Pierre Heber-suffrin - o Zaratustra de Nietzsche

July 9, 2019 | Author: Gregor Sur | Category: Friedrich Nietzsche, Dualismo, Moralidade, Metafísica, Amor
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"ZARATUSTM' DE NIETZSCHE

Jorg Jo rgee Za Zaha harr Ed Edit itor  or 

"Zaratustra" o "Zaratustra" de Nietzsche

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, 'Zaratustra 'Zaratustra ' , de Nietzsche Tradução: Lucy Magalbães Magalbães

Jorge Jorge Zahar Zahar Editor  Editor  Rio de Janeiro

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 Lee  Z amt holl  L hollstm de   N iet: iet:::.sche Tr adu duçção autor iza zada da da da p  pr  r imeir a ed ediição fran france cessa,  public  pub licad adaa em 19 19888 p  poor  Presse  Pre ssess Univer sit itaair es es de Fr ance,  d e  P  Par  ar is, Fr ança, na  co  colleção "Philosop osophie hies" s".. diri riggida por  Fran  F ranççois oisee Balibar , Jean-Pierre Lef e b  bvvr e, P e,  Piier r  r e  M  Mac achher ey e ey  e Yv Y ves Va  Varg rgaas

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Cop opyyrig right ht © 198 9888,  Pr ess ssees Univer sita tair  ir es de de F  Fra rannce Co p  pyyr ight ight © 199 9911  d  daa edi diçã çãoo em  l lííngua po por  r tug ugue uesa sa:: Jorge Za Zahar  r  E  E dit ditoor  r  L  L tda tda.. ruaa Méx ru éxiico 31  so  so br   br elo elo j jaa 200312003 1-1144 Rio de de J  Jaaneir o, RJ tel.:  (  (221)  2  22240 40--0226 1 fa faxx:  (  (221)   2262-5123 2262-512 3 e-m -maail il:: j jzze@zaha har  r .com. .com. br   br  site: si te: ww  www w.zah zahar  ar .com. br   br  Todos dos os  os dire di reitos itos r ese ser  r vad ados. os. A r e p  pr  r oduç ução ão não não--aut utor  or izada desta  p  puu blica  blicação ção,, no  t tod odoo ou em par te,  co  connstir ui vio iola lação ção de  di  dir  r eit eitos aut utoor ais. (Lei 9 .6 .611 0 /9 8)

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Tr adu dução ção de:  L  Lee  Z  Zarath arathooustr a de de N  Niietzs zscche ISB N: 85-71 71110-165 0-165--5

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O prim primei eiro ro disc discur urso so de Zara Zaratu tust stra ra Do homem ao super super--homem homem (I). (I). A derrubada derrubada dos antigos antigos valores, alores, primeira primeira etapa de sua transmutação (Prólogo, § 3) 53 Do homem ao super super-ho -homem mem (11). (11). A vontade vontade   criadora de novos novos valores, valores, segunda segunda etapa de de sua sua tran transm smut utaç ação ão (Pró (Prólo logo go,, § 4) 71 O niilismo ilismo do último último homem . (Prólogo, § 5) 85

HéberHébe r-S Suf f  f r  ri  n,  Pi  Pieer re re O "  "Za Zar  r atu tustra stra""  de Niet ietzzsc schhe  1 Pie ierr  rr e H  Héé b  ber  er -Su -Suf f  f rin; rin; tr adu dução ção,, Luc ucyy Maga agallhãe hãess. - Ri  Jaaneir o: Jorge Rioo de  J Zahar Ed Ed., 200 003. 3.

1. N 1.  Niietzsch chee, Fri Frieedri dricch Wi Willhelm lm,, 1844 844--1900 900.. Assim f alou ou Za  Zar  r ar ustr a. a. 2.  F  Fil iloosofia alem emã. ã. L  L Títu ítullo.

Um novo novo profet profeta a Por que Za Zaratustra f ala a la ass assiim 31 Uma transfo ransformaçã rmação o compl completa. ta. O anún anúnci cio o de 40 uma nov nova cultura cultura (Prólog Prólogo, o, § 1) A mor morte de Deus eus (Pró (Prólo log go, § 2) 46

CIP-Br asil.  C  Caatalo loggação ção--na-font fontee Sind ndiicato Na Naci ciona onall dos  E dit itor  or es de  Li  Livvr os, RJ. H349z

O prólog prólogo o de Zara Zaratus tustra tra (texto (texto integral) integral),, tradução tradução de Ivo Barroso Barroso

93

Nova Novass expe experi riên ênci cias as,, novas profecias profecias

nova novass reso resolu luçõ ções es,,

O home homem m supe superi rior or (Pró (Prólo logo go,, § 6) 93 O frac fracas asso so de Zara Zaratu tust stra ra (Pró (Prólo logo go,, § 7)

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de mais de um leitor, mesmo entre os mais bem-intencionados e mais dispostos a se deixarem seduzir. Já se vê que nosso projeto, bem modesto, é ao mesmo tempo bastante ambicioso. Modesto, seu objetivo primeiro e fundamental é comentar, de maneira pedagógicR, isto é, articulada, meticulosa, atenta às perguntas e reações do leitor, as  primeiras páginas da obra: o Prólogo.  Nessa ótica, nossos três primeiros capítulos acom panham o leitor desse Prólogo passo a passo, linha a linha, procurando mais a clareza que a elegância e evitando mais a obscuridade que as repetições, e, se necessário, o que acontece muitas vezes, que as  paráfrases. Mas nosso projeto é, ao mesmo tempo, bastante ambicioso. Trata-se de ajudar a "entrar em Zaratustra"  aqueles que estão perplexos e colhidos pelo desânimo, e de facilitar-Ihes a leitura completa da obra. Veremos, de fato, que o Prólogo constitui uma introdução sistemática, muito estruturada, ao conjunto do  Zaratustra, um recenseamento dos problemas e um levantamento de todos os conceitos. Vamos com preender então que, comentando o Prólogo, queremos introduzir ao conjunto. Um panorama rápido desse conjunto bastará, efetivamente, para que nele nos situemos. O Capítulo V servirá de guia para essa leitura de conjunto; guia muito menos detalhado e diretivo que aquele que acompanhava os primeiros passos no Prólogo, mas suficiente para o leitor cioso de sua inde pendência de espírito, que decifrou conosco, passo a

 passo, o Prólogo, e preferirá, talvez, partir à descoberta do  Zaratustra   com mais autonomia.  Nosso projeto é ainda mais ambicioso: a leitura do  Zaratustra   constitui certamente a melhor abordagem  possível do pensamento de Nietzsche ...

 Nosso comentário - aliás provavelmente ininteligível sem um conhecimento direto do texto de Nietzsche não pretende, evidentemente, dispensar a sua leitura, mas, simplesmente, ajudar o seu leitor. Nessa perspectiva, o procedimento que nos parece mais desejável, e que corresponde melhor à nossa intenção, consistiria em LER PREVIAMENTE, inicialmente sem interrupção, o Prólogo de Zaratustra,   cujo texto integral colocamos,  para isso, à frente de nosso estudo; depois em   RELER  o mesmo   PRÓLOGO,   dessa vez parte por parte,   SEGUINDOSE, só  ENTÃO, A CADA UMA DELAS, A LEITURA DE SEU COMENTÁRIO.   O mesmo procedimento, constituído de

uma leitura inicial contínua, depois de uma leitura altemada do texto e do comentário, poderia posteriormente ser de n ovo utilizado para os   Discursos de  Zaratustra.   Para facilitar a tarefa, lembraremos, no começo de cada capítulo, qual é a parte da obra de  Nietzsche que será diretamente comentada, e sempre citaremos, no interior de nosso comentário, em caracteres itálicos,   os trechos dessa parte específica que comentamos e apenas esses.

Fica convencionado que o asterisco' remete, no léxico (Cap. VI), à definição do termo que o precede imediatamente; quando esse termo apresenta várias acepções, assinalamos com um ou vários algarismos o sentido ou os sentidos a que se remete. Exemplos:  Niilismo'3 ou Morte de Deus'3,4. A fim de evitar  complicações inúteis, geralmente utilizamos apenas uma única vez essa prática remissiva para cada termo definido, quando de sua primeira ocorrência em nosso estudo. Excepcionalmente, de novo recorremos a ela quando a identificação de um ou vários sentidos precisos é indispensável para a plena compreensão de nossas considerações. Precisemos, enfim, que todas as citações das obras de  Nietzsche, exceto   Assim falou Zaratustra,*   são extraídas da   Nouvelle édition des oeuvres philosophiques com pletes de Nietz.sche em 14 tomos, publicada sob a res ponsa bilidade de Gilles Deleuze e Maurice de Gandillac (Paris, NRF, Gallimard).

, Nesta edição brasileira as citações e os títulos dos capítulos de  Ássim  falou Zaratustra, de Nietzsche, são feitas de acordo com a tradução de Mário da Silva (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977). A pedido do autor, Pierre Héber-Suffrin, a tradução do "PlÚlogo de Zaratustra" foi feita a partir da ve.rsão de Chantal Sautier e Laurent Valette que consta da edição francesa deste livro. A tradução desse •'PlÚlogo" foi realizada por Ivo Barroso.

o Prólogo

de Zaratustra

Quando tinha trinta anos, Zaratustra deixou sua terra natal, e o lago de sua terra natal, e foi para as montanhas. Lá, durante dez anos, cultivou seu espírito e a solidão. Mas, por fim, seu coração se transformou - e levantando-se, um dia, com a aurora, pôs-se diante do sol e lhe falou assim: "Grande astro! Qual seria tua felicidade sem aqueles a quem iluminas? Há dez anos que vens subindo até a minha caverna;  já te terias cansado de dar a tua luz e descrever este  percurso se aqui não estivéssemos nós, eu, minha águia e a serpente. Mas, a cada manhã, nós te esperávamos e te aliviávamos de teu excesso, abençoando-te por isso. Vê! Estou saturado de minha sabedoria, como a abelha que acumulou demasiado mel; anseio por mãos que se estendam. Quero oferecer e partilhar, para que os sábios entre os homens de novo se rejubilem de sua loucura, e os  pobres venham de novo a amar !:luariqueza .

Preciso, pois, descer ao mais profundo, como fazes à noite, ao mergulhares por trás do mar, levando tua luz ao mundo inferior, ó astro exuberante! Como tu, é necessário que eu 'decline' para falar  como os homens aos quais quero descer. Abençoa-me, pois, olho sereno, tu que podes contemplar sem mágoa uma ventura tamanha! Abençoa este cálice que anseia transbordar para que dele escorra a água dourada capaz de levar a toda a parte o reflexo de tua fruição! Vê! Este cálice quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra quer de novo ser homem. " - Assim começou o declínio de Zaratustra.

Zaratustra desceu só da montanha, sem encontrar ninguém. Mas ao chegar à floresta, viu-se de súbito diante de um ancião, que deixara a sua sagrada choça para ir à  procura de raízes silvestres. O ancião dirigiu a Zaratustra estas palavras: "Este viandante não me é desconhecido; há muitos anos o vi passar por aqui. Então se chamava Zaratustra; mas agora está mudado.  Naquela época, levavas tuas cinzas para o monte. Queres agora trazer teu fogo para o vale? Não temes o castigo que sofre o incendiário? Sim, reconheço Zaratustra. Seu olhar é límpido, e sua boca não encerra mágoas. Não caminha como um dançarino?

Zaratustra está mudado, Zaratustra fez-se criança, Zaratustra é homem desperto: que procuras agora entre os que dormem? Vivias na solidão como no mar, e esse mar te levava. Pobre de ti, queres acostar? Queres de novo, infeliz, arrastar teu próprio corpo?" Zaratustra respondeu: "Amo os homens." "Por que pensas", disse o santo, "que busquei a floresta e o deserto, senão porque amava demasiadamente os homens? Agora, amo a Deus; e não aos homens. Acho por  demais imperfeito o ser humano. O amor aos homens me faria perecer." Zaratustra respondeu:"Por que falei de amor? Na realidade, trago aos homens um presente!': "Não lhes dês nada", disse o santo. "É preferível aliviá-los de alguma coisa que possas carregar com eles - será o que de melhor farás em seu favor se acaso isso te satisfizer! Se insistes em dar-lhes um presente, que não seja nada mais do que uma esmola, e, mesmo assim, depois de a mendigarem!" "Não", respondeu Zaratustra, "não lhes darei esmolas. Não sou bastante pobre para isso." O santo riu de Zaratustra e lhe falou assim: "Então, procura fazer com que aceitem teus tesouros! Desconfiam dos eremitas e não querem acreditar  em nossas dádivas. Para eles, nossos passos soam por demais solitários nas vielas. De tal forma que, à noite, ao ouvirem, já no leito, andar lá fora um homem, muito antes do raiar do sol, perguntam-se com certeza: 'Aonde irá esse ladrão?'

 Não busques os homens, e fica na floresta! Vai antes ter com os animais! Por que não queres ser o que eu sou: um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros?" "E que faz o santo na floresta?", perguntou Zaratustra .. O santo respondeu: "Componho canções e canto-as, e quando componho canções, rio, choro, e murmuro: é assim que louvo a Deus. Cantando, chorando, rindo e murmurando, louvo a Deus que é meu Deus. Mas, afinal, que nos trazes de  presente? " A essas palavras, Zaratustra saudou o santo, dizendo-lhe: "Que teria eu para vos dar? Mas deixai-me  partir depressa, antes que vos tire alguma coisa!" E assim se separaram, o ancião e o homem, a rir como dois  jovens. Mas quando Zaratustra ficou só, falou consigo mesmo: "Como é possível? Este santo ancião na sua floresta não sabe ainda que Deus está morto?"

Assim que chegou à cidade mais próxima, na orla da floresta, Zaratustra encontrou muita gente reunida na  praça principal, para ver um funâmbulo que fora anunciado. E Zaratustra dirigiu-se assim à multidão: "Eu vos proponho o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizestes para isso? Até então, todos os seres unaginaram algo superior, acima de si mesmos, e vós quereis ser acaso o reverso

desse grande fluxo, preferindo antes voltar ao animal do que chegar ao super-homem? O que é o símio para o homem? Objeto de riso ou ignomínia. E é justamente isso que o homem deve ser   para o super-homem: objeto de riso ou ignomínia. Já fizestes o caminho que vai do verme ao homem, mas ainda há muito de verme em vós. Outrora fostes símios, contudo ainda hoje o homem é mais símio que qualquer dos símios. O mais sábio entre vós não passa de um conflito, um ser híbrido entre a planta e o espectro. Porventura ordenei que vos tornásseis espectro ou planta? Vede, eu vos ensino o super-homem! O super-homem é o sentido da terra. Fazei dizer à vossa vontade: que o super-homem seja o sentido da terra! Eu vos conclamo, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Não passam de envenenadores, conscientes ou não. São gente que despreza a vida, seres agonizantes, igualmente intoxicados, dos quais a terra se cansou. Que eles, pois, desapareçam! Outrora, a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus está morto, e com ele morreram seus detratores. O terrível, agora, é injuriar a terra, pois seria dar mais valor às entranhas do insondável que ao sentido da terra! Outrora, a alma olhava o corpo com desprezo, e esse desprezo era o que havia de mais sublime. A alma queria o corpo magro, horrendo, faminto. Pensava, assim, so brepor-se a ele e  à terra.

Oh, mas essa alma era também magr a, horr enda e f aminta, e a crueldade era toda a sua volúpia! Mas vós, irmãos, dizei-me: que vos informa o vosso corpo sobre vossa alma? Não é ela miséria, imundície e reles bem-estar ? Em verdade, um rio imundo é o homem. E só o mar   pode absorver um rio imundo sem macular-se. Vede, eu vos ensino o super-homem. Ele é o mar que  pode absorver o vosso grande desprezo. Qual a mais sublime experiência que poderíeis viver? É a hora do grande desprezo. Essa hor a   em que mesmo para vós a felicidade se transforma em náusea, e bem assim vossa razão e vossa virtude. A hora em que dizeis:   'Que é afmal minha f elicidade? Simplesmente miséria, imundície e reles   bem-estar. Ora, minha felicidade devia ser a própria justificação de minha existência!' A hora em que dizeis: 'Que é armal minha razão? Aspira ela ao saber como o leão cobiça seu alimento? Qual nada! Não passa de miséria, imundície e reles  bem-estar!' A h9ra em que dizeis: 'Que é afinal minha virtude! Ela ainda não me fez revoltado. Como estou f arto de meu bem e de meu mal! Aqui só há miséria, imundície e satisfação grosseira!' A hora em que dizeis: 'Que é afmal a minha justiça?  Não me sinto um carvão em brasa. Ora, o justo é um carvão em brasa!' A hora em que dizeis: 'Que é afmal a minha compaixão? A compaixão não é a cruz onde se prega aquele que ama os homens? Ora, minha compaixão não crucifica!'

Já falastes assim?   Já gritastes assim?   Ah! por que ainda não vos ouvi gritar assim?  Não é vosso pecado, mas vossa medida que brada aos céus, é vossa avareza no pecar que brada aos céus! Mas onde está o raio que vos virá lamber com sua língua? Onde a loucura de que deveríeis inocular -vos? Vede, eu vos ensino o super -homem: ele é esse r aio, essa loucura!" Ao terminar Zaratustra de falar assim, alguém exclamou na multidão: "Já ouvimos demais sobre o funâm bulo, queremos agora vê-Io!" E toda a multidão se riu de Zaratustra. Quanto ao funâmbulo, acr editando que estas palavr a s lhe dissessem respeito, logo se pr e parou  para iniciar o seu trabalho.

Mas Zaratustra contemplava, admirado, a multidão e lhe falou assim: "O homem é uma corda estendida entr e   o animal e o super-homem - uma corda sobre o abismo. Perigosa a travessia,   perigoso o percurso, perigoso olhar para trás, perigoso o tremor e a paralisação. A grandeza do homem está em ser ponte e não meta: o que nele se pode amar é o fato de ser ao mesmo tempo transição e declínio. Amo os que só sabem viver em declínio,   pois são os que transpõem. Amo os que desprezam com intensidade, pois sabem venerar intensamente, e são flechas lançadas pelo anseio-da-outra~margem.

Amo os que não se satisfazem em procurar além das estrelas uma razão para serem declínio e oferenda, mas que, ao contrário, se sacrificam à terra para que esta um dia se torne a terra do super-homem. Amo o que vive para conhecer, e quer conhecer para que um dia o super-homem viva. E quer assim o seu  próprio declínio. Amo o que trabalha e inventa para construir a morada do super-homem, e prepara para ele a terra, os animais e as plantas. Pois assim quer o seu declínio. Amo o que ama a sua própria virtude, pois que a virtude é vontade de declínio e flecha do desejo. Amo o que não guarda para si nem uma só gota de seu espírito mas quer ser inteiramente o espírito de sua  própria virtude. É dessa forma que ele, como espírito, atravessa a ponte. Amo o que faz da virtude inclinação e destino, pois ele, por amor à sua virtude, quer viver ainda e não mais viver. Amo o que não quer virtudes em demasia. Uma única virtude é mais virtude do que duas, pois ela é o nó mais forte onde se ata o destino. Amo o que prodigaliza sua alma, e que, ao fazer isso, não visa à gratidão nem ao pagamento; pois sempre dá e nada quer em troca. Amo o que se envergonha quando o dado cai a seu favor, e então pergunta: serei um trapaceiro? - pois é  para sua ruína que ele quer se encaminhar. Amo o que antecede com palavras de ouro os seus atos e sempre cumpre mais do que promete; pois ele quer o seu declínio.

Amo o que justifica os que serão e resgata os que foram; pois quer perecer por aqueles que são. Amo aquele que pune seu Deus porque o ama; porquanto só poderá perecer pela cólera de seu Deus. Amo o que, mesmo ferido, tem a alma profunda, e que um simples acaso pode fazer perecer. Assim, ele atravessa de bom grado a ponte. Amo aquele cuja alma transborda e a tal ponto se esquece de si que todas as coisas nele encontram lugar. Assim, todas as coisas se tornam seu declínio. Amo o que tem o espírito livre e livre o coração. Assim, sua cabeça não passa de vísceras para seu coração; mas o coração o empurra para o decIínio. Amo todos aqueles que são como pesadas gotas caindo uma a uma da negra nuvem que paira sobre Os homens; anunciam a chegada do raio e perecem como anuncia dores. Vede, sou o anunciador do raio, uma gota pesada dessa nuvem. Mas o raio se chama super-homem."

