Pensando o Sexualidade Morte, Mundo

September 17, 2017 | Author: Pâmella Otanásio | Category: Friedrich Nietzsche, Thought, Morality, Martin Heidegger, Sigmund Freud
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Pensando o ritual sexualidade, morte, mundo

Coordenação Editorial Carla Milano Edição de Texto Martha Assis de Almeida Kuhl Tradução Maria do Rosário Toschi Preparação Carlos Alberto Inada Revisão Cláudia Jorge Cantarin Domingues Revisão Técnica Mariarosaria Fabris Agradecimento Prof. João Angelo Oliva Neto (pela revisão dos termos em latim) Capa João Baptista da Costa Aguiar Composição CompLaser Studio Gráfico

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Perniola, Mario Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo / Mario Perniola; tradução Maria do Rosário Toschi; (colaboração Mariarosaria Fabris). — São Paulo: Studio Nobel, 2000. ISBN 85-85445-92-0 1. Filosofia italiana 2.Perniola, Mario I. Fabris, Mariarosaria. II. Título

CO-2675

CDD-295 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia italiana 195

Apoio

Programa de Pós-graduação em Língua e Literatura Italiana (USP) “Obra publicada com a contribuição do Ministério das Relações Exteriores da Itália”

Mario Perniola

Pensando o ritual sexualidade, morte, mundo

Tradução

Maria do Rosário Toschi

© 2000 Livros Studio Nobel Ltda.

Livros Studio Nobel Ltda. Rua Maria Antônia, 108 01222-010 — São Paulo — SP Fone/Fax: (11) 257-7599 e-mail: [email protected]

Distribuição / Vendas Livraria Nobel S.A. Rua da Balsa, 559 02910-000 — São Paulo — SP Fone: (11) 3933-2822 Fax: (11) 3931-3988 e-mail: [email protected]

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sem a permissão por escrito dos editores por qualquer meio: xerox, fotocópia, fotográfico, fotomecânico. Tampouco poderá ser copiada ou transcrita, nem mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações. Os infratores serão punidos pela lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973, artigos 122-130.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Sumário Apresentação ............................................................................... 9 Introdução ................................................................................ 23 Capítulo I — O charme venusiano 1 Sedução, amor, charme .......................................................... 39 2 O “venus” como veneração .................................................... 42 3 O “venus” como “venia” ...................................................... 47 4 O “venus” como “venerium” ................................................. 51 5 O “venus”como veneno ......................................................... 54 Capítulo II — A erótica do trânsito 1 O “eros”como intermediário ................................................. 62 2 O “carmen” erótico ............................................................... 65 3 A erótica do uso .................................................................... 68 4 A arte amatória ..................................................................... 72 5 A provocação amatória .......................................................... 76 6 O emprego amatório ............................................................. 79 Capítulo III — Entre a veste e o nu 1 Magnificência da veste e verdade do nu ................................. 84 2 A erótica do despir: o nu e o véu ........................................... 91 3 A erótica de revestir: veste e corpo ......................................... 97 4 O nu eletrônico e a veste de carne ........................................ 122 Capítulo IV — Ícones, visões e simulacros 1 Iconofilia e iconoclastia ...................................................... 127 2 A imagem como simulacro ................................................. 134

Capítulo V — Fenômeno e simulacro 1 A recusa do conceito metafísico de aparência ....................... 143 2 Fenômenos e simulacros ...................................................... 146 3 Lógos e eterno retorno ........................................................ 151 4 Fenomenologia hermenêutica e semiótica pulsional ............. 154 5 A meditação reveladora e a operação simuladora ................. 159 Capítulo VI — O ser-para-a-morte e o simulacro da morte 1 Diversão e recalque da morte ............................................... 164 2 O ser-para-a-morte .............................................................. 170 3 O simulacro da morte .......................................................... 176 4 Morte, tempo, história ........................................................ 183 5 A intratemporalidade e a economia política ......................... 190 Capítulo VII — O reino intermédio 1 Ser-para-a-morte ou renascer? .............................................. 198 2 Morte e renascimento no pensamento ritual ........................ 200 3 O “Troiae lusus” ................................................................... 207 4 O rito do rito ...................................................................... 216 Capítulo VIII — A arte de Mamúrio 1 A arte como “opus” ............................................................. 221 2 A arte como “artus” ............................................................. 226 3 A arte como “ritus” ............................................................. 230 4 A arte como “ops” ............................................................... 234 Capítulo IX — Decoro e cerimônia 1 O resplandecente ................................................................. 241 2 O conveniente ..................................................................... 243 3 O decoro ............................................................................. 252 4 A cerimônia ......................................................................... 255

Apresentação

Na espiral do simulacro Annateresa Fabris

No prefácio à edição francesa de L’ alienazione artistica (1977), P. Sansot destacava, como uma das características principais de Mario Perniola, sua qualidade de “maravilhoso genealogista”. Sansot referia-se à relação de Perniola com a história, guiada por um “materialismo fino”, longe tanto de reconstruções arriscadas quanto de esquemas simplistas. “Materialismo fino” era sinônimo de uma análise histórica enunciada com cautela e fundamentada em bases precisas e sutis, atenta antes aos incidentes de percurso e às curvas mais sinuosas da história do que às grandes reconstruções teóricas. Uma outra característica destacada por Sansot dizia respeito à relação do autor com seu objeto de estudo, marcada por uma mistura de elã juvenil e cultura ampla, crítica radical e imaginação positiva.1 Por que evocar, mais de vinte anos depois, uma leitura do segundo livro de Perniola, publicado na Itália em 1971? Porque as hipóteses propostas por Sansot parecem estar na base do método do autor italiano, como poder perceber o leitor de Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo.2

Se dúvidas houvesse sobre tal coerência de percurso, bastaria atentar para o interesse cada vez mais acentuado de Perniola pelo neo-antigo e pelo neobarroco, que reponta a cada página de Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. No caso do neo-antigo, trata-se de um longo percurso que vem da comunicação “Lógica da sedução”, publicada, em 1980, em La società dei simulacri, passa por boa parte de Transiti (1985) e Del sentire (1991), é um dos eixos de Piúche sacro, piú-che profano (1992) e Enigmi (1994).3 Quanto ao neobarroco, seus pontos fundamentais acompanham de perto a teorização do neo-antigo — alguns capítulos de La società dei simulacri (“O ser-para-a-morte e o simulacro da morte”, “Simulacros do poder e poder dos simulacros” e “Lógica da sedução”), Transiti, Del sentire e Enigmi —, numa clara demonstração daquela genealogia de que falava Sansot. O que designa o conceito de neo-antigo? Partindo da constatação de que a arte, a literatura, a música e a filosofia contemporâneas desenvolveram uma dimensão meta-artística e metafilosófica, que as levou a fechar-se num “microambiente artificioso e asfixiante”, o autor propõe como saída para aquilo que denomina um “estado de mal-estar”, uma “situação de angústia”, “um narcisismo cultural” a retomada do conceito hegeliano de “arte simbólica”, própria da Antiguidade pré-clássica e extra-européia. Uma vez que a arte contemporânea, acossada pelo avanço dos meios de comunicação de massa e da ciência, se retirou do mundo, dissolvendo o conceito que a regia, Perniola acredita ser possível reencontar esse conceito num caminho às avessas, que remonte aos primórdios da criação artística. Propor a hipótese da existência de uma correspondência entre o momento contemporâneo e o mundo pré-arcaico

significa deixar de lado as noções de eu, sujeito, espírito (mundo romântico) e os ideais de equilíbrio e sobriedade formal (mundo clássico) em favor da aceitação da confusão e inversão entre vivo e morto, do choque com uma exterioridade difícil de ser dominada, do confronto com um enigma impossível de ser resolvido. A hipótese de um “efeito egípcio” na sociedade contemporânea, tal como apresentado na reflexão hegeliana — processo de osmose entre o ser e as coisas —, está na base da formulação neo-antiga de Perniola. O neo-antigo apresentase, finalmente, como um abandono de qualquer veleidade universalista e metafísica por parte da cultura ocidental, em busca daquela metodologia etnológica e etnofilosófica que havia sido aplicada até pouco tempo atrás ao estudo das culturas primárias e marginais. Que tipo de Antiguidade desperta, então, o interesse de Perniola? A Antiguidade helenística, sobretudo em sua versão estóica, ancorada num conhecimento sensualista e materialista, e a da Roma antiga, na qual são centrais as noções de simulacro e de mito sem rito. Desse quadro de referências deriva um conjunto de pluralizações, que torna obsoleta qualquer estrutura maniqueísta e convida, entre outras operações, a reintroduzir a noção de sagrado na cultura contemporânea pela retomada das idéias de repetição e derivação, em detrimento daquelas de originariedade e pureza.4 Para definir o neobarroco, que deita raízes na década de 60, Perniola esposa a idéia de barroco proposta por José Antonio Maravall: coincidência entre racionalidade e irracionalidade, técnica e possessão, tonalidades emotivas muito frias e muito quentes. É a partir desses opostos não exclu-

dentes que o autor italiano analisa o neobarroco social em manifestações como o moralismo religioso, o pacifismo, o ecologismo, a estratégia das aparências; o neobarroco artístico, estribado na perspectiva “inexpressionista” postulada por Germano Celant, da qual seriam representações emblemáticas o desaparecimento do sujeito, a importância crescente das coisas, a poética do enigma e da beleza estratégica, o luxo técnico, o fascínio pela morte e pela oralidade; o neobarroco filosófico, que estabelece uma identificação entre o ponto de vista filosófico e o ponto de vista enciclopédico, na retomada de uma tradição que vai do século XVII a Hegel, e cujos eixos fundamentais são o estudo da relação entre filosofia e línguas e filosofia e instituições, numa abordagem extra-européia e anti-hierárquica.5 Simulacro, neo-antigo e neobarroco encontram-se lado a lado no ensaio Lógica da sedução (1979), no qual Perniola deixa de lado o conceito teológico-libertino para aderir à idéia sofística da apáte. Afirmando a existência de uma lógica da sedução, que se impõe ao seduzido e ao sedutor, alheia a qualquer vontade subjetiva, por estar em estreita relação com o kairós, a ocasião, o autor traça sua genealogia, desde a sofística até o momento atual, dominado pela holografia social. Passa, desse modo, pela seductio latina, subtração de algo do contexto originário, que, no plano político-militar, vem acompanhada pelo ritual religioso da evocatio. Nesse ritual, que consistia na acolhida, em Roma, das divindades dos inimigos, e cujo êxito dependia da designação da cidade e dos deuses com seu verdadeiro nome, Perniola detecta o caráter essencial do simulacro como dissolução entre aparência e realidade, em favor de uma terceira dimensão que se sobrepõe a ambas. Para compreender tal afirmação, é neces-

sário lembrar que a evocatio romana era diferente daquela praticada com os demais povos. Para evitar que Roma fosse objeto do mesmo ritual, os romanos ocultavam o nome do deus protetor e a designação latina da cidade, evocando, desse modo, a lógica do sedutor: não ser um sujeito, e sim um puro espaço vazio ocupado pelos deuses e pelos nomes dos seduzidos. Prossegue com Baltasar Gracián, que faz do sedutor uma figura sem identidade para poder estar aberta à ocasião, às determinações do seduzido, que é quem lhe atribui qualidades. Gracián confere uma dimensão política à sedução, transformando-a em condição essencial da arte de governar, por ser, como escreve Perniola “auto-supressão da identidade do poder e repetição simulada das identidades dos seduzidos. A lógica da sedução é solidária com o processo de desrealização e culturalização radical que investe o mundo barroco”. Outra imagem barroca da sedução é localizada no convidado de pedra do drama de Tirso de Molina, que consegue inverter a relação entre sedutor e seduzido. Don Juan é seduzido por um simulacro, que determina sua ruína, uma vez que a lógica da sedução se impõe acima das subjetividades individuais. Detém-se, finalmente, no momento atual, que denomina sociedade dos simulacros, na qual se restabelece a relação entre poder e sedução. O poder político, que deixou de ser ideológico, é comparado com um holograma, cuja sedução deriva do fato de ser vazio, de não justificar nenhuma ilusão ou aparência e de ser, assim mesmo, passível de experiência e de apreciação por aquilo que mostra. A única alternativa que Perniola detecta para a sociedade hodierna não escapa da lógica do holograma: só resta escolher entre considerá-lo um “ob-

jeto real” ou vê-lo enquanto tal. O simulacro de sociedade que a holografia delineia seduz justamente por sua indeterminação, pela disponibilidade em assumir formas múltiplas de acordo com o ponto de vista do observador. Com ele caem por terra categorias velhas e novas: a estética, como teoria geral de uma sedução poderosa e de um poder sedutor, toma o lugar da política ideológica; a lógica da ocasião sucede à racionalidade dialética; o intelectual é substituído pelo operador cultural; a sociedade do espetáculo cede seu espaço à holografia social.6 Conceito fundamental na teorização de Perniola, o simulacro não pode ser dissociado da leitura que ele faz de Pierre Klossowski, releitor de Nietzsche desde a década de 50. Simulacro e eterno retorno possuem uma relação íntima no pensamento do filósofo francês, como demonstra um dos capítulos de Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo: “(...) O retorno às coisas mesmas é impossível porque, a partir do momento em que Deus está morto, nada mais existe de originário. A morte de Deus, que é definida por Klossowski como o ‘acontecimento dos acontecimentos’, está estritamente ligada à ‘necessidade circular do ser’, expressa na teoria nietzschiana do eterno retorno. As ‘coisas mesmas’ já são desde sempre cópias de um modelo que jamais existiu, ou melhor, que a morte de Deus dissolveu para sempre; trata-se de simulacros, não de fenômenos. (...) Os conceitos metafísicos de aparência e de realidade, portanto, são recusados (...) em nome de algo que anuncia e remete infinitamente a uma cópia.”7

Imagem sem identidade, o simulacro tem sua história retraçada pelo autor que, em Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, enfatiza os momentos romano e contra-refor-

mista. O ferreiro Mamúrio Vetúrio, que forja onze escudos idênticos ao que havia caído do céu para salvar Roma de uma pestilência, é a própria encarnação da concepção romana de arte, alheia a qualquer distinção entre verdadeiro e falso, original e cópia. Nem criação original, nem imitação falsificadora do modelo divino, a operação de Mamúrio Vetúrio constitui para Perniola “uma repetição tão exata que anula o protótipo ao mesmo tempo que o preserva. A sua arte não se opõe ao que é dado pelos deuses, pela natureza, nem aceita um papel subordinado ou dependente, mas se põe ao lado de tudo o que é oferecido, multiplicando-o, deslocando-o, introduzindo-o num trânsito do mesmo para o mesmo. O triunfo da cópia é também extrema fidelidade ao signo enviado pelos deuses, porque nenhuma variação é admitida; mas esta fidelidade elimina a excepcionalidade prodigiosa do exemplar único, o torna normal, regular, cultural. O sucesso da atividade humana é por isso destituído de arrogância e de orgulho, é sem culpa, inocente”.8 Outro momento nuclear para a história do simulacro enquanto imagem sem protótipo é situado pelo autor no século XVI. Roberto Bellarmino e santo Inácio de Loyola são os principais interlocutores de Perniola, pois em ambos estão presentes as condições fundamentais para a existência do simulacro: “renúncia à afirmação metafísica da identidade das coisas e do mundo” e “reconhecimento de seu valor histórico”.9 Em Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, Perniola propõe, embora rapidamente, outro momento para o simulacro, que corresponde à presença dos meios de comunicação de massa. Não se trata de um salto histórico, e sim de uma evidente explicitação da idéia neobarroca: o autor estabelece uma continuidade lógica entre a concepção seiscentista do simula-

cro como construção artificiosa, destituída de uma origem e incapaz de ser um original, com as técnicas industriais de reprodução da imagem e com os meios de comunicação de massa. Ao simulacro dos meios de comunicação de massa não parece aplicar-se, contudo, a idéia de negação aventada por Perniola. Eles parecem estar muito mais sob o signo do “puro simulacro de si”, proposto por Baudrillard, que assim analisa o realismo e o hiper-realismo de que são portadores: “(...) Produção frenética de real e referente, paralela e superior ao frenesi da produção material: assim aparece a simulação na fase que nos diz respeito — uma estratégia do real, de neo-real e hiper-real, que duplica por toda parte uma estratégia de dissuasão.”10

O que Perniola detecta na sociedade contemporânea é o fenômeno da “socialização do imaginário”, conseqüência direta da reprodução técnica das imagens que dissolve qualquer aura, qualquer valor de culto, qualquer especificidade. A integração entre sociedade e cultura não se sustenta mais em princípios, idéias e representações emanadas de um sujeito, e sim em simulacros que se movem num espaço que anula toda originariedade, toda autenticidade e toda subjetividade. É a passagem da aculturação à culturalização: se na primeira existia a mediação do jornalismo, da escola, da política, a segunda é produto da duplicidade, da “repetitividade imediata” do simulacro. A estética assume um papel determinante nessa nova ordem. Mesmo tendo uma estruturação filosófica, independe da gnosiologia, da ética e da política. Seu novo objeto não consiste mais na arte ou no prazer, mas na operação cultural e na socialização do imaginário, que transforma o “real” em simulacro.11

Outra noção central no pensamento de Perniola é a de trânsito, definido como passagem do presente para o presente, da presença para a presença, do mesmo para o mesmo. Presente e presença são a condição própria do homem contemporâneo, destituído de memória e de expectativas, o qual conseguiu espacializar o tempo num movimento horizontal que confere historicidade a qualquer lugar do mundo.12 O trânsito, embora seja um conceito autônomo, parece não poder prescindir da dimensão do simulacro. É o que demonstra Perniola quando, por intermédio de Klossowski, estabelece uma relação intrínseca entre erotismo e arte: ambos “fornecem uma veste, um invólucro, um simulacro ao que é destituído de realidade”, propõem “uma imitação que nunca pode ser verificada porque o original, o fantasma, o demônio nunca aparecem como tais”.13 Trânsito e simulacro aparecem claramente relacionados em algumas das melhores páginas de Perniola, dedicadas à análise da arte barroca e, mais particularmente, a duas de suas estratégias — o uso erótico do panejamento e a apresentação do corpo como despojo vivo. O encanto erótico apontado na dissolução do corpo da santa Teresa de Bernini no panejamento do hábito poderia ser multiplicado se se escolhesse como outro referencial uma das obras mais significativas do barroco napolitano, o Cristo velado, de Giuseppe Sammartino. Se o barroco é essencialmente corpo e forma, e, antes de mais nada, encarnação e dramaturgia corporal, o Cristo da Capela Sansevero de Nápoles é uma das representações mais significativas de uma teatralização, na qual o véu oculta e exibe uma “substantia indeterminata”, graças a um trompe-l’oeil luminoso e cambiante. O véu que exibe escondendo pode ser considerado uma cena, a evocação e a manifestação de uma presença

que não pode ser afirmada e significada diretamente. É próprio da mentalidade barroca explorar a metáfora da máscara, pela qual uma coisa pode ser ao mesmo tempo coisa e signo — esconder como coisa aquilo que desvela como signo.14 Se tais considerações remetem àquela materialização do irreal de que fala Lacan, ao trompe-l’oeil levado a seu grau máximo enquanto fusão de artifício e natureza, é a isso que Perniola se refere quando propõe a idéia dos nus barrocos como “túnicas de pele”, do corpo como veste. O desenho anatômico barroco é analisado por esse mesmo prisma: não deixa de ser significativo que o tratado de Bidloo, ilustrado por De Lairasse, seja considerado “um dos vértices do erotismo barroco” e seja comparado com a santa Teresa de Bernini. Em ambos, o sujeito não existe mais, dissolvido no êxtase ou na morte: no conjunto escultórico, há “uma veste que é tão viva e vibrante quanto um corpo”; no tratado anatômico, há “um corpo que é tão externo e magnífico quanto uma veste”. Do corpo inteiro ao corpo dissecado há um trânsito do mesmo para o mesmo, há uma fusão completa entre artifício e natureza. “(...) Os cachos dos cabelos, os pêlos do púbis, as asas da mosca que acidentalmente se demora no ventre, o mamilo túrgido, o pênis esfolado que se ergue majestoso, enquanto pequenos pregos prendem a pele do escroto na mesa... tudo é veste, pano, tecido. Os tendões assemelham-se às fibras da corda que segura o cadáver pela garganta ou ao laço que mantém unidos os pulsos. Até mesmo os ossos são representados como tecidos com a trama um tanto carcomida. Tudo agora está reduzido aos mínimos termos, feito em pedacinhos e desenhado de todos os lados, como os minúsculos ossos

dos pés ilustrados na última lâmina: tudo permanece, até o fim, tecido, veste. Tudo se reduz a pó, mas o pó é ainda uma extrema cobertura, que tudo envolve.”15

Embora o autor trace um rápido paralelo com os dias de hoje através do nu eletrônico e do transe, a problemática da veste poderia ser evocada graças a um artista como Arnulf Rainer, que, num primeiro momento, sobrepõe à imagem fotográfica do próprio corpo intervenções pictóricas de caráter informal que transfiguram a aparência e criam uma inquietante contraposição entre autovisão e máscara social. A estética neobarroca, que já se configurava no final dos anos 60, ganha contornos claros posteriormente, quando o artista passa a pintar para “recobrir a pintura”, acentua a concepção de auto-retrato como espelho sinistro, numa metamorfose que leva o eu a despojar-se de si mesmo, demonstra um interesse cada vez maior por todas as linguagens do corpo (cadáver, múmia, máscara), transforma a própria atitude perante a arte num “teatro da paixão”.16 Se o presente é a dimensão efetiva do homem contemporâneo, isso não significa que Perniola se torne um arauto do fim da história. A história pode ser explicitada naquele “rito sem mito”, que caracterizava a religião romana, que suprime toda relação com uma ação primigênia e se orienta para uma repetição exteriormente perfeita dos textos sagrados, esvaziados de seu significado. A separação entre mito e rito está enraizada na diferença entre milagre e história. Se o mito remete ao originário, ao arquetípico, ao excepcional, o rito, ao contrário, designa a repetição, a continuidade. Trata-se, contudo, de uma continuidade que é “diferente e outra em relação a si mesma”, para a qual só pode ser evocada a imagem da espiral: dependendo do ângulo de visão ela poder sugerir permanência ou diferença.

A composição em mosaico, própria da sociedade romana, que despedaçava toda unidade para convertê-la em multiplicidade, é parte integrante do afastamento do mito. “... nenhuma ‘ordem’ política e civil, nenhuma ordenação urbana, nenhuma possibilidade de ação histórica é consentida aos homens até que o maravilhoso e o prodigioso irrompam e perturbem a trama, a rede que forma a sociedade.”17

Neo-antigo e momento contemporâneo encontram-se lado a lado. O cotidiano hodierno, marcado pela transmissão ritual de usos, sem identidade e sem origem, por ações exteriores realizadas por atores opacos, é um dos aspectos daquela “holografia social” proposta por Perniola. É, portanto, mais uma manifestação daquela vertigem simulatória, daquela repetição diferente, próprias de uma sociedade que perdeu toda a noção originária (e original), que se espelha num sentir distanciado e impessoal, mas nem por isso negativo. É a genealogia de alguns aspectos dessa situação que Perniola analisa em Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo.

Notas 1. P. Sansot, Préface, in Mario Perniola, L’ aliénation artistique. Paris, Union Générale d’Editions, 1977, p. 7, 12, 14. 2. Este livro é integrado por ensaios extraídos de La società dei simulacri e Transiti. 3. Para uma cronologia completa da questão neo-antiga, ver: Federico De Donato, Mario Perniola e il neo-antico, in Mario Perniola, (org.), Il pensiero neo-antico. Milão, Mimesis, 1995, pp. 119-22. Entre os títulos citados, dois foram traduzidos em Portugal — Do sentir (Lisboa, Presença, 1993) e Enigmas (Lisboa, Bertrand, 1994) —, e um no Brasil — Mais-que-sagrado mais-que-profano (in Maria Amélia Bulhões & Maria Lúcia Bastos Kern, org. As questões do sagrado na arte contemporânea da América Latina. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1997). 4. Perniola, Sul neo-antico, in Mario Perniola, (org.), Il pensiero neo-antico, op. cit., pp. 7-15. A problemática do momento egípcio é analisada em profundidade pelo autor em Enigmas. 5. Perniola, Barocco, espressionismo, inespressionismo, in Enigmi. Gênova, Costa & Nolan, 1990, pp. 103-23. 6. Perniola, “Logica della seduzione”, in La società dei simulacri. Bolonha, Cappelli, 1983, pp. 177-89. 7. Perniola, “Fenômeno e simulacro”, in Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo, Studio Nobel, 2000, p. 143. 8. Perniola, “A arte de Mamúrio”, em: Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, op. cit., pp. 221. 9. Perniola, “Ícones, visões, simulacros”, in Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, op. cit., p. 109. 10. Baudrillard, La precessione dei simulacri, in Simulacri e impostura, op. cit., p. 52. 11. Perniola, Socializzazione del pensiero, socializzazione dell’immaginario, in La società dei simulacri, op. cit., pp. 51-6. 12. Perniola, Il transito, in Transiti. Bolonha, Cappelli, 1985, pp. 8-9. 13. Perniola, “A erótica do despir: o nu e o véu”, in Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, op. cit., p. 89. 14. Sobre a dramaturgia corporal e o Cristo velado, ver Buci-Glucksmann, La folie du voir. Paris, Galilée, 1986, pp. 96-7; Marino Niola, Sui palchi delle stelle. Roma, Meltemi, 1995, pp. 46-7, 49 (nota 25). 15. Perniola, “A erótica do despir: o nu e o véu”, op. cit., p. 91. 16. Sobre Arnulf Rainer posterior à década de 60, ver Buci-Glucksmann, op. cit., pp. 217, 220, 222, 224. A problemática da veste, aliás, poderia ser aplicada a muitos praticantes da body-art e a várias experiências fotográficas contemporâneas, como as de Cindy Sherman e Andres Serrano, por exemplo. 17. Perniola, “A arte de Mamúrio”, op. cit., p. 221.

Introdução

“Pensamento mítico”, “pensamento pré-lógico”, “pensamento simbólico”... com essas e outras expressões semelhantes foi definida a atividade intelectual dos membros das sociedades primárias, em oposição ao pensamento racional, lógico e discursivo das culturas históricas. A expressão “pensamento ritual” parece somar-se ao primeiro conjunto com o intuito específico de chamar mais a atenção sobre a ação e os comportamentos do que sobre o conhecimento e as funções mentais. Ao pensamento projetivo, instrumental e pragmático da cultura ocidental se oporia o pensamento ritual, repetitivo e codificado das sociedades primárias. Entretanto, não é esse o sentido que eu atribuo à expressão “pensamento ritual”: não se trata de modo algum de comparar o caráter tradicional e estático das sociedades primárias com o caráter inovador e progressivo da civilização ocidental, mas de apresentar uma mentalidade, uma forma de pensar, uma maneira de se comportar que ultrapassa a distinção entre tradição e inovação, entre sociedade primária e sociedade histórica, entre primitivismo e civilização.

Não é necessário sermos grandes viajantes para perceber que o mundo contemporâneo oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida contraposição entre sagrado e profano, entre simbólico e pragmático, entre selvagem e racional. Assistimos, de um lado, ao surgimento de comportamentos tribais nas metrópoles e, de outro, ao profundo impacto da racionalidade tecnológica e econômica nas situações menos desenvolvidas. Tudo isso dá lugar a misturas inéditas e surpreendentes de arcaísmo e modernidade, de passado e futuro, para cuja compreensão as categorias habituais se mostram totalmente inadequadas. A minha reflexão está orientada exatamente para a localização e a determinação das noções que se situam além das dicotomias e das polaridades até o momento vigentes na maioria dos estudos antropológicos. Os conceitos de “trânsito”, “simulacro” e “rito sem mito”, que constituem a articulação do presente volume, satisfazem perfeitamente a essa exigência, que nasce tanto da observação da realidade sociocultural quanto da dinâmica interna da pesquisa teórica. Assim, a noção de “trânsito” parece-me estar estritamente ligada com essa experiência de simultaneidade, de disponibilidade e de dilatação do presente, que caracteriza a vida contemporânea. Essa noção, de fato, parece manter-nos freqüentemente em um estado de provisoriedade e de indefinição, no qual o aspecto estático e o aspecto dinâmico da existência tendem paradoxalmente a coincidir. Mesmo sem ver no refugiado e no exilado a figura emblemática do nosso tempo, o afrouxamento dos laços com o lugar de origem já não é mais compensado pela busca de uma terra prometida. A ausência de um enraizamento que confira uma identidade não é mais percebida como uma falta a ser preenchida: somos estrangeiros na nossa terra e, vice-versa, sentimo-nos em casa em qualquer lugar.

Ao mesmo tempo, a noção de “trânsito” responde a exigências que surgem do desenvolvimento da terminologia e do pensamento filosófico. Como é sabido, Hegel tinha visto na “superação” (Aufhebung) o movimento da realidade, a qual prossegue conservando e abolindo simultaneamente as suas determinações precedentes. A palavra-chave da obra de Nietzsche é, em contrapartida, “ultrapassagem” (Überwindung): ela rompe os laços com o passado, e é animada por uma irreprimível vontade de ir além do existente. Enfim, todo o pensamento de Heidegger pode ser considerado uma meditação sobre o empedimento da metafísica e do niilismo: para designar tal experiência — que é ao mesmo tempo apropriação, aceitação e aprofundamento do passado —, Heidegger criou o termo Verwindung, que contém simultaneamente as idéias opostas de vitória e de resignação. A noção de trânsito nasce da continuação por esse caminho e se diferencia das noções precedentes por dar maior destaque ao presente e à presença. Sob esse aspecto, ela se insere no debate sobre a relação entre tradição e inovação, encaminhado segundo perspectivas divergentes tanto por Hans Georg Gadamer como por Ernst Bloch: o primeiro, como é sabido, realiza uma reforma da noção de tradição que chega a um presente fora do tempo, entendido como “classicismo”, enquanto o segundo leva a cabo uma reforma da noção de inovação que conduz à idéia de “uma utopia concreta”, entendida como vontade de presente, antecipação e pré-aparição de uma pátria reencontrada. O trânsito diverge dessas duas direções opostas não só porque mantém um caráter essencialmente dinâmico e itinerante, mas também porque implica um deslizamento para a dimensão espacial, para a experiência do deslocamento, da transferência, da descentralização.

A segunda noção, a de “simulacro”, é alternativa em relação à tradicional oposição entre original e cópia. O simulacro não é o resultado de uma reprodução mais ou menos fiel do original, mas o ponto de chegada de um processo de emancipação da cópia de sua dependência em relação a um original. Chega-se ao simulacro não por imitação, mas por um mimetismo vertiginoso graças ao qual o que é espúrio, derivado, replicado, se liberta do autêntico, do originário, do único. Por isso, é sobretudo na sociedade contemporânea que o conceito de simulacro adquire relevância: nela, de fato, os processos de repetição, transmissão e mistura desempenham um papel essencial. O desenvolvimento dessa dimensão é particularmente favorecido por dois fatores, um de caráter “tecnológico” e outro de caráter “antropológico”: são eles a informatização e o sincretismo, isto é, a disponibilidade imediata de acesso não só às notícias, como aos comportamentos, aos estilos de vida, às mentalidades do mundo inteiro, bem como a mistura desses comportamentos, estilos de vida e mentalidades em combinações surpreendentes e autônomas. A noção de “simulacro” também, assim como a de “trânsito”, não nasce apenas de uma consideração fenomenológica do mundo contemporâneo — ela cria raízes nos acontecimentos do pensamento filosófico. Na filosofia moderna, pelo menos a partir de Nietzsche, está ocorrendo uma tendência antiplatônica de revalorização da aparência ante a substância metafísica. Por exemplo, Heidegger, na sua obra Nietzsche, sustenta que a mimese artística não é nada inferior nem à idéia nem ao objeto, mas se coloca ao lado deles sem inserir-se em uma hierarquia: a idéia do espelho, o próprio objeto espelho e a imagem do espelho são três maneiras de manifestação do ser não subordinadas umas às outras. Mais

radical, Gilles Deleuze, no seu livro Logique du sens, considera o simulacro o contrário do “fictício”, o propulsor de um movimento que vai contra a ordem estabelecida das representações, dos modelos e das cópias. A terceira noção, a do “rito sem mito”, também surge da sociedade em que os comportamentos não parecem mais orientados nem pelo costume nem pela consciência individual: tanto a ética — entendida como conjunto de hábitos que contêm em si mesmos um significado — quanto a moral — entendida como vontade subjetiva e privada do bem e do útil —parecem impotentes para orientar a ação e a conduta do homem contemporâneo. Parece que os comportamentos não são escolhidos com base em um projeto de vida nem seguem um desenvolvimento coerente que se possa descrever, mas acontecem segundo dinâmicas que ficam na superfície e se desenvolvem através de interações sociais imprevisíveis e opacas para os próprios atores nelas envolvidos. Dessa forma, o único elemento certo é o aspecto exterior das ações, o qual não é funcional em relação à vida social nem está ligado à vida íntima do sujeito. Em outras palavras, já não existem gestos nem comportamentos que sejam mais familiares, mais próprios, mais nossos do que outros. A ritualidade consiste no fato de que todos os gestos provenham do exterior, de fora, sejam aqueles que pertencem à nossa herança cultural, à nossa classe social, à nossa história pessoal, sejam aqueles que pertenceram a outros povos, a outras classes e a outras pessoas. Assim, parece que, na ausência de qualquer critério e de qualquer possibilidade de escolha racional, toda ação é imotivada; cai o fundamento metafísico das ações, que eram fixadas, imobilizadas pela identidade coletiva dos costumes ou pela identidade pessoal da moralidade. A transmissão ritual dos usos

já tende a caracterizar a cotidianidade: todos os gestos e todos os comportamentos estão implicados numa circulação que os subtrai à identidade e à origem. No plano filosófico foi Wittgenstein quem examinou o significado de uma palavra no seu uso (Gebrauch). Como se deduz do seu livro Notas sobre o “Ramo de Ouro” de Frazer, ele atesta a autonomia dos comportamentos, dos gestos e dos rituais em relação às crenças, às explicações, aos mitos: a sua definição do homem como “animal cerimonial” liberta a noção de “uso” de toda dimensão acanhadamente funcional e utilitária. As ações repetidas e institucionalizadas não são, em absoluto, tão óbvias e conhecidas como parecem à primeira vista; mesmo nelas está presente um elemento insuprimível de estranheza e de inaturalidade, que é bem difícil de ser detectado. O outro filósofo para quem a noção de “uso” (Brauch) desempenha um papel importante é Heidegger. Para ele também o termo perde completamente toda referência à utilidade e está próximo à palavra latina fruitio, “fruição”. Fazer uso de uma coisa quer dizer, para Heidegger, não violentála e remetê-la à sua essência. O uso é um comportamento não direcionado para o alcance de um objetivo e, portanto, ancorado na experiência do presente; ele implica um abandono, um estado de serenidade, que não é, entretanto, renúncia quietista, e sim abertura àquilo que vem ao nosso encontro e à riqueza das ocasiões. “Trânsito”, “simulacro” e “rito sem mito” são conceitos cujas definições parecem, à primeira vista, enigmáticas, quando não paradoxais. O trânsito é um “movimento do mesmo para o mesmo”, onde, porém, “mesmo” não quer dizer “igual”, porque implica a introdução de uma diferença, de uma mudança, que é tanto mais profunda quanto menos cha-

mativa. O simulacro é uma “copia qua copia”, uma cópia enquanto cópia, que, exatamente em virtude dessa reivindicação de autonomia, deixa de depender do original e se liberta de toda imitação. Por fim, o rito sem mito é uma espécie de “rito do rito”, uma emancipação dos gestos e dos comportamentos em relação à sua funcionalidade e às suas motivações, o qual, no entanto, não é de forma alguma “irracional” nem “insensato”; ao contrário, pressupõe uma mentalidade, um modo de pensar, uma filosofia implícita. De um ponto de vista bastante genérico, aquilo que une essas três noções é uma espécie de intensificação pleonástica, de redundância, de mise en abîme, quase como se a experiência e o pensamento contemporâneos fossem arrastados em um vórtice paroxístico de duplicações e de auto-espelhamentos ao qual não conseguem se esquivar. Provavelmente, não estão errados os que consideram a filosofia contemporânea uma “metafilosofia”, isto é, um discurso da filosofia sobre si mesma: sob esse aspecto, o “pensamento ritual” representa um passo subseqüente nesse caminho. Todavia, a importância de tais processos de auto-referência depende do fato de a auto-representação da sociedade ter se tornado parte essencial da sua realidade. O pensamento ritual tem motivações profundas, de outra espécie, que lançam as próprias raízes nos acontecimentos da filosofia contemporânea, na reflexão psicanalítica e na história pessoal de quem escreve. No que diz respeito ao primeiro aspecto, o ponto de partida pode ser considerado a experiência de uma “repetição diferente”, que se delineia na obra de Kierkegaard, de Nietzsche e de Heidegger. Em particular, é no texto Gientagelsen (A repetição), de 1843, que Kierkegaard expõe a intuição fundamental do pensamento ritual. A repetição se distingue da recordação e da esperança: na primeira, o cen-

tro de gravidade encontra-se no passado, de forma que leva à infelicidade; na segunda, o centro de gravidade está no futuro e, portanto, gera o tédio da espera. Só a repetição possui a segurança serena do presente: com a repetição, a existência anterior passa a existir agora, mas, exatamente por isso, contém um elemento essencial de diferença que torna a experiência, ao mesmo tempo, determinada e única. Repetição, portanto, não quer dizer de modo algum reiteração do idêntico. Em Kierkegaard, a repetição desempenha a mesma função que a “mediação” na filosofia de Hegel: se a novidade se apresentasse no seu espontâneo imediatismo, seria imóvel ou indeterminada. Pode-se alcançar uma novidade efetiva só através do caminho indireto da repetição. Não obstante o apelo à experiência do indivíduo e o estilo narrativo de muitos dos seus textos, o pensamento de Kierkegaard não implica absolutamente o apelo aos dados imediatos da consciência: ao contrário, viver é um repetir, um retomar, um voltar a buscar algo que já tenha ocorrido. Da mesma forma, pode provocar surpresa o fato de Nietzsche se encontrar entre os filósofos do pensamento ritual, pois a sua filosofia está eivada de uma ênfase vitalista que mal se concilia com a ritualidade. Entretanto, exatamente o destaque que ele confere à afirmação do presente o leva a atribuir um significado essencial à repetição. O problema do qual ele parte é o da atitude diante do passado: na medida em que eu experimento em relação ao passado uma dolorosa aversão, um ressentimento, dependo dele, tenho para com ele uma disposição meramente reativa. Não há senão um modo de se libertar do passado, um modo paradoxal que aposta na sua apropriação e assimilação: o l’amor fati, ou seja, a escolha da repetição infinita, do eterno retorno. Contudo, isso não deve ser entendido como renúncia, nem mesmo como uma lei do

tempo contra a qual é impossível rebelar-se, mas como um ato de vontade. O passado deixa de ser um obstáculo intransponível diante do qual a vontade deve abaixar a cabeça a partir do momento em que eu desejo a sua repetição, que será obviamente diferente. A repetição em Nietzsche assume assim um valor fortemente propulsivo e energético: o l’amor fati é vontade de eterno retorno. Eu posso me apropriar do passado apenas se o amo. A ultrapassagem não pode ser uma fuga ingênua para a frente: podemos ser fortes apenas se sempre o fomos, apesar das derrotas e das frustrações. O terceiro pensador da “repetição diferente” é Heidegger. Como se sabe, a repetição (Wiederholung) é considerada, em Ser e tempo, uma característica da existência autêntica; entretanto, ela não deve ser entendida apenas como fidelidade a uma decisão passada. A repetição não cai na armadilha do passado, reproduzindo-o tal e qual: não é restauração, nem reiteração do idêntico. O foco da repetição é o presente. Esse aspecto está ainda mais claro em Ser e tempo, no qual é dado particular destaque à noção de presença (Anwesenheit). O passado não conta enquanto passado, nem o futuro enquanto futuro. Isso não exclui a recordação, nem a antecipação, mas a primeira deve ser entendida como recordar-se de algo que nunca foi pensado, e a segunda adianta-se à maneira do “passo atrás”. É no entanto no pensamento de Freud que a “repetição diferente” conquista um lugar de absoluto destaque, porque está estritamente ligada com a terapia psicanalítica, baseada na transferência (Übertragung). Ela consiste na transferência de impulsos psíquicos, afetos, sentimentos, esquemas de comportamento, tipos de relações objetais, cargas libidinosas... de uma pessoa conhecida antes do médico: o paciente identifica no analista um retorno, quase uma reencarnação de uma

pessoa importante do seu passado, e transfere para ele aqueles sentimentos e aquelas reações que estavam destinados ao modelo. Essa relação não é, entretanto, mediada pela recordação; o paciente não se lembra de nada daquilo que transfere para o analista, mas o exterioriza na ação. Ele realiza uma repetição, ignorando que seja assim. A transferência não é, portanto, um movimento do presente para o passado (como a recordação), e sim o movimento que se realiza inteiramente no presente: a carga psíquica libidinosa que se transfere para o médico já está presente, está pronta, à espera, disponível. O paciente age, por assim dizer, teatralmente diante do médico, sem perceber. Sua repetição é uma “repetição diferente”, porque não possui a imobilidade e o estatismo do instinto, mas o dinamismo e a fluidez da pulsão (Trieb), e esta última não tem, por definição, uma meta ou um objeto fixo. Ambos são variáveis, contingentes, e são escolhidos em função das vicissitudes da vida do indivíduo. O instaurar-se de fenômenos de repetição na vida do indivíduo é algo essencialmente diferente da repetição instintiva: a transferência é o movimento de uma diferença, de algo diferente e indeterminável, que todavia acontece, por assim dizer, “do mesmo para o mesmo”. A repetição é possível exatamente porque há uma liberdade de movimento, um deslocamento, um fluir da pulsão, porque esta pode se distanciar da representação original e correr em direção a uma outra, análoga. Tal circulação é consentida exatamente pela plasticidade das pulsões que permanecem sempre capazes de mudar os seus objetos e as suas metas: para explicar a dinâmica das pulsões, Freud recorre à imagem de uma rede de vasos comunicantes cheios de líquido. Quando o movimento, a livre mobilidade da libido é bloqueada, torna-se impossível a transferência, não é mais

possível uma “repetição diferente”. Isso acontece, por exemplo, nas psicoses e nas neuroses narcisistas; nestas, segundo Freud, a libido se retira dos objetos externos, não transita mais através deles e se volta exclusivamente para o Eu. Tal paralisação obstrui a instituição da relação com o analista e torna tais doentes inacessíveis à cura. Dessa maneira, a “repetição diferente” é vista por Freud não só como benéfica, mas como condição de cura. As considerações até agora expostas legitimam o pensamento ritual no plano da teoria. Existem, entretanto, motivações de caráter mais pessoal e autobiográfico que, segundo alguns, não deveriam entrar em um texto filosófico. Certamente a mudança literária impressa à linguagem filosóficaporDescartes, por Kierkegaard e, em tempos mais recentes, pelo chamado “pós-estruturalismo” poderia consentir algumas exceções. Todavia, se eu me arrisco nesse terreno escorregadio e tomo a liberdade de dizer alguma coisa a meu respeito, é porque me sinto impelido, acima de tudo, pelo interesse objetivamente antropológico naquilo que estou por narrar. Émile Benveniste, no seu estudo sobre termos relativos ao substantivo neto, mostra que, em inúmeras sociedades indo-européias do passado mais remoto, o menino é visto como a encarnação de um antepassado: o “neto” seria, portanto, uma “repetição diferente” de alguém que viveu antes. Ora, a experiência infantil de quem escreve reproduz exatamente o modelo delineado por Benveniste. Por circunstâncias bastante singulares, eu tomei o nome, o lugar, as roupas e as brincadeiras de um filho do meu avô, falecido tragicamente algum tempo antes, e fui morar com meu avô em vez de morar com meus pais. A idéia de que os recém-nascidos sejam cópias, simulacros de crianças desaparecidas, foi, por conseguinte determinante para a

formação de minha identidade. Não se tratou de uma reencarnação espiritual, mas de um processo ritual; ao nascer, encontrei um relicário de exterioridades: trajes com iniciais, talheres de prata com o meu nome gravado, soldadinhos e balizas de boliche um pouco amassados, modelos de comportamento que pediam para ser vestidos, animados, repetidos. Nada mais distante da chamada criatividade espontânea da infância: o novo não nasce senão através de imperceptíveis transformações do velho, mínimos desvios do conhecido, trânsitos “do mesmo para o mesmo”. Disso me ficou a impressão de que a vida é um tênue sopro que só pode existir se encontra e toma posse de algum espólio a ser animado, alguma veste a ser envergada, alguma conduta a ser assumida; quando não se depara com nada ou, então, rejeita tudo, talvez esteja condenada a evaporar-se. Por isso, eu me senti sempre completamente estranho à idéia da vida como fonte inexaurível, como infinita força produtiva, como potência irresistível. Ao contrário, pareceu-me que a vida fosse algo extremamente pobre, delicado e frágil, que deve se alienar nas coisas, na realidade, no mundo, para se manter e se desenvolver. No âmbito de tal perspectiva, os ritos, as cerimônias, as instituições não constituem em absoluto um obstáculo à manifestação e ao crescimento da vida, mas, bem ao contrário, são uma condição da sua existência. A revolta e a transgressão também são ritos que já se encontram prontos: um bisavô (herói da unificação da Itália, condenado a trinta anos de prisão pelos Bourbons) e um outro bisavô (incitador de uma revolta popular contra a fundação do novo reino, em uma aldeia do sul da Itália) desempenharam na minha imaginação a função de um esquema ritual. O pensamento ritual pode ser considerado o desenvolvimento de problemáticas e de tendências presentes e ativas na fi-

losofia e nas ciências humanas. Não é difícil, de resto, encontrar assonâncias entre a sua dinâmica teórica e alguns aspectos do pósestruturalismo contemporâneo. O nomadismo de Gilles Deleuze, a crítica do platonismo realizada por Jacques Derrida, a recusa dos mitos teorizada por Jean-François Lyotard constituem um cenário no qual se situam os seus caminhos especulativos. De resto, as três noções sobre as quais se articula o presente volume — trânsito, simulacro e rito sem mito — aparecem à primeira vista como os respectivos desenvolvimentos do pensamento nômade, pós-metafísico e pós-moderno dos autores acima citados. Entretanto, essa impressão de consonância se atenua assim que se contemplam as áreas culturais para as quais se volta a atenção do meu trabalho. Quais são essas áreas culturais? Não a Grécia antiga, que constitui o ponto de referência por excelência do pensamento filosófico contemporâneo, mas a Roma antiga, que, na literatura filosófica do século XX, é objeto de uma arraigada hostilidade; não a Reforma, que freqüentemente é vista como o berço da filosofia moderna, mas o Barroco, que só em tempos muito recentes foi merecedor de uma consideração filosófica; enfim, não a Europa mais genuína e secreta, mas a Europa mais híbrida e mais replicada, aquela Europa fora de si mesma, que já ocupa a maior parte do mundo e que, através dos enxertos mais ilegítimos e das combinações mais espúrias, é artífice de um cotidiano carente de bases nos mitos e nas tradições. O segundo elemento que confere uma especificidade particular à minha pesquisa é o interesse por aqueles “tempos fortes” da existência, em torno dos quais desde sempre giram os ritos: a sexualidade, a morte e o mundo. Sexualidade e morte constituem o “cerne” da experiência, porque são realidades opacas e impenetráveis, indiferentes e estranhas às intenções subjetivas e aos bons propósitos. Elas aparecem-nos como “coisas”

irredutíveis à vida do espírito e às suas aspirações ideais. Como pode a filosofia fazer frente a essas realidades? Na minha opinião, ela deveria pôr de lado não só toda espiritualidade desencantada, como também todo naturalismo organicista. De fato, a sexualidade com que se depara não é aquela orgânica, articulada sobre a polaridade do masculino e do feminino, e sim aquela neutra e perversa, que prescinde de tal distinção. Nos ensaios contidos neste volume, sobre o venus, pensado como algo neutro, sobre eros, pensado como intermediário entre a paz e a guerra, e sobre o corpo, pensado como véu e veste, delineiamse exatamente as premissas de um “sex appeal do inorgânico”, do qual tratei recentemente de forma mais extensa e exaustiva. Com a morte, a filosofia se confrontou desde sempre. No entanto, o aspecto inquietante da hodierna experiência da morte não consiste apenas na angústia da finitude e nas tentativas de superá-la; no imaginário coletivo e na pesquisa científica, está cada vez mais presente a atenção dirigida aos estados intermediários entre a vida e a morte, que se configuram já como formas de vida artificial (os replicantes da ficção científica ou os fenômenos de A Life), já como estados limítrofes entre uma e outra (os vampiros da literatura e dos filmes de horror ou os pacientes terminais mantidos vivos pela tecnologia médica). De uma forma mais geral, assiste-se em muitos âmbitos a uma mistura entre o orgânico e o inorgânico, entre a corporeidade e as coisas, o que suscita perturbação e apreensão. Os ensaios, contidos neste volume, sobre o simulacro da morte, sobre o “reino intermediário” e sobre o eterno retorno do mesmo constituem uma introdução àquilo que antes chamei o “efeito egípcio”, para indicar exatamente o processo graças ao qual parece que as coisas adquirem faculdades humanas e, vice-versa, os homens são excluídos do sentir. 36

Quanto ao terceiro objeto da minha reflexão — o mundo —, este também, não menos do que a sexualidade e a morte, é âmbito de inquietantes interrogações: de fato, dele depende o sucesso ou o fracasso dos nossos empreendimentos. É a partir do Renascimento que a noção de “mundo”adquire, na reflexão teórica, um destaque sempre maior, tomando o lugar da “providência”, da “vontade de Deus”. No curso dos últimos trinta anos, esse processo de secularização, de desmitificação e de desencanto parece ter adquirido uma aceleração e uma radicalização que atingem não só as representações religiosas, como também as representações ideológicas consideradas uma continuação das primeiras. Nasce disso uma atenção totalmente profana e mundana no que se refere à imagem e à sua relação com a realidade — o ensaio sobre a iconofilia e a iconoclastia, aqui incluído, se insere exatamente nessa trama de reflexões. Na idéia de mundanalidade está implícita uma referência à obtenção de um resultado; os ensaios sobre a arte como operação mimética e sobre a cerimônia estudam precisamente a vinculação entre repetição e efetividade. Em um livro recente, defini com o neologismo sensologia, cunhado a partir do modelo de “ideologia”, a modalidade completamente distanciada, impessoal e mundanizada da experiência: ela caracteriza o sentir contemporâneo. Tudo isso, porém, não deve induzir a um estado depressivo ou prejudicialmente negativo. Como diz Quevedo: “Nada me desilude! O mundo me encantou!”. Mario Perniola Os textos reunidos neste livro foram extraídos de La società dei simulacri (Bolonha, Cappelli, 1980) e de Transiti (Bolonha, Cappelli, 1985). Os capítulos “Ícones, visões e simulacros”, “Fenômeno e simulacro” e “O ser-para-a-morte e o simulacro da morte” integram o primeiro volume; os demais, o segundo.

