Pensar Heidegger PDF
December 22, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Vânia Lúcia Kampff
Heidegger e o outro pensar: Uma leitura de Que chamamos pensar?
º a t g
Dissertação de Mestrado
o ç a c t r e o -
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Edgar de Brito Lyra Netto
Rio de Janeiro Abril de 2015
Vânia Lúcia Kampff
Heidegger e o outro pensar: Uma leitura de Que chamamos pensar?
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Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pósgraduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora Examinadora abaixo ass assinada. inada.
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Prof. Edgar de Brito Lyra Netto Orientador Departamento de Filosofia – PUC-Rio
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Prof. Luiz Camillo Dolabella Portella Osorio de Almeida Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Prof. Rodrigo Ribeiro Alves Neto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de Abril de 2015
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.
Vânia Lúcia Kampff
Graduou-se em Letras (Licenciatura Plena – Português / Inglês) pela PUC-Rio em 1988. Cursou Teologia / Filosofia na PUC - Rio. Foi coordenadora executiva da Cátedra Carlo Maria Martini. Área de pesquisa em Filosofia Contemporânea, com estudos desenvolvidos em Martin Heidegger.
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Ficha Catalográfica
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Kampff, Vânia Lúcia Heidegger e o outro pensar: uma leitura de Que chamamos pensar? / Vânia Lúcia Kampff ; orientador: Edgar Lyra Netto. – 2015. 148 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2015. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Caminho. 3. Pensamento. 4. Representação. 5. Temporalidade. 6. Metafísica. 7. Origem. 8. Ser. I. Lyra Netto, Edgar. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.
CDD: 100
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À Therezinha, por ter me ensinado ensinado a sonhar. Ao Carlos, ao Christian e ao Patrick, por sonharem comigo. comigo.
Agradecimentos
Com a palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, Heidegger nos fala tanto da memória quanto da gratidão. É, pois, tomada pelo espírito da letra que expresso o coração pleno de gratidão e faço memória a todos aqueles que fizeram parte desta trajetória: ao professor e orientador Edgar Lyra, pela presença e cuidado constantes em todos os momentos da caminhada; ao professor Eduardo Jardim, por conjugar sabedoria com generosidade e, ao acolher meu desejo em seguir na Filosofia, apontar o caminho; aos professores Luiz Camillo Osorio, Luisa Severo Buarque de Holanda, Maria Inês Anachoreta, Tito Marques Palmeiro, Márcia Sá Cavalcante Schuback, Maria Montenegro e José Trindade Santos, pelas mais variadas e tão pertinentes palavras-caminho ofertadas ao long longoo do percurso; º a t g o ç a c t r e o -
ao meu marido, Carlos Adolfo Kampff, aos meus filhos, Christian Kampff e Patrick Kampff, e à minha mãe, Therezinha Rey Scaldini, pelo amor, compreensão e amparo, sem os quais o caminho não seria o mesmo; às amigas Cláudia Lúcia Morais e Silva, Fernanda Aleman, Christina Procópio de Castro, Andréa Salgado e Manuela Brambilla, pelo apoio e amor fraterno. aos amigos da PUC-Rio Maria Priscilla Coelho, Victor Melo, Isabela Massa, Paulo Barcelos, Beatriz Gross e Leonardo Reis, pela partilha de ideias, filosóficas ou não, no decurso do trajeto; a todos os meus professores de Filosofia da PUC-Rio, cuja inteireza e coerência de propósito ajudaram a formar minha escuta ao caminho filosófico; ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio, desde sempre abrigo para o livre pensar; ao Departamento de Teologia da PUC-Rio, lugar em que o caminho teve iinício; nício; à Edna Sampaio, à Din Dináá Lúcia de Jesus S Santos antos e ao Daniel, pela pprontidão rontidão de todos os dias; à CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais esta pesquisa não poderia ter sido realizada; realizada; por fim, mas antes de tudo, a Deus, que pela fé foi a Luz que iluminou a totalidade do caminho.
Resumo
Kampff, Vânia Lúcia; Lyra Netto, Edgar de Brito. Heidegger e o outro pensar: uma leitura Que chamamos pensar?de . Rio de Janeiro, 2015. 148p. Dissertação de de Mestrado – Departamento Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Heidegger e o outro pensar: uma leitura de ‘Que chamamos pensar?’ busca, como o título sugere, percorrer alguns dos caminhos propostos pelo filósofo nesse escrito central em sua obra, ainda inédito em tradução para o português. O livro estudado compreende dois cursos ministrados por Martin Heidegger na Universidade de Freiburg, nos anos de 1951 e 1952. O primeiro curso ocupa-se com a questão do pensamento representacional e delimita o fim da º a t g o ç a c t r e o -
metafísica ao apresentar a absolutização da vontade de poder e da temporalidade presentes no Assim no Assim falou Zaratustra e Zaratustra e no Eterno no Eterno Retorno do Mesmo, Mesmo, de Friedrich Nietzsche. O segundo curso, para o qual esta pesquisa se volta com mais ênfase, concerne a Parmênides e aos primórdios do pensamento ocidental. Heidegger vislumbra no momento anterior ao advento da metafísica pistas para o “outro pensar”, e através da análise do fragmento VI do poema Da Natureza Natureza de Parmênides o filósofo nos encaminha para o caráter primordial daquilo que então se designou por pensar.
Palavras-chave
Caminho; pensamento; representação; temporalidade; metafísica; origem; ser.
Abstract
Kampff, Vânia Lúcia; Lyra Netto, Edgar de Brito (Advisor). Heidegger and the other thinking: a reading on What is called thinking?. Rio de Janeiro, 2015. 148p. MSc Dissertation – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Heidegger and the other thinking: a reading on ‘What is called thinking?’, thinking?’, as the title suggests, seeks to follow some of the pathways proposed by the philosopher in this central writing of his work, still unpublished in Portuguese. The studied book consists of two courses taught by Martin Heidegger at the University of Freiburg, in the years of 1951 and 1952. The first course concerns the issue of representational thinking and delimits the end of metaphysics in º a t g
presenting the absolutism of the will of power and the temporality, present respectively in Friedrich Nietzsche’s Thus Spoke Zarathustra Zarathustra and The Eternal
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Recurrence of the Same. Same. The second course, to which this research focuses with
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Heidegger envisions in the moment prior to the advent of metaphysics signs of the
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“other thinking”, and through the analysis of the fragment VI of Parmenides’
more emphasis, concerns Parmenides and the dawn of the Western thought.
poem On Nature, Nature, the philosopher leads us to the primordial character of what was then considered thinking.
Keywords Pathways; thinking; representation; temporality; metaphysics; origin; being.
Sumário
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1. Introdução
11
1.1. “... talvez se possa aprender a pensar...”
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1.2. Um filho do tempo
18
1.2.1. Um instante no tempo
20
1.2.2. O fio da meada
24
1.3.
O dar-curso-ao-aprender
26
1.4.
A caminho de Que chamamos pensar?
28
1.5.
Uma palavra sobre a palavra “interpretação”
35
2. Que Chamamos Pensar?, as preleções e o escrito
40
2.1. As preleções do inverno de 1951-1952
42
2.1.1. “O mais problemático do nosso problemático tempo...”
43
2.1.1.1. Nas raias da representação
49
2.1.2. O Zaratustra de Heidegger
57
2.1.2.1. Nietzsche e o “fim da metafísica”
65
2.2. As preleções do Verão de 1952
68
2.2.1. O chamado 2.2.2. O dizer das palavras
69 74
2.2.3. Gedanc - o pensar do coração
77
2.2.3.1. O Andenken e a lembrança fiel
85
2.2.3.2 A proveniência do pensar
88
3. O outro pensar
93
3.1. Na aurora grega do pensamento
94
3.2 Da traductio
100
3.3. O impensado de Parmênides 3.3.1. A !"#$%&'
103 103
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3.3.2. O fragmento VI
105
3.3.2.1. O !"!
107
3.3.2.2. O #$%&'( e o ()& " " ( (
112
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119
3.3.3. O + $ $ * & & + + $ $ e a determinação do pensar
130
4. Considerações Finais
137
5. Referências Bibliográficas
143
5.1. Os caminhos de Heidegger
143
5.2. Os caminhos que levam a Heidegger
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We shall not cease from exploration And the end of all our exploring Will be to arrive where we started And know the place for the first time. T.S.Elliot
1. Introdução
Caminante, son tus huellas el camino, y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. 1
Antonio Machado
Caminhos, não obras (Wege, (Wege, nicht Werke) Werke) – é o título com que Martin 2
Heidegger, ao organizar a publicação de suas obras completas (Gesamtausgabe ( Gesamtausgabe)) , define sua trajetória. Entendemos, com isso, que o filósofo quer preparar um caminho de Filosofia que passa por um movimento que envolve o abandono da resposta, um salto que nos coloca numa espécie de perspectiva suspensiva e rompe com a nossa relação imediata com as coisas do mundo. Nos referimos a uma trajetória filosófica que descortina, diante do olhar atento, a imagem de um andarilho que busca no caminho a permanência do encontro; um caminhante que, º a t g
no silêncio do mundo, abre pequenas veredas, caminhos fora do trajeto usual, que fazem jorrar com uma força intempestiva um pensar extraordinário.
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O caminho do pensamento de Heidegger que escolhemos trilhar percorre a trajetória dos cursos intitulados Que chamamos pensar? (GA8), proferidos na Universidade de Freiburg, no inverno de 1951 e no verão de 1952, e publicados em 1954. Pensamos que a relevância desse escrito não só se prende ao fato de situar-se na primeira seção dos livros publicados de Heidegger – fato que aponta para a importância do texto para o próprio filósofo –, mas, sobretudo, porque compreende o caminho trilhado pelo pensar do filósofo quando retoma a cátedra da Universidade de Freiburg, após 6 anos de ausência, quando ficou proibido de lecionar pela comissão de desnazificação da Alemanha. Nesse momento de retorno à universidade vamos encontrar Heidegger questionando o que significa
1
Antonio Machado, “Proverbios y Cantares XXIX”, in: Campos in: Campos de Castilla: Poesi Poesias as completas completas,, Disponível [online]: http://www.rinconcaste http://www.rinconcastellano.com/bi llano.com/biblio/sigl blio/sigloxx_98/amachado_prov. oxx_98/amachado_prov.html html Acesso em 7/1/2015. 2 Gesamtausgabe Gesamtausgabe é é o título dado à publicação das obras completas de Martin Heidegger, iniciada
em 1974 por supervisão de Hermann Heidegger e originalmente publicadas pelo editorial Vittorio Vittorio Klostermann de Frankfurt am Main, Alemanha. Para este termo em alemão usaremos as iniciais GA entre parênteses, acrescentadas ao número da ordem em que se encontra a publicação citada.
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pensar nesse tempo de hegemonia da técnica, tempo em que a ciência adquire estatuto de verdade. Essas preleções nos dão pistas do que seria pensar para além da metafísica tornada tecnociência e isso significa contemplar os dois umbrais: o fim e o começo. Consideramos, por isso, ser esse um caminho de fundamental importância no percurso do pensamento de Heidegger, um divisor de águas no qual é possível traçar o panorama daquilo que, para o filósofo, significa o fim da era do pensamento representacional e o anúncio de um outro pensar – um pensar o
o
originário. Não é à toa que os dois pensadores que pontuam o 1 e o 2 curso são aquele que prefigura o fim da metafísica e aquele que antecede o advento da metafísica, nomeadamente: Nietzsche e Parmênides. Que chamamos pensar? é tão relevante que Hannah Arendt, por ocasião da publicação do livro nos Estados Unidos, afirmou ser esse um escrito “[...] tão importante quanto Ser e Tempo, Tempo, [...] a única apresentação sistemática da filosofia tardia do pensador, [...] o mais emocionante de seus livros.”3 Em carta a Arendt, J. Glenn Gray, tradutor de Que chamamos pensar? pensar? para a língua inglesa, agradece a citação e confirma com a filósofa que o próprio Heidegger também considera esse seu mais emocionante º a t
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livro (das (das aufregendste meiner Buecher ))..
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Apesar de sua relevância, Que chamamos pensar? é um texto pouco
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explorado e até mesmo negligenciado. Circunstância que infelizmente não nos viabiliza um grande acervo de publicações para pesquisa, mas, sem dúvida, torna
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nosso interesse e responsabilidade ainda maiores. Diante de tamanho desafio, nos
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resta confessar de início que, se por um lado tivemos grande dificuldade em encontrar material que nos ajudasse em nosso caminho de modo a aprofundá-lo, por outro, nos colocou diante da tentativa de desenvolver um trajeto original sobre o escrito. escrito. Não caminhamos em busca de uma compreensão absoluta do texto, nosso olhar não seria capaz de tal alcance. Engendrar os caminhos de Heidegger é sempre tarefa árdua. Mas, procuramos por uma compreensão que possa levar-nos 3
Cf. Harpers Collins Publishers [online]: “For an acquaintance with the thought of Heidegger, What is called thinking? is thinking? is as important as Being as Being and time tim e. It is the only systematic presentation of the thinker's thinke r's late philos philosophy ophy and . . . it is perhaps the most exciting of his book books.” s.” (Hannah Arendt) Disponível em: http://www.harpercoll http://ww w.harpercollins.com/book/i ins.com/book/index.aspx?isbn= ndex.aspx?isbn=9780060905286 9780060905286 Acesso em:16 abr 2014. 4 Cf. The Library of Congress [online] disponível em: http://memory.loc.gov/cgi bin/ampage?collId=mh bin/ampag e?collId=mharendt_pu arendt_pub&fileName b&fileName=02/0205 =02/020500/02050 00/020500page.db& 0page.db&recNum=9 recNum=9 Acesso em: 23 abr 2014. 5 Cf. Robert Mugerauer, Heidegger Mugerauer, Heidegger’s ’s lan language guage and thinking , Atlantic Highlands, NJ: Humanities Press International 1988, p.192.
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a uma visão clara do que trata o escrito e do percurso nele envolvido. Nesse sentido, nossos passos se movem inicialmente buscando levantar o contexto, a época e a importância do texto no pensamento de Heidegger; em seguida, trataremos da apresentação do livro e da forma como os cursos foram ministrados; passaremos pelo o confronto do pensar de Heidegger com a absolutização da vontade de poder de Nietzsche, o que significará para o filósofo o ponto culminante, a última ideia da metafísica ocidental, sendo Nietzsche seu último pensador; e, finalmente, caminharemos por uma das veredas do texto, buscando explorá-la mais amiúde de modo a nos aprofundarmos numa das muitas possibilidades por ele oferecidas: a que concerne a Parmênides e aos primórdios do pensamento ocidental. Temos ciência de que os fragmentos deixados por Parmênides foram lidos e analisados por diversos estudiosos que, certamente, muito contribuíram para o enriquecimento do pensamento pensamento filosófico. Todavia, não no noss atemos aqui a essas essas interpretações. O que gostaríamos de ressaltar nesse escrito é a singularidade do pensar de Heidegger e, nele, a capacidade de trazer à claridade o impensável, º a t g
aquilo que subjaz encoberto à espera de alguém capaz de ali encontrar a alteridade – esse outro que se mostra ape apenas nas ocultando-se ocultando-se..
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Antes de iniciarmos essa trajetória, no sentido de nos prepararmos para acompanhar tamanha investida, voltemos nosso olhar para o que consideramos ser o primeiro passo em direção ao caminho que pretendemos percorrer e que também nos evidencia, uma vez mais, a importância de Que chamamos Pensar? – o próprio pensar de Martin Heidegger. 1.1.
“... talvez se possa aprender a pensar”
É notório o fato de que Heidegger foi um dos mais influentes pensadores do século XX. Sua influência é re reconhecida conhecida ppor or filósofos como Hans Georg Gadamer, Michel Foucault, Jacques Derrida, Hannah Arendt, Walter Biemel, entre outros. A reverberação que o pensar de Heidegger exerceu sobre cada um deles é tão relevante que julgamos importante nos atermos brevemente diante de tal reconhecimento. reconhecimento.
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Gadamer o descreve como “um visionário. Um pensador que vê”6. Para ele, o pensamento de Heidegger parecia desafiar qualquer comparação em relação àquilo que a filosofia havia significado anteriormente, uma incomparável renovação da tradição filosófica, um avanço, algo radicalmente novo. Michel Foucault nos revela: “Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial. [...] Todo o meu desenvolvimento filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger”7. Jacques Derrida também confessa que seu próprio trabalho “não teria sido possível sem a abertura das perguntas de Heidegger”8 e que mesmo seu famoso termo “desconstrução” foi parcialmente inspirado no início da Destruktion que Heidegger fez à tradição filosófica. Todo esse reconhecimento nos coloca diante da grandeza de um pensar cuja a dimensão da obra soma 102 volumes. O pensar de Heidegger é certamente grandioso. Mais do que isso, o pensar de Heidegger é o pensar de um homem que se vê diante da condição extrema de ser marcado e distinguido pelo destino de pensar, um pensar que o dominava de tal forma que, por mais de uma vez, confessara ao filho Hermann: “algo pensa dentro de mim. Não posso defender-me disso.” 9 É esse o pensar que pretendemos º a t
encontrar, não o pensar rebuscado da coisa erudita, mas, o da coisa pensada; não o
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pensar que se objetiva na esfera do cálculo, da finalidade, mas, aquele que,
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segundo o próprio Heidegger, “[...] não chega a um resultado; não produz efeito”10, todavia tece caminhos para a própria questão do pensar.
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Muitas são as visadas oferecidas para o pensar de Heidegger. Entretanto,
-
nossos olhos para essa tarefa serão os de Hannah Arendt; um olhar que evidencia, 11
através do texto “Martin Heidegger faz 80 anos” , não só o percurso do seu 6
Hans-Georg Gadamer, Heidegge Heidegger’s r’s ways , Albany, NY: State University of New York Press, 1994, p.17. 7 Michel Foucault apud Lee Braver, Heidegge Heidegger’s r’s later writing writin g – A read reader’s er’s guide , New New York, NY: Continuum International Publishing Group, 2009, p.127.Tradução nossa. 8 Jacques Derrida apud Lee Braver, ibidem, p.127. Tradução nossa. 9 u m mestre da Alemanha en entre tre o bem e o mal , São Paulo: Rüdiguer Safranski, Heidegger: um Geração Editorial, 2005, p.372. 10 Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e Escritos Filosóficos ; (tr.) Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370. 11 Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios , São Paulo: Companhia das Letras,1987, p.221. “Martin Heidegger faz 80 anos” foi escrito em 26 de setembro de 1969. Este manuscrito serviu como base para um discurso de Hannah Arendt no dia 25 de setembro de 1969, em Nova York, transmitido no “estúdio noturno” da estação de rádio da Baviera. A versão escrita foi publicada inicialmente na revista Merkur (caderno10, 1969) e, posteriormente, na edição brasileira de Homens em tempos sombrios , em que exclui-se o capítulo sobre Waldemar Gurian e incluiu-se a
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pensar, mas também a sinuosidade desse percurso. O escrito em comemoração aos oitenta anos do pensador tem um belíssimo tom celebrativo, mas é, sobretudo, uma síntese do trajeto do seu pensamento. Nele, Arendt nos conta do rumor sobre um professor que chegara a Freiburg e que havia alcançado as “coisas mesmas” 12 que Husserl havia proclamado; um professor que dizia que tais coisas não eram coisas do mundo acadêmico, mas, desde sempre, coisas do desejo do homem pensante. A filósofa fi lósofa nos fala fal a de um pensar pulsante, de um questionar constante, que, por conta dessa indagação, havia rompido o fio da tradição e redescoberto o passado. Um pensamento que não se restringia à releitura de textos, porém, se colocava em profundo diálogo com o legado deixado trazendo à tona os tesouros do passado de forma totalmente revitalizada, de tal modo, que o que emerge é totalmente outro. Segundo a pensadora, a tradição faz uma ordenação da história da filosofia de modo a torná-la uma sucessão de etapas, uma ordenação cronológica das coisas. Ao romper com esse fio, Heidegger faz com que a história da Filosofia fique desobrigada da visão do autor em uma perspectiva histórica e pode, com isso, trazer as questões para a contemporaneidade. Essa ruptura é de º a t g
certa forma inquietante, mas, ao mesmo tempo, libera o contato direto com o pensar. Arendt nos adverte: “há um mestre: talvez se possa aprender a pensar.”13
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Safranski nos conta que todo esse rumor gerou a imagem do rei secreto, uma reputação que tomou vulto muito antes da publicação de Ser e Tempo (GA2),
o
em 1927. Desde o início da década de 1920, em Marburg, Heidegger já era
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considerado secretamente o rei da filosofia na Alemanha. Todavia, esse rei não se movia no mundo das aparências, seu trajar era simples como o de um zelador ou um técnico, seu reino é o do pensamento; um reino totalmente oculto ao mundo, mas que, ao mesmo tempo, se estende sobre o pensar de tantos outros e determina tão marcadamente a fisionomia espiritual do séc. XX. Arendt mesmo indaga: “Pois como se poderia explicar de outra forma a influência única, muitas vezes
importante homenagem a Martin Heidegger. A versão que Hannah Arendt transmitiu no rádio e enviou a Heidegger por carta por ocasião de seu aniversário diverge de forma insignificante da versão publicada. (cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger Heidegger:: Correspondência Correspondência 1925/1975, 1925/1975, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 p.259.) 12 Grifo da autora. 13 Hannah Arendt, Homens Arendt, Homens em tempos te mpos somb sombrios rios,, 1987, p.223.
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subterrânea do pensar e ler pensante heideggerianos que se ultrapassa tão 14
amplamente o círculo dos alunos e o que geralmente se entende por filosofia?”. Para a pensadora, o pensamento heideggeriano não se situa na dimensão contemplativa buscando um fundamento último, mas lança-se na profundeza abissal para buscar caminhos. Trata-se de um pensar que é atividade pura e, por certo, põe tarefas para si, não metas e fins; um pensar que teve como único resultado o fato de ter desmoronado a cristalizada estrutura da metafísica que jazia descrente há muito tempo. O aprender a pensar, ao qual Hannah Arendt se refere, se põe para Heidegger como uma experiência que acontece não pela vontade ou necessidade de saber, mas como um movimento vivificante, onde pensar e viver se unificam. A autora nos fala de um pensar apaixonado que se presentifica pelo simples fato de estar no mundo e que pensa sobre tudo que é, sem, com isso, se prender a conceitos e sistemas, mas no sentido de deixar marcas para o caminho do pensamento, trilhas que indicam e apontam novas direções para o pensar – um º a t g o ç a c t r e
pensar que quebra a visão habitual das coisas e nos libera a uma nova visão, visã o, uma nova paisagem. Referimo-nos, por fim, com Arendt, a um pensar que se espanta diante do simples, como dizia Platão no Teeteto Teeteto,, e que permite fazer do espanto uma
o
morada. Um habitar sereno e silente que torna o que estava ausente, presente; o
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que estava distante, próximo. O espanto como morada envolve uma tomada de distância do nosso envolvimento imediato com as coisas, não de forma a demarcar uma sina, mas, a possibilidade de um caminho. Em comunicação posterior a Heidegger, a filósofa ainda acrescenta: [sua] vida e sua obra nos ensinaram o que é PENSAR e [...] os escritos permanecerão paradigmáticos para tanto. Paradigmáticos também para a coragem de se arriscar no interior do extraordinário ainda não desbravado, de se expor completamente ao ainda impensado que precisa ser peculiar àquele que não se dedicou senão ao pensamento e a sua 15 profundeza.
14 Hannah 15
Arendt, Homens em tempos Arendt, Homens te mpos somb sombrios rios,, 1987, p.223. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Heidegger, Hannah Arendt Ar endt - Martin Heidegger Heidegger:: Correspondência Correspon dência 1925/1975, 2001, p.140. Maiúscula da autora.
17
O pensamento de Heidegger é, de fato, tão paradigmático para Hannah 16
Arendt que alguns anos mais tarde, em A vida do espírito , obra publicada postumamente em 1978 – Arendt faleceu em 1975, antes de concluir o livro –, vemos a epígrafe que abre o primeiro volume, com mais de 160 páginas dedicadas ao pensar, com os dizeres de Heidegger nos apontando caminhos para o pensamento. Caminhos esses que já estavam es tavam bem demarcados em Que chamamos pensar?. Diz pensar?. Diz Heidegger: O pensar, à diferença das ciências, não produz nenhum saber. O pensar não traz nenhuma sabedoria de vida utilizável. O pensar não soluciona nenhum mistério do mundo. O pensar não 17 empresta imediatamente quaisquer forças ao agir.
Ali, a orientação para o pensamento proposta por Heidegger nos descortina uma visão do pensar como uma experiência que se dá livre de um solo seguro, uma definição que somente é vislumbrada “quando já não lhe atribuímos alguma função cognitiva ou instrumental ou quando já não esperamos dele uma resposta ou uma norma para a vida prática”, diz Eduardo Jardim no prefácio à edição brasileira de A de A vida do espírito es pírito.. A mesma citação encontramos na palavras º a t g o ç a c t r e o -
de Rüdiger Safranski: “Heidegger está convencido de que seu pensar é desse tipo. Ele não conduz a um saber como as ciências, não traz nenhuma sabedoria útil de vida, não resolve enigmas do mundo, não confere diretamente forças para agir,” 18 mas se move em uma transitividade direta, o que significa dizer que Heidegger pensa algo e não sobre algo.19 Nos arriscaríamos mesmo a falar de um pensar intransitivo, na medida em que nos referimos a um pensar que se move em sua
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O livro A livro A vida do espírito esp írito foi publicado em 1978, entretanto, o capítulo sobre “O Pensar” foi apresentado de forma abreviada nas Gifford Lectures, Lectures, na Universidade de Aberdeen na Escócia, em 1973. (Cf. Mary McCarthy, “Nota da Editora”, in: Hannah Arendt, A Arendt, A vida do espírito es pírito,, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p.xix.) Sabemos que a reflexão sobre o pensar proposta por Arendt neste escrito escrito tem como motivação inicial a investigação da relação entre o mal e a ausência de pensamento – relacionados aos crimes de Eichmann – mas, há também o interesse em fazer uma análise do estatuto do pensamento, ativida atividade de entendida pela tradição como pura contemplação. Eduardo Jardim nos coloca: “em desacordo com essa posição, Hannah Arendt entendeu que pensar é uma atividade. Porém, essa atividade não se confunde com nenhuma outra. Por essa razão, um dos propósitos de A de A vida do espírito esp írito foi examinar o caráter singular da atividade do pensar.” (cf. Eduardo Jardim, Hannah Jardim, Hannah Arendt: Ar endt: pensa pensadora dora da crise c rise e de um n novo ovo início,, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.116.) início 17 Martin Heidegger, Que chamamos pensar?, pensar?, (tr.) [em elaboração] Edgar Lyra, a partir de Was hei! hei ! t Denken?, Denken?, Tübingen: Max Niemeyer, 1954. p.134 e e Hannah Arendt, A Arendt, A vida do espírito esp írito,, 2000, “Introdução”, [numeração não demarcada]. 18 Rüdiger 19
Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre Safranski, Heidegger ntre o bem e o mal , 2005, p. 413. Cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Heidegger, Hannah Arendt Ar endt - Martin Heidegger: C Correspond orrespondência ência 1925/1975, 2001, p.133.
18
própria questão, que está sempre a caminho do próprio pensar – um pensar que pensa. Além da importância do pensar de Heidegger evidenciada através dos escritos de Hannah Arendt, essa breve visada também tornou possível vislumbrar o caminho filosófico que este pensar sempre buscou trilhar: o de um outro pensar; fato que nos encaminha para uma compreensão da trajetória do pensamento de Heidegger ao dialogar com Nietzsche e Parmênides em Que chamamos pensar?. Nos direcionemos, direcionemos, pois, ao tempo dos cursos eem m questão. 1.2.
Um filho do tempo
Os anos que antecedem o período do curso Que chamamos pensar? foram, por certo, extremamente difíceis para Heidegger. Com o fim f im da Segunda Grande Guerra Mundial, não só a pátria, mas a própria vida e reputação do filósofo encontravam-se em ruínas. Heidegger estava proibido de lecionar, e apesar de discutir-se uma espécie de aposentadoria com direito a ensinar, havia uma grande resistência na universidade de Freiburg quanto ao seu retorno ao mundo º a t g o ç a c t r e o
acadêmico. Houve até mesmo a ameaça de confiscarem sua biblioteca particular para suprir a biblioteca da Universidade de Münster. Além disso, seus filhos Jörg e Hermann encontravam-se prisioneiros de guerra do regime Soviético, servindo de mão de obra na reconstrução do país de Stalin. O espírito alemão, que vivera há pouco a esperança de uma hegemonia, encontrava-se apático, sem vida.
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No ano de 1946, Heidegger decidiu se retirar para sua cabana em Todtnauberg por alguns meses. C Consumido onsumido pelo interrogatório do comitê de desnazificação no ano anterior, o filósofo sofreu um colapso mental e chegou a se internar por três semanas no Instituto Baden, em Badenweiler, para se tratar. Heidegger, por certo, pagou caro por seu envolvimento com o Partido NacionalSocialista, em 1933. Todavia, mesmo recluso e oprimido, o pensar de Heidegger não se deteve. Enquanto para muitos, o filósofo “estava colhendo o que semeou”20, segundo Safranski, sua semeadura filosófica haveria de ressurgir poderosamente.. É nesses longos anos de ausência da vida acadêmica – sabemos poderosamente que Heidegger foi privado de lecionar por seis anos – que o filósofo escreveu, por 20
Grifo do autor, ao citar a forma como Robert Heiss, colega de faculdade de Heidegger, se refere ao filósofo em carta a Jaspers.
19
exemplo, a carta “Sobre o humanismo” (GA9), uma resposta à pergunta fundamental elaborada por Jean Beaufret: Comment redonner une sens au mot “Humanisme”?. Uma “Humanisme”?. Uma resposta tão fundamental que, segundo Emmanuel Carneiro Leão, a discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência Histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de 21 questioná-la em seus fundamentos.
Em verdade, essa carta deve muito de seu conteúdo a Sartre que declarara seu pensamento completamente destituído de qualquer amparo metafísico, sendo o seu existencialismo um novo humanismo, o que levou Heidegger a refletir se no humanismo e existencialismo sartreanos haveria mesmo um desamparo metafísico. Na carta, Heidegger se refere a algo da ordem de uma ética original que dispensa qualquer fundamento normativo, mas é capaz de direcionar o homem a um novo modo de viver. Um pensar que lança um outro olhar sobre o mundo – um pensar que deixa o ser, ser – e, neste sentido, é esteio para todo o comportamento. Para Safranski, apesar de Heidegger não se considerar um º a t g
orientador político, mas apenas um pensador, a carta “Sobre o humanismo” serve “[...] como tentativa de recapitular seu próprio pensar e determinar o seu lugar
o ç a c t r e o -
atual, como abertura de um horizonte onde se visualizam certos problemas da vida em nossa civilização.”22 Outro abrigo para o pensar de Heidegger teve lugar ao norte da Alemanha, nas conferências proferidas no Clube de Bremen, em 1949. Essas conferências foram organizadas por influência da família de seu aluno e historiador Heinrich Wiegand Petzet e serviram como precursoras do pensamento posterior de Heidegger, quando o filósofo adentrou mais incisivamente a questão da técnica. Além do clube de Bremen, as noites de quarta-feira no sanatório de Bühlerhöhe, logo acima de Baden-Baden, e a academia da Baviera, no início de 1950, em Munique, também foram palco para Heidegger exercer o seu mais alto pensar. Um período em que o isolamento imposto i mposto ao seu pensamento foi quebrado. Como se esses lugares e o público, muitas vezes com pouca ou nenhuma tradição
21 Emmanuel
Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.9. 22 Rüdiger Safranski, Heidegger Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, pp.425-426.
20
intelectual, possibilitasse a ousadia do pensamento do filósofo em meio aos tempos sombrios do pós-guerra. Segundo Safranski, Heidegger escolhera aquele fórum onde sentia um ar livre para iniciar ali o projeto-piloto de sua futura filosofia [...]. Um relato [publicado] poucos dias depois da primeira conferência, diz que a cidade podia sentir-se orgulhosa porque Heidegger viera a Bremen “para ousar a mais audaciosa manifestação já feita do 23
seu pensar”.
Uma particularidade ainda em relação a esse período encontramos em Petzet, que menciona uma carta de Heidegger agradecendo o vinho recebido de Bremen como uma forma de celebrar o retorno do filósofo às salas de aula em 1951. Enfatiza-se, com isso, o quanto aquela acolhida em Bremen tinha significado para o filósofo. Diz Heidegger: [...] obrigado pelo presente e pelo pensamento por trás dele. Hoje me lembrei particularmente dos amigos de Bremen, Bremen, que podem afirmar serem os primeiros os primeiros a terem arriscado deixando-me falar em público há alguns anos atrás. Mais uma vez, torna-se claro para mim o quão essencial é a palavra falada, mesmo que esta palavra seja recebida por poucos – e, de fato, desconhecidos – 24 entre tantos. º a t
1.2.1. Um instante no tempo
g o ç a c t r e
Voltemos nosso olhar agora para outro aspecto que o retorno à universidade e o próprio texto nos trazem. Sabemos que esse é um momento importante na vida do filósofo. Heidegger, por certo, amargou suas escolhas,
o
chegando mesmo a reconhecer sua empreitada política como um “erro” e seu
-
reitorado, “uma grande besteira”25. No entanto, o filósofo nunca veio a público para falar sobre esse capítulo de sua vida. vida. Sabemos também, por outro lado, que seu pensamento, apesar de se ocupar com a questão do ser, nunca se afastou do seu tempo, pois é no homem que o destino do ser se cumpre. Há, portanto, uma imbricada relação entre o ser, a história e o homem bastante presentes nos caminhos do pensar do filósofo, o que nos leva a indagar se não haveria alguma relação do texto Que chamamos pensar? pensar? com o tempo e a história do próprio Heidegger.
23
Rüdiger Safranski, Heidegger Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, p.456.
24 Heinrich
Petzet, Encounters and dialog Petzet, Encounters dialogues ues with Ma Martin rtin Heidegg Heidegger er 1929-1976 1929-19 76 . Chicago: The University of Chicago Press, 1993, p.63. Grifo do autor. Tradução nossa. 25 Cf. François Fédier, Anatomia Fédier, Anatomia de um escând escândalo alo,, Petrópolis: Vozes, 1989, p.164.
21
Como vimos há pouco, as conferências no Clube de Bremen, em Dezembro de 1949, se situam já na esfera do que estaria no porvir do pensar do filósofo. Não só isso, é ali que pela primeira vez encontramos explicitamente uma relação direta da fala de Heidegger com os acontecimentos do seu tempo. No primeiro ciclo de quatro conferências intituladas “Visão do que é” ( Einblick Einblick in das was ist )),, diz o filósofo na palestra denominada “Ge-stell” ( Das Das Gestell ): ): A agricultura é agora uma indústria alimentícia motorizada – em essência o mesmo que a fabricação de cadáveres nas câmaras de gás e campos de extermínio, o mesmo que a fome das nações, o 26 mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio.
Segundo Timothy Clark, essa afirmação aparentemente se insere na conferência de
forma
27
improvisada. Todavia,
ainda
que
Heidegger
tenha
falado
espontaneamente, ao afirmar que a agricultura moderna, o holocausto e a bomba de hidrogênio têm a mesma essência, o filósofo estaria se referindo ao fato de que esse conjunto de coisas revelam um mundo em que a tecnologia fundamenta a maneira como as coisas aparecem. Esse entendimento nos aponta para o germe da questão sobre o “mais problemático do nosso problemático tempo”28, temática º a t g
enfaticamente trabalhada por Heidegger nas primeiras preleções de Que chamamos pensar?.
o ç a c t r e
Todavia, nem todos vão entender a fala de Heidegger como uma crítica ao Nazismo. De acordo com Julian Young, todo o criticismo à filosofia do pós-
o
guerra de Heidegger pode ser associado ao silêncio em relação ao seu
-
envolvimento com o Partido Nacional-Socialista. Para o autor, o silêncio de Heidegger não é um silêncio significativo, daquele que por vezes diz mais do que as próprias palavras podem dizer. Mas, nas palavras de Jean-François Lyotard: 29
“Um silêncio mudo que não deixa nada ser ouvido. Um silêncio de chumbo.” Para Young, esse silêncio poderia ser facilmente identificado como teimosia, orgulho e, até mesmo, “uma ‘psicologia nacionalista’ de um homem que recusa a
26
Martin Heidegger apud Timothy Clark, Martin Clark, Martin Heidegger Heidegger , Nova York, NY: Routledge, 2002, p.124.Tradu ção nossa p.124.Tradução nossa.. 27 O autor sugere o improviso baseado no fato de que, mais tarde, quando o texto reapareceu a frase havia sido cortada. 28 Martin 29
Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.6. Grifo do autor. Jean-François Lyotard, Heidegger Lyotard, Heidegger and a nd "the jews jews” ”, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990, p.52. Tradução nossa.
22
ceder à correção política da ‘moralidade do vencedor’”30. De acordo com Lyotard, o silêncio de Heidegger tomou essa proporção, exatamente, por se tratar de um grande pensador. Uma proporção direta entre a grandeza do pensar e o tamanho do erro. Todavia, segundo Fédier, esse não é o silêncio estéril de um homem desonrado. Pelo contrário, seu comportamento denota o de um homem que se sentiu genuinamente caluniado e seu pensar se torna extraordinariamente mais fecundo. Apesar dessas conferências terem gerado controvérsias, o silêncio de Heidegger foi quebrado na conhecida entrevista ao Der Spiegel , acontecida em 1966, mas somente publicada postumamente, a pedido do próprio filósofo. Ali, Heidegger explicou o porquê do seu envolvimento com o Partido NacionalSocialista e o motivo que o levou a assumir a reitoria. A justificativa encontravase na falta de autonomia da universidade, entendida como uma organização meramente técnica. O filósofo diz que “[...] pretendia que a universidade se renovasse por meio de uma reflexão própria e assim conquistasse uma posição firme diante do perigo da politização da ciência [...]”.31 Safranski acrescenta que, º a t
naquele tempo, Heidegger acreditava que na discussão com o nacional socialismo
g
haveria espaço para uma renovação, para novos rumos. Todavia, segundo Fédier,
o ç a c t r e
a partir do momento em que Heidegger percebeu que o caminho do regime de Hitler seguia em direção oposta ao seu pensar, o trabalho do filósofo fil ósofo teria buscado
o
enraizar ainda mais o nexo entre a história e a filosofia, de modo a criticar as
-
ideologias do regime. É o próprio Heidegger que, se referindo ao período posterior à sua renúncia, renúncia, corrobora esse pensam pensamento. ento. Diz o filósofo: após a renúncia, limitei-me às minhas tarefas de ensino. No semestre de verão de 1934, lecionei “Lógica”, no semestre seguinte 1934/35 dei as primeiras preleções sobre Hölderlin. Em 1936 começaram as preleções sobre Nietzsche. Todos que souberam escutar, ouviram que se tratava de uma tomada de posição frente fr ente ao na nazismo. zismo. 32
30
Julian Young, Heidegger Heidegger,, Philosophy, N Nazism azism , Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1997, p.173. Tradução nossa. O autor se refere a Carl Schmitt, que justifica seu próprio silêncio como o de alguém que se comportou honradamente e não se retrataria retrataria diante daqueles inclinados a apenas o destruírem. 31 Martin Heidegger, Heidegger e a política. O caso de 1933”, in: Revista Tempo Brasileiro , N 50, julho-setembro, 1977, p.71. 32 Ibidem, p.76. “
°
23
Um testemunho que reforça essa atitude do filósofo é o de Walter Biemel, aluno de Heidegger de 1942 a 1945, que diz: Heidegger era um dos muito raros professores a jamais começar seus cursos pela “saudação alemã” (“Heil (“Heil Hitler”), apesar Hitler”), apesar de ser administrativamente obrigatória. Seus cursos... faziam parte dos muito raros realizados onde se arriscavam observações contra o nacional-socialismo. Tive muitas conversas naqueles tempos com Heidegger que nos teriam custado a cabeça. Está totalmente 33 fora de dúvida que ele era um adversário declarado do regime.
E acrescenta mais adiante: [...] quando fui convidado à sua casa de Zähringen, a conversa girou em torno da situação política e militar. Heidegger falou da direção do partido como direção de criminosos; a continuação da guerra era um absurdo. A seguir, vim a conhecer outros professores.. Em nenhum deles encontrei professores encon trei uma rejeição tão clara e nítida do regime. Quanto a mim, eu não ousava falar com 34 ninguém tão abertamente contra o nacional-socialismo.
Mas, qual seria a relação entre o que foi exposto e o que ora buscamos retratar? Segundo George Pattison, o escrito Que chamamos pensar? oferece não só uma retrospectiva sobre a vida pregressa de Heidegger, como também esboça º a t g o ç a c t r e
parte daquilo que será ser á interesse do filósofo até sua morte, em 1976. Para Pattison, o erro político do envolvimento de Heidegger com o nacional-socialismo é decisivo para o entendimento de sua filosofia posterior. Não que sua filosofia se torne política, mas sua inaptidão política, por certo, reverbera em seu pensamento. Essa ideia é reforçada por Fédier quando diz:
o
falar de seu reitorado, que ele foi “a maior estupidez” de sua vida, isto não significa precisamente que Heidegger minimiza seu erro, mas ao contrário, que ele lhe dá sua dimensão filosófica extrema: é um erro filosófico – em que a própria filosofia está
-
em jogo. A consequência rigorosa disso é que, uma vez reconhecido o erro, o trabalho deve primeiro retratar aquilo aquilo que tornou o erro possível – em outros termos: Heidegger deve 35 mudar seu pensamento.
Ainda segundo Fédier, não se pode atribuir a mudança de pensamento à questão política. Todo esse pensar já se encontrava latente desde antes de Ser e Tempo e já começara a surgir com a conferência “Sobre a essência da verdade” Tempo (GA9).36 Todavia, a experiência do reitorado teria sido fundamental para
33
Walter Biemel apud François Fédier, Anatomia Fédier, Anatomia de d e um escândalo escând alo,, 1989, p.161. Ibidem, p.161.
34
35 Ibidem, 36
p.164. Grifos do autor. A primeira edição de “Sobre a essência da verdade” foi impressa em 1943 e encerra o texto de uma conferência pública que foi proferida diversas vezes com o mesmo título desde 1930. (cf.
24
Heidegger compreender que ele foi longe demais e assumiu riscos acima do 37
“razoável”. 1.2.2. O fio da meada
Fica clara para nós a posição de Heidegger quanto ao equívoco político do regime político nazista e a medida do seu real envolvimento com o ideário nacional-socialista de Hitler. Mas, e em relação a si próprio? Haveria em Heidegger uma motivação outra do que a de tornar a universidade uma trincheira do pensamento como ele mesmo justificara? Será através das palavras de Hannah Arendt que encontraremos novas pistas. A filósofa nos alerta para a relação perigosa entre o reino do pensamento e o “mundo das coisas humanas”. Fala-nos das idas de Platão à Sicília “a fim de ajudar o tirano de Siracusa” e da tendência para a tirania, à exceção de Kant, de quase todos os grandes filósofos. Para a Arendt, Heidegger também se inseriu nesse modo destrutivo ao se associar a Hitler e se deixou levar certa vez pela tentação de mudar sua morada e de se ‘interligar’ com o mundo das coisas humanas. E o que aconteceu com ele foi pior do que com Platão, porque o tirano e suas vítimas não se encontravam no além-mar, mas na sua própria terra. [...] O que veio à tona para ele através daí foi a descoberta da vontade enquanto vontade de vontade e com isso 38 da vontade de poder.