Depois de pronunciar estas palavras, Zaratustra cQnsiderou de novo a multidão e se manteve em silêncio. "Ei-Ios diante de mim", disse consigo mesmo, "e ei-Ios que riem. Não me compreendem, não sou a boca que éonvém a esses ouvidos. Será preciso antes furar-Ihes os ouvidos para que aprendam a ouvir com os olhos? Será preciso retumbar  como os tambores e os sermoneiros da quaresma? Ou só acreditam naquele que gagueja?

Há algo de que se orgulham .  Como chamam a isso de que se orgulham?  Cultura, é como lhe chamam, e é  por ela que se distinguem dos guarda dores de cabras . Por isso não gostam de ouvir a palavra 'desprezo' usada contra eles. Vou antes falar-lhes ao orgulho. Para tanto, devo falar do que há de mais desprezível: do último homem." E assim falou Zaratustra à  multidão: "É chegado o tempo de o homem estabelecer a sua meta. É chegado o tempo de o homem depositar na terra o grão de sua esperança mais alta . Seu solo é ainda bastante rico para isso . Mas um dia esse solo estará tão pobre e exaurido, que nele nenhuma árvore de porte poderá mais crescer. Ai de vós! Eis chegado o tempo em que  o  homem não mais lançará a flecha de seu desejo para além do homem, o tempo em que a corda de seu arco terá desaprendido de vibrar! Eu vos digo: é preciso ter caos ainda dent r o de si para  poder gerar uma estrela piscante. Eu vos digo: ainda tendes caos dentro de vós. Ai de vós! Eis que chega o tempo em que o homemnão  poderá mais dar à luz uma estrela. Aide vós!Eis quechega o tempo do mais desprezível dos homens, aquele que nem é mais capaz de desprezar-se a si mesmo. Vede! Eu vos mostro o último homem. 'Que é o amor? Que é a criação? Que é o desejo? Que é uma estrela?' Assim pergunta o último homem com um piscar de olhos. Eis que a terra encolheu-se e sobre ela saltita o último homem, que amesquinha tudo. Sua espécie é indestru-

tivel, como a dos pulgões; o último homem,   o que  perdura mais tempo. 'Inventamos a felicidade', dizem os últimos homens com um piscar de olhos. Abandonaram as regiões onde era difícil viver; pois  precisam de calor. Ainda amam seu vizinho e a ele se aconchegam, pois precisam de calor. Adoecer e desconfiar, para eles é pecado; avança-se com cautela. Insensato aquele que ainda tropeça em  pedras ou em homens! De quando em quando, um pouco de veneno: traz sonhos agradáveis. E muito veneno, no fun,   para se morrer agradavelmente. Trabalham ainda, pois o trabalho é uma distração. Mas ficam atentos par a que esse divertimento não os canse.  Ninguém fica mais nem pobre nem rico: é  algo penoso, tanto um quanto o outro. Quem ainda deseja governar? Quem ainda deseja obedecer? São ambos cansativos demais.  Nenhum pastor e um só rebanho? Todos querem o mesmo, todos são iguais. Quem sente de maneira diversa se condena ao hospício. 'Outrora, todo o mundo era louco',   dizem os mais astutos, com um piscar de olhos. Estamos bem avisados, sabemos tudo o que acontece. Por isso, não paramos de escarnecer. Acontece ainda discutirmos, mas logo nos reconciliamos - as brigas fazem mal ao estômago. Temos nossos pequenos prazeres diurnos e nosso  pequenos prazeres noturnos; mas cuidamos da saúde. 'Inventamos a felicidade', dizem os últimos homens com um piscar de olhos."

Com isso teve fim o primeiro discurso de Zaratustra , também chamado prólogo, pois os gritos de júbilo da multidão o interromperam nesse ponto:   "Dá-nos esse último homem, Zaratustra", gritavam eles. "Paz de nós esses últimos homens, que te daremos o super-homem de presente!" E a multidão inteira se rejubilava e estalava a língua. Mas Zaratustra, tomado de tristeza, assim falou consigo: "Não me compreendem: não sou aboca que convém a seus ouvidos. Sem dúvida passei muitos anos na montanha, a escutar demais os riachos e as árvores, e agora lhes falo como a guardadores de cabras. Minha alma está serena e clara como a montanha ao amanhecer. Mas eles me tomam por um cínico, um zombeteiro de sinistras ironias. E, então, olham para mim e riem; e rindo, também me odeiam. Há um gelo no seu riso."

Mas algo então se passou que fez emudecer as bocas e arregalar os olhos. É que, nesse ínterim, o funâmbulo tinha dado inicio a seu trabalho: saíra de uma pequena  porta e estava caminhando sobre a corda estendida entre duas torres, e conseqüentemente suspensa sobre a praça e a multidão. Achava-se exatamente a meio de seu  percurso, quando a porta de novo se abriu e nela apareceu um indivíduo todo pintado à  maneira dos bufões, que se pôs a seguir o primeiro a passos largos. "Vamos, mais depressa, ó paralítico", gritava com sua voz terrí-

vel, "anda, seu preguiçoso, seu impostor, vil aprendiz! Cuidado, que te vou pisar o calcanhar! Que fazes aqui entre as torres? Lá dentro delas é que é o teu lugar, lá deviam teencerrar para nãoestorvares o caminho de quem é melhor que tu!" A cada palavra mais se aproximava do outro. Quando estava a apenas um passo dele, aconteceu a coisa terrível que fez emudecer as bocas e arregalar os olhos. Deu um uivo diabólico e saltou por cima daquele que lhe impedia o caminho. Ora, este, vendo seu rival triunfar, perdeu a cabeça e a corda; largou a vara de equihbrio, e, mais rapidamente do que esta, num rodopiar  de braços e pernas, mergulhou no vazio. A praça e a multidão pareciam um mar fustigado pela tempestade. A multidão espalhou-se em atropelo, fugindo do local onde o corpo devia vir se espatifar. Só Zaratustra permaneceu imóvel; o corpo caiu bem ao seu lado, todo disforme, mas ainda vivo. Após um momento, o homem recuperou os sentidos e viu Zaratustra ajoelhar-se junto dele. "Que fazes aqui?", disse enfim, "há muito que sabia que o diabo me daria uma rasteira. E agora, ele me arrasta para o inferno. Acaso  podes impedi-lo?" "Amigo, juro-te pela minha honra", respondeu Zaratustra, "que isso de que falas não existe: não há nem diabo nem inferno. Tua alma morrerá ainda mais depressa que teu corpo. Agora já não tens o que temer!" O homem ergueu os olhos, desconfiado. "Se dizes a verdade", disse então, "nada perco por perder a vida. E não passo de um animal a quem ensinaram a dançar  à  custa de pancadas e magros bocados:'

"Não", disse Zaratustra, "fizeste do perigo o teu ofício; não há nada de desprezível nisso. Morres vítima de tua profissão. Por isso, quero te sepultar com minhas  próprias mãos." Depois dessas palavras de Zaratustra, o moribundo não mais respondeu; moveu apenas a mão como se  procurasse a de Zaratustra para agradecer-lhe.

Enquanto isso, a tarde caíra e a praça do mercado se envolvia na sombra. Então a turba dispersou-se, pois mesmo a curiosidade e o pavor acabam por cansar . Mas Zaratustra continuou sentado no chão ao lado do morto, e, mergulhado em seus pensamentos, esqueceu-se assim do tempo que passava. Por fim, a noite veio, e um vento frio soprou sobre o solítário. Então, Zaratustra levantou-se e disse para si mesmo: "Em verdade, Zaratustra fez hoje uma bela pesca!  Não pegou um homem, mas assim mesmo um cadáver. Angustiante é a existência humana, e, até este ponto, desprovida de sentido: um bufão pode lhe ser fatal. Quero ensinar aos homens o sentido de seu ser: ou seja, o super-homem, raio da nuvem negra que é o homem. Mas ainda estou longe deles, e o sentido do que falo não lhes fala ainda aos sentidos. Para eles, os homens, ainda estou a meio caminho entre o louco e o cadáver. Sombria é a noite, sombrios são os caminhos de Zaratustra. Vem, companheiro rígido e frio! Vou le-

var-te ao lugar onde te sepultarei com minhas próprias mãos."

Após ter falado assim consigo, Zaratustra colocou o cadáver às costas e se pôs a caminho. Mal dera cem  passos, surgiu um homem que lhe veio falar junto ao ouvido. E - vejam só! - quem lhe falava assim era o  bufão da torre. "Vai-te embora daqui, ó Zaratustra", disse-lhe, "há gente demais aqui que te odeia. Odeiam-te os bons e os justos, chamam-te inimigo e  julgam que os desprezas; os fiéis da verdadeira fé também te odeiam, consideram-te um perigo para o  povo. Tua sorte foi terem rido de ti; e na verdade falaste como um bufão. Tua sorte foi teres te acum pliciado com esse cão morto; ao te rebaixares assim, te salvaste por hoje. Mas parte da cidade - senão amanhã saltarei sobre ti, eu que estarei vivo, sobre ti que estarás morto." Com estas palavras, o homem desapareceu; e Zaratustra prosseguiu seu caminho através das escuras ruelas.  À porta da cidade, encontrou-se com os coveiros que, aproximando-lhe do rosto seus archotes, reconheceram Zaratustra e se puseram a fazer pesados gracejos a seu respeito: "Lá vai Zaratustra arrastando o cão morto; ainda bem que Zaratustra se fez coveiro! Porque nossas mãos são limpas demais para essa carniça! Zaratustra quer disputar ao diabo a porção que lhe cabe? Pois que faça bom proveito, se regale no festim! Isso, se ó diabo não for melhor ladrão que Zaratustra, pois, do contrário,

acaba então por devorar os dois!" E, falando uns para os outros, escarneciam entre si. Zaratustra não disse palavra e seguiu seu caminho. Depois de caminhar por duas horas ao longo de pântanos e bosques, ouvindo o uivo esfaimado dos lobos, a fome   assaltou, por sua vez. Foi então que se deteve diante de uma casa solitária, onde brilhava um lume. "A fome me assalta como um bandido", disse Zaratustra. "Minha fome assalta-me no meio dos bosques e dOs pântanos e no seio da noite profunda. Minha fome tem caprichos estranhos. Não raro ela só me vem depois das refeições, e hoje, durante o dia inteiro, não me apareceu: onde teria andado?" E enquanto assim falava, Zaratustra bateu à   porta da caSa. Apareceu um ancião, trazendo um lume, que lhe  perguntou: "Quem chama por mim e pelo meu mau sono?" "Um vivo e um morto", respondeu-lhe Zaratustra; "dá-me de comer e beber, pois disso não cuidei durante o dia. Quem nutre o faminto, conforta sua alma: eis a voz da sabedoria." O velho retirou-se para logo voltar, oferecendo a Zaratustra pão e vinho. "Estas são más paragens para os famintos", disse ele, "por isso moro aqui. Bichos e homens procuram por mim, o eremita. Mas convida teu companheiro também a beber e comer, ele está mais cansado do que tu." Zaratustra respondeu: "Meu com panheiro é um morto, vai ser difícil convencê-Io disso." "Tanto se me dá", disse o velho, resmungando, "quem bate à minha porta deve aceitar o que ofereço. Comei e passai bem!"

Depois disso, Zaratustra caminhou outras duas horas, guiando-se pelo curso e a luz das estrelas: pois estava habituado a caminhar à noite e gostava de olhar a face de tudo quanto donne. Mas quando des pontou a aurora, Zaratustra se encontrou numa floresta sombria, onde nenhuma passagem parecia haver. Então, vendo uma árvore que tinha um oco à altura de um homem, ali depositou o cadáver - pois queria mantê-Ia a salvo dos lobos - estendendo-se no musgo do chão. E logo adonneceu, o corpo fatigado, mas a alma tranqüila.

Por muito tempo esteve adonnecido Zaratustra, e os raios da aurora bem como os da manhã giraram-lhe sobre a face. Por fim seus olhos se abriram, e Zaratustra maravilhou-se com a floresta, com o silêncio, e maravilhou-se também consigo mesmo. Depois ergueu-se de um lance como um marinheiro que de súbito vê terra, e exultou: pois via agora uma verdade nova. E então falou assim consigo mesmo: "Fez-se uma luz em mim: preciso de companheiros, companheiros vivos - não de companheiros mortos ou cadáveres, que eu leve comigo aonde eu for. "Não, quero companheiros vivos, que me sigam  para onde eu for, porque querem seguir a si mesmos. "Fez-se uma luz em mim: Zaratustra não deve mais falar à multidão mas a seus companheiros! Zaratustra não se deve tomar pastor nem o cão do rebanho! "Seduzir e afastar muitos do rebanho - eis a meta a que vim. Multidão e rebanho, que tudo atroe contra

mim: Zaratustra quer que os pastores o chamem de  bandido. "Emprego a palavra pastores, mas eles próprios se designam como os bons e os justos. Emprego a palavra  pastores, mas eles próprios se designam como os fiéis da fé verdadeira. "Olha i, esses bons e esses justos! Que mais odeiam? Aquele que destrói suas tábuas de valores, o demolidor, o criminoso - mas este é que é um criador . "Olhai, esses crentes de todas as crenças! Que mais odeiam? Aquele que destrói suas tábuas de valores, o demolidor, o criminoso - mas esse é que é um criador. "O criador procura companheiros para si e não cadáveres, e bem assim nem rebanhos e nem crentes. O criador procura companheiros de criação, para que inscrevam novos valores sobre novas tábuas. "O criador procura companheiros, companheiros de colheita: porque nele tudo está amadurecido para a ceifa. Mas faltam-lhe as cem foices: por isso que, na sua cólera, sai arrancando espigas. "Os companheiros que o criador procura são os que sabem afiar as foices. Serão chamados de destruidores e desdenhosos do Bem e do Mal. Mas na verdade são os ceifadores, aqueles que celebram a festa. "Companheiros de criação é o que busca Zaratustra, companheiros de ceifa e de festa procura Zaratustra: nada tem a ver com rebanhos, pastores e cadáveres! "E tu, meu primeiro comparsa, repousa em paz! Estás bem sepulto nesse oco de árvore, posto a salvo dos lobos.

"Mas devo deixar-te, já se foi o tempo. Entre uma aurora e outra, uma nova verdade despontou em mim. "Não devo ser nem pastor nem coveiro. Não quero nunca mais falar às multidões; pela última vez falei a um morto. "O criador, o ceifeiro, o que celebra a festa, a estes quero unir-me: a eles quero revelar o arco-íris e todos os graus do super-homem. "Aos solitários vou erguer meu canto e mesmo aos casais que vivem em solidão. Quem ainda tiver ouvidos  para o inaudito, a esse quero inundar o coração com a minha felicidade. "Quero atingir a minha meta, seguir o meu caminho; saltarei por cima dos hesitantes e dos descuidados. E que meu passo seja o seu declínio!"

Zaratustra dizia essas palavras em seu coração, enquanto o sol estava a pino: então lançou um olhar  interrogador para os altos cimos - pois ouvia acima de sua cabeça o grito agudo de uma ave. Eis que uma águia atravessa os céus, descrevendo grandes círculos, a transportar uma serpente, não como presa, mas amiga, pois esta lhe pendia no pescoço. "São os meus animais!", dizia Zaratustra, regozi jando-se de todo o coração. "O animal mais altivo sob o sol e o animal mais sagaz sob o sol; vieram saber notícias. "Querem saber se Zaratustra continua vivo. Na verdade, será que ainda estou vivo?

"Encontrei mais perigos entre os homens que entre os animais pois perigosos são os caminhos que trilha Zaratustra. Possam meus animais orientar-me." A estas palavras, lembrou-se do que lhe havia dito o santo na floresta e suspirou, dizendo para si: "Quem me dera ser mais sagaz! Quem me dera ser  essencialmente sagaz, como a serpente! "Mas estou querendo o impossível, porque peço à minha altivez que acompanhe sempre a minha sagacidade! "E, se algum dia, minha sagacidade me abandonar ah! como ela gosta de voar! - possa minha altivez seguir  então o vôo de minha loucura!" E assim começou o declínio de Zaratustra.

Um novo profeta

Por que iria um pensador alemão do século XIX falarnos pela boca de um profeta iraniano do século VII antes de nossa era, e pôr-nos à sua escuta? Essa primeira pergunta, o próprio Nietzsche, sur preendendo-se com o fato de que ninguém a fizera, a suscitará   (Ecce Romo,   t. VIII, voI. I). Éque, mais que simplesmente pertinente, essa questão é essencial, e a resposta de Nietzsche vai situar-nos no próprio centro de todo o seu pensamento, e, pois, no próprio centro das teses do  Zaratustra. Percebemos logo alguma ironia na explicação fomecida: Nietzsche diz ter escolhido Zaratustra precisamente para que seu personagem diga "exatamente o contrário"   (ibid.)   do que disse o Zaratustra histórico. Assim, Nietzsche escolheu Zaratustra*2 para opô-Io a Zaratustra*l. E, de fato, ele os opõe radicalmente: de um lado, o  papel do Zaratustra histórico consistiu, com efeito, na invenção de um dualismo de inspiração moral, dualismo

que explicava todas as coisas pela ação de dois princí pios em luta, dualismo moral para o qual um desses  princípios é o Bem e o outro o Mal. Essa invenção, Zaratustra a fez - segundo Nietzsche - extrapolando nossa experiência moral humana do bem e do mal, dando-lhe uma dimensão teológica (há um Deus Bem e um Deus Mal) e cosmológica (no universo, tudo' se explica pela ação de um ou outro desses dois princípios, e por sua rivalidade); "a transposição, em metafísica, da moral (...), tal é a sua obra..:'   (ibid.).  Ora, por outro lado, precisamente, é esse dualismo e esse momlismo que Zaratustra, o personagem literário, vai rejeitar, pois  precisamente é a recusa desse dualismo e·desse moralismo que constitui um ponto essencial do pensamento de Nietzsche. Um ponto essencial, dissemos, e não O ponto essencial, pois esse ponto já é conseqüência de um outro, mais essencial ainda. O ponto mais profundo do pensamento de Nietzsche não poderia ser uma recusa. Nietzsche tem uma razão positiva para recusar(l). Mas se é o próprio Zaratustra que vem contradizer sua  primeira mensagem, não é apenas por ironia - a ironia de  Nietzsche nunca é gratuita - é porque o Zaratustra histórico foi - exatamente como Nietzsche - lúcido e sincero, e  porque essa lucidez e essa sinceridade o teriam logicamente levado a essa transformação operada pelo Zaratustra nietzschiano.  Nietzsche encontra a prova dessa lucidez no fato de que Zaratustra foi "o primeiro a ver"   (ibid.)  o fundamento do real na oposição entre o bem e o mal. Entenda-se bem que existem aqui duas idéias distintas: o dualismo e a lucidez sobre a base desse dualismo.