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Capítulo I

O charme venusiano

1 Sedução, amor, charme Romper os laços entre o erotismo e o mal, entre a pulsão sexual e o negativo, entre a dinâmica do prazer e o pecado, que o mito de Don Juan instituiu e mantém há pelo menos três séculos, sem restaurar a ilusória positividade transfiguradora do amor, parece, à primeira vista, uma empresa impossível. Os recentes esforços de reconsiderar a vida erótica através do conceito de sedução,1 ou através do conceito de amor,2 movem-se em direções opostas, mas convergem pelo menos em um ponto: no desencorajar a busca de um caminho que seja independente da tradição libertina ou da tradição romântica. Ambos reagem energicamente à banalização e à perda de significado da sexualidade na sociedade contemporânea, repensando de maneira original e aguda os dois conceitos fundamentais pelos quais o Ocidente deu um sentido à própria vida erótica. Exatamente por isso, permanecem, não obstante as modificações que trazem às noções de sedução e 39

de amor, no âmbito de uma tradição que a sociedade contemporânea parece ter descartado: porque podemos tirar da sedução o seu aspecto subjetivo e submetê-la às regras do jogo, mas ela permanece sempre desafio e negação; pode-se tornar o amor mais anárquico e desordenado, multiplicando ao infinito as suas manifestações, porém, ainda assim, ele tende sempre à transcendência. Ora, é uma característica dos tempos em que vivemos que se esteja precisamente acima do bem e do mal, de apenas suportar um comportamento verdadeiramente imoral ou verdadeiramente moral, de torná-lo o seu contrário e, enfim, de anular tanto um como outro, numa indiferenciação na qual tudo é reversível em tudo, tudo se confundindo com tudo. De resto, na civilização erótica dos últimos dois séculos, sedução e amor são dimensões complementares que qualificam respectivamente o comportamento masculino e feminino mais comum: para cada Don Juan que seduz há uma Dona Ana (ou mais) que o ama. Certamente pode-se trazer a esse paradigma uma modificação muito significativa invertendo os papéis. Pode-se dizer que a sedução é, como estratégia das aparências, antes e sobretudo feminina — o feminino não seria aquilo que se opõe ao masculino, mas aquilo que seduz o masculino. Igualmente, pode-se encontrar a solução da crise que atualmente atravessa a sexualidade masculina em uma desordem amorosa, na qual o erotismo masculino, tendo abandonado o código da virilidade, possa abrir-se para uma intensidade emotiva até agora por ele desconhecida. Tanto a primeira orientação como a segunda tendem para uma superação da distinção entre masculino e feminino, para a transexualidade; contudo ambas, exatamente porque permanecem prisioneiras das noções de sedução e de amor, podem no má40

ximo inverter as atribuições tradicionais, sem conseguir ir além da civilização erótica que criou o mito de Don Juan e que fez a apologia do poder redentor do amor feminino. O centro do problema não é sexual, mas filosófico: o declínio da masculinidade e da feminilidade depende da dissolução dos conceitos de sedução e de amor e da busca de um erotismo independente da negação libertina tanto quanto da transcendência romântica. Essa nova erótica deve, portanto, reger-se por noções independentes de uma prejudicial crítica ou metafísica. Entre estas, melhor que a noção de fascínio, muito ligada à magia sedutora do olhar e aos seus poderes maléficos, chama a atenção a palavra charme, suscetível de um uso muito variado e apta a designar tanto as emoções divinas3 como a atração sexual. Tal polivalência do termo encontra maior determinação se posta em relação com a noção impessoal de venus, assim como foi entendida na religião romana arcaica, antes que designasse a deusa homônima e se confundisse com a Afrodite grega. O interesse que a idéia arcaica de venus desperta hoje deriva não de uma atualidade genérica daquilo que parece mais inatual, mas de razões específicas ligadas à pesquisa histórica e à experiência contemporânea. A pesquisa histórica, de fato, pode mostrar que essa noção não se dissolveu com a helenização da religião romana, mas ficou viva e operante no Ocidente em formas mais ou menos subterrâneas. No final da civilização erótica dominada pela figura de Don Juan e do amor romântico, emerge de novo a idéia de um charme venusiano, livre de embaraçosas mitologias: ele é articulado mediante a análise das quatro palavras fundamentais deduzidas por Robert Schilling no estudo lingüístico do termo venus: veneratio, venia, venerium e venenum.4 41

2 O “venus” como veneração Se a sedução é desafio, transgressão, negação, o charme venusiano implica uma atitude oposta: é acolhimento do dado, é afirmação do presente. Não é, porém, aceitação resignada e forçada, obtorto collo, como parece implícito no verbo colere,* nem o bondoso consentir, como em placare,** mas consenso pleno, disposição da vontade para dizer sim, venerar, entregar-se sem reservas. Raymond Radiguet, que foi um dos maiores intérpretes do charme venusiano no século XX, captou muito bem a essência da veneratio: “Significa depreciar as coisas e desconhecê-las, querê-las diferentes daquilo que são, até mesmo quando se quer que sejam mais belas”.5 A veneratio é um movimento silencioso porque suspende e faz calar os desejos subjetivos, as paixões individuais, as afeições desordenadas que pretendem impor-se rumorosamente contra o dado divino, mundano, humano, que exigem a sua realização sem ver e compreender a realidade, que correm em direção à utopia e à destruição, oscilando entre arrogância e desolação, entre exaltação e depressão. A deusa romana Angerona, deusa da vontade e da oportunidade, parece personificar bem a premissa silenciosa de toda veneração: o seu simulacro com um dedo sobre os lábios ordenava o silêncio.6 Veneratio é dizer sim acima de tudo aos deuses, e, portanto, abandono total de todo prometeísmo, de toda hýbris, de toda presunção diante do divino. O homem deve agradar aos deuses; é necessário que fiquem encantados, seduzidos, fascinados por quem se dirige a eles. A captatio benevolen* Cultuar. (N. do T.) ** Acalmar. (N. do T.)

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tiae* é o ponto de partida dessa erótica. Mas os deuses, para poderem ser venerados, devem calar. Parece que os romanos, no mesmo momento em que introduzem a veneração, tiram a palavra dos deuses, privamnos do mito, da narração de suas empresas. Georges Dumézil demonstrou que os deuses da religião romana são os mesmos do panteão indo-europeu, mas desmitificados, silenciosos. À diferença da religião etrusca, a romana não possui revelação: os livros sibilinos são uma simples compilação dos rituais de expiação do prodígio. A injunção favete linguis,** que convidava os participantes de uma cerimônia a favorecer com o silêncio o seu desenvolvimento, era, assim, dirigida aos próprios deuses. Veneratio é dizer sim ao mundo, e, portanto, abandono de toda atitude de ressentimento, de crítica preconcebida ou de negação sistemática do presente. É impossível ser charmoso se não se estiver em paz com o mundo, com o espírito do próprio tempo, com aquilo que está à volta. Venerar Vênus no mundo quer dizer estar disposto a reconhecer a variedade das suas manifestações e a desejá-las conforme a ocasião: castidade e orgia, matrimônio e prostituição, monogamia e poligamia, homossexualidade e heterossexualidade... não são realidades incompatíveis entre as quais é obrigatório escolher de uma vez por todas, mas situações a ser apreciadas no momento oportuno. Entretanto, a condição da sua apreciação continua sendo o seu silêncio, a sua discrição, a sua desmitificação — é charmoso não só quem está disposto, com a mesma in* Termo da retórica: “conquista”, aquisição do favor, da benevolência (do juiz, do público). (N. do T.) ** “Calai”; literalmente, “sede favoráveis por meio de vossas línguas”, isto é, “sede favoráveis naquilo de ruim que iríeis falar”. (N. do T.)

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diferença, para o contrário, mas quem na ação mais decisiva conserva uma distância que o torna capaz de respeitar-lhe a cadência e o ritmo. Vênus se apresentava à veneração dos romanos sob duas formas aparentemente incompatíveis: como Venere Verticordia* e como Venere Ericina.** O culto da primeira tinha a função de levar o ânimo das jovens e das mulheres à pudicícia; o culto da segunda, de origem siciliana, mas elevada à hierarquia de divindade romana e venerada com a edificação de um templo no capitólio, estava, ao contrário, estritamente ligado ao exercício da prostituição. A atribuição de qualidades tão diferentes à mesma deusa não deriva em absoluto de um comportamento niilista — que não quer comprometer-se e por isso está ora de um lado ora de outro, favorecendo ambos —, e sim de uma profunda intuição que se manifesta na qualidade do culto. Conta Diodoro Sículo que os magistrados romanos, cada vez que iam à Sicília, nunca deixavam de honrar o santuário de Érice com sacrifícios e homenagens, e, “para comprazer a deusa, esqueciam a gravidade do seu compromisso para divertir-se alegremente em companhia de mulheres”.7 Esses magistrados eram, portanto, mais charmosos aos olhos da deusa do que aos olhos das suas sacerdotisas, exatamente porque tinham em relação ao prazer um interesse distanciado, uma participação não participante. Giovan Battista Marini notou com perspicácia essa indistinção venusiana entre castidade e libidinagem quando mostrou, em Adone, “que as obras obscenas/ Vênus não mais que as contrárias aplaude”.8

* A Vênus que abranda os corações. (N. do T.) ** A Vênus que era adorada no monte Érix ou Érice, na Sicília, onde atualmente há a cidade italiana de Érice. (N. do T.)

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Veneratio, enfim, é dizer sim a si mesmo. Naturalmente, não aos próprios desejos, aos próprios sonhos e aos próprios ideais: todas essas coisas estão muito impregnadas de negação e de ausência, são muito abstratas e inconsistentes para poderem ser tomadas de verdade como elementos ou aspectos de si mesmos. A sedução pode ser definida justamente como uma magia da ausência,9 mas o venus é, bem ao contrário, inseparável do presente, da própria situação, daquilo que nos é oferecido. Venerar quer dizer estar em paz consigo mesmo, saber exercer a vontade retroativamente, querer aquilo que aconteceu, transformar — como diz o Zaratustra nietzschiano — cada “foi assim” em um “assim quis que fosse”. A veneração é amor fati,* vontade de querer aquilo que foi e aquilo que é, entretanto não mais para ficar fechado no círculo de um retorno infinito do igual, mas, ao contrário, para poder querer o presente sem estar condicionado pelo seu conteúdo. Portanto, ao contrário do quietismo, que se abandona por completo ao destino, na veneração é a adesão humana que transforma qualquer acontecimento em destino, mesmo porque todo o passado já foi marcado por ele. Contudo, a repetição, a dedicação implícita na veneratio não é uma verdadeira fidelidade. Fazendo calar os deuses, o mundo e a nós mesmos, a veneração é a premissa de um mimetismo que, quanto mais altera, mais se torna formalmente idêntico ao modelo. “Nada se assemelha menos com as coisas em si”, diz Radiguet, “do que aquilo que lhes está muito próximo.”10 Isso é evidente sobretudo nas conseqüências que o ritual romano da evocatio** implicava: por meio dele os ro* Amor ao destino. (N. do T.) ** Convocação. (N. do T.)

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manos convidavam as divindades dos inimigos a deixar as cidades de origem e a vir a Roma; para “evocar” os deuses estrangeiros usava-se justamente a fórmula “veneror veniamque peto”.* Ora, é evidente que a veneração dos deuses estrangeiros comportava a instauração de um rito romano a eles dedicado, o qual era mais deslocamento e desvio, déplacement e détournement, do que respeitoso prosseguimento. Na raiz do sincretismo religioso romano e da sua extraordinária capacidade de assimilar os cultos mais diversos está exatamente uma atitude de veneração, de acolhimento, que não é mera benevolência, mas esconde uma originalíssima estratégia erótica, um pensamento filosófico e político sutil. Seria um grave erro considerar a veneração fraqueza ou mansuetude; ela é, ao contrário, a arma de um pium bellum,** de uma boa guerra conduzida sem ressentimento. A associação de Vênus com Marte, que os romanos provavelmente emprestaram do casal grego Afrodite-Ares, revela assim um significado mais profundo, tipicamente romano. A ligação entre a veneração e a guerra resulta, por outro lado, da devotio,*** o rito com o qual, em situações particularmente difíceis, o comandante, para alcançar a vitória, recitava uma fórmula, um carmen,**** que o consagrava aos deuses Manes e à Terra: oferecendo-se ao além, ele revelava uma relação entre o charme venusiano e a morte, que é de tipo radicalmente diferente daquele que liga, na sedução, Don Juan à estátua do comendador ou, no amor, Tristão ao sofrimento e à catástrofe. Enquanto Don Juan é obrigado a aceitar o convite fatal da estátua11 e o amor de * Venero e peço benevolência. (N. do T.) ** Guerra piedosa, justa. (N. do T.) *** Oferecimento, entrega da própria vida. (N. do T.) **** Canto solene e mágico. (N. do T.)

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Tristão é, por definição, oposto à realidade mundana,12 o comandante romano se consagra espontaneamente à morte para vencer — para ele, estar do lado dos Manes é mais uma vez uma maneira de dizer sim ao presente.

3 O “venus” como “venia” Se a hýbris, a arrogância implícita na sedução, suscita a áte, a punição, se o sofrimento amoroso é resgatado por uma redenção moral, por uma salvação espiritual, a veneratio do charme venusiano pede, ao contrário, a venia, a benevolência, a graça dos deuses, do mundo, do homem. Ora, a venia não é propriamente perdão, porque nenhum pecado foi cometido, nem mesmo indulgência, um dar tempo e lugar ao arrependimento, porque não aconteceu nenhum desvio ou erro: na dimensão venusiana, o homem é inocente. Certamente a sua inocência não é ingênua, espontânea, natural — é uma inocência que se coloca além, não aquém, do bem e do mal, porque a veneratio instaura um novo início. Tito Lívio conta que, depois da devotio do cônsul Décio Mure, os romanos “retomaram o combate como se o sinal fosse dado pela primeira vez”.13 Grande parte do charme que a perspectiva venusiana exerceu sobretudo nos poetas deriva exatamente do caráter de uma repetição que se apresenta como diferente, outra, não idêntica ao que a precede, ao modelo, ao original. Não é banal a explicação que encontra aqui a ligação entre Vênus e a primavera, que é freqüentemente explicada como uma referência genérica ao “encanto e florescimento na natureza”. 14 Mas a volta da primavera é encantadora porque realiza um 47

trânsito, uma passagem do mesmo para o mesmo. O refrão do poema Pervigilium Veneris* põe em evidência exatamente a anulação da experiência, a indiferença diante da experiência erótica passada: “Cras amet qui numquam amavit quique amavit cras amet” (“Amanhã ame quem nunca amou, quem amou ame amanhã”). Venia é a resposta condescendente da divindade que foi objeto de veneração. Na mútua relação veneratiovenia** que se estabelece entre o homem e a divindade, Vênus reúne em si os dois pólos da relação: ela responde sim a quem, inspirado por ela, já disse sim. Portanto, é propiciadora por excelência, sugere o obsequium*** e é obsequens, é favorável e complacente com quem já se move em um horizonte de propiciação e de condescendência. As divindades romanas são dotadas de venia e Vênus é por definição obsequens porque o consentimento e a afirmação estão implícitos na própria noção de numen, de poder divino. Numen vem de nuo, que quer dizer “fazer sim com a cabeça”. O que, naturalmente, não exclue que os deuses possam às vezes estar irados ou ser hostis, mas existe sempre um rito expiatório ou propiciatório que restabelece a pax deorum.**** É essa fé na natureza substancialmente favorável do divino e do presente que permite aos romanos divinizar, para grande escândalo de santo Agostinho e de Hegel, até as forças mais prejudiciais, como a febre, mais secundárias e risíveis, como aquelas indicadas nos Indigita-

* “Vigília de Vênus”, poema anônimo, atribuído na Antiguidade a Virgílio. (N. do T.) ** Veneração, graça. (N. do T.) *** Obséquio, favor. (N. do T.) **** Paz dos deuses, calma entre os deuses. (N. do T.)

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menta,* mais nocivas, como a deusa Lua,** símbolo da desordem e da destruição. Porque todas elas existem de alguma maneira, participam de algum modo da presença. Nessa confiança se alicerça a possibilidade de assimilar as religiões mais diversas em um sincretismo tolerante com os cultos mais estranhos, característica do desenvolvimento da religião romana: a única coisa que é mesmo inassimilável ao panteão romano é o radicalismo moral, exatamente porque nega o presente em nome do dever-ser, do Sollen,*** da utopia. Na venia está implícito o conceito de ajuda. É curioso que o verbo nuo (consinto) se confunda com um nuo arcaico, que quer dizer “aleito” (de onde, justamente, nutrix****). A idéia de benevolência e de vênia aparece assim ligada com a idéia da ajuda prestada à primeira infância, ao estado de extrema necessidade. Por mais que isso possa induzir à tentação de considerar Vênus uma das tantas manifestações do arquétipo mediterrâneo da Grande Mãe, tal identificação deixaria escapar o essencial. Certamente os leitores da Eneida recordam o episódio descrito por Virgílio no livro XII, no qual Venus Genitrix corre em ajuda de seu filho Enéias, que ficou ferido na batalha contra Turno. Da mesma forma, a literatura venusiana é rica em exemplos que entendem a ajuda de Vênus no sentido erótico, de Camões de Os lusíadas (para os quais ela faz surgir do mar uma deliciosa ilha habitada por * Conjuntos de formas religiosas romanas que permitiam invocar os deuses com ritos e orações apropriadas às diversas circunstâncias da vida. (N. do T.) ** Divindade itálica que presidia às expiações e à qual se consagravam as armas tomadas do inimigo. (N. do T.) *** Dever. (N. do T.) **** Ama-de-leite. (N. do T.)

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ninfas muito complacentes que se entregam a eles do modo mais voluptuoso) a Radiguet, para quem ironicamente Vênus “nous livre ses secrets, ses fruits”,* de forma inconsciente, durante o sono.15 Mas a noção de ajuda, implícita em venia, é muito mais ampla do que a implícita na maternidade ou na rendição sexual: ela deve ser entendida em toda a sua latitude material e espiritual. Venus é obsequens não apenas como mãe que aleita ou como as matronas que, multadas pelos seus adultérios, financiaram a edificação de seu primeiro templo em Roma, em 295 a. C. A caraterística da sua venia é de ordem filosófica, e isso implica sobretudo uma disponibilidade mais ampla e geral. Se a veneratio é dizer sim aos deuses, ao mundo, a si próprio, primeiro silenciosamente e, depois, segundo os carmina rituais, a venia é receber um sim dos deuses, do mundo e de si mesmo, primeiro mediante um anuir tácito, um sinal de aprovação, um consenso íntimo, e depois mediante uma palavra que é quase “independente de quem a profere”, que interessa “não pelo que significa, mas porque existe”. É esse o significado que Émile Benveniste atribui à raiz *bha — da qual provêm for (falar) e seus derivados fas,** fama*** e fabula.16 **** Certamente, a idéia de um fas entendido como palavra divina, num panteão mudo como o romano, levanta algumas dificuldades;17 o importante, porém, consiste em pôr em evidência o caráter afirmativo implícito na palavra fas e o seu aspecto ritual, desmitificado. * Entrega-nos seus segredos, seus frutos (N. do T.) ** Aquilo que é justo, segundo a lei dos deuses, ou seja, o que, por revelação, é declarado ser justo. (N. do T.) *** O que se diz, o que se fala; a fama, a reputação. (N. do T.) **** O que se fala como boato ou fabulação. (N. do T.)

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Assim, o termo fama parece ter originariamente, acima de tudo, uma intenção afirmativa. Enfim, fabula, isto é, a fabulação de si mesmo, pode criar uma persona (no sentido romano de máscara), mas não um sujeito: a dúvida sobre sua credibilidade impede desde o início que ao indivíduo falte pietas* e se torne arrogante. Assim como a veneratio, o dar aprovação, se resolve em um mimetismo que dissolve o significado daquilo que aprova, também a venia, o receber aprovação, no fundo anula o conteúdo daquilo que é aprovado.Faz parte, por exemplo, do charme venusiano a facilidade com a qual, na vida contemporânea, somos aceitos como parceiros sexuais. Isso, no entanto, não justifica nenhuma autocomplacência especial e não autoriza nenhuma intimidade. Esses encontros que se realizam sem páthos e sem que ninguém lhes atribua nenhuma importância têm um encanto profundo: são cerimônias apreciáveis exatamente porque vazias. Estão sob o signo de Vênus — a venia que nelas se exercita anula toda vaidade.

4 O “venus” como “venerium” A jogada de maior sorte nos dados (que se obtinha quando os quatro dados mostravam, cada um, um número diferente) era chamada venerium pelos romanos. Isso mostra a relação que existe entre Vênus e o sucesso. Enquanto a sedução parece ligada a um destino infeliz18 e o amor correspondido foi definido argutamente por Beckett como um cur* O sentimento de obrigação e dever a qualquer tipo de pacto; daí, “respeito”, “piedade”. (N. do T.)

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to-circuito19, o charme venusiano é inseparável do bom êxito, da vitória. Por isso, ficar prisioneiro da metáfora fornecida pelo jogo dos dados pode nos desviar do principal: Venus não tem nada a ver com o acaso. O seu protegido se assemelharia antes a um jogador que, “ao executar cem lances, obtém cem vezes o venerium”,20 * mas tal pretensão é, aos olhos dos deuses romanos, a expressão daquela insolência que é exatamente o contrário do espírito venusiano. Por presunção — iactantia,** a chama Tito Lívio21 — pecavam os habitantes de Preneste, os quais achavam que podiam vencer sempre porque eram protegidos pela Fortuna Primigênia que é — como mostrou Angelo Brelich22 — estranha ao espírito das religiões romanas. A sorte, o mero acaso não ocupa em absoluto um lugar de destaque no universo religioso romano, e a idéia de um caráter originário, essencial e absoluto, se opõe à experiência de uma cidade que nasceu e se desenvolveu através de operações simuladoras e de violentas mudanças. Assim, não é por acaso que as fontes revelam vestígios de uma atitude polêmica dos romanos no que diz respeito ao culto prenestino da Fortuna,*** que se manifestava na proibição de consultar o oráculo. A suspeita romana diante do conceito de sorte tem uma base filosófica: depende da oposição entre a fortuna volúvel e insegura e a felicitas**** venusiana, “sólida e sincera”.23 O fato de Sérvio Túlio — filho de uma escrava e protetor de escravos, concebido e tor* O lance de Vênus. (N. do T.) ** Jactância, presunção. (N. do T.) *** Fortuna: sorte, acaso. (N. do T.) **** Felicidade, abrangendo a idéia de “prosperidade”, “opulência” e do que é favorável. (N. do T.)

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nado rei de modo fortunoso — ter dedicado, segundo a tradição, um templo à Fortuna coincide perfeitamente com tal colocação. A Fortuna é em Roma — como observa Brelich — a deusa dos escravos e daqueles que vivem de expedientes (“sine arte aliqua”), daqueles a quem não resta senão esperar, em um lance da sorte. A deusa Esperança está de fato associada à Fortuna no santuário prenestino. O sucesso do protegido de Vênus não provém de fatores aleatórios; por isso, ele não está sob o signo da esperança, que aguarda por acontecimentos que podem ou não ocorrer. Nem deve ser manchado pela arrogância; por isso não depende da presunção de que determinados eventos favoráveis aconteçam necessariamente. A felicitas está em considerar favorável qualquer coisa que aconteça. Essa idéia, que está implícita na noção de charme venusiano, parece ter sido cultivada por Sila, a quem se deve o culto à Venus Felix: Sila demonstrava dar mais importância à própria imagem de homem felix que ao efetivo poder político e, em qualquer caso, fazia derivar o segundo da primeira. Segundo Plutarco, ele conservou até o fim essa opinião de si mesmo, embora fosse afetado por uma horrenda úlcera no intestino que lhe consumia as carnes, transformando-as em pasto para os piolhos, e o sujava com um fluxo de podridão irrefreável. Não obstante essa enfermidade que o obrigava a imergir na água muitas vezes por dia, sem obter nenhum resultado, não deixou nunca de considerar-se felix e, dois dias antes de morrer, terminou as suas memórias afirmando que “teria morrido no auge da felicidade depois de uma vida gloriosa”24 . Pompeu também se pôs sob a proteção de uma Venus Victrix, associando o conceito de felicitas ao de victoria e inaugurando cultos e templos a essa nova deusa. Mas tal escolha 53

não lhe foi favorável, porque se chocou com César, que punha Vênus em pessoa entre os seus antepassados distantes! Conta Apiano que, na noite anterior à batalha de Farsalo, Pompeu sonhou estar enfeitando o templo de Vênus sob os aplausos do povo; acordando de repente, percebeu que o sonho não lhe era favorável e, tomado de um profundo desconforto, foi ao encontro da derrota, substituindo o grito de batalha “Venus Victrix” pelo de “Hercules Invictus”.25 O episódio mostra que o charme venusiano não é redutível à esperança de uma vitória militar — ele transcende o bom ou mau resultado de um único conflito. Não é o sucesso em si mesmo que torna charmoso, mas é o charme que predispõe ao sucesso. Além disso, na ótica venusiana o próprio conceito de sucesso perde suas características objetivas e torna-se um atributo do encantamento. Os romanos sabiam bem que existem vitórias que são piores que uma derrota e, vice-versa, derrotas mais providenciais que uma vitória. A decisão de César de erguer um templo não à Venus Victrix,* que o havia ajudado na batalha de Farsalo, mas à Venus Genitrix** é esclarecedora: ele mostra considerar a vitória apenas uma conseqüência da proteção venusiana.26

5 O “venus” como veneno A palavra venenum, assim como o termo grego phármakon*** que a ela corresponde, apresenta uma duplicidade * Vênus vencedora. (N. do T.) ** Vênus geradora, Vênus mãe. (N. do T.) *** Droga (isto é, que serve para matar, “veneno”, e para curar, “remédio”). (N. do T.)

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de significado, podendo ser usada quer no bom sentido, quer no mau; por isso, originariamente parece indicar a potência do charme venusiano na multiplicidade das suas manifestações. Ainda assim tal afinidade com o termo grego não esclarece por completo a sua dimensão conceitual, que é essencialmente latina e se determina na oposição ao horizonte aberto pelo substantivo pharmakós, afim de phármakon. Chamava-se pharmakós, na Grécia, o bode expiatório sacrificado (morto ou expulso) para purificar a cidade dos males que a afligiam. Com tal objetivo, um certo número de indivíduos degradados e inúteis era regularmente mantido em Atenas, por conta do Estado.27 René Girard vê em tal costume uma manifestação do sacrifício, cuja essência, na sua opinião, consiste exatamente no exercício de uma violência ritualizada que purifica e protege a comunidade do desencadeamento de uma violência ilimitada e total; na raiz dessa teoria está o pressuposto de que só a repetição ritual da violência, ao provocar um efeito catártico e benéfico, afasta e preserva a sociedade da barbárie. O sacrifício humano ou animal (enfim, o que implica derramamento de sangue) é o único phármakon-remédio ao phármakon-veneno da violência generalizada: “A não-violência aparece como um dom gratuito da violência”.28 Como foi mostrado,29 essa perspectiva permanece atuante no interior da filosofia grega, em particular na platônica. Embora na história religiosa de Roma também haja algum caso esporádico de sacrifício humano e de expulsão ritual da cidade, a palavra venenum encaminha a pesquisa para uma direção totalmente diferente. “Veteres vinum venenum vocabant”,* diz Isidoro de Sevilha; tal testemunho, unido ao * Ao vinho os antigos chamavam de “veneno”. (N. do T.)

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estudo das festas romanas das Vinalia,* destaca não só o caráter sagrado do vinho, entendido como bebida venusiana por excelência,30 mas, do mesmo modo, o significado da substituição do sangue pelo vinho nos sacrifícios. A sacralização do vinho assume na religião de Vênus uma função totalmente diferente da que ela desempenha na religião de Dioniso — na tradição dionisíaca mais antiga não há nada que faça referência ao vinho,31 e tal relação só é estabelecida posteriormente. A embriaguez dionisíaca é a que provém da fúria homicida do sparagmós, da dilaceração da vítima, do consumo das suas carnes e do seu sangue.32 O sacrifício cruento do dionisismo é o phármakon que restaura a paz e a ordem social. Na religião de Vênus, ao contrário, o vinum-venenum, significativamente considerado “o sangue da terra”, toma logo o lugar do sangue humano e implica uma recusa da violência, mesmo no seu uso profilático e terapêutico: o fato de que a pax deorum seja restabelecida mediante a libação do conteúdo dos vasos da vindima em lugar de sacrifícios cruentos é um dado de enorme relevância antropológica. O charme venusiano se coloca assim no extremo oposto do da embriaguez orgíaca. Enquanto a atração exercida por Dioniso deriva da imitação ritual e controlada de uma violência originária e criadora, a exercitada por Venus, ao contrário, está ligada a uma espécie de deslocamento, de déplacement, de trânsito — ao oferecer vinho em vez de sangue, ela instaura um mimetismo astuto que exalta a graça dos détournements. Venenum quer dizer também matéria corante, tintura, cor e, por extensão, cosmético, maquiagem. Assim, o culto de Vênus interpreta uma * Vinálias, festas celebradas pelos romanos duas vezes por ano, em 23 de abril (Vinálias de Primavera) e em 19 de agosto (Vinálias de Verão). (N. do T.)

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orientação profundamente enraizada no espírito romano, atribuída pela tradição ao segundo rei de Roma, Numa Pompílio: a Júpiter, que lhe pedia sacrifícios humanos, Numa não opõe uma recusa, mas desloca o significado das palavras, oferecendo-lhe cabeças de cebola em vez de cabeças humanas, cabelos e sardinhas em vez de homens.33 É bem significativo que Júpiter tenha apreciado muito a tradução de Numa, diferentemente do Zeus grego, que — como conta Hesíodo — não perdoa Prometeu por ter-lhe dado em sacrifício ossos cobertos de gordura em vez de carne. Nessa perspectiva deve também ser interpretado o caso daquele Papírio que, em uma época em que era costume prometer templos inteiros como voto aos deuses, prometeu a Júpiter um “pocillum mulsi”, um copinho de vinho com mel, e obteve uma total satisfação dos seus pedidos!34 O charme venusiano está certamente ligado com a aparência, embora não necessariamente com a “boa” aparência: a existência de um culto dedicado à Venus Calva, seja qual for a sua origem, é mais um testemunho de uma disposição religiosa orientada para um déplacement inocente que não suscita a ira dos deuses, mas o seu sorriso. A desmitificação é também não-dramatização — a religião romana é alheia a exageros e fanatismos, repele as pretensões de absoluto implícitas nas experiências delirantes do dionisismo. 35 A religião de Dioniso conhece a alegria estática, porém é totalmente destituída do humorismo benévolo e astuto, prosaico e arguto, que é um aspecto essencial do charme venusiano: disso foram intérpretes os poetas, desde o incomparável Giorgio Baffo (que Apollinaire considera o maior poeta erótico de todos os tempos) até Radiguet. A Vênus de Baffo, “num delicioso/ jardim com seu amante,/ deitada na grama”, solicita sexualmente 57

o companheiro com estas palavras: “Vamos lá, pois, meu querido,/ de teu caralho bendito/ dá-me o suco preferido,/ que muito mais que o moscatel/ prefiro do teu pinto o mel”. E conclui: “Que vá para o diabo/ quem não trepar,/ que marmota irá virar./ Em vez disso, louvemos, celebremos,/ coroemos/ o primeiro que foi enfiar”.36 Essa Vênus pertence à mesma intuição erótica da qual nasce a Vênus Calva e o vinumvenenum. A desmitificação que troca nos sacrifícios o sangue pelo vinho e as cabeças humanas pelas cabeças de cebola não é, no entanto, mera banalização ou trivialidade: o desencanto não tira o encanto, a exteriorização conserva uma pureza própria. O charme venusiano não nasce da dialética de ocultação e desvelamento; ele pressupõe uma realidade já toda descoberta e disponível. O encanto não depende daquilo que se mostra ou que se esconde, e sim da transformação à qual é submetida a realidade mais “crua” ou “obscena”. Se há ainda algum segredo a revelar, ele está no âmbito da sedução — o charme começa quando não há mais segredos. Por isso, existiram os mistérios de Dioniso, mas Vênus nunca teve mistérios: “Dans son rôle d’epouvantail”, diz Radiguet, “Venus manque d’autorité”!* Tudo isso leva a crer que na origem do charme venusiano (e talvez de toda a religião romana) subsista uma noção de pureza completamente diferente daquela implícita na religião grega. Na Grécia, kathárma,** além de sacrifício purificatório, queria dizer pharmakós, isto é, bode expiatório, o que remete — segundo Girard — a uma concepção da purificação como purgação, como evacuação da cidade de tudo o que for considerado danoso, mediante o exercício de uma * Em seu papel de espantalho, falta autoridade a Vênus. (N. do T.) ** Nos rituais de purificação, ao objeto rejeitado, a vítima da expiação. (N. do T.)

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violência análoga àquela da qual se quer libertar a sociedade; o phármakon pressupõe a identidade entre o mal e o remédio.37 Em Roma, ao contrário, a substituição pelo vinumvenenum do sangue parece implicar um conceito de pureza como operação simuladora, deslocamento, trânsito, alheio às paixões e às exclusões traumáticas. O venenum poderia também ter sido apenas água tingida de vermelho ou vinho de mirto, como o que usavam as matronas para lavar-se nas festas Veneralia de 1o de abril dedicadas à Venus Verticordia! Castus é definido como aquele que se atém aos ritos, que segue escrupulosamente as cerimônias; o rito sem mito romano abandona os conteúdos fixos, que têm uma identidade precisa. A purificação parece tornar-se exatamente o contrário daquilo que era na Grécia: não a localização e a expulsão de alguma coisa que se considera impura, mas o esvaziamento ritual de todos os aspectos da vida. Todo ano, em 1o de abril, castae* eram tanto as matronas romanas que celebravam o rito de Vênus como as prostitutas que honravam a Fortuna Viril! Não se pode concluir o assunto venenum sem fazer referência ao significado de bebida mortal que prevaleceu na história da palavra. Mas mesmo aqui é difícil não ter a impressão de que os romanos visavam a um deslocamento da própria morte. Um culto antiqüíssimo era dedicado em Roma à Venus Libitina, deusa dos ritos fúnebres, cuja instituição é atribuída por Plutarco a Numa Pompílio. A propósito disso, ele observa que os romanos teriam confiado argutamente a uma única deusa o controle do nascimento e da morte dos homens.38 Um tal culto não parece realmente inspirado em uma concepção trágica da existência, como a grega, mas quando * Mulheres castas, puras. (N. do T.)

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muito, na aspiração a fazer coincidir o aspecto cultural da morte com o do nascimento. Nada permanece, assim, estranho ao encanto venusiano dos ritos e das cerimônias. A própria origem etimológica de charme, que vem de carmen, remete a essa perspectiva. Carmen tem o sentido geral de fórmula cadenciada, dotada de caracteres formais regulados de modo artificioso e mantidos até mesmo independentemente do seu significado original. Chamava-se carmen tanto à forma religiosa como ao texto da lei. No ritualismo do carmen a religião romana talvez encontre a própria unidade;39 no charme do cotidiano a crise contemporânea talvez encontre sua própria solução.

Notas 1. J. Baudrillard, Della seduzione. Bolonha, Cappelli, 1980. 2. P. Bruckner e A. Finkielkraut, Il nuovo disordine amoroso., Milão, Rizzoli, 1979. 3. A. Vergote, Charmes divins et déguisements diaboliques, in M. Olender e J. Sojcher (org.), La séduction. Paris, Aubier, 1980. 4. R. Schilling, La religion romaine de Vénus depuis les origines jusqu’au temps de Auguste. Paris, De Boccard, 1954. Cf. também os artigos dedicados a Vênus reunidos em R. Schilling, Rites, cultes, dieux de Rome. Paris, Kliencksieck, 1979, bem como G. Dumézil, Idées romaines. Paris, Gallimard, 1969, que acrescenta o termo venustas aos indicados por Schilling. 5. R. Radiguet, Le gote in fiamme. Parma, Guanda, 1960. 6. G. Dumézil, Déesses latines et mythes védiques. Paris, Gallimard, 1956. 7. Diodoro Sículo, Biblioteca storica, IV, 83, 6. 8. G. B Marini, L’Adone, canto XX, estância, 92. 9. M. Olender, Une magie de l’absénce, in M. Olender e J. Sojcher (org.). La séduction, op. cit. 10. R. Radiguet, Il diavolo in corpo. Milão, Bompiani, 1964, p. 180. 11. Permito-me remeter ao meu La società dei simulacri, Bolonha, Cappelli, 1980, pp. 180-3. Uma interpretação da relação entre Don Juan e a estátua, muito próxima da minha, está em J.-N. Vuarnert, Le séducteur malgré lui, in M. Olender e J. Sojcher (org.), La séduction, op. cit., p. 72. A importância da ligação entre Don Juan e a morte, que geralmente escapa aos intérpretes, está sublinhada por J. Rousset, Il mito di don Giovanni, Parma, Pratiche, 1980.

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12. D. De Rougemont, L’amour et l’Occident, Paris, U.G.E., 1963, p. 27. 13. Tito Lívio, VIII, 9, 13. Sobre esse assunto, cf. H. Fugier, Recherches sur l’expression du sacré dans la langue latine. Paris, Les Belles Lettres, 1963, e Temps et sacré dans le vocabulaire religieux des Romains, in “Archivio di filosofia”, Roma, Mito e Fede, 1966. 14. G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer. Munique, Beck, 1912, p. 289. 15. R. Radiguet, Le gote in fiamme, op. cit. 16. E. Benveniste, Il vocabolario delle istituzioni indoeuropee. Turim, Einaudi, 1976, vol. II, p. 384 e seguintes. 17. P. Cipriani, Fas e nefas. Roma, Istituto di Glottologia dell’Università di Roma, 1978, p. 19. 18. É um tema recorrente no livro de J. Baudrillard, citado acima. Por exemplo: “A sedução é um destino: para que ele se cumpra é necessário que toda a liberdade esteja lá, mas esteja também por inteiro, como se estivesse voltada sonambulicamente para a própria ruína”. 19. Um eco dessa definição se encontra na frase de P. Bruckner e A. Finkielkraut, no livro citado acima: “Curtos-circuitos eróticos emergem e perturbam por dentro as classificações adquiridas” (p. 286). 20. M. T. Cicerone, De divinatione, I, 23. 21. Tito Lívio, VI, 28. 22. A. Brelich, Tre variazioni sul tema delle origini. Roma, 1955. 23. Valerio Massimo, VII, 1. 24. Plutarco, Vita di Silla, pp. 36-7. 25. Appiano, De bellis civibilus, II, 69. 26. R. Schilling, La religion romaine de Vénus..., op. cit., p. 315. 27. E. Harrison, Prolegomena to the Study of Greek Religion. Cambridge, 1903, p. 95. 28. E. Girard, La violence et le sacré. Paris, Grasset, 1972, p. 358. 29. J. Derrida, La pharmacie de Platon, in La dissémination. Paris, Seuil, 1972. 30. R. Schilling, op. cit., p. 133 e seguintes. 31. H. Jeanmaire, Dionysos. Paris, Payot, 1951, p. 23. 32. R. Girardi, op. cit., pp. 188-9. 33. Ovídio, Fasti, III, 345, e Plutarco, Vita di Numa, 15. 34. Tito Lívio, X, 42, 7. 35. A. Bruhl, Liber pater. Origine et expansion du culte dionysiaque à Rome et dans le monde romain. Paris, De Boccard, 1953, parte II, cap. 3. 36. G. Baffo, Venere e Adone, in Poesie, s. l. p., s. d. 37. R. Girard, op. cit., p. 408. 38. Plutarco, Vita di Numa, 12. 39. Um tal sucesso contrasta claramente com a tese na qual se baseia o livro de Schilling (op.cit.). Para ele, o venus implica uma dedicação total à divindade que está no pólo oposto da fides, isto é, na contratação paritária entre o homem e o sobrenatural. Na sua opinião o primeiro se exprime na atitude religiosa de Rômulo, a segunda, na de Numa Pompílio; o primeiro é de caráter emocional e mágico-místico, a segunda, de caráter racional e jurídico; o primeiro tem a dimensão da interioridade e da súplica, a segunda, da exterioridade e do formalismo. Mas o caráter peculiar da religião romana não consiste exatamente na ultrapassagem dessas oposições?

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Capítulo II

A erótica do trânsito

1 O “eros” como intermediário Parece ter sido Platão o primeiro a intuir que o eros seja algo de intermédio entre os opostos: em O Banquete, de fato, Diotima,* uma mulher de Mantinéia, versada em coisas eróticas, define o eros como algo entre o mortal e o imortal, um intermediário entre o humano e o divino, um grande demônio que garante as relações entre os homens e os deuses. Essa definição de eros, entretanto, ficou, seja no tempo de Platão, seja na reflexão neoplatônica que veio a seguir, como algo um tanto marginal e substancialmente não pensado, porque prevaleceu o conceito de amor como conciliação, união, harmonia, o que O Banquete platônico a maioria dos outros interlocutores defende. Se a conciliação deve ser pensada como consonância entre elemen-

* Diotima, sacerdotisa lendária de Martinéia e mestra de Sócrates. Platão, em sua obra O Banquete (201, d), a faz discorrer sobre a sua metafísica do amor (O. C. D., p. 355). (N. do T.)

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tos semelhantes ou elementos dessemelhantes, ou como uma composição harmoniosa do idêntico consigo mesmo, esse é um problema que pertence precisamente à história da noção de amor, a qual tem pouco a ver com a idéia do eros como intermediário, como metaxú; não por acaso, tanto para a maior parte dos outros interlocutores de O Banquete platônico, como para Plutarco, o amor não é um demônio, mas um deus. De resto, que a noção de eros, como intermediário, seja impensável no quadro do pensamento platônico, e mais amplamente no âmbito da metafísica ocidental, resulta evidente das sucessivas significações que a própria Diotima lhe atribui: o fato de o eros ser algo entre o belo e o feio, entre o bom e o mau, entre a sabedoria e a ignorância, tem uma função precisa — a de “preencher o intervalo de maneira que o universo resulte intrinsecamente relacionado”.1 Dessa maneira, a sua ação de intermediário não consegue manter-se, mas está correlacionada com uma unidade ao mesmo tempo mais sintética e articulada do que a garantida pelas outras concepções. Por isso, o discurso de Diotima conclui com a descrição do movimento ascensional do amor, que, partindo da beleza dos corpos, vai pouco a pouco cada vez mais para o alto, em direção às belas instituições, às belas ciências, chegando à contemplação do belo em si. A dimensão do trânsito, implícita na noção de intermediário, dissolve-se assim em favor daquela tendência a transcender, a superar, a ir além, que constitui um dos aspectos essenciais da metafísica ocidental. A reflexão de Georges Bataille sobre o erotismo parece, à primeira vista, o oposto da teoria platônica do amor. De fato, ela é caracterizada por um movimento descendente em direção às formas mais baixas e carnais da experiência sexual, em direção à prostituição e à orgia, à transgressão 63

das regras e à profanação da beleza, à abertura de fendas impreenchíveis. Entretanto, a bem da verdade, o erotismo de Bataille é antes uma retomada às avessas do eros platônico do que uma dimensão radicalmente alternativa. Do modelo platônico ela reproduz até a atenção à dimensão intermédia do erotismo. Para Bataille, o erotismo seria uma função intermediária entre a vida e a morte, entre a paz e a violência: a regra — que impõe ordem e disciplina à vida humana, separandoa da animalidade — e a sua transgressão nascem e mantêmse juntas. A transgressão do tabu, que está essencialmente ligada ao erotismo, não é a sua abolição, mas o seu complemento: o tabu existe para ser violado.2 A transgressão erótica parece, por isso, algo de diferente e irredutível, tanto à obediência da tradição como à inovação revolucionária; ela é uma passagem do momento profano do trabalho e da fadiga cotidiana ao momento sagrado do sacrifício e da festa. A sociedade é composta simultaneamente por ambos os momentos: a suspensão do tabu na experiência erótica configura-se portanto como um trânsito do mesmo para o mesmo. Entretanto, como já aparece em Platão, essa concepção do eros como intermediário não consegue manter-se. Na obra de Bataille prevalece ora um impulso em direção à unidade, à totalidade, à fusão — que se manifesta na identificação entre o erotismo e a tendência para a perda da própria individualidade —, ora um impulso oposto, em direção à profanação, ao pecado, ao mal, ao qual são reconhecidos uma dignidade e um valor autônomos. Bataille também, em última análise, não escapa à metafísica, limitando-se a inverter a direção do seu movimento. O eros não conduz mais à vida eterna das idéias, mas à experiência da morte; não falta, contudo, a sua tendência a 64

superar, a transcender, a ir além; esta se exprime em Bataille na dépense, no excesso, no prosseguimento de uma experiência-limite. Como em Platão, a noção de um intermediário erótico assoma para ser logo rejeitada; o erotismo de Bataille é ora o amor, a santidade, a ascese, ora a libertinagem, o deboche, a obscenidade, porém não consegue permanecer entre esses termos opostos, sem identificar-se nem com uns nem com outros.

2 O “carmen”* erótico Na tradição da metafísica ocidental, de Platão a Bataille, faltam condições que possam garantir a possibilidade de pensar no eros como intermediário, como metaxú, como Zwischen, como termo que fica no meio, mantendo os opostos como tais. Essas condições parecem ser fundamentalmente duas: uma estrutura sociolingüística que garanta a circulação do eros e uma prática erótica regida por critérios de discernimento independentes de avaliações ético-metafísicas. Ambas as condições estão presentes no mundo romano do século I a. C. Do seu encontro nasce a Ars amatoria de Ovídio, que representa, na cultura ocidental, uma alternativa radical à moral metafísica. Em primeiro lugar, é impossível pensar o trânsito erótico enquanto se considerar o eros a experiência de um sujeito que tende a um objetivo, seja este a contemplação da beleza em si, como no discurso de Diotima, seja este a profanação * O uso do termo na obra de Virgílio é freqüente e é identificado em muitos aspectos da sua extensão semântica. Na maioria das vezes é entendido como “composição em versos” ou, em sentido mais restrito, como “inspiração poética” ou “composição musical”.

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da beleza, como em Bataille. Ora, é verdade que a “experiência interior”, que Bataille identifica com o erotismo, não é um caminho de afirmação de si mesmo, mas, ao contrário, de perda de si, de aniquilamento, de desapropriação; entretanto, o caráter negativo de tal experiência inverte apenas a direção do percurso, mas não é suficiente para criar uma dimensão estruturadora, impositiva, conectiva, na qual o eros possa circular. Essa dimensão é a linguagem da poesia, do carmen erótico. Certamente O Banquete platônico e L’expérience interieure de Bataille também são obras de linguagem, todavia elas se baseiam no pressuposto de que o essencial não seja lingüístico, de que ele possa prescindir da linguagem porque, como diz Platão, o pensar é “um discurso que acontece no interior da alma, feito pela alma consigo mesma, sem voz”,3 ou porque, como diz Bataille, o extremo excede, vai além, ultrapassa a linguagem, pois “ele nunca é literatura”, ele permanece diferente da poesia, mesmo quando a tem por objeto.4 O eros não é independente e separado da linguagem erótica, não é uma experiência da alma, um sentimento, um desejo, uma aspiração ou uma faculdade que exista anteriormente à linguagem. O seu caráter intermediário não consiste em ligar a experiência subjetiva com a palavra, em dar corpo lingüístico a uma alma apaixonada, mas sim em relacionar termos que já são dados, presentes, efetivos. Por isso, o erotismo é fundamentalmente diferente, seja do amor, seja da violência, e não pode identificar-se nem com um, nem com a outra: o amor pode muito bem prescindir da existência de uma situação sexual e a violência será tanto mais ela própria quanto mais for muda. O erotismo, ao contrário, pressupõe parceiros sexuais — que, de alguma maneira, ainda que secreta e implícita, já se dão e que, de alguma maneira, ainda que se66

creta e implícita, ainda se negam —, além da existência de um universo lingüístico amplo e articulado que cobre, ainda que potencialmente, todos os principais topoi eróticos. Esses pressupostos encontram-se na elegia erótica romana, que, como mostrou admiravelmente Paul Veyne,5 surge do encontro entre uma rede social, formada por cavaleiros destituídos de ambições políticas e por libertas de costumes livres, e uma rede mitológica, fornecida pela mitologia grega e pela poesia helenística. A poesia de Propércio, de Catulo, de Tibulo estabelece a relação do humano com o divino: de um lado, um mundo (ou melhor, um demi-monde) do qual fazem parte mulheres interessadas no dinheiro e no poder, mas que não são insensíveis ao charme do carmen, e homens que se dizem seus escravos, mas que se preocupam acima de tudo em assumir e manter o papel público de poeta; de outro, um céu (ou talvez um meiocéu) em cuja existência ninguém, na verdade, acredita, mas que, não obstante, constitui objeto de um saber sublime universalmente respeitado. Entre esse mundo e esse céu, a poesia erótica funciona como intermediária, mantendo ao mesmo tempo a distância. Comparar manteúdas como as heroínas dos nossos poetas, as Cíntias, as Délias, as Corinas, às grandes deusas da mitologia grega significa estabelecer a relação entre homens e deuses e, ao mesmo tempo, conservar a diferença. Ora, é verdade que os deuses se comportam sexualmente e falam na poesia erótica romana tal como a mauvaise societé dos poetas e das libertas, no entanto é exatamente essa afinidade que revela a natureza do trânsito erótico — eles fazem e dizem as mesmas coisas que os homens, mas essas coisas não são iguais. Elas parecem iguais, contudo na realidade estão distantes e são incomparáveis, essencialmente diferentes. A essência do erotismo consiste logo na manutenção da linha mediana, do espaço intermediário, do Zwischen. 67

Seria impossível manter esse Zwischen se a linguagem, a poesia, o carmen, fosse alguma coisa de não essencial. O poeta, diz Heidegger, “mantém-se no Zwischen, entre os deuses e os homens. Mas é em primeiro lugar e unicamente nesse Zwischen que se decide quem é o homem e onde ele estabeleceu o seu ser-aí (Dasein)”.6 O confronto entre os homens e os deuses não implica, em absoluto, igualdade. Ao contrário, o poeta mantém a desigualdade (das Ungleiche). “Ser este Desigual”, continua Heidegger, “voltado para o céu e para a terra, eis o que exige a essência que lhe foi atribuída; zelar por ela é o seu dever [...]. O acordo (Ausgleich) [...] não consiste em igualar pela ausência de diferenças, mas sim em deixar reinar os diferentes na sua diferença, sem desequilíbrios.”7 Se o essencial fosse o sujeito e não o carmen, o êxito não seria erótico, mas ridículo ou blasfemo. O erotismo pressupõe que não seja a subjetividade do poeta a falar, que não seja a subjetividade individual da sua amante a interlocutora da sua poesia, mas que ambos estejam envolvidos numa linguagem que implique a comparação dos homens com os deuses e comporte toda uma série de gestos e de comportamentos rituais, convencionais, prefixados, típicos, amaneirados.

