy 2005). Revelar um segredo é, portanto, correr um risco vital, pois, como nos lembra Elbein dos Santos (1975:50), a palavra é condutora do poder do axé. No entanto, dentro da minha experiência em campo, percebi que “revelar um segredo” não é tarefa das mais fáceis, pois o segredo, no candomblé, mora nos detalhes quase imperceptíveis para aqueles que não comungam do mesmo ethos do candomblé: reside nas variações musicais, nos pequenos ingredientes, nas formas de cantá-los e prepará-los etc. Nesse sentido, não se trata de pura e simplesmente “desvendar” algo que estava oculto, mas, na maior parte das vezes, revelar um segredo é tornar perceptível aquilo que já era, de alguma forma, visível.

Depois de lavar os diversos elementos que farão parte do ritual, o amassi é misturado a uma massa de barro e um pouco de cimento, que contém diversos outros elementos, como terras de locais específicos (praias, encruzilhadas, cemitérios etc.) e algumas folhas, sementes e raízes, dentre outras coisas. Após ser misturada, essa massa é dividida entre todos os presentes, onde cada um coloca, com as próprias mãos, um punhado da mistura no buraco. A ferramenta de Intoto (construída por Zé dias antes da feitura) é então fincada na massa, de uma maneira específica e formando um determinado arranjo, que depois é coberto de distintas folhas e uma série de elementos, entre os quais sementes, moedas, recortes de jornais contendo boas notícias (raríssimos de encontrar, como brinca Detinha) e velas, dentre outros. Durante toda a ação ritual canta-se diversas cantigas, a maioria destinadas a Omolu e a Iroko, orixá fundamental para a criação da casa. O canto é essencial para ativar a energia presente em cada material que é composto e misturado no conjunto. É Zé Diabo quem puxa as estrofes em Iorubá, que são acompanhadas e repetidas por todos os presentes. Palmas, no ritmo dos toques dos atabaques, também são permitidas, a depender da cantiga que se está cantando. Através dessa mistura de cantos, palavras, ações e materiais, cada elemento vai sendo composto dentro do buraco, ativando, nele, a energia do orixá. Uma vez que o conjunto de elementos foi “assentado” no buraco, o chão (Intoto) passa a “comer”, ou seja, receber sacrifícios como os demais orixás. Assim, dois galos são sacrificados dentro do buraco, e o sangue é vertido por todo o conjunto, alimentando o orixá com a energia vital, com axé. As partes dos bichos são então separadas, num ritual chamado por Zé de arremate, e parte do animal – como asas, cabeça, pés e rabo – é colocado dentro do conjunto, enquanto a outra parte vai para cozinha, onde será preparado pelas mulheres junto com os outros alimentos que não são de procedência animal, chamados comidas secas. Todo esse processo é igualmente “cantado”. Os diversos alimentos – como acaçás, milho branco, pipoca, feijão preto, milho etc. – são cuidadosamente preparados pelas mulheres da casa, cada um de um modo específico, em quantidades determinadas e seguindo determinados preceitos (a pipoca, por exemplo, deve ser feita com areia da praia, sem o uso de óleo ou sal). Zé supervisiona toda a ação, enquanto Deuza, a mãe pequena da casa, cuida de sua preparação. Preparados, os alimentos são postos em diversos alguidares de barro, cuidadosamente arranjados segundo as preferências do orixá. Depois, cada um dos