º a t g o ç a c t r e o -
Em Safranski também encontramos o questionamento sobre a suscetibilidade de Heidegger ao poder. Para o filósofo e historiador, [...] o problema do silêncio heideggeriano não reside em ter calado sobre Auschwitz. Ele silenciou filosoficamente sobre outra coisa: sobre si próprio, sobre a sedução do filósofo pelo poder. E – como tantas vezes na história do pensamento – ele não faz a pergunta: Quem sou afinal, quando penso? O pensante tem pensamentos, mas às vezes é o inverso: os pensamentos o tem. O quem do pensar se transforma. Quem pensa as grandes coisas pode facilmente cair na tentação de julgar-se um grande 39 acontecimento.
Ernildo Stein, Nota do Tradutor, in: Martin Heidegger, Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos , São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.149.) filosóficos, 37 Grifo do autor. 38 Hannah
Arendt e Martin Heidegger, Hannah Heidegger, Hannah Arendt Ar endt - Martin Heidegger Heidegger:: Correspondência Correspon dência 1925/1975, 2001, p.139. 39 Rüdiger Safranski, Heidegger Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, p.489.
25
Aprendemos com o próprio Heidegger que a vontade de poder é uma essência que se opõe ao pensamento. Sobre isso, Arendt acrescenta que o próprio filósofo percebeu, antes de nenhum outro, a incongruência dessa essência em relação ao pensar e o quanto ela atuava de forma destrutiva sobre si mesmo. O pensar habita uma outra morada, se assim podemos dizer. A filosofia mesma, desde seus tempos mais remotos, nos fala que a morada do pensamento é silenciosa e distante do mundo. Lembremo-nos da imagem de Tales de Mileto que cai dentro de um poço enquanto contemplava as estrelas, fazendo, com isso, que nos acostumássemos com a ideia de que os filósofos se cercam apenas de pensamentos improdutivos, que os afastam das coisas do mundo. Todavia, como vimos anteriormente, o pensar de Heidegger não estava fora do mundo. Seu pensar fervilhava exatamente sobre as coisas que, estarrecido, o mundo acabara de ver. De fato, a sedução pelo poder é uma questão que se põe se pensamos nos caminhos que Heidegger escolheu trilhar. Todavia, não encontramos uma concordância deliberada do próprio filósofo quanto a isso. Sua explicação ao Der º a t g
Spiegel , como vimos, prende-se a uma motivação nobre. nobre. Mas, parece-nos possível pensar que ao se voltar para
a vontade de poder de Nietzsche , Heidegger
o ç a c t r e
estivesse não só querendo fazer frente ao nazismo, mas também reconhecendo essa força como a armadilha que enredou seu próprio pensar. Segundo Arendt:
o
“No entender de Heidegger a vontade de governar e de dominar é uma espécie de
-
pecado original, do qual ele mesmo se achou culpado c ulpado quando tentou lidar com o seu breve passado no movimento nazista.”40 Seria, então, possível falarmos em uma reverberação entre a obra e a vida de Heidegger? De acordo com Fédier, essa ressonância é de fato complexa, mas não tão dissonante a ponto de falar-se em uma incongruência, o que nos faz assentir para a possibilidade de alguma relação entre ambas. Safranski nos conta que a vida e a obra estão tão imbricadas que mesmo rejeitando tal ligação, Heidegger desejava “viver para a filosofia e talvez até desaparecer na própria filosofia.” 41 Como entender, então, essa primazia da obra? Para Fédier,
40
Hannah Arendt, A Arendt, A vida do espírito esp írito,, 2000, p.316. Rüdiger Safranski, Heidegger Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, p.27.
41
26
quando se trata de um autor [...] que deliberadamente coloca a obra acima de sua própria vida – supondo-se que por “obra” entenda-se bem aquilo a que chega a possibilidade essencialmente humana de fazer vir a ser aquilo que sem ela jamais se realizar realizaria ia – não somente a “vida” passa para segundo plano, mas a relação do biógrafo com a obra é uma relação imediata [...].”42
Sobre isso, o próprio Heidegger nos adverte: “Não é acaso sobretudo a obra que torna possível uma interpretação da biografia?”43 É, pois, com esse pano de fundo que vamos encontrar Heidegger no ano de 1951, quando finalmente lhe será concedido o direito de retornar às salas de aula da Universidade de Freiburg. Nos encaminhemos agora, mesmo que brevemente, para algo que julgamos digno de nota nesse retorno à universidade – o ofício de ensinar. 1.3.
O dar-curso-ao-aprender dar-curso-ao-aprender
As aulas que perfazem o texto Que chamamos pensar? têm um sentido particular na carreira de Heidegger, pois, como dissemos, foi o primeiro curso º a t
dado pelo filósofo na universidade depois da interdição imposta i mposta pelo programa de
g
desnazificação, como também, o último como professor assalariado antes da sua
o
aposentadoria, marcando formalmente o fim da sua carreira acadêmica.
ç a c t r e o -
Entendemos que esse retorno deva ter reverberado muitíssimo no espírito de Heidegger. Afinal, lecionar era um grande prazer para o filósofo. Glenn Gray na introdução à tradução para a língua inglesa i nglesa de Que chamamos pensar? diz: o que este longo período de interrupção na atividade docente deve ter lhe custado não é difícil de imaginar, pois Heidegger era acima de tudo um professor. Não é por acaso que quase todas as suas publicações desde Ser e Tempo (1927) foram primeiramente aulas ou seminários. Para ele a palavra falada era muito superior à escrita [...]”.44
Entendemos, com isso, que apesar da ebulição do pensamento de Heidegger não ter cessado no período do pós-guerra em virtude de sua suspensão, e mesmo ministrando palestras, era a sala de aula que lhe trazia grande satisfação. Sobre o retorno de Heidegger à universidade, Hugo Ott descreve: 42
François Fédier, Anatomia de d e um escând escândalo alo, 1989, p.34. 43 Martin Heidegger apud François Fédier, ibidem, p.33. 44 J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking?, New York, NY: Harper & Row, 1968, p.xvii. Tradução nossa.
27
quando Heidegger lecionou, novamente e em público [...] – um triunfo silencioso – o auditório encheu-se de alunos. Um desejo acumulado de saber, bem como a curiosidade e a saudade da expressão filosófica de Heidegger, tornaram-se notórios. Devia45 se ter ouvido Heidegger quando perguntava: o que é pensar?”.
Vários são os relatos de ex-alunos, tais com Gadamer, Arendt, Petzet, entre tantos outros, que falam da presença, do olhar e do pensar penetrantes que Heidegger exercia sobre todos. Karl Rahner credita a Heidegger o título de “mestre”, o único a quem poderia chamar reverentemente “professor”, e aquele que o “ensinou a ser capaz de procurar em todas as coisas o ‘segredo inefável’[...].”46 Walter Biemel descreve que Heidegger incitava os alunos a pensarem por conta própria e de maneira profunda, não só se preocupando com a questão filosófica, mas com toda a época e suas diferentes dimensões. Encontramos o seguinte relato de Biemel: aqueles que conheceram Martin Heidegger somente através de seus escritos, não podem ter uma ideia do seu estilo único de
º a t
ensinar. Mesmo com os iniciantes, ele era de rapidamente colocá-los no pensamento, não para quecapaz aprendessem vários pontos de vista ou reproduzisse reproduzissem m o que leram, mas para que entrassem no movimento do pensamento. Parecia que, como se 47 por algum milagre, milag re, a prática socrática viesse viess e à vida novamente.
g
Para Biemel, foi graças à habilidade pedagógica de Heidegger que ele aprendeu o
o
significado de “entrar na mente de um filósofo” ou “filosofar-com”, um modo de
ç a c t r e o
caminhar no texto filosófico no sentido de entendê-lo em sua plenitude e abrangência.48
-
Permitimo-nos este desvio em nosso caminho, não só porque é nosso desejo enfatizar a importância do retorno de Heidegger ao mundo acadêmico, mas também porque o ofício de “dar-curso-ao-aprender” foi lugar para o pensamento de Heidegger nas aulas inaugurais de Que chamamos pensar?. Ali, o filósofo debruça-se sobre a tarefa do professor e nos fala que “ensinar é ainda mais difícil
45
Hugo Ott, Martin Ott, Martin Heidegger Heid egger - A caminho cam inho de sua biografia biografia,, Lisboa: Instituto Piaget, 1992, p.341. Entendemos Enten demos que a frase final de Ott seja a própria próp ria pergunta que nomeia o curso Was hei! hei! t Denken?,, aqui traduzido por Que chamamos pensar?. Denken? pensar?. 46 Paul Edwards, Heidegger’ Edwards, Heidegger’ss confusion confusionss, Amherst, NY: Prometheus Books, 2004, p.13. Grifos do autor. Tradução nossa. 47 Walter Biemel, Martin Biemel, Martin Heidegger: Heide gger: An illust illustrated rated study study,, New York, NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1976, p.7. Tradução nossa. Cf. Walter Biemel, “Le professeur, le penseur, l’ami”, in: Michel Haar (ed.), Cahier de L’Herne no. 45: Heidegger , Paris: Editions de L’Herne, 1983, p.128. Grifos do autor. 48
28
que aprender”49, porque o autêntico professor não ensina nada que não seja o próprio aprender; ideia que faz ressonância com o relato r elato de Biemel na questão da autonomia que Heidegger buscava de seus alunos. O dar curso ao aprender deve se ater a um constante convite ao aprender: aprender a deixar os alunos aprenderem e aprender a deixar a aprendizagem acontecer. O deixar aprender circunscreve-se a um acontecimento que se dá na genuína relação professor-aluno e que se atém, sobretudo, a um consentimento, uma abertura para que o aprender se instale. Diz Heidegger: na relação entre o professor e aqueles que estão aprendendo, quando verdadeira, não entra em jogo nem a autoridade do sabetudo, nem a influência autoritária daqueles que detém cargos. Por isso, permanece uma grande coisa tornar-se um professor, algo que é totalmente diferente do que tornar-se um docente famoso.50
Há, pois, nesse deixar aprender, algo de um conceder, de “deixar a coisa acontecer”51 por parte do professor, que se põe como fundamental e que possibilita uma apropriação autêntica – o aprender em si mesmo. É nesse sentido que entendemos o dar curso ao aprender de Heidegger: lugar para o despertar de º a t g
um pensar que, exatamente por sua relevância, inicia o curso que ora nos propomos a examinar. examinar.
o ç a c t r e o -
1.4.
A caminho de
Que chamamos pensar?
O que encontramos na trajetória das preleções de Que chamamos pensar?, além do encaminhamento para as questões filosóficas ligadas à dinâmica interna do pensamento de Heidegger – que serão abordadas no capítulo seguinte –, também nos remete diretamente às necessidades do momento histórico. Concordamos com as palavras de Otto Pöggeler de que o silêncio de Heidegger não significa que o filósofo tivesse se tornado incapaz de se relacionar com a realidade, muito pelo contrário, o pensar solitário do filósofo buscava “encontrar as pegadas da dinâmica arrebatadora dos novos tempos e com isso o motivo mais profundo do fracasso fracasso das próprias ambições político-filosóficas.” político-filosóficas.”52
49
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.16. p.16. Grifo nosso. 52 Rüdiger Safranski, Heidegge Heidegger: r: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, p.346. 50 Ibidem, 51
29
Como vimos anteriormente, o próprio Heidegger confessara haver em sua filosofia uma crítica velada ao regime de Hitler. Safranski acrescenta que mesmo sabendo que estava sob a vigilância da Gestapo e que suas críticas causariam entraves na publicação de seus escritos, Heidegger não se deteve. Mas, de que forma podemos entender essas críticas? Para Heidegger, a vontade de poder se manifesta como uma força que se intensifica e arrasta o homem para uma realidade embotada, totalmente à mercê da ideologia dominante, que acaba por reforçar a própria personificação do niilismo. Com isso, a vontade de poder reivindicada pelos ideólogos nazistas não é superação, mas, aperfeiçoamento do niilismo [...]. Assim, as conferências sobre Nietzsche Nietzsche se tornam um ataque frontal à metafísica decadente do racismo e do biologismo. Heidegger admite a aplicabilidade parcial de Nietzsche para a ideologia dominante – e com isso afasta-se dela. De outro lado, tenta ligarse com Nietzsche, mas de modo a apresentar seu próprio pensar 53 como uma superação de Nietzsche – nas pegadas de Nietzsche.
Essas pegadas o direcionam a Assim falou Zaratustra, Zaratustra, escrito de Nietzsche que compõe as preleções de inverno de 1951 de Que chamamos pensar?. pensar?.54 Heidegger entende que ali Nietzsche manteve para si suas melhores ideias, uma vez que o º a t
mundo ainda não estava pronto para acolhê-las. Segundo Safranski, o desejo de
g
Heidegger é não somente compreender Nietzsche melhor do que o próprio
o ç a c t r e
Nietzsche se compreendeu, mas, sobretudo, ultrapassá-lo em direção ao pensamento do ser.
o
A relação de Heidegger com Nietzsche nos evidência ainda um outro
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aspecto importante. Além de ajudar a formular críticas ao sistema político de Hitler e suas consequentes maquinações tecnológicas, Nietzsche trazia ainda a vivificação da mais pura identidade alemã. O dilema deixado por Nietzsche, de 53
Rüdiger Safranski, Heidegger Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, p.356. Em acréscimo à compreensão de Safranski, encontramos em Sluga que: “o Nietzsche de Heidegger seria um político “anti-política” “anti-política” e as lições políticas a serem derivadas dele deveriam ser, por sua vez, anti-políticas anti-políticas por natureza. Onde Baeumler e Jaspers tinham usado Nietzsche para falar a favor ou contra o nacional-socialismo, Heidegger buscou separar o nacional-socialismo nacional-socialismo realmente existente da nova e idealizada alternativa de Hitler. Através do exame de Nietzsche, o filósofo não só tentou atacar o sistema vigente, comprometido comprometido apenas com uma vontade de poder vazia e com a conseqüente corrida em direção à maquinações tecnológicas, mas também, com a ajuda de Nietzsche, procurou pr ocurou ao mesmo tempo temp o proclama proclamarr a mais pura id identidade entidade na nacional cional e socia sociall alemã.” Tradução nossa. (cf. Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche” Nietzsche”,, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A Wrathall, A companion to Heidegger , 2005, p.113. Tradução nossa.) 54 Heidegger, no “Prefácio” escrito em 1961 à edição de Nietzsche de Nietzsche I , declara: “esta publicação pode propiciar prop iciar ao mesm mesmo o tempo um olhar sobre o caminho d dee pensamento pensamen to que percorri perc orri desde 1930 até a Carta sobre o humanismo [...]”, humanismo [...]”, em 1946. (cf. Martin Heidegger, in: Nietzsche in: Nietzsche I . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.4.)
30
que a questão do ser é um mero “vapor e erro” para o homem moderno, estava de alguma forma ligada ao tema da identidade alemã, e Heidegger entende que Hölderlin é o único que pode ajudar nesse ponto. Para o entendimento da questão da identidade alemã percebida por Heidegger, Hans Sluga nos esclarece que “Nietzsche, ou melhor, Nietzsche em conjunto com Hölderlin , foram para Heidegger em meados dos anos 1930 e 1940, 55
os guias a uma concepção mais profunda do que significa ser alemão.” Para o autor, essa questão já estava presente em Heidegger desde seu discurso de posse à Reitoria e, ainda mais abertamente, desde o escrito Introdução à metafísica (GA40). Nesse último trabalho, Heidegger argumentou que que o dilema dilema da vida moderna e ocidental manifestou-se mais severamente na Alemanha, “a terra do meio”. O filósofo teria declarado dramaticamente que o povo alemão estando no centro, sofria a pressão mais intensa. Diz Heidegger: [...] o nosso povo, as pessoas mais ricas em vizinhos e, portanto, as pessoas mais ameaçadas de extinção, e por tudo isso, as pessoas mais metafísicas. [...] Se a grande decisão sobre a Europa não é a de percorrer o caminho da aniquilação – então, esta decisão pode surgir apenas através do desenvolvimento de 56 novas forças espirituais do centro.
º a t g
O filósofo continua,
o
tal desenvolvimento exige o reconhecimento de que Nietzsche diagnosticou corretamente a questão do ser como um mero vapor e erro para o homem moderno. [...] O julgamento de Nietzsche, é claro, entende-se em um sentido puramente desdenhoso [...]. Nós, por outro lado, d devemos evemos recuperar essa questão qu estão contra co ntra toda t oda 57 a tradição metafísica.
ç a c t r e o -
Para Sluga, Heidegger estava convencido de que só dessa forma poderia ser salva a terra do meio e o dilema do homem moderno ser resolvido. A questão do ser e a questão da da identidade alemã pertenciam, assim, misteriosamente juntas. Nesse sentido, o confronto entre Nietzsche e Hölderlin torna-se recorrente e necessário58, 55
Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, W rathall, A A companion companio n to Heidegger , 2005, p.113. Tradução nossa. 56 Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.113. Tradução nossa. 57 Ibidem, p.113. Tradução nossa. 58 Hölderlin’ss Hymns Sobre a ordem dos cursos sobre Nietzsche e Hölderlin, Sluga nos aponta: Hölderlin’ “Germania” and “The Rhine”( Rhine”(1934-1935); Nietzsche: The Will to Power as Art (1936 -1937); Nietzsche’s Basic B asic Metaphysical Metaph ysical Position in Occidental Occidenta l Thought: The Th e Eternal Recurrence Recur rence of the Same (1937); On the Interpretation of Nietzsche II: Untimely Meditations: One, The Use and Abuse of History (1938-1939) ; Nietzsche’s Doctrine of the Will to Power as Knowledge (1939) ; Nietzsche: European Eu ropean Nihilism Nihili sm (Second Trimester T rimester 1940); 1940 ); Announced Announc ed but not given: g iven: Nietzsche’s Nietzsch e’s Metaphysics. Instead: Hölderlin’s Hymn “Remembrance”(1941-1942); Hölderlin’s Hymn “The
31
não só na medida em que recoloca a questão do ser, mas também porque aponta caminhos para um novo e mais profundo modo de ser alemão. alemão. Segundo o intérprete , o que interessava a Heidegger era a poesia real de Nietzsche e seu diagnóstico para a falta de moradia moderna encontrados no poema filosófico Assim falou Zaratustra. Assim, se Nietzsche diagnosticou a condição moderna, Hölderlin, por outro lado, foi o poeta do regresso à casa, e Heidegger entende que “[...] este retorno é o futuro da essência histórica dos alemães”59. Todavia, não ddevemos evemos entend entender er essa falta de moradia como algo que se prende a um território específico. Para o filósofo, a “a-patridade” 60 do homem moderno não diz respeito apenas ao povo alemão, mas fala de uma perspectiva mais abrangente – do homem que vive o abandono do ser, longe de sua origem, e, portanto, sem moradia. Esquecido Esquecido do ser, o homem moderno não habita sua pátria essencial – a proximidade ao ser. Diz Heidegger referindo-se ao poema Regresso de Hölderlin:
º a t
o “Alemão” não é dito ao mundo, para o mundo se restabelecer ao modo de ser alemão. É dito aos alemães para que eles, em virtude do destino, que os faz pertencer aos outros povos, integrem, juntamente com eles, a História do mundo. A pátria dessa morada Histórica é a proximidade ao Ser.61
g o ç a c t r e o -
As preleções voltadas para Nietzsche acontecem entre os anos de 1936 e 1941 na universidade Freiburg62. Essas preleções foram reunidas em dois volumes – Nietzsche I e Nietzsche II – apresentados na Gesamtausgabe como GA6.1. e GA6.2., respectivamente. Dessa época, ainda encontramos o ensaio “A Palavra de Nietzsche ‘Deus está Morto’” de 1943, incluído em Caminhos de floresta (GA5). No pós-guerra, Heidegger volta seu olhar para Assim falou Zaratustra, apresentado na preleção de 1951 intitulada Que chamamos pensar? (GA8), e, por
Ister” (1942); Announced but cancelled: Introduction Introduction to Philosophy: Thought and Poetry (19441945) . (cf. Hans Sluga,“Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to Heidegger , 2005, p.113ss.) 59 Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.114. 60 Grifo nosso. 61 Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Brasileir o, 1967, p.62. Maiúsculas do autor. 62 Segundo Casanova, Heidegger teria retomado, entre os anos de 1944-1946, alguns dos principais pontos po ntos apresentados aprese ntados em Nietzsche I e e acrescentado em Nietzsche II , no capítulo VI intitulado “A metafísica metafísica de Nietzsche”. Ali, Heidegger Heidegger retoma a “Vontade de poder” e “O eterno retorno do mesmo”, além de outras questões. (cf. Marco Antônio Casanova, “Apresentação” “Apresentação”,, in: Martin Heidegger, Nietzsche II , Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.v.)
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último, o texto “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” escrito escrito em 1953 e publicado em Ensaios em Ensaios e conferências (GA7). conferências (GA7). Por outro lado, a relação de Heidegger com a Grécia já vinha se fortalecendo em seu pensar desde a década de 1920. Marlène Zarader nos diz que, no entanto, por volta dos anos de 1930 vamos encontrar em Heidegger “algo como uma gênese da prevalência concedida aos pré-socráticos tomando forma.”63 64
O filósofo nomeia “pensadores originários” , aqueles que pensam no âmbito da origem e fazem a experiência do início do pensamento.65 Em carta de 1932 a Elisabeth Blochmann, o próprio Heidegger reconhece que o tempo primevo é caminho do seu pensar. Diz o filósofo: quanto mais intenso meu trabalho, mais sou forçado a voltar ao grande início com os gregos. E muitas vezes vacilo sem saber se não será mais essencial deixar de lado todas as outras tentativas e trabalhar apenas para que aquele mundo fique novamente diante dos nossos olhos, não apenas para que o aceitemos, mas pela sua 66 excitante grandeza e exemplaridade.
Hannah Arendt também aponta para essa característica no pensar de Heidegger ao º a t
afirmar que [...] a tempestade que atravessa o pensamento heideggeriano [...] não é fruto do nosso século. Ela vem do tempo primevo e o que deixa para trás é algo levado ao acabamento; algo que, como tudo o que provém de um acabamento, pertence também ao 67 âmbito primevo.
g o ç a c t r e
Heidegger entende esse início da filosofia grega, origem de toda a cultura
o -
ocidental, como o âmbito da liberdade, o domínio da indeterminidade e o espaço da questionabilidade, um estar no mundo muito distante daquele presente opressivo atravessado pelas maquinações da técnica. Nesse sentido, nos últimos meses da guerra, estarrecido diante dos acontecimentos, Heidegger volta-se para 68
Parmênides e Heráclito como uma saída para aquele mundo caótico. Safranski relata que “enquanto os acontecimentos disparam para seu fim catastrófico, e os
63
Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann (ed.), Martin (ed.), Martin Heidegger:: Critical assessments Heidegger assess ments,, London/New York, NY: Routledge, 1992, p.21. Tradução nossa. 64 Grifo nosso. 65 Martin Heidegger, Heráclito Heidegger, Heráclito,, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p.18. 66 Rüdiger Safranski, Heidegger Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, p.261. 67 Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Heidegger, Hannah Arendt Ar endt - Martin Heidegger Heidegger:: Correspondência Correspon dência 1925/1975, 2001, p.140. 68 Cf. François Fédier, Anatomia Fédier, Anatomia de um escând escândalo alo,, 1989, p.163.
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crimes do regime de Hitler atingem um ápice horrendo com o assassinato dos 69
judeus, Heidegger enterra-se cada vez mais fundo no inicial ( ( Anfängliche).” Anfängliche).” Este inicial grego nos fala de um mundo que é palco para que tudo possa se tornar visível. Nele, o homem “expressa com especial pureza o traço cósmico fundamental de tudo que quer aparecer e por isso é ponto da mais alta visibilidade.”70 Para Heidegger, existe uma ali uma riqueza que vai muito além do que os próprios gregos compreenderam, uma visão de mundo extraordinária que permite a atenção à presença daquilo que se s e faz presente. Por outras palavras: o lugar aberto do ser. O filósofo nos fala de um lugar que “deixa os entes aparecerem no seu ser, e mostra cada vez a totalidade de sua condição.” 71 Essa mesma questão nos é apresentada por Michael Watts em uma relação Michael Watts imediata com a linguagem. Segundo o autor, Heidegger considerava a língua grega arcaica como a língua primordial e original de toda Europa, uma linguagem que se fundava na experiência do ser e que estava intrinsecamente atrelada àquilo que nomeia. De acordo com Watts, Heidegger entendia a língua alemã como º a t g o ç a c t r e o -
descendente direta do grego arcaico. As outras línguas europeias ou derivavam do alemão, ou haviam se contaminado pelo latim, fato que as teriam afastado de sua origem, de sua proximidade com o ser. Segundo o autor, para o filósofo, “a Alemanha possuía este recurso nacional de acesso privilegiado à experiência grega do Ser”72, uma vez que através da palavra grega arcaica estaríamos na presença da própria coisa e não de um signo; como se o grego arcaico fosse uma 73
“extensão da memória do Ser” . Nesse sentido, ao reavivar o uso desses vocábulos, a essência e energia dessa experiência original poderia ser recapturada. Watts ainda nos conta que Heidegger esperava, ao reavivar essa linguagem, instaurar um outro começo, uma nova era, um outro pensar. Este outro começo (andere Anfang ), ), segundo Zarader, constitui o movimento do pensar de Heidegger ao se voltar para as palavras inaugurais pronunciadas na alvorada do pensamento, as quais, ao resguardarem em si os traços de um começo originário, são 69
Rüdiger Safranski, Heidegger Safranski, Heidegger:: um mestre da Alemanha eentre ntre o bem e o mal , 2005, p.387. Ibidem, p.349. 71 Martin Heidegger, Parmênides Heidegger, Parmênides,, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008, p.132. 72 Michael Watts, Heidegger Watts, Heidegger:: a beginner beginner’s ’s guide guide,, London, UK: Hodder and Stoughton, 2001, p.68. Maiúscula Maiús cula do auto autor. r. Tradução n nossa. ossa. 73 Ibidem, p.69. p.69. Maiúscula Maiúscula do autor. Tradução nossa. 70
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portadoras de abertura para um outro começo que será evocado pelo filósofo. Neste sentido, voltar às palavras pala vras pré-socráticas pré-s ocráticas não significa uma releitura, releit ura, mas a busca de uma significação originária para o pensar desses primeiros pensadores. O olhar de Heidegger se volta para os pré-socráticos com as preleções de verão de 1932 intituladas “O Início da Filosofia Ocidental (Anaximandro e Parmênides)” (GA35); alguns anos mais tarde, no semestre de verão de 1935, Heidegger se deterá sobre Parmênides no curso nomeado Introdução nomeado Introdução à metafísica metafísica (GA40); encontraremos novamente Parmênides nas preleções de inverno de 1942/43, que darão forma ao livro Parmênides Parmênides (GA54); logo em seguida, no verão de 1943, Heidegger se debruça sobre Heráclito em “A Origem do Pensamento Ocidental – Heráclito” e, no de verão de 1944, sobre a “Lógica” e “A doutrina heraclítica do lógos lógos”, ”, que formarão o livro Heráclito Heráclito (GA55); (GA55); em 1946 encontramos o escrito “A Sentença de Anaximandro”, publicado em Caminhos de floresta (GA5); em 1951, “Lógos” (Fragmento 50 de Heráclito); em 1951/52, “Moira” (Parmênides, Fragmento 8); e, em 1954, “Alétheia” (Fragmento 6 de Heráclito), os três publicados em Ensaios e conferências conferências (GA7), em 1954; º a t g
Parmênides aparecerá novamente no verão de 1952 nas preleções intituladas Que chamamos pensar? (GA8) (GA8) e publicadas sob o mesmo título em 1954 ; por fim,
o ç a c t r e o
encontraremos Parmênides na conferência “O princípio de identidade”, identidade”, pronunciada por ocasião do quingentésimo jubileu da universidade de Freiburg em 1957 e publicada no livro Identidade livro Identidade e diferença (GA11).74
-
Através dessa breve exposição percorremos o caminho do pensamento de Heidegger entre anos 1930 e 1950, percurso que, certamente, nos conduz às preleções de Que chamamos pensar?. pensar?. Segundo Glenn Gray, as preleções de inverno de 1951 nos apontam para uma espécie de momento decisivo no pensamento de Heidegger. O tradutor nos assinala as sinala que o confronto de Heidegger com a absolutização da vontade de poder de Nietzsche significará para o filósofo o ponto culminante, a última ideia da metafísica ocidental, sendo Nietzsche seu último pensador. Quando do retorno para o curso do verão de 1952, Heidegger dirige seu olhar para as origens do pensamento grego: Parmênides e o poema 74
Nos detivemos aqui aos escritos mais importantes de Heidegger dedicados a Anaximandro, Parmênides e Heráclito. Todavia, é do nosso entender que devam existir outras ocasiões em que Seidel,, Martin Heid Heidegger egger and the PreHeidegger revisite os pré-socráticos. (cf. George Joseph Seidel Socratics: An Introduction to his thought . Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1964, p.58.)
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filosófico Da Natureza.75 Aqui, Heidegger estará mais diretamente relacionado com a forma em que a linguagem se relaciona com o pensamento e sua resposta ao chamado do pensamento. Glenn Gray entende que, nesse sentido, Que chamamos pensar? é pensar? é um sinalizador para o caminho posterior do pensamento de Heidegger.76
1.5.
Uma palavra sobre a palavra “interpretação” Uma última palavra ainda se faz necessária, antes de encerrarmos esta
primeira parte de nosso caminho. c aminho. Por inúmeras vezes vimos falando de um pensar que se volta para os textos filosóficos não como uma interpretação dos mesmos, mas como uma forma de ressignificar o que foi pensado, como um pensar que se põe sobre a filosofia fil osofia de modo a buscar o impensado e, neste salto, sa lto, apropria-se do que foi dito e torna-lhe próprio. Hannah Arendt nos conta que no pensar de Heidegger irrompem inúmeras tempestades. Mas, as tempestades aí encontradas são compreendidas metaforicamente como um ciclo natural que se manifesta na medida em que tudo o que atravessa esse pensar passa por uma profunda º a t g o ç a c t r e
transformação, que ocorre justamente por conta do distanciamento que o pensar deve tomar da coisa a ser pensada, de forma a tornar o que está ausente, presente. Marco Antônio Casanova, na apresentação da tradução para o português do livro Nietzsche I , adentra essa questão mais profundamente e nos fala da
o
hermenêutica heideggeriana como um distanciamento que aponta para uma
-
aproximação, mas, um aproximar-se que revela a si próprio salvaguardando-se de uma perspectiva meramente interpretativa. Perguntamos: como isto se dá? Para o autor, essa hermenêutica acontece a partir do termo alemão Auseinandersetzung , cuja riqueza semântica impõe uma grande dificuldade na tradução, mas pode ser entendido a partir da palavra confrontação. Trata-se de um encontro que pressupõe uma inserção no pensamento do outro filósofo e que possibilita, sobretudo, uma abertura a determinações próprias. O vocábulo alemão infere também um afastamento que estabelece uma tensão necessária para que algo possa surgir, pois é sempre necessário um distanciamento para que se possa ver algo em sua identidade mais própria. Não nos referimos aqui, portanto, a um 75 Herman
Diels e Walther Kranz, Kranz, Die Die Fragmente Fragme nte der Vorsokratiker Vorso kratiker , Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1960. Verlagsbuchhandlung, 76 Cf. J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking? thinking?,, 1968, p.xviii.
36
afastamento que permite uma neutralidade sobre aquilo que é observado, mas a um distanciamento que aproxima, no sentido que traz à tona o próprio de cada um. Acompanhemos o pensamento de Casanova: de acordo com um velho princípio hermenêutico, interpretar implica incessantemente ver mais do que aquilo que se acha expresso no texto e mesmo do que aquilo que o próprio autor estava em77 condições específicas.
de
formular
com
suas
intenções
O autor nos aponta que essa compreensão hermenêutica já estava formulada em Friedrich Schleiermacher, cuja “arte da interpretação”, expressa no escrito Hermeneutik und Kritik mit besonderer Beziehung auf das Neue Testament , publicado postumamente em 1838, representou para a hermenêutica moderna um grande legado. Entende-se, a partir de Schleiermacher, que o objetivo da hermenêutica é a compreensão do texto em seu sentido mais amplo e isso significa compreender o autor melhor do que o próprio autor se compreendeu.78 Quanto a essa questão, Friedrich Schlegel já havia ressaltado anteriormente que os textos “clássicos” expressam muitas vezes significados inconscientes que abrangem “uma profundidade infinita” de sentido, em grande º a t
parte desconhecida para o autor.79 Para Heidegger,
g
dizer que um pensador pode ser “melhor” compreendido do que ele mesmo se compreendeu não é atribuir-lhe nenhuma falta, mas, bem ao contrário, assinalar a sua grandeza. Pois somente o pensamento originário esconde de si um tesouro que sempre permanece impensável e que pode, a cada vez ser melhor compreendido, isto é, ser compreendido de maneira diferente do 80 seu significado literal.
o ç a c t r e o -
O filósofo entende que somente aquilo que é pensado em sua verdade pode ser compreendido de novo e melhor do que aquilo que foi anteriormente pensado. Todavia, esse novo e melhor não se atém à competência de quem interpreta, mas simplesmente à dádiva daquilo que se interpreta. De acordo com Casanova, não é possível descobrir a verdade de um escrito somente pela da letra do texto. Qualquer confrontação demanda um horizonte próprio para sua compreensão. Mas, de que horizonte nos fala
77
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche Heidegger, Nietzsche I , 2010, p.viii. Cf. Friedrich Schleiermacher, Hermeneutic Schleiermacher, Hermeneuticss and criticism criticism,, 1998, p.228. 79 Cf. Stanford Encyclopedia of Philosophy [online]. Disponível em : http://plato.stanfo http://pl ato.stanford.edu/entri rd.edu/entries/schlei es/schleiermacher/#4 ermacher/#4 Acesso em 12/4/2014. Grifos do autor. 80 Martin Heidegger, Heidegger, Heráclito Heráclito,, 1998, pp.78-79. Grifo do autor. 78
37
Casanova? O autor nos coloca que, para Heidegger, é o mundo que estabelece o horizonte em que toda a interpretação se realiza. Entretanto, nossa concepção de mundo não é a mesma de Heidegger. Entendemos por mundo o lugar em que as coisas se apresentam como aquilo que são – coisa, objeto, utensílio –, lugar de manifestação do conjunto de entes. Para Heidegger, esse vocábulo não fala desse conjunto de coisas. O entendimento heideggeriano de mundo ultrapassa o conjunto dos entes presentes à vista e, por isso, não pode se reduzir a uma parte desse conjunto, mas deve abranger a totalidade de tudo que é, ou seja, algo que ultrapassa a medida ôntica. O filósofo nos fala daquilo que transcende a cada vez essa totalidade, um campo de manifestação que nos encaminha para uma abertura de mundo que somente pode ser determinada a partir de um horizonte que é a “medida ontológica dos entes em geral” 81: o ser do ente – aquilo que é na totalidade. Sobre isso, é o próprio Heidegger, Heidegger, em Que chamamos pensar?, pensar?, que nos adverte: “pensador não depende de pensador: liga-se, quando pensa, à coisa a pensar, ao ser. Só na medida em que se une ao ser é que pode estar aberto ao influxo dos pensadores e do que foi por eles pensado.”82 º a t g
Nesse sentido, o texto filosófico fala tão somente a partir de um apropriarse que se deu primeiro83 e que abre um campo de possibilidades capaz de transpor
o ç a c t r e
esta distância, uma condição prévia que acontece de forma a liberar a visão para um “ver-através”84. Segundo Casanova, é este o mundo que, para para Heidegger,
o
engloba em si todas as possibilidades de uma interpretação: uma determinada
-
condição prévia que nos coloca diante de inúmeras possibilidades interpretativas, de novos horizontes hermenêuticos que se deram a partir de algo que preserva o inicial – aquilo que foi essencialmente e guarda em si algo que não foi formulado – o originário que deve ser novamente elaborado de maneira a fazer aparecer o que ainda não se revelou. O autor acrescenta: um horizonte de constituição de certos acontecimentos intrinsecamente articulados com possibilidades fundamentais, retidas naquilo que um dia se deu de modo tão essencial, que efetivamente nunca chega a se perder no passado, mas sempre
81
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche Heidegger, Nietzsche I , 2010, p.xi. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], elaboração], pp. pp. 80-81. Grifo G rifo nosso. 83 Nossa compreensão, a partir da citação de Heidegger, é a de que somente a partir do acontecimento da união ao ser, entendido pelo filósofo como apropriativo apropriativo ( Ereignis Ereignis), ), é que haveria uma abertura própria para a hermenêutica heideggeriana sobre o ser. 84 Grifo nosso. 82
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continua viabilizando a cada vez, no instante, uma decisão 85 quanto ao modo de ser daquilo que está por vir.
Mas, como é possível alcançar esse horizonte compreensivo? Será por meio de um salto que esse horizonte de compreensão se abre para os pensadores. Segundo o intérprete, trata-se de um salto para dentro do horizonte histórico onde 86
é possível compreender os pensadores como voz da da História , pois é a História que dá voz aos pensadores e não o contrário. Nesse sentido, [...] pensar historicamente para Heidegger significa aprender a escutar aquilo que é decisivo no passado, e aquilo que é decisivo no passado não passa, mas [...] arrasta para si o futuro de um tal modo que tudo que possa acontecer, tudo aquilo que possa vir a se dar no futuro precisa necessariamente se articular de alguma 87 forma como o passado.
Como vemos com Casanova, para Heidegger, o primado dado às aberturas anteriores do ser do ente na totalidade não fala de uma nostalgia, da contemplação de algo que ficou no passado, mas, ao contrário, “o que fala nesse primado é, antes, a percepção de que o modo como o ser historicamente se abre, delimita as possibilidades de constituição de novos campos de manifestação do ente na º a t g o
totalidade.”88 Isso significa, por outras palavras, que a confrontação histórica com a abertura do ente na totalidade pode determinar os acontecimentos que estão por vir.
ç a c t r e
Este será o lugar do pensamento de Heidegger em Que chamamos
o
pensar?:: um salto hermenêutico que se coloca em uma dinâmica de confrontação pensar?
-
histórica com Nietzsche e Parmênides, que, todavia, “não se atém ao passado como aquilo que se encontra distante do presente e do futuro, mas se liga incessantemente àquela dimensão do passado que continua decisiva para o 85
Cf. Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em: http://www.youtube.com/ http://ww w.youtube.com/watch?v=XFipF watch?v=XFipFGfZ2uM. GfZ2uM. Acesso em: 9/9/2013. 86 A respeito da palavra “história” Casanova nos esclarece: “Heidegger estabelece estabelece uma distinção fundamental entre os dois termos normalmente tomados como sinônimos na língua alemã e traduzidos consequentemente com o auxilio da palavra ‘história’: o termo latino Historie latino Historie e e o termo germânico Geschichte. Geschichte. Enquanto Enquanto o primeiro designa para ele a história concebida em sua dimensão ôntica, como a instância relativa aos acontecimentos que se dão no interior de um âmbito subsistente chamado tempo, e funciona para o que podemos denominar historiografia, o segundo é reservado apenas para a dinâmica existencial de temporalização característi característica ca do Ser-aí em sua relação originária com o mundo e com o ser.” (cf. Marco Antônio Casanova, nota nota do tradutor, in: Martin Heidegger, Introduçã Heidegger, Introdução o à filosofia. filosofia . São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.2). Doravante a palavra história será grafada com maiúsculas todas as vezes em que estiver no escopo semântico de Geschichte. Geschichte. 87 Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em: http://www.youtube.com/ http://ww w.youtube.com/watch?v=XFipFG watch?v=XFipFGfZ2uM. fZ2uM. Acesso em: 9/9/2013. 88 Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche Heidegger, Nietzsche I , 2010, p.xiv.
39
presente e que encerra em si as possibilidades do futuro.”89 Passemos, agora, à apresentação das preleções propriamente ditas.
º a t g o ç a c t r e o -
89
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I , 2010, p.xiii.
2. Que chamamos pensar? , as preleções e o escrito. escrito.
Denken ist die Einschränkung auf einen Gedanken, der einst wie ein Stern am Himmel der Welt stehen bleibt.
Martin Heidegger 90
Voltemo-nos, então, ao ano de 1951 e às preleções sobre Que chamamos pensar?,
quando do retorno de Heidegger à Universidade de Freiburg.
Encontramos no livro organizado por Úrsula Ludz algumas cartas em que o filósofo menciona a relevância do texto para a trajetória do seu pensamento. Como esses são os únicos relatos do próprio Heidegger que encontramos sobre o período, consideramos valioso citá-los na íntegra, na medida em que nos evidenciam a forma como os cursos se deram e a relação que o pensar de Heidegger estabelece com Parmênides, acentuando, com isso, a significância º a t
desse escrito. Em carta à Hannah Arendt em dezembro de 1951, Heidegger relata:
g o
Entrementes voltei a ler o texto Que chamamos pensar?.91 O seminário acontece uma vez por semana durante uma hora: sextas-feiras das 5 às 6. O auditório principal já começa a ser ocupado à 1 hora e às 4 horas não entra mais ninguém: eu mesmo tenho dificuldade para entrar. A preleção ainda é transmitida para outros dois anfiteatros. No todo, 1.200 ouvintes suportam até o fim. Dentre esses, a preleção toca com certeza de modo simples, imediato. Isso exige de mim contudo muito mais empenho na preparação, onde tive aliás a oportunidade de exercitar a arte de cortar . Muitos ouvintes se deixarão iludir pela simplicidade: pois somente agora chego à correta proximidade
ç a c t r e o -
em relação às coisas propriamente dignas de serem pensadas. 92
Um ano depois, em dezembro de 1952, em outra carta à Arendt, Heidegger se refere ao texto uma vez mais. O filósofo estaria preparando para impressão a 90
Martin Heidegger, Aus der Erfahrung Erfah rung des Denkens De nkens , Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1983, p.76. Em tradução livre: “Pensar é a limitação a um pensamento que chega, um dia, a fixarse como uma estrela no céu do mundo.” 91 No livro de correspondências organizado por Úrsula Ludz, encontramos o título Was hei! hei! t Denken? traduzido por O que significa pensar?. Entretant Entretanto, o, no sentido de manter uma coerência à tradução que vimos utilizando para o português, optamos por modificá-lo aqui para Que chamamos pensar?.
92
Ar endt - Martin Heidegger Heidegger:: Correspondência Correspon dência Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt 1925/1975, 2001, p.96. Itálicos do autor.