Por um lado, o que Nietzsche observa é que Zaratustra foi o primeiro a pregar um dualismo e um moralismo que, recebidos depois, como herança, da Bíblia e da Grécia, impregnarão toda a nossa cultura. Seríamos talvez tentados a fazer aqui algumas objeções: nem a Bíblia nem a fLiosofiagrega são tão deliberadamente dualistas quanto o zoroastrismo. Éverdade que, do ponto de vista judaico-cristão, só há um princí pio: Deus, princípio bom. O maniqueísmo que distingue dois princípios (um bom e um mau) é uma heresia. Mas,  justamente, essa heresia é uma tentação constante, tentação denunciada ainda mais vigorosamente por ser  mais forte. Além disso, mesmo segundo a ortodoxia  judaico-cristã, se o demônio não é um princípio, não deixa de ser muito poderoso. Quanto à filosofia grega, se a oposição platônica, simultaneamente metafísica e moral, entre o mundo sensível e o mundo das Idéias, certamente nem sempre é admitida, concedamos entretanto a Nietzsche que ela ocupa ali um lugar central e fundamental. Mas, por outro lado, o que interessa a Nietzsche é  principalmente o fato de que Zaratustra foi o primeiro a VER  esse dualismo moralista, o primeiro a descobrir  claramente o fundamento moral de sua metafísica, a operar deliberadamente essa transposição do ético para o cósmico, a discernir a "genealogia" moral da sua concepção do mundo. Ora, em linguagem nietzschiana, esse discernimento é sinceridade: "O que eu chamo mentira: recusar-se a ver algo que se vê"  (O Anticristo, § 55, t. VIll, vol. I). Ser lúcido é, pois, ser sincero em relação a si mesmo,

ter a coragem de suas opiniões, a coragem da verdade; é ter, antes da coragem de dizê-Ias, a coragem de pensá-Ias, de   V~-LAS. É nesse sentido que Zaratustra foi "mais sincero que nenhum outro pensador" (Ecce Homo,   t. VIU, vol. I). E é por isso que Nietzsche o escolheu; em razão dessa sinceridade-lucidez que caracteriza o próprio Nietzsche, dessa sinceridade-lucidez que permitiu ao Zaratustra real ver o fundamento moral de sua metafísica e que, agora, o obriga logicamente a tornar-se o exato contrário do que ele era: o Zaratustra nietzschiano.

Pode-se, a partir desse ponto central, apreender todo o encadeamento dos conceitos no  Prólogo de Zaratustra, onde NIEfZSCHE INTRODUZIU UM A UM, EM TORNO DA IDÉIA CENTRAL DE SUPER-HOMEM, TODOS OS TEMAS QUE SERÃO DESENVOLVIDOS PELA SEQO~NCIA DA OBRA(2). §

1 - Zaratustra nos é logo apresentado

ANUNCIADOR

como

O

DE UMA COMPLlIT A TRANSFORMAÇÃO

cultural, o profeta de uma nova civilização, nem grega, nem cristã, radicalmente nova. §  2 - É que a lucidez de Zaratustra lhe faz ver um novo estado de fato:  A MORTE DE DEUS·2;   ninguém mais, em nossa civilização, salvo alguns homens·   atrasados, acredita mais em Deus, nem mesmo na existência de um mundo transcendente.

§3

- A mesma lucidez vai levá-Io a tirar as conclusões desse fato, a destruir todas as ilusões que poderiam subsistir, a perfazer a destruição da antiga cultura que repousava inteiramente sobre a idéia de Deus, a recusar  tanto o mundo transcendente da metafísica dualista, quanto a moral de que se nutriu essa metafísica, e à qual, em retribuição, a moral serviu de fundamento. Zaratustra vai, pois, por sua vez, trabalhar na  DERRUBADA DOS ANTIGOS VALaRES.

Mas a intenção profunda de Nietzsche é positiva, criadora; Nietzsche só rejeita e destrói para construir . É o homem da moral tradicional, justamente por esse motivo que Nietzsche derruba a sua moral; Nietzsche só destrói uma moral para substituí-Ia por uma outra, e as exigências do imoralismo que ele defende são o contrário das facilidades da imoralidade. Assim, se Zaratustra se alegra com a morte de Deus, é que esse fato toma possíveis novas construções, é que esse fato histórico constitui um novo princípio meta físico, e, a partir  daí, tudo, e até a esperança mais louca, é permitido, e  poderá nascer uma nova moral, tão superior à moral tradicional, que se pode dizê-Ia super-humana, e poderá nascer, animado de um justo desprezo pelo homem e sua moral, o  SUPER-HOMEM: § 4 - É esse   SUPER-HOMEM   que, levado pela nova virtude de uma nova moral, A VONTADE DE POT~NCIA~, vai proceder à segunda etapa da transmutação· dos valores, isto é, à  CRIAÇÃO DE NOVOS VALaRES,   valores novos pelo fato de que nenhum ser transcendente estará  presente para impô-Ios. § 5 - Entretanto, mais desprezíveis ainda que os homens, os   ÚLTIMOS HOMENS· não compreendem o

"tudo é permitido" como Zaratustra: para eles, isso não significa "o homem é capaz de tudo", significa "o homem tem todos os direitos"; não significa "grandes coisas são possíveis" , significa' 'todas as pequenas coisas são autorizadas". Compreendem que, se Deus está morto, não existem mais moral, nem dever, nem regra de vida; confundem o imoralismo com a imoralidade. Condição necessária de uma nova moral, e, mais geralmente, de uma nova cultura, a morte de Deus não é, pois, a sua condição suficiente; e, se não for animada  por uma nova exigência, pela virtude da vontade de  potência'2, se for animada pela vontade de fraqueza ou de nada, pode, ao contrário, conduzir à extrema decadência, muito mais baixa ainda que a antiga moral, ao  NIILISMO'2 mais extremo. Eis o que a sua lucidez revela a Zaratustra, e o que a sua sinceridade o obriga a proclamar: a morte de Deus é ambivalente; ela  permite imensas esperanças, mas também comporta um terrível risco. § 6 - Não existe nenhuma solução intermediária, nenhuma escapatória. Impossível tentar - como os HOMENSSUPERIORES'- fazer como se Deus ainda existisse. Deus está morto, total e definitivamente; é preciso tomar plena e lúcida consciência desse fato. § 7 - Esta lição: com a morte de Deus, pode-se tudo ganhar ou tudo perder, a multidão não quer compreendê-Ia, e Zaratustra experimenta um FRACASSO. § 8 - Entretanto, não há nada a lamentar, e quando se tiver completado o quadro-que, lucidamente, Nietzsche estabelece das VIRTUDESHUMANAS,das virtudes

daqueles que ainda crêem em Deus, quando se tiver  VISTOem que nível elas caíram, se poderá compreender  melhor o seu desprezo e o seu apelo para substituí-Ias, apesar do risco de cair mais baixo ainda. § 9 - Assim, Zaratustra não se desespera com o fracasso, pois sabe que, se a multidão é incapaz de apreender sua lição, alguns indivíduos de elite saberão compreendê-Ia, e fazer-se, com ele, CRIADORES' do super-homem. § 10 - O Prólogo termina com o mais alto pensamento de Zaratustra, aquele de que só os criadores com preenderão e só os super-homens saberão assumir; esse  pensamento nos deixa entrever o que poderia ser uma nova visão do mundo, não-dualista, uma nová metafísica, cujo objeto não se situaria "além"   (meta)   do concreto físico, mas seria esse mundo físico, ao qual a doutrina do ETERNO RETORNO' dá toda a densidade ontológica que a sua temporalidade pareceria lhe retirar. Entrevê-se, ao mesmo tempo, em que seria sobre-humana uma ação desenvolvida em tal mundo.

Resta, antes de abordar o próprio texto, examinar ainda um  ponto, o do estilo do Zaratustra, o da forma inseparável como sempre, e mais ainda que sempre - do fundo. Se esse estilo, ao mesmo tempo profético e poético, é bastante incomum, é porque Nietzsche é incomum. Mas com isso não se deve supor simplesmente que ele

se abandone a um temperamento pessoal de poeta entusiasta: nada se ganha, querendo explicar Nietzsche por  seu temperamento; todas as suas razões são muito mais  profundas, filosóficas; é por razões filosóficas que  Nietzsche é original; ou, pelo menos, sua originalidade tem sentido filosófico. Ver-se-á, de fato, que, pela transmutação dos valores, Nietzsche empreende uma contestação radical de toda a nossa cultura, com o ambicioso projeto de substituí-Ia por uma outra tão diferente e superior que se pode dizê-Ia super-humana. É a este duplo empreendimento que está ligado o estilo do  Zaratustra, e é assim que se pode explicá-Io: Por um lado, nossa cultura se caracteriza por sua fé na razão, sua confiança na ordem das coisas e do pensamento; ela se pretende essencialmente "racionalista": é esse racionalismo que começa com o método de Sócrates. Sócrates, precisamente, inaugura essa cultura. É esse mesmo racionalismo que, durante dois milênios, imobiliza seus esquemas de pensamento na lógica de Aristóteles. É ainda esseracionalismo que os teólogos introduzem no religioso - antes que uma revolução  preste culto à deusa Razão. É ele que se renova e inventa a ciência, com o método cartesiano; é ele ainda que se encontra, outra vez renovado, na dialética de Hegel e seu famoso "o que é racional é real, e o que é real é racional" (3). Contestar essa cultura será, pois, contestar a confiança nessa razão, será ao menos contestar que sua competência seja sempre, e em tudo, suficiente. Ver-se-á, por outro lado, que as características essenciais da nova cultura, à qual aspira Nietzsche, são a

criação, a espontaneidade, a' arte, das quais o jogo, a atividade infantil ou a dança são as melhores imagens, e Dioniso', deus da embriaguez e da dança, e não mais Sócrates, seria o símbolo. O que pretende Nietzsche é uma cultura na qual o dionisíaco, sufocado desde a Grécia clássica pelo apolíneo e pelo socratismo, reencontraria o seu justo lugar (sobre esses termos e esses temas, cf . O  nascimento da tragédia, t.  I,voI. I). É por isso que, às "longas cadeias de razões", que tanto seduziam Descartes, Nietzsche prefere a poesia, o  provérbio, o aforismo, a alegoria, o canto ditirâmbico, a metáfora, a máxima, a paródia, toda essa profusão que constitui a forma excepcional do Zaratustra.   Existem nele um pensamento e uma expressão que procedem dessa outra cultura anunciada e não são formados pelos moldes de nossa cultura racionalista. O comentarista não ignora que infringe essa exigência fundamental ao traduzir o pensamento de Nietzsche em termos prosaicos e em processos racionais. Mas, entre os maiores pensadores, a inspiração poética em nada prejudica o rigor do pensamento, que ela realça, ao contrário. Escutemos, a esse respeito, Paul Valéry um ourives em matéria de aliança entre rigor e poesia quando observa, em Nietzsche, , 'não sei que íntima aliança do lírico e do analítico, que ninguém ainda tinha tão deliberada mente consumado (...) No jogo dessa ideologia alimentada pela música, eu muito apreciava a mistura e o uso muito feliz de noções e de dados de origem erudita" (4). Disso resulta que o essencial do  pensamento de Nietzsche escaparia a quem visse no  Zaratustra   apenas um magnífico poema, cujo leitor salvo exceção extremamente improvável de um visio-

nário em perfeita afinidade com Nietzsche - é obrigado a uma lenta decifração. É essa a desculpa do comentarista, que quer ajudar o leitor nessa decifração, sem  prejudicar a emoção poética, mas, ao contrário, para favorecê-Ia, já que, para o próprio Nietzsche, ela só vale  por estar a serviço de uma verdade. Éa mesma aliança de rigor e poesia que se encontra na combinação de lenta reflexão e brutal inspiração que  preside à composição do Zaratustra.  Por um lado, cada uma das quatro partes foi escrita com uma incrível rapidez, em uma dezena de dias, e Nietzsche narra a formidável inspiração de que gozava em Rapallo, SilsMaria e Nice, durante esses períodos de exaltação: "Ouve-se, não se procura; (...) um pensamento vos ilumina como um raio"   (Ecce Homo, t. VIII, voI. 1)(5). Por outro lado, vários meses, o tempo da maturação, separam as redações das diferentes partes. A primeira foi escrita no começo de 1883, a segunda durante o verão do mesmo ano, a terceira no começo de 1884, e a quarta somente no início de 1885.

2. Uma transformação completa. O anúncio de uma nova cultura (Prólogo, § 1)

a) Uma crítica radical de toda a nossa tradição cultural Aos trinta anos, Jesus Cristo desceu às margens do Jordão e começou sua vida pública(6); no exato oposto,

"quando tinha trinta anos, Zaratustra deixou sua terra natal, e o lago de sua terra natal, efoi para as montanhas. Lá, durante dez anos, cultivou seu espírito e a solidão". Para Platão, o sábio, aquele que contempla o sol símbolo do Bem(7), fonte suprema de todos os conhecimentos e de todas as realidades - é aquele que escapou da caverna, onde o comum dos mortais vive na ignorância(8); no exato oposto, Zaratustra, aquele que  "pôs-se diante do sol e lhefalou assim",  vive numa "caverna", onde o sol vem iluminá-lo. Assim os adversários são logo claramente designados, e estamos no nível mais alto: Jesus Cristo, Platão. Esse nível mais alto é, ao mesmo tempo, o mais radical: Jerusalém, Atenas, são, em sua raiz, toda a cultura ocidental (sua religião, sua filosofia, sua arte, sua ciência, sua moral), indissoluvelmente grega e judaico-cristã, cujo desuso Zaratustra constata e cuja substituição preconiza. Anti-Jesus Cristo, anti-Platão,  Nietzsche pode também ser caracterizado como o antiHegel, pois Hegel apresenta seu pensamento como o acabamento da cultura que ele engloba e coroa, enquanto Nietzsche, ao contrário, recusa essa cultura em sua  própria base: segundo ele, e por meio dele, é toda a civilização que desmorona, e deve recomeçar de zero  para construir outra coisa. Mas, justamente por ser radical, o procedimento de Zaratustra não parte de uma crítica de Platão e de Jesus Cristo; seu ponto de partida está aquém dessa crítica, e seu pensamento se enraíza e germina de outra forma.

Segundo PIa tão, existe um outro mundo, mundo das Idéias, das coisas em si, em relação ao qual este mundo sensível não tem mais consistência que uma sombra; e o conhecimento, o verdadeiro saber, ultrapassa a sim ples opinião, justamente porque não se refere ao mundo sensível, mas relaciona-se com o mundo inteligível, do qual o sensível é apenas um vago reflexo(9). Ora, o pensamento de Zaratustra se situa além e tem seu ponto de partida aquém dessas oposições sensível/inteligível, opinião/saber. Ele recusa a oposição entre além e aquém, inteligível e sensível, ele os reconcilia. O empirismo que se liga aos fatos, o realismo que se cola ao real, como "uma serpente"',   animal deste mundo, que rasteja no solo, e o racionalismo, as grandes idéias, o idealismo, os sobrevôos da  "águia"',   animal do alto, são ambas, ao mesmo tempo, familiares de Zaratustra. Logo avaliaremos melhor a importância desse primeiro tema, e perceberemos que, através de Platão, é toda a nossa cultura - platonizante - que é visada por   Nietzsche. Mas ele também recusa o Deus cristão, essencialmente moralizador e culpabilizante. A reconciliação da serpente e da águia é também, e principalmente, a reconciliação do diabo (a serpente do Gênese)   e do bom Deus (Júpiter e sua águia). DDeus cristão, escarnecido  por nosso pecado original, que vem, em pessoa, resgatar  essa falta com sua dor, aumentando assim o nosso remorso, o nosso sentimento de culpa e de indignidade, envenenando nossas felicidades terrestres, sempre imerecidas e vis em face do que ele propõe, dá lugar ao astro

que encontra a sua felicidade nos homens:   "Grande

astro! Qual seria tua felicidade sem aqueles a quem iluminas?' • O profeta do remorso, "lumen de lumine"(IO), dá lugar a Zaratustra, profeta da felicidade, que desce à terra, como o sol em seu declínio, para que   escorra a

água dourada capaz de levar a toda a pane o reflexo de tuafruição!"(ll); assim, do mesmo modo que Deus se encarnava em Jesus Cristo para levar a sua mensagem   ("Homo factus est")(12), "Zaratustra quer (...)

ser homem". Precisemos entretanto que, antes que como "o Anticristo", Zaratustra se mostra como o anti-São João Batista (Nietzsche fará quase explicitamente a comparação, cf.   Assim falou Zaratustra,   quarta parte, "O sinal"). De fato, mesmo apresentando várias de suas características, Zaratustra não é o próprio super-homem, mas vem anunciá-lo (cf. Prólogo, §   3), vem, segundo a fórmula do livro de Isaías(13), retomada a  propósito de João Batista nos três evangelhos sinóticos, "preparar suas vias e aplainar seus caminhos". Poderia se julgar contestável a visão que Nietzsche tem do Deus cristão e da missão redentora de Jesus Cristo, visão certamente influenciada por um luteranismo particularmente severo, mas nos parece essencial notar que, aquilo que ele opõe a essa visão não é, por  isso, menos profundo ou menos interessante. Aliás, a recusa de Deus não é a recusa apenas do Deus judaico-cristão; é também a recusa dos deuses antigos, sob todas as suas formas. Efetivamente, é, por um lado, a recusa de deuses que  passariam, longe, no Olimpo, indiferentes a tudo o que

diz respeito a este mundo, uma eternidade de felicidade.  Niet71>chenão é um novo Epicuro, não é assim que ele quer nos libertar do temor aos deuses; a morte destes não deve sua retirada para o além. Ao contrário, o sol de Zaratustra encontra a sua felicidade nos homens que ilumina. "A natureza te parece, livre, isenta de senhores orgulhosos, fazer tudo por si mesma (...), sem a partici pação dos deuses ( ...), que levam uma vida sem pertur bação", felicitava-se o epicurista Lucrécio(14). É a ele que Niet71>cheresponde quando Zaratustra se alegra: "Grande astro! Qual seria tuafelicidade sem aqueles a quem iluminas?"  Mas, se a Antigüidade prefere ver os deuses bem longe, é porque, quando estes se ocupam dos homens, é  para invejá-Ios; ciumentos, punem o homem por causa de suas ambições e de seus êxitos, coisas que, de direito, lhes são reservadas, e que o homem não pode ter sem cometer o pecado - mortal - da  hybris: "Olha as casas mais altas, e também as árvores: sobre elas desce o raio,  pois o céu sempre rebaixa o que ultrapassa a medida (...), pois só a si mesmo permite o orgulho ."(15) É por  isso que Zeus pune Prometeu, que, oferecendo o fogo aos homens, deu-Ihes um poder excessivo. Diante desses deuses, o sábio antigo é  aquele que,  prudente, conserva-se modesto, e que, para viver feliz, vive escondido (dos deuses): "Terás a sabedoria de reduzir tuas velas, excessivamente infladas por um vento favorável."( 16) Mas, Zaratustra, novo doador do fogo, nada t eme: o sol ao qual ele se dirige pode  "contemplar sem mágoa uma ventura tamanha!". Assim corno não aceita o

remorso, Niet71>chetambém não aceita a inibição, a mediocridade prudente, o ""nada de ruidos, nada de vagas!" ou o temeroso "contanto que dure" .

b) Panorama da nova cultura

Mas a fmalidade essencial já está determinada . Partindo de novas bases, de novas raizes, Zaratustra anuncia a instauração de uma nova cultura. Nossa cultura judaico-grega, sua moral, sua ciência, sua arte, têm como resultado essencial instaurar um mundo de valores, de ideais - o bem, o verdadeiro, o belo, todos mais ou menos confundidos com o sagrado - e julgar todas as coisas por referência e esses valores. Retomando essa cultura em sua raiz, Niet71>chepretende derrubar toda essa hierarquia e substituí-Ia por outra, com uma raiz diferente. Éessa derrubada e essa reconstrução que Zaratustra vem anunciar:  "Quero oferecer (...) para que os sábios (...) de   lIOVO  se rejubilem de sua loucura, e os pobres venham de   lIOVO  a amar sua riqueza.'"  Assim, a sabedoria, a felicidade, serão loucura. Estamos muito além das sabedorias racionais, tristes e mesquinhas, longe da resignação do estóico e do prazer  avaramente calculado do epicurista. Assim, a pobreza será riqueza e felicidade . Estamos muito além dos valores econômicos, materiais; a crítica nietzschiana dos valores utilitários do seu século - e do nosso - será feroz (Prólogo, § 5). Mas também estamos muito longe do Sermão da Montanha, que promete ao

 pobre o reino dos céus( 17); é outra coisa que promete  Nietzsche, que sempre suspeita aqueles que pregam um outro mundo de querer denegrir o nosso. E essa transmutação é a restauração de uma ordem antiga:   "que os sábios (... )DE NOVO ( ••.) e os pobres DE NOVO"; a derrubada de todos os valores é uma correção. Zaratustra vem apagar um pecado original de nossa cultura, que inverteu os valores, vem restituir ao homem uma ordem natural.