3 A erótica do uso A segunda condição fundamental da possibilidade de pensar no eros como intermediário consiste na elaboração de uma “moral do meio”, que trate de um âmbito intermédio de ações e comportamentos que prescindam tanto do bem como do mal. Ora, nem Platão, que é por excelência o fundador da moral metafísica na qual o verdadeiro e o bem estão estritamente uni68

dos, nem Bataille, que, pela sua atenção ao lado negativo dessa tradição metafísica, representa a inversão, podem fornecer sólidos pontos teóricos de referência a uma erótica que seja por definição irredutível à oposição entre o bem e o mal. Enquanto o eros for considerado um intermediário que ora pende para um lado, ora para o outro, fica-se no âmbito de uma dialética que oscila entre o termo positivo e o termo negativo, que pode inclusive identificá-los, mas que não chega nunca a pensar o entremeio, o Zwischen, na sua essencialidade. Foram os estóicos que teorizaram, mediante a sua definição das “coisas indiferentes” (adiáfora), a existência de um campo intermédio, que é, ainda assim, completamente autônomo e independente em relação aos extremos; dessa forma, o intermédio perde a sua dependência dos opostos e, como observa criticamente Plutarco,8 “passa do centro para a extremidade”, constituindo um âmbito essencialmente diferente do aberto pelos pólos extremos. Ao dualismo dialético da tradição metafísica segue-se assim o monismo topológico do pensamento estóico. Entre as “coisas indiferentes”, não vigora, entretanto, uma igualdade que torna impossível a escolha; ao contrário, exercita-se uma discriminação que procede caso por caso, examinando as situações concretas a fim de determinar o que deve ser preferido e o que deve ser repudiado. Essa moral antimetafísica é um saber-fazer, uma prática de moderação, um comportamento que implica uma contínua adequação às circunstâncias, às ocasiões, ao dado, um balanceamento do mais e do menos, um discernimento sempre alerta e atento, um uso sábio de si, do prazer, das coisas. Michel Foucault mostrou 9 que as origens dessa erótica do uso são identificáveis já no pensamento grego da idade clássica, o qual elaborou uma série de prescrições dietéticas, de 69

conselhos e de avaliações, orientada para a contenção das paixões. O aspecto mais importante da sua pesquisa sobre a sexualidade antiga consiste em ter evidenciado o significado essencialmente erótico da pederastia grega. Esta, de fato, não pode ser reduzida nem ao amor nem à violência: entre erastés, o amante, e erómenos, o amado, se instaura uma relação problemática, ao mesmo tempo amigável e conflitiva. Tal problemática depende não só da diferença de idade, porque o amante pertence a uma geração diferente da do amado, que apenas entrou na adolescência, não só da dimensão pedagógica, da paideía, da iniciação na vida adulta, que confere ao amante um papel análogo ao do pai, do mestre, do professor, mas também e sobretudo do fato paradoxal de que aquele que está destinado a desempenhar, quando adulto, um papel masculino e sexualmente ativo seja introduzido na sexualidade como objeto de um prazer passivo, do qual é até duvidoso que participe ou que possa participar. Todos esses elementos criam uma situação que é erótica no sentido mais profundo da palavra, isto é, inauguram uma relação intermediária em comparação aos pólos opostos da amizade e da inimizade, do acordo e do desacordo, da união e da luta. Aliás, segundo Foucault, a relação pederástica é o único tipo de relação sexual que conquistou na Grécia antiga essa densidade erótica: o menino não devia comportar-se passivamente, tornar-se o parceiro condescendente da volúpia do outro, ceder de modo incondicional aos seus caprichos, mas, embora forçado a um papel sexual objetivamente passivo, aprender a fazer-lhe frente, a manter a vigilância, a recusar no exato momento em que se entregava. Por mais que o período helênico marque uma profunda transformação da relação pederástica, que perde a sua dimensão erótica intermediária para adequar-se ao modelo da 70

relação amorosa heterossexual, nele a erótica do uso transforma-se em uma verdadeira arte de viver, na qual a noção estóica de conveniente toma o lugar da ação moral perfeita, embasada metafisicamente. Das numerosas obras dedicadas pelos estóicos à erótica, nada restou; o essencial, porém, não é tanto a opinião deles sobre este ou aquele assunto referente à vida sexual, mas a possibilidade de generalizar — muito além do caso historicamente específico do amor pederástico grego — um comportamento que é irredutível tanto à conciliação como à oposição, orientado para a transformação do presente, do dado, da ocasião, em circunstância oportuna, mediante o exercício de um discernimento mais do que nunca atento às situações concretas e alheio às paixões. De resto, a atenção ao que é intermédio, à linha mediana, ao intervalo, possui no pensamento estóico raízes muito profundas que penetram na sua concepção de mundo e de tempo. O presente é para eles um presente vasto, que ocupa um intervalo (diástema), uma extensão na qual se realiza uma passagem, um trânsito do mesmo para o mesmo.10 A vida humana se desenvolve num intervalo: o essencial não é o ponto de chegada, o objetivo, o fim a ser alcançado, e sim a maneira como o homem se movimenta, no entremeio. Como dirá Marco Aurélio: “Tudo aquilo que esperas alcançar depois de um longo período, podes obtê-lo logo, se não recusares a ti mesmo”.11 A erótica do uso está exatamente nessa oíkesis, nesse permanecer no intervalo, nessa apropriação do dado, nesse demorar-se no Zwischen.

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4 A arte amatória A Ars amatoria de Ovídio é o ponto de confluência da elegia erótica romana com a erótica do uso de ascendência estóica, a obra onde a alternativa paradoxal na qual essas duas experiências tinham encerrado o erotismo antigo encontra solução: ou servir, mesmo que com distanciamento humorístico e com ironia — movimentos passionais que a filosofia e a opinião corrente da época julgavam inconvenientes —, ou fechar-se numa disciplina que, nascida da exigência de um uso moderado dos prazeres, acabava por levar à mais rigorosa austeridade e à negação do eros. Para Ovídio, a paixão deve ser vencida mediante a sua aceitação e apropriação, e não eludida humoristicamente, nem transcendida e sublimada na castidade. O intuito de Ovídio ao propor-se como praeceptor Amoris12 implica, portanto, uma passagem, um trânsito do amor incontrolado e selvagem (ferus) ao amor sustentado com arte terna (placida arte). Assim, com Ovídio o amor torna-se objeto de uma arte, de uma técnica, que o transforma profundamente, respeitando, entretanto, a sua essência: o amor não deve ser considerado mero instrumento de produção literária (como às vezes acontecia com o eros da tradição elegíaca), nem um instrumento de educação política (como às vezes acontecia com o eros pederástico grego). A passagem garantida pela arte é do mesmo para o mesmo — o leitor do poema, ao tornar-se um conhecedor, colherá novos amores. O sentimento e o desejo subjetivo não são de modo algum suficientes à plenitude do amor; ao contrário, são às vezes contraproducentes. A ars amatoria torna o amor intermediário de si mesmo, porque o libera da paixão. O amor descobre a própria essência através de um deslocamento que o torna diferente em re72

lação a si mesmo, e no entanto, indiscernível em relação a si mesmo. A ars amatoria consiste exatamente nesse deslocamento que, contudo, deve permanecer imperceptível: “Si latet ars, prodest; adfert deprensa pudoren/ Atque adimit merito tempus in omne fidem” (II 313-4) (“É útil a arte, é verdade, mas só se escondida; quando ela aparece, traz vergonha e depois tira para sempre toda confiança nas tuas palavras”). O domínio de si mesmo, o autocontrole, a vigilância nunca devem faltar. Deixar-se levar pela espontaneidade quer dizer auto-excluir-se imediatamente do sucesso, da vitória, da posse, que se tornam, assim, elementos essenciais do amor regido pela ars. “Si vox est, canta; si mollia bracchia, salta/ Et quacunque potes dote placere, place/ Ebrietas, ut vera nocet, sic ficta, iuvabit” (I 593-5) (“Canta, se tens voz; se tens vontade, dança;/ com tudo aquilo que possas agradar, agrada./ A verdadeira embriaguez pode causar-te dano,/ a simulada ajudar-te”). A ars amatoria constitui a culminação da elegia erótica. Para Ovídio, como para os poetas elegíacos que o precederam, o amor e o carmen estão estreitamente ligados. Ovídio também convida a celebrar com a poesia e com os modelos mitológicos tanto as mulheres cultas, que são rarissima turba, como as outras, que querem fazer crer que são cultas (II, 283). Mas ele não limita o amor a uma estrutura sociolingüística fechada no mundo dos poetas e das suas amantes, abrindo-o para todos: o amor é uma arte que todos podem e devem aprender. Os preceitos de Ovídio dirigem-se a todos os homens e a todas as mulheres. Essa extensão da erótica elegíaca realiza-se mediante a adoção de uma escolha técnica prévia que lhe garanta uma circulação universal. O ingresso em tal circuito é, de resto, mais importante que a realização do ato sexual em si e constitui o verdadeiro sucesso: tanto 73

assim que o próprio Ovídio será, mais tarde, autor de outro tratado, Remedia amoris, que se propõe a um objetivo aparentemente oposto ao de Ars amatoria — curar as feridas produzidas pelo insucesso amoroso. No entanto, esse segundo tratado também é muito significativamente colocado sob a proteção do Amor, que exorta Ovídio a concluir a obra. A identificação entre amor e carmen levada a cabo pelos poetas elegíacos que precederam Ovídio se enriquece assim com um terceiro termo, a ars, a técnica, que introduz uma duplicação, um deslocamento, os quais apenas asseguram uma vitória, independentemente do caso. A ars amatoria baseia-se na crença de que não existe uma mulher que lhe possa resistir (I, 270); é possível encontrar uma, entre tantas, que se negue, mas essa recusa é tutus, sem perigos, porque a ars traz o remédio. A Ars amatoria constitui também o coroamento da erótica do uso. “Usus opus movet hoc (I, 29) (“A ditar-me o poema está a experiência”). Para Ovídio, também a erótica tem um significado político-didático. De um lado, a relação entre o amante e a amada, entre o homem e a mulher, é comparado a uma militia (II, 223), os preceitos são arma (III, 1), o êxito é sempre semelhante a uma vitória militar. De outro lado, entretanto, está claro que o amor implica uma convergência de intentos pelo menos na recíproca de dar e receber prazer. As batalhas — diz Ovídio (II, 175-6) — travam-se com os partos,* não com a dileta amiga. Sob esse aspecto, a relação erótica revela-se, pois, afim com a relação política, entendida no sentido muito geral de relação intermédia entre guerra e paz, de capacidade de tratar com os próprios semelhantes, de usus rerum. Essa afinidade, portanto, não se baseia, como * Habitantes da Pártia. (N. do T.)

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na pederastia grega, no desenvolvimento de um autocontrole que visa ao domínio sobre outros, porém é mais essencial e intrínseca. A erótica não é uma propedêutica na qual são iniciados os adolescentes destinados à vida política, mas já é ela mesma a técnica política completa, arte do conveniente e da oportunidade. Ora, considerar a erótica uma aplicação particular do usus rerum estóico à sexualidade, ou considerar a política uma generalização da ars amatoria a todas as relações, é, no fundo, a mesma coisa — erótica e política revelam uma pertinência recíproca pelo fato de serem ambas práticas intermédias entre oposição e conciliação, entre polêmica e estética. Nesse caso, também, a obra de Ovídio constitui uma generalização e uma universalização. Não é mais um único indivíduo que é introduzido privadamente na erótica do uso: a Ars amatoria pretende ensinar a todos o usus rerum, a técnica erótico-política que permite a disponibilidade dos corpos alheios e dos espíritos alheios. Disponibilidade não quer dizer monopólio, muito menos poder absoluto. Ovídio é muito liberal e convida o amante a tolerar pacientemente os rivais, a deixar que a amada vá e venha como e onde queira (II, 544), tampouco quer condenar o amante a uma vida inteira ao lado de uma única mulher (II, 387). O importante é pôr em circulação os corpos e os espíritos, o seu trânsito, não a sua imobilização em relações de poder e de domínio fixos e exclusivos. A erótica do uso não é um segredo; ao contrário, é necessário que todos a aprendam. Ovídio, depois dos dois primeiros livros da Ars amatoria, dedicados aos homens, escreve um terceiro livro dedicado às mulheres, a fim de que estas possam entrar em batalha com igualdade de armas. O que importa é a ampliação do quadro, da rede, do Gestell erótico-político, e tal ampliação é feita em benefício de todos. 75

5 A provocação amatória A arte amatória consta de duas partes essenciais: a provocação — ou seja, como se aproximar e conquistar aquela a que se quer amar —, à qual é dedicado o primeiro livro da Ars, e o emprego — ou seja, como manter o amor por muito tempo — ao qual é dedicado o segundo livro da obra. O ponto de partida de Ovídio é a comparação entre o amante e o caçador. Não obstante essa semelhança se repita freqüentemente no poema, ela é inadequada, como parece reconhecer o próprio Ovídio, não apenas porque o amante tem à mão o que procura, uma vez que Roma oferece tantas mulheres e de tal variedade quantas estrelas há no céu (I, 59), mas principalmente porque o confronto entre o amante e a presa esconde o verdadeiro significado da provocação, da rogatio, do Heraus-forderung — é ao mesmo tempo um pedir, exigir, pretender, desafiar... mas também um favorecer, promover, extrair, transportar... A provocação baseia-se no pressuposto de que a vontade do amante e a vontade da amada sejam secretamente a mesma: “Pugnando vinci se tamen illa volet” (I, 664), a recusa esconde o desejo da amada de ser vencida resistindo, porque “quod iuvat, invitae saepe dedisse volunt” (I, 672), aquilo que a elas agrada é dar à força aquilo que querem dar. Enquanto o adepto da ars pode esperar para si todas as mulheres (I, 343), à proporção que a demanda se encontra com a oferta, a súplica se espelha no acolhimento. A passagem é enfim do mesmo para o mesmo — a mulher cede e cede ainda mais quando demonstra não querer (I, 274). Quando nega, tem medo de ser ouvida e “quer aquilo que não pede”, “ut instes”, que tu insistas (I, 484). Certamente, tudo isso não deve ser entendido como uma justificação para 76

a violência, para a rusticitas, ou, pior, para o estupro; essa passagem nem sempre é simples: “Nec semper Veneris spes est profitenda roganti”* (I, 717) “Muitas cobiçam o que foge, a quem as assedia oferecem desdém”. Ovídio, portanto, aconselha igualmente moderação e silêncio, calma e cortesia. Freqüentemente a passagem para o amor vem através da amizade: “Qui fuerat cultor, factus amator erat”** (I, 720). O importante é saber adaptar-se aos inumeráveis casos particulares, como Proteu, que “ora será um leão, ora uma planta, ora um javali eriçado” (I, 759). “Mille animos excipe mille modis”*** (I, 754), conclui Ovídio. A provocação amatória implica o conhecimento dos lugares e de tempos oportunos, baseia-se em um saber do tópos e do kairós articulado e complexo, desenvolve-se mediante deslocamentos feitos de improviso e oportunidades que não se devem deixar escapar. Ovídio demora a falar dos lugares propícios para aproximar-se das mulheres e dirigir-lhes a palavra. Esses lugares já estão todos determinados, são comuns, pertencem à vida cotidiana: os pórticos, os templos, os teatros, os jogos, os hipódromos, os triunfos, as refeições, os banquetes, a praia de Baia, o bosque sagrado de Nemos... O que fica mais difícil é agir com destreza entre os deslocamentos e as substituições indispensáveis à aproximação e à conquista. Onde há multidão é lei (lex) tocar a puella.**** Mas a provocação pressupõe toda uma série de duplicações que envolvem muitos problemas. Por exemplo, é oportuno possuir, além da senhora, a escrava? E em que ordem de precedência? Ou, * Nem sempre a expectativa de Vênus é um convite declarado. (N. do T.) ** Quem fora amigo, torna-se amante. (N. do T.) *** Para mil almas diferentes, emprega mil meios para prendê-las. (N. do T.) **** Mulher jovem. (N. do T.)

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então, que tipo de relacionamento manter com o marido da mulher que se corteja? Ou, ainda, como substituir o amante que a mulher perdeu? Se depois passamos aos presentes, às trocas, à medida do dar e receber, é necessário o exercício de um grande “esprit de finesse”. De fato, não é fácil, pensa Ovídio, oferecendo só palavras, invocações ou versos, sair-se vitorioso sobre quem compra com dinheiro ou com presentes caros as graças femininas; e, no entanto, “hoc opus, hic labor est, primo sine munere iungi” (I, 451) — “este é o trabalho, esta a fadiga: chegar até ela sem nenhum presente”. A provocação, portanto, contém também um aspecto de desafio — é o desafio que o poder lança à riqueza. “Non ego divitibus venio praeceptor amandi”* (II, 161), “pauperibus vates ego sum, quia pauper amavi”** (II,165). Esse desafio baseia-se na secreta cumplicidade entre o carmen e o amor, entre o saber e o erotismo, entre a literatura e a ars amatoria. A provocação amatória é uma combinação de audácia e de prudência; é necessário ousar ou retrair-se, falar ou calar, tentar ou renunciar no momento oportuno. Reconhecer a oportunidade (o kairós) é o mais difícil, porque a esse respeito não vigora nenhuma regra fixa — as mesmas situações nunca são iguais, e um “mesmo assalto alcança maior vantagem porque desferido no momento justo” (I, 402). O tratado ovidiano aconselha evitar de todas as maneiras os dias nos quais se dão presentes, os aniversários e datas semelhantes, e aconselha ater-se a uma repetição escrupulosa dos gestos da amada: “Quando ela se levanta, levanta-te; fica sentado enquanto ela estiver sentada; por um capricho dela consome todo o teu * Não me apresento aos ricos como preceptor na arte amatória. (N. do T.) ** Sou o poeta dos pobres, pois enquanto pobre amei. (N. do T.)

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dia” (I, 501-2). O mesmo conselho é dado às mulheres: “Olha quem te olha; tenha quem te sorri o teu sorriso; se te faz um sinal, devolve-lhe o sinal” (III, 513-4). Se o amor é pela sua natureza algo de intermédio, que vive de pequenas mutações e de imperceptíveis deslocamentos, de trânsitos, nem por isso reclama uma conduta indecisa ou confusa. Ao contrário, Ovídio sublinha exatamente a necessidade de agir com a máxima energia, uma vez que se tenha decidido: “Aut numquam temptes aut perfice” ( I, 389) (“Nem tentar ou ir a fundo!”). A provocação implica nunca deixar as coisas pela metade: “Se tu a tentaste deves possuí-la; deixa-a, se quiseres, mas depois de possuí-la” (I, 394). No tempo da provocação nada é de fato irreversível e estável; uma situação favorável pode repentinamente transformar-se em hostil e em todo caso não pode ser conservada indefinidamente: “Quem, tendo beijado, não usufruiu o resto, que perca também os beijos” (I, 667).

6 O emprego amatório Manter a disponibilidade de uma conquista amorosa é, segundo Ovídio, tão difícil quanto alcançá-la. A segunda parte da Ars amatoria reclama capacidade não inferior à primeira — “Manter a conquista não vale menos do que tê-la alcançado: esta é às vezes um mero acaso; mantê-la é fruto de arte refinada” (II, 13-4). No emprego, no Bestellen, na manutenção culmina a arte, porque isso implica um presente completamente expandido, no interior do qual seja possível moverse. Não se trata tanto de acorrentar o amor, que parece “sempre errante pela terra” (II,18), nem de fazer dele a fundação (Grund) sobre a qual construir o edifício da própria vida, mas 79

de fazê-lo remanere, como algo presente e disponível, como um fundo (Bestand), uma reserva, um estoque. Ovídio recorda a respeito disso a lenda de Dédalo e Ícaro; o pai aconselha o filho a não voar muito alto, porque o sol derreteria as asas de cera, nem muito baixo, porque a água do mar ensoparia as penas, mas inter utrumque, entre um e outro, no entremeio. Para tenere puellam é necessária a virtude da obediência diante do presente. Ovídio a descreve nos termos de uma militia estóica: “Faz sempre o que ela desejar” (II, 198); “seja ela a impor suas leis aos traços do teu rosto” (II, 202). Só assim, cedendo, será possível sair vencedor; por isso, jogue fora o orgulho, o fastus, quem quiser manter o usus. O espaço intermédio do erotismo, o entremeio, não ocorre só entre o belo e o humano, entre o dissídio e a harmonia, mas também entre o bonito e o feio. Ambos devem ser deslocados, mudados, detournés, do seu lugar natural, se se deseja que o amor continue sendo algo de presente, sempre disponível. De fato, o belo é algo de muito efêmero, instável, precário — ele anuncia o próprio fim. Para ser amável não bastam o rosto (facies) e a beleza (forma): “Forma bonum fragile est”* (II, 113). A beleza deve ser deslocada para alguma coisa mais sólida, mas ao mesmo tempo mais indeterminada, por exemplo, para a facundia, a capacidade de contar as mesmas coisas (idem) de maneiras diferentes (aliter), como Ulisses fazia com Calipso; ou a indulgentia, que nutre o amor de doçura, de vênia, de benevolência, ou o obsequium, o dizer sim, o ser conciliatório, que “doma até os tigres e os leões numídicos” e “curva o touro sob a rústica canga” (II, 183-4).

* A beleza é um bem frágil. (N. do T.)

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Se o belo deve ser removido para “aliquid corpore pluris”, algo mais estável em sua presença do que o corpo, o feio, ao contrário, deve ser deslocado mediante estratagemas técnicos de caráter físico. Aqui, Ovídio inverte a opinião geral, segundo a qual o feio se remedia com as qualidades do espírito, enquanto o belo basta a si mesmo. A sua atenção à cosmética não é portanto fatuidade, mas nasce dessa singular inversão. Igualmente importante é um saber topológico que saiba pôr em evidência os aspectos mais belos do corpo e ocultar os feios: a que tiver um belo rosto deite de costas; quem tiver um ventre cheio de rugas cavalgue no amplexo, como em fuga usam fazer os partos, e assim por diante (III, 775 e seguintes). Onde os estratagemas cosméticos e topológicos falham, paradoxalmente tem sucesso a repetição — “Àquilo que desagrada, habitua-te: aos poucos não lhe darás mais importância” (II, 674); “pouco a pouco o tempo (dies) faz desaparecer do corpo todo defeito; aquilo que assim foi não o é mais” (II, 653-4). A mora, a multiplicação do mesmo, o seu deslocamento repetido apaga o negativo: “Assim, narinas desacostumadas não suportam a podridão do couro; depois, pouco a pouco não a percebem mais, acostumadas” (II, 655-6). O que é repetido deixa de ser feio: a cópia indiscernível do original é essencialmente diferente deste, exatamente porque anula sua negatividade. O feio é, além disso, objeto de um terceiro tipo de deslocamento amatório, que se baseia na proximitas entre defeitos e qualidades: “Nominibus mollire licet mala”* (II, 657). Podese chamar morena àquela que tem a pele mais escura do que o breu ilírico, pode-se comparar a estrábica a Vênus, pois tal defeito lhe era atribuído pelo mito, a sem graça será semelhante a * Os males podem ser mitigados com palavras apropriadas. (N. do T.)

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Minerva, que tinha os olhos claros, de esbelta será chamada a magra, de cheia de carnes a gorda... Esse deslocamento se baseia em um pressuposto estóico, na pronoia, segundo a qual, contrariamente ao que pensam epicuristas e céticos, é necessário dar valor positivo ao que nos circunda. De resto, a presença mais insatisfatória é sempre melhor do que a ausência, que é apenas ideal — o trânsito é possível apenas no interior daquilo que está presente. Sem presença, não há diferença alguma. Enfim, quando esses três deslocamentos não bastam, porque a juventude vai fenecendo e a velhice já avança com passos silenciosos, é a operum prudentia, o saber, a habilidade, a prática nos trabalhos da carne, que transforma o feio. O usus, a experiência, “aquilo que faz o artista” (II, 676), desloca e multiplica infinitamente as uniões carnais; as que se tornam expertas pela idade, “venerem iungunt per mille figuras”* (II, 679), sentem e provocam uma “non inritata voluptas”** (II, 681). O belo e o feio estão ligados à forma, facies, figura, species, ao aspecto, à estética, enquanto a ars amatória é feita de sinais, de gestos, de movimentos. Esta dissolve a forma na voluptas, no gaudium, no trânsito da voluptas e do gaudium de um amante para outro. A passagem é do mesmo para o mesmo: ambos devem colaborar ex aequo. Eis, segundo Ovídio, o primado da sua ars amatoria sobre a erótica pederástica, que não garante a circulação do prazer, a resolutio das subjetividades individuais dos amantes, exatamente porque — pelo menos na sua forma pedagógica grega — impede que o jovem participe do prazer: “Esta é a razão pela qual não me seduz o amor dos meninos” (II, 684). O ponto de chegada * Realizam o ato caro a Vênus de mil maneiras. (N. do T.) ** Um prazer que não precisa de estímulos. (N. do T.)

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da arte amatória não é, entretanto, a unidade, a fusão, a harmonia neoplatônica, e sim a transmissão do prazer, o seu transitar pelos corpos, o seu suscitar sinais e gestos — “quero que ela me diga para ir mais depressa (morer) ou mais devagar (substineam)” (II, 690). Assim o auge da arte se realiza no trânsito do prazer de um corpo para o outro.

Notas 1. Platão, Simposio, 202 e, Bari, Laterza, 1946, p. 122. 2. G. Bataille, L’erotismo. Milão, Sugar, 1962, p. 74. 3. Platão, Sofista, 263 e, Bari, Laterza, 1965. 4. G. Bataille, L’expérience intérieure, in Oeuvres complètes, vol. V, Paris, Gallimard, 1973, p. 64. 5. P. Veyne, L’élégie érotique romaine. L’amour, la poésie et l’occident. Paris, Seuil, 1983. 6. M. Heidegger, Erläuterungen in Hölderlins Dichtung. Frankfurt, Klostermann, 1971, p. 47. 7. Ib., p. 105. 8. Plutarco, De communibus nititiis adversus Stoicos, XII. 9. M. Foucault, Storia della sessualità. L’uso dei piaceri. Milão, Feltrinelli, 1984. 10. V. Goldschmidt, Le système stoïcien et l’idée de temps. Paris, Vrin, 1977, 3º, p. 96. 11. Marco Aurelio, Ricordi, XII, 1. Milão, Rizzoli, 1975. 12. P. Ovídio Nasone, L’arte di amare. Milão, Rizzoli, 1977.

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Capítulo III

Entre a veste e o nu

1 Magnificência da veste e verdade do nu O erotismo se manifesta nas artes figurativas como relação entre o vestido e o nu. A sua condição é, portanto, a possibilidade de um movimento, de um trânsito de um para o outro: se a um dos dois termos for atribuído um significado primário e essencial em prejuízo do outro, faltará a própria possibilidade do trânsito e, logo, do erotismo. Nesse caso, à veste ou ao nu é atribuída uma dimensão absoluta. À veste é atribuída uma primazia onde quer que se considere a figura humana essencialmente vestida, onde quer que se pense que o homem se torna tal, distinguindo-se dos animais, exatamente graças ao fato de estar vestido: a veste é o que confere ao homem a sua identidade antropológica, social, religiosa — em uma palavra, o seu ser. Disso deriva o fato de a nudez ser tida como uma situação negativa, como privação, perda, espoliação: os adjetivos nu, despido, desnudo qualificam exatamente o estado de quem está privado de al84

guma coisa que deveria ter. No âmbito de tal concepção, que foi muito difundida entre os povos do Oriente Médio (egípcios, babilônios, hebreus), o estar despido significa achar-se em uma condição aviltante e vergonhosa, típica do cativeiro, da escravidão, da prostituição, da demência, da maldição, da impiedade. No Antigo Testamento, a primazia da veste adquire um significado metafísico, indo ao encontro da noção de kãbôd, que quer dizer “magnificência”, “honra”, e que etimologicamente se refere a algo pesado, grave, importante. A veste magnífica (bègèd kãbôd), da qual fala oSiracide, refere-se à veste sacerdotal de Aarão, a quem a tradição bíblica atribui a instituição do sacerdócio (Si 45, 9), e aos paramentos solenes do sumo sacerdote Simão, que, “quando revestia os mais belos ornamentos, subindo os degraus do santo altar dos sacrifícios, enchia de glória todo o santuário” (Si 50, 11-2).1 A conexão entre veste e sacerdócio, entre cobertura e serviço de Deus, baseia-se no fato de que o próprio Deus “vestiu” a terra com a obra da criação e ele mesmo se manifesta “revestido de majestade e esplendor/ envolto em luz como em um manto” (Sal 104, 1-2). A magnificência da veste sacerdotal não é mais do que um reflexo da magnificência do kãbôt de Jeová:2 o seu caráter só pode ser entendido com referência ao transcendente, que está essencialmente “vestido”, que em todas as relações com os homens vela, cobre, veste o seu poder, porque os homens não podem suportar a visão direta de Deus. Diz o Senhor a Moisés: “Tu não poderás ver a minha face, porque nenhum homem pode ver-me e permanecer vivo” (Ex 33, 20). Estreitamente relacionada com a veste está a morada de Deus, o lugar coberto, a habitação, a Tenda de Reunião que Moisés institui junto com o sacerdócio de Araão — a Tenda é edi85

ficada ao mesmo tempo em que são feitas as vestes sacerdotais (Ex 39). A construção do Templo por obra de Salomão representa o coroamento dessa perspectiva — a casa estável de Deus está associada ao seu kãbôd, à sua glória.3 No pólo oposto dessa primazia metafísica da veste está a experiência grega da nudez, que, mesmo antes de manifestar-se na arte, se expressa como ideal ético-estético da kalokagathía* nos jogos das festas pan-helênicas. Aqui a figura humana na sua dimensão ideal se apresenta essencialmente nua. Nessa celebração da nudez os gregos consideravam-se diferentes de todos os outros povos. Para eles, a nudez não é mais uma coisa vergonhosa, ridícula e desonrosa; ao contrário, ela assume um significado paradigmático no qual se encontram uma experiência religiosa que atribui à clareza do ver um papel determinante e uma concepção agonística da vida, de origem aristocrática, que considera a vitória e a sua gloriosa celebração um fim a ser perseguido com a máxima energia. Com Platão, a primazia da clareza da visão adquire um significado metafísico: no mito da caverna, o caminho que leva à verdade conduz progressivamente da visão de sombras e de imagens especulares à contemplação das idéias. Dessa concepção da verdade como exatidão do olhar e da substância eterna como objeto de uma visão intelectual nasce a metáfora da verdade “nua”: sobre a base dessa metáfora, todo o processo do conhecimento é considerado uma retirada dos véus do objeto, um despojá-lo totalmente, iluminando-o em todas as suas partes.4 Por isso, o próprio corpo é pensado como um obstáculo, um túmulo da alma, a qual só quando * O caráter de conduta de um homem, honestidade perfeita, probidade escrupulosa. (N. do T.)

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está nua — psichè gumnè toû sómatos* (Crat. 403 b) — adquire total liberdade. Ligada a essa primazia do ver a olho nu está a própria noção de theoría, que tanta importância tem no pensamento grego — 5 segundo uma hipótese etimológica, a palavra theoría, derivada da fusão de theá, “visão”, “olhar”, com ora, “desvelo”, “custódia”, “solicitude”, “cuidado”, implicaria o cuidado do ver, a potencialização metafísica de ver, para além de todas as vestes, trajes, invólucros, a coisa nos seus detalhes precisos.6 Em tais premissas metafísicas baseiase a representação do nu na estatuária grega clássica: ela é concebida como a forma ideal da figura humana, da qual os corpos fenomênicos são as réplicas.7 Tanto no judaísmo como no helenismo, portanto, parecem profundamente arraigadas concepções da figura humana que nada têm de erótico, exatamente porque não instauram entre veste e nu nenhum trânsito, mas tornam absoluto metafisicamente um dos dois termos, excluindo o outro. Metafísica da veste e metafísica do nu constituem perspectivas que têm exercido na cultura ocidental uma influência constante até os nossos dias. Elas retornam onde quer que o problema seja posto em termos absolutos, como conflito entre a dignidade e a liberdade do corpo. Todavia, nem o judaísmo no seu conjunto é redutível a uma metafísica da veste, nem o helenismo a uma metafísica do nu. Já na Antiguidade, pensadores de origem hebraica, como Fílon de Alexandria, lêem episódios do Antigo Testamento segundo uma mentalidade grega e atribuem ao nu pelo menos a possibilidade de um significado positivo. “O grande sacerdote”, escreve Fílon, “não entrará no Santo dos Santos com uma túnica; mas, depois de ter liberado a sua alma do * Alma despida do corpo. (N. do T.)

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invólucro da opinião e da imaginação e depois de tê-la deixado aos que amam as coisas exteriores e estimam a aparência mais do que a verdade, entrará nu, sem cores, nem sons.” 8 * De resto, o relato bíblico da nudez originária de Adão e Eva constituirá o ponto de referência dos que desejarem enxertar o platonismo na Bíblia, como os sete adamitas medievais, os Irmãos e as Irmãs do Livre Espírito, nos quais se inspirou Hieronimus Bosch.9 Esse enxerto, entretanto, permanece implícito e não consegue ultrapassar os limites da metafísica da verdade nua. Ao contrário, o hermetismo neopitagórico e gnóstico repensa a tradição cultural e a filosofia helênicas segundo uma concepção da verdade “vestida”, que se torna visível, na sua inefável magnificência, apenas a poucos iniciados. A verdade é vestida não só para os profanos que não têm acesso ao conhecimento, mas no fundo também para os eleitos. Ela se mostra aos eleitos na sua glória, na sua dóxa,** não na sua nudez teórica: “Quando não puderes dizer nada da beleza do Bem, só então o verás”, está escrito no Corpus hermeticum (X, 5-6), “porque o conhecimento supremo é silêncio divino e descanso de todas as sensações”. As almas, as idéias, os eones do pensamento gnóstico se liberam da nudez impura da carne e são pensados como dotados de uma veste espiritual: “Eles serão revestidos com vestes reais/ e serão envoltos em vestidos resplandecentes”, diz a propósito disso um hino gnóstico citado nos Atos de são Tomé.10 *** Por mais que seja atribuí* Neste trecho, Fílon refere-se à nudez da alma que o oficiante deve ostentar diante de Jeová. (N. do T.) ** Opinião, julgamento. Na linguagem bíblica significa “manifestação da glória e poder de Deus”. (N. do T.) *** Livro apócrifo, gnóstico, atribuído ao apóstolo Tomé. (N. do T.)

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da às seitas gnósticas a prática de uma licenciosidade sexual ilimitada, na qual encontraram objeto de inspiração escritores do nosso século indubitavelmente eróticos, como Lawrence Durrell, a dimensão erótica parece, entretanto, excluída da Gnose exatamente pelo dualismo rigoroso entre um corpo nu, destinado à perdição, e um espírito vestido, destinado à salvação; esse dualismo impede a possibilidade de pensar em um estado intermédio, em um trânsito. A descoberta da possibilidade desse trânsito no interior da cultura judaica e da cultura helênica pertence ao pensamento contemporâneo e é obra de Hans Uns von Balthasar e de Martin Heidegger, respectivamente. Metafísica da veste e metafísica do nu concordam em atribuir à visibilidade — embora pensada e experimentada de maneiras opostas — uma dimensão absoluta. De fato, Balthasar mostra precisamente como na noção hebraica de kãbôd está implícita não só a magnificência visível, mas, além disso, a referência a algo de diferente, de invisível. Segundo a sua interpretação, o kãbôd não é uma noção estática, e sim dinâmica, que se apóia na tensão entre uma glória “informe” e uma imagem revestida de forma.11 Ela implica um ver-não-ver, uma imagem-não-imagem; é ao mesmo tempo luz ofuscante e treva profunda. O kãbôd, portanto, ultrapassa o contexto litúrgico-cultual e estende-se a toda a criação, envolvendo, antes de mais nada, o homem, que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Existe, pois, um trânsito entre o visível e o invisível, entre a veste e aquilo que ela cobre. Balthasar defende a possibilidade de uma erótica bíblica independente do platonismo; ele sustenta uma interpretação literal e profana do Cântico dos Cânticos — aqui, o eros não é um símbolo, nem uma alegoria. Ele apresenta só a si próprio e se manifesta “no travestimento do jovem e da jovem em rei e rainha”, no “jogo 89

de designar veladamente aquilo que não deve ser mencionado e que, entretanto, deve ser absolutamente indicado”.12 Igualmente, Heidegger mostra como a noção grega de alétheia* tem um significado originário que ultrapassa a noção teórica de exatidão do olhar. Segundo Heidegger, a palavra alétheia implica tanto uma ocultação como um desvelamento, e, de fato, ela é caracterizada por um a privativo, que exprime privação diante de qualquer coisa que esteja oculta, isto é, encerrada, posta em custódia, mascarada, encoberta, velada, falsificada... Heidegger propõe traduzi-la com o termo Unverbogenheit, não-ocultação, exatamente porque a dimensão do ocultar é essencial: este, “entendido como um esconder-se, domina a essência do Ser e determina desse modo até o ente na sua presença e no seu ser acessível”.13 A alétheia grega não implicaria de modo algum a primazia da nudez, mas um trânsito entre esconder e desvelar, irredutível à concepção platônica de um esclarecer e de um iluminar puros e completos. Da mesma forma, Marcel Detienne sustenta que, na era arcaica, as noções religiosas de Alétheia e Léthe formam uma dupla de compostos antitéticos e complementares.14 De fato, as Kórai, as jovens da escultura grega arcaica, com sua draperie mouillée** e seu sorriso ambíguo e indecifrável, abrem um espaço erótico incomparavelmente mais amplo e profundo do que a nudez calipígia das Afrodites clássicas. O déhanchement,*** o meneio do quadril no qual se baseia o sex-appeal do nu femini* Verdadeiro, verídico, dito de coisas e acontecimentos que não estão ocultos. (N. do T.) ** Panejamento molhado que, portanto, mostra o tecido pregado ao corpo, denunciando-lhe as formas. (N. do T.) *** Posição de figura na qual o peso do corpo é transferido para uma das pernas, acentuando e destacando a curva do quadril. (N. do T.)

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no clássico, e a cuirasse esthétique,* na qual se funda o sexappeal do nu masculino do período, são tão evidentes quanto as idéias platônicas. “Evidência”, em grego — afirma Heidegger —, diz-se eîdos ou idéa.15 Contudo, é exatamente essa evidência, isto é, o fato de o olhar estar livre para enxergar a nudez masculina e feminina no seu aspecto ideal e eterno, que torna a experiência estática e para sempre fechada ao trânsito erótico.

2 A erótica do despir: o nu e o véu Nas artes figurativas, foi o cristianismo que tornou possível uma completa representação do erotismo, porque introduziu uma dinâmica não suficientemente desenvolvida pela Antiguidade judaica e clássica. A direção de tal movimento pode ser orientada para o despir ou para o revestir. De fato, diz São Paulo: “Vós vos despistes do homem velho com as suas ações e vos vestistes do novo, que se renova para um pleno conhecimento à imagem do seu criador” (Col. 3, 9-10). Da primeira ação, o despir-se, nasce a erótica da Reforma e do Maneirismo; da segunda ação, o revestir-se, nasce a erótica da Contra-Reforma e do Barroco. O mais agudo intérprete contemporâneo da erótica do despir foi Georges Bataille, que une de modo inseparável o desejo erótico com a pulsão para despir-se e despir, para transgredir o tabu da nudez. “A ação decisiva”, escreve, “é o desnudamento. A nudez é a negação do ser fechado em si, a nudez é um estado de comunicação [...]. Obscenidade quer dizer desequilíbrio, que desor* Representação do tronco masculino. (N. do T.)

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ganiza um estado dos corpos correspondente à posse de si mesmo, ao domínio do próprio eu entendido como individualidade durável e afirmada.”16 Bataille movimenta-se dentro de uma tradição que atribui ao desnudamento um grande valor espiritual; este, depois de Paulo, encontrou uma manifestação importante no propósito expresso por São Jerônimo, de nudus nudum Christum sequi,* e teve um enorme desenvolvimento na Idade Média. Com a Reforma ele é entendido em uma acepção ainda mais radical: a cruz, o suplício, a agonia de Cristo são considerados o ponto mais alto e importante da experiência cristã. Daí deriva que a perdição, a dilaceração, o aniquilamento, o abismo, a confusão, a desordem, o estupor, o tremor, a vertigem, a morte se imponham também como modelo de experiência erótica. 17 A afinidade fundamental entre a pulsão sexual e a morte reside para Bataille no movimento iconoclasta que as anima. Ambas dissolvem a forma, destroem a imagem, violam a bela aparência, à procura de uma verdade mais essencial, de uma pureza mais radical, de um absoluto. Por isso, esse movimento não se detém no nu, mas vai além — as superfícies nuas dos corpos ainda são apenas a aparência, a imagem, a máscara. A sexualidade e a morte, para Bataille, levam o movimento de desnudamento a uma conseqüência extrema: ser traspassado, exposto, aberto, esfolado, ou trespassar, expor, abrir, esfolar significa perder-se em um abismo que despedaça a redondeza enganosa dos corpos. O ponto de chegada dessa experiência, entretanto, não é mais o trânsito; no fundo, é muito duvidoso que ela possa ser verdadeiramente definida como erótica. O desnudamento * Nu, sigo o Cristo nu. (N. do T.)

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até as últimas conseqüências, descrito por Bataille, não volta atrás em direção à veste, mantendo-a na sua oposição ao nu; ele almeja encontrar descanso, paz, repouso, na comunhão com a totalidade do ser, na fusão ilimitada da orgia, em uma nova unidade metafísica. Falta a própria possibilidade da representação, porque o iconoclasmo se dirige acima de tudo contra a imagem, contra qualquer representação do nu. O próprio Bataille, todavia, não se ateve a esse extremismo metafísico: no volume As lágrimas de Eros, ele reproduz e comenta de maneira extraordinariamente eficaz as obras-primas da pintura erótica de todos os tempos.18 Como resolver esse paradoxo? Na realidade, o movimento de pôr a nu tem limites além dos quais perde toda a tensão erótica e cai em uma imobilidade metafísica. Constituem as provas mais eloqüentes disso aqueles quadros do século XVI, de Cranach, o Velho, de Hans Baldung Grien e dos maneiristas, aos quais Bataille dá tanto destaque na sua história do erotismo. Estes são eróticos não só porque tornam própria a tendência iconoclasta, mas também porque põem um limite à iconoclastia. Observou-se que a partir do fim da Idade Média se difunde nos países nórdicos a imagem de um novo tipo de nu feminino que apresenta características profundamente diferentes do nu grego: enquanto no nu clássico o ritmo dominante é dado pela curva do quadril, no nu nórdico o ritmo fundamental é dado pela curva do ventre.19 Foi dito também que esse nu nórdico deve ser ligado à tendência do cristianismo de recuperar o significado espiritual da feiúra, representando os corpos na sua realidade “despida”, mais do que na sua idealidade nua. Todavia, a verdadeira inovação do cristianismo não consiste tanto em ter revalorizado o feio e muito me93

nos em ter introduzido como modelo exemplar um nu traspassado, o crucificado, e sim em ter mantido a possibilidade da imagem depois de ter posto em jogo a sua possibilidade. A pintura levou muitos séculos para chegar a representar o Cristo nu, traspassado, morto na cruz; somente com Grünewald e Holbein, praticamente na véspera da Reforma, ela ousa representar Cristo como um cadáver em putrefação.20 O fato é que só com a Reforma o problema da imagem da morte de Cristo se apresenta como solução do problema da morte da imagem. Cristo, entretanto, pode ser representado nu, crucificado, morto e putrefato, na medida em que essa imagem é só um véu sob o qual transparece a sua natureza divina, irrepresentável. Representar Cristo como um Apolo, segundo a proposta renascentista, significa cair na idolatria, no paganismo. Não representá-lo de modo algum quer dizer, porém, supor que a figura humana assumida por Cristo pode, através da ascese iconoclasta, identificar-se metafisicamente com aquele Deus que, ao contrário, permanece — como ensina Lutero — essencialmente diferente; significa, em suma, aspirar a uma santidade que é por definição vedada ao homem.21 Os pintores da Reforma resolvem esses problemas atribuindo ao véu uma importância semelhante à atribuída ao nu e instaurando entre véu e nu um trânsito de enorme relevância erótica. O véu não é mero obstáculo à visão a olho nu, mas, justamente ao contrário, condição de toda visão possível. A expressão típica da teologia luterana da cruz, Deus obsconditus, quer dizer que Deus se manifesta, se revela sob formas veladas, e tirar esses véus quer dizer impedir a possibilidade da própria revelação. Para a pintura da Reforma existem dois perigos, a iconofilia e a iconoclastia, o nu clássico e o misticismo meta94

físico.22 Trata-se de criar um espaço intermediário. No interior desse espaço nascem, na primeira metade do século XVI, algumas dezenas de quadros que são as obras-primas da erótica ocidental do despir. As numerosas Lucrécias de Cranach, de Dürer (que Melacton considera, junto com Grünewald, os pintores da Reforma), de Baldung Grien têm um duplo significado: colhidas no ato de lacerar ao mesmo tempo o próprio nu e a tela, a carne e o quadro, salvam ambos da destruição, preservam-nos como véus indispensáveis de uma verdade que permanece diferente e irrepresentável na sua nudez. O seu erotismo consiste em se terem despido, em não oporem obstáculos ao deixar-se despir, em se autocontestarem como imagens, em não oporem obstáculos à própria destruição e em apresentarem ao mesmo tempo, entretanto, a própria nudez como um véu que não pode ser tirado, em representarem o iconoclasmo como uma ação que não pode ser completada. A pulsão que leva ao desnudamento e à verdade deve ser assumida sem reservas porque só assim se pode descobrir o elo íntimo que une o nu com o véu, a verdade com a sua ocultação. No quadro Vênus e Amor, de Cranach, o Velho, guardado na Galeria Borghese de Roma, a erótica do despir alcança seu ápice. Essa Vênus institui e acompanha com um olhar que infinitamente consome e infinitamente concede uma série ininterrupta de trânsitos, na qual o espectador se perde. Do corpo da Vênus, que repete com extraordinária graça o clichê do nu nórdico, a atenção se desloca para a árvore que ela toca docemente: a árvore é por certo a cruz-árvore, o xylon,* a madeira na qual foi pregado o corpo nu de Cristo, o fundamento da erótica da Reforma, e, entretanto, esta se * Madeira, madeira em pé, especialmente tronco de árvore. (N. do T.)

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abre, se divide, se escancara para baixo, enquanto o corpo de Vênus tem uma flexuosidade vegetal que evoca o straurós, a estaca fincada reta, a cruz. Penetrante e penetrado trocam de lugar: o que deveria abrir-se, fecha-se e é coberto pelo véu; o que deveria permanecer compacto se fende e é suavemente acariciado. O nu de Vênus é o véu da Cruz — nele é preciso ver além daquilo que se vê e se entrevê; nele se esconde o corpo do Redentor. Vice-versa, a árvore, a cruz, é o véu do nu de Vênus — nela é preciso ver além daquilo que se vê e se suspeita; nela se esconde o nu de Vênus. O trânsito estabelecido por Cranach entre sujeito mitológico e sujeito religioso é desenvolvido de uma maneira diferente por Parmigianino na Virgem da rosa: lá, há uma Vênus que se assemelha a Cristo; aqui, uma Madona que se assemelha a Vênus. Tal troca tem, no entanto, um significado completamente diferente daquele instaurado pelo humanismo renascentista neoplatônico, para o qual, como diz Spencer no seu Hino em louvor da beleza, “a alma é forma e a alma faz o corpo”. Na origem do quadro de Parmigianino está a experiência da iconoclastia que ele conhecera no terrível saque de Roma de 1527, do qual saíra miraculosamente ileso.23 Na pintura renascentista, Vênus e Madonas se assemelhavam porque ambas participavam da idéia metafísica de beleza. A iconoclastia, ao contrário, ao pôr o divino além de toda forma, em uma diferença irrepresentável, tornou possível o movimento, a deslocação, o trânsito de uma forma a outra. Nada mais permanece estático em sua identidade metafísica — tudo circula e se transforma. O Maneirismo é precisamente a experiência artística dessa circulação unida ao conhecimento, de que qualquer forma pode ser o véu da diferença. O extraordinário erotismo do quadro de Parmi96

gianino não consiste simplesmente no véu que cobre o belo seio da Madona, nem na impudica beleza do menino, mas no trânsito que ele estabelece entre a rosa e os genitais de Jesus. O primeiro movimento que inspira é iconoclasta: pegar, agarrar, violar com uma mão a rosa, com a outra o botão de carne. Contudo, essa pulsão é refreada. O ato não se realiza; o olhar da Madona não se concentra em um único alvo, ele se dispersa sobre ambos; as suas mãos, deslocadas em relação ao objetivo, parecem incapazes de pegar aquilo que lhes é oferecido. O ato frustrado tem a mesma função do véu que cobre o púbis da Vênus de Bronzino ou os nus da École de Fontainebleau. Há um limite no despir-se e no despir; superado este, cessa todo movimento; o ato frustrado, como o véu, abre e mantém o espaço intermediário entre vestido e nudez, entre judaísmo e helenismo, que a cruz, ponto de encontro entre diversas metafísicas, abriu.