41
preleção de verão de Que chamamos pensar? e rememora que Arendt teria participado de algumas seções. Diz Heidegger: Só apresentei parcialmente no curso a difícil interpretação de Parmênides, com a qual termina a preleção. No entanto, essa interpretação estará integralmente no texto impresso. Penso que me aproximei uma vez mais da coisa mesma. Em verdade tudo é 93 inesgotável. obstante,esta continua manter representaçãoNão dominante riquezadifícil simples. presente para a
Mais um ano, mais uma carta. Nela, a percepção do caminho que se abre no diálogo travado com os pré-socráticos: Por ora estou novamente com Heráclito. Quanto mais fica claro o diálogo que tenho com ele e com Parmênides, tanto menos consigo me livrar deles. Nosso diálogo está pautado na percepção de uma delimitação delimi tação fundamental fundam ental e na compreensão do modo como ao mesmo tempo perguntamos diferentemente o mesmo. Neste sentido, sempre se entende mal os meus diálogos com os dois quando são tomadas como “interpretações”. 94
Essas citações se põem para nós como uma memória viva daquele período, por isso, o desejo de aqui reproduzi-las. Através delas, foi possível vislumbrarmos que Heidegger retoma o ofício de ensinar com o pensar voltado para os primeiros º a t
pensadores gregos, e que, apesar apesa r de ciente c iente da grande dificuldade que esse es se pensar
g
impõe, o filósofo está convencido de que, seguramente, havia ali algo de grande
o
relevância. Sigamos os passos de Heidegger no sentido de mostrar como as aulas
ç a c t r e o -
foram organizadas e o escrito apresentado. As preleções intituladas Que chamamos pensar? aconteceram, como dissemos, em dois momentos: no inverno de 1951-1952 e no verão de 1952. O escrito integral, somente publicado em 1954, traz o texto inalterado das aulas do inverno que foram apresentadas em dez lições, e as do verão, em onze, totalizando 207 páginas. Acrescenta-se a ambos os períodos, aulas de passagem, nas quais Heidegger oferece uma espécie de resumo da aula anterior e, ao mesmo tempo, uma transição para o assunto a seguir. Todavia, percebemos que raramente o resumo é feito nas bases do que foi tratado anteriormente. De uma semana para outra, Heidegger adensa o seu próprio pensamento trazendo acréscimos significativos; como se, ao reformulá-lo, pudesse depurar ainda mais a compreensão daquilo que foi apresentado. Glenn Gray nos aponta que “para um 93 Hannah
Arendt e Martin Heidegger, Hannah Heidegger, Hannah Arendt Ar endt - Martin Heidegger Heidegger:: Correspondência Correspon dência 1925/1975, 2001, p.96. 1925/1975, 94 Ibidem, p.101.
homem que põe tamanha ênfase como Heidegger no
42
caminho em que qualquer
coisa é dita e que reflete sobre o que ele mesmo pensou na semana anterior, a repetição de um pensamento é algo significante.” 95 Quanto às traduções da obra em questão, temos conhecimento de que o escrito Que chamamos pensar? foi traduzido para o francês, o inglês, o italiano e o espanhol. Qu’appelle-t-on-penser? foi o título francês dado ao escrito de Heidegger, publicado em 1967 e traduzido por Aloys Becker e Gerard Granel, com introdução de Gerard Granel. A língua inglesa ficou com o título
What is
called thinking? que foi publicado em 1968 e contou com a tradução de Fred D. Wieck e J. Glenn Gray, sendo a introdução deste último. A tradução para o italiano intitulada
Che cosa significa pensare? veio em dois volumes: o primeiro,
em 1978 e o segundo, em 1979. Ambos os volumes contaram com a tradução de Ugo Ugazio e Gianni Vattimo, com o prefácio escrito por Vattimo. Por fim, as traduções para o espanhol de ¿Qué significa pensar?: a primeira, feita em Buenos Aires por Haraldo Kahnemann e Pedro de Moura Sá, em 1958; e a segunda, em º a t g o ç a c t r e
Madri, por Raúl Gabás, em 2005.96 As preleções de inverno foram traduzidas para o português por Paulo Schneider, e estão inseridas no volume
O outro pensar:
sobre Que significa pensar? e A Época da Imagem do Mundo, publicado em 2005. A tradução integral para o português encontra-se em elaboração por Edgar Lyra. Voltemos, agora, nosso olhar para o desenvolvimento do curso.
o -
2.1.
As preleções do inverno de 1951 - 1952
Nas preleções do inverno de 1951-1952, Heidegger volta sua atenção para Nietzsche e o poema filosófico Assim falou Zaratustra97. Todavia, a construção deste pensar não se coloca a perscrutar os caminhos de Nietzsche de imediato. Essa primeira parte do livro, apresentada em 10 lições, pode ser dividida em dois 95
J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What’s called thinking?, 1968, p.xviii. Grifo do autor. Tradução nossa. 96 A tradução para o espanhol realizada por Raul Gabás não conta com prefácio. Quanto à tradução argentina, não tivemos acesso ao seu conteúdo. 97 Assim falou Zaratustra Assim Za ratustra é o poema filosófico de Friedrich Nietzsche escrito entre 1883 e 1885. Hans Sluga nos esclarece que, já nas preleções de 1936, Heidegger se volta para a doutrina da “Vontade de Poder”. Em 1937, com o crescente interesse na doutrina do eterno retorno e seu desenvolvimento, Heidegger começa a prestar atenção em Assim falou Zaratustra Zara tustra , escrito que torna-se decisivo para o filósofo, especialmente especialmente por conta da concepção nitzschiana do superhomem e da possibilida possibilidade de deste levar o homem a assumir a sua verdade. (cf. Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion companio n to Heidegger Heidegg er , 2005, pp.108-109.) pp.108-10 9.)
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blocos temáticos: o filósofo nos conduz a Nietzsche através de uma demorada discussão sobre a relação entre o pensamento, a ciência e a poesia. Vejamos como se dá esta discussão.
2.1.1. “O mais problemático do nosso problemático tempo...” Heidegger inicia a sua longa caminhada pela vereda do pensamento partindo da afirmação: af irmação: “Chama-se homem justamente aquele que pode pensar – e com correção.”98 Essa afirmação nos fala de uma atividade que nos distingue como seres humanos, um genuíno privilégio da nossa condição humana. Todavia, apesar do homem ser capaz de exercer tal atividade quando quiser, no que tange o pensamento ao qual Heidegger Hei degger se dispõe a investigar, o querer pode muito pouco. Segundo o filósofo, mesmo a Filosofia que se ocupa com esmero e erudição no desenvolvimento de grandes tratados, não garante a disposição para o pensar. Apenas aquilo que desejamos verdadeiramente é que podemos alcançar com o pensamento. A esse e sse desejar, Heidegger acrescenta acresce nta Aquilo que também nos deseja e se dirige à nossa essência “de modo a dentro dela nos guardar.” 99 O filósofo º a t
entende que há em nosso âmago um desejar que nos chama a guardar na memória
g
aquilo que é digno de pensamento e somente quando desejamos esse desejar, ou
o
seja, quando desejamos aquilo que nos guarda em nossa essência, somos capazes
ç a c t r e
de pensar. O pensar está, nesse sentido, ligado de alguma forma ao desejo.
o
Paulo Schneider, em O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A
-
época da imagem do mundo, mundo, nos coloca que há um elo de reciprocidade entre o pensar, o desejo, a memória e a essência ess ência do homem, cuja a intenção fundamental é “reunir conservando o pensado na memória pela recordação dadivosa, que nos apetece e nos mantém na essência.” 100 O autor nos mostra que a tradução da palavra alemã al emã Wesen Wesen aponta aponta para a essência, mas igualmente reporta a ser, deterse, acontecer. Derivada de wesan wesan significa ainda demorar-se, morar, passar a noite. Schneider entende que aquilo que diz respeito ao mais próprio do homem, a sua essência, é um habitar no acontecimento do pensar. Marlène Zarader, em Heidegger e as palavras da origem, origem, acrescenta que é na passagem do sentido 98
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], elaboração], p.5. p.5. p.5. Maiúscula do autor. 100 Paulo Schneider , O outro pensar: pen sar: sobre sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, mundo , Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.76.
99 Ibidem,
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nominal ao sentido verbal que wesen evoca a demora ou duração que rege toda a vinda à presença (an-wesen (an-wesen), ), um movimento essencial de algo que não é evocado por nós, mas que, ao contrário, ao abrir-se no que é, nos chama, dirige-se a nós, nos atravessa e nos diz respeito. Sendo esse o caminho proposto por Heidegger para o pensar, o fato de o pensamento e o homem estarem esta rem ligados desde o mais remoto tempo, e da coisa-a pensar se colocar para o homem na sua forma mais íntima, isso não impede a constatação de que “o mais problemático no nosso problemático tempo é que ainda não pensamos”101. Com isso, o que que Heidegger quer inferir é que apesar d dee o homem se dispor a pensar, ainda não o fazemos de modo apropriado; a coisa-a pensar escapa ao pensamento, pois o mais problemático e aquilo que nos dá a pensar afastou-se do homem desde o princípio.102 Devemos, pois, aprender a pensar de modo próprio. Mas, o que significa aprender a pensar de modo próprio? O que é da essência do aprender a pensar? O modo como o homem do nosso tempo pensa, segundo Heidegger, é o º a t
responsável por toda a problematização dessa questão. Para Schneider, a
g
dificuldade ao pensar se põe na medida em que nos atemos a resultados teóricos
o
que nos concedem garantias objetivadas do saber, as quais nos outorgam apenas
ç a c t r e o -
um ilusório estatuto de certeza. Ao afirmar que “a ciência não pensa” 103, Heidegger se propõe a discutir a dimensão em que a ciência se move em relação ao pensamento. O filósofo entende que na seara da ciência o pensamento se retrai. Essa afirmação não se dá como uma censura, mas apenas como uma constatação, uma observação sobre a essência da ciência, sua estrutura interna. A ciência não pensa porque a sua essência é a do método, do passo-a-passo. Segundo Vattimo, em As em As aventuras da diferença, diferença, Heidegger faz essa afirmação, não porque a ciência não tenha a capacidade que a filosofia tem no sentido de fundamentar o seu próprio objeto e discurso, mas porque responde rapidamente ao apelo da razão com a investigação e a captação, que atuam como fundação e doação de 101
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], elaboração], p.6. p.6. Zarader nos fala que, por volta dos anos de1930, o pensamento de Heidegger sofre uma mudança. Para a autora, o que ocorre com Heidegger nesse momento é a percepção de que o ser “torna-se esquecido, precisamente precisamente porque o ato de ocultar-se pertence ao ser mesmo enquanto tal [...]”. (cf. Marlène Zarader, “The Mirror with a triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin Heidegger:: Critical assessments Heidegger asses sments,, vol.II, vol.II, 1992, p.20.) 1992, p.20.) 103 Martin Heidegger, op. cit., p.9. 102
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estabilidade. O autor nos explica que que durante toda a tradição metafísica, a ciência, assim como a própria filosofia, fundou-se na lógica. Segundo Vattimo, a contagem e o cálculo da ciência não são mera enumeração; contar significa “contar com”104, em outras palavras, ter certeza sobre um número cada vez maior de coisas. Simplesmente pelo fato de cultivarem somente um dos lados daquilo com que lidam, Heidegger compreende que as ciências exaurem a possibilidade de contemplar a essência do seu saber. Preso ao tangível da ciência, o homem se encontra refém do domínio técnico que o interdita e o afasta das questões essenciais que falam à sua alma, às suas esferas do saber – a história, a arte, a poesia, a língua, a natureza, o homem, Deus.105 O que reforça ainda mais essa problematização é a questão da homogeneidade do pensamento. Há um nivelamento de ideias e opiniões que põe o “pensamento sobre trilhos” 106, numa univocidade de conceitos e significação predeterminados pela essência da técnica. Para o filósofo, as ciências de hoje pertencem ao domínio da técnica moderna, º a t
cuja potência submete e destina o homem a uma total falta de liberdade.
g
Segundo Heidegger, o homem deve-se por a caminho, deve aprender a
o
pensar. O aprender a pensar é, para o filósofo, “levar o que se faz e deixa de fazer
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à sintonia com o que cada vez, essencialmente, se dirige a nós.”107; um aprender que torna-nos próprios ao saber. Schneider entende que, na medida em que se liga à essência do homem, o aprender a pensar estabelece-se numa relação em que não existe o aprendiz e o objeto de aprendizagem, não nos encontramos à parte do objeto. Por isso, devemos suspender todas as possibilidades de explicação para esse aprender provenientes da cisão sujeito-objeto, pois o aprender a pensar ao qual Heidegger se refere não se põe como algo separado, à parte do homem. Mas, ao contrário, como algo muito próximo. Heidegger nos coloca que devemos buscar “aquilo que não se deixa encontrar por meio de nenhuma descoberta.”108 Nesse caminho, o homem defronta-se com uma tarefa tare fa árdua, pois a coisa-a-pensar 104
Grifo do autor. Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], p.31. 106 Grifo do autor. 107 Martin Heidegger, op. cit., p.15. Ao entrar na questão sobre o aprender a pensar, Heidegger se volta também para o ofício de ensinar, ao qual nos detivemos brevemente no subcapítulo intitulado “o dar-curso-ao-a dar-curso-ao-aprender”. prender”. 108 Ibidem, p.9. 105
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escapa-lhe ao pensamento, recusa o encontro. Essa recusa, no entanto, não é menos, é mais. É, nas palavras do filósofo, Acontecimento 109 – “a mais presente de todas as coisas presentes”.110 Chegar à região do pensamento só é possível através de um salto, um salto em direção ao abismo que desconcertantemente eleva e desnorteia o homem em direção à terra da liberdade de juízos, do aberto, para além das cercanias da opinião comum; um salto que “nos leva de súbito para lá onde tudo é outro”.111 Para Schneider, chegar ao âmago do pensar exige, daquele que trilha o caminho do pensamento, uma “disposição para a tentativa de uma jornada rastreadora em direção a um centro que a respeito de nós mesmos desconhecemos”.112 Todavia, Heidegger nos aponta que a simples referência ao que resiste, já faz o homem estar em movimento ao apelo pleno de mistério. Para o filósofo, Sócrates manteve-se nesse movimento. Durante toda a sua vida expôs-se ao vento do pensamento sem nada ter escrito, sendo considerado, por isso, o mais puro pensador do Ocidente. A escrita é entendida por Heidegger como um refúgio para º a t g o ç a c t r e o -
o pensar, e o fato de todos os grandes pensadores depois de Sócrates terem se refugiado na escrita, acabou por decidir o destino do pensamento ocidental, na medida em que as ciências se fundaram f undaram a partir da Filosofia assim circunscrita. Neste momento das preleções, Heidegger se acerca de Hölderlin e da poesia como uma forma de nos mostrar, não só a contraposição entre o pensar poético e o pensar científico, mas, sobretudo, por entender que o poetar, assim como o filosofar, percorrem os caminhos outros do pensar. O filósofo nos coloca que o movimento em direção àquilo que escapa indica um caminho, mas, nesse movimento, o homem é apenas um signo, um sinal para Algo que não fala a nossa língua. Aí, nesse lugar, diz Hölderlin em seu projeto de hino: “Somos um signo, sem referência, / Somos sem dor e quase / perdemos a linguagem na terra
No No original alemão, Ereignis . De acordo com Inwood, o termo acontecimento é o termo mais geral para Ereignis , porém, seus derivados, tanto nominais quanto verbais, também se circunscrevem à: evento; acontecimento-apropriador; ser-apropriado, pertencer; apropriar-se; (o seu) próprio. (cf. Michael Inwood, Dicionário Heidegger H eidegger , Rio de Janeiro: Jorge Zaar, 2002, p.2.) 110 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.10. 111 Ibidem, p.14. 112 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo , Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.74. 109
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estranha.”113 Entendemos, a pa partir rtir desses versos, que o poeta esteja a nos rev revelar elar que o homem encontra-se sem rumo, perdido de si mesmo. Anestesiado e iludido, fala e nada diz. Encontra-se ainda na diáspora, longe de casa, em terra estranha ao pensar. Schneider nos fala que o homem encontra-se suspenso no nada da falta de sentido, preso somente àquilo que maquinou e produziu. Desaprendeu a trilhar o caminho do pensamento e esqueceu-se que esse se faz na medida em que perguntamos por ele. O intérprete compreende que o pensar enquanto sinal, só pode ser decifrado pelo pensar e o decifrar desse sinal só se dá tornando-se pensar. Segundo Heidegger, “Mnemosyne” – nome dado por Hölderlin a um de seus projetos para o hino – pode ser traduzido por memória. Para o filósofo, memória é a reunião do pensamento em torno do que, em geral, já de antemão antemão,, aprecia apreciaria ria de ser consider considerado. ado. Memória é a reunião das lembranças (des Andenkens). Ela abriga em si, e dentro de si oculta, aquilo em que previamente e a cada vez temse que pensar, em tudo o que vem-a-ser e que, como algo consubstanciado, sopra à alma de forma substantiv substantivaa […]. 114 º a t g o ç a c t r e o -
No caso do hino, Mnemosyne Mnemosyne (Memória) é filha do Céu e da Terra, noiva de Zeus e mãe das musas. No mito, ela é a memória da coisa-a-pensar, a reunião do pensar sobre aquilo que desde sempre deseja ser pensado. É, também, fonte profunda do poetar. Para Heidegger, a poesia é como um voltar para casa, é como um “leito d’água que reflui para a fonte, para o pensamento como rememoração” 115, pois a beleza do dizer poético circunscreve-se circunscreve-se ao domínio da vverdade, erdade, na medida em que revela e faz brilhar o que se encobre. Essa compreensão nos aponta para a relação do homem com o mais problemático, com aquilo que dá a pensar. Todavia, segundo o filósofo, nosso entendimento para toda essa questão encontra-se comprometido, enquanto crermos que a lógica possa nos dar conta do que seja pensar.116
113
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.18. Ibidem, p.12. Em nota do tradutor, Lyra nos esclarece que na memória, “[...] o pensamento reúne-se em torno de algo, debruça-se sobre algo. A lembrança é [...] em alemão das Andenken, inversão de denken an, “pensar em”. Equivaleria a dizer: a memória como ato de pensar em algo, promove a junção dos pensamentos.” pensamen tos.” (cf. Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Ibidem, Ibid em, p.12.) 115 Ibidem, p.12. 116 Heidegger se refere ao fato de, no Ocidente, o pensar sobre o pensamento ter se desdobrado como “lógica”. O filósofo faz menção ao fato de Kant assim como Hegel terem reconhecido a esterilidade esterili dade da possibilidade possibilidade de uma determinação conceitual do pensamento. 114
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O pensador nos afirma que o dizer de Hölderlin “[...] repousa na sua própria verdade. Chama-se beleza. A beleza é uma destinação (Geschick ) da essência da verdade, onde verdade significa: o desencobrimento do que se encobre.”117 Compreendemos, a partir dessa colocação, que a verdade é entendida aqui como desvelamento e a poesia é a experiência de um vir a ser, o passar da não presença à presença, o pôr-se-em-obra da verdade. 118 Para Schneider, o dizer do poeta se circunscreve à própria verdade e não carece de uma explicação que a aprisione numa interpretação. O intérprete entende que a verdade que encontramos na arte e na poesia tem o seu brilho, a sua própria luz. Além disso, a arte e o dizer poético não tem aspirações científicas direcionadas à dominação, mas apenas um caráter expressivo e meditativo como um de seus atributos. Toda essa discussão, proposta por Heidegger nestes primeiros capítulos, se mostra para nós como um pensar que se põe em exercício, uma etapa no processo que continuamente se refaz no caminho do aprender a pensar. Esse é um processo lento e paciente, não há como avançar para a solução do “mais problemático do º a t
nosso problemático tempo”. Schneider nos faz entender que o demorar-se na questão vai totalmente na contra-mão da pressa desmedida em que o sistema de
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comunicação se dá. Para o autor, Heidegger perfaz o caminho-pensamento na perseverança da pergunta e na experiência de que nesse caminho subjaz o impensado. Nesse sentido, permanecer na questão do pensar é a demora do caminho. Não há construtos ou bases sólidas para esse caminhar, mas apenas o
-
seguir o fluxo do pensamento que amplia, mas não esgota, a possibilidade de chegar a si enquanto pensar, pois trata-se, segundo Schneider, de “se estar inevitavelmente dentro do/junto a/permanecendo com o pensar, sem a mínima
117
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.20. Entendemos a densidade do dito de Heidegger. Todavia, não é nossa intenção adentrarmos na questão da verdade e tudo o que dela possa advir, mas, apenas buscar entendimento entendimento para o texto. O
118
por se em obra da v verdade erdade foi fo i tema do livro livro A A origem da obra de arte arte (GA (GA 5). O escrito é fruto de três conferências realizadas em 1936 e publicadas em 1950. Maria da Conceição Costa, tradutora do livro para a língua portuguesa, nos apresenta que: “perguntando ainda e sempre pela dádiva misteriosa do ser e da verdade, Heidegger visita-a através da natureza da obra de arte. A experiência profunda da obra de arte revela e esconde a verdade daquilo que é, de tal modo que a podemos ver. A verdade é artística e a arte poética, na sua essência fundador fundadora. a. Através da obra, abre-se um mundo que indicia, que desprende o olhar cativo para o outro lado das coisas.” (cf. Maria da Conceição Costa, “Advertência da tradutora”, in: Martin Heidegger, Heidegger, A A origem da obra o bra de arte,, Lisboa: Edições 70, 1977, p.9.) arte
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possibilidade de sua auto-objetificação ou auto-atropelamento reflexivo.”119 A dificuldade do percurso é acentuada pela preocupação central de Heidegger: o fato de que ainda não pensamos de modo próprio. Preocupação expressa pela palavra alemã Bedenklichste alemã Bedenklichste,, traduzida por o mais problemático.120 A longa discussão entre pensamento, ciência e po poesia, esia, que se estende por mais de três aulas e suas respectivas recapitulações, acabam por evidenciar, de forma contundente para o leitor, a questão do “mais problemático do nosso problemático tempo”. Trata-se de uma temática que se põe para Heidegger em ressonância com o “deserto cresce” 121 de Nietzsche, na medida em que aquilo que escapa permanece impensado em nosso tempo; não só pelo fato de “a-coisa-a pensar”122 escapar ao pensamento, mas, sobretudo, pelo fato da “vontade de agir, quer dizer, de fazer e efetivar, ter atropelado o pensamento”123. A manipulação técnica impede uma aproximação e acaba gerando uma subtração do pensar. Tempos sombrios, obscuros e ameaçadores na medida em que a desertificação interdita o pensamento – uma aridez que elimina e impede futuras germinações. A frase nitzschiana “o deserto cresce: ai daquele que abriga desertos!” 124 reverbera º a t
no pensar de Heidegger em função do caminho que o pensamento tomou: o da
g
representação.125 Todavia, antes de adentrarmos o pensamento de Heidegger sobre
o
Nietzsche, julgamos necessário um desvio em nosso percurso, no sentido de
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compreendermos esse rumo que o pensamento tomou.
2.1.1.1. Nas raias da da representação representação
-
A questão da representação é tão fundamental que Heidegger dedica toda uma aula, assim como a devida recapitulação, sobre o tema. Nessa parte, o
119
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, mundo, 2005, p.103. 120 Schneider nos fala que a tradução desse vocábulo fica circunscrita ao mais preocupante de tudo e traz, portanto, consequências consequências profundas. O autor entende que “esse gravíssimo não pode ser entendido como resultado de alguma decisão autônoma por reflexão, pois o que preocupa é algo que ocorre no imediato do seu advento. [...] O que se impõe e o que se doa não é alcançável, nem manipulável, mas exerce uma influência em nós, que não é casual: ela faz parte de uma condição, que nos determina essencialmente essencialmente como seres humanos”.(cf. Ibidem, p.91-92.) 121 Grifo do autor. 122 Grifo nosso. 123 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.25. 124 Grifo do autor. 125 Schneider nos apresenta que a advertência de Nietzsche é feita a partir da devastação promovidaa pelo cristianis promovid cristianismo, mo, mas tamb também ém a frase “o d deserto eserto cresc cresce” e” pode ser p pensada ensada como co mo o “deserto do pensar por representação”. (cf. Paulo Schneider, op. cit., p.107.)
50
filósofo analisa a concepção há muito concebida de que há uma correlação entre verdade e representação. Para Heidegger, de tudo o que existe temos em nossa consciência, em nossa alma, uma representação. Robert Mugerauer, em Heidegger’s language and thinking ,
nos apresenta que a representação é o modo
pelo qual formamos as ideias, e que estas são elaboradas através da nossa capacidade de deter e guardar um aspecto da realidade que tenhamos apreendido. Segundo o autor, esse processo não se apresenta como uma mera ordenação de ideias. À representação junta-se, também, o julgamento, ou seja, o juízo no sentido de formar formar ideias corretas e adequadas. Segundo Mu Mugerauer, gerauer, o pensar pensar assim compreendido se circunscreve à formação de ideias que representam o que é pensado de maneira que a ideia se conforme com o objeto corretamente, ou melhor, essa correção e conformação devem partir, por sua vez, de um pressuposto lógico, não contraditório. Seguindo nessa esteira, podemos concluir que, se aquilo que formamos a partir de nossas ideias deve partir de um pressuposto lógico, podemos facilmente afirmar que a lógica determina o pensamento. Mas, Mas, como podemos entender entender que a lógica esteja a orde ordenar nar o pensar? º a t
E, mais, como isso se deu?
g
Heidegger nos explica que decidiu-se, de maneira bem própria e nada
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evidente, que por trás do nome “lógica”126, o pensamento é entendido como !"#$%.127
Para o filósofo, nessa inaparente equiparação, há milênios
desconsiderada pelo pensar, subjaz o destino do pensamento ocidental. Zarader nos coloca que examinar o nexo entre o pensamento e a lógica significa apenas evidenciar e relatar a nossa história, e não a torná-la compreensível tomando-a como questão. De acordo com a autora, esse questionamento é levantado por Heidegger ao nos indagar: “o que isso significa, para o destino e curso do próprio pensamento, que desde há muito tempo, senão desde a origem, é justamente algo
126
Grifo do autor. !"#$% e o µ &'$% terem sido usados pelos Heidegger nos chama a atenção para o fato de que o !"#$% primeiros pensadores pe nsadores da Grécia com o mesmo significado. sign ificado. Para o filósofo, !"#$% !"#$% e µ &'$% &'$% só deixam de se relacionar a partir de Platão, quando a lógica atravessa o pensamento. Heidegger nos esclarece que a ideia de que o µ &'$% foi destruído pelo !"#$% tem a ver com um prejulgamento, dado pela Filologia e pela História, herdado do racionalismo moderno com base no platonismo. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11.) 127
51
como a lógica que se apresenta no pensamento ocidental, como a doutrina do pensamento correto?”128 Segundo o pensador, a questão do pensamento ter sido compreendido como lógica remonta o início do pensamento ocidental. O filósofo nos aponta que, desde Platão – e, com ele, o início da metafísica – inicia-se a correspondência entre o pensamento e o que veio a chamar-se “lógica” 129. Heidegger nos explica que a !!"#$% !"#$%µ µ& '()"*% '()"*% nasceu na escola de Platão e foi essencialmente desenvolvida por seu maior discípulo, Aristóteles. Zarader complementa essa afirmação, dizendo que a Lógica nasce da tripartição da filosofia em lógica, física e ética. Para a autora, mais importante do que essas considerações históricas são as consequências que daí resultam para o saber do '+)(, '+)(,.. A intérprete nos coloca que, de acordo com Heidegger, quando isso acontece a filosofia chega ao fim e se torna
assunto de organização e técnica. Isso se dá porque porque com a tripartição
nascem as disciplinas que, por sua vez, se relacionam diretamente com seus objetos, e, nessa relação, a determinação se dá da disciplina para o “objeto da º a t
disciplina”.130 Isso significa que é a disciplina que determina aquilo que a coisa é e, consequentemente, a medida da sua verdade. Nos encontramos, pois, em meio a
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uma inversão da relação de determinação. Essa inversão é evidenciada por Heidegger quando afirma que o que vem à linguagem é mediado pelo equipamento metodológico determinado pela disciplina, ou seja, é a disciplina a instância que decide o como e o porquê um objeto é conhecido. Segundo o
-
filósofo, as disciplinas funcionam como verdadeiros filtros para o conhecimento, na medida em que só revelam determinados aspectos de seus objetos de estudo. Heidegger, em Heráclito Heráclito (GA55), nos aponta que sob o título de Lógica compreende-se “a doutrina do pensamento correto.”131 A isso, entende-se a correção do pensar segundo um critério de construção, formas e normas que regem o pensamento de maneira a ordená-lo. Mas, por que encontramos nessa doutrina o título de Lógica? Há nesse título algo da essência da linguagem? De acordo com o filósofo, o '+)(, é para a lógica o enunciado e nunciado de algo sobre algo, e
128
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavr palavras as da origem origem,, 1990, p.205. Grifo do autor. 130 Grifo da autora. 131 Martin Heidegger, Heráclito Heidegger, Heráclito,, 1998, p.199. 129
52
isto aconteceu porque, no período romano e na Idade Média, entendeu-se o !"#$% !"#$% como uma proposição da justa determinação do correto juízo sobre conceitos que se propõem a serem conclusivos. Assim, “como doutrina da enunciação, isto é, do juízo, a lógica é também doutrina do conceito e da conclusão”132. Entendida desse modo, a lógica diz respeito ao sujeito do dizer, e é este, segundo Heidegger, o traço essencial do pensar segundo a lógica: enunciar algo sobre algo. Encontramos aqui a determinação do pensar como um falar, cujo o traço essencial assenta-se no enunciado, e isso, segundo o filósofo, determina um fechamento ao campo original da palavra, pois se pensar é enunciar algo sobre algo, nesse enunciar sonega-se algo desse pensamento na medida em que algo é dado como verdadeiro. Heidegger nos coloca que o lógico pode denotar uma coerência com seus pressupostos, exprimindo, com isso, algo da ordem do racional: um pensamento correto e em acordo com os princípios fundamentais. Entretanto, uma mesma coerência correta pode se manifestar de muitas maneiras, e, nesse sentido, falta ao lógico o peso do verdadeiro. Nos encontramos, aqui, no âmbito da ideia de º a t
verdade por correspondência e o filósofo procura escapar desse campo gravitacional.133 Diz Heidegger: “o que milhões de vezes se chama de ‘lógico’
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nunca oferece ou fundamenta o verdadeiro.”134 Para o filósofo, o apelo do lógico como obrigatoriedade por toda a parte é sinal de um pensamento que não pensa e não entende que o lógico pode ser a norma que se molda ao pensar, todavia, aquilo que fundamenta a norma, nunca pode constituir o domínio do verdadeiro.
-
Para o pensador, o próprio pensamento ocidental-europeu moderno percebeu que o pensar como lógica não é suficiente para tudo o que precisa ser
132
Martin Heidegger, Heráclito Heidegger, Heráclito,, 1998, p.234. Entendemos que a questão da verdade permeou o pensar de Heidegger desde o início, tendo, inclusive, tratado tratado dessa questão em algumas conferências, tais como: “Sobre a essência da verdade”, de 1930, e “A doutrina de Platão sobre a verdade”, de 1931-1932, publicadas em Marcas do caminho (GA9). caminho (GA9). Todavia, encontramos uma compreensão sucinta para a questão da verdade na conferência intitulada “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento” (GA14), apresentada em 1966. Ali, o filósofo nos fala que a verdade, entendida como retitude da representação e da enunciação, fica reduzida ao sentido de orthótes orthótes e e não ao de alétheia. A alétheia,, compreendida pelos gregos como o sentido da certeza e da confiança do que se pode ter, alétheia não pode ser identific identificada ada à palavra verdade, pois, segundo Heidegger, compreende-s compreende-see a verdade como concordância e adequação – o acordo da representação representação pensante e da coisa – sempre relacionadas ao conhecimento como ente. ente. (cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, pensamen to”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos filosóficos,, 1996, pp.106-107.) 134 Martin Heidegger, Heráclito Heidegger, Heráclito,, 1998, p.126. 133
53
levado em conta135, chegando inclusive a indagar se a representação do pensar corresponderia, ou não, a algo fora de nós; ou ainda, se a totalidade do real existiria enquanto representado por nós. Apesar de combatido, Schopenhauer resume na sentença “o mundo é minha representação” 136 o pensamento de seu século sobre essa questão. Suspeita-se, com isso, que pensar e representar possam ser o mesmo e que a essência do pensamento tenha sua origem no representar. De acordo com Heidegger, nossa maneira de pensar ainda se atém ao representar, ainda não nos nos encontramos no que é o mais próprio ao pensar.
Segundo o
filósofo, a essência do pensar encontra-se oculta, e talvez só na medida em que nos voltarmos para lá onde a essência do pensar escapou, não mais ludibriados pela lógica, é que poderemos nos aproximar do que seja pensar.137 Vemos, assim, que o pensamento ao qual o filósofo circunscreve seu questionar nada tem a ver com o pensamento representacional e que a lógica, de alguma forma, encobre o que é próprio do pensamento. Zarader avança na análise do pensamento representacional e nos conduz º a t
ao pensamento calculador, sendo esse último, uma forma de representação intrínseca ao modo da técnica. A autora nos coloca que, com base no pensamento
g o
representacional, o pensamento calculador é aquele que afastou-se do seu
ç a c t r e
próprio. De acordo com Zarader, para Heidegger: “Quando o pensamento, ao
o
afastar-se de seu elemento, entra em declínio, compensa essa perda procurando
elemento original, ordenou-se de outra forma e sujeitou-se a algo que não lhe é
-
valorizar-se como !"#$%, como instrumento de formação[...].” 138 Este desvio é
135
Schneider nos faz entender que essa seria a crítica de Hegel a Kant. Para o autor, “Hegel critica a pretensão kantiana de afastar-se do pensamento para estipular, diagnosticar e descrever a suposição das suas condições e possibilidades.” Segundo Schneider, para Hegel, alargar a compreensão de um conceito não questiona as bases com que este conceito foi construído. (cf. Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, mundo, 2005, p.101.) 136 Grifo nosso.“O mundo é minha representação” são as palavras com que Schopenhauer inicia sua principal obra filosófica intitulada O mundo como vontade e representação, representação, composta por quatro livros e publicada em 1819. “A tese básica de sua concepção filosófica é a de que o mundo só é dado à percepção como representação: o mundo, pois, é puro fenômeno ou representação. O centro e a essência do mundo não estão nele, mas naquilo que condiciona o seu aspecto exterior, na “coisa em si” do mundo, a qual Schopenhauer denomina “vontade” (o mundo por um lado é representação representaçã o e por outro é vontade)” Cf. [online] Disponível em: http://pt.wikipedia http://pt .wikipedia.org/wiki/ .org/wiki/O_Mundo_como_Vontade_e_Repr O_Mundo_como_Vontade_e_Representação esentação Acesso em:20/6/2014. 137 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.41. 138 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavr palavras as da origem origem,, 1990, p.143.
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nomeado pelo filósofo como “interpretação técnica do pensamento” 139, um pensar que encontra-se em ação por toda a parte. Origina-se com a lógica e tem a sua realização máxima na ciência c iência do mundo moderno, ou seja, nos reportamos aqui ao pensamento científico. c ientífico. Mas, como traçar tra çar um paralelo paral elo entre !"#$% e !&'(!)µ%? E, mais, como entender a relação entre !"#$% e pensamento? Heidegger nos coloca que, desde o mundo grego, fundou-se o nexo entre todo o saber e a !"#$%. A "&'(!)µ% compreendida como o “entender-se com alguma coisa” e a !"#$%, como o “reconhecer-se em alguma coisa” tem um parentesco tão próximo, que muitas vezes usamos uma palavra pela outra.140 Zarader nos mostra que, para Heidegger, “o coração da ciência moderna é a !&'(!)µ%, e isto tão originariamente que o que está encerrado, de maneira
embrionária, na !&'(!)µ%, só vem à luz na figura da ciência moderna”.141 A partir disso, entendemos que, se no centro da ciência moderna encontramos a !&'(!)µ%, e se essa tem um parentesco antigo com a !"#$%, é possível pensarmos que a !"#$% está de alguma forma ligada à ciência moderna. O próprio Heidegger nos diz diz que º a t g o ç a c t r e o -
ninguém é capaz de perceber de imediato a indicação de que na composição da técnica moderna “[...], a !"#$% se mostra como uma forma fundamental, confessada ou inconfessada de saber entendido como ordem do cálculo” .142 Zarader explica esta conexão da seguinte forma: “Se a ciência moderna é [...] de essência técnica, é porque a !&'(!)µ%, de onde deriva, é estreitamente aparentada com a !"#$% e não pode ser pensada fora dessa conexão”. 143 Busquemos alguma compreensão para esta afirmação. A autora nos coloca que, para Heidegger, “a ciência é a teoria do real” 144. Isso significar dizer que a ciência incide o seu pensar sobre o real, uma modalidade particular da presença que resulta de uma realização, uma ação que se deu para trazer algo à luz. Diz a intérprete: “a coisa presente, enquanto real, é a que foi trazida à presença como um efeito, à luz da causalidade. Mas, é mais ainda. Com o início da época moderna, [...] ela é objeto para uma
139
Grifo da autora. Cf. Martin Heidegger, Heráclito Heidegger, Heráclito,, 1998, p.215. Grifos nossos. 141 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem, origem , 1990, p.150. 142 Martin Heidegger, op. cit., p.216. 143 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, op. cit. , p.205. Grifo da autora. 144 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.144. 140
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representação”.145 Segundo a autora, a representação objetivada da coisa presente constitui aquilo que Heidegger nomeia por teoria. Por outras palavras: teoria é a elaboração do real, aquilo que busca captar o objeto como ele é. Todavia, sendo a época moderna a consumação do reino da objetividade, a teoria acaba por corresponder, como uma espécie de resposta, a esse tipo de comportamento. Nesse sentido, para Heidegger, o modus operandi operandi que o pensamento científico moderno responde ao real é o da “representação que segue a pista e que garante para si todo o real na sua objetividade [...]”.146 Trata-se de uma representação que, segundo Zarader, se escora sobre uma elaboração prévia do real, efetivada através de métodos, cálculos e delimitação de domínios distintos, e tem por consequência o seguinte fato: aquilo que aparece não é mais aquilo que por si mesmo desabrocha. Para a autora, esse determinado tipo de orientação também serve de paradigma para o pensamento em sua acepção habitual. Estamos aqui circunscritos ao horizonte da técnica que, de acordo com Zarader, é uma produção que nada tem a ver com a !"#$%&' grega, que º a t
simplesmente permitia o ser das coisas desabrocharem por si mesmos, ao contrário, no âmbito da investigação objetivada pela técnica, nos acercamos de
g o ç a c t r e o
uma interpelação manipuladora que envolve o homem e o real em uma única função na qual ambos são apenas partes complementares. Por outras palavras: o homem guiado guiado pelo domínio do pensamento representacional,
ao se colocar
diante do real, o faz de modo a corresponder a um apelo objetivado que subjaz,
-
segundo Heidegger, à técnica. Assim, tanto o real – que desvelado desvelado pelo modo tecnicista corresponde apenas a fundos disponíveis de material e de energias – , quanto o homem – que, nas palavras de Heidegger, nada mais é do que um zelador desses fundos – aparecem como parte desta engrenagem que é a técnica. Para Zarader, essa compreensão é fundamental, pois dela derivam tanto a ciência moderna, como o pensamento que dela se origina – o pensamento calculador –, ou seja, é a técnica que se encontra por traz da ciência moderna e seu
145
Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.144. Zarader, nesse momento de sua análise, adentra o modo de desvelamento que rege a essência da técnica moderna: Ge-Stell . Através da autora, buscaremos entendimento para essa difícil questão na medida em que a mesma é entendida como primordial ao desenvolvimento da análise do pensamento calculador, todavia, sabemos, de antemão, da complexidade do pensamento de Heidegger sobre o tema. 146 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.145.
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pensamento, mesmo sendo a ciência da natureza anterior ao aparecimento da técnica. Assim, a Ge-Stell é, grosso modo, a reunião de dois domínios aparentemente distintos – a ciência e a técnica –, o lugar em que ambos possuem uma mesma essência e, por isso, devem ser compreendidos através de um único termo. Daí a compreensão de que o pensamento calculador já se encontrava presente tanto na razão clássica, como no mundo grego gre go tardio. Para a autora, ao abandonarmos a cronologia, com o interesse de enxergarmos aquilo que veladamente se destinou na história, é possível percebermos que a ciência se funda a partir da essência da técnica, e que o pensamento ocidental está submetido à ciência. Toda essa compreensão nos leva ao entendimento de que na ciência encontramos vigente a “prevalência da lógica, (a) dominação da representação, (as) categorias de causalidade e do fundamento, (o) reino do conceito, (a) 147
utilização da explicação, (a) vontade de rigor concebida como exatidão” , traços que, segundo Zarader, regem e definem também o pensamento filosófico já, – e º a t
desde Platão –, dominado pela representação. Assim, sendo a época moderna a consumação do reino da objetividade, para a autora, a assim chamada
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“interpretação técnica”148 do pensamento se funda em última análise no cálculo, um tipo de pensamento que está destinado a prestar contas no sentido de garantir o real – aquilo que é – e tem como característica principal o fato de estar totalmente centrado sobre o ente. Por outras palavras: o pensamento calculador é
-
um pensamento do ente, sobre o ente e para o ente e tem como traço fundamental tudo dominar a partir de uma lógica própria. Neste sentido, de acordo com Zarader, o pensamento calculador condena-se a ser aquele que se fixa no ente, um pensamento de mão única, incapaz de se relacionar com o mistério, com aquilo que se deixa entrever senão furtando-se – lugar de onde se instaura a linguagem e a poesia. Certos estamos de que o pensar é um representar, mas ainda não chegamos ao que é o mais próprio do pensamento, “no único elemento em que o pensamento pode ser ‘essencial’: o ser”.149
147
Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.151. Grifo da autora. 149 Marlène Zarader, op. cit., p.152. Grifo da autora. 148
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Voltemos, agora, nossos passos ao caminho proposto por Heidegger para o pensar de Nietzsche, o qual nos evidencia o destino árido do pensamento caracterizado pela representação.
2.1.2. O Zar Zaratustra atustra d de e Heideg Heidegger ger No segundo bloco temático das preleções de inverno, Heidegger rememora a questão do pensamento na linguagem de Nietzsche. Segundo o filósofo, é o pensamento de Nietzsche o mais estimulante para esta questão, pois esse “diz na linguagem tradicional aquilo que é.”150 Para Heidegger, o pensamento de Nietzsche concilia, na sua verdade própria, todo o pensamento do Ocidente. Todavia, seu pensamento não está à vista, não o encontramos facilmente ao lançar dos olhos. Temos que buscá-lo. Sua linguagem impronunciada, aquilo que subjaz por trás das palavras, deve ser ouvida de modo a nos conduzir ao pensamento no seu destino mais essencial. Ao tomar a frase de Nietzsche: “O deserto cresce: ai daquele que abriga º a t
desertos!”, Heidegger faz referência ao caminho pelo qual anda o pensamento, ela é expressão do que vai dentro do homem. Nela, Nietzsche nada mais quer do que
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dizer do atual estado do mundo. Seu grito está no livro intitulado Assim falou Zaratustra, obra em que o último pensador do Ocidente – nas palavras de Zaratustra, Heidegger – pensa o eterno retorno do Mesmo. 151 Ao retomar Nietzsche, Heidegger nos rememora a modernidade inacabada do pensamento do filósofo
-
que ainda não foi vislumbrado e a necessidade de descobri-lo, pois somente absorvemos o impensado de um pensador quando nos aproximamos da sua verdade original. E a grande verdade é que o pensamento de Nietzsche foi refutado antes mesmo de ser compreendido. Encontramos em Schneider a compreensão de que, para Heidegger, Nietzsche percebe visivelmente, antes do que qualquer outro de sua época, a imposição de se refletir de forma radical a essência do homem pensante. Segundo Heidegger, para Nietzsche, há algo na história do homem ocidental que permanece inacabado e necessita de acabamento uma vez que já chegou ao fim.
150
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração] , , p.42. p.42. Maiúscula do autor.