presentes segura um prato e, em fila, numa espécie de procissão, levam os alimentos para o centro do barracão, onde serão depositados junto com os outros elementos. É o momento de arriar a comida: um momento de comunhão, onde cada pessoa deve estar com a “cabeça boa” e pedir boas coisas durante a entrega. Enquanto, nas obrigações dos outros orixás, a comida, depois de alguns dias, é retirada do peji e despachada em algum local específico, na oferenda que é feita para o chão do terreiro, ao contrário, as comidas do orixá são deixadas ali, para que a terra decomponha todo o alimento. Ao entregar os alimentos para o orixá, é como se cada um deixasse um pouco de si dentro do axé da casa, que agora passa a ser coletivo, concretizando assim o fundamento do terreiro. No final, joga-se o obí10 para saber se o orixá aceitou a oferenda. Uma vez feito o ritual, o buraco é coberto por uma pedra e lacrado com cimento. Esta parte do chão do terreiro, assim, se sobressai em relação ao resto do piso, demarcando onde foi plantado o axé da casa, que fica oculto sob a pedra. Periodicamente (em geral, de ano em ano), a pedra será retirada e o buraco será novamente aberto, sendo repetidos, desta vez em escala menor, os rituais da oferenda inicial. Dali por diante, todos que chegarem ao barracão, em especial nos dias de festa, deverão reverenciar este ponto, seja batendo cabeça, ato de deitar-se e tocar a fronte da testa no chão, em sinal de respeito ao orixá, seja tocando o solo com a ponta dos dedos e levando-os a testa, a depender do status da pessoa no candomblé. Uma vez feito, o chão torna-se o ponto mais concentrado de axé da casa, parte essencial e fundante do terreiro. *** Tão importante quanto plantar o axé é assentar a cumeeira da casa. Ambos são processos primordiais e complementares para a construção de um terreiro de candomblé. A cumeeira é um assentamento localizado logo acima do fundamento do chão, o que demonstra a complementaridade entre os dois. Zé Diabo, ao me explicar sobre a complementaridade do chão e da cumeeira, me dizia que o chão era feito para o “dono da terra”, local onde o sangue será derramado e para onde, no fim, todos iremos. A cumeeira, por sua vez, pertenceria ao “protetor da casa” (neste caso, Ogum) e seria como uma espécie de “para-raios”, que receberia as energias de fora e repeliria as “forças negativas” do terreiro, defendendo-o e estabilizando sua força. O chão e a cumeeira, assim, deveriam sempre andar juntos: uma cumeeira sem chão perde sua força, e vice-versa. 10

Trata-se de um jogo divinatório feito com noz-de-cola e água, tido como “mais simples” que os búzios, pois, nele, as respostas só podem ser afirmativas ou negativas – por isso o seu uso geralmente ao fim das oferendas, para saber se a entidade aceitou ou não o presente.

Com isso, o centro do barracão torna-se o ponto de encontro entre o axé plantado e a cumeeira da casa, realizando a conexão entre o Aiyê (este mundo, a terra) e o Orun (o outro mundo, o céu). Enquanto em alguns terreiros, a depender da nação, essa conexão é feita através de um poste central, que liga o céu e a terra (cf. Bastide 1958: 83-89; 1983:325-333); em outros, como é o caso da Casa de Detinha, essa ligação é feita no espaço intervalar entre o chão e cumeeira, criando o centro, ou a coluna de força do barracão11, algo semelhante ao papel desempenhado pelo poste central. Tanto num caso como no outro, é em volta deste centro que os iniciados dançam em círculo durante o xirê, série de cantigas que abrem as festas de candomblé, e é ele o centro irradiador de forças de um terreiro. Dois rituais acompanham a feitura da cumeeira: primeiro, é preciso assentar o orixá e alimentá-lo com sangue sacrificial – ritual que, como já disse, só pode ser feito no chão. Em seguida, trata-se de “arrumar” a cumeeira, suspendendo o assentamento e colocando-o em um suporte preso ao teto, logo em cima de onde o axé está plantado. Não pude acompanhar o primeiro ritual, que consistiu em assentar, em um pequeno alguidar, o orixá revelado pelo jogo como o dono da cumeeira, Ogum. No entanto, ao participar do segundo ritual, que consiste em colocar o assentamento no alto do barracão, pude observar detalhadamente o assentamento – que, por não ser fixado na massa, carrega seus diversos objetos “soltos” no alguidar. Trata-se de uma ferramenta de Ogum pequena, se comparada as demais da casa, feita inteiramente de ferro e composta por uma lança central e uma haste de ferro, onde dependuram-se sete pequenas ferramentas agrícolas de cada lado. Na frente da ferramenta, dentro do alguidar, encontra-se o otá do santo – a pedra que é o próprio orixá materializado – além de outros elementos, como obis, mel, sal, azeite de dendê e etc. Depois de assentado, o conjunto é levado para o centro do barracão, onde será suspenso e colocado no suporte da cumeeira. Assim como a feitura do chão, trata-se de um ritual muito importante na dinâmica ritual da casa. Na ocasião, ele foi realizado por Deuza, que se tornou a mãe pequena do terreiro depois que Zé Diabo chamou-a para ajudar nos rituais. Ao suspender a cumeeira, Deuza virou em seu santo, Omolu, e foi ele quem conduziu o assentamento para o teto, não sem antes dançar, com o objeto entre as mãos, 11