3 A erótica do revestir: veste e corpo Ao lado de uma erótica do despir, existe na cultura cristã uma erótica do revestir, que mostra um charme e uma riqueza de articulação não inferior à primeira. Ela se baseia na comparação bíblica entre o corpo e a veste (Si, 14, 18) e estabelece entre esses dois termos um trânsito passível de vários êxitos. O mais agudo intérprete contemporâneo da erótica do revestir é Pierre Klossowski, para o qual o erotismo não pode ser desvinculado da experiência da encarnação. Disso deriva que a nudez dos corpos não é concebida de modo algum como o ponto de chegada de um processo de despojamento, 97

de desnudamento, de violação, mas, bem ao contrário, como a conseqüência de um processo de vestição, de materialização, de personificação. A mesma noção de nudez, tanto na sua acepção greco-clássica, de modelo ideal, como na sua acepção cristã-reformista de corpo despido, torna-se sem sentido. O que conta não é o estar nu, mas o ser corpo, carne, matéria. A origem dessa concepção deve ser procurada ainda na patrística dos primeiros séculos do cristianismo. Foi Tertuliano o autor que sustentou categoricamente que “tudo aquilo que é, é corpo de um determinado gênero; nada é incorpóreo, senão aquilo que não é”.24 Portanto, o ponto de referência fundamental não é o suplício de Cristo, o nu traspassado e martirizado da cruz: é, ao contrário, a encarnação de Jesus, o revestimento do espírito em corpo e enfim a sua ressurreição gloriosa em carne e osso. O demoníaco — diz Klossowski — não é o carnal, mas o espiritual.25 A doença do mundo moderno não consiste na prevalência da exterioridade sobre a interioridade, da veste falsificadora sobre a verdade nua, e sim no fato de o espiritual não poder mais encarnar-se, na falta da possibilidade de possessão.26 O fenômeno da possessão, portanto, não é absolutamente uma manifestação do demoníaco: é, em vez disso, já o seu exorcismo — pelo simples fato de ter-se encarnado, o demônio deixa de ser demônio. Daí o significado libertador que aproxima o erotismo e a arte: ambos fornecem uma veste, um invólucro, um simulacro ao que é destituído de realidade, obrigam à presença o que está ausente, tornam visível o que é meramente espiritual. Corpos e obras participam de uma mesma obra de salvação, conferindo forma e resgatando aquilo que por si mesmo é só não-ser, negação, contradição; tanto o corpo 98

como a obra de arte são a atualização de algo incomunicável e irrepresentável. Esse algo — que Klossowski define como “demoníaco” — não provém do interior, da subjetividade, do eu, e sim do exterior; por isso não é expressão, mas semelhança. Erotismo e arte movem-se numa dimensão mimética. Tratase, entretanto, de uma imitação que nunca pode ser verificada, porque o original, o fantasma, o demônio, nunca aparecem como tais. O erotismo do revestir considera o corpo uma veste: “Habita o corpo dos outros como se fosse o seu e da mesma maneira atribui o próprio aos outros”.27 A essência do erotismo é, portanto, a hospitalidade, um vestir o alheio como se fosse seu e o seu como se fosse alheio. Essa transitividade do corpo revela-se, sobretudo na trilogia narrativa As leis da hospitalidade, de Klossowski, como um dar ao hóspede a própria esposa; tal ato, que não pode ser reduzido nem ao banal adultério nem à prostituição libertina, acentua ao máximo a dimensão do corpo como vestimenta: só dando para outros vestirem um corpo que nos pertence é que podemos continuar a vê-lo na sua exterioridade indumentária. Essa concepção do corpo como semelhança leva Klossowski a reavaliar o nu estatuário da pintura tradicional e acadêmica, o nu como objeto pictórico dos velhos mestres. Ele, portanto, critica a vanguarda, que a partir de Klee opõe à anatomia dos corpos “a anatomia do quadro em si”, e com isso emancipando-se de todo modelo, de todo original externo. Assim, diz Klossowski, a “bela nudez” pouco a pouco é desarticulada e dissociada da imposição das leis autônomas do quadro.28 A decadência do nu a partir do início do século XX, a seu ver, é uma manifestação da iconoclastia moderna, que leva a uma produção arbitrária na qual não opera mais nenhuma 99

possessão. Entretanto, é legítimo perguntar-se se o nu acadêmico do século XIX pode ser na verdade definido como erótico. O processo de revestimento defendido por Klossowski conduz em última análise a um resultado neoclássico e ultraformal no qual tudo se abranda na contemplação de belas superfícies, sem que seja possível ativar nenhum trânsito entre veste e corpo. Há, portanto, um limite no revestir, além do qual a própria noção de veste perde o sentido e se bloqueia numa imobilidade sepulcral. As cortesãs da antiga Roma — descritas por Klossowski no seu livro As mulheres romanas — não oferecem corpos semelhantes a estátuas, mas simulacros de carne que se agitam, se debatem entre os braços dos espectadores. As escravas industriais, de que fala Klossowski em outro belíssimo texto (A moeda viva), referindo-se às modelos fotográficas, às divas do espetáculo, às pin-up, subtraem o seu corpo à condição de mercadoria na medida em que o transformam em equivalente geral do valor de troca, em moeda viva, em meio circulante. Por isso os grandes intérpretes do erotismo do revestir não devem ser procurados na pintura acadêmica do século passado, mas na arte barroca, que considera o movimento um fator essencial. O trânsito que ela estabelece entre veste e corpo manifesta-se de duas maneiras fundamentais: no uso erótico do panejamento, como acontece em Bernini, e na ilustração do corpo como despojo vivo, como acontece no desenho anatômico. Na história da pintura, o panejamento conquista a sua autonomia muito lentamente. Alberti, na primeira metade do século XV, em seu tratado De pictura, defende a dependência do panejamento em relação àquilo que ele cobre: “Nasçam as dobras como do tronco da árvore, os seu ramos. Nelas, por100

tanto, registram-se todos os movimentos, de tal forma que nenhuma parte do pano fique sem movimento vazio”.29 É no ateliê de Verrocchio, entre 1470 e 1480, que o panejamento alcança uma feição autônoma e se impõe figurativamente como elemento determinante da representação, sobretudo, graças à obra de Leonardo. Entretanto, o próprio Leonardo, no seu Tratado da pintura, recomenda não fazer com o pano “confusão de muitas dobras”, mas deixá-lo cair simplesmente.30 É, portanto, só na segunda metade do século XVI que, sob a influência do Concílio de Trento, são lançadas as premissas para uma consideração diferente do panejamento que o emancipe das preocupações realistas. As representações da Ressurreição e mais ainda da Ascensão de Cristo e da Assunção da Virgem tiveram um papel determinante nesse processo:31 o lugar ocupado na espiritualidade reformista pelo corpo nu da crucificação é agora tomado pelo corpo vestido da ressurreição triunfante. Nasce, assim, uma nova sensibilidade erótica, que considera a veste um novo corpo, remido do pecado e finalmente inocente. Nesse processo insere-se a obra promovida pelas ordens religiosas, as quais, através da celebração iconográfica dos seus santos, impõem como modelo a figura humana inteiramente envolta no hábito. É necessário ter presentes tais premissas se quisermos entender totalmente o extraordinário encanto erótico da obraprima de Bernini, A transverberação do coração de Santa Teresa,* criada para a Capela Cornaro da Igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma. Esse encanto não depende apenas do esplendor do anjo, do evidente simbolismo sexual da flecha, do * O autor optou por essa forma para nomear a obra conhecida como “O êxtase de Santa Teresa”. (N. do T.)

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também evidente desvanecimento expresso pelo belíssimo rosto da santa, mas sobretudo do fato do corpo de Santa Teresa ter se dissolvido no panejamento do hábito, sofrendo uma transformação que o emancipou da forma humana, ainda que mantendo todo o frêmito impetuoso e vibrante de um corpo em êxtase. Por isso, o esboço mutilado em terracota, guardado no museu Hermitage de São Petersburgo, parece ainda mais significativo do que o grupo marmóreo.32 De fato, fazendo concessões menores à completitude formal, ele acentua o essencial: o trânsito do corpo para a veste, o deslocamento daquilo que está sob o panejamento. As profundas cavidades formadas pelo tecido do hábito repetem as dobras de um corpo que se oferece ilimitadamente, que convida a rebuscar, a abrir, a fender. Na obra realizada, o anjo segura com uma mão a flecha e com a outra prepara-se para descobrir o peito da santa; mas a sua pose, muito mais estática do que no esboço, mostra a incongruência do ato que ele se prepara para executar: na verdade, a forma do corpo já está completamente dissolvida e transitou para o hábito. A passagem do corpo natural de Santa Teresa para o corpo glorioso do hábito é um trânsito do mesmo para o mesmo, que recorda a transubstanciação eucarística. No catolicismo, de fato, a experiência por excelência do corpo e do sangue de Cristo não ocorre na contemplação da cruz, mas na comunhão eucarística. Na hóstia Cristo está presente, assim como no hábito de santa Teresa está presente o seu corpo. Não tem sentido procurar alguma coisa sob o hábito: “Teresa vive essencialmente no hábito”.33 Tudo já está dado aqui e agora na sua triunfante inocência, em um invólucro que é substância, em uma cobertura autônoma e auto-suficiente. 102

Figura 1 - Lucas Cranach il Veccchio, Lucrécia.

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Figura 2 - Lucas Cranach il Veccchio, Vênus e Amor.

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Figura 3 - Francesco Mazzola il Parmigianino, Madonna della rosa.

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Figura 4 - Gian Lorenzo Bernini, O êxtase de Santa Teresa (esboço em terracota).

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Esse novo corpo não é, porém, uma forma imóvel. A presença sacramental é viva, é “um movimento sempre recomeçado... que vê claramente como a forma é apenas um aspecto daquilo que existe”.34 Ela não encontra paz, descanso ou repouso em uma bela superfície ou em um matrimônio espiritual ou em uma teatralidade em si,35 mas se desloca, se movimenta, se transfere incansavelmente. A erótica barroca, porém, não se esgota no hábito de santa Teresa — ela percorre o caminho que leva da veste ao corpo. Os nus barrocos não são mais o ponto de chegada de um desnudamento: eles resplandecem como “túnicas de pele” que em nada se distinguem das “túnicas de luz” das quais falam os pais da Igreja. Isso já se torna evidente nos nus de Bernini, no grupo marmóreo Apolo e Dáfnis ou na Verdade revelada pelo tempo, em que o nu e o drapeamento são postos um ao lado do outro em uma completa e surpreendente autonomia. O corpo como veste celebra os seus triunfos em alguns pintores celebérrimos, que são intérpretes excepcionais da erótica do revestir. Basta pensar em Rubens, que exalta com efeitos incomparáveis a textura da epiderme e estabelece trânsitos eróticos entre a pele humana e as peles animais, como no notável quadro Het pelske; ou em Poussin, que orquestra grandes composições onde nudez e drapeados são tratados com o mesmo distanciamento indiferente; ou Velázquez, pintor de magníficas vestes e de uma serícea Vênus no espelho. O coroamento dessa maneira de entender o corpo seja talvez Boucher, pintor de “túnicas de pele” que nem parecem nus e de um quadro que representa Vênus desarmando Amor, no qual é simbolicamente representada a suspensão da pulsão iconoclasta.

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Essa pulsão é suspensa não porque é deixada para mais tarde, nem porque é guardada através do véu, mas porque é tornada inútil pela consciência de que os corpos são despojos e não estátuas, vestes e não formas substanciais. Desse conhecimento é portador o desenho anatômico barroco, que passa a lâmina da faca, o fio da navalha sobre as belas “túnicas de pele” de Poussin, abrindo-lhes e desdobrando-lhes as bordas, pondo à mostra as belas superfícies dos músculos e dos órgãos internos, exaltando ao máximo o seu encanto erótico. A obra mais significativa sob esse ponto de vista é provavelmente o tratado Anatomia do corpo humano, do holandês Gottfried Bidloo, publicada em 1685, em Amsterdã, e ilustrada por estupendas lâminas de Gérard de Lairesse, artista de gosto e de formação poussiniana. Essa obra, que foi considerada inútil tanto para os médicos como para os artistas,36 constitui um dos vértices do erotismo barroco e fornece um extraordinário pendant à santa Teresa de Bernini. Naquela, uma veste que é tão viva e vibrante quanto um corpo; nesta, um corpo que é tão externo e magnífico quanto uma veste. Em ambas, o sujeito não mais existe, está fora de si, no êxtase ou na morte. A representação do corpo como uma veste não é, certamente, uma novidade barroca; ela pertence ao desenho anatômico do século XVI. A começar pela Fábrica de Vesalius, publicada em 1543, há toda uma série de obras anatômicas, no início destinadas aos médicos e depois expressamente realizadas para os artistas, que representam esfolados com a pele na mão.37 Elas, evidentemente, têm relações com a pintura da época (sobretudo com Ticiano e Michelangelo), mas em sua enorme maioria não escapam à categoria estética do horrendo.38 Deve-se estabelecer um trânsito entre a vida e a mor112

Figura 5 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano. Amsterdã, 1685.

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Figura 6 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano. Amsterdã, 1685.

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Figura 7 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano. Amsterdã, 1685.

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Figura 8 - De G. Bidloo, Anatomia do corpo humano. Amsterdã, 1685.

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te, para que o cadáver objeto da dissecação seja visto e representado na sua indiscernibilidade de corpo objeto de atenção erótica. É exatamente isso que acontece nas lâminas do tratado de Bidloo que representam os corpos sem vida e esfolados de um jovem homem e de uma jovem mulher. Nada nessas lâminas leva a pensar na decomposição, na matança, no esquartejamento. Os órgãos internos são tão belos quanto a curva do seio, a abertura dos glúteos, a cavidade da vulva. A erótica do revestir vai além da pele e atinge também o interior do corpo. Até mesmo a parte interna da pele, que é suavemente dobrada para fora, não é um resto sanguinolento: parece uma pele de animal ou um veludo, um tecido de qualidade superior à mortalha na qual o corpo foi envolvido ou ao pano que mantém presos os cabelos, embora não essencialmente diferente destes. À primeira vista, nada distingue o cadáver desenhado — como diz a página de rosto — ad vivum pelo pintor de um corpo vivo simplesmente abandonado a si mesmo, talvez entregue ao sono — a mão da morta às vezes acompanha com malícia a borda da pele em um gesto de extrema doçura. Ela parece quase descobrir-se sozinha para oferecer à vista não um interior, mas tecidos, só que mais finos, mais preciosos. Estes são posteriormente seccionados nas lâminas seguintes do tratado sem que nunca se chegue a perceber algo de íntimo ou de secreto. Do corpo humano sadio e inteiro, desenhado nas primeiras lâminas do tratado, ao esqueleto, desenhado nas últimas, transitamos através de 105 ilustrações do mesmo para o mesmo. Os cachos dos cabelos, os pêlos do púbis, as asas da mosca que acidentalmente se demora no ventre, o mamilo túrgido, o pênis esfolado que se ergue majestoso, enquanto pequenos pregos prendem a pele do escroto na mesa... tudo 121

é veste, pano, tecido. Os tendões assemelham-se às fibras da corda que segura o cadáver pela garganta ou ao laço que mantém unidos os pulsos. Até mesmo os ossos são representados como tecidos com a trama um tanto carcomida. Tudo agora está reduzido aos mínimos termos, feito em pedacinhos e desenhado de todos os lados, como os minúsculos ossos dos pés ilustrados na última lâmina — tudo permanece, até o fim, tecido, veste. Tudo se reduz a pó, mas o pó é ainda uma extrema cobertura, que tudo envolve.

4 O nu eletrônico e a veste de carne No nosso século, a erótica do despir e a erótica do revestir se manifestam como espetáculos no strip-tease e no teatro erótico. Entretanto, só muito raramente eles conseguem alcançar um trânsito erótico efetivo. No strip-tease isso acontece quando a strip-teaser consegue, com o olhar, inverter uma relação de mão única. A partir do momento em que o espectador, por sua vez, é olhado com intensidade, é como se a nudez que se oferece funcionasse como um espelho: o espectador é convidado a defrontar-se com a sua nudez potencial. O peep show, que permite olhar sem ser visto, restabelece a perspectiva metafísica grega, os direitos da pura atividade cognitiva, e trunca toda possibilidade de trânsito. No teatro erótico, no qual se vêem atores copulando, o trânsito pode estabelecer-se só quando a barreira do tato é quebrada. A mulher que pede ao espectador que a deixe sentar no seu colo, que a segure pelos pulsos enquanto seu parceiro a possui, às vezes consegue fazer-se sentir como uma veste, um invólucro, uma coberta. Mas esse trânsito não conse122

gue manter-se; na cultura ocidental, de fato, a experiência tátil se anuncia como o prelúdio de uma posse que flui para o orgasmo como sua conclusão natural.39 Assim, toda tensão desaparece e tudo se apazigua. Na realidade, a erótica dos nossos dias se encaminha para perspectivas muito mais novas e inquietantes do que o striptease ou o teatro erótico, isto é, o nu eletrônico realizado pela computação gráfica e a veste de carne dos ritos de possessão das religiões afro-americanas. A computação gráfica parece poder construir a imagem absolutamente realista de um corpo que na realidade não existe. À diferença da fotografia, que remete a um modelo real, ela prescinde por completo da existência de um original. O nu realizado eletronicamente não tem mais nada a ver com o corpo: ele levou ao extremo, de modo positivo, a pulsão de despir da Reforma e do Maneirismo. Em tese, nada impede a realização eletrônica de imagens perfeitamente realistas de nus de madeira, de ferro ou de vidro. Assim, despe-se o corpo até mesmo da aparência da carne. A subversão no mundo das formas vem acompanhada por uma produção potencialmente ilimitada de imagens. No pólo oposto, o fenômeno do transe, sobre o qual se fundam os ritos das religiões afro-americanas (candomblé, macumba, vodu, entre outras), oferece a imagem de corpos colocados à disposição, possuídos, “cavalgados” pela divindade. A pulsão de vestir da Contra-Reforma e do Barroco se radicaliza: nesses ritos não vemos estátuas, quadros ou desenhos, e sim corpos desapossados de sua subjetividade, animados por uma força que se manifesta mediante e através deles. A possessão é assim irredutível tanto à iconofilia como à iconoclastia. O corpo do possuído está presente em carne e osso, no entanto isso não conta por si, e sim pelo fato de dar 123

uma imagem a uma divindade que não se contenta em ser desenhada ou representada teatralmente mediante uma máscara, mas pede para vestir um rosto, um corpo. Os nus de luz da eletrônica e as vestes de carne das religiões afro-americanas parecem, portanto, abrir novos caminhos ao trânsito erótico. Entretanto, mesmo nesse âmbito, o risco de uma recaída na metafísica está sempre presente. Permanece-se no âmbito da metafísica inaugurada por Platão até que os produtos da computação gráfica sejam considerados superformas, cujo significado se esgota na visibilidade. Não é por acaso que uma das primeiras propostas para o uso da nova tecnologia diz respeito à possibilidade de criar imagens que reúnam em si as melhores partes de várias atrizes, que tenham, por exemplo, os olhos de Greta Garbo, a boca de Brigitte Bardot, os seios de Rachel Welch... Decalca-se assim a idéia neoclássica de uma beleza ideal construída com as partes mais belas de diversos corpos. Porém, o erotismo não tem nada a ver com tais colagens. Permanece-se igualmente no âmbito do pensamento metafísico na medida em que se pensa o transe como a unidade mística entre o homem e Deus, finalmente conciliados entre si em um âmbito de supra-elevação espiritual. A veste de carne, bem ao contrário, está ligada com a diferença do corpo, que não é mero instrumento da vontade subjetiva, mas elemento de uma ritualidade cerimonial, a qual finalmente está livre de sua subordinação para com o mito. O transe não eleva à visão teofânica, nem precipita no delírio da sobreexcitação patológica: é “uma liturgia corporal admiravelmente regulada”,40 muitas vezes indistinguível da cotidianidade da dança.

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Notas 1. Remeto à editio princeps do texto bíblico, estabelecido pela CEI (Conferência Episcopal Italiana) e traduzido em La Bibbia di Gerusalemme, org. por F. Vattoni, Bolonha, EDB, 1974. 2. E. Haulotte, Symbolique du vêtement selon la Bible. Paris, Aubier, 1966. 3. M.J. Congar, Le mystère du temple. Paris, Les Éditions du Cerf, 1963, 2º, p. 115 e seguintes. 4. H. Blumenberg, La metaforica della “nuda” verità, in Paradigmi di una metaforologia. Bolonha, Il Mulino, 1969, p. 57 e seguintes. 5. J. Ritter, Origine e senso della “theoria”, in Metafisica e politica. Marieti, Casal Monferrato, 1983, p. 3 e seguintes. 6. Cf. verbete sraw in G. Kittel, Grande lessico del nuovo Testamento. Brescia, Paideia, 1965 e seguintes, vol. VIII, c. 893. 7. K. Clark, Il nudo. Uno studio della forma ideale. Milão, Martello, 1967. 8. Fílon de Alexandria, Le allegorie delle leggi, II, 56. Milão, Rusconi, 1978, p. 229. 9. W. Fraenger, Il regno millenario di Hieronimus Bosch. Milão, Guanda, 1980. 10. Apud H. Leisegang, La gnose. Paris, Payot, 1951, p. 29. 11. H.U. von Balthasar, Gloria. Un’estetica teologica, vol. 6, L’antico patto. Milão, Jaka Book, 1980, p. 20. 12. Ib., p. 116. 13. M. Heidegger, La dottrina di Platone sulla verità. Turim, Sei, 1975, p. 55. 14. M. Detienne, I maestri di verità nella Grecia Arcaica. Bari, Laterza, 1977, p. 112. 15. M. Heidegger, op. cit., p. 43. 16. G. Bataille, L’erotismo. Milão, Sugar, 1962, p. 19. 17. Sobre esse assunto, permito-me remeter ao meu artigo “Bataille e l’Italia”, in L’Erba Voglio, nos 29-30, setembro-outubro de 1977. 18. G. Bataille, Les larmes d’Eros. Paris, Pauvert, 1961. As ilustrações são só parcialmente reproduzidas na edição italiana, Le lacrime d’Eros. 19. K. Clark, op. cit. de D. Ritti, Roma, Arcana, 1979, que é acompanhada da minha apresentação, L’iconoclasma erotico di Bataille. 20. L. Reau, Iconographie de l’art chrétien. Paris, P. U. F., 1957, vol. II, 2, p. 462 e seguintes. 21. A posição de Lutero sobre esse assunto é completamente diferente daquela de Meister Eckhart e da mística renana (Taulero, Suso): enquanto estes miram uma união da alma completamente espolhada com um Deus cuja essência é destituída de imagem e de forma, Lutero exclui essa possibilidade. Cf. Dépouillement, in Dictionnaire de spiritualité, ascetique et mystique. Paris, Beauchesne, 1937, e G. Miegge, Lutero giovane. Milão, Feltrinelli, 1977, p. 105, nota 37. 22. Sobre a relação arte—Reforma, cf. C. C. Christensen, Art and Reformation in Germany. Athens, Ohio University Press, 1959, e M. Pianzola, Peintress et vilains. Les articles de la Renaissance et la grande guerre des paysans de 1525. Paris, Cercle d’Art, 1962.

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23. A. Chastel, Il sacco di Roma. Turim, Einaudi, 1983. 24. Tertuliano, De carne Christi, XI, 4., Paris, Éditions du Cerf, 1975, p. 258. 25. P. Klossowski, Un si funeste désir. Paris, Gallimard, 1963, p. 41. 26. P. Klossowski, La rassemblance. Marselha, Ryôan-ji, 1984, p. 107. 27. P. Klossowski, “La moneta vivente”, in Il Piccolo Hans, nº. 13, janeiro-março de 1977, p. 83. 28. P. Klossowski, La rassemblance, op. cit., p. 63. 29. L. B. Alberti, De pictura, livro II, cap. 45, in Opere volgari, Bari, Laterza, 1973. 30. Apud G. Dalli Regoli, “Il ‘piegar de’ panni”, in Critica d’arte, ano XXII (1976), nº 150, p. 35 e seguintes. 31. E. Mâle, L’art religieux après le Concile de Trente. Paris, Colin, 1932. 32. G. Matzulevitsch, “Tre bozzetti di G. L. Bernini all’Ermitage di Leningrado”, in Bollettino d’arte, 1963, p. 67 e seguintes. 33. R. Kuhn, “Die Unio mystica der Hl. Therese von Avila von Lorenzo Bernini in der Cornakoppelle in Rom”, in Alte und moderne Kunst XII (1967), nº 94, p. 5. 34. Assim escreve Y. Bonnefoy a propósito de Bernini, in Roma 1630, Roma, Instituto Editoriale Italiano, 1970, p. 18. 35. R. Wittokower (in G.L. Bernini, The sculptor of the Roman Baroque. Londres, The Phaidon Press, 1955, p. 32) observa com justiça que a obra de Bernini não pode ser reduzida a uma vazia teatralidade. 36. L. Choulant, Geschichte und Bibliographie des anatomischem Abbildung. Lipsia, Weigel, 1852, p. 93. 37. L. Premuda, Storia dell’iconografia anatomica. Milão, Martello, 1957, e M. Duva e E. Cuyer, Histoire de l’anatomie plastique. Paris, Societé Françasise d’Édition d’Art, 1898. 38. J. Guillerme, “Sur l’esthétique du décharnement”, in Revue d’Esthétique, 1969, nº 2, p. 139 e seguintes. 39. Isso se dá de modo diferente na cultura oriental. Cf. R. Van Gulik, La vie sexuelle dans la Chine ancienne. Paris, Gallimard, 1961. 40. R. Bastide, Le rêve, la transe et la folie. Paris, Flammarion, 1972, p. 56.

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Capítulo IV

Ícones, visões e simulacros

1 Iconofilia e iconoclastia A discussão contemporânea sobre a imagem social que os meios de comunicação de massa produzem parece não conter nenhuma referência direta à religião ou à metafísica. Na realidade, o debate atual, precisamente em face da amplitude adquirida pelo conceito moderno de imagem,1 que tende a abranger toda a experiência contemporânea, por um lado, ilumina com novos significados as discussões passadas e, por outro, reproduz e herda as suas premissas filosóficas. A batalha em torno às imagens, o Bilderstreit entre iconófilos e iconoclastas, constitui um tema recorrente em nosso passado. Em Bizâncio, defensores e destruidores das imagens enfrentaram-se de forma cruel durante mais de um século. Posteriormente, o iconoclasmo encontrou partidários em várias seitas heréticas, como os bogomilos e os cátaros. No início da Idade Moderna, no século XVI, a questão das imagens tornou-se motivo de profunda divisão entre católicos e reformados. 127

O conflito entre iconofilia e iconoclastia confunde-se com freqüência com a luta entre politeísmo e monoteísmo. Em geral, o iconoclasmo reivindica uma idéia mais pura de Deus, cuja representação parece sempre inadequada ou até mesmo blasfema. A discussão sobre a licitude das imagens não é, portanto, apenas um problema do culto e de suas modalidades, mas uma questão filosófica de suma importância que envolve a relação entre matéria e espírito, entre ficção e realidade, entre o mundo e Deus. O problema teórico fundamental da imagem é a sua relação com o original. Para os iconófilos, entre a imagem e o original, entre a forma e o espírito, entre o ícone e a divindade, existe uma relação de identidade ou, pelo menos, uma relação de ligação metafísica. O arcipreste russo Pavel Florenski, que, nos anos 20, retomou e recapitulou as teses da iconolatria ortodoxa, afirma que o conteúdo espiritual do ícone não é algo de novo com relação ao original, mas o próprio original:2 a imagem não deve, portanto, ser considerada uma simples representação do original, e sim uma evocação, uma “porta” através da qual Deus entra no mundo sensível. Negar a imagem, para ele, equivalia a negar a encarnação do espírito, ou seja, a abandonar todo o mundo físico às trevas do mal e da corrupção. O original, a idéia platônica, é, para os iconófilos, passível de evidência sensível: a deles é uma metafísica concreta, uma teologia visual, que vê no ícone a conjunção do mundo invisível com o mundo visível. Para Florenski, somente a Igreja do Oriente soube guardar o espírito dessa tradição que remonta à pintura das múmias do antigo Egito e que encontrou o seu maior florescimento na obra dos pintores de ícones dos séculos XIV e XV, tais como Andrei Rubiev. A Igreja Romana, ao contrário, foi deformada na própria estrutura 128

de sua vida espiritual pela experiência renascentista, cuja mundanalidade a Igreja jamais conseguiu superar de fato. As imagens do Ocidente, as pinturas a óleo sobre tela, são “terrenas e carnais”. Caracterizadas pela “máxima suculência sensível”, elas constituem o “testemunho mais clamoroso de si próprias”. A essa secularização e laicização da imagem implícita no catolicismo romano, Florenski até parece preferir a iconoclastia: pelo menos, os iconoclastas, embora negando um nexo ontológico entre os arquétipos e as imagens, entre Deus e o ícone, guardam a dimensão ontológica do original, do arquétipo, de Deus. O ponto de vista da iconoclastia religiosa, ao contrário, é afirmado com toda a energia pela ala extremista da Reforma protestante na primeira metade do século XVI, para a qual Deus, o original, o espírito, é absolutamente diferente e outro em relação à imagem, à figura, ao mundo. A preocupação fundamental dos iconoclastas é a preservação da pureza do conceito de Deus e do ser; ela implica a recusa de toda representação sensível, imediatamente qualificada como ídolo. Em conformidade com a tradição bíblica, eles contrapõem aos ídolos, às falsas imagens de Deus, a visão profética do porvir. Essa visão é fundamentalmente diferente do ícone — é a revelação de Deus, que se manifesta àqueles que o amam e que se afastaram do mundo idolátrico. “O eleito”, escreve Thomas Müntzer, “deve prestar atenção à ação da visão a fim de que ela não brote de preparativos humanos, mas verdadeiramente da vontade imutável de Deus, e deve providenciar com muito cuidado para que não se perca nem a mínima parte daquilo que viu, uma vez que ela deve ser posta em ação eficazmente.”3 Deriva daí o caráter sectário do iconoclasmo; as visões são, por definição, privilégio de poucos. Elas são muito diferentes das 129

imagens e das experiências comuns e cotidianas e apresentam um caráter excepcional e extraordinário: “Aquilo que o olho não viu e o ouvido não escutou é o que Deus preparou para aqueles que o amam”. A postura iconoclasta implica uma rejeição da realidade mundanal; a esta não se reconhece relação alguma com o original divino — é um mero espetáculo, uma encenação sem valor ontológico algum, uma enganosa mentira de poderes diabólicos. A visão profética é essencialmente moralista, escatológica e messiânica: ela reivindica a iminência de um dever ser que ilumina e revela o destino último da humanidade e anuncia o advento de uma era final de salvação e a instauração do reino de Deus na terra. Iconofilia e iconoclastia renascem em nossos dias nas discussões em relação à imagem social. Os iconófilos contemporâneos são os realistas e os hiper-realistas dos meios de comunicação; os iconoclastas são os hiperfuturistas da autenticidade e da verdade alternativa. Em ambos permanecem operantes, a seu malgrado, as premissas filosóficas e metafísicas de seus predecessores religiosos. A iconofilia moderna consiste em defender a necessidade de um nexo íntimo, de uma relação de estreita afinidade entre a notícia publicada no jornal e o fato ao qual ela se refere, entre a imagem oferecida pela publicidade e a mercadoria anunciada, entre a propaganda do partido político e sua realidade social, entre a transmissão televisiva e seu objeto; em suma, entre a imagem e o original. Assim como o arcipreste Florenski, os realistas modernos querem ver a realidade; eles estão cheios de santa indignação contra a manipulação das notícias, a persuasão oculta, as promessas eleitorais não mantidas, a tendenciosidade televisiva. Exigem uma informação honesta e completa, um controle da publicidade, 130

uma propaganda feita através dos fatos, uma televisão que transmita ao vivo. Acreditam que os meios de comunicação de massa devam ser subtraídos ao uso partidário e sectário que deles faz o poder, que sejam potencialmente democráticos e constituam um instrumento essencial de progresso e crescimento cívico. Acreditam que a verdade possa e deva ser comunicada, difundida, divulgada e transmitida sem que a sua natureza seja alterada. Qual é o resultado dessas exigências? O que é que os meios de comunicação de massa oferecem em resposta a tais expectativas? Uma imagem o mais realista possível, uma imagem que é vendida como sendo idêntica à realidade, ao conteúdo, ao original, mas que é tão manipulada, predeterminada e pré-formada quanto qualquer outra, isto é, uma imagem hiper-realista que reflete fielmente uma hiper-realidade préimaginada. Pertencem ao gênero do hiper-realismo social as notícias relativas a pseudo-acontecimentos sensacionais, truculentos ou dramáticos, criados para influir sobre a opinião pública, a publicidade que anuncia a própria autolimitação e o próprio autocontrole em nome do progresso, a política de austeridade econômica que pretende restaurar a distinção entre útil e inútil e a concretude do valor de uso dos objetos, os programas televisivos que alteram e confundem personagens reais com atores que os imitam. Esse hiper-realismo social proporciona uma imagem real só com a condição de criar uma realidade inteiramente subordinada à imagem — ele atua como aquela quadrilha produtora de filmes pornográficos que torturava até a morte as atrizes para obter imagens de sadismo realistas ao extremo. A exigência de uma imagem intimamente ligada à realidade apenas amplia o âmbito da manipulação, que se es131

tende até envolver o original. Quanto mais a iconofilia reclama a visão da realidade, mais essa realidade perde a sua dimensão real, se torna “alucinante semelhança do real consigo mesmo”.4 Os pseudo-acontecimentos ocorrem de verdade, mas o status de “notícia” que assumem é infinitamente mais importante do que a sua realidade; a publicidade que se autolimita é uma publicidade mais eficaz; a restauração política do útil e do valor de uso possui apenas um valorsigno, é uma imagem de propaganda; a confusão entre documentação e teatro, entre verdade e ficção, torna teatral e fictícia toda a realidade. A iconoclastia moderna, como a religiosa, está ligada à visão profética da sociedade futura. Ela se apresenta por isso como revolucionária em relação ao mundo atual, negando-lhe o caráter de realidade e qualificando-o como aparência, espetáculo. O jornalismo, a publicidade, a propaganda política, os meios de comunicação de massa constituem precisamente, segundo os iconoclastas modernos, uma sociedade do espetáculo que deve ser rejeitada em bloco, em nome de uma realidade, de um original que se expressa na subjetividade radical de quem se rebela contra as instituições e na organização autônoma do proletariado revolucionário. A moderna iconoclastia reproduz todas as características da velha: a pureza do moralismo monoteísta torna-se a coerência do indivíduo ou do grupo revolucionário; o desprezo para com os modos idólatras de viver transforma-se em crítica da vida cotidiana e da chamada “sobrevivência”; a experiência da revelação divina e a entrada na história sacra é chamada “superação da pré-história” e advento da sociedade comunista. O iconoclasmo moderno resolve-se num hiperfuturismo visionário que dilui o original na imagem mais original, na mais 132

inédita, insólita, surreal. A ostentação de uma realidade mais substancial da aparência conduz unicamente a uma forma mais ruidosa e chamativa de espetáculo. À medida que a imagem do futuro vai se tornando mais próxima e iminente, perde o seu caráter de realidade alternativa e qualifica outra categoria de imagens, que se apresentam, por definição, como mais novas e eficazes. A revolução que destrói todos os espetáculos reduz-se à imagem fotográfica da guerra civil; a publicidade consegue exercer a sua função de estímulo somente sob a condição de tornar-se surreal e hiperfuturista; os meios de comunicação de massa são obrigados a oferecer um maravilhoso social que introduz na vida cotidiana a emoção do excepcional e o choque do futuro. No passado, iconofilia e iconoclastia eram posturas opostas; entre os defensores dos ícones e os defensores das visões não havia compromisso possível. Ainda em 1968, os apologistas dos meios de comunicação de massa e os iconoclastas revolucionários pareciam inimigos irreconciliáveis. Hoje, porém, entre o hiper-realismo, que oferece realidades visionárias, e o hiperfuturismo, que proporciona profecias já realizadas, existe apenas uma diferença de tom: a hiper-realidade é uma imagem demasiado alucinada para ser de fato real, e a hipervisão é uma realidade visual demasiado cotidiana para ser de fato profética. Hiper-realidade e hipervisão assemelhamse porque têm a pretensão de ser algo mais do que imagens, de representar uma substância presente ou futura, um original. Iconofilia e iconoclastia convergem na pretensão metafísica de estabelecer uma relação entre a imagem e o original; quer essa relação seja de identidade, como na iconofilia, quer de diferença, como na iconoclastia, pouco importa: o importante é o pressuposto metafísico, comum a ambas, que afirma a exis133

tência de um original, materializado no ícone ou revelado na visão. No entanto, a imagem produzida pelos meios de comunicação de massa não possui original — trata-se de uma construção artificial que não possui protótipo. Por isso, quando as duas posições tradicionais em relação às imagens são estendidas à imagem contemporânea, resultam evidentes sua inadequação e sua impotência. Elas procuram reagir à falta de dimensão metafísica da imagem contemporânea mediante a afirmação exagerada e extremista de uma realidade presente ou futura. Dessa forma, porém, conseguem gerar apenas um hiper-realismo e um hiperfuturismo que são a representação caricatural do ícone e da visão, e que acabam confundindo-se um com o outro.

2 A imagem como simulacro O simulacro não é ícone nem visão; ele não mantém uma relação de identidade com o original, com o protótipo, nem implica a laceração de todas as aparências e a revelação de uma verdade pura, substancial. O simulacro é uma imagem que não possui protótipo, é a imagem de algo que não existe. Iconófilos e iconoclastas consideram-no sinônimo de ídolo e, como tal, prope nihil – quase nada. Essa avaliação depreciativa depende inteiramente da pretensão metafísica de capturar uma realidade absoluta presente ou futura. Por essa razão, os iconófilos condenaram a idolatria tanto quanto os iconoclastas; para eles, fixar uma linha de demarcação precisa entre imagens verdadeiras e falsas, entre ícones e ídolos, constituiu uma premissa essencial, uma garantia de identidade. A avaliação positiva da imagem enquanto imagem é uma perspectiva moderna que implica o fim da metafísica e a 134

completa aceitação do mundo histórico. O conceito de simulacro só pode nascer num contexto que tenha superado definitivamente tanto a teoria platônica da idéia e de sua cópia sensível (sobre a qual se fundamenta a iconofilia oriental) como o profetismo visionário da Bíblia (sobre o qual se fundamenta a iconoclastia protestante). Tais condições existem na Itália do século XVI: a teoria das imagens de São Roberto Bellarmino, exposta em sua obra De controversiis christianae fidei, marca precisamente o surgimento de uma nova posição, irredutível à iconofilia ou à iconoclastia tradicionais. Bellarmino opõe-se tanto àqueles que, como sãoTomás de Aquino, sustentavam que se devia a mesma veneração à imagem e ao exemplar (ao original, por causa dele próprio; à imagem, por causa do original) como àqueles que, como o teólogo medieval Durando, afirmavam que a imagem não é propriamente objeto de culto, constituindo apenas uma ocasião, um convite à veneração do original. Ao contrário, Bellarmino defende um cultus imagini per se et proprie debitus, isto é, uma consideração positiva da imagem que não depende diretamente do protótipo, mas que é dotada de uma autonomia própria (per se) e de uma especificidade própria (proprie). Enquanto para são Tomás de Aquino se deve prestar à imagem de Cristo o mesmo culto de latria que é devido ao próprio Cristo e às imagens dos santos, o mesmo culto de dulia devido aos próprios santos, para Bellarmino, as imagens sacras devem ser veneradas alio atque alio modo, de um modo diferente daquele como é venerado o original.5 Dessa forma, ele rompe a relação direta entre imagem e original que constitui o fundamento da iconofilia sem, no entanto, cair na iconoclastia ou simplesmente numa desvalorização das imagens. O importante é que o valor das imagens não mais depende da realida135

de e da dignidade do protótipo metafísico, e sim de sua dimensão intrínseca, concreta, histórica. Ao comparar as teses de Bellarmino sobre as imagens com aquelas sobre o mesmo assunto defendidas cinqüenta anos antes por Calvino, em seu Institutio christianae religionis, não se podem deixar de notar, por um lado, a grande hipoteca metafísica que pesa sobre o texto iconoclasta do reformador e, por outro, a aberta aceitação da mundanalidade implícita nas palavras do cardeal jesuíta. Segundo Calvino, as imagens sacras são nocivas porque diminuem o temor a Deus e tornam mais familiar a sua presença,6 mas, nas páginas de Bellarmino, Deus está distante. A relação entre imagem e Deus, segundo ele, é tão indireta e mediata quanto a relação que existe entre o pobre a quem se dá esmola e Cristo, em cujo louvor a esmola é dada: “At quando imago honoratur per se et proprie, ita ut in ipsam vere terminetur honor, tunc honor eius transit ad exemplar non immediate, sed mediate, et quasi consequenter”.7 Em Calvino, a ligação entre Deus e o mundo é restabelecida mediante os conceitos de signo e de sacramento; toda a sociedade, portanto, é investida por uma intervenção constante, embora oculta e misteriosa, de Deus. Em Bellarmino, ao contrário, não há espaço para uma hermenêutica sacra que distinga o signo do ídolo, porque o mundo das imagens em sua totalidade possui um valor próprio que não depende estritamente de Deus. As premissas para uma avaliação das imagens como simulacros fundamentam-se na espiritualidade inaciana, na experiência vivida por santo Inácio de Loyola na primeira metade do século XVI e transmitida nos Exercícios espirituais. Trata-se de uma experiência muito original que está afastada tanto da teologia visual quanto do profetismo visionário. O que pa136

rece caracterizá-la psicologicamente é, por um lado, a extrema pobreza das imagens que se apresentam espontaneamente à consciência e, por outro, a vivacidade das cenas históricas que ela consegue evocar.8 A posição de santo Inácio em relação às imagens, na verdade, parece apoiar-se em duas atitudes aparentemente opostas e irreconciliáveis: a indiferença e a aplicação dos sentidos. Enquanto a iconofilia teológica favorece o entusiasmo natural diante da beleza da Criação, santo Inácio prescreve, antes de mais nada, “tornar-se indiferente a respeito de todas as coisas criadas”,9 esforçando-se por estar disposto a tomar ou deixar qualquer coisa. Ao mesmo tempo, entretanto, ele se move em direção oposta à renúncia ao mundo e ao seu espetáculo, o que é típico da iconoclastia visionária, porque prescreve expressamente “ver com os olhos da imaginação o lugar real onde está aquilo que se quer contemplar” (Ex., 47) e aplicar os sentidos com a finalidade de ter uma experiência o mais concreta possível, porque não há progresso espiritual se as coisas não forem sentidas e apreciadas interiormente (Ex., 2). Estão presentes, assim, as duas condições constitutivas do simulacro: por um lado, a renúncia à afirmação metafísica da identidade das coisas e do mundo; por outro, o reconhecimento de seu valor histórico. Nenhuma imagem é teofânica, muito embora todas as imagens possam ser condição necessária do exercício espiritual, isto é, da experiência. A esse propósito concorrem tanto as imagens do inferno como as da história de Cristo. A concepção platônica da beleza como aspecto da verdade é alheia à espiritualidade da Companhia, assim como é alheio um êxtase místico que sublime a sensualidade natural. A aplicação jesuítica dos sentidos é inseparável da indiferen137

ça, e o significado de sua ligação paradoxal reside na disponibilidade para aceitar, para escolher e para querer qualquer forma histórica, sem atribuir-lhe um valor absoluto ou definitivo. O conceito de simulacro implica, assim, a presença conjunta de disposições opostas: ele é o resultado de uma experiência interior que aceita e mantém os opostos, recusando as soluções metafísicas de seu conflito. É lugar-comum na história da arte estabelecer uma ligação entre os jesuítas e o estilo barroco — por certo, a Companhia contribuiu direta e indiretamente para a formação e a difusão da arte barroca. No entanto, já se observou que não existe um “estilo dos jesuítas” e que eles construíram as suas igrejas por todo o mundo seguindo, em cada ocasião, cânones arquitetônicos, artísticos e decorativos extremamente diferentes.10 Isso confirma, porém, que o importante não é tanto o estilo barroco, entendido como unidade formal, quanto o fim do valor metafísico do figurativismo e a inauguração da dimensão histórica, isto é, a possibilidade de utilizar como simulacro qualquer imagem e qualquer estilo. É justo essa abertura o dado que emerge com clareza, tanto da experiência jesuítica como do mundo barroco. Em ambos, opera-se essa secularização sem resíduos, alheia a toda perspectiva escatológica, que Benjamin pôs em evidência.11 O emblema é a produção figurativa barroca que mais ostenta as características do simulacro. De fato, o emblema, que foi amplamente utilizado no decorrer do século XVII pelos jesuítas para ilustrar os seus livros, é uma imagem acompanhada de um mote ou de uma sentença, sem nenhuma preocupação realista ou visionária. Trata-se, ao contrário, de uma construção artificiosa que deixa à mostra o seu caráter con ceituoso, arguto, engenhoso. Além disso, a sua própria rea138

lização técnica por meio da impressão gráfica não permite o desenvolvimento de um interesse fetichista em relação a ele, similar àquele do qual são objeto as obras únicas, os quadros. O livro Imago primi saeculi Societatis Iesu, publicado pelos jesuítas em Antuérpia em 1640, por ocasião do primeiro centenário da Companhia, não só oferece um exemplo esplêndido do uso jesuítico da imagem emblemática, como também constitui ele próprio um simulacro: expressamente comparada pelos seus autores aos troféus, às estátuas, aos arcos de triunfo dos antigos romanos, a obra aspirava a ser apreciada independentemente do assunto tratado. O triunfalismo do simulacro é inseparável da experiência do vazio. Benjamin atribuiu precisamente à emblemática seiscentista um enorme poder de “esvaziamento” (Entleerung): a partir do momento em que o objeto é incapaz de irradiar um significado ou um sentido unívoco, ou seja, é privado de sua identidade, “qualquer coisa pode significar qualquer outra coisa”.12 Contudo, a procura diligente de uma intenção oculta ou secreta por trás dessa emblemática, que jamais chega a manifestar-se, cega para aquilo que ele mostra; o essencial é a sua exterioridade vazia, que a procura de um significado oculto, ao contrário, esconde. A acusação de idolatria lançada contra a Companhia, que constitui um lugar-comum da polêmica antijesuítica,13 revela a perturbação que a apreciação histórica da imagem provoca nos pensadores metafísicos: para estes, é inconcebível reconhecer à imagem e à criatura, pensada como “imagem de Deus”, uma validade imediatamente dependente do ser, da substância, do protótipo. Ora, o simulacro é justamente a afirmação do valor da imagem enquanto imagem. O fato de que o próprio homem possa ser considerado simulacro demons139

tra a distância entre o chamado humanismo jesuítico e o humanismo clássico. A independência do simulacro, no entanto, não guarda relação alguma com a autonomia da arte. Nesta, a imagem repudia um original externo para afirmar a si própria como original, como entidade meta-histórica universalmente válida; a concepção da arte como criação não extingue a metafísica, apenas desloca o seu âmbito de aplicação do protótipo externo para a obra. A teoria da arte pela arte — como afirmava Benjamin — é uma “teologia artística”,14 e a atribuição do ser à arte não indica em absoluto uma superação da metafísica; pelo contrário, na teoria da arte pela arte, a imagem justificase unicamente sob a condição de que seja ela própria o ser! O conceito de simulacro, aliás, implica a negação tanto de um protótipo externo como da tentação de considerar a imagem um protótipo; ele está, por isso, relacionado com as técnicas de reprodução industrial da imagem, a começar pela impressão. O interesse jesuítico pela imagem jamais foi de natureza artística;15 o simulacro, porém, apresenta uma relação de estreitíssima afinidade com a espiritualidade e até com a organização dos jesuítas.16 O conceito de simulacro, entendido como construção artificiosa que não possui original e que é incapaz de ser, como a obra de arte, ela mesma um original, encontra as condições para uma plena realização nos meios de comunicação de massa contemporâneos. Estes podem propor uma imagem que é enormemente mais complexa e construída do que aquela oferecida por qualquer realidade e que, não obstante, não adquire — como a obra de arte — um caráter prototípico, uma originariedade própria. A televisão, por exemplo, pode oferecer uma variedade incomparavelmente maior de imagens de um dado aconte140

cimento do que aquela que o indivíduo poderia ver se estivesse presente no local, sem com isso adquirir um status artístico. Os meios de comunicação de massa, até o momento, têm em geral negado o seu caráter de simulacro. Ao considerar a si próprios como “espelho da realidade” ou do futuro diante de um público ainda profundamente impregnado de nostalgias metafísicas, chegaram às aberrações hiper-realistas e hiperfuturistas. Mas o seu valor não consiste na satisfação de pretensões metafísicas; ao contrário, ele implica precisamente o abandono de tais pretensões. Os meios de comunicação não podem ser a representação da realidade ou do futuro, porque são, antes de tudo, condições da experiência social presente e futura. Hoje, o patrimônio estilístico, formal e cultural da humanidade pode ser objeto de uma simulação que se apresenta como tal, de uma ficção que oferece, além de si mesma, os sinais da própria irrealidade. Boorstin observa que, em toda a história do homem, se trata da primeira grande sedução na qual o fascínio do sedutor é reforçado pela revelação de seus artifícios.17 Isso depende do fato de que a escolha não se dá — como nas idades metafísicas — entre verdade e mentira, mas entre uma imagem que se vende como realidade presente ou futura e uma imagem que é dada como imagem, entre a imagem hiper-realista—hiperfuturista e o simulacro. O simulacro, portanto, é a imagem sem identidade: ele não é idêntico a nenhum original exterior e não possui uma originalidade autônoma própria. O seu valor não possui valor algum; o seu engano é patente; o seu caráter conflituoso é indolor. Ele marca o momento no qual a ficção deixa de ser niilista sem, no entanto, restaurar a metafísica, no qual o conflito deixa de ser dissolvente sem restabelecer a unidade.

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Notas 1. D. J. Boorstin, The Image. Nova York, Harper, 1964. 2. P. Florenski, Ikonostas (1922), in Bogolovski Trudi (Moscou), 1972, IX. 3. T. Müntzer, Ausslegung des andern unterschyds Danielis dess propheten gepredigt auffm schlos zu Alstet vor den tetigen thewren Herzcogen und vorstehern zu Sachssen (1524). 4. J. Baudrillard, L’échange symbolique et la mort. Paris, Gallimard, 1976, p. 112. 5. R. Bellarmino, De controversiis christianae fidei (1586-93). Paris, 1608, t. II, Quarta Controversia, livro II, cap. XX e seguintes. 6. J. Calvino, Institution de la réligion chrétienne (1541). Paris, 1957-60, livro I, cap. XI. 7. R. Bellarmino, op. cit., cap. XXI. 8. J. De Guibert, La spiritualité de la Compagnie de Jésus. Roma, Institutum Historicum Societatis Iesu, 1953, p. 13 e pp. 43-4. 9. Inácio de Loyola, Exercícios espirituais (1548), 23. 10. C. Galassi Paluzzi, Storia segreta dello stile dei Gesuiti. Roma, Mondini, 1951. 11. W. Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928), in op. cit., I, 1. 12. Ib., p. 259. 13. Repetido, por exemplo, por V. Gioberti, Il gesuita moderno. Lausanne, Bonamici, 1846-7, t. II, p. 509. 14. W. Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (1939), op. cit. 15. E. Kirschbaum, La Compagnia di Gesù e l’arte, in Quarto centenario della costituzione della Compagnia di Gesù. Roma, Vita e Pensiero, 1941. 16. J. Baudrillard, op. cit., p. 80. 17. D.J. Boorstin, op. cit.