151
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Nietzsche nomeia como “último homem”152 esta espécie que não consegue enxergar além de si mesmo, elevar-se acima de si mesmo, pois ainda não alcançou a sua própria essência. essência. O pensamento de Nietzs Nietzsche che deseja ir além do homem de sua época, deseja alcançar a plenitude da essência desse homem. Nesse sentido, aquele que parte em travessia para além de si mesmo é, segundo Nietzsche, o “super-homem”153. É ele que poderia guiar a essência do último homem à sua verdade e a assumir no sentido de tomar posse de si mesmo e de toda a Terra, para a partir daí conformar a técnica e o fazer humano a essa nova realidade. Para Heidegger, esse que parte só pode ser alguém em decadência, pois é a partir do declínio que o caminho do super-homem começa. O super-homem é, pois, aquele que atingiu o seu declínio, o declínio do último homem que parte em travessia, mas, ao mesmo tempo, é passagem, é ponte. Schneider entende que repensar o último homem é fundamental para abrir espaço ao ao homem do porvir. Zaratustra é este que possui o “poder-de-dizer” e diz. Em suas primeiras palavras, logo no prólogo, Zaratustra rememora º a t g o ç a c t r e o -
inversamente o centro da metafísica de Platão, que será, pois, a chave para o entendimento do livro, mas logo reconhece que aind aindaa não era tempo, nem hora de falar sobre o mais elevado. Afinal, o povo encontrava-se subjugado ao ainda-não pensar, encontrava-se dominado pelo império da representação. O pensamento de Nietzsche aponta para o fato de que o homem de então, em sua essência metafísica, não estaria preparado para assumir e gerenciar o poder da Terra como um todo, e segue ainda trôpego “atrás daq daquilo uilo que há muito é [... [...], ], (pois) [...] a representação dos objetivos, fins e meios, efeitos e causas à qual todos aqueles esforços se filiam, é, antecipadame antecipadamente, nte, incapaz de se fazer aberta ao que é.”154 Schneider coloca que, ainda que circunscrito ao domínio da metafísica, é Nietzsche quem denuncia a delimitação que tem por característica a definição do homem como animal racional, animal da representação; uma forma de pensar que busca explicar e delimitar o homem da mesma maneira maneira que o faz com a totalidade das coisas. Encontramos em Mugerauer semelhante ponderação. Para esse último, está para além do escopo de intenções de Heidegger em Que chamamos pensar? 152 Grifo 153
nosso. Grifo nosso. 154 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.56.
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se deter no desenvolvimento histórico da lógica iniciada no pensamento de Platão, ou mesmo da lógica como dialética. Mas, conforme vimos, ao buscar respostas para a atual determinação do pensamento pela lógica fica claro que essa determinação parte da ideia de que “o homem é um animal racional e o pensamento é um processo subjetivo pelo qual percebe-se ou apreende-se objetos pela razão, e, no qual, forma-se ideias de modo a representar mentalmente esses objetos e a formar proposições sobre eles”155. O autor compreende que esse traço fundamental do pensamento tradicional nos trouxe ao atual modo de pensar; uma forma que persiste e resiste através dos tempos a qualquer tentativa de mudança e elucidação. Schneider complementa a ideia afirmando que o pensamento representacional tem uma extraordinária propensão a se perpetuar no tempo, uma vez que o homem, na qualidade de animal rationale, aceita e conforma-se às regras determinadas pelo jogo da representação. A representação recebe de Nietzsche a metáfora do piscar. É, pois, o que brilha e cintila, uma aparência totalmente superficial, tudo aquilo que se relaciona º a t g o ç a c t r e o -
com a representação. Para Nietzsche, o último homem pisca. A metáfora do piscar é entendida por Schneider como uma situação em que o homem, enredado pelo jogo da representação, se vê diante do brilhoso simulacro que lhe é oferecido: o labirinto inextricável da “sala de espelhos que por representação reflexiva continuamente lhe fornece a verdade proposicional objetiva [...]”. 156 O autor nos afirma que o cintilar e o piscar se conformam a um jogo já iniciado que se estabelece com as cartas devidamente marcadas, cujo o resultado já está previamente determinado e definitivamente consumado, sem nenhum acerto ou reflexão anteriores. De acordo com Heidegger, não encontraremos o super-homem de Nietzsche na opinião pública, no poder, nos meios de comunicação, comunicação, ali encontramos somente a representação dominante e, junto a essa, o bom senso – abrigo dos que invejam o pensamento. Tudo isso acaba por deixar o pensamento numa situação conflitante com a sua essência, pois este, o pensamento, vive no reino do original, do não-pensado, ou, como o próprio filósofo diz, do “im 155 Robert Mugerauer, Heidegger Heidegger’s ’s 156
languag languagee and thinkin thinking g , 1988, p.70. Tradução nossa. Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
Paulo 2005, pp.108-109.
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pensado”157. Nesse sentido, quanto mais singular, mais rico será o pensamento; quanto mais próximo à representação, mais superficial, pois aqui fica-se preso ao pensamento vigente. Schneider nos adverte que o regime da representação se enraíza de modo inevitável e inconteste nas mais diversas áreas da cultura e da linguagem. Segundo o intérprete, o pensamento do representar inibe qualquer possibilidade de reflexão profunda sobre as coisas, afetando o juízo quanto ao certo e ao errado, ao legítimo ou ilegítimo. É justamente a representação que determina e estabelece o quadro que compõe a realidade, onde fulgurosamente tudo se apresenta numa trama administrada e engendrada, incapaz de nos fazer lembrar a conjuntura na qual se instalou tamanho engodo. Dessa forma, para Heidegger, manter-se no caminho – ou a caminho – torna-se mister, pois é o caminho que vai conduzir o pensador ao diálogo interno com o pensamento. Esse diálogo travado no pensamento deve levar, indubitavelmente, à questão do ser. Segundo o filósofo, toda a doutrina pensante sobre a essência do homem já é intrinsecamente uma doutrina do ser do ente. º a t g o ç a c t r e o -
Quanto mais único e genuíno, mais esse pensamento nos desconcertará e nos abrirá para o seu impensado. Para Heidegger, é o impensado o maior presente que um pensamento pode nos ofertar, e lançar-se ao ainda não pensado de um pensador exprime o desejo de tornar o que ali subjaz ainda maior. O filósofo entende que no caminho do pensamento o relacionamento entre ser e essência do homem acontecem naturalmente, esse é um caminho interno natural, estamos já em essência abertos para o apelo do ser. Todavia, só isso não basta, se faz necessário “[...] rasgar a névoa que se põe diante do ente como tal, [...] e cuidar para que esse esse rasgo não sseja eja encoberto.”158 Heidegger passa, então, a perscrutar como o ser foi compreendido na modernidade. O filósofo nos explica que vários filósofos da era moderna pensaram o ser como vontade. Schelling, em sua Investigação filosófica fi losófica sobre a essência da liberdade humana e correspondentes objetos159, nos fala que não
existe outro ser que não o querer. É o querer a expressão suprema que reúne em si os predicados do ser primordial, tais como a eternidade – independência independência do tempo 157 Hífen 158
do autor. Grifo nosso. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.76. 159 Friedrich Schelling, Über das Wesen der menschlichen Freiheit. Stuttgart: Reclam, 1964.
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–, e o caráter incondicionado – ausência de fundamento. Heidegger nos coloca, em “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” (GA7), que Schelling encontra na vontade todas as qualidades que o pensamento metafísico atribuiu ao ser. O pensador também nos lembra, que toda essa questão já estava histórica e precisamente colocada nas formulações de Leibniz, quando esse pensou e determinou o ser dos entes a partir da mônada e essa como uma unidade de perceptio e appetitus: appetitus: o apetite que, enquanto vontade, nos impele continuamente de uma percepção à outra. Assim como Schelling na esteira de Leibniz, Kant e Fichte se referiram ao querer racional, também perscrutado por Hegel. Schopenhauer, como vimos, nos fala em vontade e representação, e Nietzsche pensa o ser do ente como vontade de poder. Na linguagem da metafísica moderna, “vontade” e “querer”160 não se referem apenas ao fato da capacidade da alma humana se expressar pela vontade do querer, mas que o ser em sua totalidade possui a sua essência essê ncia através da vontade. Essa manifestação manifesta ção do ser como vontade só pode ser compreendida através do pensar.
º a t
De acordo com Heidegger, no caso de Nietzsche, a vontade de poder se volta para a redenção face ao espírito da vingança, aqui entendida pela repulsa
g o ç a c t r e o
contra o tempo e o seu “foi” 161. Mugerauer nos conta que a história de Zaratustra é a história de como o pensar por representação compreende o pensamento em relação ao tempo. No que tange a representação do tempo, temos em nossa mente a seguinte concepção: o presente se refere a tudo o que é, o futuro é ainda o
-
ausente e o passado é o já ausente; esse escoar sucessivo do tempo é o legado mais certo que o tempo nos concede. Trata-se para Mugerauer, de uma representação aristotélica da ideia de tempo: o constante passar que demarca uma contínua sucessão de “agoras” que transformam o “agora ainda não” no “agora não mais”.162 Miguel de Beistegui, em Thinking with Heidegger: Displacements, Displacements, também faz semelhante ponderação, o autor nos fala da essência do movimento do pensamento que está sempre entre a possibilidade de algo que ainda vai se dar e a memória de algo que já se deu. Essa compreensão do tempo como um escoar sucessivo possui sempre um caráter transitório que, para ambos os autores, caracteriza o modo típico de representação do tempo da metafísica ocidental. 160
Grifo nosso. Grifo do autor. 162 Grifos do autor. 161
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No que diz respeito à vontade, para Heidegger, tudo o que foi não é mais e fica, portanto, de fora da esfera do querer. Diante do que passou, a vontade nada mais tem a dizer. Neste sentido, torna-se impossível uma representação de algo que não é mais, mas quer continuar sendo. Isto significa que o querer, ao esbarrar em algo que foi, carrega em si uma contrariedade: a vontade que deseja se eternizar no tempo, deseja continuar querendo, mas esbarra com o tempo que passou. Nasce, com isso, a essência da vingança, essa repulsa no interior da própria vontade “contra o tempo e seu ‘foi’” 163; nasce o repúdio contra a sucessão de
“agoras” que ao se transformarem em “agora não mais” fazem perecer a
vontade que não pode mais querer. Heidegger nos coloca que, se pudesse ficar livre da passagem constante do tempo, a vontade estaria liberta da vingança. Isto significa dizer que a vontade, livre do tempo, torna-se capaz de eternizar-se. Assim, fazer a travessia significa a própria redenção em face da vingança, uma vez que nela fica-se liberto do ressentimento de que padece o último homem: a liberdade da necessidade da vingança contra o tempo e seu “foi”. Isto quer dizer que a vontade não inclina mais o seu querer em direção ao temporal, pois há uma º a t
presença já presente no homem. Há algo que se encontra e ncontra primeiro – a vontade que
g
quer eternamente a vontade de querer. A vontade, uma vez liberta da repulsa, quer
o
constantemente o retorno do Mesmo164 e, dessa forma, quer a eternidade do que
ç a c t r e o
quis, a vontade de si mesma como fundamento de si mesma. Esse é, segundo Heidegger, o ápice da metafísica de Nietzsche.
-
Todavia, Heidegger nos confessa que a doutrina do eterno retorno do Mesmo não se distingue pela clareza e permanece envolvida em obscuridade para todos nós, inclusive para o próprio Nietzsche . Antes de encerrar suas preleções sobre Assim falou Zaratustra, Zaratustra, Heidegger levanta ainda uma última questão: na medida em que considera-se o ser como presentificação, como ficam ser e tempo, uma vez que este último fica representado como passar e o primeiro como eternidade na presença? Há, segundo o filósofo, uma contradição nessa questão, pois se toda a tradição metafísica pensa o ser como eternidade, isso significa que o tempo concebido como transitório, como um contínuo passar, não pode ser fundamento do eterno. Busquemos alguma luz para este pensar. Nietzsche apud ap ud Martin He Heidegger, idegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.79. Friedrich Nietzsche Maiúscula do autor.
163 164
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Sabemos com Zarader que, para Heidegger, em toda a história do pensamento ocidental, o ser está marcado pela chancela da presença. Essa afirmação heideggeriana é tão frequente que, segundo a autora, adquiriu estatuto de evidência. Zarader nos rememora, em breves palavras, que essa afirmação não sinaliza para o fato do ser ter sido sido pensado pensado165 desta forma, mas, sim, para o modo como foi compreendido, interpretado, experimentado. A autora nos explica que a perspectiva que guiou essa compreensão ao pensamento permanece oculta, mas, sem a mesma, nada seria possível ou inteligível. A única forma que se manteve e que adquire algum sentido para se referir ao ser, tem como pano de fundo a presença e, consequentemente, o tempo. te mpo. Portanto, a relação entre ser e presença é a primeira que se dá na história do pensamento ocidental. Todavia, segundo a autora, embora o ser tenha sido experimentado como presença, essa não é considerada na sua dimensão temporal, na sua pertença ao tempo. Neste sentido, Zarader nos coloca que não só o ser mas, também, o tempo continuam impensados. Em entrevista a Richard Wisser, Heidegger nos dá algumas pistas para essa questão. Diz o filósofo: º a t
Os gregos definiam o ser como presença ( Anwesenheit ) do que está presente. A noção de presença lembra a de atualidade (Gegenwart ), ), a atualidade é um momento do tempo, a definição do ser como presença refere-se, pois, ao tempo. Se tento, agora, determinar a presença a partir do tempo, e se busco na história do pensamento o que foi dito sobre o tempo, descubro que desde Aristóteles a essência do tempo é determinada a partir de um Ser já determinado determinado.. Então: o conceito tradicional de tempo é inutilizável. 166
g o ç a c t r e o -
Vemos que, segundo Heidegger, a ideia de tempo que conhecemos não é suficiente para nos acenar esse horizonte sobre o qual o ser se insere. Trata-se de uma medida entitativa que se circunscreve a uma presença, ou seja, uma permanência que não pode ser representada pela transitoriedade do passar do tempo. Schneider nos explica que o entendimento de tempo que estava presente em Aristóteles ainda é o mesmo a representar o tempo de Nietzsche. O intérprete segue nos explicando que, no que diz respeito à experiência temporal, devemos nos ater ao fato de que o ser deve ser pensado dentro de um horizonte mais original, uma vez que possui uma temporalidade própria . Por isso, segundo 165
Itálico da autora. Martin Heidegger, “Entrevista ao Professor Richard Wisser”, W isser”, in: O que nos faz pensar? pensar?,, 1996, pp.15-16. Grifo G rifo do auto autor. r. 166
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Schneider, a pergunta essencial heideggeriana seria sobre uma possível concepção de tempo mais fundamental subjacente àquela tradicional; pergunta essa não elaborada pela tradição metafísica. Para Heidegger, toda a metafísica repousa sobre esse impensado, e a contemporaneidade mal tem condições de formular a questão do ser do ente. Nos encontramos, pois, face à questão do impensado da metafísica, na relação do pensador com o ser do ente, uma questão que permanece difícil. A problemática reside, precisamente, no fato de que a essência da representação precisa da linguagem para que se possa conhecer o pensamento, e, além da dificuldade imposta pela representação, que sofre uma forma de redução e decomposição, somos ainda incapazes de nomear essa experiência do pensamento, a saber, essa presença que se faz presente, de forma própria e adequada. Assim, mesmo a mais elevada tentativa de representação, como no caso de Nietzsche, não garante que tenhamos nos envolvido com o que é dito, ou que o dito será compreendido. Nossa capacidade de ouvir, iludida pelos os ecos da º a t
história, nos impede de reconhecê-lo. O filósofo reconhece que “na tentativa de Nietzsche de pensar o ser do ente torna-se claro para nós, contemporâneos, contemporâneos, de um
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modo quase inconveniente, que todo o pensar, isto é, relação com o ser, permanece difícil.”167 Trata-se de uma dificuldade que perseguiu toda a tradição metafísica, uma dificuldade que reverbera ainda em nosso tempo.
o
Ao finalizar suas preleções de inverno Heidegger rememora Aristóteles,
-
dizendo: Assim como os olhos olhos dos pássaros da noite se comportam diant diantee da luz resplandecente do dia, também a percepção que é própria da nossa essência se comporta diante do que a partir de si mesmo – segundo seu presentifi presentificar-se car-se – é o mais resplandecente de 168 todos.
Através desse dizer, Heidegger nos reafirma a compreensão de que, ainda que o ser do ente seja luminoso luminoso e resplandecente, resplandecente, continuamos cegos cegos à luz do ser; não o enxergamos senão senão através de um extremad extremadoo esforço. Concluímos, co com m isso, a primeira parte de Que chamamos pensar?.
167 168 Martin
Que chamamos Heidegger, p.92. Aristóteles apud Martin Heidegger,pensar? ibidem, [em p.92.elaboração], À exceção do trecho entre travessões que, segundo Lyra, seria um comentário de Heidegger e, portanto, não faz parte do fragmento de Aristóteles. (cf. Nota do Tradutor, ibidem, p.92.)
65
2.1.2.1. Nietzsche e o fim da metafísica
Consideramos relevante voltarmos nosso olhar, nesta parte de nossa caminhada, para uma questão que julgamos de extrema importância para a compreensão dos desdobramentos desdobramentos que a hermenêutica heideggeriana sobre o texto de Nietzsche nos traz: o entendimento de que a filosofia de Nietzsche é considerada por Heidegger como o fim da metafísica. Todavia, vejamos primeiro aquilo que o termo metafísica suscita para o pensar do filósofo. Casanova, na apresentação ao segundo volume do escrito de Heidegger sobre Nietzsche, nos coloca que, para Heidegger, a metafísica não significa a mera cisão da realidade no mundo sensível e supra-sensível e nela a ideia de que num dos lados encontramos “o conjunto de entidades que não se imiscuem na lógica do mundo dos fenômenos”.169 De acordo com o autor, metafísica é um termo compreendido por Heidegger como um modo distinto de instaurar a questão acerca do ser, uma vez que, para o filósofo, o ser mesmo não é questionado. Em Heráclito, º a t
Heidegger se refere a um tipo de pensamento concebido pela tradição
como a “questão do ser”170 que firma-se como um pensar sobre o ser, mas basta
g
apenas um olhar atento para se depreender que o que está em jogo é o ente e
o
aquilo que o ente é. O filósofo nos adverte que em relação à “questão do ser”
ç a c t r e o -
questiona-se, de imediato e às cegas, o ente e, por assim procederem, quando a questão do ser e de sua verdade é colocada de maneira distinta “o ouvido não consegue lhe dar acolhida, porque esse ouvido só escuta o que fala para si mesmo.”171 Como é possível compreendermos essas afirmações do filósofo? É o próprio Heidegger que nos coloca, em Introdução à metafísica (GA40), que a situação da “questão do ser” é confusa uma vez que correntemente investiga-se o ente enquanto enquanto tal e, nessa investigação, não se entra na temática do ser, mas deixa-o esquecido. Isto significa que, para o filósofo, falar do ente enquanto tal não nos orienta para a questão do ser. Heidegger entende que na tentativa de compreender compreender o ente em seu ser, a tradição metafísica, es esquecendo-se quecendo-se da diferença ontológica entre ser e ente, perguntou pelo ser e respondeu 169
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche II , 2007, pp.viiviii. 170 Grifo do autor. 171 Martin Heidegger, Heráclito , 1998, p.91.
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entitativamente, ou seja, o questionamento sobre o ser partiu sempre de um horizonte de compreensão determinado pelo ente, e, nesse sentido, a questão mesma do ser não foi colocada. Para Para o filósofo, a questão do ser tem a tendência a se identificar com a questão do ente, exatamente porque a sua proveniência continua na obscuridade. Por outro lado, falar do ser enquanto tal, tampouco seria correto, uma vez que isso nos orientaria para uma ordem superior, transcendental, que não corresponde às exigências do ser pensadas por Heidegger. Segundo Casanova, Heidegger percebe que toda a história do pensamento ocidental, desde Platão até Nietzsche, é determinada pelo esquecimento do ser. Trata-se, como vimos, de um esquecimento que se consolida na própria ausência sobre a questão acerca do ser. Benedito Nunes, em O Nietzsche de Heidegger , também entende que a história do ser, pensada ao longo de toda a tradição metafísica, nos deixa como legado uma grande lacuna. Para o intérprete, ao pensar o ser, mas deter-se no ente, equipara-se ambos, esquecendo-se do diferencial que os separa. Nunes também compreende que, para Heidegger, a história do º a t
esquecimento do ser inicia-se inicia-se com Platão e termina com Nietzsche. O autor nos mostra que o esquecimento do ser em favor do ente é apresentado ao longo de
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toda a história do pensamento ocidental através de uma diversidade de modos, tais da época medieval; como: a !!"# de Platão; a $"% de Aristóteles; o ens criator da na modernidade, o sujeito pensante – Ego Sum Sum – de Descartes; a relação da vontade ao saber, com Schelling; Hegel, com o saber absoluto; o eu penso
-
desdobrando-se no eu quero, em Fichte; e a vontade – Ego Volo – Volo – como vontade de poder, em Nietzsche. Segundo o intérprete, a história do ser passa ainda pela coisa em si kantiana, reduzida por Schopenhauer à vontade universal. O intérprete nos coloca que o que há de comum entre essas configurações, ainda que uma ou outra se articule, é o esquecimento da diferença entre ser e ente.172 No que diz respeito ao pensar de Nietzsche, Hans Sluga, em “Heidegger’s Nietzsche”, entende que, assim como todos os outros pensadores na busca das principais causas de todo o pensamento metafísico, Nietzsche também não
172
de termos detidoentendemos anteriormente anteriormente do ser na modernidade através avés da análise de Apesar Heidegger sobre a nos vontade, que àsequestão faz necessária uma visão mais atr alargada, esboçada aqui em suas linhas essenciais, sobre os diferentes princípi princípios os ordenadores invocados pela metafísica, no sentido de caracterizar a história do ser.
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conseguiu enfrentar a questão e, por isso, permaneceu na abrangência do esquecimento do ser. Casanova avança nessa compreensão ao colocar que, para Heidegger, Nietzsche não entende mais a tarefa da filosofia como a de buscar uma maneira isenta para definir “o ser do ente enquanto tal [...]”. 173 Segundo o autor, o filósofo compreende que essa pergunta nem mesmo é formulada criticamente por Nietzsche. Para Heidegger, o ser tornou-se um mero vapor na filosofia de Nietzsche, tão desvalorizado que desaparece diante da vontade de poder. Por outras palavras: Nietzsche não equipara mais ser e verdade como valores supremos, para ele a verdade é apenas tolerada na medida em que é considerada como um valor indispensável à manutenção da vontade de poder.174 Casanova nos chama atenção para o fato de que, para Heidegger, subjaz à filosofia de Nietzsche a ideia de que o ser e a verdade são concebidos “em função da concepção do caráter soberano do devir e do pensamento da vontade de poder como o fato último da realidade”175, i.e., ser e verdade se dariam em uma dimensão derivada da vontade de poder, sendo essa última uma disposição e conformação do mundo ôntico. Entendido por Nietzsche como um valor de segunda grandeza, o ser fica º a t
ligado à vontade de poder que é o princípio originário da configuração da
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realidade. Com isso, a pergunta pelo ser desaparece do pensamento nietzschiano e
o
cai no esquecimento radical. O fim da metafísica significa, pois, a dissolução
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completa da presença do ser em um produto da vontade que quer sempre a si mesma e controla tudo o que é e pode ser.
-
Benedito Nunes também apresenta semelhante colocação. O autor entende que, através do texto de Nietzsche, ficam evidenciados para o pensar de Heidegger, o declínio e a decadência da época como traços do niilismo e da total perda de valores. Segundo o autor, para Heidegger, Nietzsche escreve o último capítulo da história da metafísica ao afirmar que o ser é vapor, erro e ilusão. Este término se dá, concomitantemente, ao mais profundo esquecimento do ser. Segundo Nunes, Nietzsche inverte as lentes do platonismo, jogando para o mundo das aparências aquilo que Platão havia reservado apenas para o mundo inteligível: o real verdadeiro. Isto significa que a certeza e a verdade, assim como as leis 173 174 Marco
Nietzsche II
Casanova, in: Matin Heidegger, , 2007,“Op.viii. O autorAntônio nos coloca que essa“Apresentação”, compreensão heideggeriana é apresentada na preleção niilismo europeu”, em 1940. (cf. Ibidem, p.ix.) 175 Ibidem, p.ix.
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lógicas e científicas, são dadas por medidas e parâmetros de nossas compreensões do real. A este declínio do mundo subsiste somente o ser como vontade de potência, e é a vontade que dá a medida para a dominação e determina que só é real aquilo que pode ser objetivado. O intérprete compreende que a vontade de potência é apontada por Heidegger como a vontade que continua querendo a si mesma, a vontade de vontade. Nesse sentido, o eterno retorno do Mesmo seria “o suprassumo do niilismo”176, pois perpetuaria a vontade de poder que busca eternizar-se querendo a si mesma. O autor ainda nos coloca que a vontade de poder, o eterno retorno e o niilismo são peças fundamentais no pensar de Heidegger sobre Nietzsche, uma vez que expressam a consumação da metafísica e o fechamento da história do ser. Concluímos, com isso, a metade do nosso percurso, porém, antes de iniciarmos as preleções do verão de 1952, ainda uma questão se põe para nós: qual seria o propósito de Heidegger ao iniciar as preleções sobre Que chamamos pensar? com pensar? com Nietzsche, para só então voltar-se para Parmênides? Não apresenta º a t
essa escolha uma inversão histórica? Entendemos, com o que até aqui esforçamonos em apresentar, que a trajetória do pensar heideggeriano busca evidenciar o
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caminho que o pensamento ocidental seguiu a partir de Platão – momento em que se cunhou a identidade entre pensamento e lógica –, chegando até a temporalidade nietzschiana e o fim da metafísica, para com o retorno à aurora grega, neste caso, Parmênides e alguns fragmentos do poema Da poema Da Natureza, Natureza, buscar uma nova vereda,
-
perscrutar um novo caminho em direção ao pensamento do ser. ser . Busquemos, pois, seguir as marcas do caminho deixadas por Heidegger.
2.2.
As preleções do verão de 1952 A segunda parte do escrito Que chamamos pensar? pensar? nos leva, como
anunciamos, à análise de alguns fragmentos do poema Da Natureza Natureza de Parmênides. Todavia, essa segunda parte do livro, dividida em onze capítulos, não adentra o pensamento de Parmênides de imediato. Heidegger, em sua dinâmica própria, nos conduz ao pensar de Parmênides através atra vés de uma longa l onga reflexão sobre a pergunta: O que é que nos chama a pensar?.Vejamos com isto se dá.
176
Benedito Nunes, O Nietzsche de Heidegger , 2000, p.55.
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2.2.1. O chamado
Heidegger retoma a questão “Que chamamos pensar?”177 ciente de que esta apresenta uma multiplicidade de sentidos possíveis em sua formulação, a saber: qual é o significado da palavra “Pensar”178?; qual é o traço fundamental da doutrina do pensar, i.e., segundo a lógica?; qual é a exigência para o bem pensar?; e, por último, que é isso que nos chama a pensar? Segundo Schneider, a justificativa para suscitar tais possibilidades para a pergunta pergunta resulta do fato de que a perscrutação heideggeriana sobre a questão do pensar se orienta, em grande parte, por aquilo que as próprias palavras sugerem e indicam. Nesse sentido, palavras como – pensar, pensar, desejo, mem memória, ória, cuidado, reflexão reflexão,, recordação, destino destino – se circunscrevem dentro do campo semântico das quatro perguntas levantadas pelo filósofo. É, para Heidegger, na mútua pertença desses sentidos que a pergunta pode ser feita e que podemos vislumbrar uma resposta. Com isso, indagamos: de que forma podemos pensar essa multiplicidade de sentidos em uma unidade? Haveria uma hierarquia nesses modos de forma a enunciar as partes de º a t
um todo?
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O pensador entende que essa unidade é expressa a partir do sentido da
o
última pergunta, é ela que nos dá a medida: o que é que no pensar nos chama a
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pensar?, ou melhor dizendo, que é “Aquilo que no pensar nos solicita ( verweist ) e desse modo nos orienta (anweist )” )”179, não apenas no impulso, mas, sobretudo, no desejo de pensar? Schneider compreende que nessa requisição haveria uma exigência, uma inevitabilidade inevitabilidade no pen pensar, sar, algo que se ma manifesta nifesta como uma graça a acontecer de forma inevitável. Todavia, Heidegger nos lembra que essa solicitação não tem, de forma alguma, apenas o sentido do impulso para a efetivação do pensamento. Para o filósofo, aquilo que nos solicita faz com que desejemos o pensar e, assim, sejamos pensantes. A pergunta “Que nos chama a pensar?” surge, pois, como uma forma de delinear um caminho, uma diretriz. Num primeiro momento, Heidegger nos mostra que podemos inadvertidamente achar que, apesar de envolver o homem, essa pergunta o faz apenas na medida em que é nele que esse processo acontece, é nele que realiza-se 177
Grifo do autor. Grifo do autor. 179 Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.95. p.95. Maiúscula Maiúsc ula do autor. auto r. 178
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o pensar. Entendido dessa maneira, o pensar é visto como objeto de uma pesquisa, e o homem em sua natureza, aquele que realiza o pensar, fica fora da pergunta, pois não é coisa que uma pesquisa sobre o pensar deva se deter. Por outro la lado, do, se na pergunta “Que chamamos chamamos Pensar?” nos direcionarmos para Aquilo que de fato acontece em nós, então, estamos nós mesmos enredados na trama dessa questão e a pergunta deixa de se relacionar diretamente com o objeto, deixa de ser genuinamente um problema da ciência, uma vez que nós, em nossa essência, somos interpelados. Segundo Schneider, a frase “Que nos chama a pensar?” está intrinsecamente relacionada ao homem. Essa frase nos remete a nós mesmos, uma vez que não temos como saber o que seja pensar sem que já estejamos inseridos na própria experiência de pensar. Estamos no âmbito daquilo que nos interpela em nossa essência. Não há no pensar, como vimos no início do capítulo, uma cisão entre sujeito e objeto. Trata-se, nas palavras de Zarader, de “reconduzir o pensamento ao seu elemento, lembrando a sua pertença ao ser”. 180 Mas, o que esse chamado nos diz?
º a t
Segundo Heidegger, quando enunciamos a pergunta “Que chamamos pensar?” imediatamente imediatamente nossa atenção se dirige à representação que fazemos do
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nome “pensar”, por isso, num primeiro momento, chamar significa nomear, ser nomeado. Entretanto, quando perguntamos por Aquilo que nos convoca a pensar, então, não mais nos referimos ao significado primeiro, mas a um significado novo, a uma solicitação, uma exortação que nos dispõe a sermos alcançados por
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algo; um chamado que sutilmente nos interpela a uma sintonia com algo que pode acontecer. Apesar de nos parecer estranho, chamar pode, então, ter o sentido de “orientar, cobrar, deixar-se alcançar, trazer ao caminho, en-caminhar (be-wegen ( be-wegen), ), prover caminho”181. Mas, por que o sentido habitual de chamar, o de ser nomeado, nos parece natural e preferencial em nosso pensamento? Heidegger entende que fazemos essa escolha inconscientemente. O filósofo nos orienta para o fato de que é justamente aquilo que soa o mais estranho, o mais próprio da palavra, que, exatamente por ser único, é capaz de originar as demais possibilidades de sua acepção. Essa orientação nos leva, então, à compreensão do chamar como um chamamento, uma 180
Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.152. Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em pensar?[em elaboração], elaboração], p.98. p.98.
181
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solicitação que se deixa alcançar, um sopro na alma que nos envolve por sua chegada e presença. Por outras palavras: a pergunta “Que chamamos pensar?” pensar?” nos remete diretamente ao questionamento daquilo que nos dirige a palavra a fim de que pensemos, e isso é, no entender de Heidegger, o inabitual. Não estamos de forma alguma acostumados a esse dizer da palavra. Para Heidegger, a essência da língua possui a capacidade de jogar com o nosso dizer, de tal modo, que há um esforço enorme no sentido de compreendermos o que é o mais próprio da palavra. Por conta dessa dificuldade, o homem se vê sempre rendido ao seu sentido habitual, ao dizer corrente, tomandoo, até mesmo, como o único padrão. Assim, segundo Heidegger, o que seria o sentido mais próprio torna-se uma transgressão, algo fora do padrão, uma vez que não atende ao conceito corrente. Schneider acrescenta que aquilo que se mostra apenas conceitualmente esconde a sua origem. Segundo Heidegger, estamos tão embriagados pelo sentido habitual das palavras, escorados no uso do senso comum, que nada percebemos do jogo superior traçado pela essência da língua. º a t
Somente quando prestamos atenção, quando nossos ouvidos estão aguçados, podemos, de forma f orma cautelosa, nos aproximar daquilo que é o mais próprio do seu
g o
dizer.
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Heidegger percebe que “dar nome a alguma coisa” 182 – sentido corrente e habitual da palavra “chamar”183 – não está tão distante do seu sentido mais próprio e original. Todavia, o filósofo nos adverte que quando nomeamos alguma coisa, estabelecemos uma relação entre nome e coisa. Nessa relação, o nome passa a ser considerado como um objeto, assume um caráter objetivo, pois “[...] representamos a relação entre nome e coisa como uma correlação entre dois objetos diferentes”.184 Nos encontramos, assim, no reino da representação. Segundo Heidegger, essa correlação entre a coisa e seu nome acaba por vedar qualquer outra possibilidade de compreensão. Para além do nomear, o vocábulo “chamar” pode ser compreendido como evocar na palavra, e aquilo que é evocado no chamar-a-vir, presentifica-se e, por
182
Grifo do autor. Grifo do autor. 184 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], elaboração], p.100. p.100. 183
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fim, “chama-se”185. Chamar repousa, então, numa evocação. O filósofo entende que quando compreendemos a palavra “chamar” em seu sentido próprio, “no sentido da pergunta por aquilo que a nós apela e, com isso, chama-nos a pensar”186, a questão “Que chamamos pensar?” pensar?” pode pode ser, enfim, formulada como deveria ser e as três outras vias de formular a pergunta podem ser alcançadas. Mas, o que realmente nos chama a pensar? O que, nas nas palavras de Heidegger, “apela a nós para que pensemos e assim sejamos, como pensantes, aquilo que somos?”187 Para Heidegger, há no pensar um resgate da nossa essência que é evocada e que precisa do pensar para ser considerada; o que nos chama a pensar reivindica, através do pensar, o cuidado com a própria essência. O filósofo nomeia como o mais problemático Aquilo que nos dá a pensar. Assim, é o problemático por excelência aquilo que nos determina essencialmente e que, antes de tudo, tornanos mais próprios ao pensar. Schneider nos coloca que “o procurado que se procura elucidar determina de alguma maneira a quem o procura [...]”.188 Para o º a t
intérprete, a maneira pela qual o ser se manifesta requer um caminho de descoberta, que se firma pelo aprofundamento daquele que o percebe pré-
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compreensivamente. Todavia, Schneider nos coloca que essa pré-compreensão nos leva a conceber o ser a partir de uma reflexão que já se encontra presente na esfera do pensar, objetivada pelo pensamento representacional, e não aquilo que torna possível o próprio pensar. O intérprete ressalta que o ser não é
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fundamentado e nem gerado ou realizado pelo pensamento. Mas, ao contrário, o ser desvela-se no pensar, de tal forma que ao fazê-lo dá ao homem o que pensar. Com isso, consuma “a sua relação com a essência do homem pela oferta de si na compreensão por meio da linguagem”.189 Por isso, no entendimento de Heidegger, pensar é uma dádiva, a maior riqueza que possuímos em nossa essência, e na pergunta “Que nos chama a pensar?” indagamos não só pelo que nos agracia a gracia com essa dádiva, como por nós
185
Grifo do autor. Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em pensar?[em elaboração], p.101.
186
187 188 Ibidem, Ibidem, p.101. p.101.
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, mundo, 2005, p.14. 189 Ibidem, p.15.
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mesmos em nossa essência, pois somente somos capazes de pensar “na medida em que somos agraciados com o mais problemático, presenteados com o que desde o princípio e a perder de vista gostaria de ser pensado”190. Uma vez agraciados, o desejo de pensar torna-se também crucial para que possamos pensar de modo próprio. Heidegger percebe que raramente nos envolvemos com o pensar. O chamado ao pensar é totalmente livre. Nesse chamado, Aquilo que nos chama, o faz em liberdade para que ali possa existir o humanamente livre, e é nessa evocação que a essência original da liberdade oculta-se, visto que dá ao homem algo de sua essência. Mas, o que é para Heidegger a essência original da liberdade? Em “Sobre a essência da verdade” (GA9), Heidegger volta seu olhar para a questão da essência da liberdade em sua relação essencial com a verdade. Essa conexão, segundo o filósofo, nos levará ao domínio no qual se essencializa originariamente a essência da liberdade. A liberdade assim compreendida é aquilo que deixa que o ente seja o que ele é. Segundo o filósofo, não há nisso uma º a t
omissão ou indiferença, mas, ao contrário, um “entregar-se ao aberto [...] que cada ente traz, por assim dizer, consigo”.191 Zarader nos esclarece que a questão da
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essência da liberdade é pensada por por Heidegger a partir de “uma verdade ‘mais original’”192. A autora ressalta que não se trata de uma liberdade do homem em relação às coisas, aos entes. Mas, trata-se da “liberdade do do ser no no duplo sentido deste possessivo: liberdade concedida pelo homem ao ser, e, de uma certa
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maneira, liberdade concedida pelo ser ao homem – liberdade de ser na verdade”. 193 De acordo com a intérprete, a liberdade assim compreendida é o traço de união entre o ente e o ser, e não é porque ela ocupa um lugar intermediário entre ambas as verdades – de ser e ente –, que ela é apenas passagem de uma à outra, mas porque participa de forma enigmática de uma e de outra. Segundo a intérprete, “é só por esta dupla participação de essência que ela pode ser uma função de articulação de uma com a outra” .194
190
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], p.106. Martin Heidegger, “A essência da verdade”, in: Marcas in: Marcas do caminho, caminho , Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p.200. 191
192 193 Marlène
Zarader, Zarader, Heidegger Heidegger palavra s da origem origem,, 1990, p.70. Ibidem, p.72. Grifo da autora.e as palavras 194 Ibidem, p.75. Grifo da autora. Ainda no que diz respeito a essa posição intermediári intermediáriaa entre a verdade do ente e a verdade do ser, Zarader acrescenta acrescenta que este “traço de união é o que separa e
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Segundo Heidegger, no sentido de uma compreensão da palavra “pensar”, somos remetidos, mesmo que de forma imprecisa, a algo da ordem do espírito humano: diz-se tanto da ordem de atos de vontade quanto de atos de pensamento. Neste sentido, na pergunta “Que nos chama a pensar ?” indagamos não somente para o lugar de onde parte o chamamento ao pensar, mas igualmente sobre o que195 ao
pensar nos chama. Denota-se, neste movimento, não só uma evocação,
mas também algo já nomeado, compreendido, mesmo que de modo aproximado. Heidegger nos coloca que, de um modo geral, a aproximação dada pela língua habitual é suficiente para o uso corrente. Todavia, o filósofo entende que, nesse caso, deve-se buscar a palavra como palavra. Assim, na pergunta: o que é nomeado na palavra pensar?, faz-se necessário nos aventurarmos no jogo da língua, de forma a compreendermos o que, em nossa essência, o pensar tem a dizer. 2.2.2. O dizer das palavras
Heidegger concede ao pensar e ao poetizar, ambos com essências º a t
singulares e distintas, o estatuto do dizer essencial. Para o filósofo, a língua é
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pensada habitualmente apenas como um meio de expressão. Porém, o pensar e o
o
poetizar “nunca se valem de antemão da língua para com sua ajuda se manifestar;
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são, ao contrário, em si mesmos o falar original, essencial e, por isso, simultaneamente derradeiro, aquele que a língua fala por meio do homem.” 196 Segundo Zarader, os poetas e os pensadores são os únicos que cumprem e realizam o seu destino, são os que se devotam ao ofício de zelar pela linguagem. O filósofo entende que o pensar e o poetizar dizem palavras, não termos. Para o pensador, “as palavras aparecem primeira e superficialmente como termos.”197 Os termos são da ordem do sensível, do som, algo que nos é dado imediatamente, na medida em que aparecem como verbalmente ditos na nossa fala. À palavra une-se o sentido e o significado, algo da ordem do não sensível. Heidegger nos coloca que é no ato doador de sentido que o termo se abastece e se que une o Da-sein no meio deste. A liberdade é, no sentido estrito, o que permite ao ‘ser’ ter um ‘aí’, ao Sein ter um Da. E é precisamente porque ela é esta permissão, dada ao ser, de ser ‘aí’, que troca define e clarifica clarifica a essência do Dasein [...].” (cf. Ibidem., p.72.) Itálico do autor. p.107. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.107. 197 Ibidem, p.108. 195 em 196
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torna significativo, torna-se palavra. Para o filósofo, os termos são preenchidos ou esvaziados de sentido, da mesma forma que colocamos ou tiramos água de um balde. Assim, à simples vista, aquilo a quilo que se mostra é sempre o habitual, algo que nos retira do habitar essencial 198 d daa palavra. De acordo com Zarader, estamos ancorados em ideias preconcebidas que nos delimitam o campo de qualquer investigação sobre a linguagem, sendo o principal pressuposto o de que é o homem quem fala e o faz por faz por meio da língua. Dessa forma, ficam estabelecidos de imediato o estatuto estatuto da linguagem e a sua função199. O primeiro, entendido como instrumento, e a segunda, como exteriorização do pensamento; uma uma função de expressão, apenas. Por conta disso, Zarader entende que quando se quer falar algo sobre a linguagem, o escopo do discurso está logo delimitado por uma concepção prévia. Diz a intérprete: “Determina-se (a linguagem) como reflexão de um sujeito sobre um objeto, exigindo um método apropriado, com vistas a chegar ao único objetivo concebível a partir dessas premissas: o isolamento da essência do objeto”.200 Para a autora, em se tratando de Heidegger, tudo isso deve ser abandonado, pois, para o filósofo, a linguagem não pode ser, se r, de forma alguma, º a t g
objeto para o pensamento. Na contramão de tudo isso, Heidegger compreende que é o homem que se encontra a serviço da linguagem. Mas, como entender isso?
o ç a c t r e
determinada entre o homem e a linguagem, expressa na frase “o homem fala”201,
o
deve ser invertida. Não é o homem que fala, mas a linguagem em si que se serve
Entendemos com Zarader que, para Heidegger, a relação tradicionalmente
-
do homem para falar. Há, segundo o filósofo, uma correspondência entre o falar humano e o falar da língua; correspondência entendida no sentido múltiplo do termo alemão Entsprechen Entsprechen e que define o dizer do homem como uma resposta. Todavia, “o homem só pode falar na medida em que ‘escuta’ a linguagem.” 202 Zarader nos aponta que o dizer dos homens é essencialmente uma resposta. Todavia, somente aquele que prestou atenção ao chamado e o ouviu é que pode restituí-lo na palavra.
198
Itálico nosso.
199 200 Itálicos
autora. Heidegger e as palavras Marlèneda Zarader, Zarader, Heidegger palavra s da origem origem,, 1990, p.237. Grifo da autora. 202 Marlène Zarader, op. cit., pp.239-240. 201
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Segundo Heidegger, entre aquilo que escutamos e a palavra em sua essência, em seu habitat original, há um abismo enorme.203 Zarader nos aponta que a escuta à qual o filósofo se atém é a escuta em seu sentido triplo: de audição, de obediência e de pertença. Assim, para o filósofo: “falar, é antes de mais escutar [...]. Não falamos apenas a linguagem, falamos a partir dela dela [...]. Só a ouvimos porque lhe pertencemos”.204 É, pois, exatamente nesse lugar do jogo da língua, nessa relação de correspondência entre o que é “falado” e o que é “escutado” 205, que se abre a possibilidade para que as palavras possam se expressar, possam vira-dizer, pois estas não são como baldes, são poços que o dizer cava, poços novos a achar e cavar de tempos em tempos, que facilmente se fecham, mas de vez em quando também jorram. Sem essa ida contínua aos poços, os baldes e tonéis ou permane permanecem cem vazios ou seu conteúdo 206 estagnado.