Bastide (1958:88-89) vai falar que esse conjunto é a própria imagem do universo, “o microcosmo, ou também o mundo reconstituído em sua realidade mística, que é a sua verdadeira realidade. E esse mundo não se destrói porque está sendo perpetuamente criado de novo por uma união sexual que não cessa nunca, simbolizada pelo poste central”.

pelos quatro cantos do barracão. O assentamento foi colocado junto com duas quartinhas de barro no alto do barracão, e em seguida decorado com panos brancos e azuis. Depois que Omolu deixou o corpo de Deuza, todos bateram paó12 e, assim, o ritual foi encerrado. *** Mas não é somente a feitura do chão e da cumeeira que faz um terreiro de candomblé. Para além destes, há uma série de outros agenciamentos necessários para compor o lugar e, à medida que o terreiro vai ganhando novos adeptos e compondo com diferentes forças, o próprio espaço vai se transformando, demandando novas feituras e composições. O espaço do terreiro – tal qual acontece com a ferramenta e o próprio corpo do iniciado no candomblé – é um território que nunca está totalmente “feito”, ou seja, sempre requer novas desterritorializações e reterritorializações. Como diz Miriam Rabelo, o mundo do candomblé é “um mundo que, longe de estar assentado de uma vez por todas, está sempre em processo de se fazer: afinal cada conexão descoberta pode dar lugar a uma nova busca, pode ensejar o estabelecimento de novos compromissos” (2014:249). Desse modo, há diversas outras feituras que perpassam o espaço de um terreiro de candomblé. A Casa de Detinha, como já foi dito, não possui uma bandeira branca de Tempo visível em seu terreiro. Isso não quer dizer, porém, que essa força não esteja presente: a bandeira, junto com os outros elementos que a compõem, foi “enterrada” no quintal da casa, e hoje somente um pequeno montículo de terra no canto do quintal indica que essa força está ali ativada. Ainda no quintal, algumas árvores são amarradas com um pano branco, o que indica, também, que ali habita uma divindade, em geral Iroko. Do mesmo modo, bambuzais ou montículos de terra também podem ser local de habitação de distintas entidades – sejam exus, eguns, caboclos ou orixás. Na entrada da casa, atrás do portão, há um pequeno prato contendo um montículo de barro. Ali, dizem, encontra-se um exu, também chamado de Exu de porta13. Em alguns candomblés, este exu possui uma pequena casa construída próximo ao portão da entrada. Detinha ainda não construiu essa casa, mas apesar disso, diz ela, aquele Exu foi a primeira entidade a ser assentada quando ela decidiu criar o terreiro. Ele é considerado o guardião

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Trata-se de um gesto ritual que busca fazer a comunicação com os deuses, através de uma sequência de palmas (em geral, três palmas fortes seguida de mais sete palmas fracas). Ele é realizado em diversos contextos, como no fim dos sacrifícios, das ações rituais, das entregas das oferendas ou dos resultados afirmativos do jogo de obí. 13 Bastide (1958:181), sobre o candomblé da Bahia, distingue dois tipos de Exus: os Exus de terra, que ficam próximos às portas dos candomblés, e os Exus de ferro, cultuados em seu próprio peji. Apesar dessa distinção se operar no caso aqui estudado, ela não é unânime entre os candomblés que já visitei.