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Capítulo V

Fenômeno e simulacro

1 A recusa do conceito metafísico de aparência O primeiro capítulo de A vontade de poder — livro que Nietzsche não conseguiu terminar de escrever — devia tratar (como pode deduzir-se de alguns esboços bastante detalhados que ele redigiu nos primeiros meses de 1888) de uma crítica genealógica dos conceitos opostos e complementares de “mundo verdadeiro” e “mundo aparente”. A maioria dos numerosos fragmentos dedicados ao assunto propõe-se justamente a mostrar a gênese metafísico-moral dessa distinção que, por um lado, se baseia na negação sistemática do conflito, do devenir, do múltiplo — numa palavra, do mundo —, por outro, na sub-reptícia e injustificada atribuição de realidade à identidade, ao eterno, ao uno, à idéia; por um lado, se baseia no descrédito, na condenação do que muda, por outro, na apologia e na valorização do que é colocado acima de toda dimensão mundana. Essa reviravolta, da qual nasce a metafísica ocidental — pois o que é mundanamente real é con143

siderado “aparente” e, vice-versa, o que é pura e eticamente ideal torna-se “real” —, está ligada, segundo Nietzsche, ao nome e à obra de Platão, que mediu “o grau de realidade com base no grau de valor”, atendo-se ao princípio de que, quanto mais “idéia”, tanto mais ser.1 O cristianismo teria herdado tal hostilidade para com a aparência e o mundo, empurrando a verdade para um além inalcançável por definição. Ele seria, assim, uma espécie de platonismo para o povo, que envenena toda a concepção do mundo, obstrui o caminho do conhecimento, dissolve e mina todos os instintos reais.2 Enfim, Kant, ao reafirmar a distinção entre aparência e “coisa-em-si”, teria voltado a propor uma realidade que não pode ser alcançada, demonstrada, prometida, à qual é possível ter acesso só através da moral. Efetivamente, embora possa censurar-se a Nietzsche o fato de ele ter considerado, na sua análise da aparência, apenas a concepção moral que contrapõe a aparência à realidade — sem levar em consideração nem a tradição neoplatônica, que considera a aparência uma manifestação do mundo inteligível, nem a tradição empírico-científica, que estabelece uma relação de semelhança ou de identidade entre aparência e realidade, nem, enfim, a teoria hegeliana que identifica aparência e essência —, tem-se, no entanto, que todas essas diversas reavaliações da aparência, as quais revelam a preocupação de “salvar os fenômenos” de uma condenação radical, são remissíveis ao horizonte conceitual aberto por Platão, seja porque formuladas por ele próprio, seja porque somente podem ser pensadas no âmbito de uma metafísica idealista. Num trecho de Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche recapitula as várias fases através das quais o chamado “mundo ver144

dadeiro” instituído por Platão acabou por transformar-se em fábula (Fabel). Depois de ter acenado à sua completa desmistificação por parte dos espíritos livres, ele conclui que junto com o mundo verdadeiro se expulsou (abgeschafft) também o aparente (scheinbar).3 Essa afirmação constitui o ponto de chegada de sua reflexão sobre o aparecer, uma vez que as notas posteriores não trazem nenhuma contribuição nova nem esclarecem as conseqüências da sua recusa dos conceitos metafísicos de realidade e aparência. Neste século, Heidegger e Klossowski realizaram a tarefa de repensar o problema do aparecer, movendo-se por caminhos completamente diferentes daqueles indicados por Platão. Ambos recusam o conceito metafísico de aparência e opõem-lhe uma nova problemática, que, no caso de Heidegger, gira em torno de uma nova interpretação da palavra fenômeno e, no caso de Klossowski, em torno do conceito de simulacro. O pensamento heideggeriano mantém relação muito complexa com Nietzsche, fazendo questão de apresentar-se, em geral, como alternativo relativamente a ele.4 A reflexão klossowskiana a respeito do simulacro nasce, por sua vez, de uma leitura de Nietzsche que mantém com o texto uma relação de consonância e de afinidade.5 Entretanto, apesar desses posicionamentos conceituais diferentes com relação a Nietzsche, ambos abrem horizontes conceituais nos quais a eliminação simultânea dos conceitos metafísicos reciprocamente complementares de mundo verdadeiro e de mundo aparente é inteiramente assumida e pensada muito além de Nietzsche, em dois sentidos diferentes e até mesmo opostos.

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2 Fenômenos e simulacros Já em Ser e tempo, Heidegger situa-se além dos conceitos metafísicos de “mundo verdadeiro” e “mundo aparente”, mediante a adoção do método fenomenológico que se propõe a restituir a palavra às coisas mesmas (zu den Sachen selbst). Divide a seguir a palavra fenomenologia nos dois termos gregos que a compõem (fainómenon e lógos) e considera-os separadamente.6 A referência “às coisas mesmas” leva Heidegger à procura do significado originário de aparência (Erscheinung). Ele distingue, assim, três conceitos: 1. o fenômeno (Phänomenon), definido como aquilo que se mostra em si próprio (das Sich-am-ihm-selbst zeigende); 2. o parecer (Scheinen), entendido como aquilo que tem a aparência de..., mas que, “na realidade”, não é o que aparenta ser; 3. a aparência ou pura aparência (Erscheinung ou blosse Erscheinung), que designa o anunciar-se de algo que não se mostra através de algo que se mostra (Sichmelden von etwas, das sich nicht zeigt, durch etwas, was sich zeigt). Heidegger privilegia o fenômeno e acredita que o segundo termo deva estar compreendido no primeiro. De fato, o parecer é apenas a modificação privativa do fenômeno. Quanto à pura aparência, ela designa precisamente o velho conceito metafísico segundo o qual a aparência oculta o ser e este nunca pode nem sequer aparecer. A tal estatuto pertencem indícios, representações, sintomas e símbolos. A pura aparência possui vários significados: a. o anunciar-se como não-mostrar-se (Sichmelden als Sich-nicht-zeigen); b. o próprio anunciante que, no seu mostrar-se, atesta alguma coisa como não se mostrando (das Meldende selbst das in seinem Sichzeigen etwas Sich-nicht-zeigendes anzeigt); e, finalmente, c. a irradiação que anuncia (meldende Ausstrahlung) algo que permane146

ce oculto, não revelado e jamais revelável — essa é, precisamente, a relação estabelecida por Kant entre o que ele denomina “fenômeno” e a coisa-em-si. Todos esses significados de pura aparência implicam uma relação de remissão (Verweisungsbezug) ao próprio ente, de modo que — segundo Heidegger — o remetente poderá desempenhar a própria função somente se configurar-se como fenômeno, entendido em seu significado originário: aquilo que se mostra em si próprio, ou seja, um modo particular de ir ao encontro de algo (eine ausgezeichnete Begegnisart von etwas). A abordagem dada por Klossowski a esse problema, desde o início, é, por sua vez, o oposto.7 O retorno às coisas mesmas é impossível porque, a partir do momento em que Deus está morto, nada mais existe de originário. A morte de Deus, que é definida por Klossowski como “o acontecimento dos acontecimentos”, está estritamente ligada à “necessidade circular do ser”, expressa na teoria nietzschiana do eterno retorno. As “coisas mesmas” já são desde sempre cópias de um modelo que jamais existiu, ou melhor, que a morte de Deus dissolveu para sempre; trata-se de simulacros, não de fenômenos. Ao monoteísmo sucede o politeísmo; e esse politeísmo redivivo, no entanto, é fundamentalmente diferente da antiga devoção para com a pluralidade dos deuses. As estátuas dos deuses são vistas com os olhos da Antiguidade em declínio, como a aparência de algo que não existe. Os conceitos metafísicos de aparência e de realidade, portanto, são recusados tão radicalmente quanto em Heidegger, mas não em nome de algo que, ao mostrar-se em si mesmo, assimila até o aspecto e a aparência, mas, ao contrário, em nome de algo que anuncia e remete infinitamente a uma cópia. Enquanto em Heidegger aquilo que se mostra em si mesmo absorve 147

até a mera aparência, aqui a mera aparência deixa de ser tal porque absorve cada “em si mesmo”, cada originariedade. Se, para Heidegger, o movimento em direção às coisas mesmas implica a busca daquilo que é mais próprio (eigen), inversamente, para Klossowski, o problema contempla a relação com aquilo que é mais estranho, com qualquer momento vivido da história. Essa estranheza caracteriza a própria história, que, por isso, está “fora de si”, é repetição, simulacro. Na Introdução à metafísica,8 Heidegger retoma o problema da relação entre ser e aparência, resolvendo a segunda no primeiro de modo ainda mais radical do que o fizera em Ser e tempo. Nessa obra, ele afirma a unidade recôndita de ser e aspecto (Schein), destacando principalmente o significado fundamental de Schein (“luz”) e scheinen (“resplandecer”). Diferencia a seguir três espécies diversas de aspecto: 1. o aspecto como esplendor (Glanz) e como reluzir (leuchten); 2. o aspecto como um aparecer (Erscheinen), como um vir-a-ter aspecto (Vor-schein); 3. o aspecto como puro aspecto (als blossen Schein). Dentre essas acepções da palavra Schein, Heidegger privilegia a segunda, que designa precisamente o mostrar-se (Sichzeigen) de algo, na medida em que ela constitui o fundamento da possibilidade das outras duas. A íntima conexão entre ser e aspecto confirma-se etimologicamente também pela afinidade da raiz grega phy (phýsis, “natureza” e, portanto, “ser”) com a raiz pha (phaínesthai, “aparecer”). Remetendose às origens da língua e da filosofia gregas, Heidegger afirma que “ser significa aparecer” (Sein heisst Erscheinung). Dessa forma, ele rejeita completamente a perspectiva metafísica introduzida por Platão, que menospreza a aparência, considerando-a o oposto do ser. Essas considerações são confirmadas pela análise da palavra dóxa, que significa, além de “opi148

nião”, “aparência” e “glória”. A dóxa, para Heidegger, não é o contrário do ser, mas a modalidade do ser mais excelso. Isso, no entanto, não exclui o terceiro significado de aparência, o aspecto como puro aspecto que produz a ilusão de algo. “Mas”, afirma Heidegger, “onde o ente se encontra no aspecto (Schein) e lá se mantém por longo tempo e seguro, o aspecto sempre poderá despedaçar-se e cair.” Mesmo o aspecto (Schein) pertence ao próprio ser; ele é história (Geschichte). A pretensão de livrar-se de seu poder histórico constitui justamente uma das características da metafísica. O aspecto, ao contrário, é uma flexão, uma declinação do ser — ele pertence ao próprio ser, entendido como aparecer (Erscheinen). A via do aspecto, que está entre a do ser e a do nada, implica um risco sempre à espreita que deve ser corajosamente enfrentado. A palavra grega tólma indica bem qual a atitude com que é necessário responder a esse desafio. O ser ama esconder-se; ele provém da latência e tende a retornar a ela, seja na ocultação e no silêncio, seja no fingimento (Verstellung) e na dissimulação (Verdeckung). Em Klossowski, porém, realiza-se um movimento oposto: é a aparência, entendida como puro aspecto, que se estende até recobrir inteiramente o ser. A supressão da separação metafísica entre mundo real e mundo aparente é pensada referentemente à língua latina. Para Nietzsche, o mundo verdadeiro tornou-se fábula (Fabel), do latim fabula, que deriva do verbo fari (“falar”, “predizer”). O particípio passado é fatum (“fado”, “destino”).9 Essas conexões etimológicas confirmam a ligação existente entre a fabulação do mundo, o processo através do qual as “coisas reais” se desrealizam, se tornam simulacros, e o eterno retorno, que dissolve a identidade do real, que retira da história qualquer significado ou di149

reção. O mundo, longe de marchar em direção a uma salvação final qualquer, “encontra-se, a todo instante da sua história, completo e em seu término,10 não porque consista no próprio ser, mas, ao contrário, porque é a cada momento a repetição, o simulacro de coisas que já aconteceram infinitas vezes. O amor fati consiste justamente no amar e no querer a dimensão fortuita, extremamente relativa e sem importância, que essa repetição institui. Ele não é, portanto, de forma alguma, a interiorização de uma necessidade cega e desconhecida; é, ao contrário, a perda de identidade e a exteriorização do próprio homem: “Aceitar como a própria sorte” qualquer evento e “decidir-se em favor da existência de um universo que não tem outro propósito além de ser aquilo que é” significa transformar a própria humanidade numa simulação, disposta a jogar qualquer jogo, a desempenhar qualquer papel, a ser feliz e a vencer, aconteça o que acontecer. A vertigem desse modo de ser, no qual coincidem a máxima desesperança e a máxima esperança, dissolve o próprio conceito de ser. Não porque pense o ser como devenir, segundo a objeção que Heidegger faz a Nietzsche,11 mas porque elimina a própria possibilidade de uma originariedade do ser — a simulação é a irrupção de uma potência incompatível com a identidade pessoal. Prosseguindo na indagação etimológica de Klossowski, pode-se observar que também fama provém do mesmo verbo fari do qual derivam fábula e fado; entendida no sentido de dissolução da identidade da pessoa na sua reputação — como se deduz do uso que dela fazem os clássicos latinos12 —, ela possui um significado oposto à dóxa de que fala Heidegger: não esplendor do fenômeno, mas repetição que transforma e dissolve.

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3 Lógos e eterno retorno Retomando a definição aristotélica da função do lógos como apofaínesthai (“mostrar-se”, “aparecer”), Heidegger, em Ser e tempo,13 afirma que a função do discurso consiste em “deixar ver, mostrando” (aufweisende Sehenlassen), aquilo sobre o que se fala. Assim, ele rejeita o conceito metafísico de verdade como adequação entre aparência e realidade, como concordância entre o sensível e o inteligível, e revela a íntima conexão existente entre os conceitos de fenômeno e de lógos. O fenômeno originário da verdade consiste no ser-descobridor (entdeckend-sein), no deixar ver o ente no seu não-estaroculto. Diferentemente, portanto, da metafísica, que considera o aparecer o contrário da verdade, Heidegger define a própria verdade como um mostrar-se, como um não-ocultar-se, de acordo com a etimologia da palavra grega alétheia (alétheia, não permanecer oculto). Dessa forma, a aparência, reconduzida ao seu significado originário de fenômeno, resulta solenizada como verdade: toda descoberta, afirma Heidegger, é realizada “partindo do pôr a descoberto o aspecto (Schein)”.14 O que não exclui, no entanto, que ela corra sempre o risco de mergulhar de novo na contrafação, na ocultação, no olvido. A verdade, por conseguinte, é comparável a um furto (Raub). Heidegger opera, assim, uma reforma do conceito de verdade mediante a qual esta pode apropriar-se até mesmo daquilo que a metafísica lhe havia oposto por definição. De fato, a distinção metafísica entre “mundo verdadeiro” e “mundo aparente” é suprimida em favor de uma refundação da verdade, que herda todo o páthos dos discursos que se apresentam como revelação da verdade, que a entendem como revelação. O fato de que essa manifestação seja 151

também encobrimento e contrafação só faz ampliar o âmbito e o alcance dessa reforma, sem mudar-lhe a orientação fundamental, que consiste no apelo à origem. No mesmo sentido, Heidegger, ao rejeitar em sua Introdução à metafísica a falsa oposição metafísica entre ser e pensar, afirma que phýsis e lógos, natureza e discurso, são a mesma coisa, já que a palavra lógos não significa “palavra” ou “doutrina”, mas, em conformidade ao seu étimo léghein (“recolher”), indica “aquilo que está constantemente junto, o que foi colhido junto”, ou, de forma ainda mais detalhada e precisa, “o que foi recolhido junto, originariamente recolhedor, que constantemente se impõe”. Nessa definição, faz-se referência aos três aspectos fundamentais do pensar (e do ser): em primeiro lugar, à sua originariedade; em segundo lugar, ao recolhimento (Sammlung); por fim, ao afirmar-se no “parecer que se abre” (aufgehendes Scheinen). Nenhuma contraposição, portanto, pode existir entre o ser e a aparência, entre o ón e o phainómenon; a separação entre esses dois termos é posterior e depende da doutrina platônica das idéias, que, ao definir a idéia como determinação de uma estabilidade que se oferece à vista, separa protótipo de imagem, modelo de cópia, mundo verdadeiro de mundo aparente. O parecer acaba rebaixado, assim, a “mera aparência”, e separado do ser por um abismo. A concepção da verdade como adequação é justamente conseqüência disso. Um aprofundamento posterior de “o que significa pensar” leva Heidegger a considerar o pensamento memória (Gedächtnis) e a definir esta como o recolhimento do pensamento.15 Pensar (Denken) é para Heidegger pensar originariamente, isto é, Andenken (“memória”). De forma análoga, o ser (Wesen) é Anwesen (“presença”), entendido não como representação, duplicação de algo que está em outro lugar, e sim 152

como parecer (Scheinen), chegar ao mais vistoso parecer ou resplandecer (das erscheinendste Scheinen).16 Esses problemas encontram em Klossowski uma solução diametralmente oposta. Enquanto o ponto de chegada de Heidegger é a memória, que recupera e revela a originariedade das coisas, a premissa de Klossowski é o olvido, o qual, ocultando o eterno retorno das coisas, permite a vida e a ação. Klossowski pergunta-se, da mesma forma que Nietzsche: se o olvido não ocultasse ao homem o caráter simulatório de todas as ações, teria este força para continuar vivendo?17 O olvido proporciona ao homem a ilusão de viver e levar a cabo de um modo original e autêntico aquilo que, ao contrário, é simulacro, cópia de uma cópia. Portanto, aqui também o dualismo da representação é suprimido, não porque se apresente e mostre algo de originário, mas, ao contrário, porque a imagem remete vertiginosamente a uma outra imagem, sem que jamais se consiga encontrar um protótipo. O conceito de cópia é abolido porque não existe modelo. No mito platônico de Er, objeto das reflexões de Klossowski, impressiona a conexão entre nascimento e olvido: só se nasce depois de se ter bebido a água do rio Letes, que corre pelo vale de Lete, cuja função é precisamente a de fazer esquecer à alma o caráter replicado, repetitivo, da vida que se escolheu e que se dispõe a viver. Seguindo o exemplo de Heidegger, que filosofa sobre as etimologias, pode-se notar que o verbo latino obliviscor é, de acordo com Cícero, metáfora derivada da escrita que se apaga; ademais, o verbo latino lego (que, como o grego légo, quer dizer “recolher”) adquire em seguida o significado de “ler” (enquanto o verbo grego deriva para o significado de “dizer”). Essas etimologias latinas mostram justamente a dimensão não originária, derivada, “recopiada” do recordar e do pensar. 153

Nem a revelação do eterno retorno do mesmo é uma verdadeira revelação, um Entdeckung, um dévoilement, isto é, a revelação de uma verdade, um momento privilegiado e autêntico em cuja aceitação e em cuja vontade possa constituirse uma identidade subjetiva. Ele é um fato fortuito, que já aconteceu infinitas vezes, um simulacro. Por isso, o eterno retorno é um círculo vicioso: eu não posso recordar o eterno retorno a não ser esquecendo que ele já me foi “revelado” infinitas vezes. Tornar a querer-me uma vez mais denuncia o fato de que nada nunca chega a constituir-se num sentido, de uma vez por todas.18 O ponto de chegada não é o recolhimento; ao contrário, é a dissolução da identidade subjetiva. Tornar a querer o passado-não-desejado (revouloir le révolu-non-voulu) quer dizer estar aberto, não a tudo, mas à repetição de tudo. A novidade está, justamente, numa duplicação vertiginosa que envolve também aquele que afirma o eterno retorno, duplicação que, no entanto, jamais pode ser verificada e confrontada com o uno, com o idêntico, com o exemplar, porque estes se situam além das possibilidades históricas, no âmbito da metafísica e da teologia. Klossowski introduz, dessa forma, uma noção positiva do falso, estendendo-a a todos os problemas da existência. Resulta extinta a pretensão de ir além do simulacro: ele não é um meio, é uma potência cuja irrupção põe fim à identidade, irremediavelmente.

4 Fenomenologia hermenêutica e semiótica pulsional A íntima conexão entre os conceitos de fenômeno e de lógos, que encontram seu ponto de convergência na determinação comum a ambos do mostrar (Zeigen, Aufweisen), leva 154

Heidegger a definir a indagação fenomenológica como um direto “fazer ver” (Aufweisung) e um direto “de-mo(n)strar” (Auswiesung), em oposição à metafísica, a qual faz referência a um ente que não se mostra, não se manifesta em si próprio, que não aparece, que é estranho e oposto à aparência. A condição sine qua non da investigação fenomenológica é, portanto, a supressão da distinção entre “mundo verdadeiro” e “mundo aparente”. “Por trás dos fenômenos da fenomenologia não pode existir, absolutamente, nada mais.”19 O automostrar-se do fenômeno é o ser do próprio ente: “A fenomenologia é a ciência do ser do ente, isto é, ontologia”. A descrição fenomenológica, contudo, não é, de forma alguma, ingênua ou casual — é hermenêutica. E assim é não porque seja interpretação (Interpretation) de uma linguagem dada mas, mais profundamente, porque ela mesma é interpretação (Auslegung), isto é, um expor, um pôr à mostra, uma explicitação da compreensão. Desse modo, “todo ver já é sempre compreendente-interpretante”.20 A asserção (Aussage) é um modo derivado da interpretação, que tem como aspecto primeiro a manifestação (Aufzeigung), o mostrar, o fazer ver. O ponto de chegada de Heidegger é, portanto, a linguagem, cuja essência é justamente aquela de “fazer com que o ente se faça ver por si próprio”.21 A fenomenologia é hermenêutica por estar inseparavelmente ligada à linguagem. Para Klossowski, entretanto, existe uma conexão íntima entre o simulacro e a teoria do eterno retorno. Não se trata de uma verdadeira teoria, uma teoria da verdade, mas um simulacro de teoria. A filosofia do simulacro torna-se um simulacro de filosofia: sendo a simulação o atributo do próprio ser, ela vem a ser também o princípio do conhecimento”.22 O eterno retorno não é uma verdade e menos ainda uma lei his155

tórica, mas sim uma prova em cuja base têm lugar a educação e a seleção. O problema da hierarquia, que pareceu preocupar Nietzsche no final da sua vida, não é resolvido mediante a restauração dos valores metafísicos (cognoscitivos ou morais), tampouco através da violência, e sim mediante uma prova, uma experiência, um exercício ao qual todos possam, indistinta e incondicionalmente, submeter-se. Essa prova consiste precisamente na capacidade não só de suportar o pensamento do eterno retorno, como também de desejá-lo. Superar a prova significa desejar com a máxima energia o eterno retorno do mesmo, ou seja, não considerar mais o passado e seu possível retorno um obstáculo à ação do filósofo. Este é — nota Klossowski — Versucher, no duplo sentido da palavra, ou seja, o que experimenta e o que tenta. Essa segunda dimensão, voltada para a operatividade, para a eficácia, é evidente no caráter de maquinação que assume o filosofar, o qual “abandona a esfera propriamente especulativa para adotar, quando não simular, os preliminares de um complô”.23 Torna-se essencial para o filosofar uma dimensão militar, tática e estratégica, a qual não diz respeito simplesmente aos modos ou às formas da comunicação, mas à própria substância do pensar. O filósofo, através da eliminação da distinção entre mundo verdadeiro e mundo aparente, dispõe-se a levar a cabo um “golpe de mundo”. A superação da distinção entre mundo verdadeiro e mundo aparente, que se realizou em Heidegger com a introdução do conceito de fenômeno, desenvolve-se na reflexão sobre a linguagem que ele leva a efeito na obra Pelos caminhos da linguagem.24 Nela, Heidegger não examina a hermenêutica com base na interpretação — como se seguisse o ponto de vista metafísico-humanístico que procura a adequação da le156

tra com o espírito, do sensível com o supra-sensível, da escrita com o significado —, ao contrário, examina a interpretação com base no “hermenêutico” (das Hermeneutische). Referindo-se ao significado originário da palavra, ele entende o hermenêutico como aquilo que se manifesta, aquilo que “aflora cada vez mais abertamente” e, em conseqüência, como o fenômeno, o aparecer daquilo que aparece (das Erscheinen der Erscheinung), o próprio ser presente pensado como aparecer (das Anwesen selbst als Erscheinen gedacht). A aparência é a própria essência do ser presente e da linguagem. Fica assim, de forma categórica, excluída a concepção da linguagem como expressão de algo espiritual, supra-sensível ou supralingüístico — a linguagem não é o aspecto exterior, meramente aparente, de um mundo verdadeiro, caracterizado por um status não lingüístico, mas a própria essência do ser. Não é signo que remete a um referente, mas diretamente sinal (Wink); não é cifra ou símbolo de algo, mas gesto (Gebärde). Para destacar esse aspecto essencial da linguagem, Heidegger introduz a palavra Sage (dizer originário), derivada do verbo sagen, que, na sua acepção arcaica, possui o mesmo significado que zeigen, isto é, “mostrar”, “deixar aparecer”, “deixar resplandecer” (Erscheinen-und scheinenlassen), “revelar iluminando-velando”, “oferecer aquilo a que chamamos de mundo”. Em Sage encontra-se a essência da linguagem. A linguagem, enquanto linguagem, é mostrar: todo aparecer ou não aparecer apóia-se no mostrar do Sage. Somente a palavra faz com que uma coisa se mostre, seja aquilo que é. Os conceitos tradicionais de verdadeiro e de aparente, articulados em sua oposição, dissolvem-se ambos em favor de uma terceira dimensão que absorve, incorpora, detém a essência do ser. Uma vez mais, a solução heideggeriana é, no fundo, uma re157

forma da concepção que privilegia o espírito sobre a letra, o ser sobre a aparência, o supra-sensível sobre o sensível — ela se realiza atribuindo ao primeiro termo, ao Lógos, à verdade, à presença, algumas características do segundo. Ermeneuein em grego quer dizer — afirma Heidegger — o trazer “mensagem e anúncio” (Botschaft und Kunde). Na linguagem, o próprio ser se manifesta, ela é a morada do ser. Klossowski também vê na linguagem o âmbito da superação da distinção entre mundo verdadeiro e mundo aparente, embora a conceba de modo oposto ao de Heidegger: não é dizer originário, mas corpo. A premissa e o complemento imprescindível dessa materialização da linguagem consistem na semantização do corpo, que Klossowski estuda muito detalhadamente no caso de Nietzsche, traçando as linhas de uma semiótica pulsional oposta à interpetação, que entende o corpo como expressão de uma dinâmica interior ou, ainda, de um inconsciente considerado motor oculto. Os signos do corpo não querem dizer nada: o esforço interpretativo da pessoa é apenas uma tentativa inútil que objetiva preservar a sua identidade individual. O êxito desse esforço é a hipocondria, a doença filosófica por excelência. “Suprimir o mundo verdadeiro é suprimir também o mundo das aparências — e, com eles, suprimir uma vez mais as noções de consciência e de inconsciência — o lado de fora e o lado de dentro.”25 A semantização do corpo é importante, não por si mesma ou pelo fantasma que veicula, mas pela imitação de que pode ser objeto na linguagem, pelo simulacro lingüístico que pode ser construído sobre ela. Se o corpo é linguagem, então a linguagem pode tornar-se corpo. Entre corpo e linguagem estabelece-se uma relação de concorrência pela qual, lá onde falam os corpos — na pantomima —, a linguagem cala e, vice-ver158

sa, lá onde fala a linguagem, devem os corpos calar.26 A equivalência entre linguagem e corpo admite a possibilidade de uma estratégia, de um jogo, de uma astúcia que instaura uma troca entre o “caso singular” do fantasma individual e o ambiente social. Essa troca, segundo Klossowski, se mostra sempre vantajosa; de fato, “o nosso fundo não pode ser trocado”, não porque tenha um valor inestimável, mas porque “nada significa”. A possibilidade de uma autenticidade pessoal acaba, assim, destruída desde a raiz. No fantasma não falam as nossas pulsões profundas, e sim os signos do ambiente, que não se cansam de “comunicar a nós mesmos aquilo que a pulsão pode querer”.

5 A meditação reveladora e a operação simuladora Esses dois caminhos opostos, abertos por Heidegger e Klossowski, implicam uma transformação profunda da dimensão tradicional do pensar. A recusa da distinção entre mundo verdadeiro e mundo aparente, sobre a qual tais caminhos foram construídos, os leva a uma ruptura radical em relação às formas habituais da atividade intelectual. Mais uma vez, no entanto, essa ruptura apresenta uma orientação claramente distinta em cada caso: Heidegger opõe a meditação reveladora do pensador à metafísica tradicional e à técnica que é a sua culminação; Klossowski, porém, opõe a operação simuladora, realizada pelo que supera a prova do eterno retorno, ao moralismo metafísico do filósofo tradicional e à histrionice moderna que é a sua culminação. Um aspecto fundamental da metafísica é, segundo Heidegger, a distinção e a separação entre mundo verdadeiro e 159

mundo aparente: o real, no sentido daquilo que “está de fato”, constitui “o oposto daquilo que não resiste a uma verificação e que se apresenta como puro aspecto (als blosser Schein) ou como simples opinião”.27 Essa concepção factual (tatsächlich) da realidade, que considera o real objeto e o conhecimento representação, perpetua-se na técnica moderna e na sua pretensão de subordinar tudo ao cálculo, à avaliação tranqüilizadora, à planificação universal. A técnica não pode deixar de relegar à categoria de inessencial aquilo que resiste à sua redução, isto é, os aspectos que não se podem alcançar, representar ou abranger daquilo que se mostra em si mesmo. Inversamente, a meditação (Besinnung) não se propõe a chegar a resultado algum e não produz efeito algum. Ela satisfaz a sua essência na medida em que é, em que “olha em direção ao puro resplandecer (scheinen) das coisas presentes” e redescobre o sentido originário da palavra grega tíchto (pro-duzir) como “fazer aparecer”. Fazer resplandecer aquilo que está presente enquanto tal, torná-lo manifesto na sua revelação, consentir que o ser se mostre, significa “trazer à linguagem” (zur Sprache bringen) a palavra do ser. A linguagem, portanto, é por si própria evento (Ereignis), revelação reveladora, em uma palavra, história (Geschichte). O evento entendido em seu sentido mais profundo significa mais uma vez o mostrar-se (sich zeigen) da essência do ser, por um caminho que não é nem “real”, nem “aparente”, nem teórico, nem prático, nem factual, nem subjetivo.28 O ponto de chegada da reflexão heideggeriana não é, no fundo, mais do que um enésimo repensar do seu ponto de partida, exposto no propósito formulado em Ser e tempo, que consiste em voltar-se para as coisas mesmas, para o fenômeno, para aquilo que se mostra em si mesmo. Da mesma forma, o caminho aberto por Klossowski não é teórico nem prático: não existe mais nada que separe o simu160

lacro do ato do próprio ato. A filosofia ocidental, ao contrário, baseou-se na separação entre realidade e aparência. A sua defesa de uma realidade espiritual ocultou a gênese “humana, demasiado humana”, de todos os valores — os filósofos — afirma Nietzsche — pretendem falar da verdade, quando somente falam de si próprios.29 A culminação da filosofia é o histrionismo, do qual Wagner — essa espécie de Cagliostro filosófico — é uma encarnação. O que caracteriza os Cagliostros filosóficos é “a mais total inconsciência do falso”, isto é, a pretensão de fazer-se passar por portadores de uma nova fé, de novos valores, de apresentar-se como reformadores e profetas. Segundo Klossowski, contra a filosofia e o histrionismo é preciso estender a todos os aspectos da vida a boa consciência do falso implícito no simulacro; este não pretende ser algo diferente daquilo que é, mas expõe e potencia o seu próprio caráter de aparência. A introdução da dimensão do simulacro subverte profundamente a própria natureza da atividade intelectual: ela implica um aspecto operacional, histórico, “uma práxis” — diz Klossowski30 — que subverte as relações entre cultura e poder político-econômico e mina a própria gestão da realidade que este pretende controlar. Os dirigentes do poder político-econômico “trabalham sem sabê-lo” para os mestres ocultos do eterno retorno; a planificação universal, tentada por aqueles, obtém um resultado contrário. De fato, a sociedade não está mais em condições de formar seus membros como “instrumentos” adequados aos seus fins; uma parte cada vez maior das suas forças está disponível para a operação oculta do simulacro. Essa operação é levada a cabo através da linguagem; esta, no entanto, não é mais literária, artística ou filosófica — ela é acontecimento e gesto.

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Notas 1. F. Nietzsche, Nachgelassene Fragmente 1887, 7 [2], in Kritische Gesamtausgabe. Berlim, De Gruyter, 1967 e seguintes, VIII, 1. 2. Ib., 1888, 14 [154]. 3. Representam, aliás, um retrocesso, já que valorizam o mundo aparente da arte em relação ao pretendido “mundo verdadeiro” da moral. Cf. Nachgelassene Fragmente, 1888, 15 [20], em que Nietzsche rejeita a sua própria equiparação entre mundo verdadeiro e mundo aparente e afirma que este não deve ser “denegrido”. 4. O esclarecimento da complexidade de tal relação implicaria uma comparação detalhada entre a interpretação historiográfica de Nietzsche que Heidegger oferece (na obra Nietzsche, Pfullingen, Neske, 1961, e também em Holzwege, Frankfurt, Klostermann, 1950, em Was heisst Denken, Tübingen, Niemeyer, 1954, e em Vörtrage und Aufsätze, Pfullingen, Neske, 1954) e sua elaboração autônoma de algumas problemáticas de evidente origem nietzschiana (por exemplo, a rejeição do pensamento instrumental e da filosofia dos valores, a concepção de história, etc.). A respeito da interpretação que Heiddeger oferece dos passos nietzschianos no exame da relação entre mundo verdadeiro e mundo aparente, cf. Nietzsche, op. cit., I, p. 543. 5. Essa leitura de Nietzsche é levada a cabo em dois ensaios: Sur quelques thèmes fondamentaux de la “Gaya Scienza” de Nietzsche (1956) e Nietzsche, le polytheisme et la parodie (1957), publicados respectivamente em Un si funeste désir, Paris, Gallimard, 1963, e no volume Nietzsche et le cercle vicieux, Paris, Mercure de France, 1969. Finalmente, não é desprovido de significado o fato de que Klossowski tenha sido o tradutor francês do Nietzsche heideggeriano. 6. M. Heidegger, Sein und Zeit., Halle, Niemeyer, 1927, par. 7. 7. P. Klossowski, Un si funeste désir, op. cit. 8. M. Heidegger, Einfübrung in die Metaphysik. Tübingen, Niemeyer, 1953. 9. P. Klossowski, op. cit. p. 194. 10.Ib., p. 18. 11. M. Heidegger, Nietzsche, op. cit., I, p. 548. 12. Por exemplo, Ovídio, Metamorfoses, XII, 39-63. 13. M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., par. 7 B. 14. Ib., par. 44 B. 15. M. Heidegger, Einfübrung in die Metaphysik, op. cit., IV, 3. 16. M. Heidegger, Was heisst Denken?, op. cit. Cf. também Vorträge und Aufsätze, II, op. cit. 17. P. Klossowski, Un si funeste désir, op. cit., p. 22 e seguintes. 18. P. Klossowski, Nietzsche et le cercle vicieux, op. cit., p. 101. Grifos do autor. 19. M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., par. 7 C. 20. Ib., par. 32. 21. Ib., par. 33. 22. P. Klossowski, op. cit., p. 201. 23. Ib., p. 12.

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24. M. Heidegger, Unterwegs zur Sprache. Pfluffllingen, Neske, 1959. 25. P. Klossowski, op. cit., p. 69. 26. Essa alternância entre linguagem impura e silêncio puro é um dos temas fundamentais dos romances de Klossowski. Cf. G. Deleuze, Logique du sens. Paris, Minuit, 1969. 27. M. Heidegger, Vorträge und Aufsätze, op. cit., I, p. 43. 28. Sobre a unidade originária dos aspectos contemplativo e ativo na filosofia de Heidegger, cf. L. Pareyson, Ultimi sviluppi dell’esistenzialismo, in V. Verra, org., La filosofia dal’45 ad oggi, Roma, E. R. I., 1976. 29. P. Klossowski, Nietzsche et le cercle vicieux, op. cit., p. 20. 30.Ib., p. 195.

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Capítulo VI

O ser-para-a-morte e o simulacro da morte

1 Diversão e recalque da morte Uma das aquisições fundamentais de Ser e tempo consiste em ter posto de lado a concepção metafísica da morte. Não se trata apenas da idéia teológica da morte, entendida como entrada em uma outra vida, mas também da idéia humanista, que considera a morte uma simples-presença estranha à vida humana ou extrinsecamente ligada a ela. Heidegger escreve: “A morte é um modo de ser que o ser-aí (Dasein) assume a partir do momento em que é”.1 Isso significa que a definição naturalista, ao entendê-la como óbito, não é apenas extremamente redutora, como também solidária com uma concepção da existência entendida ela mesma como simples-presença, excluindo todo ser-possível, e portanto derivada da metafísica. A concepção teológica da morte como ingresso na eternidade fundamenta-se numa teoria metafísica do homem, entendido como imagem de Deus. Da mesma forma, a concepção humanista da morte, entendida 164

como óbito (antropológica, psicológica ou biologicamente considerada), fundamenta-se numa teoria também metafísica do homem enquanto constante permanência, enquanto constante simples-presença.2 Poder-se-á subtrair a morte à metafísica somente se o homem for subtraído à metafísica, isto é, se no conceito de ser-aí estiver implícito o poder-ser. Desse modo, segundo Heidegger, a morte torna-se o poder-ser mais peculiar e autêntico do ser-aí. Assim como Heidegger, Baudrillard evidencia a substancial conexão existente entre o ponto de vista teológico e o humanístico. A preocupação de ambos consiste em manter a vida e a morte cuidadosamente separadas uma da outra: “A vida é vida, a morte é sempre morte”.3 Teologia e humanismo coincidem em pensar a vida como uma identidade que nada tem a ver com a morte, como uma positividade absoluta que se mantém rigorosamente diferente do nada. Ambos têm a pretensão de abolir a morte, a primeira pela eternidade do espírito, o segundo pelo desenvolvimento indefinido do processo científico. Na base de ambos encontra-se um conceito de tempo ligado à economia política e moldado na acumulação ilimitada. A teologia e o humanismo podem ser considerados como a formulação teórica de uma atitude cotidiana extremamente difundida, que consiste em não pensar na morte, em fazer de conta que a morte não existe, em levar adiante um trabalho de “constante tranqüilização” (ständige Beruhigung) em relação à morte.4 A alienação (Entfremdung)5 consiste, para Heidegger, exatamente numa fuga diante da morte que lança o Dasein num auto-emaranhamento capcioso que pode, ainda, ser interpretado de modo errôneo como “perfeição” ou “vida concreta”. A ostentação de uma tranqüilidade indiferente 165

diante da realidade (Tatsache) de que se morre é a “diversificação encobridora” (verhüllendes Ausweichen) em relação ao ser-para-o-fim do ser-aí. Ela oculta o fato (Faktum) de que “o ser-aí próprio de cada um desde sempre, efetivamente, morre”. A fuga do ser-aí diante de si mesmo, diante de sua possibilidade mais peculiar, isto é, diante da morte, está estreitamente ligada à situação afetiva da angústia. Esta, ao contrário do medo, não implica a ameaça de algum ente intramundano determinado, mas é totalmente indeterminada: “O que angustia a angústia é o próprio ser-no-mundo”,6 isto é, o nada e o em-lugar-nenhum que a caracterizam fenomenologicamente. A angústia está ligada ao sentir-se “deslocado”, ao não “sentir-se em casa”. Esse sentir-se deslocado persegue o ser-aí e ameaça-o, mesmo que de modo implícito: a cotidianidade realiza uma constante ação diversiva na tentativa de eliminá-lo. Mas essa fuga é inútil: “A angústia pode surgir na mais tranqüila das situações”, ela é a situação afetiva fundamental da cotidianidade. Baudrillard também revela que na raiz da cotidianidade ocidental existe uma rejeição da morte: “Pouco a pouco, os mortos deixam de existir. Eles são expulsos para fora da circulação simbólica do grupo”.7 A cotidianidade contemporânea proscreve rigorosamente a morte; para ela, o fato de estar morto “não é normal”, é uma anomalia impensável. Distinguindo-se das culturas primitivas, que se instituem com base em uma intensa relação de reversibilidade simbólica entre a vida e a morte, a civilização ocidental moderna lança um verdadeiro interdito contra a morte, excluindo-a da própria experiência. Essa pretensão de apagar a experiência da morte está ligada à ação de acumulação e de produção material da economia capitalista. É por essa razão que na sociedade moder166

na a morte se torna pulsão de morte, exatamente na medida em que é recalcada, repelida e mantida no inconsciente. Baudrillard oferece assim uma interpretação histórico-social do conceito freudiano de pulsão de morte, subtraindo-o à perspectiva metafísica na qual a psicanálise o insere. A morte, tornada pulsão recalcada, retorna a qualquer momento na vida cotidiana como angústia de morte, e a ausência de canais que permitam o intercâmbio simbólico com a morte e o seu reconhecimento no seio da sociedade faz crescer enormemente a sua força e a transforma numa potência psicológica oculta e subterrânea, tanto mais obsessiva quanto menos evidente for. “Se o cemitério não existe mais, é porque as cidades modernas assumem por inteiro a função deste: são cidades mortas e cidades de morte”, porque nelas a morte está simbolicamente ausente, mas reina subterraneamente. Daí conclui-se que as análises de Heidegger e de Baudrillard, embora construídas a partir de referências conceituais diferentes,8 convergem na recusa tanto da consideração metafísica da morte (teológica ou humanista) como da atitude cotidiana de tranqüilização, de diversão, de recalque, que é a premissa da metafísica. Ambas, além disso, estabelecem uma conexão entre a cotidianidade, secretamente oprimida ou ameaçada pela morte, a situação afetiva da angústia e a experiência do deslocamento. Elas, no entanto, divergem profundamente quanto à solução que oferecem para o problema de quem efetivamente leva a cabo essa atividade de diversão e recalque da morte. Para Heidegger, é o Se (das Man), a cotidianidade impessoal e inautêntica; para Baudrillard, é o eu que se constitui em sua identidade precisamente com base nesse recalque da morte. O itinerário traçado por Heidegger em Ser e tempo vai da inautenticidade, do Se impessoal do mundo ao 167

autêntico poder-ser da consciência (Gewissen), através do serpara-a-morte.9 O itinerário delineado por Baudrillard, ao contrário, vai da identidade do sujeito e da consciência à dissolução de ambos numa multiplicidade de dimensões sociais, através da experiência simbólica da morte. O ser-no-mundo, que para Heidegger está ligado ao esquecimento da possibilidade da morte e do poder ser si-mesmo, para Baudrillard, ao contrário, é o ponto de chegada de uma reconquistada intimidade com a morte; enquanto a evocação de si próprio implicada pelo ser-para-a-morte de Heidegger é, para Baudrillard, solidário com o recalque da morte. Na realidade, trata-se de duas dimensões completamente diferentes da morte: o ser-para-a-morte e a morte como simulacro. O ser-para-a-morte é antecipação (Vorlaufen) da morte: ser-aí (Dasein) significa para Heidegger “ser-para-o-fim”. A morte não é uma simples-presença que ainda não se tornou realidade, mas uma iminência sobranceira que constitui existencialmente o ser-aí. Ela é o ser-possível mais próprio do seraí, irrestrita, insuperável, certa, indeterminada. É por essa razão que a sua antecipação “o situa diante da possibilidade de ser ele mesmo, numa liberdade apaixonada, livre das ilusões do Se, efetiva, certa e cheia de angústia — a liberdade para a morte”.10 O ser-aí enquanto tal é chamado à sua autenticidade na decisão (Entschlossenheit) de ser culpado e de ser-para-ofim. A idéia de culpa em Heidegger nada tem a ver com a violação de uma lei ou a fuga a um dever — ela designa a nulidade essencial do ser-aí. A decisão é, precisamente, “o tácito e angustioso autoprojetar-se no mais específico ser-culpado”;11 é, portanto, decisão antecipadora da morte, que faz desta senhora da existência. Só mediante tal decisão antecipadora da 168

morte, o ser-aí assume a dimensão da totalidade, ou, como diz Heidegger, de um autêntico poder-ser-um-todo.12 A concepção da morte como simulacro é diametralmente oposta àquela heideggeriana. Ela implica uma simulação da morte, uma “morte simbólica” que ocorre no rito da iniciação. Essa prática, extremamente difundida nas sociedades primitivas, consiste “na instauração de uma troca lá onde havia apenas o fato bruto: da morte natural, aleatória e irreversível, passa-se a uma morte dada e recebida, portanto reversível na troca social.13 A iniciação é justamente uma morte simulada que assinala o ingresso da criança na sociedade, que o transforma em um verdadeiro ser social. Distinguindo-se, portanto, da sociedade contemporânea, que se baseia no recalque da morte, é justamente nela que as culturas primitivas fundam a própria sociabilidade, no estabelecimento de uma troca simbólica entre a vida e a morte. A conseqüência mais importante dessa perspectiva consiste em considerar a morte um ponto de partida: ela não constitui o poder-ser iminente do ser-aí, mas o seu passado, o seu fundamento, a sua realidade transcorrida. A existência social, portanto, é inocente em sua nulidade essencial. De fato, a função da iniciação consiste na expiação do crime original, o do nascimento: ela apaga “o acontecimento separado do nascimento”, a pretensão de ter uma identidade autônoma, independente, subjetiva. Portanto, a sociabilidade que a simulação da morte institui é irresponsável; ela se situa no extremo oposto da iniciativa individual e da ética profissional, bases do nascimento e desenvolvimento do capitalismo moderno. O ser nada, o ser ninguém que a morte iniciatória realiza, permite a seu modo uma estranha experiência da totalidade, que consiste no poder ser tudo, em uma disponibilidade aberta a todos os papéis da vida social. 169

Concordes na recusa da metafísica, do humanismo e da cotidianidade banal, Heidegger e Baudrillard propõem a seguir duas dimensões da morte opostas entre si, que se enraízam em contextos culturais antitéticos. O ser-para-a-morte heideggeriano pode ser considerado um repensar, em nível ontológico, da experiência ôntica da morte, típica da espiritualidade luterana e jansenista. O próprio Heidegger remete explicitamente a Lutero e à tradição que sempre considerou a vida uma meditação sobre a morte.14 Inversamente, o simulacro da morte de que Baudrillard fala remete não só às sociedades primitivas, como à tradição jesuítico-barroca que fez da experiência simulada da morte e da visão da morte a condição de ingresso no grande teatro da vida. Baudrillard evoca a respeito disso a solidez da sociedade barroca, “capaz de exumar os seus mortos, de conviver com eles a meio caminho entre a intimidade e o espetáculo, de suportar sem pavor nem curiosidade obscena [...] o teatro da morte”. 15 Trata-se de duas grandes tradições que devem ser examinadas detalhadamente.

2 O ser-para-a-morte É no final da Idade Média que vamos encontrar a experiência ôntica que está na origem do ser-para-a-morte. O seu nascimento corresponde à passagem de uma concepção mais antiga, segundo a qual todos os mortos pertencentes à Igreja ressuscitariam juntos no final dos tempos, para a concepção do juízo particular imediatamente posterior à morte do indivíduo.16 A nova concepção está amplamente documentada nas Artes moriendi da segunda metade do século XV, opús170

culos dedicados à arte de bem morrer, constituídos de meditações e orações acompanhadas por gravuras que representam, na maioria das vezes, a cena da agonia e a luta entre anjos e demônios pela posse da alma do moribundo.17 O verdadeiro ingresso na dimensão do ser-para-a-morte ocorre, porém, nas Artes moriendi de finais desse século (1488-1500), que se propõem não tanto a garantir a salvação ultraterrena, mas a ditar normas de vida. De fato, nestas, a atenção desloca-se do momento privilegiado e altamente dramático da agonia e da prova extrema à qual o moribundo é submetido para a vida cotidiana, entendida como contemplação e preparação da morte. Aquele que deseja bem viver deve aprender a bem morrer. A boa morte é apenas conseqüência de uma boa vida, passada na constante espera da morte ou, como dizia Savonarola, “vivida com os óculos da morte”. O Tractatus de arte bene moriendi, de Jacob de Jüterbogk, apresenta a morte como inspiradora direta de toda uma série de regras que devem ser observadas no dia-a-dia: quem vive com o pensamento constantemente voltado para a morte nunca está seguro da própria sorte, e por essa razão permanecerá incansavelmente a serviço de Deus. Nessas Artes moriendi aparecem todos os aspectos fundamentais do ser-para-a-morte heideggeriano: o privilégio conferido à angústia entendida como abertura da existência autêntica, a meditação sobre a morte considerada o momento no qual o homem adquire consciência de si mesmo, a certeza de que o homem não é mais que “un mort en sursis” (Ariès), um morto diferido, remetido a outro tempo, bem como a aceitação da própria culpabilidade radical. Contudo, é com Lutero que todos esses temas encontram uma síntese extremamente vigorosa e fecunda. A angústia (angustia), considerada por ele o estado afetivo fundamen171

tal da vida cristã, constitui a premissa imprescindível do processo de salvação.18 De fato, ela está estreitamente ligada à condição humana, a qual se encontra essencialmente viciada pelo pecado original. A angústia, portanto, não é um sentimento acidental, mas deriva da perda irremediável e definitiva da integridade original. A teologia de Lutero foi definida como uma “teologia da cruz”,19 em contraposição à “teologia da glória”, característica de Loyola e do jesuitismo, justamente por causa do papel fundamental que nela têm os estados de desesperança. O reformador “ensina que as penas, as cruzes e a morte são o tesouro mais precioso dentre todos”20 e considera a meditação sobre elas o único modo de subtrair-se à soberba e à concupiscência que derivam do amor e da afirmação de si. A vida do cristão — escreve Lutero —, nada mais é do que um morrer do batismo ao túmulo, um estar preparado a qualquer hora para a morte, um ir ao encontro da morte.21 Esses mesmos conceitos encontram-se no sermão expressamente dedicado a esse tema em 1519, Da preparação para morrer, no qual destaca a extrema importância de preparar-se para a morte através da constante e cotidiana reflexão sobre ela. A liberdade para a morte de que fala Heidegger tem as suas raízes existenciais na desvalorização das ações, típica da prédica de Lutero. De fato, enquanto possibilidade, ela não oferece ao homem nada “para realizar”, nada que ele possa ser como realidade atual, mas implica o abandono da dimensão da “utilização” e da “satisfação”. Ora, ninguém mais do que Lutero deplorou a orientação que subordina cada coisa à utilidade e que liga o mérito às ações. Ninguém mais do que ele fez da renúncia de si mesmo a condição imprescindível da vida cristã. Em Lutero como em Heidegger, essa renúncia ja172

mais possui o aspecto de uma adquisição, de uma conquista, de uma vitória — revela apenas o nada da possível impossibilidade da existência. Para Lutero, quem faz da humildade (humilitas) um mérito cai profundamente na auto-idolatria. Humilhar-se não quer dizer ser humilde, mas tão-somente “rebaixar-se” e “anular-se”,22 ou, melhor ainda, saber ficar na nulidade da própria condição. Por mais que Heidegger queira diferençar o seu conceito de consciência (Gewissen) daquele proposto pela teologia, as afinidades que ele apresenta com o que Lutero designa com a mesma palavra são profundas. Em primeiro lugar, para ambos, ela nada tem a ver com o simples conhecimento, nem com a acepção que entende a consciência como auto-evidência do sujeito. Lutero condena expressamente esse significado em seu comentário ao Magnificat — para ele, a humildade é ótima só se não for sabedora de si. Os verdadeiramente humildes nunca vêem a si próprios como tais. O conhecimento da própria humildade transforma-a em soberba, em fruição, em auto-afirmação. A vida cristã não é autoconsciência da própria nulidade, e sim mera nulidade, cuja consideração cabe eventualmente apenas a Deus. “A cognição”, diz Lutero, “não é uma força, nem proporciona força, mas ensina e mostra a nulidade da força e a extensão da debilidade do homem.”23 Analogamente, a consciência heideggeriana é justo o contrário de uma simples presença do eu para si próprio: a recusa da res cogitans cartesiana constitui uma das premissas fundamentais sobre as quais se construiu Ser e tempo. Para Heidegger, não se trata de fundamentar a ontologia no cogito: a consciência não fundamenta nada, porém evoca a possibilidade mais própria do ser-aí, isto é, a morte. O caráter de chamamento (Ruf ) que Heidegger atri173

bui à consciência não deixa de ter afinidade com a vocatio* luterana; em ambos os casos, primeiramente se é chamado a uma condição comum a todos, que em Lutero constitui a premissa do sacerdócio universal e, em Heidegger, implica a referência ao ser-aí. Não se trata, de modo algum, de estabelecer uma relação íntima consigo mesmo. Em Lutero, a profissão (Beruf) à qual se é chamado independe de uma escolha individual.24 Em Heidegger, o chamamento não é projetado, nem preparado, nem voluntariamente realizado por nós mesmos. É, enfim, na culpabilidade essencial da existência que o ser-para-a-morte heideggeriano encontra o seu antecedente mais profundo em Lutero. Essa culpabilidade é completamente independente da referência a um dever moral ou a uma lei: o ser-aí é culpado pelo simples fato de existir. A justiça de Lutero não é retributiva, mas “passiva”. Ela não consiste em dar segundo os méritos e as culpas, e sim em atribuir aquilo que não se tem direito algum de pedir, identificando-se, portanto, com a graça. Conseqüentemente, o princípio de toda justiça é, para Lutero, a acusação de si próprio, a culpabilidade radical do homem ou, como diz Heidegger, o ser fundamento nulo de uma nulidade. Embora Heidegger se preocupe em diferençar o ser-culpado do ser-aí do conceito teológico de pecado,25 a concepção luterana de pecado é tão independente de uma culpabilidade moral ou legal que constitui, quando menos, a premissa ôntica e existencial da consideração ontológico-existencial de Heidegger. No âmbito do catolicismo, pode-se encontrar um modo de ser próximo ao ser-para-a-morte no jansenismo, que é afim * Chamado. (N. do T.)