Nesse sentido, para que alcancemos o jogo da língua faz-se necessário uma atenção ao dizer das coisas, faz-se necessário nos desprendermos do habitual, o que, segundo Heidegger, é muito difícil em nossos tempos. No entender do º a t
filósofo, qualquer tentativa de atenção, como a ora deferida aos verbos pensar e chamar, será tomada como uma análise parcial e improdutiva, uma vez que não
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nos remete ao âmbito do concreto das coisas. Daí, a necessidade de um envolvimento com a história da língua para acercar-se do espaço de jogo do dizer. A história da língua abre, por certo, uma possibilidade de caminho. Entretanto, o filósofo entende que a filologia é uma ciência que não pensa como a filosofia. O caminho do pensar direcionado e mediado pela atenção ao dizer das palavras é o caminho da filosofia, mas este é um caminho de conhecimento Heidegger debruçou-se sobre a questão da essência da linguagem em várias conferências e
203
cursos reunidos na obra intitulada A caminho caminh o da linguagem (GA12), publicada em 1959. Todavia, na conferência nomeada Língua de tradição e língua técnica (GA80), proferida em 1962 na Academia de Combourg, Heidegger aborda a questão da língua e da técnica, tão presentes em Que chamamos pensar?, e que serve para uma compreensão daquilo que aqui desejamos esboçar. Para o filósofo, é necessário que através do pensamento tenhamos a experiência daquilo que é, pois, do contrário, estaremos estaremos presos ao peso de uma ortodoxia acadêmica que não nos coloca em vantagem em relação à força da era industrial. Segundo Heidegger, é preciso nos direcionarmos em sentido oposto ao que possui caráter utilitário e prático, para, com isso, nos aproximarmos do vazio, do inútil, do lugar onde habita o sentido das coisas. Devemos, pois, nos aproximar das palavras não no sentido de suas representações, representações, daquilo que nos é dado, mas sim, de forma a torná-las próprias, harmoniosamente na nossa fala e na nossa mente, com aquilo que é. (cf. Martin Heidegger, 204 Língua de Heidegger tr adição e líng tradição língua técnica, técnica ,Zarader, Lisboa: Heidegger Passagens, e1995, pp.7ss. Grifos do ,autor.) Martin apuduaMarlène as palavr palavras as da origem 1990, p.240. 205
Grifos nossos. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.109. p.109.
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suprahistórico, que reclama para si uma certeza incondicional, diverso dos conhecimentos da história que se atém a fatos contingentes. Para Heidegger, é determinante o fato de que a filosofia não se fundamenta sobre nenhuma ciência, mas o contrário – que todas as ciências fundam-se na filosofia. Na medida em que as ciências fundam-se na filosofia, esta fica impossibilitada de obter qualquer tipo de fundamentação através da elucidação do significado das palavras. Então, perguntamos: como como podemos lan lançar çar alguma luz so sobre bre o dizer das palavras? Segundo Zarader, na interrogação sobre a linguagem, Heidegger não parte de um pressuposto, “mas de uma proveniência assumida”207. Diz a autora: “porque se abriu na luz do ser, a linguagem não pode ser compreendida como simples atividade humana; nesta medida, a única formulação possível é: a linguagem fala”.208 Todavia, para que a linguagem fale é necessário o falar do homem, e isso só é possível na medida em que o homem ouve o chamado e lhe responde na linguagem. De acordo com Zarader, para Heidegger, não nos damos conta da essência da linguagem, a não ser na medida em que ela nos olha. Nesse sentido, a º a t g o ç a c t r e o -
linguagem não pode ser de forma alguma objeto do pensamento. No entendimento do filósofo, não ser possível conhecer a essência da linguagem através dos conceitos do conhecimento utilizados na representação, não significa uma falta, mas, pelo contrário, é um “privilégio pelo qual somos reenviados a um domínio insigne, aquele onde nós, que somos aqueles que somos precisos (die Gebrauchten)
para falar da linguagem, habitamos enquanto mortais”.209 Dessa
forma, no jogo da língua aventado por Heidegger, entendemos com Gadamer, em Verdade e método,
que “o verdadeiro sujeito do jogo não é o jogador, [...] mas o próprio jogo. É o jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda enreda no jogo e o mantém no jogo.”210 2.2.3. Gedanc – – o pensar do coração
Heidegger passa, então, a jogar o jogo da língua na perscrutação das palavras pensar, pensado e pensamento. De acordo com o filósofo, embora a filologia não pense como a filosofia, essa pode produzir algum sinal dado pela 207
palavra s da origem , 1990, p.240. Zarader, Heidegger e as palavras Ibidem, p.240. 209 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.240. 210 Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p.181. 208 Marlène
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história da língua, algo que indiqu indiquee um caminho. Assim, interrog interrogamos amos com Heidegger: que sinal as palavras pensar, pensado e pensamento nos dão? Ou melhor, a quê, propriamente, essas palavras nos remetem? Abre-se com as perguntas uma nova vereda para o pensar. Sob o escopo da história dessas palavras, mesmo presumidamente insuficiente, Heidegger encontra na palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, uma pista para o dizer original desses vocábulos. O sentido inferido pelo pensador para o termo t ermo funda-se tanto na memória como na gratidão, algo que essencialmente se avizinha, se assenta e está presente em nós. nós. Indaga-nos o próprio filósofo: É o pensar um agradecer? Que designa aqui agradecer? Ou é a gratidão que repousa no pensar? A memória é apenas um recipiente para o pensado do pensar, ou será que o pensar repousa ele próprio na memória? Como se relacionam o pensar e a memória?211
Segundo Heidegger, nessa palavra alemã encontramos algo que se reúne na memória, algo que também diz respeito ao ânimo, ao encorajamento, ao coração.212 O filósofo nos diz que no Gedanc se consubstancia a memória e a º a t g o ç a c t r e o -
gratidão. Memória aqui entendida não no mero sentido de capacidade de recordação, mas no “ânimo como um todo, na acepção da permanente reunião íntima em torno daquilo que sopra à alma, essencialmente, todo o sentido” 213. A esse estado de perene união do ânimo em torno de algo que dá sentido, junta-se o traço de um reter que nada deixa escapar do essencial, um enlevamento que dura. Heidegger nos diz que é “a partir da memória, e em seu interior, (que) a alma derrama [...] o seu tesouro de imagens”214 que, ali retido, é exumado na memória pelo relembrar. Essa difícil compreensão, compreensão, acrescentada da palavra alemã Gemüt –– alma, coração –, também entendida por Heidegger como medida para o pensar, é analisada por Zarader como “a alma reunida em si mesma” 215. Segundo a autora, não se trata de uma recordação específica, mas de nos voltarmos em fidelidade 211
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.116. Segundo Lyra, em nota do tradutor, “não há como restituir em português os nexos etimológicos que em alemão ligam o pensar ao rememorar re memorar e ao agradecer. agradecer . (cf. Nota do tradutor, trad utor, ibidem, ibidem , p.116.) 212 Nas aulas de passagem, Heidegger ainda acrescenta ao significado de Gedanc: “o ânimo, o coração, o fundo afetivo ( Herzensg Herzensgrund rund ), ), o mais interno ao homem, o que mais amplamente se estende para fora, até o limite mais extremo, e isso de forma tão categórica que, pensada corretamente,, não sobra apoio para a representação desse dentro e fora”. (cf. Ibidem, p.121.) corretamente 213
214 Martin
Ibidem,Heidegger, pp.117-118.op. cit., p.117. Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.: Stanford University Press, 2006, p.68.Tradução nossa.
215
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para com aquilo que nos chama, “para essa voz silenciosa do ser que fala na linguagem.”216 Para a intérprete, é por este motivo que o pensamento fiel será inseparavelmente inseparavelmen te a lembrança e a memória desse dom que vigora nas palavras. Heidegger explica que o termo Gedanc une-se também ao sentido de gratidão (dank ), quando visita em rememoração aquilo em torno do que permanece reunido. Assim, na memória que nos aproxima de nossa essência, agradecemos na medida em que pensamos o mais problemático. Com a memória, diz o filósofo, “o ânimo se pensa em relação Àquilo de que faz parte e depende” 217, não como uma sujeição, mas como algo que ouve e atende em reconhecimento e gratidão por si mesmo. O filósofo fi lósofo nos faz entender que o pensar nos é concedido como um dote, e, por isso, devemos ter gratidão por aquilo que possuímos através de uma dádiva. Heidegger compreende que recebemos muitas dádivas, sendo, a mais digna de todas, a nossa própria essência que na gratuidade nos faz ser o que somos. A partir da pista obtida no dizer da palavra Gedanc, Heidegger nos dá a º a t g o ç a c t r e o -
medida daquilo que vem à fala no jogo da língua para o “pensar”, o “pensado” e o “pensamento”218. Foi possível, com isso, nos aproximarmos da origem inaudita daquilo que “memória” e “gratidão”219 inferem. Todavia, Heidegger nos adverte que ainda não somos capazes de perceber essa unidade essencial presente. Segundo o filósofo, esse pensar habitando o seio da memória é tão difícil que raramente dele nos aproximamos. Zarader nos coloca que mesmo sendo a pertença ao ser a constituição da essência mais próxima do pensamento, essa não é nada evidente. Para a autora, o que é mais simples e mais essencial é sempre, por causa dessa própria simplicida simplicidade, de, o que não pode ser verdadei verdadeiramente ramente habitado senão no termo de um longo caminho; e é, pelo contrário, o que é mais aviltado, mais afastado da origem autêntica.220
216
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.: Stanford University Press, 2006, p.68. Tradução nossa. 217
Heidegger, Grifos do autor. Que chamamos pensar? [em elaboração], p.118. 219 Grifos do autor. 220 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem , 1990, pp.152-153. 218 Martin
80
Mais à frente, Zarader conclui dizendo que: devolver o pensamento ao seu lugar mais próprio e mais inaudito é permitir-lhe o retorno ao lugar aonde sempre esteve, mas que, apesar disso, nunca se edificou. Sabemos, a partir de Heidegger, que aquilo que foi trazido à luz pelo gedanc é
muito mais precioso do que o significado habitual das palavras em questão. É, pois, segundo o filósofo, a atenção e o cuidado concedidos ao nomear da palavra “pensar”221 que nos levam ao quarto modo da formulação da questão como doadora de medida. Assim, na pergunta – que é isso que nos chama a
pensar? – fazemos memória e agradecemos por algo que nos é dado, uma dádiva concedida que nos faz ser o que somos, a nossa própria essência: o pensar que dá a pensar o mais problemático. Heidegger compreende que a gratidão aqui suscitada não é um ressarcimento, mas um acolhimento, um “trazer a coisa a sua pertença e aí então deixá-la”.222 Nas palavras de Zarader: “se o pensamento deve ser fiel ao ser, é em primeiro lugar e antes de tudo porque, situando-se no ser, deve guardar a memória de si mesmo, permanecer ordenado pela dignidade da sua própria essência.” essência.”223 º a t
Heidegger passa, então, à compreensão da palavra ânimo, também
g o ç a c t r e o
presente na memória. Essa, não compreendida na acepção moderna do lado sentimental da consciência humana traduzida por animus, mas, no sentido daquilo “que é essencial na natureza humana como um todo”.224 O filósofo nos coloca coloca que o sentido de natureza humana, aquilo que determina o homem a partir de sua
-
essência, tampouco tem a ver com o sentido dado por anima. O vocábulo grego nos fornece o fundamento de determinação de cada ser vivo, mas, ao mesmo tempo, situa o homem na ordem das plantas e dos animais, sem levar em conta a evolução natural concedida pela razão. r azão.225 O pensador entende que mesmo quando 221
Grifo do autor. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.123. 223 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem , 1990, p.154. 224 Martin Heidegger, op. cit., p.124. 225 A partir do escrito Da Alma de Aristóteles, nos parece não ser possível afirmar que o homem possua alguma alg uma faculdade faculda de que o distinga dis tinga de todos tod os os demais viventes. De fato, uma vez que o homem possui todas as faculdades explicitadas por Aristóteles, parece haver uma relação de continuidade entre o homem e todos os outros viventes no que se refere às faculdades de sua alma. 222
De um lado, o intelecto nãotambém poderia de serDeus. dito sua pois este é também de seres análogos ao homem, como As distinção, palavras de Aristóteles, “ [...]faculdade outros detentor detentores es da faculdade pensante e o intelecto, que é o caso do ser humano e de qualquer outro ser, possivelmente possivelme nte existente, de d e condição condiçã o análoga ou o u superior à humana” h umana” parece pa rece confirmar-nos confirm ar-nos isso a
81
esse é compreendido a partir da racionalidade, desconsidera-se o homem em sua essência. Segundo Heidegger, essa é a concepção há muito tempo usada pela antropologia filosófica. O filósofo nos aponta que no sentido de pensar o homem como natureza humana226 temos, antes de mais nada, que perceber que o homem é “aquele ser que se consubstancia ao apontar para aquilo que é, [...] (e) aquilo que é, não se esgota imediatamente no que é real ou fático.”227 Todavia, esse traço essencial do homem jamais foi percebido. Dessa forma, nem a palavra grega anima e nem o vocábulo latino animus anima animus,, entendido como sentido e roupagem da natureza humana, são doadores de medida daquilo que é o traço fundamental da natureza do homem. No sentido de adentrarmos algo ainda mais essencial, Heidegger nos coloca que devemos nos direcionar, a partir do que é nomeado por Gedanc Gedanc,, ao domínio daquilo que se mostra não apenas como palavra, mas na própria coisa-a pensar. A partir dessa pista, precisamos nos encaminhar para aquilo que ela aponta. A memória, como algo que acolhe e oculta aquilo que nos dá a pensar, º a t
tem a sua essência no resguardar. Ela aponta para o âmago do que cobre tudo o que nos dá a pensar e é, por isso, nomeada pelo filósofo como salvaguarda. O
g o
filósofo nos coloca que
ç a c t r e
somente a salvaguarda dá como livre dádiva a coisa-aconsiderar, o mais problemático. A salvaguarda não é, todavia, nada vizinho e exterior ao mais problemático. Ela é ele próprio, sua essência, a partir e no interior da qual o mais problemático dá-se a pensar, a saber, sempre o Mesmo, tempo após tempo. 228
o -
A salvaguarda é, pois, aquela que na gratuidade nos doa o mais problemático, que no mais intrínseco de si mesma oferta sua essência, a partir da qual dá-se a pensar sempre o Mesmo.229 Entendemos, com Heidegger, que somente aí onde a salvaguarda do mais problemático existe é que o pensar do coração – o surgir de cada coisa-a-considerar – se abre para o seu acontecimento. Considerando a questão da salvaguarda, Zarader nos rememora o dizer de Heidegger na carta “Sobre o Humanismo” (GA9). Ali, diz o filósofo: “o homem que Heidegger se refere. (cf. Aristóteles, Da Aristóteles, Da Alma, Alma , (tr.) Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2011, p.78.) 226 227 Itálico
do autor. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.124. Ibidem, p.126. Maiúscula do autor. 229 Maiúscula do autor. 228
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não é o senhor do ente. O homem é o pastor do ser.”230 Para Heidegger, entretanto, ser o pastor do ser é um menos que é mais, na medida em que aproxima o homem da verdade do ser; um menos que firma a sua grandeza no fato de ser o próprio ser 231 que chama o homem a este destino – o destino da guarda da verdade do ser.
A salvaguarda, nesse sentido, protege e preserva a coisa-a-considerar do perigo do esquecimento. Todavia, como vimos, não é o homem que gera a salvaguarda, ele apenas convive com aquilo que lhe dá a pensar. Se assim fosse, o mais problemático não se encontraria originalmente e, desde sempre, retraído nesse esquecimento. Zarader, em “The mirror with the triple reflection”, nos esclarece que a partir dos anos de 1930 Heidegger percebe que, o esquecimento do ser, anteriormente atribuído ao pensamento, volta-se para o próprio ser: é o próprio ser que se “faz esquecer”, mais precisamente porque o ato de retrair-se pertence a seu desvelar-se como tal, ou melhor, constitui seu único meio de desvelamento.232
Entende-se, pois, com Heidegger, que a ocultação do ser é parte de seu modo de desvelar-se. Todavia, como vimos anteriormente, a partir de Platão e ao longo de º a t
toda a tradição filosófica, além do fato de ocultar-se e retrair-se, o ser é esquecido. Zarader nos mostra, com isso, que a história do pensamento ocidental é o domínio
g o ç a c t r e
de uma dupla ocultação, ocultação, além de ser loca locall do esquecimento do do ser, é, também, o local de sua retirada – mesmo sendo esse último entendido como inerente ao próprio ser.
o
Heidegger compreende que a história do pensamento ocidental não se
-
inaugura com o pensamento do mais problemático, mas, ao contrário, inaugura-se com o esquecimento do ser. À luz do esquecimento do mais problemático, a origem também ficou oculta no pensamento inaugural. O filósofo nos adverte que “o começo do pensar ocidental não é o mesmo que a origem”233. Segundo Zarader,
230
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e escritos filosóficos , (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.361.Segundo Carneiro Leão, a discussão dos pressupostos da carta “Sobre o ‘Humanismo’” ‘Humanismo’” “[...] abre toda uma outra dimensão de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, Essencial, que, reconduzindo a vigência Histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos”. (cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: ibidem, p.9. Maiúsculas do autor.) 231
232 Grifo
nosso, no sentido de diferenciar uso verbal, do nominal. Marlène Zarader, “The mirror with theotriple reflection”, in: Christopher Macann, Martin Heidegger:: Critical assessments Heidegger assess ments , vol.II, 1992, p.20. Tradução nossa. nossa. 233 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.127.
83
isso significa que as palavras “origem” e “começo”234 nos remetem a dois pontos de partida. Diz a autora: “Um, inaugura o nosso destino, sem no entanto poder ser definido como começo do pensamento (visto que não pertence à sua ordem), o outro inaugura a história do pensamento, sem no entanto ser a fonte a que se destina”.235 De acordo com a intérprete, Nietzsche já havia acentuado esse outro ponto de partida reconhecendo Heráclito Herác lito e Parmênides como filósofos f ilósofos autênticos e a Ideia platônica como início de um declínio. Todavia, em Nietzsche, o fio condutor histórico ainda é um só. Com Heidegger, o ponto de partida tradicional também é deslocado, entretanto, o termo “pré-socráticos” 236 desaparece, dando lugar às expressões “pensadores matinais ou inaugurais” 237 para aqueles que recebiam apenas o estatuto preliminar do pensamento ocidental. Com isso, instaura-se um duplo registro de inauguração: por um lado, o começo inconteste com Platão que levará a questão do ser ao esquecimento, e por outro, “um ‘outro começo’ – escondido, encoberto, desconhecido – que tinha ocorrido com os primeiros gregos”238. Para Zarader, ambos os registros tem função de inauguração, mas distinguem-se em pensável e impensável, ou seja, aquilo que nos foi trazido º a t
pelos pensadores matinais mati nais não foi mais pensado desde des de de Platão. Portanto, não há
g
uma continuidade histórica entre um momento e outro, mas, dois momentos
o
inaugurais.
ç a c t r e o
Heidegger nos coloca que o inevitável encobrimento da origem nos fez ver o esquecimento do ser sob uma outra luz. O filósofo retoma a questão do !"#$% !"#$% e, e,
-
além das razões elencadas no início do capítulo, nos fala que se não questionarmos o que nos levou a pensar segundo o !"#$% !"#$% enunciativo, não conseguimos vislumbrar a historicidade do nosso destino. Permanecemos cegos, acreditando que o !"#$% !"#$% é é a única determinação do nosso pensar. Soma-se a isso, o fato de sabermos claramente que o caminho do pensar ocidental é atravessado pela fé cristã; que por ser fé, f é, não carece de fundamento e, tampouco, ta mpouco, questiona o pensar regulado pelo !"#$% , Entendemos, com isso, que o reino da fé não depende de nós e, como dom ofertado, nada questiona. Para o pensador, foi essa a razão 234
Grifos nossos. Marlène Zarader, A Zarader, A dívida impensada: impen sada: Heidegger Heid egger e a he herança rança heb hebraica raica,, Lisboa: Instituto
235
Piaget, 236
1990, p.48. Grifo da autora. 237 Grifo da autora. 238 Marlène Zarader, op. cit., p.48.
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que também nos levou à circunstância de não enxergarmos o destino da nossa essência, e, consequentemente, não refletirmos sobre o chamado ao pensar atravessado pelo !"#$% enunciativo. Segundo Heidegger, a historiografia universal, que ordena os acontecimentos e descreve o mundo em suas particularidades, igualmente não foi capaz de fazer-nos ver o nosso destino essencial.239 É, pois, neste sentido, que o filósofo nos indaga: “não temos então, quando perguntamos pela requisição ao pensar regulado pelo !"#$%, também que retornar aos primórdios do pensar ocidental para avaliar qual requisição instruiu esse pensar em seu começo?”240. De acordo com Heidegger, fica claro que na origem do pensamento não houve a pergunta por aquilo que nos chama ao pensar. O que distingue a aurora do pensamento é o fato desses pensadores terem acolhido o apelo ao chamado respondendo a ele em pensamento.241 Heidegger entende que o pensar é um caminho e correspondemos ao caminho somente quando ali permanecemos. O caminho do pensamento começa não só quando enxergamos o horizonte para o º a t g o ç a c t r e o
qual o caminho se descortina, mas, sobretudo, quando nos entregamos ao caminho num questionamento constante de forma a torná-lo caminho. É somente nessa dinâmica própria do movimento do pensar, envolto por um umaa solidão plena de mistério, que o caminho se abre. Ainda assim, sendo esse movimento um constante indagar, “a resposta à questão “Que chamamos pensar?” é, propriamente, sempre apenas o questionar, o permanecer no caminho”.242 Mas, o
-
239
Ao sentido de história (Geschichte), Heidegger acrescenta o de destino ( Ge-schick ). ). De acordo com Carneiro Leão, Heidegger pensa a dinâmi dinâmica ca da essência da história história como destino. Diz o autor: “a essencialização da História é o Ge-schick , (“o destino”) do Ser, [...] em sua Essência, a História é o destinar-se do Ser no homem. Isso quer dizer: é no destinar-se do Ser que o homem se hominiza – isto é, que o homem se constitui como homem – ao articular o destino do Ser, e isso significa: ao dar lugar ao conjunto de referências de ser e ente. Essencialmente pensar não é, portanto, exercer ex ercer uma faculdade fac uldade da consciência c onsciência,, entendida como co mo sujeito, nem n em falar é exprimir exp rimir atividade e o conteúdo desse exercício. Pensar e falar é articular o destino do Ser. Por isso só o homem pensa. Só o homem fala. Só o homem é histórico. E é histórico, enquanto faz e é feito pela História.” (Cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo , (tr.) Emmanuel Carneiro Carneiro Leão, 1967, p.15. Maiúsculas e grifo do autor.) 240 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.140. 241 Na tradução de Que chamamos pensar? para a língua língu a inglesa, Glenn Glen n Gray se refere ref ere a uma experiência. Diz o tradutor: “What distinguishes distinguishes the beginning is rather that those thinker thinkerss What is experienced the ,claim the calling by responding it in thought.” Martinpor Heidegger, called thinking? 1968,ofp.167). A mesma questão datoexperiência será(cf. aventada Zarader em Heidegger e as palavra palavrass da origem . 242
Martin Heidegger, op. cit., p.143.
85
que vislumbrou vislumbrou Heidegge Heideggerr na aurora do pens pensamento amento grego grego?? Permaneçamos, portanto, no caminho caminho buscando algum entendimen entendimento to para essa qquestão. uestão. 2.2.3.1. O
Andenken e
a lembrança fiel
No sentido de trilharmos com Heidegger o caminho do seu pensamento ao voltar-se para a aurora grega, faz-se necessário, a essa altura de nossa caminhada, a compreensão do vocábulo alemão Andenken, que significa lembrança, recordação, memória. Vimos no início do capítulo, na discussão sobre pensamento, ciência ciência e poesia, que Heidegger já havia se referido à memória como a reunião das lembranças (des Andenkens). Lyra, aprofundando esse entendimento, nos coloca que a inversão do vocábulo alemão seria denken an, “pensar em” – o que equivaleria dizer: “a memória como ato (de) pensar em algo, promove a junção dos pensamentos.”243 Também vimos com Heidegger, que “a memória, no sentido da lembrança humana, habita o seio do que recobre tudo que dá a pensar.”244 Entendemos, com isso, que a lembrança, a reunião dos pensamentos, habita a memória e nela encontramos a salvaguarda daquilo que dá º a t
a pensar: a rememoração do ser.
g
Schneider em concordância concordância com Zarader Zarader também compreende compreende que, para
o ç a c t r e o
Heidegger, o esquecimento do ser provém “da própria essência do ser, [...] (uma vez que) se retrai e se oculta da, ou até, na movimentação do pensar”. 245 Para o autor, a tarefa da rememoração e da lembrança do ser é um reconhecimento do
-
pensar de Heidegger sobre a questão do esquecimento. Então, perguntamos: se entendemos, a partir de Heidegger, que o ser mesmo se oculta e retrai e, além disso, foi esquecido num determinado tempo histórico, como é possível lembrar esse esquecimento? É possível rememorar o ser? Gianni Vattimo, em As aventuras da diferença, nos coloca que o esquecimento do ser, característico da metafísica, [...] não se pode entender como contrapo contraposto sto a uum m ““recorda recordarr o ser”, que seja um agarrá-lo como presente. [...] O esquecimento do ser de que fala Heidegger não remete em nenhum sentido para uma possível 243
Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração],
244 p.12. GrifoHeidegger, do tradutor.ibidem, p.126. Martin 245 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, 2005, p.19.
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condição inicial ou final que seja, de relação com o ser como presença desdobrada desdob rada..246
Vemos, também com o autor, que é próprio do ser esse retraimento em favor do ente. Para o autor, o ser subtrai-se como dom, como gratuidade. O intérprete nos concede essa compreensão nas próprias palavras de Heidegger: “Um dar que dá apenas a sua oferenda e que, ao fazê-lo, contudo se retrai e se subtrai a si mesmo”.247 De acordo com Vattimo, entender que o ser se doa em favor do ente como dádiva, mas nesse dar-se permanece em si mesmo, sempre como um dom e nunca como possibilidade de captura do próprio ser, é fundamental para aproximarmos o pensamento meditativo, daquilo que nos chama para além desse apelo. Para Heidegger, o pensamento meditativo é o único capaz de pensar o ser. Vattimo nos coloca que, desde os gregos, o pensamento se volta para o ser como presença. Pensar o ser como presença significa, segundo o autor, uma petrificação metafísica que teve como grave consequência o trágico destino do domínio técnico e da objetificação do ser. Para o autor, a objetividade do pensamento do ser como presença, não só exclui a dimensão da ausência que se º a t g
plenifica como dom no retrair-se, r etrair-se, mas também encobre a possibilidade do “fazer “ fazer estar presente”248, ou seja, o desvelamento do ser. O intérprete nos explica que o
o ç a c t r e
que faz com que o pensamento metafísico se torne inaceitável “[...] não é o fato de
o
Segundo Vattimo, o olhar de Heidegger para os pensadores da aurora grega, tais
-
o ser se dar como presença, mas a petrificação da presença na objetividade”. 249
como Heráclito e Parmênides, se dá exatamente por perceber que em seu pensar poetizante ressoa ainda o apelo da presença como esse “presentificar-se do que se faz presente”250. Ressoa ainda o chamamento do ser como desvelamento em seu caráter eventual, contrário à ideia de pura presença petrificada no curso da história da metafísica. O autor entende que o pensamento que pretenda superar a
246
Gianni Vattimo, As Vattimo, As aventuras aventura s da diferen diferença ça,, 1980, p.123. Grifo do autor. Itálico nosso. Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.122. 248 Vattimo usa a expressão expressão Anwesen-la Anwesen-lassen ssen para para esse caráter da presença. Segundo o autor, para Heidegger ,“o fazer estar presente quer dizer desvelar, trazer à luz do dia. No desvelar atua um dar-se, e é precisamente aquele dar que, no fazer estar presente, dá o estar presente, isto é, o ser”. (cf. Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.125). Entendemos, a partir de Vattimo, que o Anwesen-las Anwesen-lassen sen se se aproxima do termo Lichtung termo Lichtung , o aberto da clareira, o lugar que garante ser e 247
o
pensar e que qu e possibilita a presença se ffazer azer presente presente.. Mais à frente frente,, no 3 .capítulo, retomaremos a questão da alétheia. alétheia. Grifo Grifo nosso. 249 Ibidem, p.125. 250 Grifo nosso.
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metafísica não pode “procurar sair do esquecimento agarrando o ser como algo de presente, [...] mas não pode também voltar a colocar-se na condição do pensamento dos primórdios”251, uma vez que ali não se pensou o ser como desvelamento. Vattimo nos diz que, para Heidegger, somente um salto para um pensamento do ser sem fundamento ( Ab-grund Ab-grund ) poderia nos aproximar desse pensar; somente o pensamento alternativo ao princípio da razão suficiente252 saberia dar o salto. Apesar de ser um salto para o Ab-grund – ausência de fundamento –, o salto não se dá em ddireção ireção ao nada, ao vvazio, azio, mas, ao contrário, contrário, ele encontra um solo, um Boden. O autor nos aponta para o fato de que Boden (solo) é compreendido diferentemente do vocábulo Grund (fundamento). O Boden, segundo Vattimo, remete diretamente à
ideia de desvelamento, pois,
ao aludir a um fundo donde qualquer coisa pode ‘nascer’ (não: derivar casualmente), ele nomeia presençao no seu caráterpara de proveniência . É um termo [...] quea conduz pensamento aquele modo de se relacionar com o ser que sem superar o ‘traço fundamental’ da Schickung , a sua epocalidade, não esquece também o seu aspecto, pensando-a como aquilo que retrai e subtrai no dar do ‘Es gibt’.”253
º a t g o ç a c t r e
Entendemos, com isso, que o pensamento que faz o salto em direção ao Boden é este que deixa de pensar o ser como fundamento e o faz em resposta ao chamado do ser como um desvelar-se. É isso que, de acordo com o intérprete, Heidegger
o
entende por memória e rememoração, como Andenken. Não se trata, portanto, de
-
um mero recordar, mas de um pensamento capaz de pensar o ser como Ab-grund . O pensamento que se atém ao fundamento é aquele que se detém apenas no ente e o no seu ser como presença constante, sem pensar a sua proveniência, a sua origem. Para Vattimo, o ser só pode ser pensado em sua diferença para com a presença, e o pensamento pensamento que pensa sempre “como dádiva em que o dar-se já está sempre subtraído”254 é a memória, o Andenken. 251
aventura s da diferen diferença ça, 1980, p.125. Gianni Vattimo, As aventuras O princípio da razão suficiente é uma temática abordada por Gottfried W. Leibniz no escrito Princípios da natureza d da a graça fu fundados ndados na razão , de 1714. Segundo o filósofo, este princípio é baseado na n a ideia de “que “q ue nada sucede suc ede sem que qu e seja possível possív el [...] fornecer uma u ma razão suficiente su ficiente para determinar determ inar porque é assim, e não de outro modo.” m odo.” (cf. Gottfried Gottfrie d Leibniz, Princípios da 252
natureza da graça fundados na razão , §7, [online] Acesso em 25/08/2014. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/ http://www.lusosofia. net/textos/leibniz_pri leibniz_principios_da_natur ncipios_da_natureza_e_da_gra_a.p eza_e_da_gra_a.pdf df ) 253 Gianni Vattimo, op. cit., p.128. 254 Ibidem, p.129.
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A memória que não se resume à capacidade de presentificar aquilo que está ausente é, segundo Vattimo, essencialmente o encontro do pensar com aquilo de mais particular e constitutivo de si mesmo, e, no encontro do pensar com o ser, a memória é “o recolher-se do ânimo”. 255 Em relação a isso que a memória encontra no recolhimento, a conduta do pensamento se caracteriza como um agradecimento, como Dank. Dank. Compreendemos a partir do autor que, para Heidegger, o Andenken é entendido como o agradecimento do pensar que no encontro com o ser, e mesmo sustentado por esse, não o dispõe; e é exatamente porque não o dispõe, que não pode jamais presentificá-lo como um objeto da representação.
2.2.3.2. A proveniência proveniência do pensar pensar Assim compreendido o Andenken Andenken,, Zarader nos coloca que se o esquecimento do ser pode ser desfeito, Heidegger só pode fazê-lo através da memória, e “de onde poderia o pensador redescobrir a memória, se não a partir deste momento inaugural em que o ser, enquanto já está acontecendo em sua º a t g o ç a c t r e
retirada, ainda não tinha assumido o véu do esquecimento?”256 Esse é, no pensamento de Zarader, o privilégio da “aurora grega”257, uma retirada que foi perdida mais tarde na história, isto é, esquecida e sempre mais decididamente encoberta.
o
O ser é certamente entendido como retraído, assim como esquecido.
-
Todavia, segundo a intérprete, Heidegger parece pensar que não foi assim desde o início. Entende-se, com a autora, que o ser tenha se revelado em si mesmo, ao menos como retirada que é, e, nesse ato decisivo, ao menos por um instante, como um relâmpago258, a verdade do ser tenha tido lugar no registro de uma experiência. A autora nos diz que, movido por uma estrutura prévia de compreensão da própria história, Heidegger entende que é provável que a essência da coisa em si tenha sido dada na origem (e que possa então ser reencontrada nas palavras 255
Gianni Vattimo, As Vattimo, As aventuras aventura s da diferen diferença ça,, 1980, p.130. Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin Macann, Martin Heidegger:: Critical assessments Heidegger asses sments,, vol.II, 1992, p.21. Tradução nossa. 256
257 258 Grifo
da autora. Cf. Marlène M arlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Heritage, 2006, p.65. Em nota, a autora nos fala da temática do “raio inaugural” presente no artigo “Logos” (GA7). (cf. Ibidem, p.215.)
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inaugurais), como inversamente também é provável, que as palavras inaugurais inaug urais quando interrogadas, possam p ossam dizer a essência 259 da coisa em si.
Entendemos, a partir da intérprete, que o Andenken estaria circunscrito dentro dessa hermenêutica e seria então compreendido como o movimento retrospectivo do pensamento que se volta para trás como memória. Todavia, como vimos, não nos referimos aqui ao movimento singular de olhar para o passado em lembrança, mas um olhar que se põe em direção àquilo que, “na medida em que ainda não foi pensado, continua proposto ao nosso futuro – mesmo se não podemos esperar atingir at ingir esse futuro senão pelo ‘passo atrás’” 260. A autora também mostra aquilo que seria o movimento inverso a ser explorado pelo pensar de Heidegger após o movimento do Andenken Andenken:: o Vordenken Vordenken.. Se o primeiro se caracterizava por um salto retrospectivo, esse se caracteriza por um movimento prospectivo, um pensamento que caminha para o futuro. Todavia, o Vordenken Vordenken não é um avanço livre, onde o pensamento está totalmente desconectado do passado, mas uma prospecção que se dá a partir daquilo que nos foi dado pelo Andenken. Ambos os movimentos são, nesse sentido, complementares e se º a t g
orientam para o pensamento futuro. Dito por outras palavras: o Andenken é um salto retrospectivo em direção aos primórdios do pensamento, que nos afasta do
o ç a c t r e
pensamento da tradição na medida em que busca nesse passado algo que ainda
o
apropriação da nossa herança grega”261. Por outro lado, o movimento que nos
-
não foi pensado. Zarader nos coloca que o Andenken Andenken “tem como finalidade a
orienta para o futuro é o Vordenken Vordenken,, um pensamento prospectivo que, ao buscar na origem o impensado, separa-se dessa em proveito de um outro pensamento ainda a ser pensado. Esse movimento significa, aos olhos da autora, “a superação da herança grega”262. Entendemos, assim, que os movimentos do pensar orientados pelo Andenken pelo Andenken e pelo Vordenken Vordenken nos nos levam, num primeiro momento, à
259
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage Heritage,, 2006, pp.65-66. Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.34. Em nota, a autora apresenta uma citação do próprio Heidegger que julgamos pertinente, no sentido de nos ajudar na compreensão desse movimento. Diz o filósofo: “Se o pensamento, lembrando-se lembrando-se daquilo que foi (das Gewesene), Gewesene), lhe deixa a sua essência e não altera o seu reino usando-o apressadamente apressadamente como presente, descobrimos de scobrimos eentão ntão que o que q ue foi, pelo se seu u retorno no no Andenken Andenken,, se estende para lá do nosso presente (Gegenwart (Gegenwart ) e vem até nos como um futuro (ein (ein Zukünftiges). Zukünftiges). Bruscamente, o 260
Andenken deve pensar o que foi como algo de ainda-não-desdobrado ((als als ein Nochnicht Entfaltetes )”. (cf. Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.34.) Entfaltetes)”. 261 Ibidem, p.35. 262 Ibidem, p.35.
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apropriação de um pensar que depois será superado em nome de um pensamento porvir. Esse duplo movimento do pensamento heideggeriano – Andenken e Vordenken – ajuda-nos, também, a esclarecer a noção de um outro vocábulo vocábulo alemão, sem o qual não poderíamos entender o movimento do pensar de Heidegger ao voltar-se para a aurora grega: o Anfang. o Anfang. Como Como vimos brevemente no primeiro capítulo, o Anfang corresponderia, então, ao início primordial, ao começo originário. Mas, como entender esse vocábulo no sentido proposto por Heidegger?263 Segundo Zarader, a compreensão do termo se dá pelo fato de que o Anfang tem tem um caráter pontual, evoca o ponto de partida, a “primeira captura” 264 de algo, e, por isso, diferencia-se de Beginn Beginn,, outro termo alemão que, também entendido por “começo”265, aponta para algo temporal, uma extensão de tempo ainda que mínima. Enquanto o primeiro primeiro se refere a um ponto inicial específico, o segundo tem o caráter de um início que se estende temporalmente, dura. O próprio Heidegger nos coloca que Anfang e Beginn Beginn não são idênticos266, apesar de transitarem dentro do mesmo escopo semântico. Zarader nos explica, nas próprias º a t g
palavras de Heidegger, que o Anfang seria, então, algo que precede qualquer começo. Diz Heidegger:
o
O começo é aquilo com o que alguma coisa se ergue, o Anfang é é aquilo de onde alguma coisa jorra. [...] O começo é imediatamente abandonado, desaparece na sequência dos acontecimentos. O Anfang , a origem (Ursprung (Ursprung ) pelo contrário, só se torna claro no decurso do processo, e só no fim deste plenamente .267
ç a c t r e o -
O Anfang é, assim, entendido como algo que antecede o começo, como uma fonte velada de onde jorra algo que permanece impensado à espera de um futuro. Através da leitura de Zarader, fica claro para nós que o pensamento de Heidegger não é, de forma alguma, um retorno aos gregos no sentido de reacender 263
Em nota, Zarader nos coloca que o termo Anfang termo Anfang se se circunscreve ao campo semântico mais extenso da inicialidade “onde se pode fazer prevalecer, segundo os casos (e Heidegger não se priva disso), o registro de origem ou do começo”. Fato que, por vezes, acaba por gerar uma certa ambiguidade. (cf. Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavra palavrass da origem origem,, 1990, p.207.) p.207.) Apenas a título de diferenciação, usaremos como tradução para o Anfang o Anfang as as palavras origem ou princípio. 264 Grifo da autora. Zarader rememora as palavras de Beaufret para definir o Anfang o Anfang : “o pontapé de saída”. (cf. Ibidem, p.31). 265 266 Grifo
nosso. Heidegger enfatiza por duas vezes ao longo do texto Que chamamos pensar? que pensar? que Anfang Anfang e Beginn não Beginn não são idênticos. (cf. pp.102 e 127.) 267 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Zarader, op. cit., pp.31-32.
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ali a chama do que foi pensado, mas sim, o de um pensar que, dentro de uma dinâmica temporal própria, relaciona-se com a língua que inaugurou a nossa história. Diz a autora: Porque a nossa história é grega. Somos descendentes. Ingratos talvez, cegos à sua mais secreta proveniência, mas herdeiros contudo. Não [...] (somente) herdeiros de um pensamento, como de uma língua, até de algumas “palavras”. Palavras nunca meditadas propriamente na sua carga de impensado, e que permanecem, contudo, o único território susceptível de encerrar o mistério do nosso destino”.268
Segundo a intérprete, a palavra alemã Anfang entendida como origem, apesar de manter-se problemática dada à ideia de fundo que permanece 269, se mantém necessária no sentido de dissociar o começo do pensamento ocidental daquilo para o qual o pensar de Heidegger aponta e que preserva como inaugural. Isso significa separar o começo, da origem, na intenção de, uma vez ultrapassada essa fronteira, buscar realizar ali os movimentos do pensar orientados primeiro pelo Andenken e depois pelo Vordenken, caracterizando, de fato, um outro começo, o andere Anfang . Esse outro começo, de acordo com Zarader, nos º a t g o ç a c t r e o -
assinala dois caminhos: se nos direcionamos para trás, nos deparamos com o “começo originário”270, o momento inicial da história do ser; se nos direcionamos para frente, encontramos a possibilidade de um outro começo, com a abertura de uma nova história, pois “se permite, num percurso de retorno, retorno, iluminar o já pensado, permite também, num percurso de prospecção, explorar “o que pode ser pensado.”271 Por outras palavras: essa expressão tanto pode significar a origem como também algo que, mesmo tendo acontecido posteriormente, é primeiro na medida em que ressignifica o que veio antes. Fica, assim, entendido o duplo desígnio proposto como “apropriação” e “superação”272 dos gregos, que se instaura com o Andenken o Andenken e e o Vordenken Vordenken no no andere andere Anfang. Anfang. Este é, segundo Zarader, o caminho proposto pelo pensar de Heidegger na segunda parte de Que chamamos pensar?: pensar?: parte-se da memória, entendida a partir do termo alemão Gedanc Gedanc,, no sentido de encontrar a essência da coisa em si no logos original. Segundo a autora, o caminho desse pensar nos sinaliza, por um logos 268
Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.33.
269 270 Nos
reportamos à questão levantada por Vattimo sobre o Grund e e o Boden o Boden.. Grifo nosso. 271 Marlène Zarader, op. cit., p.358. 272 Grifos da autora.
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lado, o logos original – um caminho que nos mostra como a essência do pensamento foi experimentado na aurora da história ocidental – e por outro, a escuta à língua alemã, que repousa sobre as palavras diretoras de caminho, Gedanc,, Denken Gedanc Denken,, Germüt . E, mesmo sendo as duas vias aparentemente distintas, ambas se dirigem à coisa em si, tal como ela mesmo se apresenta. São, portanto, duas vias que no final dizem o mesmo. De acordo com a intérprete, não poderia ser diferente, e isso, porque “a coisa em si está sempre abrigada nas palavras inaugurais, e as palavras inaugurais nunca dizem nada mais (na medida em que as deixamos falar) do que a coisa em si .”273 Mas, como podemos pensar o logos logos original original na esteira do Gedanc Gedanc?? Zarader nos coloca que, no “sentido de escutar na palavra logos logos,, o eco da memória e do agradecimento, precisamos [...] partir de um horizonte do pensamento que não tem origem nesta palavra [...]”274. A autora nos fala de um horizonte próprio do pensamento de Heidegger, o qual, fiel à escuta da língua alemã, é capaz de perscrutar o logos no Gedanc Gedanc.. Segundo º a t
Zarader, para o
pensador, a etimologia nos dá apenas sinais. Todavia, nos adverte o próprio Heidegger: “Para notar um sinal, é preciso preciso já ter penetrado no d domínio omínio a partir do
g o ç a c t r e o
qual ele provém.”275 Nos encontramos, pois, dentro da complexa hermenêutica heideggeriana do salto, e será com Vattimo que encontraremos algum entendimento para essa questão. O autor nos diz que o Andenken Andenken,, compreendido como pensamento hermenêutico, destrói os nexos históricos relacionados com
-
determinadas palavras-chave, remetendo e sujeitando essas palavras a uma análise infinita, algo que nos aponta para uma inesgotabilidade na compreensão dos termos. Para Vattimo, “o regresso hermenêutico in infinitum inverte infinitum inverte as prescrições da lógica, e jamais possui fins ‘construtivos’” 276, e isso, segundo o autor, remete ao caráter de não-fundamento ( Ab-grund ) tão buscado pelo filósofo. Nos direcionemos, sem mais, às palavras inaugurais de Parmênides, procurando, na permanência do caminho, corresponder ao pensar proposto por Heidegger nesta segunda parte do escrito Que chamamos pensar?. pensar?. 273
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage Heritage,, 2006, p.65.