da casa, quem protege o terreiro dos espíritos da rua e daqueles que porventura queiram fazer algum mal à casa e seus habitantes. Todos os adeptos, antes de entrarem em uma casa de candomblé, devem pedir licença e saudar este Exu, por vezes oferecendo-lhe algum presente, como bebidas ou cigarros. Além disso, cada peji também possui seu próprio chão, que é alimentado na primeira vez que se sacrifica um bicho de quatro pés (como cabras e bodes) dentro do quarto, concentrando os axés (as vísceras) dos animais maiores, junto com algumas comidas secas que, em vez de serem despachadas na rua, são depositadas dentro do buraco escavado no quarto de orixá (também tampado com uma pesada pedra de mármore). Alguns assentamentos também possuem seus próprios buracos, ocultos dentro dos altares que os sustentam. Para além desses exemplos, quaisquer quartinhas, potes, panelas, alguidares ou pratos podem ter algum fundamento escondido, sendo também um local de concentração de determinadas forças. O candomblé, como nota Rabelo (2014; 2015a; 2015b), opera através de um modo específico de compor e concentrar forças: trata-se de um cuidadoso trabalho ritual que opera por meio de uma composição em camadas, ocultando – seja em buracos no chão, seja em assentamentos, vasos ou plantas – as múltiplas forças que agem sobre o mundo. Ocultar, diz a autora, é tanto proteger aquilo que é fonte e veículo de axé, quanto também define um modo de sociabilidade próprio aos terreiros, que performam na ação ritual a dinâmica mesma dessas forças; ou seja, a dinâmica da própria multiplicidade, onde coisas e pessoas são “uma composição heterogênea que nunca se mostra em sua totalidade, havendo sempre mais forças atuantes no mundo do que aquelas que são objeto explícito de atenção e cuidado” (2015b:251).

“Essa  casa  não  é  minha...”   Alfred Gell, ao falar sobre o modo de composição das casas Maori, numa das mais belas passagens de Art and Agency (1998), nos traz alguns paralelos interessantes para pensarmos o estatuto ontológico de uma casa de candomblé. As casas Maori, diz o autor, são como corpos para os corpos (“body for the body”). Entrar nelas é entrar em uma mente, em uma sensibilidade específica: é entrar no fluxo que se seguiu de todas as casas e de todo compósito de relações que ali se desenrolou e se desenrola. Isso porque a casa é

também o corpo do ancestral, reinstalado nessa forma. Ela não é simplesmente um traço sobrevivente da existência ancestral, mas o corpo que ele possui no aqui e agora, e através do qual sua agência é exercida e sentida (Gell 1998: 253). A casa é uma multiplicidade de corpos conectados: uma corporificação fractal que se estende espacial e temporalmente. No candomblé, a casa, tal qual a pessoa, é concebida como um território a ser ocupado por uma multiplicidade de forças (cf. Anjos 2006:110), um “corpo para corpos”, se quisermos. Ao criar vínculos com o terreiro, o noviço estabelece uma aliança diádica entre ele e seu grupo corporado – uma aliança, no entanto, que é múltipla em si mesma, pois envolve, além dele e da casa, todos aqueles que compõem o axé que ele passa a fazer parte: a mãe-de-santo e todos seus filhos de santo, além dos espíritos que compõem cada um deles. Pois todos aqueles que, em diferentes graus de existência, entraram em relação com a casa passam a constitui-la. Ao entrar em um terreiro, cada um deixa um pouco de si ali – e, ao mesmo tempo, leva consigo um pouco dos outros. A casa, assim, é antes um compósito de relações, onde diversas forças – e suas movimentações constantes – são responsáveis por “mantê-la”, constituindo assim o próprio axé do terreiro. É nesse sentido que podemos mais uma vez voltar a uma das acepções possíveis para a palavra axé. Isso porque, como vimos, o “axé da casa” é constituído por uma composição específica de forças, o que faz com que cada casa seja singular em relação à outra, pois cada uma possui um “estilo ritual” próprio – como indicado na expressão “cada casa é um caso”, amplamente trabalhada por Edgar Barbosa Neto em sua tese de doutorado. Barbosa Neto sintetiza o argumento, ao dizer que: Se cada casa é um caso é também porque cada chefe é um chefe, cada deus é um deus, cada lado é um lado, e também porque, de tudo isso, não resultam seres indivisíveis, mas formas atravessadas por forças variadas, simultaneamente diferentes e inseparáveis, e que fazem de toda individuação ritual uma maneira singular de compor com a multiplicidade. O que chamo de estilo é precisamente essa singularidade, isto é, esse modo de composição com uma matéria que é fundamentalmente força e cuja textura é sempre heterogênea (Barbosa Neto 2012:23).