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com o luteranismo não só pela teoria da graça, do pecado original e da culpabilidade humana, pela experiência da vocação, do chamado, da escuta, mas também pela importância que essa doutrina atribui ao “sentir”, ao “coração”, todos eles temas cujas origens podem ser buscadas, provavelmente, na inspiração agostiniana comum a ambos os movimentos. O jansenismo está em total oposição à concepção humanista, segundo a qual a morte é meramente um deixar de viver, cinicamente resumível no “vixit”* dos romanos. Para Pierre Nicole, a morte deve ser o objeto de meditações mais importante para um cristão. “Nunca é cedo demais para dedicar-se a ela. Mesmo que não fizéssemos outra coisa durante todo o resto de nossa vida [...]. É loucura deixar esse pensamento para mais tarde.”26 O problema da morte está estritamente ligado ao do tempo: tempo algum parece-lhe longo demais para preparar-se para a morte; ela dissolve o conceito vulgar de tempo. Esse viver para a morte não deixava de propiciar uma satisfação análoga à “laetitia in tristitia”** luterana. “É mais fácil, para um verdadeiro cristão”, escreve Quesnel, “amar a morte e fazer dela a sua delícia do que amar a vida e nela encontrar prazer e alegria. Posto que, para os homens carnais [...], o simples pensamento da morte é [...] um suplício [...]. Mas aquele que compreender o que deve à justiça de Deus como pecador e o que deve odiar em si próprio como filho de Adão [...], este não terá dificuldade em dizer como são Paulo: Et mori lucrum.*** A morte é o meu bem, a minha vantagem e a minha delícia.”27 Da mesma forma, Heidegger escreve que a decisão antecipadora não é nunca um estratagema para derrotar a morte; ao contrário, se trata da* Vive. (N. do T.) ** Alegria na tristeza. (N. do T.) *** Morrer é lucro. (N. do T.)

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quela compreensão que provém do chamado da consciência, o qual oferece à morte a possibilidade de apoderar-se da existência do ser-aí e destruir até a raiz toda ocultação evasiva de si.

3 O simulacro da morte As Artes moriendi da primeira metade do século XVI acusam profundamente o influxo do humanismo e invertem, por essa razão, os termos do problema: quem quiser bem morrer deve aprender, em primeiro lugar, a bem viver. Por exemplo, o tratado De doctrina moriendi, de Josse Clichtove, publicado em 1520, afirma que não se deve temer a morte e que o homem honesto não precisa se preocupar com ela. As citações dos clássicos latinos estão lado a lado com as referências à Bíblia e aos pais da Igreja e, às vezes, as substituem. Também Erasmo defende, em seu De praeparatione ad mortem (1534), a tranqüilidade do justo diante da morte e procura conciliar o problema da salvação não só com a fama humanista do indivíduo, como também com a glória de Deus.28 Apenas os tratados jesuítas do século XVII irão abrir uma perspectiva aparentemente semelhante à desses tratados já citados, mas substancialmente oposta a uma visão humanista da vida e da morte. A obra De arte bene moriendi, de Roberto Bellarmino, testemunha à perfeição a nova postura, que, no seu conjunto, é irredutível tanto à digressão humanista da morte como ao ser-para-a-morte de Lutero. O primeiro preceito da arte bellarminiana de bem morrer é idêntico àquele humanista: quem desejar bem morrer, procure primeiramente bem viver, “porque, não sendo a morte senão o fim da vida, quem viver bem até o fim decerto morrerá bem; nem poderá 176

morrer mal quem jamais viveu mal. Da mesma forma, aquele que viveu mal, morre também mal, nem pode deixar de morrer mal quem jamais viveu bem”.29 Não obstante, o conceito jesuíta de viver bem é radicalmente diferente do humanista: se para os humanistas a vida boa coincide com a negação da morte, enquanto inexistente, para Bellarmino não se pode bem viver se já não se estiver morto, isto é, se não se alcançou aquela pequena morte, aquela simulação da morte que é a indiferença inaciana, final da primeira semana dos Exercícios espirituais e condição sine qua non de todo progresso subseqüente. Já São Francisco de Borja, que foi prepósito-geral da Companhia de Jesus de 1565 a 1573, tinha por hábito dizer que era necessário pôr-se pelo menos quatro vezes ao dia em estado de morte mediante um total desinteresse e desprezo pela vida, e que jamais se pode ser mais feliz do que quando se diz com são Paulo: “Eu morro todos os dias”. Essa simulação da morte será mais tarde um lugar-comum da literatura jesuíta que trata do assunto nos séculos XVII e XVIII. Valha como exemplo o jesuíta Jacques Nouet, que, em seu Retraite pour se préparer à la mort (1684), convida a adiantar-se à morte, a morrer antecipadamente com relação a si mesmo, a viver como mortos.30 Os jesuítas introduzem assim uma experiência da morte tão arraigada na existência quanto a luterana. Para eles, não se trata, de forma alguma, de não pensar na morte ou de afastar o pensamento da morte, mas, ao contrário, de torná-la uma base imprescindível sem cair na angústia, transformando-a em premissa de felicidade. O “ser no mundo e não do mundo”, o “viver na carne quase sem carne” que Bellarmino propõe não é a reedição do ascetismo medieval, e sim a condição de uma felicidade verdadeira e estável. Porque “não são os bens 177

deste mundo, as riquezas, as honrarias e os prazeres que estão de todo vetados aos cristãos”,31 mas apenas um determinado modo de fruí-los, como se pertencessem exclusivamente àqueles que deles gozam. Quem deseja bem viver deve, portanto, estar “absolutamente disposto a renunciar a tudo”, isto é, deve estar disponível para experimentar qualquer tipo de vida que o futuro lhe reservar. Essa simulação da morte não é insensibilidade; ela introduz um novo tipo de sensibilidade que prescinde de toda simples-presença. Segundo Bellarmino, o apóstolo Paulo exorta os fiéis “a amar as próprias mulheres, sim, mas com um amor tão moderado como se não as tivessem; se for preciso chorar a perda dos filhos ou da fortuna, chorem pois, mas tão moderadamente como se não estivessem aflitos ou não chorassem; se surgir motivo de alegria devido a ganhos e honrarias obtidos, goze-se com eles tão pouco como se não se gozasse, isto é, como se aquela alegria não lhes pertencesse”. No seio da própria Companhia, nem sempre essa pequena morte foi interpretada e vivida de maneira tão original. Às vezes propõem-se concepções da morte e da arte de morrer que não estão distantes da mentalidade luterana, como no Horologium de Drexelius;32 ou prevalecem influências que consideram a indiferença inatividade, como em Richêome e em Binet; ou então impõe-se a herança mística que vê na indiferença a absoluta conformidade à vontade de Deus, como em Achille Gagliardi e em Rodríguez. Nessas interpretações quietistas perde-se a ratio instituti,* o espírito da Companhia, que é essencialmente apostólico, voltado para a atuação no mundo, não contemplativo por definição. Escapa assim o essencial: o fato de que a si* O princípio da instituição. (N. do T.)

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mulação da morte não é uma meta, mas um ponto de partida que nos introduz em uma operatividade efetiva mas não factual.33 Ela se diferencia radicalmente da ação que cria méritos, objeto da crítica de Lutero, e que possui o caráter do factum brutum, isto é, daquela atividade que pretende transformar o mundo em sentido ético-metafísico. A efetividade jesuíta opera no plano da situação afetiva, seja porque faz com que o eu e os outros consolados em qualquer estado ou condição de vida sejam lançados do futuro, seja porque propõe todo “fato bruto” como um êxito ad majorem gloriam Dei.* Em seu sentido mais profundo, o otimismo jesuíta não é ético-metafísico, mas operativo-existencial: este é o melhor dos mundos possíveis, não porque do ponto de vista do valor seja de fato tal, e sim porque é possível agir de modo a tornar feliz e satisfeita qualquer tipo de existência. É por essa razão que a virtude jesuíta não é a esperança, que implica a transformação ético-metafísica do mundo (e está, portanto, ligada ao milenarismo escatológico), mas, quando muito, a confiança para encontrar consolo e saída, aconteça o que acontecer. Mesmo na hora da morte, mesmo na agonia. O Mortes illustres do padre Alegambe vem justamente demonstrar que quem já está morto, quem já conheceu a pequena morte da indiferença, pode viver qualquer agonia com consolo interior e êxito notório:34 mesmo a agonia é vida e história, é um último papel teatral que deve ser bem interpretado. Todavia, só pode ser bem interpretado por quem já estiver morto. “De fato”, escreve Bellarmino, “daqueles que tiveram a ventura de morrer pelo menos duas vezes ou mais [...] sabe-se que morrerão de bastante bom grado.”35 Assim, pode escapar ao ridículo até * Para maior glória de Deus. (N. do T.)

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mesmo a tradição existente entre os jesuítas segundo a qual, a partir do generalato de são Francisco de Borja, ao longo de trezentos anos, ninguém, de todos aqueles que tivessem vivido na Companhia, teria perecido se tivesse morrido em seu seio.36 O interesse que essa tradição apresenta vai além da história da edificação. Um pensamento semelhante dissolve completamente o juízo de Deus e deixa o homem numa inocência independente da lei e da consciência, tão radical quanto a culpabilidade de Lutero e de Heidegger. No fundo, quem conheceu a pequena morte da indiferença já está predestinado à salvação e à felicidade, aconteça o que acontecer. O escritor seiscentista espanhol Francisco de Quevedo, que foi educado pelos jesuítas, cria em Sueños uma figura engraçadíssima, coberta com extravagantes atavios e dotada de características contraditórias. Ela se apresenta como a Morte, e fala desta guisa: “E aquilo a que chamais morrer é o acabar de morrer, e aquilo a que chamais viver é morrer vivendo. E os ossos são o que de vós deixa a morte e o que sobra à sepultura”.37 Nessa apresentação, portanto, a morte não é, como em Lutero ou em Heidegger, algo que se espera, a possibilidade mais certa, mas algo que é desde o início o fundamento nulo da existência e sobre o qual está construído o grande teatro do mundo. Essa Morte não está ligada ao despertar (o Aufruf heideggeriano), e sim ao sonho, porque o produto onírico é — como sabia Calderón — aquilo que se assemelha mais à sociedade e à história. Só os que já estão mortos, isto é, indiferentes, podem agir sobre a história, porque esta é movimento contínuo, devenir que dissolve todas as certezas, todos os pontos fixos, todas as identidades.

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O modelo do sonho permite a passagem da simulação jesuíta ao simulacro barroco da morte. Se no luteranismo e em Heidegger o ser-para-a-morte está ligado ao caráter de chamado da consciência, na tradição jesuítico-barroca impõe-se a visibilidade da morte. Ela não é ouvida — é vista. Não é voz — é simulacro. Atuar no mundo quer dizer, no fundo, criar sonhos, imagens oníricas, simulacros da morte. Os historiadores da arte contrapuseram a “serenidade” dos monumentos sepulcrais humanistas do século XV e da primeira metade do século XVI ao inquietante e convulsionado espetáculo oferecido pelos túmulos barrocos. De fato, na segunda metade do século XVI aparece e torna-se cada vez mais freqüente a representação de uma ou mais caveiras, desenhadas ou esculpidas. Essa tendência afirma-se e consolida-se no século seguinte, ampliando-se para a representação do esqueleto inteiro, mostrado freqüentemente no ato de abrir o sarcófago ou de sustentá-lo. 38 Os túmulos berninianos nas igrejas de São Pedro ou de San Francesco a Ripa, em Roma, oferecem uma imagem que pode parecer, à primeira vista, um triunfo da morte sobre o mundo, da eternidade sobre o tempo. Entretanto, essa interpretação peca por envolver uma ilusão. Não existe, na sociedade barroca, inconciliabilidade entre morte e mundo, porque o grande teatro do mundo se ergue justamente sobre o fim de todas as fés metafísicas — o maravilhoso do aparelho social funda-se no nada. Essa troca entre a vida e a morte está simbolicamente representada no monumento sepulcral do arquiteto Giovan Battista Gislenus, na igreja de Santa Maria del Popolo, em Roma: no alto, há um retrato do defunto e, embaixo, um busto em tamanho natural que representa um esqueleto, com a 181

inscrição: “Neque hic vivus, neque illic mortuus”,* que se refere, respectivamente, à imagem e ao simulacro. A sua vida não foi verdadeira vida, mas simulação da morte. Sobre a sua morte, no entanto, eleva-se o simulacro que o torna partícipe do decoro do grande teatro do mundo. Como intuíra Huxcley,39 a participação ativa na sociedade e na história não impede, de modo algum, que se erijam grandes e dispendiosos monumentos cujo tema é a queda das grandezas terrenas e a inanidade dos desejos humanos; ao contrário, honrarias, riquezas e pompas são apreciáveis justamente porque sentidas e vividas como sendo nada. Simulacros da morte, portanto, são não apenas os túmulos, mas também as igrejas, os palácios, as instituições, as obras, toda a sociedade. A grandeza do barroco reside precisamente nessa ligação entre a morte e a história, entre o nada e as ações. A morte não põe fim à história, mas está na origem de toda historicidade. A experiência da finitude não aterroriza nem paralisa, mas é garantia de consolação e oficina de ações. Que essas ações sejam inaturais, artificiais, artificiosas, sem correspondência com um modelo, isso deriva precisamente do fato de que elas nada têm a ver com a vida como simples-presença, com a vida sem morte dos humanistas, com a vida pensada metafisicamente: em relação a elas não há retorno nem remorso. Simulacro da morte é o próprio homem. O esqueleto, diz a Morte em Sueños, de Quevedo, não é a morte, e sim o que resta dos vivos: “Os seus ossos nada mais são do que o arcabouço sobre o qual se constrói o corpo do homem. A morte, vós não conheceis e sois vós mesmos a vossa morte: * Nem este está vivo, nem aquele está morto. (N. do T.)

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ela tem a cara de cada um de vós e todos sois a morte de vós mesmos. A caveira é o morto e a cara é a morte”. O corpo do homem é, no fundo, uma imagem, um disfarce, uma máscara da morte, porém atrás dessa máscara não há uma realidade mais substancial da morte. A morte não é um ente, uma simples-presença. É por isso que ela possui tantos aspectos quantos são os modos de existência, que acolhe todas as possibilidades, todas as apostas, todos os papéis. A sua disponibilidade é total, desde que se permaneça no âmbito daquilo que aparece, da história. Se, ao contrário, o homem abandonar o terreno da história e sair à procura de fés, de identidades metafísicas ou teológicas, nada poderá livrá-lo da desolação e do fracasso.

4 Morte, tempo, história À dimensão existencial da morte está estritamente ligada a dimensão do tempo: se não houvesse morte, não haveria tempo. O ser-aí toma conhecimento do tempo com base em seu saber a respeito da morte. Essa conexão entre morte e tempo é um aspecto fundamental, tanto do ser-para-a-morte como do simulacro da morte. O problema do tempo encontra, contudo, soluções opostas nas duas tradições. Em Heidegger, a antecipação da morte revela-se como decisão, isto é, projeção e clara determinação da única possibilidade própria e certa da existência. Na tradição jesuíta, a mesma função é exercida pela eleição, com a qual termina a segunda semana dos Exercícios espirituais propostos por Loyola. A eleição também é, ao mesmo tempo, escolha e resolução extrema. Como no caso da decisão, não se trata, po183

rém, de uma escolha arbitrária ou subjetiva: a eleição impõese ao exercitante com imperiosa necessidade. A diferença entre decisão e eleição reside, ao contrário, na orientação em relação à morte — a decisão vai em direção à morte, enquanto única possibilidade da existência, e encontra a temporalidade; a eleição provém da morte, enquanto estado de completa indiferença e humildade, e encontra a história. Heidegger diferencia em Ser e tempo três determinações distintas do tempo: a temporalidade (Zeitlichkeit), a historicidade (Geschichtlichkeit) e a intratemporalidade (Innerzeitlichkeit). A temporalidade é a dimensão do tempo encontrada de forma originária no fenômeno da decisão antecipadora: esta temporaliza-se a partir de um porvir finito, isto é, caracterizado por um limite insuperável. Heidegger diferencia a temporalidade autêntica do ser-para-a-morte — caracterizada pela antecipação, pelo instante, pela repetição, pela angústia e pela projeção na perdição — da temporalidade inautêntica da Preocupação — caracterizada pelo esperar, pela apresentação, pelo olvido, pelo medo e pela curiosidade dispersiva. À temporalidade inautêntica da Preocupação está ligada a dimensão existencial do comércio e da ciência. Sobre a temporalidade do ser-aí fundamenta-se a sua historicidade, a qual proporciona a elucidação ontológica da “continuidade” do ser-aí, ou seja, de sua extensão, mobilidade e permanência: ela tem o seu centro de gravidade no ter-sido. A historicidade, segundo Heidegger, nada tem a ver com o conceito vulgar de história (Historie), objeto da historiografia (que considera o ser-aí simples-presença passada), mas traz o ser-aí à presença de seu destino (Schiksal), através do qual é transmitida uma possibilidade herdada e, no entanto, escolhida. É necessário distinguir entre o destino, entendido como historicidade 184

autêntica, e a historicidade inautêntica do ser-aí, que designa o historializar-se do ser-no-mundo, isto é, o movimento temporal daquilo com o que o anônimo Se se preocupa. A intratemporalidade é, enfim, a determinação temporal do ente intramundano, isto é, dos entes entendidos como simples-presenças. Ela nasce de um nivelamento do tempo mundano, caracterizado ainda pela databilidade e pela significatividade. A intratemporalidade constitui a base da elaboração do conceito vulgar e tradicional de tempo enquanto mera série de instantes (Jetzt), que com freqüência são simplesmente-presentes e, mesmo assim, transcorrem e avançam. Isso, portanto, não pode encontrar em absoluto nenhum fim e nenhum princípio, e é, por conseguinte, abstratamente infinito. A intratemporalidade é, portanto, o mais completo desconhecimento da finitude da existência e da morte. Contudo — observa Heidegger —, é preciso não esquecer que ela emana do tempo mundano, que é um modo essencial, embora inautêntico, de temporalização da temporalidade originária. Se essa complexa articulação do tempo que deriva do ser-para-a-morte for confrontada com as determinações do tempo implícitas na experiência da simulação e do simulacro da morte, é possível encontrar, junto com alguma afinidade profunda, divergências radicais. Primeiramente, o movimento que vai da indiferença e da disponibilidade à eleição parece introduzir de um só golpe uma dimensão histórica, sem passar pela temporalidade do instante. Ou seja, o conceito heideggeriano de temporalidade (Zeitlichkeit) parece inadequado porque está ligado à possibilidade mais própria e autêntica do ser-aí, à antecipação da morte. Todavia, a pequena morte da indiferença e o estado de disponibilidade não permitem detectar uma possibilidade que seja mais própria do que qual185

quer outra: a morte entendida como a possibilidade por vir não possui nenhum caráter privilegiado com relação às outras infinitas possibilidades. Ser disponível significa estar disposto a viver de qualquer modo que for e a morrer, qualquer que seja a maneira, com igual consolação. Isso implica uma equivalência abstrata de todas as possibilidades. A determinação de uma escolha pode ocorrer somente com base na situação concreta, fenomênica, isto é, histórica. Essa situação histórica da qual emerge a escolha, porém, nunca é uma simples-presença: se o fosse, não seria possível escolha alguma. O resultado seria o quietismo. A disponibilidade para ser lançado para qualquer futuro não é a resignação em aceitar qualquer futuro no qual se tenha sido lançado, mas a premissa para escolher e tornar própria qualquer situação na qual se tenha sido lançado. A situação torna-se própria somente depois da eleição. Enquanto em Heidegger ela é decidida porque própria, autêntica, em Loyola ela é própria somente a partir do momento em que é escolhida. A diferença entre ambas as perspectivas parece sutil à primeira vista; no entanto, é fundamental também pelas conseqüências na concepção do tempo. De fato, no caso de Heidegger, a decisão antecipadora da única possibilidade autêntica põe diante da situação e encontra a temporalidade. No caso de Loyola, a situação impõe-se à eleição e faz-se escolher como única possibilidade própria, justamente porque ela é a única possibilidade que é histórica. Em Heidegger, decide-se aquilo que é mais próprio; em Loyola, torna-se próprio aquilo que é mais outro. Essa alteridade é exatamente o modo de ser da história, a sua diferença. Essa concepção da história é, portanto, diametralmente oposta à Historie, à historiografia, à ciência histórica propugnada pelo historicismo, o qual tem uma concepção homogênea e 186

niveladora do devir histórico e, geralmente, tem a pretensão de descobrir leis que expliquem o seu movimento. Mas não pode tampouco ser confundida com a historicidade (Geschichtlichkeit) heideggeriana, que está arraigada na temporalidade (Zeitlichkeit) do ser-aí. Quando muito, ela tem alguma afinidade com o que Heidegger chama Temporalität, isto é, a temporalidade do Ser, que, como se sabe, não foi discutida em Ser e tempo. Ainda não foi bem esclarecido, no entanto, o processo que permite passar da pequena morte da indiferença à eleição da diferença. Como se faz para eleger, isto é, para tornar próprio algo, sendo-se nada, tendo-se anulado na simulação da morte? Na realidade, o que leva ao nada da indiferença é também o que determina a eleição. É um mesmo movimento aquele que, antes, libera de toda emoção desordenada e, depois, leva a escolher uma situação: é o movimento em direção à consolação, em direção à alegria que imprime a toda a experiência um caráter profundamente eudemonístico. É por isso que a indiferença da primeira semana dos exercícios não fecha o caminho da eleição da segunda, mas constitui a sua premissa fundamental. De um ponto de vista abstrato, não existe uma situação que seja mais própria do que outra — é preciso estar disposto a tornar própria qualquer situação. A decisão de tornar própria uma determinada situação cabe exclusivamente a quem a vive e só vale para aquele único caso concreto. Nesse processo, contudo, nada há de subjetivo: é a diferença da história a impor que seja escolhida. Assim, acaba caindo por terra a própria distinção heideggeriana entre autêntico (eigentlich) e inautêntico (uneigentlich), entre o que é próprio da existência e o que, ao contrário, está ligado à perda de si. Na perspectiva jesuíta, tudo pode ser próprio e nada o é, a título de privilégio e separado da situação concreta. Embora em Heidegger a dis187

tinção entre autenticidade e inautenticidade não implique um juízo de valor e ambas façam parte da estrutura do ser-aí, a tal ponto que a existência autêntica nada mais é do que “uma apreensão modificada” (ein modifiziertes Ergreifen) da cotidianidade projetiva, entretanto toda a analítica existencial baseia-se na tensão entre uma dimensão “mundana”, caracterizada pela cotidianidade anônima, e uma dimensão “própria”, caracterizada pela perfeita identidade do si-mesmo. Ora, na experiência que se inspira em Loyola, o mundo histórico e a eleição não se opõem de modo algum; ao contrário, é justamente o mundo histórico, sentido como diferença, descontinuidade, novidade emergente, que constitui o critério da eleição. Caso surgisse conflito entre a história e o indivíduo, isso significaria que não se alcançou a indiferença, que se permaneceu ligado à identidade do eu e que, portanto, não se pode escolher. Já nas primeiras páginas de Ser e tempo, Heidegger estabelece uma diferença radical entre o seu conceito de existência e a idéia tradicional de sujeito, caracterizado pela substancialidade, pela personalidade e pela simplicidade, redutível, por conseguinte, a uma simples-presença. Como conseqüência da determinação da existência autêntica enquanto chamado ao próprio si-mesmo (em relação ao esquecimento da existência inautêntica perdida no anonimato do Se), o problema da unidade e da substância do ser-aí impõe-se à sua consideração. De fato, por um lado, essa constância do ser-aí não pode ser pensada como permanência (Beharrlichkeit) do si-mesmo, uma vez que isso implicaria uma recaída na teoria do eu como sujeito; por outro, deve haver, quer uma constância do si-mesmo, um seu manter-se continuamente num estado, quer uma relação deste com a existência inautêntica do Se. Para resolver esse problema, Heidegger introduz um par de conceitos complementares: a estabilidade 188

(Ständigkeit) da Ipseidade (Selbstheit), que expressa a capacidade de manter-se num certo estado a partir de si-mesmo enquanto decisão resolutiva, e a instabilidade (Unselbstandigkeit) da Preocupação, que expressa a dispersão do Se no mundo e, portanto, a incapacidade de manter uma estabilidade. Na tradição jesuítico-barroca, esse problema apresentase de forma muito mais grave, porque o seu movimento não vai do anonimato do Se para o si-mesmo, mas da pequena morte da indiferença para o mundo. Como é possível eleger, isto é, escolher algo, quando se é nada? Ou, melhor, como se pode tornar próprio o algo se a dimensão do si-mesmo é secundária e está subordinada à história? É este, sem dúvida, o ponto mais delicado e sutil da espiritualidade inaciana: os êxitos opostos do quietismo e do ativismo, aos quais historicamente deu lugar, demonstram a extrema dificuldade dessa posição. No entanto, é verdade que a sua originalidade e a sua força residem justamente na ligação inseparável entre indiferença e eleição. Nada melhor do que a definição de Loyola como um contemplativus in actione para destacar a vinculação entre esses dois aspectos, à primeira vista incompatíveis. Uma resposta a essa interrogação talvez pudesse ser oferecida pela teoria freudiana do inconsciente: a indiferença, a simulação da morte recalca a vontade do sujeito, transformando-a em pulsão inconsciente, sem objeto e sem alvo determinado, porém dotada de um poder que é tanto maior quanto menor for a sua identidade. Ela constituiria um enorme reservatório de energia, destinada a sustentar a escolha histórica concreta, a qual, desprovida de uma dimensão própria e autêntica, vem a ser, antes, um papel a ser interpretado, um jogo a ser feito. A eleição inaciana estaria, assim, estreitamente ligada àquela transformação onírica e àquela teatralização da vida que cons189

titue um dos aspectos essenciais da sociedade barroca. O motor dessa encenação emanaria precisamente desse recalque da vida implícito na indiferença, na simulação da morte. É verdade que a eleição introduz uma temporalidade distinta da história — não depende do homem a escolha das cartas que lhe são dadas, contudo ele pode estabelecer em que ordem jogá-las. Sem dúvida, ele não pode escolher o próprio papel, mas pode interpretá-lo de muitos modos. Admitir isso, porém, não significa recair no humanismo e no livre-arbítrio. Essa admissão não implica que existam infinitas possibilidades de vitória, e sim que há de existir uma em qualquer situação; ou, como dizem os jesuítas, que qualquer papel possa ser interpretado “ad majorem Dei gloriam”. O grande mestre dessa temporalidade foi, sem dúvida, Baltasar Gracián, que, em seu Oráculo manual, escreve: “Saiba-se fazer triunfo do próprio fenecer [...] aposente a tempo o advertido ao corredor cavalo e não espere que, caindo, provoque o riso em meio à corrida; quebre o espelho a tempo e com astúcia a beleza, e não com impaciência depois, ao ver o seu desengano”.40 A relação entre temporalidade e historicidade apresenta-se na tradição jesuítico-barroca, portanto, em termos opostos com relação à formulação heideggeriana. Não é a temporalidade que constitui fundamento da historicidade; ao contrário, é a história que constitui fundamento da temporalidade.

5 A intratemporalidade e a economia política A terceira determinação temporal heideggeriana, a intratemporalidade, entendida como sucessão de “agoras” simplesmente-presentes, é antes um desconhecimento e uma oculta190

ção do tempo do que um seu aspecto. Heidegger destaca o caráter intemporal (unzeitlich) dessa dimensão, na qual o fator puramente aritmético e abstrato da numeração se afirma como determinante e essencial. O tempo assim concebido é apenas o número dos instantes por vir: inexiste inteiramente toda compreensão da finitude da existência. Desse modo, o tempo torna-se algo de que podemos nos apropriar, “que está ao alcance de todos como algo que qualquer um toma e pode tomar”.41 O tempo, não mais sendo “próprio” de alguém, pode ser acumulado por quem quer que seja. A intratemporalidade é, portanto, o tempo da economia política, uma das condições fundamentais para a formação do capital. No entanto, a importância das considerações heideggerianas sobre a intratemporalidade não consiste na ligação entre esta e a medição quantitativa e publicamente acessível do tempo pelo relógio. A dimensão quantitativa do tempo é sempre óbvia na temporalidade inautêntica da Preocupação. “Com a temporalidade do ser-aí, lançado, abandonado ao mundo, dando tempo a si próprio, descobre-se sempre algo como o ‘relógio’, isto é, um dispositivo que em seu retorno regular se tornou acessível, numa apresentação esperada”.42 O aspecto original e relevante da intratemporalidade não é, por conseguinte, a sua dimensão quantitativa, e sim a sua eternidade: dado que ela vê o fenômeno fundamental do tempo no simplesmente-presente do agora, no fundo não consegue pensar nem o porvir, nem o passado, mas apenas o “agora presente” (nunc stans), isto é, o eterno. Não por acaso Platão, que entende o tempo como constituído por uma série de agoras, define-o como “a imagem da eternidade”, e Hegel, cuja concepção de tempo permanece no âmbito da intratemporalidade, afirma que “o verdadeiro presente é a eternidade”. 191

A intratemporalidade, que é a concepção do tempo da produção capitalista, é uma perspectiva estranha, tanto ao ser-para-a-morte luterano como à simulação da morte jesuítico-barroca. Ela apresenta, ao contrário, estreitas ligações com o calvinismo. Em Calvino há uma negação da morte que é mais extremista e radical que a da metafísica tradicional. Esta, na verdade, negava a morte porque, no fundo, concebia a vida ultratumular como uma continuação da vida terrena, em conformidade com a relação de analogia que ela estabelecia entre o ser de Deus e o ser das criaturas. Mas, para Calvino, entre Deus e o homem não pode estabelecerse nenhuma medida comum, pois Deus é incompreensível em sua essência. Por isso, a morte não é negada a partir da vida, que é em si infinitamente miserável e mortal, mas a partir da eternidade de Deus. A intratemporalidade é uma conseqüência da doutrina calvinista da predestinação, segundo a qual Deus já escolheu com absoluta liberdade de arbítrio aqueles que deseja salvar. “Quando atribuímos uma presciência a Deus”, escreve Calvino, “entendemos que todas as coisas sempre estiveram e permanecem eternamente no seu olhar, de tal modo que não há nada de futuro ou de passado em seu conhecimento, mas todas as coisas estão-lhe presentes e de tal maneira presentes [...] que ele as vê e as contempla verdadeiramente, como se elas estivessem diante dele. Nós dizemos que essa presciência se estende por todo o mundo e sobre todas as criaturas. Chamamos de predestinação ao decreto eterno de Deus pelo qual ele determinou aquilo que queria fazer de cada homem.43 Calvino não propõe, portanto, uma reflexão sobre a morte, mas uma Meditação sobre a vida futura, isto é, sobre a eternidade,44 e, a partir dessa meditação, toda a vida terrena 192

adquire a dimensão intratemporal. Diferentemente de Lutero, Calvino procede assim a uma reavaliação das ações e da atividade humanas enquanto obra, não dos homens, mas de Deus: nós não somos justificados sem as ações, embora não o sejamos por causa delas. Em verdade, somos instrumentos da glória de Deus. Enquanto a atenção de Lutero permanece ainda centrada na consciência e a de Loyola, na eleição do exercitante, para Calvino jamais é o homem quem escolhe o que quer que seja — é Deus quem escolhe os homens a serem salvos ou abandonados à morte eterna. Disso deriva esse ativismo ascético, em singular contraste com o eudemonismo ativo dos jesuítas, que Max Weber e Ernst Troeltsch definiram com o termo ascetismo intramundano (innerweltliche Askese).45 Ele consiste em restringir a vida sensitiva à pura necessidade, num rigorismo utilitarista orientado para o além, num legalismo entendido como fim em si próprio. As considerações weberianas a respeito da ligação entre o calvinismo ascético e a economia capitalista mostram claramente que a negação da morte implícita na intratemporalidade é ao mesmo tempo negação da vida, absoluto repúdio do “bem viver”, e severa e inapelável condenação de toda apreciação autônoma do mundo.46 Para o calvinismo, o corpo jamais vive por si próprio. O momento da morte não possui, no fundo, muita importância, porque as almas dos eleitos já vivem e atuam desde sempre no âmbito da eternidade. O verdadeiro fiel é aquele que, estando absolutamente certo de sua salvação, pode insultar a morte e não preocupar-se com ela. Não é este o lugar para examinar a maneira pela qual a intratemporalidade calvinista se vincula ao racionalismo humanista; importa antes pôr em evidência o fato de que nas 193

origens da economia capitalista se encontra uma perspectiva ultrametafísica do tempo como eternidade que é profundamente diferente e antitética com relação à concepção jesuíticobarroca do tempo como história. É justamente essa incompatibilidade entre intratemporalidade e mundo, entre eternidade e história, que escapa a Heidegger. Para ele, a intratemporalidade baseia-se no tempo público mundano (Weltzeit), no próprio ser do ser-aí inautêntico, por ele interpretado como Preocupação, como cotidianidade impessoal.47 Dessa forma, a intratemporalidade (e a economia política capitalista) torna-se uma dimensão estrutural da existência que não pode ser superada no plano histórico. Uma vez mais, Heidegger reproduz a posição de Lutero, que estava disposto a conceder à economia uma legitimidade secundária, mas de forma alguma a atribuir-lhe — como Calvino — uma função divina. A perspectiva jesuítico-barroca é, ao contrário, estranha à dimensão da intratemporalidade, tanto quanto ao ser-paraa-morte: a pretensão de mergulhar toda a sociedade numa dimensão eterna, ritmada pelos prazos de um trabalho metódico, de uma acumulação constante e de uma indefectível renúncia, é sentida como uma coisa absurda, de fanáticos que não sabem bem viver nem bem morrer. A ambição de programar o futuro mediante o emprego de métodos de previsão que pressuponham um desenvolvimento homogêneo e regular é tachada como uma ingenuidade que ignora a diversidade da história. Enfim, o legalismo é exatamente o contrário daquele usus rerum* que é premissa de toda ação eficaz. Tudo isso, obviamente, não exclui o modo de ser do caráter utensiliar, a Zuhandenheit que Heidegger considera o fun* Uso das coisas. (N. do T.)

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damento existencial da economia e da ciência. Mas o âmbito jesuítico-barroco da utilidade é amplo o suficiente para abranger também e principalmente o seu contrário, o inútil, e para dissolver, portanto, a sua identidade. Na “ajuda às almas”, que constitui o objetivo precípuo sobre o qual foi fundada a Companhia de Jesus, o aspecto material e o aspecto espiritual estão unificados e são indistinguíveis. O mesmo acontece com as outras determinações heideggerianas do mundo ambiente (Umwelt): o signo (Zeichen) e a satisfação (Bewandtnis). A estrutura comunicativa barroca dissolve todo referente porque ocorre entre um emissor que se vale do código da ostentação e um receptor cujo código é o da complacência.48 Enfim, o princípio repetido ininterruptamente por Loyola e Gracián, de ser feliz em qualquer estado ou condição, lança as bases do erotismo total que Sade irá expor detalhadamente. Caráter utensiliar, signo e satisfação perdem completamente o caráter inautêntico e criptoeconômico que Heidegger lhes atribui. O “mundo” jesuíticobarroco não abre a perspectiva da produção, mas a do simulacro. Disso deriva justamente a sua profunda afinidade com a situação contemporânea, caracterizada, segundo Baudrillard, pelo fim da economia política clássica e pela sua reprodução hiper-realista como modelo de simulação: “Todos os signos agora trocam-se entre si, sem jamais trocar-se com o real, e eles não se trocam bem, eles não se trocam perfeitamente entre si a não ser com a condição de não trocar-se mais com o real”.49

Notas 1. M. Heidegger, Sein und Zeit. Halle, Niemeyer, parágrafo 48. 2. Heidegger, op. cit., parágrafos 20 e 21. 3. J. Baudrillard, L’échange symbolique et la mort. Paris, Gallimard, 1976, p. 225, nota 1. 4. Heidegger, op. cit., parágrafo 51.

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5. Ibid., parágrafo 38. 6. Ibid., parágrafo 40. 7. Baudrillard, op. cit., p. 195. 8. Fenomenológicas e ontológicas as heideggerianas; históricas e psicoanalíticas as de Baudrillard. 9. A identidade do si-mesmo autenticamente existente, de que Heidegger fala, não tem, no entanto, nada a ver com a concepção metafísica da identidade do eu. 10. Heidegger, op. cit., parágrafo 53. 11. Id., parágrafo 62. 12. No exame desse aspecto do problema, detém-se particularmente U. M. Ugazio. Il problema della morte nella filosofia di Heidegger. Milão, Mursia, 1976. 13. Baudrillard, op. cit., p. 203. 14. Heidegger, op. cit., parágrafo 40, nota 4, e parágrafo 49, nota 6. 15. Baudrillard, op. cit., p. 276. 16. P. Ariès, Essai sur l’histoire de la mort en Occident du Moyen Âge à nos jours. Paris, Seuil, 1975. 17. A. Tenenti, A. La vie et la mort à travers l’art du XV siècle. Paris, Colin, 1952. 18. E. De Negri, La teologia di Lutero. Florença, La Nuova Italia, 1967, p. 52 e seguintes. 19. W. von Loewenich, Luthers Theologia crucis. Bielefeld, Luther Verlag, 1967, V. 20. Apud G. Miegge, Lutero giovane. Milão, Feltrinelli, 1977, p.138. 21. M. Lutero, Ein sermon von den heiligen hochwürdigen Sacrament der Taufe. (1519). In: Werke in Auswahl. Berlim, De Gruyter, 1959, vol. I. 22. M. Lutero, Das Magnificat (1520-21). In: Lutero, op. cit., vol. II. 23. Apud E. De Negri, op. cit., p. 70. 24. Miegge, op. cit., p. 327. 25. Heidegger, op. cit., parágrafo 62, nota 2. 26. P. Nicole, Essais, IV. Apud H. Bremond, Histoire littéraire du sentiment religieux en France. Paris, Bloud et Gay, 1915, t. IX, p. 362. 27. R. P. Quesnel, Le bonheur de la mort chrétienne, prefácio. Apud Brémond, op. cit., t. IX, pp.378-9. 28. Tenenti, op. cit. 29. R. Bellarmino, De arte bene moriendi (1621), livro I, cap. I. 30. Apud M. Volvelle, Mourir autrefois. Paris, Juillard, 1974, p. 58. 31. Bellarmino, op. cit., livro I, cap. II. 32. H. Drexelius, Opera. Londres, 1658. 33. Empregaremos aqui os termos heideggerianos “efetividade” isto é, o modo de ser do Dasein, e “factualidade”, isto é, o modo de ser das coisas, num contexto cujo significado geral é, em muitos pontos, oposto às teses de Heidegger. 34. Pe. Alegambe, Mortes illustres et gesta eorum de Societate Iesu. Roma, 1657. 35. Bellarmino, op. cit., livro II, cap. I. 36. G. Terrien, Recherches historiques sur cette tradition que la mort dans la Compagnie

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de Jésus est une gage certaine de prédestination. Poitiers, Oudin, 1874. 37. F. de Quevedo y Villegas, Los sueños (1626). In: Obras Completas. Madri, Aguilar, 1958, vol. I. 38. E. Male, L’art religieux après le concile de Trente. Paris, Colin, 1932. 39. A. Huxcley, Variations on a baroque tomb. In: Themes and variations. Londres, Chatto and Windus, Londres, 1950. 40. B. Gracián, Oráculo manual y arte de prudencia (1647). In: Obras completas. Madri, Aguilar, 1967, aforismo 110. 41. Heidegger, op. cit., parágrafo 81. 42. Ibid., parágrafo 80. 43. J. Calvino, Institution de la religion chrétienne (1560). Paris, Vrin, 1957 e seg., livro III, cap. XXI, parágrafo 5. 44. Ibid., livro III, cap. IX. 45. M. Weber, Wirtschaft und Gessellschaft. Tübingen, Mohr, 1922. E. Troeltsch, Die Soziallehren der cristlichen Kirchen. Tübingen, Mohr, 1912. 46. M. Weber, Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus. Tübingen, Mohr, 1922. Sobre a controvérsia a que deu lugar, cf. P. Besnard, Protestantisme et capitalisme. Paris, Colin, 1970. 47. Heidegger, op. cit., parágrafo 81. 48. G. Conte, La metafora barocca. Milão, Mursia, 1972, p.156. Cf. também: S. Sarduy, Barroco. Paris, Seuil, 1975; O. Paz, Conjunciones y disyunciones. México, Mortiz, 1969. 49. Baudrillard, op. cit., p. 18.

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Capítulo VII

O reino intermédio

1 Ser-para-a morte ou renascer? A energia com a qual Heidegger, em Ser e tempo,1 chamou a atenção da cultura contemporânea para o problema da morte tem certamente uma justificativa teórica ainda válida, na recusa da postura humanística, segundo a qual a morte é algo completamente estranho à vida, algo que se pode eludir facilmente não se falando dela ou procurando esquecê-la. Entretanto, o propósito — comum a outros filósofos contemporâneos — de considerar a morte o fato mais significativo e fundamental da existência parece uma pretensão muito menos convincente, porque implica uma dramatização enfática da vida humana, a qual se revela dilacerada entre o ser-para-a-morte e o ser no mundo, entre o autêntico e o inautêntico, entre aquilo que é “próprio” e “originário” e o que é impróprio e derivado. Particularmente o ser-para-a-morte parece ligado a uma perspectiva que sempre considera a morte a possibilidade capaz de tornar-se mais própria que qualquer outra, como a an198

tecipação que ameaça e paira sobre o nosso presente, segundo uma concepção do tempo que, mesmo não tendo nada de cronológico, é contudo inexoravelmente unidirecional e irreversível. No pólo oposto a Heidegger e à filosofia contemporânea, Mircea Eliade propôs em numerosos textos, baseado numa ampla documentação extraída da história das religiões arcaicas, uma perspectiva da vida e da morte muito mais serena, fundada na concepção circular e reversível do tempo e na fé nas infinitas possibilidades de regeneração do homem e do mundo. Em particular, ao examinar um fenômeno religioso de importância fundamental nas sociedades arcaicas — a iniciação —, Eliade mostra que a experiência existencial da morte iniciática é sempre seguida de um renascer, que garante o acesso a uma dimensão sacra e meta-histórica.2 Nessa ótica, a morte, entendida como condição de palingenesia, pertence, portanto, sempre ao passado, mesmo que tal determinação temporal obviamente não tenha significado cronológico: o fato mais significativo e fundamental da existência não é a morte, mas o renascimento. Porém, também a teoria da morte iniciática de Eliade suscita enormes perplexidades. É difícil compreender como é que de uma morte simulada no rito da iniciação possa emergir um “verdadeiro” renascimento, uma origem, isto é, uma nova atuação do mito primigênio e arquetípico. Entre a simulação da morte e o ingresso em uma dimensão que tem pretensões de absoluto ontológico, há um salto que dificilmente parece justificável. Além disso, existe uma profunda diferença entre a concepção da iniciação como fim da história e ingresso na meta-história e a concepção da iniciação como fim da natureza e ingresso na cultura, que o próprio Eliade empresta dos estudos antropológicos: a identificação entre his199

tória e natureza, de um lado, e de meta-história e cultura, de outro, mostra-se forçada e sub-reptícia. Por isso, a morte iniciática de Eliade parece se revestir das características daquela concepção teológico-metafísica da morte entendida como ingresso na eternidade que Heidegger julga tão insustentável quanto a concepção humanística. Da insatisfação, seja diante do ser-para-a-morte, seja diante do nascimento e do renascimento iniciático, nascem algumas questões: é possível pensar o vínculo morte-renascimento, que subverte a unidirecionalidade do ser-para-a-morte, sem cair na metafísica? A reflexão sobre a morte e a sua experiência simulada comportam necessariamente a recusa e o abandono da ação histórica? Entre a experiência da derrota e do fracasso, ao qual parece necessariamente destinado o serpara-a-morte, e a felicidade meta-histórica do mito revivido, é possível encontrar uma dimensão da vida e da morte que garanta ao mesmo tempo consolação e resultado prático? Serão o sagrado e a história, a experiência interior e a ação política, a reflexão sobre a morte e a atividade do mundo realmente inconciliáveis e opostos?

2 Morte e renascimento no pensamento ritual Se a fonte histórica do ser-para-a-morte heideggeriano é constituída pelo pensamento cristão (de santo Agostinho a Lutero) e pelos trágicos gregos, se a fonte histórica da morte iniciática de Eliade foi fornecida pela religião da Índia e pelas culturas primárias, o ponto de referência histórico de quem pretende procurar uma resposta positiva às questões levantadas anteriormente é a religião da Roma antiga. 200

Essa escolha pode parecer estranha à primeira vista, por muitas razões. Em primeiro lugar, a religião romana, à diferença da grega, não goza de crédito filosófico. Hegel a definiu “uma religião da dependência e da ausência de liberdade”, na qual a superstição é soberana, sendo destituída de qualquer doutrina e conteúdo espiritual. Pode ocorrer aí a perda completa de toda idéia, o perecimento de toda verdade [...]; pode-se chegar a conceber o espírito só com a pressuposição de que está inteiramente no finito, marcado pelo útil imediato, que em sua dependência só tem consciência da sua finitude, esquecendo toda interioridade, toda universalidade do pensamento. Ele só é usado para e na prosa em circunstâncias determinadas, e a elevação não é senão a inteligência de todo formal, que capta condições, espécies e modos de ser em uma imagem e não conhece nenhum outro tipo de substancialidade.3

De uma forma mais sintética e eficaz, Hegel diz que Roma “despedaçou o coração do mundo”.4 Em segundo lugar, a religião romana não parece ter elaborado uma concepção particularmente original ou significativa da morte. O que se entrevê nas crenças romanas antes da influência etrusca e grega é “gasto e confuso”.5 O culto dos mortos, ao qual eram dedicadas as Parentalia* de fevereiro e as Lemuria** de maio, não exerceu em Roma um papel essencial;6 ao contrário, era na maioria das vezes confinado ao culto privado. Toda família tem os seus Manes,*** e os reverencia com oferendas e sacrifícios. * Festas anuais em honra dos mortos, em Roma. (N. do T.) ** Festas em honra dos lêmures (alma dos mortos). (N. do T.) *** Espírito dos mortos. (N. do T.)

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No entanto, os historiadores da religião romana observam que os Manes fazem pesar sobre toda a vida um vago mal-estar.7 Hegel observa na história romana uma propensão a entender a morte na sua dimensão mais exterior e absurda, como um massacre sem conteúdo, ou seja, como um extermínio que tem por conteúdo apenas a si mesmo. Um profundo conhecedor das religiões clássicas, Karl Kerényi, afirma que, diferentemente do conceito grego de ieron,* o conceito latino de sacer** indica uma esfera particular do divino que coincide com o reino da morte.8 Tudo isso leva a suspeitar que há na religião romana uma relação com a morte mais profunda e mais substancial do que as fontes dizem explicitamente. Tal relação não diz respeito a este ou aquele aspecto particular da religião romana, mas à sua característica fundamental: a desmitificação, o rito sem mito. Ela recobre a própria essência da romanidade. Se — como salienta Dumézil 9 — o pensamento dos antigos romanos merece atenção e estima, o problema conceitual do rito desmitificado deve ser pensado nos seus aspectos filosóficos. De fato, ele representa uma orientação completamente diferente, seja da concepção trágica da existência que Heidegger apreende dos gregos, seja da morte iniciática e do eterno retorno que Eliade lê nas sociedades arcaicas. O que quer dizer a observância extremamente escrupulosa, quase obsessiva, de ritos dos quais se ignora o sentido, ou nos quais este se cala? O que quer dizer o sacrifício a deuses cujos nomes mal conhecemos e a respeito dos quais não nos preocupamos em saber se são homens ou mulheres? Pode-se explicar isso apenas recorrendo a uma deficiência de imaginação, * Santo, sagrado, de origem divina. (N. do T.) ** Sagrado. (N. do T.)