Zaratustra é um verdadeiro menino, não vem gravemente, adulto antes da idade, ocupar-se dos assuntos de seu  pai(18); menino depois da idade, brinca, é "um dançar ; n o" . O que Zaratustra prefigura aqui é o super-homem que ele vai anunciar: essa criança(19) - sem passado, imprevisível, despreocupada -, esse dançarino - criador  espontâneo de gestos harmoniosos -, é o criador de novos valores, o criador de uma nova cultura, nem socrática, nem cristã. A luz que Zaratustra quer difundir é o segredo que ele guardou durante dez anos, o fogo que ele deixou arder sob as cinzas, no alto da montanha, e com o qual ele quer agora abrasar o mundo dos homens;'a notícia que o alegra assim é que, como proclamará no fim do capítulo, "Deus está morto."  Por que essa notícia é tão rejubilante?

"Zaratustra está mudado, Zaratustrafez-se criança."  Aqui, ainda, é em relação a Jesus Cristo que se defme o novo profeta, pois há, evidentemente, uma comparação com a encamação divina no menino Jesus. É  porque também ele faz essa comparação, que o eremita· cristão encontrado por Zaratustra, que se lembra da crucificação de seu Mestre, surpreende-se com essa descida à terra, e previne Zaratustra: •.Pobre de ti, queres acos-

tar? Queres de novo, infeliz, arrastar teu próprio corpo?"  Mas Nietzsche só compara Zaratustra a Jesus para melhor opô-los. Jesus é triste, seu olhar é aflito, pois o homem é mau e não merece o amor que ele lhe dá gratuitamente. Quanto a Zaratustra, ao contrário,   "Seu olhar  é   límpido, e sua boca não encerra mágoas";

b) A morte de Deus, destruição do dualismo A morte de Deus anunciada por Zaratustra não é, evidentemente, a crucificação de Jesus Cristo, na qual  pensa o eremita; e, de um certo modo, o "Deus está morto" se opõe ao "Jesus ressuscitou" (Morte de Deus·I). A morte de Deus·2 é, antes de mais nada, esse fato, que Nietzsche constata: na civilização do século XIX, depois do século dos filósofos, que pregavam as "Luzes" contra o obscurantismo e a tolerância contra o fanatismo, depois da Revolução Francesa, que retirou o

 poder político ao soberano de direito divino, até o século da ciência positiva, da eficiência industrial e das revoluções políticas, o lugar de Deus fez-se cada vez menor, e, pouco a pouco, Deus desapareceu. De modo geral, a morte de Deus é, pois, e em primeiro lugar, um fato; e esse fato, resta ao filósofo interpretá-lo. Restar-lhe-á, depois, tirar as conseqüências previsíveis desse fato, pregar aquelas que são desejáveis (Prólogo, § 3 e § 4), e denunciar as que se deve temer  (Prólogo, § 5 e § 6). Pode-se imediatamente interpretar a morte de Deus como o DESAPARECIMENTODA NoçAo DE "ALÉM" DO CAMPO DE NOSSA CULTURA;ela é, primeiramente, a morte do além, a supressão da crença em um outro mundo. Ora, essa crença em um outro mundo, transcendente ao nosso, esse dualismo, constitui o traço essencial e fundamental de nossa cultura. É a oposição entre este mundo e o além, que cada um traduz em sua linguagem, o religioso falando do sagrado e do profano, de existência terrestre e de vida sobrenatural, o filósofo falando do sensível e da Idéia, do fenômeno e do númeno, do aparecer e do Ser, o psicólogo, seguido pelo moralista, opondo a alma e o corpo, o cientista opondo o fato bruto à lei matemática que o explica. Toda a nossa cultura se resume assim nessa desconfiança em relação a tudo aquilo que é imediato, só sendo considerado como real e digno de atenção o que está por trás, o mediato. O sábio é então aquele que não se deixa iludir; ser culto é saber desconfiar, como se deve, daquilo que é dado; é afirmar, não sem algum

desprezo por quem não o vê (esse é o sentido da ironia socrática), que há por trás, além, algo mais fundamental. E cada um em seu domínio de competência, padre, filósofo, cientista, trata de explicar o melhor que pode esse além. Poderíamos achar um pouco apressado esse amálgama de conceitos vindos de horizontes diversos, se sua aproximação fosse superficial. Mas é no nível radical e precisamente não superficial - da inspiração profunda, que Nietzsche descobre ali um querer comum, uma intenção comum, de depreciação do aqui e de valorização de um alhures, que se pode caracterizar como um  platonismo, platonismo um pouco caricatural: a visão nietzschiana de um pensamento ocidental sempre platonizante, nesse sentido amplo, é talvez tão contestável quanto sua visão do cristianismo. Mas, de qualquer  modo, aqui também, essa visão perde um pouco de seu alcance - e quem o lamentaria? - mas nada perde de sua  profundidade, nem, pois, de seu interesse(20). Em outros termos, toda a nossa cultura é, pois, para  Nietzsche, fundamentalmente negativa, negadora, NIILISTA*I;para ela este mundo nada vale, tudo o que nele se percebe é ilusão, tudo o que é humano é maculado  pelo pecado; Jesus tem razão de ser angustiado. Zaratustra é, ao contrário, aquele que experimenta "uma ventura tamanha" (Prólogo, § 1), aquele que pode dizer  ••amo os   homens",   aquele que prega uma cultura positiva e afirmativa. E, quando tivermos descoberto a que  ponto essa oposição entre afmnação* e negação* é fundamental, compreenderemos melhor por que a morte de Deus*5 alegra assim Zaratustra: ela é, a seus olhos, o

desmoronamento de um modo de ser e de pensar negativo; desmoronamento que constitui a primeira etapa do advento de um modo de ser e de pensar afirmativo. Desse ponto de vista, Nietzsche faz mais do que constatar a morte de Deus*2, e mais do que alegrar-se com ela; ele provoca a morte de Deus*5. Mais preçisamente, ao menos para ele, e este é o sentido da mensagem de Zaratustra, é a substituição que produz o desmoronamento, é a nova metafísica nascente que derruba a antiga. De modo que, a bem dizer, não é porque Deus está morto que Zaratustra está alegre, é, antes, porque Zaratustra está alegre que Deus está morto; são essa alegria e esse pensamento afirmativo que, em sua ação criativa,  produzem a morte de Deus.

Ao mesmo tempo, os efeitos dessa alegria têm seu alcance moral. É que, como sabemos, o dualismo é também, e primeiramente, moral: de um lado, há o reino de Deus - que não é deste mundo - e, de outro lado, este mundo - cujo príncipe é o diabo. E, então, não é mais apenas este mundo, não é mais apenas o corpo humano que são assim desvalorizados, denegridos; é o próprio homem em sua integralidade, corpo e espírito, que é mau, culpado, maculado, originalmente pecador . É por  isso que o eremita, que mede o homem pela medida de Deus, pode dizer: "amo a Deus; e não aos homens.  Acho por demais imperfeito o ser humano".   Seu pró-

 prio amor a Deus o desviou dos homens, que não merecem o amor que se pode ter por eles: ele   "amava

demasiadamente os homens". Deve-se medir bem a gravidade dessa confissão do eremita; ele reconhece ter renunciado ao preceito do amor ao próximo pelo amor de Deus, que constitui o dever essencial segundo o ensinamento moral de Jesus Cristo(21). Assim, Nietzsche não somente opõe-se à moral cristã ideal, mas, além disso, constata que esta, na prática efetiva, caiu bem abaixo das exigências de seu fundador. Veremos, de fato, (Prólogo, §   8), que  Nietzsche inscreve essa recusa do amor ao próximo no interior de uma degradação mais geral da moral tradicional no homem. Assim, os homens são esmagados pelo peso dos valores, das coerções e das instituições situadas no outro mundo.   Ainda nesse ponto, Zaratustra se opõe radicalmente a Jesus; este último veio ajudar os homens a carregar esse peso, e o santo eremita sugere a Zaratustra que faça o mesmo: "Não lhes dês nada (0 0 ') É 

 preferível aliviá-los de alguma coisa que possas carregar com eles."    Mas Zaratustra recusa; ele não vem "redimir" os homens, partilhar seu fardo; vem suprimi-Ia, livrá-Ias do além; e é por isso que ele pode ironizar e responder ao eremita, que, certamente, não  pensava assim, mas, sem compreendê-Ia bem, aceita a  brincadeira: "Mas deixai-me partir depressa, antes que

vos tire alguma coisa!"  Mas, na realidade, a supressão do além é um dom, é a libertação do homem escravizado a esse além:  "Trago aos homens um presente";   e não se trata de uma mísera

esmola, Zaratustra é rico demais para isso: "Não sou bastante pobre"; trata-se de nada menos que de uma reabilitação, de uma volta ao próprio homem, de uma desalienação, de uma restituição ao homem de sua honra perdida. A porta está aberta para a segunda etapa da transmutação*: Deus está morto, é preciso situar em outro lugar os valores morais. E esse outro lugar é o próprio homem; Zaratustra tira-lhe um fardo, mas impõe-lhe um outro, ainda mais  pesado porque é um fardo digno de um super-homem.

o primeiro

discurso de Zaratustra

1. Do homem ao super-homem(l). A derrubada dos antigos valores, primeira etapa de sua transmutação (prólogo, § 3)

Mas suprimir o fardo do transcendente não é suprimir  todo dever. NietlSche não prega a facilidade, a displicência, que caracterizam o último homem; ele prega, ao contrário, .odever da superação, do avanço em direção ao super-homem: ••Eu vos proponho o super-homem. O homem é algo que deve ser superado." 

Essa idéia do super-homem é a idéia essencial do Prólogo, é o único dos conceitos fundamentais do pensamento de NietlSche que ali está explicitamente nomeado (os outros conceitos fundamentais: Niilismo, Vontade de Potência, Eterno Retomo, estão certamente  presentes, mas implícitos). Mais precisamente, é esse o tema central do primeiro discurso de Zaratustra, discurso central, fundamental, que compreende as partes 3,4 e 5 do Prólogo e constitui o prólogo propriamente dito, já que, terminando-o,

 Nietzsche afirma: "Com isso teve fim o primeiro discurso de Zaratustra, também chamado prólogo." O que designa esse termo? O que é o super-homem? O anúncio do super-homem é imediatamente seguido de uma alusão às teorias evolucionistas de Darwin:

"Até então, todos os seres imaginaram algo superior  , acima de si mesmos (...) Oque é osímio para o homem? (...) E é justamente isso que o homem deve ser para o super-homem."  Mas não se deveria tomar essa passagem ao pé da letra, e esse exemplo é particularmente representativo do uso que Nietzsche faz da ciência: não utiliza o evolucionismo como argumento, mas como comparação pedagógica, imagem. Assim, o super-homem não é uma nova espécie, engendrada pela seleção natural, que substituiria o homem atual, como a espécie   homo sapiens substituiu espécies anteriores de símios (contra uma tal interpretação, cf.  principalmente Fragments posthumes,   1888, t. XIV, p. 233; também  Ecce Homo,  t. VIII, vol. I, p. 278). O superhomem não pertence a uma nova raça(l). Mas existe nisso um imperativo: se o super-homem é o que o próprio homem poderia ser, é, ao mesmo tempo, o que o homem deve ser depois da morte de Deus:   "O homem é algo que  DEVE  ser superado." 

Mas, antes mesmo de dizer-nos de que modo é preciso compreender essa superação do homem por si mesmo,

 Nietzsche explica de que modo não   se deve compreendê-Ia. Antes de dizer-nos o que deve ser o super-homem,  Nietzsche nos diz o que ele não é de modo algum. Essa superação, não se deve, de modo algum, entendê-Ia como fazem a moral e a meta física tradicionais - como uma superação do corpo pela alma: o super-homem não é um puro espírito. De fato, tradicionalmente, a meta física opõe esses dois aspectos da nossa natureza: o homem é um ser  híbrido, que tem em si, como dizia Pascal, algo do anjo e da besta(2). Tradicionalmente, estabelece-se uma hierarquia entre esses dois aspectos da natureza humana, e, tradicionalmente, mostra-se o homem dividido entre essas duas partes de si mesmo. E, também nesse ponto, Atenas e Jerusalém estão perfeitamente de acordo. Por  um lado, a alma participa do divino, "quando se olha  para ela, e quando se reconhece tudo o que ela tem de divino, é assim que o homem poderá melhor conhecerse"(3). Dando-lhe essa alma, Deus pode dizer: "Façamos o homem à nossa imagem"(4). Por outro lado, o corpo, espaço do desejo e da tentação, é uma prisão, da qual a filosofia, e depois a morte, fazendo-nos escapar  a este mundo, nos libertam(5J:  Nietzsche reconhece a natureza compósita do homem e até alarga o leque pascaliano, desde o infra-animal até o ultra-angélico, tomando-se o homem' 'um ser  híbrido entre a planta e o espectro."    Mas, imediatamente, precisa que o novo ser, cujo advento prega, não deve abandonar um dos dois aspectos dessa natureza em  benefício do outro: "Porvelltura ordenei que vos tornásseis espectro ou planta?"    Nietzsche não vem, depois de tantos outros, convidar o homem a escolher 

entre duas naturezas. É porque, como já dissemos,  Nietzsche vê em tal divisão uma nova forma do dualismo da metafísica tradicional, que se prolonga nessa outra hierarquia igualmente difundida em nossa cultura.  Nietzsche não vem forçar o homem a destruir uma metade de sua natureza para fazer triunfar a outra; ele insiste para que ele desenvolva plenamente os dois aspectos de sua natureza. Se o super-homem não é o puro espírito desencarnado da metafísica tradicional, é ainda menos, como se  previa, o homem voltado para o além, desprezando este mundo, dessa mesma metafísica tradicional; ele é, ao contrário, aquele que recusa a Deus, que não crê no além, mas acredita apenas na terra: "O super-homem é  o sentido da terra (...) Outrora, a injúria a Deus era a maior das ofensas, mas Deus está morto, e com ele morreram seus detratores. O terrível, agora, é injuriar  a terra, pois seria dar mais valor às entranhas do insondável que ao sentido da terra!"  Em que tudo isso é super-humano? Antes de responder  (Prólogo § 4), Nietzsche vai aprofundar ainda a sua análise do nülismo. Vai assim revelar-nos a presença da vontade de negar subjacente à nossa cultura dualista e, ao mesmo tempo, mostrar-nos com que embuste, com que passe de mágica, essa vontade de negar conseguiu se impor. Para perceber a presença da vontade negativa, do niilismo, em toda a nossa cultura, basta fazer a pergunta - tipicamente nietzschiana - da genealogia: Qual é a origem dessa cultura dualista? Qual é sua genealogia? QUEM   pensou tais oposições? Quem é o homem que  pensa assim? Que   QUER    ele?

Seria tentador responder que o homem só rebaixa este mundo profano, sensível, terrestre, bruto, corporal,  para melhor exaltar o outro, sagrado, supra-sensível, ideal, matemático, imaterial, eterno. Mas Nietzsche, que julga a origem pelos resultados, percebe que é exatamente o inverso que é verdadeiro. Não se deprecia um universo para exaltar um outro, inventa-se um universo magnífico para melhor depreciar o primeiro. O que quer primeiramente o dualismo é denegrir, rebaixar, reduzir a nada; o dualismo é niilismo'l:   "Não acreditais nos que vosfalam de esperanças ultraterrenas! (...) São gente que despreza a vida, seres agonizantes, igualmente intoxicados (...) Outrora, a alma olhava o corpo com desprezo, e esse desprezo era o que havia de mais sublime. (...) Oh, mas essa alma era também magra, horrenda e  faminta , e a cmeldade era toda a sua volúpial"  Evidentemente, se é uma vontade de negar, de desacreditar, que Nietzsche discerne no fundamento da metafísica, e, mais geralmente, no fundamento da cultura do homem', será, inversamente, uma vontade de afIrmar, de valorizar, que caracterizará a nova cultura, a do super-homem.

Esse ponto, absolutamente capital, vai permitir-nos apreender mais profundamente o pensamento de  Nietzsche, aplicando-lhe, por sua vez, a questão da genealogia.

Até agora, apresentamos sua recusa do dualismo e do moralismo como ponto de partida de sua filosofia. Mas, antes de desenvolver os dois temas negativos da derrubada dos valores e da morte de Deus, o Prólogo começava pela veneração de um novo Deus. Com preendemos agora que Nietzsche não poderia partir de uma recusa, de uma negação, e assim podemos escavar, um pouco mais profundamente ainda, à procura das raizes dessa filosofia. Essa recusa do dualismo moralista, na verdade, não é um axioma imotivado, um  ponto de partida absoluto; tem a sua razão profunda e repousa sobre uma vontade positiva. A vontade  profunda de Nietzsche não poderia ser uma vontade de negar, de destruir, de recusar. Nietzsche não é fundamentalmente crítico nem está tomado de nenhum ressentimento. Se prega "o grande desprezo"  para com a nossa civilização e sua moral, é porque tem algo melhor a propor; não inventa outra para denegrir esta (querer negativo), mas, ao contrário, só secundariamente a denigre, em sua veneração pela outra, que ele chama e anuncia (querer positivo). Para  Nietzsche, é a vontade de afirmar, de dizer sim à vida, sim ao ser, é a vontade de criar e de criar-se a si mesmo que dá valor às coisas e aos atos, e, evidentemente, é essa vontade que é a primeira. É isso que André Gide já havia admiravelmente compreendido e admiravelmente dito: "Sim, Nietzsche demole; ele solapa, mas não como um desalentado, ele destrói ferozmente. Nobremente, gloriosamente, sobre-humanamente, como um conquistador novo viola coisas velhas. O seu fervor, ele o transmite a outros para

construir (...) Demolir, Nietzsche? Ora! Ele constrói ele constrói, digo-lhes! Ele constrói vorazmente"(6). Mas, precisamente a sua vontade positiva, a sua vontade de construir, encontra imediatamente em seu caminho, em sua marcha construtiva, o obstáculo de toda a nossa civilização dualista e moralista, completamente impregnada - como ele mostra - de uma vontade de negar, de macular, de rebaixar; e é por isso que sua primeira providência será a destruição dessa civilização. Mais exatamente, pois acontece que esse obstáculo está perdendo a sua importância, e acontece que a metafísica dualista está em regressão, a primeira providência de Nietzsche será, simplesmente, colaborar para o seu declínio. Assim, na ordem lógica dos conceitos, segundo a ordem das razões, segundo a ordem genealógica, A IDÉIA DE VONTADE DE AFIRMAÇÃO É A PRIMEIRA, EM RELAÇÃO A  IDÉIA DE DERRUBADA DOS VALORES E A   IDÉIA DE MORTE DE DEUS - é

daquela que derivam estas: "Os que desprezam com intensidade (...) sabem venerar intensamente" (Prólogo, § 4). Encontra-se o mesmo movimento do negativo e do afirmativo na sucessão das obras de Nietzsche: as grandes obras críticas, negativas, pois,  (Humano demasiado humano, Aurora, A gaia ciência,   I a V) são cronologicamente anteriores ao  Zaratustra, obra afirmativa do super-homem e do eterno retorno; mas, logicamente, o essencial é o positivo, só a afirmação do super-homem e do eterno retorno dá todo o seu sentido à crítica que  Nietzsche retomará posteriormente (Além do bem e do mal, Genealogia da moral, O Anticristo).   Compreende-

se que, conseqüentemente, não se poderia, em caso algum, aderir a uma certa opinião muito divulgada e formulada, por exemplo, por Eugen Fink, segundo a qual "esse método de Nietzsche dá margem a extrapolações: também poderia ser aplicado ao próprio Nietzsche. Teríamos o mesmo direito de perguntar o que significa o fato de que um homem só veja espírito de vingança na moral do amor ao próximo, só veja neurose na veneração de Deus. Uma tal psicologia das profundezas não é, ela própria, a expressão de uma vida que está morrendo, de uma vida cega para o valor?" (7). Toda filosofia de Nietzsche desmente essa leitura; o  profeta do super-homem certamente não exprime' 'uma vida que está morrendo", o apelo à  criação de novos valores não se deve a "uma vida cega para o valor". Aliás, não é no amor ao próximo em si, nem na veneração de Deus em si, que Nietzsche vê "vingança e neurose"; é num certo amor e numa certa veneração.