Tradução 274
nossa. Ibidem, p.66. Tradução nossa. 275 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.66. Tradução nossa. 276 Gianni Vattimo, As Vattimo, As aventuras aventura s da diferen diferença ça,, 1980, p.135.
3. O outro pensar
A língua é o espelho da existência, mas também da alma a lma […]. Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo. Devemos conservar o sentido da vida, devolver-lhe esse sentido, vivendo com a língua. [...] O que chamamos língua corrente é um monstro. A língua serve para expressar ideias; mas a língua corrente expressa apenas clichês e não ideias; por isso está morta e o que está morto não pode engendrar ideias. […] 277
João Guimarães Rosa
Neste momento do escrito Que chamamos pensar? pensar? somos lançados pelo pensar de Heidegger para a aurora grega do pensamento. O filósofo eentende ntende que o destino do pensar deve nos remeter aos primórdios do pensar ocidental como questão preliminar. Devemos nos colocar diante da história a questionar o que determinou esse pensar em seu início. Será na perscruta do fragmento VI do poema Da Natureza278 de Parmênides que Heidegger buscará o sentido mais º a t
condizente a essa questão. O filósofo compreende o pensar como um caminho e
g
somente permanecendo no caminho é que correspondemos a ele. Devemos, pois,
o ç a c t r e
demorar-nos no caminho no sentido de construí-lo, diferentemente daqueles que de fora se põem a representá-lo e discuti-lo. Mas, como um caminho se torna
o
caminho? Por qual caminho nossos passos devem caminhar para que este se
-
converta em caminho? Sabemos que o caminho do pensamento não se dispõe numa via, de um ponto a outro como algo preexistente. Com Heidegger, sabemos também que esse se perfaz “numa solidão plena de mistério” 279, um percurso que jamais permite que nenhum outro invada a sua solidão. Mas é, na visão do filósofo, com o questionar pensante que o caminho-pensamento se abre. Que chamamos pensar? é pensar? é uma dessas veredas que o pensar de Heidegger trilhou. Mais do que isso, o escrito é um convite à constância do caminho. Demoremo-nos, pois, um pouco nessa paragem.
277
Günter Lorenz, Diálogo com co m a América La Latina, tina, São Paulo: E.P.U., 1973. Entrevista a João Guimarães Rosa, conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos em janeiro de 1965 1 965 e publicada public ada em seu livro livro Diálogo Diálogo com a América Latina. Latin a. 278 Hermann Diels e Walther Kranz, Kranz, Die Die Fragmente Fragmen te der Vorsok Vorsokratiker ratiker , Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, Verlagsbuchhandl ung, 1960. 279 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], p.142. p.142.
94
3.1. Na aurora aurora grega do pensamento pensamento O que sabemos sobre esses primeiros pensadores? Seriam eles, de fato, os primeiros? Temos conhecimento que Parmênides e Heráclito são pensadores contemporâneos um do outro, que viveram entre os anos de 540 a 460 a.C.; e são eles que, juntamente a Anaximandro (610 a 547 a.C.), são considerados por Heidegger como as figuras centrais da aurora do Ocidente. Antes desses, outros trilharam a senda do pensar, mas, para o filósofo, apenas os três podem ser considerados pensadores originários. Nos detivemos no capítulo anterior, através da análise de Zarader, na questão da diferença entre início ou começo ( Beginn Beginn)) e origem ou princípio ( Anfang Anfang ). ). Sabemos, com Heidegger, em Parmênides em Parmênides (GA54), (GA54), que “o início pensa o iniciar-se deste pensar num determinado ‘tempo’, [...] funda um lugar para a verdade no interior de uma humanidade histórica [...], (e que a origem) é o digno de ser pensado e o pensado neste pensar primordial”. 280 Para o 281
filósofo, aquilo que é digno de ser pensado na origem é o pensar do ser , pois o “ser é a origem”.282 Todavia, nem todo pensador que pensa o ser pensa a origem. No entender do filósofo, somente Anaximandro, Parmênides e Heráclito pensaram º a t g o ç a c t r e o
a origem. Segundo Heidegger, são eles que, na aurora do pensar ocidental, “[...] pensam o verdadeiro, (e) pensar o verdadeiro significa experimentar o verdadeiro na sua essência e, em tal experiência essencial, saber a verdade do verdadeiro.”283 Já demos a conhecer, também, que o olhar de Heidegger não se volta para os pensadores originários no sentido de interpretá-los, mas, ao contrário, nos
-
coloca que neste pensar tão longínquo – cronologicamente datado de mais 2.500 anos – esconde-se um pensamento jamais pensado, um pensar que precede e determina toda a história. Esse pensar é, segundo o filósofo, um pensar que se faz novo na medida em que oferta aquilo que lhe é o mais próprio e se desdobra como 280
Martin Heidegger, Parmênide Heidegger, Parmênidess, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008, p.21. 281 Itálico do autor. 282 Martin Heidegger, op. cit., p.21. 283 Ibidem, p.13. A questão da verdade, que no poema de Hölderlin encontra encontrava va seu desvelar junto à beleza, vê-se vê-s e aqui envolta envo lta naquilo q que ue diz resp respeito eito a uma ex experiência. periência. Faz-se Faz-se,, portanto, necessário ne cessário algum clareamento a título de avançarmos no texto. Conforme vimos anteriormente, Heidegger nos coloca que a alétheia alétheia foi foi compreendida pelos gregos como “retitude da representação e da enunciação” e foi, por isso, “experimentada como orthótes orthótes”. ”. O filosofo compreende que é na escuta da palavra alétheia que podemos “intuir algo da essência da ‘verdade’ experimentada pelos gregos” (cf. Ibidem, p.32). Essa colocação nos encaminha para a compreensão heideggeriana do vocábulo alétheia alétheia,, que será tratada mais a frente quando adentrarmos propriamente o poema de Parmênides.
95
uma dádiva para o seu tempo. Heidegger nos fala que a sentença “o princípio é o último”284 pode parecer um contra-senso para o pensamento calculador. Todavia, a compreensão de que algo que se deu no princípio possa vir depois sugere apenas que esse princípio surge em seu início de forma oculta e, por isso, permanece inacabado aguardando sua realização num porvir.285 Encontramos desses pensadores apenas vestígios. No entanto, para Heidegger, não podemos nos desviar do caminho que, mesmo difícil, nos leva a perscrutar o legado por eles deixado. Encontramos em Jean Beaufret, em Dialogue avec Heidegger , que o poema de Parmênides parece ser datado do início do quinto século a.C e teve seus fragmentos reunidos por Teofrasto, na época de Aristóteles, e por Simplício, no tempo de Justiniano. Segundo Heidegger, esse poema revela-se em versos ou sequências de versos e expressam uma “doutrina filosófica”, por isso, diz-se um “poema doutrinário”. 286 No entanto, o filósofo entende que a densidade do que é enunciado é tão significativa que não se deve circunscrevê-la a uma doutrina, nem mesmo a uma poesia, pois o que vem à fala no dito revela-nos o todo do pensar de Parmênides, revela-nos um saber essencial. º a t
Mas, o que é um saber essencial? E, como esse saber desvela-se no pensar?
g
Para Heidegger, o pensar essencial é aquele que se volta para o ser. 287
o
Não há, segundo o filósofo, um domínio desse saber, apenas se é tocado por ele. ele .
ç a c t r e
Nesse pensar não se “agarra”288 uma coisa no sentido de um proceder científico,
o
cujo caráter objetivado visa um produto final. Não há, de forma alguma, um
-
construto, uma produção organizada pelo pensamento, mas, ao contrário, no saber essencial “é a origem que origina algo por meio destes pensadores [...]. Estes pensadores são originados originados ( ( An-gefangenen An-gefangenen)) pelo princípio ( princípio ( Anfang ), ), são colhidos por ele, para dentro dele e reunidos a partir dele”. 289 Por isso, Heidegger nos pede uma recusa à compreensão banal das interpretações acadêmicas. O filósofo
284
Grifo do autor. Entendemos que Heidegger faz aqui referência à dinâmica própria dos movimentos do Andenken e do Vordenken e toda a discussão do andere Anfang levantada levantada no capítulo anterior. 286 Grifos do autor. No original Gedicht Lehr . Segundo o dicionário, Lehr dicionário, Lehr é é o que instrui, ensina e forma. Cf. [online] Disponível em: http://pt.pons.com/t http://pt .pons.com/tradução?q=Gedicht radução?q=Gedicht+Lehr&l=dept&i +Lehr&l=dept&in=&lf=de n=&lf=de Acesso em: 5/1/15. 287 Cf. Martin M artin Heidegger, Martin Heidegger, Heidegger, Parmênides Parmênides,, 2008, p.16. 285
288 289 Grifo
nosso. Martin Heidegger, Parmênide Heidegger, Parmênidess, 2008, p.22. Compreendemos que essa frase de Heidegger nos remete à sua hermenêutica: um horizonte de compreensão em que o pensador é aquele que ouve o chamado do ser para, com isso, dar voz à História.
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entende que somente a partir da atenção dada a essa exigência da origem é que o dito de Parmênides terá algum sentido. Segundo o pensador, perdemos completamente o saber ouvir das coisas simples que esses pensadores deixaram. O que, então, vem à fala nesse pensar? Beginn) do pensamento ocidental tem por Lembremo-nos que o início ( Beginn !"#$% característica a separação entre e µ &'$%, quando, a partir de Platão, a lógica
atravessou o pensamento. Todavia, segundo Heidegger, na origem ( Anfang ) o
!"#$% e o µ &'$% se relacionavam de tal forma, que ambos eram usados com o mesmo significado, tanto na poesia quanto no pensamento grego. Isso denota que, na aurora grega, o pensar de Heráclito e de Parmênides ainda se orientava pelo poético, pelo não-científico, e, nesse pensar, a relevância era dada ao próprio pensamento que na meditação sobre o ser encontrava medidas próprias.290 Diz Heidegger: “(&'$% é o que se consubstancia (das Wesende) no seu [próprio] dito: seines o que aparece no desvelamento (Unverborgenheit ) do seu apelo ( seines Anspruchs) [...]. )"#$% diz o mesmo”.291 Como vemos, para o pensador, o !"#$% e
o µ *+''$% $% se co-pertencem e, por isso, é possível considerar que nas primeiras º a t g o ç a c t r e o -
tentativas de pensar o ser, aqueles pensadores ainda encontravam-se circunscritos ao mítico. Heidegger nos coloca que µ &'$% e !"#$% estão ligados à essência da linguagem e se circunscrevem ao campo da palavra eloquente, e que o mítico é o que guarda, na essência da palavra, aquilo que se manifesta primordialmente revelando-se e ocultando-se, ou seja, o próprio ser.292 Michel Haar, em Heidegger et l’essence de l’homme,
acrescenta que o mythos é a linguagem que traduz a
conversa inabitual do ser com o homem. Para o autor, o !"#$% está enraizado no µ &'$% e, uma vez que o !"#$% é muito mais do que a linguagem como habilidade de fala, é o homem que se encontra no interior do !"#$%. É o !"#$% que possui o homem e não o contrário. Haar nos rememora a maneira rigorosa com que Heidegger circunscreve o !"#$% no curso sobre Heráclito. Ali, o autor nos coloca que, para Heidegger, o !"#$% não diz respeito a uma faculdade do homem, nem tampouco à razão e, muito menos, a uma afirmação ou proposição como foi entendido mais tarde.293 O !"#$% é aquilo que unifica os seres, os traz à sua 290
Cf. Martin Heidegger, Introduçã Introdução o à metafísica , 1999, p.168.
291
Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11. Heidegger, Cf. Martin Heidegger, Parmênides , 2008, p.106. 293 Já em Ser e tempo, no §7, Heidegger se volta para o conceito de !"#$% e toda a dificuldade para se “apreender devidamente o conteúdo primordial de sua significaç significação ão básica”. Ali, o filósofo nos 292 Martin
97
identidade mais própria, é a Ver-sammlung 294 original. É a linguagem que ainda não foi dita, mas que reúne em si o mistério de todas as coisas. De acordo com Heidegger, tudo isso se perdeu quando, na interpretação romana, o !"#$% torna-se ratio e perde sua essência e seu fundamento para a razão. Com isso, o dizer do !"#$% que, assim como o µ &'$%, expressava a experiência da essência primordial da palavra como aquilo que convida, que chama cada ser humano ao pensamento daquilo que se consubstancia e aparece, deixa de salvaguardar a relação do ser com o homem e torna-se uma coisa da linguagem, um fenômeno de expressão295 desdobrado em !"#$% enunciativo. Desse modo, o !"#$% perde a sua capacidade de acolher e expressar essencialmente aquilo que nos convoca e nos chama a pensar – essa experiência que os pensadores da origem fizeram. Mas, como Heidegger chega a esse pensamento? Zarader nos fala que o caminho-pensamento de Heidegger se faz em círculos. Uma circularidade que parte do mais aberto dessa circunferência e busca retroceder em espiral ao seu º a t
âmago, buscando aí encontrar aquilo que foi a experiência grega do ser em sua origem. Para a autora, sempre envolto pela questão do ser, Heidegger reconhece a
g o ç a c t r e o
necessidade de retornar ao destino inaugural do ser, à forma como nos foi concedido na alvorada do pensamento ocidental. Todavia, como vimos, esse retorno não apenas revisita o pensamento desses pensadores. Segundo Zarader, Erfahrungen) inaugurais que Heidegger pretende trazer à luz as experiências ( Erfahrungen
-
esses pensadores tiveram, experiências que se desdobraram na linguagem grega e ali foram guardadas e preservadas em algumas palavras fundamentais (Grundworte).296
coloca que desde Platão e Aristóteles Aristóteles o conceito de !"#$% é polissêmico e, de tal modo, que acaba por dispersá-lo dispersá -lo de seu significado sig nificado fundamental. fu ndamental. Heidegger H eidegger nos n os explica que qu e entendermos entenderm os o !"#$% como fala não nos remete ao seu conteúdo primordial. Tampouco, suas interpretações posteriores, tais como: razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação relação e proporção traduzem o que é o !"#$%. Nesse parágrafo, Heidegger delimita os descaminhos que o !"#$% seguiu ao longo da história da filosofia e nos explicita o porquê deste entendimento. (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012, p.71ss.) 294 Ver.samm.lung Ver.samm.lung Sf , 1. reunião, […]. Cf. [online] Disponível em: http://michaelis.uol http://mi chaelis.uol.com.br/es .com.br/escolar/alemao colar/alemao/index.php?li /index.php?lingua=alemaongua=alemao portugues &palavra=Versammlung portugues&palavra=V ersammlung Acesso em: 06/10/14. 0 6/10/14. 295 Cf. Martin Heidegger, Parmênides , 2008, p.104. 296 Cf. Marlène Zarader , Heidegger e as palavra palavrass da origem , 1990, p.28. Itálicos da autora.
Hans-Georg
Gadamer,
no
98 texto
intitulado
“Destruktion
und
deconstruktion”, também compreende que o interesse de Heidegger teria sido o de buscar encontrar nos pensadores da origem uma experiência que desse conta da questão do ser, não mais como pura presença, mas uma experiência do ser envolta pelo selo do velamento e do desvelamento. O autor nos revela que Heidegger procurava em e m Anaximandro, Heráclito e Parmênides “a experiência originária do Ser, um testemunho da comum pertença entre ocultação e revelação”. 297 De acordo com Zarader, a questão mesma da experiência ( Erfahrung ) mereceria uma longa e demorada atenção. Também nós assim entendemos. Apesar de não ser o nosso caminho, entendemos que é necessário um pequeno desvio, a fim de elucidarmos o estatuto que a palavra experiência ocupa no vocabulário heideggeriano. Primeiramente, não nos atemos aqui àquela experiência orientada pelo escopo da ciência. Apesar de todo o histórico sobre essa questão nos nos orientar para para uma objetivação, o método e o passo-a-passo passam ao largo da experiência pensada por Heidegger. Gadamer reconhece, em Verdade e método, método, que há mesmo uma precariedade em relação a uma teoria da º a t
experiência que se projete para fora da objetivação do método científico. O autor
g
nos coloca que o próprio Husserl, que dedicou-se a uma genealogia da
o
experiência, acaba por deter-se na dificuldade de se voltar para a sua essência na
ç a c t r e o -
medida em que faz da percepção, compreendida como externa e relacionada à corporalidade, o fundamento último de toda a experiência. O segundo ponto que gostaríamos de elencar, é que a experiência pensada por Heidegger também não trata de uma vivência ( Erlebnis Erlebnis)) como aquela entendida por Dilthey, cujos estados internos, sobre os quais estamos conscientes, não podem ser conhecidos senão através de nexos mediados pelo mundo.298 De que forma, então, o filósofo compreende a experiência? A julgar pela descrição que Heidegger nos oferece, em A caminho da linguagem (GA12), entendemos que a experiência à qual ele se
297
Hans-Georg Gadamer, “Destruktion and Deconstruction”, Deconstruction”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, Heidegger reexamined reexamined:: Language Languag e and the critiq critique ue of subjet subjetivity ivity,, vol.4, New York, NY: Routledge, 2002. p.75. Tradução nossa. Maiúscula do autor. Entendemos que o pensar de Gadamer, em acordo com o de Vattimo, move-se aqui no domínio da clareira, o lugar que, segundo Heidegger, permite-nos saber a respeito do ser, assim como sobre o ser e o pensar. Nos deteremos à questão da clareira mais adiante quando adentrarmos a análise do fragmento de Parmênides. Parmênides. 298 Cf. Charles Bambach, Heidegger Bambach, Heidegger,, Dilthey and th thee crisis of histo historicism ricism,, Ithaca, NY: Cornell University Press, 1995, p.153.
99
refere abarca o homem em sua totalidade e diz respeito ao espaço de abertura ao próprio ser. Diz o filósofo: Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela, vem ao nosso encontro, chega até nós, nos avassala e transforma. “Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos operaci onalizamos a experiência. exper iência. Fazer tem aqui aqu i o sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele.299
Através dessas palavras, vemos que, para Heidegger, uma vez alcançados pela experiência não há controle, é ela que nos conduz e governa. Estabelece-se, dessa forma, uma relação em que se sofre a ação ou o efeito de experimentar, e, a partir desse encontro, algo novo é gerado pela experiência em si. Mas, de que forma essa compreensão se desdobra na relação do filósofo com os pensadores da origem? Zarader nos coloca que a questão da experiência ganha significado para Heidegger a partir da relação direta com o pensamento o pensamento e e a língua língua..300 A autora nos diz que, ainda que a experiência preceda o pensamento e muitas vezes º a t g o ç a c t r e o -
transborde-o não possibilitando uma apreensão, o experimentar desdobra-se na linguagem. No caso dos pensadores da aurora grega, Gadamer nos fala que a íntima relação e unidade entre a palavra e a coisa era tão natural, que “o nome verdadeiro era experimentado como parte de seu portador, e quando não, ao representar o outro como substituto, era experimentado como ele mesmo”.301 Isso significa que no início do pensar, palavra e nome estavam tão imbricados com a coisa à qual se referiam que, segundo o autor, pareciam pertencer ao próprio ser da coisa. Gadamer entende que foi a partir da compreensão de que a palavra é somente um nome a representar uma coisa, que palavra e nome se dissociam e perdem sua relação imediata com o ser daquela coisa. Zarader acrescenta que a língua – e sobretudo a grega – guarda riquezas que o pensamento não é capaz de exaurir e, por isso, permanece como um refúgio para o impensado. Para a autora, a língua desses primeiros gregos conservou a sua “força original de nomeação”302,
299
Martin Heidegger, A Heidegger, A caminho da d a linguag linguagem em,, Petrópolis: Vozes, 2003. p.121. Apesar de extensa, entendemos que a citação deve ser feita na íntegra no sentido demonstrarmos a
importância 300
que o vocábulo tem no pensamento de Heidegger. Itálicos da autora. 301 Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, método, 1999, p.590. 302 Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.28.
100
e isso permite que o impensado seja “experimentado” 303 sem que se perca, nessa experiência, a sua rubrica de impensado. Segundo a intérprete, essas experiências, feitas na aurora do pensar ocidental, não são sustentadas pelo pensamento e quase não são percebidas pela consciência, por isso, duram o tempo de um “clarão” 304 e logo são recobertas. Mas as palavras ficaram. Zarader nos diz que essas palavras chegaram até nós vazias de sua reverberação inicial, e são elas que solicitam um interlocutor a quem possam falar da experiência que as tornou possível. A autora compreende, com isso, que o interlocutor é aquele que se direciona à origem para ouvir aquilo que, ainda oculto, permanece impensado, ou melhor, é o interlocutor que se põe à escuta das palavras inaugurais, de forma a ali encontrar a experiência contida e transmitida pelas palavras desses pensadores; palavras que ainda permanecem à espera de um futuro. f uturo. Isso Is so implica, no caso c aso da língua grega, numa tradução; o que nos coloca diante de uma outra questão: como pode uma tradução aproximar-se daquela experiência vivida pelos pensadores da manhã grega? Ou melhor, como um redizer pode se circunscrever àquilo que foi experienciado? 3.2. Da traductio traductio º a t
Nesta parte de Que chamamos pensar? Heidegger pensar? Heidegger volta-se, então, para a
g o ç a c t r e o -
questão da tradução propriamente dita. E, nesse caso, para o poema de Parmênides, um poema escrito no grego arcaico por volta do V séc. a.C., fato que delimita uma dupla dificuldade: a de verter para o alemão um pensar do grego antigo e, nesse pensar, encontrar aquilo que permanece oculto. Mas, vejamos primeiro o que Heidegger entende por tradução. Voltemos nossos ouvidos atentos às palavras do filósofo. Sobre a tradução, Heidegger nos pede observar duas coisas, a saber, o conteúdo do enunciado e a forma pela qual o enunciado é vertido da língua original para a outra língua. Quanto à primeira, corremos sempre o risco de sermos muito rápidos e acharmos que logo encontramos a palavra adequada. Devemos, pois, estar atentos às obviedades – não há nada de óbvio no pensar de Parmênides. No que diz respeito à segunda, o filósofo nos diz que a erudição não nos garante nada, devemos “ouvir a sentença a partir do frescor das palavras” 305 e 303
Grifo da autora. Grifo da autora. 305 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.148. 304
101
não ficarmos presos à petrificação da forma. Para Heidegger, todas as vezes que traduzimos um pensamento para nossa língua materna caímos na tentação da interpretação e, com isso, submetemos aquele pensamento a um olhar atravessado por algo previamente pensado. Contra isso, a tradução deve sempre lutar. Por outro lado, adentrar um pensamento sem qualquer pressuposição é, no pensar do filósofo, uma interpretação ainda mais carregada de pressupostos, pois na visão de Heidegger, a crença de que se pode dialogar com um outro pensar a partir de uma ausência de pensamento repousa numa teimosia infundada. A ausência de pensamento é, neste caso, o reduto daqueles que se acercam da aparência de parentesco e da adequação na interpretação. Como, então, devemos nos aproximar da tradução? Heidegger entende que devemos depositar uma certa confiança naquilo que nos é legado sobre os pensadores da origem, pois, a cada releitura encontramos caminhos possíveis e novas diretrizes. Todavia, aqui também encontramos uma dificuldade. O problema reside na impossibilidade de reformulação dessas diferentes leituras, que estranhamente se encobrem por º a t
generalizações que petrificam a fala. Sobre isso, Michael Inwood, em suas
g
palavras iniciais inic iais ao Dicionário Heidegger , acrescenta que o filósofo é aquele que
o
recebe a palavra por herança, mas não vive a experiência a partir da qual a palavra
ç a c t r e o -
se origina. O autor compreende que, não só o filósofo não vive a experiência original, como também a palavra vai se desgastando ao longo do tempo. Assim, para Inwood, aquilo que foi experimentado e xperimentado e transmitido tra nsmitido em primeira mão perdese na transmissão. O autor entende que, uma vez que nessa comunicação as palavras não emergem da experiência, aquilo que é transmitido é visto apenas como um conceito herdado. Inwood nos mostra que assim como o vocábulo grego !"#$%,, traduzido mais tarde por “natureza” 306, afastou-se de seu campo original, !"#$% muitas outras palavras perderam a cifra da experiência primordial que as originou. Por isso, conhecer a palavra do pensador não significa a sua compreensão. Nesse sentido, para Heidegger, o perigo da tradução é ainda maior, uma vez que essa se expressa em outra linguagem. O filósofo nos adverte sobre o perigo de, em vez de confrontarmos a palavra grega, tomarmos o seu correspondente já traduzido apenas porque soa familiar aos nossos ouvidos, sem nos atermos ao fato de que 306
Grifo do autor.
102
toda a tradução carrega consigo algo daquele que a traduziu. Vejamos como o filósofo compreende essa dinâmica. A tradução se apresenta, inicialmente, como um processo externo, técnicofilológico. Heidegger nos coloca que a tradução é compreendida como um transpor, o verter de uma língua em outra através de uma ordenação sintática dos termos. Todavia, para o filósofo, além da tradução se ater a um domínio entre duas línguas, estamos já circunscritos dentro de um outro traduzir, o da nossa própria língua, ou seja, o nosso próprio dizer já passa por um processo de tradução na medida em que “falar e dizer é um traduzir” 307. Trata-se de uma dinâmica que ocorre na própria linguagem, uma vez que na fala optamos por esta ou aquela palavra para expressar este ou aquele pensamento. Segundo Heidegger, isso já é uma transposição. tr ansposição. O filósofo nos coloca que somente na poesia e no texto filosófico nos encontramos circunscritos à singularidade da palavra, pois ali segue-se apenas uma transposição do ser do poeta ou do filósofo para o horizonte de uma verdade. Heidegger entende que somente quando somos tomados por essa transposição é que nos encontramos no âmbito mais próprio à palavra e estaremos º a t
aptos à tarefa da tradução. Isso significa que, no entender do filósofo, a tradução
g
mais difícil é sempre aquela que se passa no interior da nossa própria língua, pois
o
na medida em que há o domínio de uma linguagem, julga-se compreender as
ç a c t r e o -
palavras de imediato ime diato sem se m ater-se a ter-se ao fato de que essas possuem um reino original que lhes é próprio. Por isso, a tradução deve buscar ouvir as palavras nelas mesmas, de tal forma, que nessa recepção nos coloquemos em sintonia com aquilo que a palavra diz. Somente aí, diz o filósofo, exercemos a atenção plena e começamos a pensar. Diante de tamanha dificuldade e cientes de toda essa problemática, procuremos seguir os passos do filósofo, ou melhor, empenhemo-nos em vislumbrar este avanço com Heidegger, que busca “através de uma circunscrição mais e mais cerrada, possibilitar o salto para o interior do dizer da sentença” 308 de Parmênides.
307
Martin Heidegger, Parmênide Heidegger, Parmênidess, 2008, p.28. Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em pensar?[em elaboração], p.144.
308
103
3.3. O impensado impensado de Parmênides Parmênides 3.3.1. A !"#$%&'
Nossos primeiros passos nos levam, ainda que concisamente309, àquilo que julgamos ser fundamental para nos aproximarmos do fragmento de Parmênides: a compreensão da palavra grega
!!"#$%&,
que no poema é o nome da deusa.
Heidegger nos coloca que, de modo geral, na filosofia dos gregos, a palavra !"#$%& era !!"#$%&
traduzida usualmente por “verdade”310, e !!'#"( era a palavra usada
na enunciação para expressar certeza e confiança, mas não no sentido de desvelamento. Segundo Zarader, esse entendimento foi assumido pela filosofia medieval que condensou na fórmula “Veritas et adaequatio rei et intellectus ”311 toda uma compreensão na qual a verdade é concebida como uma adequação do conhecimento à coisa. Como vimos anteriormente, He Heidegger idegger entende entende que o círculo iniciado com Platão, cuja a história da essência da verdade é experimentada metafisicamente, se fecha com Nietzsche. Não há, segundo o filósofo, nenhuma percepção de que, nesse âmbito, a verdade reine apenas como º a t g
adequação e concordância. No entender de Heidegger, a verdade experimentada como retitude da representação e da enunciação se põe à luz do ente e fica, por
o
isso, reduzida ao sentido de !)#*+'(. A !!"#$%&, pensada por Heidegger como
ç a c t r e
desvelamento, como clareira da presença, não é a verdade. Todavia, a verdade,
o -
como certeza do saber a respeito do ser, só pode se dar no aberto da clareira, no desvelamento. Para o filósofo, a !!"#$%& é o caminho para o qual o pensamento se abre, é o lugar que garante ser e pensar, é aquilo que possibilita à presença se fazer presente. É a !!"#$%& que possibilita a verdade312, é ela que a origina. 313 Ernildo Stein, em Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana,
nos fala que a
!!"#$%& é
um elemento essencial e
comanda toda a atitude de Heidegger diante da metafísica ocidental. Ela é, 309
Entendemos a essencialidade da palavra !!"#$%& no vocabulário heideggeriano, todavia, nosso intuito é o de, apenas, entendermos o caminho do pensar de Heidegger ao nos encaminhar para Parmênides no escrito Que chamamos pensar?. 310 Grifo do autor. 311 A frase “Veritas et adaequatio rei et intellectus” pode ser traduzida livremente livremente por: a verdade é a adequação 312
da coisa ao conhecimento ou a adequação do conhecimento à coisa. Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105ss. 313 Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavra palavrass da origem , 1990, p.62.
104
segundo o autor, a própria possibilidade de pensarmos o ser não só como desvelamento, mas, como retenção e velamento; não só como presença, mas, também, como ausência. ausência. Stein nos ccoloca oloca que, para Heidegger, todo o jogo do velamento-desvelamento só é possível de ser pensado na !!"#$%&, pois é ali que “esconde-se [...] o elemento da ausência que presentifica”.314 Isso significa, segundo o intérprete, que é a possibilidade – elemento fundamental da clareira – aquilo que ao mesmo tempo vela e desvela. Para Stein, Heidegger nos remete para o domínio dos primeiros pensadores gregos, pois neles é possível encontrar aquilo que seria o fundamento da presença, &-!"#'. É, segundo o autor, esse “ alfa privativo que caracteriza o desvelado que deixou para trás aquilo que se retém em favor da presença, (que) aponta para a retenção, (para) a retração, para a possibilidade”.315 É, pois, a
!!"#$%& a
palavra-chave que abre, no pensar de
Heidegger, a interrogação pelo ser. Mas, como os pensadores da origem pensaram a !!"#$%&? Heidegger nos conta que Parmênides foi o primeiro a meditar o ser do º a t g o
ente. É Parmênides que, em seu poema, nos fala da
!!"#$%& referindo-se
ao
“lugar do silêncio que concentra em si aquilo que primeiramente possibilita desvelamento”.316 Para o filósofo, a imagem da clareira no meio de uma floresta
ç a c t r e
densa nos fornece todos os elementos necessários para pensarmos a questão
o
venha a falar algo à nossa alma, tanto do que se faz presente como do que se faz
-
originária: um espaço onde a livre dimensão do aberto, uma vez contemplada, ausente. Na clareira tudo se evidencia, tudo se torna claro. Mas, também se fecha e se preserva em sua originariedade, “semelhante a uma fonte que só jorra enquanto se preserva a si mesma”317. De acordo com o pensador, somente do âmago da clareira pode brotar a possibilidade de um comum-pertencer entre ser e pensar, ou seja, a articulação entre presença e apreensão. Heidegger entende que sem a experiência prévia da clareira, não há possibilidade de dizer qualquer palavra sobre o pensamento.318 Isso significa que, toda e qualquer ideia sobre o 314
Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, Ijuí: Ed. Unijuí, 2001, p.85. 315 Ibidem, p.87. 316 Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências 317
e escritos filosóficos, 1996, pp.104-105. Martin Heidegger, Parmênide Parmênidess, 2008, p.32. 318 Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105.
105
pensar não pode sequer ser levantada em questão, enquanto não entendermos a !"#$%& como desvelamento. Stein acrescenta que é a experiência grega !!"#$%& originária “[....], que contém em si a possibilidade de eclodir numa palavra aquilo que a resume. Sem a compreensão da experiência grega, a etimologia da palavra
!-!"#$%& !"#$%& é é letra morta”.319 Fica claro, a partir de Zarader, que Heidegger descarta qualquer possibilidade de uma leitura metafísica do poema, ou seja, uma leitura à luz do platonismo, cuja interpretação foi seguida por toda a tradição filosófica. O filósofo não questiona o pensador da aurora grega a partir desse horizonte. Para a intérprete, o que Heidegger pretende é compreender Parmênides à luz da origem e daquilo que ali ficou encoberto. Não se trata, segundo a autora, de uma aproximação “objetiva”320, mas de tentarmos compreender em que medida o chamado do ser foi direcionado a Parmênides. Trata-se de um caminho de questionamento bastante árduo de ser percorrido, perc orrido, sobretudo porque “o que é digno de ser questionado é assumido como o único âmbito de permanência do pensar” .321 º a t
3.3.2. O fragmento VI
g o ç a c t r e
Voltemos ao escrito de Heidegger e à análise do fragmento VI do poema Da Natureza Natureza de Parmênides: '(" )* )* !+,$%!+,$%- )$ )$ -.$# - )$%& - ' µ µµ$-&% µ$-&%,, traduzido habitualmente por “é preciso dizer e pensar que o ente é” 322. O filósofo no noss coloca
o
que, tão acostumados a uma tradução usual, não nos damos conta que Parmênides
-
esteja a nos soprar à alma aquilo que chamamos pensar. Vejamos como isto se dá. Heidegger inicia sua caminhada partindo de uma análise bem elementar e eliminando as obviedades contidas na estrutura desse fragmento; afinal, um pensador da grandeza de Parmênides não se ateria a dizer algo da ordem do trivial. Para o filósofo, dizer que “o ente é”323 pode não só enunciar o fato do ente ser, mas, sobretudo, o fato de pertencer ao ente como traço fundamental o “é” 324. Assim, “o ente é” significa dizer que ele não-não é. Mas o que esse “é” nomeia? O
319
Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana heideggeriana,, 2001, p.94. 320 Grifo da autora.
321 Martin 322
Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.155. Grifo nosso. 323 Grifo do autor. 324 Grifo do autor.
106
que fica encoberto nesse “é”? O pensador entende que há aí uma densidade tamanha que mal nos damos conta. Acolhemos esse “é” tão naturalmente que, nesse acolhimento, permanecemos no abandono da ilusão do uso regular de um verbo auxiliar que atravessa nossa fala inúmeras vezes ao dia. Nossos ouvidos estão tão habituados às representações desse “é” que acreditamos que nada mais fica por dizer. Heidegger percebe que, talvez, nesse aparente vácuo de sentido habite “a única possibilidade para os mortais de chegar à verdade”.325 Para o filósofo, o enunciado de Parmênides encerra em si o mais absoluto mistério do pensar e do dizer. E penetrar neste enunciado é o mais árduo, precisamente, porque nos encontramos sempre por ele envolvidos. envolvidos. Segundo Heidegger, o enunciado de Parmênides é algo que lhe é soprado à alma, pois, logo em seguida à sentença, encontramos o pedido para que aquele saber seja guardado no coração. Ao que, de imediato, o filósofo indaga: quem é esse eu que faz tal demanda? Quem é esse eu que fala àquele que pensa? E, mais, quem quem é esse que, que, além de chamar, indica caminhos? Heidegger nos coloca que aquele que chama a pensar nos remete a três caminhos: o caminho que º a t
devemos seguir, aquele ao qual devemos prestar atenção e a um outro que
g
permanece inacessível ao pensamento. Segundo o filósofo, nos deparamos neste
o
dizer com uma encruzilhada: o caminho, o não-caminho e o falso caminho. Essa
ç a c t r e o -
encruzilhada, à qual o pensar é lançado, se faz presente a todo o instante desse caminhar; motivo pelo qual somos eternamente levados ao caminho do questionamento. De forma a tornar a estrutura do enunciado de Parmênides mais precisa e trazer à luz aquilo que ficou ensombreado, Heidegger analisa a sentença seccionando suas partes por meio de “dois pontos”.326 Em um sentido mais livre podemos entender o “é preciso”327 por “é necessário”328, de modo que o enunciado fica assim disposto: “Necessário: o dizer assim como pensar: ente: ser”.329 Para o filósofo, encontramos nos “dois pontos” um aceno da relação entre os termos. Em grego, essa relação de ordem e posicionamento chama-se !"#$% !"#$%.. Todavia, não há nesse ordenamento uma ligação, pois os termos encontram-se justapostos pelos 325
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.146.
326 Grifo 327
do autor. Grifo do autor. 328 Grifo do autor. 329 Martin Heidegger, op. cit., p.153.
107
“dois pontos”. Isto torna o ordenamento paratáxico: uma sentença ordenada a partir do conjunto. É somente com o acréscimo dos termos de ligação que a ordenação sintática dos termos vem a ocorrer. Segundo George Pattison, em The later Heidegger , uma frase contém uma unidade de sentido quando expressa uma
relação de sujeito e predicado (x é y). Esta estrutura nos dá o entendimento de que para tudo o que existe encontramos atributos ou propriedades. Para o intérprete, em uma sentença paratáxica, os elementos da oração não se reduzem a uma unidade formal; não há nenhum ordenamento explícito na relação dos termos e, portanto, nenhuma predicação. Dentro de uma concepção lógica, além de soar estranha aos ouvidos, essa oração não tem significado algum. Heidegger nos fala que quando falta o aspecto sintático numa construção linguística, ou entendemos que há um desvio da sintaxe, ou nos deparamos com um estágio da língua que ainda não foi alcançado. O linguajar paratáxico é encontrado em linguagens em que a estrutura sintática da língua não existe, como no caso dos povos primitivos ou, mesmo, entre crianças, cuja estrutura ainda não foi construída. Mas, como esse tipo de linguagem pode se adequar ao pensamento de Parmênides? º a t g o ç a c t r e o -
Heidegger entende que a construção ! “Necessário: o dizer assim como pensar: ente: ser”330 não é não-sintática e, muito menos, primitiva. O filósofo concede ao paratáxico um status fora de comparação ao da linguagem primitiva ou mesmo do falar infantil. Nesse falar, mesmo que num vislumbre, Heidegger distingue um falar mais original, um falar com uma intencionalidade mais abstrata. Para ele, há no espaço entre as palavras um falar e desse vazio é que brota a fala do pensador, um pensar em si mesmo. Vejamos, então, cada uma dessas palavras. Passemos à análise heideggeriana e busquemos encontrar nesse pensar um abrigo. abrigo. 3.3.2.1. O !"!
Sabemos, a partir de Heidegger, que o vocábulo grego "#! é traduzido por “é necessário”. necessário”. Apesar de não recusar essa essa tradução, Zarader nos aaponta ponta que o filósofo esforça-se para entendê-la a partir de um horizonte mais original. Heidegger nos fala que a palavra "#! pertence ao verbo "#$% (usar, manusear), de onde também deriva o substantivo "&'# (mão). Com isso – eu uso, eu manuseio – 330
Grifo do autor.
108
significa reter algo em mãos, significa precisar de algo. Jaz neste precisar uma adaptação na medida em que quando manuseamos alguma coisa, nossa mão se adapta à coisa manuseada e não o contrário. Em acordo com Zarader, Carol White, em “Heidegger and the greeks”, também compreende que devemos buscar o significado da palavra grega !"! em sua raiz, segundo a qual os vocábulos !#$" (mão) e !"%& (manusear) sugerem não só o envolvimento com algo ou o alcançar das mãos, bem como o deixar nas mãos de alguém ou o deixar algo pertencer a alguém. É, pois, na essência ddesse esse precisar que Heide Heidegger gger vai se deter. Heidegger entende que é a partir do precisar entendido como brauchen que nos orientamos para a sua essência. Essa forma do precisar não é criada pelo homem e, tampouco, significa um simples utilizar ( Benützen). O utilizar já é, segundo o filósofo, uma deterioração do precisar. A tradução proposta por Heidegger, para a palavra alemã der Brauch, se atém ao sentido de um uso que guarda na essência e que deixa aquilo que é no seu mais próprio, que deixa ser. White também se atém ao sentido do termo alemão der Brauch e nos adverte a não tomá-lo em sua forma puramente pragmática, como a do vocábulo “uso”, pois º a t g o ç a c t r e o -
na sua acepção verbal, brauchen também significa precisar, empregar, envolverse, e, segundo a autora, Heidegger toma a palavra brauchen naquilo que considera a raiz de seu significado: o de desfrutar, estar satisfeito com algo e tê-lo em uso. Para a intérprete, o !"! indica um manusear para que nesse uso a coisa seja o que é, “uma reunião qu quee ilumina e abriga o que que é, fazendo que que isto seja o que é.” é.”331 Zarader acrescenta que o !"%& (manusear), aaoo qual He Heidegger idegger se detém, também se acerca de uma entrega que deixa algo em mãos certas, no sentido de liberar a uma pertença. Segundo a autora, na ideia de entrega, liberação e pertença encontramos uma relação muito obscura que se anuncia a partir de “uma fruição cuja propriedade essencial é deixar ser ””..332 A intérprete nos coloca que, para Heidegger, não há de forma alguma um abandono ou indiferença nesse deixar, mas, ao contrário, um cuidado e apego, pois deixa o que é usado em sua essência. Fala-nos, pois, de uma salvaguarda. Uma análise mais aprofundada da palavra alemã der Brauch encontramos e t l’essence de l’homme. O autor nos apresenta com Michel Haar, em Heidegger et 331
Carol White, “Heidegger and the greeks”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion companio n to Heidegger , 2005, p.125. Tradução nossa. 332 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem , 1990, p.128. Itálico da autora.
109
que o termo Brauch Brauch diz respeito não só à necessidade do ser, como também à maneira pela qual a sua relação com o homem responde a essa necessidade, “utilizando”333 o homem. Segundo Haar, para Heidegger, “o homem manter-se (nesta relação) significa a mesma coisa que: o homem, como homem, ser essencialmente, im Brauch, Brauch, mantido.”334 O intérprete entende que o ser nos mantém e, ao mesmo tempo, mantém-se em nós na medida em que somos necessários para ele, ou seja, expressa-se no apelo do ser ( Anspruch Anspruch))335 uma dupla necessidade: primeiro, a necessidade de despertar no homem uma resposta ao ser, e segundo, a própria necessidade do ser dessa resposta. Para Haar, a manutenção do ser em relação ao homem determina uma necessidade que “compele” 336 o homem ao ser, e que essa relação não se completa enquanto o homem não for capaz de pensar o ser, pois é no pensar que o homem cumpre essa realização. O autor compreende que, para Heidegger, é o pensar que realiza ( vollbringt ) a relação do ser com o homem. De acordo com Haar, a palavra Brauch Brauch busca busca encontrar o sentido original da palavra “necessidade”337, expressa tanto no !"! de Parmênides, como no #" º a t g o ç a c t r e o -
!"$%& dos fragmentos de Anaximandro. O intérprete nos explica que o !"!,
normalmente associado à ideia do “é necessário”338, refere-se a uma necessidade extrínseca. Entretanto, na medida em que Heidegger liga-o à sua raiz !$'" (mão) e deriva o !"$%& do verbo !"() (colocar em uso ou manusear propriamente), o “é necessário” de Parmênides deve ser entendido como uma necessidade intrínseca, uma necessidade interna que governa toda a presença. Haar segue esclarecendo que esse “é necessário” relaciona-se com o fato de que na medida em que o ser se inclina sobre os entes presentes, de algum modo ele “lida com” 339 o decurso do tempo, e que o termo alemão Brauch alemão Brauch se se circunscreve à ampla relação da presença
333
Grifo do autor. Martin Heidegger apud Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.129. Tradução nossa. nossa. 335 An.spruch Sm, An.spruch Sm , [...] 2. reivindicação, exigência, reclamação. (cf. [online] Disponível em: http://michaelis.uol http://mi chaelis.uol.com.br/es .com.br/escolar/alemao colar/alemao/definicao/ /definicao/alemao-portugues/ alemao-portugues/anspruch_40594.ht anspruch_40594.html ml Acesso em: 27/9/2014. 336 Grifo do autor. 337 Grifo nosso. 338 Grifo do autor. 334
339 O
tradutor utiliza o termo handle handle entre entre aspas, cujo sentido, além de nos direcionar para o “lidar com”, “cuidar de”, “ocupar-se de”, também infere o “manusear”, trazendo, assim, ao Brauch ao Brauch a a ideia de “uso e manuseio” inferidos por Heidegger. (cf. [online] Disponível Disponível em: http://dictionary.ca http://di ctionary.cambridge.org/d mbridge.org/dictionary/e ictionary/english-portugue nglish-portuguese/handle se/handle 1 Acesso em 27/9/2014.)