Por outro lado, como lembra o autor (ibid.:39), o fato de cada casa ser um caso não resulta numa paisagem atomística de unidades rituais sem nenhuma conexão entre si. É aí que somos levados a uma outra concepção de axé: axé enquanto filiação, raiz, ou, a depender do caso, nação. Cada casa possui sua raiz, uma espécie de linha genealógica, ou matriz espaço-temporal, da qual ela faz parte. Em geral, essa linhagem remete ao pai ou mãe-de-santo do dono da casa – no nosso caso, portanto, a Zé Diabo. Essa raiz, no entanto, não funciona apenas em seu plano “vertical”, das formas genealógicas. Na prática ritual,

ela atualiza-se no plano das alianças, das composições horizontais. Assim, citando novamente Barbosa Neto (2012:85), “aquilo que, de um lado, é raiz, de outro, pode muito bem ser rizoma”. Não é raro ouvir dos sacerdotes, como explicação para determinadas diferenças nos detalhes que compõem os rituais, frases do tipo: “fiz do jeito dos antigos”, ou “fiz assim porque minha casa tem raiz na casa X”, ou ainda “na minha nação a gente faz desse jeito”. Essas frases, mais do que revelar uma ‘tradição’ que deve ser preservada, indica que a ideia de raiz, nação, ou ‘povo’ é fundamental para compor o estilo ritual de cada casa. São essas variações que fazem com que, em cada casa, os detalhes façam toda a diferença: o que vai dentro de cada assentamento, os “fundamentos” da casa, os toques e suas variações, as variações litúrgicas, as folhas e comidas, os modos de composição dos santos, e assim por diante. Cada ‘detalhe’ carrega uma história ligada ao axé da casa, tanto no sentido filiativo quanto na margem de indeterminação e improvisação de cada casa. Ao “fazer a casa”, suas raízes são territorializadas na própria terra (no “chão”), e passam a constituir a força do terreiro, seu axé. A terra – elemento que, como vimos, é primordial para a territorialização de uma casa de candomblé – é portanto a própria força generalizada dos ancestrais, ao mesmo tempo em que constitui a força coletiva da casa. Invocar a terra é, portanto, movimentar e reverenciar essa própria força. É por isso que, em um terreiro de candomblé, todo sacrifício é antes direcionado à terra e, durante uma festa de candomblé, sempre que se toca para qualquer orixá, é à terra que os iniciados se dirigem, tocando-a e levando a mão à cabeça. A terra, uma vez feita, torna-se uma espécie de ancestral do terreiro14, um centro energético comum a todos os da casa. Cada prática ritual atualiza e agencia essas raízes, transformando, em variação contínua, filiações em alianças. *** Dito isso, voltemos ao paralelo com as Casas Maori. Tal qual ocorre nessas casas, as forças que constituem um terreiro de candomblé extrapolam a existência de seu “proprietário”, sendo antes uma “multiplicidade de corpos conectados”. É por isso que sempre que eu falava com Zé Diabo sobre “sua casa” ele me reprimia, dizendo: “essa casa não é minha, essa casa é do meu povo e dos orixás. Casa de candomblé não tem dono, o dono são os orixás”. A casa não o pertence, mas é parte de um fluxo-força maior do qual 14

Halloy, a esse respeito, diz: “Lieu d’origine et de finalité de l’existence, « la terre » entretient un lien privilégié avec le cycle de la vie et de la mort” (2005:153)