d) ohomem e sua moral reativa; a hora do "grande desprezo"  Mas é preciso remontar ainda mais longe na genealogia. Resta descobrir como, com que mistificação, a vontade de negar conseguiu impor-se. De onde vem esse triunfo da difamação? Para compreender, deve-se examinar esse niilismo em seu aspecto moral, pois não esqueçamos que a me-

tafísica dualista, como Zaratustra - o Zaratustra" histórico - já sabia, é o resultado de uma moral. É,  pois, nessa moral que a investigação genealógica vai nos mostrar em ação essa vontade de negar, de macular, de desacreditar; e é assim que vamos compreender o seu modo de funcionamento, o seu êxito, e daí apreender melhor o que será, inversamente, o com portamento do super-homem. O que se percebe é uma cumplicidade da vontade negativa, niilista, com as forças reativas (ação e reação'). Que significa isso? Nietzsche, como veremos, será levado a considerar a totalidade do ser como uma profusão de forças que se opõem ou se conjugam, misturam-se e influenciam-se mutuamente. É   essa, se recusarmos, como ele, falar de um mundo mais essencial e estável, a descrição mais satisfatória que somos levados a dar desse único mundo existente (cf. em nosso CapoIII o § 5 b, pp.11l-1l2)(8). Ora, podemos distinguir duas espécies nessas forças que constituem o mundo: as que agem e as que reagem, que sofrem a ação; as forças ativas e as forças reativas (um corpo está em movimento, seja porque é motor, seja porque é movido, a planta cresce sob o efeito de sua ação própria, ela é cortada, sob o efeito da força ativa de quem a corta, sofrendo essa ação, dobrando-se passivamente, reagindo  à  ação de quem a corta; do mesmo modo, executo tal ou qual ato, seja porque o decidi livremente - ação seja porque obedeço - reação). O que Nietzsche perce be, e Zaratustra vai agora fazer-nos compreender, é que em toda a parte a vontade negativa faz triunfar as forças

reativas e calar as forças ativas; em toda a parte ela faz triunfar aquele que obedece e em toda a parte ela obriga o líder a calar-se. O que triunfa na moral do homem é a  pequenez, a parcimoniosa medida, a obediência, a reação. A primeira etapa no caminho que conduz ao superhomem será, pois, a etapa moral, onde se tomará consciência dessa total derrubada dos papéis; será, pois, a hora do  "grande desprezo"  para com a moral reativa. E é para esse grande desprezo que Zaratustra apela, examinando um a um, enumerando-os rigorosamente, todos os conceitos fundamentais da nossa moral tradicional(9). Em toda a parte, ele vai apelar para que se tome consciência do caráter pobre, temeroso, e armal vingador das noções e da vida morais. Em toda a parte, ele vai nos mostrar como a vontade de negar privilegia a frágil docilidade. Ao mesmo tempo, começando a esboçar por contraste o retrato do super-homem, ele vai em toda a parte sugerir como uma outra moral, superhumana, poderia pensar essas mesmas noções morais e ser vivida. Desprezar   A FELICIDADE   será constatar que se faz dela uma reação passiva e um pouco  .envergonhada, enquanto "minha felicidade deveria ser a própria just!ficação de minha existência!",   enquanto ela deveria ser, se não a finalidade da vida - veremos (no mesmo capítulo, no § 2  d  p. 77) que aquele que a atinge não se  preocupa com isso -, ao menos seu acabamento a  própria marca de uma plena atividade coroada de êxito . Será ver que as filosofias que fizeram da felicidade o fundamento da moral a espoliaram de todos os seus elementos ativos, dinâmicos, para ver somente nela uma

resignação passiva, como os estóicos, ou uma prudente ataraxia, como os epicuristas, ou ainda, o que é pior, uma beatitude futura, que depende menos de minha atividade que da de Deus. Desprezar a   RAZÃO,   isto é, a consciência moral, segundo Kant, será discemir nela o triunfo das forças reativas e desprezar as decisões previsíveis, esperadas e sem riscos, daquele que confunde a lei comum com a razão universal. Essa razão merece, aliás, o mesmo  "grande despre zo"  em seu papel especulativo de instrumento de conhecimento quanto no seu papel prático de legisladora moral. E uma grande parte da obra de Nietzsche nos revela quanto o conhecimento animado por uma vontade negativa pode ser miserável e lamentável. Longe de aspirar ao saber  "como o leão cobiça seu alimento", o conhecimento racional, isto é, a filosofia, mas, também a ciência, só procura, de fato, uma verdade completamente tranqüilizante; uma verdade objetiva, isto é, desembaraçada de todo instinto, de toda preferência individual, e, conseqüentemente, desencarnada, pois o corporal, o carnal, sempre tiveram algo de inquietante; uma verdade clara, coerente, isto é, uma verdade previsível e suscetível de ditar uma ação bem-comportada, sem riscos inesperados. Um tal conhecimento não é ávido de saber, está preocupado com a segurança, não quer conhecer, quer (vontade fraca e negativa, mentirosa) tranqüilizar e tranqüilizar-se; o que ele procura, na realidade, é, nos próprios termos de Hegel, a doméstica "satisfação" que se tem em ficar em casa(lO); é a imagem de um mundo inteiramente submetido às cate-

gorias de   NOSSO   pensamento lógico: identidade, causalidade, finalidade; imagem de um mundo inteiramente  previsível, no qual o acaso não tem nenhum lugar, inteiramente querido e criado por um Deus infmitamente bom e infmitamente poderoso, no qual o mal só  poderia ser uma ilusão ou um fenômeno marginal, do qual o homem é o único culpado. Assim, em suma, a razão, como conhecimento, tem muitas vezes más razões (sobre essas más razões, cf. principalmente A gaia cfência,   I, § 37, t. V). Desprezar a  VIRTUDE,   isto é, a disposição moral, o apego ao bem e ao mal, será constatar que, o que deveria ser atividade transbordante, coragem, entusiasmo   "furioso",   é apenas hábito conformista de um bem e de um mal, confundidos com a obediência ou a desobediência a Deus; ou, simplesmente, ao mais forte. Desprezar a JUSTIÇA   será compreender até que ponto essa virtude essencial (tanto para os moralistas - segundo Platão, por exemplo, ela equilibra as outras virtudes - quanto para os políticos que a exigem e pretendem instaurá-Ia), até que ponto essa justiça, que deveria ser  o   "carvão em brasa",   se tomou um igualitarismo tão simplista que ficou ridículo (cf. a caricatura de justiça do Prólogo, § 8) ou o cálculo desconfiado do invejoso, que teme ser lesado. Desprezar a  COMPAIXÃO, enfun - a caridade cristã -, será ver que ela foi confundida com a pena, com um contágio do sofrimento, com uma abdicação de alguémque se deixa influenciar, invadir, pela infelicidade do outro, mas, ao mesmo tempo, continua desprezando o ser digno de pena, com uma atitude niilista, conserva-

dora de tudo aquilo que só merece desaparecer (sobre essa questão da pena, cf. O  Anticristo,   § 7, t. VIII). Estamos bem longe do verdadeiro amor ao próximo, que não é nada se não for absoluto, se não for  "a cruz onde

se prega aquele que ama os homens". Vemos aqui que Jesus Cristo, mesmo sendo o representante do niilismo'l, não se abandonou ao descaso reativo. Nisso, ele é o ancestral do funâmbulo' e mais geralmente, dos homens superiores'. É por iss~ que  Nietzsche não apenas nunca ataca a sua pessoa, mas até, como aqui, o dá como exemplo. Em todas essas noções tradicionais de nossa moral, o grande desprezo disceme "miséria, imundície e reles bem-estar", pois, por trás de tudo isso, a genealogia nietzschiana disceme a atitude reativa, medrosa, de quem curva as costas e deixa caírem os golpes; por trás de tudo isso, ela disceme a pequenez, a mediocridade, a parcimoniosa medida. Por trás dessa moral doentia,  para a qual a consciência tranqüila já é um pecado de auto-suficiência e de arrogância, para a qual o único sentimento moral válido é o da culpabilidade, por trás dessa atitude de inibição da ação pela reação, a genealogia nietzschiana disceme uma sobrevivência dessa idéia, comum entre os Antigos(ll), de que o pior  dos pecados seria ter êxito e ser feliz, de que todo sucesso, e até mesmo toda pretensão à ação, seria excesso,   hybris,   e toda   hybris   sacrílega, atentado a uma  prerrogativa divina. O verdadeiro pecado do homem, que atrai a punição divina, "que brada aos céus"(12), é a pequenez, a fraqueza, a mesquinharia. E o grito de apelo à maldição divina é um grito de vingança. Na

verdade, por trás de toda essa moral, o que a genealogia nietzschiana distingue mais profundamente é um ressentimento, é o espírito de vingança do fraco, cheio de azedume e ódio,   que se volta contra o forte e quer obrigá-Io à mesma atitude fatigada que é a sua. Nietzsche distingue até o pior dos espíritos de vingança: o ressentimento contra si mesmo, o sentimento de culpa (sobre essas noções, cf. A genealogia da moral ,  t. VII). A viêla é culpada, nós somos culpados, como nos ensinou a religião. Vê-se claramente aqui o que  Nietzsche recusa. Primeira e principalmente, se não exclusivamente, recusa uma religião moralizante e cul pabilizante - religião que não seria tanto o pensamento de Jesus,   mas sua deformação, desenvolvida pelos evangelistas e principalmente por São Paulo. Essa religião, que ele ataca sob uma forma certamente caricatura I, é, sem dúvida, a seus olhos, a religião de seu ambiente, a de seu pai pastor, e também a de Kant, que só descobre Deus a título de postulado da razão prática, e assim, em última análise, só descobre um Deus moral. Mas a metafísica é o fruto de uma moral que ela vem depois consolidar, e se a metafísica dualista é o fruto da moral da difamação e do sentimento de culpa,   que em toda a parte fazem triunfar as forças reativas, resta saber  mais exatamente qual é a genealogia da metafísica do super-homem, e sobre que moral vai repousar a metafísica do sentido da terra. O que é, precisamente, essa moral ativa, para qual a felicidade é  "a própria Justificação de minha existência", para a qual a razão se apega ao saber, como "o  leão cobiça  o  seu alimento"  ,

à qual sua virtude toma • 'furioso" , para a qual a justiça é  "carvão em brasa",  e a compaixão,   "cruz"?

e) As noções de genealogia e de vontade de  potência A   GENEALOGIA   da metafísica e da moral el o   homem nos revelou, em seu niilismo básico, um certo tipo de   VONTADE DE POTJ;NCIA.   A continuação de nossa leitura exige um exame mais amplo dessas noções essenciais e do procedimento que elas fundamentam. Sobre essas noções - como vimos e veremos  Nietzsche funda todas as suas interpretações, transformando sistematicamente a pergunta do ser: "O que é ?" na pergunta da genealogia: "Qual é a genealogia de ?", e esta última na pergunta do querer: "O que quer .....?" Esse procedimento consiste, pois, num primeiro tem po, em considerar todas as coisas como um conjunto de forças que estão executando um trabalho, como uma  potência; e, num segundo tempo, em observar para onde vai esse conjunto de forças, o que quer essa potência. Assim, analisar uma crença, uma instituição ou um comportamento é primeiramente considerá-Ios como  potências, como atividades eficazes; é depois perguntar  de onde vêm essas potências, de que intenção elas  procedem, para que objetivo elas se dirigem, o que quer aquele que nelas acredita, as institui, assim se comporta.

É esse um procedimento novo em filosofia. Com ele,  Nietzsche introduz um procedimento comparável - mutatis mutandis, evitemos assimilações superficiais, mesmo se forem escIarecedoras - aos que efetuam, mais ou menos na mesma época, cada um em sua área e à sua maneira, Marx ou Freud. Como estes, Nietzsche nos ensina a procurar um sentido profundo, latente, mediato, e que escapa, pois, em grande parte, aos atores, sob o sentido aparente e imediatamente consciente dos fatos humanós. Por trás de um comportamento, assim como Freud psicanalisa uma motivação inconsciente ou como Marx denuncia uma ideologia(I3), Nietzsche nos ensina a discemir um querer, uma vontade de potência, uma certa intenção que procura realizar-se, uma força, uma  potência que visa um objetivo, que é facilmente identificável para o olho experimentado do genealogista. Disso resulta, e aí está, em grande parte, a novidade, que a moral em particular e a filosofia em geral não serão mais a auto-análise de um sujeito consciente e responsável, como elas o eram para Descartes ou para Kant, mas vão se tomar  detecção das intenções, diagnose e prognóstico. Se Nietzsche transforma a pergunta do ser em pergunta do querer, transforma também a pergunta do querer em pergunta do valer: o "0 que   QUER?"  significa "0 que   VALE?".   O que Zaratustra aprecia ou não, em um comportamento, é o querer que ele distingue nesse comportamento, e é por isso que os termos "quer", "vontade", se repetem em suas ladainhas: " Amo o que (...) pois assim   QUER"   (Prólogo, § 4). Uma potência  pode querer estender-se, ampliar-se, tomar-se mais potente; pode, ao contrário, querer diminuir, desaparecer.

 Neste último caso, falaremos de uma potência com vontade negativa, falaremos de niiIismo*I.2,3; no primeiro caso, falaremos de uma potência*2 que se quer a si mesma, de uma potência que quer a potência, de uma vontade de afirmação.  Nesse ponto, Nietzsche funda todo um novo sistema de apreciação, no qual o "sim" e o "não" substituem todos os valores tradicionais, sistema de avaliação, cuja originalidade só se iguala à sua profundidade. É assim que vemos Zaratustra substituir o bem da antiga moral  por uma certa qualidade do querer: o querer criar, a vontade de estender-se, de desenvolver-se, a vontade de sua própria potência; e apresentar, inversamente, como valor negativo, para substituir o mal da moral, o querer  inverso, o querer destruir, o descaso e o contentamento consigo mesmo, a sonolenta quietude, que impedem qualquer vontade de renovação. Será, talvez, tentador dizer que semelhante método tem alcance limitado, e objetar, como Eugen Fink, que "a neurose pode às vezes disfarçar-se em fenômeno religioso, o espírito de vingança em moral. Mas isso não deve nos induzir a crer que toda religião é neurose, e toda moral, espírito de vingança"(I4). Detectando "más" razões sob um sistema moral ou religioso, Zaratustra não poderia pretender - irá se dizer - que não existam, em outros casos, para outros, ou de modo absoluto, de direito, outras razões bem melhores. Acrescentar-se-á que, mais ainda, qualquer que seja a genealogia subjetiva de uma certa crença em Deus, esta não prova rigorosamente nada quanto à existência ou à não-existência objetivas de Deus, assim como suas motivações

 profundas não alteram, no que quer que seja, o valor objetivo - de um comportamento. Tudo isso, certamente pouco contestável, não nos  parece entretanto constituir objeções pertinentes contra  Nietzsche, que conhece e respeita perfeitamente esses limites exatos de seu método.  Não se poderia reprovar a Nietzsche um duplo paralogismo, em virtude do qual ele faria da genealogia subjetiva de uma religião um argumento contra a existência bbjetiva de Deus e também contra o valor de qualquer atitude religiosa em geral. Por um lado, não é fundamentando-se sobre a vontade niilista descoberta em uma religião que Nietzsche conclui a inexistência de Deus, já que, como sabemos, a morte de Deus não é  para ele a conclusão de um raciocínio, mas um fato observado, uma evidência. Aliás, do fato de que uma ccrta atitude religiosa é, a seus olhos, "neurose", Nietzsche não conclui, evidentemente, que todas o são necessariamente, pois não hesita, ao contrário e por várias vezes, em apresentar como religiosa a atitude, fundada sobre uma outra vontade, que ele quer instaurar (assim, O nascimento da tragédia   opunha o Dionisíaco ao Apolíneo, assim o Prólogo §   I começa com uma "prece", assim o Prólogo § 4 propõe uma nova imagem de Deus); a morte de um certo Deus não é talvez a de todos os deuses ...  Não se poderia, também, reprovar-lhe uma extrapolação temerária, pela qual ele estenderia a qualquer  moral, sem distinção, a vontade vindicativa percebida em uma certa moral, pois irá propor, fundada sobre uma outra vontade (Prólogo, § 4), uma nova moral.

Assim, uma rigorosa delimitação do alcance exato do procedimento genealógico, longe de desvalorizá-Ia, constitui, ao contrário, a melhor garantia de sua validade. É realmente a raiz profunda de uma certa atitude moral, de uma certa atitude religiosa, ambas muito difundidas e bem enraizadas em nossa cultura, e não toda religião e toda moral como tais, que Nietzsche denuncia. Não podemos, sem má fé - uma má fé cuja genealogia se faria facilmente ... - negá-Io a Nietzsche e recusar-nos ao exame de consciência ao qual ele nos convida.

2. Do homem ao super-homem (11).  A vontade criadora de novos valores, segunda etapa de sua transmutação (Prólogo, § 4)  Nem puro espírito purificado de seu corpo, nem contemplativo do além, esquecido deste mundo, o superhomem não é um anjo;   mas também não é um animal, tem ciência e moral. Nem espectro nem planta, é - tal era a lição do Prólogo, § 3 - o homem da transmutação.

Com a noção de vontade de potência, Nietzsche não descobriu apenas o vício profundo que rói a cultura

tradicional; ao mesmo tempo, encontrou a fonte da qual  poderia jorrar uma nova cultura. Vimos como a crítica de uma certa meta física ede uma certa moral conduzira Zaratustra a nelas perceber um certo tipo de vontade de  potência: o querer diminuir, destruir . Restava ver - e tal é o objeto do Prólogo, § 4 - o que seria exatamente uma vontade de potência positiva e criadora, e depois, que moral e que metafísica dela poderiam resultar (15). Em outras palavras, assistimos agora à criação de novos valores. Os valores novos transmutados são efetivamente, os valores destacad~s da vontade d~ des~ truição que os dominava, e reanimados por uma vontade criadora, afrrmativa. Com esse enxerto dos valores so bre um outro tipo de vontade de potência, Zaratustra  procede a uma transvaloração, isto é, a uma reabilitação total de todos os valores esgotados em nossa cultura: a razão, a moral e suas vir tudes, e até os grandes conceitos da metafísica tradicional são reintroduzidos, não mais como os pensa e vive uma vontade negativa e vindicativa, mas como os pensa e vive a vontade dos   "que transpõem". O que vemos, pois, é como essa vontade afrrmativa faz calarem-se as forças reativas e devolve seu justo lugar às forças ativas; assiste-se, enfim, à dominação da reação, da passividade, da escravidão,  pela ação, pela atividade, pelo domínio.