110
para com as coisas presentes. Para Heidegger, a inferência trazida pelo termo Brauch seria, então, “o modo como o próprio ser está a ser (west ( west ) enquanto relação com o que está presente – uma relação que diz respeito ao que está presente enquanto tal e que o maneja: !ò "#$%&.”340 Isso significa, segundo Haar, que o “deixar ser”341 mantém o que é na própria essência, ou seja, mantém o que é no seu próprio e chama o homem a pensar o que lhe é o mais próprio, conservando-o como algo presente. Após essas análises entendemos que subjaz neste precisar um sentido de captura muito difícil. O próprio Heidegger nos coloca que o precisar inferido pelo vocábulo grego "#! é dificilmente percebido pelos mortais, pois sua essência nunca se deixa avistar assim facilmente. Haar nos adverte mais adiante em seu texto que, diante da racionalidade tecnológica, o “pensamento calculador” 342 não reserva outro destino que não a morte da essência humana, e que “a não experiência do ser afeta o ser, [...], subjuga-o de tal forma que o ser ‘precisa’ ser contemplado, ser pastoreado pelo homem”.343 Segundo Heidegger, ao destino dado por Parmênides à forma "#! – sendo º a t g
a palavra alocada logo no início da frase – não resta outro sentido senão o de “é preciso...”344. O enunciado “é preciso” designa uma frase impessoal que nos fala
o ç a c t r e
de algo digno de questionamento. Todavia, o filósofo entende que não há no
o
uma obrigatoriedade, como comumente a expressão “é preciso” evidenciaria, mas
-
enunciado de Parmênides nem uma premência, nem uma demanda no sentido de
aproxima-se muito mais do sentido de “dá-se” 345(es gibt ), ), uma vez que conjuga algo da ordem da essência. Daí a necessidade de entender o vocábulo grego "#! no seu sentido mais elevado. Heidegger nos rememora que tratou desse “dá-se” em Ser e Tempo e, Tempo e, também, na carta “Sobre o humanismo”, onde encontramos a frase: “dá-se o ser”.346 O que podemos dizer desse “dá-se”?
340
floresta, Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, Martin Heidegger Heidegger,, Caminhos de floresta, 2012, p.434. 341 Grifo nosso. 342 Grifo do autor.
343 344
p.133. Tradução Tradu ção nossa. Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.133. Grifo do autor. 345 Grifo do autor. 346 Grifo do autor.
111
Para o filósofo, ao dizer “dá-se o ser” evita-se a expressão clássica: “o ser é”347. Nos encontramos, pois, circunscritos àquilo que o pensador nos evidenciou anteriormente: o nomear do “é”. Heidegger entende que não se percebe que quando dizemos que algo é, nos referimos apenas ao ente, falamos das coisas que são. O ser não é uma coisa, não é um ente. Neste sentido, ao dizer “dá-se” o ser, o que se dá é o ser ele mesmo. Esse dá “(...) nomeia aquilo que dá, a essência do ser que garante a verdade. O dar-se ao aberto, com ele mesmo, é o próprio ser.”348 Seguindo na mesma esteira, Heidegger evoca a frase de Parmênides: éstin gàr e! nai nai que
significa: “É, a saber, o ser”349. Esta frase, de acordo com o filósofo,
reúne em si um mistério originário para o pensar que, entretanto, permanece impensado para a Filosofia: a própria verdade do ser. É, pois, nesse sentido, que Heidegger, já em Ser e Tempo, diz: “dá-se” “dá-se” o ser. Para o filósofo, “este dá-se impera como o destino do ser, cuja História se manifesta na linguagem pela palavra dos pensadores essenciais. É por isso que o pensar que pensa, penetrando na verdade do ser, é, enquanto pensar, Historial.”350 Segundo Heidegger, não há o pensamento sistemático que se desdobra em interpretações do ser na história. º a t g
Mas, ao contrário, o que existe é a própria História do ser que é rememorada na medida em que esse, ao se fazer destino, se dá em sua verdade.
o ç a c t r e o -
Sabemos, através de Carneiro Leão, que “por ser Essencialmente destino, o Ser, ao destinar-se no homem, se retém e esconde como destino”351, ou seja, é parte do destino do ser essa retenção. Segundo o autor, Heidegger nomeia como !!"#$, à dialética do dar-se e retrair-se, retrair- se, e lança mão da forma adjetiva “epocal”352,
para tratar da relação dialética em que o ser cumpre o seu destino. Carneiro Leão compreende que é na linguagem, onde mora o homem, que o ser se destina sendo ser, e é na palavra do poeta e do pensador que vamos encontrar a articulação do destino “epocal” do ser. Em acordo com o pensar de Carneiro Leão, Zarader também entende que se o ser encontra-se oculto para o pensar, é preciso que
347
Grifo do autor. Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e Escritos Filosóficos , (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.358. 349 Ibidem, p.358. 350 Ibidem, p.358. 351 Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.15. Maiúsculas do autor. 352 Grifo do autor. 348
112
esteja de alguma forma conservado na linguagem. 353 Por outras palavras: mesmo sendo destino do ser a retração, e ainda que esquecido pelo pensamento, precisamos encontrar vestígios na língua, pois é na linguagem que o destino do ser se cumpre. Trata-se, pois, de auscultar de que forma o ser veio à linguagem na aurora do pensamento. Voltemos à sentença, a fim de aí encontramos mais elementos para uma compreensão. 3.3.2.2.
O
!"#$%&
e o
!& &'$ ! &
O que nos falam o !"#$%& !"#$%& e o &'$! & &?? A partir do dicionário designam “dizer” e “pensar”354. Todavia, de acordo com Heidegger, o uso habitual nos fala de um lugar do dizer e do pensar que, mesmo lexicalmente corretos, não trazem à luz aquilo que !"#$%& !"#$%& e e &'$! & & significam significam em si mesmos. Zarader compreende que Heidegger não se satisfaz em apenas falar do pensamento, mas pretende nos !
mostrar que o fragmento () () !"#$%& !"#$%& ($ ($ &'$ & & ($ ($ nos orienta para a essência do pensar e nos revela o seu ser original. Segundo Inwood, não estamos aqui circunscritos ao escopo de meras palavras, mas de palavras essenciais, as quais º a t
exprimem ações que nos dão conta daqueles instantes em que uma centelha de luz
g
ilumina o mundo. De acordo com Heidegger, desde Platão e Aristóteles, esses
o
verbos se apresentam como caminhos essenciais do pensar. 355 Sabemos, contudo,
ç a c t r e o -
que o filósofo busca uma compreensão para os termos que antecede os significados a eles atribuídos pela tradição metafísica. Para Heidegger, há no !"#$%& e !"#$%& e no &'$! & & uma uma relação de pertença mútua que denota algo de essencial. O filósofo compreende que esses vocábulos não estão no enunciado de Parmênides de forma impensada ou descuidada. De acordo com Zarader, para termos alguma compreensão da articulação entre o !"#$%& !"#$%& e o &'$! & &,, e de tudo aquilo que daí resulta para o caminho do pensar, devemos nos direcionar a essas palavras e buscar ouvi-las naquilo que originariamente nomeiam. Analisemos, pois, com Heidegger, o enunciado de Parmênides: Necessário: o dizer e assim assi m também o pensar, o ente é. Nele, a ordem dos verbos não soa de forma estranha aos ouvidos? Como pode-se falar algo antes de pensá 353
Cf. Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavra palavrass da origem origem,, 1990, p.126. Itálico da autora.
354 Grifos 355
nossos. Vimos anteriormente como a lógica foi compreendida como a doutrina do !)#'* !)#'* e, e, a partir disso, como o !)#'* !)#'* se se relacionou à doutrina do pensar determinando, assim, todo o destino do
pensamento pensamen to ocidental.
113
lo? Por certo não é do falar no sentido do uso do aparelho linguístico que Parmênides se refere aqui. Em que sentido, então, podemos entender o !"#$%& !"#$%&?? Segundo o filósofo, !"#$%& !"#$%& significa incontestavelmente: dizer, relatar, narrar. Heidegger também nos aponta que o verbo !"#$%& !"#$%& é é o mesmo que em latim legere e em alemão legen legen.. Na construção de seu significado, a partir dos elementos que compõem o termo, o filósofo encontra em seu tronco linguístico as palavras: pôr, propor, expor e dispor reflexivamente. Segundo Heidegger, é certamente nesse sentido que os gregos pensavam o !"#$%& !"#$%&.. Na esteira desse caminho, faz-se necessário refletir que há aqui uma ambiguidade, pois o !"#$%& !"#$%&,, mesmo significando “dizer”356, tem no pensamento grego o sentido de “pôr”.357 Uma forma, sem dúvida, estranha de representação da língua que ressalta a plurivocidade da palavra grega. Mas, como podemos podemos chegar a essa compreensão? Segundo Zarader, tanto o !'#() !'#() quanto quanto o !"#$%& !"#$%& se se circunscrevem a uma polissemia que dificulta em muito a compreensão de seus significados. Todavia, para a intérprete, o sentido próprio dos termos deve ser interrogado a partir do significado fundamental da palavra !'#() !'#().. O próprio Heidegger nos lembra que o º a t
substantivo !'#() !'#() liga-se liga-se ao verbo !"#$%& !"#$%& e e que em sua raiz latina (legere (legere), ), e no
g
próprio alemão (lesen lesen), ), encontramos a ideia de colher, apanhar. O sentido
o
atribuído a ler é apenas uma variação do ajuntar, embora, segundo o filósofo,
ç a c t r e o -
tenha tomado o primeiro plano. 358 De acordo com Heidegger, o vocábulo alemão lesen significa lesen significa juntar coisas e colocá-las lado a lado como num conjunto. 359 Assim, o primeiro sentido de !'#() !'#() é é colheita. A partir dessa compreensão, Zarader nos indaga: onde é que que a colheita busca a sua essência? Para a autora, en entende-se tende-se por colheita “o levantar do chão (aufnehmen ( aufnehmen), ), reunir ( zusammenbringen) zusammenbringen) e conservar (aufbewahren aufbewahren)” )”360 – atos que perpassam e permeiam uma colheita. Compreendese, pois, na essência da colheita, o pôr ao abrigo, o preservar e o conservar. Segundo a intérprete, Heidegger nos oferece o termo recolha ( sammeln) sammeln) como aquele que reúne, em seu escopo semântico, a compreensão dos três vocábulos. Seria, então, recolha ( sammeln sammeln)) o termo heideggeriano para a essência da colheita
356
Grifo nosso. Grifo nosso.
357
358 Cf.
Martin Heidegger, “Logos”, in: Ensaios in: Ensaios e conferências co nferências,, Petrópolis, Rio de Janeiro:Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012, p.185. 359 Cf. Martin M artin Heidegger, Heidegger, Introduçã Introdução o à metafísica, metafísica , 1999, p.149. 360
Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.217.
114
(lesen). Mas, e quanto à essência da recolha? O que é a recolha em sim mesma? Zarader nos aponta, então, um outro termo derivado do primeiro: Versammlung .361 É essa a palavra que, para Heidegger, indica a multiplicidade de sentidos que caracteriza a recolha por excelência– algo que “só é o que é quando se reúne, segundo todas as suas dimensões, naquilo que essencialmente a predetermina, quer dizer, no pôr ao abrigo”. 362 Segundo Zarader, foi a partir do !"#$%&, assim concebido, que chegamos ao legen alemão, traduzido por estender, pôr.363 Ainda assim, perguntamos: o que significa esse !"#$%& como pôr? O que esse pôr diz em si mesmo, em sua essência? Heidegger entende que os verbos depor ou propor denotam o resultado de algo que se assenta diante de nós. Nesse sentido, o mar, as árvores e as montanhas se assentam de tal forma, que entende-se esse assentar como algo que independe da ação do homem. No grego, o assentar corresponde à palavra '$!()*% e não designa oposição ao que está de pé. Assim, a árvore tombada e a árvore em pé estão assentadas da mesma forma que o mar. Zarader acrescenta que deixar qualquer coisa assentar é deixá-la aparecer.364 Para Heidegger, o fundamental no º a t g o ç a c t r e o -
assentar é o fato de que o que se assenta vem à cena por si mesmo. Por outras palavras: no assentar de algo, aquilo que se “põe”365 já encontra-se antecipadamente assentado como marca de uma pertença ao seu próprio modo de vir a ser. O filósofo se refere àquilo que singular e primeiramente se assenta, antes mesmo de uma apreensão. Trata-se, pois, da compreensão de que aquilo que em sua singularidade se assenta diante de nós é, antes de mais nada, algo que previamente já encontra-se assentado. Assim, o mar, as árvores e as montanhas “preexistem e manifestam-se a partir do seu assentar-se diante de nós”. 366 Mesmo que de forma impronunciada, isto é, antes mesmo de afirmarmos que algo é, esse algo já é, já preexiste. +,": -. !"#$%& fica então – é preciso: o pôr, o deixar assentar-se diante de nós. O filósofo afirma que, para os gregos, é a partir desse pôr que a essência do dizer se determina, e, nessa mesma medida, que o 361
Michel Haar, em sua aproximação do logos ao mythos, também se refere ao vocábulo alemão Versammlung , como aquilo que reúne em si, a reunião original, a essência da reunião. 362 palavra s da origem , 1990, p.218. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras 363 Para o jogo da derivação – !"#$%& – legen – lesen – cf. Martin Heidegger,“Logos”, in: Ensaios e Conferências, 2012, p.185ss. 364 Cf. Marlène Zarader, op. cit., p.134. Itálico da autora. 365 Grifo nosso. 366
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.173.
significado da palavra
115
!"#$%, forma substantivada de !'(), se circunda. Zarader
nos coloca que o !"#$% não se acerca, em seu sentido originário, de algo da ordem do “falar”367, mas fundamentalmente daquilo “que recolhendo o presente, o deixa estendido-junto-diante, e assim o preserva abrigando-o na presença” .368 Heidegger nos fala que é o próprio Parmênides que claramente nos concede o significado do !"#$%. Segundo o filósofo, no fragmento VII Parmênides nos alerta para o caminho que o pensar reflexivo deve trilhar, nos fala do outro caminho habitualmente trilhado pelos mortais, o qual jamais conduz à coisa-a-pensar, e, por fim, nos alerta para que se tenha atenção a algo, a uma requisição. Diz Parmênides: “E não te coaja o hábito, muito corrente, nesse caminho, (a saber) / a deixar passear o olho cego e o ouvido ruidoso / e a língua, muito mais ponha-se a diferir reflexivamente [...]”.369 Heidegger nos chama a atenção para a oposição entre o
!"#$% e a língua, entre a postura reflexiva e a
dispersão, entre o discernimento e o tagarelar. Pensada, então, a partir de Parmênides, a essência do !'() e do !"#$% se circunda dessa postura reflexiva que deixa aparecer, deixa assentar-diante-de. 370 Diz Heidegger: “para os gregos o º a t
dizer é um pôr. (E) a língua consubstancia-se no dizer” .371 Isso significa que no
g
pôr – nesse algo que se assenta-diante-de – entende-se decisivamente tudo o que
o
é. Delineiam-se, assim, os primeiros traços daquilo que seria a essência grega da
ç a c t r e
linguagem: dizer é deixar algo aparecer como aquilo que é, é o deixar ser.
o -
Visamos já o
!'() em relação ao pôr. E quanto ao )$'! ), o que se passa
no interior desse vocábulo grego? Heidegger entende que o mesmo que ocorre com o
!'() em relação ao dizer, ocorre com o )$'! ) quando o traduzimos por
pensar. Para o filósofo, através de uma atitude reflexiva e livre do usual, quando nos envolvemos com o )$'! ) percebemos que pensar tampouco se aproxima da essência dessa palavra. A tradução de )$'! ) por perceber é muito mais cuidadosa do que pensar. Mas, como podemos entender esse perceber? Heidegger compreende o perceber como um recolher, uma receptividade que, no entanto, é
367
Grifo da autora. Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.220. p.220. Hífen da autora. 369 “µ*+& , " -$% -$% .$!/.'(0$) "+# ) 123$ 34)+' 5(6,-7 / )7µ% ) &,1$.$) 'µµ2 12( )84',,2) $1$94) / 12(: #!*,,2), 10! )2( ++ !"#7$( [...].”(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.167.) 370 Hífen do autor. 368
371
Martin Heidegger, op. cit., p.173.
116
ativa. No !"#! ! !,, o que é percebido nos interessa de tal forma que o tomamos e fazemos algo com ele. Trata-se de um perceber que tem como traço o pretender (des Vor-nehmens). Vor-nehmens). Segundo o filósofo, a forma substantivada de !"#! ! ! – !$"% !$"% , !""% – nos fala de buscar sentido para algo e fazer isso de coração; não fala, de forma alguma, daquilo que mais tarde ficou entendido como razão. Heidegger entende que daí resulta que o !"#! ! ! pode pode significar também o farejar, cujo escopo semântico associa-se ao pressentir ( Ahnen Ahnen). ). Todavia, numa dimensão puramente lógica, esse pressentir perdeu-se de seu sentido original. Para o filósofo, o vocábulo pressentir em seu sentido primevo se acerca da ideia de que algo vem até nós, nos sobrevém, e, desse modo, se oferece à atenção para que aí a retenhamos. Assim, o !"#! ! ! possui o traço do reter na atenção, na memória, no coração, e se aproxima daquilo que anteriormente Heidegger entendeu por Gedanc:: memória, enlevamento. Heidegger traduz, então, o !"#! ! Gedanc ! por “prestar372
atenção-a” . Zarader nos coloca que o !"#! ! ! comporta uma dimensão ativa de captura. Todavia, nessa apreensão não há uma dominação, o !"#! ! ! não não se apodera daquilo que é apreendido. Nessa captura ele apenas guarda em atenção, e, por º a t
isso, é uma salvaguarda.373 Para Heidegger, “a atenção é a guarda que toma o
g
assentar-se diante de nós em sua verdade, que, todavia, carece em si mesma da
o
salvaguarda que no &'(#)! &'(#)! é é consumada como reunião”.374
ç a c t r e
Temos, assim, parte do fragmento compreendido. A sentença *+# ,$ ,$
o
&'(#)! ,# &'(#)! ,# !"#! ! ! ,# ,#... ... fica assim traduzida por Heidegger: “é preciso o deixar
-
assentar-se diante de nós, bem como o prestar atenção a...” 375. Para o filósofo, esta tradução esclarece quatro pontos: i.
primeiramente, o &'(#)! &'(#)! precede o !"#! ! ! para que aquilo que se assenta diante de nós venha a tomar nossa atenção. A isso, Zarader acrescenta que “só pode ser tomado à sua guarda pelo pensamento o que já foi deixado desdobrado-diante pelo dizer”376;
ii.
em segundo lugar, não há um sequenciamento de palavras; mas, um desdobrar-se tanto do &'(#)! &'(#)! em direção ao !"#! ! !,, como em sentido
372
Grifo do autor. Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavra palavrass da origem origem,, 1990, p.135. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], p.174. 375 Grifo do autor.
373 Cf. 374
376
Marlène Zarader, op. cit., p.136.
117
inverso, pois prestar atenção àquilo que se assenta diante de nós, já denota o movimento de um em direção ao outro. Heidegger percebe que a minuciosa utilização de !" – !" !" articulando articulando os verbos #$%"&' #$%"&' e '("! ' ' dão dão um sentido especial à sentença. Não há aqui uma mera conjunção a unir os termos, mas uma interação, um entrelaçamento. Segundo Zarader, com o !" – !" !" articulando os verbos #$%"&' #$%"&' e '("! ' ',, não há uma sucessão, mas uma mútua reciprocidade, uma co-pertença. Aquilo que Heidegger entende por uma autêntica relação de articulação em que as partes devotam-se mutuamente uma à outra. iii.
em terceiro lugar, é através dessa tradução que a sentença torna-se audível, ela nos encaminha para o caráter primordial daquilo que se designou como pensar. Heidegger nos aponta para o fato de que é na articulação entre o #$%"&' e o '("! ' #$%"&' ' que que podemos entender o que quer dizer pensar. Zarader acrescenta que não devemos compreender o #$%"&' #$%"&' e o '("! ' ',, como duas determinações do pensamento, mas como a sua unidade, o traço de união que determina a essência do pensar. Para Heidegger, a partir da articulação de ambos os verbos compreende-se o que mais tarde chamou-se de
º a t
"#)*"+"&' #)*"+"&':: “desvelar e manter desvelado o que se oculta”.377 Esta é,
g
segundo o filósofo, a essência encoberta do #$%"&' #$%"&' e e do '("! ' ':: estabelecer
o ç a c t r e
uma correspondência com aquilo que se oculta. Entendemos, a partir de Heidegger, que a articulação de ambos não jaz em si mesma. O #$%"&' #$%"&' e e o
o
'("! ' ' se direcionam nessa correspondência àquilo que lhes concerne e
-
define. O filósofo nos coloca que é exatamente por conta disso que nem o #$%"&' e nem o '("! ' #$%"&' ' determinam a essência do pensar. Zarader compreende que há aqui um direcionamento ao ser. Para a intérprete, não podemos entender que “o “ o pensamento é determinado pelo dizer se não se compreendeu primeiro o dizer como instituição no ser, instituição, que por sua vez, reclama ser salvaguarda no pensamento”.378 Heidegger entende que esse caminho, no entanto, foi encoberto quando os romanos entenderam o acoplamento de #$%"&' #$%"&' e '("! ' ' como ratio ratio.. ,$%"&' ,$%"&' fica entendido como “expor algo como algo” e '("! ' ' como como “tomar algo como
377
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], p.177.
378
Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.137.
118
algo”379, perde-se totalmente o seu sentido original. Aqui a ratio está relacionada à razão e, consequentemente, à lógica. A partir daí, o entendimento essencial do pensar dos gregos fica obscurecido e interditado, pois a partir da filosofia medieval e, depois, durante todo o período da filosofia moderna, os vocábulos !"#$%& e &'$! & foram compreendidos a partir do conceito de ratio. O pensar será, pois, compreendido como o acoplamento do !"#$%& !"#$%& em sua capacidade de enunciação e do &'$! & no sentido da razão. Com isso, Heidegger percebe que a pergunta “Que chamamos pensar?” não chegou, sequer, a ser formulada; iv.
por último, no sentido de mostrar o primeiro traço essencial do pensar, Heidegger chama atenção para a meticulosa articulação a partir da tradução de !"#$%& e &'$! &. O fato do &'$! &, “prestar atenção a”380, ser determinado pelo !"#$%& nos diz duas coisas: primeiro, que o &'$! & tem sua origem no !"#$%& e desdobra-se a partir deste, pois num dizer reflexivo, o “prestar atenção a” nos fala de uma acolhida daquilo que se assenta diante de nós; e, segundo, que a atenção prestada une-se àquilo que se assenta
º a t
diante de nós, ou seja, o &'$! & torna-se contido e mantido no !"#$%&.
g
Zarader entende que o lugar do !"#$%& no fragmento nos concede a
o ç a c t r e
primazia de sua essência, um caráter de prioridade que indica uma necessidade, pois se o &'$! & necessita que o !"#$%& o anteceda, isto
o
significa que o dizer não é apenas uma predicação, nem tampouco um
-
deixar aparecer, “mas é também e mais fundamentalmente ainda reuni-lo no que é, instituí-lo na presença – condição sine qua non da captação ou da apreensão”.381 A intérprete compreende que a nomeação do &'$! & em segundo lugar significa, por sua vez, que esse não se desdobra como uma mera representação ou como um ato da consciência, mas, é a própria “manutenção no ser que é captada, o seu abrigo e a sua salvaguarda.”382 É, pois, nessa articulação que se move em essência o traço fundamental do pensar. Não há, aqui, nenhuma conceituação, nenhuma apreensão, nenhum limite
379 Grifos 380
do autor. Grifo do autor. 381 palavra s da origem , 1990, p.136. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras
382
Ibidem, p.136.
119
demarcatório. Segundo o filósofo, o pensamento grego, em sua origem, não era conceitual. O pensar permanecia no caminho ou a caminho, de acordo com aquilo que se tomava como digno de questão do pensamento. Zarader nos chama a atenção para o fato de que o pensar, assim compreendido, surge originalmente como uma experiência muito distinta daquilo que veio a ser mais tarde e tem como principal diferença o fato de não se expressar através de conceitos ou sistemas, de não ser uma dominação. Essa é a razão pela qual, para a autora, qualquer tentativa de aproximação aproximação do pensamento grego qu quee procure uma medida interpretativa no conceito e na representação está fadada à inadequação. A intérprete compreende que aquilo que Heidegger deseja mostrar é que, na sua abertura original, o pensar “é muito mais uma memória e uma escuta [...]”.383 Mas, onde é que o pensamento vai buscar sua determinação? Segundo Zarader, não podemos encontrar esta determinação senão naquilo a que o !"#$%& e µµ$&(%. Todavia, a autora nos coloca que não podemos o &'$! & nomeiam: o "# & $ µµ elucidar essa questão sem adentrarmos na relação entre o &'$! & e o ser. Questão que será tratada por Heidegger no fragmento III 384 do poema, um pouco mais º a t g
adiante. Sigamos, pois, os passos do filósofo que se volta agora para a última parte da sentença sentença de Parmênide Parmênides. s.
o ç a c t r e
3.3.2.3. O !" ! ! # µµ "!#$ "!#$
Acabamos de ver que o !"#$%& e o &'$! & tomam parte reciprocamente
o -
numa articulação, mas que ainda não caracterizam a essência do pensar. Essa articulação, segundo o filósofo, nos remete Àquilo 385 que se segue na sentença: o vocábulo "# &, traduzido de forma habitual por “ente”386. Segundo Heidegger, esse vocábulo nos encaminha para um variado número de informações que em nada 383
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem , 1990, p.138. hei ! t Denken? publicado Fazemos registro da diferença tipográfi tipográfica ca ocorrida no escrito Was hei ! pela editora Max M ax Niemeyer, Niemeye r, na edição do d o ano de 1997, 19 97, que grafou gra fou o fragmento fragme nto III do poema po ema de Parmênides como V. O mesmo não ocorre na edição do ano de 2002 da editora Vittorio Klostermann, à qual tivemos acesso. Uma possível explicação para essa divergência pode ser encontrada no próprio escrito de Diels e Kranz sobre os fragmentos pré-socráticos. Na edição revisada de 1960, cujo exemplar tivemos acesso, encontramos ao lado do fragmento III uma marcação que diz: früher 5 (anterior 5). A contar pela data da revisão, supomos que Heidegger tenha utilizado uma edição do livro ainda não revisada e, por isso, tenha lançado mão da primeira Fragme nte der numeração feita pelos autores. (cf. Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente Vorsokratiker , p.231.) 385 Maiúscula do autor. 384
386
Grifo do autor.
120
facilitam a sua compreensão. Por outro lado, possuímos uma concepção de “ente” que já nos aponta para tudo o que existe, uma vez que tudo que se assenta diante de nós é.387 Sabemos, contudo, que a sentença de Parmênides não termina aí, segue ainda uma última palavra: o vocábulo grego ! µ µµ!"#$ µ!"#$,, também entendido em sua forma antiga como ! %µ!"#$ !"#$,, que, por sua vez, encontra em !" "#$ "#$ a a forma para “ser”388. Segundo Heidegger, ambos os vocábulos “ente” e “ser” traduzem-se para nós completamente esvaziados de sentido. Aí nada encontramos, apesar de os termos se situarem no patamar mais elevado da filosofia e pretendermos já tê-los compreendido. Zarader acrescenta que no sentido de capturarmos aquilo que “era “ era o ser na sua primeira destinação” 389 devemos buscar entender a topologia desse dizer, pois, se é fato que entendemos !" "#$ "#$ por ser, não temos nenhuma pista daquilo que os primeiros pensadores pensavam ou experimentavam no dizer dessa palavra. A autora entende que !" "#$ "#$ é, por excelência, uma palavra enigma, a 390
própria questão. Vejamos, de acordo com Heidegger, o que os vocábulos #$ " " µµ!"#$ µ!"#$ designaram designaram no pensamento da aurora grega. ! µ Heidegger coloca que, na sentença de Parmênides, essas palavras nos º a t g o ç a c t r e
indicam uma relação recíproca entre ambos os termos, uma relação de pertencimento mútuo, parecendo, até mesmo, designarem a mesma coisa. O filósofo nos diz que o próprio Parmênides em outras passagens usa vocábulo #% " " no lugar de ! µ µµ!"#$ µ!"#$.. Se assim procedêssemos, a sentença ficaria: &'& () () *+,!$" *+,!$" (! (!
o
"-!" " " ('#$ " " #)". Estranha aos ouvidos, certamente, mas não para Heidegger que
-
vislumbra sentidos diferentes para os vocábulos. Segundo ele, há nessa palavra, assim como em todas as outras, uma polissemia. O termo “ente” pertence a um tipo de vocábulo que gramaticalmente compartilha duas significações: uma verbal e uma nominal. Assim como o vocábulo “florescente” designa aquilo que floresce e, ao mesmo tempo, o florescer, o vocábulo “ente” designa, de forma análoga, aquilo que é e, ao mesmo tempo, o ser. O filósofo nos coloca que gramaticalmente o particípio presente é ambivalente, e que seu dizer mais próprio se encontra 387
Itálico nosso. Grifo do autor. 389 Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.42. Itálico da autora. 390 Cf. Ibidem, p.42. Em nota, no sentido de corroborar este pensamento, a autora nos concede uma citação de Heidegger que diz o seguinte: “Que dizemos quando em lugar de !" "#$ "#$,, dizemos “ser”, e em lugar de “ser”, !" "#$ "#$ e e esse esse?? Não dizemos nada. Quer seja grega, latina ou alemã, a palavra conserva-se igualmente obscura.” (cf. A partir de Einleitung de Einleitung zu “Was ist Metaphysik?”, in: 388
Wegmarken,, Klostermann, Frankfurt/Main, 1967, p.205.) Wegmarken
121
zwiefältig ))..391 Heidegger entende, com relacionado àquilo que é si mesmo duplo ( zwiefältig
isso, que o particípio !!" incorpora em si um outro, mesmo que de forma oculta. Há, aqui, o sentido de uma duplicidade que fala de um copertencimento. Um lugar em que o ente se consubstancia no ser, e este, como o ser do ente. Zarader corrobora a ideia de que essa “dualidade de significação ( Zweideutigkeit Zweideutigkeit ) dos particípios repousa com efeito na duplicidade ( Zweifältigkeit Zweifältigkeit ) do que eles nomeiam”.392 A intérprete nos coloca que essa duplicidade não seria possível “se não tivesse a sua origem no que é ‘eminentemente’ duplo, na duplicidade única e incomparável – porque absolutamente primeira – que Heidegger chama a Dobra Zweifalt ) do ser e do ente”.393 Zarader segue explicando que o ( Zweifalt
!!" é
a Dobra
primordial, aquilo que torna possível toda a dupla significação das palavras, a única capaz de explicar seu caráter polissêmico. Nos deparamos aqui com aquilo a que nos referimos mais atrás: o dizer das palavras. Segundo Heidegger, “não somos nós que jogamos com palavras, mas a essência da língua que joga conosco”394, ou seja, é a língua que joga o tempo todo com o dizer do homem, tornando, com isso, um verdadeiro empreendimento uma aproximação ao sentido º a t
mais próprio das palavras. É, pois, segundo Zarader, na escuta atenta ao jogo da
g
língua que é possível ouvirmos que na duplicidade do
o
“necessidade Historial”395 e não apenas uma contingência gramatical. Segundo a
ç a c t r e
autora, isso significa que foi dessa forma, através de uma duplicidade, que o ente
o -
!!"
revela-se uma
se desvelou àqueles que buscavam nomeá-lo em sua totalidade. Não que tivesse havido um pensamento sobre essa destinação, mas, certamente, um habitar que os aproximava da essência da linguagem, cujo manifestar se dava a partir da Dobra do ser. Zarader entende que essa questão se situa numa obscura região prémetafísica, e que na origem isso não era um problema, nem mesmo uma interrogação, deu-se como um acontecimento, um acontecimento que teve lugar na aurora da nossa história. Assim, ao dizerem o ser, já o faziam a partir da dobra. Para a intérprete, a palavra original é privilégio dos pensadores matinais, mesmo que neles ainda não encontremos esse questionamento.
391
Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.187. 392 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem , 1990, p.177. 393 Ibidem, p.177. Maiúscula da autora. 394 Martin Heidegger, op. cit., p.99.
395
Grifo nosso. Maiúscula nossa.
122
Este sentido de copertencimento, Heidegger vai encontrar no pensamento de Platão. É no Sofista que o participar do que é presente no ente, o !!"#$ ou a %"&',
se mostra e, neste sentido, se consubstancia, é. De acordo com o filósofo,
participium
é o nome latino para o µ !(#)* grego, e o participar, o fazer parte de
algo, diz-se µ!(&)!%+: palavra fundamental no pensamento platônico. Platão nomeia µ&,!-%. a essa relação de participação do ente com a sua %"&'. Essa palavra fala precisamente daquilo que o
"# + nomeia,
a participação do ente no
ser. Segundo o filósofo, nessa participação inferida por Platão “está já pressuposto que haja a dobra de ser e ente.”396 Ao falar que o ente e o ser “são”397 em diferentes lugares, Platão nos concede um sinal decisivo para a compreensão da questão da dobra entre ser e ente. Heidegger nos coloca que Platão “questiona o lugar inteiramente outro do ser em comparação com o do ente”398, e, nessa diferenciação, já está implícita a dobra, apesar da mesma não ter sido objeto da atenção de Platão. Zarader nos coloca que, mesmo impensada, a Dobra era dita por Parmênides e fazia parte de uma experiência viva na qual a totalidade do seu pensamento se desenvolvia. Todavia, segundo a autora, com Platão demarca-se o º a t
seu desaparecimento. Ainda assim, isto não significa que a Dobra deixe de existir
g
e sustentar o pensamento, mas se o faz é apenas como um sinal. Não o faz mais
o
como com os pensadores originários, na forma de uma experiência desdobrada em
ç a c t r e
palavra dita.399 Heidegger entende que a questão levantada por Aristóteles: (/ ($ % +, “que
o -
é o ente em seu ser?”400, repercute a permanente questão do pensar que se desdobra como traço fundamental da filosofia. Essa questão, não há dúvida, segue atravessando todo o pensar ocidental-europeu. Segundo o filósofo, aquilo que se assenta-diante-de nós e a partir de si mesmo aparece é nomeado pelos gregos como 012%$, e aquilo que vai além, transcende, tr anscende, é chamado de µ!(3. Nesse sentido, um pensar que se move do ente em direção ao ser, no sentido de que nessa transcendência transcendênc ia o ente seja representado naquilo que é, lança-se com uma chancela metafísica, sendo a µ&,!-%. a forma como o ente, em participação ao ser, é por ele determinado. Para Heidegger, “esse âmbito da metafísica funda-se naquilo que é 396
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.189. Itálico do autor. do autor. Martin Heidegger, op. cit., p.193. 399 palavrass da origem , 1990, pp.180-181. Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavra 397 Grifo 398
400
Grifo do autor.
123
nomeado através da µ!"#$%, e com uma só palavra através do singular particípio !" &: na dobra de ente e ser”. 401 Todavia, segundo o filósofo, é necessário que essa
dobra de ente e ser se assente diante de nós, se manifeste, para que a partir da atenção ao assentar-se possamos tratar da participação de um no outro, do ente no ser. Essa dobra, no entanto, só pode ser entendida em sua essência se prestamos atenção ao ser do ente, ao # µµ µµ!&'( do !" & – àquilo que o ente é no seu ser. De acordo com Heidegger, para que esse pensar possa tornar-se metafísico tem que partir de um chamado, uma requisição como a de Parmênides - $)$ "* +,-!(& "! !% & "&!' & # µµ µµ!&'(.
Heidegger entende que é na relação entre o !" & e o # µµ µµ!&'( que somos chamados a pensar. Todavia, essa relação é na visão do filósofo a mais difícil, uma vez que as palavras “ente” e “ser” caem, via de regra, na indeterminação. Como podemos pensar, então, os vocábulos !" & e # µµ µµ!&'(? Para Heidegger, somente quando o ente se assenta diante de nós como ente e nele prestamos atenção ao seu “sendo”402 é que o questionamos de forma mais clara e precisa, e é na forma do particípio da palavra !" & dada em sua ambivalência que chegamos ao º a t g o ç a c t r e
“ente sendo”.403 Com isso, o filósofo entende que os simples vocábulos “ente” e “ser” não são formas garantidas de tradução para !" & e # µµ µµ!&'(, uma vez que não expressam a singularidade da sentença de Parmênides. É somente a partir da conformação desses dois vocábulos que a pergunta doadora de medida “Que é
o
isso que nos chama a pensar?”404 pode ser colocada. Na visão de Heidegger é o
-
“!' & # µµ µµ!&'( que solicita em sua essência aquilo que perfaz o traço fundamental do pensar, o +,-!(& e !% &”405, de forma a colocar em curso aquilo que nos chama ao pensar. Mas, voltemos à questão: como traduzir, então, !" & e # µµ µµ!&'( ? Segundo Heidegger, é preciso uma transposição dessas palavras para aquilo que seu dizer diz; somente num salto é que podemos avistá-las em sua forma grega. Todavia, aquilo que é avistado jamais deixa-se comprovar, uma vez que não vem à palavra. palavra. Para o filósofo, o máximo qque ue conseguimos aqui aqui é divisálo e nomeá-lo naquilo que é avistado avistado – um nomear que fica entendido, entretanto, entretanto, 401
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.190. do autor. Grifo nosso. 404 Grifo do autor. 402 Grifo 403
405
Martin Heidegger, op. cit., p.196.
124
como forma arbitrária de uma mera afirmação. Nesse salto, !" ! nomeia a coisa presente (das Anwesende) Anwesende) e # µ µµ µ"!#$ , a antiga forma de "$ !#$ , nomeia o presentificar-se (anwesen anwesen). ). Heidegger entende que ao menos nesse nomear o !" ! e o # µ µµ µ"!#$ não se dissolvem nas formas indeterminadas notadamente pertencentes a “ente” e “ser”, pois tanto aquilo que se faz presente quanto o presentificar-se designam uma duração, algo que permanece diante de nós. Todavia, o filósofo nos coloca que esse sentido não vem à palavra em sua forma clara, muito menos se decide sobre Aquilo 406 em que repousa esse “presentificarse do que se faz presente” 407, pois nem tudo se presentifica do mesmo modo. Heidegger nos mostra que a palavra “presentificar-se” 408 em alemão diz-se anwesen e essência, wesen wesen.. Essência, entendida em sua forma verbal409, tem o sentido de estabelecer-se, morar, permanecer. O verbo wesen nos fala, pois, de uma permanência duradoura. No entanto, Heidegger nos explica que para os gregos a palavra essência não tem apenas o mero sentido de duração. Ela é entendida como um “continuar-a-ser”410 (währen währen)) que envolve em seu fazer-se presente uma presença e uma ausência, pois o vocábulo grego "$ !#$ tanto está º a t
relacionado ao vocábulo %#&"$ !#$ quanto quanto ao %%"$ !#$ , sendo o prefixo %#&' uma
g
aproximação e %%( um distanciamento. Segundo o filósofo, a essência daquilo
o
que se presentifica surge a partir de uma ausência, surge de uma desocultação,
ç a c t r e o -
mas o que surge da desocultação – o presentificar-se do que se faz presente – não chega ao âmbito do desocultado. Isso quer dizer que ali, onde tudo surge, algo permanece oculto em contraste com o que foi desocultado. Heidegger nos coloca que “a essência, em seu fazer-se presente, envolve a luta da presença com a ausência”411 e que essa luta pertence ao modo de vir-a-ser do presentificar. Encontramos em Jean Beaufret, em Dialogue em Dialogue avec Heidegger , algo desse embate 406
Maiúscula do autor. Grifo do autor. 408 Grifo nosso. 409 Anteriormente detivemo-nos brevemente no vocábulo alemão Wesen Wesen.. Todavia, nesta parte de Que chamamos pensar?, pensar?, Heidegger o retoma em sua forma verbal. Para o filósofo, o uso verbal de wesen no wesen no alemão antigo pode ser entendido com o sentido de duração. Heidegger nos conta que o antigo termo alemão tem origem no antigo hindi “vásati”, e quer dizer: ele mora, ele permanece. O verbo alemão fala de uma permanência duradoura. Em nota, Lyra acrescenta acrescenta que: “o substantivo alemão Wesen, Wesen, […], […], aceita a forma verbal wesen wesen (algo (algo como ‘consubstanciar’ ou ‘substancializar’), ‘substancial izar’), de todo implícita na ideia de anwesen anwesen como como ‘presentificar-se’.” Para o tradutor, “anwesen anwesen pode pode conotar, de fato, ‘propriedade efetiva efetivamente mente demarcada’, lugar que se possui […]”. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], p.200.) 410 Grifo do autor. 407
411
Martin Heidegger, op. cit., p.201.
125
entre ausência e presença. O autor nos fala que nada é mais íntimo ao ser, ao menos naquilo que os gregos experimentaram nessa relação, do que aquilo expresso pelos prefixos !"#$ e
!!%.
Segundo Beaufret, essa diferença é tão
essencial que, sem esse contraste, a palavra ser, isoladamente entendida, perderia totalmente o seu sentido fundamental. O intérprete entende que o ser é a essência daquilo de que falam esses prefixos: o jogo incessante da presença e da ausência, cuja oposição se dá apenas superficialmente, pois, mesmo aquilo que está ausente está presente de certa maneira. Mas, a partir de onde encontramos a determinação do presentificar-se do que se faz presente? Heidegger nos coloca que é no fazer 412 do “fazer-se presente”413 que devemos prestar atenção. É, pois, no processo de vir-a-ser da presença que devemos procurar entender a essência. Isto significa, segundo Heidegger, que no movimento do “presentificar-se do que se faz presente” há um demorar-se que se assenta diante de nós a partir de uma desocultação. Este “presentificar-se do que se faz presente” não só requer a desocultação, mas é a partir dela que o presentificar-se surge, ou seja, é na demora da desocultação que º a t g
o presentificar se presentifica. Essa demora não significa uma falta de movimento como acontece na “permanência duradoura”414, mas, ao contrário, ela é chegada,
o ç a c t r e
reunião, proximidade, acontecimento. O acontecimento era experimentado pelos
o
se assenta diante de nós. É, pois, neste caminho que os gregos pensaram o que se
-
faz presente: desocultação, proximidade e distanciamento, repouso e demora,
gregos como automanifestação, um brilho luminoso daquilo que na desocultação
brilho e ausência, reunião. Beaufret acrescenta que, no sentido de pensarmos esse acontecimento, é necessário que nos afastemos das meras oposições que os termos nos trazem e, de tal forma, que “possamos nos abrir a uma dimensão onde até mesmo a ausência torna-se um modo da presença”.415 O autor entende que a dimensão do ser é tal que se desdobra tanto como ausência quanto como presença, e, por isso, a região do ser não pode ser nada menos do que uma presença permeada por uma ausência e uma ausência na qual resplandece uma presença. Segundo Heidegger, com o tempo, “o presentificar-se do que se faz presente” foi 412 Itálico 413
do autor. Grifo nosso. 414 Grifo nosso.