ele faz parte e no qual aglutinam-se as forças dos orixás e daqueles que por ali já passaram, vivos e mortos. A casa, portanto, é antes uma composição de forças, que se movimenta no decorrer da existência da casa, como explicita Juana Elbein dos Santos (1975:41), ao falar sobre o “axé do terreiro: Uma vez plantado o àse do “terreiro”, ele se expande e se fortifica, combinando as qualidades e as significações de todos os elementos de que é composto: a) o àse de cada òrìsà plantado nos peji dos ilé-òrìsà, realimentado através das oferendas e da ação ritual, transmitido a seus olórìsà por intermédio da iniciação e ativado pela conduta individual e ritual; b) o àse de cada membro do “terreiro” que soma ao de seu òrìsà recebido no decorrer da iniciação, o de seu destino individual, o àse que ele acumulará em seu interior, o inú e que ele revitalizará particularmente através dos ritos do Borí – “dar comida à cabeça” – aos quais se adicionam ainda o àse herdado de seus próprios ancestrais; c) o àse dos antepassados do “terreiro”, de seus mortos ilustres, cujo poder é acumulado e mantido nos “assentos” do ilé-ibo.

Eu acrescentaria, talvez numa chave menos “tradicionalista” (ou seja, sem eliminar as ambiguidades e variações do sistema), as diversas relações estabelecidas fora do fluxo da identidade e da filiação; ou seja, as relações que são compostas através dos múltiplos devires15 que conectam e atravessam corpos, coisas e lugares. Pois não se trata somente de um acúmulo ou redução de forças, como num jogo de soma-zero. Antes, trata-se de um engate bem específico, que envolve pequenas passagens, frestas e transformações. É comum, no candomblé, relatos de pessoas e terreiros que “viraram” de nações: eram de Angola e passaram a Ketu, ou eram de Ketu e passaram a Jeje, ou mesmo casas que eram de Umbanda e se transformaram em terreiros de Candomblé. No decorrer do caminho, as coisas vão se transformando, através de uma negociação constante que envolve, principalmente, o desejo das próprias entidades. A casa de Detinha, por exemplo, tem ‘raiz’ em Ketu, ainda que Zé Diabo, quem “fez” a casa, possua raiz na nação Jeje. Para que essa operação fosse possível, uma série de procedimentos tiveram que ser feitos no decorrer da “feitura” da casa, pois, como explica Zé, o fundamento das duas nações é diferente. Assim, Zé teve que cantar primeiro em Jeje, que é sua raiz, para só em seguida poder cantar em Ketu, raiz da Casa. Além disso, uma série de ‘detalhes’ foram modificados, de modo que Zé, ainda que fosse de uma raiz, pudesse fazer outra.

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Como lembra Goldman, a partir de Deleuze & Guattari: “Devir, contudo, não significa nem semelhança, nem imitação, nem identificação; nem tem nada a ver com relações formais ou com transformações substanciais, e o devir ‘não é nem uma analogia, nem uma imaginação, mas uma composição’” (Goldman 2005:115).

A casa de Detinha, como me explicou Zé Diabo, não poderia ser feita em Jeje, pois os santos de Detinha são de nação Ketu, e só “aceitariam” ficar em uma casa dessa nação. Zé, ainda que seja Jeje, sabe os fundamentos do Ketu, o que o permite – através de uma série de ‘frestas’ e ‘engates’- fazer as coisas em Ketu. Mas, para a casa ser feita, foi necessário uma série de negociações: o Boiadeiro de Detinha, por exemplo, a princípio não queria uma casa de candomblé Ketu, pois temia, com isso, “perder” espaço para os orixás (algumas casas Ketu tradicionais sequer cultuam caboclos e boiadeiros). Para que a casa seja feita, foi necessário assim negociar com o caboclo, prometendo-o que, ainda que a casa fosse de orixás, ele não perderia espaço, tendo um quarto só para ele e recebendo, anualmente, uma festa em sua homenagem, todo mês de Julho. Foi somente depois da aceitação do Caboclo que Zé pôde fazer o fundamento da casa. A casa, assim, se faz através de uma composição e negociação entre diferentes forças, que passam a habitar o local e, assim, a fazer parte dele, compondo nele suas próprias forças e devires. Ao passar a fazer parte de um terreiro de candomblé, cada entidade se territorializa de maneira específica, habitando determinados territórios a partir da própria composição relacional da casa. Assim, Iemanjá, dona da cabeça de Detinha, se torna também a “dona da casa”; Intoto, por sua vez, é o dono do chão e Ogum, o da cumeeira. Exu, guardião da entrada, fica no limiar entre a casa e a rua. Iroko habita as árvores, assim como alguns eguns. Tempo fica próximo ao barracão, enterrado no quintal da casa. Exus, caboclos, santos e orixás possuem seus próprios quartos, habitações de onde emanam suas forças. Cada entidade vai sobrepondo seu território existencial aos territórios já existentes na casa, constituindo então essa “máquina de captura” do candomblé. Assim, se a casa pode ser pensada como um compósito de relações, essas relações atravessam a própria topologia das forças, que se organizam de modo relacional no terreiro. Se o espaço do terreiro, como vimos, parece ser um “espaço esburacado”, repleto de buracos, passagens e frestas, é esse espaço que permite que algo sempre possa ser feito – que mesmo as raízes possam se transformar, que o axé possa ser manipulado e colocado em movimento constante. Tudo depende, portanto, do agenciamento que se faz nessa composição de forças: e esses agenciamentos são repletos de pequenas passagens, frestas, limiares que fazem passar uma força sobre a outra, sobrepondo distintos territórios existenciais. Eis porque, como escreve Barbosa Neto, “a morfologia da casa não se expressa apenas através da separação entre formas discretas, ainda que isso também esteja