Vimos que a atividade principal, a característica até, da vontade negativa consiste na instauração de um dualis-

mo, na invenção de um mundo transcendente, em nome do qual ela pode depreciar este mundo. É, pois, evidente que a vontade do super-homem será aquela que, inversamente, recusará qualquer além-mundo; seus valores serão aqueles que não caucionam nenhum dualismo, nem são caucionados por nenhuma transcendência. Sua vontade é, fundamentalmente, VONTADE DE lMA~NelA,  ela tem sua fonte e seu ftm neste mundo:   "Amo os

que não se satisfazem em procurar além das estrelas uma razão para serem declínio (...) mas que, ao contrá rio, se sacrificam à  terra."  Como sua investigação genealógica leva Nietzsche a valorizar a noção de vontade, e como Zaratustra não cessa de repetir  "amo o que (...)   QUER"  ,   ficaríamos tentados a ver em seu pensamento um formalismo, para o qual apenas a intenção é importante. E, certamente, é  bem verdade que, segundo ele, a realização material efetiva importa menos do que a atividade desenvolvida  para chegar a ela; que " a grandeza do homem está em

ser ponte e não meta: o que nele se pode amar é ofato de ser (...)   TRANSIÇÃO"; é bem verdade que a vontade que inspira o ato importa menos que o resultado. Não se deve, todavia, confundir essa vontade com uma sim ples intenção, pois só se pode julgar o vigor de um querer exatamente por sua capacidade de ultrapassar a intenção para agir. A vontade de potência deve se realizar em ATIVIDADES EFETIVAS:   "Amo o que  TRABALHA". Uma vontade que ficasse nas intenções seria apenas veleidade, e, justamente, vontade fatigada,   "perigoso o tremor e a paralisação". Não nos enganemos, Kant   está entre os adversários visados por Nietzsche; a

vontade de potência'2 não é a boa vontade, é a vontade que passa ao ato. O su per-homem é, antes de mais nada, aquele que se vence a si mesmo. O que ele procura é   "seu declínio", é " uma razão para serem declínio e oferenda";   e Nietzsche multiplica as fórmulas paradoxais:

••Amo os que s6 sabem viver em declínio ,  pois são os que transpõem. Amo os que desprezam com intensidade ,  pois sabem venerar intensamente". Mas todas essas contradições não devem surpreender-nos nem desor ientar-nos. Elas não devem surpreender-nos; a filosofia de R egel já familiarizou os leitores com essa idéia de uma negação que é afirmação, de um declínio que é passagem, de uma destruição que é construção. Mas é preciso que se note bem a diferença, e até a oposição fundamental entre Regel e Nietzsche: para  Nietzsche, é a afirmação e não a negação que é a  primeira. Gilles Deleuze o mostra claramente: "O antihegelianismo atravessa a obra de Nietzsche como o fio da agressividade (...). Para Nietzsche, nunca a relação essencial de um força com uma outra é concebida como um elemento negativo da essência. Em sua relação com a outra, a força que se faz obedecer não nega a outra, ou aquilo que ela não é; ela af i rma a sua própria diferença e goza dessa diferença. O negativo não está presente na essência como aquilo de que a força tira a sua atividade: ao contrário, ele resulta dessa atividade, (0 0 ') O negativo é a agressividade de uma afirmação" (16). Todas essas contradições também não nos devem desorientar; essas fórmulas vigorosas significam sim-

 plesmente que o homem deve progredir, e, conseqüentemente, RENEGAR O QUE ELE É,   em benefício do que ele será. O que é importante para Nietzsche não é  o declínio, é a passagem, não é o desprezo (do presente), é a veneração (do futuro). É esta que motiva aquele. "Amo os que  s6  sabem viver em declínio". Uma tal fórmula bastaria para demonstrar definitivamente quanto são aberrantes as interpretações que fazem da vontade de potência um apetite de dominação, pretensamente inspirado pela "luta pela vida" descrita por Darwin, apetite, a partir do qual se pretenderia explicar, e até  justificar, tanto a autoridade de um indivíduo, quanto o comportamento de uma classe dirigente ou a política imperialista de um Estado. A vontade de potência não  pertence ao espaço do ter, mas ao do ser; querer a  potência é querer-se a si mesmo maior; ela só pode tornar-se o querer de uma possessão indiretamente, se acontecer que essa possessão atome maior. Avaliamos aqui o contra-senso (e a lamentável tra paça), conforme tentou-se fazer a filosofia de Nietzsche avalizar o fascismo nazista. Ainda que totalmente isento de qualquer culpa a esse respeito, Nietzsche sofre da má reputação que lhe construíram nesse ponto. Lembremos algumas linhas de Thomas Mano, que, parece-nos, encerram definitivamente esse processo equivocado: "O fascismo, essa armadilha para as massas, pior forma de demagogia e de aviltamento da cultura que a história  jamais produziu, é profundamente estranho ao espírito daquele para quem tudo girava em torno da pergunta '0 que é nobre?'''(l7). Mais nada, o fascismo aparece  precisamente como uma das figuras do último homem,

cuja vinda Nietzsche teme (Prólogo, § 5) e Thomas Mann pode assim, legitimamente, escrever: "Não foi  Nietzsche que fez o fascismo, mas o fascismo que fez  Nietzsche; ( ...) essencialmente estranho à Política e es piritualmente inocente, Nietzsche pressentiu, na sua filosofia da potência, assim como um sensibilíssimo aparelho receptor e emissor, a ascensão do imperialismo, e anunciou ao Ocidente, como um ponteiro trêmulo, a vinda da época fascista ...•• (18).

real tal qual é, com sua parte de acaso, de mal, de imprevisível, de absurdo, de intolerável para quem não tenha' 'uma pele dura"   (ibid.,  § 32 p. 79). E este mundo tal qual é, esse saber não visa assumi-Io, mas agir nele, transformá-Io. Trata-se, pois, de um conhecimento que não se satisfaz com abstrações, mas se quer (vontade criadora) concreto, orientado para a ação, isto é, não  para a procura do útil, do conforto, procura que procede de um querer dominado por uma força reativa de recusa do esforço (cf. Prólogo, § 5), mas para a dominação do real e de si mesmo. "Amo o que trabalha (...) para (...)

o super-homem (...) prepara, para ele, a terra,l' 

A razão "miséria, imundície e reles bem-estar"  (do Prólogo, § 3), vai ser substituída pela   RAZÃO ATIVA, que "aspira (...) ao saber como o leão cobiça seu alimento" (ibid.); e, após ter pregado o "grande desprezo" pela razão e pelo conhecimento, Zaratustra pode proclamar:

"Amo o que vive para conhecer, e quer conhecer para que um dia o super-homem viva."  Ao conhecimento miserável e lamentável, animado pela vontade negativa, a transmutação substitui uma "gaia ciência", um saber animado por uma vontade afirmativa e criadora:   um saber que não quer (vontade mentirosa, negadora do ser) interpretar o real segundo seus desejos, que não quer (vontade fraca, doentia, reativa, abulia) tranqüilizar-se, mas um "desejo de certeza" que tem "o valor da mais íntima cobiça e da mais  profunda necessidade" (A gaia ciência,  I, § 2, t. V.) que quer (vontade afirmativa), sem restrição, conhecer o

Após a reabilitação do conhecimento, Zaratustra conclama à reabilitação da moral. Vimos como as pretensas virtudes praticadas pela vontade fatigada da moral tradicional são apenas' 'miséria, imundície e reles bem-estar" (Prólogo, § 3). Veremos como uma vontade ainda mais negativa pode conduzir a virtude para mais baixo ainda, em direção à  miséria, à  imundície e ao lastimável (Prólogo, § 5). Aqui, Zaratustra nos faz pressentir o que seria uma   VIRTUDE   animada por uma vontade de potência criadora e afirmativa. Essa vontade de potência positiva é, primeiramente, como já sabemos, domínio de si, vontade de superar-se a si mesmo, esforço para transcender-se, antes que ser  submetido a uma transcendência: "Amo o que ama a

sua própria virtude (...)pois ele,poramorasua vinude , quer viver ainda e não mais viver" (19). Essa virtude deve ser considerada como uma verdadeira paixão, pois é absoluta, não tem limites e mobiliza todas as energias: "Amo o (...) que quer ser  inteiramente o espírito de sua própria virtude." Estamos longe do "justo meio" , que faria de "toda causa (... ) uma causa medíocre (... ) uma concessão"   (Agaia ciência , § 32, 1. V), e onde, segundo Aristóteles, deve r esidir a virtude (20). Assim absoluta, ela é, evidentemente - esta é a pró pria defmição da paixão - única e exclusiva:   "Amo o

que não quer virtudes em demasia. Uma única virtude é  mais virtude do que duas.  "Estamos longe da cri teriosa dosagem cristã das quatro cardinais e das três teologias. A virtude é semelhante à paixão também no sentido em que,   bem mais que uma disposição preferencial, constante, habitual (o que Aristóteles chama   exis (21), e que se traduz, em latim, por   habitus), bem mais que um hábito, pois, é um verdadeiro   fatum: "Amo o  que faz da virtude inclinação e destino (...) ela é o  nó maisforte onde se ata  o  destino."    Uma tal determinação empenha e cria o futuro; ela proporciona  a única memória que seja vontade positiva, criadora, e não reação ao passado, ou ressentimento; a memória das promessas: "Amo o   que antecede com

 palavras de ouro os seus atos e sempr e   cumpre mais do que pr omete,"  "Amo o  que prodigaliza sua alma , e que , aofa zer  isso, nã o visa à  gratidão nem ao  pagamento".   Essa

virtude é aquela que o fIm da primeira parte do  Zarat ustra chamará "a virtude que dá". Ela não é procura de nenhuma recompensa, de nenhuma felicidade; ela executa atos sem outra intenção senão a de realizar-se nesses atos, comparável, ao menos nisso, com a moralidade segundo Kant, que realiza o dever sem motivo afetivo, mas por puro respeito ao dever. Essas expressões kantianas não são gratuitas, e o que Kant chama "patológico" (22) coincide, em certo sentido,   com o que Nietzsche chama reativo. Certamente, a oposição nietzschiana entre ativo e reativo não se identifIca com a oposição kantiana entre prático e patológico, e Nietzsche, como vimos, recusa-se categoricamente a considerar como passivo aquilo que depende da sensibilidade e do corpo, e como ativo aquilo que resulta de uma razão desencarnada, pretensamente a única livre. Entretanto, mesmo se Kant e Nietzsche não têm as mesmas defmições de liberdade e de virtude, concordam em recusar qualquer dependência da virtude em relação a outra coisa que não seja a própria virtude. Pode-se, a respeito disso, notar que, entre todos os valores que foram alvo do "grande desprezo" (Prólogo, § 3), apenas a "felicidade" não foi objeto de nenhuma reabilitação. Será preciso esperar o Prólogo, § 9, relativo aos criadores, para que Zaratustra a reintroduza. É que, para Nietzsche como para Kant, a procura da felicidade é "patológica", a felicidade não poderia constituir um objetivo moral, pode simplesmente ser dada por  acréscimo a quem cumpre o que Kant chama "dever " e Nietzsche ·'criação". Éessa virtude   pródiga que sempre anima Zaratustra, "este cálice que anseia transbordar" (Prólogo, §  1); é

ela que anima todos aqueles que, como "criadores" (Prólogo, § 9), anunciam e preparam o super-homem, empenhando o futuro; é ela que anima o próprio Nietzsche, anunciador do super-homem, e cujo querer positivo o ergue contra toda a cultura; Nietzsche, cuja obra é a ação que prepara a terra para o super-homem, e que irá, na renúncia de si, até o fIm de suas forças físicas e mentais:   "Amo todos aqueles que são como pesadas gotas (...); anunciam a chegada do raio eperecem como anunciadores. Vede, sou o anunciador do raio, uma gota pesada dessa nuvem. "  O primeiro dever é renegar-se a si mesmo. Partindo dessa idéia fundamental, Zaratustra reintroduz agora,  para mostrar o que lhes trará a transmutação, duas outras das noções atingidas pelo "grande desprezo". Depois da razão e da virtude, vemos o que se tornam para o super-homem a JUSTIÇA e a   COMPAIXÃO.  Nessa questão, aproximou-se, freqüentemente,o ponto de vista de Nietzsche daquele que Platão nos apresenta através das palavras de Caliclés (23). Mas é evidente que há nisso um grave contra-senso, e é até opondo-o ao de Caliclés, visado aqui por Nietzsche quase que explicitamente, que se pode melhor apreender seu ponto de vista. Sabemos que, para Caliclés, uma justiça real, uma  justiça segundo a natureza, legitimaria a dominação dos fracos pelos fortes, dominação que a justiça segundo a lei procuraria impedir. E certamente, tambémpara Nietzsche; trata-se de denunciar uma pseudojustiça, que faz triunfar os escravos sobre os senhores, em nome de uma verdadeira justiça, que faria triunfar os senhores sobre os escravos. Mas, a partir desse ponto de partida apa-

rentemente comum, a oposição é dupla: por um lado, os termos "forte" e "fraco" não têm o mesmo sentido nos dois casos, e os fortes de Caliclés são exatamente os fracos de Nietzsche. De fato, para Caliclés, os fortes são aqueles que se abandonam à sua natureza, isto é, aos seus sentidos e às suas paixões; no exato oposto dos fortes de Nietzsche, cuja vontade de potência é domínio de suas fraquezas naturais; mais que uma diferença, há uma total contradição entre o ponto de vista de Nietzsche, para quem o  primeiro dever é vencer-se a si mesmo, e um hedonismo, para o qual o único dever é, ao contrário, abandonar-se a si mesmo; "o super-homem (... ) se ele tem como divisa o 'Sejamos duros', tantas vezes citado e tantas vezes mal interpretado, não é contra os outros que ele exercerá essa dureza, mas contra si mesmo. A humanidade que ele pretende su perar é a sua"(24): "Amo os que só sabem viver em declínio, pois são os que transpõem."  Por outro lado, daí resulta que, para Nietzsche, a justiça não é, como  para Caliclés, reivindicação rancorosa de um crédito supostamente natural, procura brutaldo reconhecimento de uma superioridade; ela é, ao contrário, temor escru puloso de lesar alguém:   "Amo o que se envergonha quando o dado cai a seu favor, e então pergunta: serei um trapaceiro?"  Essa justiça, que não é restituição eqüitativa,   retri buição, mas dom gratuito, se supera em uma generosidade sem limites, que não é compaixão apiedada, mas confunde-se com aquela caridade, aquele amor que pode conduzir  à  "cruz onde se prega aquele que ama os

tes, consciência isolada, cortada de um mundo mais ou menos hipotético, ele opõe aquela na qual   "todas as

coisas nele encontram lugar". E essa última fórmula, ao mesmo tempo que se opõe ao "todas as coisas são exteriores a ela", ao qual se  poderia, esquematicamente, reduzir a psicologia cartesiana, se opõe igualmente - e mais diretamente ainda ao "ela está em todas as coisas", ao qual se poderia reduzir a crítica kantiana de uma razão pura que "só vê o que ela produz por si mesma, segundo seus próprios  planos" (26), e resumir, mais exatamente ainda, toda a filosofia de Hegel, que tende para que todo fato empírico "se torne a representação e a reprodução da atividade primitiva e perfeitamente autônoma do pensamento"(27). O super-homem não é   nem sujeito transcendental que impõe suas formas ao mundo, nem Espírito satisfeito de encontrar no mundo o Universal, ao qual ele aspirava espontaneamente; o super-homem é aquele que recebe o mundo tal qual ele é:  "Todas as coisas se

tomado culpado, uma inversão da relação normal entre a consciência e o instinto (cf. t. I, p. 99). A inversão dos valores vai, pois, repor de pé o que Sócrates havia posto de cabeça para baixo: '''Eu' - dizes; e ufanas-te desta  palavra. Mas ainda maior - no que não queres acreditar  - é o teu corpo e a sua grande razão" (Assim falou  Zaratustra, primeira parte "Dos desprezadores do cor po"; cf. também  A gaia ciência I, § 11, t. V).

"Assim, sua cabeça não passa de vísceras para seu coração".   Trata-se, pois, da liberdade daquele cuja  paixão e entusiasmo alimentam o pensamento; "o coração entra na cabeça e então só se fala de paixão" (A gaia ciência, I, § 3, t. V). Trata-se do poder de agir e não reagir; poder que não cessa nunca de desenvolverse, de realizar-se, de dar sua marca à   sua vida, de criar  o seu destino.

tornam seu declínio."  A liberdade que Nietzsche introduz agora é LIBERDADE  de espírito E   de coração: "Amo o que tem o espírito livre e livre o coração."  Não se trata, pois, da liberdade intelectual, severa, do racionalismo, que faz dela como os estóicos ou Spinoza - uma resignação razoável à necessidade universal ou,   como Kant, a obediência ao imperativo da razão. Principalmente, não se trata, pois, de uma liberdade que livraria o espírito do corpo, libertaria o pensamento da influência dos instintos. O  nascimento da tragédia já denunciava, nessa ambição e nessa definição da liberdade, uma desordem aberrante, da qual Sócrates se teria

3. O niilismo *2   do último homem (Prólogo, § 5)

o advento

do super-homem implica necessariamente a morte de Deus, a derrubada dos valores: "É preciso ter 

caos ainda dentro de si para poder gerar uma estrela  piscante."  Os ouvintes de Zaratustra, os contemporâneos de Nietzsche, libertados de suas antigas crenças,

 preenchem

essa condição

e são cap:.zes do melhor:

"Ainda tendes caos dentro de vós."  Mas essa condição não é suficiente, e os riscos de fracasso são consideráveis. O primeiro risco é o niilismo que espreita "o  último homem"  (28).  Os ouvintes de Zaratustra são iguahnente capazes do pior: se não avançarem em direção ao super-homem, criador de valores novos, correm sérios riscos de orientar-se para o homem sem valor, "o mais despreZÍvel dos homens". Tendo fracassado em persuadi-Ios a interessar-se  pelo super-homem ("  Não me compreendem, não sou a boca que convém a esses ouvidos. ")(29),   Zaratustra vai, para tentar convencê-Ios, dizer-lhes quão terrível  pode ser sua queda se tomarem o outro caminho.

b) A morte de Deus, senhor demasiado exigente Tudo depende da vontade profunda que presidiu à derrubada dos valores e ao assassinato de Deus. Enquanto os criadores' negarão o outro mundo e Deus por vontade criadora de auto-afirmação, porque estes só serviam  para diminuí-Ios, para impedir seu pleno desenvolvimento, os últimos homens, ao contrário, negam Deus  por vontade negativa, por niilismo'2, não porque Deus os apequene, mas porque ele os engrandece, porque, demasiado exigente, ele os considera demais e os impede de viver - e de dormir - tranqüilos.

Assim, o último homem tudo destruiu e nada criou,  NADA, "NIHIL". Encontra-se ele, então, diante do nada de todo valor, deste mundo ou do outro:   "Que é o amor? Que é a criação? Que é  o  desejo? Que é uma estrela?  Assim pergunta o último homem."   A crítica nietzschiana se faz nesse ponto, simultaneamente feroz e angustiada: depois da morte de Deus, se não tomar o duro caminho do super-homem, o homem - último homem vai  soçobrar no pior desamparo: a ausêncilJ total de toda moral. Para ele, se Deus não existe, tudo é permitido, no sentido de não haver mais nenhuma razão para proi bir - e proibir-se - o que quer que seja.

Para compreender a organização do discurso de Zaratustra, convém, mais uma vez, remontar à dupla fonte grega e judaico-cristã de nossa cultura. Sabe-se que toda uma tradição moral (30) repousa sobre a distinção de três grupos de faculdades (as faculdades de conhecimento, as faculdades de ação e as faculdades afetivas), e que ela define, a partir dessa distinção,o comportamento moralmente bom como o  bom exercício e a boa organização hierárquica dessas três faculdades: trata-se, para ser moral, de conhecer  com   SABEDORIA, agir com   CORAGEM,   dominar pela TEMPERANÇA as afeições vis, e atribuir com   JUSTIÇA seu  justo papel a cada faculdade e sua justa recompensa ao  bom exercício das virtudes.