415
Jean Beaufret, Dialogue with Heidegger Heidegger:: Greek Philos Philosophy ophy , 2006, p.43.
126
cada vez mais deslocado desse caminho, tornando-se cada vez menos digno de questão. Entraram em cena outros traços do ser do ente que, como vimos, interditaram o caminho e trouxeram o homem ao trágico destino das maquinações tecnológicas. Vejamos como podemos nos aproximar desta difícil compreensão. Segundo Zarader, na aurora do pensamento grego o ser se abre na dinâmica do jogo da presença. Para a intérprete, essa afirmação não nos orienta para o fato de que o ser tenha sido pensado416 como presença, mas que esse foi experimentado e compreendido de tal forma que isso o levou a ser, ao longo de toda a história do pensamento, entendido pelo viés da presença. A autora entende que o !" ! é uma dessas palavras fundamentais que nomearam a experiência grega do ser iluminada pela presença. Ao traduzir "# !#$ como como “presença” ( Anwesen Anwesen)) em vez de “ser”, Heidegger propõe uma nomeação do ser “tornada clara no seu sentido grego”417, de forma que esse clarear possa iluminar todo o caminho do pensamento. A intérprete compreende que essa nomeação revela a identidade entre ser e presença. Entretanto, segundo a autora, nessa relação algo permanece impensado. Zarader nos indaga se aquilo que permanece impensado foi o ser º a t g o ç a c t r e o -
experimentado como presença ou a presença em sua relação com o tempo? Para a autora, apesar do ser ter sido experimentado como presença, não consideraram sua dimensão temporal. Por isso, na medida em que presença e tempo se relacionam, tanto um quanto outro permanecem impensados. Assim, no sentido de tornar clara a identidade entre ser e presença devemos nos ater ao tempo. Mas, como entender esta questão nodal de forma a clarear a sentença de Parmênides? Vimos, com Heidegger, que o !" ! nomeia o que se faz presente (das (das Anwesende)) e o $ µ Anwesende µµ µ"!#$ , o presentificar-se (anwesen (anwesen). ). Vimos, também, que a presença ( Anwesen Anwesen)) não foi experimentada pelos gregos na aurora do pensamento com o traço da duração, mas como um “continuar-a-ser”, algo que possui em si uma cifra de ausência e presença. Zarader nos lembra que “a presença foi experimentada por eles não como uma permanência, não como uma manifestação horizontal de uma extensão temporal [...], mas como uma irrupção abrupta, como um acontecimento, [...].”418 A autora conta que Heidegger chegou a criar um neologismo para dar conta desta modalidade do Anwesen Anwesen:: Anwesung . Esse 416
Itálico da autora. Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.294. Grifos da autora.
417
418
Ibidem, p.296.
127
vocábulo falaria, então, da irrupção na presença, diferenciando-o do Anwesenheit , o estado-de-presença. Esta seria uma forma, segundo Zarader, de demarcar o inicial daquilo que se seguiu na destinação do do ser. A intérprete nos brinda com as próprias palavras de Heidegger: Mas é Anwesung que é determinante para o conceito grego de ser: tentamos clarificar numa palavra, o que lhe é mais próprio, dizendo Anwesung , em lugar de Anwesenheit . O que aqui é visado não é a pura e simples subsistência (Vorhandenheit ( Vorhandenheit ), ), nem também o que se esgota na simples permanência ( Beständigkeit ( Beständigkeit )),, mas a Anwesung a Anwesung no no sentido de uma pro-veniência no desvelado, de uma instalação no Aberto (im ( im Sinne des Hervorkommens in das Unverborgene, das Sichtstellen in das Offene). Offene ). Pela referência à pura duração a Anwesung a Anwesung não não é alcançada. 419
Todavia, mesmo tendo feito essa diferenciação, Zarader diz que Heidegger utilizou o termo nesse sentido apenas entre os anos de 1939 e 1940 e o perde de vista ao estendê-lo à “presença constante”, própria da tradição metafísica. 420 Ainda assim, Zarader entende que, embasada pela definição acima, o termo nos concede a especificidade do que seja o privilégio do primeiro pensamento grego: “o ser é então experimentado como presença, e a própria presença como º a t
Anwesung , quer dizer, como vinda a presença”.421 Mas, ainda que possamos lançar
g
mão dessa compreensão, como entender aquilo que Heidegger nomeou como “a
o
luta da presença e da ausência”422?
ç a c t r e
A intérprete explica que permanência e constância são próprias do
o
presente e, contrariamente a isso, o que é próprio da presença, sua principal cifra, cifra ,
-
é o seu surgimento a partir da ausência. Quando a presença é entendida como permanência há um aniquilamento em favor do presente que faz perder a sua ligação com a ausência. Zarader acrescenta que a experiência inicial, que se abriu simultaneamente como presença, não pode ser capturada como o que está
419
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavr palavras as da origem origem,, 1990, p.297. A citação é feita a partir do escrito “Vom Wesen und Begriff der !"#$% ”, in: Wegmarken (GA9), !"#$%”, Klostermann, Frankfurt/Main, Frankfurt/Main, 1967, p.342. 420 Em nota, Zarader nos fala que o termo Anwesung termo Anwesung é é utilizado pela primeira vez na conferência Wie wenn am Feiertge, Feiertge, sobre sobre Höelderlin, em 1939, e depois ocupa um lugar central em dois outros textos: Vom Wesesn Wesesn und Begriff der !"#$% e Platons Platons Lehre Lehre von der d er Warheit , ambos de 1940. A autora nos coloca que depois disso o termo é abandonado. Zarader entende que o uso demasiadamente amplo o tornou inoperante (cf. Ibidem). Grifo da autora. 421 Ibidem, p.298.
422
Grifo nosso.
128
simplesmente presente.423 A autora nos coloca que, para Heidegger, no caso do presentificar-se do que se faz presente, nunca devemos nos ater ao presente em seu sentido lato, pois “na verdade, é justamente este ‘presentemente presente’ (das ( das gegenwärtig Anwesend ) e o desvelamento que nele reina, que regem de parte a parte a essência do que se ausenta (des Abwesenden (des Abwesenden), ), quer dizer do presente não ‘presente’”.424 Assim, o simples presente não dá conta de expressar a ocultação que se encontra circunscrito nessa relação. O que Heidegger está tentando dizer, segundo a intérprete, é que para os gregos o presentificar-se só se dá a partir do desvelamento, e é somente na demora com o que se encontra velado que algo se desdobra como presente. Daí o entendimento de que essa demora não é imóvel, pois nela há um movimento que se estabelece na relação entre a presença e a ausência. Segundo Zarader, isso nos fala de uma dinâmica que tanto dá conta do desvelamento como de uma ocultação; uma abrangência que determina o surgimento de algo que emerge a partir de uma ausência. Para a intérprete, o que se faz presente fica, então, entendido por Heidegger como aquilo que se demora por um tempo ( Das Das Anwesende ist das Je-weilige); Je-weilige); uma demora transitória, uma º a t g o
vez que é passagem entre a chegada e a partida para uma nova ocultação. Isto significa que o presente enquanto durar transitório manifesta-se neste “entre” que é o intervalo, o acontecimento que reúne e constitui a sua presença sua presença..425
ç a c t r e o -
Zarader percebe que a compreensão heideggeriana se contrapõe a tudo aquilo que a tradição entendeu como permanência, demora, constância. Na contramão dessa compreensão, Heidegger entende que, por ser indissociável da ausência, a presença nada tem de permanência, e o que caracteriza a aurora grega do pensamento é o fato da presença ter sido considerada como presença e não como coisa presente. Próximo à presença, pensada agora partir da ausência, da plenitude do nada, o ser era ele mesmo aquele que portava as palavras e o pensamento. O pensador nos diz que a filosofia “nasce do pensar, no pensar. Mas o pensar é o pensar do ser. O pensar não é coisa que ‘nasça’. Ele é, na medida em 423
Zarader entende que foi por conta disso que a tentativa de Heidegger em Ser e tempo terminou tempo terminou num impasse. A autora diz que Heidegger buscava, com a analítica do Dasein do Dasein,, chegar ao desvelamento do ser como presença, e, assim, “retroceder até o horizonte da temporalidade”. Mas, “partindo do ser ontologicamente interpretado” interpretado” encontramos apenas o presente, o qual não nos permite uma captura do tempo te mpo autêntic autêntico. o. O presente somente nos no s concede u um m tempo que qu e se relaciona com o ente, exatamente porque dele advém. (cf. Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras da d a origem, origem , 1990, p.300.) 424 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, nota 15, p.116.
425
Itálico da autora. Grifo nosso.
129
que o ser está a ser”. 426 Segundo o filósofo, considerar o !!" !" como como a presença do que se faz presente seria, portanto, uma forma de atentar para isso, pois o seu dizer já fala em nossa língua, antes mesmo que o pensamento lhe dê atenção e o nomeie. O pensamento apenas conduz à palavra falada aquilo que encontra manifesto em seu dizer. De acordo com Zarader, o pensamento é a resposta a um chamado que lhe antecede e que “[...] lhe vem da própria língua na qual se abriga e reserva ‘a riqueza essencial do ser’”. 427 A autora entende que com o advento da metafísica, o nada que abrigava o ser preencheu-se de ente 428 e, com isso, a presença retira-se reti ra-se em favor do presente não permitindo mais o acesso à dimensão temporal do ser. O próprio Heidegger, como vimos, nos coloca que com o tempo, “o presentificar-se do que se faz presente” distanciou-se desse caminho, tornandose inquestionado. Mas, retornemos com Heidegger à questão da essência do pensar de modo a concluirmos a sentença de Parmênides. Para o filósofo, o #$%&'" #$%&'" (& (& ")& ")&" " " (e deve se direcionar ao !# " " $ µ µµ&"*' µ&"*' para que a essência do pensar se revele. Segundo Heidegger, é somente quando o “deixar assentar diante de nós” e o “prestar º a t g o ç a c t r e
atenção-a”429 se conformam ao “presentificar-se do que se faz presente” que a articulação do !# " " $ µ µµ&"*' µ&"*' atende à essência do pensar. O filósofo entende que nesses dois vocábulos gregos está oculto aquilo que nos chama a pensar. Heidegger nos chama a atenção para o fato de que, em alguns momentos, no lugar
o
de #$%&'" #$%&'" (& (& ")&" " " (e Parmênides diz somente ")&" " " – – “prestar-atenção-a” – e no
-
lugar de !!" !" $ µ µµ&"*' µ&"*' – ora usa &" "*' "*',, ora !!" !".. Esse ")&" " " entendido por Parmênides não é, de maneira alguma, o ato de pensar. Há uma relação tão próxima do ")&" " com o &" "*' que o ")&" " participa do próprio &" "*' " com "*' que " participa "*'.. Esclarecese, com isso, que o significado de pensar, evocado por ")&" " ",, só é pensar quando permanece iluminado pelo ser. Zarader também nos coloca que não podemos deixar de considerar, para a elucidação do pensamento, “aquilo a que ele é reenviado em última instância, [...] a relação entre ")&" " " e ser”430. De modo a concluirmos nosso percurso, vejamos o que o filósofo vislumbrou no elo entre o ")&" " e " e o &" "*' "*'.. 426
Martin Heidegger, Caminhos de floresta, floresta, 2012, p.411. Zarader, Heidegger e as palavras Zarader, Heidegger palavra s da origem origem,, 1990, p.118. 428 Cf. Ibidem, p.302. 429 Grifos nossos. 427 Marlène
430
Marlène Zarader, op. cit., p.138.
130
3.3.3. O ! ! e a determinação do pensar ! " " " ! ! ! ! e Heidegger encontra, nos fragmentos III e VIII de Parmênides, elementos que nos nos ajudam a compreender como o !"#! ! pode se relacionar com o #! !$% ee a ele pertencer. Diz o fragmento III:
&" '#( $$&" !"#! ! %)&*! +$& #! !$% , que
traduz-se por “Pois o mesmo é Pensar e Ser” 431. Em primeiro lugar, perguntamos: o que significa esse &" $$&", esse “o mesmo”432? Zarader nos coloca que precisamos entender o que a “mesmidade”433 significa para a origem do pensamento ocidental e, com isso, avançar em direção àquilo que seria o mais enigmático do pensamento de Parmênides. Heidegger entende que reside no &" $$&" um enigma, e que “o mesmo” não quer dizer igual. ," $$&" nunca teve
esse significado. Igual em grego é 'µ"%"!. Portanto, não podemos trocar ser por pensar ou vice-versa, apesar da tradução para nossas línguas nos fazer crer que sim. Ser e pensar são coisas diferentes. Não há uma uniformidade. Há, segundo Heidegger, precisamente nessa diferença, uma relação de pertença mútua entre os dois termos evidenciada pelo &" $$&". Diz Heidegger: “Pensar e ser tem lugar no º a t
mesmo e a partir deste mesmo formam uma unidade”. 434 Mas, como é possível pensar que numa diferença pode haver um copertencimento?
g o ç a c t r e o -
Segundo Zarader, para Heidegger, é justamente na diferença que ser e pensar se copertencem. A autora rememora um texto anteri anterior or em que o filósofo se referia a “esforços antagonistas”435 que seriam característicos de uma unidade original, cuja relação nos aproximaria do &" $$&" grego. Segundo a intérprete, Heidegger teria melhor expressado a ideia sobre esse “o mesmo” no escrito O princípio da razão (GA10). Ali, o filósofo teria dito que, pensada em termos de uma mútua pertença, a relação entre ser e pensar aconteceria justamente na sua diferença e que “o mesmo” seria o elo capaz de, ainda que na diferença, manter ambos em relação de copertencimento. Diz o filósofo: “Este manter-se-junto no
431
Grifo do autor. Grifo nosso. 433 Grifo da autora. 434 Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos,, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.175. filosóficos p.175. Em nota, no ta, o tradutor nos n os coloca q que ue este comum-pertencer acentua que, além de estarem imbricados num recíproco pertencer, através desta reciprocidade,, ser e pensar “fazem parte de uma unidade, da identidade, do mesmo”. reciprocidade 435 Grifo da autora. Zarader reporta-se aqui ao escrito escrito Einführun Einführung g in die Metaphysik Metap hysik . (cf. Marlène 432
Zarader, Heidegge Zarader, Heideggerr e as palavr palavras as da origem origem,, 1990, p.139.)
131
manter-se-afastado é um traço a que chamamos o mesmo e a mesmidade”. 436 Porém, a intérprete entende que essa aproximação não é suficiente para a compreensão da frase de Parmênides. A autora ainda nos adverte que não devemos interpretar a pertença mútua como uma identidade no sentido dado pela história da metafísica, cujo princípio afirma que “todo o ente pertence a unidade consigo mesmo”437, instaurando, desse modo, a identidade no ser. Heidegger mesmo no adverte sobre isso, em “O princípio da identidade”(GA11), quando diz que “todo o pensamento ocidental-europeu pensa [...] (que) a unidade da identidade constitui um traço fundamental no seio do ser do ente.” 438 Nesse escrito, Heidegger nos fala de um primeiro princípio em que se pressupõe a identidade como um traço do ser, e esse como um fundamento do ente. Todavia, para o filósofo, esse princípio transformou-se numa espécie de “salto exigido pela essência da identidade”439, um salto no abismo, não no vazio do nada, mas um salto que nos orienta para o acontecimento-apropriativo, ali onde “vibra a essência daquilo que a linguagem fala .440 Assim, pensar o ser a partir da identidade ”
significa o salto no abismo, que distancia o ser como fundamento do ente, para o º a t g
comum-pertencer de homem e ser; uma comunidade que se forma a partir do acontecimento-apropriativo.441
o ç a c t r e
Segundo Zarader, para o filósofo, a relação do !! "#$ com com o %" ##%" nos orienta a pensar o ser a partir da identidade compreendida a partir do salto. 442
o -
436
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavr palavras as da orige origem m, 1990, p.139.
437 438 Martin
Heidegger apud Marlènee Zarader, ibidem, Martin Heidegger, “Identidade diferença”, in: Osp.140. Pensadores – Conferências e escritos filosóficos,, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.174. filosóficos p.174. 439 Ibidem, p.182. 440 Ibidem, p.182. 441 Em nota do tradutor, St Stein ein nos coloca que “o salto no abismo, no sem-fundamento sem-fundamento ( Ab AbGrund ), ), é o jogar-se no ser, assumir o pertencer ao ser”. Segundo o tradutor, compreende-se esse pertencimento pertencimen to quando Heidegger nos diz, em O princípio da razão, razão , que “Ser e fundamento pertencem à unidade. Do fato de faze fazerr parte do ser, o fundamen fundamento to recebe sua essência. E vicevic eversa, da essência do fundamento surge o domínio do ser enquanto ser. Fundamento e ser (‘são’) o mesmo, não o igual, o que já indica a diversidade dos nomes ‘ser’ e ‘fundamento’. Ser ‘é’ essencialmente: essencialment e: fundamento. Assim, o ser nunca pode primeiro ter um fundamento que o fundamente. O fundamento fica dessa maneira afastado do ser. O fundamento fica ausente do ser. No sentido de d e uma tal aus ausência ência de fundamento fun damento d do o ser, o ser ‘é’ sem-fundam se m-fundamento ento ((ab-grund ab-grund )),, abismo. Na medida em que o ser enquanto tal é fundamento em si mesmo, permanece ele mesmo sem-fundamento.”(cf. Ernildo Stein, nota do tradutor, in: Ibidem, p.178.) 442 Jean Beaufret também nos adverte quanto ao fato de entendermos essa identidade como aquela inferida por Aristóteles: Aristóteles: como se pertencesse e fosse uma característica fundamental do ser. Para o intérprete,, ao contrário, devemos entender que é o ser que pertence a esse mesmo que é mais intérprete elevado – a identidade; que forma, a partir daí, a sua identidade com o pensamento. (cf. Jean
Beaufret, Dialogue Beaufret, Dialogue with Heidegger Heidegger:: Greek Philos Philosophy ophy,, 2006, p.40.)
132
Nesse sentido, o !! ""!! não nos fala de um traço do ser, mas nos diz que ser e pensamento “só são o que são porque procedem deste ‘mesmo’ que, determinando a sua relação, é o único a poder conceder-lhes a sua essência respectiva”. 443 De acordo com a autora, a compreensão heideggeriana original do “mesmo” nos leva !
!
"!!
"
, ao invés de ser um predicado para ser e ao seguinte entendimento: o pensar, passa a ser o sujeito autêntico da frase, pois é a partir deste “o mesmo” que ser e pensar se co-pertencem. O equívoco da interpretação metafísica sobre a questão da identidade, segundo a intérprete, recai exatamente no fato de que atribuiu-se ao ser uma identidade como se esse já fosse conhecido. Zarader nos coloca que, através do
! ""!! compreendido por Heidegger, temos nosso
!
caminho iluminado por aquilo que possivelmente foi a experiência inicial do ser.444 Robert Mugerauer, em Heidegger and homecoming: The leitmotif in the later writings, writings, também apresenta uma análise que nos ajuda nessa compreensão. De acordo com o intérprete, no encontro com o pensar de Parmênides, Heidegger nos revela que ser igual ou diferente não é o caminho para discernirmos aquilo º a t
que é o mais importante na questão da identidade. O que deve ser salientado é que
g
o sentido originário do “mesmo” nomeia a dinâmica, na qual aquilo que se co-
o ç a c t r e
pertence chega ao seu mais próprio, somente no encontro do pertencer. O autor nos coloca que, ainda que aquilo entendido como idêntico seja derivado do
o
mesmo, esse “mesmo” não é redutível a uma compreensão representacional
-
daquilo que se apresenta como idêntico. Ao contrário, é esse “mesmo” que mantém a diferença na mútua pertença daquilo que é o mais próprio de cada um. Para Mugerauer, o copertencimento aparece na análise de Heidegger como algo primordial. O autor também ta mbém entende que a compreensão dada, pela hermenêutica heideggeriana, para a noção de identidade, ultrapassa toda aquela oferecida pela história do pensamento ocidental, inclusive a do idealismo alemão, cujo primado
443
Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavras palavra s da origem origem,, 1990, p.140. Em nota, Zarader nos coloca a diferença entre as duas formulações sobre a Identidade. Diz a autora: “Notar-se-á em particular as duas formulações por meio das quais Heidegger caracteriza, por um lado, lado , a doutrina da d a metafísica, por po r outro, o dito de Parmênides. Parmênid es. A primeira eenuncia-se nuncia-se Die Die Identität gehört geh ört zum Sein Sein,, e a segunda: Das segunda: Das Sein gehört ge hört in eine Id Identität. entität.”” Algo, respectivamente, respectivamente, como: “a identidade pertence ao ser” e “o ser parte de uma identidade”. identidade”. Segundo a autora, esta 444
compreensão nos é dada a partir do escrito de Martin Heidegger, Heidegger, Identität Identität und un d Differenz , Neske, Pfullingen, 1957, p.16-19. (cf. Ibidem, p.140.)
133
recai sobre a questão da unidade.445 Para Mugerauer, Heidegger nos apresenta que ser e pensar apesar de diferentes pertencem ao mesmo e que, diferentemente da concepção metafísica que estabelece a identidade como pertencente ao ser, é, ao contrário, o ser que pertence à identidade. O autor nos chama a atenção, no entanto, que nos primórdios do pensar ocidental a palavra identidade tem um sentido diferente. Ali na origem, ser e pensar pertencem mutuamente ao mesmo e em virtude do mesmo, e esse “mesmo” significa uma pertença. Mugerauer entende que o pensar, experimentado e pensado a partir dessa pertença, somente pode se desdobrar em resposta ao chamado do ser. Apesar de já sabermos que há aí uma co-pertença, como podemos entender exatamente como o !"#! ! participa do #! !$%? Como se dá essa pertença? Heidegger nos coloca que, à luz do fragmento VIII (34 et seq.), podemos nos aproximar de uma compreensão daquilo que é o pensamento na sua compreensão parmenidiana do fragmento III. O fragmento VIII anuncia na tradução do filósofo: “não pois separado do presentificar-se do que se faz presente, podes buscar buscar e encontrar o prestar-atenção-a.”446 A partir dessa tradução, º a t g o ç a c t r e o -
Zarader entende que só é possível compreender o pensamento, enquanto um pensar próprio, quando o encontramos a caminho do ser. Para a autora, esse caminhar só se torna caminho se já encontra-se no interior do ser .447 Zarader entende que, com isso, estabelece-se uma ambiguidade, pois se, por um lado, ser e pensamento pertencem mutuamente ao mesmo, numa identidade que mesmo distinta os precede e a partir da qual ambos podem se manifestar, por outro, o pensamento pertence ao ser, faz parte dele. É exatamente nessa dualidade que reside toda a riqueza do ser e o seu enigma. Para a autora, na medida em que se dá como ser ( #! !$%), procede ele próprio de um dom mais alto ainda em origem, e é do âmago desse dom comum que o ser reivindica o pensamento, e que este responde ao seu apelo; mas na medida em que se define, em toda a sua 445
Mugerauer nos apresenta que, para Heidegger, o idealismo alemão compreendeu que o “‘mesmo’ implica uma relação ‘com’, uma mediação, uma conexão, uma síntese: a identidade como a unificação em uma unidade. Apesar de Heidegger reconhecer que o idealismo alemão estabeleceu “um lugar para a essência em si mesmo sintética da identidade”445, essa formulação resulta numa abstração, pois, segundo o filósofo, na relação mediada, a identidade só pode ser representada abstratamente. abstratamente. (cf. Martin Heidegger apud Robert Mugerauer, Heidegger Heidegge r and homecoming: The leitmotif in the later writings, 2008, 293.) 446 “" & '#( $ !#& )"% &*!)"+... #'(,-#%+ )* !"# !"#! !”. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos
pensar? [em
elaboração], p.205.) Itálico da autora.
447
134
plenitude de sentido, como diferenç diferençaa (!!"), ele é o próprio dom e, nessa qualidade, o pensamento “faz parte” dele.448
A intérprete entende que a hermenêutica heideggeriana, totalmente fora de toda uma lógica habitual, nos dá conta de que o pensamento não é pensamento senão na medida em que responde ao chamado do ser, e é somente onde há ser é que pode eclodir o pensar. Para Zarader, ao responder ao apelo do ser, o pensar acaba por definir o próprio ser uma vez que o reconduz a uma identidade i dentidade que demarca uma procedência. Para a autora, pensamento e ser se relacionam de tal forma que o pensamento provém do ser “por desígnio”.449 Todavia, o reino do ser não pode ser compreendido “sem o co-reino do pensamento”. pensamento”.450 Sendo assim, pensamento e ser possuem uma identidade que engloba uma procedência, uma pertença. Sobre esse caráter da pertença, é o próprio Heidegger que nos fala, no escrito “O princípio da identidade”, que o comum-pertencer entre ser e pensar 451
significa uma relação que se estabelece no interior do ser , e que essa relação se dá na medida em que o pensar do homem se abre em direção ao ser e com ele forma uma relação de correspondência que o plenifica. Por outro lado, é também a º a t g o ç a c t r e o
partir desse evento que o ser se presentifica. Com base nessa mútua pertença, compreendemos que é somente na abertura do homem ao chamado do ser que o pensar se torna pleno, e é somente através da visada do pensar em direção ao ser que, por sua vez, vez, o ser se pres presentifica. entifica. Mas, de que forma pode o pensar pensar ser remetido à sua essência? Zarader entende que devolver o pensamento à sua essência significa
-
colocá-lo em seu lugar mais próprio, entretanto, mais desconhecido; significa o retorno ao lugar aonde sempre esteve, mas, ainda assim, nunca se alicerçou. A autora nos fala que a sentença heideggeriana – “o pensamento é o pensamento do ser”452 – deve ser entendida no duplo sentido do possessivo: tanto como pertencendo ao ser, lugar de onde encontra a sua proveniência, quanto como para o qual se direciona na escuta ao seu apelo. É por isso que na pergunta “o que é 448
palavra s da origem , 1990, p.142. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras Ibidem, p.142. 450 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.142. 451 Heidegger nos fala que o pertencer significa estar “inserido no ser”. (cf. Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.177.) 452 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavr palavras as da origem , 1990, p.154. Esta frase encontra-se na carta “Sobre o humanismo”. Em nota, Zarader nos oferece a frase no alemão 449
original: Das Denken, schlicht gesagt, is das Denken des Seins. (cf. Martin Heidegger, Brief über den Humanismus”, in: Wegmarken (GA9), Klostermann, Frankfurt, Main, 1967, p.148.)
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que nos chama a pensar?”453 Heidegger rememora o vocábulo original que a palavra “pensar” evoca: o Gedanc – memória, lembrança, pensamento fiel, gratidão. Subjaz nessas palavras a compreensão de que, porque o pensar pertence ao ser, deve ser fiel a ele, guardando em si a memória da sua própria essência, pois não é quando quando pensa o ser que o pensar é esse essencial, ncial, mas, antes de tudo, porque é essencial é que não pode pensar outra coisa que não seja o ser. Segundo a intérprete, o entendimento para o duplo possessivo é explicado nas próprias palavras do filósofo: “O pensamento é o que é segundo a sua proveniência essencial, na medida em que pertence ao ser, em que está à escuta do ser”. 454 O pensar o qual, ao ao longo de todo eesse sse percurso, He Heidegger idegger vem buscando buscando se acercar acercar é este que o Gedanc traz: o “ânimo co como mo um todo, na acepção da permanente reunião íntima em torno daquilo que sopra à alma, essencialmente, todo o sentido.”455 É, portanto, nessa memória, que a dobra de ser e ente nos diz, ainda que veladamente, que o pensar é pensar. Segundo Heidegger, Parmênides também nos sinaliza para o pertencimento mútuo entre !"#! ! e #! !$%. Esse sinal não nos leva ao “como” e ao º a t g o ç a c t r e o -
“porquê”456 disso acontecer. O filósofo entende que para tal empreendimento teríamos que considerar a essência da linguagem e, com isso, o &'(#%! e o &)("*. De acordo com Heidegger, o que Parmênides está a dizer, entretanto, é que há um chamamento ao pensar no presentificar-se do que se faz presente, uma requisição que chama o pensar à sua essência, e é na dobra entre o ")! # µµ µµ#!$% que se abriga essa requisição, é na dobra entre ser e ente que resguarda-se o chamamento ao pensar. Portanto, pensar só é pensar a partir da dobra de ser e ente, ou melhor, do ente em seu ser, do ente sendo. É, segundo o filósofo, a dobra que dá a pensar, e “o que assim se dá é a dádiva do que é mais digno de questão.” 457 No escrito Introdução à metafísica
(GA40) encontramos ainda uma última pista sobre a
relação essencial entre o !"#! ! e o #! !$%. Ali, Heidegger nos fala que esta pertença se dá através de uma experiência que evidencia, àquele que a perpassa, que o ser do homem só pode ser determinado a partir do acontecimento que essencialmente conecta o ser e o prestar-atenção-a. O filósofo nos esclarece que esse prestar
453
Grifo nosso.
454 Martin Heidegger apud 455
palavras as da origem , 1990, p.154. Marlène Zarader, Heidegger e as palavr Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.117.
456
Grifos do autor. Martin Heidegger, op. cit., p.207.
457
136
atenção-a nada tem de uma faculdade do homem, mas é o acontecimento em que ser e homem se encontram, em que “o homem mesmo chega ao ser.”458 Heidegger nos diz que aí se realiza um acontecimento Histórico: cumpre-se o destino do homem como guardião do ser. Munidos de todo esse esclarecimento podemos finalmente compreender o fragmento III de Parmênides, “!! ""# $#!! %&'$ % %(!)% *$& '$ %$+ ”, ”, como “a saber, o mesmo prestar-atenção-a é assim também presentificar-se do que se faz presente.”459 Como podemos ver, “o mesmo” estabelece aqui a relação de pertencimento mútuo entre o %&'$ % e o '$ %$+ . Heidegger nos diz que essa co pertença é compreendida na medida em que o prestar-atenção-a, nomeado em primeiro lugar, orienta-se para o presentificar-se do que se faz presente, e este o mantém junto a si numa salvaguarda. É a partir desse último, também denominado %,% por Parmênides, que fala a dobra de ambos, a dobra entre ser e ente. É a partir daí que se desdobra o chamado ao pensar que, para aí direcionado, alcança a sua essência nesta salvaguarda. Mas, assim como Heidegger ao encerrar º a t g o
as preleções do verão de 1952, também nós colocamos a última – e talvez a mais crucial – pergunta feita pelo autor de Que chamamos pensar?: seria o pensar capaz de nomear esta dádiva num dizer original?
ç a c t r e o -
458
Introdução o à metafísica , 1999, p.165. Martin Heidegger, Introduçã Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.205.
459
4. Considerações finais
[...] Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem pelalhe resposta, pobre ouinteresse terrível, que deres : deres: Trouxeste a chave? Carlos Drummond de Andrade 460
Chegamos ao fim de nossa caminhada. Não entendemos, contudo, que este seja o fim do caminho. Podemos inferir que a experiência de pensar em Heidegger se situa na esfera do retorno à questão mesma, um recomeço que se faz necessário diante do impensado que permanece. Há, de fato, uma circularidade no pensar heideggeriano e não fosse o salto significativo do pensamento a cada volta, diríamos que se trata de um caminho sem saída, aporético. Todavia, não encontramos nesse pensar um ponto final, mas um questionar contínuo nos º a t
colocando sempre diante da possibilidade da pergunta e de toda a promessa que essa traz. A experiência do pensamento nos diz que pensar é perguntar melhor, é a
g o
capacidade que o pensamento tem em sua estrutura no sentido de formular
ç a c t r e
potencialidade do questionamento, e somente o pensar pode interrogar. Nesse
o
sentido, o simples caminhar em direção à pergunta é já estar aberto à questão
questões, levantar problemas. Em Filosofia o extraordinário é a questão, a
-
mesma do pensamento. Chegamos, sim, ao fim desta caminhada, ao fim de nossos esforços em seguir os passos desse grande pensador no escrito Que chamamos pensar?. pensar?. Cruzamos um longo caminho, mas, ainda assim, sabemos não termos percorrido todas as veredas que esse nos oferecia. Tal tarefa, como dissemos no início, seria inexequível. Todavia, caminhamos. Trilhamos por terras áridas, nada fáceis, em busca de um pensar essencial: o pensamento do ser; “o pensamento em que os pensamentos não só não calculam, mas são absolutamente determinados a partir do outro do ente [...].” 460
461
A dificuldade do caminho não se deu por conta de uma
Carlos Drummond de Andrade, “Procura da Poesia”, in: A in: A rosa do povo po vo,, São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p.12. Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger Zarader, Heidegger e as palavr palavras as da origem origem,, 1990, p.153.
461
138
atitude reticente por parte do filósofo, mas devido à própria natureza que a interrogação impõe: o que é que nos chama a pensar? O que é esse outro que nos interpela? Zarader nos coloca que apesar do pensamento pertencer ao ser e constituir a sua essência mais própria, não encontramos aí nenhuma evidência. A 462
autora nos rememora que é por conta de sua simplicidade que o mais essencial não pode jamais ser habitado, a não ser no destino de uma longa caminhada, uma caminhada em que o simples nomear da co-pertença do pensamento ao ser significa uma luta contra toda a história do pensamento ocidental, pois esse “outro pensamento não não pode em ab absoluto soluto aparece aparecer, r, e no entanto é”.463 Para Heidegger, “o pensar é o pensar do ser” 464 e esse pertencer deve ser compreendido na duplicidade do genitivo, onde, por um lado, o pensamento pertence ao ser, é um acontecimento do ser, dele provém e nele fica retido, e, por outro, está à escuta do ser, se dirige para ele no sentido de o conformar à sua origem essencial. É exatamente porque deve estar à escuta do ser que o filósofo define a natureza do pensamento como memória, lembrança fiel, pois na medida em que situa-se no ser, o pensamento deve guardar memória de si mesmo. Por º a t
isso, não é quando pensa o ser que o pensamento é essencial, mas, antes de tudo,
g
quando é essencial, em conformidade com a sua essência, é que não pode pensar
o ç a c t r e
outra coisa senão o ser. Zarader acrescenta que é porque a escuta se funda na pertença que o pensamento se dirige para o ser e o toma à sua guarda. Isto não
o
significa que o pensamento possa se juntar ao ser por conta ou decisão própria. O
-
próprio Heidegger, na “Introdução” ao escrito “Que é metafísica?”(GA9)465, nos coloca que: O fato e a maneira de o ser mesmo abordar um pensamento nunca dependem primeira e unicamente do pensamento. Se o ser atinge um pensamento e o modo como o consegue, põe-no em
462
Ao final de Que chamamos pensar? o próprio Heidegger nos coloca o paradoxo de que o aprender esse pensar é o mais difícil porque é simples. Diz o filósofo: “Só que aprender o pensar dos pensadores é essencialmente mais difícil, não porque esse pensar seja mais complicado, mas porque é simples, sim ples, mesmo simples demais dem ais para a destreza destr eza do representar repre sentar habitual.” habitu al.” (cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.203.) 463 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavr palavras as da origem , 1990, p.153. Itálico da autora. 464 Martin Heidegger, ‘Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos filosóficos , (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.348. 465 A introdução ao escrito “Que é metafísica?” foi escrito somente em 1949, enquanto que o texto
original, em 1929. Ambos os escritos, juntamente ao posfácio escrito em 1943, foram publicados separadamente em Marcas do caminho c aminho (GA9).
139
marcha para sua matriz que vem do próprio ser, para, desta maneira, corresponder ao ser enquanto tal. 466
Como vemos, é o ser que atinge o pensamento, que em retorno o divisa e o presentifica. Mas, para que serve este pensar? É o próprio Heidegger que assertivamente nos fala que “tal pensamento não chega a um resultado; não produz efeito”.467 Para o filósofo, f ilósofo, o cômpito dos ganhos e perdas, fins e resultados são do domínio do cálculo, e medir o pensar do ser por sua utilidade e eficácia é considerá-lo por medidas inadequadas. Tal bitola é recusada por Heidegger. Para o filósofo, esse pensamento não é nem prático e nem teórico, pois acontece antes disso. Esse pensar, segundo Heidegger, é apenas a lembrança do ser. De acordo com Zarader, para o pensador, é exatamente o fato de não servir para nada que clarifica sua força, pois, faz lembrar que “o ente só é o que é na luz desapercebida do ser”.468 Assim, na medida em que o pensamento o toma à sua guarda, esforçase no sentido de edificar a casa do ser. Não no sentido de construí-la, mas no sentido de habitá-la e, nesse habitar, deixar o ser – ser.469 Essa é a única ação do pensamento do ser ser e, segundo a autora, autora, é uma ação decis decisiva iva na medida em que é o º a t g o ç a c t r e
pensamento que concede livremente li vremente o espaço de manifestação do ser no homem. Nesse sentido, a única tarefa do pensamento é a de manter-se fiel à escuta essencial do ser e, nessa dimensão, reconduzido a si mesmo na salvaguarda, voltar-se para a sua própria essência, para a sua verdade. É, pois, na escuta que o pensar chega docilmente à su suaa essência, aaoo seu destino.
o
De acordo com Zarader, na visão de Heidegger, esse caminho não pode ser
-
outro que o da história, uma vez que é no homem que o ser tem a sua destinação. É, pois, na história, ainda que de modo inaparente, que o filósofo vai buscar as pistas para esse pensar. pensar. Todavia, ao ao jogar luzes ness nessee caminho, Heideg Heidegger ger percebe que a tradição tradição – de Platã Platãoo a Nietzsch Nietzschee – não se aateve teve ao mais próprio do pensamento, pois pensou o ser por medidas entitativas. Além disso, o filósofo entende que o próprio ser se oculta e retrai. E, quando acontece desse pensar, ao retrair-se, sair do seu elemento, ele acaba por instrumentalizar-se como !"#$% e se 466
Martin Heidegger, “Que é metafísica?”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos , São Paulo: Nova Nova Cultural, 1996, 1996, p.79. 467 Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos filosóficos , (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370.
468
palavra s da origem , 1990, p.155. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: op. cit., p.370.
469
140
torna atividade acadêmica e cultural – a própria Filosofia se reduzirá à capacidade de fornecer explicações pelas causas últimas. Não se pensa mais. Ocupa-se. E, com isso, os “ismos” dos tempos modernos aparecem como uma força determinada pela opinião pública. Em meio a este estado de coisas encontra-se o ser-homem, não mais essencial e livre, mas subjugado involuntariamente à ditadura da opinião pública, a uma incondicional objetivação de tudo. Nesse domínio, também a linguagem abandona-se como instrumento de objetivação da opinião pública que decide sobre o que é compreensível ou não. Heidegger entende que a linguagem também contém uma dimensão essencial e que essa deve ser alcançada. Portanto, não é na história em seu sentido ôntico do desenrolar dos fatos que vamos encontrar o pensar do filósofo, mas na História em seu sentido ontológico, numa dinâmica própria de temporalização que caracteriza a relação originária do homem com o ser. É, na palavras de Lévinas, na “História que se pensa como retiro, como êpochê, como Lichtung , condicionando470por meio deste retiro a própria luz do aparecer de que o homem é a salvaguarda”. Uma vez recusada a interpretação tradicional, Heidegger volta-se para o º a t g o ç a c t r e
início grego, para a origem, o ponto de partida – e no caso de Que chamamos pensar? –
para as palavras de Parmênides, palavras que se encontravam à espera
de uma escuta. Nelas, o filósofo busca meditar o que ali ficou escondido, impensado. No diálogo travado pelo pensar de Heidegger com o de Parmênides
o
não vamos encontrar uma conversa trivial. Nos referimos a um salto realizado
-
através de uma hermenêutica própria que, no confronto com as palavras da origem, faz emergir algo totalmente outro. Dos vestígios depositados na língua grega surgirá um outro pensar. Esse movimento, traduzido no jargão heideggeriano por Andenken e Vordenken, nos leva ao andere Anfang : um outro começo. Daí entendermos a importância do escrito Que chamamos pensar?, importância, como vimos, expressa nas palavras do próprio Heidegger em carta à Hannah Arendt, de que somente agora ele chegara à correta proximidade em relação às coisas propriamente dignas de serem pensadas. Não há dúvida de que tais palavras reverberaram no pensar de Hannah Arendt que chegou a afirmar que o escrito é tão importante quanto Ser e Tempo.
470
palavrass da origem , 1990, Emmanuel Lévinas, “Prefácio”, in: Marlène Zarader, Heidegger e as palavra pp.12-13.
141
Esse é o caminho que, com grande esforço, conseguimos vislumbrar em Que chamamos pensar?. Sabemos
que a experiência filosófica atravessada pelo
pensar de Heidegger acontece, como dissemos, num salto para fora do dado, do habitual, da nossa visão acostumada com as coisas despidas do seu mistério. Acontece com uma suspensão das grades interpretativas e de representação para que, com isso, se possa chegar ao original em uma forma de reencontro. É isso que torna esta experiência por vezes tão árida e dificultosa. Mas, ao mesmo tempo, só ela nos possibilita alçar vôo a novos rumos, à novas paragens, ao encontro de novas questões que se põem a partir do momento em que esgotou-se aquele pensar, pois é na impossibilidade da resposta que a Filosofia se põe a formular novamente a questão, uma questão que sempre nos remete a um pensamento futuro. futuro. Bem sabemos que “o filósofo […] é alguém que perpetuamente começa.”471 Heidegger não fez outra coisa em sua vida – a experiência do pensamento reiterou-se e desdobrou-se num pensar que constantemente indaga e instaura um outro pensar, um outro questionar. Um ir-e-vir incessante à questão º a t
mesma do pensamento, ao impensado, em uma eterna busca pelo caminho do
g
pensar: uma experiência que revela sempre a permanência no retorno ao mesmo
o ç a c t r e
do pensamento que é a escuta pelo ser. Neste sentido, sentido, segue como tarefa do pensamento a sua entrega à determinação da questão mesma do pensar, po pois, is,
o
o Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo
-
para crescer e amadure amadurecer. dom que desperta As estácoisas escondido na inaparência do quecer.é O sempre o mesmo. que amadurecem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. 472
É certo que muitos caminhos tornam-se inaudíveis. A lida com a palavra é dura. Além disso, bem compreendemos que o saber desse pensar nada traz de útil e produtivo. Aquilo que, de fato, o pensamento nos concede é a permanência no caminho. E mesmo que a coisa-a-pensar escape ao pensamento, recuse encontro, essa recusa não é menos, é mais. É, como vimos, Acontecimento, “a mais presente
471
Maurice Merleau-Ponty, Fenomeno Fenomenologia logia da p percepção ercepção , São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.11. p.11.
472
Martin Heidegger, O Caminho do campo, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969, p.69. Maiúscula do autor.
142
de todas as coisas presentes.” 473 Uma experiência de tamanha essencialidade que determinou uma inquietude perene no “pensar pensante” de Heidegger. Através desse Acontecimento, o filósofo pôde dar o salto hermenêutico para o interior daquilo que nos fala da nossa essência, de um habitar pleno que mesmo silente, por vezes, na insistência do pensar, dele nos aproximamos num falar hesitante, porém pleno de sentido e significado.
º a t g o ç a c t r e o -
473
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em pensar? [em elaboração], p.7.
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______. Entrevista: “Heidegger e a Política. O caso de 1933.” 1933.” Entrevista concedida ao semanário Der semanário Der Spiegel e realizada pelos repórteres Rudolf Augstein e Georg Wolff; (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, in: Revista in: Revista Tempo Brasileiro. Brasileiro. No. 50, julho-setembro, 1977. 1977. _______.. Entrevista: _______
“Entrevista ao Professor Richard Wisser”; (tr.) Antonio
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