presente, mas também por meio da conexão produzida pela força associada aos seres sobrenaturais que vivem dentro dela” (2012:145). *** Por fim, o que está em jogo aqui, se quisermos, é uma outra concepção de território, distinta de uma noção ocidental que liga a terra à propriedade individual. O geógrafo Milton Santos (2000) vai sugerir que existem dois modelos de se relacionar com o território. O primeiro, próprio ao capitalismo – que poderemos chamar aqui de “tipoEstado”, ou Maior, para usarmos o vocabulário proposto por Deleuze & Guattari (1977) – concebe a terra como um “recurso” a ser utilizado e apropriado pelo capital. O território, nesta concepção, é visto a partir de um esquema hilemórfico, que separa de antemão o organismo de seu ambiente, os habitantes de suas habitações. A esse modelo hegemônico do território como recurso, Santos vai contrapor a uma noção – menor, para continuarmos com a oposição proposta – de território como abrigo, no qual o espaço é, antes, o território em estado de uso. Ou seja, uma noção onde o território não é desvinculado do uso que se faz dele, onde o ponto de partida não é mais essa divisão ontológica, mas a imersão e o engajamento prático que os seres (humanos e não-humanos) têm com o espaço que habitam, num processo de composição mútua onde um não pode ser desvinculado do outro. Podemos fazer um paralelo entre esta distinção proposta por Milton Santos e aquela elaborada pelo filósofo Martin Heidegger que, num pequeno e instigante ensaio (1951), relaciona esses dois modos a duas ontologias distintas: uma ligada ao “construir” – na qual se pressupõe um “mundo lá fora” pronto para ser ocupado – e outra relacionada ao “habitar” – que implica num mundo engajado com os seres que o habitam, ou seja, um mundo que não está “feito” antes de ser habitado. O candomblé, se quisermos, poderia ser pensado enquanto um modo de habitar o território, concebendo-o como abrigo de distintas forças e fluxos. No entanto, o território que ele faz, através de suas ações rituais, não pode ser limitado a uma territorialização espacial – antes, ele é composto por uma série de agenciamentos múltiplos, que conectam distintos lugares, coisas e pessoas. É assim que, seguindo uma intuição presente na obra de José Carlos dos Anjos (2006; Anjos & Oro 2009), busco na obra de Deleuze & Guattari (1997) e, em especial, nos escritos de Félix Guattari (1992), a ideia de pensar o candomblé enquanto um território existencial, ou seja, um território composto a partir dos ritmos que ele próprio agencia. Um território existencial é antes um movimento de forças, composto de matérias de expressão que ultrapassam os seus agentes. Ele se constitui em intensidade,