Pintar o quadro da moral do último homem será, pois, antes de mais nada, descrever o que são, para ele, essas quatro virtudes, e Nietzsche vai então examiná-Ias uma a uma(31). Percebemos que os últimos homens são aqueles que, deliberada mente, renunciam a todas as virtudes, que, desde a Antigüidade, defmem a moral. Eles renunciam à   SABEDORIA, virtude essencial do animal racional, eles a confundem com o distanciamento altivo e cínico de quem muito viveu, muito viu, tudo conhece, e em nada mais acredita:   "Esramos informa-

dos , sabemos tudo o que acontece. Por isso , nãoparamos de escarnecer. "   Refugiados na quietude dos preconceitos e das idéias já prontas, consideram que ••descon fiar " ,  não ter segurança, é condenável,   é um erro, um "pecado" . Pouco preocupados em fazer prosélitos, longe de estar gerações defender  palmente

prontos para a luta, como fizeram até então de filósofos, de sábios ou de padres, para ou impor sua verdade, preocupam-se princicom sua tranqüilidade: "Acontece ainda dis-

cutirmos, mas logo nos reconciliamos - as brigasfazem mal ao estômago."   A verdade, não fazem muita questão de conhecê-Ia. A lucidez - primeira forma da sinceridade - falta a quem prefere fugir da objetividade,   freqüentemente cruel: "De quando em quando, um pouco de veneno: traz sonhos agradáveis."   Assim, fogem de todos os problemas angustiantes, e, sobretudo, do mais angustiante de todos, o problema da morte, do qual se desviam, se "divertem", como diria Pascal(32): "E

muito veneno, nofim, para se morrer agradavelmente. "  Assim como renunciam à sabedoria, virtude do conhecimento, renunciam à   CORAGEM,   virtude da ativida-

de. Renunciam à luta contra as forças naturais:   "Aban-

donaram as regiões onde era difícil viver; pois precisam de calor."  O trabalho, longe de ser ocasião de uma luta em que eles se superam, impondo sua marca à natureza, é para eles apenas uma ocupação, um divertimento, isto é, mais uma vez, uma distração e um álibi  para desviar-se do essencial: "Trabalham ainda, pois o

trabalho é uma distração. Masficam atentos para que esse divertimento não os canse."  Também renunciam à   TEMPERANÇA,   virtude da afetividade, antes que se fale de amor ao próximo.   Eles a confundem com as precauções dietéticas, ou com as  precauções higiênicas que o medo do esgotamento im põe a uma "sã brincadeira": "Temos nossos pequenos

 prazeres diurnos e nossos pequenos prazeres noturnos; mas cuidamos da saúde."  Enfim, renunciam à   JUSTIÇA,   que confundem, por  amor  à tranqüilidade, que os leva a evitar toda rivalidade, com a igualdade: "Ninguém fica mais nem pobre

nem rico: é algo penoso, tanto um quanto ooutro. Quem ainda deseja governar? Quem ainda deseja obedecer? São ambos cansativos demais. (...) todos são iguais. Quem sente de maneira diversa se condena ao hospício."  Ao bom pastor do evangelho, que deseja reunir  todas as suas ovelhas(33), os últimos homens não contrapõem, como Zaratustra, "seduzir e afastar muitos do rebanho - eis a meta a que vim" (Prólogo, § 9), contra põem   "nenhum pastor e um só rebanho!"  Em grande parte, a tradição moral cristã concorda com a tradição moral grega; e, no catecismo, as três virtudes teologais, fé, esperança e caridade, convivem,

sem conflito,   com as quatro car dinais(34). A grande diferença essencial é que a caridade, o amor, aopróximo e a Deus, toma o lugar principal(35),  que Platão reservava à razão(36). Para Zaratustra,   resta, pois,  profetizar o que se tornará, para o último homem, esse AMOR AO PRÓXIMO. Ele anuncia - como esperávamos - que os últimos homens renunciam totalmente ao preceito essencial da moral cristã, r enunciam à caridade, a essa generosidade, na qual Descartes via o fundamento da vida moral(37). O amor é inacessível àqueles que não têm outra motivação senão seu conforto egoísta:  "Ainda amam seu vizinho e a ele se aconchegam pois precisam de calor."  Instalados numa admiração plácida pela boa saúde, pela consciência tranqüila e pelas idéias já prontas, olham desdenhosamente e condenam - Nietzsche, filósofo e doente, conhece isso muito bem - o intelectual que tem hesitações escrupulosas e aquele que se cansou: "Adoecer  e desconfiar  ,   para eles é pecado; avança-se com cautela. Insensato aquele que ainda tropeça"   (cf. sobre essa incompreensão irônica A gaia ciência, § 3, t. V.). Em outro ponto ainda, gregos antigos e cristãos concordam: quanto ao lugar que reservam à  FELICIDADE, e, em grande parte, quanto à   idéia que fazem dela. O filósofo antigo procura a felicidade; o sábio seria aquele que a teria encontrado. Aristóteles observava - epicuristas e estóicos conftrmarão sua observação - que tooos concordam em considerar a felicidade como o soberano  bem(38). Certamente, aquele que anuncia as Bem-Aventuranças(39)não contradiria Arislótelesnesse ponto. Concorda-se também, entre Atenas e Jerusalém, em dizer 

que a felicidade é coisa difícil. Sem dúvida, os conceitos de felicidade são muito variáveis - é sobre o nome e não sobre a idéia que o consenso é quase geral - mas todos eles têm em comum a idéia de que se trata de um ideal difícil. A contemplação de Arislóteles, a virtude estóica e até a ataraxia epicurista convergem, nesse ponto, ·com a bem-aventurança oferecida, em um outro mundo, aos aflitos que a tiverem merecido. Mas o último homem tem a presunção de aftrmar: "Inventamos afelicidade" . Pois ele a "amesquinha", a rebaixa até o nível do conforto. Em suma, todas as exigências do homem- - e no entanto veremos (Prólogo, § 8) que sua moral decaiu muito - parecem-lhe loucuras superadas por quem aprecia o conforto sonolento: "Outrora, todo o mundo era louco." 

Agora, compreendemos melhor o vigor de Zaratustra ao  pregar a criação de um novo universo; é que ele teme a chegada daquele que estreita o universo, organiza para si sua pequena casa, seu pequeno trabalho, sua pequena família, sua pequena saúde, e que, "com um piscar de olhos",   num gesto de apelo à  conivência, gesto vulgar  do astuto, o "espertalhão", que "ninguém passa para trás", a quem nada fará sair de seu pequeno nada, nos convida a ali nos afundarmos com ele (sobre esse piscar  de olhos, cf. A gaia ciência, I,  § 3, t. V).

Or a, Nietzsche (demasiado pessimista? ..) não tem ilusões: seus contemporâneos preferem a descida fácil que desliza para o último homem ao penoso caminho que sobe par a o super - homem. Sem pudor ,   os ouvintes de Zar atustr a clamam: " Faz de nós esses últimos ho-

Novas   experiências, novas resoluções, novas profecias

mens , que te daremos o super-homem de presente!"  E esse terr í vel diagnóstico conduz ao mais sombr io dos prognósticos: essa situação não terá saída. É  por  isso q u e o último homem será o último. Sem valor, e, conseqüentemente, sem nenhum critério para se julgar, f icará muito contente consigo mesmo e com uma situação da q ual nada o incitará a sair ;   será" aquele que nem é mais

capaz de desprezar-se a  si mesmo" .

 Nietzsche reduziu toda a nossa cultur a à seguinte com binação:   DEUS + VONTADE DE POT~NCIA NEGATIVA + FORÇAS REATIV AS =   HOMEM. Mas ele q uer   esta outra combinação: MORTE DE DEUS +  VONTADE DE POT~NCIA AFIRMATIVA +   FORÇAS ATIVAS = SUPER-HOMEM. Além disso,   adver tiu-nos dos r iscos da combinação:   MORTE DE DEUS +  VONTADE DE POT~NCIA NEGATIVA  +  FORÇAS REATIVAS = ÚLTIMO HOMEM.  Restava,   e é o q ue ele faz agora, estudar o que pr oduz a combinação: MORTE DE DEUS +   VONTADE DE POT~NCIA   NEGATIVA +   FORÇAS ATIVAS.

Após a morte de Deus, poderiam as forças ativas, unicamente por meio de sua atividade, sem a inspiração de uma vontade cr iadora afirmativa, obedecendo escru pulosamente a normas estabelecidas por outro caminho, inspirar um tipo de ação satisfatório? Mais concretamente,   pode parecer ,   à primeir a vista, que uma terceira solução seja possível depois da morte de Deus, e q ue o homem não seja condenado à  incontornável alternativa

do tudo (super-homem) ou nada (último homem). Nem heróis nem crápulas, não são muitos ateus dignos e honestos, ainda mais louváveis porque sua moral não é apoiada por uma fé religiosa? Se não têm fé, isso não significa que não tenham leis.  Nietzsche responde claramente: o funâmbulo' morre; a terceira via que ele toma é um beco sem saída. Em outras palavras, a ação do   HOMEM SUPERIOR,   que é inspirada por uma vontade negativa - pois o funâmbulo é a pr.imeira figura que encontramos desse novo tipo humano,   coroamento da combinação estudada, da qual a quarta parte do   Zaratustra   nos apresentará outros exemplares - é destinada ao fracasso.

Lembremo-nos: "O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre o abismo. Perigosa a travessia, perigoso o percurso" (Prólogo, § 4). Esse primeiro perigo, que fazia recuar o último homem, o equilibrista vai afrontá-Io: "Perigoso olhar para trás, perigoso o tremor e a indecisão"   (ibid.). Éesse segundo perigo que vai matar o pobre funâmbulo. Caminhando sobre a corda, pára e olha para trás, para o Deus morto, e essa hesitação lhe será fatal. Assim, pois,   o funâmbulo é ' 'superior" ao homem  porque não crê mais em Deus. Ao mesmo tempo, o funâmbulo é o contrário do último homem, a quem Zaratustra o opõe,   traço por traço: •• Fizeste doperigo o

teu ofício; não há nada de desprezível nisso."  Ef etivamente, ele escolheu agir e não deixar agir , e não r eagir. Por isso, merece r e speito e como Zaratustra o chama " amigo"  , o chamará "meu primeiro comparsa" (Prólogo, § 9), e fará questão de não abandonar o seu cadáver:   "Quer o te sepultar com minhas próprias

mãos." 

Mas, de certo modo,   o funâmbulo não se desembaraçou totalmente de toda adesão ao sobrenatur a l. Depois da mor t e de Deus, ele continua a agir como se Deus existisse; sem   senhor, ele continua a se comportar como se fosse escravo, não acredita mais em Deus mas ainda crê no diabo, não acredita mais no outro mundo, mas, ainda inspirado por uma vontade niilista, ainda crê no não-valor deste mundo,   e, espontaneamente, deixa-se impressionar quando um bufão lhe lembra a sua miserável condição, pretendendo-se "melhor que tu". O funâmbulo continua acabrunhado por   um sentimento tipicamente religioso, tipicamente judaico-cristão: o ressentimento voltado contra si mesmo,   o sentimento de culpa (sobre essas noções, cf. a segunda dissertação da Genealogia da moral: "La 'faute', Ia 'mauvaise conscience' (...)", t. VII, pp. 251s.). À   espera de uma punição, fica acabrunhado pelo sentimento de culpa: "Há muito que sabia que  o  diabo me daria uma rasteira. E 

agora, ele me arrasta para o inferno." 

Essa atitude inconseqüente de quem não acredita mais em Deus, mas continua a agir" como se" , Nietzsche não a inventa. Ele a observa entre muitos de seus contemporâneos (cf. O Anticristo,  t. VIll, voI. 1). É essa, de fato, a atitude de muitos moralistas do século XIX, que, como Saint-Simon em O  novo cristianismo  ou Auguste Comte em   A religião da humanidade, se apegam em conservar em "evangelhos" modernos a inspiração cristã cortada de suas bases religiosas. É essa, de modo mais geral, para Nietzsche, a atitude das correntes de inspiração socialista, que, ao mesmo tempo em que se voltam contra a ideologia burguesa, conservam os valores burgueses - e, no que diz respeito ásua inspiração, cristãos - insurgindose contra a sociedade burguesa justamente porque esta não realiza esses valores, e procurando instaurar uma organização político-social cujo valor viria precisamente do fato de realizá-los (cf.  Assimfalou Zaratustra,   quarta parte, "Colóquio com os reis"). Mas encontramos também essa atitude entre muitos de nossos contemporâneos, e é o mesmo pensamento de Nietzsche que Jean-Paul Sartre formula, ao criticar , em O  exist encialismo é um humanismo,   "a moral leiga" daqueles para quem "nada mudaria, se Deus não existe (...) acharíamos as mesmas normas"(l). Assim, nem engrandecido (como o super-homem), nem apequenado (como o último homem) pela morte de Deus, continua-se a respeitar os valores tradicionais, e, transpondo o catecismo para um código de saber-viver  supostamente leigo, age-se em nome desse código. Mas é preciso criar valores, e não tentar manter em vida os antigos; e não basta agir, é preciso agir em nome

de novos valores, e de novos valores inspirados por uma outra vontade de potência *2.   A transmutação, a transfiguração total por que passam os antigos valores, quando são animados por uma vontade positiva, afirmativa, é uma condição necessária. Na ausência disso - e tal é o sentido da história do funâmbulo - a atividade está destinada ao fracasso. Após a morte de Deus, "novas lutas" restam, pois, a empreender, contra a sobrevivência de Deus nas mentalidades: "devemos vencer também a sua sombra" (A gaia ciência , m,  §  108,1. V). E essas lutas são necessárias, pois dizer que, sem o abandono dos valores antigos e a criação de valores novos, sem vontade positiva, sem transmutação, a atividade está destinada ao fracasso, é dizer novamente que o super-homem, o homem da transmutação, é necessário.  Não há outra solução possível; o fracasso do funâm bulo nos convence disso tanto quanto a pequenez do último homem.

"Angustiante é a existência humana (...) um bufão  pode lhe ser fatal", conclui Zaratustra. Quantos perdem assim a sua vida, por uma pura quimera: a som bra de um Deus? Mas esse fracasso do funâmbulo simboliza também o fracasso de Zaratustra, que não foi compreendido: "o

sentido do quefalo não lhesfala ainda aos sentidos(2) (...) sombrios são os  caminhos de Zaratustra"(3). Ele  próprio ironiza seu insucesso: "Em verdade, Zaratustra  fez hoje uma bela pesca! Não pegou um homem, mas assim mesmo um cadáver"(4). Zaratustra graceja, mas a hora é grave: foi considerado louco (Prólogo, § 8: "Na verdade, falaste como um  bufão"), e, como louco perigoso, causa medo. Já pressente as ameaças de morte: "Para eles, os   homens, ainda estou a meio caminho entre  o  louco e  o cadáver."  E essas ameaças não tardarão (Prólogo, § 8: "Mas parte da cidade - senão amanhã saltarei sobre ti, eu que estarei vivo, sobre ti que estarás morto!"). Mas Zaratustra não renuncia e, mais decidido que nunca, repete: "Quero ensinar aos homens o  sentido de seu ser: ou seja: o   super-homem, raio da nuvem negra que é  o

homem!"  Essa obscuridade do homem, de sua existência ,. até  este ponto, desprovida de sentido", ele vai agora experimentá-Ia. Sua experiência nos fará, melhor que seus discursos, perceber a necessidade de criar o super-homememnós.

Vimos anteriormente (p. 87) o lugar fundamental ocu pado pela distinção das quatrà virtudes cardinais em toda a nossa cultura. Também vimos em que essas virtudes

corriam o risco de transformar-se, se, depois da morte de Deus, o homem se deixasse deslizar pelo declive que desce até o último homem, em vez de escalar a dura subida que conduz ao super-homem. Restava ver em que se transformaram essas virtudes no homem *, entre os contemporâneos de Nietzsche, ainda inspirados pela religião e apegados à tradição. Já sabemos que elas só merecem um "grande desprezo": "Minha virtude! (...) Aqui   só há miséria, imundície e reles bem-estar!" (Prólogo, § 3). Nietzsche vai agora mostrar qual é, realmente, o estado de degenerescência, de dissolução, em que caíram o homem, sua moral e seus ideais. É isso que Zaratustra descobre, quando de sua fuga, ao experimentar aquilo em que se transformaram as quatro virtudes cardinais. Vamos examiná-Ias na ordem em que a narração de Zaratustra as evoca; vendo, na prática, no que se transformou, segundo ele, essa moral humana, compreenderemos melhor o vigor de seu apelo para substituí-Ia.

A coragem, virtude da vontade, deveria ser a coragem física do funâmbulo, que afronta o perigo de morte, ou então a coragem moral daquele que sabe confessar a si mesmo a inutilidade de suas crenças, e derrubar os tranqüilizantes valores estabelecidos, assim como Zaratustra reformulando suas primeiras idéias. Mas, à guisa de coragem, Zaratustra encontra apenas a arrogância dos indivíduos bem-sucedidos, que se recusam a ver 

seus privilégios contestados,  e temem os malefícios das idéias subversivas sobre o povo humilde dominado graças às ideologias reinantes: ~' Odeiam-t e os bons e os  justos, chamam-t e inimigo ejulgam que os despre zas; os fié is da verdadeir a fé també m t e odeiam ,  consider am-t e um perigo para o povo. "  Certamente, Zar atustr a não encontr a a moleza frágil dos últimos homens, mas tudo o que encontra, à guisa de cor agem,   são as ameaças de um selvagem: " Te salvast e por hoje. M a spart e da cidade - senão amanhã  salt ar ei sobre ti , eu que est ar ei vivo , sobr e ti que est ar ás mor to."  O eremita, que encontr ou na flor esta, tinha r azão de aler tá-lo: "Não busques os homens (...) Vai antes ter com os animais!" (Pr ólogo, § 2). E o pressentimento de Zaratustr a, inquietando-se: "Ainda estou a meio caminho entre o louco e o cadáver" (Prólogo, §  7), se revela exato; agora, os homens,  preocupados, tentam intimidá-lo com ameaças de mor te. Não é sem motivo que, ele próprio, quando se lembrar '  'do que lhe dissera  o santo na flor esta", poderá dizer : "Encontr ei mais perigos entre os homens que entre os animais" (Prólogo, §   10).

Em vez da sa bedoria, do sa ber que   ilumina todas as coisas,   os fins e os meios,   da lucidez que   o filósof o almeja sem nunca esperar atingir ,  desse olhar penetrante que confere uma autoridade   moral legítima, da qual

o filósofo se julga sempre indigno, eles cultivam o sarcasmo, a zombaria maldosa:   "Aproximando-lhe do rosto seus archotes, reconheceram Zaratustra e se puseram afazer pesados gracejos a seu respeito",  e, nesse  ponto, sua atitude não é mais digna do que a dos últimos homens.

A temperança, esse domínio sobre si mesmo, que é  uma forma de liberdade, respeito pelo seu corpo epelo dooutro, certamente eles não a abandonaram,  como os últimos homens, que só conhecem a higiene alimentar e sexual, mas fizeram dela a vida eremítica: a infelicidade, o ascetismo, o sofrimento e a mortificação erigidos em fmalidade, o desprezo pelo corpo e por si; eles fundaram essa virtude sobre a consciência intranqüila de quem tem um "mau sono" .

Quanto à justiça,   virtude   das relações com o outro, respeito à dignidade de cada um, exigência de solidariedade calorosa,   fizer am dela uma esmola estúpida cujo único objetivo é  tranqüilizar a consciência  do doador , sem nenhuma pr eocupação com aquele que a r ecebe. Quando Zaratustra lhe explica:   "Meu companheir o é 

um morto",   o velho responde, resmungando: "Tanto se me dá (...) quem bate  à  minha porta deve aceitar o que ofereço."  E o que o eremita oferece é  "pão e vinho";  ainda uma

Zaratustra anuncia: "seduzir e afastar muitos do reba-

nho - eis a meta a que vim. " 

vez, é, muito explicitamente, a religião cristã que Nietzsche visa, com essa imagem caricatural da Santa Ceia e das cerimônias cristãs, que a repetem(5). Aqui, de novo, Nietzsche lembra os evangelhos para melhor opor-se a eles.   Ele os evoca: "O  criador procu-

a) Uma verdade nova: a necessidade de um novo público Avalia-se melhor agora a gravidade do fracasso de Zaratustra (prólogo, § 7): o abandono em que caiu o humano nos faz, tanto quanto a abjeção do último homem, compreender quanto é necessário que Zaratustra não renuncie a pregar o super-homem. Felizmente, ao acordar de um longo sono reparador, Zaratustra   "exultou:   pois via agora uma verdade nova".   De fato, compreendeu a causa de seu fracasso e achou o remédio; percebeu que se enganara de público ao dirigir-se à multidão e ao funâmbulo: "Não devo ser  nem pastor nem coveiro", e que o escutariam se ele se dirigisse a companheiros (6):   "Preciso de companheiros".   Falar de companheiros é falar de uma elite; opondo-se ao "Bom Pastor", pronto a tudo arriscar para trazer de volta ao rebanho uma ovelha desgarrada(7),

ra companheiros, companheiros de colheita: porque nele tudo está amadurecido para a ceifa. Masfaltamlhe as cem foices: por isso que, na sua cólera, sai arrancando espigas"(8);   mas, ao mesmo tempo, opõese a eles, e é a Jesus Cristo chamando os discípulos e exigindo "se alguém quiser me seguir, que renegue a si mesmo"(9) que Zaratustra responde: "Preciso (...) de

companheiros vivos - não de companheiros mortos ou cadáveres, que eu leve comigo aonde eufor. (...) com panheiros vivos, que me sigam para onde eufor, porque querem seguir a  si mesmos."  Seguir-se a si mesmo é prolongar-se, expandir-se, realizar-se, dar-se à luz e dar à luz. Seguir-se a si mesmo é criar-se. O que criam esses criadores que se seguem a si mesmos é, antes de mais nada,   ELES PRÓPRIOS. O que caracteriza esses companheiros, o que faz deles uma elite, é,  pois, em primeiro lugar, sua vontade de aperfeiçoamento pessoal. A procura do pleno desenvolvimento, da plena realização de si mesmos, a vontade de afmnação e de autocriação que se pode discernir  em todos os seus atos, é, de certo modo, o exato inverso da humildade cristã.