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uma deficiência na representação figurada da divindade? Ou é suficiente atribuí-lo, como faz Dionísio de Halicarnasso, ao respeito aos deuses e à sua pureza? O aspecto mais inquietante de tal desmitificação é que ela não está acompanhada de uma secularização ou laicização completas — o desaparecimento do mito não prejudica a sacralização do rito. A interpretação dos que sustentam que em Roma o mito se tornou história das origens não explica a permanência do caráter sagrado do rito. O que parece caracterizar a religião romana é antes a tentativa de estabelecer um trânsito entre sagrado e profano. No mundo romano, de fato, não existe um verdadeiro segredo sacerdotal; as mesmas pessoas ocupavam, concomitantemente, às vezes as magistraturas civis, outras vezes o sacerdócio ou ainda cargos civis e religiosos. A repetição ritual não se apóia no arquétipo mítico, no modelo originário, nem pretende proporcionar o acesso a experiências existenciais ou a conteúdos de vida privilegiados ou autênticos: o rito desmitificado é um procedimento vazio, porém eficaz e sagrado. Exatamente essa coincidência entre eficácia e sacralidade constituía para Hegel o aspecto menos apreciável da religião romana. “Trata-se do sucesso e da existência; mas essa existência é uma realidade imediata, que, como tal [...] é contingente. O nocivo, o fracasso, opõem-se ao útil, à prosperidade”. Segundo Hegel, isso leva os romanos a venerarem tanto o poder do bem como o do mal, com a mesma indiferença, apenas porque se trata de poder: “Eles tinham consagrado um altar à peste, à febre, à fome, assim como veneravam a ferrugem do trigo.”10 Contudo, essa disposição para sacralizar o presente na sua dimensão mais empírica e contingente implica uma rela203

ção com a morte não desprezível e digna de reflexão. Se no ser-para-a morte heideggeriano a morte é um futuro iminente, se na iniciação de Eliade ela é sempre um passado, no rito romano a simulação da morte parece coincidir com a criação da vida, que não é, entretanto, a vida eterna e absoluta do mito, e sim a vida simulada, artificial, jurídica — em uma palavra, cultural. Assim, a função do rito desmitificado é, por um lado, a de dissolver o dado natural, e, por outro, a de tornar o presente um dado cultural, dando-lhe acesso ao mundo fas*. Diz a tradição que os pontífices, que acumulavam entre as suas funções três tarefas fundamentais — o conhecimento dos procedimentos jurídicos, a determinação do calendário e a redação histórica dos anais —, não deviam participar dos funerais, nem ver cadáveres; tal prescrição torna-se ainda mais rígida para o sacerdote de Júpiter, o flamen dialis.** A sua vida era tão minuciosamente condicionada que ele parecia a Plutarco “quase uma estátua vivente” de Júpiter: não podia tocar nada morto, nem visitar nenhum lugar onde houvesse um túmulo. Essa proibição estendia-se também às coisas móveis e germinantes, conforme uma associação freqüente no mundo romano entre o culto dos mortos e as idéias de fecundidade. O significado de tais prescrições não deve ser procurado em uma exclusão da morte e do nascimento do mundo sagrado.11 Ao contrário, morte e nascimento escapavam inteiramente à sua dimensão natural para transitarem um no outro. O Estado romano não conferia caráter sagrado aos * O que é direito ou permitido por lei divina; o que é normalmente correto, o que está de acordo com a lei natural. (N. do T.) ** Sacerdote de Júpiter. Flamen: sacerdote que se consagrava a um deus em particular. Dialis: deus do dia (Júpiter). (N. do T.)

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ritos funerários privados (confinando-os no âmbito do religiosus), porque eles estavam ligados ao âmbito natural-biológico da família. Somos, por isso, levados a supor que a partir do momento em que o Estado se constitui, dissolvendo a organização gentilícia anterior, ele se apropria do nexo morte— renascimento, estabelecendo entre os dois termos um trânsito do mesmo para o mesmo. No rito sem mito, morte e vida passam uma para a outra. Isso, por um lado, assinala a morte do dado natural e do dado mítico; por outro, o ingresso em uma dimensão que, entretanto, não é mais que a confirmação ritual do que já está presente. Se, como diz Lévi-Strauss, a morte simulada do pensamento mítico garante um suplemento de vida real,12 a morte simulada do pensamento ritual sacraliza o presente à custa da sua desrealização. Em Roma, o conceito de começo nunca tem o significado de origem ou de retorno ao original.13 O deus do início, Jano (deus omnium initiorum*), que olha ao mesmo tempo para o passado e para o futuro, está, todavia, solidamente ancorado no presente. Deus dos inícios simulados, e por isso deus do tempo que retorna no calendário! Mas o eterno retorno do calendário romano é profundamente diferente do eterno retorno do qual fala Eliade: não a reatualização de um passado mítico, e sim estrutura formal de dias fastos e nefastos,** profestos e festivos,*** grade, rede apta exatamente a conter o diferente, o imprevisível, a novidade histórica. O retorno do tempo formal do calendário não é o repetir-se natural das estações, mas a própria ritualização do tempo, transformado em cultura. * Deus de todos os inícios. (N. do T.) ** Fasti: no calendário da antiga Roma, os dias nos quais se podiam fazer negócios. O contrário de nefasto. (N. do T.) *** Profesti: dias úteis; festi: festivos. (N. do T.)

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A indeterminação da religião romana, a tendência a deixar cair, a calar, a esquecer as identidades e as funções de cada deus e o significado mítico dos ritos, tudo isso responde assim a uma precisa orientação filosófica, cultural e política, de cautela e de extrema prudência para com o dado histórico emergente, a uma vontade do relativo, a um medo de dimensões absolutas: a morte e o nascimento também pertencem ao relativo. A morte na religião romana não é a verdadeira morte, tragicamente presente a cada dia da vida, mas não é também a morte simulada e sempre superada da palingenesia iniciática. Quando muito, é uma negação dos fundamentos absolutos, uma disposição sagradamente autorizada, a mover-se como um cadáver vivente, seja qual for a direção que as circunstâncias exijam. Isso explica o encontro entre a religião romana e o estoicismo, entre a falsa morte ritual e a indiferença, a apátheia.* De forma análoga, o nascimento romano não é o verdadeiro nascimento do eterno retorno, mas a aprendizagem de uma propensão a acolher o acontecimento histórico no tempo sagrado do calendário. Exatamente como diz Kerényi, a religiosidade romana consiste na capacidade de escutar atentamente o fatum,** adaptando-se com obediência a ele. Poder-se-ia acrescentar, não só se adaptando a ele, mas desejando-o. Dessa vontade, muito mais que da previsão do futuro, eram justamente tutores os sacros colégios dos sacerdotes. Morte e nascimento como determinações absolutas e irreversíveis não encontram lugar no mundo romano, porém a sua reversibilidade temporal implica a possibilidade de ter acesso ao eterno. Ao contrário, a * Calma estóica, apatia. (N. do T.) ** Fatum: Destino traçado pelos deuses. (N. do T.)

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reversibilidade temporal do calendário serve para acolher aquilo que nasce; todavia, exatamente por isso, o novo não deve ter pretensões de originalidade. Até os mortos eram considerados nem mortos nem vivos, mas pertencentes a um reino intermédio, a um Zwischenreich, a um setor intermediário que lhes consentia manifestarem-se durante as Parentalia e as Lemuria, embora de maneira não muito evidente, nem muito exata.14 A incerteza e a indeterminação revestem também os Manes, ora pensados como “bons”, ora vistos como espectros (larvae*). Não só o além, mas a própria vida era um Zwischenreich suspenso entre o ser e o não ser. O estado emocional que a distingue não é a angústia diante da morte, nem a alegria diante do renascimento ritual, e sim uma hesitação diante do futuro unida a uma profunda confiança na sacralidade do presente.

3 O “Troiae lusus” Como ter acesso ao reino intermédio do rito sem mito? Como tornar-se cidadão romano? Como aprender a conhecer a morte, a vida, o tempo? Mediante um ritual, o “Troiae lusus”,** que era celebrado por ocasião da fundação das cidades.15 A fonte antiga mais importante é uma longa passagem do quinto livro da Eneida, no qual Virgílio ilustra o seu desenrolar-se. Ele descreve um torneio realizado por jovens a cavalo, os quais fazem evoluções incessantes e rápidas seguin* Espíritos malignos, fantasmas dos mortos que não conseguiam descanso. (N. do T.) ** O jogo de Tróia. (N. do T.)

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do aproximadamente o esquema do labirinto. Esse jogo está ligado a uma ocasião fúnebre: ele faz parte das festas com as quais Enéias presta homenagem aos Manes de seu pai, um ano após sua morte. Os intérpretes modernos do Troiae lusus identificaram nesse jogo, além das duas ligações declaradas por Virgílio — as exéquias e a fundação de cidades —, um terceiro significado mais profundo e essencial, que lança uma nova luz sobre toda a cerimônia. O Troiae lusus seria nada menos que um rito de passagem, uma cerimônia de iniciação à vida pública semelhante à conhecida por tantas culturas primárias.16 Esse aspecto é confirmado por uma leitura atenta do trecho virgiliano, por outros testemunhos antigos (sobretudo por um trecho das Troades de Sêneca, em que o tornar-se adulto parece estar estritamente ligado com a participação no Troiae lusus) e também por uma vasta pesquisa comparativa entre alguns aspectos da religião romana e a tipologia dos ritos iniciáticos da antropologia moderna. Ele faz parte, portanto, de um projeto hermenêutico mais amplo, que visa reconduzir a religião romana ao âmbito de uma tipologia religiosa comum a todos os povos da terra e a resolver o escândalo que ela representa.17 Entretanto, ainda uma vez fica evidente toda a singularidade da religião romana. O que surpreende o leitor moderno de Virgílio é exatamente o conteúdo dessa iniciação que não ensina uma luta pela vida e pela morte, mas uma política de alternâncias na qual choques e fugas, enfrentamentos e armistícios, guerra e paz se sucedem com a máxima rapidez.

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Diz Virgílio: De repente, com vivo movimento Separam-se em três pelotões iguais E cada um dos três em dois coros se divide. Depois, a um novo comando, voltam sobre seus passos, a lança em riste. Empreendem então outras carreiras, para lá e para cá enfrentando-se a distância. Entreveram-se quando se voltam, fazendo simulacros de um combate. Ora descobrem o dorso, fugindo, ora em ataque voltam seus dardos, Ora a paz é feita e cavalgam lado a lado. [v. 580-7] Se compararmos o Troiae lusus às iniciações militares das quais fala Mircea Eliade,18 torna-se muito evidente a diferença: enquanto as iniciações militares descritas por Eliade pedem aos jovens a aquisição de uma força irresistível, de um Wut, de um furor capaz de paralisar e de encher de terror o adversário, o Troiae lusus quer antes ensinar um comportamento político baseado na habilidade de alternar amizade e inimizade para com as mesmas pessoas, sem que esse fato implique o dispêndio de grandes energias emocionais. Os iniciandos são comparados por Eliade a lobos selvagens, a animais ferozes, mas os jovens descritos por Virgílio, ao contrário, são semelhantes a delfins que, “pelo Jônio brincando e pelo Egeu, fazem correrias e danças, e dão cambalhotas” (v. 594-5). No relato de Virgílio não há, portanto, nada do chamado ardor iniciático, da cólera que cria um guerreiro impiedoso e invencível. Virgílio destaca, se tanto, o esplen209

dor, a beleza, o charme dos pequenos cavaleiros, os quais “avançam em boa ordem, sob os olhares de seus maiores, resplandecem em seus cavalos...” (v. 554-5). Quanto às qualidades que o Troiae lusus implica, elas realmente não são as proporcionadas por uma superexcitação patológica, por uma embriaguez que ofusca; ao contrário, a execução de um movimento tão complicado como o labiríntico exige perspicácia, prudência, discriminação. No desfile labiríntico, “os filhos de Teucrus entreviram seus passos, entrevêem muito facilmente fugas e combates...” (v. 593-4). A dissimulação dos próprios rastros parece a Virgílio a dimensão labiríntica por excelência, a que cria a ambigüidade falaz do labirinto de Creta. A tentativa de reconstruir visivelmente a figura do movimento dos cavaleiros não deu até agora resultados persuasivos.19 Se, entretanto, nos ativermos ao desenho clássico do labirinto cretense, perceberemos rapidamente que só se pode chegar ao centro sob a condição de invertermos a direção do movimento a cada círculo e de nos distanciarmos da meta no mínimo três vezes. Trata-se, portanto, de um movimento que implica extrema sagacidade, cujo objetivo é esconder do inimigo as próprias intenções. O caminho que leva ao centro nunca é o mais curto, nem o mais direto. Ao contrário das teorias modernas, como, por exemplo, a de Carl Schmitt,20 que vêem a essência da política na determinação permanente de um amigo e de um inimigo real, a mentalidade romana parece considerar amigo e inimigo determinações provisórias. A iniciação na vida pública é exatamente iniciação nessa relatividade das concordâncias e das discordâncias, no caráter não absoluto das guerras e das pazes que se desenvolvem no interior da urbs. A vida política não é pensada em Roma como uma luta pela vida e pela morte 210

que implica uma decisão tomada de uma vez por todas; a vida da cidade é labiríntica porque pressupõe uma infinidade de escolhas realizadas dia a dia, a cada passo, por assim dizer. Isso não significa que tais escolhas estejam sempre isentas de perigos ou conseqüências: ao contrário, o Troiae lusus ensina justamente a mover-se “no labirinto [de Creta] que ocultava em seus muros cegos um emaranhado de corredores, a ambigüidade enganosa de mil trajetos....” (v. 588-9). De resto, as fontes se detêm sobre a periculosidade e a rudeza do Troiae lusus: quedas de cavalos e fraturas deviam ser muito freqüentes, pois Augusto foi obrigado a suspender as suas celebrações por algum tempo.21 O fato de os romanos oporem o hostis* (o inimigo externo) ao civis** e o amicus ao inimicus leva a crer que, enquanto a primeira distinção se referia à relação com os inimigos externos à cidade e, portanto, determinava a relação polêmica, a segunda distinção se referia ao conflito interno entre cives, e, portanto, determinava a relação política. Ora, só a segunda é uma relação labiríntica — a primeira implica uma contraposição simples e linear como nenhuma outra. A desvalorização da relação amicus/inimicus em favor da relação civis/hostis implícita na identidade que Clausevitz estabelece entre a política e a guerra, que é abertamente teorizada por Schmitt, talvez seja um erro fatal da modernidade. A política à qual o Troiae lusus iniciava não pode ser reduzida a “uma política de passos de valsa”, segundo a expressão usada no século passado para defini-la: ela tem uma dignidade teórica e uma sabedoria prática próprias. A sua dignidade teórica consiste no fato * Originariamente “estrangeiro”. Mais tarde, metaforicamente, “inimigo” (de guerra ou público). (N. do T.) ** “Cidadão”, especialmente cidadão romano (civis romanos). (N. do T.)

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de ela reconhecer o caráter mutável, sempre diferente, da realidade histórica; a sua sabedoria prática consiste no fato de se adequar à ocasião e dela se apropriar. Entre as ocasiões fundamentais para a celebração do Troiae lusus, as fontes mencionam a fundação de cidades. Ora, que relação existe entre a fundação de uma cidade e o labirinto? Há na própria idéia do fundar, do construir, do instituir ex novo, uma violência ontológica, uma arrogância, uma soberba, que era bem conhecida dos antigos: os gregos a chamavam hýbris,* para os romanos era o contrário da pietas.** O temor de expor-se à inveja dos homens e, mais ainda, à inveja dos deuses prescrevia toda uma série de precauções rituais muito complexas que deviam ser seguidas escrupulosamente. A celebração do Troiae lusus inclui-se nesse quadro que considera a dissimulação, a indeterminação e a não-identidade cuidados indispensáveis ao sucesso de qualquer empreendimento.22 Na literatura antropológica existem numerosos exemplos de danças labirínticas de caráter apotropéico, isto é, destinadas a proteger do mauolhado.23 O próprio termo Troia não derivaria a sua etimologia da cidade da Ásia Menor, mas da palavra truia, que significava exatamente “labirinto”; dela deriva o verbo amptruare, “dançar a truia”, mover-se alternadamente para a esquerda e para a direita.24 É com tal palavra que é definida pelas fontes a dança sagrada dos sálios, os sacerdortes criados por Numa Pompílio para cuidar e guardar os doze escudos (ancilia), que eram o pignus imperii*** de Roma, o talismã * Violência injusta provocada pela paixão. (N. do T.) ** Cumprimento do dever para com os deuses, o pai e a mãe, os benfeitores, a pátria, etc. Sentido de dever. Metaforicamente: “doçura”, “indulgência”, “bondade”, “clemência”. (N. do T.) *** Garantia do império. (N. do T.)

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ligado à sorte da cidade e ao seu destino histórico, obra de enorme importância política, comparável ao templo de Júpiter capitolino e ao fogo perpétuo de Vesta. Era dever dos sálios sair carregando esses escudos sagrados por ocasião de uma cerimônia que ocorria no mês de março. Segundo Plutarco (Numa, 13), eles derivavam o seu nome “exatamente da dança que executavam, saltando, quando percorriam a cidade com os escudos sagrados”. Essa dança, que outras fontes definem com a palavra tripudium (Tito Lívio, I, 20, 4), é absolutamente análoga ao Troiae lusus descrito por Virgílio. Ao som da flauta — diz Dionísio de Halicarnasso (II, 70) —, eles executam ritmicamente o passo da dança guerreira, “ora todos juntos, ora com movimentos opostos, acompanhando suas danças com coros ancestrais”. Esses cantos terminavam com a invocação de Mamúrio Vetúrio, o primeiro artista da história de Roma, o autor dos escudos guardados e transportados pelos sálios. Mamúrio, portanto, é um ferreiro, e é conhecida a relação entre os ferreiros, os guerreiros e os mestres de iniciações. Segundo Eliade, há em diferentes níveis culturais uma ligação íntima entre a arte do ferreiro, a iniciação e a arte da canção, da dança e da poesia.25 Essa tradição apresenta características marcadamente prometéicas, em que o ferreiro é o herói civilizador, o senhor do fogo, o guerreiro animado pelo calor divino. Mas o ferreiro dos romanos apresenta características completamente diferentes: está subordinado a Numa, não é um criador original, mas autor de uma ação dissimuladora que faz desaparecer o único escudo mandado pelos deuses, numa ostentação da multiplicidade, numa espécie de jogo que multiplica por doze o exemplar.

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Por tudo isso fica claro o significado do labirinto na fundação da cidade — a cidade pode ser fundada desde que se torne ao mesmo tempo invisível, mediante um ritual protetor: a criação implica ao mesmo tempo um desaparecimento. De um lado, presta-se homenagem ao ferreiro Mamúrio, recordando o seu nome no canto dos sálios; de outro, em 14 e 15 de março, leva-se em procissão um homem coberto de peles que é golpeado com longas varas brancas, enquanto é chamado Mamúrio (Lídio, Mens. 4, 49). Daí vem a expressão “tòn Mamóurion paízein” (“bancar o Mamurio”), que quer dizer “levar uma surra”. A indeterminação, a não-identidade é atribuída pelos romanos à própria Roma, cujo verdadeiro nome — segundo uma antiga tradição referida por Macróbio (Sat. III, 9, 1-9) — era desconhecido. A cidade era posta sob a custódia de um deus igualmente ignorado, que exercia a própria proteção exatamente porque indeterminado. De fato, essa dupla ocultação tinha a função de impedir que os povos inimigos se apropriassem da identidade espiritual e cultural de Roma, mediante o ritual da evocatio.26 Quanto a Mamúrio, não é sem razão que a tradição lhe atribui uma outra obra, tão singular quanto a fabricação dos escudos: a estátua do deus Vertumno, o qual, segundo Propércio (IV, 2), era capaz de assumir todas as identidades — rapaz, ceifeiro, guerreiro, bacante, poeta, caçador, cocheiro, escudeiro, pescador, pastor, jardineiro, e até non dura puella, isto é, moça de vida fácil! A terceira ocasião fundamental para a realização do Troiae lusus, os funerais, ilumina o significado profundo das duas primeiras, a iniciação e a fundação de cidades. É conhecida a tese de Kerényi, segundo a qual o labirinto está ligado à experiência da morte e do renascimento, e, portanto, a uma 214

idéia de vida nova. Segundo ele, o labirinto conduz ao reino da morte e, entretanto, no final, reconduz à vida.27 Essa ligação também deve ser entendida de maneira totalmente especial no caso da religião romana antiga. Em Roma, o labirinto não tem de modo algum a função de estabelecer uma separação absoluta entre a vida e a morte, mas, bem ao contrário, a de torná-las reversíveis, de estabelecer um trânsito entre uma e outra. O Troiae lusus garante seguramente uma ressurreição simbólica do morto, porque o torna presente na recordação dos vivos, porém, de modo ainda mais essencial, introduz o iniciando em um reino da morte, que coincide perfeitamente com o da vida civil, do rito sem mito, do comportamento político. Isso faz o iniciando passar da dimensão natural das paixões subjetivas à dimensão cultural da política, na qual ele deve ser como um cadáver vivente, pronto ora para a paz, ora para a batalha, ora para a amizade, ora para a inimizade, conforme a situação objetiva. Não se trata, portanto, de uma ressurreição que acontece após a passagem pelo labirinto, e sim de um permanecer no trânsito do labirinto, de um permanecer naquela vida-morte, naquele reino intermédio que é a vida civil. Mamúrio Vetúrio seria, segundo alguns estudiosos, a própria personificação do ano,28 e o número dos escudos por ele criados corresponderia aos meses nos quais o ano se estrutura. A sua obra, a estátua do deus Vertumno (de vorti, “virar-se”, “transformar-se”), com efeito evoca a idéia da mudança, da passagem das estações. Georges Dumézil procurou demonstrar que na história de Mamúrio não há nada de novo em relação a relatos escandinavos ou indianos análogos, no que se refere à divisão do tempo.29 Não obstante, não podemos nos furtar à impressão de que aqui também — como em 215

todos os outros aspectos da religião romana — há um jogo de repetições e de dissimulações em relação aos modelos indoeuropeus, votado a privá-los de significado, a deixá-los vazios, indeterminados, mesmo conservando-lhes, ou melhor, exacerbando-lhes o rigor cerimonial. É interessante observar que Mamúrio está ligado à passagem de um ano para o outro (a sua festa, os Mamuralia — considerada por Oto uma festa dos mortos 30 —, era celebrada exatamente em março, que, no antigo calendário romano, era o primeiro mês do ano); os sálios estavam encarregados de fechar e abrir o ano; Vertumno recebia as primícias de todos os produtos agrícolas. Todos esses dados se ligam estritamente à noção de iniciação e à noção de trânsito. Mas, se perguntamos no quê, em quais conteúdos Mamurio iniciava, a resposta é tautológica: Mamúrio inicia a Mamúrio, à atividade multiplicadora e dissimuladora, ao rito sem mito, à repetição que desconstrói e faz desaparecer aquilo que repete, ao trânsito do mesmo para o mesmo. A concepção romana do tempo não é nem cíclica como a tradicional, típica das sociedades agrícolas, nem unidirecional e sempre inovadora, como a moderna. No calendário, os ritos sempre retornam, mas, não obstante sejam indiscerníveis daqueles realizados no ano anterior e daqueles que serão realizados no ano seguinte, não são idênticos. Há uma passagem do mesmo para o mesmo que dissolve a identidade do tempo.

4 O rito do rito De tudo quanto foi dito emerge um paradoxo. De um lado, os romanos estão bem atentos à dimensão cerimonial, aos signos, aos gestos; de outro, esquivam-se de toda signifi216

cação unívoca e irrevogável destes. O Troiae lusus, como todos os ritos romanos, de um lado, implica uma rigorosa determinação dos espaços, dos tempos, dos movimentos;31 de outro, inicia a uma mentalidade que torna fluidas, ambíguas e incertas todas as determinações. A compreensão de tal paradoxo é decisiva para o entendimento do pensamento ritual romano, cujo charme está justamente no saber unir a regra mais rigorosa com a interpretação mais pragmática. Até do ponto de vista lingüístico o Troiae lusus une a máxima indeterminação com a máxima precisão e revela-se uma obra-prima de sutileza. À primeira vista, Troiae lusus quer dizer o “jogo de Tróia” e, por extensão, já que Tróia era a cidade por excelência, “o jogo da cidade”. Entretanto, como já foi dito, a palavra Tróia não deriva da cidade da Ásia Menor, e sim do termo truia, que quer dizer “labirinto” — por isso, Troiae lusus significa “o jogo do labirinto”. Mas, temos certeza de que lusus quer dizer simplesmente “jogo”? E, em todo caso, o que era o jogo na mentalidade romana arcaica? A resposta não é nada simples; nem os estudos comparativos indoeuropeus podem vir em nosso auxílio, porque não existem termos indo-europeus para essa noção, que não tem nada a ver com o certamen,* com o agón** grego32. Segundo estudos recentes, lusus é sinônimo de “rito”, com algumas particularizações: ele implica referência ao movimento rotatório-oscilante-pendular, análogo justamente ao movimento labiríntico executado na dança dos sálios.33 Os significados fundamentais da palavra (“jogo”, “burla”, “jogo sexual”, “engano”, “se* Combate, na medida em que encerra a idéia de dois partidos medindo forças. (N. do T.) ** Assembléia para jogos públicos; daí, lugar para a realização desses jogos; os próprios jogos. (N. do T.)

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dução”, “escola”, “iniciação”) abrem, a esta altura, um campo semântico extremamente rico e sugestivo. Lusus torna-se, assim, sinônimo de labirinto, e o Troiae lusus poderia ser traduzido como “rito do labirinto” ou “iniciação do labirinto”, ou ainda “sedução do labirinto” e, por extensão, “labirinto do rito”, “rito do rito”, “labirinto do labirinto”. Nessas últimas formulações, ritualidade e labirinto coincidem: ambos são intensificados, potencializados, tomados na sua autonomia conceitual e positividade ilimitada. O rito do rito é o rito sem mito, o rito desmitificado que confere à religião romana um caráter totalmente especial em relação às outras religiões indo-européias. A respeito disso, Dionísio de Halicarnasso já escrevia: “Quanto aos mitos [...] Rômulo os recusou todos [...]. Não ignoro absolutamente que entre os mitos gregos alguns são úteis aos homens [...] e, entretanto, estou seduzido pela concepção divina dos romanos” (II, 1820). O labirinto do labirinto é o labirinto sem entradas nem saídas, o labirinto que vale por si mesmo, não como prova a ser superada, nem como obstáculo a ser vencido.34 “Labyrinthus sicut vita. Vita sicut labyrinthus.”* Mas, como também se disse, “Labyrinthus sicut mors. Mors sicut labyrinthus”,** vida e morte são o reino intermédio no qual o cidadão romano aprende a transitar tão logo se torna adulto, como do mesmo para o mesmo.

* O labirinto é como a vida. A vida é como o labirinto. (N. do T.) ** O labirinto é como a morte. A morte é como o labirinto. (N. do T.)

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Notas 1. M. Heidegger, Essere e tempo. Turim, Utet, 1969. 2 M. Eliade, Il mito dell’eterno ritorno. Milão, Rusconi, 1975; La nostalgia delle origini. Brescia, Morcelliana, 1972; Initiations, rites, sociétés secrètes. Paris, Gallimard, 1959. 3. G. W. F. Hegel, Lezioni sulla filosofia della religione. Bolonha, Zanichelli, 1973, vol. II, p. 203. 4. G. W. F. Hegel, Lezioni sulla filosofia della storia. Florença, La Nuova Italia, 1963, vol. III, p. 161. 5. G. Dumézil, La religion romaine archaique. Paris, Payot, 1973, p. 369. 6. K. Latte, Römische Religionsgeschichte. Munique, Beck, 1960, p. 100. 7. J. Bayet, Histoire politique et psychologique de la religion romaine. Paris, Payot, p. 76. 8. K. Kerényi, Die antike Religion. Munique, Lagen-Müller, 1969. 9. G. Dumézil, Ilées romaines. Paris, Gallimard, 1969. 10. G. W. F. Hegel, Lezioni sulla filosofia della religione, op. cit. 11. De fato, Tito Líivio (I, 20) lembra que o pontífice sabia aplacar os espíritos dos defuntos. 12. C. Lévi-Strauss, La pensée sauvage. Paris, Plon, 1962, p. 46. 13. J. Bayet, op. cit., p. 5. 14. K. Kerényi, op. cit. 15. É importante sublinhar a conexão entre a concepção romana de cidade e o labirinto. Tal ligação é evidente na representação do labirinto em mosaicos, testemunhada por cerca de cinqüenta pavimentos encontrados seja em Roma, seja nas províncias em que era mais forte a influência romana. O labirinto dos mosaicos romanos tem sempre o aspecto de uma cidade fortificada subdividida em quatro setores. Quando a representação gráfica do labirinto passa a outras culturas, como no caso das múltiplas ilustrações medievais da cidade de Jericó, a idéia romana da cidade como labirinto se transforma na idéia de uma cidade circundada por muros labirínticos. Cf. H. Kern, Labirinti. Forme e interpretazioni. Milão, Feltrinelli, 1981. 16. G. Piccaluga, Elementi spettacolari nei rituali festivi romani. Roma, Edizioni dell’Ateneo, 1965, p. 126 e seguintes. 17. Penso principalmente na obra de Georges Dumézil. 18. M. Eliade, Initiations, rites, sociétés secrètes, op. cit. 19. H. von Petrikovits, “Troiae lusus”, in Klio, 32 (1939), p. 209 e seguintes. Quanto às críticas, cf. H. Kern, op. cit., p. 87. 20. C. Schmitt, Teoria del partigiano. Milão, Il Saggiatore, 1981. 21. G. Piccaluga, op. cit., p. 141. 22. W. L. Hildburgh, “Indeterminability and confusion as apotropaic elements in Italy and in Spain”, in Folk-Lore, 55 (1944), pp. 133-49. 23. W. L. Hildburgh, “The place of confusion and indeterminability in Mazes and Maze-Dances”, in Folk-Lore, 56 (45), pp. 188-92.

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24. P. Lambrechts, “Mars et les Saliens”, in Latomus, 5 (1946), pp. 111-9. 25. M. Eliade, Forgerons et alchimistes. Paris, Flammarion, 1966. 26. Permito-me remeter à conclusão do meu trabalho, La società dei simulacri. Bolonha, Cappelli, 1980. 27. K. Kerényi, Nel labirinto. Turim, Boringhieri, 1983. 28. J. Loicq, “Mamurius Veturius at l’ancienne representation de l’année”, in Latomus 40 (1964), pp. 401-25. 29. G. Dumézil, Mamurius Veturius, in Tarpeia. Paris, Gallimard, 1947, pp. 207-46. 30. Apud A. Illuminati, “Mamurius Veturius”, in Studi e Materiali di Storia delle Religioni, 32 (1961), pp. 41-80. 31. H. Kern, op. cit., p. 91. 32. A. Ernout-A. Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris, Klincksieck, 1967, p. 369. 33. G. Piccaluga, op. cit., p. 57. 34. Permito-me remeter ao meu ensaio “Appunti per una storia dell’urbanistica labirintica”, in Rivista di Estetica, 1968, nº 2.

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Capítulo VIII

A arte de Mamúrio

1 A arte como “opus” Se o mundo grego parece oscilar entre um conceito de arte como verdade e um conceito de arte como mentira, o mundo romano situa-se desde o início além da oposição entre verdadeiro e falso, entre originário e cópia. Mamúrio Vetúrio, o primeiro artista de quem se fala na história de Roma, é autor de uma operação que dissolve o próprio conceito de verdadeiro e falso, exemplo de um comportamento labiríntico por excelência, ponto de confluência de toda a problemática da relação entre cidade e labirinto em Roma, uma das chaves para entender a essência da mentalidade romana. “No oitavo ano do reinado de Numa”, escreve Plutarco,1 a peste que se difundia pela Itália atingiu também Roma. Diz a história que, enquanto a população era vítima do sofrimento, um escudo de bronze caiu do céu e foi parar nas mãos de Numa. A respeito dele, o rei divulgou uma história sensacio-

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nal, que afirmou ter ouvido de Egéria* e das Musas: o escudo tinha sido mandado pelos deuses para a salvação da cidade, e era necessário guardá-lo fazendo outros onze do mesmo tipo, tamanho e forma, para tornar impossível a quem quisesse roubá-lo adivinhar qual era o que caíra do céu, sendo todos iguais [...]. Assim anunciou Numa, e dizem que as suas palavras foram confirmadas pelo cessar imediato da peste. Mas, quando apresentou aos ferreiros o escudo, todos se recusaram, com exceção de Mamúrio Vetúrio. Esse autêntico mestre da sua arte conseguiu uma tal precisão e os fez todos tão iguais que nem mesmo o próprio Numa podia mais distinguir o original.

A arte do ferreiro Mamúrio não é, portanto, uma criação original, independente e autônoma, nem a imitação falsificadora do modelo divino, mas uma repetição tão exata que anula o protótipo ao mesmo tempo que o preserva. A sua arte não se opõe ao que é dado pelos deuses, pela natureza, nem aceita um papel subordinado ou dependente; ela se põe ao lado de tudo o que é oferecido, multiplicando-o, deslocando-o, introduzindo-o num trânsito do mesmo para o mesmo. O triunfo da cópia é também extrema fidelidade ao signo enviado pelos deuses, porque nenhuma variação é admitida; no entanto, essa fidelidade elimina a excepcionalidade prodigiosa do exemplar único, o torna normal, regular, cultural. O sucesso da atividade humana é por isso destituído de arrogância e de orgulho, é sem culpa, inocente. * Egéria, segundo Ovídio, foi cortejada por Numa e tornou-se sua esposa. Esse rei visitava-a freqüentemente e, para implantar com maior êxito suas leis e as novas regras do Estado, declarava solenemente diante do povo romano que elas haviam sido de antemão aprovadas e santificadas pela ninfa Egéria. (N. do T.)

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Tal trabalho — afirma Dionísio de Halicarnasso 2 — foi-lhe encomendado porque Numa temia que o escudo que lhe havia sido dado pelos deuses pudesse ser-lhe tirado pelas maquinações dos seus inimigos ou pelo furto de alguém que quisesse fazê-lo desaparecer. Ao propor a operação ao artista, Numa quer alcançar, portanto, um duplo objetivo: prevenir as tramas ocultas e a apropriação privada, a fraude e o furto. De fato, se o verdadeiro é pouco visível, indiscernível, indistinguível (ásemos*) do falso, a própria possibilidade do engano diminui. Logro e engano têm necessidade de referirse à verdade. Os impostores nascem à sombra dos profetas. Quem esconde aquilo que teme que lhe seja roubado age como um ladrão, tirando o objeto do alcance da vista. Numa, ao contrário, quer que o escudo “seja honrado e transportado pela cidade, nos dias de festa, pelos melhores jovens e receba sacrifícios anuais”. Por isso multiplica a sua visibilidade e desafia a rapacidade ocultadora com uma exteriorização excessiva que rompe a identidade e a unidade do objeto. Enfim, estabelece uma relação essencial entre a arte entendida como opus e a cidade. Opus deriva do sânscrito ápah, que significa “obra”: está aparentado com o védico apah, que significa “ação religiosa”, logo, “cerimônia”, “rito”.3 A energia que os autores da latinidade clássica, de Cícero a Lívio, empregam ao descrever e ao celebrar as origens de Roma não consegue esconder o inquietante passado da cidade, a qual não teve uma verdadeira origem, apenas um início. Não obstante os esforços de Catão, o Censor — que foi o primeiro a unir um irado moralismo restaurador a uma política cultural que faz do apelo à origem o critério fundamen* Sem marca, diz-se do ouro ou da prata não cunhados; ininteligível, indistinto. (N. do T.)

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tal de todo juízo e a própria base do processo histórico —, nenhuma autoctonia legitima a fundação de Roma: nenhum Tages* de aspecto infantil e cabelos brancos surgiu de repente nesse lugar para revelar os segredos da tradição religiosa, como na Etrúria; nem nenhuma ánodos, nenhuma ascensão das profundezas da terra aludiu, como na Ática, à existência de uma comunhão entre o território e o povo que o habita. Em Roma, todos são estrangeiros, começando por Rômulo, que vem de Alba Longa, por Tito Tácio e por Numa, que são sabinos, por Mamúrio Vetúrio, que é osco. Até mesmo os aborígines,** que segundo Catão teriam tentado impedir a chegada de Enéias às costas do Lácio, têm sangue grego. A nova cidade não nasce de laços tribais já existentes, e sim da reunião dos sem-pátria que se congregam no refúgio aberto por Rômulo. O próprio rito da fundação da cidade é ensinado a Rômulo por especialistas etruscos chamados expressamente para a ocasião. Contudo, entre a fundação das cidades etruscas e a cidade de Roma, intui-se a mesma relação de trânsito do mesmo para o mesmo que existe entre o escudo caído do céu e aqueles reproduzidos pela arte de Mamúrio. Roma é desde o início uma cidade simulada, que, no entanto, é indiscernível de uma cidade verdadeira. A interpretação dos auspícios, a determinação de um decumanus que percorre a cidade de leste a oeste e de um cardo que a percorre de norte a sul, os rituais de delimitação do território realizados com um arado puxado por um touro e por uma novilha, a demarcação simbólica dos muros e das portas — tudo isso não basta para fazer de Roma a iusta urbs*** etrusca: Rômulo e seus * Divindade da Etrúria, que ensinou aos etruscos a arte da adivinhação. (N. do T.) ** Nome dos primeiros habitantes do Lácio. (N. do T.) *** Legítima cidade. (N. do T.)

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sucessores, se comparados com o corpo sacerdotal etrusco, são diletantes do sagrado que repetem os gestos do rito com o máximo escrúpulo porque não conhecem o seu significado. Diz Plutarco que, em um fosso redondo chamado mundus, foram jogadas “as primícias de todas as coisas consagradas pelo hábito como úteis e pela natureza como necessárias à vida humana”, bem como um punhado de terra do lugar do qual cada um provinha.4 Que eles pretendessem deixar aos deuses ou ao reino dos mortos (com o qual — acreditava-se — o fosso se comunicava) os protótipos originais de todas as coisas e de todas as pátrias, essa é uma interpretação maliciosa; mas certamente o início de Roma marca o fim da primazia etrusca da necrópole sobre a cidade dos vivos. Contra Catão, que, à medida que prosseguia na redação da sua obra, se viu obrigado a estender a toda a história e até a si mesmo e aos próprios discursos a qualificação de “origem”, impõe-se a irrenunciável repetição dos inícios. Entre o artista como opifex* e a cidade sem origem há uma íntima relação, não porque ambos compartilhem da mesma fonte, do reconhecimento comum do mesmo princípio, mas porque uma cumplicidade tácita se insinua, remetendo a uma intenção de duplicação honesta, de devoção sagaz, buscada por ambos. Isso exclui tanto a relação orgânica entre o artista e a cidade quanto o conflito: Mamúrio não é o intérprete da identidade cultural de Roma, porque esta não tem identidade — e, entretanto, mesmo sendo um estrangeiro, na medida em que todos o são (pois em Roma todos vêm de fora), não é um estranho, um ser marginalizado, mas o autor de um pignus imperii,5 ** de um talismã ligado à sorte da ci* Autor, aquele que faz uma obra; trabalhador. (N. do T.) ** Garantia do império. (N. do T.)

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dade e ao seu destino histórico, de uma obra de enorme importância política, semelhante ao paládio troiano e às estátuas helênicas das divindades protetoras. Paládio, a estátua milagrosa de Atenas que Ulisses e Diomedes roubaram, estabelecendo com essa ação as premissas míticas da ruína da cidade, igualmente tinha caído do céu, segundo a crença popular; e Atenas, a deusa com o escudo, era também ergáne,* operadora, protetora dos ferreiros e da metalurgia, representante simbólica da métis,** da astúcia técnica.6 Mas todas essas semelhanças, que mostram a existência de uma herança mitológica comum, trazem à luz exatamente a diferença de orientação religiosa, política e filosófica de Roma em relação às outras cidades da Antiguidade. Em Atenas e nas outras cidades gregas, há — como sustentou Hegel — uma relação orgânica entre religião, arte e política: na estátua da divindade protetora, no símbolo da cidade, concretiza-se o espírito da comunidade. O talismã de Roma, ao contrário, é o resultado de uma operação que adquire uma dimensão política eminente exatamente porque anula todo dado originário, autêntico, étnico.

2 A arte como “artus”*** Enquanto a palavra grega téchne**** remete ora à dimensão enfática da produção entusiástica, ora à dimensão as* Trabalhadora, industriosa, venerada como padroeira das artes e ofícios. (N. do T.) ** Muitas vezes plano, plano hábil; mais freqüentemente sabedoria, hábil e eficaz. (N. do T.) *** Artüs, artuum — símbolo poético de nenhum. Do grego árthra, possuía um sentido primitivo de “articulação”. (N. do T.) **** Conhecimento de um ofício. (N. do T.)

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tuta do fazer técnico, o termo latino ars se liberta de tais determinações. Ele deriva da raiz indo-européia *ar-, que designa “a ordem” e da qual derivam artus e ritus.7 Essa etimologia ilustra bem a operação de Mamúrio, que é estranha tanto à inspiração do artista como à engenhosidade mecânica em luta com a natureza, tanto à criação que traz a obra do nada à presença, ao ser, ao esplendor do fazer aparecer, como à invenção artesanal que resolve uma dificuldade prática — ela se limita a pôr uma multiplicidade articulada onde havia um único objeto. “Singulari numero artus non dicimus”,* sentenciam os gramáticos da língua latina.8 A articulação implica uma pluralidade de objetos em uma relação ordenada entre eles, mas tal ordem, à qual a operação artística está ligada, não tem conteúdo mítico, nem mera funcionalidade técnica; ela consiste quando muito na construção de um sistema de referências articulado em partes capazes de assumir várias determinações. Os ancilia de Mamúrio Vetúrio são de fato escudos? Ou são antes os doze meses do ano do calendário de Numa? O significado eminentemente político da operação mamurial reside exatamente no fato de essa determinação ser secundária. O que importa é antes de tudo a aceitação do dado, do escudo caído do céu, ou da unidade temporal do mês, e depois a sua transformação em fato cultural, a sua articulação, a preparação de uma rede no interior da qual ele possa transitar. À distância lingüística que existe entre a pólis e a urbs corresponde uma distância conceitual: enquanto a palavra grega designa a cidade-estado, a comunidade política, uma realidade espiritual mítica da qual os cidadãos extraem o seu modo * Não se diz artus no singular. (N. do T.)

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de ser e que por isso não se encarna em um edifício, em uma assembléia, em uma entidade espacial — mas se tanto, na divindade protetora —, a palavra latina remete a um princípio de organização espacial mais abstrato e indeterminado nos seus conteúdos. Se pólis se traduz em latim por civitas,* não existe uma palavra grega para indicar urbs. O conceito de urbs parece remeter à articulação dos decumanos e dos cardos, à forma do tabuleiro de xadrez, a uma geometria de ruas que se entrecruzam regularmente, a um funcionalismo ante litteram,** mas, paradoxalmente, Roma — a Urbs por excelência — foi, pelo menos nos primeiros sete séculos de sua existência, mais semelhante a um labirinto do que a um tabuleiro de xadrez. “Forma urbis [...] occupatae magis quam divisae similis”, diz Lívio,9 e tal ordem não foi radicalmente alterada nem sob o Império. O fato é que a intenção da qual nasce a urbs ultrapassa em muito o projeto de uma cidade funcional: ela emerge da afinidade etimológica com orbis.*** Inicialmente cidade-mundo: o gesto do áugure que, segundo a regra etrusca, divide idealmente o horizonte com o bastão recurvo, o lítuo, delimitando assim o templum e determinando o decumanus e o cardo, funda cosmicamente a cidade, tornando-a uma imagem do mundo antes mesmo que ela exista materialmente, estabelece correspondências exatas entre o todo e o lugar que se decide habitar, repete em dimensões reduzidas uma ordem cósmica. Porém, mesmo com a inversão romana, acima de tudo, mundo-cidade: não tanto (ou não * No sentido abstrato, Estado, direitos do cidadão; no sentido concreto, reunião de cidadãos para formar-se uma comunidade-Estado. (N. do T.) ** Precoce, “avant la lettre.” (N. do T.) *** Círculo, globo terrestre. (N. do T.)

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apenas) enquanto metrópole, mediante a formação de colônias que sejam repetições de Roma, mas de modo mais essencial mediante a construção de estradas que, sulcando em várias direções todo o território conhecido, estabeleçam uma trama de percursos repetidos até o infinito, introduzam em qualquer canto da natureza o esquema vazio e indeterminado da referência cultural, dissolvam a distinção entre cidade e campo, consentindo a realização de vontades ilimitadamente diferentes só sob a condição de aceitar e tornar a percorrer um traçado rigorosamente determinado de uma vez por todas. Por isso, não Holzwege,* não trilhas cobertas por relva que se confundem no bosque umas com as outras e terminam de repente, mas estradas penosa e definitivamente marcadas, pavimentadas e respeitadas pela voracidade das ervas, pela lama, pelos bosques. No entanto, essa visibilidade permanente do percurso, indiferente para com a qualidade de cada lugar, contém em si mesma uma infinita multiplicidade de conteúdos, é indeterminada em sua direção e leva, a todos os territórios que sulca, uma alteridade, uma diferença bem maior com relação ao tescum,** à selvagem e desconhecida natureza que atravessa. Se, como diz Ovídio, “romanae spatium est urbis et orbis idem”10*** se a intenção mais profunda da urbs é a urbanização do mundo, é porque a própria urbs não é, como a pólis, igual a si mesma, dotada de uma identidade, mas diferente em relação a si mesma, cópia indiscernível de uma cidade verdadeira, originária, autêntica, que permaneceu estranha à experiência romana. Assim, planificação geométrica

* Caminho no bosque, no mato; figurativamente, desvio, atalho. (N. do T.) ** Lugar ermo, desolado e inóspito. (N. do T.) *** Para Roma, Cidade e Universo têm a mesma extensão.

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e formação labiríntica, direção e deriva, se confundem uma com a outra. Jano é ao mesmo tempo mundo e caos, “rector viarum”* e protetor das encruzilhadas, porque deus dos inícios e não das origens, deus do trânsito e não da estagnação. As estradas romanas levam, a todo lugar, as intenções, os ritos, os costumes da cidade labiríntica, e, vice-versa, as cidades conquistadas, mais que cópias da urbs, são a própria urbs, tão indeterminadas e ambíguas quanto Roma. “Urbem fecisti quod prius orbis erat”** — com essas palavras Rútilio Namaciano se dirige a Roma no século V d. C.11 A urbanização do mundo está completa: cidade e campo transitam um no outro.

3 A arte como “ritus” Ars e urbs, operação artística e ordem política, têm seu ponto de encontro no rito, que é o eixo da religião e da sociedade romana arcaica. Contrariamente à concepção mais difundida na antropologia cultural e na história das religiões, que considera o rito dependente do mito, a religião romana oferece o exemplo de um rito sem mito, de uma repetição extremamente precisa e escrupulosa de atos culturais cujo significado originário é calado, esquecido, ignorado. A orientação que está na base de tal desmitificação, tão diferente da desmitificação realizada pelo judaísmo, que considera a história o âmbito no qual se desenvolve a ação de Deus, aspira à instauração de uma “ordem” suscetível de múl* Senhor dos caminhos, o que preside aos caminhos. (N. do T.) ** Em cidade transformaste o que outrora era inverno. (N. do T.)

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tiplas determinações. O esvaziamento, a separação entre rito e mito é a própria condição da “ordem”, que é tal apenas se reproduz tão bem o protótipo a ponto de dissolvê-lo. A eficácia não está ligada com a ritualização de uma ação primigênia, mas com o seu desaparecimento, com a sua supressão. A etimologia ciceroniana de religio, que faz derivar a palavra de relegere (“reler”), refere-se exatamente a esse aspecto do culto romano:12 ele não está de modo algum orientado para a interpretação do texto, para a explicação do seu conteúdo, mas, ao contrário, para uma repetição exteriormente perfeita que anula o seu significado. O fato de as palavras de muitos ritos redundarem incompreensíveis aos próprios sacerdotes que as pronunciavam mostra o exercício de uma memória, cujo dever não é o de comemorar, e sim o de esquecer! A religião romana está bem longe de ser um fenômeno primitivo, o produto de uma mentalidade animista que atribui à palavra uma eficácia mágica; ela é antes uma releitura desmitificada de um patrimônio mítico não só indo-europeu, mas também etrusco e mediterrâneo, uma repetição que é eficaz exatamante porque rompe os laços entre a coisa e a palavra, entre a realidade do mundo mítico e a sociedade. A eficácia do rito romano não provém de uma ação direta sobre o mundo natural ou sobrenatural; ela se origina da construção de um sistema de relações sociais independente da estrutura mítica da estirpe, da gens, da família. Certamente o culto das pessoas e das famílias, que remetiam a uma origem comum, a um ancestral comum, continuou a ser praticado, contudo tornou-se justamente “privado”, de todo diferente das sacra publica* desmitificadas. A paz da urbs * Cerimônias ou ritos religiosos públicos. (N. do T.)

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não se baseia em um modelo unitário, arquetípico, no qual todos os cidadãos se reconhecem assim como a gens se identifica com o antepassado mítico. Numa Pompílio, segundo a tradição, rompe as unidades gentilícias, que eram causa de contínuos choques e lutas internas, e, subdividindo o povo em ofícios, “atribui a cada ordem lugares de encontro, assembléias e cultos divinos apropriados”. 13 A coesão da urbs é comparável não a um monolito ou à articulação de duas partes, de duas cidades inconciliáveis e rígidas, mas ao mosaico de “minúsculos pedacinhos”, seja porque — como diz Plutarco — as pequenas porções aderem melhor uma à outra, seja porque a composição mosaica consente uma possibilidade de extensão e de ampliação ilimitadas. Essa multiplicação e disseminação de sacra incide profundamente no próprio conceito de rito: ela evidencia antes de tudo a ligação etimológica entre ritus, artus e ars, entre repetição, articulação e arte. A unidade do mundo mítico está despedaçada em uma pluralidade de rituais, a sua totalidade é pulverizada e relativizada em uma multiplicidade de atos que devem ser repetidos com a máxima precisão, exatamente porque necessitam de um exemplar com o qual confrontar-se. Quanto à ligação estabelecida por Numa entre os ritos e as profissões, ela sublinha a relação entre ação ritual e ação social, ao mesmo tempo em que eclipsa e obscurece a relação entre ação ritual e mito. A ação mítica dos deuses se manifesta em prodígios, em milagres, em eventos excepcionais que não possuem nenhuma ordem e regularidade, como a queda do escudo do céu. Tais acontecimentos, porquanto salvadores — o escudo na versão plutarquiana põe fim a uma pestilência que tinha infestado a Itália e Roma, levando sofrimento à população —, são 232

considerados pelos romanos com a maior suspeita: deverão, pois, ser expiados e tornados inócuos. A procuratio prodigiorum* que Numa inscreve entre os deveres do pontífice14 se propõe a anular os efeitos danosos e a dissolver o sentimento de horror que a intervenção dos deuses provoca. O prodigioso, o maravilhoso, em uma palavra, o mítico, é sentido pelos romanos como o contrário da repetição ritual. Nenhuma “ordem” política e civil, nenhuma ordenação urbana, nenhuma possibilidade de ação histórica é consentida aos homens até que o maravilhoso e o prodigioso irrompam e perturbem a trama, a rede que forma a sociedade. Portanto, diferentemente de outros povos da Antiguidade e de outras sociedades primitivas, em Roma, a relação entre mito e rito é alternativa: a intervenção do divino no mundo torna impossível a ação histórica dos homens. O mito, a narração fabulosa da ação divina, impede a ação humana; por isso, em Roma, o ritual não tem de modo algum um caráter e um significado anti-histórico, mas, ao contrário, instaura a possibilidade da história, porque introduz uma ação repetida, que os deuses não são capazes de executar, estranha ao mundo mítico. Se o mito é o âmbito do originário, do arquétipo, do fato excepcional que acontece uma única vez por todo o sempre, isto é, do milagre, o rito, ao contrário, é o âmbito da repetição, do fato repetido e repetível até o infinito, isto é, da história. A operação de Mamúrio pode ser considerada justamente a expiação do prodígio, a sua aprovação incondicional enquanto teofania, mas também a sua supressão enquanto monstrum,** anomalia irrepetível, excepcionalidade funesta. O escudo é preci* “Conjuração dos prodígios” — que conjura o efeito dos prodígios e dos relâmpagos. (Ao bloquear os prodígios, Roma tranqüilizava os cidadãos) (N. do T.) ** Prodígio que avisa da vontade dos deuses. (N. do T.)