está “sempre em vias de desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização através de sua constante intensividade” (Deleuze & Guattari 1997:144). Assim, poderíamos pensar o fazer no candomblé enquanto a constituição de um território existencial (que “engata” com uma multiplicidade de territórios outros). Terreiros, pessoas, assentamentos, pedras, colares, vasos, buracos: cada qual constitui um território existencial intensivo, composto e atravessado por uma série de forças. No candomblé, o território (o terreiro) é um território vivo, carregado de estórias dos fazeres que já se fizeram e que se farão naquela terra16: onde o axé foi plantado, o sangue derramado, a ligação divina atualizada. A terra, e tudo que está sobre ela, ultrapassa o humano e suas pretensões17. Entretanto, isso não exclui o fato de que, para existir, ela tem que ser feita por ele – uma feitura que, como vimos, atua por composição de multiplicidades. Assim, mais que um espaço carregado de histórias, a casa é um espaço que propicia fazeres, cuidados específicos e diálogos íntimos entre pessoas e deuses. Participar de um terreiro é habitá-lo, plantar sua própria cabeça (orí) no local, compartilhar com ele sua força, seu axé. A casa de Detinha foi composta por uma série de agenciamentos que envolveram conexões com diversos lugares, deuses e coisas. Assim, por exemplo, uma série de elementos, como terras de lugares específicos, folhas, animais, árvores, notícias recortadas de jornais, buracos, além de orixás, exus, caboclos e ancestrais são acionados para compor o chão da casa, que passa a ser atravessado pelas distintas forças que estão e agem sobre o mundo Compor uma casa é portanto compor uma força territorial – força esta que, como vimos, está sempre “em vias de se fazer”. Para Bastide (1958:69), através da participação – da fixação e composição de forças – as casas de candomblé se tornam um “microcosmo da terra ancestral”, constituindo “mundos à parte, espécies de ilhas africanas no meio de um oceano de civilização ocidental”. Assim, segundo o autor, “o axé do candomblé deve 16

A geógrafa Doreen Massey (2005: 183), de modo semelhante, vai definir o espaço como uma “simultaneidade de histórias até então”, onde as histórias e trajetórias compõem o próprio espaço, são parte dele. 17 Sobre a terra e o território, Deleuze & Guattari nos dão uma instigante reflexão: “E sem dúvida a terra não é a mesma coisa que o território. A terra é esse ponto intenso no mais profundo do território, ou então projetado fora do território como ponto focal, e onde se reúnem todas as forças num corpo-a-corpo. A terra não é mais uma força entre as outras, nem uma substância enformada ou um meio codificado, que teria sua vez e sua parte. A terra tornou-se este corpo-a-corpo de todas as forças, as da terra como as das outras substâncias, de modo que o artista não se confronta mais com o caos, mas com o inferno e com o subterrâneo, o sem-fundo”(1997:162).

condensar todos os axés, exatamente como o terreiro é um resumo de todo o território nagô” (:78). Desse modo, mais do que uma ‘instituição’, uma ‘forma’ ou uma ‘identidade’, o terreiro pode ser pensado como uma espécie de complexo irradiador e receptor de diversas forças18, ou, como nos diz Goldman, uma “máquina de captura” destinada à “captação, à distribuição e à circulação da força única que, em suas cosmologias, constitui tudo o que existe e pode existir no universo” (Goldman 2012:279). Nessa composição, o humano, na maior parte das vezes, é apenas mais um partícipe. No terreiro de Detinha, como vimos, foi Iemanjá quem decidiu sobre o lugar onde seria feito o barracão, e foi Boiadeiro, por sua vez, quem exigiu a construção de um peji só para ele. Como certa vez me disse Zé Diabo: “eu não faço nada aqui, quem faz são os orixás”. Cabe à ele, portanto, mediar essas forças, modulá-las de modo que elas passem a ocupar territórios específicos, passando a fazer parte da vida de todos os que habitam um terreiro. Assim, mais do que uma habilidade, fazer exige uma sensibilidade para captar e manipular as forças que estão no mundo: agir, no candomblé, é sobretudo compor com uma multiplicidade.

18

Mais uma vez, Bastide já nos dizia que “o templo é algo mais do que um pedaço da África transportado para o outro lado do oceano, é algo mais do que um local consagrado por nele terem sido enterrados os axés; copiando a união do céu e da terra, ele auxilia o mundo criado a perdurar, encerrando nas duas cuias o desdobramento harmonioso das forças da natureza, juntamente com a estrutura e as funções da sociedade”. (1958:89)

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