Seguir-se a si mesmo é, ao mesmo tempo, criar seus  próprios   VALORES, e é por isso que, principalmente, os companheiros de Zaratustra são ditos" criadores" , pois eles inscrevem "novos valores sobre novas tábuas". Seguir-se a si mesmo é, pois, exatamente, para eles, não mais seguir a Deus, renunciar às tábuas da lei, diretamente gravadas por Deus, confiadas a Moisés, e impostas aos homens(lO). Seguir-se a si mesmo é recusar-se a obedecer a Deus, para só obedecer a si mesmo, não, evidentemente, aos seus impulsos, como faz o último homem, mas às suas próprias leis,   aos seus  própr ios valores, que são valores justamente porque não são impostos mas criados, de modo que obedecer a eles é obedecer apenas a si mesmo, segui-Ios é seguir-se, é comandar. Vê-se que Nietzsche se situa no prolongamento de um movimento de pensamento que começa com J.-J. Rousseau e Kant, insistindo, ambos, na autonomia do sujeito moral que, como ser racional, só obedece a si mesmo quando obedece à lei moral racional. Mas, para  Nietzsche, não se trata mais de razão, nem,   verdadeir amente, de obedecer ... Evidentemente, os indivíduos submissos à   moral, os devotos das religiões, aqueles que " se designam como

os bons e osjustos (...) como osfiéis dafé verdadeira", odiarão esses companheiros,

nos quais verão apenas "destruidores e desdenhosos do Bem e do Mal",  como odiarão Zaratustra, que tratarão de   "bandido"  ,   como odiarão Nietzsche, em quem verão apenas o destruidor  de nossa cultura. Para eles, seguir-se a si mesmo é fazer  absolutamente tudo o que dá prazer, abandonar-se à

 procura desenf r eada do gozo,   deixar -se ar rastar pela devassidão; confundem o imoralismo de Nietzsche e a imoralidade do dissoluto, o super-homem e o último homem. Mas sua incompreensão já é um sintoma e um argumento contra eles: se eles vêem na recusa nietzschiana das interdições exteriores um apelo à displicência, é, evidentemente, porque são incapazes de imaginar  que se possa renunciar à displicência de outr a   forma que não seja a obediência a uma interdição exterior. Eles vêem apenas a destruição, sem compreender que ela é o avesso de uma construção: "  Aquele que destrói suas

t ábuas d e valor es, o demolidor  , o criminoso - mas  esse é  que é  um criad or ."  Destruindo as tá buas de valores,   o demolidor ,   o criminoso, o criador (como Nietzsche, o filósof o que em punha um martelo que destr ói e  esculpe) é ainda,  em um sentido novo, um niilista*4. Só vêem o declive fácil do gozo e da devassidão lá onde estão "o arco-íris e todos os graus do super-homem."    Pois, decididamente, é ele que se deve   criar: Zaratustra procur a CRIADORES DE SUPER-HOMEM   semelhantes a ele, "companheir os   de criaçã o ... companhei-

r os de ceifa. "  Essa pr ecisão é duplamente interessante,   pois permite,   ao mesmo tempo, distinguir melhor o que   são esses companheiros, semelhantes a Zaratustra, e conhecer  melhor Zaratustra, semelhante a seus companheiros. Rejeitado,   também ele, pelos bons e pelos crentes, esse  profeta do super -homem é criador de si mesmo, de novos valor es, e,   mais que   anunciador ,   parteiro do su per-homem.

Com seus "companheiros (...) defesta",   Zaratustra, que leva "a toda a parte o reflexo de tua fruição" (Prólogo, §  1) divina, vai partilhar a alegria profunda, da qual o vimos animado logo no inicio do Prólogo, ESSA FELICIDADE,   tão afastada da melancolia dos eremitas quanto do riso cínico dos homens ou da zombaria grosseira dos últimos homens, essa alegria de quem realiza e anuncia grandes acontecimentos:  "Quem ainda tiver ouvidos para o inaudito   (lI),   a esse quero inundar o coração com a minhafelicidade."  Quanto àqueles que não o ouvem, Zaratustra os abandona à  sua melancolia, ao seu cinismo ou à sua ironia, assim como o Espírito vomita os momos(12):   "Quero atingir a minha meta, seguir o meu caminho; saltarei  por cima dos hesitantes e dos descuidados .••

s.  Discreta

alusão ao eterno retorno (prólogo, § 10)

O Zaratustra  não é apenas a obra de um poeta, é a de um filósofo, e filósofo completo: metafísico e moralista. A ordem das preocupações, assim como a própria forma (solidez dos planos, riqueza e precisão dos conceitos, rigor das articulações, freqüência das referências mais ou menos implícitas a esta ou aquela tradição filosófica ...) justificam inteiramente esses termos.

Subsiste, entretanto, uma dificuldade capital: digamos, para simplificar, que Nietzsche se situa deiiberadamente em uma posição - outrora a de Heráclito - que, na opinião de Platão e Aristóteles, quase fez abortar   para sempre a filosofia. É exatamente o futuro pensamento do próprio  Nietzsche que reconhecemos na apresentação que ele mesmo fez desse pensamento de Heráclito, como ele filósofo afirmativo: "O mundo inteiro" oferece "o espetáculo de uma justiça soberana"   (Escritos póstumos, 1870-1873, t. I, voI. lI) e, como ele, filósofo monista do devir: "Ele começou por negar a dualidade de dois mundos" e até "Ele negou o ser em geral" (ibid.).   Ou antes, o próprio ser ;  aquilo que Platão procura no mundo das Idéias reside, para ele, neste mundo do devir. A essência da realidade é ser devir.  Nietzsche (cf.   Ecce Roma,   t. VIII, voI. I) nunca renegará esse parentesco(13), e tudo se passa, pois, como se a recusa nietzschiana da nossa tradição de  pensamento, e seu esforço para recomeçar de outra maneira, fosse uma tentativa para repensar outra vez, depois de 24 séculos, as verdades descobertas por  Heráclito e ocultadas por toda a tradição filosófica  posterior. Mas, ao mesmo tempo, existe nisso uma dificuldade,  pois essa posição de Heráclito parece, na verdade, constituir um impedimento à própria existência da filosofia. De fato, a teoria de Heráclito - Platão insistia nisso(14)  _ converge com a de Protágoras: se as coisas são em si mesmas mutáveis, diversas, são, por isso mesmo, para cada indivíduo, tais como elas lhe parecem. Daí resulta

que nenhum conhecimento pode pretender a universalidade, pois nenhum conhecimento que fosse'verdadeiro  poderia continuar a ser verdadeiro. O dualismo de Piarão - ele próprio explica(15) e Arlstóteles repete posteriormente(16) - é uma resposta a Heráclito, uma maneira de escapar a essa dificuldade; o mundo recusado e negado pelo dualismo, em benefício de um outro, é o mundo de Heráclito: a primeira razão de ser das Idéias é escapar ao devir sensível e constituir, assim, o objeto de um conhecimento possível. A filosofia de Aristóteles constitui uma outra res posta à mesma dificuldade. Sem dúvida, para ele, não existem essências separadas das coisas nas quais elas se realizam, mas Aristóteles também é inspirado pela mesma vontade negadora do mundo de Heráclito que inspirava Platão. Na verdade, subsiste sempre, segundo ele, uma diferença entre a essência universal e o ser real singular, e este é inferior àquela; há como que uma  perda de realidade profunda, por ocasião da individuação da essência em uma realidade concreta, sempre mais ou menos contingente. O real que experimentamos, mesmo se existe sozinho, é um ser menor(17). Do mesmo modo, a teoria aristotélica do movimento e sua distinção fundamental entre potência e ato são ainda uma resposta a Heráclito: trata-se de distinguir o devir   possível do devir impossível; e assim também a sua lógica, que distingue o que é pensável, e constitui o objeto de um saber possível, do que não é pensáveI. . Platão e Arlstóteles ... é o mesmo que dizer que toda a nossa filosofia aparece como uma refutação do pensamento de Heráclito, com o qual Nietzsche reata.

Como, nessas condições, pode Nietzsche ser, ao mesmo tempo, filósofo e partidário de Heráclito? Como são possíveis a meta física e a moral de Nietzsche? O próprio Zaratustra se preocupa:   "perigosos são os caminhos que trilha Zaratustra. Possam meus animais orientar-me'" 

b) A solução sugerida pelos animaisfamiliares Ora, seus animais vão orientá-Io, pois a resposta está inteira em duas palavras, duas palavras que seus dois animais familiares vão lhe soprar: ••Eis que uma águia ' atravessava os céus, DESCREVENDO GRANDES clRCULOS, a transportar uma serpente, (...)   POIS ESTA LHE PENDIA do pescoço."  A resposta que esse duplo círculo sugere a Zaratustra é, evidentemente, o eterno retorno, o movimento circular de todas as coisas no tempo circular. E foi bem propositadamente que Nietzsche precisara que "o sol estava a pino", pois sempre é meio-dia se o tempo é circular. Essa idéia do eterno retorno é ainda Heráclito que a  propõe a Nietzsche (cf. Ecce Homo, voI. VIII, t. I). Mas, à  primeira vista, essa teoria, que não nos espanta muito em um grego do século VI antes de nossa era, parece surpreendente, inesperada, em um pensador do século XIX, contemporâneo de consideráveis progressos da ciência dita positiva, progressos que, para muitos,  poderiam fazer caducar definitivamente esse gênero de hipóteses metafísicas ousadas. O que vem

fazer, no século do triunfo da ciência, semelhante mitologia oriental arcaica? Já sabemos o pouco caso que Nietzsche faz da razão científica, quando é animada por uma vontade negativa e reativa. Sabemos, principalmente, que uma idéia verdadeira não fica ligada a uma época, que o valor de uma hipótese não se mede por sua conformidade ao espírito de um tempo; o único critério de sua verdade está na sua riqueza, no número e na importância dos fatos e idéias, dos quais ela é capaz de dar conta.  É, pois, unicamente desse ponto de vista que convém examinar a doutrina do eterno retomo. Vamos então perceber que, nem mais nem menos aventurõsa que a hipótese inversa da existência de um mundo das Idéias, formulada por Piatão, a hipótese de Nietzsche é, a seu modo, de uma igual riqueza. A esse pensamento, o mais secreto de Zaratustra, o Prólogo faz apenas uma alusão muito discreta. Não insistiremos, e não esgotaremos o seu significado, mas se essa alusão vem no fim do Prólogo e lhe serve de conclusão, é porque esse tema constitui, aos olhos de  Nietzsche, o tema essencial de todo o Zaratustra. E veremos até que, enquanto a redigia, Nietzsche parece ter previsto acabar o Zaratustra na terceira parte, que,  justamente, trata desse eterno retomo. É esse o pensamento principal de Nietzsche, o pensamento principal de seu herói Zaratustra, imaginado exatamente para expressá-Io: "0 fundo próprio para a figura desse herói é o pensamento do Eterno Retorno, no ponto exato em que esse pensamento não é expresso. Pois o 'pensamento dos pensamentos' e sua doutrina exigem um mestre

singular. A doutrina é imediatamente representada pela figura do mestre."(18) Afirmar o eterno retomo é abrir a porta a uma NOVA MET AFíSICA antidualista (antiplatônica) e antifinalista (anti-hegeliana). Afirmar que, por uma infinidade de vezes, tudo volta, é fazer com que o devir escape à  temporalidade e ao inacabamento que ela implica, é dizer, efetivamente, que cada segundo, repetido uma infinidade de vezes, dura uma eternidade, é dizer que cada objeto temporal é eterno; é, pois, dar ao sensível a imutabilidade, a densidade, a plena realidade que Platão reservava às Idéias. E o primeiro a beneficiar-se dessa nova forma de eternidade é, evidentemente, o homem. Ao funâmbulo moribundo, que sy entristecia: '''Se dizes a verdade, (...) não passo de um animal'" (Prólogo, § 6), ao cristão e a Kant, que vêem nessa vida futura o postulado necessário da plena e justa realização da vida neste mundo,  Nietzsche responde que já possuímos a vida plena e completa, eterna, não no além, mas aqui na terra, neste mundo da nossa ação. Afirmar o eterno retomo é, ao mesmo tempo, fazer  do físico o objeto de uma metafísica. E, nisso, a descrição nietzschiana do universo revela agora o seu pleno alcance. Esse universo, onde ela mostra um emaranhado, um equilíbrio sempre instável e sempre corrigido de forças que rivalizam, opõem-se, conjugam-se, é não apenas o único universo, mas, além disso, é   eterno. Assim, a distinção mais elementar da mecânica clássica, a distinção, pelo físico, entre trabalho motor e trabalho

resistente, entre ação e reação, que constitui como que uma primeira explicação, uma primeira organização desse universo, toma um alcance metafísico: é uma verdade universal e eterna, pois esse universo é todo o ser e esse ser é eterno. Essa metafísica não desvaloriza o sensível, o devir, em nome de uma inteligibilidade imutável, mas, ao contrário, eleva o devir sensível à condição de essência inteligível. A metafísica do eterno retomo é a metafísica dos que ficaram "fiéis à terra" (Prólogo, § 3). Assim, realiza-se a reconciliação da filosofia e do pensamento de Heráclito, das Idéias e do sensível. Assim, realiza-se a superação da oposição entre o dualismo, que, como a águia, voa muito alto em um mundo que valeria muito mais que este, e o monismo materialista, que, como a serpente, rasteja sobre este mundo, único existente e sem valor. Com o eterno retomo, no qual a águia celeste - arrebata a serpente - terrestre - que ela toma "não como presa, mas  amiga", existe apenas um único mundo e esse mundo tem valor e sentido. Assim, realiza-se finalmente a reconciliação do homem consigo mesmo, desse animal orgulhoso, que desejaria ser um anjo, com o anjo que ele é, e bastante sagaz para saber  que é um animal: "Mas estou querendo o impossível,  porque peço à  minha altivez que acompanhe sempre a

minha sagacidade /"  Mas devolver seu valor ao mundo do devir não  poderia ser, para Nietzsche, justificá-Io por sua finalidade. A explicação última das coisas não está nem no "amanhã" nem no "alhures"; não se vai a   lugar  algum quando se anda em círculo. Ao mesmo tempo em

que é antiplatônica, a metafísica do eterno retomo é resolutamente anti-hegeliana, e não se trata, absolutamente, para Nietzsche, de mostrar que as coisas se subordinam a um desígnio de conjunto, que uma oOastú_  cia da razãoo°(l9) dá a cada acontecimento seu lugar em um todo, que toda decisão individual, todoprocedimento pessoal, se inscreve, como que contra a vontade, em um sentido da história. Se este mundo tem valor, e sentido, é porque é o mundo onde minha ação moral pode dar valor, e sentido, não Alhures,   não Amanhã, mas Aqui, e Agora. Uma meta física, como sabemos, traduz, e, recipro- . camente, inspira uma moral e costumes. Se a metafísica dualista tradicional traduz a vontade de negar ,e , ao mesmo tempo, inspira a dominação niilista das forças reativas, inversamente, a metafísica do eterno retomo traduz a vontade de afirmação e inspira a dominação da ação. A meta física do eterno retomo traduz e inspira A MORAL DO SUPER-HOMEM. Façamos, mais uma vez, a  pergunta da genealogia:   QUEM   afirma o eterno retomo de todas as coisas? O que   QUER  ele? A resposta é clara: É aquele que é imortal, e que está, pois, livre de qualquer ressentimento - de que desejaria ele vingar-se? -, é aquele que quer todo o ser, sem restrição, e para a eternidade. Com um entusiasmo bem superior à resignação estóica, com uma plena aceitação do real até em seus piores aspectos, bem mais corajoso que o otimista, que, como Leibniz, nega o mal para poder aceitá-Io, mais corajoso que aqueles para os quais todas as coisas são boas e este é o melhor dos mundos (Assim falou

 Zaratustra,   terceira parte, "00espírito de gravidade"), ele diz ••SIM"  a este mundo, nem melhor nem pior que um outro - único. Ao mesmo tempo, a metafísica do eterno retomo inspira a conduta do super-homem, a conduta ativa por  excelência. O super-homem, que diz "sim" a todo o real, não é aquele que o assume, que o aceita tal qual é, que carrega o peso do real; é aquele que age, impõe sua força ativa, domina e transforma o real. Ele realiza essa liberdade que é ação, força coagente, e não reação, força coagida. E a doutrina do eterno retomo dá sua plena dimensão a essa atividade: o super-homem é aquele que tem realmente consciência de que o mais ínftmo de seus comportamentos deverá repetir-se eternamente, que a menor de suas decisões compromete uma eternidade. Este é um excelente critério da seleção mais severa, da rigorosa eliminação de todas as veleidades mesquinhas, de todos esses atos furtivos, que nos apressamos a esquecer. O super-homem é aquele que só faz o que merece ser repetido uma infmidade de vezes, e durar  uma eternidade; o super-homem é aquele que "antecede com palavras de ouro os seus atos" (Prólogo, § 4), e ao fazer isso, compromete-se pela eternidade. Com essa alusão ao eterno retomo acaba o Prólogo. Os conceitos-chaves estão introduzidos, todos os temas anunciados. A abertura está terminada; a ópera pode começar.

Apresentação sistemática dos principais conceitos do Prólogo

Temos, pois, dois pares de noções fundamentais(l): - Por um lado, todo fenômeno, qualquer que seja, é constituído de uma relação hierárquica, mais ou menos complexa, de forças. Entre essas forças, algumas são ATIVAS,   outras  REATIVAS. COMPREENDER    um fenômeno será, pois, primeiramente, discernir quais são as forças ativas e quais as forças reativas; em seguida, e principalmente, distinguir que forças, ativas ou reativas, predominam sobre as outras. - Por outro lado, em toda relação de forças hierárquicas, isto é, em tudo, exprime-se uma vontade de  potência que pode ser, seja VONTADE DE NEGAÇÃO, de destruição, de depreciação, seja VONTADE DE AFIRMAçÃO,  de construção, de apreciação. Para   JULGAR O VALOR   de um fenômeno, será necessário compreender como se explica a hierarquia que nele se encontra, isto é, compreender por que

razões nele dominam, de acordo com o caso, as forças ativas ou   as for ças r e ativas. Para fazer isso, será necessár i o compreender a sua genealogia, isto é, distinguir  o tipo de vontade de potência, af irmativa ou negativa, pelo qual   esse fenômeno foi gerado, motivado. Temos assim, teoricamente, quatro combinações  possíveis (cf. quadro a seguir). Tipo de vontade inspirador a Vontade n egativ a

 

Vontad e afirmat iva

Hierarquia

Reação

>   Ação

1

3

Vigente

Ação

>   Reação

2

4

 Na realidade, lendo-se apenas o Prólogo, as coisas se complicam um pouco por dois motivos: Primeiramente, no Prólogo,   Nietzsche apresenta duas variantes da combinação I, variantes que designaremos respectivamente por IA e IB. Por outro lado,   o Prólogo não apresenta a combinação 3, tratada na seqüência da obra, ao descrever a atitude do burro: "dizer sempre 'I.A.'(2) - aprendem isto somente o burro e quem tem o seu espír ito!" (Assim falou Zaratustra,   segunda parte "Do espírito de gravidade")(3).  Nas quatro combinações que nos interessam diretamente (IA, lB, 2 e 4) encontraremos a cada vez um tipo dif erente de atores, uma metafísica diferente, uma mo-

ral diferente e os conceitos-chaves como "Morte de Deus" ou "Niilismo" mudarão de sentido. O quadro da página seguinte, que situa todas essas noções, pode constituir um verdadeiro resumo de todo o Prólogo.



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