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samente phármacon no duplo significado do termo, remédio e cura da peste, mas também veneno e perigo para a sociedade. Na história não acontecem milagres: a diferença do processo histórico não está na irrupção do maravilhoso na continuidade, e sim em uma continuidade que é diferente e outra em relação a si mesma, no processo pelo qual ações diferentes passam pelos mesmos esquemas rituais. Disso emerge uma concepção da história completamente diferente, seja da concepção cíclica do mundo mítico, seja da concepção linear do judaísmo, as quais pressupõem a concordância e a íntima fusão entre o mundo divino e o mundo humano. A história romana parece proceder, por assim dizer, como uma espiral: a forma ritual é sempre a mesma para quem a olha perpendicularmente, de cima ou de baixo, contudo, para quem a observa lateralmente, parece evidente que os círculos são sempre diferentes.

4 A arte como “ops” A concepção de Mamúrio da ars como trânsito do mesmo para o mesmo, como repetição perfeita do original, como experiência labiríntica, não se limita à atividade humana — ela estende-se até mesmo à natureza. O estudo do dossiê referente à deusa Ops e à dimensão abstrata correspondente, que abrange as noções de abundância, de prosperidade, de ajuda, de completitude, é revelador. Ops não é de modo algum uma divindade tribal estritamente ligada à agricultura, à vida no campo, ao trabalho na terra. Como observa Pierre Pouthier, autor de uma obra extremamente completa, rica e sugestiva sobre o assunto,15 a sua vida transcorre desde o início no interior da cidade e, mesmo sendo a deusa da abundância da 234

colheita agrícola, ela não pode ser reduzida a uma mera deificação de fatos ou de coisas empíricas. Nas origens de Ops não há nada originário e primário; mesmo etimologicamente, ela remete à raiz indo-européia *op*ep-, que se desenvolveu apenas na língua latina. Ops é afim com opus: designa a atividade produtora, a abundância considerada enquanto força ativa que cria prosperidade e bem-estar através de uma repetição. As colheitas, as frutas, os produtos naturais já seriam simulacros, repetições perfeitas, cópias produzidas por uma força que nunca cria nada de absolutamente novo e original. A obra da natureza se revelaria assim semelhante à obra de arte humana. A suposta origem sabina da deusa, que, junto com outras divindades, teria sido introduzida em Roma por Tito Tácio, não contradiz essa concepção. Não só porque — como afirma Pouthier — a Sabina designa, de fato, mais uma parte interna da própria Roma do que o território externo habitado pelos sabinos, mais a assimilação do campo na urbs do que a sua experiência efetiva, mas sobretudo porque ela talvez constitua um exemplo extremamente significativo de evocatio, de apropriação de uma divindade alheia através da reprodução do seu culto em Roma. Um jogo de duplicações e de multiplicações, semelhante à reprodução dos escudos, parece ligado à primeira intuição de Ops. Um jogo, ao que parece, difícil de deter, uma vez que — como mostra Pouthier — Ops não se manifesta como uma divindade coerentemente unitária, mas até mesmo como duas divindades ligadas a lugares e a tempos diferentes: a Ops Consiva in Regia e a Ops ad Forum, a primeira ligada com a abstenção, os tabus, as interdições mais rigorosas e mais sagradas, a segunda com o consumo, o desregramento, a transgressão. A primeira, de fato, tem o seu culto na Regia, o lugar 235

mais austero e solene da vida religiosa arcaica, em estreita relação com o templo de Vesta, o colégio das vestais, o sumo pontífice e a flaminica dialis, e tem a sua festa (as Opiconsivia) em 25 de agosto, no momento em que a atividade agrícola se volta para a conservação, a constituição de reservas de trigo para a sobrevivência alimentar da cidade; a segunda tem o seu culto no Forum, numa zona profana, caracterizada pela vizinhança do mercado e pelos cultos de Saturno e de Vulcano, e talvez da famigerada Diana de Nemos, e tem a sua festa (as Opalia) em 19 de dezembro, no momento em que prevalecem o consumo e a orgia, em significativa coincidência com as Saturnais, a festa mais transgressiva e desregrada do calendário romano. Contudo, entre essas duas Ops, a Ops frugal e abstinente da Regia e a Ops orgiástica e tripudiante do Forum, há um trânsito do mesmo para o mesmo. A abundância é ao mesmo tempo abstinência e consumo. A cautela religiosa dos romanos não pensa esses dois aspectos como harmoniosamente complementares, nem como dialeticamente contraditórios, mas sim como duas soluções possíveis, duas ocasiões, duas manifestações de uma essência divina que não é nem uma nem outra; que é essencialmente indeterminada, que pode ser solene como uma divindade protetora (segundo uma tradição, Ops seria nada menos que a deusa secreta de Roma, cujo nome devia manter-se oculto para evitar toda evocação por parte de cidades inimigas) e dissipada como uma divindade ctônia da fecundidade (a proximidade com Saturno evoca banquetes e lautas refeições). Ops, no fundo, representa na alimentação o mesmo papel que Vênus desempenha na sexualidade, oscilando entre castidade e libidinagem, entre proteção da virgindade e proteção da prostituição. Ops é igualmente 236

propícia e complacente para com quem já se move em um horizonte de propiciações e complacência. Nesse caso também, a religião romana revela uma fineza e uma sagacidade inacreditáveis; como observa Puthier, ela quase nunca segue um único caminho. Nela “discerne-se uma simbologia sutil de numerosas intenções e de leis não escritas, que fazem da festa não um acontecimento bem circunscrito, mas o anel de uma cadeia que ilustra os diversos aspectos de uma atividade humana assumida sob a proteção da divindade”.16 Para os romanos, abstinência e consumo não se excluem mutuamente, não são opostos contraditórios, porque não se relacionam como um negativo e um positivo, e sim como dois positivos que transitam um no outro. Ambos são abundância, ops e prosperidade. A abundância não tem um único aspecto, e além disso cada aspecto não é idêntico a si mesmo. A Ops abstinente, por exemplo, tem relações ocultas com Vulcano, deus do fogo que destrói, cuja festa (as Vulcania) precede em dois dias as Opiconsivia, e, vice-versa, junto ao lugar onde se praticava o culto da Ops consumidora se elevava o simulacrum Silvani, cujos cuidados, parece, eram confiados às vestais! Essa indeterminação da abundância e da prosperidade aumenta enormemente se, ao examinar o dossiê arcaico, se passa a considerar a história de Ops na época republicana. Um dos momentos decisivos dessa história é a transferência do culto da Ops abstinente da Regia para o Capitólio, por ocasião da construção de um templo da deusa situado exatamente na colina capitolina, tradicionalmente reservada ao culto de Júpiter. Nessa nova sede, Ops se emancipa das relações com Consus* e Saturno e acaba assimilada a Fides e a Spes; a abun* Antigo deus latino da terra e da agricultura. (N. do T.)

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dância assume então uma dimensão ainda mais abstrata e indeterminada, disposta a recobrir toda presença, onde quer que se queira localizá-la. Nessa nova disponibilidade é sobretudo o aspecto político que emerge: a descoberta da essencial qualidade política da abundância é no fundo a continuação de uma orientação teórica que antes se manifestava na sua dimensão religiosa. A disponibilidade, a indeterminação de Ops não implica o virar o seu contrário, uma não-Ops, uma negação da abundância. O otimismo e o triunfalismo religiosopolítico dos romanos não é cegueira ou indiscriminação! A partir do momento em que Ops se ergue como a protetora do poder e da continuidade do Estado romano, ela tende a abranger em si, além das noções de abundância e prosperidade, também a de ajuda. Essa ampliação está implícita na reflexão ciceroniana, na qual o conceito de auxilium parece prevalecer sobre o de copia — Ops é aquela que leva ajuda e assistência à cidade no momento do perigo. Ops opulenta torna-se Ops opifera, desempenhando a mesma função da arte de Mamúrio. Todavia, a própria noção de ajuda deve ser entendida num sentido bem amplo e geral, que vai muito além da mera utilidade funcional e do desejo subjetivo. De fato, o encontro entre a religião romana e a filosofia estóica produz, acima de tudo, a equiparação e a fusão entre ajuda material e ajuda espiritual, e, portanto, amplia enormemente as competências da deusa, aumentando ainda mais sua indeterminação; em segundo lugar, inquire a respeito do que serve mesmo de ajuda em uma determinada situação, dando início à interminável problemática dos casos, das ocasiões, das estratégias, dos êxitos. Na idade de César e de Augusto, que marca a última fase do desenvolvimento de Ops, a disponibilidade da deusa 238

torna-se completitude, plenitude, em uma acepção que, entretanto, parece profundamente diferente, seja do significado testamentário, que designa a realização de um fato anunciado por um profeta e a irrupção da ação salvadora na história, seja do significado metafísico de plenitude e homogeneidade do mundo, de grande cadeia do ser. Esses dois significados fundamentais do conceito de plenitude são alheios à mentalidade romana, cuja perspectiva não é escatológica nem metafísica, mas histórico-ritual. O importante para Roma é a permanência de estruturas rituais que não têm um ponto de referência mitológico seguro e explícito, e que, exatamente em virtude de tal indeterminação, podem adquirir sempre novas dimensões, de acordo com cada ocasião. Ops parece permanecer fiel a essa condição que inicialmente diz respeito a todo o panteão romano: a sua fabulação como mãe dos deuses é paupérrima; ela está ausente até da grande poesia da idade augusta e do mito da Idade de Ouro. Não obstante, a política religiosa da época lhe confere um papel de grande importância: César deposita no seu templo um tesouro de seiscentos mil sestércios tirados na Espanha aos partidários de Pompeu, e Augusto lhe dedica numerosos testemunhos de piedade e lhe atribui o epíteto de augusta. Se, como diz Benveniste, a cada categoria da língua corresponde uma categoria do pensamento, o conjunto das palavras que em latim indicam a atividade produtora e operadora — entendida em todos os seus aspectos, do religioso ao natural, do artístico ao político — mostra a existência de uma estrutura teórica coerente, que é, pela sua flexibilidade e sutileza, surpreendentemente atual.

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Notas 1. Plutarco, Vita di Numa, 13. 2. Dionisio di Alicarnasso, Antichità romane, II, 71. 3. A. Ernout e A. Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris, Klincksieck, 1967, vol. 4, p. 466. 4. Plutarco, Vita di Romolo, 11. 5. Floro, Epitome, I, 2. 6. M. Detienne e J.-P. Vernant, Le astuzie dell’intelligenza nell’antica Grecia. Bari, Laterza, 1977. 7. E. Benveniste, Il vocabolario delle instituzioni indoeuropeu. Turim, Einaudi, 1976, vol. II, p. 358. 8. Charisius, Ars grammatica, I, 45. 9. Tito Lívio, V, 55. 10. Ovídio, Fasti, II, 684. 11. Rutilio Namaziano, De reditu suo, I, 66. 12. Cícero, De natura deorum, II, 72. 13. Plutarco, Vita di Numa, 17. 14. Tito Lívio, I, 20. 15. P. Pouthier, Ops et la conception divine de l’abondance dans la religion romaine jusqu’à la mort de Auguste. Roma, École Française de Rome, 1981. 16. Ib., p. 71.

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Capítulo IX

Decoro e cerimônia

1 O resplandecente Qual a relação existente, na Antiguidade clássica, entre beleza e efetividade, entre forma e ação, entre estética e política? Essa ligação parece implícita em dois conceitos: o greco-romano de prépon-decorum* e o tipicamente romano de caerimonia.** A história do primeiro conceito é bastante complexa e tortuosa. Da visão de uma beleza efetiva que aparece distintamente aos olhos, que se distingue pela sua perspicuidade, que se sobressai, se mostra, brilha, se impõe ao olhar e resplandece na sua realidade singular, deriva, na Grécia antiga, a palavra e o significado originário de tò prépon.*** O herói homérico, por exemplo, possui essa qualidade: a sua virtude é visível, está à * Prépon: fazer-se notar, distinguir-se especialmente em relação às roupas; Decorum: etiqueta, protocolo. (N. do T.) ** Reverência aos deuses mediante atos de veneração. (N. do T.) *** Aquilo que convém, que está conforme às regras (caráter daquilo que convém dizer, conduta particular de acordo com os usos e costumes numa sociedade). (N. do T.)

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vista de todos, destaca-se, sobressai, distingue-se sem ocultações nem dissimulações, afirma-se, independentemente e antes de toda distinção entre aparência e substância, entre parecer e ser.1 É bastante significativo que, das palavras gregas que designam o belo, somente tò prépon esteja relacionada etimologicamente com uma raiz indo-européia cujo significado fundamental remete ao aparecer, à visão.2 Não ocorre o mesmo com tò kalón, termo no qual a idéia de beleza parece estar relacionada etimologicamente com o ser sadio, com a justa proporção dos membros, nem com tò agathón — cujo sentido originário parece estar relacionado com a força e o poder e, conseqüentemente, com a coragem e a nobreza —, nem, finalmente, com o substantivo ho kósmos, que significa “ordem”. Tampouco tò ágalma — que designa o ornamento e, mais tarde, a estátua dos deuses, em contraposição a eikón, a estátua dos homens — parece estar estreitamente ligada à visão.3 O primeiro significado do verbo prépein é, ao contrário, resplandecer. Nele, a experiência do belo une-se à visualidade festiva que caracteriza a antiga religião grega, que foi justamente definida como um saber vidente do homem festivo,4 na qual ver não é menos importante do que ser visto e o conhecimento do divino adquire o aspecto de uma epifania, de uma manifestação radiosa da realidade. Não é por acaso que Heidegger identificou na aparência como esplendor e brilho, no desvelador e permanente impor-se do fenômeno, daquilo que aparece e se mostra em si próprio, a experiência do ser mais originária e essencial do Ocidente.5 O verbo prépein remete à união inseparável entre o ser e o aparecer, entre aquilo que é e aquilo que resplandece, entre a efetividade e a beleza. Os poetas usam esse verbo em versos que unem solidamente a beleza com a decisão e o êxi242

to. Para Píndaro, por exemplo, “o ouro reconhece-se (prépei)* pela pedra de toque e as almas retas revelam-se nas provações” (Pít., X, 67). No centro do escudo de Tideu, descrito por Ésquilo, “a lua, rainha dos astros, olho da noite, brilha (prépei) radiante” (Os sete contra Tebas, 390). Finalmente, a única vez em que Platão, no início de A República, utiliza o verbo prépein com o significado de resplandecer, o faz em referência à bela procissão com a qual o povo do Pireu celebrava a festa.

2 O conveniente A união originária entre ser e parecer, entre efetividade e beleza, é rompida, no entanto, pela experiência histórica: esta mostra como aquilo que resplandece e aquilo que efetivamente triunfa nem sempre coincidem. O prépein, o resplandecer em sua autonomia originária, não mais é suficiente para assegurar a vitória, o êxito histórico. A beleza que quiser manter o seu vínculo com a realidade deve “adaptar-se”, “convir” com aquilo que é outro em relação a ela. É esse, precisamente, o segundo significado de prépein, que se afirma e se mantém na língua grega e no qual se insere a problemática do tò prépon, entendido como aquele tipo específico de belo que se adapta, que convém e é, portanto, o oposto — justamente em virtude da relação com o outro que o constitui — do conceito absoluto e universal de belo implícito no cânon. Os poetas líricos ainda conseguem furtar-se à experiência trágica desse rompimento, reservando para a poesia o esplendor autônomo do belo: “Não consentem os deuses lágri* Fazer-se distinguir, destacar-se, mostrar-se. (N. do T.)

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mas de dor”, diz Safo. “Numa casa consagrada às Musas/ não nos convém (ou ... prépoi)/ o luto” (Lobel-Page, 150). Entretanto, a partir do momento em que, como diz Tucídides, “os bons conselhos, sinceramente dados, dão margem a suspeitas, tanto quanto os maus” (Tuc., III, 43), o divórcio entre aquilo que resplandece e aquilo que vence se consuma totalmente. O resplandecente vê-se combatendo uma batalha na qual não dispõe de vantagem alguma, na qual, aliás, é muito provável que sucumba; só se se adaptar às circunstâncias melhor do que seu adversário, só se souber melhor do que ele o que é e o que não é prépon, o que é conveniente e o que não é, “o que se deve fazer no momento devido” e o que não, poderá continuar sendo resplandecente. A noção de prépon une-se, assim, àquela mais antiga de kairós,* de ocasião. Embora essa ligação já estivesse implícita em Pitágoras — especialmente quando sustentava a oportunidade de manter discursos infantis com as crianças, para mulheres com as mulheres, para arcontes com os arcontes, para efebos com os efebos — 6 é somente em Górgias que a ligação entre conveniente e ocasião se emancipa daquele significado místico, referido à harmonia do cosmo, que a palavra kairós possuía originariamente. Em Górgias, desaparece a vantagem fundamental que advinha ao sábio pitagórico do fato de conhecer a essência do ser, do qual provinha exatamente a sua polytropía lógou**, a sua capacidade de expressar a mesma coisa de muitos modos. O belo — entendendo a palavra no sentido grego, que implica também o verdadeiro e o bom — é levado, por essa razão, a adotar as mesmas armas que seu inimigo: “Ao ponto em que se deve claramente, para persuadir o * Medida conveniente com a idéia de tempo — momento oportuno — e com a idéia de lugar — ambiente conveniente para algo. (N. do T.) ** Habilidade no uso das palavras; facilidade de expressão. (N. do T.)

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povo das piores idéias, seduzi-lo mediante artifício e, quando se quer aconselhá-lo melhor, se deve inspirar-lhe confiança mentindo” (Tuc., III, 43). Com Górgias, o problema do tò prépon é, essencialmente, o problema da linguagem e de seu poder de sedução (apáte* ).7 “A palavra, como o pregão que é proclamado em Olímpia, convida quem quer, coroa quem é capaz.”8 Mas por que o resplandecente deve ter mais apáte, maior poder de sedução e, portanto, maior êxito? A resposta de Górgias é drástica: não existe prépon, não existe resplandecente que não seja conveniente, isto é, que não tenha essa adequação à ocasião, essa força de sedução para impor-se e triunfar. O resplandecente parece, assim, totalmente esmagado sob o calcanhar do efetivo, a ponto de identificar-se inteiramente com este. Tudo aquilo que é real é também belo, porque conforme à ocasião, e é em virtude dessa conformidade que pôde tornar-se real. Embora a postura de Górgias tenha podido parecer trágica, pela impossibilidade de aceitar a existência de identidade entre o que é belo e o que é real,9 no entanto, pensando bem, essa identidade para ele é sempre mediada pela apáte, pela sedução da palavra. O resplandecente será efetivo e, vice-versa, o efetivo será resplandecente só onde houver pessoas que forem sensíveis ao fascínio da palavra, só onde, como na Grécia, existiu uma experiência — justamente a grande tradição trágica — em que foi possível “um engano, no qual quem triunfa se amolda melhor à realidade do que quem não triunfa, e quem se deixa enganar é mais sábio do que aquele que não se deixa”.10 Porém em um país onde, por exemplo, as pessoas não têm o hábito de ouvir com atenção os discursos, ou então es* Engano, mais raramente artifício. Sentido helenístico: ilusão, daí passatempo, prazer. (N. do T.)

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quecem facilmente aquilo que ouviram, ou, ainda, como os habitantes da Tessália, são demasiado toscas, demasiado desprovidas de uma experiência sensata (amathésteroi*) para poder ser enganadas pela palavra, por esse poderoso soberano que, com “um corpo diminuto e de todo invisível, realiza obras profundamente divinas”,11 será que num país desses ainda é possível identificar o resplandecente com o conveniente, o belo com o efetivo? No Sócrates xenofôntico, do uso do adjetivo prepódes** deriva-se uma acepção muito mais próxima de adequado e útil do que de belo: “Para os templos e para os altares, a posição mais adequada é um lugar aberto e completamente isolado” (Xen., Mem., III, 8). A beleza de um edifício é totalmente identificada, no Sócrates xenofôntico, com a sua utilidade, com o seu ser krésimos*** ou, melhor, armostós (de armózo, que quer dizer “adequar”). O Sócrates xenofôntico inaugura assim uma concepção funcionalista da beleza que já é inteiramente alheia à identidade originária entre beleza e efetividade implícita no tò prépon. O termo grego armostós corresponde ao latino aptus**** e é precisamente como adequação à finalidade que o decoro é entendido por toda uma tradição de pensamento que se desenvolve sobretudo na Idade Média. Ainda mais radical é a negação de prépon levada a cabo por Platão. É com ele que se inaugura a separação completa entre substância e aparência, entre parecer e ser. Contra Hípias, que defende a identidade entre belo e conveniente, * Ignorantes, não civilizados, grosseiros, que precisam aprender praticamente, por experiência. (N. do T.) ** Conveniente. (N. do T.) *** Qualifica aquilo em que se busca e se encontra recurso. (N. do T.) **** Apto, adequado, conveniente. (N. do T.)

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entre kalón e prépon, o Sócrates platônico separa claramente kalón de efetividade contingente e propõe-se a buscar “um belo tal que não possa parecer feio nunca, de nenhuma forma, a ninguém” (H. M., 291 d), isto é, “o belo em si, o belo que, unindo-se ao que quer que seja, torne isso belo, trate-se de uma pedra ou de um pau, de um homem ou de um deus, de uma ação ou de uma ciência” (H. M., 292 cd). Em nome, portanto, do eîdos* do belo, Platão lança uma crítica radical à sofística — acusando-a de fazer os objetos parecerem mais belos do que realmente são e, conseqüentemente, de enganar os seus ouvintes — e conclui: “Ora, não pode [o belo] ser o conveniente, porque este [...] faz os objetos parecerem mais belos do que realmente são e dissimula o seu verdadeiro caráter” (H. M., 294 b). De resto, a concepção do belo enquanto belo oposto a prépon nada mais é do que um aspecto daquela redução mais ampla e geral do ser a ente, que inaugura a metafísica ocidental; nesta, não há lugar para um belo que seja também efetivo, de um resplandecer histórico que vença enquanto tal. Segundo Platão, “parecer e ser não podem ser fruto de uma mesma e única causa, e não apenas em relação ao belo, mas em relação a qualquer coisa” (H. M., 294 e). O belo é sempre tal, independentemente do fato de que vença ou não. A negação metafísica do conveniente é confirmada por Platão em Íon, a propósito da poesia. A Íon, que se vangloria de saber quais são as coisas que convém que o homem diga, quais a mulher, quais o servo e quais o homem livre, quais quem manda e quais quem obedece, o Sócrates platônico opõe a necessidade de distinguir a palavra que provém * Aspecto, forma. (N. do T.)

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de um verdadeiro saber da palavra poética, que, por graça divina, embora sem nada saber, pode dizer tantas coisas belas sem culpa (Íon, 542 a). Uma defesa da noção de prépon, de conveniente, encontra-se, no entanto, em Isócrates, mas de tal forma que o afasta da atividade oratória praticada na assembléia ou nos tribunais e confere um novo sentido à sua relação com o kairós, com a ocasião. Isócrates, discípulo de Górgias, reforça o fato de que “os discursos não podem ser belos se não estiverem de acordo com as circunstâncias, se não forem adequados ao assunto e não estiverem cheios de novidade” (Sof., 13). De fato, ele censurava tanto a Sócrates e aos socráticos quanto aos mestres da improvisação, como Alcidamante de Eléia, o prescindirem da mobilidade e variedade das situações humanas, de sua diversidade, sobrepondo a elas formas esquemáticas fundamentais que, para os socráticos, consistem precisamente nas idéias e, para os oradores, nos artifícios retóricos. Isócrates compara tais esquemas às letras do alfabeto. Ele tenta, assim, subtrair a problemática do prépon aos riscos que advinham fosse da formulação excessivamente empírica dada por Górgias, fosse das críticas implacáveis lançadas por Platão. Isso é feito mediante duas inovações fundamentais: a ligação do prépon com a problemática da paidéia, da educação, e a adoção do ponto de vista panhelênico. Nascem assim uma interpretação humanista do prépon e a constituição do orador em sujeito. Enquanto para Górgias o orador tanto mais convence e triunfa quanto mais se torna nada e ninguém para poder adequar-se às ocasiões sempre diversas, em Isócrates, ao contrário, o orador, ao tornar-se não só mestre de oratória mas também mestre de vida, faz a persuasão originar-se do fato de ele ser digno de con248

fiança, isto é, da aquisição de uma condição moral que o eleva acima dos políticos e dos escritores forenses.12 Não é sem motivo que Isócrates se autodefine como filósofo e considera sofistas Sócrates e os socráticos. O pan-helenismo, a unidade de todos os gregos contra os bárbaros para além das lutas locais entre as cidades isoladas, confere um conteúdo político a essa solenização e autopromoção do orador e permite-lhe apresentar-se como defensor de um conveniente situado acima da efetividade cotidiana, mas que mantém com esta uma relação muito mais estreita que o “belo enquanto belo” platônico. Com Aristóteles, o redimensionamento das pretensões da retórica em busca de meios que, em torno a cada assunto, possam levar à persuasão, e a determinação de seu objeto de estudo no provável ou naquilo que aparece como tal rompem a vinculação do prépon, seja com o belo — ao qual Aristóteles atribui uma dimensão autônoma —, seja com a efetividade, porque, para Aristóteles, “a verdade e a justiça são, por natureza, mais fortes que os seus contrários” (Ret., 1355 a 21). Entretanto, dado que a maioria não está em condições de aprender os princípios da ciência mediante o ensino e, devido à sua baixeza moral, é persuadida por coisas alheias à pura e simples demonstração, é preciso, na elocução, levar em consideração o fator do conveniente. O conveniente manifesta-se como propriedade, isto é, adequação da elocução às paixões, aos caracteres, aos assuntos de que estiver tratando (Ret., III, 7, 1408 a 10). Principalmente, a representação adequada dos caracteres (éthe*) é * Moradia habitual, ninho dos animais. Desde Hesíodo, forma habitual do ser, costume. (N. do T.)

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importante para a conceituação de prépon; com efeito, ela inaugura uma terceira via, diferente quer da indeterminação absoluta do kairós de Górgias e Isócrates, quer da abstração esquemática dos retores, destinada a determinar tantos convenientes quantas forem as categorias de pessoas detectadas concreta e historicamente a partir de seu éthe, de seus costumes. De fato, afirma Aristóteles: “A elocução expressará os caracteres se, em virtude daquilo que diz, demonstrar que cada grupo e cada disposição é acompanhado pela linguagem apropriada. Entendo por grupo ou pessoas da mesma idade, por exemplo, crianças, homens ou velhos; ou homens ou mulheres, ou ainda gregos ou tessálios; entendo por disposições as que conferem uma certa particularidade à vida. Portanto, o orador, se empregar também termos apropriados à disposição, expressará o caráter” (Ret., III, 1408, 25-30). Nessa interpretação aristotélica, a noção de prépon perde o significado originário de resplandecente efetivo, porque é retomada no âmbito de uma problemática da representação. Não é por acaso que essa noção encontra outra importante aplicação implícita na Poética, quando Aristóteles fala do caráter dos personagens da tragédia e de sua qualidade (Poét., 1454 a 16). Ela perde também a tensão estético-política que caracterizava as posições de Górgias e Isócrates. Para Aristóteles, o conveniente é, no fundo, algo acessório: “Se por acaso alguém encontrar os princípios primeiros, não mais haverá então dialética nem retórica, mas a própria ciência da qual os princípios foram emprestados” (Ret., 1358 a 25). O conveniente aristotélico poderá, assim, constituir o ponto de partida daquela estética do característico que, através de Teofrasto e Horácio, irá desenvolver-se, em oposição à estética classicista do cânon, até o Romantismo. 250

A última tentativa de pensar conjuntamente o belo e o efetivo que o pensamento grego realiza é levada a cabo por Panécio de Rodes. Nesse pensador, no entanto, a palavra prépon é eclipsada por kathékon — derivada da tradição estóica —, que indica a ação conveniente, contraposta ao katórthoma, a ação virtuosa em termos absolutos. Enquanto esta última se origina unicamente do lógos, sendo, portanto, na Antiga Estoa, patrimônio exclusivo do sábio, o kathékon, que é entendido por Zenão no sentido etimológico daquilo que diz respeito, acontece, baixa até alguém, pode ser praticado até pelo insensato. Em relação a essa tradição, Panécio introduz uma correção fundamental, destacando a importância do kathékon, do conveniente circunstancial, em comparação com o katórthoma, o dever absoluto. Além disso, ele interpreta num sentido mais específico e pessoal o preceito de Zenão de viver segundo a natureza, e considera o kathékon precisamente a ação que convém, que está de acordo com a natureza pessoal de cada um. A noção de conveniente — que em Zenão é, antes, algo que surge de repente e que acontece — é interiorizada, permitindo a Panécio atribuir-lhe aquela beleza que os estóicos mais rigoristas reconheciam exclusivamente à virtude. No entanto, a relação entre belo e efetivo, que constitui o cerne conceitual da noção de prépon, parece em Panécio pender em favor de uma realidade social que deve a própria razão de ser a fatores que nada têm a ver com a virtude nem com o belo, de tal modo que a bela aparência da personalidade individual, o estilo de vida harmonioso e elegante,13 mais parece algo acessório a uma efetividade, que se tornou de tal modo totalmente independente, do que a causa ou um elemento inseparável dela: o que, de resto, se harmoniza com a 251

afirmação de Panécio segundo a qual a felicidade requer não apenas a virtude (como afirmam Zenão e Crisipo), mas também a saúde, a riqueza (koreghía) e a força (Diógenes Laércio, VII, 128).

3 O decoro No mundo latino, Cícero é o grande intérprete e divulgador das teorias gregas do prépon, especialmente da versão oratória de Isócrates e da versão moral de Panécio. Sem entrar na vexata questio da originalidade de Cícero diante dos modelos gregos, importa deter-se na palavra latina com a qual ele traduz o termo grego e nas conseqüências teóricas que essa escolha implica. Depois de alguma hesitação,14 essa palavra é traduzida, tanto no Orator como no De officiis, por decorum. Ora, pela etimologia, decorum não tem nada a ver com prépon. Enquanto prépon remete originariamente à unidade entre visão e efetividade, a palavra latina decorum pressupõe, ao contrário, a ligação entre comportamento e efetividade. De fato, decorum vem do verbo impessoal decet,* afim com o védico dasti, cujo significado é “prestar homenagem a”, e cuja origem pode ser buscada na raiz indo-européia *dek- (“receber”, “acolher”, “saudar”, “honrar”). Ele também, portanto, faz referência a uma experiência religiosa, mas essencialmente diferente da grega, isto é, baseada não na visualidade festiva do divino, mas no acolher e tornar própria a vontade dos deuses, no estar à escuta para captar os signos do fatum, na repetição e na veneração. De resto, em latim, também em ou* Convir, parecer decoroso, ficar bem, combinar com. (N. do T.)

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tras palavras, a idéia do belo está muito mais associada ao rito religioso do que à visão: pulcher*, por exemplo, possui um valor especificamente religioso na linguagem dos áugures e designa todo presságio feliz obtido na observação dos pássaros ou no exame de suas vísceras; o termo aplica-se, além disso, às forças divinas propícias, qualifica o ser favorecido pelos deuses, aquilo que resulta da vontade divina, e evoca, em todo caso, uma prosperidade devida aos deuses.15 Coisa análoga pode ser dita de venustus.** Depreende-se daí que na língua latina existe — como na língua grega — uma inseparabilidade originária entre o belo e o efetivo. No entanto, se a ligação grega entre o que aparece e o que é efetivo não pôde ser mantida e, ao chocar-se com a experiência histórica, produziu a saída metafísica, que separa por completo a aparência da realidade, radicalmente diferente é o êxito romano. A identificação entre beleza e comportamento ritual torna mais sólida, em Roma, a relação entre conveniente e efetivo. Isso evidencia-se, principalmente, no modo como Cícero desenvolve no Orator a noção de decorum. O problema do que convém e do que não convém (quid deceat et quid dedeceat) não é submetido a nenhuma apreciação externa e é considerado em si mesmo. O importante nas causas é convencer, agradar, comover; depende do discernimento do orador saber avaliar o que é necessário em cada caso e como cada causa deve ser conduzida. O êxito não é, de forma alguma, separável daquilo que é conveniente (decet). “As condições de fortuna, posição, hierarquia e idade, o momento, o lugar e o auditório não permitem que se utilizem sempre o mesmo estilo e os mesmos pensamentos; * Belo, nobre, famoso, ilustre, glorioso, feliz, venturoso, próspero. (N. do T.) ** Venusto, gracioso, amável, espirituoso. (N. do T.)

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sempre, em oratória como na vida, é preciso ter em conta aquilo que convém” (Orator, XXI). O decorum é determinado por três elementos: pela “re de qua agitur”,* pelas pessoas que falam e por aquelas que ouvem. Por isso, o orador deve dominar todos os três gêneros de oratória: o ático, que é simples, sem ornamentos, caracterizado por uma negligentia diligens;** o médio, rico em metáforas e metonímias, mas plácido e sereno; e, finalmente, o solene, ornamentado, opulento e magnificente. Fere o decorum, sem dúvida, aquele que, diante de um público despreparado, começar a falar com muito ardor; o seu comportamento terá efeitos contrários aos desejados. “Furere apud sanos et quasi inter sobrios bacchari vinolentus videtur” (“Parecerá um louco enfurecido aos sãos e um ébrio vociferante aos sóbrios”) (Orator, XXVIII). Cícero declara admirar especialmente aquele que sabe o que convém em cada caso — a qualidade essencial é saber adequar as palavras às pessoas e aos momentos, porque não se deve falar da mesma maneira nem sempre, nem diante de todos, nem para todos. Uma parte fundamental do De officiis, que requereria um estudo detalhado e específico, é dedicada ao conceito de decorum. Nessa obra, é importante destacar pelo menos quatro elementos de reflexão. Em primeiro lugar, mostra-se evidente a dificuldade de Cícero em determinar o que é que diferencia o decorum do honestum:*** tal distinção é “facilius intelligi quam explanari potest”**** (De officiis, I, XXVII, 93). De resto, remonta a Cícero a formulação da noção do “nescio quid”, do “não sei o quê”, que tanta importância teve no desenvolvi* Assunto que se trata. (N. do T.) ** Cuidadosa negligência.(N. do T.) *** Honestidade, virtude, bem moral. (N. do T.) **** Mais fácil de intuir do que de explicar. (N. do T.)

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mento moderno da estética. Em segundo lugar, é importante destacar o desvio semântico-conceitual de Cícero na tradução do grego kathékon para officium*, que deriva da palavra opus, que, por sua vez, está estritamente ligada ao rito religioso. Isso mostra, em terceiro lugar, que a atitude dos romanos para com a realidade histórica é idêntica àquela que mantinham diante do divino: a intuição fundamental da qual nasce o decorum, quod decet nunca está em contradição com a experiência histórica, ao contrário do que ocorre no caso do prépon grego. Em quarto lugar, talvez seja possível detectar na história da cultura ocidental a influência da noção ciceroniana de decorum, que flui subterraneamente, mas, logo por isso, age de forma mais determinante e efetiva do que a tradição metafísica platônicoaristotélica, tida como a via mestra do pensamento ocidental.

4 A cerimônia A ligação entre forma e efetividade, entre aparência e ritualismo implícita no conceito latino de decorum é ainda mais estreita na noção tipicamente romana de caerimonia. Para compreender essa noção é preciso, primeiramente, livrar-se do preconceito espiritualista que considera a cerimônia um comportamento estereotipado, supérfluo, residual, idolátrico, patológico, maníaco, desesperado; formalismo e esclerose; ausência de profundidade e de substância. Esse preconceito revive cada vez que a caerimonia é pensada como mera carimonia (de careo = “privar-se”, “faltar”), conforme uma falsa etimologia formulada já na Antiguidade. * Ofício, obrigação, dever, obediência, submissão. (N. do T.)

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Baseado em algumas passagens de escritores da época clássica, Karl-Heinz Roloff, autor do mais amplo e exaustivo estudo sobre a palavra e o conceito latino de caerimonia,16 mostra que, a par do significado de ação e de comportamento ritual, o termo designa o próprio ser do divino, o objeto da religião, isto é, o que muito aproximadamente pode ser traduzido por “sacralidade” (Heiligkeit). O fato de cerimônia significar muito mais do que santidade parece provado por uma passagem de Suetônio, que contrapõe à sanctitas do rei a caerimonia dos deuses, indicando com essa palavra precisamente o seu modo de ser, diferente daquele dos soberanos. A palavra não se refere, portanto, a uma falta, mas, bem ao contrário, à plenitude do sagrado; isso explica o fato de que seja, nessa acepção, sempre utilizada no singular, a ponto de ser tida por alguns gramáticos tardios como um plurale tantum.* Quando Cícero fala de uma caerimonia legationis e Tácito de uma caerimonia loci, estão pensando antes no ser da coisa em si do que na atitude ou no sentimento humano para com ela. Por fim, César, em De bello gallico (VII, 2), ao narrar a conjuração urdida contra ele pelos carnutes e outros povos da Gália, diz que estes renunciaram a trocar reféns entre si, evitando assim revelar os seus planos, mas exigiram que, depois de agrupadas em feixe as respectivas insígnias militares, todos empenhassem a palavra e fizessem juramento de não abandonar os outros, uma vez iniciada a guerra. Esse ato é definido por César como uma gravissima caerimonia, porque as insígnias militares reunidas adquirem um poder sacrossanto, objetivo, independente da crença dos homens, a tal ponto que substituem eficazmente a troca de reféns. Portanto, se é preciso falar da qualidade cerimonial do sagrado, ela não pode ser entendida no sentido de festividade * Termo que tem um significado diferente no plural. (N. do T.)

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(Feierlichkeit), aquela contemplação festiva e festejadora que Kerényi atribuía à religião grega, considerada na sua ligação com a visão, com a manifestação, com o esplêndido aparecer do fenômeno.17 No texto de César não há, de modo algum, referência a uma epifania do divino; toda a atenção dos carnutes concentra-se na ação que estão por empreender e na necessidade de fundamentar tal ação histórica, cheia de riscos e de incógnitas, na obediência à gravissima caerimonia das insígnias reunidas. Essa cerimônia não é uma festa celebrada por ocasião da aliança, mas sim a garantia objetiva, extremamente séria e compromissada, de tal aliança. Menos ainda poderá ser entendida a qualidade cerimonial como espetacularidade. Os ludi scaenici* são estranhos à religião romana arcaica, à qual a palavra empregada por César remete.18 É característica da religião romana a profunda indeterminação do aspecto das divindades, de quem, com freqüência, se ignora até mesmo se são masculinas ou femininas – muitas vezes, os deuses romanos reduzem-se a um mero nome. O Panteão romano foi justamente comparado por Dumézil a um mundo de sombras quase imóveis, a uma multidão crepuscular, no meio da qual é difícil perceber um vulto preciso.19 Embora esteja escrevendo sobre os gauleses, é evidente que César lhes atribui, nessa ocasião, um modo de pensar tipicamente romano. Por último, também a caerimonia deorum,** em sua acepção mais profunda, não designa o culto que pertence aos deuses, do qual os deuses são os senhores, nem o culto que lhes é devido, mas antes a exterioridade do modo de ser do sagrado. Aqui, a reflexão sobre os romanos vai ao encontro da teoria do * Espetáculos cênicos. (N. do T.) ** Cerimônia dos deuses. (N. do T.)

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sagrado enquanto “completamente outro”, enquanto diferença, enquanto negação radical de toda concepção antropomórfica do divino. Tal convergência entre uma teoria do sagrado, que lança suas raízes no monoteísmo mais radical, e o paganismo romano, que Hegel considerou uma das formas mais prosaicas de superstição, é, de fato, surpreendente. Contudo, apesar da distância que separa a qualidade cerimonial romana de Jeová, causa perplexidade a convergência objetiva entre a iconoclastia judaica e o aniconismo da religião romana das origens, a qual, segundo a tradição, não conheceu imagens sagradas durante os primeiros cento e setenta anos de sua história. Em todo caso, o essencial é compreender que a exterioridade cerimonial é exatamente o contrário de um existir panorâmico e decorativo. Tão importante quanto o significado objetivo atribuído às “coisas em si” é o significado subjetivo de cerimônia, entendida como operação e comportamento rituais. Todavia, essa segunda acepção do termo, a mais difundida e usual, está estritamente ligada à primeira. Por exemplo, na já referida cerimônia relatada por César, não teria havido sacralidade objetiva alguma se não tivesse sido realizado o ato — visando a um objetivo bem determinado — de reunir todas as insígnias militares. “Nesse sentido, o ato, portanto”, escreve Roloff, “é ele mesmo sacralidade; sem ele, não haveria nada sagrado, mas, por outro lado, somente onde estão reunidos os signa há o sagrado.”20 Assim, a exterioridade não é apenas o aspecto fundamental do ser divino, mas, também e ao mesmo título, o caráter essencial do rito religioso, o qual não tem, de modo algum, necessidade de basear a própria validade em uma crença, em um mito, em uma experiência interior. Aqui aparece claramente a distância que se interpõe entre a religião romana e a teologia da diferença de origem judaica: na primeira, à exterioridade do 258

sagrado corresponde a exterioridade do rito; na segunda, ao contrário, à exterioridade de Deus responde a interioridade do culto.21 Isso não significa que a cerimônia romana rompa — como afirma Hegel — a individualidade de todos os espíritos, sufoque toda vitalidade, ou seja, esteja ligada a uma total insensibilidade emotiva e espiritual. Nela, a relação entre interior e exterior é invertida: não é a interioridade que funda e justifica o culto, mas é a cerimônia — isto é, a repetição extremamente precisa e escrupulosa dos atos rituais — que abre caminho a um tipo de sensibilidade não sentimental e não intimista, mas nem por isso menos articulada e complexa. No relato de César, a cerimônia faz nascer nos conjurados uma solidariedade mais sólida do que a que teria sido garantida pela troca dos reféns. O caráter dessa solidariedade não é exclusivamente religioso — ele é, ao mesmo tempo, também jurídico e político. Não se apreende plenamente o significado romano de caerimonia prescindindo dessa dimensão jurídico-política que, porém, não deve ser entendida no sentido de lex, isto é, de ato voluntariamente vinculante, mas no sentido de ius, isto é, de rito de caráter rigorosamente técnico, de procedimento, no qual o magistrado e as partes desempenham um papel que já foi rigorosamente determinado. A obrigatoriedade da cerimônia, portanto, não dependia do consenso subjetivo dos participantes aos seus conteúdos, mas sim da capacidade dos magistrados de vincular o caso particular com a forma geral e abstrata do rito. O ius é justamente uma ars que “in sola prudentium interpretatione consistit”.* O comportamento cerimonial é determinado, assim, em relação a dois termos, ambos objetivos e externos: a situação * Consiste unicamente na interpretação prudente. (N. do T.)

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específica e a forma ritual. A prudentia consiste precisamente na capacidade de harmonizá-las. Por um lado, a obediência à ocasião, ao dado específico, à oportunidade, não se dissolve em mero oportunismo, porque é exercida com referência a um quadro, a um esquema geral herdado do passado; por outro, a obediência ao ritual não é mera esclerose, porque objetiva a solução de uma questão, de um problema concreto. Essa concordância entre ocasião e forma constitui precisamente um tema recorrente na grande obra dedicada por Jhering, no século passado, ao espírito do direito romano,22 que ele define justamente como “o sistema do egoísmo disciplinado”. O instinto prático dos romanos — observa o autor — havia criado regras e instituições tão elásticas que, mesmo se escrupulosamente observadas, se adaptavam sempre às necessidades do momento. O conceito de exterioridade referido ao mundo romano não significa transcendência de uma lei que se imponha incondicionalmente à interioridade humana; a cerimônia não é a execução de um dever-ser eterno e imutável, nem a atualização de um mistério metafísico: os termos sobre os quais ela se funda são todos objetivos, mas imanentes à história. O sagrado romano não apresenta nenhum caráter panteísta ou místico; ele existe principalmente — observa Roloff — só no caso particular, no acontecimento particular, em plena conformidade com a atitude “casuísta” do modo romano de pensar.23 A cerimônia situa-se no extremo oposto da decoração, do espetáculo, da encenação: ela se revela precisamente como condição de efetividade, de operatividade, de história. Isso é particularmente evidente no conceito romano de tempo, diferente tanto do eterno retorno das sociedades primitivas — com seu ciclo de mortes e renascimentos rituais — como da história linear do judaísmo, com a sua tensão messiânica em 260

direção a uma redenção final. Em Roma, a qualidade cerimonial do tempo é o calendário, uma estrutura formal de dias, meses e festas, que retorna sempre, sem impedir, no entanto, a atividade histórica dos homens; aliás, ela fornece o indispensável ponto de referência para localizar cronologicamente no ato e na memória cada ação particular. No tempo cíclico das sociedades primitivas, — o que importa é a reatualização do arquétipo mítico originário, enquanto o tempo linear do judaísmo considera os feitos de Israel feitos do próprio Deus. Ambos são, embora sob aspectos opostos, tempos mitológicos, isto é, tempos nos quais existe um vínculo inseparável entre a dimensão cronológica e o seu conteúdo, e é precisamente esse vínculo que institui a sacralidade dessas experiências do tempo. O calendário romano, ao contrário, funda um tempo desmitificado, mas nem por isso dessacralizado ou insignificante: ele fornece um quadro, uma rede de referências, um tecido cujos elementos são sagrados, mas não diz a priori o que estes devem conter, nem transforma a posteriori o seu conteúdo em uma história sagrada. A estrutura cerimonial do calendário romano apresentase como condição da história: primeiro, ela deixa indeterminado o caráter concreto do acontecimento; depois, quando este se realiza, não lhe anula a especificidade — inserindoo num processo cujo significado último é a redenção final —, mas preocupa-se em mantê-la, fazendo dela um “precedente”. A qualidade cerimonial do tempo é, no fundo, um trânsito do mesmo para o mesmo — não há nada para ensinar nem para aprender além dos procedimentos, das cerimônias, dos movimentos de rotação, no âmbito dos quais a ocasião, a particularidade mais empírica, a situação específica deve ser exercida. É inútil escapar ao “jogo de Mamúrio”: o essencial é continuar, ape261

sar das pauladas. O ensinamento do ferreiro Mamúrio é oposto ao dos outros “senhores do fogo” da área indo-européia: não o Wut, o furor religioso, a cólera que aterroriza os inimigos, mas a calma, a indiferença, o mimetismo; em uma palavra, a caerimonia.

Notas 1. Por exemplo, em Homero (Ilíada, XII, 104). Remeto ao estudo mais amplo que existe: M. Pohlenz, Tòó prépon. Ein Beitrag zur Geschichte der grieschischen Geistes (1933). In: Kleine Schriften. Hildescheim, Olms, 1965, pp. 100-39. 2. A raiz indo-européia *prep- quer dizer “cair sob os olhos”, “aparência”, “forma”. Cf. J. Pokorny, Indogermanisches etymologisches Wörterbuch. Berna/Munique, 1959, vol. I, p. 845. 3. P. Chantraine, Dictionnaire éthimologique de la langue grecque. Paris, Kliencksieck, 1968. 4. K. Kerényi, Die antike Religion. Munique/Viena, Lagen-Müller, 1969. 5. M. Heidegger, Introduzione alla metafisica. Milão, Mursia, 1968. 6. A. Rostagni, “Un nuovo capitolo nella storia della retorica e della sofistica”. Studi Italiani di Filologia Classica. N. S., II, 1-2, 1922, pp. 148-201. 7. Q. Cataudella, “Sopra alcuni concetti della poetica antica, I, ‘Απατη. Rivista di filosofia classica, 59, 1931, pp. 382-7. 8. M. Untersteiner, (org.), Sofisti. Testimonianze e frammenti, II. Florença, La Nuova Italia, 1967, p. 87. 9. Id., I sofisti. I. Milão, Lampugnani Nigri, 1967, p. 251. 10. M. Untersteiner, Sofisti. Testimonianze e frammenti op. cit., p. 147. 11. Id., p. 99. 12. W. Jaeger, Paideia. La formazione dell’uomo greco. Florença, La Nuova Italia, 1959, vol. 3. 13. M. Pohlenz, Antikes Führertum. Cicero de officiis und das Lebensideal des Panaitios. Leipzig/Berlim, Teubner, 1934, p. 55 e seguintes. 14. M. Pohlenz, Tò prépon, p. 107, nota 2. Num trecho de Orator, Cícero traduz prépon por aptus. 15. P. Monteil, Beau et laid en latin. Étude de vocabulaire. Paris, 1964, p. 72 e seguintes. 16. K.-H. Roloff, “Caerimonia”. Glotta. Zeitschrift für Griechische und Latinische Sprache, vol. XXXII (1953), pp. 101-38. 17. K. Kerényi, op. cit. 18. G. Piccaluga, Elementi spettacolari nei rituali festivi romani. Roma, Edizioni dell’Ateneo, 1965, p. 64.

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19. G. Dumézil, La réligion romaine archaïque. Paris, 1974, p. 50. 20. K.-H. Roloff, op. cit., p. 111. 21. A esse respeito, remeto às teses de E. Levinas: Totalita e infinito. Saggio sull’esteriorita. Milão, Jaka Book, 1980. 22. Von Jhering, R. Lo scopo del diritto. Turim, Einaudi, 1971. 23. K.-H. Roloff, op. cit., p. 121.

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